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EXPEDIENTE DESTA EDIÇÃO

Editora Gerente
Prof. Dra. Maria de Lourdes Alves Borges, Professora adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC, Brasil

Editora/es - Ontologia
Carlos Bubbols, Doutorando em Filosofia,
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Luísa Smaniotto Dias, Mestranda em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Victoria Hautz do Carmo, mestranda em Filosofia,
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil.

Editora/es - Ética e Filosofia Política


Thor João de Sousa Veras, doutorando em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Felipe Moralles e Moraes, doutorando em Filosofia,
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Victória Santos de Faria Veloso, mestranda em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil

Editores - Lógica e Epistemologia


Ana Stela Rossito Carneiro doutoranda em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Caio Adriano Silvano mestrando em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil
Nailane Koloski, doutoranda em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil

Conselho Editorial
Raquel Cipriani Xavier,
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Fabio Paulo Belli Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT);
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Carlo Zarallo Valdés, doutor em Filosofia,
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil

Comitê Editorial
Dr. Adriano Naves de Brito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, Brasil
Dr. Adriano Correia, Universidade Federal de Goiás - UFG, Brasil
Dr. Antonio Mariano N. Coelho, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Brasil
Dr. Cláudio Reichert do Nascimento, Universidade Federal do Oeste da Bahia - UFOB, Brasil
Dr. Eduardo Neves Filho, Universidade Federal de Pelotas - UFPEL, Brasil
Dra. Elizia Critina Ferreira, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira - Unilab, Brasil
Prof. Dr. Evandro O. Brito, Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Brasil
Dr. Joel Thiago Klein, Universidade Federal do Paraná - UFPR, Brasil
Dra. Rejane Schaefer Kalsing, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Brasil

Indexadores
Latindex http://www.latindex.unam.mx/buscador/ficRev.html?opcion=1&folio=24815
DOAJ - Directory of Open Access Journals http://www.doaj.org/
Periódicos CAPES http://www.periodicos.capes.gov.br/ InfoBase Index http://www.infobaseindex.com/
Diadorim http://diadorim.ibict.br/handle/1/905
Google Acadêmico https://scholar.google.com.br/
EDITORIAL

Anunciamos a publicação do primeiro número da Revista Peri de 2023. A revista é editada


por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de
Santa Catarina e seu 15° volume apresenta artigos e resenhas publicados em fluxo contínuo.
Valorizando a pesquisa e o desenvolvimento na educação, nosso número sai em meio a uma
conquista estudantil de grande valor, o reajuste das bolsas acadêmicas da instituição de
fomento do Estado de Santa Catarina, a FAPESC. No mês de abril de 2023 houve o reajuste
das bolsas da CAPES, que permaneceram sem aumento por dez anos. Saudamos os
pesquisadores brasileiros e reiteramos o compromisso com a divulgação científica no país.

Nesta edição, contamos com sete artigos e uma resenha.

Em seu artigo, Pedro Uchôas procura expor a leitura que Foucault faz da referência de
Sêneca a Demetrius e a forma como ela se configura central na descrição do “processo de
subjetivação” desenvolvido por Foucault.

Na contribuição de Plebani, o autor explicita, a partir do último seminário de Heidegger, que


a fenomenologia do ser do ente a partir da exposição do seu objeto temático e do seu modo
de proceder e a fenomenologia do inconspícuo (que aqui tentamos explorar como uma
fenomenologia do evento do ser).

O texto de Schmitz tematiza o conceito de angústia segundo o pensamento do filósofo e


teólogo alemão Paul Tillich, ressaltando a etimologia e contexto filosófico do termo.

Em seu ensaio, Caldat delimita alguns sentidos através dos quais pode ser dito que Luciano
de Samósata alcança, para além de outros autores do mundo grego clássico e helenístico,
novas vias para se pensar a questão do que é ser outro, estrangeiro, bárbaro.

Já Lovatto procura averiguar se a teoria da identidade narrativa de Paul Ricœur é capaz de


explicar as identidades formadas pelo discurso biomédico redutivista do nazismo, segundo
os estudos de Roberto Esposito sobre o enigma da biopolítica no caso da Alemanha nazista.

No artigo de Genovez temos uma análise da objeção ao uso de tecnologia em propostas para
reduzir/prevenir o sofrimento de animais selvagens por preocupação com o bem dos próprios
indivíduos afetados. A hipótese levantada é que essa objeção carece de consistência, uma
vez que intervenções tecnológicas em outros contextos são amplamente aceitas.

Na contribuição de Saraiva, o objetivo do trabalho é argumentar a favor de uma distinção


entre casos onde a ignorância é tomada como mera ausência de um bem epistêmico, como
conhecimento ou crença verdadeira, e casos que não podem ser descritos a partir, apenas,
da ausência desses bens.
Por fim, a resenha de Mioto analisa a primeira tradução brasileira de Crítica dos fundamentos
da psicologia, de Georges Politzer, com foco nas apresentações da obra.

Agradecemos a contribuição das pesquisadoras e dos pesquisadores que submeteram seus


manuscritos para avaliação.

Editoras e editores da PERI FLORIANÓPOLIS/SC. -

BRASIL V.15 N.02 2023


ISSN 2175-1811
COMENTÁRIOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO ELABORADA POR
FOUCAULT DA RELAÇÃO ENTRE SUBJETIVAÇÃO E VERDADE COM
REFERÊNCIA A DEMETRIUS E SÊNECA
NOTES ON FOUCAULT’S INTERPRETATION OF THE RELATION BETWEEN TRUTH AND
SUBJECTIVITY WITH REFERENCE TO DEMETRIUS AND SENECA

Pedro Damasceno Uchôas1

Resumo: Este artigo tem por objetivo expor a leitura que Foucault elabora da referência de Sêneca a
Demetrius e a forma como ela se configura central na descrição do “processo de subjetivação”
desenvolvido por Foucault. Isso é feito pelo autor, sobretudo, através da exposição da compreensão
estoica de viver bem e por meio da distinção entre conhecimentos úteis e inúteis para a vida sábia e
feliz. Tal exposição, central a seu propósito, apenas se torna compreensível adequadamente por meio
da recuperação do significado original da obra de Sêneca Sobre os benefícios e da proposta de tese
desenvolvida por Foucault

Palavras-chave: viver bem, verdade, subjetivação

Abstract: This paper has as aim to present Foucault’s central idea when he discusses Seneca’s
reference to Demetrius and the way it plays a fundamental role in Foucault’s description of the
“process of subjetification”. It is done by Foucault through the explanation of the general stoic
understanding of the idea of living well and the distinction between useful and useless knowledge of
life. That exposition, important for his purpose, becomes comprehensible only through the recovery
of the original meaning of Seneca’s On the Benefits and the thesis developed by Foucault.

Keywords: living well, truth, subjectivity

1
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de fora e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de
São Carlos. Estuda Schopenhauer, Idealismo Alemão e Filosofia Antiga. Bolsista CAPES/DS.

1
Introdução

No texto transcrito da Aula de 10 de Fevereiro de 1982, inclusa na obra Hermenêutica do


sujeito, Michel Foucault expõe o modo como uma citação de Demetrius feita por Sêneca no texto de
De Beneficiis é dotada de importância ímpar na história da relação entre verdade e subjetividade
(FOUCAULT, 2006, p. 289). Duas noções que, precisamente, integram o objeto principal de Foucault
nas aulas que ministra durante o período abordado pelo livro (1981-1982). Segundo o autor, a relação
entre verdade e sujeito se encontra dentre aquelas relações “que não estão suscitadas pela prática ou
pela análise histórica” (FOUCAULT, 2006, p. 4), e, ainda que muito importante para a compreensão
histórica do tema da subjetivação, ou do tornar-se sujeito, acabou por ser negligenciada.
Ao longo do texto, a relação aparece sob abordagens de diversos momentos históricos e sob a
figura principal da noção de “cuidado de si mesmo”, como, em geral, passagem transformativa do
conhecimento do mundo externo ao conhecimento e a atenção a si mesmo (cf. a exposição de A
primeira aula de 6 de janeiro de 1982). Mas o principal para este artigo é, em verdade, a abordagem
desenvolvida pelo autor na Aula de 10 de fevereiro, em que o problema da relação entre veridicção
(ou do dizer-verdadeiro) e prática do sujeito, logo após ser retomado, é discutido no contexto
específico em que sofre uma mudança de importância fundamental, a de configuração de um
conhecimento de amplitude etopoiética, ou da capacidade de transformação do sujeito através de
prescrições verdadeiras de ação, tal como veremos a seguir ao longo da exposição de Foucault acerca
da citação que Sêneca faz de Demetrius.
Em suma, Foucault introduz a importância de sua abordagem na história do pensamento
ocidental da seguinte maneira:
Começo por dizer que agora, como já indiquei, gostaria de colocar esta questão da relação entre o dizer-
verdadeiro e o governo do sujeito no pensamento antigo que é anterior ao cristianismo. Gostaria também
de colocá-la sob a forma e no quadro da constituição de uma relação de si para consigo, a fim de mostrar
como se formou nesta relação um certo tipo de experiência de si que, parece-me, é característica da
experiência ocidental, da experiência ocidental do sujeito por ele mesmo, mas igualmente da experiência
ocidental que o sujeito pode ter ou fazer em relação aos outros. Esta é pois a questão que, de modo geral,
quero abordar. É a questão do vínculo entre o saber das coisas e o retorno a si que vemos aparecer em certos
textos da época helenística e romana dos quais gostaria de tratar, questão em torno daquele antigo tema que
Sócrates já evocava no Fedro, ao perguntar se devemos escolher o conhecimento das árvores ou o
conhecimento dos homens (FOUCAULT, 2006, p. 282).

No entanto, ainda que a distinção entre coisas da natureza e coisas do homem, como
supramencionado na referência ao Fedro, seja aspecto importante da discussão do tema, não é ela
que, ao final, definirá a importância da transformação de si, mas um tipo distinto no qual não basta,
simplesmente, o conhecimento de si, mas uma transformação ocasionada por certos conhecimentos,

2
que, no caso da citação que faz Sêneca, configurará o poder dos preceitos verdadeiros, intimamente
dotados desse poder transformativo.
Dessa maneira, tratar de tal temática segundo a citação de Demetrius mencionada por Foucault
e citada por Sêneca é dar especial atenção ao momento em que a verdade do discurso e do pensar não
opera unicamente no território da ciência ou do discurso verdadeiro sobre o mundo, ou mesmo sobre
o ser humano, mas sim no modo como o sujeito é mudado de acordo com um modo característico de
saber, não voltado para as causas dos acontecimentos e da realidade do mundo, mas para a relação
que pode ser estabelecida entre esse conhecimento e o ethos humano. O comentário de Foucault à
passagem oculta alguns de seus elementos que, todavia, poderiam fornecer uma compreensão ainda
melhor do tema tratado. Por isso, uma exposição detalhada da intenção original presente em seu
aparecimento pode tornar ainda mais compreensível a tese principal de Foucault e revelar o modo
como sua inserção no texto favorece a apresentação das noções de “retorno a si mesmo” e de
subjetivação, teses foucaultianas. Para tal, deve-se apresentar, inicialmente, a maneira como Sêneca
interpreta o trecho de Demetrius e a relevância de sua menção para sua obra, para que, em seguida,
seja possível compreender o modo como Foucault se apropria do pensamento de Demetrius e de sua
aparição no texto De Beneficiis de Sêneca, da reflexão elaborada por ambos os autores.
O ponto de partida inicial de Foucault no texto é a ideia de que uma distinção entre os
conhecimentos do mundo e do homem não é suficiente para a discussão que, como mencionado por
ele mesmo na citação acima, se ambienta na época helenística e romana. Como também mencionado,
o início do problema e o gérmen da reflexão estão contidos no movimento do retorno a si mesmo
implicado no pensamento socrático, como abordado no mesmo texto por Foucault, ainda que não se
encerre completamente nele.
Em geral, a ideia de Foucault ao introduzir a citação de Demetrius encontrada na obra de
Sêneca De Beneficiis é mostrar que a relação entre “conhecimento da natureza/conhecimento de si
(retorno a si, conversão a si) é certamente muito mais complicad[a] do que parece” (FOUCAULT,
2006, p. 282). Fundamental frisar que essa é uma tese foucaultiana e será exposta exatamente dessa
maneira, como uma tese elaborada com o objetivo de oferecer uma leitura a mais completa possível
da história dos processos de subjetivação no pensamento ocidental, com especial destaque, nesse
momento do texto do autor, para a filosofia de Sêneca e sua referência a Demetrius.

3
Demetrius de Sêneca

Inicialmente, Foucault elabora um comentário sobre o significado de um trecho específico no


qual Sêneca faz uma citação a Demetrius, elogiando-o, e no qual apresenta a ideia de que para aquele
que pretende progredir na prática virtuosa2 não é necessário conhecer muitas coisas, nem dispor de
inumeráveis saberes filosóficos, mas ter para si como bem conhecidos poucos preceitos filosóficos,
disponíveis para um “uso rápido” (FOUCAULT, 2006, p. 282; SÊNECA, 2011, p. 166). Para ilustrar
essa ideia, utiliza-se do recurso à citação de um trecho em que Demetrius teria apresentado algo muito
semelhante através da imagem do “atleta” (ou da prática atlética em sua generalidade) e sua
capacidade não de memorizar todos os movimentos possíveis relativos a uma determinada prática,
mas somente aqueles que seriam verdadeiramente úteis no seu desenvolvimento. Haveria uma seleção
prévia de movimentos adequados e úteis em todos os momentos e aqueles que, pouco úteis e também
dotados de pouco alcance prático, não deveriam receber muita atenção e não favoreceriam a vitória
na prática em que estivessem envolvidos. Um lutador que, por exemplo, tivesse aprendido uma grande
quantidade de movimentos e golpes pouco úteis não possuiria qualquer superioridade em relação
àquele que, todavia, teve a oportunidade de se dedicar apenas aos golpes e movimentos mais úteis e
eficazes no combate.
Nele, a imagem conduz, pouco a pouco, a um ideal moral precioso para Sêneca e, como
Foucault menciona, importante para a história do pensamento ocidental acerca dos processos de
subjetivação. Os “movimentos” físicos mencionados na abordagem de Sêneca são, em verdade,
alegoricamente equivalentes ao saber de determinados preceitos fundamentais aplicáveis em geral ao
agir que não são e não devem ser supérfluos. Ainda, é preciso que esses movimentos possam ser
utilizados rapidamente, e que essa rapidez em seu uso seja fruto, em verdade, de um excelente
conhecimento de seu emprego nos casos em que devem ser empregados (FOUCAULT, 2006, p. 283).
No trecho citado, Demetrius diz algo que Foucault acaba por não mencionar em sua obra: que
um ou dois movimentos bem memorizados e bem utilizados são já o suficiente para fazer um bom
lutador, visto que ele os saberá usar nos momentos mais adequados, aqueles em que há uma grande
chance de utilizá-los e nos quais terão grande efeito (SENECA, 2011, p. 166). Pois “não importa
quantos [movimentos] ele sabe, contanto que ele saiba o suficiente para vencer” (Tradução nossa,
DEMETRIUS apud SENECA, 2011, p. 166).

2
Virtude, nesse sentido, significa especificamente uma vida em acordo com aquilo que acontece por natureza (Løkke,
2015, p. 19), uma vida propriamente feliz na qual se vive de acordo com a natureza em sua simplicidade e autenticidade,
afastado do sofrimento dos excessos e do sofrimento contínuo dos desejos incessantes (VICENTE; PEREIRA, 2016, p.
46).

4
A intenção original de Sêneca ao se referir a Demetrius e desenvolver uma explicação do
significado do que cita era o de dar continuidade à sua obra, dirigida então a Aebutius Liberalis
(GRIFFIN; INWOOD, 2011, p. 3), e de introduzir o caráter benéfico (em um amplo sentido) da
adoção de poucos preceitos para a vida moral e a conduta humana. Na perspectiva geral da obra,
contudo, o livro no qual a exposição acerca do tema ocorre não é considerado pelo próprio Sêneca
como parte da discussão central (SÊNECA, 2011, p. 113). Como define no livro quinto, todas as
quatro primeiras partes foram abordagens diretas do problema da obra, a saber, em que consistem os
benefícios, como devem ser recebidos e como praticados.
De modo geral, o benefício consiste em “uma ação benéfica, agradável pelo prazer em si que
proporciona” (SÊNECA, 2019, p. 131), não exatamente pela ação em seu conteúdo, mas
necessariamente em relação a um estado de ânimo. De maneira que “o benefício não consiste no que
se dá, e sim, no estado de ânimo do benfeitor” (SÊNECA, 2019, p. 131). Ainda, é componente
fundamental de um benefício que não somente quem pratica o ato benéfico esteja em tal estado de
ânimo, mas que aquele que é recebedor, pode-se dizer, ou beneficiado, participe do mesmo estado
(GRIFFIN; INWOOD, 2011, p. 4). Tendo discutido aquilo que caberia mais explicitamente à questão
do praticar e receber benefícios, Sêneca formula, ao fim, no primeiro parágrafo do livro quinto, essa
definição e anuncia o encaminhamento do restante do escrito, os livros cinco, seis e sete. A citação a
Demetrius e o recurso à imagem que ele evoca ocorre, desse modo, em um momento em que os
benefícios já não são o tema central da exposição, ainda que o exposto esteja em relação com o tema.
Será então dito aquilo que foi deixado sem dizer nos momentos anteriores do texto (SÊNECA, 2011,
p. 166) e que, de modo significativo, também possui importância o suficiente para que seja exposto
com alguma relação com o conteúdo geral da obra.
Logo após o desenvolvimento da explicação da citação de Demetrius, Sêneca delineia a
imagem do sábio, de grande relevância para o pensamento do autor, como, de certa maneira, correlata
à noção daqueles que executam poucos movimentos essenciais e da forma como ele é capaz de tudo
possuir, sem que tenha posse material de tudo. Sua posse advém, contudo, do não desejar. Pois, como
Sêneca pretende defender, é exatamente do desejo das coisas que resulta a falta, e da falta resulta, por
sua vez, a necessidade da posse de tudo (considerado um vício por meio da figura emblemática de
Alexandre e seu desejo desmedido pela posse). Sendo o sábio, sob esse aspecto, aquele que não deseja
e que se contenta com aquilo que é, que não espera por nada e não se atém ao futuro, não possui
oscilação de ânimo, e sim firmeza suficiente para viver sem grandes atribulações e incertezas
(SÊNECA, 2011, p. 169). Assim, a ideia do atleta exemplar e, de certo modo, inteligentemente
econômico na qualidade de seus movimentos mais fundamentais e úteis, culmina em outra ideia: a

5
do sábio e de sua economia profunda e sábia de viver adequadamente de acordo com a natureza, sem
sofrimento e sem movimentos extremos e desnecessários no curso da existência.

O problema e a visão de Foucault

Salvaguardada a intenção de Sêneca em seu texto, a interpretação de Foucault do trecho busca


legitimar, evidentemente, sua tese acerca da virada significativa ocorrida nesse período do
conhecimento das coisas materiais para o conhecimento de si, com um foco específico. A imagem do
atleta, ou do lutador, tem por objetivo, admite Foucault, produzir e expor um critério de utilidade, tal
como uma alegoria através da qual o bom lutador pode ser equiparado ao homem que vive
adequadamente, e a luta, a própria vida. Dessa maneira, parece haver aqui uma retomada da distinção
entre conhecimentos do mundo (como no caso do conhecimento das árvores citado por Sócrates, os
quais se desviam do seu principal interesse, o conhecimento dos homens) e conhecimentos dos
homens, ou aqueles que, à primeira vista, possam ter uso e possam esclarecer a vida humana. Como
se verá no caso dos poucos preceitos filosóficos que, posteriormente, serão aqueles que dirigem a
ação e moldam a subjetividade desse ser agente. Diz Foucault:
Negligenciemos todos os conhecimentos que são como aqueles gestos mais ou menos acrobáticos que
poderíamos aprender, inteiramente inúteis e sem utilização possível nos combates reais da vida. Guardemos
apenas os conhecimentos que serão utilizáveis a que poderemos recorrer facilmente nas diferentes ocasiões
da luta (FOUCAULT, 2006, p. 284).

A citação de Demetrius expõe, em seu desenvolvimento, quais são, na esfera da vida, aqueles
conhecimentos que podem ser considerados úteis ou não. Segundo ele, dentre os conhecimentos
inúteis, estão situadas “as causas das baixas do oceano e do fluxo das marés; porquê cada sete anos
marcam um ano estágio da vida [...]; porquê os destinos daqueles nascidos sob as mesmas
circunstâncias são diferentes [...]” (Tradução nossa, DEMETRIUS apud SENECA, 2011, p. 167).
Dentre os úteis, todavia, aqueles que dizem respeito à conduta humana e à vida “prática”, ou em um
tipo específico de postura diante da existência e das situações vividas. Segundo a tradução utilizada
por Foucault, tais conhecimentos podem ser definidos como um retorno a si mesmo e a busca pelo
que possui internamente, suas riquezas próprias e mais profundas: “Se o homem se fortaleceu contra
os acasos e elevou-se acima do temor; se, na avidez de sua esperança, não abraça o infinito, mas
aprende a buscar as riquezas em si mesmo [...]” (DEMETRIUS apud FOUCAULT, 2006, p. 285). E,
ainda, se tal sujeito, diante da relação com os deuses e com os homens se persuadiu de que “há pouco
a temer do homem e nada a temer de Deus”, e que “desprezando todas as frivolidades que tanto são
o tormento quanto o ornamento da vida, chegou a compreender que a morte não produz males e acaba

6
com muitos deles” (DEMETRIUS apud FOUCAULT, 2006, p. 185), então, ele terá se fixado em uma
espécie de “calmaria inalterável; e reuniu em si toda ciência verdadeiramente útil e necessária: o resto
não passa de futilidades do lazer” (DEMETRIUS apud FOUCAULT, 2006, p. 285).
Assim, Demetrius parece prescrever, segundo o que considera Foucault, os conhecimentos
cujos conteúdos são de importância para a vida e para a obtenção dessa calmaria que menciona
(análoga à sabedoria adquirida e praticada pelo sábio), e, desse modo, distingui-los dos que não
possuem utilidade para ela segundo seu conteúdo. Ou seja, que, por um lado, como na alegoria do
lutador, há determinadas ações e atitudes que não levam necessariamente à vitória e que podem ser
consideradas futilidades, carga desnecessária; e, por outro, há aqueles “movimentos” efetivos que, se
corretamente utilizados, mesmo que sejam um ou dois, podem levar à vitória, ou, aqui no caso, ao
estado de calmaria para além das “futilidades do lazer”. No entanto, como muito bem observa
Foucault, a distinção não ocorre necessariamente de acordo com o conteúdo dos conhecimentos, mas
pela sua forma.
Em primeiro lugar, eles não são distintos por tratarem de temas diferentes: uns da natureza e
do mundo “das árvores”, outros do ser humano (FOUCAULT, 2006, p. 286). Todos, se se puder
analisar bem, são temas concernentes ao ser humano, seja pela ideia de destino, seja pela sua
referência aos estágios da vida humana e de seu caráter específico (a duração desses estágios). Assim,
não é mais sobre essa classificação que os conhecimentos úteis e inúteis são utilizados, ainda que haja
uma certa referência a ela, como será apresentado. Em segundo lugar, pode-se perceber que aqueles
conhecimentos tratados inúteis possuem uma característica comum: são conhecimentos “pelas
causas” e precisam ser investigados, uma vez ocultados pela natureza. Ora, no mesmo trecho
Demetrius alude à ideia de que a natureza teria posto diante dos olhos, à mostra, todos aqueles
conhecimentos úteis, ocultando os de pouca utilidade (DEMETRIUS apud SENECA, 2011, p. 167).
Nas palavras de Foucault, “se a natureza tivesse considerado que estas causas, de um modo ou de
outro, poderiam ser importantes para a existência e para o conhecimento humanos, ela as teria
mostrado, ela as teria tornado visíveis” (FOUCAULT, 2006, p. 286). Assim, o próprio fato delas
estarem profundamente ocultas na natureza já configura um fator de utilidade ou não. A saber, se elas
fossem úteis para a vida humana, estariam mais evidentes e seriam “descobertas” mais fáceis de serem
feitas. Por outro lado, conhecê-las também não é um desperdício de tempo ou de vida, mas sua
característica principal consiste em serem dotadas de valor simplesmente como ato de descoberta e
não pela utilidade que possam ter para o viver e para o estado de calmaria. Ou, “porque se a quisermos
conhecer, ao conhecê-las não obteremos mais do que algo suplementar [...]” (FOUCAULT, 2006, p.
287).

7
Dessa maneira, a distinção que Demetrius faz (em acordo com o trecho citado por Sêneca) e
que Foucault verá como privilegiada é aquela entre os conhecimentos que são úteis para a vida e para
o agir do ser humano e aquelas que não são, como conhecimentos ornamentais. Estas seriam, em
geral, obtidas pela investigação do mundo a partir de suas causas, como razões por meio das quais
algo é o que é ou pode ser conhecido tal como é. Assim, pode-se conhecer a causa das marés, e assim
por diante, sem que, no entanto, tais conhecimentos possam ser funcionais para a vida humana e,
desse modo, para o nós que representa a humanidade. Em outras palavras, os conhecimentos causais
são sempre de outras coisas que não os seres humanos: um ser humano conhece a causa da oscilação
das marés, e, assim, pode melhor compreender tal fenômeno, mas não necessariamente a si mesmo,
ou algo sobre seu modo específico de agir, ou sobre sua relação com os seres humanos que o cercam.
Por outro lado, aqueles que Demetrius denomina como sendo os conhecimentos úteis revelam, como
observa Foucault, uma característica relacional. Nele são estabelecidas relações entre os deuses, o
mundo (em sua ordem dada e conhecida), os outros homens e os seres humanos (ou o nós)3.
Desse modo, eles se dirigem sempre ao ser humano e, por isso, traz consigo uma espécie de
autoconhecimento. Ora, aquilo que o ser humano individual pode estabelecer e constatar sobre si
mesmo torna-o mais ciente de si e, ao mesmo tempo, dos outros seres humanos, de como a
humanidade habita o mundo e do que deve ou não fazer nele para que seja conduzida a um
determinado objetivo, que, no entanto, é objetivo individual. A constatação e internalização desses
conhecimentos leva o indivíduo a uma vida “melhor e mais feliz” (FOUCAULT, 2006, p. 299, Cf.
Nota de rodapé nº 14). E, aqui, Foucault vê uma mudança significativa no modo de se tratar a
subjetivação e, nesse caso específico, a internalização de dados conhecimentos e de seu papel na vida
humana: os conhecimentos “úteis”, por assim dizer, possuem um poder mutatório e, por isso mesmo,
podem ser formulados como prescrições. Por prescrições Foucault parece compreender a
possibilidade latente de um conhecimento tornar-se diretivo da vida, e, assim, uma vez possuído por
alguém pode ter um poder de direcionamento em sua ação. Conhecer o mundo e saber de suas causas
poderia, se bem considerado, possuir um poder de mudança, se tomado como aquilo que conhecido
esclarece os arredores e torna familiar e não familiar que cerca a todos. No entanto, aquilo que
Foucault diz aqui, junto com Demetrius, é que um certo modo de conhecer pode ser transformativo
da ação e da vida por meio de sua capacidade de ser empregada diretamente na direção do existir e
do agir, em oposição a algo meramente “ornamental” (Sobre isso, Cf. FOUCAULT, 2006, p. 289).

3
É curioso perceber como, nesse caso, a ideia que Sêneca pretende veicular difere radicalmente da relevância que
Aristóteles atribui à investigação causal e à profundidade oriunda do modo científico de conhecimento do mundo
(ROSS, 2004, p. 46).

8
Por conseguinte, os saberes úteis devem tanto ser relacionais, sem que se perca de vista a
instauração do elo que os liga à vida humana e, de certo modo, os afasta dos conhecimentos de causa,
quanto formuláveis em prescrições. O que até se mostra claro na ideia de que um conhecimento
diretivo deve ser prescritivo para que seja seguido ou adotado. Ora, os conhecimentos causais sobre
o mundo apenas descrevem e trazem a luz fenômenos pouco conhecidos e, por isso, ocultos, mas
nada prescrevem ao ser humano.
E sobre isso, mais estritamente, Foucault compõe sua tese acerca do local privilegiado das
distinções entre conhecimentos elaboradas por Demetrius. Diz:
Creio que aqui se acha uma das caracterizações mais claras e mais nítidas daquilo que me parece ser um
traço geral de toda a ética do saber e da verdade que encontraremos nas outras escolas filosóficas, isto é,
que a divisória, o ponto de diferenciação, a fronteira que se estabelece, não concerne, repito, à distinção
entre coisas do mundo e coisas da natureza humana: a distinção está no modo de saber e na maneira como
aquilo que conhecemos sobre os deuses, os homens, o mundo, poderá ter efeito na natureza do sujeito, ou
melhor dizendo, na sua maneira de agir no seu êthos (FOUCAULT, 2006, pp. 289-290).

Para melhor descrever sua posição diante da distinção de Demetrius, o autor ainda faz uso da
palavra grega ethopoieîn, que já teria sido utilizada por Plutarco e por Dionísio. Ela veicula a ideia
de algo dotado da “qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo” (FOUCAULT, 2006,
p. 290) segundo a forma de seu agir. Ou seja, que o indivíduo dotado desse algo, no caso o
conhecimento “útil” relacional, possa vir a agir distintamente daquele que não o possui. Sendo assim,
um conceito importante no que toca ao que até então vinha sendo discutido. O que parece ser o caso
é que o conhecimento inútil, ou sem uso para o agir, não possui potência para mudança no “modo de
ser” do indivíduo, e, assim, não modifica seu agir. E, dessa maneira, Foucault admite a possibilidade
de toma-lo não simplesmente como “inútil”, mas como não-etopoiético. Assim, a “revolução” de
Demetrius é aqui unida à ideia por detrás do conhecimento etopoiético, cuja principal definição reside
em constituição de êthos, ou de modificação e direcionamento do agir. Somente por meio dele pode
o indivíduo adquirir um saber que se converterá em um modo de ser, e que, sendo assim, o
transformará. Nisso consiste, prima facie, a subjetivação à qual se refere a descrição da aula em
questão (Cf. FOUCAULT, 2006, p. 282). O que quer dizer que, do ponto de vista do autor,
subjetivação implica em uma transformação de si, nesse caso, por meio do agir oriundo de uma
prescrição, produto de reflexão e de constatação. Mais uma vez, o conhecimento inútil só possui
menos valor se estabelecido como não relacional, e, por conseguinte, como meramente descritivo dos
“fatos do mundo”, e não prescritivo. Mesmo que verdadeiro, não pode mudar a subjetiva que o pensa
no que concerne ao seu agir. Por outro lado, um conhecimento etopoiético tem por característica a
verdade da prescrição (se fosse falso não seria prescrito), estabelecendo, assim, uma profunda relação
entre verdade e subjetivação, a partir do que o sujeito dotado da prescrição verdadeira do saber

9
relacional, pode, agora, tornar-se mais feliz e viver uma vida mais bem aventurada através do seu
agir, reflexo do prescrito.
Dessa maneira, como resultado do que pensa Demetrius, poucos preceitos que podem ser úteis
e que transformam, em sua verdade, o sujeito que age de acordo com eles são muito mais valorosos
do que o conhecimento acessório acumulado, que, ainda assim, pode ser utilizado em conversas e, de
modo geral na vida, mas pouco útil para a transformação do agir do sujeito e, desse modo, de seu
processo de tornar-se sujeito e possuir a si mesmo. O objetivo último de tudo isso será a condução do
sujeito a uma vida de um determinado tipo, a tarefa de moldar-se e de “cultivar seu próprio eu”
(FOUCAULT, 2006, p. 291).

Conclusão

O problema da relação entre veridicção e subjetivação no pensamento cínico, tal como


veiculado pelo trecho de Demetrius, não toca mais somente na distinção entre aqueles conhecimentos
que concernem ao mundo e aqueles que concernem aos seres humanos. Ele é complexificado, pensa
Foucault através da elaboração de sua tese, por meio da diferenciação entre os saberes das causas que,
por sua vez, são acessórios à vida, e os etopoiéticos, ou de um tipo verdadeiro, mais evidentes e
capazes de transformar ativamente aquele sujeito que os põe em prática e age diferentemente de antes.
Tais sujeitos são mudados através do próprio agir e se direcionam, cada vez mais, para um estado
distinto de calmaria em que os preceitos verdadeiros conhecidos ativamente dirigem a vida e, esses,
sim, podem trazer à tona a vitória sobre a luta que ela é. Fora as “futilidades” do viver, os preceitos
são o que há de mais fundamental e compõem os conhecimentos úteis. Assim, se isso for mesmo
possível, os saberes do mundo são agora deslocados para os saberes acessórios, ou inúteis, mesmo
que incluam em si a investigação das causas que se aplicam ao homem e a temas a ela relativos; e os
saberes do homem, como eram tratados por Sócrates, passam agora a ser denominados, de modo
menos abrangente e mais peculiar, aos saberes identificados como etopoiéticos, ou aqueles que além
de tratar do ser humano, em seu conteúdo, são também transformativos e constitutivos do sujeito, e,
sendo assim, os convertem a si mesmos. São, em outras palavras, preceitos que subjetivam.
Dessa forma, a alegoria evocada por Sêneca e originalmente desenvolvida por Demetrius
funciona para Foucault como forma de constatação do momento específico em que o pensamento
ocidental sofre uma alteração significativa e, aproveitando-se da discussão elaborada por Sêneca,
desenvolve sua própria interpretação do trecho, utilizando-se dele para reforçar sua tese: a de que o
retorno a si tem início, de fato, com o privilégio da atenção que o sujeito dirige para sua própria

10
interioridade e que, além disso, operam como mecanismos transformadores de sua vida. Se, por um
lado, a intenção original de Sêneca permanece restrita ao seu texto De Beneficiis, por outro, sua
exposição adequada revela a forma específica como ela pode ser ressignificada por Foucault para,
assim, ser realocada argumentativamente em A Hermenêutica do sujeito.
Posteriormente, Foucault virá, na mesma aula, a definir como na filosofia epicurista haverá
um outro conceito capaz de abranger em si o saber da subjetivação, o conceito de physiologia. Em se
tratando do saber qualificado por Demetrius como “inútil”, Foucault havia introduzido o conceito de
ethopoieîn, tomando-o para que a distinção abordada até aqui entre os conhecimentos pudesse ser
melhor compreendida em seu poder de subjetivação. O conceito de physiologia será capaz de unir
tanto a ideia de aquisição de um saber da natureza, ou até mesmo em um sentido de coisas externas,
e da transformação subjetiva, como uma preparação para a vida no mundo, “para todas as
circunstâncias possíveis da vida com que viermos a nos deparar” (FOUCAULT, 2006, p. 293). Assim,
ainda que o conceito empregado pelos epicuristas possa conservar em si a completude da abordagem
de um saber da natureza unido ao saber do homem, ainda relacional, o que cabe aqui é exatamente a
apresentação da importância do pensar que Demetrius, segundo Foucault, inaugura e que, como no
caso dos epicuristas, transformará a distinção antes empregada por Sócrates entre conhecimento da
natureza e conhecimento do ser humano. Evidentemente, Sêneca permanece fiel à ideia central de
apresentar através dessa introdução ao livro sétimo o dilema referente ao sábio estoico possuir todas
as coisas e, de certo modo, não possuir materialmente tudo o que pode. Em seu texto, a imagem
evocada por Demetrius visa trazer à guisa de discussão a imagem do sábio e introduzir, assim, o ideal
que já permeia a sua obra da vida sem excessos em acordo com a natureza.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma


Tannus Muchail. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006.
GRIFFIN, M.; INWOOD, B. Introduction. In.: SENECA. On Benefits. Translated by Mirian Griffin
and Brad Inwood. Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 1-14.
LØKKE, H. Knowledge and virtue in early Stoicism. London and New York: Springer, 2015.
ROSS, D. Aristotle. With and Introduction by John L. Ackrill. London and New York: 2004.
SENECA. Sobre os Benefícios, livro primeiro. Tradução do latim de George Felipe B. B. Borges e
Brenner Brunetto O. Silveira. Revista de Filosofia HYPNOS, São Paulo, v. 42, 2019, p.
114-154.

11
_______. On Benefits. Translated by Mirian Griffin and Brad Inwood. Chicago: The University of
Chicago Press, 2011.
VICENTE, J. J. N. B.; PEREIRA, C. A. Virtude e Felicidade em Sêneca. Revista Urutágua –
Revista Acadêmica Multidisciplinar. Universidade Estadual de Maringá, n. 34, 2016, p. 44-
54.

12
FENOMENOLOGIAS EM HEIDEGGER: DO SER DO ENTE AO EVENTO
DO SER
PHENOMENOLOGIES IN HEIDEGGER: FROM THE BEING OF BEINGS TO THE EVENT
OF BEING

Anderson Kaue Plebani1

Resumo: A despeito da longa jornada produtiva de Heidegger – que contabiliza pelo menos seis
décadas –, em geral os comentários dedicados à compreensão da fenomenologia heideggeriana se
detêm naquela fenomenologia elaborada no tratado Ser e Tempo e em outras oportunidades ainda na
década de 1920. Há uma razão para isso: a partir da referida década, Heidegger progressivamente
deixa de fazer referências a questões de método. Contudo, ao mesmo tempo em que isso não deve
ser tomado como um abandono da fenomenologia, será válido considerar que o método tenha
permanecido o mesmo durante mais de 60 anos de pensamento? O presente artigo visa destacar
algumas modificações ocorridas no como se pensa a questão do ser. Com esse intento, o artigo
explicita: (1) a fenomenologia do ser do ente [1927] a partir da exposição do seu objeto temático e
do seu modo de proceder; (2) a fenomenologia do inconspícuo [1973] (que aqui tentamos explorar
como uma fenomenologia do evento do ser), ensaiada no último seminário de Heidegger, e para a
qual também tentaremos expor seu objeto temático e modo de proceder.

Palavras-chave: ontologia, método, inconspícuo, Ereignis

Abstract: Despite Heidegger’s extensive and productive journey – which amounts to six decades –,
scholar commentaries on heideggerian phenomenology usually restrain themselves to that
phenomenology explored in Being and Time and on other occasion along the 1920s. They have their
justification: after that decade, Heidegger progressively ceases to give us remarks on method. But
two things must be considered. First, it doesn’t mean that phenomenology has been abandoned by
Heidegger; and second, it also shouldn’t mean that his phenomenology has stood still through those
sixty years of thinking. The present article tries to depict possible transformations that belong to
Heidegger’s way of thinking. With that in mind, we will present: (1) the phenomenology of being of
beings [1927] by treating its thematic object and its mode of procedure; (2) the phenomenology of
the inconspicuous [1973] (which we explore here as a phenomenology of the event of being
[Ereignis]) rehearsed in Heidegger’s last seminar, to which we will also treat its thematic object
and its mode of procedure.

Keywords: ontology, method, inconspicuous, Ereignis.

1
Bacharel e mestre em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente doutorando em filosofia pela
mesma universidade.

13
Introdução

A filosofia lida com coisas. As coisas com as quais lida a filosofia nem sempre são óbvias.
Coisas não-evidentes podem assim ser porque pouco nos importam; ou porque, ainda que nos
importem muito, dificilmente nos atentamos a elas. Ao lidar com coisas não óbvias, a filosofia
precisa ser capaz de, no mínimo, mostrar isso com o que ela lida. Tornar evidente o que de partida é
não-evidente. Ainda melhor se a filosofia for capaz de explicitar o modo como ela mesma mostra
isso que, a princípio, não é óbvio. Quando procede assim, a filosofia nos fornece um método ou
caminho que facilita a manifestação daquilo que não nos é evidente – mas que pode nos ser
importante.
Possivelmente, a coisa mais importante em todo o expediente filosófico de Martin
Heidegger é a recolocação da questão do ser. Neste caminho, outros temas se tornam necessários.
Vamos destacar neste artigo outros deles: a tematização do ser do ente [Seins des Seiendes] e o
pensamento do evento do ser [Ereignis]. Duas coisas nada óbvias – seja para o leigo ou para o leitor
experiente –, mas tomadas pelo filósofo como importantíssimas no caminho de questionar o ser.
Como dizíamos, tão relevante quanto mostrar as coisas com as quais lida a filosofia, é explicitar
também o como se mostra tais coisas. Por isso, o presente trabalho se ocupa em explicitar não só o
que o filósofo tentou mostrar com as noções de ser do ente e evento do ser, mas principalmente em
explicitar o como o filósofo tentou trazer tais coisas à manifestação. Nesse sentido, o artigo visa
expor a fenomenologia do ser do ente e a fenomenologia do inconspícuo (ou fenomenologia do
evento do ser). Para isso, o artigo está dividido em duas partes: a primeira parte dedicada à
exposição da fenomenologia do ser do ente, na qual se elabora uma interpretação do §7 do tratado
Ser e Tempo, publicado em 1927, e do §5 de Os problemas fundamentais da fenomenologia, curso
ministrado no mesmo ano; a segunda parte é dedicada à exposição da fenomenologia do
inconspícuo, concentrando-se principalmente na terceira aula do Seminário de Zähringen, proferida
em 1973.

1. Fenomenologia e ser do ente

Nas várias ocasiões em que Heidegger elabora sua compreensão de fenomenologia ainda na
década de 1920, o filósofo decompõe a expressão (fenomeno-logia) e expõe primeiro os
significados de cada um dos radicais aí contidos, realizando após isso uma síntese que exprimiria o

14
seu sentido geral. No caso de Ser e Tempo, há um trecho que, por mais intrincado que possa parecer
dado o momento antecipado em que o citamos neste artigo, pode ainda assim nos servir como guia
nesta primeira parte de nosso trabalho. O trecho enuncia três perguntas: “[1] mas em relação a que o
conceito formal de fenômeno deve ser desformalizado [2] para se tornar conceito fenomenológico,
[3] no que o fenomenológico se distingue do conceito vulgar?” (HEIDEGGER, 2012a, p.121)2.
Além das três questões, uma série de conceitos e noções são simultaneamente anunciadas neste
trecho: conceito vulgar de fenômeno; conceito formal de fenômeno; aplicação do conceito formal
de fenômeno; e conceito fenomenológico de fenômeno. Antes de se endereçar àquelas questões,
portanto, é preciso esclarecer esses conceitos e noções. Uma vez feitos tais esclarecimentos, a
resposta à cada uma das perguntas poderá ser dada, e isso trará o que aqui se busca: uma
compreensão de o que significa fenomenologia para “o primeiro Heidegger”.

1.1. Fenomenologia: fenômeno e discurso

A começar pelo conceito vulgar de fenômeno [vulgäre Phänomenbegriff]. Este pode ser
entendido tal como quando se usa a expressão “um fenômeno” e nisto se refere aquilo que se
mostra, uma coisa, um ente. Em seu sentido vulgar, portanto, “fenômeno” meramente refere aquilo
que está disponível para a experiência. É importante ressaltar que, por mais que seja qualificado
como “vulgar”, não há qualquer julgamento aqui. Não há um sentido pejorativo como se a noção
vulgar pudesse ser equivocada por alguma razão. Fala-se em “vulgar” porque é a noção corrente e
mais simples, menos qualificada. É claro que, adiante, veremos que não é esse o sentido de
“fenômeno” que Heidegger atribuirá à fenomenologia. De qualquer forma, o conceito vulgar de
fenômeno desempenha, na elaboração heideggeriana, um papel introdutório de conferir um sentido
inicial à noção de fenômeno, que progressivamente é complexificado. O primeiro passo neste
complexificar é a formalização deste conceito.
Quando esse algo que se mostra (mero fenômeno) permanece indefinido, quando não há
nada que o conceito vulgar de fenômeno esteja referindo, de modo a ficarmos apenas com uma
ideia abstrata de fenômeno como o “mostrar-se em si mesmo”, então se tem um conceito formal de
fenômeno [formale Phänomenbegriff]. Formal precisamente porque desprovido de conteúdo. Tal

2
Doravante cita-se as obras de Heidegger empregando a nomenclatura canônica: “GA” para referir a coleção das
“Obras Reunidas” [Gesamtausgabe], seguida do número do volume, seguida da paginação. Nessa referência,
portanto, fica-se com a seguinte expressão: GA2, p.121.

15
conceito, a ser assim, não indica um algo que se mostra, mas visa apenas o mostrar-se em si mesmo;
o mostrar-se pura e simplesmente; o mostrar-se abstraído de qualquer conteúdo (abstraído do
mostrado); o mostrar-se absolvido também de qualquer categorização teórica. Uma advertência:
essas noções formais/abstratas não são levadas adiante por Heidegger, apenas lhe servem durante o
caminho de exposição de o que significa fenomenologia, logo, para nós é importante que também
estejam esclarecidas.
Além de falar em conceito vulgar e em conceito formal de fenômeno, ainda é elaborado em
Ser e Tempo a chamada “aplicação do conceito do formal de fenômeno” [Anwendung der formale
Phänomenbegriff] – traduzido também por “desformalização do conceito formal de fenômeno”. O
que está subentendido em tal aplicação [Anwendung] não é o retorno do conceito formal a um mero
fenômeno em específico, mas sim a roupagem teórica que o conceito formal de fenômeno pode
receber. Em outras palavras, o que pode significar no interior de uma teoria a noção de “aquilo que
se mostra em si mesmo”. É aqui que Heidegger, a título de exemplo, trata da aplicação kantiana do
conceito formal de fenômeno: nessa aplicação, o que se mostra (fenômeno) é entendido como o
resultado de uma síntese entre a matéria oriunda da intuição empírica e as formas do entendimento
(conceitos)3. O mostrar-se em si mesmo (o conceito formal de fenômeno), na aplicação de Kant, é a
referida síntese enquanto tal. A aplicação operada por Kant nos entrega tais categorizações teóricas
do conceito formal de fenômeno, ou seja, “desformaliza” esse conceito no interior daquelas noções
teórico-filosóficas. Já na aplicação ou desformalização operada por Heidegger, o conceito de
fenômeno torna-se, pura e simplesmente, “ente”. Ente é uma coisa que é. Ente é o que está diante de
nós porquanto possui algum sentido de ser.
É correto afirmar que esse é o conceito de fenômeno que, para Heidegger, compõe a
primeira parte da expressão “fenomenologia”. Ainda assim, esse conceito não exprime o fenômeno
próprio à investigação fenomenológica pretendida pelo filósofo. Para compreendermos isso melhor,
passemos antes ao segundo radical da expressão “fenomenologia”, o “lógos”.
O que é um discurso (lógos)? O que ocorre na medida em que estamos diante de um
discurso? Falar não é apenas emitir sons com a boca. Falar é emitir sons que manifestam algo. Do
mesmo modo, escutar um discurso nunca é o mero perceber de ruídos auditivos, mas ir ao encontro
daquilo que está sendo dito. Quando se fala, por exemplo, “busque sua cadeira e sente-se conosco”.
Dentre as coisas manifestadas por esse enunciado, encontra-se a cadeira. A cadeira é manifestada

3
Diversos trechos da obra kantiana podem corroborar isto. Um dos mais famosos é a apresentação feita no primeiro
parágrafo da Estética Transcendental na Crítica da Razão Pura (cf. KANT, 2001, §1).

16
pelo discurso. A partir do discurso, tem-se diante de si uma cadeira. A coisa-cadeira, o ser-cadeira
está em jogo nesse discurso e seu ser é claramente manifestado a partir desse discurso. Isso é
certificado pelo simples fato de o ouvinte compreender o que está em jogo. O interlocutor daquele
enunciado irá se dirigir a uma cadeira e não à outra coisa qualquer. Mas há um tipo de discurso que
não apenas manifesta algo, mas que é capaz de dar acesso àquilo sobre o que se discursa. Veja-se
que a frase exemplificada acima não é apenas a manifestação de uma cadeira. Ela não diz apenas
“cadeira”. O que a frase diz e manifesta unitariamente é um chamado. Ela diz: “junte-se a nós com
sua cadeira”. Na medida em que um dito se volta para aquilo mesmo que ele diz (como se fez agora
ao explicitar que o exemplo acima é um chamado), então esse dito “deixa e faz ver aquilo sobre o
que discorre”. O exemplo é banal, é claro, mas esse é o sentido geral que Heidegger dá à noção de
discurso apofântico: “o dito no discurso deve ser extraído daquilo sobre o que se discorre, de tal
maneira que a comunicação por discurso torne manifesto no dito e, assim, acessível ao outro aquilo
sobre o que se discorre” (GA2, pp.113-5). O discurso apofântico, portanto, não apenas fala o
mesmo de outro modo. Também não é apenas um discurso explicativo: no sentido de se utilizar de
algo externo àquilo sobre o que discorre, estabelecendo uma relação de identidade. No exemplo
dado acima, ao enunciar a mera repetição “junte-se a nós com sua cadeira”, não se operava um
discurso apofântico. Mas na medida em que, ao longo desse parágrafo, o discurso fez ver que o
enunciado exemplificado consistia em um chamado, então pudemos tornar acessível aquilo sobre o
que aquela frase discorria. Ou seja, o presente parágrafo exemplifica um discurso apofântico.

1.2. O fenômeno da fenomenologia

Finalmente, em posse de um entendimento básico acerca dos dois componentes da expressão


“fenomenologia”, é possível esclarecer agora o “sentido formal de fenomenologia” [formale Sinne
der Phänomenologie]. Nas palavras de Ser e Tempo: “Fenomenologia diz, então: fazer ver a partir
dele mesmo”, i.e., através do discurso apofântico, “o que se mostra tal como ele por si mesmo se
mostra” (GA2, p.119). Mas assim como o conceito formal de fenômeno não se manteve em abstrato
e teve sua aplicação, também o sentido formal de fenomenologia precisa ser aplicado. Do contrário,
Heidegger reconhece que se ficaria com uma noção geral de fenomenologia como o mero “ir às

17
coisas elas mesmas”, sem oferecer nenhuma orientação acerca de a qual coisa a fenomenologia
deve se dirigir4.
Portanto, a pergunta que se faz agora – e aqui está em jogo a pergunta decisiva, isso
porquanto se intenta saber qual é o tema da fenomenologia heideggeriana – é a seguinte: o que deve
se tornar alvo de um discurso apofântico? Em outras palavras: qual é o fenômeno da
fenomenologia? Oras, não deve ser apenas o ente (aplicação heideggeriana do conceito formal de
fenômeno), pois esse já se encontra manifesto em todo e qualquer discurso, não precisando de um
método específico que lhe traga à manifestação. Deve ser uma outra coisa. É, finalmente, para a
circunscrição desse fenômeno em particular que Heidegger se serve então do “conceito
fenomenológico de fenômeno” [phänomenologische Begriff von Phänomen]. Heidegger dá algumas
diretrizes sobre esse algo, dizendo que: (1) trata-se de algo com qualidades específicas, pois não
está manifesto e, por isso mesmo, exige um método que o traga à manifestação; (2) trata-se de algo
relevante, pois mesmo não estando manifesto, está presente em toda e qualquer manifestação; e (3)
se trata de algo que exige desde si mesmo ser trazido à manifestação (GA2, p.121). Essas são as
qualidades daquilo que deve se tornar o fenômeno temático da fenomenologia.
Quando considerada na sequência discursiva de Ser e Tempo, nota-se que Heidegger está
sendo retórico aqui, pois essas qualidades já haviam sido identificadas naquilo que o filósofo
nomeou anteriormente como “ser do ente” – em particular no §2 do tratado. E, de fato, é esse o
fenômeno da fenomenologia heideggeriana: “[o] conceito fenomenológico de fenômeno propõe,
como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados” (GA2, p.121).
Mas o que é “ser do ente”? Tem isso as qualidades que acima foram antecipadas como pertinentes
ao conceito de fenômeno da fenomenologia?
Ensaiemos aqui uma exposição breve da noção de ser do ente. A todo momento nos
relacionamos com coisas. Outro termo para “coisa” é “ente”. Embora tenha caído em desuso,
compreendido gramaticalmente, “ente” consiste apenas no particípio do verbo “ser”: algo que é
porquanto está sendo; assim como o particípio de “amar” seria “amante”: aquilo que é o que é
porquanto ama. Os entes com os quais nos relacionamos sempre aparecem para nós já com algum

4
Friederich-Wilhelm von Hermann argumenta que, até a formalização do conceito de fenomenologia, a abordagem
heideggeriana acerca da fenomenologia coincide com a de Husserl. Contudo, é precisamente no momento da
“desformalização” ou aplicação desse conceito formal que Heidegger se separa explicitamente da fenomenologia
husserliana (VON HERMANN, 2003, p.165). Benedito Nunes comenta que por Heidegger estar interessado em uma
ontologia, a desformalização husserliana acabava impedindo este orientação filosófica, uma vez que a fenomenologia
husserliana “invertia o sentido usual da expressão ser, que só à consciência se aplicaria cabalmente” (NUNES, 1986,
p.53).

18
sentido. Em geral, precisamos estar a par de alguma compreensão prévia de o que seja um ente na
medida em que nos relacionamos com os entes. Mesmo que expressamente não tenhamos ideia
dessa compreensão, ela tacitamente nos acompanha e sempre está em jogo em qualquer relação que
tenhamos, com qualquer que seja a coisa com a qual nos relacionemos. Por mais estranho que um
ente nos possa parecer, ele antecipadamente tem que aparecer enquanto um ente, e depois como
estranho, e assim por diante5. Essa compreensão tácita que antecede toda e qualquer relação com os
entes Heidegger chama de compreensão-de-ser [Seinsverständnis]. Trata-se de uma compreensão
prévia que fazemos da noção de ser. É esta compreensão que franqueia nossa relação com o ente e
que franqueia, inclusive, a possibilidade de fazermos ontologia (de colocarmos a pergunta pelo
sentido de ser em geral). A noção de ser do ente, neste momento de determinação do método
fenomenológico, assume o papel desta prévia compreensão-de-ser6. A distinção aqui feita entre ente
e isso que se mantém tácito em toda relação que temos com o ente é nomeada por Heidegger como
a “diferença ontológica” [ontologische Differenz]. Note-se que ela não aponta uma diferença entre
duas entidades (duas coisas com o mesmo modo de ser), mas ela abre a chance de uma indagação
acerca daquilo que não é ao modo do ente, mas que de alguma maneira se dá junto ao ente.
Se a todo momento temos uma compreensão-de-ser e é ela que franqueia nossa relação com
as coisas, então, ela é relevante para nós. Ao mesmo tempo, o ser do ente no mais das vezes
permanece não manifesto para nós – o que sugere a necessidade de um método que o traga à
manifestação. De acordo com Heidegger, pelo fato de que a todo momento nós compreendemos ser,
também decorre o fato de que carregamos em nós mesmos a tendência de tornar explícito o ser do
ente, ou seja, de colocar a questão do ser7. Assim, o ser do ente corresponde àquelas três
características do conceito de fenômeno da fenomenologia: [1] ele é relevante; [2] ele mantém-se
encoberto no mais das vezes; e [3] ele tende a ser trazido a manifestação.

5
“Se não compreendêssemos o que significa realidade, então o ente real permaneceria inacessível. Se não
compreendêssemos o que significa vida e vitalidade, então não conseguiríamos assumir um comportamento em
relação ao vivente. Se não compreendêssemos o que é existência e existencialidade, então nós mesmos não
conseguiríamos existir enquanto seres-aí. Se não compreendêssemos o que é consistência e o caráter daquilo que é
consistente, então as ligações geométricas consistentes ou as relações numéricas permaneceriam cerradas.” (GA24,
pp.20-21).
6
“Isto é, o fenômeno par excellence é os modos de inteligibilidade das entidades e a compreensão tácita [de ser] em
cujo fundamento cada ente pode se manifestar como aquilo que ele é” (DREYFUS, 1991, p.32).
7
“[...] a questão-do-ser nada mais é do que a radicalização de uma tendência-de-ser em essência pertencente ao ser-aí
ele mesmo, isto é, a radicalização do pré-ontológico entendimento-do-ser [Seinsverständnis]” (GA2, p.67).

19
1.3. O método da fenomenologia do ser do ente

Tem-se, portanto, que a principal marca da fenomenologia em Ser e Tempo é a compreensão


de que fenomenologia é o modo de acesso ao ser do ente8. Da maneira como isso fica expresso
nesse tratado, em particular no §7, considera-se que, a partir de um método específico, o ser do ente
pode ser efetivamente posto às claras. É tendo em vistas essa tarefa que se erige o famoso tratado e
a maior parte dos escritos de Heidegger da década de 1920.
Por mais que o filósofo tenha prestado considerações sobre o caráter apofântico do discurso,
em isolado elas não oferecem nenhum recurso metodológico que dê orientação sobre como “deixar
e fazer ver o ser do ente”. Contudo, esclarecimentos podem ser encontrados em outra oportunidade
na qual o filósofo explora o método fenomenológico. No mesmo ano em que publicou Ser e Tempo,
Heidegger ministrou um curso na Universidade de Marburgo. Este curso foi publicado sob o título
“Os problemas fundamentais da fenomenologia”. No §5 desta publicação há uma breve explanação
de três componentes do método fenomenológico que certamente são úteis aos nossos propósitos.
Um dos primeiros esclarecimentos acerca dessa fenomenologia é que o pensamento cuja
meta é pensar o ser do ente não pode se aferrar ao ente, conforme os tópicos anteriores
antecipavam. É “somente com a realização desta distinção, em grego krínein, não de um ente em
relação a um outro ente, mas do ser em relação ao ente, que entramos no campo da problemática
filosófica” (GA24, p.31). A essa exigência corresponde o primeiro componente da fenomenologia
heideggeriana: “[n]ós designamos redução fenomenológica este componente fundamental do
método fenomenológico no sentido da recondução do olhar investigativo do ente apreendido
ingenuamente para o ser” (GA24, p.36; grifo meu).
Mas entre ter essa diretriz da diferença ontológica e executar um comportamento que não se
volte ao ente há um verdadeiro abismo. E se não sua impossibilidade, no mínimo o testemunho de
uma dificuldade impreterível: pensar implica pensar algo, que é o mesmo que comportar-se em
relação a algo, por isso a execução da redução traz junto a si um comprometimento prévio com
aquilo mesmo que ela pretende pensar, o ser. O comportar-se negativamente em relação ao ente tem
uma contraparte positiva em relação ao ser. Desviar-se do ente para pensar o ser já implica projetar
ser. Heidegger não menciona essa circularidade neste momento do curso, ele apenas confirma a

8
“Porque fenômeno, fenomenologicamente entendido, é sempre somente o que constitui o ser, mas ser é cada vez ser de
ente c, assim, para que o ser possa ser posto-cm-liberdade, é preciso então que o ente ele mesmo se apresente
corretamente. (...) Tomada em seu conteúdo-de-coisa, a fenomenologia é a ciência do ser do ente — ontologia”
(GA2, pp.125-7).

20
contraparte ao escancarar o limite da “mera” redução9. “Pois essa recondução do olhar do ente para
o ser necessita ao mesmo tempo de um direcionamento positivo do olhar para o próprio ser” (GA24,
p.37). Ainda que não comente o caráter circular em jogo, o filósofo precisa admitir o caráter
projetivo no interior desse método. “Nós designamos essa projeção do ente previamente dado com
vistas ao seu ser e às suas estruturas como construção fenomenológica” (GA24, p.37; grifo no
original). A construção fenomenológica é precisamente o colocar algo diante de nós, já sob a
prerrogativa de que não se trata mais de um mero ente, mas do ser do ente.
O que se precisa garantir é que essa incursão em direção ao ser do ente alcance sua meta. Já
levantamos acima a circularidade entre redução e construção fenomenológica. Trata-se de uma
circularidade incontornável. Acontece que a redução não pode significar apenas uma troca entre
entes, como se a toda vez que se buscasse pensar o ser e se constatasse a circularidade, isso
afastasse ou impedisse um pensamento do ser. O que deve ocorrer nesse processo admitidamente
circular é uma aproximação ao ser. Como uma circularidade em espiral. Para fazer dessa
circularidade uma espiral, contudo, é necessário a cada momento penetrar mais e mais no ser do
ente, o que implica uma rejeição de determinadas compreensões acerca do ser do ente já em voga.
“Desse modo, pertence necessariamente à interpretação do ser e de suas estruturas, isto é, à
construção dedutiva do ser, uma destruição”, em outras palavras: “uma desconstrução crítica dos
conceitos tradicionais que precisam ser de início necessariamente empregados, com vistas às fontes
das quais eles são hauridos” (GA24, p.39). O foco dessa destruição, portanto, deve ser sempre essa
“fonte”, deve ser sempre o âmbito “mais originário” do qual emanam os conceitos e discursos
legados pela tradição e que contribuam, é claro, para a manifestação do ser do ente.

2. Fenomenologia e evento do ser

2.1. Da possibilidade de uma outra fenomenologia

A possibilidade de uma outra fenomenologia está de acordo com a determinação preliminar


que Heidegger ofereceu já na década de 1920 para o método. Isso porque o filósofo reconhecia que
o método fenomenológico sempre deve ser revisto a partir do fenômeno tomado como tema.
Mesmo assim, uma outra fenomenologia no expediente heideggeriano ainda soa algo inusitado, uma

9
Em outros momentos do tratado essa circularidade é endereçada. Para Juliana Missagia, é Husserl quem não reconhece
e não incorpora esse elemento na sua fenomenologia (MISSAGIA, 2015, pp.145-146).

21
vez que “a questão do ser” foi sempre o tema e o motivo do seu pensamento, do início ao fim. Neste
sentido, considerando que a questão tenha sido mantida, o que se espera para franquear uma outra
fenomenologia seria que a questão do ser tenha, de algum modo, feito o pensamento de Heidegger
tomar caminhos diferentes. Tais variações podem ter refletido, por sua vez, em uma reconsideração
metodológica.
Após a década de 1920, comentários acerca da fenomenologia se tornam cada vez menos
presentes na obra de Heidegger. Mesmo o uso da expressão “fenomenologia” se torna notavelmente
escasso. Em De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador, ensaio de
1953-54, o filósofo justifica que o “abandono” da expressão “não foi, como muitos pensam, para
negar o valor da fenomenologia e sim para deixar sem nome o caminho do pensamento”
(HEIDEGGER, 2003, p.96). Isso significa duas coisas: que mesmo não se endereçando a ela, a
fenomenologia permanece importante; e que mantê-la “sem nome” deixou o método livre para se
transformar – o que sugere, por sua vez, que houve transformações.
De fato, em 1973 Heidegger profere o Seminário de Zähringen, no qual faz uma abordagem
da questão do ser a partir de considerações sobre o pensamento de Husserl. Por reconsiderar o “pai
da fenomenologia”, é de se esperar que o tema do método seja outra vez abordado. Há neste
seminário uma afirmação que torna ainda mais relevante o questionar-se sobre as transformações na
fenomenologia heideggeriana. O filósofo afirma na ocasião que o método de Ser e Tempo, além de
desajeitado, se desenvolvia junto a uma ingenuidade acerca do ser. Nas palavras do filósofo: “[…]
ainda não havia em Ser e Tempo um saber genuíno acerca da história do ser [Geschichte des Seins],
disso resulta o caráter desajeitado e, mais especificamente, a ingenuidade da ‘destruição
ontológica’. De lá para cá, aquela inevitável ingenuidade do inexperiente deu lugar à sabedoria”
(GA15, p.395; tradução minha). Ao mesmo tempo em que a passagem critica um dos componentes
do método fenomenológico, ela sinaliza para um de seus problemas: não estar em posse de um
saber adequado acerca da história-do-ser [Seinsgeschichte].
Assim, antes de concentrar-se nessa fenomenologia mais madura que Heidegger trabalharia
em seu último seminário, torna-se relevante um comentário à seguinte pergunta: o que é
história-do-ser?
O tema é desenvolvido no pensamento heideggeriano ao longo da década de 1930, e esse
desenvolvimento ocorre em simultâneo ao abandono do projeto da ontologia fundamental iniciado
em Ser e Tempo. Nesse tratado, vimos que a fenomenologia tomava como seu objeto o ser do ente;

22
e se motivava junto à hipótese de que a investigação acerca do ser do ente pudesse não apenas
renovar a pergunta acerca do sentido de ser em geral (liberando o tempo como horizonte da
questão), mas efetivamente trazendo o sentido de ser às claras. A circularidade espiral do método
fenomenológico visava aproximar-se do ser como aquilo que precede (a priori) e dá fundamento
[Grund] à experiência. Mas progressivamente Heidegger deixa de se dirigir a um fundamento
último do ser. Igualmente, a pergunta pelo de ser do ente deixa de ser abordada como se pudesse
manifestar um sentido último para o ser. Em seu lugar, a pergunta pelo ser do ente é substituída por
uma investigação acerca do caráter singular da doação de sentido. A história da ontologia ocidental
não é mais tomada como recurso para uma destruição que, ao se depurar a tradição e explorar a
fonte de onde seu legado emerge, possa resgatar o sentido fundamental de ser. A história passa a ser
tomada então como evidência das várias “eclosões” de sentido de ser. Eclosões que em si mesmas
são eventos singulares – não fundamentados em algo –, e que ao seu modo fomentam diferentes
épocas na medida em que permitem ao humano que ele se aproprie dos entes sob um sentido
diverso – e na contraparte, que o próprio humano seja apropriado por essa época. Nesse sentido, o
ser ele mesmo, o dar-se do ser, enquanto esse evento apropriador e apropriativo [Ereignis], passa a
ser considerado como infundamentado, como sem-fundamento [Ab-Grund] ou abismal10.
Cada época da história-do-ser, sendo assim, propiciaria uma resposta diferente para a
pergunta acerca do ser do ente. Isso porque, de fato, cada época significaria uma doação de ser
diferente. A partir do descobrimento da história-do-ser, caso o mesmo método fosse aplicado,
teria-se não um só fenômeno para fenomenologia, um só ser do ente, mas vários. É como se de um
“o que”, o fenômeno da fenomenologia passasse a ser agora um qual. Ou seja: dentre as várias
épocas, a fenomenologia estaria encarregada de tornar manifesto qual ser-do-ente está em vigência
em tal ou qual época. Mas um pensamento genuinamente filosófico – em especial no caso
heideggeriano – visa sempre uma experiência “mais originária” acerca daquilo que ela investiga, e
isso ocorre apenas quando a investigação filosófica se dirige a um quid ao invés de um qualis. Uma
vez que o ser do ente se torna um qualis para a investigação filosófica, então isso é sinal de que há
um algo mais originário para ser pensado e tematizado pela fenomenologia.
É por essa razão que, na medida em que a história-do-ser se torna componente do
pensamento heideggeriano, a tese da ontologia fundamental é simultaneamente abandonada. O que
se deve considerar neste artigo é se essa mudança no pensamento de Heidegger enseja também

10
Sobre a incorporação da tese da história-do-ser no pensamento heideggeriano e suas implicações: cf. GUIGNON,
2005.

23
transformações na fenomenologia ou, melhor, no “caminho do pensamento”. Essas transformações
devem se dar em primeiro lugar com a liberação de um novo “fenômeno” que ocupe o “conceito
fenomenológico da fenomenologia” – para parafrasear a terminologia de Ser e Tempo.

2.2. Um novo domínio para a fenomenologia

De fato, no Seminário de Zähringen, o que se torna tema da fenomenologia não é mais o ser
do ente, mas um domínio anunciado na ocasião sob a alcunha de “inconspícuo” [Unscheinbar]. A
esse domínio corresponde, consequentemente, uma fenomenologia específica – um modo de pensar
adequado àquilo que se pensa. “Essa fenomenologia é a fenomenologia do inconspícuo
[Phänomenologie des Unscheinbaren]”, diz Heidegger (GA15, p.399; tradução minha)11.
Para começar a tratar desta fenomenologia do inconspícuo, é pertinente explicitar primeiro
qual é o contexto no qual esse domínio e sua correspondente fenomenologia aparecem no Seminário
em questão.
Publicados nas Obras Completas [Gesamtausgabe] em uma edição que reúne uma série de
Seminários (GA15), quatro desses seminários são tentativas de recolocação da pergunta pelo ser
utilizando-se de filósofos clássicos. No caso do Seminário de Zähringen, o último dos seminários, é
a fenomenologia de Husserl que é considerada como caminho para recolocar a questão do ser.
Assim, o seminário inicia com a defesa de que a noção husserliana de intuição categorial significou
um avanço para a colocação da pergunta pelo ser na tradição do pensamento ocidental. Mas
Heidegger não deixa de reconhecer ali que esse avanço teria sido obstruído pelo comprometimento
que a fenomenologia husserliana tinha com a metafísica moderna. Dado a vinculação de Husserl
com o paradigma moderno da consciência, o acesso à questão do ser através da fenomenologia
husserliana, portanto, esbarra em limites – que podem ser superados por uma outra fenomenologia.
Para operar este outro pensamento, primeiro seria necessário abandonar o método do pai da
fenomenologia. Mas mais do que isso, seria necessário abandonar a metafísica como um todo12. É

11
A justificativa de traduzir “Unscheinbaren” por “inconspícuo” (e não por “invisível” ou “inaparante”) virá no tópico
seguinte.
12
Podemos destacar mais uma “ingenuidade” aqui: embora em Ser e Tempo Heidegger já diferenciasse sua
fenomenologia da fenomenologia husserliana por conta do comprometimento dessa última com o paradigma
moderno da consciência, o pensamento heideggeriano ainda permanecia, naquela ocasião, atrelado ao
transcendentalismo que marca a metafísica ocidental em geral. Pudemos flagrar esse traço quando mencionamos
acima o “recuo transcendental” pertinente à abordagem de Ser e Tempo.

24
então que Heidegger fala na ocasião do seminário em um “retorno” à filosofia antiga13. Não como
uma repetição, mas como um “voltar-se”, um estar atento ao que outrora foi dito. Na terceira aula
do seminário, e pela última vez em sua carreira, Heidegger recorre ao poema de Parmênides como
fonte para uma experiência mais originária do ser14. E é ao final de sua consideração acerca de uma
dificuldade essencial na qual o poema mergulha, que Heidegger reconsidera brevemente o tópico da
fenomenologia e emprega a expressão “fenomenologia do inconspícuo”.
Explicitado o contexto de aparição desta nova consideração metodológica, ainda ficam as
perguntas: o que é esse algo tematizado a partir do poema? Por que esse algo impõe dificuldades?
Qual tipo de método de pensamento se aproxima desse algo?
Um dos fragmentos analisados por Heidegger em sua leitura diz: ésti gàr einai [ἔστι γὰρ
εἶναι]: “é, a saber, ser”. Uma versão menos literal poderia reordenar os termos e traduzir assim: “o
ser é”. Mas Heidegger reclama que é preciso ler o fragmento “de modo grego”. Nesse sentido,
“einai” [εἶναι] não deveria dizer apenas “ser”, como se nosso verbo correspondesse ao verbo grego
sem qualquer peculiaridade de sentido. Para o filósofo, “einai” diz algo como “presentificar”
[anwesen], o que indica algo como o ato de estar presente diante de nós, o “advir à presença”. A
conjugação “ésti” [ἔστι] dirá então: “presentifica” ou “advém”. Em posse dessa outra indicação
acerca do sentido do verbo “ser” para os gregos, leríamos o fragmento de outra maneira. Estí gar
einai: advém [ésti], a saber [gàr], o advir [einai]. Sendo menos literal: o advir advém [anwesen
anwest]. A interpretação de Heidegger, contudo, não para por aí. De acordo com essa, o fragmento
não visa nem o advir nem o adveniente (nem o ser nem o ente). De maneira que somos levados a
pensar que o fragmento aponta para algo excedente àquela primeira formulação da diferença
ontológica. Como vimos, aquela servia para operar a redução fenomenológica: dirigir a atenção do
ente para o ser (na ocasião justificado enquanto compreensão-de-ser). Agora, contudo, não é isso
que está sendo colocado em relevo com a ajuda do poema de Parmênides. O que a palavra
intrincada de Parmênides parece indicar a partir da interpretação heideggeriana é ainda algo outro.
Esse outro estaria concentrado na expressão “tò eón” [τὸ ἐόν], que também aparece no poema do

13
Heidegger emula neste seminário a biografia de suas próprias reflexões, que, ainda nas décadas de 1910 e 1920, ao se
deparar com algumas limitações do pensamento husserliano, regressou aos gregos (em especial, a Aristóteles) como
recurso para experimentações com pensamentos mais originários. Ou, em outras palavras, com pensamentos não
comprometidos pela metafísica moderna que privilegia o conceito de consciência, impondo limites à reflexão
ontológica (NUNES, 1986, pp.58-62).
14
A interpretação do poema foi operado diversas vezes ao longo da vida filosófica de Heidegger. Em seu curso
Introdução à metafísica (1935-36); em seu curso de 1942-43, publicado com o título Parmênides; e um trecho não
lido da conferência O que quer dizer pensar?, de 1952, e que embora não lido, foi publicado com o título “Moira
(Parmênides, fragmento VIII, 34-41)”.

25
eleata. Nem o advir (ser) nem o adveniente (ente), “tò eón” tenta nomear ou indicar, isto sim, o
advento em si mesmo. É, finalmente, ao domínio indicado por essa expressão que Heidegger dá a
alcunha de “inconspícuo” [Unscheinbar] e ao qual reserva uma fenomenologia própria. “Nós
estamos aqui no domínio do inconspícuo: o advir advém em si mesmo”15.

2.3. Sobre o inconspícuo

Para explorar esse mesmo domínio por outra via, sob a promessa de tentar mais
esclarecimentos a seu respeito, este artigo seguirá a hipótese de que o inconspícuo, indicado aqui
pelo tò eón, pode ser explorado também via uma interpretação da noção heideggeriana de “evento
do ser” [Ereignis].
Adere-se no presente artigo a terminologia sugerida por Jason W. Alvis, na qual
“Unscheinbar” não é traduzido por “invisível” ou “inaparente”, mas por “inconspícuo” (ALVIS,
2018). Literalmente, “Unscheinbar” é um adjetivo que qualifica aquilo que ocorre “sem destaque”.
Como quando se diz que algo “passou despercebido” – mas passou. Nesse sentido, isso que
Heidegger tenta indicar com o termo “inconspícuo” deveria exceder a dicotomia entre aparente e
inaparente, ou visível e invisível, ou manifesto e oculto. Pelo menos assim defende Alvis (ALVIS,
2018, pp.236-237). Entendido dessa maneira, um algo inconspícuo deveria ser precisamente aquilo
que está presente, mas que passa despercebido, e que por isso mesmo precisa de uma
fenomenologia específica para ser trazido às claras – até onde for possível tal façanha. Junto àquilo
que se manifesta explicitamente, mas ocorrendo de modo não-evidente, está o inconspícuo; que
justamente por ocorrer desse modo, também não pertence ao domínio do oculto. Logo, uma
tradução por “inaparente” ou “invisível” comprometeria esse o caráter presente disto que se está
tematizando.
Muitas coisas podem ocorrer ao modo inconspícuo, muitas coisas podem pertencer a esse
domínio. Por exemplo, a distinção entre intuição sensorial e categorial feita por Husserl e abordada
por Heidegger no Seminário de Zähringen revela um dos modos nos quais pode se dar algo
inconspícuo. Veja-se neste caso o exemplo que Heidegger usa para elaborar essa distinção: “Eu vejo
este livro diante de mim. Mas onde está a substância neste livro? Eu não a vejo do mesmo modo
que eu vejo o livro. E ainda assim este livro é uma substância que eu devo ‘ver’ de algum modo, do

15
“Wir sind hier im Bereich des Unscheinbaren: anwest Anwesen selbst” (GA15, p.397; grifo meu).

26
contrário eu não veria coisa alguma” (GA15, p.375; tradução minha). Logo, o suporte da intuição
sensorial (a substância) se subtrai ao conteúdo da intuição categorial (as formas); ou, para ser mais
fiel à Husserl, o dado da intuição categorial que excede a intuição sensorial. Deste modo, embora
aquilo que está manifesto (o dado da intuição categorial) não seja precisamente o substancial do
livro, ainda assim a substância deve estar determinantemente presente, ocorrendo ao modo
inconspícuo (sem destaque para a percepção). Heidegger continua seu exemplo: “quando eu vejo
este livro, eu vejo algo substancial, contudo, sem ver a substancialidade tal qual eu vejo o livro.
Mas é esta substancialidade que, em seu não-aparecer [Nichterscheinen], permite o aparecimento do
que aparece [Erscheinenden]. Neste sentido, pode-se dizer que ela é mais aparente do que aquilo
que aparece em si mesmo [erscheinender als das Erschienene]” (GA15, p.377; tradução minha).
Essa formulação parece fortalecer a interpretação de Alvis, a saber, que o domínio do inconspícuo
consiste em algo excedente à oposição entre aparente e não-aparente.
Agora, ao interpretar o poema de Parmênides, Heidegger não parece estar indicando a húle
[ὕλη] ou a matéria como o pertinente a ser pensado no domínio do inconspícuo, mas algo diverso.
Neste artigo, será defendida a hipótese de se tratar do evento do ser [Ereignis] em si mesmo. Tal
hipótese ganha amparo quando consideramos outra ocasião na qual Heidegger fala em inconspícuo,
na qual não apenas liga as duas noções (evento do ser e inconspícuo), mas realiza essa ligação
porquanto qualifica o evento do ser como “o mais inconspícuo dos inconspícuos”16. De uma só vez,
a frase “o evento do ser é o mais inconspícuo dos inconspícuos” afirma duas coisas: há mais de um
inconspícuo, no caso, o domínio do inconspícuo resguarda diferentes coisas; e, dentre essas, o
evento do ser é o que há de mais relevante nesse domínio.
O que aqui se traduz com a expressão “evento do ser” consiste no termo heideggeriano
“Ereignis”. Um dos sentidos nos quais Heidegger usa o termo serve para exprimir uma dinâmica
histórico-ontológica explorada pelo filósofo a partir da sua “descoberta” da história-do-ser. Como
mencionado acima, a história-do-ser é feita de diversas épocas (eclosões de sentido de ser). Com
esse entendimento é que se traduz “Ereignis” por “acontecimento apropriativo e apropriador”, pois
ao mesmo tempo em que o evento (no qual o ser se dá) significa um passivo ser apropriado do
humano por algo que dele se apropria (o ser), o evento também significa a liberação de um
horizonte de sentido para que o próprio humano ativamente se aproprie das coisas (os entes) com as

16
“Das Ereignis ist das Unscheinbarste des Unscheinbaren [...]” (GA12, p. 247, tradução minha).

27
quais ele se relaciona. É neste sentido que “Ereignis” refere o evento como sinônimo de “época” do
ser17.
Mas além disto “Ereignis” nomeia algo outro no pensamento heideggeriano. Algo que, por
sua vez, é mais fundamental para a noção histórico-ontológica elaborada acima. Trata-se do próprio
“dar-se” do ser, pura e simplesmente. O “dar-se” do ser não como época, mas como o advento que
ocorre a todo momento. A tentativa de tematizar esse acontecimento por si mesmo e em si mesmo,
provavelmente, é a tarefa mais difícil com a qual o pensamento heideggeriano já se comprometeu.
Sendo que tal dificuldade pode advogar em favor da nossa hipótese de compreender o evento como
“o mais inconspícuo”. Ora, não deve ser à toa que se qualifica o evento como o mais não-destacável
dentre tudo o que não se destaca.
Na interpretação do poema de Parmênides, ao mirar a coincidência entre o “advém” (ésti) e
o “advir” (einai), o filósofo afirmava que “ela não contabiliza o idêntico duas vezes. Ela nomeia
uma só vez o mesmo, e enquanto si mesmo: o advir advém (em si mesmo)”18. Analogamente, na
conferência Tempo e Ser, a qual tem como tarefa pensar o ser sem derivá-lo do ente, e tem como
meta uma reflexão não-metafísica sobre o evento [Ereignis], Heidegger questiona acerca deste
último: “Que resta dizer? Apenas isto: O evento advém [Das Ereignis ereignet]. Com isto dizemos a
partir do mesmo, o mesmo, para o mesmo” (GA14, p.29; tradução minha).

2.4. O caminho da fenomenologia do inconspícuo

Neste artigo se tenta pôr algo em manifesto, se tenta fazer algo tornar-se fenômeno, i.e.,
manifestar-se de algum modo para alguém (o leitor). Toda a abordagem heideggeriana desse
inconspícuo – inclusive o nomeando com esta alcunha – se desdobra de maneira a sinalizar que esse
algo está à margem de ser manifesto. Isso ocorre, provavelmente, dado a natureza própria desse
domínio. De tal sorte que é preciso admitir a respeito do “mais inconspícuo dos inconspícuos” que
nunca se pode tê-lo em manifesto. Antes de começar a tatear as características da fenomenologia de
algo inconspícuo, portanto, é preciso advertir que esta etapa do trabalho pode ser tão instigante
quanto frustrante. Instigante, pois agora se tentará explicitar precisamente o modo de pensamento

17
Para compreender esta dinâmica, reflita-se um pouco sobre qual é o sentido de uma época histórica. Será uma
convenção arbitrária de delimitações cronológicas? Será o reconhecimento de algum tipo de estabilidade e padrão
constatáveis no curso de um determinado tempo?
18
“Sie zählt nicht zweimal das Gleiche auf. Sie nennt nur einmal das Selbe, und zwar es selbst: estin einai: »anwest
anwesen (selbst)«” (GA15, p.405).

28
que opera além da oposição entre aparente e inaparente. Frustrante, contudo, porque esse mesmo
modo de pensar é, como veremos, admitidamente tautológico, dando a sensação de se ter enredado
em meros sofismos.
Em outra ocasião na qual usa a expressão “inconspícuo”, Heidegger está trabalhando em
particular a noção de mistério19. Em termos fenomenológicos, o que é um mistério? Perguntado de
outro modo: o que se tem diante da experiência quando se está diante de um mistério? Tem-se algo
que se manifesta e em sua manifestação mantém ao mesmo tempo algo retido da manifestação. Só
há mistério porquanto essa dinâmica entre o que aparece e o que não aparece permanece vigente. O
mistério está, como se diz, com um pé aqui e outro lá. Será o inconspícuo algo dessa natureza? Mas
se dizia que o domínio do inconspícuo excede a dicotomia entre aparente e não-aparente. E embora
um mistério esteja com um pé no oculto, ele pode eventualmente se tornar plenamente manifesto. É
claro, isso significaria que ele deixaria de ser mistério. Por isso, fenomenologicamente, não é o seu
caráter “ainda não revelado” que identifica o mistério, mas precisamente a dinâmica de aparecer
enquanto não aparece em seu todo.
O inconspícuo também, ao seu modo, excede essa dicotomia. O inconspícuo também não é
resolvido por ela. Não se trata de permanecer velado ou de vir à manifestação, mas de
permanentemente oscilar aí. Oscilar no sentido de saltar aos olhos em uma circularidade amorfa, de
dar-se a ver em uma espécie de intensificação repentina daquilo que se vê ordinariamente. Ver esta
oscilação entre o velado e o manifesto é a tarefa da fenomenologia do inconspícuo. Um ver que não
se dá de modo pleno, como o pensamento corrente que solicita uma conceituação. Mas um ver que
é um vislumbre. “O que aqui está em jogo, longe do ordinário opinar, é um pensamento: o real
vislumbre [Erblick] (insignificante [unsinnlich])”20.
O vislumbre insignificante. Vale a pena refletir um pouco sobre esse caráter “insignificante”
[unsinnlich] do pensamento que se ocupa do inconspícuo. Insignificante é o que não possui
significação. Signo, por sua vez, é aquilo que reporta a presença de algo. O signo faz as vezes de
algo. Esse algo ao qual o signo faz as vezes é que dá ao signo o seu sentido. Mas de maneira
inversa, o signo pode tomar as vezes daquilo que lhe dá sentido e servir como “de-monstração” ou
“ex-plicação”. Pensar o inconspícuo em seu próprio, contudo, não pode tomar algo outro que lhe

19
“O secreto no mistério é uma espécie de encobrimento, que se distingue por sua insignificância [Unscheinbarkeit –
deveríamos dizer: inconspicuosidade], em virtude da qual o mistério é um mistério aberto.” (GA54 p.93, p.96).
20
“Das hier auf dem Spiel stehende, vom gewöhnlichen Meinen weitab liegende Denken ist: das reine (unsinnliche)
Erblicken. Was es zu erblicken hat, wird anschließend im selben Vers genannt: eon emmenai: » anwesend: anwesen«”
(GA15, p.406).

29
faça a vez do inconspícuo. Por isso, trata-se de um pensamento cujo “real vislumbre” é
“in-significante”. “O advir advém”, é o advento em si mesmo que deve estar presente para o
pensamento. Trata-se, a rigor, não de um pensamento (representativo), mas de uma experiência. O
que o pensamento pode é, na melhor das hipóteses, indicar, mas nunca substituir por uma fórmula
ou expressão aquilo que ele indica. “Indicação [Zeignis] (σῆμα) deve ser entendido aqui no sentido
grego”, afirma Heidegger: “não algo que faz a vez de algo outro, como um ‘signo’, mas indicação é
o que faz ver e deixa ser visto, porquanto descreve o que há para ser visto” (GA15, p.79). Parece
uma elaboração semelhante àquela que Heidegger já ofereceu acerca da noção de discurso (lógos)
quando apresentava no início de sua carreira a fenomenologia do ser do ente. E, de fato, aqui as
duas fenomenologias parecem concordar: a fenomenologia de Heidegger nunca se pretendeu
explicativa, mas sempre descritiva ou de-monstrativa (no sentido de mostrar um algo a partir dele
mesmo).
Nas palavras de Heidegger: “[e]sse pensamento, que aqui colocamos em questão, eu o
chamo ‘pensamento tautológico’” (GA15, p.339; tradução minha). O mesmo indicando ou
mostrando a si mesmo. O advir que advém indica para o próprio advento. Uma tautologia, é claro.
A pergunta que se atravessa imediatamente é: qual é o ganho de um pensamento tautológico? A
saber, esse não opera como uma dialética ou uma síntese. Essas últimas lidam com dois termos
distintos e operam algum tipo de relação entre os termos: ou um acréscimo do primeiro ao último
(ou vice-versa); ou uma modificação de um dos termos tendo em vistas aquilo que a ele está
contraposto. Por outro lado, uma tautologia não acrescenta nada, e também não modifica nada. Uma
tautologia apenas sequencia o idêntico uma vez mais.
O que poderia o sequenciamento do idêntico acrescentar ou modificar? De fato, nada. Diante
do predomínio do pensamento dialético, a tautologia nunca pôde pronunciar nenhum tipo de ganho.
Validada então a separação entre teoria e prática (entre conceito e mundo), aí a dialética ou a síntese
se tornam os únicos modos produtivos do pensamento. Pois nesse caso o mero pensar já se torna um
processo dialético que relaciona dois termos (conceito e mundo). Mas o que acontece quando o
pensamento, dado a exigência daquilo mesmo a que ele se propõe, deve ser de outro tipo que não o
dialético. Quando “esse tipo de pensamento precede qualquer distinção possível entre teoria e
prática” (GA15, p.339)? Então, antes de mais nada, é preciso aprender a encarar o pensamento
tautológico não como uma deficiência de método, mas como a liberação de um caminho para a
possibilidade do vislumbre daquilo que há de mais inconspícuo entre os inconspícuos.

30
Se aquilo a que estamos insistentemente tateando, o evento, for descrito a partir de algum
outro fenômeno que não ele mesmo, então: (1) o evento não estaria sendo experimentado por si
mesmo, ainda que já estivesse em jogo, uma vez que esse outro fenômeno precisa também ele advir;
e (2) por isso mesmo o evento em si deixaria de estar diante da experiência. É precisamente por isso
que a genuína tautologia – a tautologia levada a sério – é o único modo de permitir um vislumbre do
evento do ser. “Nesse sentido precisamos reconhecer que a tautologia é a única possibilidade de se
pensar aquilo que a dialética pode apenas encobrir”21. Não por acaso, ao nomear o pensamento que
se ocupa do inconspícuo de “pensamento tautológico”, Heidegger acrescenta ainda que esse pensar
é nada mais nada menos que “o sentido primordial da fenomenologia [der ursprüngliche Sinn der
Phänomenologie]” (GA15, p.339; tradução minha; grifo meu).

Considerações finais

Uma última vez, agora a título de conclusão, seja reconsiderada a noção de diferença
ontológica. Essa reconsideração, tendo em vista o que já foi abordado nas duas partes desse artigo,
pode agora ser útil para uma explicitação da especificidade de cada um dos “fenômenos” das
fenomenologias: o ser do ente e o evento do ser.
Primeiro, destaca-se que no projeto da ontologia fundamental iniciado em Ser e Tempo, a
diferença ontológica já tinha seu papel22. Na ocasião, a diferença ontológica aparecia como o
recurso heideggeriano sobre o qual se opera a redução fenomenológica, ou seja, a recondução do
olhar que está inicialmente focado no ente para um olhar que se concentre no ser do ente. O que a
diferença ontológica e a redução promovem nesse contexto é o descobrimento do ser do ente como
aquilo que compete à compreensão-de-ser. O ser do ente aparece aí como algo que precede e
simultaneamente acompanha a experiência do ente. Ou seja, em Ser e Tempo, a diferença ontológica
tem o papel de promover um recuo transcendental. Contudo, a partir da virada, esse recuo
transcendental fica bem menos explícito no pensamento heideggeriano – se é que pode ser
constatado. Ele dá lugar à tentativa cada vez mais obstinada de se concentrar no “dar-se” do ser. É
verdade que em 1927 já se reconhecia o caráter não-ôntico do ser, mas a constatação da diferença

21
“In dieser Hinsicht muß durchaus anerkannt werden, daß die Tautologie die einzige Möglichkeit ist, das zu denken,
was die Dialektik nur verschleiern kann” (GA15, p.400).
22
Ainda que a expressão enquanto tal sequer apareça no tratado, sua presença é flagrante. Isso fica explícito quando Ser
e Tempo é lido em paralelo ao curso Os problemas fundamentais da fenomenologia, no qual aparece pela primeira
vez a expressão “ontologische Differenz”.

31
ontológica naqueles termos não foi suficiente para que o filósofo conseguisse elaborar um
pensamento do ser que não o derivasse do ente. Em 1973, ao contrário, a fenomenologia se dirige
decididamente ao inconspícuo (não-ente). Neste caso, está rejeitada a perspectiva de que o
inconspícuo, ou seja, o tema da fenomenologia, seja pensado em termos de uma derivação a partir
do ente. Não só o transcendental é abandonado, mas também o ente é deixado de lado. Isso ocorre
em função de uma radicalização da pergunta pelo ser, um modo de pensar que tome o evento a
partir de si mesmo.
Para destilar, finalmente, as diferenças entre as duas fenomenologias aqui abordadas,
atente-se em primeiro lugar aos traços que distinguem seus temas. Pode ser destacado que o ser do
ente, tema da primeira fenomenologia, tem flagrantemente um caráter apriorístico. O ser do ente
antecede o ente. Já na maneira como Heidegger elabora o tema da fenomenologia do inconspícuo
não se constata mais esse caráter apriorístico ou transcendental. O evento não é o que precede o
ente, mas é precisamente aquilo que se dá na medida em que também o ente ocorre. Já sobre o
método ou o caminho dessas fenomenologias, também podemos destacar alguns traços. Na
fenomenologia do ser do ente, testemunha-se uma explícita esperança de que o seu tema é trazido às
claras via uma adequada aplicação do método ali elaborado. Proceder fenomenologicamente, neste
caso, é fazer aquilo que está “oculto de partida e no mais das vezes” vir à presença, tornar-se
manifesto. Por sua vez, no caso da fenomenologia do inconspícuo, é emblemático que o tema dessa
fenomenologia exceda a distinção entre aparente e não-aparente. De maneira tal que não se pensa
mais a fenomenologia em termos de um trazer à presença, mas de um indicar, de permitir um
vislumbre.
Além de destacar as diferenças, é possível dar ênfase às semelhanças entre o método e o
caminho. Mas ainda mais importante é ressaltar que a oposição aqui feita entre essas duas
fenomenologias não visa defender que uma substitua a outra. Ter uma fenomenologia do ser do ente
e uma fenomenologia do evento do ser (ou do inconspícuo) não implica a reformulação de um
mesmo método por decorrência de uma correção na compreensão do objeto daquele método. Mas
significa, isto sim, que o filósofo veio a propor um outro caminho cuja meta é levar ao encontro de
um outro fenômeno.
A ser assim, a aqui chamada “fenomenologia do ser do ente” e os procedimentos a ela
vinculados não devem ser tomados como se tivessem sido abandonados por Heidegger – pelo
menos não como se fosse um abandono completo. Arrisca-se dizer, inclusive, que a depender da

32
investigação em curso, ambas as fenomenologias são mobilizadas pelo filósofo. Julgo que isso fica
atestado, por exemplo, nas diversas ocasiões em que Heidegger investiga a questão da técnica.
Constata-se nesses casos redução, construção e destruição fenomenológicas. Ao mesmo tempo, tal
método parece chegar em um limite: na medida em que manifesta o ser do ente pertinente à era da
técnica (a disponibilidade [Bestellen]), o método fenomenológico se mostra insuficiente para a
reflexão acerca da proveniência desse sentido (a com-posição [Ge-Stell]), pois se trata neste caso do
evento do ser. Ao alcançar esse domínio, outras qualidades são exigidas ao pensamento. Proceder
aqui com os recursos da fenomenologia do inconspícuo, talvez, mostre-se mais produtivo.
Mas isso já é assunto para outra ocasião.

Referências bibliográficas

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33
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34
O CONCEITO DE ANGÚSTIA, SEGUNDO A FILOSOFIA E TEOLOGIA DE
PAUL TILLICH1
THE CONCEPT OF ANGST, ACCORDING TO PAUL TILICH'S PHILOSOPHY AND
THEOLOGY
Erik Dorff Schmitz2

Resumo: Neste artigo apresentaremos o conceito de angústia segundo o pensamento do filósofo e


teólogo alemão Paul Tillich. Mostraremos a etimologia e contexto filosófico do termo.
Posteriormente iremos introduzir alguns elementos que se configuram como categorias ontológicas
fundamentais, tais como, ser e não ser, finitude e infinitude, ser essencial e ser existencial,
correlacionados com as categorias e estruturas essenciais do ser humano. Após isto, iremos descrever
de forma sistemática o que é o fenômeno da angústia existencial no pensamento de Tillich, abordando
as três maneiras como este conceito é apresentado em sua obra: (1) a do destino e da morte, (2) a do
vazio e perda de significação, (3) a de culpa e condenação. Concluiremos mostrando que os três tipos
de angústia estão de certa forma concatenados, que um colabora individualmente no estabelecimento
do fenômeno da angústia existencial e na elaboração deste conceito na filosofia e teologia de Tillich.

Palavras-chave: angústia, Paul Tillich, não-ser

Abstract: In this article we will present the concept of angst according to the thought of the German
philosopher and theologian Paul Tillich. We will show the etymology and philosophical context of
the term. Later we will introduce some elements that are configured as as fundamental ontological
categories, such as being and not being, finitude and infinity, essential being and existential being,
correlated with the essential categories and structures of the human being. After that, we will
systematically describe what the phenomenon of existential angst is in Tillich's thought, approaching
the three ways in which this concept is presented in his work: (1) that of destiny and death, (2) that
of emptiness and loss of meaning, (3) the of guilt and condemnation. We will conclude by showing
that the three types of angst are somehow concatenated, that one collaborates individually in the
establishment of the phenomenon of existential angst and in the elaboration of this concept in Tillich's
philosophy and theology.

Keywords: angst, Paul Tillich, not be

1
Este artigo é um extrato do Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Filosofia da FSL- Faculdade São Luiz,
desenvolvido e concluído em 2011 sob orientação da Profa. Dra. Maria Glória Dittrich, com o título A coragem de ser
como saída para a ansiedade existencial em Paul Tillich. O capítulo II foi adaptado e atualizado para esta publicação.
2
Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz - FSL (2011) e Bacharel em Teologia pela Faculdade Católica de Santa
Catarina - FACASC (2015). Mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2019).
Graduando em Letras Português e Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisa nas
áreas de Filosofia, Teologia e Literatura.

35
Introdução

Primeiramente na base do pensamento de Tillich3, em sua obra Teologia Sistemática ele


explica que a palavra inglesa anxiety [ansiedade] só recebeu a conotação de angst [angústia] durante
a década passada a que ele redigiu sua obra4. Onde tanto angst quanto angústia são derivadas da
palavra latina angustiae, que significa estreitos (TILLICH, 2005, p. 200). Antes de adentrar-se na
reflexão da angústia em Tillich devem-se introduzir alguns elementos que se configuram como
categorias ontológicas fundamentais, tais como, ser e não ser, finitude e infinitude, ser essencial e ser
existencial, correlacionados com as categorias e estruturas essenciais do ser humano, que serão
correlacionados com os conceitos posteriores.
Perante a realidade do ser, Tillich mostra que só o ser humano pode formar a pergunta
ontológica. Essa questão surge a partir do choque do não-ser. Tendo presente que o ser está fadado a
seu possível não-ser, o ser se configura como mistério. O ser humano é a criatura que por sua liberdade
pode transcender toda a realidade dada, não está preso ao ser, pode sentir a necessidade do não-ser,
pode se indagar, se questionar (TILLICH, 2005, p. 195). Tal inquietação se configura no pensamento
humano em toda a história da humanidade, primeiramente em questões meramente mitológicas,
depois cosmogônicas e enfim filosóficas por excelência.
Poder-se-ia tentar evitar a questão do não-ser, de duas formas; uma lógica e outra ontológica.
Pergunta-se: o não-ser é algo mais do que o mero conteúdo de um juízo lógico, onde se nega uma
asserção possível ou real? Pode-se afirmar também que o não-ser é um juízo negativo que não possui
sentido ontológico. Porém, diante disso deve-se contestar que toda estrutura lógica que é algo mais
do que um simples jogo de relações possíveis está fundada em uma estrutura que é de fato ontológica.
É assim que o fato da negação lógica pressupõe um tipo de ser que pode transcender a situação

3
Teólogo e filósofo luterano alemão (n. Strazeddel,1886 – m. Chicago, 1965), considerado por muitos o maior teólogo
protestante de seu tempo, muito influente sobretudo nos países de língua inglesa. Ensinou em Berlim (1919), Marburgo
(1924), Bresda (1925) e Frankfurt (1929). Privado da cátedra pelas autoridades nazistas (1933), emigrou para os EUA,
onde foi professor em Nova Iorque, Harvard (1955) e Chicago (1962). Pensador de fronteira, no qual as principais
influências são Platão, Lutero, Kant, Kierkegaard e Heidegger. Central em todo o seu pensamento é o princípio de
correlação (correlação – interdependência de dois fatores independentes) que lhe permitiu evitar unilateralismos
redutores e segundo o qual nenhum componente fundamental da realidade – Deus e mundo, tempo e eternidade, essência
e existência, religião e cultura, filosofia e teologia – existe ou pode ser pensado isoladamente. A resposta às questões
que a análise existencial levanta é dada pela teologia: é o Novo Ser, cuja essência é o amor, o que lhe permite reconciliar
e unir o que está separado. Das suas numerosas obras (c. 40, sem contar artigos), ressalta a poderosa síntese iniciada em
1925 em Marburgo e publicada de 1951 a 1963 em Chicago (3 vols.; do ponto de vista filosófico o de maior interesse é
o primeiro). Conforme: LOGOS. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. São Paulo: Verbo. 1990. 2 v.
4
Durante nossa pesquisa constatamos que Paul Tillich se utiliza em suas obras de dois termos: ansiedade (anxiety) e
angústia (angst). Na redação do artigo optamos por utilizar o termo angústia para evitar confusões semânticas, bem
como por crermos que ela expressa mais profundamente as problemáticas discutidas pela pesquisa.

36
imediatamente dada por meio de expectativas. Tal expectativa cria a distinção entre o ser e o não-ser.
Mas surge o questionamento; como é possível essa expectativa?

A resposta é a seguinte: o ser humano, que é este ser, deve estar separado de seu ser de tal maneira que seja
capaz de olhá-lo como algo estranho e problemático. E esta separação é real, porque o ser humano não só
participa do ser, mas também do não-ser. Por isso, a mesma estrutura que torna possíveis os juízos negativos
demonstram o caráter ontológico do não-ser (TILLICH, 2005, p. 196).

Deve-se ter claro que não é possível resolver o mistério do não-ser simplesmente
considerando-o um tipo de juízo lógico. Da mesma forma não poderia haver mundo algum se não
houvesse uma participação dialética do ser no não ser (TILLICH, 2005, p. 196).
Na antropologia filosófica contemporânea Lima Vaz em sua investigação dialética reafirma
essa característica imprescindível do ser humano, onde o ser se contrapõe ao Ser Absoluto, num
movimento racional de abstração:

A experiência de abertura ao Ser na forma de experiência da negatividade inerente à nossa capacidade de


pensar, sendo o homem o único ser conhecido capaz de introduzir o não-ser na compacta unidade do Ser:
o que significa, finalmente, passar além de qualquer limitação dada dos seres e experimentar, sobre o
abismo do não-ser, a infinita transcendência do Ser (VAZ, 2001, p. 111).

O problema dialético do não-ser é inevitável, inescapável. É o problema da finitude. A questão


do finito e do infinito.
A característica proeminente do ser é sua limitação pelo não-ser, isto é, pela finitude. O não-
ser é tanto o ainda não como o não mais do ser. Ele entra constantemente em confronto com um fim
definido; finis. Por sua vez, o ser-em-si não pode ter nem princípio nem fim, senão teria surgido do
não-ser. Porém o ser precede o não-ser em validez ontológica, é o princípio sem princípio, o fim sem
fim, ou seja, ele é o seu próprio princípio e fim, o poder inicial de tudo quanto é. Porém o ser está
sempre num processo dialético, é o ser em processo de vir do não-ser e retornar a ele. É finito
(TILLICH, 2005, p. 198).
Nesse aspecto deve-se dar atenção maior, pois aí está a espinha dorsal do fenômeno da
angústia no pensamento tillichiano. Partimos da estrutura mais básica - o eu e o mundo - de onde
derivam as polaridades como individualização e participação, dinâmica e forma, liberdade e destino.
A pergunta que o ser humano faz surge do choque do não-ser. Confrontado com o não-ser, o ser
humano lança de dentro de si mesmo a pergunta do não-ser. E ao fazê-la se percebe como ser finito,
limitado, contingente. Mas só porque raciocina, questiona, indaga é que percebe essa peculiaridade
de sua condição (MUELLER; BEIMS, 2005, p. 80).
Chega-se aqui numa situação de fronteira, característica do pensamento de Tillich, pois essa
relação entre finitude e infinitude é distinta de outras relações onde elementos se chocam. Não são

37
somente polos de tensão, mas de limites que abrem para a transcendência. As estruturas da finitude,
a condição essencial do ser humano, o fazem transcender-se, e num processo racional encontrar
respostas na perspectiva da abertura de seu ser ao Ser Absoluto (MUELLER; BEIMS, 2005, p. 80).
O ser humano não tem como fugir da finitude. Tanto sua estrutura ontológica básica quanto
os elementos ontológicos implicam a finitude. Há uma correlação entre o ser eu, a individualidade, a
dinâmica, a liberdade, onde todos eles incluem a multiplicidade, a definição, a diferenciação e a
limitação. Ser algo expressa ser finito. E todas as categorias do pensamento e da realidade são
expressões dessa situação (TILLICH, 2005, p. 198).
A finitude implica resgatar estruturas onto-antropológicas essenciais do ser humano, da
pessoa. Em relação ao mundo, o eu finito possui o poder de participação universal, existe uma
intencionalidade ilimitada na estrutura humana. E como liberdade, o ser humano está sempre
envolvido por um mundo e um destino englobante, circundante. Porém, todas as estruturas e
categorias da finitude fazem com que o ser finito transcenda a si mesmo, tomando assim a consciência
de fato, de sua finitude (TILLICH, 2005, p. 198).
A infinitude é um conceito que faz a mente experimentar suas próprias potencialidades
limitadas, mas não estabelece a existência de um ser infinito. Pode-se afirmar que até mesmo uma
doutrina física da finitude do espaço não pode impedir que a mente pergunte o que há por detrás do
espaço finito. Mas também não se pode dizer que o mundo é infinito somente porque não se pode ter
a infinitude como objeto. Seria muita ingenuidade (TILLICH, 2005, p. 198).
O ser humano, porém, nunca está satisfeito com os estágios que vai atingindo em seu
desenvolvimento finito. Mesmo ciente que a finitude é seu destino há em suas estruturas a relação de
tudo o que é finito com o ser-em-si. A finitude na consciência do ser é angústia.

Como a finitude, a angústia é uma qualidade ontológica. Ela não pode ser derivada; só pode ser vista e
descrita. [...] Como qualidade ontológica, a angústia é tão onipresente quanto a finitude. A angústia é
independente de qualquer objeto específico que possa provocá-la; tão somente é dependente da ameaça do
não-ser que é idêntica à finitude. [...] Neste sentido, tem-se afirmado com razão que o objeto da angústia é
o “nada” – e o nada não é um “objeto”. A angústia sempre está presente. [...] Ela pode, pois, manifestar-se
em todo e qualquer momento, inclusive nas situações onde nada há a temer (TILLICH, 2005, p. 200).

Não se tem agora por objetivo descrever a angústia no pensamento de Tillich, porém somente
dar algumas indicativas de como ela se funda na raiz das estruturas do ser humano. Atinge o âmago
do ser pelo fato de indagar algo que condiz com a condição de todos, ninguém está isento de ser finito,
e de sentir a angústia sobre si. Para Tillich a angústia é ontológica, o temor é psicológico. A angústia
é um conceito ontológico ao expressar a finitude desde dentro, no centro, profundamente; é a
autoconsciência do eu finito como finito.

38
1. A angústia existencial

Após a abordagem de alguns elementos onto-antropológicos fundamentais da estrutura do ser


humano, deve-se descrever de forma sistemática o que é o fenômeno da angústia existencial no
pensamento tillichiano.
Deve-se considerar a angústia em seu aspecto ontológico, daí se poder fazer a primeira e mais
básica afirmação: “ansiedade é o estado no qual um ser tem ciência de seu possível não-ser. [...]
Ansiedade é a consciência existencial do não-ser” (TILLICH, 1976, p. 28). Por existencial, Tillich
quer mostrar que não é somente a consciência do não-ser que produz a angústia, mas é saber que o
não-ser é uma parte do ser, e isso é daí gerado. A angústia é finidade, a própria finidade do ser. É
angústia do não-ser (TILLICH, 1976, p. 28).
A respeito disso, reflete Maria Glória Dittrich:

A ansiedade é intrínseca à finitude do ser humano. Ele vive diuturnamente um estado somático-
psicoespiritual de enfrentamento entre o que ele é e o que ele poderá ser, entre o ser e o não ser, entre a vida
e a morte (DITTRICH, 2010, p. 185).

O não-ser é dependente do ser que nega, pois tem uma prioridade ontológica do ser sobre o
não-ser. Ou melhor, se sabe que não haveria negação se não houvesse afirmação precedente para ser
negada. Há um fato primordial: de que há alguma coisa, e não coisa nenhuma [nada]. Ele, o nada, só
se torna coisa nenhuma em contraste com alguma coisa. É possível afirmar que o não-ser é dependente
das qualidades especiais do não-ser, que ele as obtém em relação ao ser. Ou seja, o caráter de negação
do ser é determinado por aquilo que é negado no ser. Assim se torna possível falar de qualidades do
não-ser e dos consequentes tipos de angústia (TILLICH, 1976. p. 31-32).
Na reflexão tillichiana usam-se formas correspondentes a diferentes modalidades de angústia,
que só são compreensíveis em correlação entre si:

Sugiro que distingamos três tipos de ansiedade de acordo com as três direções nas quais o não-ser ameaça
o ser. O não-ser ameaça a auto-afirmação “ôntica” do homem, de modo relativo, em termos de destino, de
modo absoluto em termos de morte. Ameaça a auto-afirmação espiritual do homem, de modo relativo em
termos de vacuidade, de modo absoluto, em termos de insignificação. Ameaça a auto-afirmação moral do
homem, de modo relativo em termos de culpa, de modo absoluto, em termos de condenação. A confirmação
desta ameaça tripla é a ansiedade, aparecendo em três formas, a do destino e da morte (em resumo, a
ansiedade da morte), a do vazio e perda de significação, (em resumo, a ansiedade da vacuidade), a de culpa
e condenação (em resumo, a ansiedade da condenação) (TILLICH, 1976. p. 32).

Tillich define assim de forma ainda básica a angústia em seus três tipos que se correlacionam,
e configuram esse fenômeno existencial. Tal fenômeno quer se deixar claro, tem caráter existencial e
ontológico, não psicológico ou de neurose mental, como em correntes psicológicas e/ou psicanalíticas
contemporâneas, que foram brevemente acenadas no início desse capítulo.

39
2. A angústia do destino e da morte

Pelo destino e morte se configuram os meios pelos quais a autoafirmação ôntica5 do ser
humano é ameaçada pelo não ser. A angústia do destino e da morte é a mais básica, mais universal e
inescapável, pois todas as tentativas de negá-la são falhas. Existencialmente todo ser humano tem
consciência da perda biológica do eu, de sua extinção (TILLICH, 1976, p. 32).
Tillich constata que a angústia da morte cresce com o aumento da individualização e que os
povos nas culturas coletivistas são menos atingidos por essa angústia. A diferença reside no fato de
que o tipo de coragem que caracteriza o coletivismo enquanto está firme, alivia a angústia da morte.
Mesmo assim o ser humano em toda civilização, de certa forma, é angustiosamente afetado pela
ameaça do não-ser (TILLICH, 1976, p. 34).
A ameaça contra a autoafirmação ôntica do homem não é só a da morte, é também a do destino.
O termo destino acentua um elemento: seu caráter contingente, sua imprevisibilidade, a
impossibilidade de mostrar sua significação e propósito. Isso pode ser demonstrado pelas estruturas
categóricas do ser que já foram apresentadas anteriormente. A saber, a contingência do ser pelo
caráter temporal, o fato da existência se dar neste e não em outro período de tempo, iniciado e findado
num momento contingente, preenchido com experiências que são contingentes elas próprias no
referente à qualidade e quantidade. Assim também se dá a contingência do ser no espaço, pois só se
pode estar em um lugar e não em outro. O caráter contingente é a relação do ser em seu olhar ao
mundo que o circunda. Ambos, o eu e o mundo, poderiam ser diferentes, isso produz a angústia
referente ao caráter espacial da existência. Assim também a contingência da interdependência causal
da qual se é uma parte, diz respeito tanto ao passado quanto ao presente, e as forças ocultas nas
profundezas do eu. Por contingente não se quer dizer causalmente indeterminado, mas significa que
as causas determinantes da existência não têm necessidade fundamental (TILLICH, 1976, p. 34).
A ameaça do não-ser à autoafirmação ôntica do ser humano é absoluta na ameaça da morte e
relativa na ameaça do destino. A ameaça relativa existe porque em sua base está a ameaça absoluta.
O destino só produz angústia porque tem a morte por detrás de si. A morte está presente não só no
último momento, mas em todos os momentos da existência. De fato, a angústia do não-ser toma conta
de todo ser. Contra isso, tenta-se ir corajosamente contra os objetos em que a angústia se corporifica.
Porém não se tem êxito por completo, pois se sabe que não são esses objetos com os quais se luta que
produzem a angústia, mas a condição humana como tal (TILLICH, 1976, p. 35).

5
Por “ôntica”, do grego “on” - “ser”, significa a autoafirmação básica de um ser pela sua simples existência. E
“ontológica” designa a análise filosófica da natureza do ser.

40
3. A angústia da vacuidade e insignificação

O não-ser ameaça além da autoafirmação ôntica, também a autoafirmação espiritual do ser


humano. Essa autoafirmação espiritual acontece em cada momento em que o ser vive criadoramente
nas diversas esferas da criação. Criador para Tillich significa viver de modo espontâneo, em ação e
reação, de modo ativamente intencional com o conteúdo da vida cultural. Pois todo ser humano que
participa e vive criadoramente em significações, se afirma como um significante nessas afirmações.
Afirma-se quando recebe e transforma a realidade de forma criadora e dinâmica. Ama-se a si próprio
por produzir seu conteúdo, e o ama porque é produto para sua própria realização humana. O ser
humano é possuído pelo conteúdo de sua descoberta. É o que se chama autoafirmação espiritual
(TILLICH, 1976, p. 36).
Essa experiência espiritual pressupõe uma realidade de seriedade básica, onde a realidade das
manifestações e sua intencionalidade constituem a realização humana. Do contrário, uma vida
espiritual em que isso não é experimentado é ameaçada pelo não-ser nas duas formas pela qual ela
ataca a autoafirmação espiritual: vacuidade e insignificação. A insignificação demonstra a ameaça
absoluta a autoafirmação espiritual, enquanto o termo vacuidade à ameaça relativa a ela. Na base da
vacuidade está a insignificação, como se mostrou que na da morte está a do destino (TILLICH, 1976,
p. 36-37).
A angústia da vacuidade surge pela ameaça do não-ser ao conteúdo especial da vida espiritual.
Há uma certeza que rompe através dos processos interiores: o ser humano é cortado da participação
criadora numa esfera de cultura, se sente frustrado a respeito de algo que se tinha afirmado com
paixão, pois se é conduzido a devoção de um objeto por outro e ainda por outro, e assim
sucessivamente. Pois o sentido deles se esvaece, e o eros criador se transforma em indiferença ou
aversão. Tudo é buscado, mas nada satisfaz. A tradição já não pode afirmar seu conteúdo hoje, e a
cultura presente também não promove conteúdo. Ansiosamente se volta para longe de todo conteúdo
concreto e procura-se um significado básico, só para descobrir que foi a perda de um centro espiritual
que retirou o significado do conteúdo especial da vida espiritual. Porém, um centro espiritual não
pode ser produzido intencionalmente, e a tentativa de produzi-lo só produz angústia mais espessa. A
angústia da vacuidade conduz a insignificação (TILLICH, 1976, p. 37).
A insignificação está como ameaça implícita na finidade do homem e realizada no extravio
do homem. Descreve-se em termos de dúvida, sua função criadora e destruidora na vida espiritual.
Somente o ser humano é capaz de indagar porque está separado de embora participando em, daquilo
sobre o que está perguntando. E em toda pergunta está um elemento de dúvida, a certeza de não haver,

41
de não-ser. A ameaça da insignificação não é a dúvida como elemento, mas a dúvida total, que não
deixa de ser um elemento da vida espiritual. Contra isso, a vida espiritual tenta ainda se manter
apegando-se a afirmações que ainda não estão minadas, sejam tradições, convicções autônomas ou
preferências emocionais. Mesmo que não é possível remover a dúvida, se aceita o fato com coragem,
sem renunciar as nossas convicções (TILLICH, 1976, p. 37-38).
Assim, as autoafirmações ôntica e espiritual sobre as quais se sobressaem a angústia da
vacuidade e insignificação, podem ser distintas, porém não separadas. Pois o ser do homem inclui
uma relação de intencionalidade, ele não permanece inerte diante do que o atinge. O ser humano só
tem essa natureza por compreender e moldar a realidade, seu mundo que o circunda tem significado
próprio, de acordo com os valores que estabelece. Em um primeiro momento significativo já está
presente toda a riqueza da vida espiritual do ser. Surpreende o fato de que é preferível atirar fora a
própria existência ôntica, do que ter de suportar a angústia provocada pela vacuidade e insignificação.
Assim, se a autoafirmação ôntica é enfraquecida pelo não-ser, a indiferença espiritual e vacuidade
podem ser a consequência, produzindo um círculo de negatividade ôntica e espiritual. Não-ser ameaça
ambos os lados, o ôntico e o espiritual; se ameaça um, ameaça também o outro (TILLICH, 1976, p.
39).

4. A angústia da culpa e condenação

Na reflexão tillichiana a ameaça ao não-ser é vista ainda por um terceiro lado: a ameaça a
autoafirmação moral do ser humano. Entende-se que o ser do homem, não só é dado a ele, mas
também reclamado dele. Pois é exigido que se responda por ele próprio, ninguém pode responder por
outro. Cada pessoa é responsável pelos atos de seu ser, tem senhorio sobre si. E aquele que lhe
pergunta é ele mesmo; o ser humano é juiz de si mesmo, e ao mesmo tempo se coloca contra seu
próprio ser, volta-se sobre si mesmo, examinando-se. Esta ambiguidade produz a angústia, que em
termos relativos é a da culpa, e em termos absolutos a da condenação (TILLICH, 1976, p. 39-40).
O ser humano é por essência liberdade finita; afirmamos isso no sentido de que ele é capaz de
se determinar por meio de decisões no núcleo de seu ser. Ele é requerido a fazer e construir de si o
que se supõe ele possa tornar-se para realizar seu destino. É também em seus atos morais que o ser
humano contribui para a autorrealização de seu destino, para a concretização do que é potencialmente.
Porém, mesmo a regra estando pré-estabelecida, o ser humano sendo livre tem o poder de agir contra
ela, contradizendo sua essência e perdendo seu destino. Ao fazer algo, mesmo naquilo que pode
parecer seu melhor feito, o não-ser está perfeito e impede-o de ser perfeito. É uma incerteza constante

42
que perpassa o âmago do ser, a ambiguidade de se fazer o bem ou o mal. Essa incerteza é o sentimento
de culpa. Está impresso na consciência, que se torna juíza do próprio ser humano, e faz um julgamento
negativo; é o sentimento de culpa. Essa angústia mostra as mesmas características complexas da
angústia da morte e a da condenação. A angústia da culpa e condenação em sua ameaça ao ser ôntico
e espiritual, está presente em cada momento da autoconsciência moral, e pode levar o ser a completa
auto rejeição; demonstrado no sentimento de estar condenado não a um castigo externo, mas no
desespero de perder o próprio destino (TILLICH, 1976, p. 40).
O não-ser do ponto de vista moral pode ser distinguido mas não separado do não-ser ôntico e
espiritual, pois a angústia de um tipo é imanente nas angústias dos outros tipos. A ameaça do não-ser
moral é experimentada em, e através da ameaça do não-ser ôntico. As contingencias do destino nesse
sentido, recebem interpretação moral: o destino executa o julgamento moral, destruindo a fundação
ôntica da personalidade moralmente repudiada. As duas formas de angústia aumentam uma a outra,
bem como não-ser espiritual e moral são interdependentes. Porém, a obediência a norma moral que
está na essência do ser humano, exclui a vacuidade e insignificação. E assim, se o conteúdo espiritual
perdeu seu poder, a autoafirmação da personalidade moral é um meio pelo qual a significação pode
ser redescoberta (TILLICH, 1976, p. 41).

Conclusão

Dessa forma, os três tipos de angústia abordados estão de certa maneira entrelaçados, que um
colabora individualmente no estabelecimento do fenômeno da angústia existencial. Todos eles são
existenciais, estão implícitos na existência do ser humano em sua relação com o mundo, com o outro
e com o transcendente, na sua realização, mas também na sua finitude (TILLICH, 1976, p. 42). Estão
também enraizados na situação de desespero, como afirma Tillich: “Desespero é uma situação
extrema. [...] Não se pode ir além dela. Sua natureza está indicada na etimologia da palavra desespero:
sem esperança. [...] O não-ser é sentido como absolutamente vitorioso” (TILLICH, 1976, p. 32).
Porém, há ainda um limite para a sua vitória; se não-ser é sentido como vitorioso, o fato de sentir
pressupõe ainda ser. Dessa forma, tendo em vista o aspecto possível do desespero, sob o qual não se
adentrará mais que isso nessa reflexão, fica evidente que a vida humana pode até ser interpretada
como uma tentativa de evitar o desespero.
Por mais conceitual e estritamente filosófica que nossa discussão se mostrou, os conceitos de
angústia que Tillich elabora em sua obra magna podem ser hoje afirmados diante das realidades
sociais e contemporâneas que encontramos. A problemática da finitude é subjetivamente

43
desesperadora frente as realidades que assolam a humanidade desde suas origens: guerras, conflitos,
tensões, violências, doenças, dor, morte. Meios para afastar ou eliminar tal desespero são buscados
continuamente, mas insuficientes frente a vacuidade da condição humana. Tillich, mesmo elaborando
reflexões a respeito de conceitos clássicos da filosofia, ousou em esmiuçar a fundo como tal querela
se constitui filosoficamente e antropologicamente. Assim, afirmamos que retomar a obra do filósofo
alemão reforça o quão atual a reflexão filosófica a nível conceitual e ontológico está das realidades
da vida humana e social.

Referências bibliográficas

DITTRICH, M. G. Arte e criatividade - espiritualidade e cura: A teoria do corpo-criante.


Blumenau: Nova Letra, 2010.
MUELLER, E. R.; BEIMS, R. W. (Org.). Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul Tillich em
perspectiva interdisciplinar. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2005.
TILLICH, P. A coragem de ser. 5 ed. Tradução de Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.
_______. Teologia sistemática. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
VAZ, H. C. L. Antropologia filosófica II. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. v. 2.

44
LUCIANO VIAJANTE: NOVOS CAMINHOS RUMO AO OUTRO
LUCIAN TRAVELER: NEW WAYS TO OTHERNESS

Gilberto de Melo Caldat1

Resumo: Este artigo tem por intenção delimitar alguns sentidos através dos quais pode ser dito que
Luciano de Samósata alcança, para além de outros autores do mundo grego clássico e helenístico,
novas vias para se pensar a questão do que é ser outro, estrangeiro, bárbaro. Para isso, o artigo lança
mão de alguns temas fundamentais tratados pelo autor samosatense como a questão da autoctonia,
do estrangeirismo e do mundo, abraçado por ele, tanto das viagens quanto da ficção.

Palavras-chave: Luciano de Samósata, alteridade, viagens, ficção

Abstract: This article intends to delimitate how Lucian of Samosata reaches, beyond other authors
of classic and hellenistic greek world, new ways to think what is to be a foreigner, a barbarian, in
sum, what is to be “an other” in this very same world. To do so, this article dives into the deep
waters of some of the fundamental subjects of this classical author: autochthony, barbarism,
travels, fiction.

Keywords: Lucian of Samosata, otherness, travels, fiction

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR (linha de pesquisa: História da Filosofia). ORCID:
0000-0003-4513-1584. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES).

45
Pensai em viver com liberdade
Cyrano de Bergerac

O Suda, lembra-nos Jacyntho Lins Brandão, caracterizou Luciano de Samósata como um


blasfemo peregrino, capaz de rir até das divindades (BRANDÃO, 2015, p. 17). Com extensa obra,
Luciano percorre os gêneros literários e as correntes de pensamento que lhe chegaram às mãos e aos
ouvidos com um misto de cômica seriedade e de séria ironia, quase sempre, no entanto, com
talentosa maestria e grande profundidade filosófica. A alcunha de peregrino que o Suda lhe cola é
válida, penso eu, não só por ter ele tido uma vida itinerante – por suas supostas andanças, que o
levariam do Oriente Próximo até o Egito, Grécia e Roma –, mas também por sua obra ter um caráter
híbrido, flutuante, móvel2: tanto é assim que ele mesmo a caracterizaria como uma mescla de
gêneros tão díspares quanto o mais sisudo diálogo filosófico de Platão e a cômica por excelência
sátira menipeia.
Embarcar nessa intensa mobilidade luciânica – na jornada paradoxal que seu texto
multiversátil nos apresenta – torna-se então a proposta central do presente artigo, artigo esse que
pretende trazer à luz alguns pontos que, a meu ver, fazem do singular trabalho do autor samosatense
paradigmático para se pensar, a partir da literatura e da filosofia antigas, a agenda, tão
contemporânea, das possíveis alteridades. Para tanto, mergulharemos em temas caros a esse autor
tão importante3 quanto relativamente desconhecido do público brasileiro em geral, buscando com

2
“Uma exótica figura”, diz-nos Whitmarsh, “tanto no nível de sua literatura, quanto no nível de sua identidade pessoal
(WHITMARSH, 2005, p. 37)”.
3
Bowersock aventa que Luciano aparentemente não teria tido tanta importância ou ao menos não teria tido grande
recepção no contexto retórico da segunda sofística, não sendo lembrado, por exemplo, em suas Vidas dos Sofistas, por
Filóstrato. No entanto, o autor samosatense seria sim relevante caso tomemos como pauta autores que foram suspicazes
observadores de seu tempo, tempo esse que ele descreveu de modo “inteligente e cultivado, embora muitas vezes
intemperante”, como afirma o intérprete (BOWERSOCK, 1969, p. 115). Interessantemente, essa mesma característica
portada, segundo Bowersock, pela obra de Luciano, a saber, a de ser um meio privilegiado para que a cultura grega do
segundo século a.C. pensasse a si mesma, seria, agora segundo Whitmarsh, exatamente uma das características centrais
dos autores da segunda sofística (WHITMARSH, 2005, p. 22). Tal intérprete, de sua parte, não hesita em integrar
Luciano entre os nomes mais relevantes desses tais sofistas mais tardios, autores cuja identidade seria também
efetivamente formada na alteridade da relação autor/público, uma vez que suas obras, para que sejam mais
concretamente compreendidas, sugere o intérprete, nunca deveriam ser pensadas tão somente a partir da letra “morta”
do texto, mas sempre a partir da complexidade da relação texto/performance pública, ou ainda, para ser mais exato, da
relação texto/performance pública/público. Em outras palavras, quando se fala da obra de um desses autores, não
poderemos deixar escapar sua alteridade inerente, alteridade essa que proviria também do fato de serem elas obras que
só ganhariam – e assim ganharam, em seu determinado contexto histórico – efetiva significância através de sua
performance pública e da reação do mesmo público, composto também por seus pares, diante de tal performance: os
sofistas eram, afinal, retóricos e, enquanto tais, performers cuja identidade estaria necessariamente ligada a elementos

46
isso resgatá-lo a partir de seu avesso e oblíquo espelho: seu estrangeirismo, seu hibridismo, sua
polifonia, sua profunda liberdade e seu tremendo salto na criação ficcional, seu espírito peregrino.

1. Entre os gregos, o bárbaro?

O tema das viagens era uma espécie de lugar-comum caro à literatura e ao pensamento de
origem grega, afinal um de seus textos mais basilares é um extraordinário relato de viagem: a
Odisseia de Homero. Entretanto, o relato homérico parece sempre aspirar um retorno à casa, a
Hélade é o destino e o que move todas as peripécias de Odisseu, seu personagem central, como se
ali a viagem em si mesma fosse apenas um grande empecilho, uma imagem fora de lugar, o fruto
inesperado de um pesado castigo divino que o deus marinho lançou ao herói de mil ardis que antes
ousara desafiá-lo.
A Odisseia, apesar da viagem e apesar de cantar também a ouvintes não-gregos, é ainda,
portanto, um canto grego por excelência, sempre ditado pelo grego Odisseu, que retém consigo o
discurso e é movido por sua constante saudade de casa. A viagem da Odisseia não é, nesse sentido,
a viagem mais radical que se perde de si ao ir em direção ao outro, ao não-grego, ao bárbaro: o
objetivo de Odisseu é sempre sua própria imagem no espelho, seu canto é de identidade e não de
diferença.
Poderíamos contestar em parte, obviamente, tal visão de Homero, dizendo que, por
exemplo, ao menos na Ilíada, ele teria voltado os olhos com maior atenção ao mundo não-grego,
visto que os troianos se igualariam às tropas helenas em dimensão e importância no grande poema.
Todavia, o deslocamento de perspectiva, tão típico ao mundo dos viajantes, é aí ainda tímido, pois o
que tudo origina é a ira do grego Aquiles, o que tudo motiva é o rapto da bela grega Helena, e o que
tudo finda é a ruína de Tróia e a glória vitoriosa dos gregos4.
Depois de Homero, Heródoto é outro que, em suas Histórias acerca das Guerras Médicas,
se não nos apresenta propriamente um relato de viagem, faz com que seus leitores gregos viajem
através de terras e costumes bárbaros que, do início ao fim, permeiam a obra. Desde o elogio de

performáticos como “roupas, ações e trejeitos faciais e corporais” (WHITMARSH, 2005, p. 40). Apesar de reconhecer,
junto com tal intérprete, a grande importância de se pensar tal “íntima alteridade” em um autor como Luciano,
deixaremos esse estudo mais específico e deveras complexo, devido a tempo e espaço aqui mais exíguos, para um outro
momento. Para o leitor que ainda não teve a oportunidade de conhecer a obra de Luciano, lembremos ainda aqui que,
pensado para lá de seu tempo, o samosatense tem seu nome levado adiante como um dos grandes: do utópico
renascimento de Thomas More ao realismo à brasileira de Machado de Assis sua influência não é de somenos
importância.
4
Visão parecida com essa é compartilhada, por exemplo, por autores como Barbara Graziosi: “Apesar de alguns
estudiosos insistirem que o poeta trata com imparcialidade os troianos e os aqueus no poema, o resultado é que ele, de
forma bastante literal, vê a guerra pelo lado dos aqueus” (GRAZIOSI, 2021, p. 72).

47
Sólon, descrito como um sábio viajante (HERÓDOTO, I, § XXX) até as várias páginas dedicadas
ao Egito e à Cítia, o texto do historiador de Halicarnasso é até hoje instigante.
No entanto, também ele, caso levemos em conta o interessante artigo de James Redfield –
Herodotus the Tourist – passaria ainda longe de ser uma espécie de antropólogo avant la lettre e
estaria sim mais perto de um turista contemporâneo a coletar objetos, a colecionar emblemas
díspares que mais servirão para reposicionar o próprio status, os próprios nomoi, do que
propriamente para pensar o outro, o estrangeiro, o não-grego em sua alteridade (REDFIELD, 1985,
p. 98-99), ou seja, o Egito e a Cítia de Heródoto ainda seriam o Egito e a Cítia para a Grécia e não o
Egito e a Cítia para si mesmos. A viagem de Heródoto seria, destarte, nesse sentido, também uma
viagem de quem anseia retornar à casa.
Caso consideremos Heródoto igualmente um autor da semelhança e não da diferença, é
claro que ainda poderíamos sim encontrar em suas linhas traços do pensamento da alteridade, basta
para isso que lembremos, por exemplo, para além de Sólon – o célebre legislador e viajante grego –
de seu contraponto cita Anacársis, que também marca presença nos escritos do historiador cário:
“um cita, um bárbaro, um nômade vindo da Cítia à Grécia (...) o sábio do norte que está presente,
como membro de pleno direito dessa confraria (a confraria dos Sete Sábios gregos), em que
desempenha um papel importante” (HARTOG, 2014, p. 143). A saber, Anacársis, junto de
“Nilóxeno, o estrangeiro do Nilo” (HARTOG, 2014, p. 143), é dentro da obra de Heródoto como
que um lembrete de que o coração do pensamento grego, desde sua mais tenra infância, deveria ser
também pintado com cores bárbaras e que, quiçá, o chão do que hoje conhecemos como o solo
firme da cultura helênica fosse desde o início tão movediço quanto a nave de Odisseu ou as lendas
que faziam viajar a ilha de Delos. Heródoto, porém, repito, ao falar, ao fabular do outro, toma-o
apenas como limite, espanta-se com o outro, mas parece não o reconhecer propriamente em sua
especificidade; fala do outro, mas não fala propriamente a partir do outro: seu centro de gravitação,
enfim, é ainda o mundo grego.
Na aurora da filosofia, são bem conhecidas as histórias acerca das viagens de Pitágoras ao
Egito e sua admiração pelas terras sagradas do Nilo. A metáfora do caminho é também aí
evidenciada, aparecendo como centro do poema de Parmênides e em alguns fragmentos de
Heráclito, o que faz do primevo pensamento filosófico igualmente filho da tradição grega do
Odisseu viajante.

48
No entretanto, parece ser com Platão que a imagem viva da viagem se torna, por fim, o
centro daquilo que se revela como o “trabalho” mesmo da filosofia5, pois ao tomar as viagens
tradicionais da theoría como modelo daquilo que faz o filósofo6, Platão assume para si, de forma
inconteste, a tradição homérica do herói viajante, recriando-a à sua maneira. Mas o modelo de
Platão ainda é um modelo que se restringe ao mundo grego – afinal as viagens da theoría se referem
aos encontros pan-helênicos – e seus estrangeiros, como o estrangeiro de Eléia e o estrangeiro de
Atenas, ainda se sabem portar qual um grego, dialogando prioritariamente em favor do pensamento
grego.
Por fim, creio que, mesmo que saibamos ser a obra platônica deveras mais complexa,
podemos compreender o filósofo de Platão também como um viajante atrás do próprio espelho.
Viajante esse que, mesmo tomando caminhos diferentes, assume para si, qual Odisseu, a tarefa de
levar adiante, de afirmar a própria identidade, a própria cultura – a paideia grega – deixando com
isso um tanto de lado a figura mais radical do outro, do estrangeiro, do bárbaro7.
O tema das viagens ainda aparece no século IV a.C. em textos de Xenofonte, por exemplo,
e para além da Grécia Clássica, no início do helenismo, Apolônio de Rodes faz do tema mais uma
vez um leitmotiv nas Argonáuticas. Mas é já no segundo século de nossa era que encontraremos o
pensador que, ao trabalhar também sob o mote das viagens, talvez possa responder com maior
precisão à nossa questão-guia – haveria na literatura grega alguém que trabalhe, para além da mera
viagem, com maior radicalidade a questão do outro? – ora, penso eu que se há um bom candidato
para que possamos responder afirmativamente a tal questão, tal candidato é Luciano de Samósata,
autor que aqui será nosso foco.

2. Das fronteiras sírias ao centro do mundo grego

Luciano é um personagem híbrido e marginal, sírio de nascimento, vive, desde a infância,


também em contato com o amálgama das influências da política e do militarismo romano – com

5
Vide para isso os interessantíssimos trabalhos de Andrea Nightingale – Spectacles of Truth in Classical Greek
Philosophy: Theoria in its Cultural Context (2004) – e Ian Rutherford – State Pilgrims and Sacred Observers in Ancient
Greece: A Study of Theoria and Theoroi (2013).
6
Vide, por exemplo, a célebre alegoria da caverna, onde o filósofo “imita” o theorós em sua viagem cívica, isto é,
ascende, desde a caverna, em árdua caminhada até a verdade, voltando posteriormente ao mundo cavernícola para
contar aos seus a sublime novidade vista lá fora. Dessa maneira, o filósofo de Platão repete, em outro nível, o que
faziam os oficiais viajantes gregos – conhecidos como theoroi – em relação a suas cidades gregas de origem.
7
Obviamente sabemos ser a obra de Platão deveras complexa para ser tratada em tão breves sentenças. A própria
questão do Bem poderia ser pensada, neste caso, como um caminho para o radicalmente outro em Platão (agradeço aqui
a sugestão de Maicon Reus Engler). No entanto, não é exatamente nesse sentido que aqui buscamos a figura do outro.

49
nome latino, vive nas fronteiras do grande Império – e da cultura grega, como novamente nos
lembra Jacyntho Lins Brandão:
Trata-se, portanto, de uma questão complexa: como um sírio de origem, grego por formação, percebe e
explicita a situação de domínio romano? Tão mais complexa se torna a questão quanto essa encruzilhada
de três caminhos remete não para períodos sucessivos, mas para uma experiência primeira do mundo,
numa terra natal, ela também, síria de origem, culturalmente helenizada e guardiã das fronteiras orientais
do Império (BRANDÃO, 2001, p. 188).

Luciano levava consigo, portanto, a marca da diferença, diferença essa que houvera
vivenciado desde muito jovem. O mais interessante, entretanto, é que ele se torna com isso não só
um personagem “fronteiriço”, mas também o porta-voz de um discurso de fronteira, ou seja, um
discurso que tem como identidade mais própria o fato de reter em seu seio o movimento mesmo da
alteridade. Sua própria linguagem, como o professor Jacyntho Lins Brandão brilhantemente
sustenta em A Poética do Hipocentauro, é um exemplo dessa internalização da diferença: seu texto
é um híbrido entre o gênero cômico e o diálogo filosófico que, ao assumir a pura liberdade da
ficção, não é nem comédia, nem filosofia, mas permanece marginal. A Luciano interessa “antes,
fazer deslizar o discurso por todas as modalidades possíveis de marginalidade” (BRANDÃO, 2001,
p. 264).
Uma das marcas dessa alteridade – desse permanecer à margem – dá-se, por exemplo, no
pequeno texto Sobre o Sonho ou Vida de Luciano, onde, em um registro em primeira pessoa, o
samosatense relata a escolha original que o levou ainda jovem em direção à paideia grega (retórica,
teatro, filosofia).
Vindo de uma família de escultores, o sírio desloca seu caminho natural – um filho
de escultores teria naturalmente de seguir o caminho da escultura – para escolher a senda da
paideia. Luciano deixa com isso de ser alguém fadado ao trabalho braçal – “um trabalhador manual
que das mãos tira do que viver” (LUCIANO, 2015, p. 35) – para ser alguém que caminha no campo
tão mais nobre e livre quanto mais movediço dos belos discursos. O fato é que tal registro de
alteridade, o que marca aí a carreira de Luciano desde seu início, confunde-se com a questão da
escolha que, tão cara ao mundo grego da democracia e da filosofia, permeará também a obra do
autor sírio. O próprio aventar de Luciano para a possibilidade da escolha o coloca em deslocamento:
o sírio de nascimento se torna, através da possibilidade aberta da eleição de seu próprio caminho,
um grego de espírito.
Em outras palavras, Luciano leva consigo, desde o início, ao fazer do próprio destino
algo elegível, a marca da vereda menos reta, da hibridez, da alteridade, da trilha tortuosa pela qual
seguirá sua obra daí em diante. Em verdade, mesmo que tenha nascido em região culturalmente
helenizada, como Lins Brandão nos lembra no fragmento supracitado, o texto Sobre o Sonho nos

50
faz pensar que a eleição pela educação grega era algo que exigia luta e subversão para alguém sírio
de nascimento – um “fronteiriço”, um “marginal” – como ele. Apesar de tudo, a cultura grega ainda
era, para alguém com tal descrição, por natureza algo estrangeiro, mas Luciano, ainda assim,
preferiu a liberdade da escolha do diferente.
Luciano é, destarte, um estrangeiro que elege a Grécia, seu caminho é traçado desde a
fronteira até o centro8 – a paideia grega – o caminho inverso do que fazem outros autores, como era
o caso de Heródoto, por exemplo. Tal registro fica claro em um pequeno texto do samosatense
intitulado O Cita, texto esse em que o espanto inicial não é o do grego ao topar frente a frente com
os costumes egípcios ou com as criaturas “monstruosas” da Índia, mas sim o do bárbaro a enfrentar
pela primeira vez uma grande cidade grega. O sírio repete aí os passos do cita Anacársis:
Anacársis, acabado de desembarcar, subia do Pireu [para Atenas], um estrangeiro e um bárbaro, não
pouco perturbado da mente com tudo aquilo, pois estranhava tudo, assustado com tanto barulho, sem
saber o que fazer consigo próprio. Realmente apercebia-se de que estava a ser motivo de troça por parte
dos que o viam com aquele vestuário, e além disso não encontrava ninguém que falasse a sua língua
(LUCIANO, IX, 2013, p. 70).

Em tal texto, um discurso feito em terras macedônias, Luciano, além de comparar sua
jornada com a do famoso cita Anacársis – “passa-se comigo o mesmo que aconteceu a Anacársis”
(LUCIANO, IX, 2013, p. 74) – compara-a também a de outro célebre cita denominado Tóxaris.
Todos os dois, assim como ele, haviam abandonado a distante terra natal no afã de conhecer mais de
perto a cultura helênica. Nessa dupla comparação, percebemos um primeiro movimento, que é
também um movimento luciânico, justamente a vontade de conhecer intimamente uma “outra”
cultura, outros modos e costumes, mesmo que esses lhe assombrem em um contato inicial. Com
isso, Luciano já tende a ir além de autores, tal qual Heródoto, que parecem nunca criar intimidade
suficiente com uma cultura estrangeira para que, a partir disso, possam passar do assombro
inaugural ao reconhecimento do outro. O máximo que autores assim conseguem fazer, é fazer do
outro um espelho de si mesmo – lembremos do elogio do persa Otanes a um governo democrático
(HERÓDOTO, III, § LXXX) – enquanto Luciano faz de si, na ânsia e na escolha pelo diferente, um
espelho do outro.
Para além disso, assim como Tóxaris que se alçou à condição de herói entre os gregos,
tendo mesmo um culto próprio entre os atenienses (LUCIANO, IX, 2013, p. 69) e Anacársis que,
como vimos anteriormente, era considerado um dos sete sábios do mundo grego, Luciano, ao
comparar-se a eles, pode estar assim também denunciando, não tão veladamente, que sua vontade
era ainda mais radical do que poderíamos imaginar à primeira vista. Seu segundo movimento, caso

8
Aqui levamos em conta a centralidade da cultura grega para o império romano, onde o território e a cultura síria, se
comparada à paideia grega, era só algo fronteiriço.

51
levemos deveras a sério a comparação proposta por ele, não seria a de se tornar só mais um dentre
os gregos, um qualquer entre eles, um opaco espelho do outro, mas sim o de se tornar alguém que
compreendeu a tal ponto a cultura alheia que poderia vir a ser, no seio da mesma, um de seus mais
altos nomes e interlocutores, um brilhante reflexo especular: qual um Sócrates às avessas, ao invés
de descer do centro às bordas, como faz o filósofo da República platônica ao descer o Pireu,
Luciano, repetindo os célebres citas, sobe desde o Pireu (LUCIANO, IX, 2013, p. 70) para o centro
de Atenas para se tornar ali mais um célebre estrangeiro, um bárbaro, a pintar o coração da Hélade
com outras cores.
A assunção da cultura grega pelo autor sírio reaparece em Carta a Nigrino/Filosofia de
Nigrino, em que Luciano, ao elogiar o filósofo platônico Nigrino, acaba por tecer um grande elogio
à elegante simplicidade da vida grega, vida e hábitos esses que se chocam frontalmente com a
luxúria e os exageros da vida romana. Luciano traça aí um paralelo entre a cidade ideal do Platão da
República e Atenas – terra de Platão e Nigrino – que ele, Luciano, elege, por sua vez, como sua
cidade-modelo; Roma, em contrapartida, aparece aí como exemplo a não ser seguido, ainda mais ao
tomarmos a Grécia como tábua de comparação. Luciano acaba, portanto, em tal texto, reafirmando
a centralidade da cultura grega – em coerência com sua escolha no Sonho – mesmo diante do
poderio político e militar do grande império dentro do qual ele também se movia.
Porém, para compreender um autor híbrido e movediço, como Luciano, é salutar manter
uma certa desconfiança, pois o que em um lugar aparece como centro, pode muito bem em outro
aparecer como fronteira. É certo, por exemplo, que, no Nigrino, Atenas ou a cultura grega aparece
como bom paradigma, no entanto a escolha ali parece se dar mais em função de um objetivo crítico
do autor – Atenas funciona como centro quando o objetivo é a crítica de Roma – do que
propriamente da real afirmação da centralidade do mundo grego para ele. Neste sentido, antes de ser
um sírio ou um sírio-ateniense, antes de seguir ou se deixar guiar por qualquer doutrina dura,
Luciano prefere habitar na flexibilidade polifônica da posição crítica.

3. Luciano polifônico

Para além do movimento que vai das bordas bárbaras ao centro grego, a ideia do
descentramento cultural, que coloca em perspectiva a própria centralidade da cultura grega – que já
lhe era estrangeira – surge-nos também como algo caro ao autor sírio. Se tal ideia já aparece no
pequeno texto O Cita – afinal é um não-grego, um bárbaro, o próprio tema central do escrito – ela
brota ainda com mais veemência em um texto intitulado Tóxaris.

52
Como vimos acima, tal personagem é evocado como tábua de comparação por Luciano,
revelando-se um símbolo ou exemplo de alguém que, muito antes dele, saiu desde o mundo bárbaro
para se tornar uma importante figura no coração da cultura grega. No entanto, a voz de Tóxaris não
é, nesse interessante diálogo que leva seu nome, a voz do bárbaro que atua em total concordância
com a paideia grega, mas sim uma voz que, ao mesmo tempo que compreende o lógos dos helenos,
sabe ser também uma voz crítica.
Tal texto, sob a pauta comum da amizade, algo caro a citas e gregos, a todo momento
revela, a partir do mesmo mote, não só aproximações, mas também diferenças entre os usos e os
costumes de um e de outro povo. Aqui, ao contrário do que ocorre em textos clássicos da literatura
grega, em uma inversão tipicamente luciânica – o que já havíamos visto acontecer, em menor
escala, em O Cita – o espanto não se dá no embate do grego com a estranheza do mundo dos
bárbaros, mas sim no embate do bárbaro com a estranha cultura grega.
A meu ver Luciano antecipa, em textos como esse, o que só a aurora da modernidade, com
autores como Michel de Montaigne e Cyrano de Bergerac, parece ter redescoberto: a abertura para a
multiplicidade das vozes contida na consciência de que “cada qual considera bárbaro o que não se
pratica em sua terra” (MONTAIGNE, I, XXXI, 1996, p. 195). O Tóxaris de Luciano, com sua fina
ironia, colocando o grego na posição de bárbaro, revela-se afinal polifônico9, como só alguns outros
textos de autores de sua época – Apuleio, Máximo de Tiro – se mostram ser em determinados
momentos. Tal abertura, tal postura crítica, tal espaço de diálogo entre gregos e bárbaros e tal
inversão – colocando um bárbaro no centro e um grego nas bordas do diálogo – é talvez, enfim, o
que só um bárbaro, como Luciano e Tóxaris, conseguiria fazer no coração da pólis grega.

9
É de se destacar, no Tóxaris, a atenção dada, logo no início, a dois personagens gregos: Orestes e Pílades (LUCIANO,
VIII, 2013, p. 25). Tais personagens, qual Tóxaris e Anácarsis, tornaram-se homens honrados por estrangeiros em terra
estrangeira, mas enquanto os últimos eram citas honrados em terra grega, os primeiros eram gregos honrados em terra
cita. De fato, tal aproximação marca também uma distância: enquanto Tóxaris e Anácarsis – os bárbaros – vão à Grécia
com o afã filosófico, “bem grego”, da busca pela sabedoria representada pela cultura helênica e, atingindo seu objetivo,
tornam-se, na Hélade, apesar de estrangeiros, exemplos da ‘civilidade grega’, sendo, por isso mesmo, por lá honrados;
Orestes e Pílades, de outra parte, indo parar ao acaso em terras citas – em decorrência de um naufrágio (LUCIANO,
VIII, 2013, p. 23) – não fazem mais que se libertar deles, que os tinham aprisionado, para poder voltar às suas terras
gregas, tendo que para isso – utilizando-se de uma violenta coragem, “tão cita” – saquear o templo de Ártemis, raptar a
sacerdotisa e matar o rei, sendo então, justamente por tal coragem violenta e demonstração de amizade, honrados na
Cítia. Tudo isso é aqui simbólico, pois ao mesmo tempo que textos, como O Cita, afirmam a caricatura dos gregos
hospitaleiros que recebem Tóxaris e Anácarsis, fazendo deles personagens veneráveis entre os seus, e que, de outra
parte, textos, como o Tóxaris, afirmem a caricatura do cita violento e pouco hospitaleiro ao prender os náufragos para
sacrificá-los à deusa Ártemis, Luciano inverte as caricaturas quando colocamos os próprios personagens centrais –
Tóxaris, Anácarsis, Orestes e Pílades – em foco: enquanto os personagens citas demonstram afã “tipicamente grego”, os
personagens gregos demonstram a violência “tipicamente cita”. Tais jogos de inversões que aparecem mais de uma vez
na obra luciânica são, para mim, sinais de que o autor mostra consciência da complexidade das identidades culturais, a
saber, Luciano parece ser deveras consciente de que tais identidades têm origem complexa, só se formando a partir da
intimidade e do diálogo polifônico com as diferenças.

53
A questão da alteridade se torna ainda mais radical no diálogo intitulado O Galo, em que
se representa a conversa noturna entre um simples sapateiro e seu galo. Nele a estranheza é
manifesta desde o início, afinal um galo falante que acaba por ser o guia do diálogo – para além da
sátira e da paródia das fábulas tradicionais – indica já o lugar central que Luciano pretende dar a
“essa voz outra” no texto. Porém, além da estranheza inicial do bicho com fala e racionalidade
humanas, a alteridade de tal personagem se revela ainda mais forte à medida que o diálogo avança,
pois o estranho galo falante “revela ser muitos” (BRANDÃO, 2001, p. 232): desde um herói
homérico, passando por Pitágoras e Aspásia, o galo teria sido também filósofo cínico, rei e homem
comum, além de outros bichos e várias vezes galo.
Obviamente aqui se dá uma sátira da tradição pitagórica e órfica da ideia da transmigração
das almas, no entanto, para nós, a posição do galo, figura múltipla, no centro do diálogo, revela-se
quase como um claro reflexo que representa bem os caminhos abertos para a alteridade e a polifonia
que é, no fundo, a própria obra luciânica – o galo reúne em si a multiplicidade das vozes e das
experiências: os outros se tornam nele o mesmo e ele só é o mesmo por ter sido tantos outros. As
próprias barreiras entre verdade e mentira, identidade e diferença, autor e personagem, são ali
postas em jogo pelo galo, representando bem a própria liberdade e estatuto singular da ficção do
autor sírio. O galo que recita e desmente Homero, dizendo que ele não passava de um “camelo em
Bactros” quando dos acontecimentos da Ilíada (LUCIANO, VII, 2013, p. 32) é, enfim, a própria
sombra do outro que sabe tomar para si a antiga tradição e a recriar a seu modo.
Tal invasão polifônica da tradição grega, da qual Luciano se faz arauto, está presente
também no pequeno texto Assembleia dos Deuses, no qual quem toma a palavra é o deus Momo,
divindade um tanto marginal dentro da mitologia grega e que representa a figura do sarcasmo, da
burla.
Interessantemente, tal texto, em clima de assembleia jurídica, trata da acusação, por parte
de Momo, da crescente invasão estrangeira ao ambiente olímpico: para Momo, tanto os deuses
estrangeiros já ambientados há mais tempo na tradição, como Dioniso, quanto os híbridos deuses
egípcios, cada vez mais em evidência no cenário olímpico, teriam de ser passados em revista e
quiçá mesmo teriam de ser expulsos do quadro dos deuses “oficiais”; nesse mesmo contexto
também os deuses mestiços ou semideuses, qual Héracles, tornam-se alvos do ataque de Momo. O
próprio Zeus, à medida que o diálogo avança, é contagiado pela retórica do deus burlesco e passa a
reclamar da crescente importância que tais deuses bárbaros vão ganhando em terras de seu domínio,
e, ao final, depois de um lampejo democrático ao sugerir que todos os deuses votassem a favor ou
contra a proposição de Momo, ele, Zeus, acaba por se mostrar tão fechado quanto um imperador

54
persa ou romano ou um faraó egípcio, tudo isso ao constatar que provavelmente a maioria dos
deuses se enquadrariam como alvo da acusação em questão e que, portanto, não a aprovariam:
“Justíssimo, ó Momo. Então, quem é a favor, que levante o braço... ou melhor, fica assim mesmo,
pois apercebo-me de que haverá muitos que não iriam aprovar...” (LUCIANO, VIII, 2013, p.156).
No entanto, ao lembrarmos de determinadas passagens, veremos que a fala de Momo é mais
complexa do que a mera crítica à mistura superficial entre deuses gregos e estrangeiros no Olimpo,
o que mais facilmente detectávamos numa primeira camada do diálogo.
O sarcasmo de Momo se evidencia e aprofunda ao sugerir que o próprio Zeus – senhor dos
deuses gregos – é ele mesmo mestiço e principal responsável pela mistura, ao se envolver com
mulheres humanas, entre deuses e homens (LUCIANO, VIII, 2013, p. 151-152). Nisso vemos que a
crítica sugerida por Momo coloca em risco a possibilidade mesma da maior pureza da “cúpula” da
mitologia grega como um todo, pois a própria divindade e figura mais importante de tal mitologia
teria nela traços da alteridade mestiça de um semideus (mistura entre deus e homem). Mais do que
isso, para além de um Zeus mestiço e sujeito à burla de um deus “menor e marginal”, a sugestão de
Momo de que os deuses gregos não seriam muita coisa sem o culto dos homens, ou seja, de que os
primeiros seriam, em última instância, dependentes desses últimos, tornaria a fronteira entre o
mundo dos deuses e dos homens ainda mais indefinível. A polifonia do mundo grego estaria,
portanto, caso levemos a sério o personagem de Momo, presente desde um dos mitos inaugurais de
sua mitologia até suas fronteiras mais distantes, pois, em última instância, o elemento centralizador
da paideia grega, o mito dos deuses olímpicos, sugeriria ele mesmo, em essência, alteridade e
descentramento. Inútil é dizer aqui que o personagem de Momo lembra e muito a própria figura de
Luciano, esse autor marginal que, apesar de não ser autóctone, usa e abusa da burla para colocar em
jogo e assim reinventar – tornando-a mais polifônica – a tradição grega com a qual dialoga.

4. Luciano viajante, a viagem da ficção

É sabido que Luciano travou frequentes viagens através das vastas terras do grande
Império Romano, viajando pela Grécia, pelo Egito, Gália e Itália (ALVES, 2019, p. 21), no entanto
é como ficcionista das viagens que Luciano faz com que sua singular obra ganhe ainda mais brilho.
Aproveitando-se da tradição que, como vimos, remonta à Odisseia homérica, Luciano nos apresenta
personagens engajados em suas próprias jornadas e ficções que ultrapassam em muito o mundo
preso às colunas de Héracles.

55
Um dos exemplos de tais viagens ficcionais em Luciano está em um breve e interessante
texto intitulado Icaromenipo, em que o autor sírio faz do célebre filósofo cínico um viajante do
espaço sideral, que conta ter visitado a Lua, o Sol e até mesmo afirma ter chegado ao mundo dos
deuses olímpicos presidido por Zeus. Assim como no mito fizeram Ícaro e Dédalo, o cínico, relata
Luciano, teria se valido de uma artimanha para realizar o sonho do voo. O samosatense antecipa
aqui as máquinas literárias dos autores modernos, que levaram também seus personagens ao espaço,
vide o caso de Godwin, por exemplo. Na fábula de Luciano, entretanto, o voo de Menipo se torna
possível não a partir dos gansos de Godwin, mas a partir de um mecanismo que utiliza asas tomadas
à águia e ao abutre10. O filósofo Menipo, a partir dessa astuta invenção, transforma-se então, no
conto do sírio, em um personagem híbrido, misto de homem e pássaros, que pode assim ascender
aos céus. O agora Icaromenipo é, portanto, mais uma figura de alteridade que aparece no centro da
obra luciânica: meio homem, meio bicho, o filósofo, a partir de transformação consciente e
artificial, revela ser algo além de um homem ordinário: revela ser, como a águia e o abutre, um
viajante dos céus.
Interessante é notar ainda que tal fábula luciânica não se aproxima dos contos modernos
tão somente na referência à “maquineta” que teria levado o filósofo cínico aos céus. De fato, a
própria motivação de Menipo é uma motivação que nos lembra a motivação dos cientistas
modernos: conhecer a verdadeira natureza do cosmos a partir de uma experiência e não de uma
simples argumentação lógica. Obviamente que a experiência relatada por Luciano não é a da ciência
moderna, mas sim algo que se aproximaria mais de uma “viagem de exploração” – como as feitas
pelos antigos sábios gregos em busca de conhecimento – e que tal diálogo luciânico é, em verdade,
uma sátira ou crítica mordaz aos filósofos e escolas filosóficas presas a argumentações abstratas e
sem nenhum faro empírico. No entanto, o apelo à experiência empírica como algo necessário ao
conhecimento e mesmo as intuições luciânicas que lembram as de um cientista moderno –
“realmente, antes da criação do Universo, é impossível conceber [a ideia de] tempo e lugar”
(LUCIANO, VII, 2013, p. 70) – deixam-nos com a impressão de que Luciano, por vezes, estaria
mais próximo de um Kepler, por exemplo, do que de outro autor qualquer de seu próprio tempo.

10
“Mas, se pusesse as asas de um abutre ou de uma águia – pois somente estas eram suficientes para o tamanho do
corpo humano –, talvez a experiência resultasse. Então, tendo capturado essas [duas] aves, separei com muito cuidado a
asa direita de uma, [a da águia], e a outra, a do abutre. Seguidamente, tendo-as ligado aos meus ombros, ajustadas com
fortes correias, e tendo preparado nas pontas das asas umas pegas para as mãos, tentei, primeiro, avançar aos saltos,
ajudado pelas mãos, como fazem os gansos, elevando-me, mas ainda rente ao solo, correndo nas pontas dos pés,
acompanhado de bater de asas. Como a “maquineta” me obedecia, tentei uma façanha mais ousada que uma [simples]
experiência, e então, tendo subido a Acrópole, lancei-me do precipício, indo poisar precisamente no teatro”
(LUCIANO, VII, 2013, p. 72).

56
Há, entretanto, um texto que parece evidenciar com maior radicalidade o Luciano, autor da
diferença, que elegeu para si a “pura liberdade” da ficção. Tal texto é outra narrativa de viagem
denominada Das Narrativas Verdadeiras.
Escrito em primeira pessoa, o texto escancara a posição marginal de Luciano. Longe de ser
um filósofo ou historiador, amantes da verdade, Luciano é aqui o ficcionista por excelência, aquele
que afirma que tudo o que diz não passa de mentira: “escrevo, portanto, sobre aquilo que nem vi,
nem sofri, nem me informei por outros e ainda sobre seres que não existem em absoluto e nem por
princípio podem existir” (LUCIANO, 2015, p. 144). Enquanto no Icaromenipo a voz é a do filósofo
que busca a verdade do cosmos na experiência de uma “viagem celeste”, em Das Narrativas
Verdadeiras a voz é a do ficcionista que, desde uma posição crítica, tipicamente luciânica, coloca
contra a parede toda uma tradição grega – de poetas, historiadores e filósofos – que, afirmando dizer
a verdade, não diziam mais que abstrações mentirosas.
A experiência relatada em Das Narrativas Verdadeiras não é a experiência da viagem de
exploração, mas sim a “não-experiência” que é a experiência mesma da ficção, a “viagem” da
ficção. Se logo acima pudemos aproximar o Luciano do Icaromenipo a um cientista moderno, como
Kepler, em Das Narrativas Verdadeiras uma comparação mais válida seria com a do Cervantes do
Quixote, igualmente alguém que, a partir de uma linguagem paródica e crítica a uma determinada
tradição literária, consegue criar para a ficção um estatuto próprio, uma espécie de “lugar de fala”11.
No que diz respeito ao tema da alteridade, que aqui nos é caro, tal texto de Luciano é um
dos mais pródigos, a própria geografia/cosmografia da viagem relatada parece aqui não ter limites.
As colunas de Héracles, que davam porteiras finais ao mundo antigo e o barravam diante do
desconhecido, passam a ser, nesse relato de Luciano, o ponto de partida, afinal nada mais
interessante a um fabulista do que falar/criar a partir do desconhecido. E o desconhecido aqui ganha
forma, com tonalidades de imaginação das mais originais, desde o Oceano até a Lua e o Sol, desde
a ilha dos bem-aventurados até o ventre de uma enorme baleia, tudo é meticulosamente cinzelado,
articulado e pintado de maneira singular pelo autor samosatense.
Eis aqui, nessa extraordinária geografia/cosmografia, também o prenúncio de temas
bastante importantes para a modernidade de autores como Fontenelle, afinal, desde o tema da
multiplicidade dos mundos e da igualdade de natureza entre a Terra e os demais astros, até o
problema da colonização – tão caro aos gregos e aos modernos como Godwin – tudo está em jogo
em cenas como a da luta entre os habitantes da Lua e os do Sol em disputa pelo território (a ilha?)

11
Vide para isso novamente o livro extraordinário de Jacyntho Lins Brandão A poética do hipocentauro (2001),
destaque aqui para o último capítulo: Viver no estrangeiro.

57
colonizável de Vênus. Os personagens híbridos aparecem aqui mais uma vez, visto que o texto está
prenhe de homens-planta e animais humanizados e a própria ideia das próteses corporais e da
abismal diferença de classes, temas tão contemporâneos, também não deixam de marcar presença.
Porém, é a própria ficção, o centro da alteridade luciânica, que desvelamos em tal texto. A
despeito de ser a Odisseia de Homero o grande guia ou alvo de Luciano aqui – “o seu guia e mestre
nesse tipo de bufonaria é o Odisseu de Homero” (LUCIANO, 2015, p. 143) – o sírio não hesita em
ir além: seu “Odisseu” é o Odisseu que assume o lugar da ficção, sua casa é uma não-casa, é o
outro, portanto a volta do “Odisseu” luciânico nunca se concretiza; sua viagem, como a própria
ficção, não tem nenhum limite intransponível e os próprios personagens homéricos já não sabem a
fronteira entre o real e o ficcional neste seu “novo mundo”.
O Luciano que aí escreve em primeira pessoa completa o nosso ciclo: reescreve a tradição
grega desde sua crise, desde as mãos do estrangeiro. Sua eleição vai além daquela do Odisseu da
República de Platão (620c-d), que então já negara a escolha do herói homérico ao escolher a vida
comum. Mais do que a vida comum, o Odisseu luciânico – ou o próprio Luciano – elege a pura
liberdade, liberdade essa que, como nos lembra Lins Brandão, não se restringe às fronteiras do
verdadeiro e do verossímil, mas avança sem medo na direção daquilo que vai além do que é e do
que poderia ser, ou seja, avança na direção do que nunca poderia ter acontecido, na direção dessa
não-casa, dessa morada da alteridade, desse lugar-outro que é o lugar mesmo da ficção:
O que a poética luciânica lega à posteridade de mais importante é justamente esse descobrimento da
ficção como alotopia. Dizendo de modo mais preciso: a descoberta de que a ficção é o outro. Não apenas,
como no preceito aristotélico relativo à verossimilhança (ou, se quisermos, ao fictício), ela diz o que
poderia acontecer, deixando para os discursos verdadeiros o que de fato aconteceu, mas avança pela
esfera do que não poderia acontecer jamais, isto é, um tipo de discurso que se liberta não apenas dos
limites que lhe impõe a verdade, como também das rédeas, provavelmente mais curtas, com que o cerceia
a verossimilhança. Em suma: um discurso que se encontra além dos esquemas do que é verdadeiro ou
semelhante ao verdadeiro, que é um outro discurso, autônomo em face da verdade, que goza de pura
liberdade (BRANDÃO, 2001, p. 270).

É, enfim, com essa descoberta do centro da alteridade, o lugar mesmo da ficção, que
findamos nossa jornada luciânica. E nada melhor do que apresentá-la a partir de um relato de
viagem, talvez o mais conhecido do autor sírio. Com ele sua filiação à tradição mais antiga dos
gregos é “carimbada”, com ele é que o autor também se separa dela. O autor da crise, o híbrido
Luciano se completa por fim como esse que fala desde o outro, desde a ficção – e o texto Das
Narrativas Verdadeiras talvez seja o maior exemplo disso – a saber, Luciano é também um abridor
de novos caminhos, caminhos outros, caminhos para a alteridade: Luciano coloca em trânsito, em
viagem livre, a própria ficção.

58
Referências bibliográficas

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Volume VII. Tradução de Custódio Magueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de
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_________. O Cita ou O Próxeno. In: _________. Obras Completas. Volume IX. Tradução de
Custódio Magueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 65-76.
_________. O Sonho ou O Galo. In: _________. Obras Completas. Volume VII. Tradução de
Custódio Magueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 15-44.
_________. Sobre o Sonho ou Vida de Luciano. In: BRANDÃO, J. L. (Org.). Biografia Literária:
Luciano de Samósata. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2015,
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59
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WHITMARSH, T. The Second Sophistic. Oxford: Oxford University Press, 2005.

60
UMA ANÁLISE RICŒURIANA DA CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE
IDENTIDADES A PARTIR DO ESTUDO BIOPOLÍTICO DE ESPOSITO
SOBRE O NAZISMO
A RICŒURIAN ANALYSIS OF THE NARRATIVE CONSTRUCTION OF IDENTITIES BASED
ON ESPOSITO'S BIOPOLITICAL STUDY ON NAZISM

Nathaniel Lovatto1

Resumo: O objetivo deste artigo é averiguar se a teoria da identidade narrativa de Paul Ricœur é
capaz de explicar as identidades formadas pelo discurso biomédico redutivista do nazismo, segundo
os estudos de Roberto Esposito sobre o enigma da biopolítica no caso da Alemanha nazista. Neste
sentido, o estudo é dividido em três partes, uma de apresentação das considerações de Esposito sobre
a tanatopolítica nazista, outra de elucidação da teoria da identidade narrativa de Ricœur e uma última
parte de convergência entre as duas. O foco do primeiro tópico é de apresentar o enigma da biopolítica
– isto é, por que uma política voltada para a promoção da vida acaba resultando em morte? – e a
interpretação biopolítica de Esposito sobre o nazismo, o maior exemplo histórico de biopolítica que
se converte em tanatopolítica; desta interpretação se segue a observação do conjunto simbólico do
ideário nazista, que preza por um redutivismo das dimensões políticas, históricas e sociais a uma
visão biológica e médica. O segundo tópico versa sobre dois dos três paradoxos da identidade
apresentados por Ricœur em conferência (1995), que tratam do problema temporal da identidade
pessoal e do problema da constituição intersubjetiva do ‘eu’. A resolução dos paradoxos se dá pela
narratividade, que desemboca nas considerações sobre a identidade narrativa. O terceiro tópico
posiciona as lentes ricœurianas para a análise do ideário redutivista biomédico do nazismo, segundo
o que fora apresentado do estudo de Esposito. Por esse caminho, foi possível concluir que o processo
de geração de identidades pelo ideário nazista é passível de compreensão pela teoria da identidade
narrativa, no que se refere à hermenêutica do si e do outro e a importância da mediação narrativa
como condição para construção de toda e qualquer identidade pessoal.

Palavras-chave: Paul Ricœur, Roberto Esposito, Identidade narrativa, Biopolítica, Nazismo

Abstract: The purpose of this article is to investigate whether Paul Ricœur's theory of narrative
identity is able to explain the identities formed by the reductive biomedical discourse of Nazism,
according to Roberto Esposito's studies on the enigma of biopolitics in the case of Nazi Germany. In
this sense, the study is divided into three parts, one presenting Esposito's considerations on Nazi
thanatopolitics, another elucidating Ricœur's theory of narrative identity and a last part of
convergence between the two. The focus of the first topic is to present the enigma of biopolitics – that
is, why does a policy aimed at promoting life end up resulting in death? – and Esposito's biopolitical
interpretation of Nazism, the greatest historical example of biopolitics that becomes thanatopolitics;
From this interpretation follows the observation of the symbolic set of Nazi ideology, which values a

1
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). ORCID: 0000-0002-1063-3501. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

61
reduction of political, historical and social dimensions to a biological and medical vision. The second
topic deals with two of the three paradoxes of identity presented by Ricœur in a conference (1995),
which deal with the temporal problem of personal identity and the problem of the intersubjective
constitution of the 'I'. The resolution of the paradoxes takes place through narrativity, which leads to
considerations about narrative identity. The third topic positions the Ricœurian lenses for the analysis
of the biomedical reductive ideology of Nazism, according to what was presented in the study by
Esposito. In this way, it was possible to conclude that the process of generation of identities by the
Nazi ideology can be understood by the theory of narrative identity, with regard to the hermeneutics
of the Self and the Other and the importance of narrative mediation as a condition for the construction
of all and any personal identity.

Keywords: Paul Ricœur, Roberto Esposito, Narrative identity, Biopolitics, Nazism

62
1. O vocabulário infectológico nazista, segundo Esposito Seções

Diante das disputas filosóficas entre Agamben e Negri a respeito do tema da biopolítica,
Roberto Esposito, fundamentando-se em – e tentando superar – Foucault2, se propõe em sua obra
Bios – Biopolítica e Filosofia resolver o enigma deixado por estes autores: “por que motivo a
biopolítica, que tem como fim a proteção da vida e a promoção da subjetividade, acaba por produzir
a morte – de que o nazismo é o grande exemplo histórico” (NEVES, 2017, p. 9)? Diante deste enigma,
Esposito propõe uma explicação através de seu paradigma imunitário para demonstrar o porquê de
ser possível uma biopolítica transformar-se em tanatopolítica. Em meio a essa explicação, no capítulo
4 de Bios, intitulado “Tanatopolítica (o ciclo do ghenos)”, Esposito investiga o ideário nazista e sua
fundamentação teórica em um reducionismo biomédico. O que interessa para o estudo proposto neste
artigo é o conjunto simbólico e teórico que formou a identidade nazista e, consequentemente, a
identidade dos não-nazistas, oriundo deste reducionismo político, ético e histórico à esfera biológica.
Para situar o universo conceitual peculiar do nazismo entre os movimentos políticos da
modernidade, Esposito compara-o com outro movimento totalitário da época, o comunismo:

Enquanto o regime comunista, apesar da sua tipicidade, continua no entanto a nascer da época moderna -
das suas lógicas, das suas dinâmicas, das suas derivas - o regime nazi é uma coisa radicalmente diferente:
não nasce do extremar mas da decomposição da modernidade. Se para o comunismo se pode sempre afirmar
que “realiza”, embora de forma exacerbada, uma das suas tradições filosóficas, o mesmo não se pode dizer
de maneira nenhuma do nazismo. [...] o nazismo não é, nem pode ser, a realização de uma filosofia porque
já é a realização de uma biologia. Enquanto a transcendência do comunismo é a história, o sujeito é a classe
e o léxico o da economia, a transcendência do nazismo é a vida, o sujeito é a raça e o léxico o da biologia
(2010, p. 161).

O que Esposito quer deixar claro com este parágrafo é que o conjunto ideário que orientou o
movimento nazista não se respaldava no Zeitgeist filosófico do ocidente moderno – vide a histórica
queima de livros de 1933. Para o filósofo, o nazismo não surgiu de uma extrema realização da
modernidade, mas de uma extrema rejeição à modernidade em vistas de um reducionismo biológico
da vida social e política. Há aqui, certamente, uma situação controversa para biologia enquanto
ciência, na medida em que a obsessão nazista pela biologia genética e comparada entre animais e
humanos a usurpou como totalidade semântica que ditaria a visão de mundo dos alemães. A rejeição
à filosofia moderna, em especial a historicista, fica evidente na citação que Esposito faz do famoso
manual geneticista Higiene Racial de Lenz, Baur e Fischer, que afirma que o nazismo é simplesmente

2
A respeito da leitura de Esposito sobre Foucault, conferir o Prefácio de Alexandre Franco de Sá e o capítulo 1 O enigma
da biopolítica, ambas na obra Bios – Biopolítica e Filosofia de Esposito. Se baseia sobretudo em Histoire de la sexualité
I - La volonté de savoir (1976) e nas aulas ministradas por Foucault no Collège de France, organizadas como Il faut
défendre la société (1976-1977) e Naissance de la biopolitique (1978-1979).

63
uma biologia aplicada e Hitler “‘o grande médico alemão’ capaz de dar ‘o último passo na derrota do
historicismo e no reconhecimento dos valores puramente biológicos’” (2010, p. 162). Neste ponto, é
interessante notar que o léxico filosófico e político sempre fez comparações e metáforas com termos
biológicos, mas só no nazismo o léxico biológico deixou de ser comparativo para ser aplicativo:

Aquilo que tinha sido sempre uma metáfora vitalista tornou-se uma realidade - no sentido não de que o
poder político passasse directamente para as mãos dos biólogos, mas de que os políticos assumiram os
processos biológicos como critério de orientação dos seus actos (ESPOSITO, 2010, pp. 162-163).

Aqui está o ponto crucial, de que o nazismo reduziu sua cosmovisão às lentes distorcidas de
uma biologia higienista, transformando as relações sociais, políticas, éticas, antropológicas etc., em
simples acontecimentos biológicos. A curiosa contradição, que origina o referido enigma da
biopolítica, já observada por Foucault3, é de que o nazismo põe a vida como orientação política, mas
“se defende e se desenvolve através de um alargamento progressivo do círculo da morte”
(ESPOSITO, 2010, p. 159).
A aplicação da biologia na tanatopolítica nazista não ocorreu somente pela força bélica, mas
também na prática médica, em que demonstra sua verdadeira face nesse universo semântico.
Certamente não fora a primeira vez que a classe médica se uniu a alguma tanatopolítica, mas no caso
do nazismo os médicos assumiram uma posição inédita de poder, não um poder político, mas a
autoridade procedimental e executiva das medidas “curativas” de homicídio em massa: “Nenhuma
etapa da produção da morte em série escapou ao controlo médico. [...] Se o poder último calçava as
botas das SS, a auctoritas suprema vestia a bata branca do médico” (ESPOSITO, 2010, p. 164).
Mas por que a classe médica se aliaria a um regime claramente mortífero? Onde ficou o
juramento de Hipócrates? Convertendo o quadro biológico na prática médica, o “corpo nacional” era
visto como exposto a doenças4 e degenerações, sendo estes agentes patológicos todos os não-arianos.
Desta maneira, a política nazista configurada como “biomédica” adotou a tanatopolítica de tratar estes
agentes como não-humanos, como obstáculos à saúde nacional a serem exterminados.

A tese que se apresenta é a de que entre esta atitude terapêutica e o quadro tanatológico dentro do qual se
inscreve não há só contradição mas uma conexão profunda: justamente enquanto preocupados

3
“Como um poder como este pode matar, se e verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua
duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como,
nessas condições, e possível, para um poder político, matar, redamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem
de matar, expor a morte não só seus inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem
essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer?” (FOUCAULT, 2005, p. 304).
4 “
Não se tratava de uma doença qualquer mas de uma doença infecciosa. O que se queria evitar a todo o custo era o
contágio de seres superiores por seres inferiores. A luta de morte contra os judeus era propagandeada pelo regime como
sendo a que opunha o corpo e o sangue originariamente saudáveis da nação alemã aos germes invasores que se tinham
infiltrado no seu interior com o intuito de minar a sua unidade e mesmo a sua vida” (ESPOSITO, 2010, p. 167).

64
obsessivamente com a saúde do corpo alemão, os médicos operavam, no sentido especificamente cirúrgico
da expressão, a incisão mortífera. Por paradoxal que possa parecer, foi, em suma, para executar a sua missão
terapêutica que eles se fizeram carrascos daqueles que consideravam ou não essenciais ou nocivos à
melhoria da saúde pública (ESPOSITO, 2010, p. 166).

Esta contradição da promoção da vida pela morte fica clara quando se especifica qual vida
está sendo promovida, a alemã, e qual está sendo suprimida, a não-alemã5. Essa biopolítica convertida
em tanatopolítica só se sustentou pelo reducionismo biomédico da política, que permitiu uma
reinterpretação do juramento de Hipócrates, também reducionista:

Quando foi perguntado ao médico nazi Fritz Klein como tinha podido conciliar o que fizera com o
juramento de Hipócrates, ele respondeu: “Sou médico e obviamente desejo conservar a vida. É por respeito
pela vida humana que farei a ablação de um apêndice gangrenado de um corpo doente. O judeu é o apêndice
gangrenado do corpo da humanidade” (ESPOSITO, 2010, p. 204).

Para além do vocabulário médico observado acima, os ideólogos do Reich usaram os seguintes
termos para caracterizar seus inimigos, em especial os judeus: “são, uma e outra vez e ao mesmo
tempo, ‘bacilos’, ‘bactérias’, ‘parasitas’, ‘virus’ [sic], ‘micróbios’” (ESPOSITO, 2010, p. 167).
Apesar de historicamente o antissemitismo ter se apegado ao vocabulário que os caracteriza como
parasitários, o nazismo levou isso a um nível extremo, ao ponto de não ser uma simples analogia
metafórica, mas uma afirmação ontológica de que “são” parasitas e devem assim ser tratados, ou seja,
pela via do extermínio (ESPOSITO, 2010, p. 168). Diante dessa desumanização ontológica dos judeus
em termos biomédicos, fica evidente que Himmler e Hitler, respectivamente, não falavam as
seguintes frases metaforicamente, mas literalmente: “‘o anti-semitismo [sic] é como a desinfestação.
Afastar os piolhos não é uma questão ideológica, é uma questão de limpeza’” (ESPOSITO, 2010, p.
168) e “‘A descoberta do virus [sic] hebraico é uma das maiores revoluções deste mundo. A batalha
em que estamos empenhados hoje em dia é igual à que travaram no século passado Pasteur e Koch’”
(ESPOSITO, 2010, p. 168).
Esposito discute muito no tópico “2. Degeneração”, do referido capítulo 4 de Bios, a respeito
da apropriação nazista dos estudos genéticos de seu tempo. O conceito de degeneração inicialmente
significava ‘afastar de sua origem (ghenos)’, mas incorporou sentidos negativos, como ‘decadência’,
‘degradação’ e ‘deterioração’. É nesta valência negativa que se formou uma teoria de transmissão
hereditária da degeneração, da qual o povo judeu seria o principal degenerado e vetor, pois além de
hereditária a degeneração seria contagiosa (ESPOSITO, 2010, p. 175). Por mais estranha que seja

5
As vítimas do higienismo racial nazista eram de tal modo desumanizadas que passavam a sequer ser consideradas como
propriamente vidas, eram como existências já-mortas, para as quais a morte era dada como um ato de misericórdia
(ESPOSITO, 2010, p. 192).

65
essa contraditória vinculação entre hereditariedade e contágio, tais teorias da degeneração eram
discutidas amplamente entre os geneticistas nazistas. O ponto é que esta teoria da degeneração estava
de fundo embasando as práticas higienistas de extermínio, que tratavam os “degenerados” como já-
mortos (por sua própria degeneração), sob o pretexto de limpar os agentes patogênicos que pudessem
contaminar a “raça superior” e o “corpo nacional”. Isto se figurou sobretudo na prática da eugenia,
que intervinha amplamente nos processos vitais da reprodução (esterilização, aborto imposto e
controle dos casamentos) e da própria existência (imigração, segregação, eutanásia e extermínio).
Como já visto, as contradições da tanatopolítica nazista se clarificam na designação de quem
é promovido e quem é suprimido por suas políticas. No caso da eugenia, há uma “eugenética positiva,
voltada para o melhoramento da espécie, uma eugenética negativa, destinada a impedir a difusão dos
exemplares disgénicos” (ESPOSITO, 2010, p. 183). Para os alemães havia intervenções na
reprodução e na manutenção (ou interrupção) da vida, com o objetivo de purificar o gene alemão dos
genes estrangeiros, deficientes ou de mau comportamento. Para os não-alemães, as intervenções na
reprodução buscavam impedir a própria possibilidade de a vida produzir outra vida e as intervenções
na manutenção vital iam ao encontro do morticínio.

[...] não era o nascimento que determinava o papel político do ser vivo mas a sua posição no diagrama
político-racial a predeterminar o valor do seu nascimento. Se este entrava no recinto biopolítico destinado
à criação, era aceite ou até estimulado; se caía fora dele era suprimido mesmo antes de se anunciar. [...]
Interromper a vida ainda era pouco - era preciso anular a sua génese cancelando também o seu rasto
póstumo (ESPOSITO, 2010, pp. 206-207).

Isso tudo mostra que a obsessão sanitária do nazismo não atingia somente aqueles que eram
considerados inimigos ou sequer humanos, mas o próprio povo alemão, no que se considera os
macabros experimentos de esterilização feminina (ESPOSITO, 2010, p. 205), a proibição de aborto
voluntário para alemãs e as políticas de eutanásia que começaram com crianças e se expandiram a
todas as faixas etárias. Isto tudo, para Esposito, revela a contradição da tanatopolítica nazista, que na
sua ânsia por imunização contra ameaças, se torna sua própria ameaça, como uma doença autoimune.
O círculo da morte começa com o inimigo externo, depois se expande para o interno e, por fim,
alcança o próprio povo alemão, como ordena Hitler, próximo da derrota, que destruíssem o que restou
do Estado nazista, pretendendo não somente seu próprio suicídio, mas o do povo alemão consigo: “A
consequência disto é uma absoluta coincidência entre homicídio e suicídio que põe fora de jogo
qualquer hermenêutica tradicional” (ESPOSITO, 2010, p. 160).

66
2. Identidade narrativa em Ricœur

Diante do problema “quem somos nós?”, Ricœur se debruça em várias obras sobre as noções
de identidade, de si mesmo e de outro, usando de sua hermenêutica fenomenológica para analisar a
dinâmica entre permanência e mudança, encontrando na narrativa um caminho para solucionar os
paradoxos da identidade. De maneira muito sucinta, Ricœur apresenta estes paradoxos em uma
conferência em 1995, sendo três: i) o paradoxo temporal da identidade; ii) o paradoxo do si e do outro;
iii) o paradoxo da responsabilidade e da fragilidade. Através da elucidação destes dois primeiros
paradoxos será possível adentrar no pensamento ricœuriano e no papel da narratividade.
O primeiro paradoxo se apresenta no próprio conceito de identidade, compreendido
costumeiramente como mesmidade, ‘aquilo que sendo o mesmo que, permanece o mesmo’. Ricœur
argumenta que este é somente um tipo de identidade, que ele chama de identidade-idem. Desta
identidade, pode-se considerar identidade numérica (o mesmo várias vezes), identidade ontogenética
(o mesmo ao longo do processo de vida e morte) e identidade de estrutura (o mesmo código genético
etc.): “O que buscamos através desses traços é a estabilidade, se possível a ausência de mudança, a
imutabilidade do mesmo” (RICŒUR, 2016, p. 282).
A segunda face da identidade se revela quando a pergunta “quê somos nós?” se mostra
insuficiente em dizer “quem somos nós”. Ricœur relembra dos postulados humeanos e nietzscheanos
a respeito da impermanência do “eu” no tempo e nesse sentido concorda com ambos: “é verdade: se
buscamos um eu imutável, não afetado pelo tempo, não o encontramos” (2016, p. 282). Se por um
lado a identidade-idem, a identidade do mesmo, está ancorada na imutabilidade no tempo, a
identidade-ipse6, a identidade da manutenção de si, está ancorada na mudança no tempo.

A pergunta quem? exige uma resposta de duplo sentido, uma resposta cindida, cujos dois extremos seriam
ilustrados pelo caráter que marca a permanência do idem e pela promessa que ilustra a manutenção do ipse.
Não se deve dizer que as coisas estejam do lado do mesmo, e as pessoas, do lado da ipseidade: as pessoas
estão dos dois lados. Por isso existe paradoxo (RICŒUR, 2016, p. 283).

A ipseidade, ou seja, a identidade-ipse se revela pela mudança no tempo, está na dinâmica de


sucessão e relação, ao ponto de Ricœur exemplificar isso através do termo diltheyano ‘conexão da
vida’: a ipseidade é “àquela maneira que a vida possui de dar sequência a si mesma e que possibilita

6
“O termo idem, no caso, nominativo masculino, é o pronome demonstrativo que se traduz por mesmo. Por sua vez, o
termo ipse é empregado para reforçar o pronome demonstrativo no caso acima. Em outras palavras, idem serve para
identificar, para dizer que é igual, ao passo que ipse é reforçativo; por exemplo: idem rex (mesmo rei e não outro) e
ipse rex (o próprio rei)” (LISBOA, 2013, p. 101). Como Ricœur (1999, p. 215) mostra, a antinomia do idem é ‘o
mesmo ≠ o diferente’, enquanto a antinomia do ipse é ‘o que é próprio ≠ o que é outro,
ou estranho’.

67
tanto a memória quanto o projeto” (RICŒUR, 2016, p. 283)7. Embora concorde com Hume e
Nietzsche que o “eu” humano precisa ser considerado pela sua constante mudança, Ricœur discordará
afirmando também a permanência do “eu” no tempo, como visto acima, pela afirmação de que “as
pessoas estão dos dois lados”.
Diante dessa posição dual de permanência e impermanência do “eu” se apresenta o paradoxo
temporal da identidade, para o qual Ricœur propõe a narrativa como possibilidade de resolução. A
narrativa surge na constituição da intriga, que consiste em:

[...] compor uma história una com elementos múltiplos, associados por elos de causalidade, de motivação
(racional ou emocional) ou de contingência. Uma história conduz uma ação de um estado inicial a um
estado terminal através de transformações que integram durações de densidade variável, intensas ou
relaxadas, súbitas ou estendidas. Assim, uma história contada não comporta outra estabilidade senão a de
poder integrar mudanças (RICŒUR, 2016, p. 283).

O que o filósofo está propondo é compreender a constituição do “eu” na costura de sua


constante mudança no tempo, sendo esta a trama narrativa que identifica um “eu” como o mesmo ao
longo do tempo, um “eu” que sempre muda, mas permanece o mesmo diante da sua trama. Através
dessa espécie de mereologia narrativa, o todo se mostra como idem e as partes como ipse. E não afeta
a identidade-idem as contradições e discordâncias da ipseidade, pois que a trama não se costura em
uma inteligibilidade “parmenídica”, mas sim em uma inteligibilidade narrativa (RICŒUR, 2016, p.
283). Assim como pode-se contar a história de um personagem fictício, pode-se contar a história de
um personagem real, e também assim como este pode contar para si próprio sua história e para os
outros, ou a história dos outros (RICŒUR, 2016, p. 284). Ricœur quer mostrar que construímos nossa
identidade e a identidade dos outros, sejam reais ou fictícios, pela narração, da qual as partes e o todo
são interpretadas e tecidas por nós. Assim, surge na exposição do filósofo o paradoxo do si e do outro.
O segundo paradoxo de identidade se distancia do problema da temporalidade e se volta para
a relação entre si e o outro. Para Ricœur, o ponto de partida é, impreterivelmente, o si, como condição
para o relacionamento entre si e qualquer outro que seja: “É preciso que haja primeiro e
fundamentalmente um sujeito capaz de dizer eu para que então se atravesse a prova da confrontação
com o outro” (RICŒUR, 2016, p. 285). Ou seja, resumindo em poucas palavras, para que o outro
seja um outro de mim, é preciso que haja um “eu”. Mas isso não significa que se possa identificar
propriamente o “eu” com aquele cogito cartesiano isolado na sua autoevidência, preso em sua
suspensão das relações com o outro. Em seus estudos sobre o cogito cartesiano e o anticogito
nietzschiano, em O si-mesmo como um outro, Ricœur “aponta para a necessidade imperativa de

7
Cf. RICŒUR, 1999, pp. 217-218.

68
reconhecer a importância do outro de si-mesmo nesse processo de complexificação da noção de
sujeito” (LISBOA, 2013, p. 100). O paradoxo surge, portanto, do problema de estabelecer uma
identidade pessoal de um “si” que se constituiu como “si-mesmo” pelo contato com o outro. Ricœur
bem reconhece que desde nosso surgimento no mundo o outro se põe diante de nós:

[...] antes de falar ouvimos a voz humana, a voz do outro, e isso talvez desde a vida intrauterina: “fomos
falados” antes de tomar, nós mesmos, a palavra. E não raro a memória, cujo caráter insubstituível e
incomunicável enfatizamos anteriormente, apoia-se em narrativas feitas pelos outros e empresta, para fazê-
lo, lembranças da “memória coletiva”, da qual a memória individual, [...] é um aspecto, uma perspectiva
(RICŒUR, 2016, p. 286).

Aquele “eu” cartesiano, isolado do outro, pouco é: de fato, é por causa do outro que o “eu” se
torna histórico, linguístico, cultural, socializado e até mesmo capaz de refletir e chegar à conclusão
cartesiana. Isso mostra que a identidade pessoal não pode estar focalizada em nenhum extremo, nem
no outro, que assim se figura pela relação com o si, nem no si que pouco é sem o outro: “A identidade
de cada um se constrói entre esses dois polos” (RICŒUR, 2016, p. 287). Apesar disso, o papel do
outro nessa relação precisa ser enfatizado:

[...] ressaltaremos a dependência das identidades pessoais às identificações com... heróis, personagens
emblemáticos, modelos e mestres, e também preceitos, normas que se estendem dos costumes tradicionais
aos paradigmas utópicos que, emanando do imaginário social, remodelam nosso imaginário particular
(RICŒUR, 2016, p. 286).

A identidade pessoal está invariavelmente atrelada à identidade coletiva, o que, como visto a
pouco, tira aquele “si” de seu monadismo e o constitui no mundo cultural. Mas isso não implica
necessariamente que o si-mesmo, já constituído, não tenha relativa liberdade para aceitar ou rejeitar
a incorporação de outros, reconfigurando-se em sua ipseidade; afinal, nenhum si poderia ser
inteiramente o outro, muito menos nada de outro. Mas um ponto notável se mostrou no final da
citação anterior: não somente nos construímos pela absorção do outro, mas também transformamos
nossa autopercepção de si e sobre os outros. Isso volta a aparecer em um trecho posterior, ao falar
sobre as “crises de identidade” nas fases da vida humana: “Ora, cada uma [dessas crises] afeta a
percepção de si mesmo e a do vínculo social. Individuação e socialização se desenvolvem por vias
paralelas, ora em sinergia, ora em competição” (RICŒUR, 2016, p. 287). E aqui, por fim, se reforça
o que vinha sendo comentado: na sinergia entre o si e o outro, a identidade pessoal se engrandece de
cultura, história, linguagem, conhecimentos, vivências, etc., mas na competição, ou o si se impõe
sobre a identidade pessoal em desfavor do outro, ou o contrário, com o outro se impondo. Isso
certamente não ocorrerá somente à nível de autoidentificação, mas de atuação no mundo, remando a
favor ou contra a corrente.

69
Estando inevitavelmente ligados o si e o outro na identidade pessoal, a resolução do paradoxo
(ou seja, dessa posição emaranhada de implicações na identidade pessoal) se revela no transcorrer da
vida, esse movimento da ipseidade, somado à intervenção educacional da Bildung iluminista. Esta
solução “pragmática”, como o próprio filósofo a chama, se dá pela criação de “ambiente em que se
conquista essa justa distância entre os sujeitos humanos, no meio do caminho entre a identificação
fusional e a separação que o ódio, o desprezo e o medo instauram” (RICŒUR, 2016, p. 287).
Após esse percurso pelos dois paradoxos podemos constatar que este “eu” que nos referimos
é uma costura de vivências, uma união entre permanência e mutabilidade, e ao mesmo tempo um “eu”
constituído pelo outro; não pode ficar isolado na permanência do idem, nem em seu cogito
cartesiano8; também não pode ser somente a mudança do ipse, nem puramente o outro: “as pessoas
estão dos dois lados” (RICŒUR, 2016, p. 283). Nisto surge o empreendimento da hermenêutica do
si, a árdua compreensão de um mesmo ser mutante e contaminado pelo outro: “Este método da ‘via
longa’ é designado como a função mediadora dos signos e obras da cultura exercida neste processo
de decifração do ser humano” (LISBOA, 2013, p. 108); isso porque “Conocerse [...] consiste en
interpretarse a uno mismo a partir del régimen del relato histórico y del relato de ficción” (RICŒUR,
1999, p. 215)9. Mas não estamos limitados apenas a nos compreendermos, pois podemos também nos
construirmos por meio da fala, ou mais propriamente dizendo, da narração. De fato, o mesmo vale
tanto para nossa própria identidade, quanto para a identidade dos outros, sejam reais ou fictícios: “en
el trayecto de la autoidentificación, se interpone la identificación del otro, que resulta real en el
relato histórico e irreal en el relato de ficción” (RICŒUR, 1999, p. 228).
Para Ricœur, há um claro paralelo entre a identidade de uma pessoa real e a identidade de uma
pessoa fictícia, pois ambas se constituem pela narração. Nos dois casos, a trama do idem costura as
várias manifestações do ipse; igualmente, é o contexto do outro que desisola o si. Assim, em ambos
os casos podemos falar de uma identidade narrativa: “el relato configura el carácter duradero de un
personaje, que podemos llamar su identidad narrativa, al construir la identidad dinámica propia de
la historia contada. La identidad de la historia forja la del personaje” (RICŒUR, 1999, p. 218)10.

8 “
Este “eu” é puro pensamento, isto é, a identidade do sujeito, em Descartes, está desprovida da dimensão temporal
compreendida pela narração e das figuras do sujeito” (LISBOA, 2013, p. 107).
9
Complemento aqui com outra passagem, mais longa: “el sí mismo no se conoce de un modo inmediato, sino
indirectamente, mediante el rodeo de toda clase de signos culturales, que nos llevan a defender que la acción se
encuentra simbólicamente mediatizada. Las mediaciones simbólicas que lleva a cabo el relato se encuentran
vinculadas a dicha mediación. La mediación narrativa subraya, de ese modo, que una de las características del
conocimiento de uno mismo consiste en ser una interpretación de sí” (RICŒUR, 1999, p. 227).
10
Vale a pena conferir os argumentos do filósofo a respeito da identidade narrativa no sexto estudo de O si-mesmo como
um outro (1991), intitulado O si e a identidade narrativa, assim como a primeira conclusão de Tempo e Narrativa -
Tomo III (1997), intitulada A primeira aporia da temporalidade: A identidade narrativa.

70
Esse paralelismo ocorre primordialmente pela indissociação entre linguagem e identificabilidade,
pois que “desde o seu nível pulsional, a vida não é vida humana senão pela mediação da linguagem”
(RICŒUR, 2016, p. 286). Por isso o papel da narração na construção da identidade, seja de uma
pessoa real ou fictícia: “El relato es la dimensión lingüística que proporcionamos a la dimensión
temporal de la vida. [...] La historia de la vida se convierte, de ese modo, en una historia contada”
(RICŒUR, 1999, p. 216).

3. A interpretação ricœuriana da formação de identidades pelo ideário nazista

No primeiro tópico, apresentei brevemente a interpretação de Esposito a respeito do ideário


tanatopolítico do nazismo, que se fundamenta sobretudo em um reducionismo biomédico da vida
social como um todo. Após apresentar de maneira sucinta a teoria da identidade narrativa de Ricœur,
no segundo tópico, pretendo agora avaliar se a tese de Esposito (de que o nazismo se sustentou sobre
um ideário biomédico) poderia ser explicada pela teoria de Ricœur. Essa avaliação passa
primeiramente pela pressuposição de que este ideário equivale a uma narrativa. Tal pressuposição
parece aceitável, na medida em que um discurso científico foi interpretado pelos idealizadores do
nazismo, que passaram a produzir e reproduzir suas ideias por todos os meios linguísticos conhecidos
à época. Não foi por pouco que uma das figuras mais essenciais do regime foi Goebbels, o ministro
da propaganda, que controlava a imprensa, as produções literárias, cinematográficas e artísticas,
instaurando a única narrativa válida na Alemanha. As ideias se converteram em discurso e o discurso
se difundiu e se materializou na sociedade11.
Havendo, portanto, uma narrativa nazista amplamente difundida – que segundo Esposito era
uma narrativa biomédica –, assim como a repressão de outras narrativas contrárias, passamos
necessariamente para a asserção ricœuriana de que o contexto em que o si se encontra, ou seja, o
outro cultural, linguístico, simbólico, etc., se projeta sobre este si, pressionando-o em sua identidade.
Aqui podemos retomar uma citação feita anteriormente, que vem de encontro com essa pressão:

[...] ressaltaremos a dependência das identidades pessoais às identificações com... heróis, personagens
emblemáticos, modelos e mestres, e também preceitos, normas que se estendem dos costumes tradicionais
aos paradigmas utópicos que, emanando do imaginário social, remodelam nosso imaginário particular
(RICŒUR, 2016, p. 286).

11
A lógica nazista “não concentra o poder supremo de matar exclusivamente nas mãos do chefe - como acontece nas
ditaduras clássicas - mas distribui-o em partes iguais por todo o corpo social. A sua absoluta novidade está, em suma,
no facto de que, de forma directa ou indirecta, cada qual fica legitimado, para suprimir qualquer outro” (ESPOSITO,
2010, p. 160).

71
Aquelas pessoas que viveram o período entreguerras estavam agora diante de um novo
contexto, que vinha para ressignificar a posição delas naquele regime mortífero: umas seriam
identificadas como as que deveriam ser protegidas, outras como as que deveriam ser atacadas. Mas
essa dinâmica de identificação pode ser muito complexa, pois uma coisa é como o contexto
propagandeado identificava as pessoas, outra coisa é como as pessoas identificavam a si próprias
diante desse contexto e outra coisa ainda é como essas pessoas identificavam umas às outras. Em
alguma medida, todas essas três camadas de identificação se entrecruzam, pois acontecem ao mesmo
tempo e implicam-se mutuamente. Justamente por isso será necessário olhar mais atentamente para
cada uma delas, na seguinte ordem: i) o contexto narrativo; ii) a identidade pessoal; iii) a identidade
do outro.
O contexto narrativo do nazismo que vimos ao longo do primeiro tópico pode ser resumido
em duas grandes categorias: i) a vida suprimível e ii) a vida promovida. As vidas suprimíveis são
todas aquelas identificadas como degeneradas – ou seja, que possui um gene decadente – e como
deficientes ou doentes incuráveis – caso, da eutanásia praticada em crianças e adultos, mesmo que
alemães, que recebiam a morte como um “ato de misericórdia” (ESPOSITO, 2010, pp. 193-195). No
caso dos “degenerados”, o racismo extremo, praticado enfaticamente contra os judeus, mas também
contra outros grupos12, era justificado por um léxico eugênico:

O que queriam matar no judeu - e em todos os tipos humanos a ele assimilados - não era a vida mas a
presença nela da morte: uma vida já morta porque marcada hereditariamente por uma deformação originária
e irremediável (ESPOSITO, 2010, p. 197).

Por outro lado, as vidas promovidas eram as dos alemães “puros”, ou seja, sem a
“contaminação genética”, e saudáveis; além dessas vidas, dada a visão biopolítica do regime, a vida
do Estado também precisava ser protegida. No primeiro caso, as políticas adotadas de manutenção,
cuidado e “melhoramento” da vida alemã vinham embaladas no simbolismo da regeneração13. No
segundo caso, o nazismo se apropriou do ensaio Politische Anthropologie de Woltmann, que encontra
no racismo ariano de Rassenhygiene de Ploetz sua pior face, para defender a ideia de que a saúde do
Estado depende da saúde de seus membros e que por isso uns devem ser suprimidos e outros cuidados,
a partir de critérios eugênicos: “é do interesse vital da nação favorecer o crescimento dos mais fortes
e prevenir paralelamente o dos mais débeis de corpo e mente” (ESPOSITO, 2010, p. 184).

12
Cf. ESPOSITO, 2010, p. 185.
13
Um exemplo disto pode ser visto com o plano Lebensborn de Himmler: “para aumentar a produção de exemplares
perfeitamente arianos, alguns milhares de crianças de sangue alemão foram roubadas às respectivas famílias nos
territórios ocupados e confiadas ao cuidado do regime” (ESPOSITO, 2010, p. 189).

72
Estabelecendo-se progressivamente tal contexto, cada indivíduo ali se via diante, no mínimo,
desses dois papéis impostos: ou de suprimido, ou de promovido. E não é gratuito o uso de “papel”
para se referir à identidade imposta pelo contexto, afinal, dos paralelos feitos entre história real e
fictícia, Ricœur resume bem dizendo “La identidad de la historia forja la del personaje” (1999, p.
218). Mas como visto no tópico anterior, é um esforço próprio do si aceitar ou rejeitar, inteiramente
ou parcialmente, o “reinado do outro”14 que se lhe apresenta. Para isso, o indivíduo retoma com mais
atenção a hermenêutica do si, buscando entender qual é a sua identidade diante daquele outro. O
resultado disso é próprio de cada um, mas como dito anteriormente pode ser tanto de aceitação,
rejeição ou mesmo de crise. Retomo, a respeito dos dois primeiros casos, a citação feita
anteriormente: “Individuação e socialização se desenvolvem por vias paralelas, ora em sinergia, ora
em competição” (RICŒUR, 2016, p. 287). Já no caso de crise, em que a ipseidade tão conflituosa
rompe o fio narrativo da mesmidade da identidade pessoal, o indivíduo acaba por não saber quem é:
“¿Quién es aún yo cuando el sujeto dice que no es nada? Precisamente, un sí mismo privado del
auxilio de la mismidad” (RICŒUR, 1999, p. 229).
Diante de todos os indivíduos envolvidos nessa trama narrativa, chama a atenção, no caso da
autoidentificação, a identidade assumida pelos nazistas. A partir do estudo de Esposito sobre o
reducionismo biomédico do nazismo, podemos inferir que a autoidentificação daqueles indivíduos
nazistas passa pelas lentes de tal reducionismo. Nesse sentido, tal indivíduo se identifica como um
corpo, no que Esposito chama de ‘dupla-clausura’15, dentro do corpo nacional, assim como agente de
uma história16 reduzida ao “patrimônio hereditário”: “o que liga horizontalmente todos os corpos
singulares no único corpo da comunidade alemã é a linha vertical do patrimônio hereditário ‘que,
como um rio, corre de uma geração para outra’” (ESPOSITO, 2010, p. 203). Como contrapartida
inevitável da autoidentificação (RICŒUR, 1999, p. 228), a identificação do outro pelas lentes
reducionistas produz o que foi comentado anteriormente a respeito das falas de Himmler e Hitler
sobre os judeus serem literalmente seres infestos, identificados por todo o léxico infectológico. Essa
narrativa reducionista assume um tom de desumanização ontológica17, que afeta diretamente na
hermenêutica do outro e nos atos cometidos contra este outro. O poder da narrativa em construir a

14
Como Ricœur chama em 2016, p. 287.
15
“O segundo dispositivo imunitário do nazismo é a dupla clausura do corpo - a clausura da sua clausura. É aquilo que
Emanuel Levinas definiu como a absoluta identidade entre o nosso corpo e nós mesmos. [...] o corpo já não é apenas
o lugar, mas a essência do eu” (ESPOSITO, 2010, pp. 200-201).
16
“O homem é indiretamente definido pelo passado que transporta dentro de si e que se reproduz na continuidade das
gerações” (ESPOSITO, 2010, p. 201).
17
Por ‘ontológico’ me refiro aqui a um discurso sobre o ser – onto-logos –, ou seja, um ato linguístico de caracterização
existencial.

73
identidade do si e do outro é tão intensa que é capaz de gerar até mesmo interpretações absurdas como
a do médico Fritz Klein, que não via qualquer infração em seu juramento de Hipócrates ao realizar
suas práticas médicas atrozes nos campos de concentração, pois aquele outro sequer era visto como
humano.
Outra ponte que pode ser erigida entre a análise de Esposito e a teoria da identidade narrativa
de Ricœur se dá na solução que o primeiro oferece ao enigma da biopolítica. Retomemos o assunto:
como pode um modelo político orientado para a promoção da vida resultar na promoção da morte?
Esse enigma, que se mostra inicialmente como um paradoxo, só pode ser resolvido pela tecitura de
uma narrativa que ordene e esclareça suas posições contraditórias. O que Esposito faz então é
investigar que tipo de teoria vitalista orientava a tanatopolítica nazista e acaba por demonstrar a
distinção entre dois tipos de vidas, as promovidas e as suprimidas em favor das primeiras. Isso só
demonstra como é possível, através da trama (seja da identidade pessoal ou de uma história contada),
costurar as discordâncias em uma inteligibilidade narrativa (RICŒUR, 2016, p. 283). A própria
história contada entre os nazistas revela essa contradição biopolítica, que se mostra nos casos já
citados anteriormente e em outros, como por exemplo, de sua teoria do espaço vital. A contradição
suprema só surge no palco da história no derradeiro final da guerra, como ordem de suicídio:

[...] o nazismo acabou triturado pelas suas engrenagens. Potenciou o seu aparelho imunitário ao ponto de
ficar presa dele. A única maneira, para um organismo individual ou colectivo, de se proteger
definitivamente do risco da morte é, por outro lado, o de morrer. É o que Hitler, antes de se suicidar, pede
ao povo alemão para fazer (ESPOSITO, 2010, p. 197).

4. Considerações finais

Retomando a proposta deste artigo, me dispus a verificar se a teoria da identidade narrativa


de Ricœur era capaz de explicar as identidades formadas pelo discurso biomédico redutivista do
nazismo, segundo os estudos de Esposito sobre o enigma da biopolítica no caso da Alemanha nazista.
Para isso, apresentei no primeiro tópico o problema do enigma da biopolítica e a leitura de Esposito
sobre o nazismo e seu reducionismo biomédico. No segundo tópico, apresentei resumidamente as
teorias de Ricœur sobre a identidade, mais especificamente sobre os paradoxos envolvidos neste tema
e sua solução pela via da narratividade. Por fim, no último tópico, revisitei os pontos principais
discutidos até então e pus a cabo a proposta do artigo, analisando sob a perspectiva da identidade
narrativa o ideário biomédico reducionista e seu papel formador de identidades dos agentes históricos
deste recorte, assim como a dinâmica dos indivíduos na hermenêutica de si e hermenêutica do outro.
A conclusão alcançada pela investigação sustenta a possibilidade de interpretar a análise de Esposito

74
pelas lentes de Ricœur, reforçando o poder interpretativo e explicativo da teoria da identidade
narrativa até mesmo em um caso como o do nazismo, que se apresenta a nós, usando um termo de
Engelhardt, como um estranho moralmente dos mais chocantes.

Referências bibliográficas

ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa:


Edições 70, 2010.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução
de Maria Ermantina Galvão. 1. ed. 4. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LISBOA, Marcos J. A. O conceito de identidade narrativa e a alteridade na obra de Paul Ricœur:
aproximações. Impulso. Piracicaba, v. 23, n. 56, p. 99-112, jan./abr. 2013.
NEVES, Barbara das. A biopolítica em Roberto Esposito: imunidade e comunidade. Complexitas.
Belém, v. 2, n. 2, p. 6-17, jul./dec. 2017.
RICŒUR, Paul. La identidad narrativa. In: CRUZ, M. (Ed.). Historia y narratividad. Coleção
Pensamiento Contemporáneo, v. 56. Barcelona: Paidós, 1999, p. 215-230.
_______. O si-mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991.
_______. Os paradoxos da identidade. In: MICHEL, J; PORÉE, J. (Ed.). Escritos e conferências 3.
antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 2016, p. 281-292.
_______. Tempo e narrativa. Tomo III. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,
1997.

75
METAS AMBIENTALISTAS VS CONSIDERAÇÃO MORAL DOS ANIMAIS
NÃO HUMANOS: o que pensam ambientalistas quanto ao uso de tecnologias
para intervir na natureza?
ENVIRONMENTALIST GOALS VS MORAL CONSIDERATION OF NON-HUMAN
ANIMALS: what do environmentalists think about the use of technology to intervene in nature?

Arthur Ghiraldini Genovez1

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a objeção ao uso de tecnologia em propostas para
reduzir/prevenir o sofrimento de animais selvagens por preocupação com o bem dos próprios
indivíduos afetados. A hipótese levantada é que essa objeção carece de consistência, uma vez que
intervenções tecnológicas em outros contextos são amplamente aceitas. A metodologia utilizada
consiste em revisão bibliográfica e análise comparativa de intervenções tecnológicas. As principais
conclusões apontam para uma disparidade entre o uso de tecnologia em intervenções para promover
interesses humanos e/ou metas ambientalistas e sua rejeição quando a meta é o bem-estar dos próprios
animais, visando a redução/prevenção de seu sofrimento. Com base no que é argumentado neste
trabalho, a objeção não está relacionada à tecnologia em si, mas às metas específicas pretendidas.

Palavras-chave: senciência, especismo, danos naturais, sofrimento dos animais selvagens, intervenção na
natureza

Abstract: : This article aims to analyze the objection to the use of technology in proposals to
reduce/prevent the suffering of wild animals out of concern for the well-being of the affected
individuals themselves. The hypothesis raised is that this objection lacks consistency, as technological
interventions in other contexts are widely accepted. The methodology used consists of a literature
review and comparative analysis of technological interventions. The main conclusions indicate a
disparity between the use of technology in interventions to promote human interests and/or
environmental goals and its rejection when the goal is the well-being of the animals themselves,
aiming at the reduction/prevention of their suffering. Based on the arguments presented in this work,
the objection is not related to the technology itself, but to the specific intended goals.

Keywords: sentience, speciesism, natural harms, wild animal suffering, intervention in nature

1
https://orcid.org/0000-0001-9504-0838.

76
Introdução

Este artigo tem como objetivo responder a algumas das objeções, frequentemente apontadas
por ambientalistas, em relação às propostas que tenham como meta a preocupação em garantir o bem-
estar dos animais na natureza. Também será examinada a maneira como os interesses dos animais é
utilizado como estratégia retórica para alcançar metas ambientalistas.
Não serão apresentadas alternativas que possam ser implementadas no lugar das intervenções
ambientalistas citadas ao longo texto. Estas intervenções são mencionadas com o intuito de destacar
a posição que está sendo defendida em relação ao bem-estar dos animais selvagens. O termo
ambientalismo será utilizado para se referir a qualquer uma das diferentes vertentes que defendem
que o centro da preocupação moral deveriam ser entidades não sencientes.
Na primeira seção, serão respondidas as objeções em relação ao uso de tecnologia e controle
sobre a natureza. Também serão analisadas algumas disparidades em relação ao que é defendido por
ambientalistas e o que já está sendo aceito na prática para alcançar as metas que defendem.
Na segunda seção, será examinada a maneira como o sofrimento dos animais é explorado para
defender intervenções que não tenham como preocupação o seu próprio bem-estar. Em seguida, será
comentado um caso em que ambientalistas defendem abertamente o sofrimento vivido por animais
na natureza.
Na terceira seção, será examinado se as metas ambientalistas coincidem com o que é melhor
para a maioria dos animais. Também serão respondidas objeções centradas na preocupação em atingir
as melhores consequências e em garantir a liberdade dos animais selvagens.
Na seção final, serão feitas algumas considerações em relação ao que foi abordado no texto.

O uso de tecnologia como objeção às propostas que tenham como meta garantir o bem dos
animais selvagens

Frequentemente, a proposta de ajudar animais selvagens vítimas de danos naturais por


preocupação com o bem dos próprios indivíduos afetados é questionada por depender do uso de
tecnologia, ou por ser considerada uma forma de controle sobre a natureza. Algumas pessoas que
mantém este posicionamento defendem que ajudar animais selvagens vítimas de processos naturais
como desnutrição, sede (ÉTICA ANIMAL, 2015a) doenças, parasitismo (ÉTICA ANIMAL, 2016),
acidentes (ÉTICA ANIMAL, 2016b), temperaturas extremas (ÉTICA ANIMAL, 2015) e conflitos

77
intra (ÉTICA ANIMAL, 2020) e interespecíficos (ÉTICA ANIMAL, 2016a) seria absurdo por
requerer um investimento muito alto em tecnologia, ou que seria inviável porque ainda não dispomos
dos meios pelos quais poderíamos ajudar esses animais de uma maneira eficiente.
Outros se opõem à ajudá-los simplesmente porque fazê-lo envolveria o uso de tecnologia,
ainda que a intervenção fosse viável e dela decorressem as melhores consequências. Normalmente,
também é argumentado que, mesmo que tivéssemos os recursos, utilizá-los para intervir na natureza
por preocupação com o bem dos próprios animais seria uma atitude arrogante, e que humanos
estariam “brincando de deus” ao escolherem o destino dos animais beneficiados pelas intervenções.
Entretanto, os que defendem esta posição não parecem considerar absurda toda e qualquer
intervenção na natureza que dependa de recursos tecnológicos ou que exerça controle sobre os
processos naturais. Intervenções nos processos e no território natural motivadas por interesses
antropocêntricos (por exemplo, ajudar humanos vítimas de desastres naturais, doenças, acidentes
etc.), assim como intervenções que são orientadas por metas ambientalistas (por exemplo, preservar
ecossistemas, habitats e espécies), já são amplamente aceitas pela grande maioria das pessoas e, no
entanto, utilizam-se dos mesmos meios que são alvo de objeções quando adotados por intervenções
que visam ajudar animais vítimas de danos naturais.
Existe uma disparidade no que é defendido em relação ao uso de tecnologia para intervir na
natureza que pode ser observada em diversos posicionamentos ambientalistas. Frequentemente, há
oposição em relação ao uso de tecnologia para controlar os desdobramentos de processos naturais
prejudiciais aos interesses dos animais selvagens e, no entanto, são defendidas soluções tecnológicas
para alcançar metas que ambientalistas consideram ser importantes como, por exemplo, preservar
ecossistemas e espécies. Muitos ambientalistas julgam ser, inclusive, indispensáveis os avanços
tecnológicos para que se consiga frear processos que ameaçam entidades naturais valorizadas no
ambientalismo, como os processos que são responsáveis pela perda de biodiversidade (PIMM et al.,
2015). Frente ao atual cenário de mudanças climáticas, é de se esperar que nas próximas décadas cada
vez mais soluções tecnológicas sejam desenvolvidas e adotadas por ambientalistas para alcançar seus
objetivos e, consequentemente, que humanos tenham cada vez mais controle sobre o mundo natural
(ADAMS, 2019). Sendo assim, o argumento que defende que intervenções visando ajudar animais
selvagens vítimas de danos naturais devem ser rejeitadas por dependerem do uso de tecnologia,
alegando que não devemos utilizar a tecnologia para manipular a natureza, não parece ser aceito na
prática pelos próprios ambientalistas. O uso de tecnologias em geral parece ser uma tendência que é
bem recebida entre ambientalistas, desde que seja utilizada para atingir as metas que buscam, que é
diferente de uma preocupação com o bem dos próprios animais.

78
Por exemplo, o governo da Nova Zelândia decidiu investir 790 mil dólares neozelandeses (algo
em torno de 2,7 milhões de reais) no desenvolvimento de um novo drone que será utilizado para
envenenar animais considerados exóticos invasores2. Este projeto intitulado Predator Free 2050,
como o próprio nome sugere, tem como meta exterminar todos os predadores exóticos invasores, tais
como gambás (Trichosurus vulpecula), arminhos (Mustela erminea) e algumas espécies de ratos
(Rattus rattus, Rattus norvegicus e Rattus exulans), presentes no território neozelandês, até o ano de
2050. Em um pronunciamento sobre essa decisão, a ex-ministra do meio ambiente da Nova Zelândia,
Eugenie Sage, defende que: “Restaurar a natureza para que as espécies nativas possam crescer e
prosperar depende do desenvolvimento de novas ferramentas e tecnologias (...). Drones têm o
potencial de serem decisivos para que isso aconteça”3.
Ao comentar sobre a iniciativa por parte do governo de usar drones para exterminar animais
exóticos que ameaçam metas ambientalistas, o coordenador do programa Predator Free 2050, Brent
Beaven, expressa seu otimismo em relação à possibilidade de usar novas tecnologias que ainda estão
em fase de desenvolvimento: "meu sonho é que um dia nós teremos dispositivos com inteligência
artificial que irão detectar a presença de uma praga4 em algum lugar e automaticamente enviar uma
mensagem para que um drone possa ser enviado - Não seria Fantástico?5"
Mesmo se desconsiderarmos que o controle já é aceito pela grande maioria das pessoas quando
este beneficia interesses antropocêntricos ou ambientalistas, o argumento que defende que humanos
não devem controlar a natureza tem o seguinte problema adicional: não menciona que também
estamos a controlar o destino dos animais quando podemos intervir para ajudá-los em um momento
de dificuldade e optamos por deixá-los à própria sorte (CUNHA, 2018, p. 90).
Ainda assim, um defensor de que não devemos ajudar os animais vítimas de danos naturais
poderia argumentar que sua oposição não se dá pelo fato de haver controle sobre a natureza, mas
porque envolveria o uso de tecnologia, ou porque acredita que não devemos fazer o que não é natural.

2
Animais e outros organismos vivos introduzidos fora da sua área de distribuição natural e que colocam em risco a
biodiversidade. Ver: CONABIO, Resolução nº7, de 29 de maio de 2018, Comissão Nacional de Biodiversidade; Dispõe
sobre Estratégia Nacional para Espécies Exóticas Invasoras. Publicado no Diário Oficial da União em 13/06/2018.
3
“Restoring nature so indigenous species can thrive requires new tools and technologies,” minister of conservation
Eugenie Sage said. “Drones have the potential to be a game-changer.” ROY, E. A. Poison-laden drones to patrol New
Zealand wilderness on the hunt for invasive pests. The Guardian. 2020. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/environment/2020/mar/14/poison-laden-drones-to-patrol-new-zealand-wilderness-
hunt-pests-aoe> Acesso: 04/05/2021.
4
O termo praga utilizado pelo autor faz referências aos animais considerados exóticos invasores.
5
Ibid. “My dream is that one day we’ll have artificial intelligence devices that will detect the presence of a pest somewhere
that will automatically link to a messaging service that will send a drone out - wouldn’t that be great?”

79
Existem vários problemas que poderiam ser apontados em relação a esses dois argumentos. As
implicações que surgem do primeiro argumento, que, aparentemente, tenta defender que todo e
qualquer uso de tecnologia deva ser rejeitado independentemente das metas que se pretenda alcançar,
não parecem ser aceitáveis. Um cenário em que pacientes com câncer ou vítimas de um incêndio
deixem de receber atendimento médico porque tratá-las envolveria o uso de medicamentos, meios de
transporte, energia elétrica ou outras tecnologias, não parece ser algo razoável e, muito
provavelmente, não é o que os proponentes do argumento têm em mente quando defendem uma
posição contrária ao uso de tecnologia. A posição defendida parece ser a de que não devemos usar
tecnologia apenas quando os beneficiados pela ação forem animais não humanos vítimas de danos
naturais. Mas nesse caso, os proponentes do argumento ainda precisariam explicar porque defendem
utilizar a tecnologia para beneficiar humanos e alcançar metas ambientalistas, e se opõem quando as
vítimas são animais selvagens. A posição assumida parece não ser contrária ao uso de tecnologia,
apenas extremamente seletiva quanto aos que devem ser beneficiados.
Defender que não devemos fazer algo porque fazê-lo não seria natural também é problemático,
uma vez que muitas das ações que consideramos corretas não seriam naturais (por exemplo, um
médico que trata de pacientes com malária ou febre amarela) e, consequentemente, teriam de ser
rejeitadas. Por outro lado, ações que consideramos hediondas, como, estupro e infanticídio, teriam de
ser defendidas, segundo essa visão, porque ocorrem naturalmente na natureza. Na verdade, o mero
fato de algo ser natural, por si só, não justifica nada (MILL, 1904, p. 7-33; RACHELS; RACHELS,
2012, p. 44-58). O processo de justificativa em ética consiste em oferecer razões - e o fato de algo ser
natural não é uma razão para pensarmos que isso seja moralmente justo, correto ou bom. Muito
provavelmente, a posição confunde os supostos benefícios que uma vida mais natural, longe da
poluição dos grandes centros urbanos possa ter na vida de humanos, com aquilo que é melhor para os
animais na natureza. No entanto, os humanos que defendem este estilo de vida mais natural também
dependem do uso de tecnologia, apenas optam por usá-la da maneira que lhes garanta um maior nível
de bem-estar. Os animais na natureza, por outro lado, na grande maioria das vezes, levam vidas
repletas de experiências negativas que lhes causam enorme dor e sofrimento, e se beneficiariam de
maneira significativa caso humanos investissem em soluções tecnológicas para minimizar os danos
naturais de que padecem.
Os limites da tecnologia atual também não parecem ser encarados pelos ambientalistas como
uma justificativa para que abandonem qualquer tentativa de intervir na natureza para tentar preservar
as entidades naturais que valorizam (como determinadas espécies e ecossistemas), ao contrário do
que é afirmado em relação às intervenções que visam minimizar danos naturais por preocupação com

80
o bem dos próprios animais. Ambientalistas encaram estes limites impostos pelo conhecimento atual
como uma justificativa para que mais recursos sejam investidos em projetos que desenvolvam novas
tecnologias, e optam, no meio-tempo, por intervir da melhor maneira possível com os recursos que
temos à disposição. No entanto, agir com cautela ou investir em novas tecnologias mais seguras são
estratégias que podem ser adotadas por metas distintas, incluindo uma meta centrada na preocupação
em garantir o bem dos próprios animais.
Ao que tudo indica, a oposição em relação às intervenções que visam ajudar animais selvagens
vítimas de danos naturais por preocupação com o bem dos próprios indivíduos, não se deve aos
métodos que seriam necessários para intervir, mas às metas que se pretende alcançar. Uma prova
disso é que estes já estão sendo empregados em outras intervenções que beneficiam humanos ou que
promovem a preservação de entidades não sencientes (espécies, ecossistemas etc.). Ou seja, o uso de
tecnologias e o controle sobre a natureza são rejeitados quando a meta é a preocupação com o bem
dos animais, e são aceitos quando a meta é antropocêntrica ou ambientalista.

Intervenções ambientalistas e o sofrimento animal

Assim como a aversão ao uso da tecnologia é trazida à tona não como uma preocupação real,
mas como uma tentativa de rejeitar propostas que tenham como meta garantir o bem dos animais na
natureza, por vezes acontece o contrário: a preocupação com o bem dos animais é mencionada, mas
não como uma preocupação real, e sim como uma tentativa de fazer com que as propostas que visam
realizar metas ambientalistas (muitas delas prejudiciais aos animais) sejam aceitas.
Situações em que animais selvagens são vítimas de predadores exóticos invasores, tais como
ratos, camundongos, gambás e gatos ferais6, são exemplos em que o sofrimento da vítima, no caso o
animal que está sendo predado, é utilizado como pretexto para se alcançar metas ambientalistas -
metas que não tem como preocupação o bem dos animais afetados pela predação, mas por exemplo,
manter o ecossistema em um estado valorizado pelo ambientalismo. Assim, antes de analisarmos um
caso envolvendo animais que são considerados membros de espécies invasoras, é importante
esclarecer quais estados são valorizados no ambientalismo e como isso se diferencia da maneira como
o meio ambiente é valorizado pelas visões centradas na senciência.

6
Gatos e outros animais domésticos que habitam ambientes naturais e não dependem dos cuidados humanos para se
alimentar e sobreviver. ICMBIO. Guia de orientação para o manejo de espécies exóticas invasoras em Unidades
de Conservação Federais. 2019. Disponível em: <https://www.icmbio.gov.br/cbc/guia-de-orientacao-para-o-manejo-
de-especies-exoticas-invasoras-em-unidades-de-conservacao-federais.html> Acesso: 25/05/2021

81
Nas visões ambientalistas são as próprias entidades naturais não sencientes (por exemplo
espécies, ecossistemas, processos naturais etc.) que recebem consideração moral direta (FARIA;
PAEZ, 2019) – e essa é uma diferença importante em relação às visões cujo centro de preocupação
moral são indivíduos sencientes. Nas visões centradas no bem de indivíduos sencientes, como as
visões centradas na senciência e antropocêntrica, o meio ambiente é considerado apenas
indiretamente - ou seja, enquanto recurso para os indivíduos sencientes que vivem nele (já que o bem
desses indivíduos é o que realmente importa nessas visões). Essa é uma diferença teórica que tem
implicações práticas importantes, em especial, devido à maneira como esses dois tipos de visões
(ambientalistas e centradas no bem de indivíduos sencientes) prescrevem manter o meio ambiente.
Se nas visões centradas na senciência e antropocêntricas o meio ambiente deve ser mantido da
maneira que mais beneficie os indivíduos sencientes (humanos e não humanos), no ambientalismo o
meio ambiente deve ser mantido da maneira que é mais valorizado, independentemente do valor
instrumental que isso possa ter para os seres sencientes afetados – ou seja, independentemente de isso
ser benéfico, prejudicial ou indiferente ao bem desses indivíduos (CUNHA, 2022, p.173). Em razão
disso, os critérios utilizados no ambientalismo para avaliar quais estados são mais valiosos (apesar de
poderem variar dependendo do tipo de visão ambientalista que estiver sendo defendida) não são
critérios que visam garantir o bem dos indivíduos sencientes (por exemplo, dos animais não humanos
que vivem em determinados ecossistemas e/ou que são membros de determinadas espécies). Para
clarificarmos essa diferença, vejamos alguns exemplos de critérios comumente utilizados por
ambientalistas para avaliar quais os estados mais valiosos.
No ambientalismo holista, defendido por autores como Callicott (1992; 2000), Leopold (2000),
Naess (1989; 1999) e Rolston (1999), as entidades naturais que recebem consideração moral direta
são totalidades, como espécies e ecossistemas (e os indivíduos importam apenas indiretamente,
enquanto componentes dessas totalidades). No entanto, normalmente não é toda e qualquer totalidade
que é valorizada na perspectiva holista. As espécies e/ou ecossistemas tendem a ser valorizados com
base em critérios como grau de raridade, presença de atributos estéticos, grau de complexidade etc.
Assim, quando holistas defendem preservar uma espécie rara ou uma bela paisagem, não fazem isso
por preocupação com o bem dos seres sencientes que são membros dessa espécie ou que fazem parte
da composição da paisagem. Muito pelo contrário, fazem isso por preocupação com a manutenção
das próprias totalidades “espécie” e “ecossistema”. Por exemplo, é comum que holistas defendam a
restauração de ecossistemas para que a estética da paisagem volte a ser como era no passado, mesmo
que isso resulte no sofrimento intenso e na morte de animais não humanos que habitam essas áreas
(a seguir, veremos nesta seção um exemplo prático desse tipo de intervenção ambientalista).

82
Já no naturocentrismo, um outro tipo de visão ambientalista que é defendida por autores como
Elliot (1997) e Katz (1992), o valor do meio ambiente tende a ser maior quanto menor for a influência
humana, ou seja, quanto menor for o grau de transformação humana no ambiente. Nesse sentido, os
ecossistemas mais valorizados no naturocentrismo tendem a ser aqueles intocados (ou pouco
transformados) pelos humanos e as espécies mais valorizadas são também aquelas que se
desenvolveram com pouca influência humana (como é o caso de muitas espécies que não foram
domesticadas). Novamente, a noção de que deveríamos buscar manter ecossistemas e/ou espécies
intocadas pelos humanos é completamente distinta e entra em conflito com a meta de manter o meio
ambiente da maneira que mais beneficie os seres sencientes (por exemplo, em muitos casos
precisaríamos fazer exatamente o contrário: intervir nos processos naturais para ajudar os animais
sencientes que vivem em determinados ecossistemas e/ou que são membro de determinadas
espécies)7.
Um terceiro tipo de ambientalismo, o biocentrismo, defendido por autores como Taylor (1986),
Attfield (1987) e Goodpaster (1978), se caracteriza por considerar organismos vivos individualmente
(por exemplo, plantas, fungos, animais não sencientes, animais sencientes, bactérias, protistas etc.)
em vez de totalidades. Por vezes, além do critério da vida biológica, proponentes do biocentrismo
também combinam esse critério com o critério naturocêntrico (TAYLOR, 1986). De qualquer
maneira, a preservação de organismos vivos não sencientes é distinta e tende a entrar em conflito com
a meta de garantir o bem dos seres sencientes (ÉTICA ANIMAL, 2021). Por conta disso, apesar de
considerar indivíduos e não totalidades, o biocentrismo também não deve ser confundido com visões
que tenham como meta garantir o bem dos seres sencientes.
Assim, com base no que foi argumentado até aqui, existem diferenças fundamentais entre as
visões ambientalistas e as visões centradas na senciência. O ambientalismo prescreve a manutenção
do meio ambiente não com base no benefício dos seres sencientes que o habitam, mas sim com base
em como ele é valorizado dentro da perspectiva ambientalista. Vejamos agora um exemplo prático
dessa oposição entre ambientalismo e consideração moral dos seres sencientes.
A remota ilha de Gonçalo Álvares, no Atlântico Sul, tem sido alvo de intervenções
ambientalistas para envenenar camundongos que foram acidentalmente introduzidos por navegadores

7
Na prática, no entanto, talvez essa oposição entre ambientalismo e a preocupação em reduzir/prevenir o sofrimento dos
animais selvagens não seja tão grande quanto aparenta ser. Por exemplo, dado que a maioria dos ecossistemas naturais
já tiveram algum tipo de influência humana, os proponentes do naturocentrismo não teriam porque se opor às
intervenções que fossem conduzidas nesses locais – que hoje representam a esmagadora maioria dos ecossistemas da
terra. O mesmo também parece ser válido, por razões distintas, em relação às demais visões ambientalistas. Essa questão
é discutida em detalhes em Horta (2018).

83
no século XIX. Os camundongos estão interferindo na biodiversidade da ilha ao se alimentarem dos
ovos e filhotes de espécies de aves nativas que fazem seus ninhos sobre o solo, como os do albatroz-
de-tristão (Diomedea dabbenena). Atualmente, esta espécie conta com cerca de quatro mil indivíduos
adultos na natureza (BIRDLIFE, 2018) o que é motivo de preocupação entre ambientalistas. Ao
enfatizar a urgência de se exterminar os camundongos que foram introduzidos em Gonçalo Álvares,
Alex Bond, curador do Museu de História Natural de Londres, no Reino Unido, e pesquisador da
situação enfrentada pelas aves na ilha, descreve a situação da seguinte maneira:

É absolutamente chocante. (...) Nós observamos [cenas de] camundongos atacando filhotes de albatroz-de-
tristão, em que os roedores comiam através da parede do corpo das aves, próxima à região da cauda,
enquanto elas ainda estão vivas. Pode levar até quatro dias para que os filhotes morram. 8

Evidentemente, a presença dos camundongos é motivo de muito sofrimento para os filhotes de


aves que estão sendo predados na ilha. Entretanto, a predação sempre é negativa para as vítimas,
independentemente de o predador ser de uma espécie exótica invasora ou nativa e independentemente
de a qual espécie pertence a presa. A partir de uma perspectiva não especista, o interesse dos animais
em não serem prejudicados, incluindo, é claro, o dos camundongos que estão sendo envenenados,
deve receber igual consideração.
Uma possível objeção seria manter que é possível defender uma posição ambientalista sem ser
especista. Por exemplo, alguém poderia apontar que tentar evitar que espécies sejam extintas não é
necessariamente uma atitude especista. Com base nisso, os proponentes dessa objeção poderiam então
alegar que o envenenamento de camundongos para preservar a biodiversidade da ilha não seria fruto
do especismo. Entretanto, meramente apontar que algo é possível (ambientalistas não serem
especistas) não é o mesmo que oferecer razões de que o envenenamento de determinados seres
sencientes para preservar a biodiversidade não seja um caso de especismo e, muito menos, que as
formas mais comuns de ambientalismo não estejam subordinadas ao especismo antropocêntrico. Na
verdade, parecem haver fortes razões que apontam o contrário: essas intervenções parecem só ser
defendidas por causa do especismo e as formas mais comuns de ambientalismo são especistas.
Vejamos porquê.
De fato, é possível defender uma visão ambientalista que não seja especista. O ambientalismo
é uma visão normativa que enxerga determinadas entidades não sencientes (espécies, ecossistemas,

8
No original: “It is absolutely shocking. We've observed mice attacking Tristan albatross chicks, where the rodents will
eat through the body wall near the rump of the bird while they are still alive. It can take up to four days for the chicks
to die.” DAVIS, Josh. Gangs of mice are eating seabird chicks alive on a remote Atlantic island. Natural History
Museum, 2018. Disponível em: https://www.nhm.ac.uk/discover/news/2018/october/gangs-of-mice-are-eating-
seabird-chicks-alive-on-a-remote-atlantic-island.html. Acesso em: 26/05/2021.

84
biodiversidade, processos naturais etc.) enquanto objeto de consideração moral direta - e a
preservação dessas entidades, pelo menos em alguns casos, é mais importante do que garantir o bem
dos seres sencientes (FARIA; PAEZ, 2019, p. 3). Há também, como vimos, diferentes tipos de
ambientalismo. As diferentes visões ambientalistas podem divergir quanto ao critério de consideração
moral (quais objetos fazem parte da comunidade moral) e quanto ao critério de estatura moral (qual
o grau de consideração que cada objeto recebe dentro da comunidade moral). Já o especismo é uma
forma de discriminação análoga ao racismo e ao sexismo (HORTA; ALBERSMEIER, 2020). O
especismo pode ser definido como:

[...] a consideração ou tratamento injustificado e comparativamente pior daqueles que não são classificados
como pertencentes a uma determinada espécie (ou grupo de espécies) cujos membros são favorecidos, ou
que são classificados como pertencentes a uma determinada espécie (ou grupo de espécies) cujos membros
são desconsiderados (HORTA; ALBERSMEIER, 2020, p. 4)

De maneira resumida, o especismo é a discriminação contra os indivíduos que não pertencem


à determinadas espécies. Uma das formas mais comuns de especismo é o especismo antropocêntrico:
a discriminação - isto é, o tratamento desfavorável injusto - contra aqueles que não pertencem à
espécie humana (FARIA; PAEZ, 2014).
Portanto, defender uma visão ambientalista não é, por definição, especismo. Entretanto, são
raras as visões que adotam o critério ambientalista de consideração moral sem subordinar esse critério
ao critério antropocêntrico (CUNHA, 2021, p. 139-140). Normalmente, as visões ambientalistas
também consideram os humanos diretamente - e o bem dos humanos é mais importante do que a
preservação de qualquer entidade não senciente que também for objeto de consideração moral direta
nessas visões, como determinada espécie rara, por exemplo. Essa versão de ambientalismo em que o
bem dos humanos é considerado em maior grau é defendida, por exemplo, por Callicott (1992, p.
146-147; 2000, p. 211), Leopold, (2000, p. 135), Næss (1989, p. 167, 170; 1999, p. 148; Varner (1991,
p. 177), Warren (2000, p. 228) e Wenz (1998, p. 308).
Ao tornarem o critério antropocêntrico o critério principal, os proponentes dessas visões
evitam ter de aceitar implicações que seriam consideradas inaceitáveis caso o bem dos humanos
importasse em um grau menor do que a preservação de espécies, ecossistemas, processos naturais ou
qualquer outra entidade natural moralmente considerada nas visões ambientalistas. Por exemplo, a
maioria das pessoas consideraria hediondo matar humanos para preservar uma espécie rara ou para
evitar que um ecossistema seja alterado. Além disso, é amplamente reconhecido que as razões para
se prevenir/minimizar o sofrimento e as mortes de indivíduos humanos não dependem de sabermos
se a espécie humana é nativa ou invasora em determinada área, se está em risco de extinção, se
desempenha alguma função ecológica importante etc. Por exemplo, seria absurdo alegar que o

85
sofrimento humano não importa (ou importa menos) porque a espécie humana não é uma espécie rara
e não está em risco de extinção.
Entretanto, dado que o especismo é injustificado, se é errado prejudicar gravemente indivíduos
humanos para alcançar metas ambientalistas, é igualmente errado fazer isso quando os indivíduos
afetados forem animais não humanos sencientes. O especismo antropocêntrico é injustificado porque
a senciência é uma condição suficiente e necessária para a consideração moral direta plena (FARIA;
PAEZ, 2014).
É esse o ponto que está sendo evidenciado aqui: não é que envenenar os indivíduos de uma
população para preservar uma espécie rara seja necessariamente especismo – até porque é possível
defender isso em relação a todos os indivíduos sencientes, independentemente de espécie, ou seja,
defender exterminar humanos e não humanos. A questão aqui é: os que defendem exterminar
indivíduos sencientes para preservar uma espécie rara também defendem isso quando os indivíduos
são humanos? Evidentemente que não é isso o que os proponentes desse tipo de intervenção
defendem. Contudo, se isso é assim, então isso se caracteriza como uma forma de especismo
antropocêntrico: os interesses básicos de indivíduos sencientes não humanos (como o interesse em
não sofrer e em não morrer) recebem um peso menor do que os interesses de níveis similares de
indivíduos humanos. É importante ressaltar também que o especismo não acontece somente quando
alguém é totalmente desconsiderado, mas toda vez que alguém recebe injustamente um tratamento
ou consideração que é comparativamente pior.
Logo, não basta dar alguma consideração moral aos animais não humanos para uma posição (ou uma
intervenção defendida a partir de uma posição normativa) não ser especista - é preciso também rejeitar
critérios arbitrários de estatura moral. A forma mais comum de ambientalismo cria uma hierarquia
em que o bem dos humanos importa mais do que a preservação de entidades não sencientes (espécies,
ecossistemas, processos naturais etc.) e essas entidades por sua vez importam mais do que o bem dos
animais não humanos sencientes. Assim, ao contrário do que muitos poderiam pensar, as formas mais
comuns de ambientalismo são, na verdade, uma instância do especismo antropocêntrico9 (CUNHA,
2021, p. 141).

9
Isso não quer dizer que o especismo é o único problema com as posições ambientalistas. Poderíamos ainda questionar
a própria noção de que entidades não sencientes (como espécies e ecossistemas) seriam dignas de consideração moral
direta. Além disso, mesmo que alguém defenda um versão não especista de ambientalismo - dando um peso maior (ou
peso somente) às entidades não sencientes do que ao bem de todos os seres sencientes (humanos e não humanos) - ainda
não está claro como isso poderia ser moralmente justificado. Por exemplo, porque o sofrimento de um bebê humano ou
de um animal não humano deveria receber um peso menor do que a manutenção de alguma entidade natural não
senciente - que não pode ser beneficiada e/ou prejudicada - como uma espécie, por exemplo? Igualmente questionável
seria defender que a única coisa que importa são entidades naturais não sencientes. Nesse caso o sofrimento de um bebê
humano ou outro animal senciente não humano importaria apenas indiretamente, na medida em que fosse

86
Em resumo, se é injusto dar uma consideração menor ao bem de indivíduos humanos por
pertencerem a uma espécie que é abundante, invasora e/ou que atrapalha a preservação da
biodiversidade, é igualmente injusto discriminar animais não humanos por pertencerem a espécies
que tenham essas características: como é o caso dos camundongos que foram introduzidos na ilha.
Na natureza, é comum que animais sejam comidos vivos por seus predadores (ÉTICA
ANIMAL, 2016a), mas raramente isso é motivo de preocupação entre ambientalistas. Normalmente,
a predação, assim como outras disputas pelas quais animais prejudicam uns aos outros, tendem a ser
valorizadas pelo ambientalismo devido ao papel que cumprem na manutenção do meio ambiente. Os
camundongos, entretanto, não fazem parte da fauna nativa da ilha, e sua presença atrapalha a
conservação da biodiversidade e demais metas ambientalistas. Essa é a verdadeira razão pela qual a
predação praticada por camundongos é condenada pelos ambientalistas, e não por causar sofrimento
às presas, como é dito.
O sofrimento das aves parece ser mencionado porque os camundongos não são seus predadores
naturais e, principalmente, porque é do interesse dos ambientalistas que as espécies nativas não sejam
extintas. Mas, em um cenário hipotético, no qual albatrozes-de-tristão não estivessem em vias de se
extinguir e fossem comidos vivos por algum tipo de predador nativo daquele local, dificilmente seu
sofrimento sequer seria mencionado.
Apesar de, por vezes, mencionar o sofrimento causados pelos animais que serão exterminados,
intervenções ambientalistas em situações envolvendo animais considerados exóticos invasores têm
como meta restaurar características do ecossistema que acabam sendo modificadas com a chegada
desses animais, o que é diferente de se tentar minimizar ou prevenir o sofrimento dos animais nativos
que são afetados pela predação. Evitar com que animais nativos sejam prejudicados por espécies
exóticas invasoras, nesses casos, é apenas uma consequência de se tentar preservar certas
características do meio ambiente, uma vez que as espécies das quais estes animais nativos são
membros constituem uma característica muito importante do ecossistema na visão ambientalista.
Como observa Cunha (2021, p. 135), na maioria das visões ambientalistas, o bem dos animais
sencientes tende a ser visto como algo que importa apenas indiretamente, dependendo do quão útil
for para a preservação das entidades não sencientes que são valorizadas por essas visões. Ou seja,
reduzir os danos para os animais só é uma preocupação dos ambientalistas quando fazê-lo ajuda a
atingir outras metas, que não o próprio benefício para os animais.

instrumentalmente positivo/negativo para a promoção das metas defendidas pelo ambientalismo. Assim, mesmo quando
defendido de uma maneira não especista, o ambientalismo enquanto visão normativa é ainda altamente questionável e
parece que deve ser rejeitado. Para um exemplo de uma versão não especista de ambientalismo, ver Linkola (2009).
Para críticas ao ambientalismo ver: Cunha (2021, p. 141-142).

87
Mencionar o sofrimento dos animais pode fazer com que intervenções ambientalistas para
conservar a biodiversidade (como as intervenções para exterminar animais exóticos que predam
animais de espécies nativas), sejam confundidas com uma intervenção que tenha como meta ajudar
os animais por preocupação com o bem-estar dos próprios indivíduos afetados. Também pode
contribuir para criar a falsa impressão de que seria esta a única intervenção possível para que a grande
maioria dos animais pudesse ser beneficiada. Exterminar animais exóticos invasores, apesar de
lamentável, seria, nesses casos, algo inevitável segundo os que defendem essa posição.
Provavelmente, mencionar o sofrimento de animais selvagens para defender entidades não
sencientes, que são incapazes de terem experiências negativas e/ou positivas, como espécies e
ecossistemas, pode servir para melhorar a aceitação das intervenções ambientalistas que envolvem a
matança de animais exóticos invasores carismáticos, como raposas, ouriços-terrestres e cavalos
(CROWLEY et al., 2017); ou que dependem do uso de veneno, como rodenticida, e outros métodos
que são impopulares (MARRIS, 2018).
Apesar de apelarem ao sofrimento dos animais que são prejudicados pela predação por
membros de espécies exóticas invasoras, os próprios ambientalistas defendem a predação e outros
eventos danosos para os animais (doenças, parasitismo, condições meteorológicas extremas etc.), e
todo o sofrimento que resulta disso quando esses eventos contribuem para que certos aspectos do
meio ambiente permaneçam inalterados, ou então, para que características que foram perdidas possam
ser restauradas.
Reintroduzir predadores em locais onde deixaram de existir, por exemplo, é uma maneira pela
qual ambientalistas tentam recriar paisagens do passado, muitas vezes, porque as consideram
esteticamente valiosas. Este tipo de intervenção extremamente danosa aos interesses dos animais cria
o que é conhecido por ambientalistas como “ecologia do medo” (HORTA, 2017). O nome faz alusão
ao efeito que a presença do predador tem sobre as suas presas. Além de reduzir o número de
herbívoros que se alimentam de espécies de plantas que são importantes na composição da paisagem,
a introdução do predador também faz com que, mesmo aqueles que não são predados, deixem de se
alimentar em locais abertos, onde podem ser vistos com maior facilidade. O terror que se instala com
a chegada do predador é tanto, que a dieta dos herbívoros é empobrecida drasticamente, muitas vezes,
fazendo com que os mesmos morram de inanição. Doenças e temperaturas extremas também surtem
um efeito maior nesses animais que ficam enfraquecidos pela falta de alimento. A maneira como as
presas evitam a todo custo serem vistas pelos predadores, preferindo, muitas vezes, permanecerem
escondidas e morrerem de fome do que se arriscarem para conseguir alimento, faz com que a
vegetação que seria consumida cresça e modifique a paisagem. A mudança ocasionada pela

88
diminuição da pastagem pode ser desejada pelos ambientalistas porque contribui com metas como o
aumento de biodiversidade, ou porque é, na opinião de alguns, esteticamente mais agradável.
No parque de Yellowstone, nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 30 lobos (Canis lupus
europeus) trazidos do Canadá foram reintroduzidos por ambientalistas na década de noventa, com o
intuito de controlar a população de cervos (Cervus canadensis) do parque (HORTA, 2017). Desde
que o lobo, seu principal predador, havia sido extinto por caçadores, a população de cervos aumentou
significantemente, e o efeito da pastagem pôde ser percebido na paisagem do parque. Os cervos, que
gozavam de maior liberdade na ausência dos lobos, estavam contribuindo com o envelhecimento de
árvores nativas, como álamo e salgueiro, ao consumirem seus brotos e impedirem que novos
descendentes dessas árvores pudessem crescer. Por esse motivo, ambientalistas resolveram
reintroduzir os lobos para diminuírem a população de cervos e, principalmente, fazer com que o medo
do predador os forçassem a não se alimentarem nos campos, onde cresciam os brotos de álamo e
salgueiro. A presença do predador foi tão negativa para os cervos que a modificação na paisagem
pôde ser percebida em poucos anos, razão pela qual foi considerada um sucesso e celebrada por
muitos ambientalistas (RANDALL, 2020).
A maneira como as presas foram prejudicadas com a decisão de reintroduzir os predadores é
muito evidente. Ao que tudo indica, a experiência de serem vítimas de seus predadores que,
frequentemente as comem vivas, é tão negativa que preferem morrer lentamente de fome. Ainda
assim, muitos poderiam pensar que ao menos os lobos foram beneficiados com a reintrodução. No
entanto, além de sofrerem com todo tipo de dano natural, como qualquer outro animal selvagem,
desde que foram reintroduzidos têm sido vítimas de um ectoparasita causador da sarna (ANDRÉ,
2017; ALMBERG et al., 2012). A doença, que muitas vezes pode ser letal, tem sido motivo de grande
sofrimento para esses animais. Durante o inverno os lobos parasitados muitas vezes morrem de frio,
devido à maneira como a sarna faz cair a sua pelagem.
Criar uma situação em que animais sencientes morram enfraquecidos pela fome e pelo frio, ou
comidos vivos por predadores, por exemplo, para tornar uma paisagem mais agradável de se
contemplar, certamente seria considerado um absurdo caso as vítimas fossem animais da espécie
humana. Entretanto, muitas intervenções para se alcançar metas ambientalistas fazem exatamente isso
com animais selvagens. Os interesses mais básicos dos cervos, lobos e outros animais não humanos,
em não sofrerem ou terem suas vidas encerradas de maneira prematura são ignorados para que se
satisfaçam interesses humanos não vitais ou até mesmo triviais, tal como o interesse em se observar
uma bela paisagem.

89
As metas ambientalistas coincidem com o que é melhor para os animais?

Uma outra maneira pela qual ambientalistas tentam se opor às propostas que tenham como
meta melhorar a situação dos animais selvagens vítimas de danos naturais é defendendo, o que
supostamente seriam, os interesses dos próprios animais.
Frequentemente, este tipo de objeção se dá através da defesa do que seriam, alegadamente, as
melhores consequências para a maioria dos animais selvagens. Nesse sentido, é defendido que
intervenções para alcançar metas ambientalistas, e não aquelas centradas na preocupação com o bem
dos próprios animais, atingiriam as melhores consequências. Segundo os proponentes dessa objeção,
aqueles que se preocupam com o bem-estar dos animais selvagens deveriam defender intervenções
ambientalistas, como a restauração de ecossistemas, porque, apesar de prejudicial para alguns
animais, tais com lobos, cervos e “invasores”, fazê-lo criaria as melhores condições para a maioria.
Manter o meio ambiente da maneira como é defendida por ambientalistas, que valorizam
processos naturais extremamente nocivos aos interesses dos animais selvagens (como fome, sede e
doenças), já seria difícil de aceitar caso quiséssemos atingir as melhores consequências para os
próprios animais. Mas o principal problema com essa objeção centrada nas melhores consequências
é a maneira como seus proponentes não apresentam nenhuma razão do porquê isso seria assim. É
simplesmente assumido que um ambiente mantido da maneira como prega o ambientalismo seria
melhor para os animais. O ônus da prova, portanto, recai sobre aqueles que fazem a afirmação de que
manter o meio ambiente inalterado beneficia a maioria dos animais.
Existem fortes argumentos para considerarmos que o bem dos animais não humanos importa
diretamente (CUNHA, 2021, p. 57 - 69). Se é assim, então, a alta prevalência do sofrimento entre
animais selvagens (TOMASIK, 2009) que, na grande maioria das vezes, têm suas vidas encerradas
de maneira prematura e violenta, faz com que tenhamos fortes razões para intervir na natureza. Se o
meio ambiente sem a intervenção humana não é positivo para a maioria dos animais, mantê-lo dessa
forma seria manter processos nocivos que lhes prejudicam, o que não parece ser uma boa
consequência.
A afirmação de que metas ambientalistas coincidem com as melhores consequências para os
próprios animais normalmente parte do pressuposto que intervir com o propósito de ajudá-los teria
consequências indesejáveis. Por exemplo, poderia ser apontado pelos que defendem uma posição
ambientalista que intervir em processos que vitimizam animais na natureza (por exemplo, livrando-
os de parasitas) faria com que algumas populações crescessem de maneira descontrolada, esgotando
os recursos dos quais dependem para sobreviver e piorando ainda mais a sua própria situação.

90
Entretanto, como observa Cunha (2018, p. 336 - 337), essas consequências negativas somente
decorreriam de intervenções mal planejadas. Há diversos exemplos de intervenções bem sucedidas
na natureza, realizadas pelos próprios ambientalistas, que beneficiam animais indiretamente, tais
como programas de vacinação (ROBINSON et al., 2018), tratamento de doenças (JAMRIŠKA et al.,
2013), e controle de natalidade (GRAY; CAMERON, 2010; ANSARI et al., 2017). Apesar de a
grande maioria das intervenções que beneficiam animais ainda não serem realizadas por consideração
com o seu próprio bem-estar, mas para que sejam alcançadas outras metas, como evitar com que
espécies raras sejam extintas, ainda assim, são extremamente positivas. A vida dos animais que são
vacinados, por exemplo, é tremendamente melhor do que a que teriam caso não tivessem sido
beneficiados com o programa de vacinação. Sendo assim, parece que devemos rejeitar a objeção
centrada na preocupação com as melhores consequências e promover intervenções cuidadosamente
planejadas para beneficiar animais selvagens por preocupação com o seu próprio bem-estar.
A liberdade dos animais também é frequentemente mencionada pelos que se opõem às
propostas que tenham como meta ajudá-los, alegando que intervindo na predação e demais formas
pelas quais animais são prejudicados, estaríamos infringindo a sua liberdade.
Por exemplo, Marc Bekoff, professor emérito de ecologia e biologia evolutiva da Universidade
do Colorado, em Boulder, nos Estados Unidos, defende que: “Animais devem ser livres para serem
quem eles são (...) A morte faz parte da vida na natureza. Sinto muito pelos que nascem como presas,
mas é assim que as coisas são”10.
Apesar de defenderem que os animais devem ser livres, dando a entender que estariam
preocupados com o seu bem-estar, não está claro porque os animais prefeririam sofrer e ter mais
liberdade do que serem beneficiados por intervenções humanas. Além disso, intervir para curá-los de
doenças e lesões, por exemplo, não diminuiria sua liberdade, muito pelo contrário: os animais
beneficiados com as intervenções ainda poderiam ser livres para serem o que quiserem, só que com
menos sofrimento. Não ajudá-los por outro lado, faz com que não possam ser nada, muito menos
exercer sua liberdade, porque morrem de maneira prematura ou nascem apenas para sofrer
intensamente.
Há também um problema adicional maior na fala de Bekoff contrária à proposta de intervir
para ajudar animais. O problema consiste em tentar prescrever que devemos manter certas coisas
somente porque essas coisas já acontecem. Esse salto de como as coisas são para como devem ser é

10
“Animals need to be free to be who they are," says Bekoff. "Death begets life in nature. I am sorry if you are born a
prey species but that’s the way it is.” WILKINSON, Todd. To Rescue or Not, That is the Question With Distressed
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prontamente reconhecido como injustificável quando as vítimas são humanas. Basta tentar justificar
ações humanas com base na maneira como o mundo é para que fique evidente. Por exemplo, guerras
e violência sexual são descrições de formas pelas quais humanos prejudicam uns aos outros hoje e
desde sempre, mas isso não significa que essas sejam ações corretas ou que tenhamos razões para
mantê-las no futuro. E, principalmente, o fato de algo acontecer (mesmo que aconteça devido aos
processos naturais) não mostra que esse algo tenha valor. Doenças e desastres naturais, por exemplo,
acontecem e são parte de como “as coisas são”. Entretanto, isso não parece fazer com que sejam
coisas boas.
Dado o que foi argumentado acima, assim como a objeção que apela ao sofrimento dos animais
selvagens para rejeitar propostas que tenham como meta ajudá-los, as que se baseiam em uma
preocupação com as melhores consequências ou em garantir sua liberdade, também parece que devem
ser rejeitadas.

Considerações finais

A alta prevalência do sofrimento dos animais que vivem nos ambientes naturais faz com que
tenhamos fortes razões para intervir e minimizar os danos naturais de que padecem. Recursos
atualmente destinados para alcançar metas ambientalistas poderiam ser realocados para desenvolver
novas maneiras de ajudá-los com mais eficiência. Adotando uma meta centrada na preocupação com
o bem dos próprios animais também poderíamos expandir intervenções que atualmente são praticadas
com propósitos ambientalistas ou antropocêntricos que acabam beneficiando animais indiretamente,
como programas de vacinação de espécies ameaçadas, para que cada vez mais indivíduos possam ser
beneficiados. O uso de tecnologia é fundamental para que isso aconteça e deve ser encorajado para
que mais animais possam ser beneficiados no futuro. A oposição quanto ao uso de tecnologia para
intervir na natureza com o propósito de ajudar animais selvagens não se sustenta na prática, uma vez
que o uso já é amplamente aceito para alcançar outras metas, e parece ser utilizada como estratégia
retórica para que intervenções em prol dos animais sejam rejeitadas.
Há também uma falsa preocupação em relação ao sofrimento dos animais por parte de
ambientalistas que parece servir estrategicamente para alcançar as metas que defendem. Apesar de,
por vezes, alegarem que estariam contribuindo para atingirmos as melhores consequências, as metas
defendidas por ambientalistas não coincidem com o que é melhor para a maioria dos animais
selvagens. Tampouco, podem garantir que sejam mais livres do que seriam caso humanos
interviessem para minimizar os danos naturais de que padecem.

92
É preciso que o interesse dos animais selvagens deixe de ser explorado para alcançar metas
ambientalistas e que sejam defendidas propostas que tenham como meta garantir o bem dos próprios
animais. Até que isso aconteça, intervenções extremamente prejudiciais aos seus interesses, como o
extermínio em massa daqueles considerados invasores e a reintrodução de predadores para restaurar
ecossistemas, continuarão sendo erroneamente interpretadas como positivas para a maioria dos
animais. O ambientalismo e a defesa da consideração moral direta plena dos animais não humanos
são posições completamente diferentes.

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VARNER, G. No Holism Without Pluralism. Environmental Ethics, [s.l.], v. 13, p. 175-79, 1991.
WARREN, M. A. Moral Status: Obligations to Persons and other Livings Things. Oxford: Oxford
University Press, 2000
WENZ, P. S. Environmental justice. Albany: State University of New York Press, 1998.

96
EPISTEMOLOGIAS DA IGNORÂNCIA E IGNORÂNCIA
SISTEMATICAMENTE CONSTRUÍDA
EPISTEMOLOGIES OF IGNORANCE AND SISTEMATICALLY CONSTRUCTED
IGNORANCE

João Marcelo Saraiva1

RESUMO: O objetivo deste trabalho é argumentar a favor de uma distinção entre casos onde a
ignorância é tomada como mera ausência de um bem epistêmico, como conhecimento ou crença
verdadeira, e casos que não podem ser descritos a partir, apenas, da ausência desses bens. Para realizar
este objetivo, o artigo será dividido em três seções. Na primeira seção apresento as duas principais
definições de ignorância defendidas hoje na literatura contemporânea das epistemologias da
ignorância, a saber, ignorância como ausência de conhecimento e ignorância como ausência de crença
verdadeira. Na segunda seção, irei apresentar duas concepções de ignorância que são
sistematicamente construídas, a saber, ignorância resultante de casos de injustiça hermenêutica e
ignorância branca. Por fim, será sugerido, na terceira seção, que interpretar ignorância apenas como
mera ausência de um bem epistêmico não é suficiente para a compreensão do conceito, visto que há
casos nos quais a ignorância não é meramente acidental, mas sim, causalmente conectada com
processos de produção de não conhecimento.

Palavras-chaves: Epistemologias da ignorância; Injustiça Epistêmica; Ignorância sistematicamente


construída; Ignorância motivada; Epistemologia social.

ABSTRACT: The main goal of this article is to offer an argument for distinguishing between cases
of ignorance as a mere absence of an epistemic good, such as knowledge or true belief, and cases
that go beyond this simple absence. To accomplish this, the article is divided into three sections. In
the first section, we explore the two primary definitions of ignorance found in contemporary literature
on epistemologies of ignorance: ignorance as the absence of knowledge and ignorance as the absence
of true belief. The second section delves into two specific forms of ignorance that are systematically
constructed: ignorance resulting from hermeneutical injustice and white ignorance. Finally, in the
third section, we propose that interpreting ignorance solely as the absence of an epistemic good is
inadequate for a comprehensive understanding of the concept. We argue that there are cases in which
ignorance is not merely accidental but intricately connected to processes of non-knowledge
production.

Keywords: Epistemologies of ignorance; Epistemic Injustice; Systematically constructed ignorance;


Willful ignorance; Social epistemology;

1
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

97
Introdução

A epistemologia, enquanto uma disciplina filosófica, tradicionalmente lida com questões


acerca da natureza do conhecimento. A partir da pergunta “o que é conhecimento?” tem-se gerado
uma literatura vasta que busca responder a essa questão e que tem como frutos do seu trabalho
algumas conclusões, como: conhecimento deve ser interpretado como um conceito polissêmico, logo,
a pergunta “o que é conhecimento?” deriva-se em ao menos três perguntas: o que é conhecimento
proposicional? O que é conhecimento competencial? O que é conhecimento de familiaridade?
É a partir da questão “o que é conhecimento proposicional?” que a maior parte do trabalho
contemporâneo em epistemologia foi produzido, trazendo à tona, por exemplo, a análise tripartite do
conhecimento, que diz que conhecimento proposicional deve ser interpretado como crença verdadeira
justificada (CVJ).
Apesar da investigação acerca da natureza do conhecimento ter gerado grandes frutos para a
epistemologia, pouco foi considerado acerca de um termo vizinho, que diz respeito àquilo que não
sabemos: a ignorância2. Porém, atualmente, alguns autores tem direcionado sua atenção para uma
investigação epistemológica da ignorância, tendo estabelecido o campo de pesquisa das
epistemologias da ignorância.
A discussão acerca das epistemologias da ignorância tem seu foco em duas linhas de pesquisa
distintas que tratam de questões acerca da ignorância com pretensões diferentes. A primeira linha de
pesquisa a ser apresentada3, busca responder à questão: o que é ignorância proposicional? A partir
dessa questão, encontra-se em disputa duas concepções de ignorância que guiam o debate. A
concepção padrão de ignorância, denominada e defendida por Pierre le Morvan (2010, 2011a, 2011b,
2013, 2018), e a concepção nova, denominada e defendida por Rik Peels (2010, 2011a, 2011b, 2012,
2014). Para os defensores da concepção padrão, ignorância é definida a partir da ausência de
conhecimento, já para os adeptos à concepção nova, ignorância é ausência de crença verdadeira.
Para além da pergunta: o que é ignorância proposicional? Outra linha de pesquisa, anterior a
de Peels e Morvan, tem seu destaque. Essa linha de pesquisa preocupa-se com a construção e
produção de ignorância. Pode-se citar como exemplos dessa tradição o trabalho de Charles Mills

2
Como bem aponta Bispo (2022, p.2) a ignorância tem sido tema de investigação filosófica desde Sócrates e do ceticismo
antigo. Porém, a investigação da ignorância a partir das discussões tradicionais da epistemologia é recente, assim
como o uso do termo “epistemologias da ignorância” para denotar o estudo epistemológico da ignorância, que têm
suas influências em Mills (1997). De acordo com Peels e Blaauw (2016), por exemplo, os grandes manuais de
epistemologia de cerca dos últimos 20 anos não contêm sequer uma seção específica à ignorância.
3
Para material acerca dessa linha de pesquisa ver Peels e Blaauw (2016).

98
(1997, 2007, 2015) sobre ignorância branca, o de Medina (2013, 2016) sobre ignorância ativa, a
tradição de epistemologias da ignorância racial compiladas no livro de Sullivan e Tuana (2007), e
trabalhos de agnotologia4 como os de Oreskes e Conway (2010) e Robert N. Proctor (1996).
Portanto, o objetivo desse artigo é apresentar essas duas linhas de pesquisa, mas, além disso,
argumentar que a compreensão da natureza da ignorância como mera ausência de um bem epistêmico,
como propõem Peels e Le Morvan (2016), não é o suficiente para lidar com casos onde a ignorância
é sistematicamente construída. Portanto, serão diferenciados casos de mera ignorância de casos de
ignorância sistematicamente construída a partir da defesa de que os primeiros são casos acidentais e
passivos de ignorância, enquanto os segundos são casos onde a ignorância é produto de uma
construção por parte de sujeitos e grupos acerca daquilo que não sabemos ou não devemos saber. Para
exemplificar esse argumento pretendo mostrar dois casos de ignorância sistematicamente construída
através de casos de ignorância branca e injustiças epistêmicas. Com isso, pretendo concluir, também,
que a tarefa de lidar com casos de ignorância sistematicamente construída é mais complexa do que a
tarefa de lidar com mera ignorância5, visto que para a correção da mera ignorância, bastaria a
aquisição de um bem epistêmico que está em falta, enquanto para casos de ignorância
sistematicamente construída, existem mecanismos estruturais e pessoais que impedem o ganho desses
bens epistêmicos por indivíduos e grupos.
Na primeira seção do artigo, apresento as duas definições de ignorância a partir de Peels e
Morvan (2016), além de apresentar alguns argumentos a favor e contra essas visões. Na segunda
seção, desenvolvo sobre o tema da ignorância sistematicamente construída, subdividindo a seção em
duas, a primeira apresentando casos de ignorância branca e a segunda casos de ignorância resultantes
de injustiça hermenêutica. Por fim, na terceira seção, argumento que tratar da ignorância como uma
mera ausência de um bem epistêmico não é o suficiente para a compreensão da natureza do fenômeno,
visto que há casos onde a ignorância é sistematicamente construída, ocasionando uma maior
dificuldade de correção.

1. Sobre a natureza da ignorância

4
O termo agnotologia foi cunhado por Robert N. Proctor (1996) para se referir ao estudo da produção de ignorância,
principalmente em questões relacionadas ao conhecimento científico. Um dos principais exemplos de produção de
ignorância nesse contexto foi quando a indústria tabagista financiou estudos para negar a o vínculo entre o tabagismo
e o câncer. Para entender melhor sobre esse caso, ver: Oreskes e Conway (2010).
5
O termo mera ignorância será utilizado para se referir à casos de ignorância como os descritos por Peels e Morvan
(2016), onde a ausência do bem epistêmico é acidental.

99
Atualmente, o debate acerca da definição de ignorância gira entorno da disputa de duas
principais concepções: a concepção padrão de ignorância e a concepção nova de ignorância. A
concepção padrão de ignorância, cujo principal defensor é Pierre Le Morvan (2010, 2011a, 2011b,
2013, 2018), define ignorância como ausência de conhecimento, enquanto a concepção nova, cujo
principal defensor é Rik Peels (2010, 2011a, 2011b, 2012, 2014), define ignorância como ausência
de crença verdadeira.
A concepção padrão parte do pressuposto que ignorância é o oposto complementar do conceito
de conhecimento. Dessa forma, quando não há conhecimento, há ignorância, e quando não há
ignorância, há conhecimento. Portanto, como aponta Feldman (2002), se conhecimento pode ser
dividido em conhecimento competencial (know how6), conhecimento proposicional (know that7) e
conhecimento de familiaridade, têm-se um caso de ignorância sempre que o conhecimento em
questão está ausente, ou seja, caso um sujeito não tenha conhecimento proposicional, de familiaridade
ou competencial.
Porém, parece estranho considerar que a ausência de conhecimento, no geral, implica
ignorância, visto que não utilizamos o conceito de ignorância para indicar a falta de conhecimento
competencial ou de familiaridade. Dessa forma, apesar de apontarem que ignorância é ausência de
conhecimento, os defensores da concepção padrão preocupam-se com o conceito de conhecimento
proposicional, visto que é o tipo de conhecimento que têm sido o foco dos epistemólogos, logo, ao
falar da definição de ignorância, nesse artigo, estou supondo tratar de ignorância proposicional.
Dito isso, a concepção padrão de ignorância pode ser definida da seguinte forma, de acordo
com Le Morvan (2016): um sujeito S é ignorante de uma proposição p quando uma das seguintes
condições se apresenta: i) S não acredita na proposição verdadeira p; ii) S suspende o juízo acerca da
proposição verdadeira p; iii) S nem acredita nem desacredita nem suspende o juízo acerca da
proposição verdadeira p; iv) p é falsa 8; e v) S acredita na proposição verdadeira p porém sua crença

6
Saber como. Tradução própria.
7
Saber que. Tradução própria.
8
Parece estranho dizer que sujeitos são ignorantes acerca de proposições falsas, visto que isso implicaria que somos
ignorantes de proposições como “patos são maiores que tigres” ou “a vacina da covid-19 nos transforma em jacarés”
independente de acreditarmos nessas proposições. Porém, de acordo com Le Morvan (2010, 2011a, 2011b) isso
ocorre por confundirmos ignorância factível com ignorância proposicional. De acordo com o autor, temos de lembrar
que as condições de verdade de uma proposição se diferenciam do cumprimento das condições de verdade dessa
mesma proposição. Dessa forma, se um sujeito acredita que “patos são maiores que tigres” o sujeito não é ignorante
acerca das condições de verdade dessa proposição (ignorância proposicional), mas sim, acerca do cumprimento das
condições de verdade (ignorância factível). Nesse sentido, a ignorância desse sujeito reside exatamente no fato da
proposição não corresponder, factivelmente, com o mundo. A distinção entre ignorância factível e proposicional gera
uma série de debates entre Peels e Morvan, que podem ser vistos em maiores detalhes em: Le Morvan (2010, 2011a,
2011b) e Peels (2011a, 2012). Apesar do longo debate, me parece que a ignorância em questão, relativa a proposições

100
em p não está bem justificada9, sendo a justificação aquilo que confere status de conhecimento a uma
crença verdadeira.
Já os adeptos à concepção nova, obtendo suas inspirações em Goldman e Olsson (2009)10,
defendem que ignorância é ausência de crença verdadeira. Dessa forma, um sujeito S é ignorante de
p quando uma dessas condições se cumpre: i) S não acredita na proposição verdadeira p; ii) S
suspende o juízo acerca da proposição verdadeira p; iii) S nem acredita nem desacredita nem suspende
o juízo acerca da proposição verdadeira p. Como pode-se perceber, ambas concepções concordam
que as cláusulas de I a III implicam em ignorância, porém, discordam acerca das cláusulas IV e V.
Abaixo, apresentarei ambas as concepções em maiores detalhes e serão expostos os argumentos a
favor das cláusulas IV e V para a concepção padrão, e contra essas mesmas cláusulas pela concepção
nova.

1.1 A concepção padrão de ignorância

Como dito anteriormente, de acordo com a concepção padrão de ignorância, ignorância é


ausência de conhecimento, e, nesse caso, conhecimento proposicional. A partir da definição tripartite
de conhecimento proposicional temos que: dado um sujeito S qualquer e uma proposição p qualquer,
S sabe que p se e somente se i) S acredita em p (crença); ii) a crença de S em p é justificada
(justificação); e iii) p é verdadeira (verdade).

falsas, ocorre exatamente por existir uma proposição verdadeira da qual o sujeito que acredita na proposição falsa
falha em obter conhecimento. Nesse sentido, casos de proposições falsas parecem, na verdade, serem casos de crença
em uma proposição falsa que implicam na ausência de crença verdadeira ou conhecimento.
9
De acordo com Nottelman (2016), conhecimento factual não admite graus, dessa forma, ou um sujeito sabe
determinado fato, ou não sabe. Diferente do conhecimento factual, ignorância parece admitir graus, por exemplo,
quando se sabe uma resposta parcial para determinada pergunta, porém, incompleta. Para servir de exemplo,
suponha dois sujeitos que estão em uma festa de aniversário: João e Pedro. João sabe que Maria, Roberta, Eduarda e
Pedro vieram a festa, enquanto Pedro só sabe que João veio a festa. Ambos possuem justificação para responder
corretamente à pergunta “alguém veio a festa?”. Porém, acerca da proposição “Quem veio a festa?” Pedro possui
uma resposta parcial, enquanto João possui uma resposta completa (supondo que Maria, Roberta, Eduardo e Pedro
são todos os integrantes da festa). Isso implica que João não é ignorante sobre quem veio a festa, porém, Pedro parece
ser parcialmente ignorante sobre quem veio a festa. Para discussões sobre graus de ignorância ver: Nottelman (2016).
10
A tese de Goldman e Olsson (2009) será explicada na seção acerca da concepção nova de ignorância. Porém, para fins
de introdução, os autores defendem que existem duas formas de obter conhecimento proposicional, uma fraca e
outra forte. Conhecimento fraco equivale a simples crença verdadeira, já conhecimento forte equivale a crença
verdadeira justificada + uma condição anti-Gettier. Isso se segue da ideia de que um sujeito pode falhar em obter
conhecimento mesmo não sendo ignorante. Para Goldman, casos de ausência de crença verdadeira exprimem casos
de ignorância, já casos onde há crença verdadeira, porém, não há conhecimento, são casos onde um sujeito possui
conhecimento fraco, e, portanto, não é ignorante.

101
Portanto, se ignorância proposicional é o oposto complementar do conhecimento
proposicional, e se conhecimento proposicional é crença verdadeira justificada (CVJ), temos um caso
de ignorância proposicional quando qualquer um dos elementos necessários para a definição de
conhecimento proposicional encontra-se ausente. Portanto, de acordo com Le Morvan (2016) casos
de ignorância proposicional são casos onde dado um sujeito S qualquer e uma proposição p qualquer
S ou não acredita em p (Cláusula I, seção 1) ou S suspende o juízo em p (Cláusula II, seção 1), ou
nem acredita nem desacredita nem suspende o juízo em p (Cláusula III, seção 1) ou S falha em obter
conhecimento por não estar bem justificado ou a CVJ de S esteja Gettierizada 11 (Cláusula IV, seção
1) ou, por fim, caso a proposição em questão seja falsa (Cláusula V, seção 1).
Pierre Le Morvan (2016), apresenta três principais argumentos para a concepção padrão de
ignorância. O primeiro argumento se dá ao apontar para um critério pragmático: caso se adote
ignorância como o oposto complementar do conhecimento, teorizar sobre conhecimento e teorizar
sobre ignorância torna-se uma tarefa conjunta, logo, todo ganho teórico no campo do conhecimento
pode ser extraído para o campo da ignorância e vice-versa.
O segundo argumento é o argumento de uso comum, onde Morvan aponta que cotidianamente
utilizamos o conceito de ignorância como significando ausência de conhecimento. É importante notar,
porém, que essa afirmação não parte de uma mera intuição que Morvan sugere que seja aceita. Para
dar força ao argumento, Morvan analisa a estrutura linguística e o significado de “ignorância” em
diferentes línguas, utilizando como base tanto as definições de ignorância retiradas de dicionários
dessas línguas, quanto da estrutura etimológica do termo ignorância.
O terceiro e último argumento diz respeito à ignorância acerca de proposições falsas. Esse
argumento consiste em apontar que sujeitos podem ser ignorantes acerca de proposições falsas ao
admitirmos uma distinção entre ignorância factível e ignorância proposicional, o que não ocorre caso
adotemos a concepção nova.
LeMorvan e Peels discutem em uma série de artigos12 sobre a possibilidade da ignorância
acerca de proposições falsas. Recorde que como foi dito anteriormente, apesar de ambos concordarem
que as condições de I a III da concepção padrão são casos de ignorância, os autores discordam sobre

11
Edmund Gettier é um famoso filósofo que escreveu um artigo denominado “Is justified true belief knowledge?” (1963)
onde argumenta que crença verdadeira justificada não é o suficiente para a definição de conhecimento proposicional,
visto que há casos, como mostra Gettier, onde há crença verdadeira justificada porém não há conhecimento. Sendo
assim, um sujeito poderia possuir crença verdadeira justificada e mesmo assim ser ignorante, caso estejamos diante
de um caso de Gettier.
12
Essa discussão pode ser vista com maiores detalhes em Le Morvan (2011a, 2011b, 2013, 2016) e Peels (2011a, 2011b,
2012, 2016).

102
as condições IV e V. Dessa forma, para Peels, uma proposição ser falsa não é o suficiente para que
alguém esteja em estado de ignorância acerca dela. Isso se dá porque seria extremamente estranho
dizer que somos ignorantes, por exemplo, de que “a vacina de covid 19 nos transforma em jacarés”.
A primeira confusão que parece surgir dessa consideração, se dá na forma em que a definição
da concepção padrão de ignorância descreve a cláusula de ignorância acerca de proposições falsas.
Como vimos, p ser falso, para Morvan, é suficiente para render ignorância. Porém, apesar dessa
constatação, parece que Morvan quer dizer que a crença em uma proposição falsa implica em
ignorância (o que não parece problemático para a concepção nova), como veremos a seguir.
Peels (2011a) argumenta contra Morvan, afirmando que um sujeito só pode ser ignorante
acerca daquilo que é o caso, ou seja, sobre proposições verdadeiras, logo, um sujeito não pode ser
ignorante de algo que é falso. Nesse sentido, para lidar com essa objeção, LeMorvan (2011a, 2011b,
2013) sugere a Peels que se distinga entre ignorância factível e ignorância proposicional. De acordo
com o mesmo, há uma diferença entre ser ignorante acerca das condições de verdade de uma
proposição (ignorância proposicional) e ser ignorante acerca do cumprimento dessas condições de
verdade (ignorância factível).
Para exemplificar essa distinção, pense por exemplo que alguém pode acreditar em uma
proposição, e, dessa forma, não ser ignorante dessa proposição, porém, ser ignorante de que as
condições de verdade dessa proposição se cumprem. Por exemplo, suponha a seguinte proposição
“Existe uma civilização no lado escuro da lua”. Suponha que estou considerando essa proposição,
logo, não sou ignorante da proposição em si (das suas condições de verdade). Porém, mesmo não
sendo ignorante acerca da proposição, eu continuo sendo ignorante acerca do fato se cumprir, isto é,
de que de fato existe uma civilização no lado escuro da lua.
Dessa forma, para Le Morvan, um sujeito que acredite, por exemplo, que a terra é plana não
possui ignorância proposicional, visto que ele sabe as condições de verdade dessa proposição
(concebe a proposição), porém, ele é ignorante acerca do cumprimento das condições de verdade
dessa proposição, visto que elas não se cumprem, e, portanto, possui ignorância factiva. Em suas
palavras: “Alguém possui ignorância factiva se esse sujeito acredita em proposições falsas e, também,
se ele falha em acreditar em proposições verdadeiras”1314 (MORVAN, 2011b, p.383, tradução nossa).

13
Original: “One is factively ignorant if one believes false propositions and also if one fails to believe true propositions.”
14
O problema com essa constatação de Morvan é que ele parece estar tratando ignorância acerca de uma proposição
falsa e ignorância acerca da crença em uma proposição falsa como significado uma e mesma coisa, o que claramente
não se segue. Talvez, por definir ignorância como “ausência de conhecimento”, Morvan não queira se comprometer
com a ideia de que existem casos onde ignorância é presença de crença falsa. Porém, não iremos nos estender nesse

103
1.2 A concepção nova da ignorância

A concepção nova da ignorância, advogada por Rik Peels (2016), têm suas bases na tese de
Goldman e Olsson (2009, p.19-21), segundo a qual existe uma noção que a palavra “conhecimento”
evoca que parece significar nada mais que mera crença verdadeira. Dessa forma, muitas vezes,
quando dizemos que alguém sabe algo, apenas queremos dizer que esse alguém possui crença
verdadeira.
A motivação de Goldman advém da constatação de que existem casos onde a falha em obter
conhecimento não implica em ignorância, por exemplo, quando a crença de S em p não está bem
justificada ou quando a CVJ de S em p é um caso de Gettier. De acordo com os autores, seria estranho
dizer que alguém que possui crença verdadeira é ignorante, mesmo que essa crença não seja bem
justificada.
De acordo com os autores, isso ocorre porque geralmente pensamos que ignorância é o oposto
complementar ao conceito de conhecimento. Porém, se consideramos que conhecimento é crença
verdadeira justificada + uma condição antigettier, isso implica, também, considerar que casos de mera
crença verdadeira ou CVJ Gettierizada não são casos de conhecimento. A saída de Goldman para esse
problema é dizer que existem formas de falhar em obter conhecimento que não implicam em
ignorância, isso é, quando alguém possui conhecimento fraco (crença verdadeira).
Nas palavras de Goldman e Olsson (2009, p.20-21, tradução própria):

O complemento de saber é não saber, mas não saber que p (sendo p verdadeiro) pode ocorrer em quaisquer
três formas: (1) ser ignorante de p (não acreditar), (2) acreditar em p de forma não justificada, ou (3)
acreditar em p justificadamente, porém violando a condição x. Sob este conceito de conhecimento,
nenhuma inferência é licenciada de não saber p para ser ignorante de p. Nós admitimos, porém, que existe
um sentido de "saber" em que essa inferência é licenciada. As pessoas comumente fazem essa inferência.
O único conceito de conhecimento compatível com essa inferência é aquele em que conhecimento = crença
verdadeira.15

É interessante notar que os defensores da concepção padrão tomam outro rumo. Ao notar que
ignorância e conhecimento são complementares, isto é, opostos, os adeptos à concepção padrão

problema, que pode ser visto em maior detalhe na bibliografia sugerida anteriormente na nota de rodapé 11.
Portanto, basta que se compreenda a distinção entre ignorância proposicional e factível para Morvan.
15
Original: “The complement of knowing is not knowing, but not knowing p (where p is true) can occur in any of three
different ways: (1) by being ignorant of p (not believing it), (2) by believing p unjustifiedly, or (3) by believing p
justifiedly but violating condition X. Under this concept of knowledge, no inference is licensed from not knowing p to
being ignorant of p. We contend, however, that there is a sense of ‘knowing’ in which this inference is licensed. People
commonly make this inference. The only concept of knowledge compatible with this inference is the one in which
knowledge = true belief.”

104
defendem que tanto casos de Gettier quanto casos de mera crença verdadeira têm de ser considerados
casos de ignorância, visto que são casos onde um sujeito falha em obter conhecimento.
Porém, a partir das considerações de Goldman e Olsson, a concepção nova de ignorância é
definida por Rik Peels (2016) como ausência de crença verdadeira. Dessa forma, para um sujeito S
qualquer e uma proposição verdadeira p, S é ignorante se I) S não acredita em p; ou II) S suspende o
juízo acerca de p; ou III) S nem acredita, nem desacredita, nem suspende o juízo acerca de p.
Como visto anteriormente na seção 1, a concepção nova e a concepção padrão concordam que
as condições de I a III são condições disjuntivamente necessárias para ignorância, porém, para a
concepção nova, são suficientes, e para a concepção padrão não, visto que para a concepção padrão
haveria mais dois sentidos em que alguém pode possuir ignorância (condições IV e V, seção 1).
Rik Peels (2016) argumenta a favor da concepção nova da ignorância a partir de três caminhos,
o primeiro é argumentar que possuir mera crença verdadeira é condição suficiente para não ser
ignorante, dessa forma, nem casos de Gettier nem casos de crença verdadeira que não possui
justificação são considerados casos de ignorância; o segundo, aponta para o fato de que ignorância
usualmente é utilizada como um atenuante à atribuição de culpa, dito isso, possuir mera crença
verdadeira e agir de forma moralmente condenável não isenta de culpa, logo, possuir mera crença
verdadeira não deve ser considerado ignorância. Por fim, o último argumento consiste em apontar
para o fato de que não existe ignorância competencial e ignorância por familiaridade, logo, ignorância
não deve ser considerada como oposto complementar de todo tipo de conhecimento.

2. Ignorância sistematicamente construída

Na primeira seção, foram apresentadas duas definições de ignorância que tratam de casos onde
a ignorância é resultado de uma mera ausência de um bem epistêmico 16, seja crença verdadeira ou
conhecimento. Apesar de contribuir para a definição do fenômeno da ignorância, temos agora de
considerar casos distintos, onde a ignorância é produto de uma construção deliberada por parte de
sujeitos e grupos.
Dessa forma, sugiro que os casos de ignorância que foram tratados até agora sejam referidos
como casos de mera ignorância, visto que são casos onde a ausência de conhecimento ou crença

16
Williamson (2020) apresenta um caminho semelhante à concepção padrão, porém, introduzindo o conceito de estado
mental. De acordo com o autor, ignorância é ausência de conhecimento, porém, conhecimento é um estado mental,
portanto, ignorância é a ausência de um estado mental. Há objeções que podem ser traçadas a partir dessa perspectiva
que atingem tanto a concepção padrão quanto à concepção nova de ignorância. Essas objeções serão retomadas na
seção três do artigo.

105
verdadeira se dá de maneira acidental. De forma distinta, iremos trabalhar agora com casos onde a
ignorância não é acidental, mas sim causalmente conectada com processos de construção e produção
de não-conhecimento.
A motivação em distinguir casos de mera ignorância de casos de ignorância construída se dá
por duas razões. Primeiro, é necessário distinguir o sujeito que possui ignorância fruto de um mero
acidente daquele que toma partido na construção de sua própria ignorância. Segundo, é necessário
distinguir, também, quando essa ignorância é fruto de mera ausência de um bem epistêmico e quando
ela é fruto de uma construção estrutural de desinformação.
Pense por exemplo nos seguintes casos: em um primeiro caso, temos um sujeito que por n
motivos, acredita que mulheres não sabem fazer contas de matemática tão bem quanto homens.
Suponha, por exemplo, que esse sujeito até tenha evidências disso: todas as mulheres que ele
conheceu não sabiam fazer contas. Sabemos, porém, que mulheres são tão capazes quanto os homens
de fazer contas de matemática, mas, diferente de nós, o sujeito em particular que estamos
considerando não teve acesso a contra evidência para adquirir conhecimento acerca dessa questão.
A partir desse cenário, podemos pensar em duas relações com a ignorância: em um primeiro
momento, podemos sugerir que esse sujeito não merece culpa por sua crença, visto que ela é fruto de
um acidente. Porém, suponha agora que esse sujeito vá para a universidade e tenha acesso suficiente
a contra evidência. Agora temos uma situação limite: o sujeito pode optar por acreditar nas evidências
que lhes são oferecidas e redimir suas crenças misóginas, ou, pode participar da sua própria
construção de ignorância ao resistir, ativamente, a adquirir conhecimento.
A minha sugestão, é que no primeiro caso o sujeito sofria de mera ignorância, visto que sua
ausência de conhecimento, ou ausência de crença verdadeira, era fruto de um acidente e resultado de
uma experiência particular que lhe impediu de adquirir contra evidência. Já no segundo caso, o sujeito
possui uma ignorância que é construída, e não é meramente acidental, visto que ele decide por tomar
parte na construção de sua própria ignorância, resistindo ativamente ao saber. Dessa forma, a
responsabilidade em cada um dos casos também se difere: no caso de mera ignorância o sujeito não
é responsável, ou, pelo menos, sua responsabilidade é atenuada. Já no caso da ignorância construída,
o sujeito é moralmente e epistemicamente responsável, visto que toma partido ao recusar as contra
evidências e resiste ativamente a adquirir conhecimento.
Por fim, suponha um outro caso semelhante, porém, o fato do nosso sujeito acreditar que
mulheres não sabem fazer contas de matemática é fruto de uma opressão sistemática que impede que
mulheres tenham acesso à educação, impedindo, também, que elas tenham educação matemática.
Nesse caso, a ignorância de que o sujeito sofre, além de ser construída, é sistematicamente construída,

106
visto que é fruto de uma opressão estrutural e sistemática que impede que se adquira contra evidência
acerca da questão considerada. Nesse caso, a responsabilidade do sujeito particular parece diminuir
também, enquanto que a culpa parece ser direcionada mais especificamente as instituições e sistemas
que corroboram para que essa ignorância se produza e se mantenha.
É nesse sentido que alguns autores, como os tratados nessa seção, têm chamado atenção para
casos onde a ignorância não é fruto de um mero acidente ou de uma mera ausência de conhecimento,
mas sim, de uma construção ativa dessa ausência. Nas palavras de Sullivan e Thuana (2007, p.1)
acerca da relação entre ignorância e questões raciais:

A ignorância frequentemente é vista como uma lacuna no conhecimento, como uma falha epistêmica que
poderia ser facilmente remediada assim que percebida. Pode parecer ser um subproduto acidental do tempo
limitado e dos recursos que os seres humanos têm para investigar e compreender o seu mundo. Embora
esse tipo de ignorância exista, não é o único tipo. Às vezes, o que não sabemos não é apenas uma lacuna
no conhecimento, o resultado acidental de uma falha epistemológica. Especialmente no caso da opressão
racial, a falta de conhecimento ou o desaprendizado de algo previamente conhecido muitas vezes é
produzido ativamente com o propósito de dominação e exploração.17

Dito isso, apresentarei nessa seção, dois casos de ignorância que são sistematicamente
construídas, a saber, a ignorância branca e a ignorância que é resultado de injustiça hermenêutica.
Após isso, será feito uma análise para averiguar se os casos resultantes desses tipos de ignorância são
melhores descritos pela concepção nova ou concepção padrão de ignorância.
O primeiro caso de ignorância sistematicamente construída aqui apresentado advém de casos
sistemáticos de ignorância motivada (willful ignorance), mas mais especificamente, ignorância
branca. Podemos definir ignorância motivada como um tipo de ignorância onde a sua construção está
relacionada com a vontade (will) em permanecer ignorante. Um dos exemplos mais famosos desse
tipo de ignorância é a ignorância branca descrita por Charles Mills (2007, 2015), mas, também,
podemos encontrar no trabalho de Medina (2013, 2016) descrito pelo conceito de ignorância ativa.
O segundo tipo de ignorância são os casos de ignorância produzidas por injustiça
hermenêutica. Miranda Fricker (2007) em seu livro “Epistemic Injustice: Power and the Ethics of
Knowing” apresenta o conceito de injustiça epistêmica como um tipo de injustiça que afeta os
conhecedores na sua própria capacidade enquanto conhecedores. Um dos principais danos dessas
injustiças, se dá ao impedir a troca de conhecimento e bens epistêmicos por parte de comunidades

17
Original: Ignorance often is thought of as a gap in knowledge, as an epistemic oversight that easily could be remedied
once it has been noticed. It can seem to be an accidental by-product of the limited time and resources that human
beings have to investigate and understand their world. While this type of ignorance does exist, it is not the only kind.
Sometimes what we do not know is not a mere gap in knowledge, the accidental result of an epistemological oversight.
Especially in the case of racial oppression, a lack of knowledge or an unlearning of something previously known often
is actively produced for purposes of domination and exploitation”

107
epistêmicas, por conta de preconceitos e estereótipos sistemáticos como advindos de racismo,
machismo etc.
Como veremos, ambos tipos de ignorância tratadas nessa seção se assemelham pela sua
construção sistemática, onde por meio de uma ideologia de dominação, aspectos relevantes da
experiência social de sujeitos socialmente oprimidos são apagados, distorcidos, ou manipulados a
partir da perspectiva dominante. Dessa forma, essa ignorância advém não de uma mera ausência de
informação, crença, ou de conhecimento, mas sim, pela criação ativa de um estado de não
conhecimento, motivada por fins políticos e sociais.

2.2 Ignorância sistematicamente construída e ignorância motivada

Alguns autores18 chamam a atenção para situações onde a ignorância é construída de forma
deliberada. De acordo com DeNicola (2016), existem diferentes tipos de ignorância construída, por
exemplo, quando um advogado decide não saber se quem ele está defendendo é de fato culpado para
fortalecer o caso a favor deste tem-se um caso de ignorância estratégica 19. Para além desta, o autor
também cita a ignorância motivada, ignorância racional, etc.
Dado o escopo do artigo, o meu interesse nessa seção é descrever a ignorância motivada
sistematicamente construída. A ignorância motivada, como o nome sugere, atesta para o papel dos
motivos, ou vontade (will), de um sujeito em permanecer em estado de ignorância, nas palavras de
DeNicola (2016, p.84) sobre a ignorância motivada:

[...] essa variedade tipicamente aponta para o papel da vontade de um sujeito em permanecer em ignorância
acerca de uma questão específica, para além de razões calculadas. Não é uma questão de preguiça, ou
desgosto por aprender em geral. A pessoa é comumente chamada de ignorante voluntário acerca de alguma
questão quando ele ignora um tópico persistente e independentemente da sua relevância, e, ademais, resiste
em aprender ou assimilar fatos a respeito deste.20

Podemos citar um exemplo simples de ignorância motivada: suponha por exemplo um casal
infiel, onde a esposa, por mais que desconfie das traições do seu marido e tenha evidências de que

18
Ver: DeNicola (2016), Medina (2013, 2016), Nancy Thuana e Shannon Sullivan (2006, 2007), Oreskes e Conway (2010)
e Pohlhaus (2012).
19
Ver: Ilya Somin (2021)
20
Original: [...] this variety typically stresses the role of the will in maintaining one’s ignorance of a specific subject,
rather than calculative reason. This is not a matter of laziness or distaste for learning in general. A person is commonly
called willfully ignorant about a matter when he persistently ignores the topic despite its likely salience and even resists
learning about it or assimilating facts that bear on it

108
ele está sendo infiel, simplesmente nega a realidade a sua volta por não querer enfrentar a verdade.
Dessa forma ela busca, motivadamente, estar em estado de ignorância e não saber sobre a infidelidade.
Porém, nem todo caso de ignorância motivada é um caso de ignorância que é sistematicamente
construída, visto que a ignorância motivada depende, de certa forma, de razões, também, individuais
que não necessariamente são construídas de forma sistemática. Por exemplo, no caso acima, temos
um simples caso de ignorância motivada por medo de enfrentamento (ou algo do tipo). O que me
interessa, no entanto, e que alguns autores de tradições anti-racistas e feministas como (MILLS, 2007;
MEDINA, 2016; NANCY; THUANA, 2007; POHLHAULS, 2012) têm chamado atenção, são casos
de ignorância motivada onde um sistema de opressão tem um papel na construção dessa ignorância.
Para exemplificar esse tipo de ignorância, tratarei agora da Ignorância Branca (MILLS, 2007), que
apresenta uma ignorância motivada que é sistematicamente construída a partir do racismo branco e
da supremacia branca.

2.2.1 Ignorância branca

Charles Mills em seu texto de 2007 intitulado “Ignorância branca 21”, busca descrever uma
ignorância sistematicamente construída que está causalmente conectada à sistemas de dominação e
opressão, mais especificamente, o racismo branco e a supremacia branca. A ignorância branca,
através do apagamento ativo ou da distorção das fontes de testemunho pelo longo histórico de
dominação racial, produz e alimenta um tipo de ignorância motivada que implica na construção de
uma cognição distorcida e na disseminação de um não-conhecimento acerca dos históricos de
opressão e lutas raciais de pessoas negras.
De acordo com Mills “[...] a epistemologia foi por centenas de anos, a partir de sua origem
Cartesiana, um território hostil para o desenvolvimento de qualquer conceito de cognição disfuncional
estrutural de grupos.22” (2007, p.20). Dessa forma, a epistemologia herdada pela sua origem
cartesiana, tem como característica a interpretação dos agentes de conhecimento como agente
socialmente isolados e idealizados, impedindo que haja uma interpretação desses agentes como
socialmente localizados. Porém, a partir de trabalhos que se estabelecem com a área de pesquisa da

21
Original: White ignorance.
22
Original: [...] epistemology was for hundreds of years from its Cartesian origins profoundly inimical terrain for the
development of any concept of structural group-based miscognition”

109
epistemologia social23, busca-se compreender o impacto que questões sociais podem gerar em
processos de busca, aquisição e troca de conhecimento, interpretando os sujeitos como socialmente
situados.
Dessa forma, Mills aponta que por conta de uma ideologia racista baseada no histórico de
supremacia branca, indivíduos e grupos são suscetíveis a ignorarem aspectos relevantes da
experiência social de pessoas negras por conta da ignorância branca, um tipo de ignorância que é
construída sistematicamente de forma motivada para apagar o histórico de racismo que pessoas
brancas cometeram a pessoas negras.
Mills interpreta "ignorância" tanto como ausência de crença verdadeira como presença de
crença falsa. Então, a ignorância branca existe tanto para os casos onde os indivíduos acreditam
falsamente em determinadas questões que dizem respeito a identidade social de pessoas não-brancas
que foram construídas de forma sistemática, como aqueles indivíduos que não possuem a crença
verdadeira acerca dessas questões, mas tampouco acreditam falsamente no seu contrário 24.
Dado o que foi apresentado anteriormente na seção um, podemos supor que para Mills casos
de ignorância são os casos descritos pela concepção nova de ignorância, visto que são casos onde há
ausência de crença verdadeira. Considerando outras formas de falhar em obter conhecimento, como
casos tipo gettier ou casos de crença verdadeira não justificada, não parece que esses casos sejam
relevantes para a ignorância branca.
O fato é que ao imaginar uma sociedade onde ninguém possui crenças racistas, independente
se essas crenças são adquiridas sem justificação ou a partir de casos de Gettier, não parece que
estaríamos em uma situação onde poderia haver ignorância branca por parte dessa sociedade. A
ignorância branca diz respeito exatamente a crenças tipicamente racistas (falsas), ou a ausência de
crenças anti-racistas, ou à uma disfunção cognitiva produzida a partir do racismo. Logo, é difícil
imaginar que alguém possua ignorância branca ao possuir mera crença verdadeira ou CVJ
gettierizada. Logo, ao tratar de ignorância nessa seção, estamos supondo a concepção nova de
ignorância.

23
Acerca da epistemologia social, ver: GOLDMAN, Alvin; O’CONNOR, Cailin, "Social Epistemology", The Stanford
Encyclopedia of Philosophy, 2021. Edward N. Zalta (ed.), URL=
<https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/epistemology-social/>.
24
É importante ressaltar que apesar de não dizer nesses termos, ao tratar de ignorância como ausência de crença
verdadeira, Mills parece considerar, também, casos de suspensão de juízo e casos onde um sujeito não possui uma
atitude doxástica à determinada proposição como casos de ignorância.

110
Um outro aspecto importante que Mills busca descrever, é que a ignorância branca que não
deve ser interpretada como meramente acidental25, visto que o racismo branco tem um papel causal
na construção dessa ignorância: “O que eu quero chamar a atenção, então, é a ideia de uma ignorância,
um não-conhecimento, que não é contingente, mas em que a raça -racismo branco e/ou dominação
racial branca e suas ramificações- possuem um papel causal crucial26” (MILLS, 2007, p.27, tradução
nossa).
A ignorância branca, então, ocorre através da destruição e distorção de fontes de testemunho
acerca do histórico da supremacia branca. Isso pode acontecer tanto de forma ativa, ao de fato apagar
dados relevantes acerca desse histórico de opressão, como ocorreu no massacre de Tulsa nos Estados
Unidos, como de forma passiva ao consumir essa fonte de testemunho e criar aparatos conceituais
ideológicos que impedem de enxergar a verdade. Isso ocorre, por exemplo, ao aprendermos na escola
coisas como "Cristóvão Colombo descobriu o Brasil”, sendo que já haviam povos e civilizações
ocupando este território e não havia nada a ser “descoberto”.
Por ser um fenômeno estrutural e ideológico, uma pessoa não precisa ser ativamente racista
para estar em estado de ignorância branca. Como dito acima, essa ignorância pode ser construída de
forma passiva visto que a ideologia dominante já utiliza de aparatos conceituais que descrevem o
mundo a partir de sua visão. Nas palavras de Mills (2007, p.31): “Em todos os níveis, interesse pode
moldar a cognição, influenciando o que e como nós vemos, o que nós e a sociedade escolhem por
lembrar, o testemunho de quem é solicitado e de quem não é, e quais fatos e aparatos conceituais são
procurados e aceitos27”.
É importante ressaltar, porém, que ignorância branca é diferente de ignorância de pessoas
brancas. Uma pessoa branca possuir ignorância não é suficiente para ela possuir ignorância branca,
visto que essa ignorância pode ser mera ignorância, ou seja, a mera ausência de um estado cognitivo
qualquer de forma acidental (neste caso, ausência de crença verdadeira).
Portanto, a ignorância branca não pode ser descrita a partir de uma mera ausência de um estado
cognitivo, mas sim, a partir da construção sistemática dessa ausência que têm suas origens na
supremacia branca e no racismo branco. Ignorância esta, que como vimos anteriormente, é
proposicional e descrita pela concepção nova.

25
Mills utiliza o termo contingente.
26
Original: “What I want to pin down, then, is the idea of an ignorance, a non-knowing, that is not contingent, but in
which race—white racism and/or white racial domination and their ramifications—plays a crucial causal role”
27
Original: “At all levels, interests may shape cognition, influencing what and how we see, what we and society choose to
remember, whose testimony is solicited and whose is not, and which facts and frameworks are sought out and accepted”

111
2.1 Ignorância sistematicamente construída e injustiças epistêmicas

Em seu livro de 2007 “Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing” Miranda
Fricker busca descrever um tipo de injustiça diferente das geralmente tratadas em disciplinas de ética
e filosofia política. O tipo de injustiça que Fricker está preocupada é uma injustiça epistêmica, ou
seja, que afeta o conhecedor na sua própria capacidade enquanto conhecedor.
Fricker descreve em seu livro dois tipos de injustiça epistêmica, injustiça testemunhal e
injustiça hermenêutica. As injustiças testemunhais, como o nome sugere, acontecem em trocas
testemunhais quando um ouvinte, por conta de um preconceito identitário sistemático, deflaciona o
nível de credibilidade de um falante 28, desrespeitando-o enquanto agente de conhecimento e
impedindo trocas epistêmicas, ocasionando, então, numa manutenção da ignorância proposicional
por parte do ouvinte29.
Já as injustiças hermenêuticas ocorrem quando um grupo sofre marginalização hermenêutica.
Essa marginalização causa uma lacuna nos recursos hermenêuticos coletivos, visto que esses grupos
não participam na criação e troca desses recursos. É a partir, então, dessa lacuna de recursos
hermenêuticos coletivos que a injustiça hermenêutica tem seu dano principal, a criação de um
impedimento ou dificuldade para que grupos marginalizados comuniquem e compreendam sua
própria experiência social.
Porém, nem todos os casos de injustiça epistêmica são casos que resultam na construção
sistemática de ignorância. Suponha, por exemplo, um caso de injustiça testemunhal onde um ouvinte
deflaciona o nível de credibilidade de um falante por conta de um preconceito sistemático. Porém,
suponha que o testemunho a ser transmitido nessa situação seja algo simples, como a direção para o
posto de gasolina mais perto. Dado o preconceito do ouvinte, preconceito esse relacionado a algo

28
É interessante ressaltar que nesses casos, o ouvinte deflaciona o nível de credibilidade do falante pura e simplesmente
por conta do preconceito. Dessa forma, mesmo que o sujeito seja virtuoso e confiável sobre aquilo que ele está
testemunhando, ele não é recebido como tal pelo ouvinte por conta de seu preconceito.
29
Apesar das injustiças testemunhais terem um papel na manutenção da ignorância, não necessariamente essa
ignorância é resultado de construção sistemática. Diversos casos de injustiça testemunhal produzem ou participam da
manutenção de mera ignorância, visto que o testemunho do falante em questão pode ser sobre diversas questões
variadas, desde “que horas são?” até o resultado de um jogo de futebol. Parece que há um caminho para argumentar
que seria diferente caso o falante estivesse tentando transmitir conhecimento, digamos, sobre questões raciais e o
ouvinte, por conta de seu preconceito (sistemático), recusa em adquirir conhecimento, visto que a ignorância que ele
possui é fruto de construção sistemática, que descreve os negros, por exemplo, como não confiáveis. Porém, nesse
caso, parece que a ignorância é construída anteriormente à injustiça testemunhal, tendo a injustiça o papel apenas
de manutenção.

112
como “o falante é negro e negros não são confiáveis”, o ouvinte decide não acreditar no testemunho
a ser compartilhado, e, portanto, participa da construção de sua própria ignorância.
No caso apresentado acima, apesar do sujeito participar da construção de sua ignorância
(existem certas resistências afetivas que impedem ele de adquirir conhecimento a partir do
testemunho de pessoas negras, por exemplo), a ignorância resultante da proposição p “o posto de
gasolina mais próximo é x” não é sistematicamente construída. Apesar do preconceito relacionado ao
falante ser sistemático, o testemunho particular que se traduz na proposição p não parece fazer parte
de uma informação que é omitida sistematicamente e compartilhada por todas as pessoas brancas,
etc.
Então, quais são os casos relevantes de injustiça epistêmica que produzem ignorância
sistemática? São os casos de injustiça hermenêutica, ou seja, casos esses em que uma marginalização
hermenêutica impede que grupos compreendam a sua própria experiência social e comuniquem essa
para outros grupos. Ela é sistemática por duas razões principais: 1) é largamente compartilhada e
alimentada 2) é resultado de um sistema de opressão que impede que esses sujeitos participem de
práticas de criação de recursos hermenêuticos.
Dessa forma, o tipo de ignorância que é construída por casos de injustiça hermenêutica não é
meramente acidental, é um tipo de ignorância que é sistematicamente construída por conta do
histórico de dominação de grupos socialmente oprimidos. Nesse sentido, parece que a ignorância
branca e a injustiça hermenêutica são semelhantes, visto que existe uma ideologia dominante que
impede a aquisição e construção de recursos hermenêuticos que tornaria visível a experiência social
de certos grupos. Porém, ignorância branca se restringe à opressão e dominação racial, enquanto as
injustiças hermenêuticas dizem respeito a outras formas de opressão e marginalização social.

2.1.1 Ignorância sistematicamente construída e injustiças hermenêuticas

As injustiças hermenêuticas ocorrem quando há uma lacuna nos recursos hermenêuticos30


coletivos que impedem que grupos comuniquem e até mesmo compreendam aspectos relevantes de
sua experiência social. As injustiças hermenêuticas, diferente das testemunhais, ocorrem de forma
estrutural pelo longo histórico de dominação e opressão de certos grupos sociais, impedindo que os
recursos hermenêuticos de grupos socialmente oprimidos sejam considerados, criados e avaliados.
Nas palavras de Maitra (2010, p.207, tradução própria.):

30
Recursos hermenêuticos, nesse caso, devem ser entendidos como recursos interpretativos.

113
[...] Fricker descreve um segundo tipo de injustiça epistêmica que parece, de certa forma, até mais básica
do que a injustiça testemunhal, em que envolve uma agente incapaz de articular aspectos da sua experiência
social até mesmo para ela própria, e muito menos comunicar a outros. Grosso modo, alguém sofre uma
injustiça hermenêutica, quando, como resultado de um preconceito identitário (estrutural), os recursos
hermenêuticos disponíveis estão tão empobrecidos para ela articular (para si mesma e para outros) certos
aspectos de sua experiência social.31

Um dos danos dessa injustiça é fazer com que indivíduos socialmente marginalizados estejam
em uma posição de desvantagem em relação à grupos dominantes, visto que os recursos
hermenêuticos coletivos serão quase que exclusivamente moldados pela perspectiva dominante.
Dessa forma, esses grupos tornam-se incapazes de comunicar aspectos da sua experiência social e até
mesmo compreender sua própria experiência social.
Fricker utiliza de exemplo paradigmático o cunho do termo assédio sexual. O termo descreve
uma experiência social que por muito tempo não era compreendida pelos grupos dominantes, visto
que estes não possuíam os recursos hermenêuticos para se colocar em posição de compreender às
vítimas. Além disso, a experiência do assédio sexual era nebulosa até mesmo para os grupos
dominados, visto que esses, também não possuíam os recursos hermenêuticos necessários para a
completa compreensão do fenômeno. Sendo assim, mulheres que sofrem assédio sexual, muitas
vezes, tornam-se incapazes de comunicar essa experiência para homens por conta dessa lacuna
interpretativa ocasionada por uma opressão sistemática.
Nesse sentido, as injustiças hermenêuticas afetam tanto aqueles que utilizam e produzem os
recursos hermenêuticos dominantes quanto àqueles marginalizados. Isto ocorre porque, apesar dos
grupos dominantes não sofrerem o efeito prático (não sofrem assédio e não tem de comunicar essa
experiência, por exemplo) eles sofrem o efeito epistêmico: não conseguem reconhecer e adquirir
conhecimento sobre a experiência do outro. Porém, o dano principal ainda reside naqueles que são
marginalizados, visto que sua experiência social se torna de difícil compreensão tanto para aqueles
que eles tentam comunicar, quanto para eles mesmos, sofrendo danos tanto epistêmicos quanto
práticos.
O dano que nos interessa, porém, é o da ignorância sistemática que casos de injustiça
hermenêutica causam. A lacuna hermenêutica, aqui, é ocasionada por um sistema de opressão que
impede que os aparatos interpretativos de grupos oprimidos sejam levados em conta e comunicados
para grupos dominantes, isso ocasiona, então, em uma ignorância por parte de grupos dominantes (e

31
Original: “Fricker describes a second kind of epistemic injustice that seems, in a sense, even more basic than
testimonial injustice, in that it renders an agent unable to articulate aspects of her social experience even to herself,
much less communicate them to others. Roughly speaking, someone suffers the latter kind of injustice, a
hermeneutical injustice, when, as a result of (structural) identity prejudice, the hermeneutical resources available are
too impoverished for her to articulate (to herself and to others) certain aspects of her social experience.”

114
muitas vezes por parte dos dominados também) que não é meramente acidental, é sistematicamente
construída por conta dessa opressão sistemática. Portanto, injustiças hermenêuticas implicam na
manutenção e produção de um tipo de ignorância que não é acidental, mas sim sistematicamente
construída por sistemas de opressão racial, de gênero, de classe, etc. Ignorância essa que tem como
característica proposições relevantes acerca da experiência social de grupos socialmente
marginalizados.
É importante ressaltar que essa ignorância é construída porque grupos particulares fazem parte
da construção ativa dessa ignorância ao impedir que os grupos marginalizados tomem partido e façam
parte de experiências relevantes que contribuem para a criação de recursos hermenêuticos coletivos.
E além disso, ela é sistemática visto que é fruto de opressão sistemática e largamente compartilhada
em diferentes esferas da sociedade, como a esfera institucional, individual, etc.
Agora, podemos nos perguntar: a ausência construída por casos de injustiça hermenêutica é
melhor descrita pela concepção nova ou pela concepção padrão? Caso nos recordemos, ambas
concepções concordam que casos de ausência de crença verdadeira são casos de ignorância. Porém,
para a concepção padrão, mera crença verdadeira e CVJ gettierizadas também são casos de
ignorância.
É difícil imaginar uma situação onde injustiça hermenêutica produza crença verdadeira, ou
CVJ gettierizada. Mesmo que isso seja uma possibilidade, é difícil pensar a onde estaria envolvida a
“injustiça” nesses casos, visto que os sujeitos dominados possuiriam crença verdadeira acerca da sua
experiência social, assim como os dominantes, de forma a poderem comunicar e compreender essas
experiências.
Além disso, se ambos sujeitos possuem crença verdadeira (dominantes e dominados), é de se
supor que não há marginalização hermenêutica, visto que ambos participam da criação de recursos
hermenêuticos coletivos.
Independente se a crença verdadeira produzida não possui justificação ou cai em um caso tipo
Gettier, é de se supor que esses casos não sejam relevantes para o fenômeno da injustiça hermenêutica,
que impede exatamente que sujeitos adquiram ou compartilhem crença verdadeira acerca de suas
experiências sociais. Logo, há de supor que a ignorância sistematicamente construída nesses casos
seja mais bem descrita pela concepção nova, que interpreta ignorância como ausência de crença
verdadeira.

3. Distinção entre casos de mera ignorância e ignorância sistematicamente construída

115
Dado o que foi dito, apresentei a definição de ignorância a partir de duas concepções
conflitantes entre si. Porém, ambas descrevem casos onde a ignorância é um fenômeno de mera
ausência de um bem epistêmico, seja crença verdadeira ou conhecimento. A ignorância resultante
desses casos deve ser compreendida como mera ausência quando não há nem um impedimento para
que o estado cognitivo que ali falta seja preenchido pela crença verdadeira ou pelo conhecimento que
não está presente, ou seja, é fruto de uma ausência acidental.
Porém, como vimos na seção dois, ignorância proposicional pode ser construída, e além disso,
pode ser sistematicamente construída. Nesses casos, é difícil achar uma saída para adquirir o estado
cognitivo ali ausente, visto que há um sistema estrutural de alimentação e disseminação desse estado
de ignorância. Nos casos de injustiça hermenêutica, os aparatos conceituais utilizados para comunicar
a ausência de conhecimento não são captados pelos grupos dominantes, tornando difícil a tarefa de
adquirir conhecimento por parte desses grupos. Além disso, os próprios sujeitos vítimas da injustiça
hermenêutica têm dificuldade em interpretar sua experiência social, visto que os recursos
hermenêuticos também não estão presentes. Já no caso da ignorância branca, uma ideologia racista
impede que pessoas que possuem ignorância branca corrijam a mesma, visto que o aparato conceitual
e a visão de mundo compartilhada por essas pessoas estão construídas de forma disfuncional.
Além disso, a ignorância sistematicamente construída, pelo menos nesses dois casos, também
é uma ignorância ativa, ou seja, uma ignorância que requer dos indivíduos uma certa intenção em
permanecer ignorantes por conta desta ideologia dominante. Para a compreensão desse fenômeno,
Medina (2016, p.183) traz uma distinção entre casos onde a ignorância é mera ausência e casos onde
ela é ativa, de acordo com o mesmo os casos se distinguem em:

Mera ignorância:
(1) ausência de crença verdadeira
(2) presença de crença falsa
Ignorância ativa:
(3) resistências cognitivas (preconceitos, lacunas conceituais, etc.)
(4) resistências afetivas (apatia, interesse em não saber, etc.)
(5) resistências corporais (se sentir ansioso, agitado, ficar corado, etc.)
(6) mecanismos de defesa e estratégias (inverter o ônus da prova, etc.).

Eu proponho, portanto, que interprete-se ambas ignorâncias: tanto a ignorância construída


quanto a mera ignorância a partir da ausência de um bem epistêmico. Porém, a distinção entre esses
casos reside no fato de uma ausência ser fruto de um mero acidente que pode ser facilmente corrigido

116
e a outra ser fruto de um processo de construção ativa que pode ser sistemático, estrutural ou
individual.
Dessa forma, casos de mera ignorância são casos onde há uma ausência, porém, essa ausência
é acidental. Já casos de ignorância construída também são descritos pela ausência de bens
epistêmicos, porém, frutos de uma construção por parte de sujeitos e grupos do estado de ignorância.
Além disso, vimos que os casos relevantes de ignorância sistematicamente construídas são
tipicamente descritos pela concepção nova de ignorância, que define ignorância como ausência de
crença verdadeira. Dessa forma, esses casos são casos de ausência de crença verdadeira que são
construídos de forma não-acidental e ativa por sujeitos e grupos.
O interesse principal em distinguir esses casos, como apresentado anteriormente, é poder
compreender melhor o papel dos indivíduos na construção de sua própria ignorância e na ignorância
de outros e suas respectivas responsabilidades. Temos que distinguir um sujeito que possui mera
ignorância acerca de tópicos sensíveis a opressão de minorias, de um sujeito que participa ativamente
da construção, produção e manutenção dessa ignorância. Dessa forma, temos, também, que distinguir
sujeitos que recebem o produto da construção de ignorância daqueles que produzem.

Conclusão

Dado o que foi dito, conclui-se que há espaço para interpretar casos de ignorância não só como
mera ausência de um bem epistêmico, mas sim, como um estado de ausência que é sistematicamente
construído, seja por conta de uma ideologia dominante, por conta da distorção de fontes de
testemunho, ou por conta de casos de injustiça hermenêutica. Portanto, é necessário distinguir casos
de mera ignorância de casos de ignorância sistematicamente construída, de forma a compreender
melhor como fenômenos sociais podem impactar na construção de casos de não-conhecimento e
como podemos corrigir esses casos, além de identificar a responsabilidade dos sujeitos e grupos na
construção e produção de ignorância.

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119
RECENSÃO DAS APRESENTAÇÕES (PREÂMBULO E INTRODUÇÃO) DA
CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA DE GEORGES
POLITZER
REVIEW OF THE PRESENTATIONS (PREAMBLE AND INTRODUCTION) OF THE
CRITIQUE OF THE FUNDAMENTALS OF PSYCHOLOGY BY GEORGES POLITZER

Júlio César Mioto1

Resumo: O texto é uma recensão atual que trabalha a primeira tradução brasileira de Crítica dos
fundamentos da psicologia, de Georges Politzer, com foco exclusivo nas apresentações (Preâmbulo
e Introdução) da obra.

Palavras-chave: Fundamentos da psicologia; psicologia; epistemologia da psicologia, epistemologia


da psicanálise; psicologia concreta.

Abstract: The text is a current review that works the Brazilian translation of Critique of the
Fundamentals of Psychology, by Georges Politzer, with exclusive focus on the presentations
(Preamble and Introduction) of the work.

Keywords: Fundamentals of psychology; Psychology; Epistemology of psychology; Epistemology of


psychoanalysis; Concrete psychology.

1
Possui Graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2007), e Mestrado em Filosofia (2012) pela
Universidade Estadual de Londrina. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da USP Ribeirão Preto
(2022).

120
É na Crítica dos fundamentos da psicologia que Georges Politzer obtém a forma positiva da
psicologia, que serve de base às outras múltiplas considerações de caráter negativo da carreira na
psicologia que ele realizou (POLITZER, 1969). Apesar de nesta Crítica o autor ser também
basicamente negativo quanto às teses das novas tendências da ciência psicológica, aqui se encontra a
pedra fundamental que servirá de critérios dos seus outros desenvolvimentos que se veem nos escritos
posteriores.2 Aqui publicamos somente a nossa leitura do que é enunciado no Preâmbulo e na
Introdução da Crítica.
O trabalho na Crítica, como ele diz no Preâmbulo, não é uma exposição dogmática da
psicanálise mas uma reflexão a partir de uma perspectiva que supõe da parte do leitor conhecimento
da psicanálise e que se desenvolve a partir do que interessa sua perspectiva dela – assim a sexualidade
não é um aspecto que se trata muito nessa obra. A exatidão do que é argumentado em relação à
psicanálise só pode ser verificável por um esforço de “reflexão pessoal” da parte do leitor assim já
munido; Politzer não quer poupar o seu leitor. Ele omite tudo “o que não é posição e desenvolvimento
das ideias em si” (POLITZER, 1998, p. 33). Criticar a consideração de fatos psicológicos como coisas
é um procedimento contínuo na obra de Politzer; e essa censura reaparece aqui: ele diz brevemente
que, logo, não se estenderá sobre o significado desta censura, o que faria compará-la com o critério
de Bergson3, por exemplo, e com o critério do “concreto” afinal. A palavra tem muitos usos, e Politzer

2
Trabalhamos extensamente na nossa tese de doutorado sobre o caráter negativo de onde surgiram posições positivas. Já
na Crítica há essa posição da positividade que nasce da tendência da orientação própria da particular denegação das
tendências clássicas: “É com razão que afirmamos que a psicologia concreta representa a verdadeira síntese entre a
psicologia objetiva e a psicologia subjetiva. Dá razão àquela que não quis uma psicologia que não fosse objetiva e à
outra por ter optado pela conservação do caráter próprio da psicologia, mas condena as duas por terem sacrificado tudo
ao que só representa uma das condições de existência da psicologia positiva. Realiza, ao mesmo tempo, o que nenhuma
delas pôde fazer: uma psicologia objetiva, ao mesmo tempo que propriamente psicológica” (POLITZER, 1998, p. 188).
2 Politzer apresenta muitas vezes o argumento geral de que, em Bergson, não se vislumbra o “sentido” ou o “conteúdo
determinado da experiência”: “O psicólogo clássico se desinteressa do conteúdo determinado de fatos psicológicos por
considerá-los de um ponto de vista formal, enquanto representativos de uma noção de classe, como sensação, imagem,
emoção, vontade, e por não estudar então senão essas noções de classe, e falar em seguida, não de acontecimentos
psicológicos em sua determinação individual, mas de estados psicológicos em geral – não parece que Sr. Bergson tenha
jamais se colocado em um outro ponto de vista do que aquele do formalismo. Que ele estude a memória, o sonho ou o
trabalho intelectual, que ele emita teorias sobre os estados normais ou os estados patológicos, ele se coloca sempre no
ponto de vista formal – e os dados imediatos da consciência eles próprios são formais, porque a heterogeneidade
qualitativa e a duração são generalidades a respeito de todos os nossos estados psicológicos: elas concernem à maneira
geral com a qual é preciso compreender a vida psicológica e não o conteúdo determinado desta vida” (POLITZER,
1946, p. 18). É por meio de uma falsa concepção do concreto que Bergson se determinou como principal representante
da ideologia psicológica.
3
Politzer apresenta muitas vezes o argumento geral de que, em Bergson, não se vislumbra o “sentido” ou o “conteúdo
determinado da experiência”: “O psicólogo clássico se desinteressa do conteúdo determinado de fatos psicológicos por
considerá-los de um ponto de vista formal, enquanto representativos de uma noção de classe, como sensação, imagem,
emoção, vontade, e por não estudar então senão essas noções de classe, e falar em seguida, não de acontecimentos
psicológicos em sua determinação individual, mas de estados psicológicos em geral – não parece que Sr. Bergson tenha
jamais se colocado em um outro ponto de vista do que aquele do formalismo. Que ele estude a memória, o sonho ou o

121
não pretende analisá-los. O mesmo ocorre com o termo “fatos psicológicos” e a “introspecção”. A
ideia de “drama” não é eternizada. As construções teóricas de Freud são geradas por fatos concretos
tal como a abstração permitiu fazê-las, mas não há sobre cada uma dessas construções uma descrição
explanadora no caminho inverso. Mais vezes evitar-se-ão “explications”4, ou explicações do ponto
de vista abstrato. Os desenvolvimentos serão achados por quem fizer o esforço de reflexão pessoal,
diz Politzer. Mas, de fato, esse seria o tomo I dos Matériaux; então esses são uns dos escritos
preliminares ao projetado e não realizado Essai critique sur les fondements de la psychologie. Os
Matériaux mesmos ficaram incompletos.
Se, por exemplo, não desenvolvemos a ideia de significação e a de drama até o ponto em que sua dualidade,
um pouco embaraçosa no presente escrito, cedesse lugar a uma concepção clara das suas relações, é porque
os elementos desse desenvolvimento pertencem já ao tomo II dos Matériaux, o qual tratará da
Gestalttheorie. Pela mesma razão, não aprofundamos a ideia de forma, embora nos sirvamos dela algumas
vezes (POLITZER, 1998, p. 34).

A novidade da abordagem fica assim patente, para Politzer, quando ele tem em vista a
literatura psicológica francesa. Se se trata de expor a psicanálise em termos de Gestalt e behavior,
Politzer diz que não tinha nada ainda muito claro nesse sentido; e preferia explicar com clareza nos
outros escritos que viriam sua posição sobre a Gestalttheorie e o behaviorismo.
Como a novidade de Politzer, segundo ele mesmo, é a sua orientação, as fórmulas podem
não estar adequadas, e os escritos talvez não sejam inteiramente “originais”. Para ele, “trata-se
essencialmente de apresentar os problemas de tal maneira que a discussão, sem nunca poder voltar a
essa psicologia que não deve mais existir senão para o historiador, possa partir de uma nova base e
seguir um plano renovado” (Ibidem, p. 35), assim ele enuncia a sua orientação no seu Preâmbulo.
O texto da Introdução começa pela questão mais geral sobre que existência as ciências têm,
uma discussão que Politzer sempre fez. Repetidamente vamos encontrar essa discussão mais geral
sobre as ciências quando se tratar de verificar a fundamentação da psicologia; o caso dela merece
uma confrontação das suas etapas históricas em cinquenta anos de existência, no sentido de mostrar
quão desgastante foi o seu processamento histórico, para que atualmente pudesse-se dizer que ela

trabalho intelectual, que ele emita teorias sobre os estados normais ou os estados patológicos, ele se coloca sempre no
ponto de vista formal – e os dados imediatos da consciência eles próprios são formais, porque a heterogeneidade
qualitativa e a duração são generalidades a respeito de todos os nossos estados psicológicos: elas concernem à maneira
geral com a qual é preciso compreender a vida psicológica e não o conteúdo determinado desta vida” (POLITZER,
1946, p. 18). É por meio de uma falsa concepção do concreto que Bergson se determinou como principal representante
da ideologia psicológica
4
Acatamos a sugestão do parecerista, nesse sentido citado: “Na versão francesa, quando Politzer se refere ao
procedimento fundamental da psicologia clássica - que é a Abstração - ele diz que tal procedimento opera a partir de
uma ‘explication’. Ainda que a edição da UNIMEP utilize em diferentes momentos os termos ‘explicação’ e
‘explanação’ para referir-se ao mesmo procedimento que é a ‘explication’ abstrata, acredito que seja importante colocar
o termo em francês, entre parênteses, no corpo do texto, na primeira vez em que este termo é mencionado no presente
artigo.”

122
estava combalida. Sendo que a “filosofia da ciência” e as ciências mesmas devem dar conta do fato
moderno da extinção e da criação de ciências, mostram-se constantemente resistências em constatar
a falência de uma ciência e em admitir novas criações teóricas. Era também esse precisamente o caso
da psicologia no início do século XX (Cf. Ibidem, p. 37). Essa falência da psicologia precisamente é
o fato contemporâneo a Politzer. E ele quer dizer aos psicólogos que sua ciência não se constituiu nos
cinquenta anos em nenhuma forma senão desse modo muito conhecido da psicologia oficial, mas que
sua tentativa de reconstituição estava sendo a sua dissolução, bem entendido, o que houve, de fato,
eram expectativas constantemente frustradas, pesquisas perdidas, apostas no futuro sem fundamento,
pactos do que são os campos da psicologia, sem entretanto unanimidade, falsa postura justificadora
da sua posição científica, que, entretanto, conjunturalmente, permitia abrigá-los em uma forma
cientificamente falsa perante à sociedade (Cf. Ibidem). A psicologia oficial apesar do seu espírito
científico, de suas técnicas que emulam cientificidade, não chegou a resultados concretos (Cf. Ibidem,
p. 37-38).5
A psicologia é uma promessa que se abrigou ideologicamente na cultura científica europeia
(Ibidem, p. 38). A história de cinquenta anos da psicologia se explica pela sua criação histórica, pelo
seu cotidiano oficial, pela sua expectativa de novos objetos e novas fundamentações, pela sua
dissolução de seu objeto fundamental abstrato, pela sua necessidade de encontrar a sua verdade
própria com expectativa que se direcionam a todos os lados, e pela sua crítica, que não havia
encontrado o termo (Cf. Ibidem). A história é mais ou menos essa descrita nessa Introdução da obra
de Politzer: o máximo atingido foi a introdução da metodologia, ou a possibilidade de manutenção
de um objeto já velho e falseado, ou seu máximo foram as descobertas objetivas, contudo com déficits
de objetividade, ou o retorno à introspecção, ou a descoberta dos objetos do organismo humano de
abordagens originais, etc. (Cf. Ibidem). A psicologia espera resultados de todos os lados, a cada vez
que surge uma novidade. O psicólogo também sabe a que se opor, e tem seu método e seu objeto
(sempre novos) (Cf. Ibidem, p. 38-39). Havia uma impotência do método científico que estava nas
mãos dos psicólogos, eles, por um fracasso objetivo de sua ciência, deixavam que reentrassem as
ciências arcaicas no seu contexto, reentrasse a escolástica, bem entendido (Ibidem, p. 39). Essa é a

5
“De todo modo, a psicologia oficial deve seu nascimento a inspirações opostas às únicas que podem justificar sua
existência [Politzer faz crítica da existência institucional da ciência psicológica de sua época, autor]; mais grave ainda,
ela se alimenta exclusivamente dessas inspirações. Com efeito, e para dizê-lo em termos realistas, [a teoria da psicologia
oficial] só representa uma elaboração nocional da crença geral nos demônios, isto é, por um lado, da mitologia da alma,
e por outro, do problema da percepção, tal como se apresenta à filosofia antiga. Quando os behavioristas afirmam que
a hipótese da vida interior representa um resto de animismo, divisam perfeitamente o verdadeiro caráter de uma das
tendências cuja fusão deu origem à psicologia atual. Aí está uma história muito instrutiva, mas cujo relato ultrapassa os
limites deste estudo” (POLITZER, 1998, p. 44)

123
verdadeira concomitância da psicologia à metafísica, a despeito das formas históricas da psicologia;
muito próximas em um sentido humilhante aos psicólogos e, não como eles desejaram, no sentido da
superação da metafísica pela psicologia. Veja-se.
Isso explica o fato, hoje reconhecido, de que todas as psicologias “científicas” que se sucederam desde
Wundt não passam de disfarces da psicologia clássica [elas são a psicologia clássica ainda, autor]. A
diversidade de tendências só representa os sucessivos renascimentos dessa ilusão que consiste em crer que
a ciência pode salvar a escolástica. Pois, em todos os fatos, fisiológicos ou biológicos, de que se apossaram,
os psicólogos só procuraram isso. É também o que explica a impotência do método científico nas mãos dos
psicólogos (Ibidem).

Ainda que se haviam de desenvolver todas as ciências, o encontro moderno do método para
elas já havia sido favorável a cada um dos desenvolvimentos de ciências particulares; mas, no caso
da psicologia, bastou avançar-se (em relação à psicologia da alma) um passo, para que o conjunto se
apresentasse tão disforme que podia ser constatada uma fragilidade total da inserção de uma
metodologia em psicologia e se manifestasse o seu apego particular à metodologia tradicional de
análise nocional da metafísica. A tentativa “numérico-quantitativa” da psicologia tampouco obteve
sucesso, antes representou outras das humilhações das pesquisas em psicologia, último extrato
científico desse ponto de vista “numérico-quantitativo”. Então, há dois critérios de que a psicologia
tenta dar conta sem sucesso científico real, o uso da matemática e a metodologia experimental – tanto
falham que o psicólogo tem que se tornar mesmo um “estúpido” (Ibidem). A originalidade
quantificativa cabe à matemática, como a originalidade experimental cabe ao físico, e há seriedade
na fisiologia. Mas há queda gradativa do espírito científico. “Entenda-se: os psicólogos são tão
cientistas como os selvagens evangelizados são cristãos” (Ibidem, p. 39-40). Definitivamente, não há
mais espaço legítimo por essa via à psicologia. Contudo, outras vias se abriram. É isso que ele diz do
behaviorismo de Watson, nesse contexto:
A negação radical da psicologia clássica, introspeccionista ou experimental, encontrada no behaviorismo
de Watson, é uma descoberta importante. Significa, precisamente, a condenação desse estado de espírito
que consiste em crer na magia da forma sem compreender que o método científico exige uma radical
“reforma do entendimento” (Ibidem, p. 40).

Houve um contexto de “reforma do entendimento”, pois não é possível “transformar a física


de Aristóteles em física experimental” (Ibidem), é preciso essa compreensão e uma base para confiar
nos aperfeiçoamentos do futuro. Isso implica de toda maneira uma exigência de uma nova ciência
psicológica, estávamos tendidos diante desse paradoxo, qual seja: “A história da psicologia nos
cinquenta últimos anos não é, portanto, como se costuma afirmar no início dos manuais de psicologia,
a história de uma organização, mas a de uma dissolução” (Ibidem). Essa é a fórmula de Politzer que
explica o destino da “abstração” e do “abstrato” na cultura ocidental. E ele prognosticou que:
Daqui a cinquenta anos, a psicologia autenticamente oficial de hoje aparecerá como aparecem agora a
alquimia e as fabulações verbais da física peripatética. Brincar-se-á ainda com as fórmulas retumbantes

124
pelas quais se iniciaram os psicólogos “científicos” e com as penosas teorias a que chegaram; com esquemas
estatísticos e esquemas dinâmicos, e a teologia do cérebro constituirá um estudo divertido, como a teoria
antiga dos temperamentos – logo, porém, tudo será relegado à história das doutrinas incompreensíveis e
estranhar-se-á sua persistência, como se faz hoje com a escolástica (Ibidem).

Foi exatamente aqui que chegamos? Isso exige uma longa avaliação histórica, que tem que
contar com a descrição do destino da psicologia e da psicanálise. Politzer nos deu um critério para
avaliar o progresso, o critério do concreto, ou da dissolução específica da ontologia dualista histórica
ocidental. “Compreender-se-á, então, o que parece incrível agora, que o movimento psicológico
contemporâneo não é senão a dissolução do mito da dupla natureza humana” (Ibidem). Desse modo,
está dado o novo ponto de partida da fundamentação da psicologia como ciência positiva (nós vimos
como ele foi elaborado em nossa tese de doutorado, tem que ser observada também essa face positiva
da ciência que Politzer desenvolve a partir das suas negações determinadas, suas contradições frente
ao clássico). Ele diz, nesse contexto da Introdução, que cada etapa crítica da dissolução se verá no
seu texto, e todas as articulações clássicas ficarão evidentes (pode-se afirmar que isso ocorre na
totalidade quando Politzer considera a relação entre a psicologia e a psicanálise freudianas) (Cf.
Ibidem, 40-41). Pois bem, esse respeito para com a metodologia sustenta pela última vez a mitologia,
ou o caráter mitológico da ciência psicológica e seu objeto. Ele diz mesmo, ainda no parágrafo oito
da Introdução, que a mitologia já produziu o máximo que podia de tensões que a sustentassem, e que
foi um caso semelhante que conduziu Kant a escrever a Crítica da Razão Pura; mas agora em um caso
pior, trata-se aqui de um retorno ainda escolástico de “discussões nocionais sobre um mito” (Cf.
Ibidem, p. 41). O tema se repete, já algumas vezes, abordando a obra de Politzer, verificávamos que,
para ele, a psicologia clássica é a elaboração nocional de um mito, de Aristóteles a Bergson. Portanto,
reconhecer este ponto tem que sair mais do que mostrar que a literatura psicológica é uma báscula
que mostra “ora o fracasso da psicologia subjetiva, ora o da psicologia objetiva’; as críticas
“preconizam periodicamente o retorno da tese à antítese e da antítese à tese” (Ibidem). É preciso criar
uma grande evidência, que liquide o que tem sido a psicologia até então. Essa grande evidência não
foi dada pelo método objetivo, mas pela tábula rasa que significou o behaviorismo de Watson. Mas
seus seguidores acharam que não havia saída, e retornaram à psicologia introspectiva, ou ao
“behaviorismo não-fisiológico”, tradução em termos de behavior das noções da psicologia clássica.
Trata-se de uma nova forma de ilusão de objetividade. “O behaviorismo apresenta, então, o seguinte
paradoxo: para afirmá-lo sinceramente é preciso renunciar a desenvolvê-lo e, para desenvolvê-lo, é
preciso renunciar a sua afirmação sincera; o que, então, despoja-o de toda razão de ser” (Ibidem, p.
42). Entretanto, houve aí uma verdade iniludível apesar do encobrimento recalcitrante. “A verdade
do behaviorismo é constituída pelo reconhecimento do caráter mitológico da psicologia clássica e a

125
noção de behavior só é válida quando considerada no seu esquema geral, anteriormente à
interpretação que os watsonianos e os outros lhe dão” (Ibidem). Essa interpretação tinha evidenciado
que: “Cinquenta anos de psicologia científica só conseguiram chegar à afirmação de que a psicologia
científica está apenas começando” (Ibidem). Este era o fato que se redespontava para Politzer.
“Psicologia objetiva clássica” é essa que chegou a esse resultado. Ela é uma homenagem da ciência
da natureza ao gosto da época, da psicologia introspectiva, bem entendido. Se a filosofia e a metafísica
pretenderam, sem enganar ninguém, fazer-se experimentais, a psicologia enganou. Entre as direções
subjetivas e objetivas, recomeçava-se em outra direção assim que se chegava ao absurdo de um dos
lados. Mas os princípios são os mesmos.
Eis por que esses pesquisadores, a quem o método científico devia dar asas, sempre estiveram atrasados em
relação aos psicólogos introspeccionistas, pois enquanto os primeiros ocupavam-se em formular
“cientificamente” as ideias dos últimos, esses nada mais tinham a fazer a não ser reconhecer as próprias
ilusões (Ibidem).

Daí a psicologia experimental reconhecer ser vazio e a psicologia introspeccionista continuar


com “suas maravilhosas promessas” (Ibidem). Mas agora surge a indicação de uma “direção
realmente fecunda”, daqueles que abandonam a fisiologia das sensações, os laboratórios e o “devir
movente da consciência” (Ibidem). Há uma visão clara dos erros da psicologia. Como a nova
psicologia se posiciona? “É o tronco que ela irá atacar”, ela se subtrai a essas tendências clássicas
subjetivas e objetivas, “a ideologia central da psicologia clássica” – não significa, contudo, que é
questão de condenar tudo, mas a nova psicologia dá a sua verdadeira significação – é da ideologia da
vida interior, mesmo matizada com o experimentalismo, que se faz a crítica, afinal urge constatar que
a ciência psicológica não tem uma forma falsa, mas a ciência é falsa inteira. “... pois é a própria
ciência que é falsa”, mas pode ser que encontre uma verdadeira, quem sabe? “A comparação da
psicologia com a física de Aristóteles não é totalmente exata, pois nem é dessa maneira que a
psicologia é falsa, mas à maneira das ciências ocultas, [Politzer a rebaixa] o espiritismo e a teosofia
que, também, simulam uma forma científica” (Ibidem, p. 43). De novo é “a vida dramática do
homem”, sem ressonâncias românticas, que vai servir de desempate à nova psicologia. Ela é contrária
aos preconceitos sobre a vida biológica do homem, ao fato biológico no homem da vida. A “vida
dramática” deve ser estudada como objeto da psicologia, tem todas as características de um objeto
científico particular; “é em nome dessa possibilidade que ela deveria ser estudada” (Ibidem), qual
seja: a possibilidade de um objeto psicológico. Tem-se que considerar os documentos literários que
testemunham essa possibilidade. Há uma sabedoria literária desse objeto. Sem segredo, pode ser
adiantado, como o fizemos em outros contextos, nos capítulos da tese, que é o drama o objeto da
verdadeira psicologia concreta. Beletristas teriam misturado o drama e uma ciência da alma baseados

126
neste polo da “ciência da alma”, no que foram mal. O quadro é o já anunciado antes: “Com efeito, e
para dizê-lo em termos realistas, [a teoria da psicologia oficial] só representa uma elaboração nocional
da crença geral nos demônios” (Ibidem, p. 44). A descrição da alma vem de Aristóteles e se confunde
com atitudes e saberes escolásticos de camadas retórico-lógico-filosófico-históricas e com a
mitologia e a teologia cristãs. Assim como as definições modernas estiveram em apego com o
idealismo da modernidade, que buscou desbarbarizá-las (Cf. Ibidem). Essa referência ao idealismo
merece ser me tida em conta porque avança a perspectiva politzeriana como um todo, quer dizer, os
alemães metafísicos tentaram criar um campo próprio, mas esse não pode ser mais o campo da
psicologia; campo que vinha do choque do idealismo metafísico alemão com a noção de alma e a
metafísica clássica de Aristóteles; bem entendido, há uma insuficiência clássica da psicologia. Por
mais que se amalgamassem questões de diversas tecnologias de saber, o problema vinha pelo menos
desde esses metafísicos alemães, dir-se-ia, então, que a cultura alemã, afeita ao espírito, seria aquela
que validou um novo conteúdo; mas a crítica veio logo, da parte de Kant (e isso remonta à ideia inicial
de nossa tese de doutorado): “A crítica kantiana da ‘psicologia racional’ deveria ter arruinado
definitivamente a psicologia” (Ibidem, p. 44-45). Nós observamos, no começo de nossa tese, como a
crítica da psicologia racional indicou um caminho a Politzer. É contra a influência do cristianismo na
psicologia que o argumento de Politzer se volta principalmente. Há uma transição específica dessa
teologia cristã à ideologia burguesa, que é o fiel do idealismo de sua ontologia, no contexto avançado
do início do século XX.
O culto da alma é essencial para o cristianismo. O antigo tema da percepção jamais teria sido suficiente
para gerar a psicologia: é da religião que lhe vem a forma. Uma vez constituída em tradição, a teologia da
alma sobreviveu ao cristianismo e continua vivendo dos alimentos comuns a todas as escolásticas. O
respeito de que conseguiu se cercar, graças ao disfarce científico, permitiu-lhe vegetar mais um pouco e,
graças a esse artifício, conseguiu sobreviver a si mesma (Ibidem, p. 45).

É a base clássica que é questionada, ela é teológica. Trata-se de uma luta sem ainda final,
portanto. A ideologia burguesa a adaptou, numa tentativa que deveria ser eterna. Observa-se a
gravidade da tematização de Politzer. Que se veja o modernismo adaptativo da tese: “Mas seria errado
afirmar que a psicologia clássica alimenta-se apenas do passado. Pelo contrário, ela conseguiu
alcançar certas exigências modernas: a vida interior, no sentido ‘fenomenista’ da palavra, afinal
conseguiu tornar-se um ‘valor’” (Ibidem). É a religião que está aqui de novo, ou a ideologia burguesa:
A ideologia da burguesia não teria sido completa se não tivesse encontrado a sua mística. Após diversas
tentativas, ela parece tê-la, enfim, encontrado: na vida interior da psicologia. A vida interior convém
perfeitamente a esse destino. Sua essência é a mesma da nossa civilização, a saber, a abstração: só implica
a vida em geral e o homem em geral, e os “sábios” atuais são felizes de herdar essa concepção aristocrática
do homem com um maço de problemas de alto luxo (Ibidem).

127
Olhe-se a abstração aqui, quem questionou esses problemas em conjunto e apostou no seu
questionamento foi Politzer. Para ele, havia a religião da vida interior, melhor ideologia para quem,
como proprietário de meios de produção, pudesse legitimar amplamente, socialmente, seu poderio,
em uma sociedade de indivíduos que se desconhecem (Cf. Ibidem, p. 45-46). Podemos dizer que há
certa concomitância com o texto da Introdução à L’Esprit, no sentido que há uma mesma verificação
sobre a falsidade da abstração frente ao espírito; se lá a falsidade da abstração era verificada em
relação ao espírito, aqui na Crítica a falsidade é verificada frente à ciência – mas vê-se como a crise
mais geral é a do espírito, quer dizer da sabedoria – então há esse dispêndio da “gula das qualidades”,
a despeito da “compreensão da verdade”. Aqui voltam a se apresentar as “filosofias da consciência”,
que atrelam a ciência e a sabedoria em uma só decadência, de uma grande tentativa histórica
malograda. O parágrafo dezesseis está dizendo então:
Portanto, a psicologia clássica é duplamente falsa: falsa perante a ciência e falsa perante o espírito. Quantos
não se alegrariam por nos ver sozinhos com nossa condenação da vida interior! Que prazer teriam em nos
mostrar as “bases científicas” da falsa sabedoria! Todas essas “filosofias da consciência” que fazem
malabarismo com as noções emprestadas da psicologia, todas essas sabedorias que convidam o homem a
aprofundar-se, quando se trata exatamente de obrigá-lo a sair da sua forma atual, todas elas poderiam ter
continuado a ver com grande satisfação a afirmação da legitimidade do seu procedimento fundamental na
psicologia. Mas as duas condenações encontram-se. A falsa sabedoria seguirá no túmulo a falsa ciência:
seus destinos estão ligados e elas morrerão juntas, porque a abstração morre. A visão do homem concreto
expulsa-a dos dois campos (Ibidem, p. 46).

Porém, de fato, existem aí duas condenações necessárias, e a condenação da psicologia tinha


outros intérpretes constatadores, e Politzer admite não ser apenas ele que julga essas referidas
condenações históricas. Mas ele mesmo teria realizado a parte final da história que culmina com essa
condenação, apesar de ser, reforce-se, mesmo uma corrente histórica que vem desde antes que levou
a psicologia a esse sem-saída. É preciso então fazer a separação material em duas condenações, e
atacar sobre a dissolução da psicologia clássica, até onde essa dissolução prenuncia a nova psicologia.
E há três casos a se considerar deste ponto de vista (psicanálise, behaviorismo e Gestalttheorie). Isso
foi esboçado por Politzer nos textos que vimos no primeiro capítulo de nossa tese, mas essas três
novas formas da psicologia são importantes pelo ponto de vista crítico, por menores que sejam os
tópicos psicológicos que introduzem (na verdade, ver-se-á que o pouco de deslocamento crítico que
as três tendências introduzem muda todo o cenário da psicologia).
Grande é o valor da Gestalttheorie, sobretudo do ponto de vista crítico: ela implica a negação do
procedimento fundamental da psicologia clássica, que consiste em desfazer a forma das ações humanas
para tentar, depois, reconstituir a totalidade que é sentido e forma, a partir de elementos insignificantes e
amorfos. O behaviorismo consequente, o de Watson, reconhece o fracasso da psicologia objetiva clássica
e traz, com a ideia de behavior, pouco importando a sua interpretação, uma definição concreta do fato
psicológico (Ibidem).

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Mas, como já vimos, é mesmo a psicanálise a mais importante das tendências. “É ela que
nos faz ver claramente os erros da psicologia clássica e nos mostra, desde já, a nova psicologia em
vida e em ação” (Ibidem, p. 46-47). Isso já foi mostrado em nossa tese, mas é aqui na Crítica que se
verão os detalhes do posicionamento de Politzer frente à questão dos fundamentos da psicologia.
Continuando a mostrar o novo cenário, Politzer escreve: “Ao mesmo tempo em que elas contêm a
verdade, essas três tendências encerram o erro sob três aspectos diferentes e, por isso mesmo,
conduzem seus discípulos por vias que afastam mais uma vez a psicologia da sua direção verdadeira”
(Ibidem, p. 47). Há, portanto, uma derradeira necessidade histórica que configura o problema da
possibilidade de uma ciência psicológica positiva. Qual é o cenário triplo? Politzer lista criticamente:
A Gestalttheorie, no sentido amplo da palavra (incluindo Spranger), entrega-se, por um lado, como
Spranger, a construções teóricas e não parece, por outro, poder libertar-se das preocupações da psicologia
clássica. O behaviorismo é estéril e recai na fisiologia, na biologia, até mesmo na introspecção mais ou
menos disfarçada, em vez de esquecer realmente tudo para esperar apenas pelas surpresas da experiência.
Por seu lado, a psicanálise viu-se tão sobrecarregada pela experiência que, enfim consultada, só queria falar,
não teve tempo de dar-se conta de que esconde em seu seio a velha psicologia, que ela tem por missão
suprimir, e alimenta com sua força um romantismo sem interesse e especulações que só resolvem problemas
ultrapassados (Ibidem).

De fato, esse quadro era o das suas repercussões sociais, não é evidentemente aí que as questões
e as contradições mais sérias estão expostas. Em geral, há uma certa timidez nessas outras tendências
para corresponder integralmente à condenação que Politzer realiza. Mas é delas mesmas que surgem
negações determinadas para o surgimento da psicologia positiva. Não há, entretanto, como conciliar
essas contradições que aparecem no trato das novidades psicológicas das tendências. O quadro (ele
diz aqui também) é semelhante às reflexões sobre a fraqueza do entendimento humano, no contexto
em que Kant escreveu a Crítica da Razão Pura (Ibidem). As considerações metodológicas se repetem
nesta introdução. Politzer prefere ousar e ser sujeito a erro a encompridar o trajeto da ciência em
manifestações que não se explicitam de todo (Cf. Ibidem, p. 47-48). Vê-se assim que sua dialética se
desdobrou até onde lhe foi possível, dado o estado dos preconceitos embutidos em um ocidental
qualquer, seja pela metafísica, seja pela psicologia. Mas a crítica consiste em desmontar evidências
arraigadas na cultura. Veremos os postulados constantes das teorias psicológicas históricas e
presentes no tempo de Politzer. Os postulados eram próximos de insuperáveis, e mesmo indo à base
das teorias, as dificuldades não deixavam de aparecer quando se referiam às evidências. “Isso
tampouco está isento de dificuldades. A cada passo surgirá dúvida quanto ao direito de livrar-se de
tal evidência ou de determinado problema” (Ibidem). A questão ela mesma é uma questão criticista
sobre a sensibilidade tornada natural.
Mas em momento algum se deve esquecer que nossa “sensibilidade” é falseada, e que só prosseguindo
poderemos adquirir uma visão justa que nos permitirá reconhecer o que deve ser salvo, e veremos, então,
como as evidências que, de perto, parecem incontornáveis não o são quando olhadas à distância (Ibidem).

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Isso coloca a questão crítica da nova perspectiva, que deve realizar a “liquidação da
psicologia clássica”. Ainda que esse radicalismo concorresse para um projeto mais amplo não
realizado, alguma coisa desse teor vai ficar na obra. Qual era esse projeto maior? Politzer nos explica
o que se refere a cada uma das tendências e também como é o projeto: “Serão estudos preliminares
que devem preparar a própria crítica, esclarecê-la no plano das suas articulações e fornecer-lhe as
peças constitutivas; esses estudos formarão os Matériaux pour la Critique des Fondements de la
Psychologie” [nota de Politzer: “Os Matériaux devem ser apresentados em três volumes. Depois
deste, haverá um volume sobre a Gestalttheorie, com um capítulo sobre a fenomenologia; o terceiro
tratará do behaviorismo e das suas diferentes formas, com um capítulo sobre a psicologia aplicada]
(Ibidem). Este plano foi, aqui neste volume, muito bem esboçado. Há mais, ele diz: “A crítica em si,
em que o problema que acabamos de expor será tratado em si e sistematicamente, deve figurar no
Essai critique sur les fondements de la psychologie, o qual virá depois dos Matériaux” (Ibidem, p. 48-
49). Então há o que ler na Crítica um material de caráter preparatório, que contudo se tornou
definitivo. Não é possível discutir os pretendidos desdobramentos. Ele disse que:
Esse caráter preparatório e, consequentemente, provisório do Matériaux jamais deve ser esquecido; eles
ainda não contêm a crítica, representam apenas os primeiros instrumentos, ainda toscos, com os quais serão
forjados os instrumentos apropriados (Ibidem, p. 49)

Esses são os Matériaux, mas se tornaram toda a Crítica dos fundamentos da psicologia. Este
grande esboço é uma pesquisa sobre a percepção de que na psicanálise há um grande avanço para os
assuntos psicológicos. Politzer vai explicitar um pressentimento nada ingênuo, porque percebe boa
parte da verdade da crise e da solução da crise da psicologia nas teses da psicanálise e no que há para
se dizer sobre seus procedimentos analíticos.
No que nos diz respeito, é refletindo sobre a psicanálise que percebemos a verdadeira psicologia. Isso
poderia ter sido um acaso, mas não o é, pois só a psicanálise pode, hoje e de direito, dar a visão da verdadeira
psicologia, por ser, e só ela, a sua encarnação (Ibidem).

Nós devemos ver que Politzer em outro momento separará a psicanálise e a psicologia.
Os Matériaux devem, portanto, começar pelo exame da psicanálise: tratar-se-á, buscando o ensinamento
que a psicanálise comporta para a psicologia, de obter esclarecimentos que nos permitirão não esquecer o
essencial no exame de outras tendências (Ibidem).

Adiantemos que a verificação da abstração também na psicanálise é que fornecerá o modo


de saída desse longo esboço. Mas é preciso fazer uma longa análise, por vezes contando uma longa
história (Cf. Ibidem, p. 49-50). Freud era tido como psicólogo da Representação. Esta era uma
conclusão. Há outra conclusão, dos adeptos. Adiante-se que para Politzer a teoria da libido,
equilibrando-se com a noção de desejo, pode encontrar uma versão metafísica na psicologia dos
adeptos de Freud, e não é mesmo somente pela teoria da sexualidade que a psicanálise revoluciona,

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mas bem mais pela atenção que a psicanálise dá ao discurso do paciente para realizar análises. Isso
foi revisto na tese. Politzer diz dos adeptos:
No que, por outra parte, diz respeito a seus adeptos, só veem na psicanálise libido e inconsciente. De fato,
Freud é para eles o Copérnico da psicologia, por ser o Cristóvão Colombo do inconsciente e, de acordo
com eles, longe de reviver a psicologia intelectualista, a psicanálise liga-se, pelo contrário, a esse grande
movimento que se esboça a partir do século XIX e que enaltece a importância da vida afetiva; com a teoria
da libido, com a primazia do desejo sobre o pensamento intelectual, enfim, com a teoria do inconsciente
afetivo, a psicanálise é o coroamento desse movimento todo (Ibidem, p. 50).

Mas a verdade é que a psicanálise não é a evolução da psicologia clássica, em que esta se
dilata para abarcar tantas novas matérias, mas “revolução copernicana” mais importante do que se
imagina (Cf. Ibidem). Então há uma revolução psicanalítica e outra, pressentida, com base no
behaviorismo. Os psicanalistas colaboram com seus adversários por uma “fixação” histórica da
psicologia clássica, e a psicanálise mesma tem suas fixações. Mas os psicólogos ao acusarem as
fixações da psicanálise e admitindo sua novidade em outro aspecto, denunciaram a própria abstração
da psicologia clássica, e o que há de fato na psicanálise é uma inspiração totalmente diversa: “cada
passo dado em direção da compreensão da orientação concreta da psicanálise tem, em contrapartida,
a revelação de um procedimento constitutivo da psicologia clássica” (Ibidem, p. 51). Vê-se a dialética
complexa da perspectiva de Politzer, ele afirma a incompatibilidade entre a inspiração fundamental
da psicanálise e a psicologia clássica. Ele especifica que sua análise de como se constitui a psicanálise
consiste em um estudo da teoria freudiana do sonho, já que para Freud a psicanálise se baseia na
teoria do sonho (Cf. Ibidem).

Referências bibliográficas

POLITZER, G. Crítica dos fundamentos da psicologia. A psicologia e a psicanálise. Tradução de


Marcos Marciolino e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. Piracicaba: UNIMEP,
1998.
____________. Le bergsonisme: une mystification philosophique. Paris: Éditions Sociales, 1946.
____________. Écrits 2. Les fondements de la psychologie. Paris: Éditions Sociales, 1969.

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