BUKVAR - Dissertacao Grilagem Legis 1964

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VITOR BUKVAR FERNANDES

Passado no resolvido: a histrica falta de regulao


na ocupao de terras no Brasil e aps 1964

Campinas
2014

i
iii
iv
v
AGRADECIMENTOS
Ao tratar dos agradecimentos aqui, acredito que seja cabvel iniciar constatando que uma pequena
parte deste trabalho de mrito meu. Sem todos os inmeros autores que tive o prazer de ler suas
obras, sem as conversas em ou fora de ambiente acadmico sobre o assunto, com professores ou
colegas, este seria um texto diminuto e vazio. Assim sendo, faz-se necessrio agradecer todas
estas circunstncias da vida simplesmente por terem ocorrido.

Meu especial agradecimento ao Prof. Bastiaan Reydon que durante esses anos de orientao
demonstrou-se portador de pacincia estica para comigo e sempre deu seus conselhos
imprescindveis nas horas de maior necessidade.

Agradeo especialmente tambm professora Ligia Osrio Silva por todas as suas pesquisas que
serviram de grande inspirao para este trabalho, alm da honra de receber da mesma autora as
pontuaes necessrias durante a elaborao do mesmo.

Aos meus Pai e Me, por nunca faltaram nem com apoio e nem com compreenso ao longo do
tortuoso incio da minha vida acadmica, alm de sempre figurarem como um porto seguro.

Aos professores Jos Benatti e Francisco Cavalcanti que contriburam grandemente com seus
comentrios sinceros sobre os pontos que ficaram em aberto ou equivocados no trabalho como
um todo, me indicando tambm caminhos para desenvolvimentos futuros no tema.

Aos amigos Roberto Simiqueli e Guilherme Lambais, agradeo pelo entusiasmo e pelas inmeras
conversas e discusses acerca do objeto de estudo desta dissertao.

Por fim, agradeo sinceramente quela grande lista de amigos e amigas que em conversas mais
ou menos formais me ajudaram a amadurecer e mudar de ideia sobre diversos pontos tratados ao
longo deste trabalho.

vii
"Neste equvoco repousa a controvrsia sobre o
tempo histrico da frente de expanso e o tempo
histrico da frente pioneira, pois no se reconhece
que o tempo histrico de um campons dedicado a
uma agricultura de excedentes um. J o tempo
histrico do pequeno agricultor prspero, cuja
produo mediada pelo capital, outro. E ainda
outro o tempo histrico do grande empresrio rural.
Como outro o tempo histrico do ndio integrado,
mas no assimilado, que vive e se concebe no limite
entre o mundo do mito e o mundo da histria. Como
ainda inteiramente outro o tempo histrico do
pistoleiro que mata ndios e camponeses a mando do
patro e grande proprietrio de terra: seu tempo o
do poder pessoal da ordem poltica patrimonial, e no
o de uma sociedade moderna, igualitria e
democrtica que atribui instituio neutra da justia
a deciso sobre litgios entre seus membros. A bala
de seu tiro no s atravessa o espao entre ele e a
vtima. Atravessa a distncia histrica entre seus
mundos, que o que os separa. Esto juntos na
complexidade de um tempo histrico composto pela
mediao do capital, que junta sem destruir
inteiramente essa diversidade de situaes."

(Jos de Souza Martins)

ix
RESUMO

Verdade repetida insistentemente, todos sabemos que a estrutura fundiria brasileira se mantm
concentrada desde sua origem. Unindo a isso o quadro de caos regulatrio e legislativo no tocante
da terra no Brasil, este estudo se prope a delinear um padro histrico de regulao da
apropriao territorial at 1964 e analisar o perodo que se segue da at a atualidade para mostrar
que este mesmo padro se manteve em essncia, alm de mostrar que esta manuteno traz
consigo efeitos extremamente viciosos. Partindo da caracterstica central de manuteno da
apropriao privada das terras devolutas, analisaremos no captulo 1 como se constituiu este
padro de regulao permissivo e como ele se manteve at a metade do sculo XIX. Em seguida,
no captulo 2, realizaremos o mesmo tipo de anlise para os anos subsequentes at os dias de hoje
expondo que, apesar de mudanas em aparncia, este padro se manteve. No captulo 3,
analisaremos o caso da regulao da apropriao de terras no Par como outra fonte de
argumentos que corroboram nossa tese. No captulo 4, por fim, exporemos sintomas
decorrentes da manuteno desta forma de regulao da ocupao territorial depois de mostrar
que a estrutura fundiria brasileira sempre foi concentrada, mostraremos os principais fatores que
perpetuam esta forma estrutural e fatores deletrios outros que so decorrentes desta manuteno.

Palavras-chave: Latifndio Brasil Histria; Terras pblicas Brasil; Terras devolutas; Posse
da terra.

xi
ABSTRACT:
It is widely known that Brazilian land structure is still very concentrated since the colonization.
Bearing in mind the Brazilian land concentration and the chaotic land regulatory and legislative
framework, this study pretends to outline an historical territorial appropriation pattern up to 1964
and analyze the subsequent period to show that this pattern maintained itself in essence, also
showing that it brings many vicious effects. Starting from the maintenance of the private
appropriation of unregistered public lands as the central characteristic, chapter 1 will analyze how
this permissive regulatory pattern was constituted and maintained until the first half of the 20th
century. Next, in chapter 2, we will use the same kind of analysis for the subsequent years up to
the present day showing that, regardless of changes in its appearance, this pattern was
maintained. In chapter 3 we will focus on the Para state case and its territorial appropriation
regulations as another source of arguments corroborating for our thesis. Finally, in chapter 4, the
symptoms derived from maintaining this form of regulation of territorial occupation will be
exposed after showing that Brazilian land is and always was concentrated, we will highlight the
main factors that caused this structural form and other negative factors that come into being
through this maintenance.

Keywords: Latifundium Brazil History; Public lands Brazil; Waste land; Land tenure.

xiii
SUMRIO
INTRODUO 1

CAPTULO 1. O PADRO HISTRICO DE REGULAO DA APROPRIAO


TERRITORIAL BRASILEIRO 5

INTRODUO AO CAPTULO 5

1.1. O sesmarialismo 6
1.1.1. Um instituto jurdico herdado de Portugal 8
1.1.2. A apropriao de terras no regime sesmarial 9
1.1.3. O fim do sesmarialismo 11

1.2. A Lei de Terras de 1850 14


1.2.1. Asceno da posse 15
1.2.2. A Lei de Terras de 1850 16

1.3. A terra na 1 Repblica 21


1.3.1. A Constituinte, a descentralizao e as polticas federais 23
1.3.2. A lei de 1850 nos estados 24
1.3.3. Rebaixamento do estatuto jurdico do Estado e o usucapio 25

1.4. Estado Novo e Redemocratizao 27


1.4.1. Constituio de 1934 e de 1937 Estado Novo, funo social da terra e marcha para o oeste 27
1.4.2. Redemocratizao e Constituio de 1946 29
1.4.3. As mobilizaes por reforma de base na dcada de 1950 e 1960 30

CONCLUSES DO CAPTULO 32

CAPTULO 2. REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL NO PERODO PS 1964


37

INTRODUO AO CAPTULO 37

2.1. O Estatuto da Terra, modernizao dolorosa e Constituio de 1988 38


2.1.1. Estatuto da Terra 38
2.1.2. Modernizao dolorosa e o desenvolvimento institucional e regulatrio com relao terra 41
2.1.3. Constituio de 1988 e a reforma agrria em suspenso at 1995 46

2.2. Das reformas neoliberais ao perodo atual 49


2.2.1. O Plano Real, mercado de terras e a Reforma Agrria no governo FHC 49

xv
2.2.2. Governo Lula e poltica agrria 57
2.2.3. Governo Dilma e os esforos atuais 61

CONCLUSES DO CAPTULO 62

CAPTULO 3. REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL NA FRONTEIRA


INTERNA: O CASO DO PAR 65

INTRODUO AO CAPTULO 65

3.1. Breve histrico da regulao da ocupao de terras no Par 66

3.2. Regulao da apropriao territorial no Par: da insegurana jurdica grilagem de terras 69

3.3. Dos outros efeitos relacionados a forma de regulao da apropriao territorial no Par 78
3.3.1. Desmatamento 78
3.3.2. Pecuria, soja e grilagem 80
3.3.3. Trabalho escravo e conflitos fundirios 82

CONCLUSES DO CAPTULO 87

CAPTULO 4. MANIFESTAES DECORRENTES DA FORMA DE REGULAO DA


APROPRIAO TERRITORIAL BRASILEIRA 89

INTRODUO AO CAPTULO 89

4.1. Da permanncia da mesma estrutura agrria 89


4.1.1. Concentrao da estrutura agrria se mantm 90
4.1.2. Reforma agrria insuficiente e declinante 95
4.1.3. Conflitos no campo aumentando 99

4.2. Causas da falta de regulao da apropriao territorial 105


4.2.1. A recriao da possibilidade legal de apossamento de terras devolutas 107
4.2.2. Ausncia de cadastro consolidado 109
4.2.3. Entraves do instrumento legal de desapropriao 112
4.2.4. Falhas no ITR 117

4.3. Dos outros efeitos da falta de regulao da apropriao territorial 120


4.3.1. Apossamento de terras devolutas ou grilagens, resultados dos esforos cadastrais 121
4.3.2. Desmatamento 124
4.3.3. O mercado de terras brasileiro 129
4.3.4. Preo de terras elevado 131
4.3.5. Ttulos da Dvida Agrria (TDA) e superindenizaes 133
4.3.6. Inadimplncia do crdito rural 137

xvi
CONCLUSES DO CAPTULO 142

CONSIDERAES FINAIS 145

BIBLIOGRAFIA 149

xvii
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Imveis certificados e total de imveis no SNCR, Estado do Par, 2013. 71

Tabela 2. Alguns dos diferentes cadastros de terras, Par, anos diversos. 74

Tabela 3. Dominialidade, terras pblicas no Par, 2009. 75

Tabela 4. Trabalho escravo e superexplorao no Par, Regio Norte e Brasil, 2012. 84

Tabela 5. Violncia contra a pessoa no Par, Regio Norte e Brasil, 2012. 84

Tabela 6. Violncia relacionada a ocupao e posse no Par, Regio Norte e Brasil, 2012. 85

Tabela 7. Proporo da rea total ocupada pelos 50% menores (50-) e 5% maiores (5+)
estabelecimentos, conforme condio do produtor. Censo Agropecurio, 1975 a 2006. 92

Tabela 8. Caractersticas da distribuio fundiria incluindo, com rea nula, as pessoas de


referncia de domiclios particulares com atividade principal como empregado no setor agrcola,
de acordo com os dados da PNAD. Brasil, 1992 a 2008. 94

Tabela 9. Projetos de reforma agrria em execuo, segundo ano de criao do projeto, Brasil
1900-2008. 95

Tabela 10. Ocupaes e assentamentos, Brasil, 1979-2006 97

Tabela 11. Conflitos fundirios, Brasil 2002 a 2011 99

Tabela 12. Categorias sociais envolvidas em conflitos, Brasil - 2011 102

Tabela 13. Categorias sociais que sofreram violncia, Brasil - 2011 103

Tabela 14. Alquotas para o clculo do novo ITR 119

Tabela 15. Valor da Terra Nua declarado e preos de mercado, 1997. 119

Tabela 16. Imveis notificados pela Portaria n 558/1999 121

Tabela 17. rea dos imveis notificados pela Portaria n 558/1999. 122

Tabela 18. Total de imveis rurais cadastrados e suspeitos de grilagem classificados segunda a
regio (%). 122

xix
Tabela 19. Listagem dos imveis notificados segundo a classe. 123

Tabela 20. Proprietrios/detentores de imveis rurais suspeitos de grilagem, distribuio segundo


a situao jurdica. 123

Tabela 21. Desmatamento por perodos, Amrica do Sul e total mundial, 1990 a 2010. 125

Tabela 22. Preos mdios de terras de matas e de pastagens, estados da Amaznia, em R$/ha
correntes de 2008. 127

Tabela 23. Pagamento de ttulos da dvida agrria efetuados pela Unio, 1994-1998. 135

Tabela 24. Pagamentos e dispndios do Tesouro Nacional com programas e polticas


agropecurias, 2000-2006, em milhes de R$ de 2006. 139

Tabela 25. Valor das provises na carteira de agronegcio do Banco do Brasil, 2003-2012. 141

Tabela 26. Pessoa fsica e pessoa jurdica na carteira de agronegcio do Banco do Brasil, em R$
milhes - junho de 2012. 141

xx
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Entidades operando na administrao de terras pblicas no Par 72

Figura 2. Interveno territorial federal no Par 73

Figura 3. Quantidade e variao de bovinos, por municpio, 2000-2005. 82

Figura 4. ndice de probabilidade de escravido para o Par, 2007. 83

Figura 5. Conflitos no campo, Par, 2011-2012. 86

Figura 6. ndice de Gini da estrutura fundiria municipal em 2003, com dados suavizados. 91

Figura 7. Famlias em ocupaes e famlias assentadas, Brasil, 1988 a 2006. 98

Figura 8. Mdia anual de conflitos por terras, Brasil 1985 a 2010 100

Figura 9. Distribuio dos conflitos de terra por protagonista, Brasil 2011. 101

Figura 10. ndice de violncia contra a pessoa no campo, Brasil 1996 a 2006 104

Figura 11. A distribuio incerta da situao jurdica das terras na Amaznia (milhes de hectares
e % do territrio), 2008. 128

xxi
INTRODUO

Na busca pela compreenso do presente, diversos autores1 tornaram os olhos para o passado em
busca de uma chave para a interpretao do campo brasileiro, constatando que a concentrao
fundiria do presente carrega determinaes herdadas das nossas razes: uma sociedade agrria e
escravocrata, formada por ncleos dispersos e autossuficientes.

Dentro deste amplo campo de estudo, h autores que se focaram especificamente na histria da
apropriao territorial brasileira, em especial Silva (2008, p. 18):

A contribuio que pretendemos dar, neste trabalho, situa-se num campo pouco explorado pelos
analistas da questo da terra e das relaes entre proprietrios de terras e Estado. Trata-se da histria
da apropriao territorial. Procuramos estudar neste trabalho momentos decisivos do processo de
constituio da moderna propriedade territorial, que foram, por outro lado, parte essencial do processo
de formao da classe de proprietrios de terra. (Silva, 2008, p. 18)

Partimos deste trabalho para recortar ainda mais o campo de estudo, especificamente da
afirmao da mesma autora de que uma das caractersticas da constituio da propriedade da
terra no Brasil que a propriedade territorial se constitui fundamentalmente a partir do
patrimnio pblico. (op. cit., p. 18).

Ressalvamos aqui, para delinear corretamente os contornos deste estudo, que no trataremos da
questo agrria como um todo, nem tampouco do problema da relao entre terra e poder - a no
ser de forma muito indireta -, assim como tambm nos reservamos a no tratar da relao de
poder que condiciona a formulao das leis e regulaes que se aplicam apropriao territorial,
visto que isto necessitaria um aprofundamento incompatvel com o escopo do presente trabalho.
Ressalvamos tambm que o objeto desse estudo no so os proprietrios de terra, mas sim o
espao constitudo pela relao entre os proprietrios de terra e o Estado as leis e a regulao da
propriedade da terra.

1
Foge do escopo do presente estudo apresentar as ideias de cada um destes diversos autores brasileiros visto que a lista por
demasiado extensa. Dentre eles podemos elencar autores de diferentes pocas, como Oliveira Vianna, Srgio Buarque de
Hollanda, Raymundo Faoro, Alberto Passos Guimares, Igncio Rangel, Celso Furtado, Caio Prado Jnior, Florestan Fernandes,
Gilberto Freire, Nelson Werneck Sodr, Jacob Gorender, Lgia Osrio Silva, Bastiaan Reydon, Angela Kageyama, Pedro Ramos,
Jos Graziano da Silva, entre outros.
1
Sendo assim, o presente estudo se centra na relao da figura jurdica da posse e das terras
devolutas com a regulao da ocupao de terras no Brasil e como esta se deu no tempo, em
especial aps 1964. Mostraremos que, em nossa opinio, a falta de regulao com relao
apropriao territorial brasileira at 1964 marcada por ser excludente e concentradora,
especificamente pela manuteno do apossamento e da incapacidade do Estado de controlar suas
terras devolutas num contexto de fronteira interna em expanso. Tendo isto em mente, queremos
saber se estas caractersticas e, em decorrncia, a falta de regulao se mantiveram de 1964
at os dias de hoje.

Separamos em quatro captulos a apresentao proposta, iniciando-a com a reapresentao2 de


como se conformou historicamente este padro de regulao da propriedade da terra no Brasil,
delineando a importncia tanto do surgimento da figura da posse e os embates que se sucederam
em torno dela quanto o papel das terras devolutas como um tipo de terra pblica e seu papel neste
mesmo processo. Veremos qual foi a relevncia da Lei de Terras de 1850 como marco
regulatrio no que tange a conformao da propriedade privada das terras no Brasil e como se
deu sua aplicao, seguindo para a nova tratativa posta em andamento na Repblica Velha que
culminou com a passagem do domnio das terras devolutas da Unio para os estados e as outras
mudanas ocorridas no decorrer da primeira metade do sculo XX.

O segundo captulo abordar a histria mais recente da regulao da apropriao territorial,


partindo de 1964. Nele exporemos o contexto sociopoltico e econmico que deu luz ao
Estatuto da Terra, outro marco regulatrio no nosso recorte, e as suas tentativas de aplicao na
prtica. Mais adiante passaremos para a tratativa em relao terra no contexto da Constituio
de 1988 e da reabertura democrtica, seguindo pelos esforos dos governos da era neoliberal e,
posteriormente, dos recentes governos Lula e Dilma. O propsito deste captulo de mostrar
como a falta de regulao da apropriao territorial se manteve, em especial devido a no
alterao das duas caractersticas centrais: a continuidade da posse aliada com a falta de controle
do Estado sobre as suas terras devolutas.

No terceiro captulo mudaremos o enfoque para o estado do Par, uma das regies de expanso
da fronteira interna a partir da segunda metade do sculo XX, tendo em vista confirmar o

2
Utilizamos o termo reapresentao para deixar claro que em sua maior parte o contedo foi elaborado com mais aprofundamento
em Silva (2008).
2
movimento geral descrito numa regio especfica. Analisando as regulaes estaduais e a
aplicao das regulaes nacionais no tocante apropriao territorial mostraremos que os
contornos da falta de controle sobre as terras devolutas e o fenmeno do apossamento mais
intenso nas reas de limite da fronteira interna gerando, como previsto, um forte entrave no que
tange a governana fundiria e controle do processo de formao da propriedade da terra. Alm
disso, o caso de estudo do estado do Par frutfero para a anlise do caos regulatrio gerado
pelas diferentes passagens de domnio das terras devolutas das mos da Unio para os estados e
vice-versa.

Por fim, aps a exposio do processo de desenvolvimento e conformao da regulao da


apropriao territorial brasileira, no ltimo captulo mudaremos de enfoque analtico para dar
cabo da exposio de que a estrutura agrria brasileira permanece concentrada e excludente (da a
continuao dos conflitos no campo como sintoma); que isto se d centralmente por via da
constante recriao da possibilidade legal do apossamento e pela falta de controle do Estado com
relao s suas terras devolutas; e que outros efeitos deletrios decorrem disso - como o
desmatamento, continuao de grilagens de terras, preo de terras elevado, entre outros.

3
CAPTULO 1. O PADRO HISTRICO DE REGULAO DA
APROPRIAO TERRITORIAL BRASILEIRO
INTRODUO AO CAPTULO

Para compreender o funcionamento e aplicao das leis que tangem a ocupao do territrio a
partir de 1964 acreditamos que seja preciso, primeiramente, buscar no passado as caractersticas
que permanecem atuantes at hoje. O que temos em vista aqui procurar um fio condutor no
recorte da apropriao territorial e sua regulao desde a poca da Colnia at a metade do sculo
XX que possibilite mostrarmos o que se mantm de ontem e, quando possvel, como foi possvel
que se mantivesse.

Este captulo consiste na tentativa de reexpor esta histria da apropriao territorial e sua
regulao, com enfoque no papel das terras devolutas e na origem da figura jurdica da posse.
Tentamos mostrar o essencial do contexto social, poltico e econmico que, nas suas inter-
relaes, produziu gradativamente o que se toma aqui como forma de regulao do padro de
ocupao brasileiro, marcado pela gerao de excluso, concentrao de terras e, principalmente,
por ter sido consagrado pela via da privatizao de terras devolutas.

O roteiro de apresentao seguido e seu contedo so em muito devedores da anlise de Ligia


Osrio Silva (2008) e atesta-se sem embaraos que no se tentou aqui uma abordagem histrica
sui generis e aprofundada, mas a exposio com enfoque centrado primariamente na regulao da
apropriao territorial, visando retratar a construo e reconstruo permanente deste padro, tido
aqui como um padro que se mantm at hoje.

Feitas estas ressalvas, pretendemos expor o processo de constituio da propriedade privada da


terra no Brasil, caracterizado pela passagem das terras para o domnio rgio e, posteriormente, do
domnio pblico para o privado, onde se sobressai em importncia a Lei de Terras de 1850 como
centro da anlise.

Nesta mesma linha, mostraremos como surgiu e se desenvolveu na prtica informal uma nova
forma de apropriao, a posse - adaptada agricultura mvel, predatria e rudimentar -, que vai
se caracterizando como a principal caracterstica da ocupao do territrio j antes de 1850.

5
Com o advento da Independncia, este padro de apropriao permeado pela figura da posse
aflora suas contradies na nova relao entre a soberania imperial e suas terras ainda no
utilizadas, com um contexto externo acenando para o fim do trfico de escravos que teve, por
isso, impactos profundos na caracterizao do campo de debate terico e poltico que veio a
culminar, em 1850, na Lei de Terras.

Em seguida, exporemos a regulamentao da dita lei e em quais pontos ela foi e no foi efetiva e
tentaremos, na medida do possvel, analisar os por qus disto mais especificamente, como se
deu a constante recriao de condies para que se mantivessem as caractersticas centrais da
apropriao territorial tal qual vinha se dando.

Mais adiante, analisaremos como as mudanas com relao regulao da propriedade da terra
na Repblica foram insuficientes para subverter ou quebrar a conformao da forma de ocupao
das terras que foi herdada de perodos anteriores. Em especial trataremos dos efeitos da
descentralizao federativa na regulao agrria e do rebaixamento do estatuto jurdico do Estado
perante as suas terras.

Abordaremos o efeito e inovaes das 3 Constituies (1934, 1937 e 1946) e outras alteraes
regulatrias que tangem diretamente a apropriao territorial no perodo que segue at o governo
militar.

Por fim, a concluso destas anlises se dar de forma a legitimar o argumento de que, nos idos da
dcada de 1960 perodo que findam as anlises contidas neste captulo , apesar de vrias
mudanas aparentes, a relao os grandes proprietrios e o Estado ainda assim preservava certas
caractersticas contidas desde o incio de apropriao territorial no Brasil, mutantes na forma, mas
que se preservaram em seus traos essenciais.

1.1. O SESMARIALISMO

O incio da ocupao territorial no Brasil se deu atravs da concesso de sesmarias na Colnia,


gerida por um instituto jurdico portugus. Isto significa que a base para as formas de regulao
da propriedade de terras foi transplantada de Portugal e sofreu, posteriormente, uma srie de
mutaes. Assim, a apropriao territorial na colnia foi determinada por duas condies
6
histricas claras: a expanso comercial europeia dos sculos XV e XVI, que deu o aspecto de
economia de explorao e, por outro lado, a especificidade das possesses portuguesas, que
trouxeram consigo determinadas normas reguladoras da propriedade de terras.

No contexto de expanso comercial europeia, o Brasil se inseria como colnia de explorao, um


empreendimento comercial vinculado aos interesses do capital mercantil europeu e sua
acumulao primitiva.

A falta de entusiasmo portugus no incio do Brasil colnia, de onde Gilberto Freyre interpreta
que o Brasil foi como uma carta de paus puxada num jogo de trunfo de ouros, representa apenas
um lado da moeda visto que, por outro lado, razes de carter poltico pressionavam os
portugueses a ocupar de alguma forma a nova conquista. Esta forma se deu inicialmente com a
explorao de pau-brasil e posteriormente se consolidou na explorao agrcola em grande escala,
especialmente no cultivo de cana-de-acar, feito com desleixo e abandono ligados ao desprezo
portugus com relao ao labor agrcola, segundo Srgio Buarque de Holanda. Somam-se a isso
as dificuldades de um empreendimento de grande porte para uma nao pequena como Portugal.

A organizao da explorao comercial portuguesa se deu sobre a agricultura de exportao em


grande escala baseada no trabalho escravo visto a necessidade de gerar sobrelucros para a
burguesia mercantil metropolitana - em outras palavras, visto a necessidade de viabilizar o
funcionamento satisfatrio do sistema baseado no exclusivo metropolitano. Esta estrutura
formada indelevelmente marcada por uma organizao social e econmica altamente
concentradora de renda e de terras.

No que tange nosso objeto de estudo primrio, qual seja, a forma pela qual se deu a regulao da
apropriao territorial, a abundncia inicial de terras pode ser considerada tanto um dado fsico
quanto social e a introduo do trabalho compulsrio recriava permanentemente a disponibilidade
de terras para os agentes da explorao econmica, o senhoriato rural que foi se formando nas
colnias. Assim, a manuteno da escravido tornava a permanente disponibilidade relativa de
terras possvel e necessria. Possvel por dividir a sociedade, basicamente, entre senhores e
escravos (excludos da apropriao territorial por definio) e necessria porque esgotava
rapidamente o solo.

7
Nas palavras de Holanda (1995), as razes do latifndio e da constante apropriao de novas
terras (sempre abundantes), visto o carter esgotador do solo da agricultura praticada aqui, podem
ser encontradas desde o comeo da ocupao portuguesa:

A verdade que a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua
natureza perdulria, quase tanto da minerao quanto da agricultura. Sem brao escravo e terra farta,
terra para gastar e arruinar, no para proteger ciosamente, ela seria irrealizvel (op. cit., p. 49)
O princpio que, desde os tempos mais remotos da colonizao, norteara a criao de riqueza no pas
no cessou de valer por um s momento para a produo agrria. Todos queriam extrair do solo
excessivos benefcios sem grandes sacrifcios. Ou, como j dizia o mais antigo de nossos historiadores
[Frei Vicente do Salvador], queriam servir-se da terra, no como senhores, mas como usufrutrios, s
para a desfrutarem e a deixarem destruda (op. cit., p. 52)

Nesta seo, apresentaremos as origens da forma de regulao da ocupao territorial brasileira,


partindo da constituio do sesmarialismo como instituto jurdico portugus transplantado ao
Brasil e, por fim, como este transplante foi exprimindo suas contradies e foi dando espao,
gradualmente, forma da propriedade plena da terra no sculo XIX.

1.1.1. Um instituto jurdico herdado de Portugal

A origem das sesmarias se deu prximo ao fim do sculo XIV em Portugal, constituindo terrenos
incultos e abandonados os quais a Monarquia portuguesa entregava s pessoas que se
comprometiam a coloniz-los no prazo estipulado. Estas doaes tinham como objetivo
solucionar o problema de abastecimento devido ao baixo ndice de cultivo e arrendamento das
terras possudas por senhorios (Silva, 2008, p. 41), alia-se a isso a necessidade de povoar os
territrios retomados dos mouros aps a Reconquista (Diniz, 2005). A legislao das sesmarias
entra em cena obrigando o cultivo, em teoria, sob pena de perda de domnio, assim o senhorio
que nem cultivasse nem arrendasse suas terras perdia o direito a elas, que voltariam ao domnio
da Coroa e seriam estas terras devolutas distribudas para outros que as aproveitassem.

Assim, com a colonizao do Brasil por Portugal, a regulao da apropriao das terras
brasileiras passou a ser regida diretamente pelas Ordenaes do Reino, sendo que a propriedade
particular derivava do domnio da Coroa por intermdio da concesso de sesmarias.

Se em Portugal a nova organizao sesmarial foi bem-sucedida at o sculo XVI, engendrando a


proliferao de pequenas propriedades produtivas num pas de pequena extenso, sua aplicao

8
no Brasil sob o contexto da monocultura de exportao e do regime de trabalho escravo no teve
o mesmo efeito que no Velho Continente.

1.1.2. A apropriao de terras no regime sesmarial

Sobre o sistema de sesmarias na Colnia, diferenciam-se duas fases que evoluram de acordo com
as relaes com a metrpole, num primeiro momento marcado pela vista grossa e liberalidade
das autoridades metropolitanas incentivadas pelo potencial comercial do cultivo de cana-de-
acar que demandava grandes extenses de terras e, num segundo momento, marcado pelas
dificuldades financeiras do Reino, adensamento populacional na Colnia e pela descoberta do
ouro, o que levou a uma tentativa de retomada do controle da apropriao territorial por parte das
autoridades metropolitanas.

Na primeira fase, o sesmarialismo colonial era marcado pela gratuidade e pela condicionalidade
da doao, que ditava que se a terra no fosse aproveitada, voltaria s mos do senhor de origem,
a Coroa. Segundo Silva, (2008, p. 47-50), as autoridades coloniais, entretanto, no af de ocupar
o imenso territrio, desprezaram na prtica essas recomendaes, contrariando o que rezava nas
Ordenaes, inclusive gerando casos de especulao com terras j no final do sculo XVII: []
as autoridades coloniais demonstraram algumas preocupaes com a prtica que surgiu na
Colnia de demandar sesmarias imensas para vend-las retalhadas. Sendo assim, desde o incio
o estipulado nas Ordenaes no era cumprido de fato, ao exemplo dos limites ao tamanho da
propriedade que surgem, ao menos formalmente, a partir do sculo XVII.

A aplicao das regulaes formais era deixada de lado se esta entrasse em conflito com os
determinantes primeiros da forma de ocupao do solo no Brasil. Em outras palavras, a
determinao maior da maneira que se ocupava o solo era dada externamente, de acordo com a
forma de insero da Colnia no amplo mercado mundial, exportando apenas produtos dos quais
a Europa carecia, como a cana-de-acar. Isto determinou o modelo da agricultura aqui instalada:
latifundiria, monocultora e escravista. Inclui-se ainda neste quesito de controle externo a
proibio de escravizar ndios, indicando a preferncia das autoridades pela utilizao do africano
escravizado e transparecendo a presso que exerciam os interesses comerciais ligados ao trfico
negreiro.

9
A abundncia de terras aliada ao carter externo da acumulao de capital determinou as
caractersticas internas da produo colonial, que se fazia por extenso (seja na pecuria ou no
complexo aucareiro), determinando a adoo dos mtodos de cultivo rudimentares que levavam
ao esgotamento do solo rapidamente, incentivando o contnuo abandono das zonas esgotadas.
Assim as caractersticas fundamentais da agricultura nos primeiros sculos de colonizao foram
a mobilidade, o carter predatrio e o crescimento em extenso. Ao analisar o regime territorial
na poca colonial, Gorender (2012, p. 181) constatava estes fatores com relao ao sistema de
plantagem sob o regime escravista:

As motivaes para a apropriao da terra no se esgotavam no puro interesse econmico, mas


envolviam consideraes de status [] A prpria forma plantagem j continha a tendncia ao
monoplio da terra pela minoria privilegiada de plantadores. Cada plantador trataria de se apossar da
maior extenso possvel, antes que o fizessem os concorrentes.

O segundo perodo sesmarial se desenvolve como reflexo da progressiva centralizao da


administrao pblica em favor do poder rgio, dado o contexto de dificuldade do Reino e
tambm a descoberta de ouro e o adensamento populacional na Colnia.

Um dos primeiros reflexos desta mudana se d na tentativa de retirada da gratuidade das


concesses sesmariais e a cobrana de um foro, espcie de pagamento cobrado com base na
extenso da propriedade e no na produtividade. Este foro visava impedir que se mantivesse a
terra improdutiva o que j era exigncia nas Ordenaes.

Apesar de um aumento das restries, o clima de liberalidade se manteve por inrcia, trazido do
perodo anterior. A incapacidade de se fazer valer as normas estava atrelada, em especial, ao
registro, medio e demarcao das terras e estes trs quesitos eram de baixa qualidade,
incompletos ou inexistentes. Sobre a ineficcia das leis de obrigao do cultivo, Gorender (2012,
p. 206) afirma com clareza:

O que me parece importante destacar a impotncia das barreiras legais tendncia inerente ao
escravismo no sentido do princpio do direito pleno propriedade privada da terra. Em tese, a
legislao das sesmarias no supunha esse direito pleno, uma vez que a doao da terra, subordinando-
se clusula do cultivo, era revogvel. Na realidade dos fatos, prevalecia a fora social dos
latifundirios, que conservavam a propriedade de extenses muito superiores s suas possibilidades de
aproveitamento.

10
Deste conjunto de fatores segue que o aumento das exigncias burocrticas por parte da
metrpole sobrecarregou os colonos3 sem, de fato, surtir o efeito desejado em muitos casos
ainda tornou mais confusa a aplicao da norma visto que colocou na ilegalidade um nmero
cada vez maior de sesmeiros.

1.1.3. O fim do sesmarialismo

O sculo XVIII foi marcado por crescimento intenso em diversos sentidos: crescimento
populacional, que inclua fluxo emigratrio da metrpole para a Colnia; crescimento territorial e
maior integrao entre os extremos do territrio; e crescimento econmico, o que aumentou a
importncia econmica da Colnia aos olhos da metrpole.

Uma parte deste crescimento deveu-se minerao, cujo desenvolvimento se deu de forma mais
intensa que o rush californiano do sculo XIX segundo Caio Prado Jr4, com diversas implicaes
no tocante apropriao territorial. A economia mineira foi importante pelo crescimento
populacional e por abrir novas reas de ocupao especialmente devido s suas caractersticas de
mobilidade, alta lucratividade e especializao que corroboravam para gerar efeitos de
transbordamento e dinamizao em particular sobre os setores de produo de alimentos e
animais de carga. Esta dinamizao induzida pelo rpido desenvolvimento da minerao
contribuiu para a relativa consolidao de um mercado interno e para a integrao do territrio.

No que diz respeito apropriao territorial no sculo XVIII, houve a disseminao da forma de
apropriao pela posse, especialmente na regio pecuria do Nordeste. Entretanto a posse no se
restringia apenas s regies de pecuria, sendo comum esta forma de apropriao tanto pelos
pequenos quanto grandes proprietrios. Isto se dava especialmente devido fartura de terras
livres, s dificuldades de demarcao e controle pelas autoridades e caracterstica itinerante da
agricultura, alm do motivo de especulao com terras no sentido de tomar posse de reas alm
das que se pretendia cultivar para manter uma reserva de terras seja para dividi-las e vend-las
posteriormente, seja para us-las quando bem aprouvesse.

3
Entendendo aqui como colonos os proprietrios de terras, o que no contempla nem os negros escravizados, nem o restante da
populao livre, mas sem propriedades.
4
Diz ele que se tratou de um rush de propores gigantescas, que relativamente s condies da colnia (foi) ainda mais
acentuado e violento que o famoso rush californiano do sculo XIX (Caio Prado Jr. apud Silva, 2008, p. 63)
11
Os conflitos entre sesmeiros e posseiros, surgidos do adensamento populacional, iniciaram-se e
escalaram de tal forma que o incmodo chegou at as autoridades coloniais, exigindo uma
atitude. Uma dessas foi a Carta Rgia de 3 de maro de 1702, que obrigava todos os sesmeiros da
Bahia, da regio do So Francisco e Pernambuco a apresentar s autoridades coloniais, num
prazo de seis meses, as confirmaes e as cartas de sesmarias que tivessem, sob pena da perda da
concesso. O intuito inicial no se efetivou na prtica devido falta de meios para as autoridades
coloniais garantirem ou obrigarem o cumprimento das normas. Transparece nesta fase da poltica
colonial portuguesa a excessiva valorizao do papel das medidas administrativas como
condutoras de reformas sociais.

Com a decadncia da minerao e caos em matria de regulao da ocupao territorial, o


decorrente fluxo migratrio inverso, para o litoral, intensificou estes conflitos. A desordem no
campo foi reconhecida pela metrpole, que tratou de baixar novos alvars5, desta vez ameaando
a perda das terras dos sesmeiros que no seguissem as regras e estipulando que o sesmeiro s
teria reconhecido o domnio da terra aps realizar a demarcao.

Mais uma vez as normas no se fizeram valer na realidade efetiva, visto que a metrpole no
conseguiu aplic-las e acabou cedendo presso dos colonos suspendendo a execuo do alvar.
Assim foi se abrindo margem para a manuteno da posse que, mais tarde, seria legitimada e
transformada em costume:

A situao, entretanto, apresentava uma alterao de aprecivel importncia. Cada vez mais se
reconhecia, na prtica, a existncia de moradores, posseiros nas terras e, em vez de expuls-los, as
autoridades procuravam estimul-los a legalizar sua situao. Assim, pouco a pouco comeou uma
nova forma de aquisio de domnio, com base na posse. (Silva, 2008, p. 74)

O costume da posse foi se legitimando e intensificando, em especial aps o perodo de


decadncia da minerao com a reverso do fluxo de ocupao que antes ia em direo ao
interior e com a gradual falncia do instituto das sesmarias. Entretanto, em acordo com o que foi
interpretado dos textos de Silva (2008) e Rios (2008), a posse no era exclusividade do agricultor
pobre, mas instituto partilhado inclusive pelos grandes proprietrios como forma alternativa de
ocupao da terra na falta ou dificuldade de conseguir para si uma sesmaria. Assim, a posse toma
importncia como instituto de exceo s leis do Reino em benefcio do posseiro que, ao evitar a

5
Em especial o Alvar de 5 de outubro de 1795.
12
demarcao e medio, dava continuidade ao padro itinerante e esgotador de terras da
agricultura extensiva e escravista colonial alm de evitar em grande parte a burocracia sesmarial
padro este cuja precondio a existncia de terras livres em abundncia.

Desde cedo nota-se que a exigncia de medio e demarcao era extremamente inconveniente,
tendo em vista esse padro de ocupao (Silva, 2008, p. 78), em outras palavras, a flexibilidade
da agricultura e da pecuria extensiva entrava em conflito com a intensiva rigidez da legislao.

No alvar de 25 de janeiro de 1809 demonstra-se novamente no diagnstico das autoridades que


o motivo das coisas irem mal era porque a legislao no era corretamente cumprida. A tentativa
de endurecimento na exigncia de cumprimento risca da lei mais uma vez termina por ser
inefetiva na prtica, apontando para a antittica relao entre a esfera abstrata da legislao e a
configurao socioeconmica que pairava sobre a terra brasileira.

Nos idos de 1822 dar-se-ia o fim do sistema sesmarial, em especial devido necessidade de se
resolver como as terras pblicas deveriam ser alienadas. poca ainda havia uma grande
quantidade de terra sob domnio pblico e muitos dos ttulos de sesmaria haviam expirado por
no cumprirem todas as condies essenciais para serem renovados. Ao mesmo tempo havia
posseiros reclamando terras to extensas quanto ou maiores que as sesmarias, tornando qualquer
tentativa de reforma que negasse a legitimidade das posses um tanto quanto arriscado para o
governo. Dean (1971, p. 609) atesta para esta instabilidade poltica nas tentativas de regular a
propriedade da terra:

The liberals clearly feared the power of the central government. During the reign of Pedro I and
during the regency that followed, their preference for provincial autonomy led them to countenance
and even participate in numerous regional revolts. This unsettled political environment further
influenced land policy. It was sometimes necessary, as one of the provincial presidents admitted, to
continue to grant sesmarias illegally and without authorization, in order to buy off local oppositionists
who threatened rebellion. Whatever the land policy of the central government, it would be impossible
to apply if it thwarted the landowners.

Para os possuidores de sesmarias, a melhor opo seria a revalidao incondicional e sem


nenhuma formalidade, j para os que posseiros interessados em absorver mais posses, a melhor
opo era a no criao de nenhuma nova lei eles insistiriam simplesmente no reconhecimento
dos direitos do apossamento.

13
Em 17 de julho de 1822 determinou-se a suspenso de todas as sesmarias futuras at a
convocao de Assemblia Geral e Legislativa, representando isto o coup de grce do regime
sesmarial.

A anlise do perodo sesmarial pe a nu as intenes da metrpole em retomar o controle do


processo de apropriao que escapara de suas mos sem nunca ter tido a pretenso combater a
grande propriedade ou o escravismo, possveis em funo da disponibilidade de terras. Sendo
assim, abre-se margem para o diagnstico de Guimares (1977) e Lima (1990) de que o sistema
sesmarial foi o responsvel pelo carter latifundirio da nossa estrutura agrria. Entretanto, como
bem apontado em Silva (2008, p. 84), quando o sistema de sesmarias foi extinto, apenas uma
pequena parcela do territrio brasileiro j se encontrava apropriada.

Como o apossamento se dava fundamentalmente na usurpao de terras da Coroa, o governo no


podia permitir indefinidamente esta apropriao privada de suas terras, visto que isto minava a
autoridade imperial. Dean (1971, p. 610-611) diagnostica de forma certeira o imbrglio: se a
maior parte das terras em mos privadas era ilegalmente adquirida, como ento o Estado
garantiria o direito de propriedade de qualquer indivduo? Alm disso, se o Estado no
reconhecesse a validade de nenhuma posse, ele no teria tambm nenhuma base para arbitrar
disputas e inevitavelmente estas seriam resolvidas de forma violenta.

1.2. A LEI DE TERRAS DE 1850

Representando o ponto central da passagem da forma concessionria propriedade plena da terra,


a Lei de Terras de 1850 surge como ponto privilegiado de anlise visto sua importncia como
marco representativo de uma transio desencadeada tanto pela formao do Estado nacional
quanto dos diversos movimentos sociais e polticos que vieram a emergir no Imprio.

Sendo assim, pretende-se nesta seo apresentar como se deu esta passagem da forma
concessionria propriedade plena da terra, dentro de um enfoque que contemple, de um lado, as
mudanas formais quanto propriedade da terra e, de outro, como apesar destas mudanas
formais se manteve, em essncia, uma mesma forma de apropriao territorial no Brasil.

14
1.2.1. Asceno da posse

A referncia aos proprietrios de terras no incio do sculo XIX deve ser esclarecida visto que o
ordenamento jurdico da propriedade de terras era catico. Neste perodo, chamado de fase urea
do posseiro por Garcia (1958, apud Silva, 2008, p. 90), se se mantinha a possibilidade de
apossamento e a escravido fica claro que no havia razo para o senhoriato rural pressionar o
Estado para regulamentar a questo da terra. Pelo mesmo fato de se manter intocada a questo da
regulao da terra reflete-se que a maior parte dos proprietrios de facto ainda no eram
proprietrios de jure, visto que em sua maioria no tinham os ttulos de terras e no se
conformavam, em sentido estrito, como classe de proprietrios de terras.

No perodo imediatamente anterior aprovao da Lei de Terras, com a obteno de maioridade


por parte do Dom Pedro II, deu-se o rearranjo das foras polticas em torno do imperador em
paralelo com a expanso prodigiosa do ciclo do caf no Vale do Paraba e, em contrapartida, o
declnio do acar, algodo e tabaco. Isto representou um deslocamento da primazia econmica
do Norte para o Centro-Sul, durante o processo de consolidao do Estado nacional e, como
recursos do Estado advinham de impostos sobre importao e exportao, fica clara a
importncia da rpida expanso do caf no Centro-Sul.

A formao do Estado nacional foi possvel, em parte importante, pelo carter de associao da
atividade agrcola com a atividade mercantil na economia cafeeira (Sodr, 1963, p. 201). Furtado
(1964, p. 139) adiciona a isto que a associao do comrcio, da agricultura e das finanas em
torno da atividade cafeeira significou a internalizao das decises num grau desconhecido
durante a poca aucareira.

A explicao de Celso Furtado sobre as condies do sucesso do sistema econmico que girava
em torno do caf lastreada na busca de produtos de explorao em cuja produo entrasse como
fator bsico a terra, visto a escassez de capitais e o estoque pouco mvel e reduzido de mo-de-
obra escrava, em grande parte imobilizados na indstria aucareira. Sendo assim, sua explicao
incorre diretamente no motivo de abundncia de terras apropriveis. preciso, no
necessariamente contradizendo Furtado, esclarecer sobre a oferta elstica de terras, visto que
no se tratava de uma quantidade infinita de terras, passveis de serem aproveitadas
economicamente, com a rentabilidade exigida nesse tipo de investimento (Silva, 2008, p. 100).
15
Este esclarecimento visa apenas deixar claro que certos fatores poderiam tornar antieconmica a
empresa do caf, apesar da abundncia de terras fatores como localizao em relao aos canais
de escoamento e distncia dos portos, que determinaram a concentrao inicial da cultura cafeeira
na rea do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais.

Esta mesma motivao que levou o caf a se expandir nestas regies trouxe consigo o
adensamento populacional e da agricultura, intensificando os conflitos em torno da questo em
aberto da propriedade da terra.

1.2.2. A Lei de Terras de 1850

Para fins de melhor compreenso da Lei de Terras de 1850, trataremos primeiro do contexto
interno e externo sob os quais a lei foi elaborada condio essencial para compreender a forma
que a lei tomou e a tenso entre os movimentos presentes ao momento de sua elaborao -, e
depois passaremos para a lei em si e seu regulamento.

1.2.2.1.O contexto externo e interno

No que tange a Lei de Terras, em pauta desde 1822 e aprovada finalmente em 1850, necessrio
relembrar que o sistema de produo colonial baseado no trabalho escravo e apropriao livre de
terras depende da no regulamentao da propriedade de terras. Tendo isto em vista de um lado e,
de outro, a aprovao da Lei de Terras, h uma aparente contradio que, para ser resolvida,
exige uma explicao mais pormenorizada do contexto reinante no Brasil poca.

Quanto ao contexto externo, um dos fatores de maior peso na primeira metade do sculo XIX o
embate da Inglaterra buscando a proibio do trfico de escravos. A partir de 1807 a Inglaterra
comea a intensificar suas aes na direo de fazer presso para que o trfico de escravos fosse
eliminado, declarando ilegal para os sditos britnicos o comrcio de escravos. Nesta categoria
estava Portugal, dependente das alianas inglesas poca das guerras napolenicas, e viu-se
obrigado a ceder s presses inglesas e condenou o trfico de escravos em 1810. Com a
declarao de Independncia do Brasil em 1822, estas obrigaes internacionais passaram para o
novo Estado, que as reconheceu no tratado de 1826. Sendo assim, o trfico de escravos estava
proibido desde 1830 no Brasil, mas estas medidas ficaram apenas no papel, visto que depois de

16
1840 intensificou-se ainda mais a entrada de escravos no pas. As presses britnicas, entretanto,
continuaram, culminando em atrito entre o governo brasileiro e Inglaterra com a declarao
spera de expirao do prazo dos tratados referentes s medidas comuns para supresso do trfico
de escravos em 13 de maro de 1845. A resposta inglesa se encaminhou com a mesma aspereza,
declarando a Bill Aberdeen, que consistia na adoo unilateral de autorizao aos cruzadores
ingleses de perseguir toda embarcao suspeita de traficar escravos em alto-mar, nas costas
brasileiras, rios e portos, incluindo, se houvesse necessidade, o direito de procurar escravos
desembarcados e o julgamento de traficantes brasileiros como piratas perante os tribunais do
almirantado ingls (Silva, 2008, p. 130).

Esta medida dura representou um ataque poltico soberania nacional, e a radicalizao da


posio britnica parece ter sido o que ajudou a diluir as resistncias das camadas mais
ferrenhamente escravistas da sociedade com relao ao fim do trfico.

Construdo este consenso poltico entre o governo e as classes defensoras da escravatura devido
ao fator externo ingls, deu-se a adoo do fim do trfico (Lei Eusbio de Queirs) e de forma
bastante eficiente6.

A lei Eusbio de Queirs foi responsvel por amplas transformaes, em primeiro lugar liberou
os capitais antes aplicados no trfico. O segundo efeito da lei, relativo mo-de-obra, no surtiu
efeito imediato, mas dirigiu o debate de como se faria a transio para a mo-de-obra livre
claro, sem traumas para a lavoura de exportao. Com estas condies em mente, a imigrao foi
adotada pelo governo imperial como poltica conciliativa de soluo para o problema de mo-de-
obra.

Tomando estes antecedentes em conta, vemos que a Lei de Terras foi adotada num contexto de
extino do trfico e manuteno da grande lavoura de exportao. O capital imobilizado no
antigo sistema deveria, em parte, ser substitudo pela terra num futuro prximo e, para isso, seria
necessrio resolver o caos existente em matria da propriedade territorial. Alm disso, soma-se
que a transio para o trabalho livre sem traumatismos s seria possvel atravs de imigrao

6
Silva (2008, p. 133): Os resultados alcanados foram impressionantes: em 1849, o nmero de africanos introduzidos no Brasil
foi de 54 mil; em 1850, 23 mil; em 1851, pouco mais de 3 mil; em 1852, 700 e, pouco depois, cessou o trfico.

17
estrangeira que, por sua parte, deveria ser custeada pela Coroa, atravs da venda de terras
devolutas necessitando novamente da regularizao da propriedade da terra.

Com relao ao contexto interno, nos idos da dcada de 1840 e 1850 o governo imperial estava
sob grande influncia dos cafeicultores do Rio de Janeiro, perodo da hegemonia Saquarema,
sendo esta uma frao que representava os interesses dos cafeicultores em geral.

O sucesso da poltica de povoamento em voga dependia de que se tornasse o Brasil um lugar


atrativo para garantir a atrao de imigrantes, sendo necessrio competir com outros pases, em
especial os Estado Unidos, em questo de oferecer terra a preos acessveis e um ambiente de
segurana legal que garantisse o ttulo da propriedade. Como no Brasil no havia garantia da
propriedade da terra, logo, pairava no ar um clima de intensa insegurana com relao terra.
Adiciona-se a isso que a oferta potencial de imigrantes era disputada de um lado pelos interesses
da grande lavoura de exportao, que queriam atrair trabalhadores, e, de outro lado, pela tentativa
de atra-los com base na pequena propriedade.

Tal era, ento, o pano de fundo por trs da Lei de Terras: se a regularizao fundiria era
necessria para garantir a venda de lotes para imigrao com base nas terras devolutas, no se
tomava em conta que a manuteno da falta de regulao era condio necessria para dar
continuidade forma histrica com a qual a grande lavoura e a pecuria se expandiam, qual seja,
de forma mvel, predatria, e pelo apossamento de terras devolutas no demarcadas.

1.2.2.2. A lei e seu regulamento

A Lei de Terras de 1850, como visto, estava inscrita no debate sobre os dois principais problemas
poca, a imigrao (visto a dificuldade de manter o trabalho escravo) e a regulamentao da
propriedade da terra assuntos que tocavam diretamente nos interesses dos grandes proprietrios.

A lei definia que as sesmarias (ou outras concesses do governo-geral ou provincial) e as posses
mansas e pacficas que cumprissem os princpios de morada habitual e cultivo seriam
revalidadas.

Definia tambm que prazos seriam dados para demarcao e que o governo designaria e instruiria
as pessoas que fariam as medies. Caso no fossem cumpridas as demarcaes no prazo dado,

18
os possuidores seriam reputados cados em comisso e se tornariam devolutas as reas que se
achassem incultas.

Ao governo cabia, entretanto, realizar a medio das terras devolutas, respeitando os direitos dos
posseiros e sesmeiros, o que significava respeitar os prazos dados para demarcao das terras dos
mesmos. Alm disso, era da alada do governo a criao de um registro geral de terras possudas
a partir de declaraes feitas pelos prprios possuidores, impondo multas aos que no
declarassem suas terras no prazo dado.

Dois aspectos conciliatrios da lei foram no limitar o tamanho mximo das posses que poderiam
ser legitimadas e a abolio do imposto territorial contido no projeto anterior, de 1843. Sem o
imposto territorial, no havia incentivo para os proprietrios cultivarem toda a extenso de suas
terras, mantendo o padro de apropriao de terras devolutas deixadas incultas como reserva para
o futuro, seja para especulao ou como reserva para utilizao dos mtodos agrcolas predatrios
e itinerantes.

Nos termos de Silva (2008, p. 158-159), a inteno da lei era dupla: por um lado, pretendia-se
impedir o acesso terra dos imigrantes pobres (proibio da posse) e, por outro, havia a
inteno de estabelecer os colonos com alguns recursos nas terras devolutas da Coroa, por meio
da venda de lotes. Se o primeiro aspecto servia para contentar os possuidores de terra, o segundo
visava promover recursos para o Estado. Entretanto, esta estratgia dependia especialmente da
demarcao das terras devolutas da Coroa e, por conseguinte, da regularizao da situao
jurdica dos ocupantes das terras - condies que, se efetivadas, ameaariam fortemente a
manuteno do padro de ocupao territorial.

Com relao ao crdito rural, a Lei de Terras visava contemplar a substituio do escravo para a
terra como colateral para crditos. Deu-se, para este fim, a criao do Banco Rural e Hipotecrio
na dcada de 1850 e a reforma hipotecria na dcada de 1860. Manteve-se, entretanto, o
favorecimento do fazendeiro atravs da adjudicao forada, que incorria na obrigao do credor
de receber as terras como pagamento caso o fazendeiro no pudesse honrar os compromissos. A
adjudicao forada era claro impedidor para a expanso do crdito rural visto que gerava um
ambiente de riscos para os bancos, tendo-se em vista que no havia um mercado de terras
realmente ativo e que a mesma era de pouco valor. De fato, a utilizao da terra como colateral
19
para emprstimos visando ampliar o crdito rural no funcionou devido, primeiro, ao
gradualismo da abolio da escravido, onde continuou-se por um largo perodo a utilizao do
escravo como garantia mais segura e, segundo, devido incapacidade do Estado de regularizar a
questo da propriedade rural tendo em vista o estabelecimento de um mercado de terras
funcional.

De carter legislativo inovador, a Lei de Terras trazia ainda a proibio da posse, ou seja,
proibio da aquisio de terras pblicas por ocupao. Esta foi uma das inovaes que mais
gerou alarde por ir contra um costume arraigado e, entretanto, decidiu-se por manter a proibio
na letra da lei. Alis, a proibio ficou literalmente na letra da lei, sendo considerada sua
aplicao legalmente impossvel (ia contra o costume da prescrio aquisitiva, ou usucapio) e
socialmente indesejvel.

Sobre a questo da tentativa de proibio da posse, esta esbarrava na nova conceituao trazida
pela Lei de Terras quanto o que seria terra devoluta, ou seja, necessrio remeter-se questo
do ordenamento jurdico da propriedade. A nova definio determinava que passaram a ser terras
devolutas (1) as que no estavam aplicadas a algum uso pblico nacional, estadual ou municipal e
(2) as que no estavam no domnio particular, em virtude de ttulo legtimo. Surge da a
importante questo da definio das terras devolutas por excluso, ou seja, as que no so
aplicadas a uso pblico nem estavam em domnio particular com ttulo legtimo questo que
dificulta a demarcao das terras pblicas e, portanto, a regulao fundiria brasileira at a
atualidade.

A regulamentao da Lei de Terras atravs do decreto n 1.318, de 30 de janeiro de 1854, serviu


para dar os mecanismos necessrios execuo da lei. Sendo assim, este regulamento
representava a mediao da lei com a execuo prtica da mesma. Neste regulamento afloraram
em sua completude as contradies entre a lei e a prtica, entre o que a lei propunha e o poder
real de s-la efetivada na prtica.

Uma das inovaes do regulamento residia na figura do juiz comissrio, figura central de todo
processo de regularizao das propriedades particulares em situao ilegal. digno de nota que
este, nomeado pelos presidentes de provncia, s entraria em ao a partir do requerimento dos
particulares, ou seja, o processo de medio e demarcao das terras particulares necessitava da
20
iniciativa destes mesmos, atravs do juiz comissrio, para se instaurar. Esta relao direta com as
oligarquias regionais cooptava na prtica a efetividade da figura do juiz comissrio, visto que este
estaria sujeito a presses locais que inviabilizariam o mesmo de cumprir as funes a ele
delegadas.

Outro fator problemtico que surge no regulamento a dependncia da demarcao das terras
devolutas com relao medio e demarcao primeira das terras de particulares, j contida na
Lei de Terras e explicitada no regulamento, que somada dependncia da exigncia dos prprios
particulares para demarcao e medio de suas terras, entravou a efetividade do processo de
regularizao da propriedade da terra, tanto privada, como era de se esperar, quanto pblica. O
ponto nevrlgico era ento que no centro do processo estava o requerimento do posseiro ou
sesmeiro para medir e demarcar suas terras como fator que acionaria todo o mecanismo.

parte a problemtica do juiz comissrio, outra ordenao do regulamento gerou enormes


problemas na posterioridade, a saber: o artigo 102 do regulamento, que tratava da obrigao dos
possuidores de terras a registrar as terras que possussem em forma de declarao recebidas pelos
vigrios de cada uma das Freguesias do Imprio7.

1.3. A TERRA NA 1 REPBLICA

O perodo Imperial representou, com relao regulao da propriedade da terra, a passagem da


forma concessionria (sesmarias) propriedade plena, que foi, apesar dos defeitos, sendo
constituda na segunda metade do sculo XIX e durante o comeo da Repblica. Entretanto um
enfoque apenas na mudana no mbito legal no capaz de captar o rico substrato social e
poltico que expressa a mediao dos interesses agrrios, o governo em descentralizao e
mudana de regime, e a apropriao territorial no Brasil.

7
Em excerto de Lgia Osrio Silva (2008, p. 190-191), isto esclarecido melhor: [] a prtica transformou o Registro do
Vigrio em fonte perene de perplexidade para nossos Tribunais e instituto por excelncia para a perpetuao dos famosos grilos
de terra que tm tumultuado os trabalhos da Unio e dos Estados, na apurao do seu patrimnio devoluto. Geralmente o
reclamante, que usava tal documento pretendendo o domnio sobre algumas terras, no exibia nenhum outro. E, embora a lei fosse
clara no sentido de negar-lhe a validade como ttulo [], o Registro do Vigrio teve uma importncia que talvez nenhum outro
dispositivo da Lei de Terras tenha igualado. Seus efeitos perduraram por mais de cem anos, pois em 1950, quando se quis instalar
a capital da Repblica em seu stio atual, a Unio teve que disputar nos tribunais seu direito s terras, que um particular afirmava
serem suas, exibindo um Registro do Vigrio.

21
Considera-se bem cabvel, a esta altura do texto, repetir uma citao - um tanto longa - da obra de
Holanda (1995, p. 178) sobre o carter inercial e moderado, sem drsticas rupturas, das mudanas
no Brasil, em especial no que tange crena na efetividade das leis acima dos costumes h muito
arraigados:

[] nossos reformadores s puderam encontrar at aqui duas sadas, ambas igualmente superficiais e
enganadoras. A experincia j tem mostrado largamente como a pura e simples substituio dos
detentores do poder pblico um remdio aleatrio, quando no precedia e at certo ponto
determinada por transformaes complexas e verdadeiramente estruturais na vida da sociedade.
Outro remdio, s aparentemente mais plausvel, est em pretender-se compassar os acontecimentos
segundo sistemas, leis ou regulamentos de virtude provada, em acreditar que a letra morta poder influir
por si s e de modo enrgico sobre o destino de um povo. A rigidez, a impermeabilidade, a perfeita
homogeneidade da legislao parecem-nos constituir o nico requisito obrigatrio da boa ordem social.
No conhecemos outro recurso.
Escapa-nos esta verdade de que no so as leis escritas, fabricadas pelos jurisconsultos, as mais
legtimas garantias de felicidade para os povos e de estabilidade para as naes. Costumamos julgar, ao
contrrio, que os bons regulamentos e a obedincia aos preceitos abstratos representam a florao ideal
de uma apurada educao poltica, da alfabetizao, da aquisio de hbitos civilizados e de outras
condies igualmente excelentes.

O perodo da Primeira Repblica se viu marcado pelo aumento da violncia no campo, violncia
esta em grande parte relacionada questo da terra, mais especificamente com a postura
liberalizante quanto ao apossamento de terras devolutas e ao fenmeno do coronelismo.

De acordo com Silva (2008, p. 278-280):

No cerne da problemtica coronelista estava a questo da permanncia do poder privado, em


crescente contradio com a influncia do poder pblico. Os remanescentes do privatismo eram,
entretanto, alimentados pelo poder pblico, em razo do regime representativo de base eleitoral ampla,
que deu uma importncia toda especial ao voto rural.

Ao analisar a ocupao territorial neste perodo, salta aos olhos que o perodo mais conturbado de
violncia no campo e do coronelismo corresponde ao perodo de ausncia de uma poltica
estadual ou federal de ocupao das terras devolutas. Isto ocorria devido posio estratgica dos
coronis na passagem das terras devolutas para o mbito privado, j que estes exerciam o poder
privado por meio de seus asseclas e contavam com o beneplcito das autoridades estaduais.

Nesta seo sero analisadas como se deram as alteraes da forma de regulao da apropriao
territorial com enfoque na Lei de Terras e a emergncia de novas leis, instituies e regulamentos

22
que foram, de maneira gradual, transformando a jurisprudncia e fazendo ruir as intenes postas
na lei de 1850 durante o perodo do final do Imprio e na Repblica Velha.

1.3.1. A Constituinte, a descentralizao e as polticas federais8

Para analisar corretamente a Lei de Terras de 1850 preciso estender o escopo temporal para
alm do Imprio, para que seja possvel analisar os principais objetivos da Lei (impedir acesso
terra dos imigrantes pobres e garantir mo de obra abundante nas fazendas) quando finalmente a
forma predominante do trabalho deixou de ser a do escravo.

A tendncia que se consolidou com a passagem do Imprio para a Repblica foi a vantagem das
tendncias descentralizadoras com relao s centralizadoras no que tange s polticas de terras,
favorecendo assim os proprietrios de terras, especialmente os posseiros, aos centros decisrios
relativos as questes de acesso terra e mo de obra. Nota-se que uma das principais questes
em jogo era o domnio das terras devolutas, se ficariam elas sob domnio dos estados (tendncia
federalista, ou descentralizadora) ou da Unio (tendncia centralizadora).

Por fim, a grande maioria do congresso nacional se ops s tentativas centralizadoras do Governo
Provisrio em relao poltica fundiria, atacando especialmente a incapacidade do Servio de
Terras e a poltica de imigrao, apontando como soluo a transferncia do domnio das terras
devolutas da Unio para os estados.

Este ponto especfico de enorme importncia devido ao impacto que teve posteriormente ao
delegar aos estados a responsabilidade de regular e legislar sobre as terras pblicas como bem

8
importante notar, apesar de no ser o foco do presente estudo, a relao terra-indgenas-Estado neste perodo. No que diz
respeito aos mtodos empregados com os indgenas, os primeiros vinte anos da Repblica foram extremamente violentos,
acontecendo no somente em So Paulo, mas tambm em outros estados como Santa Catarina e na regio do rio Doce (parte dos
estados de Minas, Bahia e Esprito Santo). Havia um grande desinteresse da Repblica pelos ndios, como pode ser notado desde a
Constituinte de 1891, onde a nica voz em defesa destas populaes partiu do Apostulado Positivista do Brasil, tendo suas ideias
totalmente desprezadas .
Entretanto houve certa mudana nas dcadas seguintes: com o sucesso da Comisso Rondon, que foi bem-sucedida em
estabelecer contato pacfico com populaes indgenas, em conjunto da indignao da opinio pblica com relao aos casos de
extermnio de indgenas veiculados nos meios de comunicao, criou-se um espao mesmo que pequeno para a implantao
de ideias indigenistas, que culminou com a criao do Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais
(SPILNT). Entretanto, este rgo federal j surgiu lutando contra sua extino, visto que de pronto j conseguiu a oposio tanto
da Igreja que no aceitava perder a primazia que sempre tivera na questo indgena quanto dos fazendeiros que pressionavam
as diversas instncias do governo federal.
Se desde sua criao o rgo contava com recursos escassos, em 1918 estas dificuldades se agravaram e o mesmo se viu dividido
a Localizao de Trabalhadores Nacionais aderiu ao Servio de Povoamento do Solo enquanto o Servio de Proteo ao ndio
(SPI) continuou, sozinho, a defender o indgena e a falta de sucesso do mesmo pode ser relacionada principalmente ao problema
da falta de demarcao das terras indgenas.
23
entendessem, sendo um dos pontos fulcrais geradores do caos fundirio hoje em dia em grande
parte por gerar profundas indefinies com relao a quem seria de fato o responsvel por
determinadas reas de terras pblicas (estado, municpio, unio, etc).

Uma emenda Constituio de 1891, conhecida tambm como Emenda Jlio de Castilhos,
dava fim a esta discusso, dizendo em seu artigo n 64:

Pertencem aos estados as minas e terras devolutas, situadas nos seus respectivos territrios, cabendo
Unio somente a poro de territrio que for indispensvel para a defesa das fronteiras, fortificaes,
construes militares e estradas de ferro federais.

O grande apoio passagem da gesto das terras devolutas para os estados se materializava na
possibilidade virtuosa de correo das mazelas e morosidade da poltica de terras do Estado
imperial, cujos passos a Repblica vinha seguindo. Entretanto, apesar da descentralizao da
gesto das terras para os estados resolver a pendncia entre centralizadores e descentralizadores,
com a vitria completa dos ltimos, isto significou que os estados, depois de 1891, no se regiam
mais pelas leis da Unio, mas pelas leis que livremente adotaram, salvo as restries
constitucionais.

Em outras palavras, o governo federal se absteve, na prtica, de implementar uma poltica de


ocupao de terras devolutas e deixou-as nas mos dos governos estaduais, em atendimento aos
anseios das oligarquias regionais. (Silva, 2008, p. 268)

1.3.2. A lei de 1850 nos estados

Com a entrada em vigor da Constituio de 1891 e a consequente transferncia das terras


devolutas para o domnio dos estados o governo federal, que j passava por dificuldades
financeiras, se viu levado a conter despesas, progressivamente deixando de lado suas
responsabilidades com relao s polticas de terras e repassando-as aos estados pode-se tomar
isso como manifestao, na prtica, da descentralizao que se consolidou poca.9

Com relao s legislaes especficas dos estados, o que ocorreu foi a criao de suas prprias
leis, inspiradas na Lei de Terras de 1850. Na lei de 1850, os objetivos eram de legitimar as posses
9
Estas medidas descentralizadoras tiveram efeitos inclusive na poltica de imigrao, visto que somente o estado de So Paulo
pode manter a imigrao subvencionada, graas riqueza gerada pelo caf.

24
anteriores e revalidar as sesmarias; criar um cadastro de terras; e proibir posses posteriores a
1854. Neste novo contexto ps-1891, as diferentes leis de terras de cada estado ainda assim
podem ser analisadas de acordo com certas regularidades. Silva (2008, p. 269-271) resume em
trs os fenmenos que ditaram as caractersticas fundamentais da histria da apropriao
territorial do perodo:

1. Adaptao da lei de 1850 aos interesses dos posseiros: se pela lei de 1850 era vedado
legitimao de posses ocorridas aps 1854, houve expanso desta data para pelo menos
1889 (em alguns estados este limite foi dilatado para at 1920);
2. Privatizao das terras pblicas (principalmente pelo apossamento de terras devolutas);
3. O processo de passagem das terras devolutas para domnio privado (caracterstica central
do padro de apropriao territorial brasileiro) foi vinculado emergncia do fenmeno
do coronelismo.

Com a descentralizao as polticas de terras ficaram no encargo de cada estado federativo,


especialmente j que a partir de ento as terras devolutas passaram da propriedade da Unio para
a ingerncia dos estados. Isso significa dizer que as alteraes em mbito regulatrio (ao exemplo
da descentralizao do controle das terras devolutas) no impediram a continuidade, em essncia,
da forma como se dava a apropriao territorial manteve-se o que chamamos aqui de padro
regulatrio da apropriao territorial, centrado especialmente na espoliao das terras devolutas
em sua passagem do patrimnio pblico para o privado.

1.3.3. Rebaixamento do estatuto jurdico do Estado e o usucapio

No decorrer da Primeira Repblica, uma importante questo foi reacendida sobre a forma de
venda das terras devolutas. A polmica se deu sobre as bases da interpretao das terras
devolutas, mais especificamente com a mudana da interpretao das terras devolutas como parte
do domnio pblico do Estado para se tornar parte do domnio privado do mesmo, colocando o
Estado como um mero proprietrio como outro qualquer, e no como portador do poder pblico
ou como executor do servio pblico de colonizao (onde a terra a povoar seria, ento, regida
por princpios e normas que no pertencem ao direito privado).

25
Na maior parte do Imprio, desde a Lei de 1850 a venda de terras devolutas eram feitas na forma
administrativa, isto , lavravam-se os termos nas tesourarias da Fazenda e os ttulos de terras
eram assinados pelos presidentes de provncia. Sendo assim, a Lei de 1850 era considerada uma
lei administrativa i.e.: que dispunha para a administrao pblica fazendo com que as vendas
de terras no estivessem sujeitas ao direito civil.

A interpretao vigente anteriormente tomava a concesso de terras devolutas como prestao


administrativa do Estado ao particular, visto ser a terra devoluta parte do domnio pblico do
Estado em decorrncia do direito de conquista, originado com o descobrimento, direito tambm
conhecido como direito eminente. Em nenhum momento, nem durante a Colnia nem durante o
Imprio, o direito de aquisio das terras devolutas por usucapio foi legalmente permitido.

A interpretao dominante na Repblica, entretanto, foi diversa o que, aliado ao fato da


descentralizao do poder e consequente diminuio da autoridade federal durante 1897-1907,
fez com que a ao do Estado, como poder pblico, na questo da terra, ficasse progressivamente
em plano secundrio10. A elaborao do Cdigo Civil (1916) foi claramente o que demarcou um
ponto de inflexo, atestado por uma tendncia doutrinria em relao ao estatuto do Estado diante
das terras devolutas que consistiu no questionamento de tudo que at ento se havia feito em
matria de concesso de terras, tendo como ponto de apoio inicial os decretos de Itabora11.

Estava gerado a um enorme problema em termos da questo da regularizao da propriedade


territorial, dado que se a forma cotidiana que os estados e a Unio (e o Imprio antes deles)
faziam concesses de terras era sem a devida escritura pblica e registro, isso significava que os
ttulos expedidos pelos Servios de Terras nas legitimaes, revalidaes e vendas de terras
devolutas, no tinham valor algum perante as leis que regulavam operaes de compra e venda.

Em suma, este rebaixamento do estatuto jurdico do Estado contradisse a slida tradio (ao
menos no corpo jurdico) de impossibilidade de legitimao de posses em terras devolutas por via
do usucapio. Alm de tirar a validade dos ttulos dos indivduos que adquiriram ou

10
A poltica desenvolvida pelos estados, na prtica, e a ausncia do governo federal na questo do povoamento de 1897 a 1907
contriburam para que a ao do Estado como poder pblico, na questo da terra, passasse cada vez mais para um plano
secundrio. E isso aconteceu simultaneamente ao aumento dos poderes do Estado nas outras esferas da sociedade, como, por
exemplo, na manuteno da ordem pblica (Silva, 2008, p. 347).
11
Os decretos de Itabora (1868) tornavam obrigatria a escritura pblica, feita por tabelio, e a transcrio desta no Registro de
Imveis, mesmo nos casos de venda ou cesso de terras feitas pelo Estado. Apesar destes, a prtica continuou sendo a de
lavrarem-se os termos nas secretarias pblicas, conforme a lei de 1850 que dispensava a escritura pblica.
26
regularizaram suas terras por vias administrativas, favoreceu enormemente os grileiros, visto que
no necessitavam nem mesmo do processo de legitimao, mas apenas da transcrio no registro.

1.4. ESTADO NOVO E REDEMOCRATIZAO

Com a revoluo de 1930 chega ao fim a vigncia da Lei de Terras de 1850, mas a inexistncia
de clareza quanto a outras leis que normatizassem o processo de aquisio de terras devolutas fez
com que aquela lei continuasse sendo utilizada de modelo para balizar conflitos entre o Estado e
os particulares, especialmente quanto s terras devolutas.

O perodo em anlise, que vai de 1930 at 1960, foi marcado tambm por uma corrente de
opinio preocupada com os desequilbrios sociais provocados pela estrutura fundiria, o que se
apresentou no visvel acirramento das disputas em mbito poltico-legislativo, alm da
efervescncia dos movimentos sociais no campo, especialmente as ligas camponesas no nordeste,
resultado das contradies agudas apresentadas no campo brasileiro.

1.4.1. Constituio de 1934 e de 1937 Estado Novo, funo social da terra e marcha para
o oeste

Ao analisar o contedo da Constituio de 1934 necessrio, antes, buscar pelas discusses de


propostas anteriores, mais especificamente no contedo do Anteprojeto da Constituio, para
contrastar as verses e inferir sobre os progressos e regressos quanto ordenao jurdica da
propriedade da terra.

O Anteprojeto da Constituio de 1934 sofreu influncia das novas tendncias do Direito de


limitar o alcance de certos direitos (uso e abuso) em nome do interesse social. No Artigo 114, que
estabelecia a garantia da propriedade, incluiu-se a limitao a propriedade tem, antes de tudo,
uma funo social e no poder ser exercida contra o interesse coletivo. Nota-se, assim, que se
antes o direito de propriedade era garantido sem restries, este Anteprojeto foi responsvel pela
insero da funo social como termo limitador atrelado ao direito propriedade privada, ponto
de vista que voltou a ser discutido nas prximas Constituies.

27
Esta pequena mudana tem implicaes polticas importantes no que tange a poltica agrria,
dado que abre margem de manobra para deslegitimar o latifndio improdutivo, via
desapropriao por interesse social.

Outra mudana digna de nota contida no Anteprojeto foi exatamente ligada a este ponto anterior.
Se a Constituio anterior abarcava a possibilidade de desapropriao em caso de utilidade
pblica e estipulava obrigatoriedade de indenizao prvia, a inovao do Anteprojeto postulava
que a propriedade poder ser desapropriada, por utilidade pblica ou interesse social, mediante
prvia e justa indenizao, paga em dinheiro, ou por outra forma estabelecida em lei especial
aprovada pela maioria absoluta dos membros da Assembleia (art. 114, pargrafo 1).

Como esta questo da definio do direito de propriedade relacionava-se diretamente


possibilidade do Estado agir em relao ao latifndio improdutivo atravs da desapropriao por
interesse social, na Assembleia Constituinte de 1934 esta questo foi derrotada e alterou-se a
redao deste artigo que assegurava a propriedade, retirando a expresso funo social e a
possibilidade de outras formas de indenizao que no a do pagamento em dinheiro12.

J na Constituio do Estado Novo, de 1937, pouco houve de novo com relao a este tema,
postergando definies mais detalhadas para a competncia de regulamentos posteriores:

Art 122 - A Constituio assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no Pas o direito
liberdade, segurana individual e propriedade, nos termos seguintes:
[] 14) o direito de propriedade, salvo a desapropriao por necessidade ou utilidade pblica,
mediante indenizao prvia. O seu contedo e os seus limites sero os definidos nas leis que lhe
regularem o exerccio;

Quanto aproximao de Vargas para a questo da ocupao do territrio, esta foi diversa da
reforma agrria favorecendo a implantao de projetos de colonizao nas reas mais distantes
com o objetivo de disseminar a pequena propriedade. Esta abordagem constitua a chamada
marcha para oeste, e visava destinar terras pblicas na Amaznia e no oeste para colonizao,
com o objetivo manifesto de ocupao estratgica dos grandes espaos vazios do norte e centro-
oeste, ocupao que a ideologia oficial justificava como sendo necessria para dar continuidade

12
De acordo com Silva (1997, p. 18): Assim como outros elementos do Anteprojeto, esta formulao foi derrotada na
Assemblia Constituinte, sendo retiradas dele a expresso funo social e a possibilidade de outras formas de indenizao que
no a do pagamento em dinheiro, ficando o artigo assim redigido: garantido o direito de propriedade, que no poder ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriao por necessidade ou utilidade
pblica far-se- nos termos da lei, mediante prvia e justa indenizao.
28
ao processo de desbravamento do interior iniciado pelos bandeirantes e ao processo de integrao
econmica ainda dbil (Silva, 1997, p. 18-19). Lembremos que isto significou mais uma rodada
de apropriao do interior do pas em detrimento dos antigos habitantes indgenas.

Se a ideologia oficial tinha como necessidade a ocupao destas terras vazias, por outro lado esta
regio fronteiria, em especial o oeste, no era to vazia assim, sendo ocupada por usinas de
acar, plantaes de mate, fazendas de gado, regies de garimpo de ouro e diamante, explorao
da borracha ou de drogas do serto, etc. Ou seja, apesar de inmeros decretos proibindo o
usucapio nas terras pblicas (decretos de 1932, de 1938, de 1939 e de 1946), j se dava ali o
mesmo padro de ocupao que apropriava privadamente as terras pblicas.

Enfim, conforme Fernandes e Simiqueli (2012, p. 5), contraposto realizao de uma reforma
agrria, o Estado varguista atua como vetor dos interesses agrrios, favorecendo a implantao de
projetos de colonizao que visavam disseminao da pequena propriedade, atravs da
destinao de terras pblicas na Amaznia e no oeste para este fim (a chamada marcha para o
oeste). Por trs de uma aparente democracia dos pequenos proprietrios rurais, a consequncia
lgica desse movimento o momentneo apaziguamento das tenses em torno da terra, com
ganhos significativos para a burguesia rural, no longo prazo13.

1.4.2. Redemocratizao e Constituio de 1946

A transio do governo autoritrio para a democracia muitas vezes vista sob a luz de uma
inspirao democrtica influenciada pela luta contra o nazi-fascismo, dado o contexto do ps-
guerra. Parte-se, aqui, de um vis contrrio: no mximo esta redemocratizao no ps-guerra se
apresentou no mbito da retrica, visto que pouco se abalou a estrutura de poder oligrquica,
dado que mantiveram intactas as estruturas sociais e econmicas do pas14.

13
Qualquer movimento de expanso da fronteira agrcola por meio de um regime de pequenas propriedades autnomas evoca
comparaes com a 'marcha para o oeste' norte-americana; principalmente seus primeiros movimentos, no sentido do que hoje
denominamos Meio-Oeste. Como demonstra Barrington Moore Jr. (1999), essa estratgia garante alguma medida de reduo dos
custos para a indstria, em regies manufatureiras, mas representa um potencial campo de aquisio de terras a baixo preo, da
perspectiva dos latifundirios. Uma vez distribuda a terra com base nesse mitificado 'interesse social', o mover das engrenagens
do capital garante que esta seja novamente concentrada nas mos da burguesia agrria.
14
Nas palavras de Almeida Jnior (1981, p. 239 apud Tapia, 1986, p. 14-15): As oposies vencedoras em 29 de outubro,
representavam elites econmicas e oligarquias regionais afastadas do poder em 30, ou que o tinham sido durante o Estado Novo, e
no tinham interesse algum em realizar qualquer transformao de peso que viesse permitir a real participao das massas
populares no processo das decises polticas.

29
Como visto anteriormente, a tentativa de atrelar ao direito de propriedade a sua funo social que
esteve presente no Anteprojeto da Constituio de 1934 foi retirada, e este seria trazido de volta
s discusses em 1946. Este ponto tomou vulto especialmente no que concernia a discusso da
questo da propriedade fundiria na constituinte, um dos pontos mais conflituosos da referida
constituinte.

Por fim, as acirradas discusses concernentes ao instrumento de desapropriao por interesse


social visando o combate ao latifndio improdutivo foram consagradas na Constituio de 1946
de uma forma que, apesar de permitir e legitimar o uso da desapropriao em termos legais, o
inviabilizava na prtica, ao exigir indenizaes prvias e em dinheiro, conforme a redao final
do pargrafo 16 do artigo 141:

Art 141 - A Constituio assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a
inviolabilidade dos direitos concernentes vida, liberdade, a segurana individual e propriedade,
nos termos seguintes:
[]
16 - garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriao por necessidade ou
utilidade pblica, ou por interesse social, mediante prvia e justa indenizao em dinheiro. Em caso de
perigo iminente, como guerra ou comoo intestina, as autoridades competentes podero usar da
propriedade particular, se assim o exigir o bem pblico, ficando, todavia, assegurado o direito a
indenizao ulterior.

Na mesma direo, Fernandes e Simiqueli (2012, p. 6) apontam que ainda que o reconhecimento
de uma funo social pudesse conferir nova lei uma aparente ruptura com os termos passados, o
uso dos vocbulos prvia e em dinheiro inviabilizava as desapropriaes, contrapondo o
poder do capital e do montante de recursos mobilizados pelo capital agrrio necessidade dos
trabalhadores rurais.

1.4.3. As mobilizaes por reforma de base na dcada de 1950 e 1960

Nas dcadas seguintes, de 1950 e 1960, observa-se o emergir de uma grande mobilizao social
por reformas de base, dentre as quais a discusso do latifndio tem lugar de destaque. Apesar das
grandes movimentaes populares do perodo terem tido grande importncia na conjuntura
poltica e nos debates intelectuais, optou-se por no tratar deles neste estudo, mantendo o enfoque
em alteraes no mbito legislativo e regulatrio relacionados propriedade rural.

30
A reforma agrria afirmava-se enquanto parte fundamental das transformaes estruturais que
deveriam liquidar a dominao tradicional no campo, melhorar a distribuio de renda e dar novo
impulso ao processo de industrializao atravs da ativao do mercado interno (Silva, 1997, p.
19), posio que, obviamente, inspirava temor entre os grandes proprietrios de terras. Toma
fora, no perodo, o reconhecimento de que havia uma questo agrria cujo equacionamento
figurava como um dos pr-requisitos ao avano do projeto de capitalismo que pretendia se
desenvolver no Brasil sem, contudo, constituir a questo do atraso da agricultura brasileira uma
novidade, visto que j na Repblica Velha (1889-1930) pairavam crticas ao latifndio e s
estruturas agrrias dominantes no campo.

Do ponto de vista da legislao a questo fundamental era a alterao da Constituio de 1946 de


forma a levantar o impedimento desapropriao representado pelo artigo que estabelecia
indenizao prvia e em dinheiro dos proprietrios atingidos pela reforma agrria. Entre a
Constituio de 1946 e o Estatuto da Terra, houve duas tentativas de alterao da legislao
agrria.

O primeiro, em 1953, consistiu no projeto-lei encaminhado pelo presidente Getlio Vargas ao


Congresso Nacional, um projeto compatvel com a Constituio de 1946 e que continha uma
soluo inteiramente plausvel para o estabelecimento de uma poltica de reforma da situao da
propriedade rural (definia casos de desapropriao por interesse social e o que se entendia como
imvel improdutivo), e que sofreu todo tipo de oposio, ficando engavetado por quase dez anos
e depois retomado e desfigurado em 1962.

O segundo foi um Anteprojeto de Lei de reforma agrria pelo ento presidente Joo Goulart,
visando modificar o artigo 141, pargrafo 16, para que se tornasse possvel a indenizao em
ttulos da dvida pblica, ttulos especialmente emitidos para esse fim, resgatveis num prazo de
20 anos este Anteprojeto foi enviado Cmara no dia 22 de maro de 1964, dias antes,
portanto, do golpe militar que derrubou o governo democraticamente eleito.

No decorrer desta dcada e meia que vai de 1950 a 1964, houve acaloradas discusses sobre a
questo da desapropriao por interesse social, trazendo tona o urro generalizado das hostes
conservadoras quanto ao suposto atentado propriedade privada que constituiria prover o Estado
com este instrumento. No difcil imaginar a pequena margem poltica que detinha o governo
31
no tocante a uma tentativa de reforma agrria com possibilidade de desapropriao de latifndios
improdutivos.

De acordo com Tapia (1986, p. 154), no decorrer do perodo possvel notar a mobilizao das
entidades rurais contra a reforma agrria, expressa numa crtica ao intervencionismo
redistributivista, o qual buscava limitar o direito de propriedade. De acordo com o autor:

No plano geral, os setores agrrios aceitavam e exigiam a regulao estatal, desde que esta no
estivesse voltada para restringir a propriedade privada da terra. Neste movimento antirreformista, se
explicita o falso liberalismo da burguesia agrria, que, longe de rechaar a interveno do Estado,
reivindicava-a, desde que mantivesse a propriedade fundiria inclume.

O ponto central da organizao dos interesses agrrios constitua na crtica virulenta a qualquer
tipo de poltica de diviso de terras, por mais modestas que fossem as propostas no governo.
Contra a diviso de terras, lanaram argumentos de vrios tipos: a superioridade da grande
propriedade, a subdiviso natural das propriedades, a escassez da populao e abundncia das
terras. Durante o perodo de presidncia de Dutra, aproveitaram o clima conservador do governo
para desenvolver uma cruzada anticomunista, identificando toda e qualquer proposta de
reforma agrria como comunista em alguns momentos viam na reforma agrria a ponta do
iceberg da socializao completa de todos os meios de produo (op. cit., p. 156).

Em suma, este perodo teve poucas alteraes de peso no que tange as leis, sua aplicao e a
apropriao territorial no pas, sendo vlido, entretanto, na ilustrao do contexto poltico de
acirramento e virulncia dos conflitos em torno de qualquer tentativa de por em andamento uma
reforma agrria que tocasse na propriedade privada, mostrando com isso o enorme poder dos
interesses agrrios conservadores.

CONCLUSES DO CAPTULO

Chegamos em 1964 com uma ideia geral das transmutaes que partiram de um instituto jurdico
importado do Velho Continente e aplicado na Colnia para sua falncia e posterior formao do
que se tem como propriedade privada da terra no Brasil.

Dentro deste longo processo, expusemos como se deu o fim do sesmarialismo atravs da
ascenso da posse como forma costumeira de apropriao territorial, mesmo que contrariamente

32
regulao formal da poca. Este desenvolvimento culmina com a Lei de Terras de 1850, uma
tentativa das autoridades de proibir a posse e obter o controle do patrimnio pblico de terras
constantemente espoliado. Mostramos em seguida as contradies dentro da prpria lei, em
grande parte fruto de presses polticas irreconciliveis, que se manifestaram propriamente na
tentativa de sua regulamentao.

As dramticas alteraes polticas na passagem para a Repblica impactaram diretamente a


questo da terra, englobada pelo processo de descentralizao administrativa do governo. Vimos
no que isto implicou, especialmente no que tange a passagem das terras devolutas para o
comando dos estados, enfraquecendo o papel da administrao da Unio em prol dos estados,
especialmente de suas oligarquias regionais.

Este perodo foi marcado pelo coronelismo, ligado umbilicalmente questo da terra, que de um
modo ou de outro resultou em violncia contra a populao pobre do campo, os pequenos
posseiros, agregados, ex-escravos e ndios, gerando uma situao de permanente instabilidade no
campo e garantindo um distanciamento da democratizao do acesso terra, visto que
conseguiam se manter nas terras apenas os fazendeiros-posseiros que contavam com recursos
prprios (jagunos armados) e estavam bem relacionados com as autoridades dos estados15
(Silva, 2008, p. 279). Neste sentido, por um lado, manteve-se a caracterstica excludente e
concentradora da apropriao territorial, por outro a permanncia de uma fronteira aberta,
composta por grandes extenses de terras devolutas secundrias (no sentido de estarem mais
distantes da infraestrutura e adensamentos populacionais), possibilitou certa acomodao relativa
da situao social no campo, apesar de os pequenos posseiros serem empurrados cada vez mais
para longe dos centros econmicos e terem um futuro sempre incerto quanto continuao da
manuteno de suas terras.

15
Uma explicao bem pontuada de Ligia Osrio Silva (2008, p. 279), assim descreve o fenmeno do coronelismo: O
coronelismo tem sido estudado fundamentalmente como fenmeno poltico. Victor Nunes Leal, em seu trabalho clssico sobre o
tema, definiu-o como a superposio de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura social inadequada. No
cerne da problemtica coronelista estava a questo da permanncia do poder privado, em crescente contradio com a influncia
do poder pblico. Os remanescentes do privatismo eram, entretanto, alimentados pelo poder pblico, em razo do regime
representativo de base eleitoral ampla, que deu uma importncia toda especial ao voto rural. Como representante do mandonismo
local, o coronel exercia sua influncia, paternal se possvel e coercitiva se necessrio, sobre as camadas mais pobres da populao,
que vivia frequentemente como agregada nas terras dos poderosos locais. Desse modo, o coronel prestava um servio aos
polticos estaduais nos perodos eleitorais, arregimentando seus eleitores de cabresto, e esperava em troca os favores da poltica
estadual para o seu municpio e sua pessoa. Nessa relao entre o poder privado local exercido pelos coronis e o domnio da
poltica estadual pelas oligarquias, residia a substncia do compromisso coronelista. A obra citada de Victor Nunes Leal
Coronelismo, enxada e voto, 3 ed. So Paulo: Alfa-Omega, 1976, p. 20.
33
A anlise da regulao da apropriao territorial no perodo permite chegar a algumas
concluses: em primeiro lugar, o termo posseiro visa designar no apenas o grande latifundirio
que se apossa de terras, mas tambm ao pequeno lavrador sem recursos que tambm o faz; em
segundo lugar, percebe-se que a existncia do latifndio e de uma estrutura agrria desigual no
uma sobrevivncia do passado, mas, pelo contrrio, foi constantemente recriado desde o sculo
XIX. Ligia Osrio Silva (2008, p. 360) constata com muita lucidez:

A ausncia de uma poltica de apoio ao desenvolvimento da pequena propriedade e as condies


sociais imperantes no campo contriburam para que, na prtica, o Estado republicano exclusse da
propriedade da terra uma parcela importante da populao e assegurasse mo de obra barata e
abundante para outra parcela da populao. Essa constatao refora a idia de que a abundncia de
terras era um dado relativo e socialmente determinado.

Com a excluso de parcela importante da populao da propriedade da terra foi se construindo,


assim, a classe de proprietrios de terras e, relacionados a isto, tambm a consolidao do Estado
nacional selando um pacto que, apesar das mudanas em sua forma, perdura at hoje.

Outra observao conclusiva cabvel que diferentemente de outros pases de grandes dimenses
fsicas, como os EUA, por exemplo, a ocupao territorial brasileira quase no implicou na
expanso de sua fronteira externa (que foi definida, basicamente, no sculo XVIII). Disso
podemos retirar dois apontamentos: por um lado, o Estado nacional que comeou a se formar em
1822 no precisou estender significativamente o territrio poltico sobre o qual exercia sua
soberania, por outro lado, a parte efetivamente ocupada do territrio nacional no passava de uma
estreita faixa que acompanhava o litoral e algumas regies mais ou menos integradas de
ocupao nas regies centrais do pas. A fronteira interna, pois, moveu-se lentamente.

Seguindo pelo traado regulatrio, analisamos o fenmeno do rebaixamento do estatuto jurdico


do Estado frente nova possibilidade de usucapio em terras pblicas, atravessando as tmidas
mudanas regulatrias da Constituio de 1934 e 1937 e culminando na vspera do golpe de
1964.

Com relao ao perodo entre 1930 e 1946, pode-se perceber o agravamento da virulncia dos
interesses conservadores agrrios, que em sntese barraram qualquer proposta de alterao
legislativa ou regulatria substantiva com relao terra, incluindo nesse rol, obviamente,
qualquer proposta de reforma da estrutura agrria. A exceo, talvez, fica para a vitria
34
progressista que instituiu na Constituio de 1946 o instrumento de desapropriao por interesse
social, apesar de ter sido inviabilizada na mesma carta pela exigncia de indenizao prvia e em
dinheiro.

O perodo seguinte que antecede o golpe de 1964 foi marcado pelo acirramento do conflito
poltico entre a presso popular junto com alas progressistas do governo que clamavam por
reformas de base, a inclusa a reforma agrria, contra os poderes institudos. Sabemos, entretanto,
que os setores mais conservadores e retrgrados se saram vencedores a partir de 1964, o que
significou, por conseguinte, na manuteno da regulao da apropriao territorial caracterizada
pela linha de menor esforo, ou seja, na manuteno deste padro de apropriao territorial
descrito. Tendo cumprido o objetivo ao qual nos prestamos aqui, necessrio passar para o
perodo posterior ao golpe de 1964, alvo do prximo captulo.

35
CAPTULO 2. REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL NO
PERODO PS 1964
INTRODUO AO CAPTULO

O ano de 1964 foi um ano marcante na histria brasileira por representar um golpe contra a
incipiente democracia poltica brasileira, foi um movimento contra as reformas sociais e polticas
e uma ao repressiva contra a politizao das organizaes dos trabalhadores (no campo e nas
cidades). Ainda mais, foi um estancamento do amplo e rico debate ideolgico e cultural que
estava em curso no pas (Toledo, 2004, p. 15).

Durante o perodo anterior ao golpe, houve o crescimento do debate e organizao de


movimentos sociais importantes, culminando esta efervescncia na cobrana pelas reformas de
base, onde a reforma da estrutura fundiria concentrada estava inclusa. Esta mobilizao
generalizada e o que ela representava para a elite brasileira despertou a reao dos ltimos contra
a perda de privilgios, quaisquer que fossem. Disto resultou que as classes dominantes
mobilizaram-se, implementando com dureza o golpe militar e a suspenso da democracia por
mais de duas dcadas.

Nosso enfoque recair neste captulo sobre o que este novo contexto representou para a questo
da regulao da ocupao territorial brasileira e mais, se houve mudanas suficientes a ponto de
reverter ou alterar estruturalmente a forma como se deu a apropriao territorial, em comparao
com o padro delineado no captulo anterior. Tendo esta lente de anlise em mente, dividimos o
captulo em sees de acordo com os eventos mais representativos sobre este tema.

Primeiramente explicitaremos a especificidade do Estatuto da Terra como lei progressista dentro


de um contexto conservador de governo militar antidemocrtico e como se deu sua aplicao na
prtica, incluindo a a anlise da forma como se deu a modernizao da agricultura e expanso da
fronteira no perodo que perpassa o governo militar e vai at a reabertura democrtica. Em
seguida analisaremos as discusses da constituinte e o que se plasmou na Constituio de 1988,
assim como sua aplicao e regulamentao.

37
Na seo seguinte faremos uma apreciao das tentativas de alterao da estrutura fundiria e dos
impactos das regulaes fundirias que se desenvolveram durante o perodo de estabilizao do
Plano Real passando at a atualidade.

2.1. O ESTATUTO DA TERRA, MODERNIZAO DOLOROSA16 E CONSTITUIO


DE 1988

Dentro j do regime militar foi promulgada a segunda lei mais marcante no tocante da regulao
da questo agrria brasileira, conhecido como o Estatuto da Terra. Esta seo se dedica a
entender o delicado contexto interno e externo que permitiu a sua apario, alm de analisar a lei
em si e compar-la com a sua regulamentao e aplicao prtica.

Em seguida, trataremos da modernizao da agricultura brasileira sob a regulao primariamente


do Estatuto da Terra para entender de que forma ela impactou na manuteno do padro de
apropriao territorial em pauta nesse estudo.

Por ltimo, tentaremos mostrar como a abertura democrtica e promulgao da Constituio de


1988 afetaram o nosso objeto de estudo, mostrando sua comparao com o Estatuto da Terra e,
de forma similar, como foram (ou deixaram de ser) regulamentados os princpios constantes da
mesma Carta Magna.

2.1.1. Estatuto da Terra

Anlogo ao caso da Lei de Terras de 1850, para compreender melhor a legislao progressista do
Estatuto da Terra em um tempo to sombrio de incio dos governos militares preciso iluminar
brevemente o contexto interno e externo que a antecede.

Aps a Revoluo Cubana de 1959 crescem rapidamente as preocupaes norte-americanas com


novas revolues na Amrica Latina, o que leva a criao de um programa que efetivamente
pressionasse os pases latinos a diminurem as desigualdades econmicas, sociais e polticas
existentes para inibir o mpeto de revolta das massas. A Carta de Punta del Este de 1961

16
O termo modernizao dolorosa foi emprestado de Jos Francisco Graziano da Silva (1982)
em sua obra Modernizao Dolorosa: estrutura agrria, fronteira agrcola e trabalhadores rurais
no Brasil.
38
demonstrava estas preocupaes e propunha em consequncia uma efetiva transformao das
estruturas injustas e dos sistemas de propriedade e uso da terra e falava em substituir o latifndio
e o minifndio por um sistema equitativo de propriedade da terra de modo que a terra seja de
quem a trabalha (Silva, 1997, p. 20), reconhecendo explicitamente que a distribuio de
recursos e da renda era desigual na agricultura latino-americana e admitindo que a soluo destes
problemas exigia mudanas profundas e que a reforma agrria era o instrumento para efetivar
essas mudanas no campo e o mais importante: deixava implcito que a ajuda financeira aos
pases s se daria se as reformas agrrias fossem executadas de acordo com os planos de
desenvolvimento.

Quanto ao contexto interno, vimos no captulo anterior que havia um clima de agitao popular e
efervescncia intelectual ligados em grande parte necessidade de reformas de base, dentre elas a
reforma da estrutura agrria se quanto efervescncia tivemos vrios intelectuais engajados
nisto (Caio Prado Jnior, Alberto Passos Guimares, Celso Furtado, entre outros), pelo lado da
agitao popular tivemos como expoente as Ligas Camponesas no nordeste.

Tendo em vista o contexto externo e interno do incio da dcada de 1960, compreende-se melhor
que o Estatuto da Terra veio como resposta a duas ordens de fatores: de um lado os movimentos
sociais no campo estancados pelo golpe de maro de 1964; e, de outro, presso norte-americana
pela adoo de um programa de reformas para o campo. O Estatuto da Terra representa, ento, a
modernizao rural dentro da lei e da ordem, segundo Silva (1997), desbaratando os
movimentos camponeses organizados atravs da ao repressiva militar e policial durante os anos
de 1960 e 1970 beneficiando, naturalmente, os latifundirios. Desta forma, a violncia da
Ditadura sobre os ncleos camponeses organizados, sobre os trabalhadores agrcolas e seus
representantes encerrou as manifestaes em defesa da reforma agrria, expressas, por exemplo,
pelas Ligas Camponesas, que tiveram seus principais dirigentes mortos, aprisionados ou
expatriados (Montenegro, 2008). No imediato ps-golpe restaram apenas inexpressivas
disposies de pequenos produtores agrcolas, nitidamente prejudicados pela coero do
movimento organizado que favorecera os grandes latifundirios. Afirma-se a confluncia de um
projeto de hegemonia poltica e de suas vias de validao econmica - na truculncia da represso
sobre os trabalhadores rurais organizados defesa dos interesses do agronegcio, percebe-se uma
clara unidade da atuao da burguesia rural brasileira.
39
Sobre a dcada de 1960, Santos (1999, p. 12-13), constata:

O movimento poltico levantava temores quanto ao alcance e significado da reforma agrria no


conjunto das iniciativas do governo Joo Goulart. [] A reforma agrria no Brasil permaneceu (e
permanece) uma questo em aberto. O Estatuto da Terra, discutido por tanto tempo, somente seria
promulgado no final de 1964, pela ditadura militar, e incorporaria alguns elementos do antigo discurso
sobre reforma agrria, ao admitir a desapropriao e redistribuio de terra, especialmente em reas
marcadas pelas tenses sociais. Utilizou-se de razes defendidas pela Carta de Punta del Este e de
argumentos conhecidos para conquistar a burguesia para a reforma agrria. Mas acabou-se por
privilegiar os grandes empreendimentos de colonizao e a expanso da fronteira agrcola, ao mesmo
tempo que aumentava a represso no meio rural em face dos movimentos que recrudesciam (grifos
nossos).

Vale ainda destacar que a denominada contrarreforma agrria deve ser analisada em
perspectiva histrica, de modo que identificamos um simultneo histrico latino-americano, no
qual todos os governos do perodo estavam de forma direta ou indireta atrelados aos militares.
Entretanto, ainda que o movimento especfico de contrarreforma se afirmasse enquanto um dos
imperativos do perodo, o domnio dos latifundirios em toda Amrica Latina se mostrou capaz
de minar por repetidas vezes as tentativas de abertura popular discusso sobre a reforma agrria
e sua implementao - domnio esse que se exercia por meio de incontveis mecanismos, nem
sempre dependentes da presena e conivncia dos militares. Todavia, a concepo de reforma
agrria entretida pelas foras armadas passa inicial e necessariamente pelo distanciamento das
classes afetadas de forma mais direta pela sua concretizao.

primeira vista o governo militar aparenta resolver alguns entraves legislativos para que se
sucedesse a reforma agrria, contornando, por exemplo, o problema do pagamento prvio em
dinheiro com a Emenda Constitucional n 10, de 09/11/1964, que estipulava pagamento prvio
em ttulos especiais da dvida pblica com correo monetria, resgatveis no prazo mximo de
20 anos. O prximo passo foi a promulgao do Estatuto da Terra (Lei n 4.504, de 30/11/1964),
onde se definia regionalmente o latifndio e o minifndio, e estipulava-se dois instrumentos para
realizao da reforma agrria, um curativo e outro preventivo. O instrumento curativo consistia
em eliminar o latifndio improdutivo atravs da desapropriao por interesse social, facilitando o
acesso terra para os pequenos proprietrios. O instrumento preventivo consistia na tributao
progressiva que visava impedir a reaglutinao dos latifndios divididos pela desapropriao
reestabelece-se o Imposto Territorial Rural (ITR) pelos estados, de modo que 80% de sua
arrecadao seriam direcionados aos municpios - o montante arrecadado, somado a 3% do total

40
de recursos federais, deveria ser remetido ao financiamento dos programas de reforma ou
desenvolvimento agrrio.

Tendo visto a formatao original do Estatuto da Terra e o contexto que explica o relativo
progressismo da letra da lei, podemos passar a tratar o desenvolvimento institucional e
regulatrio que se seguiu aps sua criao.

2.1.2. Modernizao dolorosa e o desenvolvimento institucional e regulatrio com relao


terra

No decorrer da atuao do governo militar, houve uma diluio da reforma agrria e uma
inverso de prioridades, sendo que a desapropriao por interesse social foi deixada em segundo
plano com relao atividades de zoneamento, cadastro e tributao ou seja, enquanto no
plano jurdico o governo brasileiro se encontrava munido de todos os instrumentos necessrios
para iniciar a reforma agrria, na prtica no se avanava quase nada nesse sentido (Silva, 1997,
p. 22). Que este avano jurdico no foi acompanhado de aplicao prtica no de se espantar,
visto o arco de alianas que sustentava o regime militar, no qual ocupavam um papel destacado
os latifundirios e seus aliados.

O aparente progresso institucional alcanado pelo Estatuto da Terra, como visto, no contou com
um correlato amparo de implementao real. Tendo em vista a estrutura poltica estabelecida, na
qual os grandes proprietrios de terras detinham fora expressiva, os desdobramentos das
medidas adotadas agiram em direo contrria reforma.

Torna-se perceptvel o quanto importante recuperar o contexto poltico das Amricas naquele
momento, para compreender porque justamente um governo de origens golpistas, responsvel
pelo cerceamento da liberdade de expresso e de organizao das mesmas foras sociais que
lutavam pela reforma agrria, tambm o primeiro da histria brasileira a aprovar uma lei agrria
que coloca como um de seus objetivos maiores a redistribuio da propriedade da terra. Sem essa
ateno intransponvel distncia entre o intuito aparente da legislao e seus resultados
prticos, tal fato assume um carter paradoxal (Silva, 1997, p. 21).

As orientaes centrais na ao do governo militar sobre a questo, deliberadas pelo Ministrio


do Planejamento e pelo Ministrio da Agricultura, se estabeleceram fundamentalmente sobre a

41
tributao progressiva, o surgimento de novos impostos s propriedades valorizadas por
construes governamentais, a aplicao de programas de colonizao e o amparo tcnico-
financeiro. Contudo, o aspecto redistributivo do programa de reforma agrria foi sendo excludo,
conquanto o governo aplicasse as medidas acima definidas. Ocorreu que a mencionada
desapropriao em vista do interesse social abandonou o foco inicial em favor das medidas de
zoneamento, registro e tributao, desfazendo a ordem estabelecida para o mecanismo de
reforma.

Neste perodo que vai da dcada de 1960 at a dcada de 1980 constituiu-se o processo
comumente chamado de modernizao conservadora da agricultura brasileira. At aqui esta foi
analisada em um recorte especfico, qual seja, as alteraes em mbito legal, regulatrio e
institucional em mediao com o padro de apropriao rural, deixando de lado uma vasta gama
de outras anlises possveis17. Entretanto julgou-se necessrio introduzir, de forma breve, a
origem do termo e a acepo que o mesmo tomou no Brasil, assim como uma anlise de como a
manuteno do padro de apropriao territorial foi influenciada, tambm, pelos instrumentos de
poltica agrcola como crdito rural, subsdios e isenes.

O termo modernizao conservadora, cunhado por Moore Junior (1975) na sua anlise da
revoluo burguesa a partir de cima ocorrida na Alemanha e Japo, representa uma
rearticulao onde

algumas sees de uma classe comercial e industrial relativamente fraca apoiaram-se em elementos
dissidentes das classes antigas e dominantes, principalmente recrutados do campo, para levarem a cabo
as alteraes polticas e econmicas necessrias para a sociedade industrial moderna (op. cit., p. 14).

Poulantzas (1986, p. 178, apud Pires et al, 2009, p. 413), em acordo com Moore Junior, explicita
que na modernizao conservadora que se deu tanto na Alemanha quanto no Japo a
caracterstica central que os proprietrios de terras no perderam sua fonte de poder e
conduziram os destinos do Estado Nacional de forma partilhada com a burguesia nascente devido
ao fato desta burguesia no ter envergadura suficiente para conduzir a seu prprio modo, numa
ao aberta, a sua prpria revoluo.

17
Como a inter-relao entre capital financeiro e a agricultura, polticas macroeconmicas e a forma de articulao da agricultura
de exportao, etc, j largamente documentadas por consagrados autores.
42
No caso desta modernizao conservadora, entretanto, o pacto entre o moderno e o tradicional se
d com o objetivo de juntos partilharem da construo de uma sociedade capitalista, mantendo
uma estrutura de dominao em cujo centro de deciso poltica do Estado os interesses da classe
dos proprietrios rurais se mantivessem enraizados. Em outras palavras, o pacto de modernizao
conservadora conduziu estes pases para a formao de uma sociedade industrial moderna, mas
com uma estrutura poltica conservadora (Pires et al, 2009, p. 415).

O trabalho brasileiro inaugural que apresentou o conceito de Alberto Passos Guimares (1977,
p. 3, apud Pires et al, 2009, p. 416):

[] a estratgia de modernizao conservadora, assim chamada, porque, diferentemente da reforma


agrria, tem por objetivo o crescimento da produo agropecuria mediante a revoluo tecnolgica,
sem que seja tocada ou grandemente alterada a estrutura agrria.

A apropriao do termo modernizao conservadora pelos analistas brasileiros, entretanto, se deu


atravs de uma transposio apenas da sua vertente econmica, deixando de lado o aspecto
poltico e histrico do processo, que no caso brasileiro tem diversas discrepncias. Entre elas,
vemos que a relao entre a velha elite dominante e a burguesia nacional no determinou uma
metamorfose profunda nas relaes de poder poltico do Estado nacional, visto que no
implicaram num antagonismo entre a velha e a nova classe dominante. Outro apontamento
necessrio que, dado os diferentes contextos histricos, a especificidade da modernizao
econmica brasileira se deu condicionada inclusive pelos interesses da burguesia internacional
que, somados aos interesses da burguesia nacional e da velha elite rural, acabaram determinando
um padro de capitalismo dependente, unio que amarrada pelos interesses conservadores,
consagrou a lgica da permissividade com os movimentos especulativos, a obliquidade
patrimonialista (Lessa, 1998, p. 260, apud Pires, 2009, p. 418).

Na anlise de como foram recriadas constantemente mecanismos de regulao que


essencialmente garantiam a manuteno do antigo padro de apropriao territorial excludente
necessrio esclarecer rapidamente sobre os instrumentos utilizados na modernizao e como estes
foram usados de forma a corroborar com esta manuteno.

43
Apesar de ter, de fato, aumentado em grande escala a produtividade da agricultura em geral, esta
modernizao18 pode ser entendida pela chave de um pacto agrrio tecnicamente modernizante e
socialmente conservador que na integrao tcnica da indstria com a agricultura, trouxe ainda
para o seu abrigo as oligarquias rurais ligadas grande propriedade rural, que permitiu a criao
e execuo de programas e projetos especiais os quais serviam para garantir ao latifndio a
obteno de inmeras linhas de apoio e defesa na nova estrutura fiscal e financeira do setor rural.
Este conservadorismo pode ser expresso, ainda, na valorizao extraordinria dos patrimnios
territoriais, muito alm do crescimento real da economia no perodo (Delgado, 2005, p. 61).

O perodo de modernizao da agricultura brasileira permeado pela liberalidade da poltica de


crdito rural, pelos enormes incentivos fiscais principalmente desoneraes do imposto de
renda e do imposto territorial rural -, e ainda o volume expressivo de gasto pblico canalizado
execuo das polticas de fomento produtivo e comercial, dirigidos s clientelas das entidades
criadas ou recicladas no perodo19 (SNCR, Polticas de Garantia de Preo, Proagro, Pesquisa e
Extenso Rural, etc.) (Delgado, 2005, p. 59).

No que concerne falta de controle e gesto das terras pblicas, o governo militar utilizou-se dos
dispositivos legais que inibem a propriedade pblica de imveis rurais em carter permanente
(Estatuto da Terra, art. 10, esp. 1) e em toda uma sublegislao que brotou dentro da burocracia
governamental (expressa em portarias, normas, instrues, exposies de motivos e at simples
ordens de servio) para operar uma transferncia macia do patrimnio fundirio da Unio para
particulares, especialmente na regio amaznica (Palmeira, 1989, p. 97). Um dos exemplos deste

18
Para mais detalhes sobre o assunto, o estudo marco de Kageyama et al (1990) traz uma minuciosa anlise de como se deu esta
modernizao da agricultura brasileira, em especial trazendo baila o conceito de Complexos Agroindustriais, ou CAIs, para
explicar a mudana qualitativa que ocorreu ao se internalizar o D1 para a agricultura e as novas relaes de integrao entre
agricultura e indstria (tanto montante quanto jusante), em especial no perodo que se segue a partir dos anos 1970.
Discorrendo sobre o financiamento da agricultura no Brasil, os autores apontam em um trecho das concluses deste mesmo estudo
(op. cit., p. 218) que alm de insustentveis financeiramente, os privilgios acabam beneficiando os maiores produtores,
exatamente aqueles que deles menos necessitam, como o caso dos incentivos fiscais para reflorestamento e os concedidos nas
reas da SUDENE e SUDAM.
19
Na anlise de Palmeira (1989, p. 96-97) fica claro que o volume real do crdito rural cresce na dcada de 1970, mantendo a sua
concentrao nas mos de um pequeno nmero de grandes tomadores. Outro exemplo recai no instrumento de incentivos fiscais
s atividades agropecurias, largamente utilizados pelo governo, cujo caso reportado por Abbott (1988, apud Palmeira, 1989, p.
97) bastante esclarecedor, informando o relatrio que, no Nordeste: o FINOR-agropecurio recebeu US$ 1,3 bilho, de 1975 a
1985, sendo que US$ 1,157 bilho se destinaram pecuria, basicamente para modernizar latifndios a mdia das reas
incentivadas foi de 4.500 hectares, enquanto o tamanho mdio dos estabelecimentos rurais do Nordeste de 37 hectares. Apesar
dos recursos, 60% dos estabelecimentos continuaram como latifndios por explorao, depois de 14 anos, de acordo com o
ltimo levantamento do INCRA. J no Norte, como o caso do FINAM, o mesmo autor chama a ateno para o fato de que
apenas 5% dos projetos no sofreram mudana de controle acionrio e a maior parte foi vendida depois do recebimento dos
recursos do FINAM, o que caracteriza uso especulativo dos incentivos.

44
tipo de arrecadao de terras devolutas ativamente para o domnio da Unio, que abriu margem
neste perodo para a passagem de muitas destas reas para terceiros, com certeza envolve a
federalizao de mais da metade do territrio do estado do Par (Benatti et al, 2013, p. 6) neste
caso especfico o Decreto-Lei n 1164 de 1971, que federalizava as terras devolutas situadas na
faixa de cem quilmetros de largura do eixo de cada uma das rodovias federais j construdas, em
construo ou projetadas na regio. Trataremos mais pormenorizadamente do exemplo paraense
no captulo seguinte.

Um relatrio do INCRA20 expe que dos 126.581.645 hectares adquiridos e incorporados pela
Unio entre 1970 e 1985, 31.829.966 hectares foram transferidos, em carter definitivo, sob a
forma de propriedades rurais, para particulares. Ainda mais, este processo de privatizao das
terras pblicas se dava via licitaes (leiles de terras), com lotes de 500 a 3.000 hectares,
excluindo assim os que no tivessem recursos financeiros suficientes e beneficiando grandes
fazendeiros e grupos econmicos nacionais e estrangeiros interessados na terra como reserva de
valor. Por fim, dos quase 32 milhes de hectares referidos, 12.224.984 hectares foram, por esta
via, incorporados ao estoque de terra da grande propriedade. Salienta-se que, por existirem
apenas dados fragmentrios, no esto includas acima as reas que foram objeto de contratos de
concesso de domnio de terras pblicas, que consistem numa forma especial de regularizao de
reas de at 600 vezes o mdulo de explorao indefinida, forma que pode ser realizada sem
concorrncia no caso de proteger investimentos pioneiros na Amaznia ou atravs de
concorrncia pblica, no caso da concesso de reas destinadas a projetos de colonizao por
empresas particulares (Palmeira, 1989, p. 97-98).

O aparato institucional formado em 1970 pela juno do INDA, GERA e IBRA, deu origem ao
Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), entretanto esta resposta
institucional permaneceu inerte durante o perodo. Em 1978, feito o segundo recadastramento,
com a primeira tentativa de se obter a localizao geogrfica dos imveis por meio de
coordenadas do IBGE, entretanto esses cadastros acabaram por no fornecer as informaes
adequadas da propriedade da terra no Brasil, dado sua incompletude e falta de confiabilidade.

20
De acordo com Palmeira (1989, p. 97), a fonte : Dados gerais sobre a atividade fundiria at 1985, INCRA-DF-DFT, maro de
1986.
45
Assim, v-se quo estril foram estas respostas, representando a dissoluo da reforma agrria
neste perodo de modernizao da agricultura. A questo se manteve esttica nestes termos ao
menos at a dcada de 1980 isto significa dizer que, no mnimo, manteve-se a vista grossa com
relao manuteno da expanso da fronteira interna atravs da privatizao de terras devolutas.
Com a redemocratizao e a concepo da nova Constituio abrem-se as portas para um perodo
onde se oxigenaram as foras sociais submetidas a duas dcadas de domnio autoritrio e ao
processo de modernizao dolorosa da agricultura.

2.1.3. Constituio de 1988 e a reforma agrria em suspenso at 1995

Com a abertura democrtica, a questo agrria volta tona nos debates e colocada como um
dos objetivos nacionais do governo. Em 30 de maio de 1985, no IV Congresso da Confederao
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o presidente e seu ministro lanaram a
proposta do Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA).

Os acontecimentos anteriores promulgao da Constituio de 1988 demonstram o clima de


tenso que pairava no ar, nas palavras de Ferreira et al (2009, p. 162):

[] foram elaboradas 12 verses do plano; o processo foi altamente conflituoso e radicalizado; as


foras conservadoras contrarreforma, por meio da chamada Unio Democrtica Ruralista (UDR),
adquiriram expresso e pregaram o uso da fora para resistir reforma agrria; houve leiles de gado
para aquisio de armas; o nmero de conflitos aumentou; o PNRA, bastante modificado, foi aprovado
em outubro de 1985; os planos regionais de reforma agrria, entregues ao Planalto em janeiro de 1986,
tornaram-se efetivos apenas em maio e sem definio de reas prioritrias estes ltimos planos foram
assinados em duas etapas, sendo que a segunda foi forada por um assassinato de repercusso, a morte
do Padre Jozimo; o ministro e presidente do Incra deixaram seus cargos chegou a ocorrer at
nomeao de um presidente do Incra revelia do ministro e sem compromisso com a reforma; ocorreu
uma sucesso de nomes para o MIRAD [Ministrio da Reforma e Desenvolvimento Agrrio], []; no
final de 1987, o Incra foi extinto e foi criada uma nova autarquia Instituto Jurdico das Terras Rurais
(Inter); na ocasio tambm foram institudas diversas normas legais leis, decretos e decretos-lei ,
criando restries para processos de desapropriao, contrariando o Estatuto da Terra; em outubro de
1988 foi promulgada a nova Constituio [], inclusive postergando a regulamentao da questo
para lei complementar a lei agrria, que veio a ser aprovada muito depois, em 1993 ; por fim, o
MIRAD foi extinto, o Inter desapareceu, o Incra voltou a existir e estabeleceu-se um vazio legal para a
poltica de reforma agrria a espera da regulamentao dos Arts. 186 a 188 da Constituio.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte (doravante ANC), percebia-se claramente a diviso


de interesses, em especial no que tange o foco do presente estudo. A presso para manuteno do
status quo dos grandes proprietrios pode ser captada com mais intensidade na discusso
referente s sees que tratavam da reforma agrria:
46
Especificamente quanto reforma agrria, defendiam como questes essenciais: i) a no vinculao
do cumprimento da funo social de imvel rural com a possibilidade de desapropriao por interesse
social; ii) restries quanto s possibilidades de desapropriao, a serem possveis exclusivamente em
caso de propriedade rural improdutiva e situada em zona prioritria previamente definida; e iii)
possibilidade de desapropriaes somente mediante pagamento de prvia e justa indenizao em
ttulos da dvida agrria para indenizao de terra nua, com clusula de exata correo monetria,
acrescidos dos juros legais. A indenizao de benfeitorias seria sempre feita previamente em dinheiro.
A inteno, posteriormente, era tornar os Ttulos da Dvida Agrria (TDAs) moeda paralela,
assegurando sua aceitao como meio de pagamento de qualquer tributo federal pelo seu portador.
(Ferreira et al, 2009, p. 164)

Quanto objeo frequente de que a desapropriao de latifndios improdutivos por uso social
configura um atentado propriedade privada preciso abrir um pequeno parntese para
esclarecer que esta, na verdade, visa a ampliao deste direito em benefcio dos trabalhadores e
pequenos produtores as reformas s atingem as grandes propriedades porque so consideradas
improdutivas. Ademais, necessrio ter em mente que a maioria das leis de reforma agrria
especificam que a terra no cumpre sua funo social se no usada, ou se usada
inadequadamente de acordo com um critrio de intensidade do uso ou seja, no existem
disposies equivalentes quando as leis se referem concentrao da propriedade ou
explorao dos trabalhadores ou pequenos produtores rurais (Silva, 1997, p. 25).

Aparentemente uma contradio, a consagrada Constituio da Nova Repblica, coroando a


reabertura democrtica, foi, no que tange a questo agrria, mais regressiva que o Estatuto da
Terra. Esta aparente contradio, entretanto, tem a serventia de iluminar quo enraizados e
poderosos so os interesses alinhados em defender qualquer regulao que implique na alterao
do ancestral padro de apropriao territorial brasileiro. necessrio, pois, analisar o desenrolar
da regulamentao das leis propostas na Constituio para ver como os conflitos expem as
foras e tendncias objetivas que mediam a aplicao da lei.

A verso final da Constituio de 1988 aderiu em sua elaborao a noo de interesse social da
propriedade rural proveniente do Estatuto da Terra. Entretanto, essa assimilao no se deu em
vias de desenvolvimento e resoluo da questo, sua m realizao configurou um empecilho
burocrtico ainda maior para o problema. Por importar ao seu contedo aparelhos completos do
Estatuto da Terra, a Constituio de 1988 veio a tornar-se dependente, neste tocante, de medidas
adicionais para execuo da regulamentao. Permeada de mincias regulatrias, que constituam
um engessamento prtico, a nova regulamentao significou um vazio legal que, junto crise,
agudizou as tenses sociais no campo. O maior vazio legal permanece na indefinio normativa
47
do que seria uma propriedade produtiva, ou da definio da propriedade rural que cumpra sua
funo social hoje, quase trs dcadas aps o esforo poltico da Constituinte, este conceito no
est claramente normatizado.

A dificuldade permanente do governo em converter o Imposto Territorial Rural em vlido


montante de recursos e em mecanismo de tributao progressiva, independente da existncia de
uma legislao que contemple esta necessidade, explicita a inabilidade de se consolidar uma
resistncia real aos interesses dos grandes proprietrios. Todavia, se nos atentamos somente para
os desenvolvimentos do debate nesta direo, corremos o risco de esquecer que as ferramentas
fiscais e de regulamentao so per se insuficientes na efetivao da reforma agrria. O
anacronismo fundamental da nova Constituio est colocado na orientao tomada para a
tributao progressiva j presente no Estatuto da Terra, pois no Estatuto o Imposto Territorial
Rural deveria ser a forma de impedir o ressurgimento do latifndio improdutivo [sem] elev-lo
condio de meio privilegiado na transformao da estrutura agrria (Silva, 1997).

No perodo que vai de 1990 at 1994, compreende-se o governo Collor, seu impeachment e o
governo Itamar Franco. Perodo conturbado desde seu incio at seu impeachment, durante o
governo Collor no h muito que se falar em termos de mudanas regulatrias da apropriao
territorial: basicamente no se fez nada. Entretanto importante notar especificamente o que no
se fez para que possamos buscar compreender o perodo. Alguns dos pontos de paralisao ou
entrave so os que seguem: o programa de assentamentos foi paralisado, os assentamentos
existentes foram abandonados sua prpria merc, o Incra foi desarticulado, as desapropriaes
ficaram bloqueadas pela falta de regulamentao dos dispositivos constitucionais. Alm disso, o
conflito no campo sofreu agravamento e cresceu o nmero de ocupaes de terras improdutivas
ao mesmo tempo em que se d um movimento de forte represso por parte do Estado aos
movimentos sociais no perodo.

A partir da, segue-se o governo Itamar Franco, que realizou algumas medidas em relao
regulao fundiria que, apesar de fracas, servem para contrastar com o marasmo neste ponto no
perodo 1990-1992. Em primeiro lugar, o governo tentou reavivar o Incra dado o visvel
agravamento da questo social no campo manifesta inclusive no aumento do nmero de
ocupaes e conflitos. O novo presidente do Incra, Oswaldo Russo de Azevedo, assume

48
procurando reativar o processo de assentamento, tentando driblar a politizao poltico-ideolgica
montada pelas foras polticas conservadoras capitaneadas pelos ruralistas o resultado foi
tmido, como das vezes anteriores quando se tentou tocar na questo da terra, e resultou no
assentamento de 23 mil famlias com implantao de 152 projetos (Ferreira et al, 2009, p. 183).

preciso notar, mesmo que no seja o foco primrio deste trabalho, que fazendo o balano geral
deste perodo os programas da Reforma Agrria at 1994 foram inexpressivos frente dimenso
do problema agrrio brasileiro, em que milhes de famlias sem ou com pouca terra viviam em
condies que oscilavam entre a pobreza e a misria. Entre 1990 e 1994, em torno de 160 mil
famlias foram beneficiadas (Schneider et al., 2010, apud Reydon et al, 2012, p. 15).

Por fim, so oportunas as palavras da concluso de Ferreira et al (2009, p. 219):

Fazer de conta ou brincar de fazer poltica, com prticas performticas de ilusionismo, recorrente na
histria da poltica agrria brasileira. A Constituio de 1988 no pode ser considerada cidad para os
pobres do campo. Para todo o perodo examinado [1950 at 2008] no h alterao significativa do
nosso nefando padro histrico de concentrao de terras e poder no meio rural.

2.2. DAS REFORMAS NEOLIBERAIS AO PERODO ATUAL

O perodo desta seo compreende alguns acontecimentos de natureza controversa, em especial


no que toca poltica de assentamentos em meio ao perodo neoliberal e no perodo dos
mandatos de presidentes do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, tentaremos mostrar como,
mais uma vez, os efeitos objetivos e reais supostos na lei acabaram se retorcendo na mediao da
sua aplicao na prtica, tornando seus efeitos na alterao da forma de ocupao do territrio
relativamente incuos.

2.2.1. O Plano Real, mercado de terras e a Reforma Agrria no governo FHC

Logo em sua abertura, o governo de Fernando Henrique Cardoso (doravante FHC) expressou o
reconhecimento dos problemas agrrios que as polticas pblicas no foram capazes de
reverter, se comprometendo a enfrentar esta questo, com vontade poltica e deciso, dentro
dos princpios da lei e da ordem, objetivando adotar uma poltica de assentamentos com metas
de quarenta mil famlias no primeiro ano; sessenta mil, no segundo ano; oitenta mil, no terceiro
e cem mil no quarto ano (Mudanas, 1994, p. A14, apud Ferreira et al, 2009, p. 184). Um
49
discurso no mnimo contraditrio se se propunha quebrar o padro de apropriao territorial to
caracterstico por ser excludente, visto a falta de instrumentos em mbito legal, regulatrio e
institucional para a realizao das metas de reforma agrria, quanto mais para a realizao de
uma mudana agrria estrutural.

Se de incio tentou-se deixar de lado as presses dos movimentos sociais, em especial o MST,
claramente em ascenso, por outro lado o acirramento das tenses no campo, culminando com o
massacre em Eldorado dos Carajs, foi esvaziando a possibilidade da continuao desta tratativa.
Neste contexto foi criado o Ministrio Extraordinrio de Poltica Fundiria, ao mesmo tempo em
que corria na grande mdia uma campanha crtica ao MST, visando sua deslegitimao. A
tentativa de no abertura para dilogo teve fim em 1997, com a Marcha para Braslia, encabeada
pelo MST.

A escalada de tenso entre os movimentos sociais ligados terra culmina com a aparente abertura
para negociao por parte do governo e, logo em seguida, a aprovao da Medida Provisria
(MP) n 1.577 e o Decreto n 2.550, o primeiro com medidas que facilitariam a implementao da
poltica fundiria e o segundo representando o endurecimento com o movimento dos sem-terra21.
Este evento gerou reao do MST, agravando o conflito.

21
O resumo da MP 1.577/97 e do Decreto 2.550, por Ferreira et al (2009, p. 187):
Medida Provisria n o 1.577 introduz as seguintes modificaes:
1. Torna impossvel o proprietrio ou seu preposto no receber a comunicao de vistoria: ela ser publicada em jornal de
grande circulao na capital do Estado em que se encontre o imvel rural e no mais entregue pessoalmente, o que acelera a
Reforma Agrria.
2. Acaba com a chamada farra dos juros compensatrios de 12% ao ano sobre o valor da terra improdutiva o que
gerava superindenizaes e acarretava prejuzos de milhes de reais ao errio. o desestmulo indstria das desapropriaes.
3. Rev os critrios da avaliao das terras improdutivas, tornando-os compatveis com os preos de mercado
barateando, assim, a Reforma Agrria.
4. Amplia para quatro anos a possibilidade de reviso judicial das superintendncias ou indenizaes fraudulentas.
5. Responsabiliza, civil, penal e administrativamente o engenheiro agrnomo que fizer a avaliao do imvel a ser
desapropriado, caso se comprove superavaliao ou fraude na identificao das informaes.
6. Autoriza a unio, Estados, Distrito Federal, autarquias e fundaes institudas pelo poder pblico a moverem ao
rescisria, a qualquer tempo, quando comprovado que a indenizao for flagrantemente superior ao preo de mercado do imvel
desapropriado.
7. Delega aos Estados, mediante convnio, o cadastramento, vistoria e avaliao de imveis rurais, desde que sejam
institudos rgos colegiados com a participao da sociedade civil. mais um passo em direo descentralizao da Reforma
Agrria.
8. Cria a possibilidade de instituies de Comisses Agrrias nos Estados.
9. Impossibilita a maquilagem ou a fragmentao de imveis, depois de realizada a vistoria.
O Decreto n 2.250 determina:
As entidades estaduais representativas de trabalhadores rurais e agricultores podero indicar, ao rgo fundirio federal (Incra) ou
ao rgo colegiado (previsto na MP n o 1.557), reas passveis de desapropriao para reforma agrria e estabelece que o rgo
fundirio ter um prazo de 120 dias para proceder a vistoria, sob responsabilidade administrativa; a realizao da vistoria ser
comunicada entidade representativa dos trabalhadores rurais e das classes produtoras, a fim de que cada entidade possa indicar
50
Um comentrio pertinente que ilustra a resilincia dos interesses conservadores em aceitar uma
poltica de assentamentos mais completa tendo em vista que mesmo se fosse completa no
resolveria o problema agrrio e dificilmente reverteria o padro de apropriao territorial
excludente -, expressa nas palavras de Tavares (1997):

A reforma agrria no se destina a aplacar o potencial de conflito embutido na atual conjuntura do


agro, mas sim a desfazer a condio objetiva de excluso e marginalizao da maioria da populao
rural produzida sobretudo nas ltimas trs dcadas pelo processo de transformao capitalista
acelerada da agricultura brasileira. Marcado pela expanso desordenada da fronteira agrcola, sem
ruptura do inquo padro fundirio, os resultados deste processo so conhecidos: ao mesmo tempo que
expandiu extraordinariamente a produtividade e a capacidade produtiva agrcola em algumas regies
do pas, aumentou notavelmente a excluso social a par com a concentrao econmica e fundiria.
[]
O pensamento agrrio oficial atribui ao financiamento um obstculo central ao ritmo da reforma. O
Governo estaria cumprindo as metas traadas, mas no teria recursos para fazer mais. [] Tambm
aqui o pensamento oficial falacioso. [] Com uma estrutura de custos mais adequada e privilegiando
aquilo que a essncia da reforma agrria - a redistribuio da terra - seria possvel duplicar ou
triplicar o nmero de famlias assentadas anualmente sem provocar nenhuma catstrofe nas finanas
pblicas. Os gastos anuais representariam provavelmente, uma quantia inferior s despesas
correspondentes a um ou dois meses de juros da dvida pblica. Portanto, o problema no a falta de
recursos, mas a escassa prioridade que o presidente parece atribuir Reforma, que v como coisa do
passado, em cuja necessidade realmente no cr, salvo como atenuadora de conflito, e cuja importncia
considera absolutamente marginal do ponto de vista dos interesses centrais que seu governo representa.
Este divrcio entre os interesses populares e as prioridades do Governo explica porque o presidente
afirmou (antes da chegada da marcha dos sem-terra a Braslia) que o problema da terra, to antigo
quanto o pas, no poder ser resolvido por um governo. Talvez por uma gerao. Obviamente
ningum pretende que os trs ou quatro milhes de famlias sem-terra sejam assentados em um ou dois
anos; mas claro que o ritmo estabelecido pelo governo totalmente insuficiente, pois requereria
quase meio sculo para absorver a atual populao dos sem-terra, na hiptese, remota, que esta
conseguisse sobreviver a to longa espera.

Dentro do mbito legal, houve ainda vrias alteraes durante o primeiro mandato de FHC. A
promulgao de lei sobre um novo Imposto Territorial Rural (ITR), a Lei n 9.393 de 1996,
consistiu em incentivar o uso social da terra, penalizando o latifndio improdutivo, que deveria
ser obrigado a pagar 20% do valor da sua propriedade a cada ano, significando que o proprietrio
que no usar a terra produtivamente a perderia, em termos financeiros, em 5 anos. Entretanto, h
de se frisar que o ITR uma proposta correta e adequada em teoria, mas historicamente nunca foi
aplicado de acordo com as intenes iniciais das leis. (Reydon et al, 2006b, p. 44)

um representante tcnico para acompanhar o levantamento de dados e informaes; o proprietrio do imvel rural ter um prazo
de 15 dias, aps o recebimento do laudo de vistoria, para exercer o direito de manifestao; o imvel invadido no ser vistoriado
at ser desocupado.

51
A criao do Novo Cadastro Rural se deu como tentativa de modernizar o antigo Cadastro Rural
atravs do Incra. Este novo cadastro pde identificar, por exemplo, mais de 100 milhes de
hectares de terras sob suspeita de serem griladas. De acordo com Reydon et al (op. cit., p.45), esta
interveno visando transparncia vem sendo mais eficiente que o processo de desapropriao
tradicional, no sentido de arrecadar terras.

Estabeleceu-se tambm, pela lei complementar n 88 de 199622, o chamado Rito Sumrio que
visava a reduo do tempo entre a desapropriao e a emisso da posse de glebas desapropriadas
para a reforma agrria, convocando as instituies de justia a dar um parecer definitivo em prazo
de 48 horas perante solicitao de desapropriao de imvel requerida pelo Incra.

O governo tambm lanou mo da Medida Provisria n 1.703-17 de 199823, que revia os


critrios de avaliao da terra a ser desapropriada tendo em vista reduzir as indenizaes
superestimadas que dificultavam em demasia a reforma agrria (farra dos juros).

Alm destas medidas o governo criou, atravs da Lei Complementar n 93 de 1998 24, o Fundo de
Terras e da Reforma Agrria (Banco da Terra), visando disponibilizar financiamento a longo
prazo para os trabalhadores rurais pobres com pouca ou nenhuma terra. Este programa no foi
muito funcional no seu perodo de vigncia (1998-2002), visto que no financiamento os valores
cobrados em prestaes ficavam muito alm da capacidade de pagamento de um agricultor
recm-estabelecido numa propriedade ressalta-se tambm que a maior parte dos beneficiados
pelo programa localizou-se no sul e, especificamente, no estado de Santa Catarina (Camargo et
al, 2005).

Uma boa sntese destas medidas pode ser encontrada no excerto de Leite e Medeiros (2004, p.
363):

A nova legislao criou instrumentos que visavam a acelerar a obteno de terras para a realizao de
assentamentos rurais. Entre eles, destacam-se: agilizao do rito sumrio, permitindo que a imisso na
posse da terra se fizesse no mximo em 48 horas aps o ajuizamento da ao de desapropriao;
vistoria das terras com acompanhamento pelas entidades sindicais patronais (Confederao Nacional
da Agricultura) e de trabalhadores (Contag), excluindo-se o MST desse processo; impedimento da
fragmentao dos imveis depois de realizada a comunicao de vistoria, para que no ocorresse o
expediente, comumente utilizado pelos proprietrios ameaados por desapropriao, de dividir a

22
Mais informaes em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp88.htm
23
Mais informaes em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas/1703-17.htm
24
Mais informaes em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp93.htm
52
propriedade em vrias titularidades, de forma a torn-la no passvel de interveno; comunicao de
vistoria no s por meio de carta, mas tambm com publicao em jornal de grande circulao na
unidade da federao onde se encontrava o imvel, de forma a impedir que o proprietrio alegasse
desconhecimento da ordem; reconhecimento, como projeto tcnico de explorao, somente daquele
aprovado por rgo competente, pelo menos seis meses antes da vistoria, de forma a evitar que a
desapropriao fosse impedida pela formulao, de ltima hora, de um projeto de aproveitamento das
terras; reduo, no caso das desapropriaes, dos juros compensatrios de 12% para 6% ao ano,
incidentes sobre o valor da diferena entre o preo da avaliao e o arbitrado judicialmente; prazo de
dois anos para que todos os proprietrios ratificassem, junto ao Instituto Nacional de Colonizao e
Reforma Agrria Incra, as concesses e alienaes de terras feitas pelos estados nas faixas de
fronteira. Sem tal aprovao, a Unio declararia nulo o ttulo e retomaria o imvel, disponibilizando-o
para fins de reforma agrria

Se desta forma o governo pretendia acelerar o processo de reforma agrria e diminuir os custos
da mesma, o mesmo teve ainda outras vias de ao, visando reprimir as ocupaes de terras
promovidas pelos movimentos sociais e encaminhar uma nova proposta de reforma agrria,
bancada em boa parte por financiamentos concedidos pelo Banco Mundial, o chamado de
Modelo de reforma agrria de mercado. Estas parecem condizentes, em primeiro lugar, com o
contexto de aumento da violncia no campo, rearticulao da extrema-direita agrria (UDR e
milcias privadas), acionamento da Polcia Federal para monitorar e coibir as aes dos
movimentos sociais e recrudescimento da violncia policial, conforme Pereira (2004, p. 122). Em
segundo lugar, a poltica no mbito da reforma agrria do governo tambm estava vinculada com
o amplo processo de reforma liberal do Estado, que foi sentido nas tentativas de descentralizao,
que representou uma efetiva desfederalizao e desresponsabilizao do Incra na conduo da
reforma agrria, passando para os governos estaduais a competncia de exercer as funes
centrais de todo o processo, como a definio de diretrizes bsicas da poltica de reforma agrria
em nvel estadual e a instruo do processo de desapropriao e obteno de terras (op. cit., p.
123).

Ainda nesse nterim, importante apontar sem entrar em detalhes que com a estabilizao do
Real e fim da grande inflao acelerada o preo das terras em geral despencou no Brasil, devido
sua utilizao como hedge contra inflao nos perodos anteriores, conforme bem descrito em
Reydon et al (2006c). Isto significa que o contexto geral privilegiava o tipo de reforma agrria
por via de compra de terras que estavam com seu preo real num ponto historicamente baixo.

Partindo para o incio do segundo mandato de FHC, o governo anuncia a sua Nova Reforma
Agrria, com uma mudana drstica na forma de obteno das terras, se comparado com o

53
perodo anterior. A ideia da Nova Reforma Agrria era eludir o ponto central e extremamente
custoso frente aos interesses dos grandes proprietrios - representado pela questo do uso social
da propriedade da terra e o mecanismo de expropriao -, mudando rumos em direo aquisio
de terras para distribuio por via do mercado, atravs do Banco da Terra e leiles de terras.
Junta-se a isto o contexto externo fortemente recessivo que resulta em cortes em diversas reas,
inclusive a fundiria.

Na tentativa de sustentar a nova poltica o poder pblico afirmava, poca, que no mandato
anterior havia sido quebrada a espinha dorsal do latifndio e que a queda ocorrida no preo da
terra evidenciaria este fato (Ferreira et al, 2009, p. 190).

Plata et al (2006, p. 25) trata das reformas agrrias distributivas realizadas na Amrica Latina sob
o ngulo do funcionamento irregular dos mercados de terras. No estudo, chama ateno ao fato
que estas resultaram num aumento de liquidez das terras e incentivou a dinmica dos seus
mercados, propiciando sua reconcentrao devido s falhas na regulao destes mercados. Alm
disso, complementa que mantm-se a barreira democratizao via mercado pela manuteno de
elevados preos da terra, pela alta concentrao fundiria e pela elevao drstica dos custos de
desapropriao, encarecendo o processo de reforma agrria. Assim esclarece que, sendo a terra
uma mercadoria, sem dar merecida ateno formao e regulao da dinmica dos mercados de
terra uma reforma agrria redistributiva sem instrumentos complementares atuando em paralelo
pode ter efeitos muito pouco significantes e levar a reconcentrao fundiria em momento
posterior.

A atuao do governo no segundo mandato FHC, entretanto, parece no ter levado em conta esta
anlise estrutural advinda da formao e manuteno do padro de apropriao territorial
brasileiro, deslocando a forma de ao de uma reforma agrria como tentativa de romper este
mesmo padro para uma que representava uma poltica social compensatria, deslocada da
rbita econmica vigente e desprovida da capacidade de transformar a estrutura da propriedade
da terra (Pereira, 2004, p. 138).

A deciso do governo de implementar o Banco da Terra com suporte do Banco Mundial, apoiado
no incipiente Cdula da Terra como projeto-piloto, foi bastante discutida poca, e no contou
com o apoio dos movimentos sociais e rgos representativos dos trabalhadores rurais, resultando
54
numa dicotomizao com o governo e suas reformas liberais, com o apoio do Banco Mundial, de
um lado e os movimentos sociais e suas entidades, de outro. Por fim, chegou-se num impasse que
levou o Banco Mundial a voltar atrs e no financiar o Banco da Terra25.

Para resolver este impasse, que era prejudicial para todos os envolvidos, foi aberto um canal de
dilogo entre a Contag e o Banco Mundial o MST e grande parte das entidades do Frum
Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo recusaram-se a participar -, de onde surgiu
uma nova proposta que foi aceita pela Contag, esta se materializaria na criao do programa de
Crdito Fundirio de Combate Pobreza Rural - em paralelo ao Banco da Terra, o qual no teve
apoio de nenhuma entidade participante do citado Frum.

Fazendo uma considerao conjunta sobre as falhas dos programas de reforma agrria via
mercado, incluindo a o programa Cdula da Terra, Banco da Terra e Crdito Fundirio e
Combate Pobreza Rural, Pereira (2004, p.239-240) sintetiza:

[] os resultados da implementao dos programas orientados pelo MRAM contradizem as


expectativas a eles atribudas, uma vez que: a) os preos pagos pela terra no foram to baratos como
prematuramente havia sido declarado, apesar do pagamento vista, da estabilizao monetria e de
mercados de terra deprimidos; e a m qualidade das terras adquiridas em parcela significativa dos
casos s vem a ressaltar esse fato, de modo que vlido afirmar que os programas implementados se
constituram num prmio efetivo aos proprietrios que por meio deles venderam propriedades; b)
diversas evidncias sugerem que a execuo dos programas provocou o aumento do preo da terra em
muitas localidades, ainda que tal efeito no tenha sido homogneo; c) majoritariamente, os projetos
produtivos so dominados pela agricultura de subsistncia, e no por uma agricultura comercial e
diversificada, como o MRAM prescreve; d) a cota de emprstimo/doao se revelou insuficiente para
alavancar a produo agrcola, de sorte que os muturios dos programas implementados permanecem
reivindicando uma poltica pblica ativa de crdito rural; e) no ocorreu o acesso massivo aos
mercados de crdito privados para investimentos na produo, de modo que a precariedade do acesso
ao crdito foi e permanece sendo um dos principais gargalos do MRAM; f) no foram implementadas

25
Conforme Francisco Urbano, presidente da CONTAG at o final de 1997, em audincia pblica no Senado:
Os tcnicos do Banco Mundial foram Contag e disseram-me que o governo brasileiro tem uma legislao muito ruim para essa
reforma agrria e no tem coragem e fora poltica para fazer isso, porque sua base de aliana muito conservadora e a misria no
campo cresce a cada dia. Disseram, ainda, que desejavam oferecer um programa para ajud-la e apresentaram-me essa proposta.
Eu lhes disse que deveria ser um programa complementar reforma agrria (...) [Disse] ainda que, se fosse nas reas de
minifundirios que no podem ser desapropriadas por serem pequenas , ou em reas no passveis de desapropriao,
poderamos examin-la como elemento complementar. Disse-lhes mais: que no poderia ser nos estados do Maranho, da Bahia e
de Minas Gerais. Por qu? Neles existem um enorme territrio de latifndios improdutivos, e o mecanismo correto a ser
empregado seria a desapropriao. Contudo, poderia ser feito em regies concentradas de minifundirios, ou em outros estados do
Nordeste que tm enormes quantidades de terra que, legalmente, no podem ser desapropriadas, como as da Zona da Mata e as
terras dos falidos fornecedores de cana com seus vrios conflitos e mdulos fiscais. O que o Banco e o governo fizeram? Pegaram
Maranho, Bahia e Minas Gerais. O Executivo nos diz que um programa-piloto e, antes de dar certo o que eu no acredito j
lana um outro [o Banco da Terra]. Diz mais: que um programa-piloto e transparente, objetivando a participao dos
trabalhadores. Todavia, ele prprio decidiu sobre os Estados, sobre os manuais e o tipo de conselho. No foram ouvidos os
trabalhadores. Sei apenas que, at agora, nenhuma de nossas federaes trabalhistas participou da discusso. E nos disseram que
haver transparncia e participao efetiva dos trabalhadores. Erra o Executivo em ignorar nossas divergncias, pois ele as
conhece desde o incio. (Senado, 1997, apud Pereira, 2004, p. 141)
55
paralelamente ao MRAM nem a tributao progressiva, nem a titulao sistemtica, como tambm no
avanaram os processos de modernizao dos sistemas de registro e de cadastro de terras, nem as
medidas para se baixar os custos de transao; g) ocorreu enorme dficit de participao social em
diversos (em alguns casos, em todos) componentes e fases dos programas implementados; h) os
beneficirios tiveram poder desigual na negociao com os proprietrios de terra, fato que, por si s,
demonstra que a formulao do MRAM no leva em conta as relaes realmente existentes de
explorao econmica, dominao poltica e prestgio social inscritas no monoplio da propriedade da
terra em pases altamente desiguais; i) ficou evidenciado que so os agentes do Estado que
efetivamente protagonizam todo o processo de compra e venda (De Jamvry & Sadoulet, 2000: p. 19);
j) no ocorreu um processo de auto-seleo dos beneficirios, pois, de diferentes maneiras, houve
influncia ou tutela de foras externas, como agentes governamentais, proprietrios, polticos locais,
ONGs, etc. (Borras, 2001 e 2003; Garoz & Gauster, 2003; Tilley, 2002); l) em lugar algum houve um
efetivo campo de jogo nivelado, i.e., uma eliminao substancial dos privilgios estatais conferidos a
grandes proprietrios de terra e produtores agrcolas.

Com relao ao cadastro e titulao de posseiros, a principal contribuio se deu com a criao da
Lei 10.267/2001 que prope um reordenamento fundirio por meio do Cadastramento Nacional
de Imveis Rurais (CNIR) e est regulamentada pelo Decreto n 4.449 (30/10/2002). Ela decorre
das atividades anteriores do INCRA particularmente as notificaes expedidas pelas portarias: a)
n 558/1999 visa ao recadastramento utilizando notificaes para imveis com rea total igual ou
superior a 10.000 ha em todo o pas; e b) n 596/2001 visa ao recadastramento tambm
utilizando notificaes para imveis com rea total maior ou igual a 5.000 ha e at 9.999,9 ha, em
68 municpios.

O carter geral da Lei 10.267 que em qualquer alterao que se opere no registro do imvel
junto ao cartrio (alienao, venda, arrendamento, hipoteca) obriga o cartrio enviar uma planta
georreferenciada da propriedade. Esta constituiu um dos pontos altos com relao ao tema tratado
aqui visto que foi bastante progressista em sua letra, cobrando uma acelerao do processo de
construo de um bando de dados fundirio georreferenciado lembremos: uma condio
necessria, mas no suficiente para a identificao e demarcao das terras devolutas na
legislao atual. com base nesta informao que o INCRA pretendia atualizar o cadastro do
levantamento da situao dos imveis rurais. A partir desse levantamento seria possvel resolver
os problemas com as titularidades das terras rurais descritos anteriormente e reaver as terras
devolutas para propor polticas fundirias, entre estas a reforma agrria. Os cartrios tm,
segundo informaes disponveis, obrigado os grandes proprietrios a apresentarem suas plantas
atualizadas e os tem disponibilizado ao INCRA26. O INCRA no vem processando estas

26
As regras, particularmente do tipo de equipamento para georreferenciamento, tornam o sistema invivel pelo seu custo. Reydon
(2010, p. 62) estima que o cadastramento de toda a rea agrcola brasileira com os requisitos especificados na Instruo
56
informaes assim como no tem cadastrado os imveis at 400 ha, que seria sua obrigao,
provavelmente em funo de seus elevados custos. (Reydon et al, 2012)

Portanto, no que se refere regularizao fundiria, mais uma vez foi elaborada uma legislao
da mais elevada importncia e com proposies bastante interessantes, mas no se criou as
condies para sua implementao, provavelmente porque os ltimos governos tinham interesses
mais ligados aos projetos de reforma agrria.

2.2.2. Governo Lula e poltica agrria

O incio do governo Lula foi pautado, no mbito de poltica agrria, pela discusso do Plano
Nacional de Reforma Agrria, onde se travou embates para a definio de uma poltica agrria
com grandes expectativas de mudanas.

A primeira proposta, chamada de PNRA I, tinha como objetivo uma alterao profunda que
impactasse em uma mudana estrutural no campo brasileiro, seguida de um levantamento que
apontava para a viabilidade de implementao desta reforma, ao menos no que tange a
oramentos e reas disponveis:

Em poucas palavras, a proposta 33 provou, com base em estudos, que h terra disponvel para a
reforma tanto improdutiva quanto devoluta; e que existe pblico para a reforma, isto , demanda por
terra a demanda potencial estimada correspondeu a seis milhes de famlias e a demanda
emergencial, composta por famlias acampadas, atingiu aproximadamente 180 mil famlias. Foi
estabelecida a meta de assentamento de um milho de famlias a serem beneficiadas no perodo 2004-
2007. As famlias acampadas foram consideradas como beneficirias preferenciais. As anlises
dedicadas avaliao dos gastos necessrios para atingir esta meta mostraram que o custo da reforma
seria perfeitamente vivel. A estratgia proposta para implementao do plano deu nfase ao
pblica com base em reas reformadas. Esta forma de intervir visava propiciar eficcia s diversas
polticas pblicas necessrias para implantao da reforma e iniciar real processo de transformao
socioeconmica no meio rural de nosso pas. (Ferreira et al, 2009, p. 196)

No entanto, o governo no aceitou a proposta no PNRA I e anunciou a adoo de outra proposta,


chamada de PNRA II, de menor envergadura. As metas estabelecidas para o perodo 2003-2006
foram as seguintes: i) assentamento de 400 mil novas famlias; ii) regularizao de posse de 500
mil famlias; iii) crdito fundirio para 127,5 mil famlias; iv) recuperao da capacidade

Normativa Incra n 9, de 2002, seja entre R$ 2,27 trilhes e 3,47 trilhes. O principal motivo para este alto custo a
impossibilidade de utilizao de GPS do tipo 1 e 2, conhecidos como GPS de navegao os tipos de GPS requeridos na norma
devem ter uma preciso de 0,5 m, o que inviabilizaria a massificao do processo devido ao elevado custo dos aparelhos com esta
preciso.
57
produtiva e viabilidade econmica dos atuais assentamentos; v) cadastramento georreferenciado
do territrio nacional; e vi) regularizao de 2,2 milhes de imveis rurais. (Ministrio do
Desenvolvimento Agrrio, 2004, p. 38)

No final de 2005, entretanto, constata-se que estas metas ou no foram cumpridas ou foram
cumpridas parcialmente. Este fato causou descontentamento por parte dos movimentos sociais do
campo, que voltaram a mobilizar-se para pressionar o governo, entregando uma carta
emblemtica que atestava para o no cumprimento do acordado no PNRA II27.

Em maro de 2006 seis organizaes dos trabalhadores manifestaram-se com relao ao


desempenho da poltica agrria no primeiro governo Lula. O documento emitido apontou 39
medidas de poltica agrria e a avaliao delas resultou no seguinte: dez foram consideradas
avanos e acmulos para a agricultura camponesa e reforma agrria e 29 derrotas para os
camponeses. As avaliadas positivamente excluda a mudana de postura do governo federal
em direo ao dilogo ao invs de represso com relao aos movimentos sociais do campo -
eram de carter pontual, como seguro rural, PRONAF, Programa Luz para Todos, construo e
melhoria de casas, Pronera, assistncia tcnica, etc.

Uma grande inovao nos programas de democratizao das terras foi Programa Nacional de
Crdito Fundirio (PNCF) que foi criado em novembro de 2003 por meio da fuso de outros
programas existentes de mbito semelhante que vinham sendo implementados e modificados
desde 1997. O PNCF tem duas modalidades principais: Combate Pobreza Rural (CPR), dirigido
aos trabalhadores rurais mais pobres; e Consolidao da Agricultura Familiar (CAF), focalizado
nos agricultores familiares sem-terra ou com pouca terra. Oferece financiamentos de acordo com
a necessidade de cada comunidade ou associao, sejam eles para aquisio de terras,
investimentos em projetos comunitrios, capacitao, assessoria ou apoio tcnico. Este programa
tem viabilizado acesso terra de um modo menos oneroso ao Estado que a reforma agrria
tradicional, pelos custos judiciais desta28, mas h evidncias de que os beneficirios tm
dificuldades para arcar com o pagamento da terra (Reydon et al, 2012).

27
A carta pode ser lida na ntegra aqui: www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1855
28
Reydon e Plata (2000) mostram com base em estudos para os estados do Paran, Santa Catarina, Mato Grosso e Rio Grande do
Norte que o que eleva significativamente as indenizaes so os tramites judiciais. As avaliaes das propriedades desapropriadas
na esfera administrativa atingem valores prximos aos de mercado.
58
No que tange as alteraes em mbito legal e regulatrio, pode-se elencar algumas medidas que
tem ou poderiam ter impactos no processo de apropriao territorial. De toda forma, necessrio
analis-los para ver, na interao entre a letra da lei e a prtica, quais as nuances, deformaes e
omisses ocorreram para que pudesse seguir sem alterao, ou melhor, se reimpor
constantemente o padro de apropriao territorial brasileiro.

A Medida Provisria n 422, de julho de 2008, representa uma das aberturas legais pelas quais
reforada a apropriao territorial desregulada, neste caso na Amaznia. Esta Medida Provisria
permite ao Incra titular diretamente, sem licitao, propriedades na Amaznia Legal com at 15
mdulos rurais ou 1.500 hectares29. Desta forma, d-se regulao paralela para a privatizao de
terras devolutas, agora na atual fronteira de apropriao destas terras pblicas, a regio
amaznica. A problemtica envolvida com esta medida a destinao das terras devolutas, visto
que poderiam, ao invs de passarem quase que livremente para as mos de grandes posseiros, ser
destinadas reforma agrria, demarcao de terras indgenas e quilombolas e unidades de
conservao ambiental.

Outra alterao polmica a ser analisada em mbito legal consiste na MP n 458/2009 30, que
consistiu basicamente na facilitao da regularizao da posse em terras devolutas na regio
amaznica. O objetivo inicial da Medida Provisria consistiu na facilitao da regularizao
fundiria na Amaznia Legal, teoricamente abrindo a possibilidade para que os posseiros
formalizem judicialmente seus direitos a essas propriedades. Se, por um lado, de fato se facilita a
regularizao de pequenos posseiros, visto que propriedades de at 100 hectares seriam doadas
aos posseiros e propriedades de at 400 hectares exigirem um pagamento simblico, de outro
lado a restrio de cobrar preo de mercado para as terras de at 1,5 mil hectares muito fraca
comparada com os outros pontos da mesma medida provisria, como veremos adiante.

Trs pontos polmicos valem a pena serem mencionados: 1) um dos pontos previa a transferncia
da posse no apenas a pessoas fsicas, mas tambm a empresas (ponto vetado pelo presidente); 2)
previa-se tambm a ampliao do direito de posse a pessoas que no vivem na propriedade (ponto
vetado pelo presidente); 3) imveis acima de 400 hectares podem ser vendidos depois de 3 anos

29
A MP n 422 regulamenta especificamente esta passagem da lei n 8.666 de 1993:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm#art172bii
30
A lei na ntegra: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/632500.pdf
59
no texto original mantinha-se o prazo de 10 anos, para evitar-se a especulao com terras (ponto
mantido pelo presidente).

A despeito de o governo federal declarar que a medida visa regularizar as terras dos pequenos
posseiros da regio com at 100 hectares, a MP n 458 possibilita a regularizao de reas bem
maiores, inclusive acima de 1.500 hectares, mediante concesso de domnio ou direito real de
uso. Enfim, o contedo dos dispositivos constantes da MP implica srios riscos de apropriao
privada em larga escala para a maior parte dos 67,4 milhes de hectares de terras pblicas
(Ferreira et al, 2009, p. 214). Alm de tudo, um estudo minucioso feito por procuradores do
Grupo de Trabalho de Bens Pblicos e Desapropriao do Ministrio Pblico Federal apontaram
nove pontos que consideram inconstitucionais na mesma MP, divulgado em nota tcnica31.

31
A seguir os 9 pontos:
1) Atribuio de terras pblicas a ocupantes originariamente ilegais. O aproveitamento da omisso do Estado contraria o
pargrafo nico do artigo 191, que probe a aquisio de imveis pblicos por usucapio.
2) Dispensa de licitao para aquisio de reas com at 1,5 mil hectares. Fere o inciso XXI do artigo 37, pelo qual alienaes
devem ser contratadas mediante processo de licitao pblica, obedecendo-se os princpios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficincia. Tambm contraria a Lei de Licitaes e Contratos Administrativos, que permite a dispensa
para rea de at 500 hectares. Pelo texto da MP, seria permitido que o ocupante ilegal fosse beneficiado, com preferncia. Mas a
nica circunstncia que o difere de demais interessados na terra seria sua ocupao primitiva, seu pioneirismo na ilegalidade.
3) Beneficiados podero negociar terras depois de trs anos. Segundo o artigo 189 da Constituio, o prazo mnimo de 10 anos,
para evitar que a ocupao do imvel rural seja mero objeto de especulao. O objetivo constitucional que a terra sirva como
meio de produo e promova o avano social.
4) Inexistncia de meno sobre o processo para identificao de reas quilombolas, indgenas e ribeirinhas tradicionais. Desta
forma, a MP aumenta a possibilidade de conflitos em razo da titulao indevida destes locais, alterando e comprometendo
atributos que garantem a integridade do bioma amaznico, o que expressamente vedado pela Constituio.
5) Vedao do acesso gratuito a determinados agentes pblicos. A medida no permite que sejam regularizadas situaes em que
o ocupante, seu cnjuge ou companheiro exeram cargo ou emprego pblico no Incra, no Ministrio do Desenvolvimento
Agrrio, na Secretaria do Patrimnio da Unio do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto ou nos rgos estaduais de
terras. Ao abrir espao para que ministros, secretrios de Estado, governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e
estaduais, vereadores, membros do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico possam ter reas de at 1,5mil hectares regularizadas,
a MP possibilita condutas incompatveis com ocupantes de cargos pblicos, o que afronta os princpios da moralidade
administrativa e impessoalidade defendidos pelo artigo 37.
6) Despojamento de bens vinculados terra. Em mdia, cada hectare de terra na Amaznia Legal tem um volume aproximado de
30 a 40 metros cbicos de madeira, o que, em uma rea de 1,5 mil hectares, equivaleria a possibilidade direta de explorao de 60
mil metros cbicos de madeira. Fere o artigo 5 da Constituio, com base no princpio da igualdade. A MP permite que parcela do
patrimnio brasileiro seja transferida para terceiros sem que seja dada a mesma possibilidade a outras pessoas supostamente
interessadas.
7) Concentrao de terras. A Constituio determina a destinao das terras pblicas federais, preferencialmente, para o
desenvolvimento da poltica agrcola e para propiciar uma melhor distribuio de terras por meio do plano nacional de reforma
agrria. O texto da MP, contudo, possibilita a concesso de imveis para pessoas fsicas que j possuam outras propriedades, bem
como para pessoas jurdicas, promovendo concentrao fundiria. Para se ter uma ideia, a mdia de ocupao territorial humana
em lotes de assentamentos rurais na Amaznia no ultrapassa os 50 hectares. Uma das razes justamente a incapacidade isolada
de operao familiar em extenses superiores ao apontado. A medida, ao ampliar esse nmero em at 1,5 mil hectares, evidencia a
entrega do patrimnio da Unio a empreendimentos com primazia econmica. Alm disso, a alienao de terras em si
contraditria, j que so recorrentes as aes de desapropriao para fins de reforma agrria. Futuramente, o governo precisar
pagar por essas reas caso queira reav-las.
8) Ausncia de vistoria nas reas de at quatro mdulos fiscais. Pode redundar na inconstitucional remoo das populaes
quilombolas, indgenas e ribeirinhas tradicionais das reas por eles ocupadas. Alm disso, o texto da MP alarga a possibilidade da
60
2.2.3. Governo Dilma e os esforos atuais

Ainda no ano de 2012, as novas diretrizes para aquisio de reas para o assentamento de novas
famlias, na resoluo n 5/201232, tornam o processo bem mais demorado e burocrtico. Alm de
limitar a 100 mil reais o custo famlia para a aquisio de novas reas o que, de acordo com os
servidores do Incra e dirigentes de movimentos sociais, impossibilita encontrar reas que no
sejam bem degradadas (Terra Livre, 2012b, n.p.).

Em pesquisa recente, mestrandos em direito agrrio da UFG analisaram os casos de conflitos


agrrios no Par, Mato Grosso e Paran, no perodo de 2003 a 2011, indicando que 59,68% dos
processos constituram reintegrao de posse, sendo que as decises dos juzes quase sempre
favorveis ao proprietrio baseiam-se no direito civil, no levando em considerao o que diz a
Constituio Federal sobre a funo social da propriedade (idem).

Em junho do mesmo ano de 2012, atravs de um comunicado, os servidores do Incra entraram


em greve. As justificativas incluem os cortes oramentrios de 2011 para 2012 num contexto de
insuficincia crnica de funcionrios frente demanda de aes e fiscalizaes do Incra, o
sucateamento dos rgos de desenvolvimento agrrio e a colocao da reforma agrria em
segundo plano pelo governo Dilma. Um excerto da nota divulgada pelos funcionrios do Incra
ilumina a questo:

O INCRA, entre 1985 e 2011, teve o seu quadro de pessoal reduzido de 9 mil para 5,7 mil servidores.
Nesse mesmo perodo, sua atuao territorial foi acrescida em 32,7 vezes saltando de 61 para mais de
dois mil municpios, um aumento de 124 vezes no nmero de projetos de assentamentos assistidos. At
1985, o INCRA geria 67 projetos de assentamento. Hoje, este nmero supera os 8,7 mil e a rea total
assistida passou de 9,8 milhes para 80,0 milhes de hectares cerca de 10% do territrio nacional. O
nmero de famlias assentadas atendidas pelo rgo passou de 117 mil para aproximadamente um
milho, totalizando cerca 4 milhes de pessoas. Ressalta-se ainda que o nmero de servidores est
prestes a sofrer novas redues. At 2014 outros dois mil funcionrios do INCRA estaro em
condies de aposentadoria, aprofundando ainda mais o dficit de servidores no rgo (Carta de
Denncia/Incra, apud Instituto Carbono Brasil, 2012)

A colocao da reforma agrria em segundo plano pelo governo, do que o sucateamento do Incra
um sintoma, vem acontecendo de forma gradual e no exclusividade do governo Dilma. De

utilizao de "laranjas" para a regularizao de terras, j que a comprovao de ocupao anterior a 2004 feita apenas mediante
declarao.
9) Degradao ambiental. A MP exige como condio para que terras sejam regularizadas o mero compromisso de recuperao
das reas degradadas. O artigo 225 da Constituio exige a recuperao efetiva. (Sociedade Editorial Brasil de Fato, 2009)
32
O documento na ntegra aqui: http://pautasagendasoccivil.blogspot.com.br/2012/04/resolucao-incra-que-define.html
61
acordo com outras fontes, o corte de verbas para o oramento do Incra passou de cerca de 0,5%
do PIB em 2011 para 0,2% em 2012, soma-se a isto o fato que o nmero de assentamentos de
reforma agrria registrado no ano de 2011 foi o pior dos ltimos 16 anos (Terra Livre, 2012a).

A inao do governo em relao poltica agrria tem gerado um clima de insatisfao em


ascenso, o que est mobilizando a rearticulao dos movimentos sociais do campo uma
manifestao clara disto se deu na marcha organizada pelo Encontro Unitrio dos Trabalhadores
e Trabalhadoras e Povos do Campo, das guas e das Florestas em Braslia, agosto de 2012. O
cunho do protesto foi centrado na crtica paralizao da reforma agrria e de demarcao de
terras indgenas e quilombolas, sob o diagnstico de uma retomada da modernizao
conservadora como projeto de expanso primria para o setor externo, o que na sua essncia,
produz desigualdades nas relaes fundirias e sociais no meio rural, aprofunda a dependncia
externa e realiza uma explorao ultrapredatria da natureza. O movimento se posiciona
contrrio aos protagonistas deste processo, na carta:

o capital financeiro, as grandes cadeias de produo e comercializao de commodities de escala


mundial, o latifndio e o Estado brasileiro nas suas funes financiadora inclusive destinando
recursos pblicos para grandes projetos e obras de infraestrutura e (des)reguladora da terra
(Encontro Unitrio, 2012)

Estas alteraes em mbito legal, por importarem solues j demonstradamente ineficientes na


prtica, altamente esquivas no tocante aos problemas centrais (quais sejam, a criao de um
registro pblico de terras funcional, demarcao das terras devolutas, estancamento do
apossamento de terras pblicas, efetividade de cobrana de um imposto territorial progressivo,
etc.) demonstram o vcuo de regulao fundiria, permanentemente recriado em todos os
perodos da nossa histria, expresso na incapacidade de reverter o padro de apropriao
territorial altamente concentrador e excludente at os dias de hoje o que se manifesta inclusive
na nova ascenso dos movimentos sociais do campo.

CONCLUSES DO CAPTULO

Analisando o perodo aps o golpe de 1964 pudemos delinear quais foram os pontos altos e mais
importantes com relao s tentativas de alterao da forma de ordenamento territorial do pas.
Vimos tambm como estas alteraes todas no mnimo no se provaram suficientes para alterar

62
de facto as caractersticas centrais que expusemos no captulo anterior como padro de regulao
da apropriao territorial brasileiro.

Dentro de um contexto de reao conservadora como foi o governo civil-militar, foi possvel
exprimir como uma legislao relativamente progressista como o Estatuto da Terra foi editado
de um lado visando contemplar as presses norte-americanas preocupadas com um possvel
arrebatamento comunista poca, de outro visando arrefecer as presses populares com relao
necessidade de se realizar alguma coisa com relao s convulses que o campo sofria.

Entretanto, assim como com a Lei de Terras de 1850, a mediao da lei com a realidade objetiva
foi postergada para as regulamentaes da mesma, que de fato foram torpes e, quanto aplicao
real dos mecanismos mais progressistas do Estatuto, estes eram politicamente inconvenientes e
raramente foram cumpridos da forma que a (nossa) interpretao da lei previa.

Com a reabertura rumo democracia, novos ares inflaram de esperana a resoluo de antigos
entraves ao desenvolvimento socioeconmico, como a questo agrria. No que tange a nossa
questo, derrota aps derrota, redescobrimos que em nenhum momento a fora das elites tinha se
esvado, tendo a promessa de mudanas progressivas cado por terra, como nos termos de Jos
Gomes da Silva. Em termos de regulao, os aspectos positivos em geral ficam novamente
bloqueados em sua aplicao real, permanecendo apenas como letra morta.

Seguindo adiante, adentrando ao perodo de reformas neoliberais sob o comando de Fernando


Henrique Cardoso, temos outra contradio tpica da histria do Brasil. Ao mesmo tempo em que
o perodo foi permeado pela ideologia de estado mnimo e ajustes recessivos, houve o maior
esforo de reforma agrria se medido pelo nmero de famlias assentadas, no caso j
realizado no pas. Explicamos esta aparente contradio com o contexto favorvel de baixa
generalizada do preo das terras, ainda que a qualidade e continuidade de prestao de
infraestrutura e crdito aos assentamentos seja discutvel.

Aps os dois mandatos de FHC, passamos pelos dois governos de Lus Incio Lula da Silva e a
atual gesto de Dilma Rousseff. Novamente, expectativas de alterao do quadro estrutural
fundirio foram depositadas na ascenso de um partido trabalhista ao governo. Mais uma vez
estas mesmas foram frustradas, visto que as poucas medidas inovadoras tomadas foram ou
tmidas ou baseadas no decreto de leis ousadas somente no papel, sem a capacidade de serem
63
aplicadas na ntegra, no mesmo tom das diversas melodias regulatrias exaustivamente expostas
no presente captulo e no que o antecede.

Em suma, mostramos como apesar das alteraes em aparncia se recriou constantemente a


manuteno de formas regulatrias insuficientes para alterar a forma como se apropria terras no
Brasil, mantendo a possibilidade do apossamento irrestrito de terras devolutas em grandes
propriedades. No se pode deixar de lado que houve momentos em que despontaram
brilhantemente sadas nem to radicais que pareciam que se concretizariam, para serem abortadas
pelas sombrias foras da reao antes mesmo de amadurecerem. De resto, todo o brilhantismo
progressista nesse tocante acabou perdido apenas na opaca letra da lei, servindo mais de insumos
para discusses entre ilustres autoridades do direito que como instrumentos de alterao da
realidade efetiva.

64
CAPTULO 3. REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL NA
FRONTEIRA INTERNA: O CASO DO PAR
INTRODUO AO CAPTULO

Desde o incio da ocupao do territrio no Brasil temos visto que a fronteira interna se expande,
com mais ou menos intensidade. Sabemos que cada perodo da nossa histria traz consigo certos
loci geogrficos onde este processo se desenvolve. Se de incio esta expanso se deu prxima ao
litoral, com o passar do tempo a ocupao foi se adentrando nas terras dos sertes brasileiros.
Longe de ser um fenmeno linear, esta expanso por vezes resultou em ocupao e posterior
abandono por longos perodos das regies que hora foram mais intensamente ocupadas.

Podemos dizer de forma solta que a ltima destas expanses se deu principalmente atravs da
subia ao norte pelo Mato Grosso, consolidando uma fronteira de ocupao que, como sempre,
passou por cima de diversas comunidades indgenas, populaes tradicionais e do meio ambiente.
O movimento atual, por outro lado, se concentra na expanso para dentro da Amaznia brasileira:
tanto pelo sul quando pelo leste. A poltica do governo de combate ao desmatamento estabeleceu
certas restries e conseguiu provisoriamente bloquear a acelerao do processo de expanso
pelo sul da Amaznia, onde se criou o chamado Arco Verde com este propsito.

Sendo assim, o foco mais intenso de expanso da fronteira interna ocorre h pelo menos duas
dcadas de forma longitudinal, vindo do leste para o oeste, onde o extenso estado do Par se
coloca como um locus privilegiado para a anlise atual deste processo.

Delineamos nos captulos anteriores as linhas gerais do processo de apropriao territorial


brasileiro e a especificidade de sua regulao, expondo as mazelas que o acompanham de forma
crnica. Objetivamos com este captulo curto trazer luz a anlise deste mesmo processo de
apropriao territorial na fronteira interna, especificamente no Par. Nossa justificativa para tal
intento simples: se existe um padro histrico como o descrito que tange a ocupao das terras
no Brasil, este deve se manifestar de forma mais contundente exatamente nas reas onde a
expanso da fronteira interna estiver ocorrendo.

Para isso, trataremos primeiro de trazer um histrico da regulao da ocupao paraense e suas
marcas especficas para, em seguida, mostrar que a forma de regulao da apropriao do

65
territrio ineficaz assim como no resto do pas. Posteriormente elencaremos dados especficos
do Par que expressam que, alm da regulao ser ineficaz, , de fato, em loci como este que
afloram os sintomas mais dramticos possveis da forma brasileira de ordenamento territorial.

3.1. BREVE HISTRICO DA REGULAO DA OCUPAO DE TERRAS NO PAR

O histrico fundirio paraense se assemelha com os outros estados brasileiros, visto que a
propriedade das terras foi, inicialmente, pblica e a apropriao privada das terras e recursos
naturais ocorreu de forma desordenada e predatria.

O objetivo primrio da ocupao inicial das terras onde hoje se localiza a Amaznia Legal era
consolidar a posse portuguesa sobre as terras pertencentes Espanha em razo do Tratado de
Tordesilhas. Assim foram instaladas fortificaes militares e enviados diversas misses catlicas
para civilizar os povos indgenas habitantes da regio. Com o Tratado de Madri, em 1750, as
terras espanholas so transferidas para o domnio portugus, que ento adquire formalmente o
controle da Amaznia.

Os primeiros desbravamentos da provncia do Gro Par e Maranho se deram atravs dos rios e
a sua economia baseou-se incialmente na explorao de drogas do serto, atravs de extensiva
explorao da mo-de-obra indgena.

De acordo com Treccani (2001, p. 59), o problema fundirio do Par divergia do resto do pas no
sentido em que, com a predominncia de uma economia de subsistncia e apenas uma pequena
produo mercantil, no Par no se ensejara a formao do latifndio nos dois primeiros sculos
de colonizao portuguesa. O latifndio s iria se formar no Vale Amaznico aps a
incorporao do mesmo ao Imprio Brasileiro e da desorganizao de toda a economia de
subsistncia da regio para a introduo da economia de mercado.

A ttulo de exemplo sobre o ordenamento jurdico do territrio paraense, o mesmo autor (op. cit.,
p. 55) expe o seguinte:

Em 1904, o governador Augusto Montenegro, reconhecendo o valor histrico dos vinte volumes
manuscritos guardados no Arquivo Pblico, mandou publicar, o terceiro tomo dos Annaes da
Bibliotheca e Arquivo Pblico do Par onde se mostra que de 1700 at 1835 foram expedidos na
Provncia do Gro-Par (que abrangia os atuais Estados de Par, Amazonas, Maranho e Piau) 2.158

66
ttulos sesmariais. Destes s 560, isto cerca de 25,95% do total, foram confirmados (Vianna,
1904:149). Enquanto no Piau a confirmao das cartas concentrou-se entre os anos 1721-1752, no
Maranho entre 1713 e 1756 e no Turiassu de 1789 a 1825, no Par foram confirmadas no s um
nmero bem maior de cartas (68,93% do nmero das cartas ocupando 52,33 % da rea total), mas a
confirmao deu-se ao longo de mais de um sculo (1702-1818). Para tanta terra distribuda s
faltavam braos para trabalhar, braos estes que foram disponibilizados pela coroa portuguesa com a
criao da Companhia Geral do Gro Par e Maranho.

Ao final do sculo XIX a regio Amaznica comea a despertar interesse econmico atravs da
economia da borracha desta vez explorando, atravs do aviamento, a mo de obra dos
trabalhadores nordestinos migrantes devido ao flagelo da seca33. Como o prestgio poltico e
econmico advinha do ltex, no fazia sentido demarcar as terras concedidas pelo Poder Pblico
mediante aforamento, visto que as fronteiras eram abertas continuamente na busca de novos
seringais e tambm de castanhais, ou seja, no se adotou nesta poca a transferncia de
propriedade do domnio pblico para o privado. O sistema utilizado, de aforamento, apenas
transferia o domnio til ao seringalista, que no era proprietrio, mas pagava um foro anual ao
Estado. (Benatti et al, 2013:6)

A partir da dcada de 20 do sculo passado a regio Amaznica e o Par passaram por uma
estagnao econmica. A partir da crise da borracha o Par se torna palco de uma transferncia
de terras pblicas para mos de particulares, atravs de leis estaduais que permitiram a compra de
terras devolutas do estado34 e o aforamento perptuo35. Essa transferncia incide de maneira
particular sobre os castanhais da regio de Marab, que se torna a base da constituio de
oligarquias (propriamente) fundirias.

Durante a dcada de 1950 houve um processo migratrio onde diversas pessoas, na maioria
paulistas, tornaram-se donos de vastas extenses de terras no sudeste paraense, no rastro da
expedio Roncador-Xingu. Alm disso, em 1953 o governo federal criou a Superintendncia do
Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVEA), posteriormente substituda pela
Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM), que seguiu com a ideia de

33
A revoluo industrial estava criando uma grande demanda de borracha e a regio amaznica era a mais importante fonte de
borracha natural. As atividades produtivas exigiam (e exigem) uma grande quantidade de mo-de-obra a fim de extrair a borracha
das rvores da forma mais primitiva. () A primeira grande onda de nordestinos para a Amaznia [ocorreu] na dcada de 1870
() em meio sculo, de acordo com algumas estimativas, cerca de quinhentos mil nordestinos foram para a regio amaznica,
que experimentou um grande perodo de auge econmico. Ao lado do sofrimento humano e da misria acarretados por essa
explorao, grandes fortunas se fizeram e as cidades de Manaus e Belm atravessaram um perodo de esplendor extraordinrio
(Velho, 1972, apud Fernandes, 1999, p. 69)
34
Lei Estadual no 1741, de 1918.
35
Lei Estadual no 1947, de 1920.
67
desenvolvimento atravs da ocupao com especulao com terras, explorao de recursos
florestais e migrao desordenada.

Esta situao segue com os governos militares e a criao de grandes projetos, forte incentivo
migrao de pessoas para a regio, construo de obras de infraestrutura como estradas federais e
tambm a insero do capital estrangeiro. Com isso se intensificaram a degradao ambiental, os
conflitos no campo, o caos fundirio e a grilagem de terras.

J ao final dos anos 50 aparece a figura dos pioneiros, novos personagens na regio que eram,
em geral, grupos paulistas que j haviam se apropriado de terras em outros estados e vinham em
busca de terras juridicamente livres na nova fronteira. (Fernandes, 1999, p. 32)

Durante a dcada de 70 o Governo Federal interviu na Amaznia em geral, editando um Decreto-


lei36 federalizando as terras devolutas situadas na faixa de cem quilmetros de largura do eixo de
cada uma das rodovias federais j construdas, em construo ou projetadas na regio. No seu
artigo 5o foram ressalvadas as situaes jurdicas j constitudas. Com esta medida, cerca de 70%
da rea do Estado do Par foi federalizado (Benatti et al, 2013, p. 6).

Com a inveno institucional da Amaznia Legal, que engloba o Par, permitiu-se que a Unio,
como agente principal, planejasse e executasse sua poltica de ocupao e desenvolvimento
passando por cima dos interesses dos atores da regio. Para submeter os governos estaduais e
locais aos interesses do governo federal foram criadas novas instituies regionais e redefinidos
os papis que o governo federal e o setor privado passariam a assumir em suas dimenses
geoeconmicas e geopolticas. (Carvalho, 2012, p. 78)

A ocupao da regio amaznica durante os governos militares foi pautada no Plano de


Integrao Nacional37 sob o slogan de uma terra sem homens para homens sem terras e sob a
premissa de que a Amaznia constitua um vazio demogrfico, engendrando em 21 anos uma
ocupao maior que em cinco sculos de histria. A implantao de projetos de colonizao em
srie foi desarticulada e desordenada, no procurou garantir os direitos dos povos indgenas e

36
Decreto-Lei n. 1.164, de 1o de Abril de 1971.
37
Criado atravs do Decreto-Lei no 1106 em 16 de julho de 1970, alguns dos slogans famosos do PIN incluem o terras sem
homens para homens sem terras e integrar para no entregar. De acordo com Velho (1975: 213), o governo foi capaz de
mobilizar o sentimento nacionalista, neutralizando a esquerda nacionalista ao mesmo tempo em que permanecia basicamente
cosmopolita no seu carter, j que inclusive essa colonizao da Amaznia implicaria numa macia participao estrangeira.
68
locais que j ocupavam a regio e tinha como objetivo central utilizar a expanso da fronteira
interna como vlvula de escape, transferindo milhares de famlias de zonas de tenso social no
campo, no Sul e no Nordeste, para a regio amaznica.

Em 1987, no que tange a regulao fundiria, revogou-se a norma antiga que federalizava as
terras38 e, mais uma vez, ampliou-se a desordem: o novo decreto dispunha que as terras devolutas
antes federalizadas agora eram repassadas ao domnio dos Estados, com a ressalva de que no so
devolutas, entre outras, as terras objeto de situaes jurdicas j constitudas ou em processo de
formao. Com esta ressalva, at a atualidade nenhuma das terras federalizadas voltou
efetivamente para o domnio pblico estadual.

A economia da grilagem, constituda pelo processo de apropriao de renda fundiria e


apropriao de financiamentos pblicos lastreados na terra, apresenta-se inclusive na criao de
novos municpios: entre 1980 e 1996, o nmero de municpios do Par salta de 83 para 14339.

Percebe-se assim que o longo processo de regulao da ocupao do territrio paraense sempre
seguiu no mesmo tom que no resto do pas, permeado de contradies e ineficincias estruturais
na forma com que se d esta regulao engendrando, portanto, as mesmas mazelas discutidas no
captulo anterior, amplificadas como em qualquer regio de expanso da fronteira interna 40.
Veremos, na prxima seo, como se d a da apropriao privada das terras devolutas com mais
detalhes, incluindo a anlise da insegurana jurdica que permeia este processo no lcus de
expanso da fronteira interna.

3.2. REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL NO PAR: DA


INSEGURANA JURDICA GRILAGEM DE TERRAS

38
Decreto-Lei no 2375, de 24 de Novembro de 1987.
39
Um bom exemplo da vinculao estreita desse processo com as transformaes das zonas pioneiras a criao sucessiva de
dois municpios: Ourilndia do Norte e Bannach. Desmembrado de So Flix do Xingu, Ourilndia do Norte surge de um
aglomerado de garimpeiros e de trabalhadores trazidos regio pela Construtora Andrade Gutierrez para trabalhar no projeto
Tucum. Proibidas de residirem na rea do projeto, essas pessoas foram se agrupando s margens de uma estrada, no mesmo local
em que o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins Getat depois implantou uma colnia, que se tornou, em 1988, a
sede do municpio. Apenas cinco anos depois, em 1993, desmembrado do recm-criado Ourilndia do Norte, surge o municpio
de Bannach, um conglomerado nascido em torno de uma madeireira que lhe deu o nome. (Benatti et al, 2006:31-32)
40
Para mais detalhes e casos especficos de como se deu a apropriao mais recente (1940 em diante) das terras do estado do Par
atravs da privatizao das terras devolutas de grande valia a consulta da obra de Fernandes (1999), em especial o primeiro
captulo.
69
De acordo com os dados secundrios utilizados por Oliveira et al (2013:30-31), no estado do
Par, em 2010, existem 26,7 milhes de hectares ocupados por 97,8 mil imveis declarados no
Cadastro do INCRA que no possuem documentos comprobatrios de propriedade. Destes, h
86,9 mil imveis (88,8%) que so passveis de legitimao, 4,9 mil imveis (5,1%) classificados
como mdias propriedades, e outros 5,7 mil imveis (5,9%) que so grandes propriedades. As
pequenas propriedades que so passveis de legitimao ocupam 5 milhes de hectares (18,9% da
rea), as mdias propriedades ocupam 2,8 milhes de hectares (10,5%) e as grandes ocupam 18,6
milhes de hectares (69,5% da rea), sendo estas ltimas no passveis de regularizao pelo
Programa Terra Legal. Isto implica que pelo menos 69,5% das terras pblicas, devolutas ou no,
griladas no Estado do Par no podero ser legitimadas ou sequer regularizadas pela legislao
em vigor.

Alm disso, se levarmos em conta o ndice de Gini para o Par, temos um dos mais altos ndices
do pas lembrando que o Par o segundo maior estado em rea territorial. A evoluo deste
mesmo ndice, calculado com base nos dados do cadastro do Incra (SNCR), sai de 0,888 em
1992, passando para 0,885 em 1998 e 0,823 em 2003. Isto representa a manuteno de uma
estrutura fundiria extremamente concentrada: o Par se mantm em todos os perodos como o
segundo pior Gini para distribuio de terras, atrs apenas do estado do Amazonas.

O movimento de espoliao privada do patrimnio de terras pblicas o mesmo e se repete em


diversas esferas de anlise, seja no Brasil, no Estado do Par ou em municpios como So Felix
do Xing:

a apropriao privada da terra no Brasil tem sido feita atravs da grilagem das terras pblicas, e elas
representam cerca de 40% do territrio ptrio. [] Entre os 571,7 milhes de hectares cadastrados no
INCRA em 2010 h um total de 5,1 milhes de imveis. A rea mdia nas grandes propriedades de
2.433 hectares, enquanto nas pequenas de 29 hectares, ou seja, 83 vezes menor. Entre estas grandes
propriedades o INCRA, ao aplicar a Lei 8629/93 que definiu os ndices de produtividade ainda com
referncia aos dados do Censo Agropecurio de 1975, encontrou 175 milhes de hectares de terras
improdutivas, o que equivalia a 55% do total. Ou seja, a grande propriedade , no Brasil,
majoritariamente improdutiva e este seu carter fundamental. A terra no apropriada privadamente
para ser posta para produzir, pois a terra mesmo sem nada produzir permite ao seu proprietrio a
gerao de riqueza. Ela funciona simultaneamente como reserva de valor (realizada na venda da
propriedade) ou, o que mais comum, como reserva patrimonial (utilizada como patrimnio colocado
como garantia quando se vai ao sistema financeiro tomar emprstimos). [] Este quadro est presente
na Amaznia Legal, no Par e no municpio de So Flix do Xingu, onde os dados mostram,
respectivamente, um total de 123,9; 31,5 e 3,3 milhes de hectares ocupados pelas grandes
propriedades classificadas com improdutivas pelo INCRA. (Oliveira et al, 2013, p. 32-33)

70
Dados mais recentes apontam para o mesmo sentido de falta de controle e conhecimento da
estrutura fundiria paraense, em especial no que tange s terras pblicas devolutas ou no. Na
ltima dcada o INCRA iniciou um processo de certificao com georreferenciamento dos
imveis contidos no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), mas o progresso destas
certificaes no Par ainda tmido: com nfase na certificao dos imveis com mais de 5000
hectares, 0,61% das propriedades contidas no SNCR esto certificadas ocupando uma rea de
7,17% do total de rea cadastrada no SNCR para o Par, conforme tabela 1 abaixo. No caso das
propriedades com mais de 5000 hectares, 21% do total de imveis j foi certificado, ocupando
uma rea de 1,9 milhes de hectares (23,3% do total de rea do SNCR para este extrato no Par).

Tabela 1. Imveis certificados e total de imveis no SNCR, Estado do Par, 2013.


Nmero de imveis certificados em % do total do SNCR rea certificada em % do total do SNCR
0 a < 500 ha 500 a > 5000 ha >= 5000 ha Total de imveis 0 a < 500 ha 500 a > 5000 ha >= 5000 ha Total de rea
Imveis do SNCR 125.558,00 14.855,00 661,00 141.074,00 9.657.326,55 29.393.467,32 8.149.092,65 47.199.886,52
Imveis certificados 76,00 643,00 142,00 861,00 19.623,40 1.463.952,98 1.901.637,52 3.384.943,90
Certificados (%) 0,06% 4,33% 21,48% 0,61% 0,20% 4,98% 23,33% 7,17%
Fonte: acervofundiario.incra.gov.br/i3Geo - consulta dia 07/03/2013 - total de imvies certificado disponvel na consulta 44.444; SNCR/Incra,
Apurao Especial realizada em 03/01/2013.

Em outras palavras, o que estes dados nos mostram que o principal cadastro fundirio brasileiro
extremamente impreciso, no caso da sua aplicao para o Par nem 7,17% da rea das
propriedades do SNCR tem georreferenciamento, o que dificulta enormemente a identificao
das reas cadastradas e, por conseguinte, abre uma grande margem para a continuidade do
processo de grilagens de terras, especialmente as pblicas.

As instituies que operam na gesto da terra no Par so o Incra, MDA, ICMBio, SPU, SFN e
FUNAI de ordem federal -, e o Iterpa, Sema (PA), Ideflor e o IDESP de ordem estadual -,
alm, claro, dos municpios. Dentro deste arranjo institucional, o mais grave problema
encontrado a dificuldade de harmonizar responsabilidades e construir sinergias, visto que a
arquitetura institucional estruturalmente desintegrada e causa primria da ocorrncia de
responsabilidades duplicadas e conflitos de interesses ocasionados em disputas pelo mesmo
espao de atuao.

71
Figura 1. Entidades operando na administrao de terras pblicas no Par

Fonte: Reydon et al, 2013.

Para uma primeira ideia do conflito gerado por esta arquitetura institucional complexa, o mapa
abaixo extremamente ilustrativo para se ter uma imagem das diferentes instncias de
responsabilidade pela ocupao do espao paraense. possvel notar atravs dele o tamanho da
federalizao das terras paraenses.

72
Figura 2. Interveno territorial federal no Par

Fonte: leres, 2002.

Em linha com os argumentos dos captulos anteriores, o caos fundirio gerado pela falta de
regulao da apropriao territorial envolve centralmente a grilagem de terras pblicas, caso
especfico em que o estado do Par aparece como uma regio profcua para estudo.

De acordo com Benatti et al (2013, p. 19-20), no h um levantamento confivel para se afirmar


qual a porcentagem de terras pblicas ou particulares estejam registradas nos Cartrios de
Registros de Imveis. Nem o governo estadual nem o federal dispem de dados que contenham o
total de propriedades privadas em reas rurais. As reas tituladas nos ltimos anos pelos rgos
estadual e federal foram devidamente levadas a registro pblico. Os autores ainda destacam que
estes registros, por serem de interesse social, foram realizados gratuitamente. Os dados
disponveis nos cartrios, cadastro da receita e do Incra tm validade duvidosa e apresentam
dados contraditrios, como veremos a seguir.

Uma compilao dos dados sobre a destinao das terras do Estado do Par est disposta em
Benatti et al (2013, p. 61-63), mostra que aproximadamente 63,5% do Estado do Par j est
73
destinado, seja para as terras indgenas, unidades de conservao federal e estadual, reas
reservadas militares, projetos de assentamentos federais e estaduais e propriedade quilombola,
apesar de esta percentagem ser aproximada devido existncia de vrias sobreposies de reas
mais um indcio dos problemas causados por no haver, at hoje no Brasil, um cadastro unificado
relacionado base fundiria.

Os diferentes cadastros de terras existentes geram enormes problemas ao se tentar qualquer


anlise dos dados fundirios visto que todos so incompletos, como j foi visto repetidas vezes
neste estudo. Entretanto, a termo de comparao, podemos ver estas discrepncias aplicadas para
o Par, na tabela 2, abaixo. O maior problema do cadastro do Incra (SNCR) a falta de
georreferenciamento adequado para eliminar as sobreposies de diferentes imveis. Um esforo
tem sido feito de certificar as propriedades do cadastro atravs de georreferenciamento, mas este
ainda est em andamento (apenas 2,71% da rea constante no SNCR foi certificada at o
momento). Outra discrepncia que aparece a diferena entre as reas totais do cadastro do
Censo Agropecurio de 2006 em comparao com o SNCR, enquanto o primeiro responderia por
17,99% da rea superficial do Estado, o segundo responderia por 37,82%. O cadastro da Receita
Federal foi includo tambm para se ter uma noo da ampla variedade de cadastros existentes e
da incompatibilidade entre eles, neste ltimo 119 mil imveis (menos que os 141 mil do SNCR)
responderiam pela rea de 51.134.432 ha (mais que os 47.199.886,51 ha constantes no SNCR).

Tabela 2. Alguns dos diferentes cadastros de terras, Par, anos diversos.


% da superfcie
Nmero de
rea (ha) do Estado do
imveis*
Par
Imveis no SNCR, menos os inconsistentes (rea) 47.199.886,51 37,82% 141.074
Imveis certificados do SNCR (rea) 3.384.943,90 2,71% 861
Censo agropecurio, 2006, (rea) 22.446.025,00 17,99% 222.028
Cadastro da Receita Federal (rea) 51.134.432,00 40,97% 119.322
Superfcie do Estado do Par (IBGE) 124.795.466,60 100,00%
Fonte: Benatti et al (2013); Incra 2013 - apurao especial; Censo Agropecurio, 2006; IBGE, 2013.
* No caso do Censo Agropecurio, a unidade de anlise so os estabeleciementos agropecurios

Afora os cadastros de imveis rurais privados preciso tentar delinear, por mais que de maneira
imprecisa com os dados disponveis, quanto da superfcie do Par composta por terras pblicas
cadastradas e, na medida do possvel, quanto da mesma superfcie so terras devolutas a pea
crtica que tentamos chamar ateno.
74
A tabela 3, abaixo, apresenta a tentativa feita por Treccani (2008) de sistematizar a dominialidade
das terras pblicas no Par. Estes nmeros nos indicam que em teoria 71,78% da superfcie do
Estado composta por terras federais. Entretanto, existem muitas sobreposies, em especial os
casos (i) de criao de unidades de conservao estaduais sem solicitar qualquer autorizao ao
governo federal sendo que estas por vezes incidem nas faixas de fronteira e (ii) as terras que
foram incorporadas ao patrimnio particular.

Tabela 3. Dominialidade, terras pblicas no Par, 2009.


% da superfcie do
rea (ha)
Estado do Par
Terras indgenas (FUNAI) 30.367.029,00 24,33%
Unidades de Conservao federais sem APAs (ICMBio) 18.032.187,00 14,45%
reas de Proteo Ambiental federais (ICMBio) 2.081.096,00 1,67%
reas militares (Estado Maior das Foras Armadas EMFA) 2.160.000,00 1,73%
Terrenos de Marinha (Secretaria do Patrimnio da Unio SPU) 1.247.689,51 1,00%
Faixa de fronteira 5.768.400,00 4,62%
Terras administradas pelo INCRA 29.923.992,00 23,98%
Total das Terras Federais 89.580.393,51 71,78%
Unidades de conservao estaduais (SEMA) 13.357.075,00 10,70%
reas de Proteo Ambiental estaduais (SEMA) 8.343.680,00 6,69%
Terras estaduais (ITERPA) 19.949.328,00 15,99%
Superfcie do Estado do Par (IBGE) 124.795.466,60 100,00%
Fonte: IBGE, 2013; Treccani, 2010:48.

Tendo em vista estas dificuldades j ao nvel de tentar discernir a rea e localizao tanto das
propriedades rurais com ttulo de propriedade, sejam pblicas ou privadas, quanto das posses,
possvel se imaginar a dificuldade de precisar corretamente a rea e localizao das terras
griladas.

O quadro de gesto fundiria obteve, entretanto, uma drstica alterao entre 2007 e 2010. Neste
perodo houve um grande esforo de reverso da falta de governana fundiria representada
especialmente na consolidao de uma nova gesto dentro do ITERPA com respaldo do governo
do estado poca. O resultado deste esforo resultou no processo de mapeamento das terras
pblicas e combate grilagem que foi posto em andamento de forma poucas vezes antes vista nas
tratativas de problemas fundirios no Brasil41.

41
Ressalvo, entretanto, o esforo da Corregedoria do Tribunal do Amazonas no ano de 2001 como exemplo importante.
75
Um levantamento da Comisso Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das
Questes Ligadas Grilagem com dados obtidos os Cartrios de Registros de Imveis em relao
s matrculas bloqueadas por iniciativa da Corregedoria de Justia das Comarcas do Interior
mostrou que os 10.386 registros bloqueados apresentam uma rea de 494.786.345,3070, isto ,
3,9 vezes tamanho do Estado do Par, que detm to somente 124.795.466 ha. A situao ainda
mais grave quando se leva em considerao que milhares de registros com rea inferior a 2.500
ha no foram bloqueados e no constam neste levantamento. Retirando-se os 410.247.202,33 ha
cancelados em 2009 pelo CNJ, ainda teramos 84.539.142,98 ha registrados e bloqueados. A
Comisso comprovou que, no Estado do Par existem: vrios municpios do interior com reas
registradas que superam em uma, duas ou mais vezes a sua superfcie territorial 42. (Benatti et al,
2013, p. 19-20)

Somente no Par, estima-se que 30 milhes de hectares estejam nas mos de grileiros, que
utilizam documentos falsos, muitos deles forjados em cartrios de registro de imveis, para se
apossarem de terras pblicas. (Benatti et al, 2006, p. 15)

Nas regies do Par analisadas pelo mesmo estudo acima citado nota-se que a apropriao
privada de terras pblicas constitui um processo endmico presente em todos os municpios
visitados. Os indivduos que participam deste processo esto distribudos numa hierarquia de
diferentes degraus:

a) Os empreendedores, indivduos relacionados agropecuria ou pessoas fsicas e


jurdicas localizados nas grandes cidades de todo o pas, que compram e vendem extensas
reas de terras sem obedecer aos requisitos legais previamente estabelecidos como
condio para apropriao e transferncia destas reas para o patrimnio privado;
b) Estes invariavelmente possuem prepostos locais, pessoas encarregadas de: impedir o
acesso aos terrenos pretendidos ocupao por clientes de reforma agrria; acolher mo
de obra recrutada localmente ou de outros lugares com a ajuda de gatos; expulsar
populaes j estabelecidas na rea; controlar, atravs de intimidao, as associaes de

42
O caso mais extremo se deu no municpio de Tucuru, cuja rea territorial de 208.617,00 ha, e possui uma rea registrada de
2.665.773,5805 ha, isto 12,77 vezes superior. (Treccani, 2008:50)
76
produtores, eventualmente eliminando lderes que denunciem ou se oponham ocupao
ou explorao de recursos naturais realizada por eles e seus patres43.
c) Os prepostos tambm contratam capangas, recrutados dentre uma massa de migrantes
acobertados por falsas identidades e fugindo de algum crime cometido alhures,
constituem o que possa ser considerado como bucha-de-canho, conformando grupos
armados. Em alguns lugares homens armados patrulham os piques que cercam as
propriedades griladas, l so chamados de corre-picadas.
d) Por ltimo, alm dos anteriores, existem o grupo dos cartorrios. Estes so funcionrios
de cartrios e rgos de regularizao fundiria ou ainda advogados, proprietrios de
escritrios de topografia, fornecendo informaes privilegiadas sobre a localizao de
terras pblicas ou intermediando a obteno de registros fraudulentos como documentos
de compra e venda ou fornecendo Certificados de Cadastro de Imvel Rural usando
laranjas.

Tocando na questo de terras indgenas no Par, sabemos que aproximadamente 50% das suas
terras so mapeadas e seus direitos registrados. H, entretanto, certa dificuldade por parte do
Poder Pblico em reconhecer alguns grupos indgenas que reivindicam identidade e territrio44.

Os dados da Diretoria de Assuntos Fundirios da FUNAI, em fevereiro de 2012 apontavam 71


povos indgenas presentes no Estado do Par cujos processos esto em diferentes estgios de
tramitao, envolvendo mais de 30 milhes de hectares de terra. (Benatti et al, 2013, p. 17)

Quanto aos quilombolas, o Estado do Par se mantm como o lder nacional no reconhecimento
destes direitos territoriais tendo expedido 47 ttulos que beneficiaram 101 comunidades,
espalhadas em 33 municpios, atingindo uma rea total de 457.185,9819 ha e beneficiando 4.677
famlias. (op. cit.)

43
Apesar de temidos, estes prepostos circulam normalmente pelas vilas e localidades dos municpios sem que sejam objeto de
investigao formal e sem serem indiciados pelas foras policiais locais que so no mnimo coniventes com os criminosos,
quando no mantm com eles relaes de franca cumplicidade. A ttulo de exemplo, no caso clebre da grilagem de milhes de
hectares pelo grupo CR Almeida, em Altamira, membros do corpo da Polcia Militar do Estado chegam a figurar na folha de
pagamentos da Companhia Incenxil, ligada CR Almeida. (Benatti et al, 2006: 27-28)
44
Um exemplo o caso dos ndios Tembs de Santa Maria do Par, por exemplo.
77
Passaremos em seguida a analisar e expor alguns dos mais perversos efeitos da falta de regulao
da apropriao territorial, que se d principalmente pela grilagem de terras, em suas relaes com
outras esferas (desmatamento, pecuria, trabalho escravo e conflitos fundirios).

3.3. DOS OUTROS EFEITOS RELACIONADOS A FORMA DE REGULAO DA


APROPRIAO TERRITORIAL NO PAR

At aqui pudemos constatar que o estado do Par no fugiu regra no que tange o processo
generalizado que moldou a manuteno das caractersticas regulatrias que regem a ocupao
territorial durante a histria fundiria brasileira. Isto quer dizer, em outras palavras, que as
caractersticas centrais que elencamos para delinear um padro histrico brasileiro de regulao
da apropriao territorial tambm so partilhadas no Par assim como os efeitos deletrios dele
originados.

Para continuarmos em nossa anlise, entretanto, necessrio trazer mais informaes que
corroborem para a nossa hiptese de que o Par seja um objeto de estudo privilegiado e, para
isso, trataremos nesta seo de trs caractersticas tpicas das manifestaes deletrias ensejadas
pelo padro ao qual nos referimos. De incio mostraremos como a questo do desmatamento na
fronteira amaznica dentro do Par diretamente influenciada pela forma de regulao fundiria,
em seguida mostraremos a conexo que existe entre esta forma de regulao e a pecuria
extensiva, especialmente ligada com a grilagem de terras e concentrao fundiria. Por ltimo
exporemos as caractersticas socialmente degradantes do trabalho escravo, violncia e conflitos
fundirios em geral que tem palco nas regies de expanso da fronteira interna, a exemplo do
Par.

3.3.1. Desmatamento

Alm da espoliao dos fundos pblicos, a economia da grilagem tambm est intimamente
ligada com outros setores de atividades, como o setor madeireiro. O financiamento privado da
atividade madeireira muitas vezes baseado na cesso de crdito, em troca da venda da madeira
para o financiador em condies de exclusividade e preo diferenciado. O acesso madeira,
atravs do controle de reas de extrao, ou de documentao ou ainda da posse de planos de
manejo que permitam justificar a sada da madeira, constituem garantias importantes da

78
capacidade de fornecimento do financiado, que justificam eventualmente a cesso de crdito. Em
campo, as madeireiras financiadas adiantam, por sua vez, emprstimos a serrarias locais,
gerenciadas por indivduos que adquirem a madeira de agricultores, populaes indgenas etc.
Esquemas desse tipo deram origem a intensa grilagem de terras a partir da explorao do mogno,
inclusive em reas indgenas na regio de So Flix do Xingu. (Benatti et al, 2006, p. 33)

S et al (2013), em estudo buscando a correlao emprica entre a expanso do cultivo de cana-


de-acar no estado de So Paulo com o desmatamento na Amaznia, mostram que a expanso
deste cultivo alhures gera indiretamente a mudana no uso da terra que incorre no desmatamento,
com um lag temporal de pelo menos 10 anos. Com isto evidenciam mais uma forma, indireta,
pela qual incide-se no desmatamento, sendo o elo causal relacionado com a expulso da pecuria
das reas de expanso de cana para regio amaznica, da qual o Par ocupa grande parte da
fronteira de expanso da pecuria floresta adentro, com alta incidncia de grilagem.

Segundo Carvalho (2012, p. 118), apesar de o desmatamento ser frequentemente explicado pela
teoria malthusiana do aumento da presso demogrfica sobre os recursos naturais limitados, o
caso da Amaznia Paraense essencialmente diverso. Como local de expanso da fronteira
interna, grande parte do incremento de populao foi sendo composto por trabalhadores rurais
migrantes e a degradao ambiental no se restringe simplesmente ao aumento da presso
demogrfica. As formas de ocupao produtiva so menos intensivas em mo de obra (pecuria,
extrao madeireira e extrao de minrios), mas a escala com que ocorre o desmatamento
florestal voltado utilizao por estas atividades extrativas que vem causando a destruio dos
recursos naturais neste montante elevado. Uma ilustrao deste fato se d na constatao da
crescente concentrao de capital e da terra nas mos de poucos e nmero crescente de mo de
obra no qualificada usada nas atividades extrativas (pecuria, madeira e minerao) que tem
causado no s prticas danosas ao meio ambiente nas prprias grandes propriedades - do
desmatamento da floresta formao de pastagens - quanto grandes danos ao solo agrcola por
meio da eroso do solo. Como exemplo, entre 1970-1985, a rea com pastagens artificiais do
Par aumentou de 467.849 ha (1,57% do total da rea de pastagens do Brasil em 1970) para
4.250.496 ha (5,74% do total da rea de pastagens artificiais do Brasil em 1985).

79
O que se ponde apontar de fato que a forma e o ritmo do desmatamento da floresta paraense
resultado das polticas de ocupao e desenvolvimento conduzidos pelo Estado brasileiro, atravs
das instituies e rgos criados durante a ditadura militar. A abertura e integrao da fronteira
amaznica economia nacional tm sido executadas pelo setor privado capitalista com o
patrocnio do governo federal. As atividades usadas para a integrao da fronteira amaznica a
economia nacional incluem a construo de estradas, a criao de gado, a extrao de madeira, a
agricultura comercial (soja e dend) colonizao dirigida e espontnea produtora de alimentos e,
mais recentemente, a indstria de minerao e os projetos de infraestrutura de energia
hidreltrica. O fato comum dessas atividades extrativas minerais e agropecurias na Amaznia
que todas so destruidoras de florestas virgens. (op. cit., p. 121-122)

Nepstad et al (2001) complementa esta anlise do desmatamento incluindo o papel das rodovias
no acesso s terras devolutas. Segundo os autores, a pavimentao de rodovias estimula o
desmatamento da floresta pelo acesso a grandes extenses de terras devolutas ao longo do
permetro das rodovias. Esta corrida por terras nessa rea tem contribudo para a valorizao das
terras na Amaznia. Alm disso, o incremento das exportaes de carne, soja e minrio tambm
contribuiu para o aumento da demanda por terra na regio da Amaznia paraense.

O que se pode perceber no Par, entretanto, que apesar do forte aumento do desmatamento
durante o governo FHC, a partir de 2002 o governo tem conseguido conter gradualmente a
expanso do desmatamento. Isto se deve nova tratativa do Ministrio do Meio Ambiente
(MMA) com relao extrao ilegal de madeira na Amaznia, intensificando a fiscalizao e
sustentando medidas de certificao de madeiras, alm da criao de novos mecanismos de
governana. Nas palavras de Carvalho (2012, p. 324):

[] o que se pode concluir a constatao de que novas instituies criadas para combater o
aumento do desmatamento da floresta amaznica e os mecanismos de governana adotados nas
polticas nacionais e estaduais de combate ao desmatamento da floresta amaznica no Par vm
obtendo resultados positivos nos ltimos anos.

3.3.2. Pecuria, soja e grilagem

A pecuria entra em cena como causador do desmatamento nas reas de fronteira assim que
ocorre o esgotamento da extrao madeireira, conduzindo geralmente ao desmatamento,

80
loteamento e revenda das terras (em sua maioria no tituladas e at em terras indgenas 45). Este
desmatamento aps a extrao das madeiras de lei ocasiona uma elevada valorizao do preo
das terras, muito frequentemente financiando os custos da expanso pecuria sobre as terras
griladas. (Reydon, 2011)

O deslocamento de gado para uma rea grilada e desmatada ilegalmente empresta, assim, as
aparncias de empreendimento produtivo a um processo de dilapidao do patrimnio coletivo
com altos custos sociais e ambientais. Tomando como exemplo somente o municpio de So
Felix do Xingu, v-se que este detentor de 10% do rebanho bovino do Estado do Par, com um
crescimento do rebanho de 780% em 7 anos. (Venturieri et al, 2004:11)

J quanto soja, sua entrada na Amaznia a partir de 1990 representa uma poderosa ameaa s
populaes tradicionais e biodiversidade. A dinmica econmica ensejada pela soja no Par
particularmente perversa por justificar grandes projetos de infraestrutura de transporte que, por
sua vez, iniciam uma cadeia de eventos que conduz destruio de habitats naturais em grande
extenso, alm das reas plantadas com soja (Fearnside, 2000). Alm dos investimentos em
infraestrutura de transporte, pode-se incluir ainda os incentivos fiscais e creditcios dados pelo
governo, que tambm somam-se para a ampliao da economia da grilagem e valorizao
especulativa da terra, em geral pblica, que justifica e custeia sua apropriao ilegal.

A ttulo de exemplo, o porto da Cargil em Santarm consolidou o municpio como estratgico


para o escoamento de gros por apresentar condies de se tornar um plo produtor e exportador,
dado que pelo menos dois grandes projetos de infraestrutura (BR-163 e hidrovia do Tapajs) tm
como destino final o porto do citado municpio. Disto tm resultado altos ndices de
desmatamento, violncia no campo, expulso de pequenos agricultores de suas terras e um
processo de ocupao urbana desordenado. (Costa, 2000, apud Benatti et al, 2006, p. 36-37)

A atividade da pecuria conhecidamente mais intensa nas reas de expanso da fronteira, sendo
o Par como um dos Estados que, devido ao seu tamanho e localizao, atualmente presencia esta
fase de expanso da fronteira interna. Neste sentido a figura 3 ilustrativa:

45
Como no caso dos Apiterwa. (Benatti et al, 2006:35; Procuradoria da Repblica no Par, 2007)
81
Figura 3. Quantidade e variao de bovinos, por municpio, 2000-2005.

Fonte: Thry et al, 2009:40.

A relao da expanso da pecuria coincide com o Arco do Desmatamento na regio norte, alm
de ter ntima conexo com a libertao de trabalhadores em condies anlogas escravido e
com conflitos fundirios, tema da seo seguinte.

3.3.3. Trabalho escravo e conflitos fundirios

O trabalho escravo est intimamente ligado com a atividade da pecuria na fronteira: das
atividades onde foram encontrados trabalhadores escravos, de acordo com o Atlas do Trabalho
Escravo de 2009, 49% dos trabalhadores em condies anlogas escravido resgatados estavam

82
ocupados em atividades de cuidados com pasto, sendo que o segunda atividade de maior
incidncia era o desmatamento, com 29,1%.

Figura 4. ndice de probabilidade de escravido para o Par, 2007.

Fonte: Thry et al, 2009, p. 62.

Carvalho (2012, p. 121) partilha desta mesma opinio, constatando que na Amaznia paraense a
expanso da pecuria expulsa ou assalaria o posseiro ou colono gato funcionrio ou no da
prpria empresa agropecuria para realizar o desmatamento e o plantio do capim para a
formao de pastagens artificiais. Este tipo de contrato informal dos pees evita o pagamento de
encargos sociais pela empresa e quase sempre transforma o trabalhador no num assalariado, mas
num trabalhador sujeito ao trabalho compulsrio por endividamento com base na instituio do
aviamento.

83
Ao exemplo da tabela 4, abaixo, podemos notar a predominncia do estado do Par no que tange
a ocorrncia de casos de trabalho escravo e superexplorao descobertos. Somente em 2012,
40,76% dos casos descobertos no Brasil inteiro se deram no estado do Par, totalizando 59
ocorrncias e envolvendo 1233 trabalhadores.

Tabela 4. Trabalho escravo e superexplorao no Par, Regio Norte e Brasil, 2012.


Trabalho escravo e superexplorao
Estado ou regio Trabalhadores na
Ocorrncias
denncia
Par 59 1.233
Regio Norte 97 1.814
Brasil 182 3.025
% Par/Brasil 32,42% 40,76%
Fonte: CPT, 2013.

No que tange a violncia contra a pessoa (tabela 5), vemos que o Par como um nico estado
responde por mais de 25% das pessoas envolvidas em conflitos no Brasil em 2012.

Tabela 5. Violncia contra a pessoa no Par, Regio Norte e Brasil, 2012.


N. de conflitos Pessoas envolvidas
Par 166 164.198
Regio Norte 427 243.239
Brasil 1.364 648.515
% Par/Brasil 12,17% 25,32%
Fonte: CPT, 2013.

Em outro trabalho, conduzido por Fernandes et al (2007) temos que 70% de todos os casos de
trabalho escravo no Brasil no perodo de 1995 a 2002 foram localizados no estado do Par.

Como elucidado anteriormente, a partir de 2008 um processo de fechamento do cerco das terras
pblicas e devolutas pelas elites fundirias, em detrimento dos pequenos posseiros, indgenas e
quilombolas, tornando especialmente a regio da Amaznia Legal novamente em palco dos
conflitos fundirios - gerando, nas palavras de Oliveira et al (2013, p. 28), o retorno barbrie
dos anos dos governos militares na regio.

Thry et al (2009, p. 49) ressalta que a violncia a caracterstica que marca a luta pela terra no
Brasil. Se, entre os anos 1960 e 1970, o foco principal do processo era o Nordeste, a partir de
1972 o fenmeno concentrou-se na Amaznia, atingindo tanto posseiros como indgenas.

84
As mortes em conitos no campo, em todo o pas, demonstram a continuidade temporal e
espacial da violncia. Especialmente no Estado do Par episdios como o de Eldorado de Carajs
(em 1996) e a morte de Dorothy Stang (em 2005) que representam casos vastamente mediados da
morte de camponeses sem terra, estaro sempre na memria.

Tabela 6. Violncia relacionada a ocupao e posse no Par, Regio Norte e Brasil, 2012.
Tentativa de
N de Famlias Famlias Ameaadas
Famlias rea (ha) ameaa ou Pistolagem
ocorrncias expulsas despejadas de despejo
expulso
Par 89 12.471 526.599 325 193 3.012 2.677 5.895
Regio Norte 302 26.906 11.362.715 352 903 7.086 5.322 7.705
Brasil 1.067 92.113 13.181.570 1.388 7.459 16.802 21.375 19.968
% Par/Brasil 8,34% 13,54% 3,99% 23,41% 2,59% 17,93% 12,52% 29,52%
% Norte/Brasil 28,30% 29,21% 86,20% 25,36% 12,11% 42,17% 24,90% 38,59%
Fonte: CPT, 2013.

Utilizando os dados da tabela 6 acima, podemos perceber a preponderncia da regio norte com
relao a rea total encampada com violncia relacionada a ocupao e posse (86,20%).
Entretanto, o que mais nos interessa aqui assinalar o alto ndice de pistolagem no Par, com
7705 casos registrados somente no ano de 2012.

Fernandes (1999, p. 72) nos revela dados surpreendentes sobre os conflitos ao final da dcada de
1970 e nicio da dcada seguinte:

Somente em Conceio do Araguaia, no comeo de 1978, havia 43 reas de conflitos identificados e


cadastrados. Seis meses depois chegam a 55 as reas conflitadas e no final do ano j ultrapassavam 80
(Kotscho, 1982). Entre 1979 e julho de 1981 ocorreram no Par 151 conflitos, envolvendo 37.874
famlias, equivalente a 208.272 pessoas numa rea de 13.511.865 ha (BRASIL. MIRAD, 1986a).

Conhecidamente o Par o principal foco de violncia rural no Brasil h pelo menos duas
dcadas. Partiremos agora para a exposio de dados que comprovem o alto ndice de conflitos
violentos no campo. No relatrio anual de conflitos no campo da Comisso Pastoral da Terra
(2003, p. 9) temos que entre 1985 e 2001 ocorreram no Par 38% do total de assassinatos de
trabalhadores rurais 472 mortes, do total de 1.327. Entretanto este mesmo relatrio apresenta
tambm uma comparao com o Inventrio de Registros e Denncias de Mortes Relacionadas
com a Posse e Explorao de Terra no Estado do Par entre 1980-2001, chamando ateno para
o possvel subdimensionamento da amostra colhida pela prpria CPT. Neste Inventrio, por
exemplo, no perodo de 1995-2001 foram registrados 261 ocorrncias com 328 vtimas mortais
85
(uma diferena de 352,6% em comparao com os dados da CPT, o que s gera mais espanto,
visto que o Inventrio uma publicao oficial do estado).

Sabendo que o Par palco da maior parcela dos conflitos do campo brasileiro consistentemente,
podemos explorar a variao ano a ano desde 2001 destes conflitos no estado. De acordo com os
dados ilustrados na figura 5, abaixo, temos que os anos de 2002, 2005, 2007 e 2009 foram anos
de pico de conflitos, afetando entre 17,42 e 18,43 mil famlias. Com relao ao nmero de
ocorrncias de conflitos temos o pico no ano de 2009, com 160 conflitos registrados e o menor
valor registrado sendo 75, no ano de 2004.

Figura 5. Conflitos no campo, Par, 2011-2012.

Fonte: Comisso Pastoral da Terra, Conflitos no Campo, Brasil vrios anos.

Por fim, mostramos que os altos nveis de violncia somados com os maiores ndices de trabalho
escravo, sendo o Par atualmente um dos maiores focos de expanso da fronteira interna no
Brasil, s corroboram com o que enunciamos nos captulos anteriores sobre o padro de
regulao da apropriao territorial e as mazelas engendradas pelo mesmo.

86
CONCLUSES DO CAPTULO

O avano sobre as florestas e sobre os povos indgenas e tradicionais que as habitam uma marca
constante no desenrolar da histria da ocupao brasileira. Atrs desta vanguarda da expanso da
fronteira interna restam os conflitos em torno do domnio real das terras apropriadas e todas as
mazelas engendradas por este processo.

O que mostramos do caso atual do Par como regio onde este processo ocorre atualmente est
em linha com o que tentamos delinear nos outros captulos como uma forma que segue em sua
essncia durante os sculos de histria fundiria brasileira. Em outras palavras, expusemos as
caractersticas histricas da regulao da ocupao de terras no estado e percebemos que estas se
deram da mesma maneira que na grande maioria do pas, atravs da permissividade com a
apropriao privada de terras devolutas e uma regulao dbil incapaz de impedir que a terra seja
sempre distribuda de forma concentrada grandes propriedades nas mos de poucas pessoas.

Mostramos tambm que esta forma de regular a apropriao territorial traz consigo a manuteno
da insegurana jurdica e a continuidade da espoliao do patrimnio pblico at os dias de hoje
com exceo de um breve perodo entre 2007 e 2010 onde houve, como luminoso ponto fora da
reta, uma coeso de interesses nunca antes vista voltada para a correo desta ausncia
regulatria e contraria ao saque contra o patrimnio pblico de terras.

Apesar de a intensidade das caractersticas do padro de ocupao do solo ser levada ao limite no
caso do Par por localizar-se num dos lugares geogrficos onde se d atualmente a expanso da
fronteira interna, vimos que, em essncia, as mazelas que se manifestam so as mesmas elencadas
nos outros captulos: desmatamento, violncia, conflitos fundirios, etc. A intensidade destes
efeitos deletrios no Par se confirma especialmente por meio da violncia no campo: o estado
onde esta concentrado o maior nmero de ocorrncias de trabalho escravo assim como onde se
do o maior nmero de conflitos fundirios e assassinatos relacionados a estes.

Gostaramos de finalizar este captulo com uma concluso dupla advinda da anlise do caso
paraense: se nestas regies por onde caminha a fronteira interna que a intensidade dos efeitos
deletrios advindos da forma pela qual se apropriam as terras no Brasil, por outro lado
extremamente importante compreender como foi possvel que, exatamente nesta mesma regio,
87
se deu uma tentativa de efetiva governana fundiria, sui generis exatamente por se direcionar
centralmente para as caractersticas que elencamos como maiores fontes de perpetuao da forma
de apropriao territorial brasileira.

88
CAPTULO 4. MANIFESTAES DECORRENTES DA FORMA DE
REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL BRASILEIRA
INTRODUO AO CAPTULO

Conhecemos muito bem que a estrutura fundiria brasileira concentrada desde os primrdios da
colonizao portuguesa nestas terras sul-americanas. Atravs dos captulos anteriores pudemos
traar como se desenrolaram desde ento as aparentes mudanas na regulao fundiria at 1964
e a partir de l at a atualidade. At aqui expusemos um padro que se manteve apesar de
mudanas em sua forma durante todo este perodo e delimitamos algumas caractersticas
primrias do mesmo, como a constante expanso da fronteira interna por via do apossamento
privado de terras devolutas, a manuteno da concentrao fundiria e a violncia no campo,
especialmente nas reas de fronteira tudo isto decorrente de certa conformao dos mecanismos
regulatrios que, na prtica, sempre evitou qualquer alterao estrutural neste padro
extensivamente descrito. Exemplificamos com o caso do estado do Par que, apesar destas
caractersticas se manterem no estado, existiu um importante esforo na direo contrria visando
tomar controle das terras pblicas seja por via de arrecadao de terras devolutas ou
esclarecendo os limites das terras pblicas estaduais, municipais e federais.

No presente captulo utilizaremos esta conformao que chamamos de padro de apropriao


territorial e buscaremos nos dados do perodo a partir de 1964 se houve sua manuteno ou se
houve alguma forma de rompimento levando a uma nova forma de apropriao territorial e como
esta se conformaria. Para isso, comearemos retratando a estrutura agrria no tempo, incluindo o
impacto de polticas que se propuseram a alterar esta mesma estrutura e dados sobre a violncia
no campo. Em seguida delinearemos os principais fatores regulatrios que pressionam na direo
da manuteno deste mesmo padro e, por ltimo, analisaremos uma srie de sintomas
decorrentes da continuao destas caractersticas essenciais que conformam a maneira como se
d a ocupao das terras no Brasil.

4.1. DA PERMANNCIA DA MESMA ESTRUTURA AGRRIA

Debruando-nos sobre a histria do desenvolvimento da fronteira interna no Brasil pudemos


compreender que cada momento de sua expanso envolve a apropriao privada de terras

89
devolutas e tendncia a concentrao, alm de ser acompanhada tambm por uma mirade de
conflitos mais ou menos violentos relacionados terra. Nas ltimas duas dcadas uma das
promessas de alterao estrutural neste quadro se baseou na execuo de uma reforma agrria,
incluindo desapropriaes e criao de assentamentos.

Nesta seo mostraremos como a estrutura fundiria manteve sua histrica concentrao sem
grandes alteraes, alm de mostrarmos que os esforos de reforma agrria, apesar de
significativos e importantes por outros motivos, tambm no alteraram efetivamente esta
estrutura. Por fim, traremos dados sobre violncia no campo durante o perodo recente para
apontar que sua existncia constante mais um fator que pertence ao padro pelo qual se d a
apropriao de terras no pas.

4.1.1. Concentrao da estrutura agrria se mantm

Girardi (2008) calcula o ndice de Gini para desigualdade fundiria a partir dos dados da estrutura
fundiria do Incra46. parte as divergncias de abordagem, ele expe representaes grficas
pertinentes no mbito da visualizao regional da desigualdade fundiria brasileira.

De acordo com o mesmo estudo, em 2003 o ndice de Gini para o Brasil era de 0,816 e a sua
evoluo entre 1992 e 2003, de apenas -0,010, o que seria uma confirmao de que as polticas de
reforma agrria no tocaram na concentrao geral da estrutura fundiria brasileira. A figura 6,
abaixo, representa o ndice de Gini suavizado para as diversas regies municipais do pas.

46
De acordo com Girardi (2008), sobre a metodologia: calculamos o ndice a partir dos dados da estrutura fundiria de 1992,
1998 e 2003 do INCRA. Somente os dados dos imveis rurais, em especial das propriedades, podem fornecer informaes sobre a
real concentrao de terra. Esses dados indicam quem detm a terra e por isso pode extrair a renda da terra. Utilizar os dados do
Censo Agropecurio (estabelecimentos agropecurios) para calcular o ndice de Gini seria desconsiderar o pagamento da renda
pr-capitalista da terra, condio qual so submetidos os produtores que no so proprietrios. Apesar de tomarmos os dados do
INCRA, ou seja, dos imveis rurais, devemos reconhecer a possibilidade da concentrao da terra no Brasil ser ainda maior, pois
vrios proprietrios possuem mais de um imvel rural.
90
Figura 6. ndice de Gini da estrutura fundiria municipal em 2003, com dados suavizados.

Fonte: Girardi, 2008.

Hoffmann e Ney (2010) tambm analisaram a evoluo do ndice de Gini para a desigualdade
fundiria brasileira, entretanto usam uma metodologia e fonte diversa do estudo de Girardi
(2008), baseando-se nos dados dos Censos Agropecurios e da PNAD ao invs dos dados do
Cadastro de Imveis do Incra.

91
Antes da anlise dos argumentos do estudo, cabe um esclarecimento bem colocado:

Uma desigualdade fundiria elevada caracterizada pelo fato de haver uma grande proporo da rea
total ocupada por uma pequena proporo dos estabelecimentos. Se tivssemos uma situao hipottica
de uma regio onde houvesse um pequeno nmero de latifndios e todos com o mesmo tamanho, a
proporo acumulada da terra seria sempre igual proporo acumulada dos estabelecimentos. O
resultado seria um ndice de Gini igual a zero, mesmo em um contexto de grande concentrao
fundiria, no qual a maior parte da populao no tem terra para plantar. (Hoffmann, 1998, apud
Hoffmann e Ney, 2010)

Tabela 7. Proporo da rea total ocupada pelos 50% menores (50-) e 5% maiores (5+)
estabelecimentos, conforme condio do produtor. Censo Agropecurio, 1975 a 2006.

Fonte: Censos Agropecurios, IBGE, apud Hoffman (2010, p. 20)

A tabela 7 mostra que entre 1975 e 2006 a rea ocupada pelos 5% maiores estabelecimentos
agropecurios manteve-se acima de 68,7% da rea total, enquanto os 50% menores ocuparam no
mximo 2,5% da rea total, em 1975 de l para c perceptvel ainda uma tendncia de
diminuio da parcela total de rea ocupada pelos mesmos para 2,3% da rea total. A
desigualdade fundiria to elevada que a rea total ocupada pelo extrato dos 5% maiores 30
vezes superior ocupada pelos 50% menores.

Entretanto, como advertem Hoffmann e Ney (2010), crescimento da desigualdade fundiria no


o mesmo que concentrao da posse de terra pelos latifndios, este crescimento da
desigualdade fundiria ocorre devido ao crescimento do nmero de pequenos estabelecimentos:

Ainda que possa ter ocorrido, a partir de 1995, o crescimento da desigualdade fundiria, ele no deve
ser erroneamente interpretado como aumento da concentrao da posse da terra pelos latifndios. Se
tivesse acontecido apenas o crescimento dos latifndios, a rea mdia dos estabelecimentos deveria
aumentar. Ela, porm, diminuiu de 73,1 para 67,1 ha (ver tabela 6). A reduo foi ainda mais intensa

92
entre os proprietrios: de 92,0 para 77,8 ha. Considerando esta categoria de produtores agrcolas, nota-
se que houve uma queda percentual ainda maior da rea mediana de 15,2 para 11,9 ha (21,7%). Os
dados indicam que o ndice de Gini aumentou entre os proprietrios de terra essencialmente devido ao
crescimento do nmero de pequenos estabelecimentos.

Sendo que a disparidade na distribuio da terra alta em todas as unidades da federao, para
conseguir localizar geograficamente onde ficam os latifndios, preciso considerar a rea mdia
das propriedades. Assim, nota-se que Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Amap, alm de
estarem entre os estados com maior desigualdade fundiria (0,857, 0,865 e 0,851), possuem
tambm as maiores reas mdias dos estabelecimentos agrcolas (465,6, 427,0 e 283,0 hectares),
indicando que nestes casos h uma clara concentrao da terra em latifndios47.

No que tange a elevada disparidade na distribuio da posse de terra, em 2008 os 50% menores
empreendimentos ocupam 2,2% da rea total agrcola, enquanto os 10%, 5% e 1% maiores se
apropriam, respectivamente, de 79,4%, 69,1% e 41,9% da rea. (op. cit., p.27)

Por ltimo, notvel o resultado da estimativa do ndice de Gini com a incluso de uma categoria
de sem-terras, ou seja, incluindo as pessoas de referncia de domiclios particulares que esto
ocupados como empregados no setor agrcola como se fossem donos de uma propriedade de rea
nula48:

A proporo de sem-terra no total de pessoas considerado permanece entre 40% e 43% de 1992 a
2003, supera 43% a partir de 2004 e atinge quase 47% em 2007 e 2008. [] em 2008, o ndice de Gini
da distribuio fundiria, em todo o pas, sobe de 0,857, nas estimativas que consideram apenas a
distribuio da rea entre conta prpria e empregadores, para 0,924, nas que tambm consideram os
empregados chefes de domiclio. A proporo da rea total apropriada pelos 50 - , por sua vez, cai de
2,2% para 0,01%, e pelos 10 + , 5 + e 1 + sobe, respectivamente, de 79,4%, 69,1% e 41,9%, para
87,8%, 78,2% e 52,9%. (op. cit., p. 32-33)

47
A disparidade na distribuio da terra alta em todas as unidades da federao, sendo que sete estados tm ndice de Gini
maior ou igual a 0,85, oito e mais o Distrito Federal de 0,80 a menos de 0,85, cinco estados de 0,75 a menos de 0,80, trs de 0,70
a menos de 0,75, e apenas dois, Santa Catarina e Roraima, com menos de 0,70 (ver tabela 6). Alagoas tem a desigualdade
fundiria, medida pelo ndice de Gini, mais elevada, 0,871, seguido pelo Maranho, 0,866, Mato Grosso, 0,865, Cear, 0,862,
Mato Grosso do Sul, 0,857, Piau, 0,856, e Amap, 0,851. Nota-se ainda que Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Amap no s
esto entre os estados com maior desigualdade de terra, como tambm com maior rea mdia dos estabelecimentos agrcolas:
465,6, 427,0 e 283,0 hectares, respectivamente. Nestes casos h uma clara concentrao da terra em latifndios. J os estados
nordestinos, como Alagoas, por exemplo, tm desigualdade fundiria alta, mas a agricultura tambm caracterizada por uma
grande participao de pequenas propriedades agrcolas (IBGE, 2009, apud Hoffman, 2010, p. 22).
48
Optou-se por considerar como sem terra aqueles que so pessoas de referncia de domiclios particulares e que esto
ocupados como empregados no setor agrcola (conforme definio utilizada na PNAD, que engloba agricultura, pecuria,
silvicultura, explorao florestal, pesca e aquicultura). A tabela 11 mostra os resultado obtidos incluindo esses sem terra como
se fossem empreendimentos de rea nula. Alm disso, foram tambm includos os conta prpria e empregadores com rea
inferior a 0,1 ha. Foi mantida a excluso dos empreendimentos com mais de 10 mil hectares a fim de minimizar os problemas das
fortes flutuaes aleatrias causadas pelos erros de amostragem, particularmente grave na cauda superior da distribuio de terra,
tal como j foi analisado anteriormente (Hoffmann e Ney, 2010, p. 32)
93
Na tabela 8, abaixo, vemos como a incluso da categoria de pessoas que vivem no campo e no
tem terras muda drasticamente a estimativa dos ndices de desigualdade fundiria, em especial no
seu impacto na quantidade total de terras dos 50% menores nos ltimos anos.

Tabela 8. Caractersticas da distribuio fundiria incluindo, com rea nula, as pessoas de


referncia de domiclios particulares com atividade principal como empregado no setor
agrcola, de acordo com os dados da PNAD. Brasil, 1992 a 2008.

Fonte: Hoffmann e Ney, 2010, p. 33.

Aps esta apresentao breve no resta dvida que sobre a concentrao fundiria se mantm de
forma estrutural, o que nos permite partir para o ponto seguinte no que tange traar um panorama
geral que confirme primeiramente que o tal padro de concentrao territorial existe e se mantm.
Dado esta estrutura vista no primeiro tpico da seo, passemos para a anlise dos esforos de
alterao da estrutura fundiria via reforma agrria nas ltimas dcadas.

94
4.1.2. Reforma agrria insuficiente e declinante

Como visto no tpico anterior, a estrutura fundiria brasileira se mantm extremamente desigual
(alto ndice de Gini), em todos os perodos para os quais dados foram apresentados. Apesar dos
volumes de rea destinados a assentamentos e famlias assentadas, alardeados nos anos ps-
Constituinte, sobretudo desde 1995, mostraremos que a poltica de reforma agrria de corte
compensatrio no teve efeitos sobre a estrutura fundiria brasileira.

Tabela 9. Projetos de reforma agrria em execuo, segundo ano de criao do projeto,


Brasil 1900-2008.

Fonte: Ferreira et al (2009, p. 201)

De acordo com a tabela 9, pode-se verificar a distribuio dos assentados conforme o ano de
criao dos projetos de assentamentos. Os projetos criados at 1994 correspondem por 18,5% do
total de famlias assentadas em 2008. Em projetos criados entre 1995 e 2002, esto 46,6% dos
atuais assentados da reforma agrria e dos criados entre 2003 e 2008, esto os demais 34,9%
destes.

Dos mais de oito mil projetos de assentamento sob responsabilidade do Incra, 936 so projetos
antigos, criados at 1994. A grande maioria dos projetos no atingiu as fases de consolidao.
95
Estavam, em 2009, nas fases iniciais ou intermedirias de execuo 79,7% dos projetos,
correspondendo a 74,5% do pblico de assentados. Mesmo nos assentamentos mais antigos,
aqueles criados at 1994, somente 31,8% dos assentamentos estavam classificados como
consolidados. Tais nmeros revelam a grande dificuldade de se conseguir a emancipao das
famlias atendidas pela poltica nacional de reforma agrria. Dentre os principais fatores que
mantm os assentamentos sem condies de se emanciparem, o principal gargalo a falta de
proviso de infraestrutura: os ndices so deficientes quanto a construo de estradas, habitaes,
crditos, assistncia tcnica, educao e abastecimento de gua49 (Ferreira et al, 2009, p. 203).
Sem essa proviso de infraestrutura bsica, a parcela da populao sem-terra que consegue ser
assentada acaba topando com uma parede intransponvel na maioria das vezes, ao invs de uma
porta de sada como pretendido.

Girardi (2008) analisando outra base de dados, aponta para as mesmas concluses. Conforme a
tabela 10, abaixo, apesar de um nmero divergente de 7.666 assentamentos criados desde 1979
at 2006, com rea total de 64 milhes de hectares, ainda assim no houve qualquer alterao
significante na estrutura fundiria brasileira o que se encontra em paralelo a caracterstica
excludente da forma de apropriao territorial que tentamos traar no captulo anterior.

49
Detalhes apresentados em Ferreira et al (2009. p. 203): tanto no incio de 2003 quanto no final de 2007, mais de dois teros
dos projetos de assentamentos no tinham Plano de Desenvolvimento; em 2003, 42% dos assentados ainda no tinham obtido
crdito de apoio inicial, percentual que de 32,7% em 2007; 58% no tinham crdito para habitao em 2003, pouco reduzindo
em 2007 para 40,7%; o dficit de abastecimento de gua era de 93% em 2003, passando para 63% em 2007; 89% das famlias
assentadas no eram atendidas por eletrificao rural em 2003, percentual que reduz bastante, porm ainda elevado, para 37%, em
2007
96
Tabela 10. Ocupaes e assentamentos, Brasil, 1979-2006

Fonte: Girardi (2008), base de dados do Dataluta.

Outro fator interessante do processo de reforma agrria de corte compensatrio que a maior
intensidade de ocupaes ocorrerem na parte centro-sul e em regies do nordeste, regies de
ocupao consolidada onde h maior concentrao populacional, melhor infraestrutura para
produo, maior mercado consumidor e acesso a servios bsicos como educao, sade,
eletricidade e saneamento, ou seja, regies onde a interveno seria mais significativa. Entretanto
a concentrao de assentamentos se d alhures, concentrada na regio norte (cf. figura 7, abaixo).
Isto, por outro lado, evidencia a conformao da fronteira de ocupao atual e rea de maior
intensidade de conflitos fundirios, que ser analisada no prximo item.

97
Figura 7. Famlias em ocupaes e famlias assentadas, Brasil, 1988 a 2006.

Fonte: Girardi (2008), base de dados do Dataluta.

Vimos ento que os esforos de reforma agrria de corte compensatrio, apesar de necessrios,
claramente no foram suficientes para transformar estruturalmente a base fundiria brasileira.
Alm disso, a demanda de terras se dar nos locais com maior infraestrutura e a localizao dos
assentamentos criados se darem majoritariamente em regies atuais de expanso da fronteira

98
interna dentro do atual contexto de falta de regulao que descrevemos incorre na exploso de
conflitos e aumento da violncia rural, conforme veremos a seguir.

4.1.3. Conflitos no campo aumentando

A partir de 2003 os conflitos fundirios vm mantendo um alto patamar, em comparao com a


dcada de 1980 e 1990. O perodo recente se caracteriza por diversos fatores alm da manuteno
da forma de ocupao das terras, como a intensificao da dinmica da agropecuria, em especial
a que voltada exportao, apoiada numa forte poltica pblica de incentivos e a omisso do
Estado com relao aos movimentos sociais do campo, presente em duas vias: tanto da
malemolncia com que se d a reforma agrria compensatria quanto na ausncia de regulao
fundiria que permita efetivar o cumprimento das leis que, por mais que contenham deficincias,
ainda assim no so aplicadas de acordo.

Este cenrio desemboca numa tendncia de manuteno do alto patamar de conflitos, comparado
com a dcada de 1980 e acirramento dos mesmos no perodo mais recente, conforme a tabela 11
e figura 8, abaixo.

Tabela 11. Conflitos fundirios, Brasil 2002 a 2011

Fonte: Comisso Pastoral da Terra, 2011.

99
Figura 8. Mdia anual de conflitos por terras, Brasil 1985 a 2010

Fonte: Comisso Pastoral da Terra (2012), p. 74.

No ano de 2011 o nmero de conflitos fundirios aumentou em 21,34% em relao a 2010, ao


passar de 853 para 1.035. Esse aumento foi distribudo de forma generalizada pelos estados:
houve aumento em 17 das 27 unidades da Federao, em duas outras o nmero se manteve igual
ao de 2010. (Comisso Pastoral da Terra, 2012)

A anlise dos diferentes grupos sociais envolvidos em conflitos (figura 9) revela a ampla
dominncia da ao da categoria poder privado que foi considerada empiricamente com a
coleta de dados sobre prticas violentas como expulso de famlias, assassinatos e ameaas de
morte. So 693 aes violentas do grupo poder privado, em face da ao do poder pblico
que pequena, com menos de 100 registros no total dos conflitos.

Com relao participao dos movimentos sociais enquanto protagonistas das aes, possvel
observar que, mais uma vez, cai sua participao relativa no total dos conflitos: de 25%, em
2010, para 22% em 2011, com 200 ocupaes e 30 acampamentos. Essa queda relativa da
participao dos movimentos sociais refora a argumentao da edio anterior do relatrio
Conflitos no Campo (Comisso Pastoral da Terra, 2011), que salientava a ascenso do papel do
Poder Privado como maior responsvel pela escalada de conflitos no espao agrrio brasileiro,
dada a forma agressiva com que tem avanado a agropecuria, especialmente nas fronteiras
agrcolas.

100
Figura 9. Distribuio dos conflitos de terra por protagonista, Brasil 2011.

Movimentos
Outros
Sociais
3%
22%

Poder pblico
8%

Poder privado
67%

Obs: nmero total de


conflitos foi de 1035

Fonte: Comisso Pastoral da Terra, 2011. Elaborao do autor.

Ainda de acordo com a Comisso Pastoral da Terra (2012), a violncia do poder privado se
destaca na regio da Amaznia Legal, concentrando 69% do total geral de ocorrncias no pas, ao
passo que corresponde a 49% das aes advindas do poder pblico no pas.

Uma anlise mais pormenorizada ressalta a violncia protagonizada pelo grupo poder privado,
com destaque para os fazendeiros com 24,42% do total entre todas as categorias sociais (de
acordo com a metodologia da CPT), seguidos pelos movimentos sociais (22,29%), empresrios
(20,06%) e grileiros (14,73%), conforme a tabela 12, abaixo.

101
Tabela 12. Categorias sociais envolvidas em conflitos, Brasil - 2011

Fonte: Comisso Pastoral da Terra (2012), p. 79.

102
J com relao s categorias sociais que sofreram violncia em 2011, destaca-se a
predominncia de vitimizao das populaes tradicionais (quilombolas, indgenas, ribeirinhos,
etc.), com quase 60% dos casos, seguidos pelos sem-terra (21,86%) e assentados (11,06%),
conforme a tabela 13, abaixo.

Tabela 13. Categorias sociais que sofreram violncia, Brasil - 2011

Fonte: Comisso Pastoral da Terra (2012), p. 79.


A figura 10, abaixo, corrobora com o argumento de que o maior ndice de violncia 50 contra a
pessoa no campo, no perodo que vai de 1996 at 2006, tem ocorrido nas reas de fronteira
agropecuria, com maior intensidade no sudeste do Par, oeste da Bahia e, com menor
intensidade, no estado do Mato Grosso.

50
De acordo com Girardi (2008), o ndice considera o nmero de assassinatos, tentativas de assassinatos, ameaas de morte e a
mdia entre o nmero de trabalhadores escravizados libertados pelo MTE e o nmero de trabalhadores escravizados em denncias
CPT.
103
Figura 10. ndice de violncia contra a pessoa no campo, Brasil 1996 a 2006

Fonte: Girardi (2008), utilizando dados da CPT e do MTE.

Complementando as estatsticas sobre violncia no campo, no podemos esquecer a histrica


opresso contra os indgenas. No que tange o perodo recente, podemos ver que entre os
grupamentos humanos, os indgenas so os que proporcionalmente mais sofrem violncia. Dos 36
assassinatos em Conflitos no Campo em 2012, seis foram de indgenas, 16,7%. So tambm
indgenas 68, dos 295 ameaados de morte, 23,1%. (Comisso Pastoral da Terra, 2013, p. 119)

104
Evidencia-se, portanto, que apesar da manuteno de um patamar elevado de violncia no campo
desde 2003, h um movimento recente de crescimento da violncia no campo, como
demonstrado, partindo dos proprietrios de terra, tendo como foco geogrfico mais intenso a atual
rea de fronteira da agropecuria.

4.2. CAUSAS DA FALTA DE REGULAO DA APROPRIAO TERRITORIAL

Se na seo anterior expusemos a permanncia de sintomas perversos da forma como se mantm


a regulao (ou falta dela) da ocupao do territrio, nesta seo objetivamos expor algumas
evidncias que esclaream as vias pelas quais estes sintomas se perpetuam. Diferentemente dos
dois primeiros captulos, entretanto, procederemos mais materialmente, ou seja, exporemos os
dados objetivos pressupondo a compreenso do movimento tratado nos captulos anteriores.

Iniciaremos com um panorama geral da conformao econmica e poltica atual da agropecuria


e seus interesses, especialmente no que tange sua interao com o Estado e o setor externo.
Depois desta contextualizao ser feita uma anlise do problema crucial da falta de regulao
fundiria e sua manifestao no mbito regulatrio e institucional (ausncia de cadastro
consolidado das propriedades rurais, o imposto territorial rural).

H tempos a discusso sobre a questo agrria brasileira tem estado em segundo plano tanto em
mbito prtico quanto terico. Discutem-se programas de reforma agrria compensatrios,
eficincia na agricultura, sustentabilidade ambiental, mas raramente toca-se nos efeitos concretos
da forma como se d a apropriao territorial e suas consequncias, das quais a atual estrutura
fundiria concentradora e excludente somente uma faceta.

Atualmente os interesses dos grandes detentores de terras se traduzem na manuteno da aposta


na modernizao tcnica do campo restrita s grandes e, quando possvel, mdias propriedades.
Se antes de 1964 essa posio era respaldada pelo peso histrico da classe latifundiria
tradicional, depois do golpe ela contou com o respaldo militar e uma estratgia de modernizao
agrcola, subvencionada pelo Estado. Hoje esse arranjo conservador se apoia no poder econmico
do agronegcio, que os militares ajudaram a construir, contando tambm com uma forte
representao poltica a bancada ruralista que se estrutura em vrios partidos e detm entre
um quarto e um tero de deputados e senadores, votando no Congresso segundo sua orientao.

105
Esta opo, qual seja, a de modernizao tcnica sem reforma, ganha fora poltica precisamente
pelo fato de se compor um modelo de ajustamento constrangido da economia brasileira s
restries do setor externo.

No diagnstico de Delgado (2005, p. 83-84), esta opo pela modernizao tcnica sem reforma

Ao viabilizar-se como orientao concertada de poltica econmica, agrcola, e externa, imiscuindo-se


tambm no campo ambiental, agrava o quadro da excluso no campo agrrio. Esse ajuste
praticamente prescinde da fora de trabalho assalariada no especializada e da massa de agricultores
familiares no associados ao agronegcio (trs quartos do total). tambm um arranjo da economia
poltica que rearticula o poder poltico com o poder econmico dos grandes proprietrios rurais. Nesse
processo, converte-se o campesinato em imenso setor de subsistncia, no assimilvel ao sistema
econmico do prprio agronegcio ou da economia urbana semi-estagnada.
Contudo, a restrio macroeconmica que confere poder ao agronegcio gerar saldos de divisas
transferveis ao exterior impe aos demais setores industriais e de servios no comprometidos com a
gerao desse saldo comercial a necessidade de restringir seu crescimento, de sorte a no pressionar as
metas do ajustamento externo. Em resumo, a demanda interna que normalmente seria impactada
positivamente pelas exportaes fica bloqueada pela poltica de esterilizao a qualquer custo do fluxo
monetrio oriundo do saldo agroexportador. importante destacar que na atual conjuntura de ajuste
externo os altos saldos de comrcio atendem ao dficit da Conta Corrente, enquanto o supervit fiscal
primrio atende ao servio da dvida interna.

Portanto a soluo modernizadora atual tem vrias similaridades com a modernizao


dolorosa dos anos 1970, exceto a viabilidade do crescimento do conjunto da economia. Isto
posto, pode-se considerar este como um entrave estrutural gerado pela no resoluo da questo
agrria conforma-se ela como um problema que impacta diretamente na capacidade de
continuao do desenvolvimento socioeconmico brasileiro, tornando-a questo de primeiro
plano.

Ferreira et al (2009, p. 219), parte de princpio semelhante ao dizer que h tempos pratica-se
uma espcie de assepsia da questo agrria brasileira. Pelo menos desde a ltima dcada, as
aes programadas procuram encobrir ou at ignorar a verdadeira dimenso dos conflitos de
classe no meio rural de forma a iludir e acalmar os nimos, inibir a ao das organizaes dos
trabalhadores e fragment-las. Esta prtica retrica favorece a repetio da ocorrncia de desvios
dos benefcios da ao pblica a favor dos poderosos em detrimento das populaes pobres,
contraditoriamente, anunciadas como as principais beneficirias das intervenes. Eis a uma das
facetas da permanente reconstruo e defesa do padro de apropriao territorial aqui em voga:
sempre o mesmo ritual, recorrente em nossa histria.

106
As maiores manifestaes da ausncia de regulao fundiria podem ser captadas nas falhas e
incapacidades estruturais do atual modelo legal, institucional e regulatrio da propriedade rural,
sendo assim pretende-se iluminar as fissuras que permitem sua subverso na prtica,
conformando o que poderamos entender como manuteno de um mesmo padro pela negao
de alteraes no mesmo, ao contrrio de uma manuteno propositiva o que traduz o carter
conservador deste padro de ocupao territorial.

4.2.1. A recriao da possibilidade legal de apossamento de terras devolutas

De todos os problemas que dificultam a regulao da terra e, portanto, a perpetuao de uma


forma de apropriao territorial deletrias, o problema com o apossamento de terras devolutas o
mais premente e, ao mesmo tempo, o mais ancestral, remontando s origens da ocupao
brasileira.

Vimos no captulo 1 as diferentes formas que, apesar de novas roupagens, constituam em


essncia a manuteno desta caracterstica central: primeiro o governo imperial declara, atravs
da lei de terras de 1850, a ilegalidade do apossamento de terras devolutas, o que contornado de
vrias formas, mas passa diretamente pela incapacidade de demarcao das terras devolutas por
serem definidas por excluso, dependendo da demarcao e titulao voluntria das terras
privadas. Como visto, esta demarcao e titulao das terras privadas de forma voluntria no se
deu e, at hoje, isto impede o Estado de reconhecer e demarcar suas prprias terras. Nos fins do
sculo XIX, o domnio da maior parte das terras devolutas passa legalmente da unio para os
estados, exceo de terras de fronteira e outras. Mais adiante, com o Cdigo Civil de 1916,
institui-se que as terras devolutas so passveis de serem apropriadas, via posse, pelo instrumento
do usucapio, legitimando o apossamento de terras devolutas.

Com o passar do tempo, a apropriao das terras devolutas foi gradualmente levando a fronteira
interna a um alargamento. Hoje em dia esta fronteira se encontra, aproximadamente, nas direes
sul e leste da Amaznia Legal (norte do Mato Grosso, oeste do Par, etc.).

Para a compreenso do cenrio atual de possibilidade de apropriao privada das terras devolutas,
necessrio que desenvolvamos, nesse ponto, alguns esclarecimentos jurdicos sobre a questo
das terras devolutas:

107
1. As terras devolutas so terras pblicas no registradas que no esto na posse do Poder
Pblico, sua definio de certa forma residual, visto que so as terras pblicas no
incorporadas ao domnio privado e no destinadas a qualquer uso pblico. Um ponto
importante, asseverado por Lima (2009, p. 29, apud Amorim, 2010, p. 5) que

no basta a ausncia de registro para a terra ser considerada devoluta, necessrio que o poder
pblico prove que a terra lhe pertence [] a terra devoluta possui por caracterstica a simultaneidade
da ausncia de ttulo de propriedade e a comprovao de ser um patrimnio pertencente ao poder
pblico, embora seja merecida a crtica quanto ao nus dessa comprovao ser do poder pblico.

2. Os bens pblicos so divididos em duas modalidades, de domnio pblico que se sujeitam


ao direito pblico e do domnio privado que se sujeitam ao direito privado. A primeira
modalidade abrange, por exemplo, bens de uso comum destinados ao uso coletivo, como
mares e rios, e bens de uso especial, como edifcios da Administrao. A segunda
modalidade diz respeito aos bens dominicais, que constituem o patrimnio das pessoas
jurdicas de direito pblico [] como o caso das terras devolutas (Amorim, 2010, p. 5)
3. O Cdigo Civil de 2002, no seu artigo 100 e 101, estabelece que os bens pblicos de uso
comum e especial so inalienveis, enquanto os bens dominicais podem ser alienados.
4. De acordo com a Constituio de 1988, artigo 191, os imveis pblicos, o que inclui as
terras devolutas, no podem ser adquiridos por usucapio.
5. Entretanto, como so bens alienveis, atravs da lei n 6.383/1979, tendo em vista a
funo social da propriedade, possvel a legitimao da posse aos ocupantes de terras
devolutas - garantindo legitimao da posse de rea contnua de at 100 hectares, contanto
que se comprove (artigo 29) que no seja proprietrio de outro imvel rural, comprove a
morada permanente e cultura efetiva pelo prazo mnimo de um ano.
6. Com a edio da Medida Provisria n 458/200951, que rege a regularizao fundiria na
Amaznia (possivelmente onde esto concentradas atualmente a maior parte das terras
devolutas), alteram-se os termos: amplia-se a possibilidade de regularizao da posse para
reas de at quinze mdulos fiscais, no superior a 1.500 hectares, e a exigncia de
morada efetiva desaparece, constando apenas que se pratique cultura efetiva.
Viu-se, acima, como se d o alargamento e permissividade legal e regulatria que mantm a no
demarcao das terras devolutas e a recolocao da possibilidade de apropriao privada das
mesmas, mantendo o dito padro de apropriao territorial, especialmente na rea de expanso da
fronteira de ocupao.

De acordo com o que foi mostrado at agora, perceptvel que o estancamento da posse de terras
devolutas nunca foi efetuado. Partimos ento para a anlise de outras caractersticas, secundrias,
que contribuem para efetivar a continuidade do modo como se apropria terras no Brasil e, por
conseguinte, a ausncia de regulao fundiria. So elas: a ausncia de um cadastro efetivo, a no

51
A lei na ntegra em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/632500.pdf
108
utilizao plena do instrumento de imposto territorial rural (ITR) e os entraves na configurao
do instrumento de desapropriao.

A ttulo de ressalva, neste estudo definimos estas caractersticas como secundrias visto que, num
sentido estrito, o ponto fulcral para a manuteno do padro de apropriao territorial a
continuao da permissividade da posse em terras devolutas, conformado como tradio jurdica
fortemente enraizada e consolidada historicamente no Brasil, sendo os outros problemas
derivados, direta ou indiretamente, deste paradigma anterior. Mantendo-se a possibilidade de
apossamento indiscriminado de terras devolutas, os pontos analisados a seguir no tem como
reverter o modo de apropriao territorial vigente, podendo apenas barr-lo parcialmente.

4.2.2. Ausncia de cadastro consolidado

Anteriormente lei de terras de 1850, o registro das propriedades era feito basicamente junto aos
Registros Paroquiais de Terra, sob responsabilidade do vigrio local, passada a promulgao
desta lei, entretanto, este mesmo registro continuou sendo utilizado por muito tempo. A partir de
1864, uma nova obrigao institucional emerge: a necessidade de registrar as propriedades nos
cartrios, independentemente de sua comprovao. Esta a semente do que veio a ser uma dos
grandes geradores de indefinio nos dias de hoje visto que, da forma que exigido (deve-se
registrar, porm registra-se o que quiser, visto no haver comprovao), d ares de legalidade
ao imvel sem que haja qualquer mecanismo que garanta isto (Reydon, 2011, p. 150).

A promulgao do Registro Pblico de Terras, em 1900, obrigava a todos que demarcassem e


registrassem seus imveis, rurais ou urbanos, entretanto mantinha a ausncia de fiscalizao e
comprovao se o que estava sendo registrado se apresentava na realidade. Alm disso, no
estabeleceu qualquer forma de cadastro dos imveis, e obrigava o Estado a demarcar e registrar
suas terras devolutas o que era impraticvel por serem definidas por excluso, colocando a ao
do Estado, paradoxalmente, na ilegalidade.

Com o Cdigo Civil de 1916, outro entrave foi imposto: alm de possibilitar o usucapio em
terras devolutas, como visto, este reafirmava o cartrio como instituio de registro. Isto tomou
contornos graves na medida em que o registro em cartrios de imveis tornou-se necessrio
(quando no suficiente) para comprovao de titularidade dos imveis.

109
Quanto ao caos em matria de regulao fundiria gerado pela obrigatoriedade do registro de
imveis nos livros dos cartrios, na ausncia de um cadastro pblico e consolidado de imveis,
Holston (1991) aponta:

Desse modo, todas as transaes relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim de
serem obtidos os direitos legais relevantes. Esses registros so regulados pela Lei dos Registros
Pblicos (6015/1973), a qual define as formalidades que constituem o sistema brasileiro de cartrios -
sistema privado, labirntico e corrupto. Seu enorme poder burocrtico vem do Cdigo Civil (art. 533),
o qual afirma que as transaes envolvendo bens imveis no transferem a propriedade, ou os direitos
sobre ela, a no ser a partir da data na qual so registradas nos livros dos cartrios; ou seja, como diz o
ditado, quem no registra, no possui.

No que tange o registro e cadastro de propriedades o Estatuto da Terra de 1964, imperante at


hoje, trouxe inovaes institucionais importantes na esfera da poltica e administrao fundiria.
Nas palavras de Reydon (2011, p. 151):

Todos os imveis privados ou pblicos deveriam ser registrados, inclusive as posses. Os proprietrios
deveriam providenciar informao sobre a situao da documentao e uso da terra (usada para estimar
a produtividade) a fim de facilitar a reforma agrria. O INCRA, criado em 1970, tornou-se responsvel
pela gerncia do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o qual mantinha o Cadastro de Imveis
Rurais. Uma vez que o imvel era registrado, o INCRA emitia o Certificado de Cadastro de Imvel
Rural (CCIR) exigido para qualquer tipo de transao de terra. Posseiros registrados pelo INCRA
tambm receberam o CCIR e deveriam pagar o Imposto sobre o Imvel Rural, embora os valores desse
imposto tenham sempre sido mantidos a nveis baixos. O Estatuto da Terra mais uma vez manteve a
legitimao de posse, permitindo assim a titulao de terras pblicas ocupadas informalmente.

Atualmente, a administrao territorial brasileira repartida entre os Municpios (cadastro


urbano) e a Unio (cadastro rural e de terras pblicas), de forma no compartilhada, to confusa
que possibilita a existncia de dois cadastros rurais nacionais, com funes distintas (tributria e
fundiria), independentes e administrados separadamente, segundo a finalidade de cada rgo
gestor (RFB e INCRA). Tambm cabe dizer que existe ainda o Registro Legal dos Imveis, que
um cadastro realizado pelos cartrios do sistema de Registro Imobilirio, e o cadastro Tcnico
Ambiental que est sob a responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio ambiente e dos
Recursos Naturais Renovveis (IBAMA). No caso do Cadastro Imobilirio Urbano cada
municpio do pas tem autonomia para definir a estrutura organizativa do seu cadastro
(Nascimento, 2007, p. 8)

110
Uma das novidades mais recentes com relao ao cadastro e registro de imveis rurais surgiu
com a lei n 10.267/2001. Nela est previsto o uso de georreferenciamento, integrao com os
cartrios e articulao entre outras instituies.

A regulamentao dos dispositivos desta lei no que se refere aos requisitos tcnicos de preciso
do georreferenciamento, entretanto, inviabilizam na prtica a sua aplicao em larga escala.
Deixando de lado a especulao se este entrave se deu por miopia quanto a generalizao do
processo ou por pura m f, a Portaria do Incra de nmero 954 de 2002 determina em seu artigo
primeiro que a preciso da medio no georreferenciamento deve ser de 0,50 m. Isto significa, na
prtica, que a norma impede o uso de aparelhos GPS de navegao por no conseguirem atingir
esta preciso, sendo necessrio o uso de aparelhos extremamente mais caros para atingir uma
preciso que extremamente exagerada. Utilizando-se destas normas, uma estimativa otimista de
custos para regularizao fundiria das propriedades brasileiras, baseadas na generalizao de
dois casos prticos, ficaria entre R$ 2,6 e 4,0 trilhes (Reydon, 2010, p. 62). Sem mais delongas,
resta claro que este valor extremamente impeditivo se se pretende, de fato, regularizar as
propriedades privadas no Brasil de acordo com as normas vigentes.

O Cadastro Nacional de Imveis (CNIR), promulgado pela mesma lei e regulamentado pelo
Decreto n 4.449/2002, se presta a atualizar a situao dos imveis rurais tendo em vista resolver
os inmeros problemas relacionados titularidade, incluindo a reaver as terras devolutas rurais
que so alvo de apossamento fraudulento. Neste mbito ainda, interessante notar tambm as
aes do Incra com as Portarias de n 558/1999 e 596/2001 que visam, respectivamente,
recadastramento utilizando notificaes para imveis com rea total igual ou superior a 10 mil
hectares em todo pas, e recadastramento tambm utilizando notificaes para imveis com rea
maior ou igual a 5 mil hectares at 9.999 hectares, em 68 municpios - selecionados de acordo
com os que apresentaram maiores irregularidades na primeira fase de recadastramento, dada pela
Portaria n 588/1999 (Reydon et al, 2006a, p. 62).

Assim, ficou designado que o Incra atuaria em conjunto com a Receita Federal para gerenciar o
Cadastro Nacional de Imveis Rurais (CNIR). Entretanto, o CNIR ainda no se concretizou. Um
problema grave que surgiu na integrao dos cadastros destes dois rgos, de acordo com
Nascimento (2007, p. 24), foi que a lei estabelece que o cdigo identificador do Cadastro nico

111
seja o cdigo do Incra, e como no cadastro da Receita Federal este cdigo no obrigatrio,
inviabiliza-se a consolidao de um cadastro nico (na forma do CNIR)52.

O que vimos at aqui deixa claro a dificuldade imposta por parte da falta de um cadastro
unificado (ao menos das terras privadas) para qualquer tentativa de se implementar uma
regulao efetiva da ocupao de terras. Outro problema com a alterao da estrutura fundiria se
coloca na ineficincia legal dos instrumentos curativos e preventivos disponibilizados com muito
custo na Constituio de 1988, estes dois sero objeto de anlise das prximas duas subsees.

4.2.3. Entraves do instrumento legal de desapropriao

A desapropriao como instituto jurdico tem suas origens no Decreto de 21 de maio de 1821
onde, apesar de no haver a denominao de desapropriao na norma, tem-se um contexto de
venda forada. O decreto perpassado pela ideia de proibir qualquer agente pblico de tomar
coisa de particulares, sendo exigida, para tanto, a desapropriao.

Na Constituio de 1824 ainda no havia meno da palavra desapropriao, entretanto


encontrava-se legislado que se o bem pblico legalmente verificado exigir o uso e emprego da
propriedade do cidado, este seria previamente indenizado53. As situaes de necessidade e
utilidade pblica surgem apenas posteriormente, na Lei de 09 de setembro de 1826,
regulamentadora do item 22 do artigo 179 da Constituio do Imprio do Brasil.

Com o advento da Repblica a formulao da Constituio de 1891 prev a possibilidade de


desapropriao nos casos de necessidade e utilidade pblica, mediante prvia indenizao 54. O
Cdigo Civil de 1916, sob a gide desta Constituio, trata da desapropriao como perda da
propriedade e disciplina os casos de necessidade e utilidade pblica55.

52
Os motivos para isso se do na definio do que um imvel rural. Se o Estatuto da Terra define-o como prdio rstico, de
rea contnua, qualquer que seja sua localizao, que se destina explorao extrativa agrcola, pecuria ou agroindustrial, a
legislao tributria, de acordo com a lei n 9.393, define imvel rural como aquele situado fora da zona urbana de um municpio.
53
Constituio de 1824, art. 179, item 22: garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude. Se o bem pblico,
legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidado, ser ele previamente indenizado do valor dela. A lei
marcar os casos em que ter lugar esta nica exceo e dar as regras para se determinar a indenizao. Na ntegra:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm
54
Constituio de 1891, art. 72, pargrafo 17: O direito de propriedade mantm-se em toda a sua plenitude, salva a
desapropriao por necessidade ou utilidade pblica, mediante indenizao prvia. As minas pertencem aos proprietrios do solo,
salvas as limitaes que forem estabelecidas por lei a bem da explorao deste ramo de indstria.
55
Lei n 3.071/1916 - Cdigo Civil de 1916, Art. 590: Tambm se perde a propriedade imvel mediante desapropriao por
necessidade ou utilidade pblica. 1 Consideram-se casos de necessidade publica: I. A defesa do territrio nacional. II. A
112
A Constituio de 1934 mantm o tratamento com relao desapropriao, adicionando apenas
a obrigao do proprietrio de exercer seu direito em conformidade com o interesse social ou
coletivo, na forma que a lei determinar56.

Com o advento do Estado Novo, outorgada a Constituio de 1937. Esta foi marcada como
essencialmente centralizadora, em grande parte por ter sido inspirada na Constituio autoritria
da Polnia. Quanto ao regime de desapropriao, entretanto, houve poucas mudanas: manteve-
se a tratativa da Carta Magna anterior, retirando-se apenas a exigncia de indenizao justa,
mantendo-se apenas o termo indenizao prvia57.

Com relao ao marco legal, a Constituio de 1946 representa um ponto de inflexo no que
tange o aparelho de desapropriao e a relao com a reforma agrria posto que, inspirado na
Constituio Mexicana (1917) e de Weimar (1919), surgiu o conceito de desapropriao por
interesse social para fins de reforma agrria58, por iniciativa do Senador Ferreira de Souza
(Gomes, 2009, p. 31).

Este novo modelo criou uma dualidade no pagamento da indenizao: o latifndio seria
indenizado com ttulo da dvida pblica e as benfeitorias teis e necessrias, em dinheiro alm
de retornar os termos de prvia e justa indenizao.

Com o golpe de 1964 e a outorga da Constituio de 1967, repetiu-se as disposies sobre


desapropriao59 entretanto, com o Ato Institucional 9/1969, suprime-se nos casos de

segurana pblica. III. Os socorros pblicos, nos casos de calamidade. IV. A salubridade pblica. 2 Consideram-se casos de
utilidade pblica: I. A fundao de povoaes e de estabelecimentos de assistncia, educao ou instruo pblica. II. A abertura,
alargamento ou prolongamento de ruas, praas, canais, estradas de ferro e em geral, de quaisquer vias pblicas. III. A construo
de obras, ou estabelecimento, destinados ao bem geral de uma localidade, sua decorao e higiene. IV. A explorao de minas.
56
Constituio de 1934, art 113, item 17: garantido o direito de propriedade, que no poder ser exercido contra o interesse
social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriao por necessidade ou utilidade pblica far-se- nos termos da
lei, mediante prvia e justa indenizao. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoo intestina, podero as autoridades
competentes usar da propriedade particular at onde o bem pblico o exija, ressalvado o direito indenizao ulterior.
57
Constituio de 1937, art. 122, item 14: o direito de propriedade, salvo a desapropriao por necessidade ou utilidade pblica,
mediante indenizao prvia. O seu contedo e os seus limites sero os definidos nas leis que lhe regularem o exerccio
58
Constituio de 1946, art. 141, pargrafo 16: garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriao por
necessidade ou utilidade pblica, ou por interesse social, mediante prvia e justa indenizao em dinheiro. Em caso de perigo
iminente, como guerra ou comoo intestina, as autoridades competentes podero usar da propriedade particular, se assim o exigir
o bem pblico, ficando, todavia, assegurado o direito a indenizao ulterior.
59
Constituio de 1967, art 150, pargrafo 22: 22 - garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriao por
necessidade ou utilidade pblica ou por interesse social, mediante prvia e justa indenizao em dinheiro, ressalvado o disposto
no art. 157, 1. Em caso de perigo pblico iminente, as autoridades competentes podero usar da propriedade particular,
assegurada ao proprietrio indenizao ulterior.
113
desapropriao por interesse social a exigncia de prvia indenizao, mantendo apenas o termo
justa indenizao e em ttulos especiais da dvida pblica60.

No perodo seguinte, j findo o regime militar, chega-se a outorga da Constituio Federal de


1988, que impera at os dias de hoje. De acordo com Gomes (2009, p. 128), esta Constituio
assegura, repetindo as anteriores, o direito propriedade, direito este considerado como de
primeira gerao, mas condiciona sua garantia ao atendimento da funo social.

No que concerne objetivo de anlise desta seo, que consiste especificamente na desapropriao
para fins de reforma agrria, preciso definir onde esta se enquadra. Conforme explica Harada
(2006, apud Gomes, 2009, p. 129-130), o conceito de desapropriao pode ser dividido em trs
modalidades:

i) a primeira, em que a desapropriao atinge propriedade que cumpre a funo social e em que
necessariamente dever ocorrer a prvia e justa indenizao em dinheiro; ii) a segunda, em que a
desapropriao recai sobre propriedade que no cumpre a funo social, devendo o pagamento ser feito
em ttulos da dvida pblica e, por fim, iii) a desapropriao de propriedade nociva, na qual inexiste
indenizao.

A desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria se enquadra na segunda
modalidade e, junto com a terceira, forma o subgrupo chamado por Gomes (2009, p. 130) de
desapropriaes do tipo sano. Nesta espcie de desapropriao o elemento em destaque no
mais a indenizao, no h necessidade dela ser justa, prvia e em dinheiro e, em determinada
hiptese, nem necessria sua existncia (no caso do ilcito criminal61). Decorrem da funo
social da propriedade expropriada o expropriado impulsiona a desapropriao, por
decorrncia de sua ao ou omisso (op. cit., p. 131). A desapropriao sano destinada
reforma agrria de competncia exclusiva da Unio e ocorre quando o imvel rural no esteja
cumprindo sua funo social, nos termos do artigo 184 e pargrafos da Constituio Federal.

60
Ato Institucional n. 9, de 25 de abril de 1969: altera a redao do pargrafo 1 do art. 157 da Constituio nos seguintes termos:
Para os fins previstos neste artigo a Unio poder promover a desapropriao da propriedade territorial rural, mediante
pagamento de justa indenizao, fixada segundo os critrios que a lei estabelecer, em ttulos especiais da dvida pblica, com
clusula de exata, correo monetria, resgatveis no prazo mximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a
sua aceitao, a qualquer tempo, como meio de pagamento de at cinqenta por cento do imposto territorial rural e como
pagamento do preo de terras pblicas.
61
As desapropriaes do tipo sano incluem dois tipos, a desapropriao por interesse social para fins de reforma agrria e a
desapropriao em razo de ilcito criminal. Esta ltima referente imveis em que so mantidas culturas ilegais de plantas
psicotrpicas e ocorre sem a ocorrncia de indenizao. (Gomes, 2009, p. 157)
114
Quanto ao processo de determinao de quais imveis rurais podem ou no serem expropriados
para fins de reforma agrria, a primeira regulamentao surge com a Emenda Constitucional n
10/1964, que complementava a Constituio de 1946 e possibilitou, posteriormente, a edio do
Estatuto da Terra. No Estatuto da Terra as terras passveis de desapropriao por interesse social
para fins de reforma agrria incluam vrias categorias, sendo a diferenciao mais interessante a
diviso em minifndios e latifndios. Assim, considerou-se como minifndio a propriedades de
tamanho inferior a um mdulo rural e, como latifndio, a de tamanho superior a 600 mdulos
rurais, sendo que o mdulo rural varia entre 2 e 120 hectares, dependendo da localizao e tipo de
cultivo.

Em 1987, atravs do Decreto-lei n 2.363, modifica-se as reas passveis de desapropriao,


restringindo-as s reas superiores a 1.500 hectares na zona da SUDAM (Superintendncia para
Desenvolvimento da Amaznia, 1.000 hectares para aquelas localizadas na regio da SUDECO
(Superintendncia para Desenvolvimento do Centro-Oeste), 500 hectares para as da regio da
SUDENE (Superintendncia para Desenvolvimento do Nordeste) e 250 hectares para o restante
do pas, tendo ainda, obrigatoriamente que serem improdutivas.

Com a Constituio de 1988, o artigo 184 da mesma prev que todo imvel que no cumprir sua
funo social passvel de desapropriao por interesse social (de acordo com os requisitos para
cumprir sua funo social, previstos no artigo 186), entretanto o artigo 185 excetua as
possibilidades de desapropriao para a pequena e mdia propriedade, desde que o proprietrio
no possua outra, e que a propriedade seja produtiva. Assim, resta como imveis passveis de
desapropriao para fins de reforma agrria as grandes propriedades improdutivas.

Restava ainda definir pequena, media e grande propriedade e o que as torna ou no


produtivas, o que foi realizado pela lei n 8.629/1993. De acordo com esta lei, define-se como
pequena, mdia e grande propriedades as compreendidas entre 1 e 4 mdulos fiscais62, entre 4 e
15 mdulos fiscais e acima de 15 mdulos fiscais, respectivamente.

62
A definio de mdulo fiscal, de acordo com a lei n 84.685/1980, fixada pelo Incra, atravs de Instruo Especial, levando
em conta o tipo de explorao predominante no Municpio, a renda obtida no tipo de explorao predominante, etc, de forma a
garantir como mdulo fiscal a menor rea de solo possvel que permita garantir a subsistncia de uma famlia que trabalhe
diretamente a propriedade.
115
A partir da alterao do ITR em 1994, pela lei n 8.847/1994, no se usa mais o termo mdulo
fiscal, sendo substitudo para hectares a unidade de medida para o clculo do imposto, afetando
esta definio de tamanhos de propriedades.

Quanto questo de ser ou no propriedade improdutiva, a lei n 8.629 dispe sobre o assunto63.
Nela considera-se propriedade improdutiva e, portanto, apta a ser desapropriada por interesse
social para fins de reforma agrria, as propriedades que no atingirem, simultaneamente, graus de
utilizao da terra (GUT) maior que 80% e de eficincia na explorao (GEE), segundo ndices
fixados pelo rgo federal competente.

Quanto ao GEE, divide-se em: I) clculo para produtos vegetais (diviso da quantidade colhida
pelos ndices de rendimento estabelecidos por microrregio homognea), e II) para explorao
pecuria (divide-se o nmero de Unidades Animais do rebanho pelo ndice de lotao
estabelecido por microrregio homognea). A soma dos resultados de I e II, dividida pela rea
efetivamente utilizada e multiplicada por 100 determina o grau de eficincia da explorao
(GEE).

Entretanto, os ndices utilizados para fazer o clculo do GEE so mantidos os mesmos desde
1975, estando claramente desatualizados nos dias de hoje fato que vai contra a previso da
prpria lei n 8.629, artigo 11, que prev:

Os parmetros, ndices e indicadores que informam o conceito de produtividade sero ajustados,


periodicamente, de modo a levar em conta o progresso cientfico e tecnolgico da agricultura e o
desenvolvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimento Agrrio e da Agricultura e
do Abastecimento, ouvido o Conselho Nacional de Poltica Agrcola.

Isto enseja fato curioso visto que, por um lado, o argumento legitimador alardeado
constantemente pelo setor agropecurio modernizado seja baseado na sua alta produtividade e,
por outro lado, haja tanta presso contrria a atualizao destes dados ndices, que se mantm os
mesmos apesar nas mudanas nos processos de produo nas ltimas quatro dcadas.

Enseja fato curioso tambm as inmeras recomendaes de estudos que servissem de substrato
cientfico para a atualizao dos ndices baseados no Censo Agropecurio de 1975. No estudo

63
Mais especificidades sobre o clculo do Grau de Utilizao da Terra e Grau de Eficincia da Explorao se do na Instruo
Normativa n 11, de 4 de abril de 2003.
116
detalhado dos ndices de rendimento da agropecuria de Ramos (2005) fica registrado no resgate
histrico que o autor faz do tema os inmeros convnios firmados entre o governo e instituies
de pesquisa a fins de produzirem estudos para a reviso dos ndices e tambm como todos eles
no foram contemplados por uma efetivao da atualizao dos ndices por parte do governo,
apesar da existncia concreta de evidncias e dados produzidos pelos referidos estudos.

Sobre a desatualizao deste ndice, Srgio Sauer, em entrevista de 2010, comenta:

S para termos uma ideia, dados do Ministrio da Agricultura (um estudo chamado Fontes e
Crescimento da Agricultura Brasileira, divulgado em julho de 2009) afirmam que, de 1975 a 2008, a
taxa de crescimento da produo agropecuria brasileira foi de 3,68% ao ano, sendo que este
crescimento foi de taxa anual de 5,59%, entre 2000 e 2008. este tipo de dado que deve ser
considerado para atualizar os ndices. Para termos uma ideia das razes tcnico-produtivas da
atualizao, ainda segundo dados do MAPA, produziam-se 10,8 quilos de carne bovina por hectare em
1975, sendo que hoje so 38,6 quilos por hectare. A produo de leite por hectare foi multiplicada por
3,6 e a de carne e aves saltou de 372,7 mil toneladas para 10,2 milhes no mesmo perodo. Isso deve
ser levado em conta quando o Incra vai medir se uma terra est ou no sendo utilizada de forma
racional; se produtiva. (Sauer, apud Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, 2010)

Mostramos aqui as falhas regulatrias e legislativas no que tange o funcionamento efetivo de um


dos principais instrumentos curativos de alterao da estrutura fundiria, qual seja, o instrumento
da desapropriao por via do no cumprimento da funo social da propriedade privada da terra.
Passaremos agora para um dos principais instrumentos preventivos: o imposto territorial rural.

4.2.4. Falhas no ITR

Tanto o imposto territorial quanto o aumento nas taxas de juros so instrumentos para diminuir o
preo da terra, entretanto o primeiro onera o uso no produtivo da terra via especulao, enquanto
o segundo desincentiva o uso produtivo da terra pela agropecuria, diminuindo os retornos
esperados na atividade.

As tentativas de aplicao do ITR remontam ao sculo XIX e nunca foram bem sucedidas. As
tentativas dos governos de criar condies jurdicas e institucionais para isso, com base no
Estatuto da Terra, foram bastante importantes, mas fracassaram: os impostos pagos foram
reduzidos e o impacto do ITR sobre a oferta de terras foi bastante modesto (Reydon et al, 2006b,
p. 159). Nos anos 1990, outra tentativa foi realizada e fracassou, como trataremos adiante.

117
Com a promulgao da Lei n 8.847/199464 o ITR sofre algumas alteraes, como transferncia
do cadastro, arrecadao e fiscalizao para a Secretaria da Receita Federal. A base de clculo
apurada com base na declarao do Valor da Terra Nua (VTN) pelo contribuinte, aceito se maior
que o Valor da Terra Nua mnimo calculado em articulao com outros ministrios. Elimina-se o
Mdulo Fiscal como base de clculo, que substitudo pelo zoneamento fiscal com
estabelecimento de trs alquotas para o Brasil e regies que recebem tratamento diferenciado
(Polgono das Secas, Amaznia, Pantanal). A determinao da alquota se d com base na
localizao, rea e grau de utilizao do imvel. reas de interesse ecolgico, pequenas
propriedades (o tamanho varia de acordo com a regio) e assentamentos so isentos do
pagamento, contanto que no tenham outras propriedades. Por ltimo, a obteno de incentivos
fiscais e creditcios fica atrelada comprovao de adimplncia do ITR pelos ltimos 5 anos
(Reydon et al, 2006b, p. 161).

As novas alquotas, por um lado, trazem acentuada progressividade segundo o tamanho da


propriedade e regressividade quanto o grau de utilizao do imvel, conforme a tabela 14, abaixo.
Por outro lado, a progressividade do ITR apresenta descontinuidades na transio do limite de
categorias de tamanho consideradas, impondo tratamento desproporcional entre contribuintes que
possuem condies pouco diferenciadas. Ainda outro fator de crtica o tratamento linear
conferido a todos os imveis com rea superior a 5.000 hectares, constituindo fato descabido
tratar igualmente os imveis com rea superior a 100.000 ha, que ocupam 14,8% das terras
agrcolas, e os imveis com rea entre 5.000 e 10.000 ha, que ocupam 6,8% das terras rurais
(Reydon et al, 2006b, p. 165)

64
A lei na ntegra em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8847compilado.htm
118
Tabela 14. Alquotas para o clculo do novo ITR

Fonte: Reydon et al, 2006b, p. 164.

A autodeclarao do tamanho da propriedade para fins de enquadramento no ITR ,


conhecidamente, subdeclarada. Na tabela 15, abaixo, so apresentados os valores mdios da terra
nua declarados para fins tributrios pelos contribuintes em 1997, em confronto com o preo
mdio de mercado levantado pela Fundao Getlio Vargas, ponderado para os diferentes tipos
de terra, no mesmo perodo.

Tabela 15. Valor da Terra Nua declarado e preos de mercado, 1997.

Fonte: Reydon et al (2006b, p. 167)


Fica claro que o VTN declarado , em mdia, apenas 51,4% do preo de mercado, com acentuada
assimetria dependendo da regio: na regio Sul onde o VTN declarado mais se aproxima dos

119
valores de mercado, enquanto no Norte e Nordeste o VTN altamente subdeclarado (23,6% e
36,3% do preo mdio de mercado).

Sem mais aprofundamentos, pode-se concluir que o ITR no tem alcanado sua funo. O
objetivo de atingir uma arrecadao entre R$ 1,4 bilho e R$ 2.8 bilhes foi frustrado por dois
motivos: a subestimao dos Valores da Terra Nua (VTN) declarados pelos contribuintes e
devido impreciso do conceito de rea utilizada, fato que induz o contribuinte a tentar
enquadrar seu imvel em faixa de Grau de Utilizao mais elevada.

Quanto subdeclarao, esta poderia ser reduzida com certa facilidade caso a prpria Receita
Federal comparasse os valores das propriedades que constam nas declaraes do Imposto de
Renda com os valores declarados para fins de ITR.

Por fim, notamos que o novo ITR obteve alguns avanos, entretanto no so suficientes para
estancar o uso da terra para fins especulativos. Sua efetividade depende da consolidao de um
cadastro completo e de implementao de medidas sistemticas de monitoramento, em especial
no caso dos imveis de maior dimenso. Sem estas medidas, permite-se a manuteno do custo
muito baixo de manuteno da terra, que estruturalmente concentrada, abrindo margem para a
utilizao no produtiva da terra, atravs de especulao. Esta forma de utilizao da terra com
fins de ganho patrimonial um dos principais condicionantes econmicos da apropriao privada
do patrimnio fundirio pblico, alm de incentivar o desmatamento, como veremos na prxima
seo.

4.3. DOS OUTROS EFEITOS DA FALTA DE REGULAO DA APROPRIAO


TERRITORIAL

Tendo analisado na seo anterior os principais gargalos que incorrem na falta de regulao e,
portanto, manuteno do padro de apropriao de terras delineado nos outros captulos,
passaremos agora exposio dos efeitos mais problemticos que so decorrentes desta ausncia
de regulao efetiva da ocupao de terras no pas.

Para tanto, dentro de uma mirade de efeitos diretos e indiretos causados por esta ausncia de
governana fundiria, priorizamos os que se do de forma menos indireta possvel. De incio
sero expostas as melhores estimativas sobre o apossamento ou grilagem de terras devolutas. Em

120
seguida seguiremos para a anlise do desmatamento no Brasil, fenmeno intimamente ligado com
o avano da fronteira interna atravs da privatizao de terras pblicas e violncia com posseiros
e populaes indgenas. Depois nos debruaremos em como estes fatores condicionam o mercado
de terras e os elevados preos praticados com terras no Brasil. Por ltimo veremos como a falta
de regulao permitiu que os ttulos da dvida agrria (TDAs) fossem enviesados para benefcio
dos seus receptores assim como facilitou a existncia de inmeros casos de superindenizaes.

4.3.1. Apossamento de terras devolutas ou grilagens, resultados dos esforos cadastrais

Em seus estudos Sabbato (2001) e Reydon et al (2006) realizaram uma quantificao da rea de
terras devolutas atualmente em cheque por suspeita de grilagem. Este tpico em grande parte
reporta os resultados obtidos nos estudos referidos.

Como mencionado, a Portaria n 558/1999 foi criada tendo em vista o cadastramento de imveis
de rea total superior a 10 mil hectares. Mesmo analisando somente o cadastro do Incra, que
incompleto e, dentro desse, somente os imveis de rea maior que 10 mil hectares, os resultados
so surpreendentes, conforme as tabelas 16 e 17, 31,8% (984 imveis) dos imveis notificados
no apresentaram a documentao exigida, sendo suspeitos de grilagem, correspondendo a 40,5%
da rea notificada (ou 48 milhes de um total de 119 milhes de hectares).

Tabela 16. Imveis notificados pela Portaria n 558/1999

121
Tabela 17. rea dos imveis notificados pela Portaria n 558/1999.

Quanto aos imveis cadastrados suspeitos de grilagem, nota-se a concentrao destes na regio
Norte (52,9% da rea total de imveis suspeitos, 22% do nmero total de imveis suspeitos) e
Centro-Oeste (29% da rea total de imveis suspeitos, 31,9% do nmero total de imveis
suspeitos), conforme a tabela 18, abaixo.

Tabela 18. Total de imveis rurais cadastrados e suspeitos de grilagem classificados


segunda a regio (%).

De acordo com a tabela 19, abaixo, possvel notar que h uma tendncia de no apresentao de
documentao por parte dos imveis de maior rea, apesar de, no geral, a porcentagem mdia de
no apresentao dos documentos ser elevada (46,9% do total de imveis notificados).

122
Tabela 19. Listagem dos imveis notificados segundo a classe.

Na anlise da situao jurdica dos imveis rurais suspeitos de grilagem, reparamos que h
preponderncia de pessoas fsicas tanto no nmero de imveis suspeitos quanto na rea total dos
imveis suspeitos. Alm disso, Sabbato (2001, apud Reydon et al, 2006, p. 64) mostra em seu
estudo que a maioria das empresas proprietrias/detentoras de imveis suspeitos de grilagem
esto direta ou indiretamente envolvidas com o setor primrio, includas agroindstrias e
minerao, correspondendo a 67% da rea total das empresas.

Tabela 20. Proprietrios/detentores de imveis rurais suspeitos de grilagem, distribuio


segundo a situao jurdica.

123
Outro apontamento dos estudos citados (exposto na tabela 20) que os cem maiores proprietrios
pessoa fsica suspeitos de grilagem (14% do total de 714 proprietrios) detm uma rea que, na
soma, corresponde a 29,8 milhes de hectares (61% da rea total suspeita de grilagem, ou cerca
de 18,2 milhes de hectares).

Sabemos que os empecilhos para demarcao e titulao das terras esto ligados com o
apossamento de terras devolutas, na maioria das vezes de forma fraudulenta. Alm disso, estes
problemas advm, em grande parte, da no existncia de um cadastro consolidado, pblico e
completo das propriedades rurais. Com isso em mente, seguiremos para o prximo ponto, que
consiste na anlise de outra falha fundamental na regulao fundiria, qual seja, a possibilidade
de ganhos especulativos com a apropriao indiscriminada de terras devolutas e sua relao com
o desmatamento na atual fronteira agropecuria.

A juno dos fatores apontados anteriormente (possibilidade de apropriao privada de terras


devolutas, falhas nos instrumentos curativo e preventivo e falta de um cadastro consolidado,
pblico e completo) gera o substrato onde se prolifera outro fenmeno adverso, tambm
caracterstico do padro de apropriao territorial brasileiro: a possibilidade de ganhos
especulativos com apropriao de terras, que ao mesmo tempo gerado e gerador deste contexto
legal, regulatrio e institucional, alm de ter como subproduto o desmatamento nas reas de
expanso da fronteira agropecuria.

4.3.2. Desmatamento

Em 2010, a Amrica do Sul, em conjunto, foi responsvel por cerca de 64% da rea desmatada
anualmente no mundo, ou 3,6 milhes de hectares de floresta desmatada na Amrica do Sul, para
5,6 milhes desmatados na soma total mundial. Dentro dela o Brasil, em parte por seu extenso
territrio, foi responsvel pela maior parte do desmatamento anual, com 2,2 milhes de hectares,
61% do desmatamento dentro da Amrica do Sul, ou 39% do desmatamento total no mundo,
conforme a tabela 21 abaixo.

124
Tabela 21. Desmatamento por perodos, Amrica do Sul e total mundial, 1990 a 2010.
rea de floresta, em m il hectares Taxa annual de m udana
1990-2000 2000-2005 2005-2010
Pas 1990 2000 2005 2010 m il ha/ano % m il ha/ano % m il ha/ano %
Argentina 34.793 31.861 30.599 29.400 -293 -0,88 -252 -0,81 -240 -0,80
Bolvia 62.795 60.091 58.734 57.196 -270 -0,44 -271 -0,46 -308 -0,53
Brasil 574.839 545.943 530.494 519.522 -2890 -0,51 -3090 -0,57 -2194 -0,42
Chile 15.263 15.834 16.043 16.231 57 0,37 42 0,26 38 0,23
Colmbia 62.519 61.509 61.004 60.499 -101 -0,16 -101 -0,16 -101 -0,17
Equador 13.817 11.841 10.853 9.865 -198 -1,53 -198 -1,73 -198 -1,89
Guiana Francesa 8.188 8.118 8.100 8.082 -7 -0,09 -4 -0,04 -4 -0,04
Guiana 15.205 15.205 15.205 15.205 0 0 0 0 0 0
Paraguai 21.157 19.368 18.475 17.582 -179 -0,88 -179 -0,94 -179 -0,99
Peru 70.156 69.213 68.742 67.992 -94 -0,14 -94 -0,14 -150 -0,22
Suriname 14.776 14.776 14.776 14.758 0 0 0 0 -4 -0,02
Uruguai 920 1.412 1.520 1.744 49 4,38 22 1,48 45 2,79
Venezuela 52.026 49.151 47.713 46.275 -288 -0,57 -288 -0,59 -288 -0,61
Am rica do Sul 946.454 904.322 882.258 864.351 -4213 -0,45 -4413 -0,49 -3581 -0,41
Mundo 4.168.399 4.085.168 4.060.964 4.033.060 -8323 -0,20 -4841 -0,12 -5581 -0,14

Fonte: banco de dados da FAO, 2011.

Neste estudo, acredita-se que a perenidade do desmatamento uma das consequncias da


manuteno do padro de apropriao territorial instaurado historicamente e recomposto
constantemente no Brasil. Ainda mais, acreditamos que este padro gera as condies de ausncia
de regulao fundiria que permite distores estruturais no mercado de terras, levando ao uso
especulativo da terra, devido a sua alta liquidez. Este encadeamento tem como um dos
subprodutos a contnua apropriao de novas reas, especialmente terras devolutas, avanando a
fronteira agropecuria de forma constante, o que resulta inevitavelmente em aumento do
desmatamento, dado que a fronteira agropecuria brasileira encontra-se em choque com o bioma
amaznico.

A possibilidade de apropriao das terras devolutas sem custo j , em si, um fator que
contribuiria para o desmatamento nas reas de fronteira. Entretanto, a dinmica distorcida do
mercado de terras brasileiro pode contribuir para um melhor entendimento da questo, mostrando
que a valorizao do patrimnio fundirio neste processo inclui ainda outros ganhos.

Corroborando com os argumentos deste estudo, Reydon (2011, p. 145) diz:

125
o desmatamento da Amaznia fruto da continuidade da tradicional forma de expanso da fronteira
agrcola brasileira, que, em geral, costuma ocorrer atravs das seguintes etapas: a ocupao de terras
65
virgens (privadas ou pblicas), a extrao de sua madeira de lei, a instalao da pecuria e, por fim, o
desenvolvimento de uma agropecuria mais moderna.

Estas atividades econmicas geram renda e legitimam a ocupao dos proprietrios no curto
prazo, quase sem necessidade de recursos. No longo prazo, as terras so utilizadas para pecuria
mais intensiva ou, caso exista esta demanda, so convertidas para gros ou outra atividade
econmica. Este encadeamento de fatores garante a existncia de expectativas de demanda pela
terra para ser utilizada em algum momento futuro, elevando seus preos significativamente.

Em muitos estudos sobre a questo do desmatamento chama-se ateno para a questo de


especulao ligada a terra, mas geralmente esta especulao tratada nos termos de crescimento
do preo da terra em geral. O preo da terra, entretanto, no significa necessariamente que est se
dando um processo de especulao: efetivamente os preos da regio Norte, grosso modo,
acompanham o movimento de preos de terras no restante do pas, no gerando grandes ganhos
especulativos.

A forma como se d o ganho especulativo que serve de motor para o desmatamento na Amaznia
associada prpria ocupao da terra: o que ocorre, na realidade, que qualquer pessoa que
adquire ou ocupa a terra com floresta tem a clara percepo que sua terra, isto , seu
investimento, se valoriza com o processo de desmatar (op. cit., p. 146). Na tabela 22 abaixo
podemos perceber que, em todos os estados, o desmatamento sempre valoriza a propriedade
significativamente, na mdia, mais que quadruplica o preo da terra. Isto se d principalmente
pois seu valor est associado aos possveis ganhos produtivos decorrentes da agropecuria
associada terra, sendo que no caso das terras desmatadas o seu uso pode ocorrer imediatamente,
sem custos de desmatar. No caso mais extremo, no Acre, o desmatamento multiplica esse valor
por mais de 14 vezes, enquanto no estado do Amazonas, o valor se multiplica por quase 10 vezes,
gerando retornos incrivelmente superiores em se comparando com outros investimentos.

65
Reydon e Romeiro (2000) mostram que o principal motor da pecuarizao , por um lado, a existncia de muita terra devoluta
passvel de ser apropriada, associada possibilidade de, a baixos custos, instalar a pecuria tornando o desmatamento uma
estratgia de valorizao do capital imbatvel.
126
Tabela 22. Preos mdios de terras de matas e de pastagens, estados da Amaznia, em
R$/ha correntes de 2008.

Fonte: AgraFND (2009, apud Reydon, 2011, p. 147).

Outro fator importante que no podemos perder de vista que alm do ganho patrimonial com o
desmatamento, existem os ganhos oriundos da venda da madeira (em Cotriguau-MT estima-se
um retorno lquido de R$ 2.400/ha) e do seu uso econmico posterior (se ocorrer com pecuria,
gera uma receita lquida adicional de R$ 120 por hectare/ano). Portanto, o maior catalisador do
desmatamento se d na combinao dos ganhos de valorizao da terra, na sua converso de
floresta em terra produtiva, associados aos ganhos com a extrao madeireira e da pecuria
extensiva estabelecida posteriormente (op. cit., p. 147).

A rea coberta pela floresta amaznica constitui hoje, em grande parte, a fronteira agropecuria
em expanso no Brasil. De acordo com os resultados expostos at esta altura desde estudo, tudo
indica que a manuteno do padro de apropriao territorial brasileiro destacado tem como
consequncia a apropriao das terras devolutas restantes na floresta amaznica, com grande
prejuzo para as populaes indgenas, quilombolas e tradicionais, alm dos pequenos posseiros e
a prpria floresta e sua biodiversidade.

Em se tratando da regio encompassada pela Amaznia Legal, a ausncia de regulao fundiria


transparece no clima de absoluta incerteza que impede o escrutnio da legitimidade das ocupaes
privadas de terras devolutas, contexto j encontrado em todos os outros perodos na fronteira
agropecuria em expanso.
127
Outro estudo sobre a condio legal das terras na Amaznia Legal confirma o que foi dito
anteriormente. De acordo com a tabela 23, abaixo, composta com dados colhidos pelo
recadastramento do Incra (Portaria do Incra, n 596/2001), estima-se que apenas 4% (20 milhes
de hectares) do territrio que constitui a Amaznia Legal (Barreto et al, 2008, p. 48-50)
constituem propriedades cadastradas e validadas pelo Incra. Outros 43% (209 milhes de
hectares) so constitudos por reas protegidas. O resto, cerca de 53% do territrio, constitudo
por terras supostamente pblicas fora de reas protegidas (21% ou 104 milhes de hectares) e
terras supostamente privadas, sem validao de cadastro (32% ou 158 milhes de hectares).

Figura 11. A distribuio incerta da situao jurdica das terras na Amaznia (milhes de
hectares e % do territrio), 2008.

Fonte: Barreto et al (2008, p. 50).


Apesar de j tratado anteriormente, cabe relembrar que em 2008 foi instituda a Medida
Provisria n 422, que foi depois convertida na lei n 11.763/200866. Esta Medida Provisria
instituiu a dispensa de licitao para a venda de posses de at 15 mdulos fiscais (1.500 ha, na
maior parte da regio Amaznica) ocupados na Amaznia at 2004. Esta medida acabou por
66
A lei na ntegra em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11763.htm
128
ampliar a dispensa de licitao que, de acordo com a lei de 11.196/2005 67, valia para imveis at
500 hectares (antes desta lei ainda, a dispensa de licitao era apenas para imveis de at 100
hectares). Com o pretenso - ou talvez inocente - intuito de agilizar o processo de regularizao
das propriedades e justificando incapacidade de cumprimento de licitao para imveis acima de
500 hectares (dado o aumento dramtico do nmero de imveis que seriam vistoriados pelo
Incra), fica claro a criao de um problema insolvel nas ltimas dcadas: aceitou-se, ao final, o
pedido de regularizao de posses que no poderiam ser ocupadas sem licitao em virtude do
seu tamanho. Este tipo de manobra, o de alargamento dos prazos para regularizao das posses,
no nada novo na histria fundiria brasileira, como visto em diversos exemplos e em diversas
pocas neste estudo. Contudo, esta tentativa de soluo do problema apenas joga a resoluo para
frente no tempo, enquanto as consequncias presentes continuam imperando: Essa medida
repete o histrico de gesto fundiria no Brasil em que o governo aceita ocupaes informais e
ilegais por vrios anos e depois adapta a legislao para regularizar essas situaes (Barreto et
al, 2008, p. 57). Assim, novamente, abre-se margem para a expectativa que empiricamente tem
se concretizado de que novas ocupaes irregulares sero regularizadas pelo governo no futuro.

Sem o estancamento das ocupaes irregulares e sem sucesso na demarcao das terras
devolutas, o padro de apropriao territorial estudado aqui tende a ser constantemente
reimposto, levado pelo mpeto da especulao no produtiva com terras, mantendo, portanto, a
desigualdade estrutural da propriedade de terras e o desmatamento nas reas de expanso da
fronteira interna.

4.3.3. O mercado de terras brasileiro

Para melhor entender a constituio e dinmica do mercado de terras no Brasil preciso,


primeiro, explicitar o vis terico da anlise. No entendimento deste estudo, partimos da ideia de
que a terra transformada em mercadoria fictcia numa sociedade de mercado capitalista, e tem,
por conseguinte, seu prprio mercado, o mercado de terras, que deve ser regulado pelo Estado e

67
A lei na ntegra em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11196.htm
129
no pelo mecanismo de mercado se o que se intenciona o uso social da terra (Polanyi, 2001,
p. 75-76)68.

A par disso, analisando o mercado de terras brasileiro percebemos que este portador de uma
desigualdade estrutural profunda, com uma grande rea de terras, oferta fixa, concentrada em
poucos proprietrios que exigem preos altos para se desfazerem de suas propriedades. De outro
lado, a demanda efetiva de terras est formada apenas pelos agentes econmicos com recursos
para compr-las, representados por agricultores que produzem para o mercado, especuladores e o
Estado. Nestas condies de mercado, os agricultores com pouca ou nenhuma terra esto
impedidos de participar desta demanda, dado que no tem recursos suficientes para pagar os
elevados preos das terras venda. Da mesma forma, quando o Estado busca comprar terras para
fins de reforma agrria, tem de pagar por elas o mesmo preo elevado. Dada esta configurao de
mercado, a terra torna-se um ativo muito lquido, que facilita seu uso como reserva de valor pelos
seus proprietrios (uso no produtivo). Assim, a interveno do Estado torna-se necessria para
reduzir as disparidades nele encontradas, ou seja, permitir o acesso terra aos agricultores que
querem dar uso produtivo a ela, mas no tem condies econmicas para participar desse
mercado; diminuir os custos da aquisio de terras pelo Estado para criao de assentamentos;
restringir a sua liquidez por meio do aumento do custo de manuteno (com imposto, por
exemplo), com a inteno de restringir o uso especulativo da mesma, regulando seu preo
(Reydon et al, 2006b, p. 33-34).

Neste contexto de alta concentrao de terras e baixos ndices de uso produtivo/social da mesma,
a interveno no mercado de terras deve ser pautada pela diminuio destas desigualdades
estruturais presentes.

Como visto, a enorme concentrao de terras nas mos de poucos proprietrios eleva
dramaticamente o preo das mesmas e este fator somado a outros como o baixssimo custo de

68
The crucial point is this: labor, land and money are essential elements of industry; they also must be organized in markets; in
fact, these markets form an absolutely vital part of the economic system. But labor, land and money are obviously not
commodities; the postulate that anything that is bought and sold must have been produced for sale is emphatically untrue in regard
to them/ In other words, according to the empirical definition of a commodity they are not commodities. Labor is only another
name for a human activity which goes with life itself, which in turn is not produced for sale but for entirely different reasons, nor
can that activity be detached from the rest of life, be stored or mobilized; land is only another name for nature, which is not
produced by man; actual money, finally, is merely a token of purchasing power which, as a rule, is not produced at all, but comes
into being through the mechanism of banking or state finance. None of them is produced for sale. The commodity description of
labor, land and money is entirely fictitious. (Polanyi, 2001, p. 75-76)
130
manuteno das terras, dado que a cobrana do ITR no efetiva, e a facilidade de transao sem
perdas torna-as um ativo de elevada liquidez. Se adicionarmos a este fator o contexto de ausncia
de regulao, especialmente no que tange a apropriao de terras devolutas sem custos, possvel
ficar ainda mais claro que este ainda mais outro fator que torna atraente e perpetua a forma de
apropriao territorial em voga neste estudo.

Um dos fatores de ausncia de regulao fundiria que, como vimos, reflete diretamente em
distores no mercado de terras, a no efetivao da cobrana do ITR como forma de aumentar
o custo de manuteno das terras, diminuindo o seu uso no produtivo, mais especificamente,
diminuindo seu uso especulativo. Este, somado a enorme concentrao fundiria, um dos
maiores motivos da manuteno de um patamar de preos muito elevados da terra, objetivo de
anlise da prxima seo.

4.3.4. Preo de terras elevado

Partindo do perodo de estabilizao da economia sob o Plano Real, de 1994 a 1998, possvel
analisar as flutuaes no preo da terra no Brasil. O fim da inflao associado recesso
provocada pelas polticas restritivas de consumo e crdito, particularmente para a agricultura em
meados de 1994, fez com que o preo da terra apresentasse uma queda bastante sustentada nos
seus preos: entre dezembro de 1994 e dezembro de 1998 os preos da lavoura caram em 50%,
estabilizando-se no patamar de R$ 1.300 por hectare (Reydon et al, 2006c, p.156).

O Plano Real teve impactos da maior importncia nos mercados de terras no s pelas polticas
de crdito, mas especialmente pela poltica de altas taxas de juros que ocasionaram expectativas
pessimistas de ganhos produtivos com a terra, somado ao fato de que a reduo drstica da
inflao fez com que a terra perdesse sua atratividade como reserva de valor e como ativo
especulativo. Em sntese, os motivos que ocasionaram uma baixa no preo da terra foram dois: de
um lado, a reduo das expectativas de ganho produtivo com a restrio de crdito agrcola, de
outro, a reduo das expectativas de ganho especulativo com a terra rural, visto as altas taxas de
juros praticadas e a reduo drstica da inflao. A unio destas duas redues de expectativas
fez com que se desvalorizasse o patrimnio dos proprietrios de terras.

131
No perodo posterior a tendncia se reverte e os preos de terras voltam a subir consistentemente.
De acordo com Gasquez et al (2008), o perodo de 2000 a 2006 mostrou uma mudana ntida
com relao tendncia anterior de decrscimo do preo da terra, obtendo um aumento real anual
do preo da terra de lavouras e pastagens em torno de 10%.

Em outra fonte que acompanha o preo das terras, em notcia de 2008, foi dito que o preo de
terras no Brasil quebrou recordes. De acordo com a fonte, as cotaes em alta no setor de gros, a
reao da pecuria e avano dos biocombustveis impulsionaram o valor das reas agrcolas:

Segundo pesquisa do Instituto FNP, consultoria privada especializada em agronegcio, ao longo de


2007, a valorizao chegou a 17,83%, ganho real (acima da inflao) de 9,6% no ano. O preo do
hectare passou de R$ 3.276 para R$ 3.860. Para 2008, apesar da turbulncia nos mercados
internacionais, que poderiam prejudicar investimentos, a perspectiva de nova alta, com os negcios
ainda aquecidos. (Brasilagro, 2008)

No perodo mais recente, a escalada do preo das terras continua, impulsionada especialmente
pela alta generalizada das commodities no mercado internacional, que arrasta consigo os preos
das terras. Dados recentes demonstram essa tendncia, de acordo com Instituto FNP (2012):

nos ltimos 36 meses, encerrados no bimestre maro-abril deste ano [ou seja, de maro-abril 2010 a
maro-abril 2012], o salto nos preos foi de 50%, na mdia brasileira. O Centro-Oeste tambm ficou
na dianteira, com valorizao de 57% no perodo, tambm acima da mdia nacional. [] Segundo ela
[Ndia Alcntara], pode at haver arrefecimento nas cotaes de commodities ligadas infraestrutura,
como o minrio de ferro, por exemplo. J quanto demanda por alimentos, ela avalia que seguir em
patamares elevados, sustentando os preos das commodities e, consequentemente, os das terras
destinadas atividade.

Em outra notcia recente encontramos a mesma tendncia: alta valorizao sustentada do preo da
terra no Brasil. Entre maro de 2011 e abril de 2012, a valorizao mdia da terra no pas foi de
16,5%, mais que o triplo da inflao acumulada no perodo (5,1%, de acordo com o ndice de
Preos ao Consumidor Amplo, IPCA). Em abril de 2012 o preo mdio de um hectare se
encontrava na faixa de R$ 6,7 mil a maior cotao mdia registrada pela pesquisa, que
comeou a ser feita em 2002, de acordo com Nadia Alcantara, do Instituto FNP. A pesquisa
mostra que a regio mais valorizada em 12 meses foi a terra para soja em Sinop (MT), com
aumento de 73,3% at abril, de R$ 9 mil para R$ 15,6 mil o hectare. Em seguida, a terra para
cana no Esprito Santo, com alta de 54% no mesmo perodo, de R$ 6,5 mil para R$ 10 mil o
hectare. As terras com o preo mais alto, entretanto, so as de Santa Catarina, na regio de Itaja,

132
regio de pequenas propriedades. Nesta regio, um hectare para plantao de uva tem o preo de
R$ 43 mil, e a valorizao acumulada em 12 meses at abril foi de apenas 2,5%. De acordo com
os analistas da pesquisa, passado esse boom nas cotaes, acredita-se que os preos fiquem
estveis. Concluem isso com base no indcio de que a tendncia de sustentao das cotaes em
nveis elevados pelo baixo nmero de transaes, intuindo sobre a concentrao fundiria
estrutural que oligopoliza a oferta de terras: hoje, poucas transaes de compra e venda ocorrem
e o motivo a escassez de ofertas. J quanto expectativa de ganhos especulativos que aumenta
a liquidez e, por decorrncia, o preo das terras e o mantm num patamar elevado, fica claro este
comportamento ao diagnosticarem que os potenciais vendedores adiam os negcios, pois
acreditam que conseguiro preos ainda maiores, especialmente no caso de terras para soja; o
motivo desta expectativa claro, a oferta de terras limitada e a necessidade de produo de
alimentos continua. Ainda quanto ao motivo reserva de valor e alta liquidez da terra, a notcia
anuncia que tambm o fato da crise atual ser de confiana no sistema financeiro contribui para o
fortalecimento do mercado de terras leia-se alta nos preos -, a terra acaba sendo um porto
seguro para o investidor [] quando a taxa de juros cai, o preo da terra sobe (Folha de So
Paulo, 2012).

Como pretendido, analisamos nesta seo a manuteno dos altos preos de terras no pas nos
ltimos anos, devido a uma oferta estruturalmente concentrada nas mos de poucos proprietrios
e devido tambm a alta liquidez possuda pela terra no Brasil, servindo tanto para reserva de valor
quanto para ganhos patrimoniais via especulao.

Somando a configurao de oferta extremamente concentrada do mercado de terras brasileiro


com o caos em matria de regulao fundiria veremos, na prxima seo, os efeitos perversos
destes fatores no desenrolar de tentativas de desapropriao via funo social da propriedade
privada.

4.3.5. Ttulos da Dvida Agrria (TDA) e superindenizaes

Outro entrave do instrumento de desapropriao de terras improdutivas para fins de reforma


agrria se d no processo de indenizao, onde no raro a terra avaliada acima do que realmente
vale e o dono do imvel desapropriado recebe indenizao com ttulos da dvida agrria (TDA),

133
um ttulo de alta liquidez. Estes ttulos tm como finalidade indenizar apenas o valor da terra nua
(VTN) da terra desapropriada, sendo que as benfeitorias so pagas em dinheiro e vista.

Os Ttulos da Dvida Agrria surgiram para viabilizar o pagamento de indenizaes aos


proprietrios de imveis rurais que foram sujeitos aes desapropriatrias por interesse social
para fins de reforma agrria por parte da Unio. Seu surgimento est atrelado Lei n
4.504/1964, o Estatuto da Terra. At 1992, os Ttulos da Dvida Agrria eram emitidos pelo
INCRA, e eram denominados de TDA-INCRA ou TDA-Cartular. A partir dessa data, passaram a
ser emitidos pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Essa secretaria, com base no Decreto no
578, de 24 de junho de 1992, passou a ter as atribuies de gesto, controle, lanamento, resgate
e pagamento de juros dos TDA.

Em estudo de Gasques e Verde (1999), os autores apresentam dados sobre a evoluo do


oramento relacionado reforma agrria em vrios anos, incluindo o peso relativo dos TDAs
nestes oramentos. Inicialmente, apontam que nas dcadas de 1970 e 1980, os gastos com
poltica fundiria representavam, em mdia, apenas 2% do que se aplicava na agricultura,
tornando-se crescentes na dcada de 1990 (4,16% em 1990, 20,7% em 1996 e 18,25% em 1998).

Dentro do oramento do Programa de Organizao Agrria, os mesmos autores (op. cit, p. 9)


mostram que em 1997 os gastos com reforma agrria representavam 82,8% dos dispndios totais,
sendo o projeto de maior importncia o de indenizao de imveis rurais, que consumiu 827,1
milhes de dlares dos dispndios com reforma agrria. Em se tratando das indenizaes, esto
includos as indenizaes em TDAs (responsveis por 78,18% do total) e tambm as
indenizaes de benfeitorias teis e necessrias decorrentes da obteno de imveis rurais
(21,82%).

Ao detalhar melhor a anlise do custo de indenizao, ainda referente ao ano de 1997, nota-se
que as despesas com sentenas judiciais no esto contabilizadas nos valores acima, e
representaram um gasto do Tesouro de 282 milhes de dlares adicionais, elevando os gastos
com indenizaes em 37% (op. cit., p. 11). Entretanto, aes mais recentes do governo atravs
dos mecanismos judiciais reduziram os custos e agilizao dos processos de desapropriao,
como o Decreto n 2.250/1997 (que confere s entidades estaduais representativas de
trabalhadores rurais o poder de indicar ao Incra as reas passveis de desapropriao para a
134
reforma agrria) e a Medida Provisria n 1.632-11/1998 (que reduziu de 12% para 6% os juros
incidentes quando havia diferenas entre o preo ofertado em juzo e o valor do bem fixado na
sentena, alm de vedar o clculo de juros compostos).

Quanto ao valor dos resgates de ttulos emitidos pelo Tesouro Nacional e pelo Incra no perodo
de 1994 a 1998 (dispostos na tabela 23, abaixo), podemos notar que o volume total de
pagamentos efetuados com TDA pela Unio passou de 12 milhes de dlares, em 1994, para 1
bilho de dlares, em 1997.

Tabela 23. Pagamento de ttulos da dvida agrria efetuados pela Unio, 1994-1998.

Fonte: Gasques e Verde (1999, p. 20)

Outro dado importante a ser elencado que os compromissos com o resgate de Ttulos da Dvida
Agrria geralmente so constestados judicialmente. De acordo com Shiki et al (1998, apud
Gasques e Verde, 1999, p. 22) cerca de metade dos proprietrios indenizados questionam o valor
das desapropriaes e buscam a Justia, o que tem praticamente quintuplicado os custos das
desapropriaes em relao ao valor inicial.

Estas contestaes judiciais no raro geram discrepncias extremas entre os valores avaliados
pelos rgos participantes da desapropriao e os valores de indenizao exorbitantes declarados
pela sentena final. Sendo assim, torna-se necessrio apresentar alguns dados sobre este tipo de
ocorrncia, com a advertncia de que, assim como sobre a anlise dos TDAs, poucos estudos e
relatrios pblicos sobre este tema foram encontrados na elaborao deste estudo.

A maior fonte de dados encontrada sobre os casos de indenizaes exorbitantes relacionadas com
as desapropriaes por interesse social para fins da reforma agrria se encontram em estudo
elaborado pelo Incra em 1999, de nome Livro Branco das Superindenizaes (Instituto Nacional
de Colonizao e Reforma Agrria, sem data). Neste estudo foram analisados mais de 70
135
processos judiciais movidos por donos de terras desapropriadas contra o prprio Incra que, na
soma, alcanaram mais de R$ 7 bilhes, dinheiro suficiente ( poca) para assentar cerca de 300
famlias.

Sobre estas superindenizaes, o estudo revela que:

O artifcio da elevao exponencial dos preos das terras desapropriadas ocorre quase que
invariavelmente por meio de aes judiciais, em processos que se arrastam por anos nas diversas
instncias do Poder Judicirio. Nos clculos judiciais foram includas, ao longo dos anos, alegadas
perdas com produo agropecuria no realizada, cujos lucros cessantes so atualizados
monetariamente e capitalizados. Isso ocorre a despeito de serem as terras desapropriadas pelo Incra,
por definio, improdutivas. O mesmo acontece com as avaliaes das benfeitorias dos imveis
desapropriados, sejam elas reprodutivas ou no, assim como com a absurda indenizao da cobertura
vegetal nativa.
Nas desapropriaes que sofreram ao judicial, o custo dos remanescentes pagos como indenizao
imposta pelas sentenas alcanaram 14 vezes o valor do laudo inicial de Incra na regio Sudeste. Na
regio Centro Oeste esta relao tambm alta - chegando a 12 vezes (v. tabela abaixo). Desse modo,
o custo das terras obtidas para a reforma agrria basicamente determinado pelo sistema judicial, que
acolhe aes em aproximadamente 50% de todas as desapropriaes. (Instituto Nacional de
Colonizao e Reforma Agrria, sem data)

Um dos exemplos citados envolve os proprietrios do imvel Fazendas Reunidas,


desapropriado para fins de reforma agrria em 1987. Os antigos proprietrios recorreram Justia
para elevar o valor da desapropriao dos R$ 25.811.260,00 inicialmente arbitrados pelo Incra
para R$ 385.502.876,00, valor que atualizado beirava R$ 1 bilho em 1999, poca da
elaborao do estudo69.

O diagnstico do estudo sobre os fatores que permitiram a ocorrncia destas distores os


resumia a um motivo econmico, a inflao do perodo anterior a estabilizao da dcada de
1990, que criava uma iluso monetria na qual todos os valores eram relativizados ao extremo
e um motivo consuetudinrio, que persiste ainda hoje, onde a Justia brasileira, fundamentada
no direito propriedade [] tende, historicamente, a decidir em favor do proprietrio sempre que
entenda que esse direito est sendo ou possa vir a ser ameaado (op. cit.).

69
No estudo consta que o TRF paulista atendeu demanda do Incra e determinou a realizao de uma nova percia no imvel.
No foram encontrados resultados mais recentes sobre os trmites deste processo.
136
Devemos lembrar ainda que durante o perodo inflacionrio, investir em terra era considerado
como uma alternativa das mais seguras para o dono de capital, visto que era tida como reserva de
valor e se constitua num ativo seguro e de grande liquidez70. (Reydon, 1992, p. 115)

Com isto, diz o estudo, o custo de obteno de terras para reforma agrria, poca, estava sendo
determinado em grande medida pela prpria Justia, atingindo em mdia 5,01 vezes o valor
inicialmente proposto pelo Incra (op. cit.).

Em suma, constatamos dois problemas com relao ao uso efetivo do instrumento da


desapropriao: 1) a desatualizao do ndice de eficincia de explorao (GEE), que no
atualizado desde 1975, tendo a agropecuria se modernizado desde ento; e 2) as distores com
relao s indenizaes, visto que muitas vezes, no decorrer do processo judicial, os valores
finais de indenizao se elevam de tal maneira a ponto de ficar totalmente desconexos com as
avaliaes do Incra. Em conjunto, estes fatores acabam por inviabilizar este instrumento que
poderia ser til como incentivador de uma mudana no padro de apropriao territorial.

4.3.6. Inadimplncia do crdito rural

O perodo de modernizao da agropecuria brasileira a partir do final da dcada de 1960 teve


como uma de suas caractersticas centrais a proviso generalizada de crdito farto e barato,
subsidiado pelo governo, entregue atravs do Sistema Nacional de Crdito Rural (SNCR).

Dentro deste perodo de modernizao vale lembrar que a concentrao de crdito se deu de
forma desigual entre os ramos da agropecuria, beneficiando principalmente os ramos de
produtos de exportao (cana-de-acar, caf, soja, etc). A ttulo de exemplificao, o estudo de
Ramos (2005) vai de acordo com a argumentao desta seo, estimando que o montante de
subsdios explcitos e/ou implcitos nos financiamentos setoriais aos tradicionais e novos
produtores de cana, de acar e de lcool, no perodo de 1975 a 1989 chega a US$ 500 milhes
anuais.

70
Na realidade latino-americana e brasileira, deve-se incluir uma outra varivel que tem um impacto muito grande nos preos
dos ativos em geral: a inflao. Sem pretender entrar na discusso de suas causas, cabe apenas constatar que a sua existncia
certamente diminui a demanda por dinheiro em momentos de preferncia crescente pela liquidez, provavelmente transferindo
parte desta demanda para outros ativos lquidos. Se a existncia de indexao para alguns ativos faz com que a sua demanda seja
mais estvel, em momentos de grande instabilidade, nos quais os agentes podem perder a confiana nestes indexadores, a
demanda por outros ativos lquidos, tais como a terra, deve aumentar (Reydon, 1992, p. 115).
137
Esta poltica de crdito rural operou com juros reais negativos durante os anos de 1970 e 1986 e
concentrou crdito entre poucos grandes produtores (Bacha et al, 2006). Entretanto, os efeitos
adversos destas medidas s foram se manifestar no final da dcada de 1980.

Sobre a crise de inadimplncia do crdito rural de 1986/1987, Dias (2007, p. 342-343) aponta que
esta se deu no contexto de hiperinflao ps-fracasso do Plano Cruzado, o que resultou no
prorrogamento da taxa nominal fixa de juros de 10 por cento ao ano por mais seis meses. Isto
resultou no desaparecimento do saldo devedor como por milagre, e o Banco do Brasil no faliu
porque continuava com o poder de emisso de moeda na conta movimento entretanto o nvel
de emprstimos em relao ao PIB rural que nunca mais voltou aos mesmos valores.

No perodo aps 1990, a primeira grande renegociao das dvidas rurais se deu em 1995, com o
nome de Securitizao 1. Nesta foram renegociados os contratos de at R$ 200 mil, para serem
pagos parceladamente em dez anos, com trs de carncia e juros de 12% ao ano mais
remunerao da caderneta de poupana.

Em 1998 criou-se outro instrumento, este voltado para a renegociao das dvidas maiores que
R$ 200 mil, chamado de Programa Especial de Saneamento de Ativos (Pesa), em condies
similares Securitizao 1, mais prazos de 20 anos sujeitos correo monetria pelo ndice
Geral de Preos de Mercado (IGP-M), e uma taxa adicional de 8 a 10% ao ano, a depender do
volume renegociado.

No ano de 2001, por presso da bancada ruralista, houve uma segunda grande renegociao,
chamada de Securitizao 2. Nesta os detentores de dvidas de at R$ 200 mil da Securitizao 1
poderiam quitar os dbitos pendentes com desconto de 25% e alongar o saldo at 2025, com juros
de 3% ao ano e as dvidas remanescentes corrigidas pela variao do preo mnimo de um dos
produtos escolhido pelo devedor alm do fornecimento de desconto de 65% no pagamento em
dia.

Na Securitizao 2, a maioria dos 119 mil contratos inadimplentes poca foram renegociados.
Os 32,5 mil contratos (30% do total) que no foram renegociados permaneceram na Securitizao
1 e apresentavam, em 2006, inadimplncia de 96% - o que transparece a inteno organizada de
no pagar por parte dos devedores que no renegociaram suas dvidas, j em 2002.

138
Silva (2010, p. 176) ilustra as enormes vantagens oferecidas pela Securitizao 2:

apresenta-se a seguir um exemplo real de uma dvida de R$ 100, originada em setembro de 1994, que
foi securitizada em 1995 e renegociada novamente em 2001 (SEC 1+2), supondo-se os pagamentos em
dia para o devedor poder beneficiar-se dos descontos:
a) considerando-se apenas os valores correntes (ou seja, sem nenhuma correo monetria), o valor
acumulado atualizado pela taxa Selic at o final dos pagamentos em 2025 somaria R$ 1.013, dos quais
seriam pagos R$ 227, ou seja, apenas 22% da dvida total;
b) considerando-se os valores da dvida corrigidos por uma medida de inflao como o IGP-M,
teramos para 2025 um valor acumulado de R$ 4.578, dos quais teriam sido pagos apenas R$ 242, ou
seja, a nfima porcentagem de 5% do total devido.

Para termos uma noo do tamanho dos gastos com dvidas rurais, o estudo de Silva (2010, p.
178) tambm esclarecedor. Na tabela 24, abaixo, possvel notar o peso do oramento do
governo dedicado s dvidas rurais que, no perodo de 2000-2006, representam cerca de 60% (R$
19,35 bilhes) dos pagamentos e dispndios da Unio com a agricultura brasileira.

Tabela 24. Pagamentos e dispndios do Tesouro Nacional com programas e polticas


agropecurias, 2000-2006, em milhes de R$ de 2006.

Fonte: Inagro (2007), apud Silva (2010)

No mesmo estudo demonstra-se que mesmo nos anos bons para a agricultura, forte
inadimplncia verificada. Criou-se um crculo vicioso onde, acostumados a sempre
prorrogarem suas dvidas em melhores condies, estes devedores habituaram-se simplesmente a
no pagar (op. cit., p. 178). As taxas de inadimplncia do Pesa, a partir de 1997, chegaram a
40%, mantendo-se nesse patamar entre 1999 at 2004; na Securitizao, o ndice de

139
inadimplentes chega a 20% entre 1997 e 2000, cai para zero em 2001 com a nova renegociao e
aumenta a partir da, chegando a quase 40% de inadimplentes entre 2003 e 2004. Segundo o
Inagro (2007, apud Silva, 2010, p. 179):

digno de nota o crescimento do pagamento de dvidas nos anos de 2003 e 2004, assim como sua
queda drstica em 2005 e 2006. Este no pagamento das parcelas que vencem anualmente aponta para
a elevada inadimplncia existente normalmente nestas carteiras, e sugerem um comportamento
organizado pelo no pagamento dos contratos, uma cultura de no pagar as dvidas rurais generalizada.
(...) Mesmo em um ano normal para a agricultura, o histrico demonstra que h uma constante e
recorrente inadimplncia por parte dos devedores, ainda que, sucessivamente, consigam prorrogaes e
melhores condies de pagamento [] Os resultados demonstram que o no pagamento de parte das
dvidas recorrente, no explicado somente pelos problemas agrcolas de quebra de safra, de preos ou
por problemas climticos.

Este movimento perverso acaba por onerar demasiadamente a Unio, sendo preocupante que um
grupo relativamente pequeno de produtores, com grandes volumes de crditos renegociados, no
liquide seus dbitos atrasados, por qualquer motivo. Estas renegociaes geram enormes
descontos a maus pagadores crnicos, resultando em uma socializao dos prejuzos ao se
transformarem em nus para a Unio, alm de contaminar outras carteiras de crdito rural,
prejudicando outras polticas de crdito rural.

Analisando a carteira de agronegcios do Banco do Brasil, pode-se comparar a evoluo das


provises com os recursos disponveis para financiamento de atividades agropecurias. Tendo em
vista que o Banco do Brasil o maior banco que opera diretamente recursos de crdito rural no
pas, de acordo com a Tabela 25, abaixo, houve um aumento de cerca de 350% do volume total
de crdito, e aumento de 594% no volume de provises. Dentro deste perodo houve tambm um
grande aumento do grau de riscos nos emprstimos de nvel D a H (maiores ndices de
inadimplncia), partindo de 3% da composio da carteira, crescendo at 14,6% em 2009 e
reduzindo para 9,1% em 2012. Entretanto, h que se ressalvar que, apesar da diminuio em
comparao com o total da carteira, o aumento do volume de emprstimos de risco (categorias D
a H) parte de 0,8 bilhes de reais em 2003 para 8,6 bilhes de reais em 2012, atestando para o
alto volume de recursos jogados a fundo perdido, visto que raramente esta parcela de devedores
consegue (ou mesmo pretende, pelo que foi visto anteriormente) saldar suas dvidas.

140
Tabela 25. Valor das provises na carteira de agronegcio do Banco do Brasil, 2003-2012.
Risco D a H Risco D a H,
Ano Saldo carteira (a) Proviso (b) (a/b) % (%) em R$ milhes
2003 26.864 493 1,8 3 806
2004 30.036 632 2,1 3,7 1.111
2005 35.079 1.944 5,4 9,3 3.262
2006 45.063 2.768 6,1 11,8 5.317
2007 51.883 3.659 7,1 13,8 7.160
2008 63.689 4.784 7,5 14 8.916
Mar./2009 63.492 5.087 8,1 14,6 9.270
2010 75.015 3.841 5,1 8,6 6.420
2011 88.658 2.914 3,3 10,2 9.072
Jun./2012 94.828 2.927 3,1 9,1 8.610

Fonte: Banco do Brasil, elaborao prpria com base em Silva (2010, p. 180)

Dentro da carteira de agronegcio do Banco do Brasil, em dezembro de 2011, nota-se que a


maior parte do volume total da carteira destinada a pessoas fsicas (67%), e o grau de risco entre
D e H desproporcionalmente elevado nestes 7,51% do total para pessoa fsica, em contraste
com 1,57% do total para pessoa jurdica -, conforme a tabela 26, abaixo.

Tabela 26. Pessoa fsica e pessoa jurdica na carteira de agronegcio do Banco do Brasil, em
R$ milhes - junho de 2012.
Risco D-H sobre
Risco D-H Saldo
Saldo (%)
Pessoa Fsica 4.769 7,51% 63.507

Pessoa Jurdica 492 1,57% 31.321

Total 5.261 5,55% 94.828

Fonte: Banco do Brasil, elaborao prpria.


Por fim, interessante apontar o diagnstico de Dias (2007) sobre a nova forma de articulao
poltica dos grandes proprietrios de terras, que toca de alguma forma todos os pontos tratados

141
neste estudo relacionados manuteno do padro de apropriao territorial e suas
consequncias:

Os conitos decorrentes de crises de endividamento rural e aqueles oriundos da excessiva


concentrao da posse de terras vm sendo canalizados para o Executivo Federal, sem a intermediao
das agncias de crdito, das representaes locais dos produtores e dos movimentos sociais. A
representao poltica destes interesses no Congresso e junto ao Executivo cria um vis fundamental
pela socializao dos custos e maior concentrao dos benefcios.

CONCLUSES DO CAPTULO

Quando tentamos analisar alguma faceta relacionada questo da terra no Brasil encontramos
sempre uma grande dificuldade de ordenar influncias e fatores de causao entre as mais
diversas reas polticas, econmicas, sociais, legislativas, etc. Dentro deste panorama tentamos
dar algum nvel de ordem e articulao entre os fatores mais importantes que atuam no nosso
objeto primrio, qual seja, a conformao de um dado padro que se mantm na ordenao
territorial e seu desenvolvimento.

Mostramos atravs da exposio de alguns dados importantes que a estrutura fundiria se


manteve intocada no perodo de anlise, sendo impermevel inclusive s tentativas de sua
alterao por via do esforo ativo da reforma agrria. Inclusive a violncia no campo se manteve
em um alto patamar, em especial nas zonas de expanso da fronteira interna o que est de
acordo com as interpretaes que fizemos nos dois primeiros captulos.

Tendo mostrado esta blindagem da estrutura agrria no que toca a sua alterao em essncia,
analisamos os principais fatores que engendram a sua manuteno no perodo aps 1964 que,
diga-se de passagem, so praticamente os mesmos desde h muito. Analisamos a contnua
recriao da possibilidade de privatizao de terras devolutas atravs da posse, assim como a
presso em direo manuteno deste status quo agrrio que se canaliza pela ausncia de um
cadastro funcional lembremos: a demarcao das terras devolutas depende em grande medida
da demarcao das terras privadas. Em seguida analisamos os dois maiores instrumentos
disponveis para alterao da estrutura agrria: o instrumento curativo que se conforma na
desapropriao de terras por via do interesse social e o instrumento preventivo composto pelo
imposto territorial rural. Foi possvel concluir que ambos sofrem entraves tanto em seu corpo
legal e regulatrio quanto na aplicao prtica, tornando-os ineficazes.
142
Por ltimo exploramos os graves efeitos que a manuteno deste padro de apropriao territorial
traz consigo, como a espoliao do patrimnio pblico de terras, o desmatamento sem controle e
as deformaes causadas no mercado de terras, em especial a presso estrutural nos preos das
terras no Brasil. Tambm abordamos dois casos especficos que se qualificam como uma real
transferncia dos recursos financeiros do governo para a elite de latifundirios: primeiro no caso
das superindenizaes por via dos TDAs, segundo no caso da gritante inadimplncia do
oligoplio que recebe a maior parte do crdito rural e sequer se preocupa em pag-lo de volta,
utilizando-se de meios extraeconmicos para pressionar a sua renegociao com grandes
privilgios.

143
CONSIDERAES FINAIS

Atravessamos sculos da histria da apropriao de terras no Brasil para mostrar a formao e


desenvolvimento de um padro sui generis de expanso da fronteira interna, marcado pela
ausncia de regulao adequada e no surgimento e permanncia do apossamento das terras
devolutas. chegada a hora de apontar os achados principais e os limites da nossa anlise, assim
como indicar novas perguntas que se abriram a partir daqui.

No que tange ao perodo anterior a 1964, vimos o papel que teve a ascenso do apossamento na
falncia das sesmarias. A tentativa mais direta de limit-lo se deu atravs da Lei de Terras de
1850, proibindo legalmente a posse em terras devolutas como forma de proteger o patrimnio
pblico e impedir que os trabalhadores livres principalmente os imigrantes e ex-escravos
tivessem acesso terra. Esta referida lei, por um lado, continha dentro de si contradies que
bloqueariam sua efetividade a necessidade de se demarcar as terras privadas para definir as
terras devolutas posteriormente, por excluso. Por outro lado, o poder dos grandes proprietrios
rurais que se utilizavam costumeiramente do apossamento entrou em choque com a aplicao da
lei, diluindo sua aplicao na prtica. Esta querela ainda reverbera na atualidade, tendo em vista
que a falta de um cadastro completo das terras privadas impede a adequada demarcao das terras
devolutas, abrindo margem para o continusmo do apossamento destas ltimas enquanto se
amplia a fronteira interna.

Outros dois fenmenos dignos de nota foram a passagem de domnio das terras devolutas da
Unio para os estados aps a proclamao da Repblica e, em seguida, a interpretao que
engendrou a possibilidade legal de usucapio em terras pblicas. Se o primeiro significou uma
transferncia de poder para as oligarquias agrrias regionais disporem como bem entendessem
das terras devolutas, o segundo contrariou diretamente a Lei de Terras de 1850 e colocou na
incerteza todos os proprietrios que regularizaram ou adquiriram suas propriedades por via
administrativa, como era de costume.

Nas duas dcadas que antecederam o golpe de 1964 o pas passou por um perodo de
efervescncia poltica e pode-se ver uma crescente mobilizao social por reformas de base,
dentro das quais a reforma agrria ocupava papel de destaque como instrumento de
145
transformao estrutural do campo. Esta mobilizao generalizada invocou das classes
dominantes rurais e urbanas a sombria reao que se materializou no golpe de 1964 e na
instaurao de um governo civil-militar, durando mais de duas dcadas.

Data deste perodo outra lei-marco no que tange a regulao da apropriao territorial brasileira,
conhecida como Estatuto da Terra. A letra progressista desta lei aparentemente no casava com o
contexto sociopoltico de um duro regime civil-militar repressivo, contradio aparente que se
desfaz ao constatarmos que a aplicao dos seus dispositivos mais progressistas no foi
implementada na prtica. Durante o perodo de ditadura militar o Estado seguiu com o processo
de privatizao das terras devolutas, incentivando-o largamente atravs dos sertes ainda no
explorados do Brasil via concesso de crdito subsidiado e incentivos fiscais. Disto resultou um
grande avano da fronteira interna repetindo a forma j delineada de apossamento de terras
devolutas em grande escala.

A reabertura democrtica resultante da falncia do regime civil-militar culminou com o


afloramento de esperanas h muito engasgadas, que acreditava-se que iriam dar as cores para a
Constituio de 1988. Ledo engano, em especial no tocante regulao territorial, dado que o
excesso proposital de mincias regulatrias representou um engessamento prtico e dependncia
de regulamentaes posteriores que, como se bem sabe, no se deram hoje, mesmo depois de
quase trs dcadas, o conceito de propriedade produtiva e a definio de propriedade que cumpra
sua funo social ainda no est claramente normatizado. Alm disso, no se deu cabo
novamente da questo do apossamento de terras devolutas nem do cadastramento das
propriedades privadas e pblicas.

A agudizao das tenses sociais no campo exigia alguma resposta, mesmo que a contragosto das
classes dominantes. Surge da a prestidigitao poltica operada at hoje, qual seja, a proposio
de que seria possvel resolver um antigo problema estrutural agrrio atravs exclusivamente da
criao de assentamentos rurais. Como prova de que este problema no se resolveu mais uma
vez s preciso olhar atentamente para, de um lado, os grandes nmeros de famlias
assentadas, que atingiu seu mximo na dcada de 1990 e, de outro lado, a permanncia da
estrutura fundiria ultra-concentrada aliada a um padro de apropriao territorial excludente e

146
nada democrtico que continua a se reproduzir no andar da fronteira interna, atravs da
privatizao de terras devolutas.

Ao nos debruarmos sobre a apropriao territorial no avano da fronteira interna voltamos a


anlise ao estado do Par visto ser este um local profcuo para o estudo recente da forma como
conflitam os interesses dos grandes e pequenos proprietrios na busca de se apossarem das terras
devolutas. Mostramos com isso que a juno da falta de controle do governo sobre suas terras
devolutas e a manuteno da possibilidade legal e costumeira do apossamento numa regio de
fronteira interna aberta traz consigo a intensificao da violncia no campo em sua face mais
sangrenta, alm de perpetuar o padro histrico de apropriao territorial excludente, passando
por cima de trabalhadores rurais, ndios, quilombolas, populaes ribeirinhas. Com isto
constantemente recriada a concentrao da estrutura agrria brasileira.

Entretanto preciso notar que, nesta mesma terra que palco dos mais intensos conflitos
fundirios, fulguraram luminosos os esforos comeados e abortados pelo Estado durante o final
da dcada passada no tocante regularizao fundiria, controle do apossamento de grandes
reas e demarcao de terras devolutas esforos estes poucas vezes empreendidos na histria da
apropriao territorial brasileira e que culminou, inclusive, no cancelamento ou bloqueio de
centenas de milhes de hectares de ttulos de terras falsos.

No ltimo captulo desta dissertao, mostramos dados que comprovam a solidez da manuteno
da extrema concentrao fundiria no pas, maior sintoma de seu carter excludente, e da
manuteno dos conflitos fundirios. Seguimos o argumento ao explicitar mais uma vez que isso
decorre da primariamente da permanente recriao da possibilidade de apossamento das terras
devolutas e secundariamente da ausncia de um cadastro de terras consolidado e da ineficcia e
inoperncia dos instrumentos de desapropriao e do ITR. Por fim, mantendo-se estas
caractersticas centrais do padro de apropriao territorial brasileiro, mostramos que resulta da a
continuao de outros efeitos viciosos como o desmatamento descontrolado e outras agresses ao
meio ambiente, grilagens de terras, caos fundirio, distores no mercado de terras, e espoliao
do patrimnio pblico.

O que podemos tirar de apontamentos deste estudo se resume, sinteticamente, ao fato de que o
padro de apropriao territorial brasileiro se manteve inalterado em suas caractersticas centrais
147
aps 1964 e at a atualidade. Disto decorre que toda as mazelas relacionadas so
permanentemente recolocadas e continuaro atuantes em seus efeitos perversos a no ser que se
consiga quebrar estruturalmente - pela primeira vez - este padro com que ocorre a ocupao das
terras no Brasil.

Em segundo lugar, no possvel ao Estado tomar o controle sobre suas terras devolutas sem um
cadastramento unificado das terras pblicas e privadas.

A primeira pergunta que surge a esta altura precisamente como realizar esta mudana,
principalmente em termos polticos. No temos condies de elaborar uma resposta para tanto,
restringindo-nos, infelizmente, a pontuar que este seria o prximo passo em termos lgicos e que
para d-lo ser preciso a elaborao de outro estudo, mais denso e aprofundado. Outro ponto que
necessitaria urgentemente de maior elaborao e que, propositalmente, nunca foi abordado aqui
a relao atual entre os grandes proprietrios de terra e o poder, incluindo a as suas
manifestaes polticas a nvel do Estado e sua influncia na elaborao e aplicao das leis e
regulaes ligadas apropriao territorial.

De resto, acrescentamos o acertado aviso sobre a tentativa de alteraes estruturais por via apenas
do legalismo jurdico, como tantas vezes j foi tentado antes, sem nunca ter chegado nem perto
de se efetivar:

A legalidade terica apresenta, ressalvada a elegncia da frase, contedo diferente dos costumes, da
tradio e das necessidades dos destinatrios da norma. Um sarcstico historiador pedia, para remediar
o desacerto, que se promulgasse uma lei para tornar as outras obrigatrias. O nosso jurismo escreve
Nestor Duarte , como o amor a concepes doutrinrias, com que modelamos nossas constituies e
procuramos seguir as formas polticas adotadas, bem a demonstrao do esforo por construir com a
lei, antes dos fatos, uma ordem poltica e uma vida pblica que os costumes, a tradio e os
antecedentes histricos no formaram, nem tiveram tempo de sedimentar e cristalizar. [...] Poltica
silogstica, chamou-a Joaquim Nabuco. uma pura arte de construo no vcuo. A base so teses, e
no fatos; o material, ideias, e no homens; a situao, o mundo, e no o pas; os habitantes, as
geraes futuras, e no as atuais. (Faoro, 1991, p. 376)

148
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