Concepção de Sujeito Na Psicanálise

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FARIAS, F. R. Inconsciente e transferência: o dimensionamento clínico da psicanálise.

Revista de Psicologia e Psicanálise. 6, Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

I Concepção de sujeito na psicanálise

Freud pretendeu trabalhar no campo da ciência, querendo a todo custo que a psicanálise
fosse constituída como uma ciência nos moldes da física do século XIX, ou mais
precisamente seguindo as premissas de um modelo energético, ou seja, “a psicanálise
surge, como prática clínica, a partir do ideal de ciência do fisicalismo do final do século
passado. É esta a marca que imprime no pensamento de Freud”16.

A teoria do aparato psíquico tem como padrão o ideal de ciência que a física energética
encerrava. Por assim dizer, podemos afirmar que a psicanálise surge a partir desse ideal
de ciência, não tendo surgida da ciência, e sim do cientificismo, ou seja daquilo que a
filosofia tradicional em termos fenomenológicos, considerava lixo. Por isso, em
princípio, a psicanálise é uma doutrina que se opõe as interpretações provenientes da
corrente fenomenológica, principalmente na medida em que o inconsciente não é uma
dimensão da razão, como fica demonstrado na subversão freudiana: o inconsciente se
opõe ao sujeito na leitura que considera o sujeito como equivalente da consciência. A
construção teórica conhecida como o pensamento freudiano tem como ponto princeps a
concepção de subjetividade como uma subjetividade clivada em função da operação
radical, o recalque, que funda o inconsciente.
Num primeiro momento o conceito de representação e o de inconsciente são o ponto de
partida da construção freudiana, marcando a diferença relativa aos herdeiros de
Descartes. Num segundo momento, o registro do corpo como fonte de potência adquire
relevância e o conceito de pulsão de morte inauguram um novo plano no pensamento de
Freud que, ao contrário da filosofia cartesiana, o corpo e a alma não são mais tomados
como substâncias. Na medida em que a pulsão aparece como um espaço virtual entre
esses dois registros , o sujeito não pode mais ser reduzido à alma, pois também é um
corpo do qual parte uma exigência de trabalho incessante. Alem disso o Eu é apenas
uma imagem e não a verdade do sujeito
Ao nos reportamos a essa divisão estamos tratando da distinção na vida psíquica de um
sistema inconsciente e de um sistema préconsciente/consciente. A cada um deles Freud
faz corresponder um sujeito.
Alem disso, convém assinalar que podemos também nos referir à lógica que separa o
sujeito do enunciado do sujeito da enunciação. O Eu num enunciado qualquer apenas
representa o sujeito que o enuncia, mas esta representação não reflete aquele que fala .
Entre o eu enunciado e o sujeito da enunciação a distancia é intransponível visto que
nenhum enunciado pode esgotar o ato da enunciação: o sujeito do enunciado e o da
enunciação não se recobrem. Esta é a Spaltung (divisão) que marca o sujeito da
psicanálise, na qual o eu deve ser pensado como uma objetivação imaginária construída
a partir da relação especular com o Outro17. Isso nos leva a pensar em primeiro lugar
que o eu não revela nenhuma verdade sobre o sujeito e que a relação com o Outro é de
fundamental importância para a sua constituição. Em segundo lugar, o que o eu
manifesta é imagem do outro no processo identificatório, no qual o sujeito se reconhece.
17 LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal qual no revela a
experiência psicanalítica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
18 LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. O seminário, livro
11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1978, p. 38.
O sujeito do consciente, conhecido como sujeito do enunciado apresenta analogia ao eu
penso cartesiano, sendo que o sujeito do inconsciente, sujeito da enunciação somente
pode ser entendido como sujeito do desejo. É desse sujeito que a psicanálise vai falar
seja no âmbito das construções teóricas seja no âmbito da experiência clínica. Mas
convém assinalar que em nenhum momento de sua obra, Freud teria empregado a
expressão sujeito do inconsciente como é amplamente difundido na psicanálise. Além
do mais o termo sujeito não tem para na metapsicologia freudiana o mesmo sentido que
encontramos a partir da releitura no texto freudiano operada por Lacan.
Mas cabe indagar: de que categoria de sujeito trata Freud e também qual o estatuto
ontológico desse sujeito? Em primeiro lugar sabemos que o sujeito proposto na
Interpretação dos sonhos não se identifica com o sujeito cartesiano, embora como
ressalta Lacan “o encaminhamento de Freud é cartesiano”18 no sentido de que tanto
Freud quanto Descartes partem do fundamento do sujeito da certeza. Ou seja: o sujeito
da psicanálise deve ser pensado segundo a mesma lógica do cogito, mas como sujeito
do desejo e não da certeza, nem como substância, mesmo que as noções de eu, de
consciência, de corpo e de representação sejam diferentes do que aparece na formulação
cartesiana. Isso porque a psicanálise subverte o cogito, mas é no cogito que os
fundamentos da psicanálise têm de ser buscados. A experiência cartesiana da dúvida se
inscreve numa perspectiva que também orienta a busca de Freud, pois é mesmo em
direção ao sujeito da certeza que convergem os procedimentos cartesiano e freudiano.
Se este é um ponto de convergência, é também o ponto em que se separam o
pensamento freudiano do cartesiano.
A asserção eu duvido, no pensamento cartesiano, dá ao eu penso um valor de certeza
pois se duvido, estou certo de que penso e porque penso estou certo que sou. Do mesmo
modo, Freud também está seguro de que há um pensamento onde a dúvida se apresenta.
A diferença é que na construção freudiana o pensamento é inconsciente enquanto tal
ausente. Se por um lado, o sujeito cartesiano descobre a si mesmo como ser pensante na
e pela dúvida, por outro lado, o inconsciente, pelo fato de nos remeter aos intervalos do
discurso não coloca a si mesmo como ser. Que haja pensamento não significa que a
identidade a si do sujeito seja instituída a partir do acesso à verdade de seu ser.
Tratando-se do sujeito cartesiano, sabemos que o mesmo se encontra na dúvida, não
apenas que está em dúvida (dentro dela), mas no sentido de que o sujeito sustenta-se
nela e é por ela sustentado (substância do sujeito). Esse processo é fundamental para o
sujeito descobrir a si mesmo enquanto presença a si. Em contrapartida, dizer que o
inconsciente encontra-se ou escava-se nos intervalos do discurso não é afirmar que o
sujeito apropria-se do seu pensamento inconsciente. É dizer somente que há no
inconsciente um pensamento ausente enquanto tal incapaz de construir uma identidade
do sujeito a si próprio.
No entanto há no percurso de ambos uma diferença marcante: o sujeito cartesiano se
produz através do eu penso como certeza de si, numa continuidade entre esse eu penso e
o eu existo, ou seja a certeza do eu penso implica o eu existo como realidade substancial
do ser pensante o que no ensinamento cartesiano é postulado como res cogitans. Essa
certeza bem como a continuidade (como identidade do pensamento com a existência)
não dizem respeito ao sujeito pensado por Freud. Em Freud o sujeito não se identifica
com o inconsciente, nem tampouco o suporta, tendo um estatuto ontológico
extremamente frágil visto ser, como depreendemos na elaboração de Lacan: o
inconsciente é mais ético do que ôntico. Além do mais o sujeito do inconsciente diz
respeito aquilo que está ausente no sujeito do enunciado, ou como afirma Freud: há
pensamentos que não se estão presentes na consciência. O sujeito é chamado a
comparecer ao seu lugar, seu lugar verdadeiro, o próprio lugar da verdade: o
inconsciente como pura falta de significante. Ao introduzir o inconsciente como a
estrutura do sujeito, a teoria psicanalítica “não deixa de ser radical na relação do sujeito
com o saber. O sujeito não somente não sabe que não sabe, mas ignora profundamente
que a resolução para o enigma do seu sintoma se produz quando deposita o saber no
outro”19. O que Freud definiu e o que o estruturalismo pôde logificar é o sujeito, não o
da filosofia clássica mas o sujeito que se produz por uma divisão constitutiva e por uma
total impossibilidade de síntese.

O conceito do sujeito, em psicanálise, implica no próprio desconhecimento deste em


relação àquilo que o determina – o inconsciente. Esta relação de desconhecimento é
constituinte do sujeito. Citando Lacan, "o inconsciente é este sujeito desconhecido do
eu, não reconhecido pelo eu ... na Traumdeutung, quando Freud trata do processo
primário, ele quer falar de alguma coisa que tem um sentido ontológico e que ele
denomina o núcleo do nosso ser – der Kern unseres Wesen. O núcleo do nosso ser não
coincide com o eu ".

No momento em que o paciente abandona a posição daquele que "não sabe nada" e se
anima a trabalhar, esta animação põe em relevo a suposição de um sujeito no saber.
Transfere esta suposição para o analista, identificando-o com "aquele que sabe ali aonde
eu não sei". Esta transferência fixada no analista é uma transferência demandante:
demanda ao Outro que responda.

É preciso que o analista sustente a função do sujeito suposto saber para transformar a
transferência demandante em transferência produtora pelo trabalho da associação livre –
regra fundamental da psicanálise, única, que se encontra do lado do paciente. A
operação do analista consiste em provocar o trabalho da associação, fazendo o paciente
revelar que sabe mais do que diz. A fala como matriz da parte não reconhecida do
sujeito constitui o nível próprio do sintoma analítico.
um sujeito nao e causa. Quando muito, ele e causado.
Segundo, porque um sujeito e uma funcao e nao uma instancia (ou seja: uma
instancia psiquica). E, terceiro, porque essa funcao carece de conteudo proprio.

É no movimento através do qual o sujeito se revela,


que aparece o fenômeno da resistência. Portanto, no manejo da transferência,
o analista deve considerar que a resistência nunca se dissipará, ela é uma
expressão do inconsciente, e deve ser usada como meio de investigação da
dinâmica do sujeito. Deve ser manejada considerando-se que é parte necessária e
estrutural do sujeito.
Dizer que o sujeito sobre quem operamos é o sujeito da ciência já admite em si a
especificidade psicanalítica, qual seja, a de tratar do sujeito por meio de uma
determinada operação. A ciência exclui o sujeito por ela inaugurado, enquanto a
psicanálise o inclui em seu campo operatório pela subversão que o reconhece como
sujeito do inconsciente.
Dizer que a psicanálise compartilha do mesmo método que a ciência é dizer que “tratar
o real pelo simbólico é a démarche científica por excelência” (Elia, 1999, p. 42). No
entanto, se a psicanálise, por um lado, inscreve-se nesse método, por outro, ela rompe
para criar um método próprio, particular a ela. Pode-se dizer que um sujeito vem buscar
análise ali onde, pela emergência do real, seu recurso simbólico falha. O real implicado
na experiência da análise exige ser tratado pelo simbólico da teoria.
Se a ciência, como diz Freud, fica incompleta sem a psicanálise, é porque ela exclui o
elemento que somente a psicanálise, por seu método, reintroduz. O sujeito do
inconsciente, recolocado em cena pela psicanálise, atesta um ponto limite da ciência.
Isso se destaca, já que a ciência procura evitar fatores individuais e influências afetivas,
ou seja, as variáveis que, advindas do sujeito, podem atrapalhar o desenvolvimento de
algum raciocínio.
Colocando o sujeito no lugar do próprio endereçamento do discurso psicanalítico, Freud
operou uma subversão disso, e os pensamentos, sejam eles quaisquer, passaram a situar-
se no campo do inconsciente, lugar de onde fazem valer, pela fala do analisando, a
clínica psicanalítica.

O sujeito, nesse contexto, é atravessado pelo caráter paradoxal do desejo, que é “ao
mesmo tempo memória do gozo infantil perdido e fantasia de sua recuperação”
(PEIXOTO, 2004, p. 117). Assim, nesse jogo entre falta e plenitude, entre ilusão e
consciência, o sujeito é o que é em função de uma castração, e vive em constante busca
daquilo que inconscientemente está perdido. Esse sujeito pode ser caracterizado como o
da falta, que, diferentemente de Aristóteles, que tinha uma modalidade de desejo
racionalmente orientado para aquilo que é tomado como um bem, vive orientado por um
bem que não sabe o que é, pois não está para a dimensão da razão, isto é, vive arrastado
por um impulso originado por uma falta elementar e essencial a sua condição de sujeito.

A caracterização do sujeito da psicanálise como um sujeito da falta, da castração, é


pejorativo quando pensado a partir do ponto de vista dos seus críticos. Contudo, essa é a
maneira como ela é concebida pelos autores que viam na psicanálise uma perspectiva
limitada de mundo e de sujeito. O desejo, nessa visão, é sempre reativo, sempre do
ponto de vista de uma negação, não tendo relação com a possibilidade de uma
afirmação da vida. Desse modo, a vida não seria um transbordamento de forças, mas
uma constante luta pela vida, no fundo, o que está em jogo com uma concepção do
desejo enquanto falta é um certo pessimismo em relação ao humano.

OUTRAS TEMÁTICAS
“No ponto em que as investigações da análise deparam com a libido
retirada em seu esconderijo, está fadado a irromper um combate;
todas as forças que fizeram a libido regredir erguer-se-ão como
‘resistências’ ao trabalho da análise, a fim de conservar, o novo estado
de coisas” (Freud, A dinâmica da transferência, p. 137).

“Cada associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de


levar em conta a resistência e representa uma conciliação entre as
forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que se lhe
opõem, já descritas por mim”. (Freud, id. P.138)

Do lado do analista, portanto, a transferência deve ser tratada como o


desejo do analista. O analista também transfere para o paciente seus fantasmas,
também acolhe do analisando o seu imaginário. Entretanto, algo deve ser mais
forte e trazer o analista para o lugar do desejo, do irrealizável e não do querer do
analista. Assim, o desejo do analista se traduz num dobrar-se sobre si
mesmo, colocando de lado sua subjetividade imaginária, sua resistência,
para dar lugar ao desejo, isto é, permitir que o desejo do analisando deslize.
HIST
A psicanálise nasce no seio da Medicina e adquire como herança da clínica médica o
ponto fundamental de seu método: a clínica como lugar de investigação e terapêutica.
Se, por um lado, a história da psicanálise se inicia a partir da prática médica, por outro,
é efeito de uma ruptura com este discurso para instaurar um discurso próprio, outra
clínica, numa outra cena. Esse rompimento ocorre quando Freud percebe que seu
instrumento de saber não dá conta das manifestações de suas pacientes. Porque as
histéricas escaparam ao saber da Medicina é que algum enigma se constituiu das
manifestações que apresentavam.

No início de sua obra, Freud (1895) busca conferir estatuto aos processos psíquicos,
representando-os como estados quantitativamente determinados de partículas materiais
especificáveis, à imagem dos neurônios. O uso de termos neurológicos, com os quais
Freud descreve as ideias em seu Projeto para uma Psicologia, explicita a marca de sua
formação e a preocupação em, nesse momento, alinhar a esse saber sua proposta.

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