O Estatuto Da Terra: Entre A Conciliação e o Confronto

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Regina Bruno

O Estatuto da Terra:
entre a conciliao e o confronto*

Introduo
Reabramos o Estatuto da Terra: Considera-se reforma agrria o conjunto
de medidas que visem a promover melhor distribuio da terra mediante
modificao no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princpios de
justia social e do aumento da produtividade (PAR, 1964a).
Esta a conceituao de reforma agrria aprovada pelo Congresso Nacional
em 30 de novembro de 1964 no perodo do primeiro governo militar do mal.
Castelo Branco. Trata-se da ltima verso da Lei 4.504, produto de uma acirrada
discusso, embates e acordos sobre a necessidade ou no de uma reforma
agrria no Brasil como condio para a modernizao da agricultura e soluo
5

da questo poltica no campo. Cada um de seus termos foi objeto de uma longa
trajetria de emendas, adendos e vetos.
A idia que sustenta a concepo de reforma agrria aqui enunciada a da
reforma fundiria. O ponto chave do argumento consiste na modificao no
regime de posse e uso da terra, matriz da reforma agrria do Estatuto da Terra
e do velho projeto poltico da reforma agrria dos anos 50 e incio dos 60 no
Brasil.1
Contra esta concepo de reforma agrria reafirmada pelo Estatuto da Terra
reagiram os grandes proprietrios de terra e suas entidades de classe que,
h muito mobilizados contra a reforma agrria, sentiram-se trados pelo
governo Castelo Branco. Afinal, a reforma era iniciativa de um regime que
eles respaldaram e, de certa forma, criaram. Em vrias partes do pas a classe
ruralista reagiu prontamente. Os usineiros do Nordeste, por exemplo, viam no
Estatuto da Terra a desestruturao da explorao aucareira; os cafeicultores
do Paran denunciaram que o Estatuto significava o ataque ao direito sagrado de
propriedade; as elites rurais, apoiadas pela linha dura militar insatisfeita com
o legalismo de Castelo Branco, ameaaram pegar inclusive em armas para acabar
com o vrus reformista que atacara o Alvorada. Os empresrios ligados ao
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais de So Paulo, o Ipes/SP, argumentaram
que nada poderia justificar a interveno do governo federal na questo fundiria
e at o momento da aprovao final do anteprojeto, insistiram, que nada se sabe
sobre a eficincia produtiva da estrutura agrria nacional(PAR s/d.b:1).
No entanto, o discurso anti-reformista do ps-golpe, apesar de manter os
mesmos pressupostos utilizados no perodo anterior a 1964, aos poucos
* Verso modificada do artigo enviado para publicao no Cahiers du Brsil
Contemporain. Maison des Sciences de lHomme. Centre de Recherches sur le Brsil
Contemporain. Universit de Paris III, Paris, setembro, 1995.
A pesquisa junto ao Arquivo Paulo de Assis Ribeiro/Arquivo Nacional - Brasil foi
financiada pela Anpocs, em 1987, e contou com a participao de Suzana Pessoa Soares como
auxiliar.
1
Para DIncao (1990: 91), o velho projeto poltico de reforma agrria foi gestado nos
anos 50, no bojo do debate poltico desenvolvimentista. Ele surge como parte integrante do
que se tem chamado a revoluo burguesa no Brasil. Tratava-se de eliminar o latifndio
improdutivo, de modo a assegurar a criao de um mercado consumidor interno no meio
rural, a produo de alimentos a baixo preo para a crescente populao urbana e, embora
nem sempre anunciada, a liberao de mo-de-obra e a produo de matria-prima para os
setores industriais em desenvolvimento.

foi perdendo sua fora poltica e ideolgica, e mudando a lgica de suas


argumentaes, porque no mais podia afirmar que a reforma agrria de
Castelo Branco significava a instaurao do comunismo no Brasil. Os antireformistas e os grandes proprietrios fundirios haviam defendido e apoiado
publicamente uma reforma agrria democrtica e crist contra o que
consideravam a opo socialista. Agora verificavam que a proposta do primeiro
governo militar significava a vitria da opo democrtica e crist, e a derrota
da proposta socialista que, segundo eles, pregava o confisco como elemento
preferencial da reforma e objetivava a implantao de luta de classe no campo
(PAR, s/d.b).
Contra a reforma agrria idealizada pelo novo governo, eles j no podiam mais
reivindicar apenas uma poltica agrcola. Desde o incio, o anteprojeto do Estatuto
da Terra se antecipara, incluindo tal proposta no texto - bastante minuciosa e
absolutamente coerente com as demandas das elites agrrias e empresariais.
Nesse momento, ganham peso outras argumentaes. Se antes eles foram
obrigados a reconhecer a existncia de uma questo fundiria no Brasil, agora
s reconheciam a questo rural.
Inmeras foram as sugestes e os substitutivos, que surgiram e se avolumaram
propondo modificar a definio de reforma agrria do Estatuto da Terra. O
principal argumento era de que no havia um problema agrrio no pas, e sim
um problema rural, e que este no decorria primordialmente da estrutura
de propriedade. Portanto, o que se pretende(ia) com a reforma agrria (...)
no dar nfase reforma fundiria. Eles afirmavam que o Estado dispunha
de outros meios e de modos muito mais eficazes e rpidos para obrigar os
seus proprietrios a dar uso social a terra. Urgia, sustentavam, entender que
o problema da agricultura no Brasil est intimamente ligado falta de uma
adequada poltica econmica, e no resulta, na maioria dos casos, do fato do
trabalhador rural no ser proprietrio da terra que cultiva. E concluam:
as reas economicamente explorveis encontram-se ociosas, por falta de
uma infra-estrutura mnima, que os poderes pblicos no souberam ou no
quiseram dar-lhes (PAR, 1964c: 1-3).
At mesmo o preceito da justia social - moeda corrente na poca e bandeira do
governo Castelo Branco - foi objeto de atrito entre o governo e a movimentao
da anti-reforma, por se achar que justia social, se includa no texto da lei,
poderia justificar a desapropriao por interesse social.
7

Eles tambm no podiam mais agir violentamente, porque o seu potencial de


luta encontrava-se desgastado: o empresariado e os grandes proprietrios de
terra haviam acabado de ganhar a batalha contra as foras populares. Claro
que, se o golpe fosse originrio do projeto populista, eles certamente teriam
reagido de forma incomparavelmente mais violenta.2
Nesta conjuntura ps-golpe, a discusso sobre a reforma agrria migra para
o campo institucional, e os grandes proprietrios de terra no tiveram outro
recurso poltico seno priorizar a ttica da presso e do boicote ao projeto de
lei. Recusaram-se em participar das reunies programadas pelo governo para
discutir a reforma agrria, apresentaram substitutivos e emendas face a um
governo sempre disposto a negociar, atento aos interesses dos latifundirios,
e a ampliar, o mximo possvel, as fronteiras e os limites dessas negociaes,
ainda que, ao mesmo tempo ciente, firme, e s vezes intransigente quanto
necessidade de modernizao do latifndio como condio da arrancada em
direo ao desenvolvimento.
As crticas e as demandas de reformulao do anteprojeto de lei do Estatuto da
Terra no se limitaram conceituao de reforma agrria. Todas as questes
que, direta ou indiretamente, referiam-se problemtica fundiria foram
acidamente questionadas. Os principais pontos de atrito, invariavelmente,
convergiam para a concepo de reforma agrria, a viabilidade da pequena
propriedade familiar, a noo de uso social da terra, o sentido do justo valor e o
valor das alquotas das possveis desapropriaes e a definio de latifndio.
Em torno destes pontos, cada conceito, palavra e vrgula foram exaustivamente
dissecados e analisados: por exemplo, discutia-se, se a expresso mais correta
deveria ser direito propriedade ou direito de propriedade da terra;
argumentava-se que a palavra minifndio deveria anteceder a latifndio em
todas as situaes de penalizao e normatizaes restritivas; propunhase a incluso da expresso quando necessria a todos os pargrafos que
abordassem a modificao do regime de posse e uso da terra; criticava-se a
demanda de uma estrutura agrria mais justa sob o argumento de que, com
ela, estava subentendida a noo de injustia; sugeria-se a substituio do
termo propriedades comprovadamente exploradas pelo de propriedades
convenientemente exploradas; e, como se no bastasse, argumentava-se que, ao
2
Para maiores informaes sobre a questo ver: Bruno (1985); Gomes da Silva
(1971); Medeiros (1983 e 1993).

invs do conceito latifndio, por que no utilizar o termo grande propriedade


rural?.3
Enfim, vemos que a questo fundiria situava-se na base de todas as
argumentaes e divergncias. Eles pretendiam eliminar do texto da lei,
a incmoda - porque profundamente poltica e ideolgica - questo da
propriedade.
* * *
A minha contribuio para a reflexo sobre a questo da reforma agrria no
Brasil ser apresentar, em linhas gerais, o debate que se travou em torno do
Estatuto da Terra no momento de sua elaborao: o perodo compreendido
entre a primeira formulao do Anteprojeto, elaborada pelo governo em
abril de 1964, at sua dcima quarta verso, e aprovao final pelo Congresso
Nacional, em novembro do mesmo ano. Gostaria de apreender o debate luz
daquilo que formulado e ver como os diferentes atores se confrontam e se
conciliam - explicitando mais nitidamente quais os interesses em jogo, as
disputas e os privilgios de cada um - ao estabelecerem os instrumentos legais
e institucionais da lei de reforma agrria.
Mas no apenas o jogo dos interesses econmicos, polticos e pessoais que
configura o processo de elaborao do Estatuto da Terra. Encontramos tambm
indivduos convictos - imbudos pelo af da mstica reformista: homens que
no cogitavam s em ganhar ou ter razo, e que acreditavam situar-se acima das
contendas existentes, orientados, segundo eles, pela certeza interior de lutar e
proclamar o que nas coisas clamava por ser dito.
Analisar os embates em torno da construo do Estatuto de Terra, por sua vez,
uma situao que retrata toda a complexidade inerente lgica dos processos
decisrios ao nvel da poltica institucional. Ela tambm revela uma das
dimenses mais instigantes da reflexo sobre a lei: a noo de lei como campo
de fora, de disputa e conflito, de acordos e negociaes.
Este artigo expressa uma primeira tentativa de organizao do material de minha
pesquisa sobre o Estatuto da Terra que, por motivos pessoais e institucionais,
no pude realiz-la a contento. Aproveito a oportunidade para agradecer a todos
3
A categoria latifndio havia se transformado, por fora do movimento campons,
numa categoria poltica: como a expresso do monoplio e da violncia. (CF. Novaes,
1987; Martins, 1981).

aqueles que, no decorrer do meu trabalho, contriburam com o seu valioso


testemunho. Agradeo especialmente aos senhores: Acioly Borges, Amaral
Peixoto, Carlos Lorena, Dryden Arezzo, Jos Gomes da Silva, Paulo de Assis
Ribeiro (seu valioso arquivo, legado Histria) e Ivan Ribeiro, este ltimo meu
colega junto ao CPDA. Com o Ivan redescobri, nos anos 80, a utopia reformista e
aprendi que utopias, mitos e convices fazem parte da realidade e, em algumas
situaes, so definidoras do destino da vida e da morte.

Uma nova feio da reforma agrria: continuidades e rupturas


Fixar um momento da histria do Estatuto da Terra para melhor apreendermos
a sua complexidade no significa abrir mo das continuidades e das rupturas
da lei.
Ao discorrer sobre o Estatuto da Terra, Dreifuss afirma que essa lei uma
combinao da linguagem da Aliana para o Progresso, com o discurso
modernizante da Carta de Punta del Este e a Doutrina da Escola Superior
de Guerra (Dreifuss, 1981: 198). Por certo o Estatuto contm importantes
elementos de continuidade com relao ao perodo anterior sua formulao e
aprovao, pelo governo militar.
H vnculos e identificaes que se cruzam e, apesar das diferenas dos
objetivos e do estatuto poltico e ideolgico de cada uma destas vertentes, elas
compartilham vrios interesses comuns; encontram-se referenciadas por uma
mesma escala de valores e precedentes histricos. Suas principais coordenadas
so: necessidade de modernizao da agricultura; a noo de latifndio como
obstculo estrutural ao desenvolvimento e industrializao; e a implementao
de uma classe mdia rural no campo.
Mas, para alm das heranas existentes, h no Estatuto descontinuidades e
rupturas que so produtos da nova conjuntura social, econmica e poltica que
se abre com o golpe de 1964.
O principal elemento que conforma a ruptura a institucionalizao de uma
determinada vertente do pensamento reformista, que, no perodo anterior,
apresentava-se muito mais como um programa de enfrentamento ao projeto
nacional populista do governo Joo Goulart do que como uma proposta efetiva
reformas. Convinha agora pr em prtica os princpios e preceitos at ento
formalmente defendidos. Para tanto, era necessrio elevar categoria de lei os
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fundamentos da proposta reformista do governo revolucionrio - transformla em institudo, em adquirido. A partir da, operacionalizar um nova idia de
relaes sociais no campo.
Convm lembrar que a prpria conjuntura ps-golpe no estava clara. O ps-64
se apresenta como uma realidade to embaralhada, que melhor seria caracterizla como um perodo de transio. Por certo h uma mudana no regime
poltico, mas a instaurao de um regime militar no significou, de imediato, a
consolidao de um novo padro de desenvolvimento. Este s veio a se definir
inteiramente mais tarde, em 1967/1968, quando da recuperao da economia
e da consolidao da linha dura militar. Por outro lado, o estabelecimento de
um governo militar no significou, a curto prazo, a estruturao de uma nova
ordem poltica. A existncia de comandos diferenciados no golpe, a ausncia de
uma direo poltica e a acirrada disputa pelo poder apontam para o fato de que,
naquele momento, ainda no estava definido o que mais tarde viria a se colocar
como uma ditadura militar.
Essa especificidade de continuidades e descontinuidades na conjuntura psgolpe imps sociedade um novo reordenamento de foras, elegeu novas
prioridades e outros compromissos sociais, diferentes daqueles existentes no
momento anterior e, de certa forma, imprimiu novos contornos lei e ao debate
sobre a reforma agrria no momento de sua elaborao e aprovao.
Vimos que o golpe de maro de 1964 representou uma reao ao governonacional populista de Joo Goulart que, apesar de todos os impasses, abria
espao participao popular. No entanto, as causas imediatas do golpe foram
sobretudo polticas. Elas refletiram o medo ante a fora potencial do movimento
pelas reformas de base, o medo da reforma agrria e da instaurao de uma
repblica sindicalista ou de um regime comunista no Brasil.
Castelo Branco apresentou-se como linha moderada, a favor da legalidade e da
preservao do processo democrtico, defendendo as reformas estruturais e a
reforma agrria.
O primeiro governo militar tinha claro que a superao da crise econmica em
que o pas mergulhara passava por trs questes mais gerais decorrentes das
exigncias do desenvolvimento do capitalismo brasileiro: o combate inflao,
a mudana na poltica externa e a modernizao da agricultura.
11

A opo do governo pela reforma agrria, como uma das medidas prioritrias para a
modernizao da agricultura, deveu-se principalmente viso de que o latifndio
representava um obstculo estrutural modernizao e industrializao; e de que
se necessitava neutralizar os conflitos sociais no campo que haviam ultrapassado,
na prtica, os limites do projeto nacional-populista do governo Joo Goulart.
Ao mesmo tempo, Castelo Branco se apropriava da reivindicao mais avanada
da conjuntura anterior - aquela que havia unificado o conjunto da luta e do
movimento pelas reformas de base. Para o governo, era imprescindvel tomar
em mos a bandeira da reforma agrria, pois ela qualificava politicamente a
luta pela terra.
Em certo sentido, a luta pela reforma agrria, como luta democrtica, era uma
luta assimilvel pelo capitalismo, pois assegurava o direito de propriedade. Mais
assimilvel ainda pela existncia de meios de produo ociosos, num perodo
em que se reconhecia a necessidade da modernizao da agricultura. Contudo,
na conjuntura de crise que antecedeu o golpe, de disputa pela hegemonia,
de contradio entre as exigncias do poder econmico e as tendncias
mobilizatrias do poder poltico populista, a luta pela reforma agrria era uma
luta que subvertia.
Ao apropriar-se da bandeira da reforma agrria, o governo Castelo Branco deulhe uma nova feio. Em seu governo as reformas e a reforma agrria foram
tratadas a partir de um compromisso social diferente. Elas se desvincularam
de suas origens sociais e passaram a ser uma concesso da revoluo. Neste
sentido, sob o regime militar os trabalhadores rurais perderam a iniciativa
poltica. O governo Castelo Branco, ao mesmo tempo em que reprimia e
intervinha, passou a controlar o que os trabalhadores deveriam discutir e
reivindicar. Discutia-se a reforma agrria proposta no Estatuto da Terra,
debatia-se a reconstruo do sindicalismo considerada como a nica forma de
organizao definitiva da classe rural e determinava-se sobre a importncia da
extenso rural como o instrumento ideal para a mudana das mentalidades.
Ou seja, houve no apenas um recuo ou uma mudana de tom na luta pela
reforma agrria, mas uma mudana de contedo: passou-se do ataque frontal
ao latifndio defesa do Estatuto da Terra (Bruno, 1985: 5).
Alm do mais, o discurso e as medidas sobre a reforma agrria democrtica
e crist conviviam com os expurgos, a priso e a perseguio das lideranas
identificadas com as Ligas Camponesas; a depurao dos sindicatos rurais; a
12

interveno na Superintendncia da Reforma Agrria, a Supra e a revogao


dos decretos sobre a questo fundiria estabelecidos no governo anterior. Ao
lado do preceito da justia social e democracia, apostava-se no esvaziamento
das instituies democrticas, na gradativa destruio dos mecanismos de
mediao entre o Estado e a sociedade e na neutralizao dos setores mais
liberais que apoiaram o golpe militar temendo o comunismo, mas acreditando
no restabelecimento do regime constitucional. Ao mesmo tempo em que
impunha sua reforma agrria junto grande propriedade fundiria, o governo
militar minava as possveis bases polticas e sociais de apoio ao seu projeto
reformista.
Por sua vez, diferentemente do que se costumava acreditar na poca, o Brasil
vivia uma realidade economicamente desfavorvel implementao da
reforma agrria, pois j havia novos interesses no campo e quem se afirmava
era o setor mais internalizado, mais moderno, parte integrante do sistema
capitalista internacional (Bruno,1985:26). Estava-se rompendo, na prtica, a
velha dicotomia latifndio-minifndio, que constitua a base de avaliao do
governo militar sobre a agricultura e de todo o pensamento reformista dos anos
50 e 60.4
Por fim, a estratgia da poltica econmica mais geral, que viria a definir os
marcos de uma orientao poltica produtivista j apontava, desde ento, para a
opo que prevaleceria nos anos 70, por aquilo que se convencionou chamar de
modernizao conservadora - um modelo de desenvolvimento concentrador
de terra, de capital e poder.
Nesta perspectiva, no de todo incorreta a avaliao de Viana Filho quando
afirma que enquanto se debatia a reforma agrria na imprensa, nas associaes
de classe e nos partidos polticos, iniciou-se um programa de tecnificao da
agricultura, crdito rural e garantia de preos mnimos. A compra de tratores
4
Segundo Nelson Delgado (1993: 2), um dos equvocos do projeto da esquerda
nos anos 50/60, era o de pressupor uma agricultura relativamente simplificada e
estereotipada em dois plos opostos mas complementares, o latifndio e o minifndio,
que predominariam em todos os cantos do meio rural brasileiro. Com isso, afirma o
autor, subestimava-se enormemente a complexidade/heterogenei-dade da agricultura
j existente naquela poca: a ocupao produtiva da fronteira agrcola no Paran e no
Centro-oeste, a pequena produo familiar mercantilizada do Centro-sul, a produo
capitalista com absoro de progresso tcnico em So Paulo, e a presena e, mesmo, a
importncia econmica da grande produo capitalista (proprietria ou no) que era
simplesmente considerada como latifndio, etc. (Delgado, 1993: 2).

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e dos chamados insumos modernos ganhou tratamento privilegiado para


melhoria da produtividade no campo ao tempo em que se abriam crditos a
longo prazo (Viana Filho, 1976: 262).

O Gret e as premissas do Estatuto da Terra


Aps definir, politicamente, perante a sociedade, a reforma agrria como uma
das medidas prioritrias, o governo militar tomou para si a tarefa de regular e
disciplinar, ao nvel institucional, a questo fundiria. Foi constitudo, ento,
um Grupo de trabalho sobre o Estatuto da Terra (Gret) com a tarefa de elaborar
um documento que servisse de base para a formulao do Anteprojeto do
Estatuto da Terra e das Emendas Constitucionais.
O Gret, como ficou conhecido, tinha como objetivo estudar e apresentar ao
presidente da Repblica os fundamentos e os princpios gerais de uma primeira
verso sistematizada da lei de reforma agrria do governo revolucionrio (PAR,
1964d: 2), e elaborar o esboo das Emendas Constitucionais. Formou-se assim
um espao legal de interveno do Estado sobre a questo fundiria.
Faziam parte do Gret a vertente reformista do IPES, coordenada por Paulo de
Assis Ribeiro, principal idelogo da proposta reformista desta instituio; os
remanescentes da experincia de Reviso Agrria do Governo Carvalho Pinto
em So Paulo em 19595, onde uma das figuras mais expressivas foi Jos Gomes
da Silva; vrios representantes tcnicos e polticos dos principais ministrios;
e dois ministros de Estado, Roberto Campos e Oscar Thompson. O Gret contava
ainda com a tutela direta do General Golbery do Couto e Silva - chefe do Servio
Nacional de Informao, o SNI, principal idelogo da revoluo - e, quando
necessrio, o acompanhamento do prprio Castelo Branco.6
5
O Plano de Reviso Agrria do Governo Carvalho Pinto objetivava incentivar alteraes
na estrutura fundiria atravs de uma nova sistemtica de Imposto Territorial Rural, ao mesmo
tempo em que promovia a colonizao de terras pblicas. No centro da proposta estava a idia
de fortalecer uma classe mdia rural, capaz de sustentar um regime democrtico (Medeiros,
1989: 61). Ver tambm Tolentino (1990).
6
Faziam parte do Gret: os ministros do Planejamento e da Agricultura, Roberto de
O. Campos e Hugo de A. Leme; representantes do Ministrio do Planejamento: Paulo de
Assis Ribeiro (coordenador do Gret), Jos A. T. Drumont Gonalves, C. J. Assis Ribeiro,
Luiz Gonzaga Nascimento e Silva, Jlio Csar B. Viana, Frederico Maragliano e Eudes de
Souza Leo Pinto; representantes da Supra: Dr. Jos Gomes da Silva (interventor da Supra),
Fernando Sodero, Messias Junqueira e Carlos Lorena. Alm de Jos Garrido Torres do BNDE
e Coprnico de Arruda Cordeiro do Ministrio da Agricultura. (PAR, 1964p:1).

14

Com esta composio do grupo de trabalho, o governo abriu espao para o


pensamento reformista do IPES - grupo hegemnico no interior do Gret - e,
assim, determinou os traos fundamentais do perfil do anteprojeto: elegeu a
tributao como instrumento prioritrio da reforma, legitimou o modelo da
pequena propriedade familiar e reforou a noo de propriedade condicionada
ao exerccio da funo social.
Por certo que havia divergncias entre o Grupo de Campinas e a vertente
reformista do Ipes, em especial sobre qual seria o instrumento prioritrio da
reforma agrria - se a tributao ou desapropriao. Enquanto Paulo de Assis
Ribeiro defendia a tributao como meio eficaz para fazer valer o uso produtivo
da terra, Jos Gomes da Silva e o Grupo de Campinas questionavam sua eficcia,
devido o peso poltico da grande propriedade no interior do Estado e tendiam
a considerar a desapropriao como prioritria (Lorena, 1984). Mas, apesar
das divergncias era maior o consenso em torno de algumas questes bsicas,
o que possibilitou o trabalho conjunto e a elaborao dos princpios e preceitos
da reforma agrria. Todos os componentes do Gret tinham em comum o
anticomunismo; a definio de reforma agrria como uma reforma fundiria;
a mstica do rgo puro como um aparelho especial com funes normativas,
um organismo forte que deveria planejar e executar a reforma (PAR, 1964e: 2);
a idia de que basta vontade poltica para fazer prevalecer a reforma agrria e a
certeza de que atravs da dissuaso e da persuaso os grandes proprietrios de
terra e os anti-reformistas seriam convencidos sobre a importncia da reforma
agrria no pas.
A escolha do grupo de Paulo de Assis Ribeiro do Ipes/Rio de Janeiro para
coordenar os trabalhos significou tambm a tentativa de isolamento, ao nvel
da poltica fundiria, do Grupo de Doutrina e Estudos do Ipes de So Paulo,
que aglutinava vrios representantes do empresariado e sempre se posicionara
contra as veleidades reformistas do Grupo do Rio. No pr-64, o Ipes de So
Paulo s aceitou a proposta de reforma agrria do Ipes/Rio de Janeiro, porque
ela teria como objetivo desacreditar o projeto do governo Goulart e a proposta
do movimento campons (PAR, s/df: 1). Na concepo do Ipes-SP, a reforma
agrria, qualquer que fosse a sua matriz ideolgica ou sua face terica, era invivel
e indesejvel porque representava uma grave ameaa ao direito de propriedade.
A demanda por um sistema justo de propriedade era inaceitvel, porque
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importaria implicitamente na condenao atual do sistema de propriedade


privada do ponto de vista moral. Este Grupo discordava da noo de funo
social da terra, sob o argumento de que esta envolveria uma concepo semisocialista e reduziria o proprietrio mera condio de gerente a servio da
comunidade. E, sobretudo, no admitia a defesa da pequena propriedade
familiar sob a argumentao de que por trs do conceito de propriedade
familiar camuflava-se a concepo de que a condio de assalariado indigna
do ser humano, o que envolve uma condenao implcita do capitalismo. Alm
do mais, a defesa da propriedade familiar revela uma inslita preveno contra
a propriedade de dimenso superior a propriedade familiar, o que, para eles,
era doutrinariamente inaceitvel (PAR, s/df: 1).
O Gret transformou-se ento na instncia onde se elaboraram os fundamentos
da lei de reforma agrria e das estratgias oficiais de poltica fundiria. As
medidas do governo sobre o disciplinamento da propriedade da terra passaram
pelo Gret, ou dele partiram. Foi o canal competente e legtimo que agregou,
em torno de si, quase todas as decises de ordem prtica, poltica e terica.
A sua proposta passou a ser ento o discurso oficial do primeiro governo
revolucionrio. Era o projeto do Executivo. Neste contexto, o Gret que
vai estabelecer os contornos e as fronteiras do que ser ou no discutido sobre
a questo fundiria pelas elites polticas e empresariais e, posteriormente, pelo
Congresso Nacional e pela sociedade.
As Emendas Constitucionais visavam modificar os critrios de desapropriao
por interesse social, estabelecer novas regras de tributao e instituir uma
justia agrria autnoma. Mas, no decorrer dos debates preliminares, a criao
de uma justia agrria autnoma no contou com o apoio das elites polticas e
foi imediatamente eliminada do texto, restando apenas a incluso da palavra
agrrio na alnea da Constituio que trata do assunto, o que permitiu Unio
legislar sobre o direito agrrio como um ramo autnomo do Direito.
Quanto s novas regras de tributao, estas foram aceitas e coube Unio a
responsabilidade pela definio dos critrios de lanamento e cobrana da
tributao da terra. Aps muitos atritos e negociaes, tambm aceitou-se a
possibilidade de pagamento em Ttulos da Dvida Pblica para indenizaes
relativas s desapropriaes por interesse social - uma das bandeiras do
16

movimento campons que tanta reao havia causado no perodo anterior a


1964.
Imbudos de uma nova tarefa - elaborar a lei do Estatuto da Terra como o
principal instrumento de efetivao da reforma - , os componentes do Gret
acreditavam ter chegado finalmente o momento histrico nico para a
realizao de uma reforma agrria no Brasil. Em sua opinio, com o governo
Castelo Branco abria-se objetivamente a possibilidade da reforma agrria.
A revoluo de 1964 havia afastado o perigo do comunismo e neutralizara o
radicalismo daqueles que impediam a reforma, porque no admitiam qualquer
modificao na estrutura de propriedade vigente. Agora, sim, num clima de
ordem, paz e democracia, seria possvel realizar a ambicionada reforma agrria
democrtica e crist e, assim, derrotar, na prtica, a opo socialista.
No entanto, muito cedo percebeu-se que a revoluo no garantira a aceitao
da reforma agrria por parte dos grandes proprietrios fundirios; assim como a
represso ao movimento social no abolira as circunstncias propcias luta pela
terra e a reforma agrria. E o Gret elaborou os princpios gerais do anteprojeto de
reforma agrria com um olho voltado para a conjuntura anterior de mobilizao
e de lutas reivindicatrias, e outro para o momento atual de reao proposta de
reforma agrria do governo militar, visando aprender o que se deveria evitar da
experincia anterior e o que se poderia negociar na conjuntura atual.
Em resposta luta pelas reformas de base e reforma agrria, ainda vigorava,
entre os membros do Gret, a idia de que qualquer reforma agrria uma opo
entre dois sistemas: aquele que leva, pelo confisco, grande propriedade cujo
titular o Estado (...) e a que se prope substituir a estrutura latifundiria pela
progressiva implantao de uma classe mdia rural de pequenos proprietrios,
cultivando unidades familiares (PAR, 1964d: 2).
A reforma agrria foi considerada, pelos principais idelogos do Gret um
empreendimento nacional, abrangente e no de poltica partidria, nem de
luta de classe: era uma tarefa mais complexa que o desenvolvimento industrial
porque o seu alcance era mais amplo e seus objetivos mais profundos (PAR,
1964d: 8-9).
Uma segunda preocupao diretamente ligada mobilizao anterior a 1964
foi a demanda pela instituio de uma justia agrria, como instrumento
de neutralizao dos conflitos. A Constituio brasileira no estabelecia a
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autonomia do Direito Agrrio: era necessrio, pois, efetiv-la o mais rpido


possvel porque, na concepo do Gret, as Ligas Camponesas se originaram
muito mais da falta de uma justia agrria do que propriamente de problemas da
terra. O problema da terra era quase secundrio nas questes que ali existiam. O
grande problema era a falta de uma justia(PAR, 1964g: 2). Finalmente, vemos
o Gret preocupado em resolver, atravs do Estatuto da Terra, o problema do
absentesmo, responsvel pela falta de controle da reao dos trabalhadores
rurais (PAR, 1964g: 2).
Se, de um lado, no ignoraram o pr-64 - pelo contrrio, supunham o movimento
social, a luta pelas reformas de base e a proposta de reforma do governo Joo
Goulart - , de outro subestimaram a oposio da grande propriedade e do
empresariado reforma agrria. Ou superestimaram a fora da revoluo
ao acreditar que os militares poderiam facilmente desvencilhar-se da grande
propriedade fundiria, bastando-lhes a iniciativa poltica. Este tipo de
pensamento e de crena prprio das conjunturas de transio e de mudanas
autoritrias: acreditarem-se absolutos e no reconheceram sua relatividade
histrica.
Surpresos com a fora da reao reforma agrria do governo revolucionrio,
os intelectuais do Gret perceberam logo de incio que, embora a revoluo
houvesse garantido o fim da radicalizao, isso no era suficiente, nem bastava
simplesmente ater-se aos princpios gerais de uma reforma agrria democrtica
e crist. Havia a necessidade de formular uma lei objetiva e restrita o mximo
possvel em seus termos, que satisfizesse, sobretudo, distribuio racional da
terra.
O rigor conceitual garantiria, segundo eles, a hierarquia das prioridades e
seria a argamassa na elaborao de um sistema coerente de princpios capaz
de responder a toda a situao e as provveis dificuldades de negociao. A
objetividade da lei era concebida, naquele momento, como fundamental para
diminuir os espaos, as brechas e as burlas, para limpar o terreno e reduzir ao
mnimo a reao (PAR, 1964d: 6).

Preceitos e direitos
Bem-estar, direito propriedade e funo social foram consideradas noes
de valor jurdico e alcance social diferentes. O bem-estar um conceito
18

filantrpico, de contorno vago e impreciso. Seja! Mas importante porque


referenda a desapropriao por interesse social e legitima a reforma agrria.
A funo social, por suas repercusses no direito de propriedade, ao contrrio,
exige destaque e uma conceituao precisa, devendo assentar-se exclusivamente
sobre sua pedra angular: o trabalho. Desse modo, a obrigao com a explorao
no ficaria ao sabor dos interesses de cada um.
Quanto ao direito de propriedade, este deveria ser ao mesmo tempo amplo
e restrito, pois ao passo que a lei garante a todos o direito de propriedade,
esta garantia cai por terra quando a propriedade passa a ser condicionada pela
sua funo social. Embora o Gret tenha se esforado no sentido de delinear
as distines entre a inobservncia ou o no enquadramento na lei violao
pura e simples, maleabilizando, por conseguinte, o diagnstico quanto
funo social de uma propriedade, foi justamente esse particular que polarizou
e radicalizou o processo para a estruturao de uma reforma agrria no Brasil
(PAR, 1964g: 2).
Ainda sobre o direito de propriedade, afirmava-se que: pela propriedade da
terra que se forjam as qualidades bsicas de previso e capacidade administrativa
e se dissemina uma forte melhora educacional e do progresso social (PAR,
1964d: 2).
O principal fundamento do Estatuto da Terra, expresso na primeira verso
do Anteprojeto, era exatamente aquilo que, segundo o Gret, desde 1946 a
Constituio determinara e no era cumprido: isto , que o uso da propriedade
da terra fosse condicionado sua funo social (PAR, 1964d: 2).
A funo social deveria se nortear - de acordo com a doutrina social da Igreja pelo respeito e solidariedade social e a criao de condies que assegurassem
a co-participao dos trabalhadores nas vantagens derivadas da explorao. A
co-participao dizia respeito s relaes de trabalho, consideradas arcaicas,
e propunha sua transformao ao estilo do trabalhador industrial com os
donos de empresa, onde tambm estaria includa normas de participao na
gerncia, nos lucros (PAR, 1964h: 18).
Por certo que estes aspectos eram importantes, mas o elemento definidor da
noo de funo social era o trabalho, o cultivo da terra, no interesse do bem
comum. S com o trabalho, argumentavam, que seria possvel enfrentar a
especulao, a ociosidade - uma tendncia estrutural fincada na estrutura da
grande propriedade (PAR, 1964d: 7).
19

A propriedade desempenha integralmente a sua funo social quando favorece


o bem estar dos proprietrios e trabalhadores e suas famlias; mantm nveis
altos de produtividade; assegura a conservao dos recursos naturais e cria
justas relaes de trabalho (PAR, 1964i: 1).
A incluso do termo integralmente para o desempenho da funo social, ao
invs de controlar melhor a observncia da funo social, posteriormente, deu
margens a inmeros equvocos, possibilitando a ocorrncia do exerccio da
funo social no necessariamente integral. Por sua vez, ao estabelecer que o
pleno exerccio da funo social implicaria em direitos e deveres, (inclusive do
Poder Pblico), o Anteprojeto, permitiu grande propriedade desenvolver o
argumento de que ela no exerce uma funo social por falta de apoio do Estado
que no est cumprindo a obrigao de zelar, estimular e promov-la.
Para a operacionalizao da noo de funo social da terra o Gret estabeleceu
que sua realizao corresponderia ao uso da terra que basicamente atendesse,
aos seguintes princpios: o uso eficiente, ou seja, a adoo de uma tecnologia
adequada explorao da terra; o uso direto, que evitaria a ausncia dos
proprietrios e as ms formas de contrato agrcola, arrendamento e parceria;
e, finalmente, o uso correto, que garantiria a conservao dos recursos naturais,
culturais e humanos que assegurasse s geraes futuras o uso da terra. (PAR,
1964g: 4).
No entanto, desde j foram abertas brechas, inevitveis talvez, ao pleno
exerccio da funo social que tanto defendiam pois, em face das presses dos
parlamentares, num dado momento, o Gret argumentava que o uso da terra
deveria ser condicionado funo social sim, desde que se verifiquem as
condies mnimas indispensveis demandadas pela presso da representao
das entidades patronais, numa curiosa anlise de que as presses seriam uma
resultante da funo social (PAR, 1964j: 7).
Ainda com relao aos preceitos e aos direitos, j na primeira verso foram
suprimidos e relativizados todos os enunciados que diziam respeito aos
direitos dos trabalhadores rurais. H uma excluso, j que esses direitos no
so claramente institudos em lei, tendo sido transformados em deveres do
Estado. O trabalhador rural, mais do que sujeito de aes e demandas, , antes, o
receptculo, beneficirio e objeto de uma poltica. Por exemplo, no manuscrito

20

do primeiro Anteprojeto, onde constava direito do trabalhador rural o acesso


propriedade da terra economicamente til, de preferncia nos locais onde
habita, h uma rasura feita lpis e a seguinte indicao de substituio:
dever do Poder Pblico promover o acesso (PAR, 1964i: 2).

Os conceitos bsicos
Uma vez estabelecidos os preceitos e os direitos, buscou-se ento caracterizar
a concepo de reforma agrria e as noes de imvel rural em suas vrias
modalidades: propriedade familiar, minifndio, latifndio e empresa rural.
Com o intuito de responder tanto aos imperativos econmicos como aos
objetivos polticos, as primeiras verses do anteprojeto definiam a reforma
agrria como o conjunto de providncias que visa a ampliao da classe
mdia rural a partir da modificao do regime de posse e uso (PAR, 1964k:
1). Considerava-se que somente assim a industrializao encontraria, no meio
rural, o poder aquisitivo indispensvel sua expanso (PAR, 1964d: 3). No
plano poltico, a priorizao do fortalecimento e expanso de uma classe mdia
rural, em decorrncia das caractersticas que lhe so prprias, funcionaria
como instrumento para neutralizao dos conflitos sociais no campo.
Entretanto a maior preocupao do Gret, e no sem motivos, era no tocante
definio de propriedade familiar e de latifndio.
De fato, perpassa por todo o anteprojeto a defesa da propriedade familiar como
o sistema ideal de propriedade a ser implantado com a reforma agrria, bem
como a preocupao com a conceituao de latifndio a partir do critrio da
dimenso e do nvel de aproveitamento da terra.
A propriedade familiar constitua a base de referncia do mdulo rural, uma
unidade de medida de valor econmico e no mtrico, instituda pelo Gret com
o objetivo de afastar-se de toda filosofia por hectare e de toda turbulncia
em torno da definio sobre a pequena, mdia e grande propriedade (PAR,
1964g: 6). Como o mdulo rural era considerado a ferramenta bsica de todo
o processo de reformulao da estrutura fundiria, a noo de propriedade
familiar encontra-se, direta ou indiretamente, embutida na definio das

21

demais categorias sociais e nos principais instrumentos da reforma agrria.7


Como fundamento para a definio de propriedade familiar, os componentes
do Gret tinham em mente uma noo muito prxima a de empresa-famlia, ao
estilo dos farmers. Argumentava-se que a propriedade familiar corresponderia
a um sistema de cultivo da terra e tambm a um modo de viver, sobre o qual
a Europa construiu sua civilizao e os Estados Unidos a sua prosperidade.
Portanto, seria errneo pensar que esse tipo de propriedade fundiria
corresponde a uma fase superada da Histria e imaginar que o progresso tcnico
e econmico da nao norte-americana est associado grande propriedade
(PAR, 1964d: 6).
A propriedade familiar no eliminaria as demais formas de propriedade
existentes e nem competiria com a grande empresa rural, considerada como o
modelo da explorao racional da terra, a expresso da rentabilidade tima
e a base do desenvolvimento econmico nacional. No entanto, a propriedade
familiar proporcionaria todas as facilidades para a implementao de um tipo
regional de propriedade agrcola onde o lavrador poderia reunir, em si, as
funes de proprietrio, gerente e trabalhador (PAR, 1964d: 6).
Quanto ao latifndio, buscou-se qualific-lo segundo sua dimenso e grau de
aproveitamento da terra. Portanto, foram consideradas como latifndios as
propriedades caracterizadas para fins marcada-mente especulativos; aquelas
mantidas inexploradas relativamente e em proporo s possibilidades
fsicas, econmicas e sociais do meio; os imveis rurais total ou parcialmente
explorados com formas de uso deficientes ou inadequados; e as propriedades
cuja dimenso excedia ao limite mximo indicado nos termos da lei e pelas
condies e sistemas agrcolas regionais (PAR, 1964k: 3).
Como fundamento para a definio de latifndio diagnosticou-se uma rigidez
na estrutura latifundiria, e isso foi fator impeditivo ao desenvolvimento de
uma cultura empresarial, alm de contribuir para o maior distanciamento
Mdulo rural e propriedade familiar apresentavam-se como conceitos
indissociveis. Enquanto o mdulo foi definido como a unidade familiar para cada
regio e para cada tipo de explorao (...) A rea necessria a um tipo de explorao
para garantir famlia, subsistncia e processo econmico e social (PAR, 1964g: 9).
A propriedade familiar, por sua vez, era designada como o estabelecimento de rea
mnima que, direta e pessoalmente cultivada pelo lavrador e sua famlia, ou eventual
ajuda de terceiros, garante-lhes a subsistncia, progresso social e econmico (PAR,
1964k: 9).
7

22

entre elite e povo. Os males do latifndio no se restringiam ao rural, e


seriam responsveis pela no qualificao da mo-de-obra, a favelizao, o
empreguismo e o peleguismo.
Para o Gret, o latifndio, independente do fato de ser produtivo ou no,
representava um grave problema. O improdutivo, cumpria extingui-lo
progressiva e aceleradamente. J o produtivo, quando obsoleto, na sua
vertente mercantil tipo plantation, necessitava ser condicionado ao interesse
econmico e preservao da funo social.
A empresa rural, por sua vez, foi definida como o estabelecimento racionalmente
explorado por entidade pblica ou privada, individual ou coletiva, que adote
prticas conservacionistas, apresente rendimentos considerados satisfatrios e
que oferea, aos que trabalham, condies que garantam nvel de vida no inferior
assegurado pela remunerao do salrio mnimo regional (PAR, 1964k: 3).
No havia, neste primeiro momento, uma maior preocupao do Gret com relao
definio da empresa rural. A grande empresa agrcola ou agroindustrial, por
exemplo, no era considerada objetivo precpuo da lei de reforma agrria (PAR,
1964d: 3). O que marcava a definio de empresa rural era a explorao racional
da terra e a busca de rendimentos satisfatrios. Havia uma grande flexibilizao
quanto ao conceito de empresa rural, e o objetivo era ajust-lo s possibilidades
da modernizao do latifndio, em especial o latifndio produtivo. Ou seja,
encorajar o latifndio produtivo a transformar-se em cooperativa de produtores,
comunidade de trabalhadores ou em empresas agrcolas (PAR, 1964h: 17).
Nesse sentido, a mal definida empresa rural, isenta de desapropriao, seria
a brecha escapatria para a continuidade do latifndio. Isso posteriormente
foi confirmado por um dos membros do Gret, para quem a noo de empresa
rural era a de um latifndio razoavelmente explorado. Consistia na proteo
propriedade razoavelmente explorada, chegando-se ao excesso material de
dar-lhe o nome de empresa (PAR, s/d.l: 2).
Fim da improdutividade, uso racional da terra, exerccio da funo social e o
privilegiamento da propriedade familiar, como modelo ideal de propriedade
a ser implantado com a reforma agrria foram, portanto, os principais eixos
definidores do projeto reformista do Gret neste primeiro momento de
elaborao do Estatuto da Terra.
Mas, desde j, estes conceitos conviviam, no sem atritos, com uma srie
de impasses e contradies advindas da prpria lgica reformista que os
23

respaldava. Por exemplo, a eleio da propriedade familiar como o sistema ideal


de propriedade e a implementao de um tipo regional de propriedade agrcola
encontravam-se fragilizadas ante a opo por uma reforma agrria localizada e
restrita a reas prioritrias. Alm disso, a existncia de perspectivas e de objetivos
diferenciados entre a propriedade familiar e a empresa rural introduziu, no
anteprojeto, uma determinada viso sobre o produtivo e o distributivo como
processos separados, cada um com sua lgica prpria, suas regras especficas e
seus diferentes atores. E o que deveria ser pensado como um processo nico, na
realidade, resultou desigual e segmentado. A propriedade familiar, apesar de
toda identificao com a experincia norte-americana, restringia-se garantia
da subsistncia, do progresso social e econmico e promoo da justia social.
A empresa rural, por sua vez, no obstante toda a flexibilizao conceitual,
desponta como a base de sustentao, o lugar de excelncia e o corolrio do uso
racional da terra, da rentabilidade e do desenvolvimento nacional.

A reao ao anteprojeto
Estes princpios gerais do anteprojeto mantiveram-se praticamente inalterados
em sua essncia at o Encontro de Viosa 8, realizado em julho de 1964, momento
em que o governo foi pressionado a ampliar o debate sobre o Estatuto e tornar
pblico o seu contedo, at ento restrito ao aval dos tcnicos do governo e das
principais lideranas partidrias e patronais.
A partir de ento, o governo e o Gret passam a confrontar-se com a intensa reao
da grande propriedade fundiria e da anti-reforma. O Encontro de Viosa e a
votao do Projeto de lei do Estatuto no Congresso Nacional, em novembro de
1964, foram, sem dvida, os dois momentos de maior tenso, presso, embates
e recuos na construo da lei agrria.
Durante o Encontro de Viosa, quase nada e ningum foram poupados.
Questionava-se desde o ttulo da lei at a competncia de seus formuladores.
Por exemplo, Iris Meinberg, ento presidente da Confederao Rural Brasileira
(CRB), um dos rgos do patronato rural mais atuante contra a reforma agrria,
8
O Encontro de Viosa foi patrocinado pelo governo do estado de Minas Gerais e
o Ministrio da Agricultura. Reuniu os secretrios de agricultura de todos os estados
do Brasil com o objetivo de coligir contribuies para o aperfeioamento do Estatuto
da Terra (PAR, 1964m). Na realidade, o Encontro foi a primeira ofensiva mais
significativa da anti-reforma contra o Estatuto da Terra.

24

chegou a indagar dos participantes do Encontro por que a lei deveria chamarse Estatuto da Terra (PAR, 1964c). Procurou-se tambm desqualificar os
membros do Gret, sob o argumento de que neste pas to vasto, de dimenso
continental, no possvel que um grupo de homens, por mais cultos, por
mais experimentados, apenas na cpula do governo da revoluo, (...) possa
equacionar os problemas brasileiros. Em contrapartida, defendeu-se que os
secretrios de agricultura que so os verdadeiros representantes do povo. S
eles conhecem os problemas de cada regio porque esto em contato com a terra
e com o povo. Eles so os homens do interior (PAR, 1964m: 51).
Insensveis aos argumentos do Gret e do governo, para quem a tributao
aparecia como uma poltica de planejamento democrtico e um instrumento
de redistribuio de renda e da terra, os grandes proprietrios fundirios
identificavam a tributao como um confisco puro e simples. A sofisticao
das medidas de tributao e a complexidade de seus mecanismos, to
cuidadosamente elaborados por Paulo de Assis Ribeiro, coordenador do Gret,
ao invs de limpar o terreno e acalmar a grande propriedade, foram alguns dos
pontos centrais dos embates, o que muito contribuiu para descaracteriz-la e
fragiliz-la ainda mais enquanto instrumento de reforma agrria. O Imposto
Territorial Rural (ITR), que supostamente reintegraria imediatamente a terra
na sua funo social (PAR, 1964d: 4), tornou-se incuo. No Encontro de
Viosa, deu-se a grande vitria poltica dos latifundirios com a aprovao de
uma proposta de reduo do valor da alquota da tributao das terras de 0,5%
para 0,3%.
Tanto em Viosa, como durante a votao do anteprojeto no Congresso Nacional,
a noo de propriedade familiar foi duramente criticada. Para os donos de terra,
haveria no Estatuto um pensamento dominante de transformao generalizada
da estrutura fundiria no Brasil em propriedade familiar, porque o conceito
de propriedade familiar, como mdulo para aplicao da progressividade
do imposto em funo da dimenso do imvel, exige a institucionalizao da
propriedade familiar. Como a propriedade familiar contrria produtividade
e explorao racional da terra, isso significava a institucionalizao da
propriedade familiar em detrimento da empresa rural (PAR, 1964m), que seria
o paradigma da explorao racional da terra. De nada adiantou o argumento
de que propriedade e famlia so terminologias universais e crists. Pouco
importou a justificativa de que o termo famlia, inserido no texto, representava
25

to somente uma simples base de referncia, uma imposio aritmtica. No


entanto, para os donos de terra, a noo de propriedade familiar significava
muito mais. A bem da verdade, a crtica propriedade familiar demonstrou que
propriedade e famlia s so considerados conceitos universais e s so aceitos
como fundamento da tradio crist quando excluem a pequena propriedade.
Ao mesmo tempo que fincavam as suas principais trincheiras na defesa do
latifndio, os anti-reformistas trouxeram, para o centro da discusso, a
problemtica de empresa rural. Latifundirios e empresrios se apresentaram
como os guardies da empresa rural, e consideraram toda e qualquer medida de
poltica fundiria como uma agresso empresa rural e um limite possibilidade
de expanso da grande empresa capitalista no campo.
A partir desta reao, o Gret se v diante da necessidade de elaborar mais
atentamente a noo de empresa rural. Esta continuaria a expressar a efetivao
do aproveitamento racional da terra, mas j se estabeleceu desde a a nfase
na introduo de novas tcnicas de produo como uma de suas condies
fundantes. Em torno da noo de empresa agrcola, comea a se ordenar
todo um conjunto de pressupostos econmicos, polticos e sociais acerca da
redefinio das relaes entre agricultura e indstria, da reconfigurao das
relaes sociais no campo e do padro tecnolgico a ser desenvolvido.
Do ponto de vista poltico e social, a instaurao da empresa agrcola deveria
ocupar um lugar privilegiado no conjunto das novas categorias jurdicas em
formao. Nesse sentido, a grande empresa rural no poderia apresentar, por
exemplo, o mesmo estatuto que o latifndio ou o minifndio, nem uma definio
similar ao da pequena propriedade familiar. As empresas significariam muito
mais do que meros corpos econmicos onde se realiza a produo. Elas seriam
tambm a expresso de novos corpos sociais e polticos que harmonizam
o interesse privado e o interesse pblico em uma sntese superior que o
interesse da empresa (PAR, 1964n: 5).
Para isso seria necessria a consolidao de uma categoria social emergente:
o empresrio rural. E a possvel transformao do latifndio em empresa
passaria obrigatoriamente pela transmutao do latifundirio em empresrio,
cujos atributos seriam racionalidade, criatividade e esprito de iniciativa
para gerir os negcios e fazer face s necessidades de modernizao e aos
imperativos de desenvolvimento da Nao. Esses verdadeiros agricultores, e
26

no simplesmente donos de terra, deveriam portar uma mentalidade evoluda


e democrtica, sempre aberta s inovaes tecnolgicas.
Com o encaminhamento do anteprojeto para votao junto ao Congresso
Nacional, em novembro de 1964, abriu-se, ento, o segundo momento seguramente o mais tumultuado - de redefinio do Estatuto da Terra, o que
levou o Gret e o governo a uma nova reavaliao de suas prioridades.
primeira vista, parecia que as negociaes e os acordos entre as lideranas
estabelecidos anteriormente no haviam sido suficientes para garantir o
consenso e a aprovao da lei. Tudo voltara estaca zero. No Congresso Nacional sede das representaes regionais e lcus privilegiado de auto-representao da
grande propriedade fundiria - , as velhas questes de princpio so retomadas
com todo o vigor e intransigncia que lhes so prprias. E o radicalismo
verbal dos donos de terra ganha nos corredores e nas tribunas - este espao de
alinhavo dos processos decisrios - sua marca registrada.
De um modo geral, as emendas e os substitutivos apresentados buscavam
modificar toda a filosofia e sistemtica da reforma agrria. Os argumentos
expressavam uma lgica anti-reformista secular, mas de grande eficcia em
todos os momentos da Histria em que a reforma agrria volta ordem do dia.
Reforma agrria sim, afirmavam, mas sem modificao da estrutura fundiria.
Quase todos os substitutivos apresentados condenavam o anteprojeto por
subordinar em demasia o conceito de reforma agrria ao regime de posse e uso
da terra (PAR, 1964c). A noo de democracia foi condicionada intocabilidade
da propriedade fundiria, e no se admitia nenhuma distino na garantia
do direito de propriedade. Exigiam-se a retirada da noo de latifndio por
dimenso e a supresso do instrumento da desapropriao; requeria-se a
desobrigao por parte da empresa rural de comprovar uma rea mnima
explorada e de usar prticas conservacionistas; e determinava-se a omisso de
toda e qualquer referncia ao absentesmo do proprietrio (PAR,1964c). Quanto
ao justo valor da tributao, quando aceito, este deveria ser convencionado
amigavelmente entre as partes. Criticava-se at mesmo a reforma agrria
gradual, sob o argumento de que ela induziria lenta e desapercebidamente a
uma mentalidade socializante (PAR, 1964c).
Ante reao, abre-se, ento, uma nova rodada de negociaes entre as
lideranas polticas, as elites rurais e o governo. Dentre os acordos firmados,
temos, por exemplo, a garantia de que a reforma agrria seria um processo
27

meramente transitrio e a ao permanente caberia poltica agrcola. Ao


mesmo tempo, assegurava-se a expanso da empresa agrcola como a opo
democrtica e principal objetivo do processo de modernizao do campo.
Esta grande vitria poltica dos grandes proprietrios de terra legitimou todo o
discurso ideolgico que consistia em separar a reforma agrria da modernizao.
At 1985, estas idias constituram-se no principal mote dos governos para
fazerem prevalecer a modernizao conservadora e suprimir da poltica de
reforma agrria toda a dimenso modernizante.
Aps a votao do Estatuto, os representantes do Gret, decepcionados,
reconheceram que as inmeras alteraes mutilaram a sistemtica dos
trabalhos originais e criaram excees prejudiciais a um xito mais completo
da reforma agrria. No entanto, admitiram que foram as concesses
conciliatrias que, apesar de prejudicar a unidade e a sistemtica do projeto,
tiveram a virtude de congregar a maioria capaz de aprov-lo no Congresso
(PAR, 1964o). Mas, ao mesmo tempo, chegaram constatao que a sociedade
brasileira tem insistido em conservar o direito de propriedade absoluto, como
no direito romano, permitindo no apenas o uso, mas tambm o abuso da
coisa possuda. E que a fora do proprietrio incontrastvel, o que o torna
onipotente em seus domnios (PAR, 1964p).

Consideraes finais
Apesar da derrota poltica, restou aos defensores da reforma agrria a
aprovao da lei. A partir de ento o pas dispunha de uma lei de reforma
agrria. Palmeira chama a ateno, com muita propriedade, para o fato de que
independentemente da efetivao de polticas por ela possibilitadas - a reforma
agrria, a modernizao, a colonizao - a nova lei passou a ter uma existncia
social a partir da hora em que foi promulgada. Tornou-se uma referncia capaz
de permitir a reordenao das relaes entre grupos e propiciar a formao de
novas identidades (Palmeira, 1989: 14).
inquestionvel a importncia do Estatuto da Terra. Sabemos que o fato de existir
uma legislao agrria marcou todo o ethos do sindicalismo rural. Como bem
avaliou Regina Novaes, numa discusso sobre a questo, houve uma apropriao
do discurso pr-64 e isto traz luz a marca da continuidade. Na verdade o
Estatuto, que vai fazer a relao entre o Estado e o sindicalismo na luta por terra.
ele que abre o dilogo - tenso, difcil e com lutas - entre os trabalhadores
28

rurais e o Estado. Mas tambm importante no esquecermos que, atravs


do Estatuto, o Estado no s conferiu identidade jurdica s categorias sociais
antes existentes, como as redefiniu politicamente. Ao torn-las legais, filtrou
uma determinada concepo de reforma agrria e conceitualizou o que seria
latifndio, propriedade familiar, empresa rural, funo social, desapropriao,
tributao, etc., que desde suas origens j se encontravam permeados por
uma dupla lgica. Uma, distributivista, pela democratizao da propriedade
fundiria, incentivo empresa familiar como modelo ideal de propriedade e
penalizao do latifndio; e outra, produtivista, pela concentrao de terra,
capital e trabalho, e consolidao da grande empresa capitalista.
O Estatuto por exemplo, definiu latifndio com base na improdutividade e na
dimenso, certo, mas desencarnou do conceito os atributos outorgados pelo
movimento campons: o latifndio como expresso da violncia e da sujeio. A
lei estabeleceu a propriedade familiar como base da reforma agrria, verdade,
mas delegou grande empresa rural a funo condutora da modernizao
e nico exemplo eficaz do uso racional da terra. Os idelogos do anteprojeto
lutaram acirradamente e garantiram que a reforma agrria fosse vinculada
problemtica fundiria, porm caracterizaram latifndio e empresa rural como
noes que atendem a regras comuns e se interpenetram continuamente.
Vale lembrar que a preocupao do Gret em definir rigorosamente cada conceito,
discriminar todos os seus contornos e eliminar os possveis engodos esbarrou
numa realidade muito mais complexa do que aquela redesenhada nos preceitos,
na pureza conceitual, na busca pela objetividade, na viso do Estado como
condutor do processo histrico, na crena do poder da negociao e da persuaso
junto grande propriedade, e, sobretudo, na viso sobre distributivismo e
produtivismo como processos diferenciados e diferenciadores.
Por sua vez, durante todo perodo de discusso e de elaborao do anteprojeto,
o imperativo da negociao e as inmeras concesses aos donos de terra foram
considerados pelo Gret e pelo governo como recuos tticos necessrios
aprovao do Estatuto.
Porm, a ltima verso do anteprojeto, aprovada pelo Congresso Nacional,
apresentou-se no como uma lei enxuta e sim como uma imensa coleo de
ambigidades, ressalvas e vetos. Teve incio, ento, j em 1964, a modificao
do Estatuto exatamente nos aspectos que de forma mais direta estiveram
vinculados ao processo de reforma agrria. Foi a derrota estratgica.
29

A experincia do anteprojeto comprova a velha idia de que a questo agrria


quando tratada em nvel institucional passvel de ser absorvida no confronto
das foras polticas. Em particular quando se tem como cenrio o Brasil, uma
das especificidades haver secretado uma classe poltica simultaneamente
vinculada aos interesses agrrios e ao desempenho das funes do Estado
(Camargo, 1985: 123).
Por certo, a existncia de uma lei de reforma agrria e sua apropriao pelo
movimento social representou muito, mas no o suficiente. pouco, quando se
tem em conta a lei como institucionalizao de um processo histrico de lutas,
embates e projetos polticos diferenciados. H uma imensa defasagem entre
as alternativas existentes no movimento social da poca e o que resultou desse
processo de elaborao e aprovao do Estatuto.
O que deveria ter sido o ponto de partida foi, na realidade, o de chegada.

Referncias bibliogrficas
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Especial. Caixa 60, 1964a.
__________. Documento sem ttulo. Caixa 53, s/d.b
__________. Emendas sugeridas ao anteprojeto do Estatuto da Terra. Caixa 62/63,
1964c.
__________. Fundamentos do processo de reforma agrria. Caixa 53/57, 1964d.
__________. Justificativa do anteprojeto de Lei de Reforma Agrria. Caixa 53, 1964e.
__________. Parecer do documento do Grupo de Doutrina do IPES/SP sobre o anteprojeto
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Regina Bruno
professora da UFRRJ/CPDA.

Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 5-31.

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