Revista Medieval Ufpe
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PERSPECTIVA FILOSFICA
Fundada em 1992
Volume I N. 35 (janeiro a junho 2011) ISSN 0104-6454
Departamento de Filosofia
Chefe: Jesus Vazquez Torres
Coordenadores da Ps-graduao: Alfredo Moraes de Oliveira e Washington Luiz Martins
Departamento de Filosofia
Chefe: Gutemberg Pessoa R. Santos
Coordenadores da Ps-graduao: Anderson DArc Ferreira e Antonio Rufino Vieira
PERSPECTIVA FILOSFICA
A Experincia Humana
do Divino
Organizao
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa
Editores
Anastcio Borges de Arajo Junior (UFPE)
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE)
Conselho Editorial
Anderson DArc (UFPB)
rico Andrade (UFPE)
Jesus Vazquez Torres (UFPE)
Jos Gabriel Trindade Santos (UFPB)
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Reviso Metodolgica
Marcos Nunes Costa (UFPE)
Reviso Ortogrfica
Fernando Castim (UNICAP)
Diagramao
Llian Costa (UNICAP)
Artigos temticos
A mstica em Proclo
Jan G. J. ter Reegen......................................................................................9
Revistas Permutadas.................................................................................221
Abstract
Procclus, great filosofical-theoloical activity, shows, clearly, his mystical ten-
dency, which in this paper is strudied looking at his Hymns ans some chapters
of his Platonic Theology. Considering his mystical character as person, the
reference is Proclusbiography written by Marino of Neapolis.
Key words: Mistica - Virtues - Hymns - Platonic Theology.
Introduo
Professor emrito da UECE. Professor titular da Faculdade Catlica de Fortaleza (FCF).
Doutor em Filosofia Medieval pela PUCRS e Livre Docente em Filosofia Antiga pela UECE.
E-mail: [email protected]
Cf. BASTID, Paul. Proclus et le crpuscule de la pense grecque. Paris: Librairie Philo-
sophique J. Vrin, 1969.
de modo genrico definido como arte de fazer descer o divino ou deusa alma da pessoa
para que esta entre num estado de xtase, atravs da orao, canto, hinos e meditao, muitas
vezes com a ajuda de pedras, arvores, que simbolizam o divino.
MARINO DE NEAPOLIS. Proclo e a felicidade. Texto bilingue, introd. y notas de Jos
Miguel Garca Ruiz e Jesus Mara Alvarez Hoz.. Bilbao: Iralka, 2004.
TER REEGEN, Jan G. J. Os elementos teolgicos de Proclo. In: Bauchwitz, Oscar Fed-
erico (org.). O neoplatonismo. Natal: Argos Editora, 2001, p.268.
TER REEGEN, 2001, p.269.
Ibid., p. 270.
PROCLUS. Theologie platonicienne. V Livres. Texte etabli et traduit par H. Saffrey e L.G.
Westerink. Paris: Les Belles Lettres, 1968-1997, L.I. p. LVIII.
1 O que mstica?
No bem fundamentado artigo Mystical Theology and Spiritual Ex-
perience in Proclus Platnic Theology, John Bussanich cita a resposta de
Blackburn pergunta o que msica?:
PROCLUS ET LA THEOLOGIE PLATONICIENNE, Actes du Colloque International
deLouvain (13-16 mai 1968). En lhonneur de H.D. Saffrey e L.G. Westerink. dits par A.PH.
Segonds et C. Steel. Leuven/Paris: University Press/Les Belles Lettres, 2000, p.291.
10
Cf., por exemplo: MOMMAERS, Paul. Jan van Ruusbroec. Leuven: Peeters, 2009, p. 7-8;
JAMES, W. Varieties or religious experiences. apud BUSSANICH. Mystical theology and
spiritual experience. [S.l.]: [s.n.], [s.d.], p. 292; KING, Ursula. Christian mystics: the spiritu-
al heart of the christian tradition. New York: Simon & Schuster Editions, 1998, p. 6.8.15.16.
11
BUSSANICH, [s.d.], p. 299.
2 Proclo, o mstico
12
MARINHO DE NEAPOLI, 2004, p. 100
13
Ibid., p. 101-125. A nossa apresentao segue a ordem apresentada por Marinho, e as citaes
feitas so tomadas destas pginas.
14
Na realidade chega idade de 73 anos.
No captulo III da Teologia Platnica, Proclo diz que quer falar uma pa-
lavra da prpria teologia e dos modos que ela comporta , dizer tambm
quais so os modelos de teologia que Plato adotou e os que ele rejei-
ta.16 Depois de apresentar vrias opinies a respeito da essncia dos
deuses, salientando o materialismo de certas correntes, chega queles
que chamam deuses [...] os mais perfeitos entre as almas e chamam te-
ologia a cincia que se eleva at quelas almas e as conhece.17 Porm,
todas essas correntes afirmam que as almas foram produzidas a partir
de um outro princpio superior alma e colocam o intelecto como guia
15
PROCLO, 1968-1997, L.I., p. 9.
16
Ibid., L.I., p. 12
17
Ibid., L.I, p. 13.
18
PROCLO, 1968-1997,L.I, p. 13.
19
Ibid., L.I. p. 14.
20
Ibid., L.I, p. 15.
21
Ibid., L.I. p. 16.
22
Cf. Ibid., L.I., p. 16-17.
23
BEIERWALTES, Werner. Proclo: i fondamenti della sua metafsica. Milano: Vita e Pensiero,
1990, p. 312-362.
24
BEIERWALTES, 1990, p. 318.
25
Importante a nota 21 da obra citada de Beierwaltes, em que descreve a como um
elemento essencial da filosofia neoplatnica, em que se desenvolve a concepo fundamental
de Plato. Catarse no deve ser entendida somente como purificao moral, mas deve ser, ao
invs, includa na purificao do pensamento , como demonstrado de modo convincente,
e.o. por Trouillard [...] : filosofar a execuo desta purificao na auto-realizao do homem.
A especulao determina como atitude fundamental ser e agir do homem: [...] o itinerrio
do eu rumo ao cume de si mesmo que se deve descrever. Com isto, entretanto, no deve
ser diminuda a importncia moral da ascese, embora a purificao venha compreendida como
unidade inseparvel com a purificao racional.
26
ORACULOS CALDEOS. Com una seleccin de testimonios de Proclo, Pselo y M. Itlico. In:
NUMENIO DE APAMEA. Fragmentos y testimonios. Madrid: Editorial Gredos, 1991.
Nos hinos de Proclo, como nos hinos rficos, podem ser ob-
servadas duas partes, a saber, a invocao do deus, com seus atributos
tradicionais e a splica de carter pessoal. Interessante observar como,
em alguns, a invocao inicial se retoma no final de um mesmo hino.
Pode-se afirmar que os hinos de Proclo esto na mesma linha
e so, de certa forma, expresses de sua teologia, significando at o
coroamento desta. Atravs deles, esto sendo conectados os deuses do
panteo neoplatnico, como Hlios, Afrodita, Hecate , Ares e Jano. O
mais importante, entretanto, so aqueles que objetivam a unio com o
Uno. A teurgia , portanto, o caminho mais completo da unio com a
divindade.
27
PROCLO. Himnos e epigramas. Trad., introd y notas de Jos Miguel Garca Ruiz e Jesus
Mara Alvarez Hoz.. Bilbao; Iralka, 2003, p. 6. Foram tambem utilizadas as tradues de J.M.
van den Berg, no : THE PROCLUS HOME PAGE. Leiden University; SOPHIA PERENNIS:
Proclus Hino a Deus; como tambem: INNI DI PROCLO, a cura di Massimo Onetti Muda.
(Os sites so facilmente atingveis atravs destas indicaes, dispensando a complicada iden-
tificao)
28
PROCLO, 2003, p.7.
1 Hino a Deus
Concluso
Referncias
Resumo
corrente entre os tradutores e intrpretes da filosofia plotiniana traduzir
ou referirem-se ao Uno de Plotino, primeira hipstase inteligvel, como sendo
Deus. O presente artigo pretende investigar a possibilidade de haver ou no
condies de equivalncia entre o Uno plotiniano e a concepo crist de Deus.
Para tal, analisaremos, em primeira instncia, a Enada VI, visando a relacionar
com outras partes das Enadas, assim como com alguns trabalhos j realizados
por outros pesquisadores.
Palavras-chave: Plotino, o Uno, o Deus cristo.
Abstract
It is common among translators and interpreters translate plotinian philosophy
or refer to the One of Plotinus, the first intelligible hypostasis, as God. This
article investigates the possibility of whether or not conditions of equivalence
between the plotinian One and the christian conception of God. To this end,
we will analyze in the first instance to Ennead VI, in order to relate to other
parts of the Enneads, as well as some work already done by other researchers.
Key words: Plotinus, the One, the christian God.
Mestrando em Filosofia pela UFPE, orientando do Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa.
E-mail: [email protected]
Professor de Filosofia Medieval da UFPE, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia
Medieval SBFM. Atual Coordenador do Curso de Filosofia da UFPE.
E-mail: [email protected]
LIBERA, Alain De. A filosofia medieval. 2. ed. Trad. de Nicolas Nyimi Campanrio e Yvone
Maria de Campos Teixeira da Silva. So Paulo: Loyola, 2004. p. 61.
Plotino, que foi discpulo de Amnio Sacas, nasceu no Egito em 204 e faleceu em Minturno,
na Campnia, em 270. Sua nica obra, as Enadas, assim intitulada e publicada por seu discpulo
e bigrafo Porfrio (232/3-305), foi escrita durante o tempo em ensinou em Roma por nove
anos, que so os apontamentos de aulas, formando um conjunto de cinquenta e quatro trata-
dos, que Porfrio (232 304), seu discpulo direto, ordenou em seis grupos de nove, ou seja,
54 = 6 (nmero da perfeio) x 9 (nmero da totalidade). O agrupamento das partes obedece
a uma ordem sistemtica ascendente, de acordo com a mstica plotiniana: a primeira parte se
refere ao homem e Moral; a segunda e terceira, ao mundo sensvel e Providncia; a quarta,
Alma; a quinta, Inteligncia; e a sexta, ao Uno e ao Bem. Essa disposio, entretanto, de
ordem geral, porque, na verdade, a exposio de Plotino dispersiva, tratando de todas as
questes, sem atender a uma ordem sistemtica e escolar.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Drio. Histria da filosofia: Antiguidade e Idade Mdia.
10. ed. So Paulo: Paulus, 2007, p. 439, fazendo uma relao entre o pensamento de Plotino e
seus predecessores, diz que o princpio ltimo do real, para Aristteles, era a essncia (ousia) e
a inteligncia do Motor Imvel; para Plotino, ao contrrio, o princpio ainda ulterior, o Uno,
o qual est para alm do ser e da essncia, para alm da inteligncia; o Uno que transcende
a prpria ousia e o prprio Nous. Igualmente SANTA CRUZ, Mara Isabel. Introduccin. In:
Plotino: textos fundamentales. Sel., trad. y notas de Mara Isabel Santa Cruz. Buenos Aires:
Eudeba, 1998, p. 15, fazendo uma relao entre a Inteligncia ou Nous plotiniano, o Motor Im-
vel de Aristteles e o Mundo das Ideais de Plato, os quais esto no mesmo nvel, j que o Uno
anterior ou est alm destes, diz: Seguindo a linha do platonismo que o precede, Plotino rene
na Inteligncia o primeiro motor aristotlico com o mundo platnico das ideias. A Inteligncia
pensamento que pensa a si mesmo e ao pensar-se pensa o Mundo da Ideias ou paradigmas, que
constitui seu prprio contedo, sua prpria estrutura interior. O inteligvel se multiplica em
uma infinita pluralidade de inteligveis que, ainda que distintos entre si, no esto separados;
constitui um cosmos animado por uma vida nica e universal, uma totalidade orgnica e din-
mica em que cada ideia simultaneamente uma inteligncia.
Embora a ideia de Uno seja detalhada somente na Enada VI, no entanto, ela perpassa quase
toda obra, uma vez que ela contm vrios temas e no obedecem a uma ordem sistemtica dos
contedos.
Cf. DUROZOI, Grard; ROUSSEL, Gerard. Dicionrio de filosofia. 5. ed. Trad. de Marina
Appenzeller. Campinas: Papirus, 2005. p. 371.
PLOTINO. Enada II: a organizao do cosmo. Trad., introd. e notas de Joo Lupi. Petr-
polis: Vozes, 2010. p. 29.
Segundo ALSINA CLOTA, Jos. El neoplatonismo: sntesis del espiritualismo antiguo.
Barcelona: Anthropos, 1989, p. 53, possvel que Plotino tenha despertado para a idia de
processo a partir do estranho conceito emanatista de criao do pensador judeo-helenstico
Flon de Alexandria: Em Flon, Deus, que inteiramente transcendente, cria a partir da supe-
rabundncia de sua perfeio. O emanatismo filoniano reaparecer em Plotino, ainda que em
forma completamente distinta. O processo atravs do qual se produz a criao se chama, na
terminologia plotiniana, prodos, que os modernos tm traduzido por processo. Em As Enadas,
Plotino fala da processes como de uma sucesso de crculos concntricos, surgidos a partir
de um nico ponto: Existe qualquer coisa que poderia dizer-se centro: ao redor deste, h um
crculo que irradia o esplendor emanante daquele centro; ao redor deste (centro e primeiro
crculo), um segundo crculo, luz da luz (En. IV, 3, 17).
10
Vale lembrar que a ideia de Deus que subjaz nosso texto aquela que nos foi passada pela
Tradio judaico-crist.
11
PLOTINO, 2010, p. 21.
12
ABBAGNANO, Nicola. Histria da filosofia. 5. ed. Trad. de Antnio Borges Coelho. Lis-
boa: Ed. Presena, 1999, vol. II. p 59.
13
Ibid.
14
PLOTINO. A alma no tempo. Carlo Bssola. Vitria: UFES, FCAA, 1990, p. 33. Dispon-
vel em http://www.upasika.com/docs/helenistica/Bussola%20Carlo%20-%20Plotino%20A
lma%20no%20Tempo.pdf Acesso em: 07 de setembro de 2011.
15
DE LIBERA, 2004. p. 83.
16
Ibid.
17
Santo Toms de Aquino foi o primeiro escolstico a sugerir que o Lber de Causis (Livro das
Causas) seria uma adaptao rabe de Proclo.
18
DE LIBERA, 2004, p. 85-6.
19
ALKINDI. Wikipdia, a enciclopdia livre. Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Al-
Kindi Acesso, 23 de outubro de 2011.
20
Cf. LIBERA, 2004, p.104. Alm disso, segundo este mesmo comentador, sabe-se que
Al-Kindi supostamente corrigiu (ou explicitou?) a traduo da Teologia de Aristteles de Ibn
Nimah de Emesa
21
Ibid.
22
PLOTINO, 2010, p. 09.
23
Pouco se conhece sobre a vida desse filsofo, o que se sabe que ele era filho de Salomo
e que nascera no Egito. Alguns sustentam que ele deva ter frequentado o Crculo do Al-Kindi.
Porm, Allan De Libera assegura que nada prova que Isaac Israeli tenha residido em Bagdad
nem que tenha frequentado o grupo de Al-Kindi (morto por volta de 866). Em contrapartida,
fica claro que ele dispunha de uma verdadeira biblioteca alkindiana (2004, p. 199).
24
LIBERA, 2004, p. 199.
25
LIBERA, 2004, p. 199-200.
26
Ibid., p. 200-1.
27
REALE; ANTISERI, 2007, p. 340.
28
REALE; ANTISERI, 2007, p. 340.
29
KLIMER, Federico ; COLOMER, Eusebio. Plotino. In: Historia de la filosofa. Madrid:
Editorial Labor, 1961. p. 110.
30
GONZALEZ ALVAREZ, Angel. Plotino. In: Manual de historia de la filosofa. Madrid:
Editorial Gredos, 1964. p. 121.
31
QUILES, Ismael. Plotino: a alma, a beleza e a contemplao. Trad. de Ivan Barbosa Rigolin
e Consuelo Colinvaux. So Paulo: Centro Editor - Associao Palas Athena, 1981. p. 18.
32
ARMSTRONG, A. H. Plotino. In: Introduccin a la filosofa antigua. 8. ed. Trad. de Car-
los A. Fayard. Buenos Aires: EUDEBA, 1993. p. 289.
33
PLOTINO, 2010, p. 175
34
Ibid.
35
PLOTINO. A cerca do bem ou do uno: Enada VI, 9. Integrao, n.53. p. 176, abr. mai. jun,
ano 2008. Trad. de Paulo Henrique Fernandes Silveira. Disponvel em ftp://ftp.usjt.br/pub/re-
Abstract
Origen: the rise of the spirit. Origen (c.185-254) was the first Theologian to
produce a broad commentary of the Sacred Scriptures, thus crating a com-
prehensive work where an orderly structure of the whole Christian Doctrine
is explained. He was also a man of God and a spiritual leader. The emphasis
of Origens spirituality laids on his own intellectual personality: prayer, self-
discipline, and mystical life are grounded on Biblical Theology. The path,
or itinerary of the soul, goes to identifying with God, and has three stages:
spiritual cleansing, illumination, and contemplation. Just as we need to purify
our senses so our minds need purification to understand the Holy Scriptures.
Prayer is part of souls conscious movement towards beatific vision: nuptials
of the soul, when body and senses do spiritualize.
Key words: Origen - Itinerary of the soul - Prayer - Nuptials of the soul.
1 O homem de Deus
Doutor em Filosofia UFSC. E-mail: [email protected]
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
40 crist; sistemtico pelo mtodo, pela estrutura de ideias, pela concep-
o coerente da doutrina, pela fundamentao da argumentao, con-
Orgenes: a ascenso espiritual
Joo Lupi
Discurso de Despedida ou Discurso de Agradecimento. Nesse documento, des-
creve o mtodo de ensino do mestre e, sumariamente, expe o que hoje
chamaramos de currculos e programas do curso que Orgenes expunha aos
seus alunos. Mas, logo de incio, ressalta que seu professor foi antes de
mais nada um mestre do esprito e um homem de Deus : minha
inteno falar acerca de um homem que se mostra e tem a aparncia de
homem, mas que realmente se encontra, para quem sabe julgar corre-
tamente, despojado da sua condio humana em virtude de uma maior
dignidade que d a entender a sua passagem para o divino (Discurso
de Agradecimento II, 10). Mas a vida com Deus no pode esquecer a
humanidade corporal, e essa precisa de ser sujeita para no perturbar
a alma: Elogiava a filosofia e os filsofos com grandes panegricos,
referindo-se a eles muitas vezes, afirmando que s vivem realmente os
que vivem conforme razo, honestamente, aqueles que se conhecem
a si mesmos, e qual o verdadeiro bem que o homem deve procurar e
o mal que deve repelir (ibid., VI, 75) na expresso comum, filso-
fo designava a pessoa de vida honesta. No testemunho de Gregrio,
Orgenes vivia e ensinava a viver como homem, dirigindo-se pela ra-
zo, sem se deixar dominar pelo corpo, para assim alcanar a dimenso
divina, que s a unio com a Verdade substancial podia conseguir, e
que o mestre propunha aos seus discpulos: Como centelha que caiu
em nossa alma, acendeu-se e inflamou-se o amor ao Logos sagrado e
amabilssimo, que atrai para Ele, por sua inefvel formosura, a todos
os homens e, da mesma forma, atraiu este homem, seu amigo e intr-
prete (Ibid., VI, 83). O que Gregrio mais admirava em Orgenes era
a capacidade de interpretar as Escrituras, de tirar delas a lio mais cor-
reta, mais espiritual, mais alimentadora da alma. A Palavra divina das
Escrituras abre e esclarece os enigmas mais fechados, e este homem
recebeu de Deus o melhor presente e a maior participao no Cu: ser
intrprete das palavras de Deus para os homens (Ibid., XV, 181).
Na Histria da Igreja, Eusbio de Cesareia (c.265-339) insiste em
explicar o modo filosfico de vida o comportamento guiado pela vir-
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
42 tude e pela razo, pela austeridade e a prudncia: Orgenes trabalhava
arduamente durante o dia, e dedicava grande parte da noite ao estudo da
Orgenes: a ascenso espiritual
Joo Lupi
O itinerrio da alma at Deus passa por trs estgios: purgativo
(provas, tentaes, superao de dificuldades, ascese, tal como o povo
no deserto); iluminativa (instruo, feita pelo estudo da Bblia e os ensi-
namentos dos mestres), e mstica (contemplao no amor).
A via espiritual a recuperao da imagem divina que fora im-
pressa na alma, mas se obliterou e sujou na vida corporal; o homem
precisa imitar a Deus para tornar-se de novo semelhante a Ele. Pelo seu
esforo, o homem pode recuperar a perfeio e a dignidade que tinha
na semelhana divina (PA III 76,1: Bergad 6).
A ascenso da alma no um momento isolado: ela se insere no
progresso (prokope) de toda a criao, que, partindo da queda original,
ascende at integrar-se com Deus. pois uma parte do retorno de
Cristo, o Logos, com todas as criaturas, at ao Pai. H, portanto, um
progresso metafsico e cosmolgico que os homens acompanham (ou
no) usando seu livre arbtrio (Lettieri 379-381).
A elevao da alma representada pela subida da montanha. Tal
como Cristo no alto do Monte Tabor, assim a alma em sua ascenso se
transfigura, num prenncio da viso beatfica. Em quase todas as met-
foras e smbolos, Orgenes recorre a uma transposio bsica: os sen-
tidos corporais representam e se transfiguram em sentidos espirituais.
Assim como o corpo imagem da alma, assim os sentidos corporais
servem como elementos de comparao para entender os movimentos
da alma em sua progressiva divinizao. Contudo, os sentidos podem
enganar-nos, mesmo em estados mais avanados de espiritualizao, e
o prprio demnio se serve deles para nos desviar da perfeio; por
isso, no caminho da alma, preciso perceber se a direo correta ou
no: esse dom deve ser praticado e, sobretudo, deve-se merec-lo, pois
ele um carisma.
Esta uma questo importante na ascenso do esprito: a distin-
o das inspiraes que a alma recebe. Orgenes prope normas e cri-
trios, a que poderamos chamar regras para o discernimento (diakrisis)
dos espritos, isto : critrios para distinguir as inspiraes espirituais,
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
44 cuja origem e qualidade precisamos selecionar (Peri Arxon III, 2,4). Os
espritos maus, por vezes, possuem totalmente a mente humana, tor-
Orgenes: a ascenso espiritual
Joo Lupi
assim ao tema da purificao do entendimento da Escritura, que deve
ser lida no Esprito e no na letra.
A iluminao pela Escritura no apenas um aperfeioamento
do conhecimento: uma contnua revelao do Esprito Santo na alma
do crente, e portanto uma iluminao que transcendente, que atrai o
homem para alm das suas limitaes corporais. A revelao atravs
das Escrituras sempre passvel de novas descobertas: muitas vezes
ela parece ocultar o que contm, contudo a interpretao espiritual en-
contra nela uma inesgotvel riqueza de sentidos (Lettieri ib. 381-384).
Mas nem tudo se pode conter na letra da Escritura, pois diz Orgenes,
na Escritura no se contm alguns dos mais divinos e importantes
mistrios de Deus nesses s aos mais perfeitos permitido adentrar
(Comentrio ao Evangelho de Joo, 13, 27). Deus infinito e inexaurvel e
no pode estar todo contido nas Escrituras; mas aquele que procura, e
encontra o alimento espiritual, sente desejo de procurar sempre mais,
pois percebe que h sempre mais mistrios a descobrir.
Joo Lupi
No que se refere mstica, preciso distinguir entre a experin-
cia mstica (xtase, arroubos, contemplao, iluminao) e a linguagem,
pela qual no s se descrevem estados e experincias, mas tambm
sobre as metforas e alegorias se representam essas experincias. Pela
prpria natureza da unio mstica, que subtrai a alma vivncia corpo-
ral, a linguagem sonora e sensvel torna-se inadequada, mas no impos-
svel de expressar tais estados. Ela deve recorrer no ao discurso, fala
discursiva, mas alegoria e ao simbolismo, quando no ao paradoxo.
A mstica de Orgenes no uma mstica de arroubos e xta-
ses, ou de descries do perfeito esquecimento de si mesmo em Deus,
como em outros msticos. uma mstica acessvel a todo aquele que
tem f, e se aproxima da Palavra de Deus com inteno espiritual. A
revelao foi feita para todos, e os que a aceitam devem entend-la no
de um modo literal, mas intelectual e piedoso. Essa a elevao mstica
que todos podem pretender, desde que no impeam a inteno e ao
espiritual da Palavra revelada.
no comentrio s npcias do esposo (Cristo) e da esposa (a
alma, a Igreja) que a mstica de Orgenes assume sua mais completa ex-
presso literria e teolgica. O livro do Cntico dos Cnticos despertou
entre os cristos, ao longo dos sculos, muitas leituras, que, de modo
geral, procuraram atenuar as expresses de sensualidade ali descritas
mostrando as possibilidades de transpor as ideias sobre a unio dos
corpos para a unio divina ou da alma com Cristo, ou da Igreja com
o Verbo, seu esposo. O primeiro e maior modelo desse tipo de anlise
, sem dvida, o comentrio de Orgenes; mas, ao contrrio de muitos
outros, ele no suaviza as expresses de sensualidade, pelo contrrio,
prolonga-as e completa-as com outras passagens da Bblia. Parece que-
rer dizer que o corpo humano e suas emoes so algo to bom por-
que criado por Deus que tudo neles pode ser divinizado, por mais que
seja gerado pelos sentidos e emoes.
Vejamos como essa anlise da sensibilidade pode ser entendida
como uma esttica, uma teoria dos sentidos,porm sem desvirtuar a
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
48 Teologia de Orgenes, que, certamente, no queria exaltar a sensualida-
de por si mesma, mas s como imagem e metfora. Fiel, contudo, ao
Orgenes: a ascenso espiritual
Joo Lupi
da lascvia (ibib., II, 52). Quem no entende os caminhos da beleza es-
piritual vai cair na beleza sensual.
A sensibilidade parte do caminho espiritual; ela base material
para a alma, tem valor por si mesma como obra divina (no criao
do mal) mas nunca pode ser tida como um fim em si mesma. Enfim,
conclui Orgenes, a alma bela quando progride na perfeio (ib. II 5,
29), quando se conhece a si mesma (ib. II 5, 18) e se torna a mais bela
entre todas como a mulher mais bela entre as mulheres.
O prazer sensvel digno e capaz de representar a perfeio espi-
ritual; graas aos apstolos toda a Igreja de Deus, e a alma que busca
a Deus, levada casa do vinho (...) repleta de perfumes e aromas,
recostada num pomar (...) e instruda na totalidade da ordem e da ra-
zo do amor (ibid., III, 7, 31). Mas nunca se pode esquecer a elevao
espiritual que d sentido corporal: o beijo mais verdadeiro e mais
prprio dele e mais santo o que o Verbo Divino d alma pura e
perfeita revelando-lhe o que est escondido e desconhecido e aqui
que a boca do esposo, aquela que beija, a fora com que Deus ilumi-
na a mente (ibid., I, 1, 13) e uma imagem desse beijo aquele que os
cristos se do na Igreja quando celebram os mistrios divinos (ib).
O abrao dos esposos outra imagem tocante: tal como a alma
ou a Igreja quer que a Palavra divina a ampare com a sua sabedoria,
a esposa pede o natural afeto do amor, e que o esposo com a mo
esquerda lhe ampare a cabea, e com a direita a abrace e enlace todo o
corpo (ibid., III, 9, 5).
Todo o Cntico uma descrio da preparao amorosa para
o encontro ntimo, usualmente chamada unio carnal dos esposos. O
Cntico no o descreve, mas tudo nele aponta para essa culminncia
emocional e sentimental do amor. Orgenes tambm discreto, mas
no deixa de aludir a ele de forma velada: quando a esposa vai pro-
curar o esposo no meio dos rebanhos e lhe pede para dizer onde est
(ibid., I, 7). Orgenes comenta que a esposa solicita encarecidamente
a seu esposo que lhe indique o lugar de seu retiro e descanso, j que,
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
50 impaciente de amor, anseia por ouvi-lo, pois, para Orgenes, a unio
de amor ntimo dos esposos simboliza o mistrio da comunicao da
Orgenes: a ascenso espiritual
Joo Lupi
sua doutrina: depois de comparar a ao dos olhos do corpo com a
vista interior, conclui:
a samaritana junto ao poo, Jesus reconhece que ela j teve cinco ma-
ridos. Orgenes comenta: toda alma que foi iniciada na religio crist
atravs das Escrituras e comea com as coisas que os sentidos captam,
tem cinco maridos. Para cada um dos sentidos h um marido. Mas, de-
pois que a alma se uniu s coisas percebidas pelos sentidos, e mais tarde
quer elevar-se acima delas, impelida pelo que o esprito percebe, ela
pode encontrar um ensinamento silencioso que se baseia nos sentidos
alegricos e espirituais. ento que ela se acerca de outro marido que
vem depois dos outros cinco, dos quais ela se separa, decidindo viver
com o sexto (Comentrio ao Evangelho de Joo, Livro 13,
51, sobre Jo 4, 17-18).
Todo o significado dessa antropologia fsica, dessa dignificao
das emoes, do corpo, dos sentidos, da sensibilidade, e at da sensu-
alidade amorosa dos esposos est contida nesta frase: pois todas as
coisas aqui debaixo tm semelhana com as do alto (III, 13, 9-12).
A unio da alma com Deus, sendo uma relao direta e sobrena-
tural, no se pode exprimir diretamente por palavras, a no ser atravs
de smbolos da ao divina. Essa comparada luz; e seu resultado
na alma comparado iluminao ou vida que produz a vida eterna
e livra da morte do pecado. A revelao dos mistrios simbolizada
pelo alimento espiritual; conforme o estado de adiantamento espiritual
de cada alma, assim seu alimento ser mais leve ou mais substancial; o
alimento forte simbolizado pelo Cordeiro Pascal e pelo Po vivo. O
alimento produz crescimento do conhecimento espiritual e conduz
divinizao da alma. Completando a imagem eucarstica do Po vivo,
Orgenes fala tambm do vinho que embriaga sem que se perca a cons-
cincia: seu resultado uma exaltao sbria. O entusiasmo, quando
efeito da presena divina na alma, sbrio e pacfico.
Joo Lupi
Fontes
Comentrios
Loraine Oliveira
Resumo
No presente estudo objetivo levar a cabo uma crtica ao uso do termo mstica
para designar a filosofia de Plotino. Atravs de uma breve histria do conceito
de mystiks na antiguidade mostro que o termo provm do vocabulrio dos
mistrios e, por um deslizamento de sentido, passa a significar, para Plotino,
uma forma de interpretar mitos. Finalmente, atravs do comentrio de alguns
mitos das Enadas em que ocorrem termos da famlia de myo, tento explicitar
este tipo de exegese de mitos.
Palavras-chave: Mstica - Mito - Mistrio - Exegese - Linguagem.
Abstract
In this article, I intend to analyze critically the term mysticism when used
to designate Plotinos philosophy. Through a short history of the concept of
mystiks in Antiquity, I show that the term comes from the vocabulary of
mysteries and, due to a semantic shift, it starts to mean, for Plotino, a form to
interpret myths. Finally, through a comment of some myths in the Enneads in
which we find terms deriving from myo, I try to explain this type of exegesis
of myths.
Key words: Mysticism - Myth - Mystery - Exegesis - Language.
Professora de Filosofia Antiga, Departamento de Filosofia UnB.
E-mail: [email protected]
Este ponto desenvolvido por Brisson, em Can one speak of mysticism in Plotinus? Texto indito,
muito generosamente cedido pelo autor, que continuao do seu estudo Pode-se falar de
unio mstica em Plotino? Kriterion, 116 (julho/dezembro 2007), 453-466, publicado original-
mente em francs, em 2005.
Loraine Oliveira
parece ser inadequado.
Mstica e mistrio so termos prximos na lngua grega, como veremos na prxima
seo.
Ver por exemplo os tratados I, 6 [1] e III, 5 [50].
Loraine Oliveira
atalho religioso que conduza unio com o Um. Deve-se fazer filo-
sofia, e atingir o objetivo da filosofia. Esse ponto fundamental, pois,
diferente de Jmblico e Proclo, para Plotino, no h ritos nem quais-
quer aspectos religiosos que possam conduzir a alma contemplao
do Intelecto e o Um. Plotino aponta trs caminhos: o belo, o amor e a
dialtica, cuja nota comum a purificao pelas virtudes. Ora, no h
purificao pelas virtudes sem o reto uso da razo e da sabedoria (ver
I, 3 [20] 6) . A filosofia, cuja parte superior a dialtica, um caminho
racional, no qual a experincia vivida ser transmitida pelo discurso.
Plotino serve-se da narrativa da experincia a fim de estimular outros
a prosseguirem no caminho. Todavia, cabe notar que o raciocnio
indispensvel, mas no suficiente. Para Plotino, o raciocnio, ou seja, o
pensamento discursivo, dianotico conduz para alm dele, para o pen-
samento puro, notico, que a contemplao do Intelecto, condio de
possibilidade para a contemplao do Um.
Posto isso, tem-se aqui uma filosofia que, historicamente, situ-
ada na base da mstica crist, mas que no se denomina mstica. Obvia-
mente, quando se fala no discurso sobre a contemplao e a unio,
preciso afrontar um novo problema, que a mstica crist herdar tam-
bm: o da inadequao da linguagem ao objeto, ou dito de outro modo,
a linguagem com seus limites no capaz de abarcar a experincia da
contemplao. Donde, para Plotino e, posteriormente, para os neopla-
tnicos tanto pagos, como cristos, surge a necessidade de proble-
matizar os limites e os alcances da linguagem. Foi tido, desde o incio,
que o termo mstica no usado para designar a unio da alma com
o Intelecto e o Um em Plotino. Agora possvel apontar para seu sig-
nificado: nas Enadas, mstica refere-se a certo tipo de interpretao
de mitos. Os mitos, na filosofia de Plotino, so recursos lingusticos
usados para discursar sobre o invisvel. Donde, falar apropriadamente
de mstica em Plotino falar de um recurso retrico da linguagem
das Enadas. E tentar compreender os limites e o alcance desse tipo
de interpretao de mitos naquilo que se refere exposio discursiva
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
60 do invisvel, assim como da experincia contemplativa da alma. Pode-se
passar, pois, leitura da passagem onde ocorre o advrbio mystiks.
Consideraes sobre o uso...
Os sentidos do termo encontram-se igualmente no grego posterior a Homero.
Ver Chantraine, 1984, .
Loraine Oliveira
tor das coisas sensveis, enquanto a matria permanece estril,
sempre representada cercada de eunucos (III, 6 [26] 19, 23-30).
H uma outra referncia a Hermes nas Enadas, em II, 3 [52] 12, 23, tambm em contexto
cosmolgico, porm representando o planeta Mercrio. A interpretao aqui aludida um
recorte de Oliveira (2009, p. 198 sq.).
Loraine Oliveira
associados, indicando que exprimem algo de forma velada.
Ora, necessrio lembrar que o termo mystrion tambm con-
duz ao verbo myo, do qual j se falou. Coerentemente com os sentidos
apresentados, uma tradio lexicogrfica e escolistica props a se-
guinte etimologia: so mistrios porque os iniciados cerram os lbios e
no falam com nenhum no iniciado. Os mistrios eram cercados de
segredos10; os deuses no se mostravam sob forma visvel aos mortais.
Mesmo algumas esttuas ficavam trancafiadas em templos que no se
abriam, ou que raramente as mostravam. O carter secreto dos rituais
era expresso por dois adjetivos, rreta e aporreta, os quais significavam,
respectivamente, o que indizvel e o que interdito, mas que pare-
cem ter sido usados de modo intercambivel, quase entendidos como
sinnimos (SCARPI, 2004, p. XVII). j sabido que as iniciaes nos
mistrios continham uma parte na qual as encenaes e os objetos
eram interpretados. Donde, a alegoria, em um contexto religioso,
chamada mstica. Alm disso, na poca helenstica, esse termo pa-
rece j ter substitudo o de alegoria (BURKERT, 2003, p. 74). Desse
modo, como diz Brisson, mystiks e seus cognatos eram utilizados
para designar um tipo de interpretao de mitos e de ritos que tm
por modelo a prtica dos mistrios. Uma interpretao desse tipo tem
por escopo mostrar como os poetas, que parecem falar da realidade
sensvel, na verdade evocam a realidade inteligvel, que objeto da
filosofia (BRISSON, 2007, p. 466). Plotino, conforme nos mostram
as duas passagens citadas das Enadas, parece empregar o termo mys-
tiks, assim como outros pertencentes ao vocabulrio dos mistrios,
para designar um tipo de interpretao de mitos que evoca o intelig-
vel, oculto sob a letra do texto, ou sob as figuras e narrativas mticas.
Para um anlise completa da trilogia Urano, Cronos e Zeus, ver OLIVEIRA, 2009.
Cf. TZETZES, ad Aristofane, Ran = frag. Eleusi E 28 Scarpi. Sobre a etimologia do termo
mistrio e de outros vocbulos dos mistrios, ver SCARPI, 2004, p. XVI ss.
10
O segredo dos mistrios d uma idia majestosa da divindade e nos lembra sua natureza que
se oculta aos nossos sentidos (STRABO apud FOUCART, 1999, p. 359).
11
Cf. BREHIER, 1924, p. XXXIV. Brhier observa que a discusso no tem nada em comum
com o dilogo platnico, donde, alis, ela no procede.
12
Na caracterizao da dialtica e da retrica, aqui, sero tomadas por base as considera-
es feitas por Hadot, especialmente no artigo Philosophie, dialectique et rthorique dans
lAntiquit.
Loraine Oliveira
qual o objetivo convencer o oponente a mudar sua posio inicial. Se,
na dialtica, percebe-se o conflito das posies atravs das perguntas
e respostas, na retrica, o prprio discurso pode apresentar as teses
que quer combater e, a seguir, invalid-las. De tal modo que as tcnicas
da retrica incluem figuras de linguagem cujo escopo persuadir pela
beleza ou pela emoo que suscitam. Assim que metforas e mitos,
sendo encantadores e emocionantes, constituem-se instrumentos de
persuaso.
Alguns bons exemplos do procedimento retrico em Plotino
encontram-se no tratado VI, 7 [38]. o caso do recurso a figuras de
estilo, tais como, por exemplo, a prosapdose, que consiste em repetir
uma palavra ao final de um membro da frase, ou de um membro de
frase no comeo de um desenvolvimento: para aquele que percorre
a terra, todos os lugares que ele atravessa so a terra, mesmo se esta
terra apresenta diferenas (VI, 7 [38] 13, 44-51). Outra figura de estilo
a concatenao, que consiste no encadeamento de membros da frase
por repetio, sendo a ltima palavra repetida como primeira palavra
do membro seguinte: No possvel que as coisas que so sejam se o
Intelecto no as conduz a ato; as conduz a ato sempre (...) (VI, 7 [38]
13, 28-29).
Alm das figuras de estilo ora exemplificadas, nesse mesmo tra-
tado, ainda se encontra um tropo recorrente nas Enadas, a metfora.
Ferwerda, no seu importante estudo sobre o significado das imagens
e metforas em Plotino, explica que, nos tratados das Enadas, a trans-
ferncia de sentido se realiza do mesmo modo que nos poetas, de um
objeto conhecido e do mundo sensvel, para um objeto desconhecido,
e em geral superior. Trata-se de uma comparao entre objetos distin-
tos, o que explica o uso frequente de palavras de introduo, que se
13
A oposio entre o constrangimento exercido pela argumentao e as encantaes da persua-
so, encontra-se nas Leis, X, 903b. Note-se que nesta passagem, Plato qualifica os mitos como
encantamentos, logo, elementos persuasivos.
14
Cf. PLATO, Banquete, 203 b5, Fedro, 247 a 8. HOMERO, Ilada, V, 426; XV, 47.
15
Cf. VI, 7 [38] 36, 18 e Odissia, V, 393.
16
Por exemplo: eflvio de beleza (VI, 7 [38] 22, 8 e Fedro, 251 b), aguilhes de desejo (VI, 7
[38] 22, 9 e Fedro, 251 d), o calor que penetra o amante (VI, 7 [38] 22, 14 e Fedro, 251 b), as asas
que crescem (VI, 7 [38] 22, 15 e Fedro, 251 b), a apario repentina (VI, 7 [38] 34, 13; 36, 19 e
Banquete, 210 e), desejos violentos (VI, 7 [38] 34, 1 e Fedro, 250d)
Loraine Oliveira
Um outro recurso retrico que Plotino emprega, a prosopo-
peia. Esta figura de pensamento faz ou um personagem ausente, ou um
ente abstrato falar em primeira pessoa. Ou seja, constitui um tipo de
narrativa veemente na qual o escritor personifica algo ou outro algum
(que pode inclusive ser um deus, ou qualquer ser que no pertena ao
mundo fsico). Isso provoca a sensao de uma relao direta entre o
ouvinte ou leitor e o elemento personificado. Embora o uso dela seja
bastante reduzido18 nas Enadas, no de menor importncia.
Quanto aos mitos, so intimamente ligados s metforas e, por
vezes, se confundem com elas. Porm, enquanto as metforas so pa-
lavras emprestadas de objetos mortos (como por exemplo, espelho,
navio, casa, cera, esttua, fogo, entre muitas outras), os mitos so figu-
ras divinas, ou semidivinas (os heris) que do vida e beleza a imagens
muitas vezes secas da tradio (FERWERDA, 1965, p. 198).
Donde se pode concluir que os mitos podem inserir-se nos tex-
tos como procedimentos retricos, que possuem uma carga afetiva im-
portante. Eles tambm podem possuir um valor metafrico, e um valor
persuasivo. Inseridos no texto, os mitos, so um dos tantos recursos
utilizados por Plotino na tentativa de paliar o hiato existente entre o
invisvel e o visvel, entre o que est para alm das determinaes da
linguagem humana e a prpria linguagem.
17
Plotino declara que sua alma no est ainda convencida pelas demonstraes (V, 3 [49] 6, 9;
VI, 4 [22] 4, 5). Em outro lugar, se interroga sobre a necessidade de reiniciar o trabalho termi-
nado, seguindo outro mtodo (V, 8 [31] 3, 22).
18
Encontram-se trs narrativas que podem ser consideradas prosopopicas: III, 7 [45] 11, 12;
III, 8 [30] 4, 1-15; III, 2 [47], 3 19-42.
Como foi visto, mystiks ocorre uma nica vez no corpus plotinia-
no, em um contexto de interpretao de mitos. Os mitos constituem
um tipo de recurso retrico, capaz de emocionar e persuadir a alma do
ouvinte. O escopo dessa persuaso que a alma possa dirigir-se para o
alto, para o Intelecto. Donde, em III, 5 [50] 9, 24-29, Plotino dir que os
mitos dividem no tempo seres ingerados, os quais se distinguem hierar-
quicamente, conforme o nvel e a potncia. Quem consegue entender o
sentido das narrativas mticas, pode reunir o que nelas foi separado. Tal
declarao de mtodo pode ser posta prova com as duas narrativas
mticas em esquemas genealgicos que se encontram nas Enadas: a de
Urano, Cronos e Zeus, e a do nascimento de Eros e Afrodite. Todavia,
com relao aos demais mitos, admitindo a necessidade de interpreta-
o, possvel indagar sobre seu carter anaggico. Devido aos limites
impostos neste estudo, h de se deter apenas no caso da interpretao
mstica acima aludida.
Considerando que o termo mystiks sugere o aspecto anaggico
do mito associado a um tipo de exegese mistrica de mitos, nas Ena-
das, mstica, em senso estrito, portanto, afigura-se apenas como um
meio de indicar, atravs da interpretao dos mitos, o invisvel. Por-
tanto, tem-se que as figuras mticas aludem a algo para alm delas e
indicam seu objeto. Quando interpretadas, a exegese mstica, ou seja,
tem um aspecto anaggico semelhante ao das iniciaes nos cultos de
mistrios. A pergunta que resta : at onde a exegese mstica pode
conduzir a alma? Ao que parece, trata-se da primeira etapa de ascenso,
na qual a alma distingue o sensvel do inteligvel. Os mitos, que no caso
pertencem linguagem sensvel, quando devidamente interpretados,
permitem alma compreender que na verdade eles representam aspec-
tos do inteligvel.
Assim, parece importante voltar ao ponto por onde foram ini-
ciadas essas perquiries: a exatido e a adequao do termo mstica,
no mbito da filosofia plotiniana. Pensa-se que, diante do que foi visto,
e dos estudos mencionados de Brisson, os quais indicaram o caminho
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
aqui percorrido, no faz muito sentido hoje insistir em um anacronis- 69
mo que conduz a ambiguidades e mal-entendidos. Qualificar de mstica
Loraine Oliveira
a filosofia plotiniana pode fazer o leitor desavisado supor que se trata
de algo irracional, meramente emocional, ou dependente de prticas e
rituais, como jejuns, rezas, entre outros. Por que insistir no uso desse
termo equivoco, se possvel evit-lo? E mais, se evit-lo permite-se
respeitar o uso bastante especfico que Plotino faz do advrbio mystiks,
sem provocar confuses entre conceitos?
Definitivamente, a resposta a tais perguntas a defesa da exati-
do e da objetividade, tanto quanto possvel, em histria da filosofia
antiga. Convm no ser ingnuo a ponto de pensar que possvel ser
absoluta e radicalmente exato na interpretao de um texto; mas esta
tarefa tem o dever da objetividade. A exatido deve ser o horizonte
de expectativas, e a objetividade hermenutica o guia. O que significa,
antes de tudo, ressituar o texto em sua perspectiva histrica e, por isso,
extremamente importante evitar anacronismos. De fato, termos car-
regados de sentido e correntemente usados no jargo filosfico devem
ser sempre vtimas de uma zelosa desconfiana. Mstica, amor, beleza,
esttica, verdade, razo, amizade: esses so apenas alguns dentre muitos
exemplos de termos que aparecem nos autores antigos de lngua grega
com significados prprios bastante distintos dos usos posteriores em
filosofia e na linguagem comum. No se torna um texto ou um pensa-
mento mais claro atribuindo s palavras um sentido hodierno. Trans-
portar um uso hodierno do termo para um texto antigo parece ser
deformar o texto, a menos que se possa justificar tal uso. O que sempre
uma tarefa filosfica e filolgica de grande monta, e no raramente
intil, pois, no mais das vezes, os sentidos no se encaixam.
Tambm preciso notar que de nada serve deformar um texto
para adaptar um pensamento antigo s exigncias da nossa vida atual,
como notou Hadot, em uma conversa com Davidson, publicada sob o
ttulo La philosophie comme manire de vivre. O sentido desejado pelo au-
tor antigo nunca atual. antigo, ponto, isso tudo (HADOT, 2001,
p. 115). Mas h, como ele mesmo reconhece, um segundo momento,
no qual se avalia um texto e ele atualizado. Sem deform-lo e sem
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
70 perder de vista a busca pela objetividade, consegue-se encontrar um
ncleo de significao passvel de ser atualizado. O modo de fazer isso
Consideraes sobre o uso...
Referncias
Obas secundrias:
Loraine Oliveira
BRISSON, L. Can one speak of mysticism in Plotinus? Texto indito,
gentilmente cedido pelo autor. 2011.
BURKERT, W. Les cultes mystres dans lAntiquit. Paris: Les Belles
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VAZ, H. C. Lima. Experincia mstica e filosofia na tradio ocidental.
So Paulo: Loyola, 2000.
Abstract
In this paper we intend to show that human experience of the divine in the
work of Nicholas of Cusa appear throughout his thinking. To this end, we
review the relationship between affectus and intellectus through which we can say
that the mystical experience takes place in the German philosopher writings as
cognitio experimentalis dei. Finally, we tried to show that the Bishop of Brixen was
concerned, in his texts, with the human experience of the divine, being able to
make a deep reflection on the mystical.
Key words: Nicholas of Cusa - Affectus Intellectus - Mystic.
Professora de Filosofia da UEPB. E-mail: mar.simonem@gmail; http://sites.uepb.edu.br/
principium/
O prprio Nicolau de Cusa, no contexto da polmica, tambm entende o affectus como uma
instncia que se contrape ao intelecto (cf. Carta de 14-9-1453, p. 115), ou mesmo ao amor (cf.
Carta de 22-9-1452, p. 111). No obstante, no se pode deixar de referir que o mesmo Nicolau
de Cusa escreve acerca da coincidncia entre o movimento do intellectus e do affectus (cf. Carta de
28-7-1455, p. 160, bem como faz referncia aos Sermes deste ano para a semelhana entre in-
tellectus e affectus). Nesse mesmo direccionamento, denomina Deus como purus intellectus e como
purus affectus (cf. Sermo XLVIII, h XVII2, 4: 14-16, p. 202) e afirma ser a mente o princpio do
intellectus e do affectus (cf. Sermo CLXXII, h XVIII3, 3: 22-23, p. 250).
Muito embora, tambm no se considere o amor sensvel, se assim se podo expressar, como
um simples sentimento.
Assim tambm compreende Cassirer quando escreve: O verdadeiro amor de Deus amor
Dei intellectualis: ele abarca em si o conhecimento como momento e condio necessrios, pois
ningum capaz de amar o que j no tenha conhecido em algum sentido. O amor puro e
simples, entendido como mero afeto sem qualquer envolvimento do conhecimento, seria uma
contradio em si: o que se ama colocado sob a ideia do bem, compreendido sub ratione boni
(CASSIRER, 2001, p. 23). Nicolau de Cusa j usa a expresso amor intellectualis em De coniecturis,
h III, Pars secunda, Cap. XVII, 176: 20, p. 177 e volta a empreg-la, para dar apenas dois exem-
plos, em De aequalitate, h X, 24: 23, p. 32, no entanto, aqui, expressa-se por caritas intellectualis.
Cf. De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. XVI, p. 58-62. No pargrafo 43 Nicolau
de Cusa chega mesmo a fazer uma referncia explcita ao pseudo-Dionsio e sua Mystica
Theologia.
Cf. De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. I e II, p. 6-12. O Cusano encerra o Cap. I
afirmando: Hoc si ad plenum assequi poterimus, doctam ignorantiam assequemur. Nihil enim homini etiam
studiosissimo in doctrina perfectius adveniet quam in ipsa ignorantia, quae sibi propria est, doctissimus reperiri.
Et tanto quis doctior erit, quanto se sciverit magis ignorantem (ibid., 4: 12-17, p. 8).
Sobre a relao do pensamento cusano com a teologia mstica, cf. HAAS, 2008, em especial,
a segunda parte intitulada Docta ignorantia und Theologia mystica, p. 19-51. Neste mesmo sentido,
sem no entanto uma maior reflexo sobre o tema, asseveram-nos Reinhardt e Schwaetzer: Il
rdigea la plupart de ses crits lors de courtes pauses arraches une vie trs active. Ce sont des mditations
philosophico-thologiques dans lesquelles il rflchit sur lorigine de lexistence humaine et il en vient, entre autres,
lide de la docte ignorance et de la concidence des opposs. Enfim, ses mditations tendent vers une thologie
mystique. [] Nicolas de Cues ntait pas lui-mme un mystique mais un penseur dont toute le pense trouve
son fondement ultime et son accomplissement dans la thologie mystique (REINHARDT ; SCHWAET-
ZER, 2008, p. 256-257).
Veja-se, sobre isso, NOGUEIRA, 2010.
Nisto todos os estudiosos cusanos parecem entrar num acordo. Apenas para ilustrar, escreve
Reinhardt e Schwaetzer: Que signifie mystique pour Nicolas de Cues? Cognitio experimentalis
Dei, exprience de Dieu que dpasse tout concept. Mais, pas dans un pur affect. La ratio est en effet
transcende mais lunion mystique reste encore dans la ligne de la vision intellectuelle (REINHARDT;
SCHWAETZER, 2008, p. 256). Ou ainda, como escreve Cassirer ao contrapor a lgica cusana
aristotlica: Assim, todo e qualquer tipo de teologia racional rejeitado e substitudo pela
teologia mstica. Mas da mesma forma como antes Nicolau de Cusa ultrapassara os limites
do conceito tradicional de lgica, agora tambm seu pensamento ultrapassa os limites do con-
ceito tradicional de mstica, pois com a mesma determinao com que ele nega a compreenso
do infinito atravs das abstraes e categorizaes lgicas, ele tambm nega a possibilidade de
sua compreenso pelo mero sentimento (CASSIRER, 2001, p. 22).
10
Como a Correspondncia aos Irmos de Tegernsee, alguns Sermes, o De visione dei e a Carta a Al-
bergati.
11
interessante notar que, em De beryllo, a vontade e o entendimento, faculdades aparente-
mente opostas nos homens, so mostradas em Deus como sendo uma nica coisa: Sed dum
attente consideratur omnem creaturam nullam habere essendi rationem aliunde nisi quia sic creata est, quodque
voluntas creatoris sit ultima essendi ratio sitque ipse deus creator simplex intellectus, qui per se creat, ita quod
voluntas non sit nisi intellectus seu ratio, immo fons rationum, tunc clare videt quomodo id, quod voluntate fac-
tum est, ex fonte prodiit rationis, sicut lex imperialis non est nisi ratio imperantis, quae nobis voluntas apparet
(De beryllo, h XI1, 51: 12-19, p. 58).
12
Acredita-se que todas as Cartas a que se faz referncia demonstram muito bem essa ideia. De
15
Pensa-se ser possvel fazer essas mesmas observaes Carta a Albergati, mesmo consideran-
do que esta foi escrita num contexto diferente do De visione dei. Mesmo assim, a noo de um
amor pleno e abrangente, capaz de englobar o intellectus, faz-se sentir aqui, posto que Nicolau
de Cusa usa a expresso scientia amoris e tira proveito do seu duplo genitivo.
16
Cf. FLASCH, 2001, p. 385-386. No se foge aqui em oferecer os motivos de Flasch que
justificam as duas assertivas suprarreferenciadas: Diese Metaphysik der Egozentrik kehrt in De
visione Dei als Leitmotiv wieder; wir kennen sie schon aus dem brieflichen Resmee vom 14. September 1453,
aber jetzt ist alles anschaulicher, direkter, persnlicher und sit venia verbo existenzieller. Das ist nicht
nur eine Frage des Stils, oder vielmehr: Dieser Stil ist selbst nicht nur eine Sache des Stils. Nie hat Cusanus
weniger ,,scholastisch geschrieben als hier; auch das war eine Botschaft: Dieser Text sollte nicht mit den
Bchern der Wiener Professoren verwechselt werden knnen. Die Schrift war bei ihrer bersendung verbunden
mit einem gemalten Bild. Cusanus wollte bildhaft, erfahrungsnah zeigen, wie Gott gedacht werden msse, um
die Distinktionen der scharfsinnigen Scholastiker zu verlassen, ohne in den Rausch einer denkfeindlichen from-
men Raserei zu fallen. Jetzt wollte er beweisen, ad oculos, da seine neue Philosophie die Kraft hatte, sowohl
die abstrakte Schulphilosophie als auch die Intentionen der Unmittelbarkeitsmystiker in sich transformierend
aufzunehmen. In De pace fidei gab es noch ein recht holpriges Kapitel; ich meine das ber die Christologie,
in dem er auf neuen Wegen zwei alte, abstrakte Formeln der sptantiken Metaphysik zwei Naturen, ein
Suppositum rechtfertigen mute; in De visione Dei tritt ein solches apologetisches Interesse nicht dazwischen;
daher wurde De visione Dei das schnste Buch des Cusanus (ibid.).
17
ANDR, 1988, p. 103.
18
No demais lembrar que o termo poitica tem a sua raiz no substantivo grego poesis que,
por sua vez, deriva do verbo poieo. Poesis, segundo Bailly, significa, dentre outras coisas, ao de
fazer, criao, fabricao, confeco, faculdade de compor obras poticas ou simplesmente arte
da poesia. Relaciona-se, assim, criao ou capacidade criadora, estando diretamente ligada
ideia de arte ou mesmo de uma tcnica. O verbo poieo, por sua vez, quer dizer fabricar, executar,
confeccionar, criar, produzir, fazer nascer, causar, engendrar... Porm, s ser consegue uma
noo mais clara da sua amplitude quando se v o uso que alguns autores gregos lhe deram.
Assim, por exemplo, na Ilada, Homero o utiliza para dar o sentido de colocar alguma coisa na alma;
Xenfanes usa-o como significando fazer o que preciso, ir caa, celebrar os jogos, procurar um amigo,
fazer bem aos amigos, estimar, julgar; Herdoto, por sua vez, o emprega na acepo de fazer ao mesmo
tempo o que se diz, fazer a genealogia dos deuses, olhar alguma coisa como grande ou importante; j Tucdides,
dentre as vrias aplicaes que faz do verbo, direciona-o para a ideia de concluir a paz por si ou um
com o outro; por fim, Plato serve-se do mesmo verbo para expressar as ideias de compor em honra
de algum ou falar em prosa e em verso sobre os deuses (Cf. BAILLY, 1969, p. 712-713).
19
Eis suas palavras na ntegra: Die Schrift ,De visione Dei die hier primr als ein Stadium in der Geschi-
chte der Geistmetaphysik begriffen wird, ist freilich mit nicht geringerem Recht unter ,,asketisch-mystischem
Aspekt zu interpretieren: die Einbung in die visio dei soll bestimmend werden fr den Sehenden selbst. Ziel
ist die Erfahrung der gttlichen Dunkelheit als des ,,unzugnglichen Lichtes (visio in tenebra: possest 74, 19),
erreichbar ist dies eben durch Negation oder totale Abstraktion [...]. Dieses ,Sein ber sich selbst im gttlichen
Sehen bedeutet freilich nicht die Aufhebung der eigenen Individualitt oder Personalitt, sondern setzt vielmehr
voraus, da der Mensch in Freiheit sich selbst gewhlt habe [...], d. h. da er in einem freien Akt der Zuwen-
dung sich in das Sehen Gottes selbst stelle (BEIERWALTES, 1978, nota 91, p. 167).
20
MACHETTA, 2006, p. 1679.
21
TROTTMANN, 2005, p. 67.
22
ANDR, 1988, p. 129-130.
23
Cf. SENGER, 1988.
24
Quase porque Flasch, por sua vez, adverte: Es besteht eine Tendenz, dem Buch De visione Dei eine
mystische Fasson zu geben, in dem Sinne dieses Wortes, den es in den Marktbedrfnissen der Gegenwart
angenommen hat. Dagegen empfiehlt es sich, gerade diesen Text genetisch, in seinen geschichtlichen Entstehungs-
bedingungen, in seinem literarischen und theoretischen Kontext zu analysieren (FLASCH, 2001, p. 389).
25
Relao que no abordamos neste texto.
26
Cf. De visione dei, h VI, Cap. VI, 21.
27
Beierwaltes chega mesmo a afirmar que o De visione dei pode ser compreendido, tambm,
como o desenvolvimento especulativo da etimologia de Theos como Theoren (Deus videns), com-
plementando que Nicolau de Cusa conhecia aquela etimologia atravs de Erigena (De divisione
naturae) e de Alberto, o grande (Super Dionysium De divinis nominibus). Termina a nota destacan-
do a importncia do tratamento que o Cusano deu ao olhar no seu precioso opsculo: Der
Errterung der angezeigten Thematik liegt primr Cusanus Schrift De visione Dei zugrunde, da sie die
wensentlichen Aspekte des Problems in einem Denkzusammenhang deutlich macht (BEIERWALTES,
1978, nota 3, p. 146).
28
Cf. PETERS, 1983. Assim tambm parece entender Schulz quando afirma: Theos (deus)
kommt vom griechischen theoreo, das heit ich sehe. Diese etymologische Auskunft ist nicht neu. Traditionelle
Deutungsversuche leiten Gott von theo oder theoreo ab: Gott durchluft alles, oder: Gott sieht alles. Auch die
Erklrung, die Cusanus hier fr die Ableitung des Wortes theos von theoreo gibt, ist traditionell (SCHULZ,
1957, p. 13-14).
29
No entanto, encontramos tal explicitao no De quaerendo deum, onde afirmado: Nunc vide-
amus, an nobis nomen theos seu deus adminiculum praestet ad ista. Non est enim nomen ipsum theos nomen
dei, qui excellit omnem conceptum. Id enim, quod concipi nequit, ineffabile remanet. Effari enim est conceptum
intrinsecum ad extra fari vocalibus aut aliis figuralibus signis. Cuius igitur similitudo non concipitur, nomen
ignoratur. Non est igitur theos nomen dei, nisi ut quaeritur ab homine in hoc mundo. Quaerens igitur deum
attente consideret, quomodo in hoc nomine theos via quaedam quaerendi complicetur, in qua deus invenitur, ut
possit attrectari. Theos dicitur a theoro, quod est video et curro. Currere igitur debet quaerens per visum, ut ad
omnia videntem theon pertingere possit. Gerit igitur visio similitudinem viae, per quam quaerens incedere debet.
Oportet igitur, ut naturam sensibilis visionis ante oculum visionis intellectualis dilatemus et scalam ascensus ex
ea fabricemus. De quaerendo deum, h IV, I, 19, p. 14-15. Para sermos mais exatos, este apenas um dos
muitos passos em que o Cusano aborda o sentido de theos neste texto. Outros passos em que o Cusano usa o
sentido do termo theos (cf. ibid., I, 26: 4-7, p. 18; 27: 9-13, p. 19; 29: 3-7, p. 20-21; 31: 13-14, p. 22;
III, 43: 1-3, p. 29-30). De toda forma, para a interpretao de tal etimologia de theos no De visione
dei, h VI, cf., Caps. I, 5; V, 16; VIII, 31.
30
Deus etenim, qui est summitas ipsa omnis perfectionis et maior quam cogitari possit, theos ob hoc dicitur,
quia omnia intuetur (De visione dei, h VI, Cap. I, 5: 4-6, p. 10).
31
Si enim visus unus est acutior alio in nobis et unus vix propinqua, alius vero distantiora discernit, et alius
tarde, alius citius attingit obiectum, nihil haesitationis est absolutum visum, a quo omnis visus videntium, excel-
lere omnem acutiem, omnem celeritatem et virtutem omnem omnium videntium actu et qui videntes fieri possunt
(cf. De visione dei, h VI, Cap. I, 5: 10-15, p. 10).
32
Sobre essa ideia assevera Machetta: Porque Dios es el principio y ejemplar de todos los actos de ver, [...]
todo ver que procede del hombre ha recebido su entidad del principio. El ver del hombre es el ver de Dios que ve
y que da, por ello, el ver. De esta manera queda explicitado el vinculo ontolgico entre el ver absoluto de Dios
y el ver determinado del hombre (MACHETTA, 2006, p. 1683). Posteriormente o autor relaciona
esta ontologia liberdade e tica.
33
Tu igitur es deus meus, qui omnia vides, et videre tuum est operari. Omnia igitur operaris. Non nobis
igitur, domine, non nobis, sed nomini tuo magno, quod est theos, gloriam cano sempiternam (De visione dei,
h VI, Cap. V, 16: 1-4, p. 19).
34
O quam admirandus est visus tuus, qui est theos, deus, omnibus ipsum perscrutantibus. Quam pulcher
et amabilis est omnibus te diligentibus. Quam terribilis est omnibus, qui dereliquerunt te, domine deus meus.
Visu enim vivificas, domine, omnem spiritum et laetificas omnem beatum et fugas omnem maestitiam. Respice
igitur in me misericorditer, et salva facta est anima mea (De visione dei, h VI, Cap. X, 31: 1-6, p. 31).
35
Ou, como escreve Stachel acerca do olhar em De visione dei: Mit dem Sehen sind alle gttlichen
Attribu te mitgemeint: Reden (loqui), Wirken (operari), Schaffen (creare) und vieles andere mehr, von
allem aber auch Lieben (amare) (STACHAEL, 1980, p. 169).
36
do conhecimento de todos os estudiosos cusanos o contexto e o motivo da elaborao do
referido opsculo: o debate acerca da interpretao de a Mystica theologia do pseudo-Dionsio.
conhecida, tambm, a influncia que esse autor exerceu sobre Nicolau de Cusa. A Biblioteca
do Cusano em Bernkastel-Kues atesta isso, como se pode ver nos Cdices 43, 44 e 45, bem
como testemunha, de igual maneira, a leitura atenta dos textos dionisianos, como se pode ver
atravs das observaes feitas pelo prprio Cusano margem daqueles textos no Cdice 96,
conforme encontramos em BAUR ; HOFFMANN, 1941.
37
Cf. NOGUEIRA, 2006, p. 86.
38
Assim como no havia um lugar para a filosofia cusana na(s) Histria(s) da Filosofia Me-
dieval, parece que tambm no h nos livros sobre a Mstica Alem ou sobre a Mstica na
Idade Mdia. Pelo menos o que se nota, por exemplo, em DE LIBERA, 1994. Embora o
ttulo sugira que o autor vai fazer uma abordagem somente at Eckhart, ele ainda dedica um
captulo a Berthold de Moosburg, referindo-se ao Cusano uma nica vez, numa nica linha,
no final do livro, numa parte dedicada s notices individuelles. Algo semelhante acontece
no livro de MICHEL, 1997, onde Nicolau de Cusa referenciado uma nica vez, numa nica
linha, no final do livro, onde o autor aborda Thomas Kempis e afirma que alcanou o limite da
cronologia do seu trabalho, ou seja, o fim do sculo XV. Nunca demais lembrar que o sculo
de Nicolau de Cusa , precisamente, o XV.
39
HAAS, 2004, p. 262. McGinn tambm reconhece a importncia de Nicolau de Cusa na His-
tria da Mstica, entretanto, afirma que tal importncia ainda no foi apreciada como deveria:
La place de Nicolas de Cues dans lhistoire de la mystique chrtienne na pas encore t pleinement apprcie.
Il a vcu au milieu dune poque (vers 1300 et 1500), o se sont dveloppes de nouvelles formes de mystique
en langue vernaculaire, qui avaient souvent un caractre hautement personnel et fortement motionnel, tout en
essayant de crer une forme de mystique scolastique, cest--dire organise en traits et manuels sur la nature de
la mystique lusage des confesseurs et des guides spiritueles. Le De visione Dei ne sinscrit dans aucune de ces
catgories, bien quil induise des exercices spirituels destins conduire la vision unifiante. Cest galement un
rsum structur de thologie mystique qui prend positon sur un certain nombre de problmes clefs, discuts
lpoque (MCGINN, 2006, p. 158).
Referncias
Resumo
O estudo analisa trs perspectivas da mstica medieval a partir de problemas
levantados pela filosofia contempornea. No geral, toma-se a mstica como
uma sabedoria resultante da atitude de recolhimento que conduz relativi-
zao do eu, da vida, da vontade ou do ser frente a uma totalidade superior.
Mostra-se, em primeiro plano, a tendncia de relativizao de si mediante a
anulao da vontade. Um segundo plano trata a anulao do eu como possvel
via de transcendncia e de negao de si. Por fim, apresenta-se o caminho da
hermenutica que, mediante a interpretao das palavras, dos enigmas e das
figuras, procura ascender plenitude da liberdade espiritual.
Palavras-chave: mstica - espiritualidade - hermenutica - identidade pessoal
- tica.
Abstract
The study analises three perspectives on the medieval mystic philosophy
through problems brought up by contemporary philosophy. Generally, mystic
is taken as a wisdom resulting from the collecting leading to the relativization
of the self, of life, of will or the being before a superior totality. In the fore-
ground, the tendency towards relativization through the annulment of will is
shown. A second plane deals with the annulment of self as a possible means
of transcendence and denial of the self. Lastly, the path of hermeneutics is
presented which, through the interpretation of words, enigmas and images,
seeks to ascend to the fullness of spiritual freedom.
Key words: Mysticism - Spirituality - hermeneutics - Personal identity -
Ethics.
Doutor em Histria da Filosofia Medieval pela Universidade de Barcelona (UB), Espanha.
Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), RS, Brasil. E-mail: [email protected]
ROSSATTO, N. D. Filosofia e mstica. Humanidades em Revista. Uniju, Ano 5, n. 07,
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SARTRE, 2002, p. 212.
WEIL, Simone. La pesanteur et la grace. Paris: Plon, 1948; CIRLOT, Victoria ; GAR, Blanca.
La mirada interior: escritoras msticas y visionarias en la Edad Media. Barcelona: Ediciones
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BARTHES, Roland. Sade, Loyola e Fourier (Ed. Orig., Paris: Seuil, 1971). Madrid: Ctedra,
1997, p. 83.
Ibid., p. 83.
Cf. MARION, Jean-Luc. Dieu sans ltre. Paris: Presses Universitaires e France/Quadri-
ge,1991; idem. De La mort de Dieu aux noms divins: litinraire thologique de la mthaphysi-
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Manuela. Santo Agostinho no pensamento de J.-L. Marion: uma leitura de Dieu sans ltre,
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Ediciones Siruela, 1998.
BERNARDO. Sermones sobre El cantar de los cantares. In: Obras completas de San Ber-
10
11
CIRLOT ; GAR, 1999.
12
MATILDE DE MAGDEBURGO. A luz fluente da divindade. apud CIRLOT ; GAR, 1999,
p. 162.
13
CIRLOT ; GAR, 1999, p. 162.
14
DIONSIO PSEUDO-AREOPAGITA. A teologia mstica. In: DE BONI, L. A. Filosofia
medieval Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 69-74.
15
MATILDE DE MAGDEBURGO. A luz fluente da divindade. apud CIRLOT ; GAR, 1999,
p. 163.
16
CIRLOT ; GAR, 1999, p. 140.
padro das sete propriedades divinas, isto , dos sete modos de dizer
Deus qua Deus. So, por isso, sete as variantes da compreenso tipo-
lgica. Sendo assim, por esses dois mtodos, pode-se compreender as
diferentes propriedades divinas manifestas no mundo.
Mais importante, porm, o mtodo por concrdia, que um
procedimento que segue o modelo da substncia da Trindade divina.
Por isso, a interpretao que resulta da aplicao dessa estratgia de
leitura tem em vista nada menos que alcanar um tipo de compreenso
similar unidade divina. Em outras palavras, a concrdia busca ele-
var a compreenso humana ao mesmo nvel da compreenso divina.
Significa, em ltima anlise, ler tanto o Livro das Criaturas como o da
Escritura do mesmo modo que o seu autor escreveu.
Se o emprego da alegoria resulta na obteno de cinco signi-
ficados e o da tipologia sete, podemos dizer que esses dois procedi-
mentos visam apreenso da multiplicidade dos significantes textuais
e histricos. Ento, por meio desses mtodos, reduz-se a multiplicida-
de dos significados a um limite preciso que no ultrapassa a doze. A
concrdia, por sua vez, vai possibilitar uma reduo ainda maior, pois,
segundo ela, cada dois (ou trs) significantes correspondentes resultam
num nico significado: duo igitur significantia sunt unum significatum.18
Com o auxlio do mtodo por concrdia, possvel decifrar per-
feitamente as palavras histricas (verba historica), que foram escritas de
maneira literal, sobretudo no primeiro estado do mundo. Poder-se-
tambm, em um segundo momento, decifrar as palavras msticas (verba
mstica), escritas de maneira cifrada, por figuras ou enigmas, ao longo
do segundo estado do mundo.19 Desse modo, a mstica propriamente
dita seria identificada mais propriamente com o momento em que ve-
mos atravs das figuras (tipos e anti-tipos) e dos enigmas apresentados
18
JOAQUIM DE FIORE. Concordia Novi ac Veteris Testamenti. Venedig: 1519, reedio
fac-smile: Frankfurt: Minerva, 1964, f. 7b-c.
19
Idem. Introduo ao Apocalipse (Prephacio super Apocalipsis). Trad. de N. D. Rossatto.
In: Veritas. Porto Alegre, v. 47, n. 3, 2002.
Abstract
The theme of meditation (and contemplation) is recurrent in Anselm of Can-
terburys work. Monologion and Proslogion, two of his well-known works are the
fruits of the exercise of monastic spirituality. This essay presents (1) an outline
of the notion of meditation on monastic spirituality in Anselms times and (2)
meditative prayer, as the constitutive model of Anselms meditation, formulated
precisely in (2.1) Proslogion and (2.2) Third Meditation, one of his last works.
Attempt to show that divine truth, desired by the creature and corresponding
to the final end of contemplation, will take its full meaning in the work of
salvation.
Key words: Meditation -Contemplation - Prayer
Professor da Universidade Estadual de Maring PR. E-mail: [email protected]
Depois do trabalho de Wilmart, D Auteurs spirituels et textes dvots du Moyen Age.
Paris, 1932, so reconhecidas, como de autoria de Anselmo, 19 preces e 3 meditaes. Schmitt
apresenta em sua edio crtica esse conjunto de textos (v. II, p. 2-91). A grande maioria dessas
oraes e meditaes j estavam prontas por volta de 1070. A Meditao terceira, considerada
mais abaixo, foi composta por volta de 1099, prximo de Lyon, no exlio de Anselmo. Citare-
mos Anselmo pela edio de Schmitt, indicando a pgina e as linhas. Abreviaturas utilizadas:
OM (orationes et meditationes); P (Proslogion); CDH (cur deus homo).
A Abadia de Bec, desde a sua fundao, destacou-se pela simplicidade e pela excelncia nos
estudos, a ponto de muitos monges serem reconhecidos como philosophi, segundo a opinio de
Odorico Vital (apud BESTUL. St Anselm, the monastic community at Canterbury, and devo-
tional writing in late Anglo-Saxon England. Analecta Anselmiana. Frankfurt: Minerva, 1969,
p.185). Isso se deve s presenas de Lanfranco e Anselmo; o primeiro, reputado conhecedor de
dialtica, proveniente das escolas da regio norte da Itlia; o segundo ganhou notoriedade pela
nova forma de abordar os assuntos divinos, sem valer-se do recurso da autoridade, mas pelo
procedimento conhecido por sola ratione.
LECLERCQ, J. Lamour des lettres et le dsir de Dieu. Initiation aux auteurs monas-
tiques du Moyen ge. 3 ed. Paris: Cerf, 1990, p.181. Do mesmo autor, ver: Spiritualit e
cultura nel monachesimo del pieno medioevo. In: Penco, G. Cultura e spiritualit nella
tradizione monstica. Roma: Studia anselmiana, 1990.
CHENU, M.-D. La thologie au XII sicle. 3.ed. Paris:Vrin ,1986.
A comunidade beneditina abrigava, nos termos de E. Gilson, uma verdadeira schola christi, e
reproduzia em seu interior um paradisus claustralis. Cf. Gilson, E. La thologie mystique de
S. Bernard. Paris: Vrin. 1930, p.108.
CHENU, 1986.
CONGAR, Y. Modele monastique et modle sacerdotal en Occidente de Grgoire VII (1073-
11
ANSELMO. OM, prologus, 3:1-3.
12
SOUTHERN, W. Saint Anselm and his biographer; a study of monastic life and thought:
1059-1130. Cambridge: Cambridge University Press,1966, p.46-7; WARD, B. Anselm of Can-
terbury: a monastic scholar. Fairacres publications, 62., p.14.
13
ANSELMO, Ep.10, 113:11-19.
14
SOUTHERN, 1966, p.103.
15
ao enfatizar a rima e a assonncia que Anselmo alcana um estilo lmpido, musical
e epigramtico: [...] they (rimas) are pointers to the meaning first, and adormments
anly by accident. The similiraties of sound follow the construction of the sentence;
the construction of the sentence follows the shape of the argument, and the shape
the argument reflet the balance of a universal order, which itself reflects the perfect
symmetry of the whole creation. The rhymes and assonances in Anselms earlist writ-
ings recreat in miniature the tensions of the universe: the tensions between Sin and
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
vivida pelo homem pecador (dor e exlio) expressa atravs de recursos 113
estilsticos cuidadosamente escolhidos. O refinamento verbal motiva o
Righteousness, creation and re-creation, debt and payment, justice and mercy, eternal
misery and blessesdness. SOUTHERN, W. Saint Anselm; a portrait in a Landscape.
Cambridge: Cambridge University Press.1990, p. 74.
16
ANTONI, G. La prire chez Saint Augustin: dune philosophie du langage la
thologie du verbe. Paris: Vrin, 1997, p. 97.
17
Cf. WARD, B. The place of St. Anselm in the development of Christian Prayer.
Cistersian studies, 8. Paris, 1974.
18
Anselmo mais de uma vez foi identificado como incentor, no sentido daquele que inspira e
instiga o conhecimento da alma, para alcanar a verdade do homem interior.
de seu corpo.
19
NOGENT, Gilberto de. Autobiographie. Trad. E.R. Labande. Paris: Classiques de l his-
toire de France au Moyen ge, 34. Paris: classiques de l histoire de France au Moyen ge,
1981.
1981. O mtodo tripartite significa distinguir na alma a vontade, a memria e a inteligncia.
Anselmo alude a um aspecto qudruplo: vontade, desejo, razo e inteligncia.
20
EADMER. Vie de saint Anselme, I,8. Trad. Henri Rochais. Loeuvre de S. Anselme de Can-
torbery. v. 9. Paris: Cerf, 1994.
2 As Meditaes de Anselmo
21
EADMER, 1994, I,20
22
Ibid., I,21. Alessandro Guisalberti, ao comentar as cartas de Anselmo, no considera essa fuga
como algo absoluto e indefectvel: [...] si deve tuttavia far attenzione ai tratti peculiari com cui
il nostre autore caratterizza inpositivo la rinuncia monstica, ossia lamore del regno e il desi-
derio di Dio... Anselmo vede nellamore apasionato del monaco la sola condizione per poter
prendere parte a questa scalata del regno Guisalberti Dilecto dilectus, amico amicus, fratri
frater: lepistolrio beccense di Anselmo dAosta (Guisalberti, Alessandro. La scuola
cattolica. Milano: Editrice Ancora 1988, p. 348.
23
ANSELMO, Ep. 38, 148:12-13.
24
Idem, Ep. 37, 145:9-12.
25
Esse argumento, desenvolvido para mostrar que Deus assim como cremos, aparece nos
captulos 2-4 , certamente mais conhecidos que os demais captulos da obra. A esse argumento
atribui-se o epteto de ontolgico, reconhecido assim pela tradio ps-kantiana. Pensamos
que nem a desconsiderao da orao inicial que antecede o argumento e nem o fato de re-
duzi-la a uma mera considerao psicolgica, favorecem o entendimento pleno da obra. Cf.
CORBIN, M. Prire et raison de la foi. Introduction l oeuvre de s. anselme. Paris: Cerf,
1992.
26
Ao referir-se ao homem nesse contexto, Anselmo utiliza homuncio/homunculus, muitas vezes
acompanhados por adjetivos como vil e desprezvel, para reconhecer debilidade e clamar por
misericrdia.
para algo que est mais alm, para algo que no apenas maior, no
sentido de maius apresentado no argumento nico, mas quiddam maius.
Se determinado bem singular agradvel, por exemplo, como no ser
aquele que engloba todos os bens? Se a vida criada boa, como ser
a vida criadora? Eis a estrutura do raciocnio de Anselmo: o quale e o
quantum, talvez de origem aristotlica via Bocio, mais a categoria de
relao, demarcam a forma do pensamento. Interessante ressaltar que
os verbos esto no tempo futuro, reafirmando a dimenso escatolgica
dessa meditao.
Mas na considerao dos bens do corpo e da alma objetivo
do c. 25 que a reflexo sobre o homem e seu futuro aparece de forma
clara, assumindo uma dimenso tica. Que esse homem miservel, um
homem de nada (homuncio), segundo os termos do cap.1, no busque
aqui os bens do corpo e da alma, mas l em Deus: Oh, aquele que go-
zar desse bem [...] certamente ter tudo o que Deus quiser [P 118:12].
O que se espera est muito alm do homem: [...] nunca o olho viu,
nem o ouvido escutou, jamais entrou no corao do homem, vers-
culo de S. Paulo (1Co 2,9), citado textualmente por Anselmo e de vital
importncia para a leitura do captulo. Os bens do corpo (de ordem
material) so em nmero de sete: beleza, fora, longevidade, saciedade,
ebriedade, melodia e voluptuosidade. A considerao de cada um des-
ses bens repete uma mesma estrutura j apresentada segundo a catego-
ria da relao: aqueles que amam a beleza (corporal) devem saber que
h algo mais belo que o sol (segundo Mt 13,43). Da mesma forma para
aquilo que Anselmo compreende como melodia: no h nada como o
coro dos anjos cantando ao Senhor.
Os bens da alma encontram a sua plenitude em Deus e, como os
anteriores, aparecem em nmero de sete, sendo os primeiros de ordem
intelectual: sabedoria, amizade, concrdia, poder, honras, segurana e
alegria. Inteligncia e vontade so capitais para nossa anlise. A sabe-
doria no ser aquela que o homem pode alcanar por suas prprias
foras, mas ser a sabedoria de Deus revelada ao homem. A considera-
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
o sobre a concrdia e poder aparecem como centrais para a vontade. 119
Na verdadeira concrdia, todos tero uma s vontade, que no ser
27
Neste dilogo de Anselmo, a vontade reta do homem identifica-se com o querer divino,
medida que deve querer aquilo que Deus quer. Pode-se falar aqui, com muita justia, de uma
submisso vontade de Deus que no implica submisso servil.
cristo28.
Essa meditao est estruturada em dois momentos distintos:
1) uma considerao a respeito da alma crist, medida que interroga
a si mesma sobre sua real situao, ou quando se dirige para Deus; 2)
as razes da encarnao de Cristo. possvel, todavia, reconhecer a
existncia de uma introduo e uma concluso, que remetem aos temas
indicados em suas duas partes.
A parte inicial apresenta a forma clssica de abordar a orao-
meditativa em Anselmo: exortar a mente da alma crist (anima christiana)
para que se lembre e reconsidere (retractaret) o fato de ter sido salva por
Cristo. Eis o seu tema central: que o cristo se volte para essa medi-
tao e se deleite em sua contemplao. Nessa contemplao, vamos
encontrar um vocabulrio que lembra uma espcie de nutrio espi-
ritual: provar da bondade do redentor... degustar um sabor mais doce
que o mel; enfim, mande cogitando, suge intelligendo, gluti amando et gaudendo
( OM 84: 10-11). O exame a ser feito indicado pelo verbo retractare,
que pode indicar, seja a ideia de uma retomada e rememorao de algo,
seja o fato de corrigi-lo e rev-lo. Talvez Anselmo no tenha o objetivo
de corrigir ou revisar o Cur deus homo obra qual esta meditao se
refere diretamente mas de assinalar ao cristo a grandiosidade da obra
redentora. Trata-se de uma meditao que, como indicado no princpio
deste trabalho, visa alegria da contemplao29
28
Uma comparao interessante entre as duas obras oferecida por R. Roques, Structure et
caractres de la prire anselmmienne. Sola Ratione (Anselm-Studiem). Stuttgart:Verlag. 1930,
p. 132 e 157. No mesmo sentido est o trabalho de Schmitt, F. S. La meditation redemptionis
humanae di Anselmo in relazione al Cur deus homo. Benedictina, v. 9. [1955]. Uma interpretao
da cristologia de Anselmo oferecida por Briancesco, E. Sentido y vigencia de la cris-
tologia de San Anselmo. Stromata. [1984]; idem . Le portrait du Christ dans le Cur deus homo.
Spicilegium Beccense II. Paris: CNRS, 1984.. Para uma abordagem histrica e teolgica da
redeno, veja-se Carpin, A. La redenzione I Origine, S. Anselmo e S. Tommaso. Bo-
logna: Studio domenicano. 2000, p. 75-156.
29
Contemplare/contemplatio no est somente no Proslogion, como vimos anteriormente, mas apa-
rece tambm na commendatio ao papa Urbano II, quando se considera todo o trabalho dos
santos padres e doutores: in veritatis contemplationis (39:6); e tambm nos termos da orao
2 (oratio christi): [...] spero tui adventus solam consolationem, ardeo tui vultus gloriosam con-
ce cogitando (OM 89:157-158). por isso que esse pobre homem deve
examinar aquilo que deve a seu salvador, considerar aquilo que ele fez, pen-
sar em todas as coisas divinas e olhar atentamente para o seu salvador.
Da mesma forma que a alma se volta para si mesma, ela dirige-se
em tom de orao para o criador: O bone, o domine christe. Palavras que
reconhecem a grandiosidade da obra salvfica e que esperam repercutir
no ouvido de Deus. Cristo no apenas removeu o pecado no qual a
natureza humana foi concebida, mas operou uma mudana no homem
e, de curvo que estava, o levantou e o colocou de p. A orao 14 (a
so Nicolau) expressa bem esse movimento: [...] minha alma quer,
meu senhor, levantar os olhos para ti, pois um peso plmbeo a deixou
curvada. Por fim, que a alma crist considere atentamente todas es-
sas razes, e que o homem interior pense em todas essas palavras da
salvao.
Na considerao do Proslogion e das orationes et meditationes, viu-se
que a orao-meditativa se apresenta como um caminho que leva o
homem at a verdade divina, ainda que essa seja, no momento, para
o homem, parcial. no recolhimento do monge que a palavra divina
ser assimilada (no longe da ruminatio), medida e sopesada, com o ob-
jetivo de alcanar a plenitude de sentido, expressa na ratio dei. A excitatio
mentis e a compunctio cordis so dois instantes de um mesmo processo.
por reconhecer a dignidade da criatura humana que a situao de ape-
quenamento e humilhao, provocada pelo pecado, intolervel para o
monge beneditino de Bec.
Resumo
Anlise do conceito de Amor (e seus graus at Deus) na contemplao mstica de
Bernardo de Claraval com base especialmente na Carta 11 de seu Epistolrio,
mas tambm em seus Sermes sobre o Cantar dos Cantares e na obra De Diligendo
Deo (Deus h de ser amado).
Palavras-chave: Amor - Filosofia - Mstica - Bernardo de Claraval.
Abstract
Analysis of the concept of Love (and their degrees to God) in the mystic con-
templation of Bernard of Clairvaux, especially based on the Letter 11 by your
Epistolary, but also in his sermons on the Canticle of Canticles and in the work
De Diligendo Deo.
Keywords: Love - Philosophy - Mystic - Bernard of Clairvaux.
Trabalho originalmente apresentado no XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval, evento
organizado pela Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, a ocorrer na Ufes nos dias 01 a 04 de
agosto de 2011
Medievalista da Universidade Federal do Esprito Santo (Ufes). Acadmic correspondente n. 90
da Reial Acadmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com e-mail: ricardo@
ricardocosta.com, [email protected]
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 362.
J tivemos a oportunidade de tratar da mstica bernardina: COSTA, Ricardo da. El Alma en
la mstica de San Bernardo de Claraval. Revista Humanidades 17-18. Departamento de Artes y
Humanidades de la Universidad Andrs Bello. Santiago de Chile, junio-diciembre 2009, p.
201-210, Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/El%20alma%20en%20la%20mistica%2
0de%20San%20Bernardo.pdf, e COSTA, Ricardo da. O que Deus? Consideraes sobre os
atributos divinos no tratado Da Considerao (1149-1152), de So Bernardo de Claraval. Revista
Coletnea. Revista de Filosofia e Teologia da F aculdade de So Bento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Christi, Ano IX, fasc. 18, jul-dez 2010, p. 223-238. Internet, http://www.ricar-
docosta.com/pub/ANPOF%202010.pdf.
SAN BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas de San Bernardo V. Madrid:
BAC, 1987, Sermo 85 sobre o Cantar dos Cantares, 13), p. 1059.
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1987, Sermo 49 sobre o Cantar dos Cantares, 3, p. 641.
A palavra affectus engloba uma mirade de estados da alma, de disposio do esprito relacionadas ao
amor: afeio, carinho, ternura, meiguice. A devoo do afeto, portanto, diz respeito a um carinho
fervoroso, pr-condio da contemplao amorosa a Deus.
A recusa do mundo como condio sine qua non para se alcanar a sabedoria filosfica tem
longa tradio na histria da filosofia. Por exemplo, para nos atermos ao universo de leitu-
ra do prprio Bernardo, o filsofo estico Sneca (4 a.C. - 65 d.C.) aconselha seu discpulo
Luclio: Para seres sbio, bastar-te- manteres os ouvidos fechados; s que no ser
suficiente usar cera: necessitars de uma matria mais densa do que a usada por Ulisses nos
seus companheiros. A voz temida pelos marinheiros, embora sedutora, no era a voz de todo
o mundo; aquela de que ns devemos precaver-nos no provm de um recife, mas ressoa nos
quatro cantos da terra. Passa, por conseguinte, ao largo no apenas de um local torna-
do suspeito pela sua traioeira seduo, mas de todas as cidades. Mostra-te surdo aos
conselhos dos que mais te querem bem: com boas intenes, apenas te desejam mal. (os
grifos so meus) LCIO ANEU SNECA. Cartas a Luclio. Trad., prefcio e notas de J. A.
Segurado e Campos). Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007, Carta 31, p. 116-117.
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1987, Sermo 85 sobre o Cantar dos Cantares, 13, p. 1059.
Idem, 1990, Carta 11, 3, p. 133.
A passagem do Sermo 85 de So Bernardo toda baseada em Corntios: A caridade paciente,
a caridade prestativa, no invejosa, no se ostenta, no se incha de orgulho. Nada faz de
inconveniente, no procura o seu prprio interesse, no se irrita, no guarda rancor (1Cor 13,
4-5). Todas as citaes bblicas citadas nas notas deste trabalho so referncias do prprio texto
de Bernardo, encontradas a posteriori pelos editores da BAC e que serviram de base teolgica
para Bernardo redigir seu texto.
Por sua vez, essa passagem do texto bernardino filosoficamente to profunda que
citada e mais de uma vez no verbete Amor, FERRATER, Jos. Dicionrio de filosofia.
So Paulo: Edies Loyola, 2000, Tomo I [A-D]. p. 108.
10
A caritas crist, justamente por se caracterizar pela completa ausncia de interesse, a mais pura
expresso filosfica do amor. O amor na renncia ama renunciando a si; isto significa que ele ama
todos os homens sem a menor diferenciao, o que para o amor faz do mundo um simples
deserto. E este amor ama os outros como a si prprio. Na actualizao da relao retrospectiva,
a criatura acede ao seu prprio ser. Ela compreende-se, ela que enquanto vinda de Deus, ao
mesmo tempo que indo em direo a Deus, no seu ser face a Deus. somente nesta compre-
enso retrospectiva do prprio ser e do isolamento que a se realiza que surge o amor fraterno
(frater=proximus) A condio para uma compreenso justa do prximo a compreenso justa
de si mesmo ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de
interpretao filosfica. Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 115.
11
BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1986, p. 42.
12
GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Catlica II:. Edad Media (800-
1303). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2003, p. 652.
13
Meu corao queimava dentro de mim, ao meditar nisto o fogo se inflamava, e deixei minha
lngua dizer: Mostra-me o meu fim, Yahweh, e qual a medida dos meus dias, para eu saber
quo frgil sou, Sl 39 (38), 4-7.
14
Eu vim trazer o fogo terra, e como desejaria que j estivesse aceso! Pois doravante, numa
casa com cinco pessoas, estaro divididas trs contra duas e duas contra trs; ficaro divididos:
pai contra filho e filho contra pai, me contra filha e filha contra me, sogra contra nora e nora contra
sogra, Lc 12, 49-50.
15
SAN BERNARDO DE CLARAVAL. 1990, Carta 11, 1, p. 129 (Sanctitatis vestrae litteras tam
laetus accepi, quam avidus et olim desideraveram. Legi eas, et quas volvebam in ore litteras, scintillas sentiebam
in pectore, quibus et concaluit cor meum intra me, tamquam ex illo igne quem Dominus misit in terram. O
quantus in illis meditationibus exardescit ignis, e quibus huiuscemodi evolant scintillae! Vestra illa succensa
et succendens salutatio sic mihi, ut verum fatear, accepta fuit, et est, quasi no ab homine sed certissime ab illo
qui mandat salutes Iacob descendere videretur. Non me sane arbitror salutatum in via, no in transitu, non
veluti ex occasione, ut assolet, consuetudinis, sed plane ex visceribus, ut sentio, caritatis prodiit haec tam grata
et inopitata benedictio)..
16
Recorde-se que a cobia, na tradio judaico-crist, a origem de todos os pecados (ou, em
termos filosfico-clssicos, dos vcios da alma): Assim termina a cobia sem medidas, tirando a
vida ao seu dono (Pr 1, 19); Todo dia o mpio presa do desejo, mas o justo d e nada retm
(Pr 21, 26 isto , ele cobia a cobia!); Mais vale o que os olhos vem do que a agitao do
desejo. Isso tambm vaidade e correr atrs do vento (Ecl 6, 9).
17
Nec absurdum videatur quod dixi etiam Deum vivere ex lege, cum non alia dixerim quam caritate (No
absurdo dizer que Deus tambm vive de acordo com uma lei, j que esta lei a caridade), SAN
25
ARISTTELES. Metafsica, vol. II, Livro (Dcimo segundo), 1072b, 5, p. 563. Observe-se
que So Bernardo no conheceu a Metafsica de Aristteles, traduzida no Ocidente somente no
sculo XIII. No entanto, a tradio grega legou filosofia medieval o seu carter teolgico.
Para o tema, ver COSTA, Ricardo da. As razes clssicas da transcendncia medieval. Tra-
balho indito a ser publicado em MARINHO, Simone (org.). Temas de filosofia medieval.
Campina Grande: Editora da UEPB, 2011. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/As%20
ra%EDzes%20cl%E1ssicas%20da%20transcend%EAncia%20medieval.pdf
26
O tema da luz caro para a filosofia medieval. Para isso, ver COSTA, Ricardo da. A luz
deriva do bem e imagem da bondade: a metafsica da luz do Pseudo Dionsio Areopagita na
concepo artstica do abade Suger de Saint-Denis. Scintilla. Revista de Filosofia e Mstica
Medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia de So Boaventura (FFSB), Vol. 6 - n. 2 - jul./dez.
2009, p. 39-52. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/suger.htm
27
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, Carta 11, 6, p. 139.
28
A passagem, alis, pouqussimo citada atualmente nas homilias, essa: Sabemos, com efeito,
que a Lei boa, conquanto seja usada segundo as regras, sabendo que ela no destinada
ao justo, mas aos inquos e rebeldes, mpios e pecadores, sacrlegos e profanadores,
parricidas e matricidas, homicidas, impudicos, pederastas, mercadores de escravos,
mentirosos, perjuros e para tudo o mais que se oponha s doutrina, segundo o evangelho
de glria do Deus bendito, que me foi confiado, 1Tm 1, 8-11 (os grifos so meus).
29
...comportamento casto e respeitoso, 1Pd 3, 2.
Imagem 1
36
Para a importncia de sempre se relacionar texto e imagem em investigaes no mbito das
Cincias Humanas, ver SCHAMA, Simon. O poder da arte. So Paulo: Companhia das Letras,
2010.
37
Provai e vede como Iahweh bom, feliz o homem que nele se abriga, Sl 34 (33), 9.
38
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, Carta 11, 8, p. 141. A base dessa passagem se
encontra em Paulo: Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um s esprito, 1Cor 6,
17.
39
Eu virei com o poder de Iahweh, para recordar tua nica justia, Sl 71(70), 16. curioso
observar que para o tema do amor, Bernardo harmoniosamente mescla passagens dos Salmos
com as cartas joaninas e paulinas.
40
Isto , aqueles que se encontram no Paraso. A Igreja Triunfante (Ecclesia Triumphans) e a Igreja
Militante (Ecclesia Militans, isto , a milcia dos cristos vivos, que combate ...os Dominadores
deste mundo de trevas [Ef 6, 12] o motivo de um belssimo afresco de Andrea da Firenze
(1343-1377) na Igreja de Santa Maria Novella, na Grande Capela do Espanhol, Florena.
41
2Cor 5, 16.
42
Em seguida, dir aos que estiverem sua esquerda: Apartai de mim, malditos, para o fogo
eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e no me destes de comer.
Tive sede e no me destes de beber. Fui forasteiro e no me visitastes (Mt 25, 41).
sempre bom recordar que, nos textos medievais, a referncia a uma cidade divina e perfeita
como esta aqui descrita sempre faz aluso cidade ideal platnica, base inclusive da Cidade de Deus
(c. 413-426) de Santo Agostinho (354-430): ...talvez haja um modelo no cu, para quem quiser
contempl-la e, contemplando-a, fundas uma para si mesmo. De resto, nada importa que a
cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto pelas suas normas, e pelas de
mais nenhuma outra, que ele pautar o seu comportamento. PLATO. A Repblica. Trad.
e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1996,
592b, p. 450.
43
Um rio saa de den para regar o jardim e de l se dividia formando quatro braos, Gn 2,
10. Naturalmente, a imagem, emprestada de Gnesis, une o rio real paradisaco com o abundante
rio de felicidade oriundo do xtase das almas amorosas em Deus!
44
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, Carta 11, 9, p. 141-142.
45
Para uma anlise do Paraso, ver DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraso? So Paulo:
Companhia das Letras, 2003, especialmente o captulo A Jerusalm celeste (p. 101-119).
46
Vergine Madre, figlia del tuo figlio, / umile e alta pi che creatura, / termine fisso detterno consiglio,
/ tu se colei che lumana natura / nobilitasti s, chel suo fattore / non disdegn di farsi sua fattura. / Nel
ventre tuo si raccese lamore, / per lo cui caldo ne letterna pace / cos germinato questo fiore. DANTE
ALIGUIERI. A Divina Comdia. Paraso. Edio bilnge. Trad. e notas de Italo Eugenio
Mauro). So Paulo: Ed. 34, 1998, p. 229.
47
SO BERNARDO DE CLARAVAL. De diligendo Deo. Deus h de ser amado.
Ttrad. de Matteo Raschietti. Petrpolis: Vozes, 2010.
48
Idem. Obras completas de San Bernardo I. Madrid: BAC, 1993, p. 299 (a obra se encontra
nas pginas 300-359). Bernardo inclusive recorda que escrevera a carta a Guido e cartuxa:
Lembro-me de ter escrito, h tempos, uma carta aos santos irmos cartuxos e de ter exposto
nela, entre as outras coisas, esses graus do amor. Talvez a tenha falado da caridade em outra
maneira, embora no de uma forma imprpria, e no acho intil acrescentar tambm a esse
discurso alguma coisa dela, sobretudo porque tenho disposio coisas que j foram escritas
e posso transcrev-las antes que redigir outra vez algo novo (SO BERNARDO DE CLA-
RAVAL, 1993, II, 34, p. 50).
49
Ibid, I, 1, p. 09.
50
Ibid, II, 4, p. 13. Trata-se do mesmo tema exposto na obra Da Considerao. Ver COSTA,
Ricardo da. O que Deus? consideraes sobre os atributos divinos no tratado Da Considera-
o (1149-1152), de So Bernardo de Claraval. Revista Coletnea. Revista de Filosofia e
Teologia da Faculdade de So Bento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Christi, Ano IX, fasc. 18, jul-dez 2010, p. 223-238. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/
ANPOF%202010.pdf
51
Assim tereis condies para compreender com todos os santos qual a largura e o compri-
mento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede a todo conheci-
mento, para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus, Ef 3, 19. A passagem, mui-
to famosa, tem profunda base filosfica (de natureza estica). Ver COSTA, 2010, p. 8, n. 35.
52
Grande Iahweh, e muito louvvel, incalculvel a sua grandeza, Sl 145 (144), 3.
53
Nosso Senhor grande e onipotente e sua inteligncia incalculvel, Sl 147 (146-147), 3.
meu refgio, e meu libertador55, e, enfim, tudo o que por mim pode
definir-se desejvel e amvel56.
Referncias
54
Ento a paz de Deus, que excede toda a compreenso, guardar os vossos coraes e pen-
samentos, em Cristo Jesus, Fl, 4, 7.
55
Eu te amo, Iahweh, minha fora, (meu salvador, tu me salvaste da violncia). Iahweh mi-
nha rocha e minha fortaleza, quem me liberta o meu Deus, Sl 18 (17), 1-3.
56
Amat ergo immensitas, amat aeternitas, amat supereminens scientiae caritas; amat Deus, cuius magnitudinis
no est finis, cuius sapientiae no est numerus, cuius pax exsuperat omnem intellectum: et vicem rependimus cum
mesura? Diligam te, Domine, fortitudo mea, firmamentum meum, et refugium meum, et liberator meus, et
meum denique quidquid optabile atque amabile dici potest.
57
Deus como causa eficiente e final: no a primeira vez que Bernardo sem o saber se vale
de conceitos aristotlicos (provavelmente herdados de uma epstola de Sneca). De qualquer
modo, a doutrina das quatro causas era um legado comum do medievo, inclusive antes da traduo da
Fsica de Aristteles por Jac de Veneza (primeira metade do sc. XII). Para o tema, ver COS-
TA, 2010, p. 6.
58
SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1993, VII, 22, p. 34.
Resumo
O objetivo desse artigo realizar uma aproximao entre dois importantes
filsofos da humanidade, ou seja, Toms de Aquino e Mikhail Bakhtin. Como
esses pensadores escreveram uma vasta obra, com diversos temas e nuances,
optou-se por se reduzir essa comparao unicamente a um ponto que ambos
discutem abertamente, ou seja, o enunciado. Por causa disso, so apresentados
elementos comuns entre Toms de Aquino e Mikhail Bakhtin. Esses elemen-
tos esto relacionados com a discusso sobre o enunciado.
Palavras-chave: Enunciado - ligao - Toms de Aquino e Mikhail Bakhtin.
Abstract
The aim of this article is to make a connection between two major philoso-
phers of humanity, that is, Thomas Aquinas and Mikhail Bakhtin. As these
thinkers wrote an extensive work with various themes and nuances, we decid-
ed to reduce this comparison only to a point that both openly discuss, namely
the statement. In doing so, we present common elements between Thomas
Aquinas and Mikhail Bakhtin. These elements are related to the discussion on
the statement.
Keywords: Statement - connection - Thomas Aquinas and Mikhail Bakhtin.
Introduo
Doutor em Estudos da Linguagem, professor do Departamento de Filosofia e do Programa
de Ps-Graduao em Letras da UERN. E-mail: [email protected]
Ivanaldo Santos
buscar coincidncias radicais entre a pesquisa escolstica sobre a lin-
guagem e a lgica e o mesmo tipo de pesquisa desenvolvida pela filoso-
fia contempornea. Alm disso, tambm levado em considerao o
fato de haver um ntimo dilogo entre Toms de Aquino e a filosofia
contempornea. Esse dilogo realizado por meio de reformulaes
e interpretaes contemporneas do esquema conceitual oriundo do
Aquinate, especialmente de sua pesquisa sobre a linguagem e a lgica.
Entre os pesquisadores que se dedicam realizao desse dilogo en-
contram-se: Anthony Kenny e Peter Thomas Geach.
MUOZ DELGADO, V. Lgica matemtica y lgica filosfica. Madrid: Ediciones de la
Revista Estudios, 1962.
KENNY, A. Aquinas. a collection of critical essays. London: Macmillan, 1970.
GEACH, P. T. Reference and generality: an examonation of some medieval and modern
theopries. Ithaca and London: Cornell University Press, 1970.
I Peri hermeneias, lect, 2.
ARISTTELES. Sobre la interpretacin. Navarra: EUNSA, 1989.
AQUINO, Toms de. Comentario al libro de Aristteles Sobre la interpretacin. Navar-
ra: EUNSA, 1999.
BEUCHOT, M. Santo Tomas de Aquino. In: La filosofia del linguaje en la Edad Media.
2. ed. Mxico: UNAM, 1991, p. 87.
Sobre a lgica em Toms de Aquino recomenda-se consultar: SCHMIDT, R. W. The domain
of logic according to Saint Thomas Aquinas. The Hague: Nijhoff, 1966, onde h uma deta-
lhada bibliografia do assunto. Alm disso, recomenda-se consultar: RODRGUEZ, J. L. F. Me-
tafisica y lgica: estdios sobre Toms de Aquino. Universidad de Navarra: Navarra, 1991.
Ivanaldo Santos
sentido sem ser por meio do enunciado. O fato de uma pessoa pensar
em um juzo, como, por exemplo, O gato preto, mas no express-
lo publicamente, por meio da escrita e at mesmo somente por meio da
fala, no significa que esse juzo de fato exista ou tenha existido. O pro-
blema como provar que esse juzo, que foi apenas pensado, mas no
expresso publicamente, de fato existe? bom recordar que a espcie
humana no se comunica por meio da transmisso do pensamento, por
telepatia. O ser humano uma espcie essencialmente da comunicao
interpessoal, por meio da fala e da escrita. Por isso o enunciado ganha
destaque, ganha importncia comunicativa e filosfica.
Em Toms de Aquino, o enunciado composto por signos e
termos. O signo aquilo que em si mesmo nos manifesta outra coisa,
que no conhecemos diretamente e, por causa disso, tem a finalidade
de nos conduzir a conhec-la10.
Por sua vez, os termos so representaes de algo natural11, que
so os sons, por artifcio ou por conveno, e so susceptveis de serem
representados pela escrita12. Para evitar que toda vez que um som seja
representado seja tambm criado um termo novo, estabelece-se con-
veno de um termo. O som pode ser at diferente. Essa diferena
estabelecida por vrios fatores, como, por exemplo, o sotaque, o re-
gionalismo e outras variaes. No entanto, o termo constante. Por
exemplo, apesar de todas as variaes que povoam o som, a constante
casa ou mesa sempre ser escrita da mesma forma.
Por causa disso, para o Aquinate, os termos so as partes que,
ao longo da histria da filosofia, foram classificadas como tradicionais,
ou seja, os termos esto relacionados com as categorias de sujeito e
predicado contidos no enunciado. preciso deixar claro que, na pers-
pectiva do Aquinate, os termos, em si mesmos, no podem determinar
10
IV Sententiarum, dist. 1, q. 1, a. 1.
11
I Peri hermenias, lect. 4.
12
Ibid. lect, 2.
ca os termos isoladamente.
preciso esclarecer que, em Toms de Aquino13, a verdade ou
a falsidade do enunciado est relacionada diretamente com o ato de
comparar o contedo interno, sinttico, do enunciado com as coisas
existentes no mundo real. Por exemplo, em um enunciado do tipo
Joo quebrou a perna, preciso verificar se, primeiro, o enunciado
est sintaticamente correto e, segundo, se corresponde a algo que est
presente no mundo real. Em Toms, um enunciado do tipo Joo um
leo no est correto. Justamente porque ele nega a verdade sinttica
e a verdade oriunda do mundo real.
preciso deixar claro que Toms explica a questo da verdade e
da falsidade do enunciado, de forma mais detalhada, com base na teoria
da substncia e do ser. Essa teoria no ser apresentada neste estudo,
mas esclarece-se que, para ele, o tempo acompanha as mutaes ocor-
ridas dentro do verbo, se essas mudanas so ativas ou passivas. Se no
houve mudanas no tempo e tambm no contedo verbal, no seria
possvel criar novas palavras, expresses e, por conseguinte, enuncia-
dos. Isso no significa que, em Toms, o contedo verbal est entregue
de forma absoluta ao sabor da causalidade, da forma como desejam
alguns linguistas contemporneos, mas que o tempo um fator de mu-
dana e de estabilidade do contedo verbal. Se esse contedo estivesse
entregue somente ao tempo, ao acaso e ao devir, ento impossvel
construir um enunciado a partir de palavras que foram constitudas na
antiguidade ou na Idade Mdia.
No Aquinate os enunciados, ou seja, as proposies, tm como
termos principais, isto , como sujeitos e predicados por excelncia,
os nomes e os verbos. Os nomes e os verbos so os termos categore-
mticos, ou seja, que significam por si mesmos. Os demais termos so
sincatagoremticos, ou seja, significa que esto em unio com os termos
13
Ibid., lect, 3,.
Ivanaldo Santos
mos (categoremticos), ou seja, os nomes e os verbos possuem autonomia.
Os demais (sincatagoremticos) so dependentes dos primeiros.
Para o Aquinate, em geral, os termos possuem significao. No
existe um termo que no possua significao. Dentro do enunciado, os
nomes tm suposio e os adjetivos copulao. A significao das palavras
o contedo intelectivo que provoca a ateno do ouvinte. Quando
uma pessoa ouve, por exemplo, o enunciado Maria bela, h uma
compreenso, de algum nvel, desse enunciado. Por sua vez, a suposio
dos nomes substantivos a relao que mantm com as realidades des-
ignadas15. Em um enunciado os nomes devem designar algo dentro da
realidade. Por exemplo, em um enunciado do tipo, Joo foi praia,
a palavra praia deve designar algo dentro do mundo real. A palavra
no deve ser apenas uma abstrao, mas um elemento de ligao e re-
conhecimento do mundo real. J a copulao dos nomes adjetivos sua
capacidade de ser predicado, pois so mais propriamente predicados do
que sujeitos. Os nomes substantivos e os adjetivos se distinguem entre
si pelas propriedades lgico-semnticas, as quais so peculiares a um e
a outro.
Para Toms16, h no enunciado a dimenso da suposio. Ele
divide a suposio em natural e acidental. natural quando se refere
prpria essncia da coisa. Por exemplo, quando se pronuncia um enun-
ciado do tipo Sente na cadeira, est referindo-se a prpria essncia
da coisa, nesse caso da cadeira. J a palavra acidental quando se refere
a algum acidente da coisa. Por exemplo, quando se diz: A cadeira est
quebrada, est-se referindo no essncia da cadeira, mas sim ao aci-
dente de ela estar quebrada.
Toms de Aquino estabelece o enunciado como sendo uma rela-
o direta entre as categorias sintticas, ou seja, sujeito e predicado. To-
14
Suma Teolgica, I q. 31, a 3, c.
15
Ibid., I, q. 36, a. 4, ad 4m.
16
III Sententiarum, dist, I q. 2, a. 4, ad 6m.
17
STAM, R. Mikhail Bakhtin e a crtica cultural de esquerda. In: KAPLAN, E. A. O mal-eslar no
ps-modernismo: teorias e prticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 149.
18
EMERSON, C. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Didel, 2003,
p. 7.
19
BAKHTIN, M. Esttica da criao verbal. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 273.
Ivanaldo Santos
contradies a ausncia de uma teoria do enunciado. Por causa disso,
ele afirma que a ausncia de uma teoria elaborada do enunciado como
unidade da comunicao discursiva redunda em uma distino impre-
cisa da orao e do enunciado e, frequentemente, total confuso dos
dois20. Por causa disso, ele enfatiza o estudo do enunciado. Em suas
palavras:
[...] um estudo fecundo das formas sintticas s possvel no
quadro da elaborao de uma teoria da enunciao. Enquanto
a enunciao, como um todo, permanecer terra incgnita para
o linguista, est fora de questo falar de uma compreenso real,
concreta, [...] das formas sintticas21.
20
BAKHTIN, 2010, p. 279.
21
Idem, Marxismo e filosofia da linguagem. 13 ed. So Paulo: Hucitec, 2009, p. 146.
22
Ibid, p. 96.
23
Ibid, p. 146; BAKHTIN, 2010, p. 296-297.
24
Sobre a influncia de Wittgenstein em Bakhtin recomenda-se consultar: SANTOS, I.; NAS-
CIMENTO, M, E. F. Bakhtin e Wittgenstein: teorias em dilogo. In: Theoria, Revista Eletr-
nica de Filosofia, v. 2, n. 1, p. 76-85, 2010.
25
BAKHTIN, 2010, p. 272.
26
Ibid, p. 283.
27
BAKHTIN, 2010, p. 276; 289.
28
Ibid, p. 275.
29
Ibid, p. 276.
30
Idem, 2009, p. 147.
Ivanaldo Santos
Todavia, para ele31, o enunciado, no contexto semntico-social, nunca
se mostra absolutamente sozinho. Sempre h outro enunciado ou al-
guma situao lingustico-social que o acompanha.
A quarta o princpio de conclusibilidade. Para ele, esse princpio
o fato de que o enunciado uma espcie de aspecto interno da al-
ternncia dos sujeitos do discurso; essa alternncia pode ocorrer pre-
cisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer
em dado momento ou sob dadas condies.
Ele divide o princpio de conclusibilidade em duas categorias,
sendo elas:
1) responder ao enunciado. Para Bakhtin32, pelo fato de o enun-
ciado no ser uma estrutura lingustico-social fechada, passa a existir
a possibilidade de se responder a ele, em termos mais precisos e am-
plos, e de se ocuparem outras posies dentro do discurso, como, por
exemplo, cumprir uma ordem ou responder a uma pergunta. por essa
categoria que possvel, por exemplo, responder a uma pergunta do
cotidiano do tipo que horas so?;
2) a dimenso expressiva do enunciado. Em Bakhtin33, no pos-
svel um enunciado absolutamente neutro. Ele no nega as dimenses
formal, semntica e sinttica do enunciado. Para ele, todo enunciado
um elemento formal dos constituintes gramaticais. Entretanto, ele ob-
serva que existe um contedo no enunciado que s pode ser compre-
endido por meio da dimenso extraenunciado. Trata-se da expresso,
da carga emocional, valorativa e de outras naturezas que, muitas vezes,
esto contidas dentro do enunciado. Por exemplo, um enunciado do
tipo Eu te amo ou Eu te odeio no pode ser compreendido apenas
do ponto de vista semntico-sinttico, mas, para haver uma plena com-
preenso, preciso levar em conta a dimenso extraenunciado.
31
BAKHTIN, 2010, p. 277.
32
Ibid, p. 280-281.
33
Ibid, p. 289-291.
34
BAKHTIN, 2010, p. 294.
35
Ibid, p. 298.
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
Sero apresentados quatro pontos de unio entre esses dois pen- 153
sadores.
Ivanaldo Santos
O primeiro ponto a necessidade de haver uma discusso e
mais precisamente a construo de uma teoria que trate diretamen-
te do enunciado. Tanto para Toms de Aquino36 como para Mikhail
Bakhtin37 no se pode comear a debater sobre a linguagem de forma
ampla, geral e sem fundamento concreto. No se pode falar de linguagem
de forma puramente abstrata. Se isso acontecer, no ser possvel se
chegar a nenhuma concluso sobre os elementos bsicos e essenciais
da comunicao. Para evitar esse problema, preciso partir do elemen-
to lingustico mais bsico e, ao mesmo tempo, mais slido, o qual
o enunciado. Em ambos, o enunciado no um simples elo entre a
palavra e o texto, mas o fundamento de qualquer expresso escrita. A
palavra isolada pouco ou nada comunica. Apenas dentro do enuncia-
do a palavra ganha sentido e significao. Por isso, uma teoria sobre o
enunciado fundamental para a compreenso do ato lingustico.
O segundo o contedo semntico e o sinttico do enuncia-
do. Tanto para o Aquinate38 como para Bakhtin39, o enunciado uma
composio frasal, com sentido lgico, com contedo semntico e
sinttico. Vale salientar que, contemporaneamente, existe, nos crcu-
los lingusticos, uma grande preocupao em pesquisar o enunciado a
partir do contedo extrafrasal, ou seja, a partir dos contedos social e
cultural. Bakhtin no nega a importncia do contedo sociocultural na
constituio do enunciado, mas, juntamente com Toms de Aquino, ele
demostra que, antes de se verificar o contedo sociocultural, preciso
reconhecer e estabelecer o contedo semntico-sinttico do enunciado.
justamente o contedo semntico-sinttico que garante que, dentro
do enunciado, haja um juzo de valor relacionado com as posturas so-
ciais e culturais do ser humano.
36
IV Sententiarum, dist. 1, q. 1, a. 1.
37
BAKHTIN, 2010, p. 273; BAKHTIN, 2009, p. 146.
38
IV Sententiarum, dist. 1, q. 1, a. 1.
39
BAKHTIN, 2010, p. 276; 289-291.
Perspectiva Filosfia, Recife, v. I, n. 35, jan./jun. 2011
154 O terceiro ponto o enunciado ser uma totalidade semntico-
sinttica. Tanto Toms de Aquino40 como Bakhtin41 estabelecem que o
O Enunciado ...
40
Suma Teolgica, I, q. 36, a. 4, ad 4m.
41
BAKHTIN, 2010, p. 298.
42
I Peri hermeneias, lect, 3.
43
BAKHTIN, 2009, p. 147; BAKHTIN, 2010, p. 277.
Ivanaldo Santos
pocas to diferentes produziram pensadores que convergem para a
discusso sobre a verdade e a falsidade do enunciado. O segundo o
fato de, contemporaneamente, haver uma busca, quase que frentica,
pelos contedos socioculturais presentes no enunciado e, por conse-
guinte, deixa-se de lado a dimenso da verdade ou da falsidade que
esto contidos em seu interior.
Como possvel perceber-se pelos quatro pontos de ligao que
foram apresentados, h elementos comuns entre Toms de Aquino e
Mikhail Bakhtin. Esses elementos esto relacionados discusso sobre
o enunciado. claro que se trata de pensadores com objetivos diferen-
tes e que construram suas pesquisas filosficas em pocas e contextos
culturais diferentes. No entanto, no possvel negar os pontos de liga-
o que foram apresentados.
Por fim, afirma-se que h uma necessidade de um aprofunda-
mento sobre a influncia e a interligao existentes entre os pensadores
antigos e medievais, como Toms de Aquino e a filosofia contempor-
nea. A causa disso que no possvel perceber a filosofia contempor-
nea como sendo uma pesquisa puramente inovadora e autnoma, sem
qualquer vinculao com a filosofia antiga e medieval. Essa percepo
fraca e incompleta. Para haver uma compreenso mais aprofundada
sobre as diversas interfaces do pensamento contemporneo, preciso
ir busca de suas origens na antiguidade e na Idade Mdia.
Referncias
Resumo
Este artigo trata da espiritualidade de Santo Antnio (de Lisboa ou de P-
dua), O. Min., 11901231, com base em sua Opera sermonaria, cujos traos mais
expressivos so os seguintes: 1 - a devoo intensa Trindade, em especial,
Segunda Pessoa da mesma, Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro; 2 - a
devoo a Maria imaculada, medianeira da salvao; 3 - a devoo aos santos;
4 - a frequncia regular aos sacramentos da Penitncia e Eucaristia; 5 - a
guarda, pelos fiis em geral, dos domingos e dias santificados e as oraes
devocionais particulares e aos clrigos, ainda, o canto ou a recitao do Ofcio
divino, a orao pblica, oficial da Igreja. 6 - a observncia do Declogo, dos
Mandamentos da Igreja e, em especial, do mais importante de todos, o do
Amor fraterno, que se concretiza mediante as Obras de Misericrdia, as sete espi-
rituais, a saber: 1 - instruir ou ensinar os ignorantes; 2 - corrigir os que erram;
3 - dar bons conselhos; 4 - consolar ou confortar os angustiados; 5 - perdoar
de corao os que nos ofendem; 6 - suportar com pacincia as adversidades e
as fraquezas do prximo; 7 - rogar a Deus, tanto pelos vivos quanto pelos fale-
cidos. E as sete materiais: 1 - dar de comer a quem tem fome; 2 - dar de beber
a quem tem sede; 3 - vestir os nus; 4 - dar abrigo aos peregrinos; 5 - assistir aos
enfermos; 6 - visitar os presos; 7 - sepultar os mortos. Ressaltamos, ainda, que
o Santo deu enorme importncia ao cuidado que se deve ter com os pobres.
Palvaras-chave: Espiritualidade antoniana: prticas devocionais - Obras de Mi-
sericrdia espirituais e materiais.
Abstract
In this study, we analyze Saint Anthonys, O. Min, (from Lisbon or Padua,
11901231), spirituality based on his Opera sermonria, whose most relevant
characteristics are the following: 1 - the devotion to the Holy Trinity, mainly
to the Second Person, Jesus Christ, true God and man; 2 - the devotion to the
immaculate Mary, mediatrix of the salvation; 3 - the devotion to the saints; 4
- to frequent the Sacraments of the Penance and Eucharist; 5 - all faithful must
reserve the Sundays and Holydays and to do the devotional prayers and, parti-
Professor Titular aposentado da Uinersidade Federal de Gois e Investigador Integrado do
Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
E-mail: [email protected]
cially, the most important of them, it is, the fraternal Charity, which is realized
through the Works of Mercy, the seven spirituals: 1 - to instruct theignorant;
2 - toadmonish sinners; 3 - to give good advices; 4 - o comfort the afflicted;
5 - to forgiveoffenceswillingly; 6 - to bear wrongs patiently; 7 - toprayfor
the living and thedead. And the seven material: 1 - to feed the hungry; 2 - to
give drink to the thirsty; 3 - to clothe the naked; 4 - to shelter the homeless
(pilgrim?); 5 - to visit the sick; 6 - to visit those in prison; 7 - toburythe dead.
We emphasizes that the Saint gave a great importance for the care which we
must have to the poors.
Key words: Saint Anthonys spirituality: devotional practices - Works of Mercy
spiritual and material.
SOUZA, Jos Antnio de C.R. de. O pensamento social de Santo Antnio. Porto Alegre,
EDIPCURS, 2001.
Idem. Santo Antnio e a espiritualidade franciscano-menorita. Boletn de Teologia. Buenos
Aires, v. 35, 2002, p. 331.
Souza
ticas.
de
Santo Antnio nasceu volta de 1190, em Lisboa, e foi batizado
Jos Antnio de C. R.
com o nome de Fernando. Faleceu em Arcela, na periferia de Pdua,
em 13 de junho de 1231. Estudou com os cnegos regulares agostinia-
nos na cidade natal, e em Coimbra, na cannica, junto igreja de Santa
Cruz, onde foi ordenado sacerdote, provavelmente em 1218. Dois anos
mais tarde, isto , em 1220, tornou-se Frade Menor, ocasio essa em
que mudou o seu nome de batismo pelo qual se tornou conhecido.
Passou os ltimos onze anos de sua vida como filho espiritual de So
Francisco.
Provavelmente, durante um ano e meio, Antnio viveu no eremi-
trio de Monte Paolo, na Itlia setentrional, onde, para alm da rotina
duma pequena comunidade de Irmos Menores, ele tinha as obrigaes
de celebrar missa para os confrades, porque era sacerdote e, conhecer a
fundo o modo de viver menorita, dado que o ignorava, pois se tornara
um irmo Menor em Santo Anto dos Olivais, periferia de Coimbra e,
em seguida, foi enviado como missionrio ao Marrocos, sem ter feito
o noviciado, como era praxe obrigatria para algum fazer-se religio-
so. Igualmente, acredita-se, tambm, que a ter elaborado o primeiro
rascunho geral do Opus evangeliorum ou Sermes dominicais. Mas, desde o
correr de 1223, o Frade olisiponense no parou um instante.
De fato, primeiramente, com a aprovao do Santo Fundador,
durante um breve perodo, o Frade portugus foi professor de Teolo-
gia dos confrades, no reinaugurado convento de Bolonha, mas, logo
em seguida (vero de 1224), foi enviado como missionrio na Ocitnia,
(Langue dOc), ou Provena, (Montpellier, Limoges e Toulouse) onde
era divulgada a heresia Ctara ou Albigense. Poucos anos depois, foi
Ver SOUZA, 2001, captulos IIII.
Neste estudo, utilizou-se a edio bilngue Sto. Antnio. Sermes Dominicais e Fes-
tivos. In: Obras Completas. Introd. trad. e notas de Henrique Pinto Rema. Porto: Lello &
Irmo editores, 1987. vols. I e II. Ao citar um trecho, sempre indicaremos o sermo, o volume
e a pgina em que se encontra.
Ver, CAEIRO, Francisco da Gama. Santo Antnio de Lisboa. Lisboa: INCM, 1995, v.
I, p. 191: ... O tema inicial do sermo dominical , em regra, constitudo por um texto do
Evangelho do dia; a estes Sermes chamou mesmo o Santo Evangelia ... Quase sempre o Santo
emprega a expresso tema para indicar o texto-base de todo o sermo... mas considera algumas
vezes como temas os textos bblicos sobre os quais assentam as vrias clusulas em que dividiu
o sermo e que funcionam tambm como sermes, embora sermes secundrios, no sentido
de partes integrantes do sermo principal....
Tais sermes, formalmente, num total de 20, encontram-se na maior parte do volume segun-
do da sobredita edio, em seguida ao sermo relativo ao 4 Domingo depois da Epifania. .
Souza
das, assim nesta obra se versam [so tratadas] quatro matrias,
os Evangelhos dos domingos, factos histricos do Velho Tes-
de
tamento, tais quais se lem na Igreja, os Intritos e as Epstolas
Jos Antnio de C. R.
da missa dominical... Coligi estas matrias e concordei entre si,
segundo o que me concedeu a graa divina e consentiu a fr-
gil veia de minha cincia pequenina e pobrezinha ... Fi-lo com
medo e pudor porque me sentia insuficiente para tamanha e in-
comparvel responsabilidade; venceram-me, porm, os pedidos
e o amor dos confrades, que a tal empresa me impeliam...
Sto. Antnio, 1987, p. 4-5.
8 Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., v. I, p. 744-745. Cf. tambm trechos semelhantes: Ser-
mo concernente ao Domingo da Sexagsima, ed. cit., v. I, p. 40-41; Sermo respeitante ao Domingo
da Paixo, ed. cit., v. I, p. 227-247; Sermo alusivo ao 3 Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., v. I,
p. 579; Sermo respeitante ao 13 Domingo de Pentecostes, ed. cit., v. II, p. 1338; Sermo referente
ao 3 Domingo depois da Epifania, ed. cit., v. II, p. 608; 12 Sermo festivo: Ceia do Senhor, ed. cit., v. II,
p. 835 e seguintes; 15 Sermo festivo: Inveno da Santa Cruz, ed. cit., v. II, p. 890 e seguintes. Ver
CAEIRO, 1995, v. I, p. 192193: [O Eplogo contm] ... em sntese muito curta, a matria do
sermo, ou de um de seus aspectos mais salientes, acabando-a com a invocao da misericrdia
divina ou com o louvor de Deus e dos seus atributos.....
10
Cf. os quatro sermes em louvor Nossa Senhora: Natividade de Maria Virgem Santssima;
Anunciao de Maria Virgem Santssima; Purificao Maria Virgem Santssima; Assuno de Maria Vir-
gem Santssima (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 901966), bem como o 8 Sermo festivo: Purifica-
o da Virgem Maria (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 747 e seguintes).
11
1 Sermo festivo Natal do Senhor (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 621622). Os versculos cita-
dos se encontram respectivamente, em Jr 4, 23; Is 55, 1. A ltima citao de Santo Agostinho
e se encontra em In Ioannis Ev, tractatus 8, 9, PL 35, col. 1455 1456.
12
Cf. boa parte dos 20 Sermones Festivi, conforme o calendrio litrgico, ento em vigor, entre
outros, o 2, em louvor a Santo Estvo Protomrtir, cuja festa celebrada em 26 de dezembro;
o 3 dedicado a So Joo Evangelista, cultuado em 27 de dezembro; o 19 em louvor a So
Joo Batista, cuja festa celebrada em 24 de junho, o 30 e ltimo, em louvor a So Pedro e So
Paulo, cuja solenidade era celebrada em 29 de junho.
Souza
obras de caridade.... 13
de
4) a frequncia regular, respeitosa e piedosa ao Sacramento da Peni-
Jos Antnio de C. R.
tncia. A propsito, eis um exemplo ilustrativo recolhido num sermo:
13
3 Sermo festivo S. Joo Evangelista, (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 663).
14
2 Domingo depois da Epifania (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 590-591). Ver tambm, Sermo
relativo ao 1 Domingo da Quaresma (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 87-112); Sermo concer-
nente ao 4 Domingo depois de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 617); Sermo relativo ao
18 Domingo depois de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 209); 1 Sermo festivo, Natal do
Senhor (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 617-627); 10 Sermo festivo, Quarta-feira de Cinzas (Sto.
Antnio, 1995, v. II, p. 804-809); 15 Sermo festivo, Inveno da Santa Cruz (Sto. Antnio,
1995, vol. II, p. 884-888).
15
2 domingo depois da Epifania (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 599): ... alguns por reverncia
ao corpo de Cristo, dizem: Senhor eu no sou digno e frequentemente se abstm da recepo
da Eucarstia; outros, porm, recebem-no de bom grado, honrando o corpo de Cristo.... Ver
igualmente, 4 Sermo festivo: Santos Inocentes Mrtires (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 687-688);
12 Sermo festivo: Ceia do Senhor (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 842-843).
16
15 Domingo depois de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. , II: 127/130). Cf. tambm Gl 6, 9.
17
Ver NOCILLI, A.G. La Posizione dei peccatori nella Chiesa Cattolica secondo S. Antonio
di Padova. In: Atti del Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio
di Padova. A cura de A. Poppi, Pdua: Ed. Messaggero, 1982, p. 125: ... Alla preghiera ocorre
aggiungere, come elemento insostituibile dell ascetismo, la lectio divina. Che la lectio divina occupi un posto
rilevante nel dinamismo spirituale della comunit, frate Antonio lo as per esperienza. Ai tempi di Agostino la
prassi di dedicare determinate ore del giorno alla lettura della Scrittura era ed rimasta in seguito unusanza
generale nelle case religiose ....
Souza
temporais, s os peam na medida em que so necessrios. E tambm
de
nisto mesmo sujeitem sempre a sua vontade vontade de Deus.... 18
Jos Antnio de C. R.
6) a observncia do Declogo, dos Mandamentos da Igreja e, em
especial, do mais importante de todos, o da Caridade Fraterna, concre-
tizado efetivamente por meio das catorze Obras de Misericrdia, (Sede
misericordiosos como vosso Pai do cu misericordioso)19, sete das quais se re-
vestem duma dimenso espiritual, isto , mais diretamente relacionada
com a alma e as outras sete duma perspectiva temporal ou material.
Por isso, ensinando concretamente seus ouvintes/leitores acerca
do que a Caridade Fraterna, o Santo olisiponense disse que ela :
18
5 Domingo depois da Pscoa (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 444-445).
19
Cf. respectivamente, Lc 6, 36; Mt 5, 7.
20
15 Sermo festivo Inveno da Sta. Cruz (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 897).
21
Domingo da Septuagsima (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 30).
22
2 Domingo depois da Epifania (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 603).
23
16 sermo festivo, Rogaes (Sto. Antnio, 1995, v. II: 918).
24
2 Domingo do Advento (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 458).
Souza
do com a recomendao de Paulo na 2 Epstola aos Corntios: ..., pela
de
consolao com que ns mesmos somos consolados por Deus, possamos consolar os
Jos Antnio de C. R.
que esto em qualquer angstia! 25, isto , quando esto desesperados ou
por causa de problemas pessoais, ou familiares, tais como, uma doena
prolongada dum parente ou o consumo de lcool, de drogas, uma gra-
videz inesperada etc., anim-los e dar-lhes fora etc.; 5 - perdoar de
corao os que nos ofendem. Com efeito, Jesus ensina: Se perdoardes
aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste tambm vos perdoar. Mas se no per-
doardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoar. 26 O perdo verdadeiro
no da boca para fora, brota do fundo do corao e est enraizado
no Mandamento do Amor; 6 - suportar com pacincia as adversi-
dades e as fraquezas do prximo. Aceitar os outros ao nosso redor,
tal como eles, efetivamente, so, isto , com suas limitaes, fraquezas,
defeitos, bem como as vicissitudes da vida requerem exercitar sempre
a pacincia, a fim de no praguejarmos ou, at mesmo, blasfemar, nem
tampouco, darmos patadas a torto e a direito; 7 - rogar a Deus,
tanto pelos vivos quanto pelos falecidos, a saber, por quem no se
conhece, pela converso dos pecadores, pelo papa, pelos bispos, pelos
sacerdotes, pelos religiosos e religiosas; pelos governantes do mundo
todo e da prpria nao, etc. e, tambm, pelos fiis defuntos, a fim de
que, purificados de seus pecados, venham a gozar da Viso Beatfica,
da Bem-aventurana eterna.
Entretanto, praticar sempre as Obras de Misericrdia, espirituais ou
materiais, igualmente ensina o Santo de Pdua, impe-nos que, tam-
bm, roguemos a Cristo nos conceda sua graa, pois, do contrrio,
poder-se assumir um comportamento como o tbio, o inconstante na
prtica do bem:
25
2Cor 1, 3-4.
26
Mt 6, 14-15.
27
2 Domingo depois da Epifania (Sto. Antnio, 1995, v. II, p . 615).
28
Cf. Lc 9, 13; Mt 10, 42.
29
Cf. Lc 3, 11.
30
GOMIS, Juan B. Ideas sociales de San Antonio. Verdad y Vida, v. 13-16, 1946, p. 674: ...
obraba para contemplar y contemplaba para obrar, es decir, viva en l, sin extinguirse por nada ni por nadie,
el espritu de la santa oracin, cual deben servir todas las cosas...el meollo de sus enseanzas consiste en dar a
conocer a Dios Padre, a Jesuscristo... y en elevar la condicin humana, especialmente la de los pobres, necesitados
e ignorantes....
31
Sermo alusivo ao Domingo de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 509).
Souza
consiste em ter compaixo pelo prximo e ser solidrio com ele, ser
de
examinada essa caracterstica da espiritualidade antoniana, convergindo
Jos Antnio de C. R.
a ateno para os ensinamentos e exortaes do Doutor Evanglico no
tocante ao desvelo e ao cuidado que o cristo praticante deve ter para
com os carentes. De fato,
32
20 Sermo festivo Apstolos Pedro e Paulo (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 985).
33
Sermo respeitante ao Domingo de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v., I, p. 507): ... O
estrume reunido em casa exala mau cheiro; disperso, fecunda a terra. Tambm as riquezas,
quando se acumulam sobretudo do que no seu, mas do alheio, geram o mau cheiro do pe-
cado e da morte. Se, porm, so dispersas pelos pobres, e restitudas aos seus prprios donos,
fecundam a terra do esprito e fazem-na frutificar ....
34
2 Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., v., I, p. 571. A propsito, cf. MELCIAS, Vitor. O pen-
samento social em Santo Antnio. In: Actas Congresso Internacional Pensamento e Tes-
temunho 8 Centenrio do Nascimento de Sto. Antnio. Braga: UCP/Famlia Franciscana
Portuguesa, 1996, vol. I, p. 280: [Sto. Antnio ensinava] ... uma economia do uso sbrio dos
bens, segundo a qual quem possui e usa legitimamente os bens no os pode legitimamente usar
para alm das suas normais e razoveis necessidades, porque ento deixam de ser seus....
35
9 Sermo festivo, Cadeira de So Pedro (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 795).
36
23 Domingo depois de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 375).
Souza
do sculo XIII, certamente em decorrncia da pregao dos Menores
de
e Pregadores, os leigos passaram a dar esmolas nas igrejas, destinadas
Jos Antnio de C. R.
especificamente aos pobres e tinham conscincia de que:
37
MOLLAT, M. Os pobres na Idade Mdia. Rio de Janeiro: ed. Campus, 1989, p. 125.
38
6 Sermo festivo Epifania do Senhor (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 720-721-722).
39
GOMIS, 1946, p. 691-692.
Souza
de
Essas ideias, isto , a obrigao de o cristo praticante dar esmo-
Jos Antnio de C. R.
las aos despossudos, bem como a recompensa eterna ao que faz isso,
est presente, mais uma vez, a dura realidade cotidiana do pobre de
ontem, de hoje e de amanh, os quais, para alm da fome, da sede, do
frio e das doenas de que padecem, no tm onde se abrigar, (incon-
tveis so, como se sabe, os moradores de rua das megalpolis ou os
residentes em condies precarssimas, na periferia das mesmas), que
escorraados da convivncia social, por causa da sua m aparncia e da
sua atitude que incomoda e que questiona, reiterada num trecho dum
Sermo Festivo, por meio duma bela comparao recolhida nas Escritu-
ras, mas tambm inspirada na natureza:
40
10 Sermo festivo Quarta Feira de Cinzas (Sto. Antnio, 1995, v., II, p. 803). Cf. tambm
Mt 25, 40; Agostinho, Sermo 217, 3, 1, PL 38, p. 1043; Isidoro de Sevilha, Etym. X, PL 82,
p. 384. A propsito, notemos, ainda, a oportuna reflexo de BECKHUSER, A. O po de
Santo Antnio. Grande Sinal Revista de Espiritualidade. v. 49, 1995, p. 200 : ... As obras
de misericrdia fazem parte da vida evanglica, da vida crist. Contando a parbola do bom
samaritano, Nosso Senhor nos ensina claramente que cada um deve aproximar-se do neces-
sitado, ser prximo daquele que necessita de compaixo. Fazer o que estiver em nossas mos
para auxili-lo em sua necessidade... se [a pessoa] no tiver fora nem para segurar o anzol ser
preciso dar-lhe tambm, e em primeiro lugar, o peixe... Claro que num segundo momento, ou
simultaneamente, vem a promoo, que consistir em criar todo um conjunto de condies
para que a pessoa tenha condies de se autopromover....
41
13 Sermo festivo Pscoa da Ressureio (Sto. Antnio, 1995, v. II, p. 853, 854, 855). Cf.
tambm, Ecl 11, 5; Is 17, 11; Na 3, 17; Ap 3, 20 e 1Rs 25, 3.
42
Sermo referente ao 9 Domingo depois de Pentecostes (Sto. Antnio, 1995, v. I, p. 791-792).
Souza
tia, de suum cuique tribuere, i. e., quando se d esmola no se
d nada de seu, devolve-se o que j do outro, o qual por estar
de
mais necessitado... adquiriu direito preferencial e prioritrio...43
Jos Antnio de C. R.
Certamente que o fato de Santo Antnio ter, com frequncia,
dado esmolas aos pobres e ter pregado aos fiis sobre como devem agir
em relao a eles, levaram o povo e os frades Menores a criarem aquela
prtica piedosa, relacionada com a angariao de donativo destinado
ao po dos pobres, bem como sua distribuio regular, todo dia 13
de cada ms, em suas igrejas e capelas conventuais (e noutras no fran-
ciscanas, tambm). 44 De fato, h uma estampa ou santinho que recorda
isso. Nela, como de costume, com o Menino no colo, sobre um Livro
aberto, o Santo est dando um po a um velho pobremente vestido.
Mas um episdio significativo referente ao Amor Fraterno e
misericordioso de Antnio pelos despossudos em geral e, neste caso
especfico, pelos endividados, com certeza, no o nico, fato esse re-
gistrado por uma fonte no hagiogrfica, o que tem um peso maior,
em vista de sua imparcialidade, ocorreu logo depois de sua pregao
quaresmal de 1231. Certamente tambm, com frequncia assdua, ele
visitava os prisioneiros e encarcerados na cadeia da cidade de Pdua e
de outras mais por onde andou anunciando a Palavra, por meio dos
exemplos e da pregao doutrinal.
Com efeito, o Santo apresentou-se aos governantes de Pdua,
no em seu prprio nome, nem tampouco no de sua Ordem, mas,
43
MELCIAS, 1996, p. 280-281.
44
SILVEIRA , I. O Santo Antnio do povo. REB, v. 55, 1995a, p. 586: ... A prtica do po
dos pobres ou po de Santo Antnio continua ativa, no apenas em igrejas franciscanas. Digam
os iluminados o que julgarem bem sobre a devoo popular a Santo Antnio, sorriam perante
os milagres que os devotos lhe atribuem, que eu, pouco iluminado, tenho por milagre con-
tnuo e atual de Santo Antnio o esprito de caridade, de solidariedade, de gratido que ele
continua provocando em muita gente. Mendigos que dormem na praa da S ou sob qualquer
abrigo bem cedinho vo apanhar o po que Santo Antnio lhes d atravs da portaria do con-
vento de So Francisco de So Paulo. Lembro o fato porque o presenciei muitas vezes....
45
TAPIA, B. O evangelismo de Santo Antnio de Pdua como expresso da espiritualidade
franciscana e popular. In: Antnio, homem evanglico na Amrica Latina - Compilao
das Conferncias apresentadas no 1 Congresso Antoniano Latino-Americano. Santo
Andr: Ed. Mensageiro de Sto. Antnio, 1996, p. 88, 89, 91: ... Antnio... No evadiu as im-
plicaes sociais do Evangelho; seu anncio foi veraz, no se alinhou politicamente nem com
o Imprio nem com as comunas. Seu impacto social, patrocinando a causa dos pobres e margi-
nalizados, nutre-se da conscincia da dimenso tico-moral e social do cristianismo, imitao
de Jesus Cristo, defensor do pobre e da viva frente a fariseus e negociantes da religio.
Amou o povo com um profundo amor de caridade. Um amor que, em contato com a dor
alheia, faz-se com-paixo e misericrdia, ternura e vigor, como o entende a religiosidade po-
pular ... seu compromisso franciscano com o povo, os menores, a gente simples anncio
do Evangelho como mensagem libertadora e humanizadora ... a ao social a consequncia
natural de um apostolado ....
46
GASPAROTTO, C. Perch SantAntonio venne a Padova. Il Santo. v. 5, 1965, p. 151: ...
questo poteva avvenire quando il debitore, o lavallatore, fosse di alto rango. Ma quando si trattava di un
umile, costretto da avverse congiunture a chiedere quel poco di denaro necessario a che la famiglia sopravvivesse
e ci specie nel duro periodo invernale il caso era spesso disperato e la famiglia, privata del suo capo, cadeva
in una miseria sempre pi nera....
47
SILVEIRA, I. Santo Antnio Evangelizador poderoso em obras e palavras. REB, 1995b,
p. 140: ... No dia 15 de maro de 1231, Sbado antes do Domingo das Palmas, encerrava Frei
Antnio a jornada de pregao quaresmal em Pdua. Pelo que dizem as duas Legendas ... foi
um sucesso. No podemos saber sobre o que pregou, mas podemos adivinhar que bateu duro
tambm na questo scio-econmica da repblica de Pdua. o que se deduz do Estatuto
que Pdua promulgou ento, no relatado pelas Legendas ...
Souza
nncia ou uma cesso ou uma alienao [dos mesmos] for feita
fraudulentamente tanto pelos devedores quanto pelos avalistas,
de
elas no tm valor nem devem prejudicar os credores. E quando
Jos Antnio de C. R.
a fraude no puder ser comprovada de modo evidente, estar
sob o julgamento do podest. E que este estatuto no venha a
sofrer nenhuma modificao, nem, alterao, nem diminuio
nem supresso, ou suprimido, ou por quem o deseje fazer isso,
por intermdio do concelho, mas, que permanea imutvel para
sempre...48
48
Cf. GLORIA, A. Gli Statuti del Comune di Padova dal secolo XII all anno 1285. Pado-
va, [s.n], 1873, p. 178. A traduo nossa.
49
CANTINI, Gustavo. Vita apostolica e azione sociale di S. Antonio. In: Atti delle due setti-
mane antoniane teneute a Roma e a Padova nel 1946. Vaticano: Poliglota Vaticana, 1947,
p. 247: ... Poi, dal Vangelo h alzato lo sguardo a colui che vive nel Vangelo; a Ges, Figlio di Dio e Figlio
delluomo. Lo h veduto amico dei deboli, dei poveri, dei dereletti, degli opressi, dei malati; h veduto che Ges
si avvicinato a loro per farli forti, per farli ricchi, per defenderli, per guarirli. Antonio andato dietro le
orme del Maestro divino, ad imitazione del suo Serafico Padre; e per il popolo... ha lavorato, faticato, immo-
lato interamente la sua vita senza concedersi mai un momento di requie.... Cf. tambm MOSER. A. A
concepo moral de Santo Antnio de Pdua. In: Antnio, homem evanglico na Amrica
Latina - Compilao das Conferncias apresentadas no 1 Congresso Antoniano Lati-
no-Americano. Santo Andr: Ed. Mensageiro de Sto. Antnio, 1996, p. 54: ... ainda que numa
linguagem e numa compreenso social bem diferentes da nossa, Santo Antnio no deixa de
interpelar as pessoas e as estruturas do seu tempo. Doutor Evanglico que , intui que o mundo
novo passa por essas transformaes no duplo nvel: pessoal e social.
Souza
SOUZA, Jos Antnio de C.R. de. O pensamento social de Santo Ant-
de
nio. Porto Alegre, EDIPCURS, 2001.
Jos Antnio de C. R.
______. Santo Antnio e a espiritualidade franciscano-menorita. Boletn de
Teologia. Buenos Aires, v. 35, p. 3-31, 2002.
TAPIA, B. O evangelismo de Santo Antnio de Pdua como expresso da
espiritualidade franciscana e popular. In: Antnio, homem evanglico na
Amrica Latina - Compilao das Conferncias apresentadas no 1
Congresso Antoniano Latino-Americano. Santo Andr: Ed. Mensageiro
de Sto. Antnio, 1996.
Abstract
Understanding the symbolism that permeates the work of a thinker like San
Juan de la Cruz is a fertile path for those seeking to understand what some
commentators call the mystical poetry. This understanding keeps in its sym-
bolic-narrative aspect the expression of a discourse that attempts to reveal
what remains hidden itself in the eyes of discourse and rational thought, that
is, the experience of mystery. This paper aims to present some relevant aspects
considering the Mystical basis of San Juan s works.
Keywords: San Juan - Symbolism - Medieval - Literature -Mystic
Introduo
Esse artigo parte da Dissertao de Mestrado intitulada Poesia e espiritualidade no Cntico espiri-
tual de San Juan de la Cruz defendida no Ncleo de Ps-Graduao em Letras/UFS/2011.
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe e professora de Lngua Espanhola do
Instituto Federal de Sergipe/Lagarto (IFS).
a) Escritos breves:
1) Poesias: dois romances, cinco poemas e cinco glosas.
2) Ditos de luz e amor: c
erca de 200.
3) Cautelas e Quatro Avisos: trata-se de normas para a convivn-
cia religiosa.
4) Epistolrio: em torno de 33 cartas e alguns fragmentos.
b) Obras maiores:
5) Subida do Monte Carmelo: trs livros.
6) Noite escura: dois livros.
7) Cntico Espiritual: duas redaes (CEa e CEb)
8) Chama de amor viva: duas redaes quatro estrofes.
O sculo XVI foi, seguramente, o sculo de Ouro do Amor. Como diz Jos Mara Moliner:
fue el siglo de los grandes enamorados, de los amantes perfectos, de los buscadores del ms
all. Fue el siglo de San Juan de la Cruz (MOLINER, 1991, p. 29).
Esta diviso segue a anlise de Federico Ruiz na Introduo geral da obra de Juan de la Cruz
(In: CRUZ, 1993, p.15).
Contexto e influncias
Observa Lpez Castro: dentro do processo transformador em que mstica e poesia transcor-
rem, o ser iluminado, o que sabe que Deus est presente no fundo da alma, faz todo o possvel
para obter uma percepo direta e imediata da realidade (1998, p. 16)
a mstica renana, para esvaziar-se, preciso negar, pois, para que Deus
possa habitar, a alma tem que estar livre de todas as coisas. No entanto,
o valor do misticismo de San Juan de la Cruz no consiste somente na
sua originalidade, mas na maneira como ele expressou e vivenciou a
mstica, ou seja, na qualidade potica das suas obras. Os comentrios
aos seus escritos, feitos por ele mesmo, surgiram da necessidade de jus-
tificar a expresso potica da sua experincia mstica. Diz ele no Prlogo
ao Cntico Espiritual:
Lpez Castro, ao analisar a relao entre mstica e poesia em San Juan, afirma que: o fogo
mstico da unio total, cuja luz interior arde no corao, dificilmente comunicvel atravs da
linguagem discursiva (1998, p. 65). Por essa razo, estaria justificado uso, por parte de San
Juan, de eptetos antitticos como, por exemplo: Cautrio suave, presenteada chaga, etc.
Vale ressaltar que, embora mstica e poesia, como afirma Rafael Boeta Calvo, andem juntas,
no h, em San Juan, uma confuso, isto , uma perda dos limites. Com isso o crtico chama a
ateno para o fato de que embora a linguagem seja insuficiente diante da infinitude de Deus, o
trabalho de construo potico no pode ser compreendido como algo que acaba no silncio e
nada mais. San Juan constri um discurso simblico que aponta para a superao do real senti-
do da vida, mas, ao mesmo tempo, revela a beleza que o mundo assume como imagem divina.
Diz Rafael Boeta Calvo: O smbolo e a imagem potica, em San Juan ou em quem seja, falam
de algo mais alm do senso comum ou do cotidiano das palavras, mas no as destroem nem as
submergem no vazio do silncio (2000, p. 41).
Consideraes finais
Antonio Alatorre define o maneirismo como uma escola que acumula e exagera nos adornos,
nos ornamentos e complicaes. (cf. ALATORRE, 2003, p. 83).
O tema da nostalgia decorrente da perda da originria condio da alma, a queda, constitui a
reflexo sobre a origem do homem e ser a base da reflexo sanjuaniana do Eros com impulso
que conduz unidade entre a Amada e o Amado como se ver mais adiante. Sobre esse aspecto
so importantes as palavras de Rafael B. Calvo, que diz: A nostalgia da origem divina, o ser no
absoluto anterior existncia; a esperana a de voltar ao absoluto divino como uma volta
origem mediante a unio mstica na noite ( 2000, p. 44).
Referncias
Vida, 1982.
______. Sueo de vuelo. Estudio sobre San Juan de la Cruz. Madrid:
Fundacin Universitaria Espaola, 1998.
MENNDEZ PELAYO, M., Estudios de crtica literria, 1 serie, 3 edi-
cin, Madrid, 1915.
NUNES, B. A. A clave do potico. So Paulo: Companhia das Letras,
2009.
SCIADINI, P. San Juan, o poeta de Deus. So Paulo: Palas Athena, 1989.
THOMPSON, C. P. Canciones en la noche: estudio sobre san Juan de la
Cruz. Barcelona: Trotta, 2002.
VALENTE, J.A. - LARA GARRIDO, J., Hermenutica y mstica: San Juan
de la Cruz. Madrid: Tecnos, 1995
ANEXOS 1
Cristo crucificado
http://2.bp.blogspot.com/_Dy7Z6ULpszg/TF58C6LGQ8I/AAAAAAAACok/
NEwRHPzQeB8/s1600/El_Greco,_St_Dominic_in_Prayer.JPG
Witold Skwara
Resumo
O Doutor anglico elabora a terceira via como o argumento proveniente
ex possibili et necessario, todavia, nos tempos mais recentes, ele considera-
do, como a prova a posteriori da contingncia do Mundo transmutvel para
a existncia do Ser necessrio, ou seja, de Deus. Hoje em dia, o argumen-
to contingente se encontra no centro de ateno, de modo que algumas de
suas interpretaes possuem um carter demasiadamente ecltico, quer na
Teodiceia moderna, quer na contempornea. De modo particular, a verso da
terceira via para a existncia de Deus, em geral, sofre uma transposio
da argumentao, do cosms para o anthrops, isto , para o campo da
antropologia filosfica, mais acessvel e mais legvel mentalidade atual, pela qual
o Ser Humano no s percebe a contingncia generalizada do Universo em
que reside mas tambm imerso, nela participa.
Palavras-chave: Toms de Aquino - Ser contingente - Ser necessrio.
Abstract: Doctor angelic elaborates the third way as the argument from
ex et necessary possibility, however, in recent times, it is considered as proof
a posteriori the contingency of the trans-changing world, to the existence
of the necessary, ie, God. Today, the argument contingent is in the center of
attention, so that some of his interpretations have a character too eclectic,
Theodicy in either modern or contemporary in. In particular, the version of
the third way for Gods existence, in general, suffers a transposition of the
argument, the cosmos for anthropos, i.e. to the field of philosophical an-
thropology, more accessible and more readable to the current mindset, where
the Human Being not only realizes the general contingency of the universe in
which it resides, but also immersed in it participates.
Keywords: Thomas Aquinas - Be contingent - Be necessary.
Doutor pela Universidade Catlica Portuguesa UCP, em Braga, Portugal. Professor da
Cosmologia e da Filosofia Medieval no Departamento de Filosofia da UFPE Recife. E-mail:
[email protected]
Tertia via est sumpta ex possibili et necessrio, quae talis est. Invenimus enim in rebus quaedam quae sunt
possibilia esse et non esse: cum quaedam inveniantur generari et corrumpi, et per consequens possibilia esse et
non esse. Impossibile esta utem omnia quae sunt tlia, semper esse: quia quod possibile est non esse, quandoque
non est. Si igitur omnia sunt possibilia non esse, aliquando nihil fuit in rebus. Sed si hoc est verum, etiam nunc
nihil esset: quia quod non est, non incipit esse nisi per aliquot inciperet esse, et sic modo nihil esset, quod patet
esse falsum. Non ergo omnia entia sunt possibilia, sed oportet aliquid esse necessarium in rebus. Omne autem
necessarium vel habet causam suae necessitatis aliunde, vel non habet. Non esta autem possibile quod procedatur
in infinitum in necessatis, quae habent causam suae necessitates sicut nec in causis efficientibus, ut probatum est
. Ergo necesse est ponere aliquid quod sit per se necessarium, non habens causam suae necessitatis aliunde, sed
quod est causa necessitatis aliis, quod omnes dicunt Deum (S. Th. p. I, q. 2, a. 3).
Witoldo Skwara
so contingentes e, portanto, so possveis, quer dizer, no possuem o
ser em virtude de sua essncia. Sim, elas existem, mas no necessaria-
mente, porque tambm podem no ser, e houve um tempo em que no
eram. Assim, sendo contingentes, as criaturas so possveis. Aqui, vem
a pergunta: como explicar a passagem da possibilidade existncia atu-
al e, portanto, a passagem quele grau de ser ou de necessidade que, de
fato, possuem? Se tudo fosse sempre possvel, teria havido um tempo
em que nada teria existido e agora nada existiria. Pois bem, se quiser-
mos explicar a existncia atual dos entes, isto , a passagem do estado
possvel ao estado atual, preciso admitir uma causa que no foi e no
, de modo algum, contingente ou possvel, porque ela sempre em
ato. E, essa causa se chama DEUS.
O ponto de partida deste argumento afirmao: no mundo que
nos circunda, existem os entes contingentes, numa constante mutabili-
dade e vulnerabilidade, naturalmente constatadas pela evidncia sensi-
tiva do sujeito cognoscente. Alm disso, esses entes, entendidos como
as substncias, so sujeitas lei da corrupo, segundo a qual todas as
coisas nascem e morrem.
Tal concepo acena para o hilemorfismo aristotlico, em que os en-
tes existentes permanecem limitados pelo tempo, pois aparecem quan-
do recebem a forma - elemento constitutivo, ou desaparecem, quando
o seu substrato fsico perde a forma, devido fragilidade do snolo
substancial estabelecido entre a matria e a forma. Esse quadro hi-
lemrfico ocorre, sem cessar no mundo da multiplicidade em que vive
o Ser Humano; melhor, no mundo sublunar; enquanto o supralunar,
constitudo de substrato etrico possui o carter imperecvel.
Toms de Aquino aborda o argumento contingente em duas obras: Suma Theologica (I, q. 2, a.
3.) e Summa contra Gentes, chamada tambm Filosfica (I, c. 15; II, c. 15); na primeira, o Doutor
Anglico interpreta a natureza do ente possvel pelo prisma das categorias cronolgicas, e, na
segunda, conjuga o argumento contingente com a teoria metafsica da causalidade.
A concepo do ente necessrio e contingente de Aristteles relacionada com a viso cos-
molgica de Ptolomeu, na qual se distinguem: o mundo sublunar transformvel e corruptvel
construdo pelos quatro elementos (a terra e gua, o ar e fogo), procedendo num movimento
Witoldo Skwara
po, as influncias de Aristteles11 e Avicena12, de Averrois13 e Maimni-
11
Alm dos aspectos fsicos, Aristteles envolve tambm em sua cosmoviso, os aspectos meta-
fsicos, enquanto identifica a necessidade com o ato do ser. Visto que no distingue claramente a
essncia da existncia, chega a entender o ato como a forma substancial (cf. Metaph., XII, 6, 1032
a 15-20;1039 b 25-30, 1050 b 1025).
Ao analisar o problema do movimento, Aristteles detecta nele os dois elementos constitutivos
do vir-a-ser; sempre co-ligados, a potncia e o ato. O ato do ser implica a existncia anterior da
potncia de qualquer mutabilidade; nesse sentido a potncia precede o ato. No obstante, disso
no resulta de que a potncia fosse ltima fonte do ser real. Para tanto, a potncia explica-se
apenas mediante o ato numa escala csmica. Por isso, deve-se reconhecer - quer no nvel lgico,
quer no nvel real -, o primado absoluto do ato em relao potncia, como tal (cf. Ibid., VIII,
8, 1049 b 5-27).
Esta tese alcana a expresso teista j que afirma a existncia do Ato Puro e Absoluto, prprio
somente natureza de Deus (cf. Ibid., XII, 7, 1027 b 29-30 (Metafizika. Trad. de K. Lesniak, War-
szawa, 1983, p. 315). E este ato foi entendido essencialmente como a forma. Porm a forma mais
perfeita o Intelecto. Por isso, Deus o Ato Puro e Absoluto , o Intelecto Supremo.
A influncia metafsica de Estagirita na elaborao da terceira via refere-se, principalmente,
teoria do ato e da potncia, assimilada e aprofundada por So Toms de Aquino, no contexto
existencial, consoante a concepo do Ser. A teoria sobre o primado absoluto do Ato Puro foi
interpretada como o primado da potncia da existncia, anterior ao ato da existncia. De acordo
com essa afirmao, justificada a existncia do Ser Necessrio, o que quer dizer, a Causa Efi-
ciente de todos os seres contingentes.
Alm disso, a influncia do Estagirita repercutiu tambm, at certo ponto, no campo cosmol-
gico, quando se estuda a concepo do Ser Necessrio e do ser contingente, contemplados pelo
pensador grego, numa perspectiva das convices ptolomaicas. No entanto, difcil questionar
o fato de que a terceira via foi inspirada totalmente - alm da metafsica -, tambm pela cos-
mologia aristotlica.
12
Foi Avicena que, pela primeira vez, distinguiu, com sutileza, na estrutura da criao os dois
elementos constitutivos: a existncia e a essncia. Isso permitiu-lhe perceber a diferena funda-
mental entre a natureza de Deus, - necesse esse, e a natureza dos entes criados, - possibilia esse.
O Aquinate aceita essa terminologia, qual, por sua vez, acrescenta ainda; non esse, ou seja, a
possibilidade da no existncia.
Em seguida, o pensador rabe fala sobre os dois tipos dos seres necessrios: um, necesse per se
Deus, cuja existncia infinita se traduz por si mesma, e o outro, necesse per aliud, cuja existn-
cia finita somente proveniente da Causa Eficiente, Plenitude do Ser -, adquirida do princpio
absoluto - principium essendi , que produz a existncia de todas as coisas. Em tal perspectiva
metafsica, Deus se ostenta como o artfice do universo. Dessa maneira, o criacionismo avice-
niano apesar de certa tonalidade neo-platnica , tornou-se um ponto de partida para o autor
cristo da terceira via, construda na contingncia e necessidade. (cf. STEENBERGHEN,
1961, p. 148) acentua o neoplatonismo de Avicena e denomina a sua doutrina como a metafsica
emantista.
13
Enquanto Avicena entendeu a contingncia no sentido metafsico encontrando o seu argu-
mento na distino real entre a essncia e existncia, ento, Averrois traduziu a contingncia no
sentido fsico percebendo o seu fundamento na posse da matria, isto , no efeito da sua poten-
cialidade. A semelhante interpretao encontra-se na terceira via de So Toms, na qual o ente
possvel descrito, de modo seguinte: Quod possibile est non esse, quandoque non est.
Essa afirmao acentua o fato de que o ente contingente delimitado temporalmente pelos mo-
mentos do nascimento e da morte, como tambm sujeito lei da transitoriedade. A limitao
temporal resulta, pois, da composio do ser, da matria e da forma, cujo snolo frgil e vul-
nervel. Tal afirmao referente natureza do ente contingente, principalmente, no seu aspecto
essencial, o resultado da influncia de Averrois.
14
Outra fonte que contribuiu para a origem da terceira via , certamente, a teodiceia de Moiss
Maimnides (P. Geny, E. Koplowitz e E. Gilson). Fiel ao monotesmo e idia da criao ex nihi-
lo, ele sustenta: se existe o mundo real que no eterno, mas contingente, preciso tambm
admitir - alm dos seres corruptveis -, a existncia de um ser incorruptvel e abstrato, em cuja
natureza no h nenhum elemento potencial, nem limitativo. Por consequncia, ele deve ser
imaterial e incorruptvel; o Ato Puro Deus pessoal. Estsa afirmao do pensador judeu, pre-
sente no argumento da terceira via autoriza-nos a constatar a sua influncia sobre a metafsica
de So Toms de Aquino (cf. KLOSAK, 1957, p. 102-104).
15
Os diversos autores contemporneos referem-se ao argumento de contingncia, sugerido por
G. W. Leibniz, em sua obra: Teodicia, onde se l: Deus a primeira razo das coisas, porque
elas ficam limitadas, assim como tudo quanto vemos e experimentamos; so contingentes e no
contm em si nada que lhes possa atribuir a necessidade prpria da existncia. evidente que o
tempo, o espao e a natureza - coligados entre si, uniformes intrinsecamente e indiferentes para
com tudo -, podiam assumir outros movimentos e outras figuras num sistema completamente
diferente. Convm, pois, buscar a razo da existncia do mundo que constitui o conjunto dos
seres contingentes, no alhures, mas numa substncia que possui a razo da existncia em si
mesma, sendo, pois, necessria e eterna (LEIBNIZ, 1846, p. 114).
Witoldo Skwara
bindo o carter real e, de certo modo, a organizao no tempo e no espa-
o; mesmo assim, no lhe pertence o atributo da necessidade.
Hoje a fsica constata a mutabilidade desses elementos qumicos,
quer natural, dentro das estrelas; quer artificial, provocada pelo homem.
Tambm a estrutura do tomo apresenta-se vulnervel, no interior do
qual, os eltrons podem ser emitidos para fora ou absorvidos para
dentro, ou ainda, as suas partculas nfimas so capazes, em determi-
nadas condies, de transformarem-se umas em outras, conduzindo
o corpo do tomo total desintegrao (por exemplo: nas estrelas,
nos aceleradores CERN 17, nas bombas ou usinas nucleares). A ins-
tabilidade do elemento e a do tomo demonstram a contingncia da
substncia fsica, como tal 18.
Algo semelhante acontece nas entranhas do gigantismo sideral
em que tudo se agita e tudo se interconecta, a comear pelas nebulosas
que produzem as estrelas e as galxias; as estrelas no so eternas, elas
16
J na Antiguidade os pr-socrticos Lucipo e Demcrito, conduzidos pelo gnio intuitivo,
sustentavam que o Universo constitudo pelos tomos; partculas indivisveis e invisveis,
eternas e imutveis. Com isso, eles abriram as portas na estrutura da matria - tecido csmico
-, para o conhecimento moderno, luz do qual, o tomo se apresenta como a multiplicidade
organizada dos seus componentes nfimos, sujeitos desintegrao.
17
O maior acelerador da Europa e do mundo (CERN Centre Europeen de Recherches Nu-
claires), perto de Genebra, contm uma cmara de coliso circular de eltrons e de prtons,
situada sob a cadeia montanhosa do Jura, a 100 metros de profundidade, num tnel com
27 quilmetros de comprimento. Ao longo de toda circunferncia, os imanes, distribudos a
espaos regulares, guiam as partculas a velocidades elevadas. No seio da cmara de vcuo, as
partculas sofrem os choques violentos e transformam-se em energia pura, reencontrando as
condies semelhantes que reinavam no Universo pouco depois do Big Bang. A bola de
fogo, assim formada, sobrevive um instante muito curto (10 -25segundo), mas depois a energia
liberada transforma-se em duas formas de matria; aparecem as novas partculas, como que sa-
das do nada (cf. WEINBERG, 1996, p. 241-152).
18
Em outras palavras, por um lado, a substncia csmica perde e esgota irrecuperavelmente
o seu potencial energtico, pela disperso e desintegrao, sob a forma de calor, caminhando
para a inrcia total e a morte trmica, quando chegar ao zero O absoluto, ou seja, - 273 C;
por outro lado, se verdade que o prton decai pulverizando o ncleo do tomo, ento esta
teoria significa que a substnciacsmica lentamente agoniza, como que sofrendo de um can-
cro, o qual afeta e consome a prpria matria. Tais constataes insinuam que, nem a matria,
nem a energia, nem o movimento so eternos, e se tero o fim, certamente tinham o comeo,
e, se ainda permanecem, porque so contingentes.
19
Cf. FILKIN, 1998, p. 80-84.
George Lematre (1894-1966), um padre catlico e o mais famoso astrnomo belga, o prin-
cipal cosmlogo terico a trabalhar no observatrio do Vaticano, advogava a tese do estado
inicial de alta densidade, a que chamou tomo primevo. Foi ordenado sacerdote em 1927, no
mesmo ano em que obteve o grau de doutor (PHD) e publicou o seu trabalho sobre a origem
do universo. Era uma figura popular na Academia de Cincias Pontifcias. Porm, os astrofsi-
cos daquele tempo demoravam muito a levar em considerao a sua teoria pioneira do tomo
Primevo.
20
Cf. HAWKING, 1996, p. 74.
21
TEILHARD DE CHARDIN, 1995, p. 115-140.
Witoldo Skwara
respondeu: no sou eu, mas foi ele quem me criou 22.
De maneira bela e original, expressa tambm a contingncia do
Homem, Blaise Pascal, aquele que intuiu, na estrutura do Universo, os
dois abismos: um, do infinitamente grande, e outro, do infinitamente
pequeno, isto , do imenso e do nfimo; confessando em sua obra: Les
Penses:
22
AGOSTINHO, 1964, p. 284.
23
PASCAL. Mysli.. nr 205, Warszawa, 1952, s. 87. In: STANISLAW, 1993.
24
HEIDEGGER, 1941, p. 186-188 e 267-277.
25
As biografias ilustram e testemunham a contingncia existencial de tantos homens que en-
frentavam o longo e penoso caminho em busca dos valores superiores e perenes, por exemplo:
Agostino de Hipona (Confisses), J. M. Newman (Apologia pro vita sua), Thomas Merton (Electet
Silence),...
26
KLOSAK, 1957, p. 120-121 e 127.
Witoldo Skwara
em relao do Universo e do Homem, cujo nome DEUS.
27
Entre as objees que surgem em torno do argumento contingente cabe mencionar aque-
las mais significativas: (1) a terceira via a camuflada prova ontolgica de So Anselmo (Kant);
(2) o argumento contingente refere-se exclusivamente esfera lgica (E. Whittaker); (3) o ser
necessrio um conjunto, ou seja, uma soma dos seres contingentes; (4) o ser necessrio
um devir contnuo (os adeptos de Bergson); (5) o argumento contingente comete o erro pe-
titio principii; (6) o ser necessrio a alma do mundo; (7) Kant na Razo Pura, mediante
o recurso das antinomias, pretende fragilizar e desvirtuar a validade da terceira via
28
Cf. SELVAGGI, 1988, p. 332-343.
29
SKWARA, 2009, p. 104 e 113-114. A breve explicao da pressuposta morte trmica do
estofo csmica encontra-se tambm na nota 18 deste artigo.
Witoldo Skwara
no existe por si mesmo - pois sua essncia no se identifica com a
existncia -, mas em virtude do Outro, cuja essncia se identifica com
o Ser, isto , Deus. Tal o ncleo metafsico que sustenta o argumen-
to contingente de Doutor Anglico. Trata-se aqui da redescoberta
do sentido profundo e, tambm, do fundamento ltimo daquilo que
existe; da estupefao diante do mistrio e do indizvel, do Universo e
de Deus.
A fora persuasiva do argumento contingente ultrapassou as
fronteiras da Filosofia Medieval e no cessa de repercutir, sob o vu
das diversas formas do pensamento humano nas pocas: moderna e
contempornea, entre os adeptos e opositores.
A validade do argumento questionam, em geral, os materialistas,
os pantestas, o criticismo kantiano, os militantes do evolucionismo
radical. Atualmente, quase todos representantes da filosofia crist re-
conhecem o valor do argumento proveniente da contingncia, mas se
registra no meio deles uma grande divergncia acerca da sua interpre-
tao: uns, ficam presos literalmente ao texto do Aquinate, enquanto
os outros tentam moderniz-lo, seja no aspecto cosmolgico, seja no
antropolgico.
Referncias
Witoldo Skwara
STEENBERHEN, Fernand Van. Dieu cach. Revue Philosophique. Lou-
vain, 1961.
TEILHARD DE CHARDIN. O fenmeno humano. Trad. de Jos Luiz
Archanjo. So Paulo: Editora Cultrix, 1995.
WEINBERG, Steven. Sonhos de uma teoria final. Lisboa: Gradiva, 1996.
E-mail: [email protected]