Balanço Historiografico Escravidao Brasil
Balanço Historiografico Escravidao Brasil
Balanço Historiografico Escravidao Brasil
Resumo: Ao longo das duas ltimas dcadas, a historiografia brasileira vem chamando a ateno para a necessidade de se alargar
espacialmente o mbito das anlises sobre a Amrica portuguesa
para alm das fronteiras de Portugal e de sua conquista americana,
espraiando anlises em escala imperial e em perspectiva comparada,
amparadas nos conceitos fundamentais de Imprio portugus e Antigo Regime. No bojo desse movimento revisionista, a escravido
tema dos mais clssicos da historiografia brasileira e estrangeira no ficou inclume. Nesse estudo, debatendo os argumentos
presentes na historiografia recente (1999-2007) acerca das temticas
do trfico negreiro (atlntico e interno), da legislao escravista e da
alforria, procuramos dimensionar diacrnica e sincronicamente as
formulaes dos especialistas referentes ao impacto da independncia da Amrica portuguesa sobre a escravido no Brasil provincial,
assinalando rupturas e continuidades.
Palavras-chave:
Escravido. Ps-independncia. Sincronia/Diacronia
Enviado em 29 de janeiro
de 2009 e aprovado em 01
de junho de 2009.
Entre 1930 e 1980, produziu-se, no Brasil, uma massa no negligencivel de livros, artigos e teses universitrias inditas, versando sobre o escravismo brasileiro e sua
comparao com outros escravismos americanos, o trfico de escravos e as relaes do
Brasil colonial com a frica portuguesa, enfim a destruio do sistema econmico-social
baseado na escravido e as adaptaes posteriores abolio. 1
Em 1981, ao prefaciar Ser escravo no Brasil de Ktia Mattoso, Ciro Flamarion Cardoso observou o dficit da produo historiogrfica sobre o escravismo do Brasil. O
historiador constatou, naquele momento, a existncia de graves lacunas, no apenas ao
nvel da problemtica abordada, bem como do ponto de vista metodolgico. guisa de
exemplo, C. F.Cardoso citou a tmida produo relativa demografia dos escravos, s
atividades autnomas dos escravos nos nveis agrcola e comercial, s resistncias e s
revoltas variadas dos cativos, e ainda alforria e situao dos libertos estudos bem
desenvolvidos para as ilhas caribenhas e para os Estados Unidos (CARDOSO, 1982: 8).
1 Para uma sntese detalhada dessa produo historiogrfica: Cf., entre outros, LARA (2001) e SCHWARTZ
(2001).
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Hoje, podemos dizer, sem margem de erro, que a historiografia sobre o escravismo brasileiro avanou. Se antes temas como o da alforria e da vida dos libertos eram
terrenos inspitos, agora consistem em terras bem freqentadas pelos historiadores
de nossa histria colonial e do Imprio. Por outro lado, os estudos sobre o tema mencionado avanaram em direes diversas, para alm do que, no incio da dcada de 1980,
eram temas negligenciados entre os historiadores. Segundo Silvia H. Lara,
A partir da dcada de 1980, os estudos sobre a escravido dos africanos e seus descendentes no Brasil passaram por transformaes que
redimensionaram a abordagem do tema. Questionando as amarras estruturais de paradigmas explicativos fixados na dcada de 1960, vrios
pesquisadores enfatizaram a necessidade de procurar outras perspectivas de anlise [...] Recuperando movimentos e ambigidades que antes
poderiam parecer surpreendentes, valorizaram a experincia escrava,
que passou a ser analisada com base em outros parmetros. Assim,
os valores e as aes dos escravos foram incorporados como elementos importantes para a compreenso da prpria escravido e de suas
transformaes (LARA, 2005: 25).
Deste modo, estudos como os de Robert Slenes e de Sidney Chalhoub criticaram a reificao do escravo, que passou a ser o vetor de sua experincia e sujeito de sua
prpria histria. Neste sentido, a busca pela liberdade passou a ser vista sob a tica do
prprio cativo, agente de sua prpria passagem da condio jurdica de cativo para
liberto. Na esteira desta nova abordagem, diversos estudos recentes [...] voltaramse ento para a anlise das prticas cotidianas, costumes, enfrentamentos, resistncias,
acomodaes e solidariedades, modos de ver, viver, pensar e agir dos escravos (LARA,
2005: 25).
Em Portugal, no incio dos anos 1980, o historiador portugus Antnio Manuel
Hespanha encabeou um movimento de reviso historiogrfica, cuja caracterstica primordial consiste numa profunda transformao da anlise do Antigo Regime portugus.
A perspectiva de um poder centralizado e absoluto foi perdendo peso frente a uma
abordagem que frisava as redes de poder da Monarquia portuguesa. Lanando mo do
conceito de Estado corporativo, Hespanha pintou a imagem de uma sociedade portuguesa que funcionava como um corpo articulado. Nesta perspectiva, a colnia americana
vista como parte integrante do Imprio portugus, cuja cabea consistia na Coroa.
Tais concepes ressoaram na produo historiogrfica brasileira, sobretudo a
partir da dcada de 1990. O rompimento com a dualidade Brasil-Portugal, que havia
presidido boa parte desta produo, ganhou ento novas dimenses e uma abordagem
que conecta o reino e a colnia americana com outras regies do Imprio. Silvia H. Lara
argumenta que
A quebra do nexo que opunha o arcaico-escravista-colonial ao moderno-capitalista-nacional decorreu e, ao mesmo tempo, fez nascer dois
conjuntos historiogrficos que tm se desenvolvido um tanto sepa-
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Constatamos, assim, que, sob o ponto de vista do trfico, a ruptura dos laos
entre Portugal e o Brasil no acarretou mudanas na dinmica do trfico negreiro,
consolidado conforme demonstram os estudos de Alencastro e Roquinaldo Ferreira
desde a segunda metade do Seiscentos. Deste modo, o fluxo constante de homens
e mulheres despejados nos portos brasileiros at a primeira metade do sculo XIX
somente foi alterado com a proibio do trfico internacional, em 1850.
b) direito e justia
Calou fundo na historiografia brasileira a viso de que a escravido moderna
nos quadros do Imprio portugus consistia numa excrescncia. Autores como Fernando A. Novais e Stuart Schwartz consideraram uma contradio o surgimento de
novas sociedades escravistas na Amrica num contexto de virtual desaparecimento da
escravido como instituio na Europa. Por outro lado, num contexto de produo
distinto, uma segunda tendncia historiogrfica (que contempla os estudos de Ronaldo Vainfas e Luiz Felipe de Alencastro) enfatizou a importncia do pensamento
religioso para a legitimao da escravido moderna.
Dialogando com as duas tendncias, Hebe Maria Mattos afirmou o carter natural da escravido na sociedade portuguesa de Antigo Regime, no sendo,
portanto, adaptada com a colonizao dos trpicos, mas incorporada como relao
costumeira de poder. Desta forma, a autora supera determinismos econmicos que
atrelam o trato negreiro lucratividade, explicao para a adoo do escravismo na
Amrica portuguesa. Segundo a autora,
Fundada em relaes de poder construdas costumeiramente na
expanso portuguesa na frica, a escravido se naturalizava integrando-se concepo corporativa da sociedade. Nenhuma legislao portuguesa institua a escravido, mas sua existncia como
condio naturalizada esteve presente nos mais diversos corpos
legislativos do Imprio portugus (MATTOS, 2001: 146).
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horizonte aberto pela liberdade fazia com que a escravido fosse reproduzida naqueles
regimes coloniais comprometidos com o comrcio de escravos africanos e a permanncia da escravido.
Consideraes finais
Os estudos recentes que versam sobre o escravismo que foram aqui analisados
credenciam-se s novas abordagens historiogrficas que rechaam a viso da colnia
como um todo homogneo, coincidindo no uso de uma perspectiva analtica que toma
como escala geogrfica o Imprio portugus, analisado dentro de uma histria atlntica.
notvel a concepo sistmica da escravido e da alforria como mecanismo de
reproduo do sistema. Neste sentido, os estudos apontam para uma continuidade deste
sistema no Dezenove, rompida apenas com o advento de leis propositivas (isto , no
mais amparadas no direito consuetudinrio).
A influncia do historiador portugus Antnio Manuel Hespanha sobre a produo historiogrfica brasileira no se limitou apenas noo de Estado corporativo para
o entendimento do Imprio portugus no Antigo Regime, mas tambm se desdobrou
no crescente interesse pela histria do direito e da justia. Estes estudos coadunam-se
aos mencionados anteriormente, buscando o marco temporal do desequilbrio das relaes senhor-escravo ocorrido com a interveno do Estado via a promulgao de leis.
A atuao de escravos e advogados abolicionistas tambm matria destes estudos. Da
mesma forma que os estudos recentes que tocam no tema da alforria, os estudos sobre
o direito e a legislao concernente escravido e sobre o trfico internacional e interprovincial apontam para um quadro de continuidade da escravido sistmica no psindependncia, somente revogada com a legislao escravista.
Enfim, dentre os autores analisados, apenas Hebe Mattos e Schmidt-Nowara
identificam a mudana do regime poltico com transformaes na escravido. A primeira
entende que a Constituio de 1824 consiste no ponto crucial da revogao de uma dinmica processual regulada pelo costume (a escravido era naturalizada numa sociedade
de Antigo Regime) e o segundo afirma que a escravido brasileira foi reinventada aps
as revolues do fim do sculo XVIII. Talvez, o ponto de encontro entre todos os autores que foram trabalhados resida na identificao da crise do escravismo com o fim do
Antigo Regime nos trpicos, cuja datao questo muito controversa e que est longe
de atingir o consenso.
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