A Sociologia de Marcel Mauss
A Sociologia de Marcel Mauss
A Sociologia de Marcel Mauss
73 | 2005
Nmero no temtico
Publisher
Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra
Electronic version
URL: http://rccs.revues.org/954 Printed version
DOI: 10.4000/rccs.954 Date of publication: 1 dcembre 2005
ISSN: 2182-7435 Number of pages: 45-66
ISSN: 0254-1106
Electronic reference
Paulo Henrique Martins, A sociologia de Marcel Mauss: Ddiva, simbolismo e associao , Revista
Crtica de Cincias Sociais [Online], 73 | 2005, colocado online no dia 01 Outubro 2012, criado a 01
Outubro 2016. URL : http://rccs.revues.org/954 ; DOI : 10.4000/rccs.954
Marcel Mauss mais conhecido como antroplogo e etnlogo. Muitos ficam surpre-
endidos ao saber que ele tambm tem uma relevante contribuio sociolgica, que
comprovada tanto por ter sido um dos principais animadores, juntamente com
Durkheim, da revista Anne Sociologique, como por ter sido o principal sistematizador
da teoria da ddiva, que vem sendo resgatada como um modelo interpretativo de
grande actualidade para se pensar os fundamentos da solidariedade e da aliana nas
sociedades contemporneas. Um das contribuies centrais de Mauss para a sociolo-
gia foi demonstrar que o valor das coisas no pode ser superior ao valor da relao e
que o simbolismo fundamental para a vida social. Ele chegou a esta compreenso a
partir da constatao de que as modalidades de trocas nas sociedades arcaicas no
so apenas coisas do passado, tendo importncia fundamental para se compreender
a sociedade moderna.
de Mauss com o fato social est sempre presente. o caso, por exemplo, do
trabalho Esboo de uma teoria geral da magia que escreveu com Henri Hubert.
Na primeira frase da concluso deste texto Mauss afirma que a magia um
fenmeno social. Resta-nos mostrar, complementa, seu lugar entre outros
fenmenos religiosos... (Mauss, 2005: 174).
A respeito da virulenta crtica de Durkheim sobre os perigos da hegemonia de uma lgica mer-
cantilista e utilitarista liberada de mecanismos de regulamentao importante a leitura do segundo
prefcio deste autor no seu Da diviso do trabalho social (Durkheim, 1999).
50 | Paulo Henrique Martins
No h, aqui, interesse de fazer um defesa do comunitarismo contra o liberalismo, como vem
sendo proposto por alguns comunitaristas norte-americanos contemporneos (Taylor, 1994; Sandel,
1996), mas de realar a legitimidade histrica da perspectiva da emancipao no atual contexto
de crise de paradigmas, como o fazem, por exemplo, os maussianos e Boaventura Santos.
Existem afinidades tericas importantes entre o pensamento anti-utilitarista de John Dewey e
aquele de Marcel Mauss, embora pertenam a escolas diferentes. Mauss entendia ser impossvel se
pensar o socialismo sem o mercado. Em parte, a elaborao da teoria da ddiva foi uma reao
tentativa intil dos bolcheviques de eliminar o livre comrcio e, por conseguinte, a importncia de
se pensar o mercado a partir de um olhar histrico e etnogrfico, lembram Caill e Graeber
(2002: 22); por sua vez, Dewey, entendia que o critrio moral da vida em associao o crescimento
da individualidade e por isso h uma relao direta do comunitarismo deweiano com a democracia,
o que leva Chanial a sustentar que o pluralismo e o associacionismo de Dewey pressupem uma
relao crtica ao Estado o que o conduz a defender um republicanismo e um socialismo originais
(Chanial, 2001: 243). Enfim, ambos os autores pensam que a defesa do associacionismo passa
necessariamente por uma redefinio necessria de instituies centrais da modernidade um, o
mercado, outro, o Estado com a vida associativa. No se trata nem de submeter a vida associativa
ao Estado e ao mercado como propem os neoliberais nem de submeter essas instituies
vida associativa, mas de redefinir seus lugares e a qualidade das interaes, sabendo-se que se trata
de instituies com pressupostos sociolgicos e antropolgicos diferenciados, como tentaremos
demonstrar com apoio na teoria da ddiva.
52 | Paulo Henrique Martins
Para se compreender a idia de sociedade como totalidade na obra de Mauss, conveniente se
introduzir a idia de paradoxo, isto , de que as motivaes humanas so necessariamente parado-
xais. E esta associao entre totalidade e paradoxo , por sua vez, central para avanarmos na
sistematizao terica das redes sociais como o procuramos demonstrar num texto intitulado As
redes sociais, a ddiva e o paradoxo sociolgico (Martins, 2004a).
Bruno Karsenti esclarece sobre a obra maussiana o seguinte: O que permite a noo de sm-
bolo a necessidade de ultrapassar a confrontao de realidades hipostasiadas ultrajadamente
pelas cincias sociais: no existe nessa concepo nem indivduo nem sociedade, mas somente
um sistema de signos que, mediatizando as relaes que cada um mantm com cada um, constri
num mesmo movimento a socializao dos indivduos e a unificao dos mesmos num grupo
(Karsenti, 1994: 87).
56 | Paulo Henrique Martins
Anthony Giddens (1991), ao tentar sistematizar uma teoria sociolgica que d conta da ao
direta, a estruturao, levado inevitavelmente a reconhecer a importncia da confiana para a
ao social.
58 | Paulo Henrique Martins
As possibilidades de uso da teoria da ddiva para explicar o funcionamento do Estado so objeto
de polmica entre os maussianos. Alguns recusam estas possibilidades e desejam restringir a dis-
cusso sobre a ddiva para explicar o fato associativo. Outros entendem haver esta relao, como
o faz Chanial com a idia do Estado solidrio ou Alain Caill (1992) e Ahmet Insel (1992) com
a idia de poltica e renda mnima assegurada pelo Estado. Pessoalmente, concordamos com esta
segunda posio, o que nos levou a escrever um artigo sobre o assunto intitulado Etat, don et
revenu de citoyennet (Martins, 2004b).
A sociologia de Marcel Mauss | 61
11
Alis, j nas concluses do Ensaios sobre o dom, Mauss esboou a crtica ao utilitarismo mercan-
til ao propor ser a regra utilitarista secundria para a constituio da sociedade.
12
Mercado, de uma parte, Estado, de outra, individualismo e holismo, logo, so apenas inte-
ligveis se considerados como formas especializadas e autonomizadas de uma realidade mais
vasta e englobante, essa do fato social total de que o dom constitui a expresso por excelncia
(Caill, 2000: 22).
64 | Paulo Henrique Martins
Referncias Bibliogrficas
Caill, Alain (1989), Critique de la raison utilitaire. Paris: La Dcouverte.
Caill, Alain (1992), Fondements symboliques du revenu de citoyennet, La Revue
du M.A.U.S.S., n 15-16.
A sociologia de Marcel Mauss | 65
Caill, Alain (1998a), Nem holismo, nem individualismo metodolgicos: Marcel Mauss
e o paradigma da ddiva, Revista Brasileira de Cincias Sociais.
Caill, Alain (1998b), Don et symbolisme, La Revue du MAUSS semestrielle: Plus rel
que le reel, le symbolisme, n 12.
Caill, Alain (2000), Anthropologie du don: le tiers paradigme. Paris: Descle de Brouwer
(trad. portuguesa, Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrpolis: Vozes,
2002).
Caill, Alain (2002), Ddiva e associao, in Paulo Henrique Martins (org.), A ddiva entre
os modernos: discusso sobre os fundamentos e as regras do social. Petrpolis: Vozes.
Caill, Alain; Graeber, D. (2002), Introduo, in Paulo Henrique Martins (org.),
A ddiva entre os modernos: discusso sobre os fundamentos e as regras do social.
Petrpolis: Vozes.
Castel, Robert (1995), Les mtamorphoses de la question sociale. Paris: Gallimard.
Chanial, Philippe (2001), Justice, don et association: la dlicate essence de la dmocratie.
Paris: La Dcouverte/MAUSS.
Chanial, Philippe (2004), Todos os direitos por todos e para todos: Cidadania, solida-
riedade social e sociedade civil em um mundo globalizado, in P. H. Martins;
B. Nunes (orgs.), A nova ordem social: perspectivas da solidariedade contempornea.
Braslia: Editora Paralelo 15.
Dewey, John (2000), Liberalism and Social Action. New York: Prometheus Books.
Dosse, Franois (1997), LEmpire du sens: Lhumanisation des sciences humaines. Paris:
La Dcouverte.
Dubet, Franois (2003), As desigualdades multiplicadas. Iju: Editora Uniju.
Durkheim, Emile (1999), Da diviso do trabalho social. So Paulo: Martins Fontes.
Giddens, Anthony (1991), As consequncias da modernidade. So Paulo: UNESP.
Godbout, Jacques (1996), Les bonnes raisons de donner, La revue du MAUSS
semestrielle: lobligation de donner. La dcouverte sociologique capitale de Marcel
Mauss, n 8.
Godbout, Jacques (2000), Le don, la dette et lidentit: homo donator vs. homo economicus.
Paris: La Dcouverte.
Godbout, Jacques; Caill, Alain (1998), O esprito da ddiva. Rio de Janeiro: FGV.
Insel, Ahmet (1992), Laide au temps partiel comme complment du revenue de
citoyennet, La Revue du M.A.U.S.S., n 15-16.
Laville, Jean-Louis (2001), Economia solidria, a perspectiva europia, Sociedade e
Estado: Revista de Sociologia da UNB, 16(1-2).
Levine, D. (1997), Vises da tradio sociolgica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Karsenti, Bruno (1994), Marcel Mauss. Le fait social total. Paris: PUF.
Martins, Paulo Henrique (2004a), As redes sociais, a ddiva e o paradoxo sociolgico,
in P. H. Martins; B. Fontes (orgs.), Redes sociais e sade: novas possibilidades tericas.
Recife: Editora Universitria da UFPE.
66 | Paulo Henrique Martins