A Concepção Freudiana Do Afeto
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A Concepção Freudiana Do Afeto
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A concepo freudiana do afeto
Freud parte da sua experincia com as histricas para construir uma teoria
dos afetos que , no entanto, desenvolvida em termos metapsicolgicos, nos quais
o afeto definido como um representante da pulso. Conceito central da
metapsicologia freudiana visto que o seu desenvolvimento marca importantes
viradas tericas na obra do criador da psicanlise , a pulso uma fora
caracterizada como interna e apoiada em funes biolgicas, sem que se
confunda, contudo, com estas. A centralidade da ideia de pulso tambm se refere
articulao que este conceito pretende exprimir entre as instncias do corpo e da
mente. A pulso tem sua origem no corpo e sua ligao com a esfera psquica
feita pelos representantes pulsionais: o afeto e a representao. O afeto , assim,
um representante pulsional, que, ao lado da representao, intermedia o acesso da
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pulso esfera psquica, j que a primeira tem sua fonte no corpo. Para Freud, o
afeto uma energia, enquanto que a representao uma ideia.
A separao entre os dois representantes constitui o mecanismo do recalque,
que, na viso de Freud, seria imprescindvel para a constituio do inconsciente
como campo separado do resto do psiquismo26. Apesar de ser descrito como uma
defesa, o recalque tambm apresentado por Freud como um processo psquico
universal. O psicanalista chega a dizer que a teoria do recalque a pedra angular
sob a qual repousa toda a estrutura da psicanlise (Freud, 1914a, p. 175). O
recalque instaura o inconsciente, mas tambm podemos entender esse mecanismo
como imprescindvel a um processo de humanizao no qual o indivduo passa
a fazer parte de uma dada cultura. Um dos efeitos do recalque a transformao
de instintos egostas em sociais (Idem). atravs do recalque que o homem
pode renunciar satisfao de seus instintos e assim adentrar a civilizao. Esta,
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Segundo Laplanche e Pontalis (2001, pp. 430-4), o recalque primrio descrito por Freud como
um processo hipottico que se constitui como o primeiro momento da operao do recalque e
tem como efeito a formao de um certo nmero de representaes inconscientes ou recalcado
originrio. O recalque propriamente dito ocorre posteriormente, constituindo-se como uma
operao pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representaes
(pensamentos, imagens, recordaes) ligadas a uma pulso. Os ncleos inconscientes constitudos
pelo recalque originrio colaboram mais tarde no recalque propriamente dito pela atrao que
exercem sobre os contedos a recalcar, conjuntamente com a repulso proveniente das instncias
superiores.
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na viso de Freud, s pde ser construda atravs dessa renncia; renncia que ,
da mesma maneira, exigida a cada recm-chegado (Ibid.).
Assim, vemos que a teoria dos afetos criada por Freud est imbricada nos
pressupostos da metapsicologia e nas teorizaes acerca da cultura. O criador da
psicanlise empreende uma separao entre natureza e cultura com a descrio do
mecanismo do recalque, assim como entre razo e paixo, j que o afeto pura
energia pode se separar da representao, que d a ele um sentido dentro de
uma cadeia de representantes-representao. Da mesma forma que preciso
renunciar a instintos primitivos para fazer parte de uma civilizao, tambm
preciso transformar os instintos atravs da ligao destes a representaes. Sem
essa passagem, no h cultura, apenas o caos que, para Freud, constitui a natureza.
Diferente de Espinosa, que viveu no apogeu da Modernidade europeia, mas
exerceu uma resistncia brutal, presente em sua obra, aos valores hegemnicos do
cartesianismo, Freud tinha a inteno de que a psicanlise fosse aceita no rol das
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cincias de sua poca, por isso muitas vezes vemos persistir em sua teoria
dualismos que so tpicos da Modernidade hegemnica e de sua referncia
filosofia de Descartes. Nas palavras de Birman:
ambigidade (Figueiredo, 2008, p.12). Segundo esses autores, a par da busca por
categorias puras, a produo de aspectos imunes a essas categorizaes
igualmente tpica da Modernidade. Esta conteria, assim, uma dimenso
emancipadora em sua prpria vertente reguladora, o que demonstra em parte o
fracasso desta vertente, pois o projeto que a envolve inclui o estabelecimento e a
permanncia de tais identidades. A teoria dos afetos criada por Freud um dos
exemplos de tal ambiguidade, pois se por um lado intenta engendrar uma ruptura
entre as dimenses afetiva e representacional da experincia, submetendo-se s
categorias da cincia de sua poca, tambm comporta uma indefinio em
momentos decisivos, que acaba por abrir espao para que uma outra forma de
pensar possa ser inferida das prprias palavras do psicanalista.
Em outros exemplos, ao mesmo tempo em que faz questo de dotar a sua
teoria dos parmetros da cientificidade moderna em sua vertente conservadora,
Freud tambm questiona esses parmetros ao introduzir em sua produo uma
dimenso criativa. No incio de Os instintos e suas vicissitudes (1915a, p.137),
o autor expe sua concepo de cincia, descrevendo o mtodo que deve ser
adotado no processo cientfico, porm com algumas ressalvas em relao
exatido desse processo. De comeo, Freud afirma que nenhuma cincia, nem
mesmo a mais exata, parte de conceitos claros e bem definidos. O primeiro
passo do mtodo proposto por Freud em seguida a descrio do fenmeno,
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afeto como uma categoria quantitativa que tem como modelo de referncia a
angstia. Essa dissociao est presente em vrios momentos e pode ser percebida
atravs das referncias que faz o autor, de um lado, clnica e suas descobertas
empricas, e, de outro, ao modelo terico que pretende construir e que muitas
vezes nega as suas prprias experincias com os pacientes. A teoria dos afetos que
Freud constri um exemplo de tal dissociao, pois, ao mesmo tempo em que o
autor ressalta a dimenso inconsciente da experincia e o mbito afetivo que dela
no se separa, tambm se apoia em certos dualismos abstratos, como afeto e
representao, energia e matria, para construir o edifcio terico da psicanlise
nos moldes cientficos inspirados pela filosofia cartesiana. Nas palavras de
Imbasciati:
Como veremos a seguir, Freud associa os afetos sua teoria das pulses. O
afeto seria, assim, um representante pulsional que tem todas as caractersticas de
uma quantidade e pode ser separado da representao na operao do recalque,
que fundamental para o processo de subjetivao descrito pelo autor.
Tentaremos expor as linhas gerais das teorias que esto em torno da noo de
afeto, destacando as suas principais caractersticas, para que possamos
compreender a importncia do mbito afetivo na teoria do criador da psicanlise.
Para tal, teremos que nos apoiar na metapsicologia criada por Freud, j que neste
mbito que o psicanalista discorre sobre a noo de afeto, atravs do modelo
terico das pulses, do recalque e da angstia. A metapsicologia o domnio
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2.1.
As primeiras aparies do afeto no texto de Freud
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Como ainda no se falava em inconsciente, a ideia era a de que as histricas possuiriam uma
dupla conscincia que viria tona nos ataques.
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definio do afeto.
Em As Neuropsicoses de defesa (1894), Freud trabalha com a noo de
quota de afeto e trata de sua teoria do recalcamento, ou defesa. Uma das
pressuposies gerais em que esta se baseia enunciada por Freud no fim do
artigo, sendo nomeada posteriormente de teoria do investimento (Besetzung),
considerada por James Strachey (1954) como a mais fundamental das hipteses
freudianas. Diz Freud:
(...) nas funes psquicas deve ser distinguida alguma coisa uma carga de
afeto ou soma de excitao que apresenta todas as caractersticas de uma
quantidade (embora no disponhamos de meios para medi-la), capaz de
crescimento, diminuio, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os
traos de memria das idias, tal como uma carga eltrica se expande na
superfcie de um corpo. (FREUD, 1894, p. 73)
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Aquela provocada pela psicoterapia catrtica e no espontaneamente (Laplanche e Pontalis,
1982, p.1).
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Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]).
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De agora em diante nos referiremos apenas como Projeto.
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Cf. Projeto (1895), Parte I, sees 14 e 15.
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Porm, Freud tambm afirma que h um trabalho redutor dos afetos nos
sonhos. Mas se h mecanismos de transformao dos afetos nos sonhos, como
podem os afetos permanecer inalterados? Green (1973/1982) lembra que para
Freud o afeto no modificado em sua qualidade, mas diminudo, inibido
(Green, 1973/1982, p.45). S que o autor francs tambm entende que a hiptese
de Freud dificilmente condiz com transformaes como o deslocamento e a
transformao em seu contrrio, por exemplo. Segundo Green (1973/1982), se
alguns procedimentos que ultrapassam a simples reduo so utilizados porque
ela insuficiente (Green, 1973/1982, p.45), o que demonstra a necessidade de
um fator qualitativo alm do quantitativo na compreenso dos fenmenos
psquicos.
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2.2.
Os avatares do afeto e da representao no mecanismo do recalque
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A partir de agora nos referiremos a esse texto apenas como Trs Ensaios.
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No entanto, ao longo deste trabalho, tanto nos ttulos de algumas obras, como nas citaes
diretas do texto de Freud, a palavra instinto aparecer com o mesmo sentido de pulso devido
traduo das obras de Freud que utilizamos. Como essa discusso no concerne ao tema central
dessa dissertao, no nos estenderemos sobre ela.
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Nas citaes diretas do texto de Freud utilizaremos represso ao invs de recalque, de acordo
com a traduo das obras de Freud que utilizamos.
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2.3.
Afeto, angstia e sentimentos inconscientes
2.4.
Terceira sntese metapsicolgica e segunda tpica: pulso de morte
e modelo estrutural do psiquismo
lugar do afeto como algo que deve ser dominado, por ser uma fora
desestabilizadora. Desde o incio de sua obra, Freud declara que a excitao
pulsional deve ser descarregada, o que depende da ligao do afeto a uma
representao. Essa ligao seria um dos objetivos do mtodo psicanaltico
aplicado clnica. A passagem do processo primrio para o secundrio supe uma
organizao do eu que se d de forma a
Para Green, o desprazer age como um impulso recalcado que pode exercer
uma fora propulsora sem que o Ego seja capaz de perceber a compulso. Por
isso, parece, portanto, verdadeiro primeira vista que a transmisso ao sistema
Pcpt seja necessria (Green, 1973/1982, p. 59). Diz Freud:
mas de demonstrar como o afeto s apreendido dentro de uma estrutura (as duas
tpicas), de um conflito (oposio de afetos contrrios), de uma economia
(relaes quantitativas e de transformao), e como os estados afetivos esto
submetidos ao princpio de prazer-desprazer, que tem conexo com os processos
primrios, da mesma forma que os processos secundrios se ligam ao princpio de
realidade (Green, 1973/1982). Green acredita que a discusso geral sobre a
relao entre o inconsciente e os afetos se encerra com O Ego e o Id. Mas, para
o autor, a ltima elaborao de Freud sobre a teoria do afeto ocorre em 1926, em
Inibies, Sintomas e Ansiedade.
2.5.
As teorias freudianas da angstia
a 1895, Freud prioriza a neurose de angstia e suas relaes com a vida sexual. J,
no segundo perodo, que abrange os anos de 1909 a 1917, Freud trata das relaes
entre angstia e libido recalcada, e no ltimo, que vai de 1926 a 1932, as relaes
da angstia com o aparelho psquico que so abordadas. Segundo Green, a ideia
principal do primeiro perodo que a fonte da angstia no deve ser buscada na
esfera psquica mas na esfera fsica (Idem, p. 74). O mecanismo produtor de
angstia atua no apenas pela acumulao quantitativa de tenso, mas tambm por
uma modificao qualitativa, pois a tenso fsica sexual se transforma em
angstia. Segundo o psicanalista francs, o mecanismo da neurose de angstia
simtrico e inverso do da converso histrica, sendo aquela a contrapartida
somtica da histeria.
Para Freud, o fato de o afeto sexual no poder ser formado e a tenso
fsica no poder se ligar psiquicamente a causa principal da formao da
angstia, de forma que esta surge como um substituto somtico da representao
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que falta (Ibid.). Nesse caso, pode-se dizer que a angstia, para Freud, seria o
prprio afeto ou o afeto por excelncia, visto que o criador da psicanlise o
concebe como uma quantidade desprovida de representao. A angstia tem um
lugar central na metapsicologia de Freud, visto que definida a partir do recalque,
que, como vimos, o mecanismo que funda o sujeito freudiano. Causa ou efeito
do recalque, a angstia no deixa de ser imprescindvel fundao do sujeito na
teoria freudiana. Diferente de Freud, Espinosa e Winnicott no atribuem um lugar
central angstia nos processos de subjetivao que descrevem. Espinosa no
chega a definir a angstia na Terceira Parte da tica, quando lista alguns afetos
fundamentais (Espinosa, 1677/2008, p. 140). Entretanto, pode-se dizer que
certamente o filsofo a entenderia como derivada do medo, que definido como
uma tristeza instvel (Espinosa, 1677/200, p. 144). J as angstias impensveis
de que fala Winnicott so vivenciadas quando no h um processo de subjetivao
em curso, apenas uma cristalizao em um padro reativo/defensivo de
relacionamento com o ambiente, como veremos no prximo captulo.
Segundo Green (1973/1982), embora as primeiras teses de Freud em
relao angstia no possam ser mantidas sem modificaes, no seria correto
acreditar que Freud renunciou a elas completamente, j que alguns aspectos
podem ser encontrados em fases posteriores da teoria freudiana, sendo um deles a
persistncia da tese da impossibilidade de uma elaborao psquica de uma
70
2.6.
Consideraes finais acerca do afeto em Freud
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No nos referimos s teorias pulsionais, mas ao prprio conceito de pulso.
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uma teoria cientfica prpria psicanlise, embora possamos dizer que ele
dialogue com uma srie de conceitos psicanalticos e tambm do campo da
filosofia. No entanto, essas referncias so utilizadas pelo autor como elementos
para a sua criao prtica e terica, no como entraves construo de uma
clnica que, pela caracterstica mesma de seu funcionamento, no poderia
pretender se adequar a uma teoria pr-estabelecida, mas sim deveria servir como
substrato para uma posterior construo terica.
A viso apresentada por Winnicott sobre os processos de subjetivao
supe uma relao originria com o ambiente a propsito da experincia vivida no
encontro afetivo do indivduo com os outros corpos. Atravs de sua teorizao
sobre o desenvolvimento emocional infantil, o autor ingls cria conceitos caros
prtica psicanaltica contempornea, pois que se ajustam aos moldes de uma
clnica disposta a rever seus pressupostos de acordo com o momento histrico em
que vivemos. Nesse sentido, ao invs de falar de representantes pulsionais,
Winnicott prioriza os aspectos afetivos do processo de subjetivao, entendendo-
os como inerentemente relacionais. Isso significa que, para o autor, possvel
pensar uma dimenso interna da experincia ao mesmo tempo em que uma
dimenso externa pode ser criada. Na teoria de Winnicott o paradoxo entre
internalidade e externalidade no supe uma resoluo em detrimento de
nenhum dos dois mbitos. O espao paradoxal em que convivem o indivduo e
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aquilo que o cerca o que interessa ao psicanalista ingls. O afeto , assim, uma
transio que se d neste espao criado pela prpria relao entre o indivduo e os
demais objetos, sensaes e signos que compem sua experincia, no por um ou
outro polo que compe esta relao. Dessa forma, Winnicott no supe uma
separao, por exemplo, entre sujeito e cultura, conforme veremos em seguida,
mas uma continuidade entre eles, j que indivduo e ambiente no podem ser
afastados de nenhuma maneira. Esto, sim, em constante inter-relao e esta
caracterstica que define o viver criativo e saudvel. por uma dinmica afetiva,
que se d em um espao potencial, que o pediatra e psicanalista ingls descreve os
processos de subjetivao e a gnese da vida social.
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