(E-BOOK) - Estudos Sobre Narrativas
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NAD/FALE/UFMG
Belo Horizonte, MG
Direitos Autorais reservados Lei 5988/73
Copyright 2016 Ncleo de Anlise do Discurso da FALE-UFMG
Os captulos assinados so de responsabilidade de seus autores, no
traduzindo, necessariamente, a opinio do NAD/FALE-UFMG
1
Esta pesquisa foi publicada em 5 volumes, sendo o terceiro deles, intitulado Le paysan
polonais en Europe et en Amrique. Rcit de vie dun imigrant (1919), o nico que foi
traduzido para o francs e, por isso, o mais conhecido entre as pesquisas referentes aos
estudos de William Thomas e Florian Znanieckzi (EUFRSIO, 2008).
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 23
2
Traduo nossa de: (...) tudier un fragment particulier de la realit social-historique, un
objet social; de compreendre comment il fonctionne et comment il se transforme, em mettant
lacent sur les configurations de raports sociaux, les mcanismes, les processus, les logiques
daction qui le caractrisent.
24 Aline Torres Souza Carvalho
3
Traduo nossa de: [...] description sous forme narrative dun fragment de lexperience vcue.
4
O grande gnero em questo seria o dos documentos ou discursos Genealgicos.
5
Pelo menos no universo discursivo no qual nos movemos, no momento atual de nossos
estudos.
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 25
6
Conforme Machado (2014), o termo poderia ser substitudo por: relato de vida, histria de
vida, ato-de-se-contar ou o falar-de-si, considerados sinnimos de narrativa de vida.
26 Aline Torres Souza Carvalho
!
"
Como vimos no tpico anterior, para Bertaux (1997), le rcit
de vie, ou relato de vida, corresponde ao trabalho resultante de uma
entrevista na qual o pesquisador prope a algum que lhe narre sua
vida ou parte dela. Ao contrrio do que comumente ocorre nas
pesquisas empricas em Sociologia, nessa entrevista no h
questionrios com perguntas especficas que o entrevistado dever
responder. Trata-se, portanto, de um mtodo, no qual o sujeito
informante possui mais liberdade para se narrar e se constituir ao
longo desse processo. Acreditamos que seja justamente nesse
processo de construo de si que se encontra o interesse de Bertaux
(1997) e tambm, mutatis mutantes, o dos analistas do discurso, haja
vista que se trata de uma construo que se elabora pelo discurso.
Ao abordar o rcit de vie, Bertaux (op.cit.) o faz a partir de
uma perspectiva etnossociolgica, repetimos, que, para alm dos
objetivos dos etnlogos que, conforme o autor, consistem em
descrever uma comunidade especfica e sua cultura tm como
propsito identificar possveis generalidades no comportamento
social. Nas palavras do autor:
necessrio tentar passar do particular ao geral,
descobrindo, no interior do campo observado, as
formas sociais relaes sociais, mecanismos sociais,
lgicas de ao, lgicas sociais, procedimentos
recorrentes que seriam suscetveis de estarem
igualmente presentes em vrios contextos similares
(BERTAUX, 1997, p. 11).7
8
Traduo nossa de: (...) mais qui construit ses objets par rfrence des problmatiques
sociologiques.
30 Aline Torres Souza Carvalho
# $ $ %
$ % $
Segundo Bertaux (1997), a perspectiva etnossociolgica no
segue uma metodologia hipottico-dedutiva, comum nas pesquisas
em Sociologia, e suas tcnicas de observao tm como objetivo
maior (...) compreender o funcionamento interno do objeto de
estudo e elaborar um modelo de seu funcionamento sob a forma de
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 31
9
Nossa traduo de: () comprendre le fonctionnement interne de lobjet dtude et laborer
un modle de ce fonctionnement sous la forme dun corpus dhypothses plausibles.
10
Este tipo de trabalho foi realizado por LESSA em ps-doutorado realizado de 2011 a 2013
sob a orientao de MACHADO, no PosLin/FALE/UFMG.
11
Traduo nossa de: On dira donc que le modle ainsi construit a le statut dune
interprtation plausible plutt que dune explication au sens strict.
32 Aline Torres Souza Carvalho
& ' $
12
Traduo nossa de: Il commencerait par le naissance, voire par lhistoire des parentes, leur
milieu, bref par les origines sociales. Il couvrirait toute lhistoire de la vie du sujet. Pour
chaque priode de cette histoire, le rcit dcrirait non seulement la vie intrieure du sujet et
ses actions, mais aussi les contextes interpersonnels et sociaux.
13
Referimo-nos possibilidade de se tomar a realidade tal como ela ou foi; diferentemente de
uma oniscincia verossmil, na qual, acreditamos, o autor relacionaria fatos, sentimentos,
causas e consequncias de modo plausvel, provvel, mesmo tendo a pretenso de chegar a
uma verdade absoluta.
34 Aline Torres Souza Carvalho
14
Traduo nossa de:Le verbe raconter (faire le rcit de) est ici essentiel: il signifie que la
production discursive du sujet a pris la forme narrative.
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 35
15
Traduo nossa de: Pour bien raconter une histoire, il faut camper des personnages, dcrire
leurs relations rciproques, expliquer leurs raisons dagir; dcrire les contextes des actions et
interactions; porter des jugements (des valuations) sur les actions et les acteurs eux-
mmes.
16
Traduo nossa de: Raconter ce nest pas seulement dcrire une suite de faits ou
dvnements comme le disent les dictionnaires.
36 Aline Torres Souza Carvalho
17
Traduo nossa de: (...) lhistoire dune personne (mais aussi dune ville, dune institution,
dun pays) possde une ralit pralable la faon dont elle est raconte et indpendante de
celle-ci.
18
Traduo nossa de: matriaux mentaux.
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 39
memria de parte de uma sociedade, uma vez que muito do que eles
mostram parece ser de conhecimento e interesse da coletividade.
Uma vez diante dos materiais fsicos relacionados ao
personagem no caso, Francisco de Assis e, considerando sua
importncia histrica, cultural e religiosa, aquele que se prope a
narrar a vida do homem que tornou-se santo envolve-se em um
trabalho de seleo, reflexo, avaliao e julgamento moral, cultural
e ideolgico. Poderamos dizer que esse trabalho seria, de certo
modo, equivalente ao trabalho do autor de uma autobiografia que,
para narrar sua prpria vida, lanaria mo de seus materiais
mentais.
Acreditamos que o exemplo supracitado pode ser
demonstrativo do carter discursivo, marcado, sobretudo, pelo fazer
narrativo, um processo no qual o autor (seja ele o personagem ou
no) coloca em cena os elementos discursivos que acredita serem
necessrios para a narrao de uma vida. De tal modo, podemos
compreender a obra de Frugoni (2011) como toda narrativa de vida
como uma realidade discursiva.
Enfim, as narrativas de vida, entre o que foi vivido e sua mise
en rcit, compreendem inmeras mediaes, que vo desde as
memrias, as avaliaes e os julgamentos dos fatos at a escolha e
organizao dos fatores que iro garantir a narratividade ao texto e a
prpria situao de comunicao que envolver tal ato da escrita.
Nesse sentido, voltemos a Bertaux (1997), que defende uma
concepo realista dos relatos de vida, segundo a qual preciso que o
pesquisador concentre sua ateno sobretudo nessas mediaes, j
que:
(...) todo relato de vida seria apenas uma reconstruo
subjetiva que pode no ter relao alguma com a
histria realmente vivida. Tal relato s teria interesse
enquanto forma discursiva. (BERTAUX, 1997, p.
36)19.
19
Traduo nossa de : (...) tout rcit de vie, ne serait rien dautre quune reconstruction
subjective nayant la limite plus aucun rapport avec lhistoire rellement vcue. Il naurait
dintrt quen tant que forme discursive.
40 Aline Torres Souza Carvalho
( !
Tivemos como objetivo, neste captulo, expor algumas ideias
de Bertaux (1997), considerando seu papel fundador ao abordar os
relatos de vida (rcits de vie) na Sociologia e por conseguinte nas
Cincias Sociais. Buscamos, tambm, mostrar como e porque tal
conceito foi abordado por Machado (2009) como narrativa de vida, a
partir de seu objetivo de unir as duas teorias, a de Bertaux (1997) e a
da AD de Charaudeau (1983, 1992). E, enfim, buscamos estabelecer
possveis interfaces entre as duas disciplinas.
Tais interfaces tornam-se possveis medida que cada campo
disciplinar e cada autor se abrem a novos saberes, a novos conceitos
e a metodologias diferentes. Conforme vimos ao longo do captulo,
foi a partir dessa postura que a AD, e mais especificamente a
Semiolingustica (entre as vrias correntes hoje existentes) praticada
no Brasil pode se desenvolver e se tornar um campo consolidado,
capaz de abordar vrios corpora. Tentamos tambm mostrar que foi
dentro da mesma postura interdisciplinar que Bertaux (1997)
elaborou sua metodologia de pesquisa.
Nesse sentido, a partir da interdisciplinaridade,
compreendemos que tanto a metodologia de Bertaux (1997) quanto a
AD Semiolingustica, por terem ambas o discurso como objeto de
estudo ainda que cada uma delas o aborde com objetivos e
metodologias prprias , puderam realizar encontros conceituais
favorveis para diferentes pesquisadores que se interessaram por essa
unio terica. Percebemos, pois, que h uma relao entre tais
metodologias de anlise, uma vez que ambas abordam o discurso a
Relaes terico-metodolgicas entre a AD e a Narrativa de Vida 41
! )
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42 Aline Torres Souza Carvalho
Daniel Mazzaro
!
Quando Judith Butler, em um artigo de 1988, afirma que o
que chamado de identidade de gnero uma realizao performativa
compelida por sano social e tabu (BUTLER, 1988, p. 520, trad.
nossa), ela recorre ao termo performance/performatividade, que
bastante caro para os estudos da Sociologia, da Antropologia, da
Psicologia e da Linguagem. Resumidamente, o termo performance
est associado a trs conceitos que enfocam a ideia de (1)
exibio/execuo de habilidades, (2) comportamento reconhecido e
codificado culturalmente e (3) habilidades/modelos de comportamento
que levam compreenso do sucesso da atividade. O foco desses
conceitos um pouco diferente: enquanto, no primeiro caso, ele est
46 Daniel Mazzaro
"! # $ % &
A Teoria Semiolingustica, proposta pelo linguista francs
Patrick Charaudeau na dcada de 1980, concebe a anlise do discurso
como uma ferramenta que permite dar conta dos diferentes discursos
sociais e de suas variaes entre uma cultura e outra.Assim, a
linguagem vista como veculo social de comunicao e o homem
como um ser social criado e condicionado pela sociedade e pela
cultura do lugar onde este vive. Como sujeito-falante, ele repete a
voz social, mas o lado psicossocial-situacional lhe d garantia tambm
de una individualidade. Nesse sentido, no completamente
individual e tampouco coletivo, mas, como observa Machado (2005)
um amlgama de ambas as dimenses.
Dessa maneira, quando lemos os relatos de vida, no
procuramos saber sobre a vida pessoal como um reflexo psicolgico
particular de um ser, mas como uma atuao de um sujeito que
pertence a uma sociedade que lhe imprime determinados saberes para
que possa chegar a ser compreendido nesse lugar. Esses saberes
constroem o que chamamos de atos de linguagem ou atos
linguageiros, quer dizer, aqueles fenmenos da linguagem que
combinam o dizer (lugar da instncia discursiva, da encenao, um
circuito interno) e o fazer (lugar da instncia situacional que
ocupam os responsveis desse ato, um circuito externo). Nessa
interao, todo ato de linguagem o produto da ao de seres
psicossociais que so testemunhas, mais ou menos conscientes, das
prticas sociais e das representaes imaginrias da comunidade que
pertencem.
Os saberes no se expressam necessariamente no ato
linguageiro, mas so sempre necessrios para sua produo e
compreenso. Os atos de linguagem nascem de uma situao concreta
de troca e demonstram uma intencionalidade. Em nosso caso, a
Perceber-se gay: Uma anlise de performatividades de (homo)sexualidades... 51
1
J no caso dos perfis que tambm usamos na pesquisa de doutorado, o acesso ao site por parte
dos sujeitos no significa que eles se identifiquem com as identidades homossexuais, pois
podem ocorrer casos, suponhamos, de mulheres que querem ver fotos de homens no Man Hunt
ou ento pessoas que se cadastraram apenas para averiguar se algum conhecido est ali.
Exclumos, em ambos os casos, a possibilidade de mentira dos envolvidos na pesquisa com
relao sua identificao com as identidades homossexuais e que participaram ou contando
sua histria ou de fato procurando algum encontro no Man Hunt, elementos impossveis de
averiguar a veracidade e que, para ns, eram irrelevantes para a pesquisa.
Perceber-se gay: Uma anlise de performatividades de (homo)sexualidades... 53
2
J os usurios do ManHunt preferem colocar em cena a atitude da seduo, com o objetivo de
criar uma imagem de si com a qual os outros usurios se identifiquem baseando-se no que se
entende como um bom partido ou como um bom produto, como alguns participantes
comentam em seus perfis.
Perceber-se gay: Uma anlise de performatividades de (homo)sexualidades... 55
"! #
3
Para uma ampla discusso dessa questo, incluindo a definio de Imaginrios
Sociodiscursivos aplicada s identidades performativas, sugerimos a leitura do quarto captulo
(Cantatas de uma teoria do discurso) de Almeida (2016).
Perceber-se gay: Uma anlise de performatividades de (homo)sexualidades... 59
4
Como se sabe, a durao das etapas de vida do ser humano no algo consensual. Para este
trabalho, consideramos o Estatuto da Criana e do Adolescente que, no seu artigo segundo,
considera criana, para efeitos da lei, a pessoa com at doze anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade" (BRASIL, 1990).
62 Daniel Mazzaro
' (
A anlise efetuada nos permitiu concluir que em quase todos
os relatos de vida a (homo)sexualidade est intimamente ligada a um
processo de autopercepo, no sentido de conscincia-de-si. Essa
reflexo parte do ser-Outro, frequentemente entendido como uma
norma, um ensinamento ou um pressuposto que impe limites no
apenas para ser, mas tambm para compreender-se. Nesse sentido, o
perceber-se/percibirse ou entenderse est frequentemente marcado
pelo estranhamento de si, culminando s vezes em culpa, em violncia
e desafeto, o que faz com que a infncia seja reinterpretada e constitua
o terreno ideal para lanar a ncora da gnese da sexualidade.Alm
68 Daniel Mazzaro
) *
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Perceber-se gay: Uma anlise de performatividades de (homo)sexualidades... 69
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Narrativas autobiogrficas na mdia impressa 71
! " # # $ # %
&
Acompanhando o interesse atual pelos relatos de natureza
biogrfica, para alm da j tradicional cobertura por ocasio do
falecimento de pessoas pblicas ou de pessoas annimas envolvidas
em acontecimentos de grande repercusso, o jornal impresso tem
valorizado os relatos de vida. Ao abrir espao para os depoimentos de
pessoas annimas, ele d a conhecer, por meio da vida de um
indivduo, o perfil de certos grupos sociais que vo ganhando
visibilidade ainda que esse perfil passe pelo filtro da espetacularizao
miditica.
Favorecidos pelas novas tecnologias de informao e
comunicao, esses annimos tm tido cada vez mais espao para
expor sua vida, deslocando, de alguma forma, a centralidade das
figuras histricas e, mais recentemente, das celebridades no espao
pblico. Seus dizeres sobre a vida comum so moldados pela
excepcionalidade exigida da notcia por meio de protocolos
discursivos que incidem sobre aspectos responsveis pela
78 Dylia Lysardo-Dias
1
Disponvel em http://www1.folha.uol.com.br/fs.../100281-manicure-delivery. shtml
80 Dylia Lysardo-Dias
2
Disponvel em http://www1.folha.uol.com.br/fs...filho-roubou-eu-vou-pagar.shtml.
84 Dylia Lysardo-Dias
Excerto 8:
A av de outro rapaz [suspeito de participar dos roubos]
me disse que os pais nem vo atrs do menino,
que ele j no tem jeito.
que o filho tem conserto demonstra que o delito por ele praticado foi
um ato isolado e esse filho pode retomar o que o pai chama (ver
Excerto 13) de caminho certo. O conserto normalmente algo
aplicado a objetos e mquinas que eventualmente deixam de funcionar
e precisam de algum reparo; o conserto vem do exterior e pressupe
uma ao deliberada de identificao das causas do mau
funcionamento. O filho , de alguma forma, coisificado e fica na
dependncia de alguma ao externa.
Na sequncia, o pai evoca a representao da vida como um
percurso que pode ser realizado por meio de dois caminhos opostos
o certo e o errado:
Excerto 13:
Se hoje em dia a gente andando no caminho certo
j corre o risco de alguma coisa dar errado,
imagina se andar no caminho errado?
D mais errada ainda a vida,
e as pessoas no confiam na gente.
' (
A memria social, algo anterior ao sujeito, vai sendo
reenquadrada e atualizada via regularidades enunciativas que se fazem
mais ou menos presentes nas interaes efetivas. O espao da
produo de sentidos o espao da socializao por meio do qual as
convenes (firmadas em uma tenso acordo desacordo) instituem-
se como signos de uma cultura de tal forma diludos e internalizados
que apontam para uma acentuada recursividade, a qual gera a
naturalizao de um agir discursivo.
Consideramos que, ao narrar-se, o sujeito constri sua
identidade pela relao que estabelece com outros sujeitos e pela
natureza social da sua atuao, que, inevitavelmente, funda-se em
saberes, crenas e valores. Se eles remetem a um j-dito cristalizado
(sob a forma de esteretipos verbais, por exemplo), eles tambm
atualizam o dizer e revitalizam os conhecimentos que so
mobilizados.
Assim, analisar a memria refletir sobre a relao do sujeito
com a coletividade, atentando para um espao da socializao
mobilizado a cada atividade enunciativa, no qual certas convenes,
lingusticas e culturais, instituem-se como signos de uma cultura. Pela
repetio, certas recursividades vo sendo naturalizadas como sero
certas configuraes do agir discursivo.
Os relatos autobiogrficos tm se desdobrado em diferentes
modos de expresso de si e autoexposio decorrentes do surgimento
de novos suportes e de alteraes nos suportes j existentes.
Poderamos evocar o termo espao biogrfico, sugerido por Arfuch
(2010), para fazer referncia a essa rede interdiscursiva, que rene
diferentes gneros de carter e matiz (auto)biogrfico diversos.
Importam menos as fronteiras de cada uma dessas modalidades e mais
o movimento de contato entre as vrias possibilidades emergentes de
expor a prpria vida e a vida do outro.
Larrosa (1994, p. 48) considera que o sentido do que somos
depende das histrias que contamos e das que contamos a ns mesmos
[...], em particular das construes narrativas nas quais cada um de
ns , ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal.
Mais que existncias, essas narrativas de si do a conhecer sujeitos
88 Dylia Lysardo-Dias
) *
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Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 89
2
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94 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
3
Precisamos lembrar-nos da falcia da assinatura da Lei urea, como a lei que deu liberdade
social ao povo negro, uma vez que no foram dadas as devidas condies para que o negro
fosse livre e trabalhasse pela sua subsistncia. As favelas e os guetos foram construdos nessa
poca, margem da sociedade, fruto do descaso poltico, social e econmico com a populao
negra de escravos alforriados, ironicamente homens livres. Nesse sentido, a populao negra
viveu/vive de modo segregado social e geograficamente.
100 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
4
Por exemplo, a campanha de 2015 da Arezzo que trouxe como protagonistas Cludia Raia,
Mariana Ximenes e Patrcia Pillar (atrizes brancas) usando acessrios culturais afros. Link para
acesso: http://www.metropoles.com/vida-e-estilo/comportamento/apropriacao-cultural-inflama-
o-debate-da-questao-racial-na-moda Acesso em 30 de julho de 2016.
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 103
5
Link para acesso:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150824_entrevista_emicida_jc_rm. Acesso
em 30 de julho de 2016.
104 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
6
Seleo de canes colocadas umas s outras sem maior amarrao conceitual.
7
Link para acesso: http://www.laboratoriofantasma.com/ Acesso em 30 de julho de 2016.
8
Discos com pouca durao.
9
PRETO, Marcos. A sutil melodia de Emicida. Revista CULT. Disponvel em
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/10/as-tres-vidas-do-rap/. Acesso em 30 de julho de
2016.
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 105
10
A exemplo de Racionais MC's que produz e faz circular suas canes de modo independente e
transita exclusivamente nesse cenrio independente o qual denominamos aqui cena B.
11
Referncia s mdias da empresa Rede Globo.
106 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
Nesse sentido, sua voz estar e ser presente nesse outro lugar
que no lhe pertence em seu nascimento, mas que foi conquistado pela
sua produo artstica, lhe d a oportunidade de ser voz de uma classe
e de uma etnia que sofre cotidianamente com o discurso e com as
prticas estruturais do preconceito racial. Emicida, enquanto sujeito-
enunciador das canes, se v nesse confronto de algum que negro,
de origem pobre e de periferia e, que, contudo, agora tem um status
econmico e social alcanados por uma arte que at meados do incio
dessa dcada no se compactuava com isso: o rap e o hip hop
possuem a ideologia de serem artes do negro, sobre o negro, pelo
negro e para o negro nas esferas social, histrica, poltica, cultural.
Portanto, dificilmente uma arte marginal (feita pela voz marginal e
para outras vozes marginais) ser destaque em mdias elitizadas que
ideologicamente so excludentes.
Logo, o marginal que aparece no enunciado de Emicida no
mais o marginal que fala da periferia ou da favela e que busca ser
ouvido pela elite, pelo governo; mas o marginal que ascendeu
socialmente e que no se furta de enunciar do lugar de sua origem (do
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 107
Cont.
Ttulo da cano Enunciado
E8: Se arruma, sorri e acostuma/ Ganha grana s pra
mostrar que grana no porra nenhuma/ pela arte, no
pelos prmios/ Pisa na high society, faz sua parte bem,
mantm a raiz, tipo osgemeos/ Nis quer carro e
Gueto (faixa 10) manso, n? Por que no?/ T bem patro de avio, n?
Por que no?/ Quer opo, quer salmo, n? Por que
no?/ Ser feliz, jo, diz a, por que no?
E9: Vim deixar claro que sou escuro/ Tesouro raro num
jogo duro/ Mas t em campo
Ubuntu Fristili E10: Faz de conta que os racistas no perde a linha/
(faixa 14) Quando ergo a mo da filha dele sem armas nas minhas
14
Nos quilombos os negros viviam livres de acordo com sua cultura, produzindo tudo o que
precisavam para viver. O Quilombo dos Palmares foi o maior quilombo do Brasil Colonial e,
sob a liderana de Zumbi, Palmares chegou a ter aproximadamente trinta mil habitantes.
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 113
!
Compreendemos que a construo de toda e qualquer
enunciao diz respeito a um acontecimento, a uma situao de
linguagem pertencente vida social. Isso significa dizer que mesmo que
a enunciao tenha um aspecto autnomo de acabamento seus sentidos
so orientados na e pela comunicao verbal, pois operam em um
movimento incessante entre a sociedade e a histria. O pensamento do
Crculo de Bakhtin (em especial, em Bakhtin/Volochnov, 2009, p. 126)
apoia a ideia de que a comunicao verbal, que envolve os atos de fala
de toda espcie, assim como produes escritas, no se separa das
outras formas de comunicao, de carter no verbal. Isso significa
dizer que toda comunicao verbal comporta elementos extra-verbais
que devem ser partilhados entre os interlocutores para que a interao
verbal seja efetivada.
No presente estudo, pensamos a narrativa de vida na produo
artstica de Emicida e a compreendemos como elemento constitutivo
das letras das canes selecionadas do lbum O Glorioso Retorno de
Quem Nunca Esteve Aqui (2013). Tanto os enunciados recortados das
letras das canes de Emicida, como os enunciados eleitos da
entrevista concedida BBC foram considerados como materialidade
discursiva de estudo, no entanto, a entrevista aparece de forma
complementar. possvel compreender nos enunciados analisados
como o signo marginal emerge e orienta a voz do sujeito-enunciador
que ora enuncia inserido na sociedade evocando sobre seu lugar de
origem, ora enuncia inserido na sociedade sobre a sociedade, sempre
norteado pelas relaes eu-para-mim, eu-para-o-outro e o-outro-para-
mim.
O projeto de dizer de Emicida , sobretudo, dialgico-
ideolgico da voz marginal do sujeito-enunciador sobre o discurso do
preconceito racial e suas consequncias na vida do povo negro. Nesse
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 117
" ! #
AMORIM, Marlia. O pesquisador e o seu outro: Bakhtin nas cincias humanas. Rio
de Janeiro: MUSA, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. (1920-1924). Para uma filosofia do ato responsvel. Traduo
de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. So Carlos: Pedro & Joo, 2010.
118 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
" ! # ! !
EMICIDA. O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui. Laboratrio Fantasma.
14 faixas. 2013.
Narrativa de vida na produo artstica de Emicida: a voz marginal em anlise 119
" ! #
EMICIDA. A pior coisa voc perguntar as horas e a pessoa esconder a bolsa, diz
Emicida sobre o racismo no Brasil. [01/09/2015]. BBC Brasil. Entrevista concedida a
Jlio Dias Carneiro e Renata Mendona. Disponvel em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150824_entrevista_emicida_jc_rm.
Acesso em 30 de julho de 2016.
120 Grenissa Bonvino Stafuzza e Bruno Oliveira
Nos bastidores da narrativa de vida & anlise do discurso 121
!
A narrativa ou relato, ou histria de vida est ligada ao
exerccio da memria de quem a concebe. A memria de um ser
humano um universo onde diferentes vozes se conjugam, alm da
voz do ser que reflete sobre si e sobre sua existncia. Essas vozes
falam de acontecimentos pessoais, vividos pelo indivduo em pauta
mas tambm de acontecimentos coletivos dos quais o indivduo,
participou de uma forma ou de outra. Essas informaes armazenadas
criam um pot-pourri de imaginrios que vo se refletir nas palavras do
ser-pensante, em ocasies diversas, desde que ele convoque suas
lembranas. Por vezes o indivduo foi testemunha de tais
acontecimentos coletivos; mas h casos em que ele deles tomou
conhecimento pelas palavras de um terceiro. Seja como for, essas
informaes podem se mesclar e dotar o indivduo de um amplo
estoque de imaginrios.
De forma geral, o espao social e as prticas sociais so
elementos determinantes para o desenvolvimento do imaginrio. Em
outras palavras, o indivduo influenciado pelas ideias que recebe por
meio das vozes de outros, daqueles com quem convive, desde sua
mais tenra idade. Aos poucos, a criana se socializa por meio dessas
vozes que a envolvem e que se juntam aos seus pensamentos, a sua
maneira de conceber ou de perceber seu meio ambiente.
O papel das socializaes primrias (infncia, adolescncia) e
secundrias (idade adulta) , segundo Bourdieu (apud CLARY, 2015,
p. 20), fundamental para a estruturao do habitus. Lembramos que o
termo em questo foi criado para designar resumindo bem o modo
como a sociedade nos influencia/condiciona, dando-nos certas
capacidades, certos modos de pensar, agir e sentir.
O ser humano sensvel s solicitaes do meio social que o
rodeia, no seu dia a dia. Mas, ao mesmo tempo, ele tambm ligado
s aquisies obtidas no passado. Vemos assim que o habitus um
processo que no acaba nunca, pois a socializao segue os diferentes
graus e etapas da vida do ser humano. Em suma, o habitus seria o
Nos bastidores da narrativa de vida & anlise do discurso 123
1
Nossa traduo do original: Limaginaire est apte faire surgir des significations do
dcoulent aussi bien les structures symboliques de la socit [] que llment rationnel qui
prside au fondement de la socit.[] Toute rationalit est [] le produit des significations
sociales qui trouvent dans limaginaire un appui et un mode de reprsentation []
Nos bastidores da narrativa de vida & anlise do discurso 125
" #
$
Gostaramos de explicar aqui o que mais nos atraiu ou
conduziu anlise ou ao estudo de documentos genealgicos ou, mais
precisamente, explicar quem nos atraiu para esse tipo de estudos.
Como j afirmamos em alguns artigos ou palestras realizados
a partir de 2010, comeamos a nos interessar pelas narrativas de vida,
associando-as anlise do discurso ao ler o livro Storytelling (2007),
no qual o pesquisador francs Salmon aborda os encantos e perigos da
arte de saber contar histrias. Segundo ele (2007, p. 11-13), o mundo
Nos bastidores da narrativa de vida & anlise do discurso 127
3
Nossa traduo do original: [] cest cela qui enveloppe et vient coudre chaque instant,
chaque emplacement, chaque distraction mme.
4
Conforme nosso Projeto de Pesquisa CNPq, nmero 304049/2012-3- Um olhar discursivo
sobre percursos de vida que se entremeiam a percursos tericos.
5
No sentido que o literato francs Doubrovsky (2001a, 2001b, 2010) d ao termo.
Nos bastidores da narrativa de vida & anlise do discurso 129
& ' (
AZEVEDO, Mrio Luiz Neves. Espao Social, Habitus e Conceito de Classe Social
em Pierre Bourdieu. Revista Espao Acadmico, ano II, nmero 24, Maio de 2003.
Disponvel em: www.espacoacademico.com.br/024/24cneves.htm (Consulta feita dia
23 de junho de 2016).
BAKHTINE, Mikhail. Problmes de la potique de Dostoevski. Paris: Seuil, 1970.
BANDEIRA, Manuel. Auto-retrato. In: BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e
verso. MORAES, Emanuel. de (org.). Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1971.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Trad. de Srgio Miceli et al.
So Paulo: Perspectiva, 1987.
BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris: Minuit, 2002.
138 Ida Lucia Machado
1
Prtica discursiva do sujeito em falar de si, de acontecimentos discursivos que transpassaram
sua existncia e que emergem enquanto monumentos de sua memria discursiva, recortando e
(re) significando sua historicidade e sua anterioridade discursiva.
140 Joo Bsco Cabral dos Santos
2
Esses depoimentos foram coletados em forma de protocolo verbal, gravado em udio, em que o
depoente fala sobre sua infncia, a partir da motivao de algumas fotografias. O nome do
informante fictcio por uma questo de tica acadmica.
3
Seu Joo de Assis, j falecido, por ocasio do depoimento estava com 78 anos.
Autoenunciao, efeitos de memria, historicidade do sujeito 145
nas batas passadas a ferro com goma; bombons de mel de abelha; nota
de 1 rs; soda; ceia; cuscuz bondade. Um convite historicidade de
uma poca com seus contornos sociais, banhados a uma cultura de
miscigenao negra.
A Sociedade de Medicina representava uma instncia de
poder, tempo em que os mdicos gozavam de prestgio social, poltico
e eram tratados como celebridades na comunidade. J o cheiro de
lcool nas batas (os jalecos), que eram literalmente engomados,
representavam um costume da poca para manter roupas brancas sem
amarrotar, uma vez que a maioria delas era tecida em algodo.
Os bombons de mel de abelha na verdade eram balas,
designadas como tais porque ainda no havia a cultura dos atuais
bombons de chocolate recheados. Tinham uma representao
simblica de distribuio de sade uma vez que elas vinham da
natureza e representavam um remdio. Quanto nota de 1 rs, esta
funcionava como valor padro para se ofertar uma esmola ou um
agrado, como assim era chamado, quando se tratava de gratificar
pessoas simples pela prestao de um servio a atual gorjeta.
O curioso desse imaginrio cultural que, por vezes tinha
significaes outras como o caso da soda que no era uma bebida.
Tratava-se de uma bolacha grande redonda, com dimetro aproximado
de dez centmetros e feita com farinha de trigo misturada com melao
de cana de acar. A soda era um dos alimentos prediletos pelos
garotos da poca e sempre era comida como sobremesa ou lanche.
A ceia representava o jantar, terminologia hoje to solene,
representava o desjejum noturno da classe menos favorecida daquela
poca. Constitua-se do servir de uma sopa, confeccionada com as
sobras do almoo, acompanhada de um po, s vezes com manteiga,
s vezes no, e um copo de caf preto mesmo para as crianas.
Por fim, o cuscuz bondade, um flocado farinado de milho e
bagao de coco, cozido no vapor e depois molhado com leite do
prprio coco. Era vendido em tabuleiros e o vendedor anunciava sua
passagem com uma gaita de sopro. Era uma guloseima tambm muito
apreciada pela crianada.
Observo a autoenunciao do depoimento de Seu Joo de
Assis como um efeito de memria que reconstitui, inclusive um
Autoenunciao, efeitos de memria, historicidade do sujeito 147
! "
CHARAUDEAU, Patrick. Une problmatisation discursive de lmotion. A propos
des effets de pathemisation la tlvision. In: PLANTIN, Christian. et al. (Eds.). Les
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VILLARTA-NEDER, Marco Antonio. Os movimentos do silncio: espelhos de Jorge
Lus Borges. Araraquara: Tese de Doutorado. 2002.
150 Joo Bsco Cabral dos Santos
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 151
1
Este trabalho parte integrante de nossa tese de doutorado intitulada Telenovelas brasileiras:
um estudo histrico-discursivo, orientada pela Prof. Dr. Ida Lucia Machado, no mbito do
Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos (POSLIN) da Faculdade de Letras
(FALE) da UFMG.
2
Chamamos de telenovela brasileira esse produto televisivo peculiar que passou a ser
apresentado no Brasil, a partir do final da dcada de 60, resultado de um processo de
transformao marcante, cujo ponto culminante foi a telenovela Beto Rockfeller, de Brulio
Pedroso, exibida pela TV Tupi em 1968-69. No estamos, portanto, nos remetendo apenas s
produes adaptadas, nacionalizadas ou geradas no Brasil, ou seja, aos produtos made in
Brazil. Na verdade, quando falamos de telenovela brasileira, estamos nos referindo ao gnero
que adquiriu [...] caractersticas prprias, provenientes de nosso teatro, de nossa literatura, de
152 Leonardo Coelho Corra-Rosado
nosso cinema (COSTA, 2000, p. 156), enfim, de nossa cultura nacional, e cujas maiores
expresses se do nas manifestaes do realismo fantstico e tambm nas histrias de cunho
social, com forte tendncia realista.
3
Nossa traduo de: [...] au complet ce qui rend mieux compte de l'ensemble du fait narratif.
4
Sob o ponto de vista fenomenolgico, o tempo corresponde a um fluxo descontrolado e ilgico
de acontecimentos fortuitos que o homem no conhece. Sendo construes, as narrativas so
meios de imobilizar o tempo em uma lgica, necessria e coletiva (COSTA, 2000, p. 44).
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 153
5
Machado (2011, p. 61) define histria discursiva como sendo um relato que incorpora dados
reais e fictcios em uma narrativa cuja finalidade a de contar a vida pessoal de algum.
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 155
7
Pallottini (1998, p. 59) explica esta metfora da seguinte forma: [a]s razes do a base do
trabalho do autor. fundamental que o autor (ou autores) tenha uma viso de mundo, seja ela
qual for, que transparea na obra. O tronco a garantia de uma unidade de ao, ainda que
truncada, s vezes perdida no meio do caminho, para ser retomada depois. E os ramos so
consequncias da existncia das razes e do tronco. Esses ramos podem ser maiores ou
menores; isso depender muito da escolha do assunto, dos personagens e at dos atores; a
grandeza ou importncia de cada um dos ramos pode, ainda, depender da resposta do pblico
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 161
!
Na qualidade de um objeto material, toda narrativa um
discurso fechado, isto , ela tem um comeo, meio e fim. Mesmo que
a narrativa possa ter um final suspensivo ou cclico como o conto A
quinta histria de Clarice Lispector isso no muda em nada a
natureza da narrativa enquanto um objeto: todo livro tem uma ltima
164 Leonardo Coelho Corra-Rosado
pgina, todo filme tem um ltimo plano e, por sua vez, toda telenovela
tem uma ltima cena; h sempre um enunciado final que permite dizer
que este objeto chegou ao seu fim. Na telenovela, este enunciado,
geralmente, a meno escrita da palavra fim na ltima tomada,
embora possa haver casos, como o da telenovela DancinDays, em
que o fim deixado em suspenso pelo fade-out (escurecimento) da
cena. Consideremos o exemplo a seguir:
i ii
iii iv
Exemplo 1 - Enunciados finais das narrativas telenovelsticas de: i)
Irmos Coragem, ii) Dancin'Days, iii) Roque Santeiro e
iv) Tieta.
"
Em termos de seu contedo, uma narrativa,
independentemente de seu suporte (papel, livro, televiso, cinema,
etc.), um conjunto organizado de eventos e aes realizados por
personagens que tenham algum tipo de qualificao8. bem verdade
que a funo acional define, em princpio, uma narrativa. Todavia,
quando pensamos em narrativas audiovisuais (como a cinematogrfica
e a telenovelstica), o espao ganha uma certa relevncia, j que, como
propem Gardies (1993, p. 69) e Gaudreault e Jost (2009, p. 105), o
significante imagtico/flmico de natureza espacial, mostrando, ao
mesmo tempo, as aes que fazem a narrativa e o contexto de
ocorrncia delas.
Assim, a imagem cintica opera com a apresentao
simultnea, em sincronia, de elementos informacionais. Um simples
enunciado visual possui um conjunto de informaes de ordens
diversas, como as acionais, as espaciais, as actoriais e as temporais
(esta ocorre no desenrolar do filme). Segundo Gaudreault e Jost (2009,
p. 145):
[t]al multiplicidade (assim como pensando somente na
imagem, cores, gestos, expresses, vestimentas, objetos,
etc, ad infinitum), que alm disso multiplicada pela
8
De um ponto de vista enunciativo e comunicacional, Charaudeau (1992; 2008) entende que
para que uma sequncia de acontecimentos contados se transforme em narrativa, preciso
inventar-lhe um contexto situacional, delimitado por um contrato comunicacional. Em outras
palavras, para que haja uma narrativa, necessrio, segundo Charaudeau (2008, p. 153), [...]
um contador [...], investido de uma intencionalidade, isto , de querer transmitir alguma
coisa (uma certa representao da experincia do mundo), a algum, um destinatrio [...], e
isso, de uma certa maneira, reunindo tudo isso que dar um sentido particular a sua narrativa.
Embora, a princpio, esta posio parea contradizer a nossa, acreditamos que elas, na verdade,
so complementares, j que o discurso rene o enunciado e a enunciao. Assim, dizer que
uma narrativa um conjunto organizado de eventos e aes realizado por personagens que
tenham algum tipo de qualificao diz respeito narrativa do ponto de vista de seu contedo
interno, seu enunciado, o que no exclui, para ns, o fato dela tambm necessitar de um
contexto situacional para que este conjunto de eventos seja tido como uma narrativa (e no
como uma argumentao).
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 167
9
Em aluso ao espao cinematogrfico proposto por Gardies (1993).
10
Diferentemente do espao cinematogrfico, que perfeitamente agenciado e estruturado para
implicar o espectador no mundo diegtico proposto pelo filme, o espao televisivo um espao
conturbado na medida que, no geral, ele no foi construdo para implicar o telespectador; este
telespectador se encontra diante de uma srie de elementos aflmicos que podem interferir em
sua recepo (barulhos, conversas paralelas, iluminao, atividades variadas, etc.).
168 Leonardo Coelho Corra-Rosado
11
Nossa traduo de: La reprsentation de lespacedigtique nest doncpas une affaire de
captation de lespacephysique, mas une affaire de sens: ilsagit non de reprsenter, mas de
signifier lespace de rfrence.
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 169
i ii iii
iv v
Exemplo 3 - Espao e perfil de personagens. Fragmentos da casa de
Joo Coragem
i ii iii iv
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 171
v vi vii viii
ix x xi xii
xiii xiv xv
Exemplo 4 - O campo e o fora do campo na narrativa telenovelstica.
Cena da perda da virgindade de Tieta em Tieta.
12
Considerando, os trs nveis do fato narrativo proposto por Genette (1972), narrao,
narrativa e histria, o tempo a categoria da Narratologia que estuda a relao temporal entre
narrativa e histria, ou entre narrativa e diegese. Desta maneira, enquanto categoria, ele tem a
ver com alterao na sequncia do dito e no-dito realizada pelo narrador, em termos de
narrativa (tempo da narrativa) e no da diegese (tempo da histria).
174 Leonardo Coelho Corra-Rosado
13
No original: Le verbal bien souvent (dialogues ou commentaires) rapporte des vnements
sancrs dans um temps diffrent de celui au quel renvoie limage ao mme moment.
176 Leonardo Coelho Corra-Rosado
!
O ritmo de uma telenovela precisamente um dos efeitos
essenciais da durao, aspecto temporal que imprime velocidade
narrativa e que corresponde, grosso modo, a toda alterao, no
discurso, da durao da histria, que de certa forma concretiza o
tempo da narrativa. Assim, a durao decorre de uma atitude intrusiva
do narrador, que subverte o regime durativo da histria, controlando,
a seu bel-prazer, a durao dos acontecimentos da histria.
A velocidade, nas palavras de Genette (1972), se define pela
relao entre a durao da histria, medida em segundos, horas, dias,
meses e anos e a extenso da narrativa. Assim, ela uma
consequncia da atitude mais ou menos seletiva adotada em funo do
alargamento temporal da histria. Em outras palavras, o narrador pode
respeitar o mais fielmente possvel as dimenses temporais da histria,
ou, ao contrrio, escolher os eventos a reter.
Na narrativa audiovisual, a velocidade definida pela
quantidade de tempo (tempo da exibio) que um evento narrativo
qualquer leva para ser mostrado. Neste ponto, a telenovela pode
brincar com o ritmo, fazendo com que um fato narrativo que, num
regime de isocronia, deveria tomar menos tempo leve blocos e/ou
captulos para ser mostrado e resolvido, sendo dilatado at sua
completa exausto. Este tipo de estratgia gera efeitos de sentido
(inclusive patmicos) e pode, por um lado, ser um recurso para
segurar a audincia, e, por outro lado, suscitar uma certa angstia no
telespectador que no tem outra opo a no ser esperar.
Como afirma Balogh (2002, p. 75), a narrativa audiovisual se
baseia no uso sistemtico da elipse (saltos narrativos), fazendo com
que o contexto assuma funo de preencher e eliminar o sentido dos
vazios ou dos acontecimentos no registrados. Todavia, a telenovela
traz um enorme nmero de redundncias relativas a acontecimentos j
registrados: comentrios, fofocas, recordaes do personagem.Tais
estratagemas, retardam o fluxo temporal da narrativa e visam a captar
novos espectadores cativos para a novela.
A durao/velocidade pode funcionar em um nvel micro (as
sequncias narrativas que constituem a histria) ou num nvel macro
(a telenovela como um todo). Neste sentido, concordamos com
Genette (2007, p. 83), quando afirma que: uma narrativa pode passar
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 177
#
Quando pensamos no dispositivo televisivo, a temporalidade
torna-se mais complexa, pois implica em vrias camadas de tempo.
Segundo Jost (2007, p. 35), a temporalidade da televiso relaciona trs
nveis de tempo, a saber: a) o tempo da mdia, tempo das
materialidades envolvidas no dispositivo televisivo; b) o tempo do
gnero, que remete ao mundo proposto pelo programa de televiso, no
caso da telenovela, ao mundo diegtico; c) o tempo da programao,
14
No original: un rcit peut se passer danachronies, il ne peut aller sans anisochronies, ou, si
ilon prfre [...] sans effets du rythme.
178 Leonardo Coelho Corra-Rosado
15
No original: [...] la rception tlvisuelle est faite de rptitions, de retours, de cicles, en sorte
que le tlspectateur lui prte une paisseur bien diferente [...].
180 Leonardo Coelho Corra-Rosado
$ %
Diante do exposto, a telenovela brasileira pode ser vista como
uma espcie de ritual social, uma vez que ela oferecida sempre no
mesmo horrio e nos mesmos dias da semana para o telespectador
uma consequncia da programao vertical e horizontal que permitiu
desenvolver o potencial comercial da televiso e tambm deste
gnero. Com isso, ela se insere nas rotinas dirias da audincia, em
meio a afazeres de diversas ordens. Por exemplo, no caso de uma
mulher que goste desse gnero: chegada do trabalho; organizao da
casa; cuidado com os filhos; jantar, etc. A telenovela se torna uma
verdadeira prtica sociodiscursiva. Dessa maneira, ela institui um
verdadeiro cerimonial narrativo no qual um determinado local (a
televiso localizada em um certo cmodo da casa) e um horrio so
estabelecidos para sua interao, organizando, com efeito, a vida
temporal e social dos atores sociais.
A narrativa telenovelstica: algumas consideraes 181
! % &
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: seduo e sonho em doses
homeopticas. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2002.
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182 Leonardo Coelho Corra-Rosado
documento que poderia realmente ser todo ele escrito por Getlio, mas
ao qual podem tambm ter sido acrescentadas outras informaes. O
mistrio continua, e este artigo no pretende resolv-lo. Propomos
apenas nos concentrar nos fragmentos de uma histria de vida
contidos na verso oficial da referida carta.
Apesar das duas cartas terem algumas diferenas, em ambas
Getlio informa que se matara devido s presses de grupos nacionais
e internacionais foras ocultas contrrios ao seu governo, dito
trabalhista.
Antes de analisar alguns trechos dessa carta luz da vertente
charaudiana da Anlise do Discurso, gostaramos de apresentar de
forma panormica algo sobre a vida de Vargas mais
especificamente desde sua chegada ao poder em 1930, at sua morte
em 1954 para, ento, tentar compreender os efeitos pathmicos
gerados pela recepo dessa Carta-testamento pelo grande pblico.
1
Situao poltica na qual, na iminncia de guerra interna ou externa, so suspensos todos os
direitos e garantias individuais, tendo o Estado plenos poderes. (DOMINGUES, 2009, p. 147)
A Carta-testamento de Getlio Vargas: pathos e discurso poltico 187
2
O Plano Cohen, na verdade, nunca existiu. Foi criado por integralistas ligados ao Exrcito e
usado por Vargas para dar o golpe e se manter no poder. (ib., p. 146)
188 Lucas Eugnio de Oliveira e Pollyanna Jnia Fernandes Maia Reis
Fonte: https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=
0ahUKEwiPpoqv58_NAhUEUBQKHZHED2kQjRwIBw&url=http%3A%2F%2Fwww.sindpd.org.br%2Fsind
pd%2Fclt70anos&bvm=bv.125801520,d.amc&psig=AFQjCNGVlNpB0Znzwgg4447DtQpeYlSaLw&ust=146
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Fonte: https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=
0ahUKEwiLqsHT58_NAhVBGhQKHcgCDtQQjRwIBw&url=http%3A%2F%2Folhonahistoria.blogspot.com
%2F2011%2F10%2Fatividades-de-historia-do-brasilestado.html&bvm=bv.125801520,d.amc&psig= AFQjCN
GVlNp B0Znzwgg4447 DtQpeYlSaLw&ust=1467378038628196. Acesso em 29 de junho de 2016.
A Carta-testamento de Getlio Vargas: pathos e discurso poltico 189
Fonte: https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=
0ahUKEwjjgdjd58_NAhXIuRQKHd4B_YQjRwIBw&url=http%3A%2F%2Fconstruindohistoriahoje.blogspot
.com%2F2012%2F05%2Fum-gaucho-chamado-getuliodornelles.html&bvm=bv.125801520,d.amc&psig=AFQ
jCNGVlNpB0Znzwgg4447DtQpeYlSaLw&ust=1467378038628196. Acesso em 29 de junho de 2016.
4
Atentado contra o lder da oposio, Carlos Lacerda, ocorrido no dia 5 de agosto de 1954, no
Rio de Janeiro, no qual morreu um militar. O pistoleiro foi contratado pelo chefe da guarda
pessoal de Vargas, ao que tudo indica sem o conhecimento do presidente. (DOMINGUES,
2009, p. 194).
192 Lucas Eugnio de Oliveira e Pollyanna Jnia Fernandes Maia Reis
"
#
Transcrevemos agora a Carta-testamento de Vargas (verso
datilografada) para melhor conhecimento do leitor:
Mais uma vez as foras e os interesses contra o povo
coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. No me
acusam, insultam; no me combatem, caluniam; e no
me do o direito de defesa. Precisam sufocar a minha
voz e impedir a minha ao, para que eu no continue a
defender, como sempre defendi, o povo e
principalmente os humildes.
Sigo o destino que me imposto. Depois de decnios de
domnio e espoliao dos grupos econmicos e financeiros
internacionais, fiz-me chefe de uma revoluo e venci.
Iniciei o trabalho de libertao e instaurei o regime de
liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo
nos braos do povo.
A campanha subterrnea dos grupos internacionais aliou-
se dos grupos nacionais revoltados contra o regime de
garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinrios foi
detida no Congresso. Contra a Justia da reviso do
salrio mnimo se desencadearam os dios.
Quis criar a liberdade nacional na potencializao das
nossas riquezas atravs da Petrobrs, mal comea esta
a funcionar a onda de agitao se avoluma. A
5
Fonte: http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2014/08/suicidio-de-vargas-adiou-golpe-militar-
por-10-anos. Acesso em 29 de junho de 2016.
A Carta-testamento de Getlio Vargas: pathos e discurso poltico 193
6
Disponvel em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/08/22/morte-de-getulio-em-
1954-adiou-o-golpe-em-10-anos-diz-historiador. Acesso em 19 de julho de 2016.
7
Traduo nossa do original: Les mots ont le pouvoir de provoquer les ractions les plus
diverses aussi bien chez celui qui parle que chez ceux qui ils sadressent. Selon Plantin
(2011), toute motion provoque un certain malaise chez celui qui lprouve cause des affects
ressentis, provoquant une raction dtranget physique. La question est donc de savoir
comment mettre en relief ce malaise une cette motion au moyen du discours et comment
lutiliser comme stratgie argumentative pour faire passer un point de vue.
196 Lucas Eugnio de Oliveira e Pollyanna Jnia Fernandes Maia Reis
8
A CLT surgiu pelo Decreto-Lei n 5.452, de 1 de maio de 1943, sancionada pelo ento
presidente Getlio Vargas, unificando toda legislao trabalhista existente no Brasil. Seu
principal objetivo a regulamentao das relaes individuais e coletivas do trabalho, nela
previstas. A CLT o resultado de 13 anos de trabalho desde o incio do Estado Novo at
1943 - de destacados juristas, que se empenharam em criar uma legislao trabalhista que
atendesse necessidade de proteo do trabalhador, dentro de um contexto de "estado
198 Lucas Eugnio de Oliveira e Pollyanna Jnia Fernandes Maia Reis
sociedade que requer algum que olhe ou trabalhe por ela. Nesse
sentido, teramos a imagem de Getlio como a personificao de algo
parecido com o tat providence francs.
Ainda com relao ao pargrafo anterior, outra noo
instaurada. O vocbulo povo suscita imaginrios scio-discursivos
que se voltam para a ordem do sensvel, ou seja, do campo da emoo,
criando um efeito patmico relativo prpria adeso do auditrio.
Este trecho de sua carta tambm instaura o quadro da problemtica de
Charaudeau (2007, p. 243) que recai sobre quatro princpios:
alteridade, influncia, regulao e pertinncia.
O primeiro deles, o princpio da alteridade, se faz presente a
partir da conscincia da existncia de si. Nesse caso, quando Getlio
Vargas alia a percepo da existncia do outro o seu auditrio (o
povo) a seu prprio olhar. No enunciado que se segue, percebemos
esse princpio: [...] precisam sufocar a minha voz e impedir a minha
ao para que no continue a defender, como sempre defendi, o povo
e principalmente os humildes. Podemos compreender, ento, que,
pela utilizao da primeira pessoa, marca-se o espao social que
Getlio Vargas ocupava, assumindo-se, assim, a condio de portador
de um discurso que capaz de desvelar uma imagem de capacidade
frente s questes ligadas aos pobres e humildes a partir da figura do
auditrio, o povo.
Alm disso, no trecho supracitado, as palavras precisam
sufocar a minha voz, ganham um outro contorno: o da imagem de
incapacidade quando o ex-presidente, sob a presso de foras
ocultas, decide pr fim a sua vida, balizado pela justificativa de ter
dado a vida pelo Brasil e, agora, ter que oferecer a sua morte, tamanha
as intempries encontradas em seu caminho, em sua trajetria.
$ !
! % #
importante perceber que a Carta-testamento de Getlio
Vargas de fato constitui, a nosso ver, uma narrativa de vida
empreendida por ele mesmo no mbito de sua histria poltica. Em
poucas linhas, Vargas (1954) tenta dar um contorno coerente sua
200 Lucas Eugnio de Oliveira e Pollyanna Jnia Fernandes Maia Reis
vida, buscando, para isso, construir uma identidade para si e para suas
aes. Nesse sentido, Lipiansky (1983), afirma que
A narrativa de vida uma tentativa do sujeito para se
construir e para fornecer (ao outro) uma imagem de si.
um esforo para recuperar, de modo coerente, uma
identidade, em meio aos riscos e transformaes dessa
vida e dar a esse relato uma coerncia que o torne
comunicvel para o outro. A narrativa de vida pressupe
assim um processo de totalizao, atravs do qual o
enunciador busca dar um sentido e uma consistncia em
sua vida. (LIPIANSKY, E.M, 1983 in: BOYER, H.,
1988, p. 61 apud MACHADO9, I.L, 2013).
9
MACHADO, I.L. Notas de aula tomadas no curso Teorias do Discurso, ministrado pela
professora Ida Lucia Machado no POSLIN (Programa de Ps-Graduao em Estudos
Lingusticos) da UFMG, no segundo semestre de 2013.
A Carta-testamento de Getlio Vargas: pathos e discurso poltico 201
& ' (
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Uma narrativa de carter esprita sob a perspectiva da Semiolingustica do ... 203
! ! "
Allan Kardec, na condio de codificador do Espiritismo e
propagador dos ensinamentos de Jesus, foi uma eminente
personalidade do sculo XIX, cujo legado religioso se estendeu pelos
sculos XX e XXI e provavelmente se estender por todas as etapas
do Planeta Terra.
Chico Xavier Francisco Cndido Xavier , da mesma forma,
na condio de divulgador da Doutrina Esprita, de exemplo de
humildade, de honestidade e de altrusmo, foi o mdium psicgrafo
mais respeitado no Brasil (e qui no mundo) do sculo XX e incio
do XXI, e provavelmente o ser pelos sculos que se seguiro.
Chico nasceu na cidade de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais,
no Brasil, em 2 de abril de 1910 e viveu, a partir de 1959, em
Uberaba, no mesmo Estado, desencarnando no dia 30 de junho de
2002.
Seu pai, Joo Cndido Xavier, faleceu em 1960, mas sua me,
Maria Joo de Deus, desencarnou em 1915, quando Chico tinha
apenas 5 anos. Embora tenha partido muito cedo, D. Maria Joo
deixou-lhe o ensinamento do valor das preces, fato que o fazia
continuar a orar com muita f, mesmo depois de rfo.
Ainda aos 5 anos, Chico teve sua primeira comunicao com
um ser desencarnado, atrs de uma bananeira. Era sua amada
mezinha, cuja imagem ele viu claramente e cuja voz lhe soou como
208 Lcia Helena Martins Gouva
uma msica. Nesse momento, ele lhe pede que o leve com ela, mas ela
o convence de que no possvel e o consola com muito amor.
O menino, a partir de ento, foi crescendo, puro, bom,
obediente, cercado de vozes amigas do espao que o confortavam e o
auxiliavam nas tarefas habituais, inclusive na escola.
Quando sua me faleceu, seu pai entregou seis dos nove filhos
a padrinhos e amigos. Chico ficou com sua madrinha, em companhia
de quem muito sofreu j que ela lhe dava trs surras por dia, com vara
de marmelo.
Felizmente o pai casou-se mais uma vez, nesta ocasio, com
D. Cidlia Batista, que lhe pediu que trouxesse os filhos de volta e os
tratou com muita dedicao, apesar de ter tido outros seis filhos com
ele.
Estudou at completar o curso primrio e comeou a trabalhar
com oito anos de idade, numa fbrica de tecidos, das 15h s 2h, pois
precisava ajudar a cobrir as despesas do lar. Teve quatro empregos
durante sua vida, mas aposentou-se pela Escola Modelo do Ministrio
da Agricultura, local em que trabalhou por 32 anos, em Pedro
Leopoldo e em Uberaba, a partir de 1959.
Manteve-se catlico fervoroso at meados de 1927, tendo
como orientador religioso o padre Sebastio Scarzelli. Neste ano,
porm, uma de suas irms passou a sofrer de obsesso espiritual, o que
obrigou sua famlia a procurar um casal esprita Sr. Jos Hermnio
Percio e D. Carmem Pena Percio. Depois de algumas reunies, a
moa ficou curada, fato que levou a famlia a fazer o culto do
Evangelho no Lar. A partir de ento, Chico despediu-se da religio
catlica e do padre, que o abenoou.
Neste mesmo ano, Chico, ento com 17 anos, ajudado por
algumas pessoas, funda o Centro Esprita Luiz Gonzaga, em Pedro
Leopoldo, local em que recebe a primeira mensagem psicografada.
Essa mensagem, constituda de dezessete folhas escritas celeremente,
tratava sobre os deveres do esprita cristo.
Entre 1931 e 1932, ento com 21 anos, recebe muitas poesias,
especificamente ditadas por 56 poetas entre brasileiros e portugueses
desencarnados, poesias essas que compuseram o seu primeiro livro
Uma narrativa de carter esprita sob a perspectiva da Semiolingustica do ... 209
# $ %
Inicia-se esta seo com o conceito de contrato de
comunicao, proposto por Patrick Charaudeau.
Todo ato de comunicao, para realizar-se plenamente
segundo seus objetivos, constri-se, balizando-se em determinadas
condutas lingusticas e extralingusticas seguidas por indivduos
pertencentes a um mesmo grupo de prticas sociais. Ao conjunto
dessas condutas, Charaudeau (2008, p. 56) d o nome de contrato de
comunicao, espcie de acordo firmado entre indivduos quanto s
representaes linguageiras dessas prticas sociais.
O contrato caracteriza-se pela articulao de dois espaos: um
espao de restries e um de manobras. O espao de restries diz
respeito s normas, que no podem ser desrespeitadas, sob pena de a
comunicao no se efetivar. O espao de manobras, por seu turno,
o lugar de liberdade que o contrato oferece ao sujeito falante,
correspondendo aos variados tipos de configuraes discursivas de
que ele se vale para alcanar seus objetivos comunicativos.
Na medida em que toda a encenao de um ato de
comunicao, numa determinada situao e servindo como projeto de
fala de um locutor, manifesta-se materialmente por meio de um texto,
a noo de contrato de comunicao remete ao conceito de gnero
textual.
Um gnero se constitui em uma categoria lingustico-
discursiva determinada por trs nveis, a saber: o nvel do contrato
global de comunicao, o nvel discursivo e o nvel das formas
textuais (CHARAUDEAU, 2010). O primeiro est relacionado aos
dados situacionais que oferecem instrues discursivas especficas ao
sujeito falante; o segundo remete aos modos de organizao do
discurso, os quais so regidos pelos dados situacionais e por suas
Uma narrativa de carter esprita sob a perspectiva da Semiolingustica do ... 211
& '
Inicia-se esta anlise, pontuando-se que o corpus deste
trabalho se constitui de uma narrativa produzida por Chico Xavier,
numa situao em que ele entrevistado por Hebe Camargo e Nair
Belo, na TV Bandeirantes, em 1985.
Essa narrativa, que aqui aparece transcrita, desencadeada
pela seguinte pergunta de Hebe Camargo: Existir algum significado
especial no nome de Jesus? Voc pode citar um fato pessoal? Para
responder pergunta da entrevistadora, Chico passa a narrar um
acontecimento vivido por ele, que teve uma durao de seis anos
1953-1959 e que ser referido neste artigo como O caso de
Valria. Veja-se:
Por volta de 1953 at 1959, quando mudamos para
Uberaba, ns sempre, desde muitos anos, fazamos
220 Lcia Helena Martins Gouva
( )
Nas pginas deste artigo, pode-se observar um trabalho de
anlise de um relato de experincia de vida produzido por Chico
Xavier.
Nesse relato, o mdium narra uma histria vivida por ele e por
uma moa durante seis anos, histria que possibilitou estudar o gnero
relato de experincia, bem como tratar das caractersticas do contrato
de comunicao em que esse gnero se constitui.
Com relao ao conceito de modos de organizao do
discurso, verificou-se o predomnio do modo narrativo, na medida em
que o texto um relato, mas foram identificadas marcas dos modos
descritivo e argumentativo. O modo enunciativo, que est presente em
todos os textos por se constituir das marcas do sujeito da enunciao,
esteve sempre presente por meio dos trs comportamentos elocutivo,
alocutivo e delocutivo. Esse fato indicou que o sujeito focalizou a si
mesmo, o interlocutor e um terceiro elemento por intermdio do
discurso relatado.
Quanto s maneiras de se relatar, foram identificados o
discurso relatado citado e o relatado integrado. No que diz respeito
aos constituintes da narrativa, foram reconhecidos os parceiros da
Uma narrativa de carter esprita sob a perspectiva da Semiolingustica do ... 235
* ) +
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236 Lcia Helena Martins Gouva
! ! "
#$
Maiara C. Romero Pereira
Maria Leda Pinto
% #$
O estado de Mato Grosso do Sul tem grande parte de sua
populao formada por paraguaios e seus descendentes que,
consequentemente, trazem consigo suas lnguas, ou seja, o guarani e o
espanhol. Isso ocorreu aps a guerra da Trplice Aliana em que o
Paraguai ficou arrasado. Nesse momento, a fome e a pobreza levaram
um grande nmero de paraguaios a sarem de seu pas e migrarem
para os pases vizinhos, como Brasil e Argentina, em busca de novas
oportunidades para reconstrurem suas vidas. Em outros momentos, as
crises econmicas e os governos ditatoriais impulsionaram esses
sujeitos a sarem do Paraguai, trazendo crenas e costumes que vieram
influenciar a cultura da regio.
Segundo Albuquerque (2010), cerca de 80 (oitenta) mil
paraguaios vivem em Mato Grosso do Sul. Como resultado desse
contato, houve a influncia desses paraguaios nas tradies, costumes,
lngua, comida, religio e, de forma muito expressiva, na constituio
238 Maiara C. Romero Pereira Maria Leda Pinto
1
Jopar significa mistura, mescla, em guarani. A lngua guarani jopar resulta da mistura entre
a lngua guarani e outras lnguas com as quais entra em contato, como o espanhol e a lngua
portuguesa.
A transculturalidade nas narrativas dos sujeitos frequentadores da .... 239
&' (
A AD de tendncia francesa, inicialmente instituda com o
intuito de refletir/interpretar o discurso poltico em um movimento
histrico e social abrange hoje os discursos do cotidiano em suas
diferentes modalidades, oportunizando uma discusso que trata o texto
como um todo e, diferentemente de uma postura abstrata e
fragmentada, possibilita uma reflexo sobre enunciados concretos
construda por sujeitos ideologicamente constitudos, em diferentes
contextos.
&'&' #) #$
As condies de produo do discurso podem ser
consideradas em dois sentidos: estrito e amplo. Em sentido estrito
envolve as circunstncias do momento da enunciao compreendidas
em um espao tambm chamado de contexto imediato. Quando essas
condies levam em considerao o contexto scio-histrico
ideolgico, temos o sentido amplo, ou contexto amplo. Tendo em vista
que esto relacionadas aos sujeitos e situao, essas condies
2
Este corpus foi coletado e analisado por Maiara Cano Romero Pereira em sua pesquisa de
mestrado Colnia Paraguaia de Campo Grande: Cultura, Linguagem e Identidade em
Fronteira, defendida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS em maro de
2016, sob a orientao da Prof. Dr. Maria Leda Pinto.
240 Maiara C. Romero Pereira Maria Leda Pinto
&'*' + #$ ,+(-
O sentido no existe em si, mas determinado pelas posies
ideolgicas em que as palavras so produzidas, e essas mudam de
sentido segundo as posies daqueles que as empregam. As formaes
discursivas representam no discurso as formaes ideolgicas, e o
estudo do discurso explicita a maneira como linguagem e ideologia se
articulam. O analista deve remeter o dizer a uma formao discursiva
para compreender o sentido que ali se constri, tendo em vista que a
linguagem no inocente, nem evidente, situando-se na articulao do
simblico com o poltico, que se conjugam nos efeitos a que, enquanto
sujeitos de linguagem, estamos assujeitados. Ao dizer nos
significamos e significamos o prprio mundo, ao mesmo tempo, a
realidade se constitui nos sentidos que enquanto sujeitos praticamos.
(ORLANDI, 2010, p. 95) A autora, no entanto, faz uma ressalva:
No entanto, preciso no pensar as formas discursivas
como blocos homogneos funcionando automaticamente.
Elas so constitudas pela contradio, so heterogneas
nelas mesmas e suas fronteiras so fluidas, configurando-se
e reconfigurando-se continuamente em suas relaes.
(ORLANDI, 2010, p. 44)
&'.' / $
O posto (dito) traz o pressuposto (no dito, mas presente). O
motivo fica subentendido pelo contexto e no necessariamente ligado ao
dito. Sabemos que h uma margem de no-ditos que tambm significam,
como mostram as noes de no-dizer, de interdiscurso, de ideologia, e de
formao discursiva. O dito mantm uma relao de sentido com o no-
dito, isto , uma formao discursiva pressupe outra, tendo em vista que
o que j foi dito, mas que j foi esquecido, tem efeito sobre a formulao
do dizer atual. O interdiscurso determina, assim, o intradiscurso: o dizer
se sustenta na memria discursiva. O no-dito pode ser trabalhado como
silncio, recuo necessrio para que possa significar (ORLANDI, 2010,
p. 83), silncio como iminncia de sentido, como fundador, este que faz
com que o dizer signifique.
No trabalho com o texto, o analista tem a necessidade de
reconhecer os indcios, na materialidade discursiva, dos processos de
significao, a fim de partir desses indcios para fazer a sua anlise
com a teoria da AD que se constitui na relao da Lingustica com as
cincias sociais, trabalhando com as propriedades discursivas
(materiais) na sua relao com a exterioridade (histria). Paramos na
materialidade discursiva do texto para compreender como os sentidos
e os sujeitos nele se constituem e a seus interlocutores, como
efeitos de sentidos filiados a redes de significao. (ORLANDI,
2010, p. 91) Os sentidos no esto s nas palavras, nos textos, mas na
relao com a exterioridade, nas condies em que eles so
produzidos, no dependendo s das intenes do sujeito.
A transculturalidade nas narrativas dos sujeitos frequentadores da .... 243
*' 01
Laraia (2002) afirma que a cultura considerada como algo
prprio do ser humano pela natureza social do sujeito; por isso, todo
indivduo tem cultura e a mesma capacidade de aprender uma outra,
desde que seja submetido ao convvio dessa cultura. pela cultura que
os sujeitos se constituem, desenvolvem sua viso de mundo e se
organizam. No existe uma cultura melhor do que a outra, pois cada
uma possui suas prprias regras e valores. Para uma convivncia
possvel entre as diferentes culturas com maior compreenso e menos
preconceito, Laraia (2002) sugere que,
(...) cada sistema cultural est sempre em mudana.
Entender esta dinmica importante para atenuar o
choque entre as geraes e evitar comportamentos
preconceituosos. Da mesma forma que fundamental
para a humanidade a compreenso das diferenas entre
povos de culturas diferentes, necessrio saber entender
as diferenas que ocorrem dentro do mesmo sistema.
Este o nico procedimento que prepara o homem para
enfrentar serenamente este constante e admirvel mundo
do porvir. (LARAIA, 2002, p. 101)
*'&' %
Dentro do contexto desta pesquisa muito importante
ressaltar a concepo de identidade que permeia o trabalho.
Rajagopalan (2003, p. 69) comenta que uma das maneiras pela qual
as identidades acabam sofrendo o processo de renegociao, de
realinhamento, o contato entre as pessoas, entre os povos, entre as
culturas. Entre os estudos sobre a questo da identidade, j no
encontramos quem discorde que ela est se reconfigurando
constantemente; portanto, inacabada. Possui a caracterstica de se
adaptar em diferentes circunstncias. O autor afirma que estamos
vivendo um tempo em que a identidade no pode ser vista como algo
pacfico, mas como identidades que esto em constante renegociao.
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 69)
246 Maiara C. Romero Pereira Maria Leda Pinto
Hall (2006, p.10), por sua vez, sob a perspectiva dos estudos
culturais, aborda trs noes de sujeito, a fim de discorrer sobre a
identidade. A primeira o sujeito do iluminismo, individualista, o
mesmo a vida inteira, idntico a si. A segunda do sujeito
sociolgico, fruto da realidade do mundo moderno, que representa
uma ruptura com o conceito de sujeito individualista do iluminismo,
sendo constitudo por vrias identidades (HALL, 2006, p. 11). A
terceira noo a do sujeito ps-moderno (Idem, Ibidem, p. 12) que
surge da mobilidade de identidades.
Bakhtin (2006, p. 115) outro estudioso que nos apresenta a
questo do sujeito e seu outro. De acordo com o autor, esse outro
necessrio para a existncia do ser humano, pois o eu vai ao encontro
desse outro na interao social. Por meio da alteridade o eu no
permanece o mesmo e vive em constante construo na interao
social e verbal. Dessa perspectiva, Bakhtin inaugura o perfil dialgico
da linguagem.
O dialogismo um dos principais conceitos da arquitetnica
do terico russo dentro dos estudos acerca da linguagem. Segundo
esse conceito, nos textos se manifestam duas vozes ou mais, o que
significa que no discurso de um sujeito, existe o discurso do outro.
Dessa interao resulta uma alterao em ns. Essas palavras dos
outros trazem consigo a expresso, o seu tom valorativo que
assimilamos, reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2003,
p. 295). Por mais que a relao com esses outros cause mudanas em
ns, as nossas palavras carregaro a nossa marca, o que vai diferenciar
a nossa palavra da palavra do outro. A conscincia, segundo Bakhtin,
adquirida na interao social. A socializao do eu se d na
interao do eu/outro que ocorre na (...) fora da realidade, da
importncia das ideias, diretamente proporcional ao seu fundamento
de classe, possibilidade de sua fecundao pelo ser econmico-social
de um grupo (BAKHTIN, 2014, p. 22). A partir dessa relao
possvel a criao do eu na conscincia de mim, por meio do olhar do
outro. Ao conceber a identidade pela alteridade, Bakhtin derruba o
estado monolgico das identidades. Buscaremos compreender,
portanto, esse processo no contexto da imigrao paraguaia at a
constituio da Colnia.
A transculturalidade nas narrativas dos sujeitos frequentadores da .... 247
.' %
.'&' 2 #$
3 "
Veremos nos recortes a seguir como a memria atua
juntamente com um sentimento de reivindicao da identidade.
Interessa-nos como o sujeito concebe as representaes de si e afirma
sua identidade paraguaia. Nesse sentido, a memria essencial na
construo de referncias simblicas coletivas situadas no passado,
fato que d impresso aos indivduos de estarem ligados entre si por
3
Para tanto, utilizamos o modelo de transcrio do Projeto NURC/SP.
248 Maiara C. Romero Pereira Maria Leda Pinto
4
As R sintagmticas ou R de construes so aquelas que reproduzem constituintes oracionais
dos mais diversos tipos (MARCUSCHI, 2002, p. 113).
5
Em 2001, foi institudo no Mato Grosso do Sul, por meio da Lei Estadual n 2.235, o Dia do
Povo Paraguaio, comemorado em 14 de maio, que tambm o dia da independncia do
Paraguai.
A transculturalidade nas narrativas dos sujeitos frequentadores da .... 251
.'*' ! 4
5
Na anlise a seguir, trataremos dos discursos dos
frequentadores da Colnia Paraguaia em relao ao guarani.
Pretendemos averiguar como est a situao da lngua, qual o
interesse dos alunos das oficinas de guarani com a lngua, e se ela
realmente aprendida e usada. A lngua guarani funciona como
smbolo/marca de resistncia da cultura indgena guarani
colonizao europeia e tambm como marca territorial que identifica
os imigrantes paraguaios no Mato Grosso do Sul. A lngua espanhola
tentou se sobrepor lngua guarani desde a poca da colonizao, o
que surtiu diferentes efeitos, como sua recusa e, em outros casos, sua
incorporao lngua guarani, como podemos verificar na regio de
fronteira (MONDARDO, 2013, p. 86).
D4 brasileira da fronteira (Ponta Por), descendente de pais
paraguaios, tem 80 anos e tambm aluna de guarani.
D4R60 eu falo... no to bem quanto a minha
professora... quanto aos outros aqui... mas me defendo...
.'.' 0 1 #$ #) 6
#)
Na busca das respostas s indagaes que estabelecemos para
o desenvolvimento da pesquisa, a anlise dos depoimentos
possibilitou-nos algumas concluses. Na primeira delas, vimos como a
memria atua juntamente com um sentimento de reivindicao da
identidade. O sujeito seleciona as memrias positivas e valorativas
para enaltecer os paraguaios imigrantes ao reconhec-los como
profissionais que ajudaram a construir a cidade de Campo Grande.
Verificamos, tambm, que as pessoas que vo Colnia com
interesse na lngua guarani possuem, em geral, mais de 60 anos. A
Colnia funciona um como espao onde possvel encontrar um
interlocutor no dilogo em guarani e alguns costumes considerados
tradicionais da cultura paraguaia. Os alunos de guarani que persistem
no se preocupam com o tempo que ali investem, em sua maioria, tm
ascendncia paraguaia ou pelo menos uma ligao afetiva com a
memria e o povo paraguaio. Afirmam achar importante que os
descendentes de paraguaios frequentem a Colnia Paraguaia e
aprendam o guarani; porm, seus prprios filhos no costumam ir e
no falam a lngua.
Conclumos, portanto, que a cultura paraguaia fomentada na
Colnia revela um processo de hibridizao que se d em novas
condies de produo e, por isso mesmo, j modificada pelos novos
elementos de outras culturas e tambm pelo momento histrico em
que ocorre. O discurso da tradio coloca a Colnia Paraguaia como
um meio de manter e divulgar as tradies paraguaias. Porm,
ocorre que ela teve que alugar seu espao para outros eventos no
vinculados cultura paraguaia. Essas aes da Colnia mostram como
as atividades passaram a ser transculturais. Configura-se, desse
modo, o hibridismo que marca essa condio fronteiria.
262 Maiara C. Romero Pereira Maria Leda Pinto
2 5
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A transculturalidade nas narrativas dos sujeitos frequentadores da .... 263
1
Como cualquier otra forma discursiva, la divulgacin no es una prctica objetiva, neutra o
desvinculada de personas e intereses; por el contrario, es el resultado de la negociacin entre
sus interlocutores. (CASSANY et al., 2000, p. 77, traduo nossa)
268 Mara Ferreira Sant'Ana e Cristiane Cataldi dos Santos Paes
2
Disponvel em: <http://www.dicio.com.br/jornada/>. Acesso em: 15 de fev. 2014.
Anlise discursiva de um texto narrativo de divulgao cientfica na ... 271
3
Disponvel em: <http://www.significados.com.br/canto-do-cisne/>. Acesso em: 15 de fev.
2014.
272 Mara Ferreira Sant'Ana e Cristiane Cataldi dos Santos Paes
! ) *
(
a) Procedimento de expanso
O procedimento lingustico-discursivo de expanso,
empregado para ampliao do conhecimento, tpico do discurso
divulgativo, ocorre no texto narrativo em questo atravs das
seguintes estratgias divulgativas: explicao, analogia,
narrativizao, exemplificao e definio.
a1) Explicao
As explicaes de diversas informaes so feitas a partir da
utilizao de travesses (8), dois pontos (9), vrgulas explicativas (10),
ou at mesmo parnteses (11), com o intuito de fornecer um
conhecimento adicional e tornar a explanao mais completa e
inteligvel para o leitor, como perceptvel em:
(8) Em coisa de 20 minutos, os ncleos dos elementos
mais simples hidrognio, hlio e uma pitadinha de
ltio estavam formados.
274 Mara Ferreira Sant'Ana e Cristiane Cataldi dos Santos Paes
a2) Analogia
A analogia uma relevante estratgia divulgativa, pois ajuda
na compreenso dos leitores, j que conceitos tcnicos so
comparados a algo mais inteligvel pelo pblico leigo, como pode ser
notado nos seguintes excertos:
(12) Nessa poca, o H. erectus ainda no estava
extinto, assim como os neandertais, primos da
humanidade com nvel similar de inteligncia.
(13) Estima-se que um asteroide de grande porte, como
o que extinguiu os dinossauros, colida com a Terra
a cada 100 milhes de anos, aproximadamente.
a3) Narrativizao
A narrativizao consiste em apresentar os protagonistas
agentes de uma ao, atravs do tempo, conforme marcadores
temporais e tempos verbais, caractersticos de textos narrativos, como
pode ser observado nos trechos abaixo:
(14) Algumas bactrias evoluem para produzir
oxignio por meio de uma inovao: a
fotossntese. Isso ir envenenar a atmosfera para
a maioria das criaturas ento viventes, que viviam
de fermentao, s possvel em ambientes no
oxigenados.
(15) O Sol paulatinamente aumenta seu brilho. Hoje
estamos numa posio privilegiada do Sistema
Solar, em que sua radiao chega a ns na medida
certa, sem nos fritar. Contudo, daqui a 1 bilho de
anos, o nvel de radiao ser tal que os oceanos
todos comearo a evaporar. A atmosfera ficar
to densa que causar um efeito estufa
descontrolado. A Terra ficar semelhante a Vnus,
com temperaturas acima dos 400 C. A vida
ser extinta.
a4) Exemplificao
A estratgia divulgativa exemplificao utilizada com o
intuito de contribuir, por meio de um exemplo, para a efetiva
compreenso do pblico leitor, como pode ser observado nos
seguintes trechos:
(16) (...) criando elementos mais pesados, como
carbono e oxignio antes inexistentes.
(17) Depois do surgimento de vrias formas
intermedirias, como os australopitecos e Homo
erectus, aparecem os primeiros fsseis do homem
moderno (Homo sapiens), com a anatomia atual,
na frica.
a5) Definio
A estratgia divulgativa de definio utilizada para explicar
ao pblico geral em que consiste determinado termo, como pode ser
observado em:
Anlise discursiva de um texto narrativo de divulgao cientfica na ... 277
b) Procedimento de reduo
O procedimento lingustico-discursivo de reduo utilizado
para suprimir informaes de carter mais tcnico, construindo um
discurso que seja acessvel ao pblico geral.
De acordo com Ciapuscio (1997), tem-se duas modalidades de
reduo. A primeira delas a supresso de informao, que por
diversos motivos no relevante, necessria ou conveniente na verso
divulgada, como pode ser notado nos seguintes trechos:
(19) As estrelas primordiais, por serem muito grandes,
consomem rapidamente seu combustvel para
fuso e explodem em violentas supernovas.
(20) Depois do surgimento de vrias formas
intermedirias, como os australopitecos e o Homo
erectus, aparecem os primeiros fsseis do homem
moderno (Homo sapiens), com a anatomia atual,
na frica.
c) Procedimento de variao
O procedimento lingustico-discursivo de variao consiste na
transformao do vocabulrio cientfico e tcnico para o vocabulrio
cotidiano, a fim de tornar a informao mais inteligvel para o leitor,
como pode ser notado nos seguintes trechos:
(23) A Galxia de Andrmeda, nossa vizinha, e a Via
Lctea entram em coliso. Ser um zum-zum-zum
Anlise discursiva de um texto narrativo de divulgao cientfica na ... 279
"
Pautando-se no quadro terico-metodolgico referente
Anlise do Discurso de Divulgao Cientfica, esse trabalho props
investigar o tratamento lingustico-discursivo conferido s
informaes publicadas em um texto narrativo contido na revista
Superinteressante, edio especial de novembro de 2012, durante a
polmica suscitada pela profecia da Civilizao Maia em relao
4
Disponvel em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=escalar>. Acesso em: 18 de fev. 2014.
280 Mara Ferreira Sant'Ana e Cristiane Cataldi dos Santos Paes
+
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Viosa- MG: Ed. UFV, 2007b, p. 193-209.
Anlise discursiva de um texto narrativo de divulgao cientfica na ... 281
1
Os fragmentos de (01), (02), (07), (08) e (09) foram coletados em 2008, por ocasio da
produo de dissertao de mestrado de uma das autoras. Os sujeitos (surdos universitrios)
foram incentivados a escrever sobre a experincia de vida na surdez e indicaram, em questo
de mltipla escola, a forma de designao preferida. Os trechos foram transcritos ipsis litteris.
288 Maria Clara Maciel de Arajo Ribeiro e Glaucia Muniz Proena Lara
2
Narrativa disponvel na tese de doutorado do sujeito, que professor universitrio, assim como
o excerto (6).
290 Maria Clara Maciel de Arajo Ribeiro e Glaucia Muniz Proena Lara
3
Narrativa disponvel em um livro escrito pelo sujeito, que professor universitrio, assim como
o excerto (7).
Narrativas de vida e construo de identidades nas comunidades surdas 291
4
Dados coletados para a dissertao de mestrado de uma das autoras (vide nota 1).
292 Maria Clara Maciel de Arajo Ribeiro e Glaucia Muniz Proena Lara
1
Atravs de uma consulta informal aos sites das trs maiores livrarias do pas (Cultura, Saraiva
e Siciliano) e de duas revistas semanais de abrangncia nacional (Veja e Isto ), percebemos
nas duas ltimas semanas do ms de agosto e nas duas primeiras semanas do ms de
setembro/2008 a presena de pelo menos uma biografia na lista dos 10 livros mais vendidos no
ms.
302 Mariana Ramalho Procpio
2
A Potica aristotlica foi a principal norteadora dos estudos de Teoria Literria at o sculo
XVIII.
Caracterizao do universo das narrativas biogrficas sob uma ... 303
3
possvel dizer que uma das principais contribuies de Tomachevski tenha sido considerar
que toda narrativa possui um tema global, central e subtemas locais que contribuem para fixar
o sentido maior. Ele considera ainda que para ter uma boa narrativa no suficiente apenas ter
um tema interessante: preciso saber estimular a ateno e o interesse pela prpria narrativa.
4
Embora os trabalhos de Propp sejam do final da dcada de 1920, somente a partir dos anos 60
os trabalhos dele sero mais conhecidos, sobretudo na Europa.
304 Mariana Ramalho Procpio
seu fim. Essa observao pode ser notada por meio das expresses
desde pequeno, j na infncia, sempre gostou, to costumeiramente
adotadas para a apresentao das trajetrias nas narrativas biogrficas.
A partir deste projeto original que a vida ser contada, como uma
espcie de acontecimentos sucessivos j instaurados por ele. Bourdieu
(1986) explica que, na narrativa biogrfica, os eventos tendem a ser
apresentados e relacionados de maneira inteligvel e de modo a
garantir a unidade, a coerncia e o sentido da vida daquele que
personagem da biografia. Entretanto, o socilogo nos chama ateno
para a utopia dessa criao de significados totalizantes: os
acontecimentos nem sempre revelam uma relao de causalidade ou
anterioridade e tais relaes so construdas por bigrafos e
biografados na tentativa de garantir uma totalidade e uma essncia
para a vida de tal indivduo.
Nessa tentativa de criao estvel da vida, o bigrafo tem
grande responsabilidade nesse forjar ilusrio. Com a preocupao de
ser e parecer razovel, o bigrafo mobiliza mecanismos capazes de
preencherem as lacunas existentes entre os diversos momentos
narrados. Por meio de suas interpretaes e escolhas discursivas, ele
instaura um sentido para a narrativa e facilita inclusive a compreenso
e aceitao dessa biografia como verdadeira.
Essa tentativa de atribuio de sentido vida est relacionada
tambm aos imaginrios circulantes na sociedade, sobretudo a respeito
de singularidade, unidade e totalidade. Bourdieu (1986) ressalta que o
nome prprio materializa esses ideais, pois atravs dele tende-se a
unificar ou totalizar um indivduo. Deve-se considerar, entretanto, que
os indivduos representam diferentes papis na sociedade e que suas
aes, atitudes e pensamentos podem variar conforme o lugar social
em que estes se encontram. A fragmentao e a multiplicidade dos
sujeitos j eram, assim, anunciadas por Bourdieu e devido a elas a
unicidade do sujeito e de sua vida em torno de uma narrativa no
passaria de uma iluso, no caso, iluso biogrfica.
Nesse contexto, as narrativas biogrficas se apresentam como
uma possibilidade de manuteno de uma ordem em meio a um caos
de significados do mundo contemporneo, marcado pela disperso,
efemeridade e pluralidade. De acordo com Rondelli e Herschmann
(2000, p. 203) elas fornecem um enquadramento retrospectivo e
prospectivo ao ordenarem a vida articulando memria e aspiraes
Caracterizao do universo das narrativas biogrficas sob uma ... 309
a) Descendncia
Conforme a anlise de Vilas Boas (2008) a descendncia est
relacionada tendncia determinista e reducionista de muitos
bigrafos apresentarem certas caractersticas e atitudes de seus
personagens como resultado direto da ancestralidade ou da influncia
familiar. Tais heranas familiares seriam a chave para o entendimento
da personalidade, de tendncias, preferncias, decises e fracassos do
biografado. Contudo, a invocao da ancestralidade ou mesmo o
estabelecimento de uma relao de causa e efeito entre recorrncias
passadas e presentes tendem a reproduzir um modelo de escrita
biogrfica simplista, automtica e convencionalizada.
b) Fatalismo
Quanto a esta limitao, Vilas Boas (2008) ressalta que muitas
biografias tendem a apresentar o biografado de uma maneira quase
mtica, herica, como um predestinado. Segundo o pesquisador (2008,
p.99), pelo fato das biografias hoje em dia narrar a vida de pessoas
publicamente conhecidas, o fatalismo est diretamente relacionado
faceta carreira/obra do biografado. Ressona a ideia de que o
personagem estava naturalmente fadado ao sucesso, a ser
extraordinrio, a produzir feitos notveis. O fatalismo tende, pois, a
ocultar ou mascarar as evolues e involues da trajetria humana, a
negligenciar a complexidade de uma vida.
316 Mariana Ramalho Procpio
c) Extraordinariedade
Outra limitao na construo biogrfica a apresentao do
personagem como um ser extraordinrio, algum que se destaca por
sua genialidade. Biografias com essa caracterstica personificam
modelos de conduta e podem exercer grande influncia sobre os
leitores. tambm a obedincia a este preceito que impede que muitos
personagens comuns tenham suas vidas negligenciadas pelo
mercado editorial e consequentemente pelo pblico.
d) Verdade
A narrativa biogrfica cannica pretende ser a verdade
absoluta e objetiva sobre a vida de um determinado personagem,
marcada por uma estruturao cronolgica e pela coerncia e
estabilidade do biografado. No entanto, no se pode esquecer que, ao
mesmo tempo em que revelam, as biografias ocultam uma srie de
informaes. Essa ocultao ocorre por fatores diversos: pela
impossibilidade de acesso a determinadas informaes, pela
dificuldade de averiguao de fatos, pelas escolhas do bigrafo, pela
interferncia das fontes e dos envolvidos nesse processo, etc. Essas
observaes corroboram, pois, a ideia de que a biografia seja uma
construo e entender que ela seja a nica verdade sobre a vida
narrada uma presuno ou uma viso limitada da prpria narrativa e
da vida do personagem.
e) Transparncia
Conforme nos apresenta Vilas Boas (2008), essa limitao est
relacionada ao fazer biogrfico: trata-se da tendncia de ocultao dos
detalhes dos processos de investigao e anlise realizados pelos
bigrafos. Ao invs de ser claros, apresentarem o passo-a-passo para a
construo da narrativa e exporem suas dificuldades, dvidas e
escolhas, os bigrafos preferem omitir essas informaes. Algumas
vezes, poucas informaes dessa natureza so apresentadas
brevemente nos prlogos, mas raramente no transcorrer das narrativas,
como se essa fosse composta apenas por fatos objetivos e verificveis.
f) Tempo
Como a estruturao das biografias cannicas
majoritariamente cronolgica, a tendncia que o tempo seja visto por
Caracterizao do universo das narrativas biogrficas sob uma ... 317
! "
b) Videografias
A popularizao dos recursos tecnolgicos tem contribudo
para a disseminao do uso dos mesmos e para a ampliao das
potencialidades de aplicao de tais recursos. O barateamento das
cmaras digitais e a difuso de sites como o Youtube estimulam novas
modalidades de expresso e, nesse contexto, possibilidades de criao
e divulgao de um eu miditico.
Dentre as diversas formas de expresso e criao do eu
miditico, Costa (2009) destaca as videografias de si, que seriam
pequenas autobiografias realizadas em vdeo, marcadas por tons
confessionais e miditicos. Como elementos caractersticos esto a
curta durao dos filmes, o direcionamento emocional que
conseguido graas utilizao de tcnicas inerentes construo
narrativa. De acordo com o pesquisador, as videografia narram
experincias do cotidiano, impresses e anlises de si,
geralmente ancoradas em situaes corriqueiras do dia-
a-dia. Elas so produtos de indivduos para os quais o
registro e a exibio de si em vdeo se torna tanto um
modo de representao como uma expresso de
subjetividade. (COSTA, 2009, p. 92)
Caracterizao do universo das narrativas biogrficas sob uma ... 321
d) Blogs
Os blogs ou weblogs surgiram como sites cujos sistemas
operacionais proporcionaram uma maior facilidade na publicao e
manuteno dos prprios sites, que no mais exigiam o conhecimento
da linguagem HTML. Alm disso, os blogs agregaram a ferramenta de
comentrios, o que proporcionou uma apropriao do site para uso
variado e uma popularizao deles entre o pblico usurio.
Dentre as vrias utilizaes possveis dos blogs, o uso como
dirio pessoal uma das que mais se destaca (SIBILIA, 2004). Nesse
espao, os usurios promovem uma expresso pessoal, com a
publicao de relatos, experincias e informaes de interesse do
usurio. As pginas tendem a ser personalizadas (cores, formas,
imagens, etc.) e os posts blocos de texto e imagens so produzidos
com certa periodicidade.
Sibila (2004) entende que a compreenso do blog como um
espao pessoal permite que ele seja tambm compreendido como
espao de narrativa de si. Essa narrativa constituda diante de um
espao pblico, um espao de vigilncia, isto , sob a constante
observao do blog pelos demais usurios da rede. A existncia desse
espao de vigilncia constante interfere diretamente na apresentao
de si feita nos relatos e no modo como as impresses que o blogueiro
deseja passar sero construdas.
#
Neste artigo, procuramos ancorar as narrativas biogrficas
dentro de um universo maior: o das narrativas, como um todo. Para
isso, apresentamos algumas possibilidades de estudo das mesmas,
destacando a narratologia e os estudos discursivos sobre a narrativa.
Discorremos brevemente sobre narrativas biogrficas em geral para
situarmos as biografias nesse universo. Por fim, apresentamos
sucintamente a existncia contempornea de um novo espao
biogrfico, de possibilidades de encontrarmos a escrita de si em
gneros variados.
Almejamos, com nossa pesquisa, contribuir de uma maneira
modesta para a ampliao dos estudos acerca do gnero biografias. As
Caracterizao do universo das narrativas biogrficas sob uma ... 323
$ %
ADAM, Jean-Michel.; REVAZ, Franoise. Lanalyse des rcits. Paris: Seuil,
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324 Mariana Ramalho Procpio
!
Segundo Pena-Alfaro (2006, p. 67)
Os sistemas religiosos sempre desempenharam um lugar
central na configurao da realidade tanto coletiva como
individual, fornecendo explicaes sobre as questes
essenciais que sempre preocuparam os homens em todas
as pocas: a vida, a morte, a doena, a infelicidade, o
sofrimento, a vida alm da morte, etc.
"# $ %
& '
das notcias e dos relatos em geral, e que foi por ns adaptado para
contemplar as narrativas de vida.
Esse esquema se compe de dois processos: o primeiro um
processo de transformao de um fato real em uma narrativa. Essa
transformao submetida a um segundo processo, de transao, entre
a instncia de produo e a instncia de recepo. Isto significa que,
ao construir uma narrativa, o falante deve levar em considerao a
instncia de recepo, ao qual esta narrativa se destina. Os fatos
vividos passam por um processo de semiotizao, transformando-se
em fatos narrados, sendo submetidos, pela ao do enunciador, a uma
espcie de filtro que dota o texto de um efeito de patemizao, que
parece favorecer a captao do pblico ouvinte, como veremos a
seguir.
( ) *
+
, #
- * .
/ $ ) +
O testemunho analisado corresponde a um vdeo de cerca de 5
minutos publicado em 15 de novembro de 2015 no youtube1, tendo
obtido, at a presente data, 13.680 visualizaes. Trata-se de um relato
de vida no qual o fiel, seguindo um roteiro de perguntas proposto pelo
pastor que conduz o encontro, conta como passou de uma situao de
dificuldades financeiras para uma situao de riqueza e conforto, a
partir de sua participao no ritual da Fogueira Santa de Israel.
Os testemunhos em geral manifestam, como mencionamos
acima, uma estrutura predominantemente narrativa. Encarando o
narrativo como modo de organizao do discurso, acreditamos, com
Charaudeau (2008), que a narrativa o resultado de uma atividade
linguageira que envolve tenses e contradies, e que supe sempre a
presena de um contador, investido de uma intencionalidade, dentro
de um contexto.
Para Charaudeau, o modo Narrativo se caracteriza por uma
dupla articulao entre a organizao de uma encenao e a
1
Fogueira Santa: Passava Fome, hoje tem trs empresas. Disponvel em
<https://www.youtube.com/watch?v=biUP77IvVCw.> Acesso em 12 jun. 2016.
338 Mnica Santos de Souza Melo
permitiram ao fiel obter sucesso, aps vender a moto que era seu
instrumento de trabalho e oferecer todo dinheiro ao Altar:
(9) Eu comecei a trabalhar de motoboy. Chegou uma
hora em que Deus pediu a minha moto. A eu
sacrifiquei a minha moto. (...) E Deus abriu a porta
novamente.
0 1 /
Os testemunhos da IURD, aqui representados pelo
depoimento analisado, enquanto narrativas de vida de carter
autobiogrfico, podem ser vistos como testemunhos no s de
experincias individuais, mas de processos sociais. Na perspectiva
semiolingustica, diramos que esses discursos so expresso de
imaginrios sociodiscursivos. A partir do testemunho analisado
depreende-se a compreenso de que felicidade sinnimo de acmulo
de bens materiais e de que a Igreja um meio de obteno de
prosperidade. Verifica-se, ainda, que o testemunho no espontneo,
mas segue um roteiro proposto pelo pastor que conduz o encontro, o
que acentua a interveno da Igreja no processo de transformao da
vida do fiel. Constata-se, assim, que o testemunho serve como
instrumento de construo de uma representao positiva da IURD e
de promoo dessa instituio diante do grande pblico, sendo um
recurso eficiente para a manuteno do poder, captao de fiis e
sustentao da Igreja.
/ )
BERTAUX, Daniel. (Ed.). Biography and society: the life history approach in the
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FOUCAULT, Michel. tica, sexualidade e poltica. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
344 Mnica Santos de Souza Melo
- -
Conta como era antes, o que o Altar lhe pediu e o que o Altar lhe
deu?
Antes do altar minha vida era totalmente derrotada, em todos os
aspectos: sentimental, espiritual, financeiro, sade, todos os aspectos. Eu
cheguei no Altar com a vida destruda, pagava aluguel, no conseguia nem
pagar nem as contas do aluguel nem a energia. (...) Quem pagava pra mim
eram os meus pais. Cheguei a passar fome com a minha esposa.(...) Eu
trabalhava numa padaria. E o po amanhecido era o que a gente comia. E pra
beber a gente tomava, do fundo do quintal da casa do dono, do dono da casa
tinha uma horta, a gente tinha que pegar aquele ch de hortel. Fazer pra
poder beber. Ento a gente ficou vrios meses comendo po e bebendo ch.
Uma vida destruda. Fundo de poo e vergonha.
Conte qual foi o maior sacrifcio que voc fez e voc j vai contar
as conquistas
O maior sacrifcio foi 10 mil reais. Foi um trabalho que eu fiz, que
eu recebi esse valor, e da o Altar me pediu: Coloca no Altar. A eu obedeci.
Eu coloquei no Altar e recebi muito mais do que eu esperava daquilo que eu
esperava receber.
bem situado na cidade, ele tem 760 metros de rea construda. uma
manso, com piscina, rea de lazer, quem entra no meu escritrio fala assim:
Voc mora aqui? Eu digo, no isso aqui o meu escritrio. Ento, Deus tem
abenoado. Eu tenho visto a grandeza de Deus na minha vida.
Eu sei que meio bvia a pergunta, mas quem deu mais: voc pro
Altar ou o Altar pra voc?
O Altar, sem dvida. Foi o Altar. O que eu dei no nada
comparado quilo que Deus tem dado pra mim e pra minha famlia.
Patrick Charaudeau
1
Cf. les travaux en smiotique narrative, en France, depuis 1960.
2
Cf. les travaux dO. Ducrot depuis Dire et ne pas dire, Hermann 1972, et plus particulirement
Largumentation dans la langue, Mardaga, 1983.
348 Patrick Chauraudeau
car celui-ci peut sinterroger sur son identit par rapport au monde (dit
rfrentiel) ou par rapport lautre du langage (son partenaire).
Dans le premier cas, il tente de construire son identit par
rapport la faon dont les tres du monde agissent et se catgorisent
en essences, trouvant l un modle identitaire de sujet sachant ce
quil est et pourquoi il agit. En racontant la vie de ces tres, le sujet
construit sa propre identit narrative3.
Dans le second cas, il tente de construire son identit par
rapport lautre du langage, la faon avec laquelle il arrivera
entraner lautre dans une mme qute de partage de la vrit4,
trouvant l un modle identitaire de sujet influenant idalement
lautre au nom de la vrit. En argumentant vis--vis dun autre, le
sujet construit son identit argumentative.
Si l identit narrative est une rponse spculative laporie
du temps, une rponse de concordance la discordance de
lexprience temporelle5, on peut dire que lidentit argumentative
est une rponse spculative laporie du vrai, une rponse de
concordance la discordance de lexprience du savoir.
Cependant, si lon postule, comme nous le propose une
certaine rflexion dans les sciences du langage6, quil ny a pas de
propos sur le monde sans relation lautre du langage, ni de relation
celui-ci sans propos sur le monde, on est amen intgrer ces deux
options dans une mme problmatique de discours. Ds lors, comment
faire puisquelles ne prsentent pas du monde la mme organisation?
Une faon de rpondre consiste poser que le discours, sous
quelque forme quil se prsente, rsulte, pour son sens, de lactivit
dun sujet parlant, dans la mesure o ce sujet parle de (quelque chose)
et parle (quelquun), en mme temps. Cest dire quil est amen
rendre compte de ce que sont et font les tres (activit de smiotisation
rfrentielle-reprsentationnelle), et de ce quest sa relation la
vrit (activit de smiotisation vridictoire), dans le mme temps
quil signifie ce quest sa relation lautre (activit de smiotisation
interactionnelle).
3
Ricur P., 1985, Temps et rcit III, Le temps racont, Seuil, Paris.
4
Ou du fantasme de la vrit, mais la qute est la mme.
5
Ricur P., 1983, Temps et rcit I, Seuil.
6
Depuis les thories de lnonciation.
"L'acte narratif dans les interlocutions" Un cadre d'analyse 349
7
Voir, pour ce principe, notre dfinition dans Rles sociaux et rles langagiers in Actes du
colloque dAix-en-Provence ( paratre).
8
Voir la dfinition de ce concept dans notre Grammaire du Sens et de lexpression, Hachette,
Paris, 1992, p. 641.
9
Voir op. cit. en note 8, p. 645.
10
Voir op. cit., p. 644.
350 Patrick Chauraudeau
11
Op. cit. en note 5.
12
Dans lhypothse o il oprerait avant le langage, il conviendra de se demander comment se
fait le passage de M1 la mimesis 2 (M2) qui, elle, se configure avec du langage, ce que ne
nous dit pas Ricur. Dans lhypothse o le sujet oprerait avec le langage, il faudra alors se
demander sil y a une relle diffrence entre les processus de structuration de M1 et de M2.
"L'acte narratif dans les interlocutions" Un cadre d'analyse 351
histoire est ordonne par une double tension: celle qui stablit entre
les deux ples dun rcit qui se donne tantt comme tmoin dune
ralit (authenticit), tantt comme rsultat dune invention
(fiction), et celle qui stablit entre un rcit qui propose soit la
vision dun monde unifi (homogne et universel), soit la vision dun
monde parcellaire (htrogne et relatif)14. Et lon peut penser que
cest dans la combinaison de ces deux tensions que se construit ce que
Ricur nomme l identit narrative, comme rponse la question
du Qui?15.
La troisime mimesis (M3) correspond daprs Ricur
une refiguration (partielle/totale) du temps du rcit, qui devient
temps racont par lacte de lecture, et dont on pourrait tendre le
champs dapplication lensemble de l vnement signifi qui
devient alors vnement lu, cest dire partiellement recompos
dans sa signification, en fonction de ce que seront les caractristiques
propres linstance de lecture.
On voit que ce qui diffrencie ces trois mimesis nest pas
affaire de nature, mais de point de vue. Car chacune de ces mimesis
sert identifier et dcrire : Qui est qui?, Qui fait quoi?,
Pourquoi? et Comment?, mais chaque fois dun point de vue qui
procde un ordonnancement propre. Dans M1, cet ordonnancement
se fait partir dun vnement l tat brut qui est peru et structur
travers un savoir exprientiel, et construit en vnement potentiel
digtique plus ou moins fort. Il sagit l dune premire
concordance qui est dordre ontologique. Dans M2, un deuxime
ordonnancement se fait partir de celui de M1, laide de modes
dorganisation discursifs (essentiellement descriptif et narratif) qui
construisent un vnement signifi", travers une digse narrative
qui peut tantt coller la digse potentielle de lvnement peru,
lorsque celle-ci est forte (le Tour de France), tantt la construire si elle
est faible (un championnat de football)16, tantt la reconstruire tout
autrement. Il sagit l dune nouvelle concordance, qui sera dite,
cette fois, dordre thique et esthtique. Dans M3, un
rordonnancement se fait partir, la fois, dune possible
reconnaissance de la structuration de M1, et de la structuration du
14
Voir op. cit. en note 8, pp. 712-713.
15
Voir op. cit. en note 3.
16
Voir note 13.
"L'acte narratif dans les interlocutions" Un cadre d'analyse 353
17
Voir op. cit. en note 5.
18
Charaudeau, P., 1988, Une thorie des sujets du langage, in Modles linguistiques, tome X,
Fasc. 2, Presses universitaires de Lille.
19
Charaudeau, P., 1987, Le dispositif socio-communicatif des changes langagiers, in Verbum
tome XII, Fasc. 1, Presses Universitaires de Nancy.
20
Op. cit.
354 Patrick Chauraudeau
21
Voir note 7.
22
Voir note 8
"L'acte narratif dans les interlocutions" Un cadre d'analyse 355
! !
Lorsque lon observe comment sinstitue une parole de rcit
dans une situation de communication quelconque, on peut dire que,
dune manire gnrale, celle-ci exclut linterlocuteur et lui impose
silence. Elle exclut linterlocuteur parce que ce qui motivera un sujet
faire un rcit, cest la supposition que lautre ignore quelque chose qui
sest produit dans le monde, et que lui sait, ce qui lui donnera sa
lgitimit de sujet transmettant ce quelque chose. Cet tat
dignorance suppose de linterlocuteur fait que celui-ci ne peut
contester un rcit. Car un rcit est cens renvoyer un avant et un
ailleurs vnementiel quil ne connat pas. Un ordre peut tre
contest, une opinion peut tre remise en cause, une argumentation
peut tre contrecarre. Pas un rcit. Si daventure le rcit est contest
cest parce quil y a eu erreur sur la supposition dignorance de lautre,
et que cet autre, tant galement lgitim raconter, estime quil faut
le faire autrement. Mais en tout tat de cause cette contestation portera
sur la vrit de lvnement (jtais prsent. a ne sest pas pass
comme tu dis) et non sur sa validit (ce quil signifie).
Du mme coup, ce type de parole impose silence
linterlocuteur, du moins pendant le temps du rcit, parce que celui-ci
sait que tout rcit doit aller jusqu sa clture. Linterlocuteur, en
principe, ne peut intervenir dans le cours du rcit, et sil ragit, il ne
peut le faire que par un comportement phatique, soit en manifestant
une apprciation, soit en demandant des prcisions, soit en en
redemandant (comme les enfants avant de dormir), soit encore en
prenant le relais (C'est comme moi, quand).
La parole du rcit est donc une parole donne, non change,
dont on sait par ailleurs (voir supra) quelle est charge de reprsenter
un monde organis en autant de destines humaines. Cest
probablement pourquoi cette parole est prdispose avoir une valeur
de tmoignage du rel.
"L'acte narratif dans les interlocutions" Un cadre d'analyse 357
"! #
!
Il existe deux situations dchange de base qui ressortissent au
principe daltrit (pas de sujet parlant sans prise en compte
consubstantielle de lautre): la situation dinterlocution et la
situation de monolocution23.
Dans la premire, les partenaires de la communication
peuvent tre prsents physiquement lun lautre ou non, mais il ne
sinstaure aucun droit lalternance de parole : lun parle ou crit,
lautre coute ou lit. Ds lors, la parole du rcit ne rencontre pas
dobstacle physique sa transmission et peut se dvelopper de son
ouverture sa clture sans autres interruptions que celles ventuelles
de son propre donateur, le sujet racontant. Dans la seconde situation,
non seulement les partenaires de la communication sont
obligatoirement prsents physiquement lun lautre, mais en plus il
est entendu par avance que lalternance de parole est un droit pour
chacun deux, et quils peuvent en user leur guise. Cest ce qui en
fait de vritables interlocuteurs.
Ds lors, la parole du rcit rencontre de nombreux obstacles
physiques sa transmission. Car lautre, par ses interventions
lgitimes, oblige le sujet racontant sinterrompre, revenir en arrire,
expliciter, rpter, etc. Bien plus, le locuteur, connaissant cette
possibilit pour lautre dintervenir au cours de son rcit et de
constituer une sorte dintrus, se mettra anticiper, valuer, faire des
commentaires et donc organiser son discours en prvision de cette
intrusion possible, toutes choses qui contribuent faire clater la
linarit, la progressivit du rcit. Ds lors, le rcit se prsentera
comme une parole fragmente, voire clate.
$!
!
Le contrat de communication se dfinit daprs une finalit
communicative en relation avec une certaine identit des partenaires et
23
Voir note 7.
358 Patrick Chauraudeau
1
Isso porque, tal riso, conforme ensina Joseph (2003), no vazio de hilaridade como o das
hienas.
2
De acordo com Vale (2013), o riso deve ser entendido, nos Estudos Discursivos, como
linguagem do riso, ou seja, o riso percebido em suas manifestaes predominantemente
verbais (das formas plenas do riso como o cmico, o grotesco e a pardia, s formas reduzidas
do riso como a ironia, o humor, a bufa etc.), relacionado diretamente com as suas
manifestaes no exclusivamente verbais (as festas populares, os rituais carnavalescos, as
obras teatrais cmicas etc.).
362 Rony Petterson Gomes do Vale
3
Entende-se por anedota, de acordo com Houaiss (2009), uma particularidade curiosa ou jocosa
que acontece margem dos eventos mais importantes, e por isso geralmente pouco divulgada,
de uma determinada personagem ou passagem histrica; e, por extenso de sentido, uma
narrativa breve de um fato engraado ou picante. Todavia, devemos tentar entend-la no
contexto grego: ankdota coisas no publicadas de ankdotos,os,on conto, episdio,
historieta, piada. Logo, podemos presumir que, na Grcia Antiga, o fator riso/risvel j podia
estar muito bem atrelado ao conceito de anedota.
364 Rony Petterson Gomes do Vale
! " # $
%
Em termos de narrativa histrica, devemos ficar sempre
atentos diferena entre narrar fatos e interpretar fatos. Aqui, o que se
coloca em xeque, por vezes, a relao entre o fazer o discursivo da
Histria, ligado verdade, e o fazer discursivo da arte, ligado
verossimilhana. J na Potica, Aristteles (2005, p. 28) prope
elucidar essa questo, postulando que: i) no funo do poeta narrar
o que aconteceu, mas sim as coisas quais podiam acontecer; ii) no
a forma (metro) que diferencia o historiador do poeta: a diferena
est em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam
acontecer; e, por fim, iii) em termos de importncia filosfica, a
poesia enuncia verdades gerais, enquanto que a histria relata fatos
particulares. Diante disso, podemos inferir que a funo do
historiador est atrelada a fatos particulares e, por conseguinte, a
pessoas e suas aes determinadas no tempo e no espao; j ao poeta
impe-se a verossimilhana e o universal (a conduta em si, a
facticidade em si, o acaso em si (BITTAR, 2003, p. 1397)), na busca
de consubstanciar os fatos (reais ou imaginados) em objeto de arte. No
entanto, para uma Anlise do Discurso, essa questo se torna um
pouco mais complexa.
, %-
% ( . %/
Com base em Charaudeau (2008, p. 153-156), podemos
compreender a narrativa histrica como uma das formas de narrar
que, tambm marcada pelo princpio da intencionalidade do sujeito de
querer transmitir alguma coisa, se caracteriza de um modo geral
pela busca de um efeito de sentido predominantemente objetivo na
descrio/narrao dos fatos, e de um modo particular pelo
acmulo de documentos, de arquivos e de investigaes, que ajudaro
na reconstruo de uma frao de pocas passadas, criando, desse
modo, um efeito de realidade.
O efeito de realidade resulta de uma convergncia de
ndices que tendem a construir uma viso objetiva do
mundo, a qual deve ser resultante de um consenso
social. Este efeito pode ser marcado por ndices que
revelam o tangvel do universo (aquilo que pode ser
percebido), a experincia (a vivncia compartilhada), o
saber do qual o narrador constri a iluso de que pode
O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 367
4
Consideraremos o distanciamento histrico aqui entendido como atitude de reserva, ausncia
de envolvimento diante do que se passa em torno; frieza (HOUAISS, 2009) tambm uma
espcie de experincia ficcional com o passado (recriado).
368 Rony Petterson Gomes do Vale
0
%
Seguindo o pensamento de Kuhn (2013), podemos dizer que
h, nos paradigmas cientficos, uma tendncia natural ao esgotamento
das suas formas de explicao do mundo e, finalmente, possibilidade
de revolues cientficas que no necessariamente indicam um
progresso da cincia, mas sim novas formas de observao e
interpretao de dados (e fatos, no caso da Histria), podendo gerar a
substituio do paradigma estabelecido. Esse processo, descrito por
Kuhn (2013), no entanto, lento, uma vez que h tambm certa
resistncia daqueles que fazem a cincia normal5 de manter os
limites (regras, processos analticos e metodolgicos) estabelecidos
dentro do paradigma vigente. De fato, tais cientistas
normais/aplicados se organizam em comunidades cientficas e
procuram, assim, manter a unanimidade das descobertas em torno de
dado paradigma.
Momentos de crise, entretanto, podem surgir, ou seja, pode
haver momentos em que vrios paradigmas estejam em concorrncia e
as experincias e os fracassos apontem para certas anomalias que o
paradigma tradicional no consegue resolver. Diante disso, de modo
sinttico, diremos que esse quadro, apontado por Kuhn (2013), pode
acarretar: i) a violao do paradigma tradicional; ii) a culpabilidade do
cientista pelo fracasso; iii) o esgotamento do paradigma estabelecido;
e iv) a discusso sobre novo paradigma. Todavia, embora o novo
paradigma possa resolver a anomalia, no h garantias de que ele v
resolver (ou superar) o paradigma anterior, uma vez que o novo
paradigma suscitar tambm novos problemas.
Pensando em termos de Anlise do Discurso, presumimos6
que a presena do riso pode ser um indicador desses momentos de
crise e de possvel mudana na orientao/organizao das narrativas
5
Perodos da histria da Cincia em que h a permanncia de determinado paradigma. Nesses
contextos, h uma diminuio da crtica e o fazer cientfico contenta-se na aplicao das teorias
e dos mtodos estabelecidos.
6
No momento em que escrevemos este ensaio, essa ideia do riso como ndice da mudana de
paradigma se configura como uma das hipteses que orienta as nossas pesquisas sobre as
relaes estabelecidas entre o Discurso Humorstico e o Discurso Cientfico da Histria.
O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 369
1 ! ! %
% 2 .
Analisando o percurso historiogrfico brasileiro, Lapa (1976)
sustenta que o discurso da Histria, no Brasil, era, at os anos 20 do
sculo XX, pensado da mesma forma que no sculo XIX, isto , era
marcado pelo isolamento em relao ao progresso sofrido pelas
Cincias Humanas, principalmente na Europa. Com efeito, as obras
apresentavam as caractersticas da historiografia tradicional, a saber:
1) Revisionismo factual descritivo, numa concepo que
procurava o fato histrico no passado, tal como ele se
deu (historie vnementielle);
2) Ausncia de uma contribuio por parte das demais
Cincias Sociais que ainda no se haviam
desenvolvido no pas;
3) Em decorrncia da limitao anterior, a Histria que
predominava tradicionalmente atingia, de
preferncia, as reas polticas e administrativas, a
biografia (genealogia) voltada para os heris e
estadistas, chefes de governo e de manobras
militares; uma Histria portanto das camadas
dominantes feita a maneira artesanal e geralmente
reacionria;
4) Os temas que recebiam um melhor tratamento
cientfico continuam sendo os do perodo colonial.
Geralmente muitos estudos sobre o Imprio e a
Primeira Repblica at o primeiro quartel do sculo
ficaram ao nvel da reportagem, do testemunho ou da
polmica apaixonada. (LAPA, 1976, p. 70)
370 Rony Petterson Gomes do Vale
7
De acordo com Lustosa (2004, p. 281), Hemetrio Jose dos Santos era professor de portugus
do Colgio Militar e na Escola Normal. Alvo de poemas satricos, Hemetrio teria feito duras
crticas a Machado de Assis, por acreditar que este ltimo teria se abstido diante da questo do
negro e da escravido.
8
Segunda Lustosa (2004, p. 293), Rocha Pombo era professor de histria geral da Universidade
Popular Elsio de Carvalho. Entre os seus escritos est a Nossa ptria Narrao dos fatos da
O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 371
histria do Brasil, atravs da sua evoluo com muitas gravuras explicativas, obra que
alcanaria 88 edies de 1917 a 1970.
9
No prefcio de sua obra, Mendes Fradique j deixa claro quais so os seus objetivos e o que ele
entende por fazer uma narrativa histrica: Sendo a histria uma srie contnua e coordenada
de deturpaes mais ou menos originais do que em verdade se passa no seio dos homens,
atravs do tempo e do espao; sendo essas deturpaes, s vezes, to profundas, que repelem
para os domnios da lenda fatos absolutamente reais, e fantasticamente adulterados pela
imaginao de geraes, como acontece com os primeiros tempos da Grcia e Roma; tomei a
deliberao humanssima de poupar posteridade esse trabalho fastidioso de desordenar e
mascarar a histria, no que se refere a este pas de desfalques e conselheiros (FRADIQUE,
2004, p. 54).
372 Rony Petterson Gomes do Vale
3 '* + 2 .$ %
6
% . 4 5
O acordo tradicional sobre o que constitui uma boa explicao foi rompido.
Ser essa uma fase de transio, a ser substituda por um novo consenso,
ou o caminho em que os debates histricos sero conduzidos no futuro?
(BURKE, 1992, p. 33)
10
Segundo Pond (2012, p. 29-31), o movimento politicamente correto pode ser definido como
uma mistura de covardia, informao falsa e preocupao com a imagem. Ainda de acordo
com autor, esse movimento tem sua origem num ramo do pensamento de esquerda americano
que, a partir dos fins dos anos de 1960, assume uma espcie de programa poltico em defesa das
minorias (negros, na dcada de 1960; gays, a partir da dcada de 1980), procurando desenvolver
um mal-estar com relao ao mau tratamento dado a esses grupos na vida social comum.
Assim, tal programa muda o foco da ao da esquerda da revoluo pelo proletariado para uma
acomodao do status quo desses grupos minoritrios, em ascenso econmica e social, ao
capitalismo, gerando, para esse fim, leis e polticas pblicas que possibilitem a realizao do
processo. Atualmente, continua Pond (2012, p. 31), o politicamente correto se caracteriza por
ser um movimento que busca moldar comportamentos, hbitos, gestos e linguagem para gerar a
incluso social desses grupos e, por tabela, combater comportamentos, hbitos, gestos e
linguagem que indiquem uma recusa dessa incluso.
O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 373
11
Ser que poderemos dizer tambm humorsticas? Burke (1992, p. 338), por exemplo, fala da
possibilidade, apontada por Hayden White, de se observar que as narrativas histricas podem
seguir planos bsicos de estruturao de enredo: comdia, tragdia, stira e romance. Se o
enredo pode se configurar como uma comdia ou como uma stira, talvez seja possvel que
elementos do riso, presentes nesses GENERA ANECDOTORVUM (cf. VALE, 2013), estejam
presentes e possam ser identificados. Deixemos a questo aberta por enquanto.
374 Rony Petterson Gomes do Vale
12
Podemos citar como obras que seguem essa linha: Guia Politicamente Incorreto da Histria
da Amrica Latina, de Leandro Narloch & Duda Teixeira; Guia Politicamente Incorreto da
Filosofia, de Luiz Felipe Pond; Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da Repblica,
de Paulo Schmidt, entre outros.
O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 375
13
Para isso, cf.: VALE (2014).
14
Os ttulos dos trabalhos de Laurentino remetem a momentos importantes na histria do Brasil,
respectivamente: a vinda da famlia real para o Brasil 1808: como uma rainha louca, um
prncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleo e mudaram a Histria de
Portugal e do Brasil; a Independncia do Brasil, 1822: como um homem sbio, uma princesa
triste e um escocs louco por dinheiro ajudaram a criar o Brasil, um pas que tinha tudo para
dar errado; e a Proclamao da Repblica 1889: como um imperador cansado, um
marechal vaidoso e um professor injustiado contriburam para o fim da monarquia e a
Proclamao da Repblica.
376 Rony Petterson Gomes do Vale
"
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O riso na narrativa histrica gnese, coeres e espaos de estratgia 377
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378 Rony Petterson Gomes do Vale
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 379
Wander Emediato
1
Traduo nossa: preciso levar em conta igualmente o pblico diante do qual o elogio
pronunciado.
2
Traduo nossa: ... se assemelha comparao, na medida em que descrito um fato ou
contada uma histria para reforar uma prova ou mesmo constituir uma.
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 383
! "
No difcil notar como esse procedimento de qualificao e
de avaliao da constncia e da incompatibilidade da pessoa e de seus
atos relevante na anlise do discurso poltico e, em especial, dos
homens e mulheres polticos. Com efeito, no domnio poltico, uma
retrica das narrativas de vida serve para fundar a legitimidade de um
homem poltico ou sua credibilidade. O ex-presidente Lula, nesse
sentido, vrias vezes repetiu: sou nascido de uma famlia pobre do
nordeste, eu compreendo muito bem os problemas e as demandas do
povo brasileiro, porque so pessoas como eu. Por outro lado, se os
atos presentes no so coerentes com essa essncia reivindicada pela
pessoa, por sua origem ou por seus atos passados, a justificativa recai
sobre a mudana das circunstncias, no pela mudana ou incoerncia
da pessoa.
Dans largumentation, la personne, considere comme
support dune srie de qualits, lauteur dune srie
dactes et de jugements, lobjet dune srie
3
Traduo nossa: Um grande nmero de argumentaes buscam provar que a pessoa no
mudou, que a mudana aparente, que so as circunstncias que mudaram.
384 Wander Emediato
4
Traduo nossa: Na argumentao, a pessoa, considerada como um suporte de uma srie de
qualidades, o autor de uma srie de atos e de julgamentos, o objeto de uma srie de
apreciaes, um ser durvel em torno do qual se agrupa toda uma srie de fenmenos aos
quais ele d coeso e sentido.
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 385
# "
Para Ricoeur, ao discutir sobre a especificidade da
temporalidade do rcit, que no a lgica cronolgica, preciso
conceber uma inteligibilidade ou uma lgica prpria ao campo
narrativo que no a mesma lgica do Organon, pois ela concerne a
praxis, e, portanto, uma phronsis, que a inteligncia da ao. ,
ento, por meio de esquemas de uma inteligncia da ao que
atribumos caracteres aos homens quando suas aes so
representadas, seja no domnio literrio, seja em outros domnios,
como o religioso ou o poltico. Paul Ricoeur, quando ele prprio
comparava suas duas obras, La mtaphore vive e Temps et rcit,
ressaltava que a metfora assim como o rcit empreendem o que ele
chamou de uma sntese do heterogneo. Para Ricoeuro que est em
jogo na metfora viva :
[ ...] limagination productrice qui consiste
schematiser lopration synthtique, figurer
lassimilation prdicative [...]. Cet imagination
productrice est la comptence produire de nouvelles
espces logiques par assimilation prdicative, en dpit
de la rsistance des catgorisations usuelles du langage.
Or, lintrigue dun rcit est comparable cette
assimilation prdicative: elle prend ensemble et
intgre dans une histoire entire et complte les
vnements multiples et disperss et ainsi schmatise la
signification inteligible qui sattache au rcit pris
comme un tout. (RICOEUR, Temps et Rcit, p. 10)5
5
Traduo nossa: a imaginao produtora que consiste a esquematizar a operao sinttica, a
figurar a assimilao predicativa [...]. Essa imaginao produtora a competncia para
produzir novas espcies lgicas por assimilao predicativa, a despeito da resistncia das
categorizaes usuais da linguagem. Ora, a intriga de uma narrativa comparvel a essa
assimilao predicativa: ela condensa o todo e integra em uma histria inteira e completa os
acontecimentos mltiplos e dispersos esquematizando, assim, a significao inteligvel que se
associa narrativa como um todo.
386 Wander Emediato
6
Traduo nossa: ...a imitao criativa da experincia temporal viva pela via da intriga.
7
Na Literatura, uma situao anloga do judicirio pode se apresentar, como situao interna,
numa pea de teatro. A situao teatral pode ser frequentemente reduzida de dois
personagens pleiteando cada um sua causa diante de um terceiro personagem que o rbitro da
situao.
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 387
8
Traduo nossa: todas as vezes que duas personagens entram em conflito sem que uma terceira
personagem dramtica conclua finalmente o debate.
388 Wander Emediato
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%
No discurso religioso, o testemunho e a narrativa assumem um
papel pedaggico e retrico importante. A bblia construda por
narrativas que contam da gnese do mundo s vidas de personagens
importantes cujas aes so exemplares e orientadas para que tiremos
delas boas e grandes lies (Ado e Eva, Caim e Abel, No e o
dilvio, etc.). por meio desses rcits exemplares que contam a
condio humana, estrias de devoo e de traio a Deus, que a
palavra sagrada transmitida, assim como os valores religiosos.
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J na Idade Mdia, no domnio jurdico, a regra das duas
testemunhas fez da narrativa de testemunho uma prova plena que era
mesmo superior prova escrita (tmoins passentlettres). Embora
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 393
*' ( ) "
%
Bernard Paillard (2009) levanta o problema do testemunho na
vida social e ordinria apoiando-se na anlise de rumores. Embora no
possamos falar de demonstrao quando falamos de testemunhos,
como j vimos no papel que ele desempenha no domnio jurdico,
estes reivindicam a veracidade e, s vezes, em certos discursos sociais,
constituem a nica via para a reconstruo do real, como o caso do
discurso jornalstico, por exemplo, que precisa de testemunhas para
reconstruir os fatos e colocar o acontecimento em um universo
simblico e cultural. Naturalmente, essa reconstruo dos fatos no
aleatria, est sujeita crtica e levanta o problema das fontes. O papel
aqui do testemunho no o de prova, como no discurso jurdico, mas
de reconstruo que visa inteligibilidade do real simblico. Para
Paillard a difuso de rumores ... repose essentiellement sur une
chane de tmoignages directs qui, pour diverses raisons, sont tenus
pour vridiques. (PAILLARD, 2009, p. 119).
O testemunho na imprensa assume um papel determinante
nesse gnero discursivo. No podendo ter acesso aos fatos in situ, o
jornalista deve proceder a uma reconstruo narrativa do
acontecimento. Para isso, ele necessita de testemunhas e de fontes
capazes de tonar crvel tal reconstruo narrativa. Um caso
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 395
+
A ttulo de concluso, postulamos que a atividade de contar
possui um papel retrico central na comunicao humana e que de um
modo bem distinto da argumentao demonstrativa por meio de
provas, colocada em cena para impor um esquema de verdade (em
geral, alis, sem sucesso), o rcit,em todas as suas formas, impe-se
bem mais facilmente por meio de seu prprio efeito projetivo
identificacional. Narrar uma atividade prpria da natureza humana,
mais do que um simples procedimento de organizao textual. Por
isso, a faculdade de narrar tem uma dimenso antropolgica essencial,
9
Traduo nossa: Paradoxalmente, o desmentido, que poderamos assimilar a um
contratestemunho, geralmente no serve como prova. J se pde mesmo constatar que, com
frequncia, ele alimenta a prpria boataria, propagando-a rumo a novos temas.
A narrativa como componente fundador de instituies discursivas 397
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