O Estatuto Da Terra: Entre A Conciliação e o Confronto
O Estatuto Da Terra: Entre A Conciliação e o Confronto
O Estatuto Da Terra: Entre A Conciliação e o Confronto
O Estatuto da Terra:
entre a conciliao e o confronto*
Introduo
Reabramos o Estatuto da Terra: Considera-se reforma agrria o conjunto
de medidas que visem a promover melhor distribuio da terra mediante
modificao no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princpios de
justia social e do aumento da produtividade (PAR, 1964a).
Esta a conceituao de reforma agrria aprovada pelo Congresso Nacional
em 30 de novembro de 1964 no perodo do primeiro governo militar do mal.
Castelo Branco. Trata-se da ltima verso da Lei 4.504, produto de uma acirrada
discusso, embates e acordos sobre a necessidade ou no de uma reforma
agrria no Brasil como condio para a modernizao da agricultura e soluo
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da questo poltica no campo. Cada um de seus termos foi objeto de uma longa
trajetria de emendas, adendos e vetos.
A idia que sustenta a concepo de reforma agrria aqui enunciada a da
reforma fundiria. O ponto chave do argumento consiste na modificao no
regime de posse e uso da terra, matriz da reforma agrria do Estatuto da Terra
e do velho projeto poltico da reforma agrria dos anos 50 e incio dos 60 no
Brasil.1
Contra esta concepo de reforma agrria reafirmada pelo Estatuto da Terra
reagiram os grandes proprietrios de terra e suas entidades de classe que,
h muito mobilizados contra a reforma agrria, sentiram-se trados pelo
governo Castelo Branco. Afinal, a reforma era iniciativa de um regime que
eles respaldaram e, de certa forma, criaram. Em vrias partes do pas a classe
ruralista reagiu prontamente. Os usineiros do Nordeste, por exemplo, viam no
Estatuto da Terra a desestruturao da explorao aucareira; os cafeicultores
do Paran denunciaram que o Estatuto significava o ataque ao direito sagrado de
propriedade; as elites rurais, apoiadas pela linha dura militar insatisfeita com
o legalismo de Castelo Branco, ameaaram pegar inclusive em armas para acabar
com o vrus reformista que atacara o Alvorada. Os empresrios ligados ao
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais de So Paulo, o Ipes/SP, argumentaram
que nada poderia justificar a interveno do governo federal na questo fundiria
e at o momento da aprovao final do anteprojeto, insistiram, que nada se sabe
sobre a eficincia produtiva da estrutura agrria nacional(PAR s/d.b:1).
No entanto, o discurso anti-reformista do ps-golpe, apesar de manter os
mesmos pressupostos utilizados no perodo anterior a 1964, aos poucos
* Verso modificada do artigo enviado para publicao no Cahiers du Brsil
Contemporain. Maison des Sciences de lHomme. Centre de Recherches sur le Brsil
Contemporain. Universit de Paris III, Paris, setembro, 1995.
A pesquisa junto ao Arquivo Paulo de Assis Ribeiro/Arquivo Nacional - Brasil foi
financiada pela Anpocs, em 1987, e contou com a participao de Suzana Pessoa Soares como
auxiliar.
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Para DIncao (1990: 91), o velho projeto poltico de reforma agrria foi gestado nos
anos 50, no bojo do debate poltico desenvolvimentista. Ele surge como parte integrante do
que se tem chamado a revoluo burguesa no Brasil. Tratava-se de eliminar o latifndio
improdutivo, de modo a assegurar a criao de um mercado consumidor interno no meio
rural, a produo de alimentos a baixo preo para a crescente populao urbana e, embora
nem sempre anunciada, a liberao de mo-de-obra e a produo de matria-prima para os
setores industriais em desenvolvimento.
fundamentos da proposta reformista do governo revolucionrio - transformla em institudo, em adquirido. A partir da, operacionalizar um nova idia de
relaes sociais no campo.
Convm lembrar que a prpria conjuntura ps-golpe no estava clara. O ps-64
se apresenta como uma realidade to embaralhada, que melhor seria caracterizla como um perodo de transio. Por certo h uma mudana no regime
poltico, mas a instaurao de um regime militar no significou, de imediato, a
consolidao de um novo padro de desenvolvimento. Este s veio a se definir
inteiramente mais tarde, em 1967/1968, quando da recuperao da economia
e da consolidao da linha dura militar. Por outro lado, o estabelecimento de
um governo militar no significou, a curto prazo, a estruturao de uma nova
ordem poltica. A existncia de comandos diferenciados no golpe, a ausncia de
uma direo poltica e a acirrada disputa pelo poder apontam para o fato de que,
naquele momento, ainda no estava definido o que mais tarde viria a se colocar
como uma ditadura militar.
Essa especificidade de continuidades e descontinuidades na conjuntura psgolpe imps sociedade um novo reordenamento de foras, elegeu novas
prioridades e outros compromissos sociais, diferentes daqueles existentes no
momento anterior e, de certa forma, imprimiu novos contornos lei e ao debate
sobre a reforma agrria no momento de sua elaborao e aprovao.
Vimos que o golpe de maro de 1964 representou uma reao ao governonacional populista de Joo Goulart que, apesar de todos os impasses, abria
espao participao popular. No entanto, as causas imediatas do golpe foram
sobretudo polticas. Elas refletiram o medo ante a fora potencial do movimento
pelas reformas de base, o medo da reforma agrria e da instaurao de uma
repblica sindicalista ou de um regime comunista no Brasil.
Castelo Branco apresentou-se como linha moderada, a favor da legalidade e da
preservao do processo democrtico, defendendo as reformas estruturais e a
reforma agrria.
O primeiro governo militar tinha claro que a superao da crise econmica em
que o pas mergulhara passava por trs questes mais gerais decorrentes das
exigncias do desenvolvimento do capitalismo brasileiro: o combate inflao,
a mudana na poltica externa e a modernizao da agricultura.
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A opo do governo pela reforma agrria, como uma das medidas prioritrias para a
modernizao da agricultura, deveu-se principalmente viso de que o latifndio
representava um obstculo estrutural modernizao e industrializao; e de que
se necessitava neutralizar os conflitos sociais no campo que haviam ultrapassado,
na prtica, os limites do projeto nacional-populista do governo Joo Goulart.
Ao mesmo tempo, Castelo Branco se apropriava da reivindicao mais avanada
da conjuntura anterior - aquela que havia unificado o conjunto da luta e do
movimento pelas reformas de base. Para o governo, era imprescindvel tomar
em mos a bandeira da reforma agrria, pois ela qualificava politicamente a
luta pela terra.
Em certo sentido, a luta pela reforma agrria, como luta democrtica, era uma
luta assimilvel pelo capitalismo, pois assegurava o direito de propriedade. Mais
assimilvel ainda pela existncia de meios de produo ociosos, num perodo
em que se reconhecia a necessidade da modernizao da agricultura. Contudo,
na conjuntura de crise que antecedeu o golpe, de disputa pela hegemonia,
de contradio entre as exigncias do poder econmico e as tendncias
mobilizatrias do poder poltico populista, a luta pela reforma agrria era uma
luta que subvertia.
Ao apropriar-se da bandeira da reforma agrria, o governo Castelo Branco deulhe uma nova feio. Em seu governo as reformas e a reforma agrria foram
tratadas a partir de um compromisso social diferente. Elas se desvincularam
de suas origens sociais e passaram a ser uma concesso da revoluo. Neste
sentido, sob o regime militar os trabalhadores rurais perderam a iniciativa
poltica. O governo Castelo Branco, ao mesmo tempo em que reprimia e
intervinha, passou a controlar o que os trabalhadores deveriam discutir e
reivindicar. Discutia-se a reforma agrria proposta no Estatuto da Terra,
debatia-se a reconstruo do sindicalismo considerada como a nica forma de
organizao definitiva da classe rural e determinava-se sobre a importncia da
extenso rural como o instrumento ideal para a mudana das mentalidades.
Ou seja, houve no apenas um recuo ou uma mudana de tom na luta pela
reforma agrria, mas uma mudana de contedo: passou-se do ataque frontal
ao latifndio defesa do Estatuto da Terra (Bruno, 1985: 5).
Alm do mais, o discurso e as medidas sobre a reforma agrria democrtica
e crist conviviam com os expurgos, a priso e a perseguio das lideranas
identificadas com as Ligas Camponesas; a depurao dos sindicatos rurais; a
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Preceitos e direitos
Bem-estar, direito propriedade e funo social foram consideradas noes
de valor jurdico e alcance social diferentes. O bem-estar um conceito
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Os conceitos bsicos
Uma vez estabelecidos os preceitos e os direitos, buscou-se ento caracterizar
a concepo de reforma agrria e as noes de imvel rural em suas vrias
modalidades: propriedade familiar, minifndio, latifndio e empresa rural.
Com o intuito de responder tanto aos imperativos econmicos como aos
objetivos polticos, as primeiras verses do anteprojeto definiam a reforma
agrria como o conjunto de providncias que visa a ampliao da classe
mdia rural a partir da modificao do regime de posse e uso (PAR, 1964k:
1). Considerava-se que somente assim a industrializao encontraria, no meio
rural, o poder aquisitivo indispensvel sua expanso (PAR, 1964d: 3). No
plano poltico, a priorizao do fortalecimento e expanso de uma classe mdia
rural, em decorrncia das caractersticas que lhe so prprias, funcionaria
como instrumento para neutralizao dos conflitos sociais no campo.
Entretanto a maior preocupao do Gret, e no sem motivos, era no tocante
definio de propriedade familiar e de latifndio.
De fato, perpassa por todo o anteprojeto a defesa da propriedade familiar como
o sistema ideal de propriedade a ser implantado com a reforma agrria, bem
como a preocupao com a conceituao de latifndio a partir do critrio da
dimenso e do nvel de aproveitamento da terra.
A propriedade familiar constitua a base de referncia do mdulo rural, uma
unidade de medida de valor econmico e no mtrico, instituda pelo Gret com
o objetivo de afastar-se de toda filosofia por hectare e de toda turbulncia
em torno da definio sobre a pequena, mdia e grande propriedade (PAR,
1964g: 6). Como o mdulo rural era considerado a ferramenta bsica de todo
o processo de reformulao da estrutura fundiria, a noo de propriedade
familiar encontra-se, direta ou indiretamente, embutida na definio das
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A reao ao anteprojeto
Estes princpios gerais do anteprojeto mantiveram-se praticamente inalterados
em sua essncia at o Encontro de Viosa 8, realizado em julho de 1964, momento
em que o governo foi pressionado a ampliar o debate sobre o Estatuto e tornar
pblico o seu contedo, at ento restrito ao aval dos tcnicos do governo e das
principais lideranas partidrias e patronais.
A partir de ento, o governo e o Gret passam a confrontar-se com a intensa reao
da grande propriedade fundiria e da anti-reforma. O Encontro de Viosa e a
votao do Projeto de lei do Estatuto no Congresso Nacional, em novembro de
1964, foram, sem dvida, os dois momentos de maior tenso, presso, embates
e recuos na construo da lei agrria.
Durante o Encontro de Viosa, quase nada e ningum foram poupados.
Questionava-se desde o ttulo da lei at a competncia de seus formuladores.
Por exemplo, Iris Meinberg, ento presidente da Confederao Rural Brasileira
(CRB), um dos rgos do patronato rural mais atuante contra a reforma agrria,
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O Encontro de Viosa foi patrocinado pelo governo do estado de Minas Gerais e
o Ministrio da Agricultura. Reuniu os secretrios de agricultura de todos os estados
do Brasil com o objetivo de coligir contribuies para o aperfeioamento do Estatuto
da Terra (PAR, 1964m). Na realidade, o Encontro foi a primeira ofensiva mais
significativa da anti-reforma contra o Estatuto da Terra.
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chegou a indagar dos participantes do Encontro por que a lei deveria chamarse Estatuto da Terra (PAR, 1964c). Procurou-se tambm desqualificar os
membros do Gret, sob o argumento de que neste pas to vasto, de dimenso
continental, no possvel que um grupo de homens, por mais cultos, por
mais experimentados, apenas na cpula do governo da revoluo, (...) possa
equacionar os problemas brasileiros. Em contrapartida, defendeu-se que os
secretrios de agricultura que so os verdadeiros representantes do povo. S
eles conhecem os problemas de cada regio porque esto em contato com a terra
e com o povo. Eles so os homens do interior (PAR, 1964m: 51).
Insensveis aos argumentos do Gret e do governo, para quem a tributao
aparecia como uma poltica de planejamento democrtico e um instrumento
de redistribuio de renda e da terra, os grandes proprietrios fundirios
identificavam a tributao como um confisco puro e simples. A sofisticao
das medidas de tributao e a complexidade de seus mecanismos, to
cuidadosamente elaborados por Paulo de Assis Ribeiro, coordenador do Gret,
ao invs de limpar o terreno e acalmar a grande propriedade, foram alguns dos
pontos centrais dos embates, o que muito contribuiu para descaracteriz-la e
fragiliz-la ainda mais enquanto instrumento de reforma agrria. O Imposto
Territorial Rural (ITR), que supostamente reintegraria imediatamente a terra
na sua funo social (PAR, 1964d: 4), tornou-se incuo. No Encontro de
Viosa, deu-se a grande vitria poltica dos latifundirios com a aprovao de
uma proposta de reduo do valor da alquota da tributao das terras de 0,5%
para 0,3%.
Tanto em Viosa, como durante a votao do anteprojeto no Congresso Nacional,
a noo de propriedade familiar foi duramente criticada. Para os donos de terra,
haveria no Estatuto um pensamento dominante de transformao generalizada
da estrutura fundiria no Brasil em propriedade familiar, porque o conceito
de propriedade familiar, como mdulo para aplicao da progressividade
do imposto em funo da dimenso do imvel, exige a institucionalizao da
propriedade familiar. Como a propriedade familiar contrria produtividade
e explorao racional da terra, isso significava a institucionalizao da
propriedade familiar em detrimento da empresa rural (PAR, 1964m), que seria
o paradigma da explorao racional da terra. De nada adiantou o argumento
de que propriedade e famlia so terminologias universais e crists. Pouco
importou a justificativa de que o termo famlia, inserido no texto, representava
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Consideraes finais
Apesar da derrota poltica, restou aos defensores da reforma agrria a
aprovao da lei. A partir de ento o pas dispunha de uma lei de reforma
agrria. Palmeira chama a ateno, com muita propriedade, para o fato de que
independentemente da efetivao de polticas por ela possibilitadas - a reforma
agrria, a modernizao, a colonizao - a nova lei passou a ter uma existncia
social a partir da hora em que foi promulgada. Tornou-se uma referncia capaz
de permitir a reordenao das relaes entre grupos e propiciar a formao de
novas identidades (Palmeira, 1989: 14).
inquestionvel a importncia do Estatuto da Terra. Sabemos que o fato de existir
uma legislao agrria marcou todo o ethos do sindicalismo rural. Como bem
avaliou Regina Novaes, numa discusso sobre a questo, houve uma apropriao
do discurso pr-64 e isto traz luz a marca da continuidade. Na verdade o
Estatuto, que vai fazer a relao entre o Estado e o sindicalismo na luta por terra.
ele que abre o dilogo - tenso, difcil e com lutas - entre os trabalhadores
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Referncias bibliogrficas
Arquivo Paulo de Assis Ribeiro/Arquivo Nacional (PAR). Correio da Manh. Caderno
Especial. Caixa 60, 1964a.
__________. Documento sem ttulo. Caixa 53, s/d.b
__________. Emendas sugeridas ao anteprojeto do Estatuto da Terra. Caixa 62/63,
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__________. Fundamentos do processo de reforma agrria. Caixa 53/57, 1964d.
__________. Justificativa do anteprojeto de Lei de Reforma Agrria. Caixa 53, 1964e.
__________. Parecer do documento do Grupo de Doutrina do IPES/SP sobre o anteprojeto
de reforma agrria do IPES/Rio de Janeiro. Caixa 51/53. s/d.f
__________. O processo de reforma agrria. Caixa 129, 1964g.
__________. A relao Homem - Terra no Brasil. Caixa 53, 1964h.
__________. Anteprojeto do Estatuto da Terra. Primeira verso. Caixa 63, 1964i.
__________. Crticas e justificativas as emendas sugeridas ao anteprojeto do Estatuto da
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__________. Anteprojeto do Estatuto da Terra - segunda verso. Caixa 63, 1964k.
__________. O Estatuto da Terra visto por um fazendeiro. Caixa 53, 1964l.
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Regina Bruno
professora da UFRRJ/CPDA.
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