Nietzche Questao Corpo
Nietzche Questao Corpo
Nietzche Questao Corpo
Belém-Pará
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Belém-Pará
2016
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFPA
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Profa. Dra. Mariana Lage Miranda (Suplente)
Colaborador – Bolsista PNPD/CAPES (UFPA)
Belém-Pará
2016
À Mauro Leal, por todo companheirismo e amor
incondicionais.
AGRADECIMENTOS
A meu pai, Jorge Damasceno, pelo incentivo constante aos meus estudos e aprimoramento
intelectual.
A Mauro Lopes Leal, por ter contribuído de forma indelével para os rumos da presente
pesquisa, com a sua leitura enriquecedora e indicações precisas. Em virtude do diálogo
frutífero e impulsionador, assim como também, pelo cuidado e confiança irretocáveis.
À querida amiga Rosinete Maciel que, mesmo à distância, nunca mediu esforços em apoiar-
me com palavras de estímulo sempre renovadas, convidando-me a longos e estimulantes
debates filosóficos.
Aos colegas e amigos do mestrado, pelo apoio demonstrado sempre que necessário, com
especial ênfase a Isabella Heinen, Héden Costa e Lívia Coutinho.
Ao Prof. Dr. Roberto de Almeida Pereira de Barros, a quem admiro pela intrepidez do olhar
crítico e seriedade na condução de suas pesquisas acadêmicas, pela orientação perspicaz e
valorosa, continuamente atenta às minúcias intrínsecas ao deslindar das questões filosóficas
que se apresentaram no decorrer de minha escrita.
Ao Prof. Dr. Nelson José de Souza Jr., pelas respeitosas considerações emitidas durante o
exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea, pelas primorosas e atentas contribuições à revisão
e aprofundamento desta dissertação, às magníficas sugestões bibliográficas e à estimada
interlocução.
À Profa. Mariana Lage, estimulante presença durante a defesa, pela acuidade reflexiva acerca
de minha escrita.
À Profa. Dra. Jovelina Ramos, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(PPGFIL) da UFPA, pela seriedade, profissionalismo e delicadeza, sobretudo no que se refere
à resolução das mais diversas dúvidas e situações acadêmicas.
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará (PPGFIL-
UFPA) e seu corpo docente.
Sempre escrevi minhas obras com todo o meu
corpo e minha vida; ignoro o que sejam
problemas ‘puramente espirituais’ (IX, 4
(285))
Nietzsche
RESUMO
The present dissertation aims to develop an interpretation concerning the conception of body
in Nietzsche, taking into account the perspectival bias and instinctive dimension of whole
body, as well as the multiplicity of forces inherent in the investigation of the body. In view of
that, according to the assimilation of Nietzsche, the notion of body places itself as conducting
wire of his lucubrations, especially because the resumption of such a question demonstrates
pertinent for thinking about the body in the course of Western thought, since the concept of
ancient Greeks, passing the aesthetic Socratism, Platonism and Christian morality to
modernity and its reverberations in relation to nihilism process. That said, it is particularly
important to provide a critique of the poor understanding of body erected by traditional
philosophy, while emphasizing the appropriation of Platonism by Christian morality, which
resulted in the depreciation of the body and degeneration of the instincts and most vital bodily
impulses, become sick, a fact that contributed of illness tendencies and belittlement of man in
modernity. For that, we intend to analyze the notion of body crossed by the established
valuations, both from aesthetic, and moral, cultural and philosophical, especially in the texts
The Birth of Tragedy, Human Too Human, Beyond Good and Evil, Genealogy of Morals and
Thus spoke Zarathustra, basic to place the question of the body in the dimensions that made
possible their rise and decay. In this manner, the dissertation this shows that relevant because
it allows the deepening on a question that arises latently in the context of Western thought:
body notion, taken from the bias proposed by the German philosopher, as a forces field and
conflict in modernity.
JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não
escritos)
PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica
dos gregos)
WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no
sentido extramoral)
*Convenção para a citação das obras de Nietzsche, conforme adotado pelos Cadernos
Nietzsche.
MVRI – O mundo como vontade e como representação. Trad. J. Barboza. São Paulo:
UNESP, 2005.
MRVII – Suplementos ao mundo como vontade e representação. Trad. E. F. J. Payne. New
York: Dover, 1958.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
INTRODUÇÃO
1
Ao apresentar a concepção de vontade atrelada a um querer irrefreável do homem, Schopenhauer inaugura um
novo fio condutor na filosofia, no qual o corpo, portador dessa vontade, é a chave para a sua devida
compreensão, aspecto este em que Schopenhauer se deteve, mas ainda sob um viés metafísico, e do qual
Nietzsche se apropriou possibilitando a abertura para uma nova linha de interpretação que tem como
pressupostos: o não-eu, a vontade, a natureza, o “irracional”, o pulsional, enfim, o corpóreo. Aspectos estes
enfatizados por Nietzsche e, posteriormente, por Freud, onde ocorre uma realocação da representatividade da
razão, não o seu abandono.
2
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p. 35.
3
“Instinto para Nietzsche, diz respeito ao poder ser, à afecção, ao ‘pathos’. Por isso, segundo ele, o agir livre é o
agir a partir do instinto, o agir que acontece quando o homem se encontra inserido, perpassado, tomado por um
modo próprio de ser” (CORDEIRO. R. C. O corpo como grande razão: análise do fenômeno do corpo no
pensamento de Friedrich Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2012. p.83).
12
interpretação é elaborada [...]. Nietzsche repensa a psicologia e faz dela o estudo dos instintos
e dos afetos” 4.
Constata-se, assim, que Nietzsche opta por um campo de estudo divergente daquele
meramente racional com o intuito de erigir uma interpretação cuja primazia se volta para o
corpo, colocando em destaque os atributos que lhe são característicos, tais como os aspectos
instintivos e do campo das afecções. Com base nesse pressuposto, considera que a adoção da
referida perspectiva proporciona uma ênfase maior à Terra e à Vida, pontos de partida para a
ponderação em torno do mundo e de nós mesmos.
É nesse conflituoso terreno entre instintivo e racional que o corpo se perfaz,
demonstrando sua múltipla representação no que concerne aos processos criativos e a busca
por estados saudáveis. Assim, o corpo apresenta inegável importância, uma vez que ele marca
o ponto nevrálgico de toda a construção cultural vigente, que, por seu turno, é abalizada pela
atuação individual do homem e a sua participação no grupo social, ou seja, o que o homem é
particularmente e aquilo que ele deve ser quando inserido no seio do convívio grupal. Nesse
último aspecto, mostra-se perigoso, em diversas esferas e para distintos centros de controle,
tais como para a Igreja e até mesmo o Estado, que o homem atue de forma espontânea,
pulsional, instintiva. É preciso doutriná-lo, reprimi-lo5 utilizando para tanto os mais diversos
meios que vão desde os castigos até as concepções enfermiças que refreiam a vontade,
tornando-a débil.
A crítica nietzschiana à razão, entretanto, não a exclui do homem, do corpo, este que
somente apresenta uma unidade quando considerados aspectos como racionalidade,
consciência, memória, em conexão com os instintos, impulsos, desejos. O resultado da
reunião desses fatores é um corpo que se caracteriza como “um conjunto de processos
organizados e coordenados” 6.
Desse modo, a organização e coordenação dos processos corpóreos, conforme visto
acima, são postas em suspensão desde a decadência da cultura grega, apresentando o seu
exato ponto de inflexão com a filosofia socrática. Desde então, a filosofia convergiu para
caminhos que tornaram o corpo um viés de importância reduzida, uma vez que se delimitou,
erroneamente, a razão como o aspecto mais elevado no homem, como se esta fosse algo
4
WOTLING, P. Vocabulário de Nietzsche. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 45.
5
Segundo Corbin: “O corpo é ao mesmo tempo receptáculo e ator face a normas prontamente enterradas,
interiorizadas, privatizadas, como pôde mostrar Norbert Elias: lugar de um lento trabalho de repressão, isto é, de
um distanciamento do pulsional e do espontâneo.” (CORBIN, A; COURTINE, J; VIGARELLO, G. Prefácio à
História do corpo. In História do corpo: da Renascença às Luzes. Vol. 1. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
p.11)
6
WOTLING, op. cit., p. 26.
13
externo ao corpo. Tal racionalidade foi cuidadosamente situada em uma esfera de intelecção
da qual se excluem sensações, subjetividade, sentimentos, aspectos inerentes ao corpo, que
poderiam macular o pensamento lógico, desviando-lhe da sua retidão e exatidão na busca
filosófica pela “verdade”.
Suprimiu-se a natureza e a efetividade em nome de um mundo ideal, único lugar no
qual se poderia encontrar a veracidade das coisas, em contraposição à imperfeição e ao caráter
perecível do mundo e do próprio homem, apontando-se, por essa perspectiva, para o corpo. A
caverna, ou seja, o mundo, o terreno, o sensível, foi teorizado por Platão como um aspecto
possuidor de características bastante peculiares, que, no decurso de seu pensamento,
sofisticou as concepções de alma e mundo perfeito, proscrevendo o corpo e suas
características particulares, que, no exame filosófico, poderia, através dos sentidos, das
sensações e dos desejos, comprometer a busca pelo “belo”, “justiça” e “felicidade”.
Assinalou-se, dessa forma, a separação entre corpo e razão7, que, após gerações de filósofos, é
desfeita por Nietzsche e perpetuada por outros filósofos da contemporaneidade, tais como
Foucault, Derrida, dentre outros.
Desde o platonismo, o homem tem se guiado por pressupostos equivocados que
marcaram um incontestável prejuízo a si, ao seu corpo e à sua saúde. Notadamente arraigado
pelo cristianismo, sistema de ideias moralizantes, acentuado por regras de conduta que
estabelecem um conhecimento antinatural, pois situam o pensamento em um plano
desvinculado do mundo e do fisiológico. O homem, para Nietzsche, guia-se por instintos,
7
Sobre a questão da cisão entre corpo (soma) e alma (psyche) segundo a perspectiva de Platão, pairam diversas
interpretações, algumas contrárias e outras favoráveis a essa visão. De um modo geral, é interessante atestar,
mesmo que esse não seja o nosso objetivo maior, as bases elementares em que se assentam tais discussões. Para
Giovanni Reale, por exemplo, “Uma concepção que sempre chamou a atenção dos estudiosos é a que Platão
oferece do corpo humano. Para ele, de fato, em muitos diálogos, o corpo é não só e não é tanto um “instrumento”
a serviço da alma, e portanto algo sem o qual a alma não poderia exercitar as suas funções, mas é algo antitético
à alma, e, sob certos aspectos, um obstáculo às funções que lhe são próprias. [...]. Todavia, se isso é verdade,
também é verdade que essa antítese é apresentada pelo filósofo sobretudo sob a forma de uma mensagem de
caráter absolutamente provocador. De fato, no plano físico e antropológico, Platão assumiu posições bem
temperadas e equilibradas, considerando “natural” a conjugação da alma com o corpo, e essencial o “cuidado”
do corpo.” (REALE, G. Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus,
2002. p. 175). Assim, para Reale, fica expresso que mesmo que Platão tenha assumido – especialmente em
diálogos como Fédon, Fedro, Górgias – uma interpretação que estabelece uma antítese entre corpo e alma, o
filósofo, em outros escritos, compreende o homem enquanto uma espécie de complexo auferido da relação entre
corpo e alma, conferindo, inclusive, grande relevância à ginástica e medicina, diretamente ligadas ao corpo. Do
exposto, é possível constatar que a problemática da separação entre corpo e alma ganha contornos decisivos no
pensamento de Platão, os quais, de certo modo, irão se perpetuar por toda tradição filosófica. Não se quer dizer
aqui que Platão deva ser desmerecido, muito pelo contrário, o fato de ter conferido importância aos cuidados
com o corpo em escritos como Timeu, demonstra a atualidade de seus escritos. Contudo, e é esse o
posicionamento que pretendemos adotar no presente texto, Nietzsche irá empreender uma crítica severa a Platão,
estritamente por conta da postura adotada nos diálogos precipuamente citados, e mais do que tudo, ao
platonismo, corrente filosófica de cunho negativo ante a realidade, uma vez que para os mesmos, as ideias
eternas e transcendentes originam todos os objetos sensíveis. Com Nietzsche, tem-se, enfim, um processo de
ruptura com essa forma de interpretação do mundo.
14
cujas atividades encontram nas pulsões sua forma motriz, logo, a razão não seria o soslaio
norteador da vida humana, uma vez que o homem não pode ser determinado, sendo a razão
apenas mais um mecanismo humano, resultante de instintos cruéis, utilizado para a própria
sobrevivência.
Assim, acerca da relação que se pode estabelecer entre o caráter instintivo e o racional
no pensamento nietzschiano, aponta Barrenechea: “Ele mostra que a racionalidade não é um
atributo distintivo que colocaria o homem acima da natureza, que o diferenciaria claramente
da “bestialidade”. Ao contrário, para Nietzsche, a razão é o fruto dos instintos mais cruéis...”
8
. Percebe-se por meio do excerto que, para o filósofo, a existência não pode ser
compreendida como algo desvinculado dos instintos e pulsões. Na antiguidade, como
qualquer outro animal, o homem valeu-se de seus instintos para realizar sua efetividade no
mundo. Equívoco acreditar que tais instintos, em nome do progresso e da civilidade, foram
extintos ou definitivamente reprimidos no homem. O corpo decadente, enfermo, debilitado, é
um exemplo dos resultados desse processo de contingência dos impulsos.
Incapaz de uma efetiva resistência, o homem decai e torna-se uma vítima bastante
aprazível para as concepções morais/políticas dominantes. O controle pelo poder mascara-se
através de inúmeros mecanismos, como política, arte, educação, religião, para forçar o homem
a negar quem é e a sua natureza. O corpo, nesse processo de opressão, foi o alvo principal,
sobretudo no que diz respeito ao Cristianismo:
No Cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano: são
as classes mais baixas que nele buscam sua salvação. Nele a casuística do pecado, a
autocrítica, a inquisição da consciência é praticada como ocupação, como remédio
para o tédio; nele o afeto em relação a um poderoso, chamado “Deus”, é
continuamente sustentado [...]. Nele o corpo é desprezado, a higiene repudiada como
9
sensualidade; a Igreja se opõe até à limpeza [...].
O corpo foi cerceado de todas as formas e utilizado como meio de suplício para a
purificação da alma, quanto maior a dor e o sacrifício, mas digno, cria-se, tornava-se o
homem. Calando-se o corpo, silencia-se toda uma organização natural que vai de encontro ao
sistema social vigente de hierarquização cultural, política, estética. Adoecido e enfraquecido,
restou ao homem juntar-se a outros homens em condições semelhantes para tentar uma
subsistência que foi tomada como natural. A vida terrena foi associada à dor e ao sofrimento;
ao mundo ideal, metafísico, caracterizou-se como perfeito. O indivíduo, existencialmente
desfavorecido e abatido, pois foi-lhe ensinado desde cedo que a vida é somente isso, reserva
para esse mundo imaginário suas esperanças, sua confiança e vontade, postura esta que
8
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e o corpo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 40.
9
AC/AC, §21.
15
termina por submetê-lo a uma ordem degenerativa. Entretanto, existem outras formas de
pensar o corpo, conforme evidencia Corbin et al.:
O corpo pode conduzir à consciência em vez de ser seu objeto. De repente, o estudo
deste corpo e de seus atos revela de modo diferente do que revelava até aqui:
considerar por exemplo que existe uma inteligência do movimento fora do trajeto
clássico que subordina o motor à “ideia”, é estudar de modo diferente as práticas, é
estudar de modo diferente as maneiras de fazer e de experimentar. Enfim, é ter em
10
vista recursos de sentido exatamente onde eles não pareciam existir.
10
CORBIN, A; et. al, Prefácio à História do corpo, p. 10.
11
As análises do corpo e da corporeidade desenvolvidas no pensamento pós-moderno possuem múltiplas
acepções, posto que privilegiem tanto o caráter histórico quanto representativo dos usos e valores que se
atribuem à corporeidade. Conforme Villaça e Góis (1998), os estudos sobre o corpo na pós-modernidade podem
ser interpretados: “[...] seja como organismo (linha nietzschiana), seja como campo de forças (Deleuze). Opções
pelo corpo hedonista e narcísico no contexto da cultura do consumo (Lipovetsky), delação das estratégias de
controle nas suas mais diversas formas com propostas de micropolíticas defensivas (Foucault), reflexões sobre o
corpo do consumo de viés neomarxista (Featherstone, Canclini), versões das novas apropriações do corpo
alienado no consumo (Eagleton) ou tiradas apocalípticas sobre o fim da corporeidade na simulação total
(Baudrillard)” (VILLAÇA, N. & GOÉS, F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 42).
16
angústia perante tal diagnóstico, e posterior abandono dos valores, por se verificar sua
insustentabilidade; o segundo faz referência a abertura para novas possibilidades ou
perspectivas de interpretação12. A intenção é demonstrar em que medida, para Nietzsche, esse
processo tão crucial e conflitante para a humanidade denominado niilismo está imbricado
também com a noção de corpo.
Não podemos deixar de frisar, entretanto, que iremos acionar as demais obras que
servem como arcabouço teórico e interpretativo para o projeto ao qual nos arvoramos, a saber,
especialmente, Za/ZA, no que se refere às três metamorfoses do espírito, de fundamental
importância para se pensar o corpo pelo viés da criação; a via de significação aberta pela
seção intitulada Dos desprezadores do corpo, onde Zaratustra se contrapõe às doutrinas e
posturas que se articulam em preterição ao corpo e sua significação para a vida; e, acima de
tudo, o corpo interpretado como grande razão.
No terceiro e último capítulo, traremos a discussão para a conceituação que Nietzsche
empreende acerca de uma noção basilar ao seu pensamento, a saber, a vontade de poder.
Logo, situaremos o corpo, a partir do enfoque nietzschiano, enquanto vontade de poder. Sem
deixar de considerar, contudo, a relevância de alguns processos intrínsecos ao corpo como
saúde (a alegria trágica da vida) e adoecimento do mesmo (provocado pelo ressentimento, por
exemplo).
Destarte, a pesquisa demonstra-se relevante porque possibilita o aprofundamento em
uma questão que se coloca de forma latente no contexto do pensamento ocidental: a noção de
corpo. Por isso, alguns questionamentos serão levantados no decorrer do trabalho, com o
intuito de problematizar o corpo, mais acima de tudo, as significações e valores atribuídos ao
mesmo, uma vez que se faz necessário pensar o corpo atravessado pelas interpretações
filosóficas, morais, culturais, estéticas. Enfim, o corpo observado pela via de interpretação
nietzschiana, corpo da memória, da má consciência, da modernidade, assim como também, do
esquecimento, da criação e abertura para o novo, isto é, da alegria trágica da vida.
12
Clademir Araldi esclarece, com precisão, o referido ponto ao afirmar que: “O niilismo, na Europa “moderna”
de Nietzsche, pode ser visto como um processo de dissolução, que se desencadeia sob o signo de uma
ambiguidade inquietante. A autodestruição dos valores morais ocasiona uma despotenciação do valor do homem,
tal como foi moralmente estabelecido. [...] Os movimentos modernos que se consomem em seus próprios
antagonismos são as características próprias desse tempo. Há, no entanto, um contra movimento, por parte de
espíritos livres, os “mais modernos entre os modernos”, comedidos ao extremo na posição de valores,
desconfiados de que a existência e seus males não tenham um sentido. Eles deveriam ser fortes o bastante para ir
ao outro extremo do niilismo, no perigoso limite a partir do qual poder-se-iam antever novas formas de criação.”
(ARALDI, C. Nietzsche: o niilismo e a consumação da modernidade. Semana Acadêmica do PPG em Filosofia
da PUCRS. Anais. Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS. Dados eletrônicos. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2012. p. 1)
18
Pensar o corpo a partir de Nietzsche é mais do que um desafio que se apresenta àquele
que se propõe a tal empreitada, é uma tarefa árdua, um exercício de arguição. E adotando tal
postura iremos não apenas nos deter sobre a noção de corpo em Nietzsche, escopo central
desse trabalho, mas também discutir os posicionamentos favoráveis e/ou contrários a essa
perspectiva. Pois, antes de qualquer coisa, é exatamente disso que estamos tratando quando
nos submetemos a presente investigação: perspectivas. O filósofo de Röcken não se pretende
detentor de verdades, pelo contrário, contrapõe-se à concepção de verdade: “A vontade de
verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos
os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou!” 13.
Por isso, não temos a intenção de sugerir uma mera inversão do que Platão instituiu, a
saber, a supervalorização da alma em detrimento do corpo. Não se quer aqui afirmar o corpo
como a nova verdade, colocando-o em papel de destaque em lugar da alma. Para o filósofo
alemão, conforme veremos mais adiante, alma é só uma palavra para designar algo que existe
no corpo e não está para além dele. Por conta disso, nos propomos, neste primeiro momento, a
explicitar o conflito entre Nietzsche e a filosofia tradicional, instaurado especificamente no
problema da compreensão do corpo.
A filosofia tradicional racionalista, enquanto campo privilegiado do pensamento
humano agrega para si inúmeras temáticas de abrangência universalizantes, com a clara
intenção de construir uma interpretação do homem e do mundo pautada por valores absolutos
de cunho estritamente conceitual. Assim, moral, ética, estética, passaram a se orientar por
pensamentos abstratos, doravante preocupados em encontrar a essência das coisas e
organizados pela pergunta “o quê?”, cuja resposta será sempre a definição dada a determinada
coisa. Uma das questões para as quais frequentemente se buscou uma definição fora a
seguinte: “o que é o homem?” e algumas das respostas ou definições mais ordinárias para a
referida questão são: “o homem é um ser racional” ou “o homem é um ser consciente”.
Nietzsche dirá, em contrapartida, que: “[...] Se eliminarmos “a coisa como tal, a coisa em si e
13
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 1.
19
por si” [...]. Toda essa contraposição, como aquela mais antiga entre “matéria e espírito”,
revela-se inútil”. 14
Nietzsche não tencionava conhecer a essência das coisas, pois discordava da
concepção de que existiria uma origem para o conhecimento humano. Com efeito, Nietzsche
se contrapõe a toda e qualquer compreensão originária da realidade, especialmente aquela de
cunho metafísico, que pretende definir ou circunscrever o homem em uma conceituação
especifica e/ou substancial ou que entreveja o mundo como algo estático. À vista disso,
explicita Nietzsche:
O ser humano busca “a verdade”: um mundo que não se contradiga, não se engane,
não mude, um mundo de verdade – um mundo em que não se sofra: contradição,
engano, mudança – causas do sofrimento! Ele não duvida que haja um mundo como
ele deveria ser; gostaria de procurar para si o caminho até ele [...]. O desprezo, o
ódio contra tudo o que desaparece, se modifica, muda: -- de onde essa valorização
do permanente, do que se conserva?15
14
Nachlass/FP, 6 [23].
15
Nachlass/FP, 9 [60].
20
16
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 33.
17
PHG/FT, p. 18.
18
Com base nesses pressupostos, podemos situar claramente em que se perfaz a crítica de Nietzsche à Platão,
isto é, na crença de que o impulso deve estar submetido a racionalidade. Acerca do posicionamento adotado por
Platão no que se refere ao corpo, esclarece Thomas M. Robinson: “Um aspecto final e crítico de sua psicologia
reavaliada – coincidemente também prenunciado no Górgias – é o evidente abandono da teoria do Fédão a
respeito do que constitui a saúde da alma e do corpo. Pois a saúde, vista como uma metáfora básica para a
justiça, é agora cuidadosamente descrita, nos moldes da medicina grega contemporânea, como uma harmonia de
itens no organismo, seja este o corpo ou a alma. Falando nos termos escrupulosamente funcionalistas e
teleológicos elaborados no final do livro 1, Sócrates descreve como o correto funcionamento (=saúde) do corpo
envolve o correto funcionamento de cada uma das partes que o compõem; em sua própria terminologia, cada
parte executa a função que lhe foi destinada. De modo semelhante, na alma justa (=saudável), a saúde/justiça
consiste em cada uma das três partes da alma executar a função que lhe foi destinada.Se a parte racional da alma
é ainda, para Platão, de longe a mais importante, e talvez a única a ser imaterial e imortal (cf. infra), o papel
necessário das outras duas partes icibas levou Platão a um passo gigantesco para além das opiniões
anteriormente propostas no Fédão. Agora, o corpo não é mais visto como alguma forma de contra-indivíduo
material, completo, com desejos próprios, em oposição ao indivíduo imaterial que é a alma. Todos os desejos
são, realmente, diz Platão, uma característica da alma; ainda que muitos deles se descrevam corretamente
operando via corpo. E todos estes, se corretamente canalizados, podem ser comandados de modo a servirem aos
fins de nossos eus racionais e, em última instância, mais genuínos.” (ROBINSON, T. M. As características
definidoras do dualismo alma-corpo nos escritos de Platão. LETRAS CLÁSSICAS, n. 2, p. 335-356, 1998. p.
344).
21
[...] examinar as coisas apenas com o pensamento, sem pretender aumentar sua
meditação com a vista, nem sustentar seu raciocínio por nenhum outro sentido
corporal, aquele que se servir do pensamento sem nenhuma mistura procurará
encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxilio dos olhos ou dos ouvidos e, por
assim dizê-lo, completamente isolado do corpo, que apenas turba a alma e impede
que encontre a verdade.19
Afigura-se, com base no excerto acima, que o filósofo grego acena para um
distanciamento entre corpo e alma, por considerar o âmbito das afecções corpóreas uma
espécie de entrave ao conhecimento verdadeiro. A dimensão corpórea carregaria, a partir
desse viés, uma conotação negativa, pois os sentidos seriam enganosos, impossibilitando o
acesso a um saber confiável. Com base nisso, seria preferível romper a associação e contato
entre corpo e alma, já que a alma pode aspirar à verdade, enquanto o corpo não pode.
No livro III de A República, contudo, Platão parece refletir acerca da relação corpo-
alma pelo viés de conjunto, conforme explana Morais:
Todavia, foi exatamente entre os gregos antigos, antes mesmo de Platão, que se
manifestaram decisivas preocupações em torno dos fenômenos corporais e mentais e das
19
PLATÃO. Fédon. In: Diálogos: Fédon, Sofista, Político. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 127.
20
PLATÃO. Fédon. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Coleção Os
pensadores). 65b
21
PLATÂO apud MORAIS, A unidade corpo-alma na fisiologia-ética do Timeu de Platão. Dissertação de
mestrado, UFMG, Belo Horizonte, MG, 2009. p. 12.
22
relações daí decorrentes, manifestamente arroladas pelos médicos e filósofos da Grécia antiga,
uma vez que, segundo Castro & Fernandez (2011, p. 799), “É a partir desta civilização que
surgem observações mais sistemáticas sobre estrutura e funcionamento do corpo, da mente e a
relação entre estas duas entidades”. Nota-se que existia, no seio do pensamento grego antigo,
uma preocupação relevante com estados corpóreos, aliados à prática da ginástica, à
preparação para a guerra etc. Nesse contexto, a mente humana era vista como um arcabouço
dos afetos, intelecto, em íntima relação com o corpo, porém, detentora de autonomia em
relação ao mesmo.
No Timeu, conforme evidencia Reis (2007, p. 389), entrevê-se unidade entre corpo e
alma: “[...] No caso do homem, ainda que a alma encarnada (triádica 22) possua elementos
irracionais que possam levar o homem ao conflito, ao desequilíbrio [...], o estado de completo
entrelaçamento entre corpo e alma, no homem vivo, é destacável em várias passagens”.
Deve-se ressaltar, porém, que tal interpretação, ainda que não seja uma das mais correntes
entre os principais comentadores de Nietzsche, é significativa e deve ser devidamente
considerada no rol das investigações filosóficas. Entretanto, esse não é o nosso enfoque no
presente texto.
Retornando, assim, ao propósito basilar da dissertação, outro ponto bastante
elucidativo da crítica nietzschiana a filosofia tradicional, empreendida por meio do
contraponto com a filosofia grega pré-socrática, concorre para a consideração do apego que os
gregos do período trágico tinham pela vida, tornando-os inventores de um tipo de sabedoria
cujos pressupostos consistem em uma exaltação das formas naturais, do corpo, da relação
entre forças físicas e mentais, aspectos estes que, repercutem inclusive no modo como se
relacionavam com as divindades, representações das forças terrestres que atuavam de maneira
efetiva sobre a vida das pessoas. O antropomorfismo dos deuses também legitima o que foi
dito, posto que nos permite concluir que a forma humana se evidenciava como a mais natural
para se imprimir às divindades.
A filosofia na era trágica dos gregos converge em Nietzsche, acima de tudo, para uma
crítica à modernidade, e como tal, reivindica uma retomada dos aspectos trágicos da
existência cultivados pelos gregos antigos, a saber, o cerne do embate harmonioso entre os
impulsos apolíneos e dionisíacos que permeavam o modo de vida dos gregos nesse período.
Segundo Miguel Angel de Barrenechea (2014), o trágico se anunciava, para o filósofo
alemão, como um complexo de forças em conflito, representativo da cultura grega em seu
22
O apetitivo, o irascível e o racional, denominada por alguns comentadores de “teoria da tripartição da alma”.
23
O juízo desses filósofos sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais
significativo do que um juízo moderno, porque tinham diante de si a vida numa
plenitude exuberante e porque neles o sentimento do pensador não se enreda, como
em nós, na cisão do desejo da liberdade, da beleza, da grandeza da vida, e do instinto
de verdade, que só pergunta: o que a vida vale? 23
O filósofo argumenta acima que o modo de enxergar e viver a realidade, próprio dos
gregos da era trágica, é essencial para que se possa levar a cabo o projeto de remodelação da
cultura moderna, uma vez que esta se encontrava muito mais comprometida com a vontade de
verdade que busca consolidar pontos fixos e imutáveis de compreensão do mundo,
responsável pelo nivelamento do homem e supressão de instintos e vontades intrínsecos. Com
o instinto de verdade promove-se uma normatização da vida, pois ela passa a ser gerida e
enquadrada em parâmetros de pensamento cujo propósito é elaborar conceitos que possam
servir de sustentação para a mesma, deixando de lado os aspectos não cobertos pelo
pensamento consciente, isto é, os desejos, as pulsões, o orgânico. Enfim, atribui-se valor à
vida, sem se questionar sobre o valor desses valores. Vê-se que aqui já estão postas, de forma
embrionária, as questões que darão sustentação ao projeto nietzschiano de crítica à filosofia
enquanto má-compreensão do corpo.
Antes de adentrarmos na análise da obra onde tais questões se evidenciam com maior
clareza, a saber, GT/NT, aflui quase imediatamente o fascínio que as poesias de Homero
exerciam sobre as concepções do jovem filósofo. A visão grega de corpo construiu-se a partir
de elementos herdados da filosofia do século V a.C., assim como também de alguns aspectos
já esboçados por Homero antes do primado da filosofia. Suas obras descrevem não apenas os
hábitos sociais, costumes religiosos e posicionamentos políticos dos antigos gregos, mas
também os conflitos de forças e os embates humanos personificados pela força plástica da
guerra e pela referência frequente à morte, mais especificamente à bela morte
(kalòsthánatos24), a mais venerável pelos heróis homéricos.
23
PHG/FT, p. 22.
24
Em seu texto, Jean-Pierre Vernant descreve magistralmente no que consiste a bela morte dos guerreiros: “Para
aqueles que a Ilíada chama anéres (Andrés), os homens na plenitude de sua natureza viril, ao mesmo tempo
machos e corajosos, existe um modo de morrer em combate, na flor da idade, que confere ao guerreiro defunto,
como o faria uma iniciação, aquele conjunto de qualidades, prestígios, valores, pelos quais, durante toda a sua
vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em competição. Esta “bela morte”, kalòsthánatos, [...], faz aparecer,
à maneira de um revelador, na pessoa do guerreiro caído em batalha, a eminente qualidade de anèragathós,
homem valoroso, homem devotado. [...] A bela morte é também a morte gloriosa, eukleèsthanatós.”
(VERNANT, P. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso. São Paulo, n. 9, 1978. p. 31-32).
24
25
OTTO, Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus, 2005. p.
32.
26
Pois, para o filósofo alemão, no prefácio intitulado A disputa de Homero: “Quando se fala de humanidade, a
noção fundamental é a de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas uma tal separação não existe na
realidade: as qualidades “naturais” e as propriamente chamadas “humanas” cresceram conjuntamente. O ser
humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante
duplo caráter.” (CV/CP, 5).
25
almejável fazer dessa vida um estágio de preparação para a morte, como se a mesma pudesse
trazer alento ante uma vida de dor e sofrimento, abrindo-se as portas de outro mundo, um
“mundo melhor” onde a angústia inexiste. O filósofo alemão se contrapõe a tal visão, visto
que a morte não deve ser desejada por ser algo inevitável, e menos ainda, segundo a ideia
cristã, almejada como etapa derradeira pela qual se deve devotar uma vida inteira de
abstenções físicas e de outras espécies, já que “Todos dão grande peso ao fato de morrer: mas
a morte ainda não é uma festa. Os homens não aprenderam como consagrar as mais bonitas
festas.” 27.
Em algumas sociedades e culturas, a morte é vista como algo a ser festejado, em
outras, é considerada a etapa de encerramento de um ciclo, mas para as sociedades modernas,
atravessadas pelos valores morais cristãos, a ideia de morte perpassa pelo sentimento de
medo, redenção e culpa: “A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar
e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa,
segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome” 28. Isto
posto, para Nietzsche “Existem pregadores da morte; e a terra está cheia daqueles a quem se
29
deve pregar o afastamento da vida” . Nietzsche irá se esquivar a última hipótese,
especificamente por considerar que o medo da morte pode acarretar o declínio do indivíduo,
que mais preocupado em cultivar uma vida ascética pela via da supressão dos instintos
corpóreos, acaba por adoecer fisicamente e psiquicamente.
Nasser (2008) assinala que a “reinterpretação da morte” empreendida pelo filósofo
possui um duplo dimensionamento, aquele que aponta para o viés da “morte covarde”, e outro
que especula acerca da “morte voluntária”. No primeiro caso, almeja-se a morte porque a vida
é breve e efêmera, além de levar a decrepitude do corpo e das forças ocasionado
enfermidades, angústias e sofrimentos considerados insuportáveis. Os “pregadores da morte”,
conforme Nietzsche (2011) denomina esse tipo de homem, dão maior ênfase à hora da morte
de um indivíduo do que às experiências e prazeres vivenciados. Para o referido tipo de
homem a morte deve ser desejada como o momento capital, pois proporciona a expurgação
dos pecados que o indivíduo carregou em vida, o anestesiamento das dores infligidas e a
passagem de um mundo cruel para um “mundo melhor”, no qual ele estará livre de todas as
27
Za/ZA, Da morte voluntária, p. 69.
28
ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p.
35-36.
29
Za/ZA, Dos pregadores da morte, p. 44.
26
30
Za/ZA, Dos pregadores da morte, p. 45.
31
É importante frisar que, a princípio, Wagner concebe a arte trágica em acepção estética muito próxima daquilo
que Nietzsche compreende por arte, a saber, enquanto afirmação do caráter trágico da vida. Posteriormente,
entretanto, o próprio músico alemão empreende uma ruptura com tal perspectiva, assumindo para si a acepção
schopenhauriana de arte, idealista e pessimista, contraposta à visão nietzschiana. Outro aspecto que possibilitou
o distanciamento entre o filósofo e o músico alemão fora a conversão do último ao cristianismo, conversão essa
que reverberou sobre a sua música, a qual passou a ser composta com a finalidade de arrebatar as massas pela
grandiosidade de estilo: “O artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe
de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde – e a música, além disso!” (WA/CW, § 5).
Para Nietzsche, o músico deve ser criticado tanto pelo viés estético, quanto pelo aspecto fisiológico, pois
enquanto artista da décadance, a sua música reflete a negação dos instintos vitais e o declínio do corpóreo. A
propósito disso, elucida Ernani Chaves, “Não por acaso, O Caso Wagner procura mostrar a exaustão, que os
temas wagnerianos giram em torno da castidade, da pureza e da inocência, contra os perigos do corpo, do
pecado, da devassidão.” (CHAVES, E. Considerações sobre o ator: uma introdução ao projeto nietzschiano da
fisiologia da arte. Trans/Form/Ação [online], vol.30, p. 51-63, n.1, 2007. p. 61).
27
32
MACHADO, R. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Tradução do alemão e notas
Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 7-8.
28
O filósofo cogita, de fato, promover uma revalorização da cultura grega antiga em sua
era de glória, com o objetivo de retirar o homem moderno de uma existência pálida e
superficial, reconduzindo-o a uma nova era trágica: “Desde a sua juventude, o filósofo antevê
o retorno ao espírito grego, a possibilidade de restaurar uma cultura vital, forte,
esplendorosa.” 33. Assim, promove-se uma retomada dos princípios estéticos que nortearam o
helenismo, pois a cultura ocidental havia caído em incontestável declínio desde Sócrates. As
principais evidências do referido declínio são: o desequilíbrio dos afetos e dos instintos, a
desvalorização dos impulsos corpóreos e a decadência das forças.
Desde a concepção racionalista socrática, seguida pelo platonismo, judaísmo e pelo
cristianismo, o Ocidente desvalorizará e condenará todas as potências trágicas da
vida, acreditando em utopias de pretensos mundos perfeitos, em quimeras de
supostos além-mundos. Nietzsche visualiza, então, haver uma concepção trágica que
declina após os primeiros gregos e uma concepção antitrágica que dominará todo o
devir do Ocidente, num processo doentio que exaure forças e tira da humanidade
todo sentido, todo valor, em prol de fantasias escatológicas, em prol da adoração de
“ídolos” inconsistentes. 34
Assim, evidencia-se com o socratismo uma espécie de inversão ou, como dirá
Barrenechea (2014, p. 13), “uma transvaloração dos valores trágicos”, que acarretará em um
33
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. p. 14.
34
BARRENECHEA, op. cit., p. 14.
35
Terminologia crítica utilizada por Nietzsche como expressão máxima da dissolução dos afetos vitais,
transformados em impulsos declinantes, promovida pelo racionalismo socrático. O socratismo propôs-se fazer
uso da razão enquanto mecanismo de controle dos instintos caóticos que assolavam a sociedade grega à época.
36
GT/NT, 13, p. 83.
29
37
GT/NT, 13, p. 82.
38
ONATE, O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. São Paulo:
Discurso Editorial, 2000. p. 77.
39
GD/CI, II, §4.
40
Não podemos deixar de enunciar que o termo décadence comporta em si, segundo a interpretação
nietzschiana, duas configurações: uma negativa e outra positiva, a vida em ascensão e a vida em declínio.
Segundo o verbete encontrado em Niemeyer: “Para Nietzsche, a décadence é uma fase intermediária necessária
no processo de desenvolvimento da vida. Numa carta a C. Fuchs, inspirando-se diretamente no ensaio de
Bourget dedicado a Baudelaire, ele descreve o estilo da décadence – tomando Wagner como exemplo – como
dissolução da unidade formal mediante o domínio de um impulso individual, isto é, por meio do princípio de
decomposição [...]. Mais ainda assim ele enfatiza em sua carta a Fuchs (de abril de 1886): “No entanto, isso é
décadence, um termo que, tal como nos parece ser evidente, não deve rechaçar, mas apenas descrever algo”. E
30
Sócrates, sobre isso, dirá o filósofo: “[...] devemos nos acercar mais da essência do socratismo
estético, cuja suprema lei soa mais ou menos assim: ‘Tudo deve ser inteligível para ser belo’,
como sentença paralela à sentença socrática: ‘Só o sabedor é virtuoso. ’” 41. Compreende-se
acerca da passagem que o caráter intelectivo sobrepõe-se aos demais aspectos, enquanto pré-
condição basilar para a conduta virtuosa, assim como também, para a delimitação do que pode
ser considerado belo. Ou seja, tem-se a crença metafísica no primado da razão em detrimento
do corpo, por meio da concepção de que o pensamento não apenas conhece o ser das coisas,
como está apto a corrigi-lo. Em contrapartida, para o filósofo alemão, conforme atesta
Machado (2002), não é possível conhecer o mundo, a natureza, o ser das coisas, e tampouco,
apartar essência e aparência, como o quer o socratismo.
Logo, no décadent exprimem-se as vontades em declínio, o que se configura como um
retrocesso fisiológico, pois ao invés da intensidade vital, serão sublinhados em demasia,
conforme Onate, “a contradição dos instintos, fruto da deficiência no centro de gravidade
responsável pela força organizadora; fica obstruído o canal hierarquizador natural, impedindo
assim que os instintos fundamentais desfrutem da supremacia e os tornando gradativamente
voláteis, vazios, ideais.” 42. Nesse sentido, a décadence age sobre os instintos mais vitais,
adoecendo-os, tornando-os fracos e débeis, seja através da religião, da cultura, da moral e até
mesmo da filosofia, conforme vemos. Para tanto, impetra a degeneração dos instintos,
desestabilizando a expansão de potência afirmadora, o que, por sua vez, acarreta um
cerceamento das potências vitais, tolhidas em prol do escopo que intenta transformar o efetivo
em ideal.
Nesse âmbito, faz-se mister enfatizar que, embora Nietzsche se oponha radicalmente à
filosofia tradicional, cujo estigma maior foi ter se debilitado em décadence, processo esse
iniciado com o socratismo, a filosofia a marteladas se prefigura, irrevogavelmente, enquanto
uma herança do racionalismo ocidental, que, entretanto, procura se comportar de forma
antípoda em relação aos seus pressupostos, uma vez que desconfia terminantemente da
concepção de que a racionalidade ou o intelecto humanos sejam absolutamente essenciais
para a interpretação do real, pois, segundo Roberto Barros:
Deduz-se, com isso, que a subsunção de uma perspectiva que vislumbra a realidade
pelo viés das conceituações, pontos fixos de apresentação do real, enlevadas pelos
determinismos próprios aos dualismos metafísicos, tais como: alma e corpo, verdade e
mentira, bem e mal, razão e irrazão, precisam ser questionados. Por conta disso, Nietzsche
propõe-se a adotar o corpo como fio condutor – e viés de interpretação da efetividade –, cujo
propósito é derrocar os maniqueísmos típicos da tradição filosófica. É necessário, para tanto,
escavacar as estruturas sobre as quais o pensamento ocidental fora alicerçado, a saber, os
conceitos e valorações depreciativos do corpo e da vida.
Dentre esses conceitos, encontra-se o viés inaugurado por Platão, o qual propagou a
cisão entre corpo e alma. Para o filósofo grego, o método por excelência consiste na dialética,
enquanto mecanismo de dialogo que permite às pessoas alçar uma compreensão mais elevada
acerca de determinados temas, por meio da contraposição e contradição de ideias que levam a
outras ideias como, por exemplo, no que tange a questão da alma, assunto circunscrito ao
mundo das ideias, e apartado do mundo das aparências sensíveis, responsáveis pelos enganos
e equívocos dos homens.
A alma, para o referido filósofo, habita o corpo, fonte de corrupção e engano, sendo
que a mesma é tida como imortal, enquanto o corpo é finito e corruptível. E para além de uma
simples crítica a Platão, é preciso empreender uma problematização da perspectiva
inaugurada pelo platonismo, como interpretação dos conceitos platônicos. A crítica
nietzschiana, desse modo, volta-se as posturas dualistas que distinguem corpo e alma, dando
maior ênfase a segunda, conforme esclarece Barrenechea:
Em resumo, o corpo, para Platão, como para toda uma tradição precedente oriunda
da perspectiva órfico-pitagórica, nada diz respeito à natureza do homem. Apenas
patenteia a falha, a queda originária. Trata-se de um outro, com o qual a alma
convive com muitas dificuldades, com muito pesar (Cf. Vernant, 2008: p. 459-460).
Os sentidos, vinculados à natureza corporal, enganam permanentemente, não ajudam
na procura da sabedoria; ao contrário, torna-se uma permanente tentação para
incorrer no erro, na falsidade, na debilidade moral. Assim, configurou-se desde
épocas longínquas uma visão do homem como um ser esquizofrênico, como uma
espécie de nostálgico centauro que sonha com o “outro” mundo, mas padece na
terra. A concepção que cinde homem em corpo e alma estabelece a separação, a
43
BARROS, R. de A. P. de. Complexidade da efetividade, realidade e perspectivismo. Revista Trágica: Estudos
sobre Nietzsche, Vol. 3, nº 2, 2º semestre de 2010. p. 113.
32
Desse modo, Platão, mais acima de tudo, o platonismo, através da separação entre
mundo sensível e mundo inteligível, acaba por possibilitar o ensejo para a desvalorização do
corpo, concepção esta apropriada pelo cristianismo. O homem torna-se o centro convergente
das teorizações platônicas a partir do momento em que o intelecto e a razão são
supervalorizados. Logo, o homem passa a ser detentor de uma essência, ligada ao plano do
ideal. Isto é, a alma passa a ser o âmbito mais privilegiado, ganhando realce em prejuízo do
corpo, arcabouço das paixões dissolutas que desencadeiam enganos e corrupção, o que pode
desvirtuar o intelecto do percurso que necessita trilhar até o conhecimento verdadeiro.
Assim, no momento em que o homem, influenciado pelo platonismo, passa a crer nas
concepções idealizadas decorrentes da cisão entre corpo e alma, a percepção acerca de sua
própria condição humana fica comprometida, pois, de um lado, terá os conceitos estáticos e
substanciais para se remeter a si mesmo, seja por intermédio da linguagem, cultura, filosofia e
moral, de outro, os instintos e sentimentos característicos do todo corpóreo, os quais não
podem ser simplesmente suprimidos por via da negação. A deflagração da ruptura entre os
aspectos corporal e intelectivo vai acarretar inúmeras tensões, posto que os instintos não
deixem, com isso, de se manifestar no indivíduo. As noções de instinto e pulsão, contudo,
serão abordadas de forma mais detalhada no último capítulo. No contexto atual, importa
demonstrar os perigos que Nietzsche vislumbra em Platão:
Minha desconfiança de Platão vai fundo, afinal: acho-o tão desviado dos instintos
fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao
cristianismo – ele adota o conceito “bom” como conceito supremo –, que eu
utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se soar
melhor, idealismo, antes de qualquer outra palavra. [...] Na grande fatalidade que foi
o cristianismo, Platão é aquela ambiguidade e fascinação chamada de “ideal”, que
possibilitou às naturezas mais nobres da Antiguidade entenderem mal a si mesmas e
tomarem a ponte que levou à “cruz”...45
Não à toa, Platão é visto com desconfiança por Nietzsche, afinal, contrariamente aos
helenos, tão afeitos à afirmação da vida em suas múltiplas possibilidades, aquele se afasta dos
instintos mais peculiares ao corpóreo, destilando a toxina da moral por todos os lados, a ponto
de o filósofo alemão considerá-lo uma espécie de anunciador do cristianismo. Já que,
enquanto agente empenhado em desvirtuar os gregos antigos da celebração da vida, pela via
44
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche: corpo e subjetividade. O percevejo Online. Volume 03, Número 02,
p. 1-18, agosto-dezembro/2011. p. 4-5.
45
GD/CI, X, §2.
33
aberta a negação do corpo, acaba por criar o campo fecundo para o estabelecimento da moral
cristã.
Ao contrário do que se propõe Nietzsche quando coloca o corpo e, como
consequência, a vida em papel de destaque no seio de sua filosofia, Platão institui a alma
como aspecto central de suas elucubrações. O filósofo alemão destaca ainda que a filosofia
platônica deve ser interpretada como uma preparação para a morte: “Trata-se, para Nietzsche,
de uma filosofia que prepara o homem para remeter-se ao além e, então, esta vida fica
subjugada à outra vida [...]. Foi assim que ele entendeu o que chamou de platonismo.” 46
Desse modo, fica claro que a distinção platônica entre corpo e alma, conforme visto, acaba
por atrelar o homem a uma existência que tem por finalidade a busca por um além, no sentido
em que a vida terrena passa a valer como etapa de preparação para outra forma de existência
que, transcorrida a dissolução do corpóreo, será alcançada pela alma imortal.
Outro aspecto que ficou relegado a um plano secundário, a partir da perspectiva
platônica alicerçada na cisão corpo/alma, e pela apropriação cristã articulada por intermédio
desse mesmo viés, foi o âmbito erótico. A natureza erótica do homem fora associada com
concepções pecaminosas. Ao ato da masturbação, por exemplo, foram agregadas as mais
bizarras doenças, e o prazer durante a relação sexual também fora rechaçado, uma vez que o
ato sexual era visto com fins à procriação. A filosofia tradicional, problematizada por
Nietzsche, nesse âmbito, assemelha-se aos mecanismos utilizados pelo cristianismo, pois
ambos estabelecem padrões de pensamento e conduta, razão e ascese, respectivamente, para o
encarceramento e negação do corpo. Logo, o todo corpóreo, assim como os impulsos e
instintos humanos são postos em um lugar subterrâneo. Posto isso, em MA I/HH I, Nietzsche
expõe:
Toda coisa natural a que o homem associa a ideia de mau, de pecaminoso (como até
hoje costuma fazer em relação ao erótico, por exemplo), incomoda, obscurece a
imaginação, dá um olhar medroso, faz o homem brigar consigo mesmo e o torna
inseguro e desconfiado; até os seus sonhos adquirem um ressaibo de consciência
atormentada. No entanto, esse sofrimento pelo que é natural é, na realidade das
coisas, totalmente infundado: é apenas consequência de opiniões acerca das coisas.
47
Conforme o filósofo elucida acima, todos os aspectos que remetem aos caracteres
naturais inerentes ao corpo humano, incluindo-se aí a maneira como o homem se expressa
eroticamente, são taxados de antinaturais, tanto pela metafísica quanto pela moral cristã. Ao
erótico, algo natural, associa-se a ideia de mau. Isso decorre, segundo ele, de uma psicologia
46
SOUSA, M. A. de. Alma em Nietzsche: a concepção de espírito para o filósofo alemão. São Paulo: Leya,
2013. p. 71.
47
MA I/HH I, § 141.
34
que busca tornar tudo o que é humano em algo suscetível de recriminação, combate e até
mesmo deboche. Os corpos e seus apetites são vistos como vergonhosos, depreciáveis e
pecaminosos. A própria concepção e o ato de procriação, segundo o filósofo, são
compreendidos como ruins, negativos, já que: “Sem dúvida o cristianismo afirmou que todo
48
homem é concebido e gerado em pecado...”. Visando “purificar” o corpo dos desejos
sexuais e do ato da concepção, as religiões pessimistas, conforme as descreve Nietzsche,
exaltam a vida ascética em detrimento da vida pulsional, a degenerescência dos afetos em
desfavor da multiplicidade de forças.
Logo, o que se quer de fato é transformar o homem e os seus aspectos corpóreos mais
naturais em teses morais pecaminosas. O prazer tornado pudor e vergonha; o desejo subtraído
em nome de ideais supraterrenos; dor e sofrimento supervalorizados através da negação da
vida. Fazer com que o homem sinta desprezo pela sua própria condição humana, esse é um
dos principais objetivos do cristianismo: “[...] veremos que os requisitos são exagerados, de
modo que o homem não possa satisfazê-los; a intenção não é que ele se torne mais moral, mas
que se sinta o mais possível pecador.” 49
Nietzsche (2005), uma vez mais, ressaltará o mundo antigo no qual os homens se
ocupavam do aumento da alegria de viver, caracterizado pelos cultos festivos, rituais
orgiásticos, danças, assim como também, do encanto e horror 50 perante as guerras, lutas e
batalhas, momentos esses em que todos os ciclos naturais, tanto de vida, quanto de morte,
eram celebrados. O corpo era celebrado, e seus estímulos auscultados em detalhes. Em
contrapartida, “no tempo do cristianismo um incomensurável montante de espírito foi
sacrificado em outra aspiração: de toda maneira o homem devia se sentir pecador e com isso
ser estimulado [...].” 51 Com o cristianismo, percebe-se que os estímulos são outros, contrários
ao campo das afecções, da afirmação da efetividade e do fisiológico, concernentes à criação
de fronteiras supramundanas, ideais, edênicas, responsáveis por incutir no homem a
necessidade de redenção, uma vez que tais homens se imaginam, de fato, pecadores.
Sob a influência da moral cristã, o homem despreza o corpo, a afetividade, o natural,
pois ao invés de buscar causas e consequências naturais para as grandes catástrofes, por
exemplo, justificará tais eventos a partir de explicações sobrenaturais: “[...] ao conceder-se,
igualmente por princípio, bem menor atenção às verdadeiras consequências naturais de uma
48
MA I/HH I, § 141.
49
MA I/HH I, § 141.
50
Sobre o horror e, por conseguinte, a crueldade, afirma Nietzsche: “A crueldade está entre as mais velhas
alegrias festivas da humanidade.” (M/A, I, §18).
51
MA I/HH I, § 141.
35
52
ação do que às sobrenaturais (as chamadas punições e graças da divindade).” Logo, a
opressão do natural, gera o temor à vida, pois promove uma desconfiança crescente em
relação às coisas terrenas, efetivas, em favor de uma reverência incondicional que beneficia
sentimentos superiores, tais como, o amor ao próximo, a comiseração, a compaixão etc.
Nesse sentido, com a moral cristã e o platonismo, obtém-se uma oposição psicofísica
que reverbera sobre a maneira pela qual corpo, morte, efetividade, são interpretados na
modernidade. Por conta disso, para Nietzsche, tais processos levaram ao declínio dos instintos
e, consequente, adoecimento do corpo. Assim, a filosofia tradicional e a história do
pensamento ocidental alimentaram o solo propício à interpretação do corpo, tal qual
conhecemos:
O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da
ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta – e frequentemente me
perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma
interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo. Por trás dos supremos
juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más
compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes ou de raças
inteiras. 53
Enfim, Nietzsche expressa que a busca desenfreada pela objetividade, seja no campo
das ciências ou da filosofia, como uma propriedade científica que permite estabelecer
afirmações precisas e passíveis de serem testadas, ou enquanto algo que possui validade
universal, respectivamente, revela-se uma obliteração às necessidades fisiológicas.
Além desse aspecto, o ponto de vista filosófico que erige a ideia e a pura
espiritualidade como parâmetros de interpretação do corpo, evidenciam, na verdade, uma má
compreensão do corpo, conforme enunciado por Nietzsche, pois tal compreensão se sustenta
em valorações morais e conceituações que não levam em conta os instintos e o caráter
pulsional que marcam a multiplicidade humana.
Desse modo, no próximo tópico, iremos investigar o corpo enquanto hipótese
interpretativa em Nietzsche e todas as nuances que compõem essa abordagem, especialmente
aquelas que se referem às dimensões fisiológica, psicológica e fisiopsicológica.
52
M/A, I, §33.
53
FW/GC, Prólogo, §2.
36
filosofia tradicional desde Platão. Dualismos estes responsáveis pelo estabelecimento de uma
visão dicotômica entre corpo e alma, mundo sensível e mundo inteligível, levando, com isso,
à compreensão de que o corpo seria um lugar de aprisionamento da alma. Segundo Nietzsche,
o filósofo grego foi o responsável pela instituição de uma metafísica de valores. Que espécie
de valores são esses? Qual o valor desses valores? São os questionamentos aos quais devemos
nos lançar com o intuito de reconsiderar muitos dos posicionamentos e dogmas instituídos
pela crença metafísica na concepção de verdade.
A partir da crença metafísica na concepção de verdade platônica, retiraram-se,
irrevogavelmente, os pressupostos ou alicerces mais basilares da moral cristã. Platão concebe
a ideia de verdade enquanto teoria mais elevada: “Com isso, a filosofia aparece em Sócrates e
mais ainda em Platão como autorreflexão do espírito a respeito de seus mais altos valores
teóricos e práticos, os valores do verdadeiro, do bom e do belo.” 54
O corpo, em contrapartida, pertencente ao mundo sensível, é considerado falho e
corruptível, especialmente para o platonismo. No cristianismo temos uma nuance aproximada,
contudo bastante peculiar. O corpo é desvalorizado, diminuído, tido como algo pertencente a
uma esfera concupiscente e secundária, porque é o lugar da mácula, do pecado, do sofrimento.
Ou seja, os adjetivos utilizados para descrever o corpo em Platão não são necessariamente
iguais aos utilizados na moral cristã. Mais uma vez, a problemática se perfaz em torno do
platonismo, posto que:
[...] enquanto o Cristianismo se refere à ação salvífica de Cristo como sendo um fato
histórico, o Platonismo se remete ao fato de que dispõe de um saber originário que
jamais foi modificado. De fato, neste saber nada há que possa ser modificado, uma
vez que a verdade é imutavelmente única e idêntica. Deste modo, o platonismo
assume em relação ao Cristianismo, bem como no que tange às outras religiões de
revelação, a mesma posição negativa: nada há que possa e deva ser revelado; a
verdade não tem planos de desenvolvimento. Esta mostrou-se aos grandes homens,
aos sábios da época originária, do mesmo modo de como se mostra hoje. Não
depende da vontade de Deus o fato de que a verdade ora se mostre e ora se esconda,
mas depende da fraqueza do homem, precisamente de seu intelecto, o fato de que
nem todos são capazes de conhecer a verdade do mesmo modo.55
Posto isto, para o platonismo, o homem deve se submeter à verdade absoluta, e tal
subsunção não permitiria ao mesmo nenhuma espécie de liberdade de escusa ante a soberania
da razão; já para o segundo, Deus seria o centro convergente em torno do qual os seres
humanos deveriam girar, tomando-o como embasamento e reflexo. Portanto, no caso do
54
HESSEN, J. Teoria do Conhecimento. Tradução: João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 8.
55
SANTOS, B. S. Platonismo e cristianismo: irreconciabilidade radical ou elementos comuns? Veritas. Revista
de Filosofia 48, p. 323-336, 2003. p. 332.
37
platonismo o homem deve caminhar no sentido da razão, enquanto na moral cristã, esse
mesmo homem deve se orientar pela intuição de Deus. De similar, ambas as concepções tem o
seguinte: caracterizam-se enquanto verdades absolutas, negando categoricamente a vontade
humana.
Nietzsche posiciona-se de forma contrária tanto ao ponto de vista metafísico, pautado
pela separação entre corpo e alma, quanto ao viés de interpretação da moral cristã, pelo fato
de esta submeter o homem à divindade. Nesse sentido, o filósofo alemão irá deflagrar o corpo
enquanto hipótese interpretativa para a filosofia, por compreender que aquele inaugura uma
criativa possibilidade de se pensar o homem, necessariamente distanciada dos dualismos por
meio dos quais este fora concebido até então, posicionamento este herdado, em certa medida,
de Arthur Schopenhauer, filósofo do qual Nietzsche pode ser considerado um antípoda em
muitos aspectos, especialmente nas obras que sucederam GT/NT, mas também uma espécie
de continuador de alguns posicionamentos desenvolvidos por aquele, e tal afirmação se torna
palpável se tomarmos como paralelo exatamente o primeiro livro publicado por Nietzsche,
baseado no quadro metafísico do filósofo de Danzig.
Seguindo as colocações de Ivan Soll no artigo intitulado Schopenhauer as Nietzsche’s
“Great Teacher” and “Antipode”56, é possível dizer que as convergências entre esses dois
filósofos deve ultrapassar a velha concepção de que a influência filosófica só se perfaz em
questões sobre as quais ambos estejam de acordo. É mais significativo pensar, pela
perspectiva do autor, que: “A influência que um filósofo exerce sobre outro é melhor
manifestada no desacordo do que no acordo que provoca.” 57
Nesse sentido, a influência schopenhauriana se faz sentir principalmente na
discordância, no desacordo que inspira, pois as influências, segundo Soll, podem ocorrer não
apenas quando concordamos com os pontos de vista elencados por um autor, mas também
quando nos revoltamos contra eles. É claro que Nietzsche sabia escolher seus “antípodas”
entre aqueles que representavam oponentes à altura de seu pensamento, dignos de seus
questionamentos, uma vez que se mantendo em confronto constante com adversários
desafiadores ele pôde desenvolver melhor seus próprios argumentos filosóficos, como enuncia
Soll (2013): “Em Schopenhauer, Nietzsche não encontrou apenas a fonte de algumas de suas
56
Título do artigo que traduzimos por: Schopenhauer um “Grande Mestre” e “Antípoda” de Nietzsche (SOLL, I.
Schopenhauer as Nietzsche’s “Great Teacher” and “Antipode. Oxford Handbooks Online. 2013-12-16, p. 1,
tradução nossa).
57
“[…] the influence that one philosopher exerts upon another is manifested in the disagreement as well as the
agreement he provokes” (SOLL, op. cit., p. 1, tradução nossa)
38
ideias mais importantes, mas também um dos seus mais dignos adversários. Nietzsche
descreveu Schopenhauer tanto como seu “Grande Mestre” e seu “Antípoda”. 58
Não se pretende aqui detalhar minuciosamente a profundidade e abrangência da
influência schopenhauriana sobre o jovem Nietzsche, entretanto é importante frisar, ainda
conforme Soll (2013), que a compleição das considerações sobre o Apolíneo e o Dionisíaco,
estratégicas para a sua concepção estética e sua crítica à cultura moderna, tiveram como
inspiração a leitura da obra O mundo como vontade e representação, adquirida em 1865,
quando o filósofo de Röcken ainda era um estudante em Leipzig.
A definição do Apolíneo em Nietzsche, desse modo, perpassa pelo enfoque dado por
Schopenhauer ao princípio de individuação: “poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo como a
esplêndida imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos
falam todo o prazer e toda a sabedoria da “aparência”, juntamente com a sua beleza” 59 .
Associar a imagem de Apolo ao principium individuationis, conforme descrito, pressupõe,
pelo viés schopenhauriano: “singularizar e multiplicar, no espaço e no tempo, o Uno essencial
e indiviso” 60. Sobre esse assunto, Ivan Soll nos diz o seguinte:
58
“In Schopenhauer Nietzsche found not just the source of some o this most important ideas, but also one of his
most worthy opponents. Nietzsche described Schopenhauer both as his “great teacher” and his “antipode”
(Ibidem, tradução nossa)
59
GT/NT, O principium individuationis, § 1.
60
Ver nota 23, de J. GUINSBURG apud NIETZSCHE, F W. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007. p. 144.
61
The individuation, which Nietzsche presents as the central precondition of the possibility of organic unity and
thus of the Apollonian experience of beauty, is already a fundamental feature of everyday experience and, as
Schopenhauer had cogently argued, a direct and necessary consequence of the spatio-temporal ordering of all
experience (SOLL, 2013, p. 9, tradução nossa)
39
62
No original: “Yet, rather than simply replacing the earlier primacy and monopoly of the intellect with that of
the Will, Schopenhauer provides a subtle and detailed account of the complex relations between the intellectual
and volitional sides or aspects of the human self.” (ZOLLER, 1999, p. 19, tradução nossa)
63
Will Durant nos fala acerca do pessimismo schopenhauriano na obra A história da filosofia: “Por que será que
a primeira metade do século XIX levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas – Byron na
40
valendo-se de seus conhecimentos acerca das ciências biológicas que estavam despontando na
época, descreverá a vontade como um querer perene, que não cessa, ainda que satisfeito. O
mundo é vontade, tudo o que existe só o é em decorrência da vontade. Entretanto, sendo a
vontade inconsciente, ela necessita da ação humana para alcançar seu objeto e, por
conseguinte, seu querer. Nesse sentido, o mundo é fenômeno, sendo a objetividade da vontade
a sua manifestação enquanto fenômeno e o que é externalizada é uma parcela desconhecida da
essência desta, que não pode ser conhecida.
Para o filósofo alemão, a vontade se caracteriza pela luta e conflito constantes, porque
sempre que uma vontade é saciada, cederá lugar a uma nova vontade, premente por satisfação,
em um processo ininterrupto: “O desejo, por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo
provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina a excitação, porém o desejo, a
necessidade, aparece em nova figura...”. 64
Compreende-se a partir das afirmações acima que Schopenhauer afasta-se da tradição
filosófica, a qual enfatizava o predomínio do intelecto e da razão em detrimento da vontade,
do querer. O filósofo propõe, ao contrário, uma preponderância do querer frente à razão.
Como crítico da razão, portanto, institui que o princípio norteador do mundo seria a vontade,
princípio esse fortemente “irracional”, impossível de ser alcançado ou transcrito pela
racionalidade.
Schopenhauer, assim, postula uma metafísica da vontade, onde a vontade é
identificada com a coisa-em-si, prerrogativa para a concepção de que não existe nenhuma
espécie de causa inteligente para o mundo, assim como também, para a afirmação de que a
vontade identifica-se com o corpo, sendo este finito. Para Maria Lucia Cacciola, a fonte da
metafísica da vontade pode ser assim descrita:
Assim, é essa Metafísica da Vontade que vem suprir a ausência da metafísica
exigida, segundo Schopenhauer, pela filosofia crítica. Sua fonte é deslocada do
supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em
ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a
metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como
ser corporal finito. 65
Inglaterra, De Musset, na França, Heine na Alemanha, Leopardi na Itália, Púshkin e Lermontof na Rússia; um
grupo de compositores pessimistas – Schubert, Schumann, Chopin, e até mesmo o Beethoven de sua última fase
[...]. e, acima de tudo, um filósofo profundamente pessimista – Arthur Schopenhauer?” (DURANT, W. A
história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 285).
64
SCHOPENHAUER, MVRI, §57-60.
65
CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994. p. 23.
41
66
SCHOPENHAUER, MVRI, §60.
42
67
JGB/BM, Dos preconceitos morais, §19.
68
JGB/BM, Dos preconceitos morais, §19.
69
Alguns nomes alusivos a essa chave naturalista de investigação do pensamento nietzschiano são: Christopher
Janaway, Richard Schacht e Brian Leiter.
70
Sobre o posicionamento nietzschiano acerca do naturalismo ou mesmo a respeito da caracterização de
Nietzsche enquanto pensador naturalista, Richard Schacht afirma o seguinte: “Essa é uma caracterização com a
qual muitos vieram a concordar — ao menos na parte da comunidade filosófica em que predomina uma
mentalidade analítica. Mas existem muitos tipos de coisas chamadas ‘naturalismo’ na literatura filosófica; e seria
um erro supor que qualquer uma delas em particular é aquela esposada por Nietzsche, ou à qual ele tenderia —
especialmente porque existem alguns tipos de naturalismo acerca dos quais ele é bastante desdenhoso, e até
contundentemente crítico.” (SCHACHT, 2011, p. 36-37).
43
nietzschiana, tais como a recusa à metafísica tradicional, e a tudo o que caracteriza esse tipo
de vertente interpretativa, posto que evidencia uma ênfase sobre o corpo, a partir da afirmação
dos impulsos e afecções estritamente corpóreos, demonstrando, assim, que Nietzsche estaria
propondo um retorno do homem à natureza. Contudo tais preceitos enfatizados por Janaway
serão descritos por Brian Leiter como um “naturalismo de lista de lavanderia”, num claro
confronto de opiniões entre os dois comentadores acerca do pensamento de Nietzsche.
Deve-se ressaltar também a vertente interpretativa que tem como expoentes
contemporâneos Barbara Stiegler, Éric Blondel e Wilson Frezzatti, dentre outros, os quais
buscam situar as problematizações em torno do pensamento de Nietzsche e sua relação com a
biologia. Frezzatti é bastante contundente em frisar, por exemplo, que:
Fica evidente, conforme o excerto, que Nietzsche nutriu profundo interesse pelas
teorias científicas de sua época, a ponto de buscar avidamente se familiarizar com as obras
produzidas no cerne de varias ciências. Mas, é importante deixar claro que o filósofo não
buscava uma simples transposição ou assimilação dessas teorias para a sua filosofia. Ele se
preocupava, na verdade, com uma incorporação que não subjugasse as suas próprias
reflexões, provavelmente assimilando alguns aspectos em detrimento de outros, em respeito,
acima de tudo, às suas interpretações, originais e particulares.
Não pretendemos aqui adentrar no mérito dessa discussão, tampouco descrever de
forma detalhada seus meandros, o que almejamos de fato, sendo este um dos propósitos da
presente argumentação, é evidenciar que Nietzsche estava fortemente ligado às pesquisas
científicas, e mais especificamente biológicas, de sua época, e tal aspecto não deixou de ser
observado por seus comentadores. Por conta disso, têm-se as recentes abordagens analíticas
que apontam a vinculação do pensamento de Nietzsche a um naturalismo flagrante. O que nos
interessa mais diretamente é ressaltar o quanto tais argumentações instituem o corpo como
centro convergente interpretativo.
No transcurso dessas argumentações, alguns comentadores de Nietzsche afirmarão o
interesse do filósofo pelas ciências naturais. Schatcht enunciará, tendo em vista tal interesse,
que: “[...] o naturalismo de Nietzsche é uma modalidade nova e diferente, devidamente atenta
71
FREZZATTI JUNIOR, W. A. Nietzsche contra Darwin. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 136.
44
tanto aos tipos de fenômenos e aspectos das coisas que as ciências naturais são boas em
descrever e explicar (à sua maneira), quanto, de maneira diversa, aos processos históricos ”. 72
O jovem Nietzsche, portanto, buscou entrar em contato com as investigações
científicas de sua época, tendo cogitado, inclusive, retornar a universidade para estudar Física
e Matemática73, além de ter se embasado em estudos biológicos e físicos para elaboração de
algumas de suas principais teorias, tais como: forças, centro, quantum etc. Na maturidade, seu
envolvimento com as ciências naturais assumiu novas direções com o desenvolvimento das
noções fisiológicas.
Wilson Frezzatti Junior (2006) põe em relevo as nuances fisiológicas que subsidiam o
enfoque nietzschiano em torno da cultura, por exemplo, discorrendo que Nietzsche fora o
primeiro filósofo a abordá-la de forma contundente. Nesse sentido, o homem, assim como
todas as produções humanas, dentre as quais, a moral e a própria filosofia, prefiguram-se
enquanto expressão de determinados estados fisiológicos, e estes dizem respeito a um
conjunto de impulsos, que em hierarquia formam uma constituição saudável e criadora; e em
desordem, promovem o adoecimento do todo orgânico, levando à busca da mera conservação.
Observa-se que Frezzatti (2006, p. 24) destaca, antes de qualquer coisa, os
pressupostos biológicos que emergem da fisiologia de Nietzsche, sem, contudo, deixar de
levar em consideração que a “fisiologia” esboçada na filosofia nietzschiana ultrapassa o
domínio biológico, uma vez que se espraia igualmente para o caráter inorgânico e para as
produções humanas, conforme dito antes. Assim, o fisiológico deflagra tanto aquilo que
determina o ser humano em uma perspectiva somática, concernente às funções orgânicas e ao
conjunto de forças e impulsos que o regem, quanto às produções humanas e os aspectos
inorgânicos. Tal delimitação demonstra-se essencial à concepção de corpo em Nietzsche,
segundo o que explicita o comentador:
72
SCHACHT, 2011, p. 72-73.
73
Conforme esclarece Scarlett Marton no início do prefácio escrito à obra de W. Frezzatti, A fisiologia de
Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia.
74
FREZZATTI JUNIOR, W. A. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2006. p. 25.
45
75
Segundo contribuição de Christof Windgätter, com o verbete Fisiologia, para o Léxico de Nietzsche: “Com
efeito, Nietzsche, em razão de sua doença que durou a vida toda, ocupa-se da recuperação e da teorização de
estados corpóreos, impulsos, estímulos, sintomas etc.” (NIEMEYER, 2014, p. 223).
76
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §3.
77
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §3.
78
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §4.
46
pouca importância relegou à realidade. Ele institui uma filosofia da imanência que visa
reconstruir os percursos necessários a uma nova compreensão dos fatos. Compreensão essa, é
bom frisar, imbricada em um entrelaçamento indissociável entre filosofia e fisiologia, a qual
intenta restabelecer ao corpo e aos processos orgânicos um papel de relevo. Tal afirmação
reitera a delimitação particular de cada organismo, em suas características mais intrínsecas,
demonstrando a sua singularidade, opondo-se, assim ao estabelecimento de princípios
valorativos absolutos que se esforçam por generalizar o homem e universalizar o mundo. Para
o filósofo alemão, filosofia:
[...] tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a
busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até
agora baniu. Uma longa experiência, trazida por tais andanças pelo proibido,
ensinou-me a considerar de modo bem diferente do desejável as razões pelas quais
até agora se moralizou e se idealizou: a história oculta dos filósofos, a psicologia de
seus grandes nomes surgiu-me às claras. Quanta verdade suporta? Quanta verdade
ousa um espírito? 79
Isto posto, o que Nietzsche entende por filosofia relaciona-se, sem dúvida, a uma
busca incessante por tudo aquilo que até agora fora apresentado como questionável no existir.
O corpóreo e todos os processos orgânicos foram classificados como réprobos, corruptíveis e
contraproducentes no decurso da filosofia metafísica; depreciados a favor de uma moralização
dos costumes; denegridos em prol de uma idealização que desqualifica a vida; enfim, banidos
pela moral vigente. Nietzsche não ficou alheio a isso, por isso buscou perscrutar “a história
oculta dos filósofos” e todo o castelo de pretensas “verdades” nas quais arvoraram seus
pensamentos, para fazer emergir daí o corpo enquanto fio condutor, antes encoberto e
solapado.
O cerceamento do corpo e seus processos orgânicos impuseram-se enquanto máximas
irredutíveis entre os metafísicos e os moralistas, pois era necessário tiranizar a “natureza”,
para dominá-la. No decorrer de um longo processo de coerção se solidificaram os valores
morais. As artes, a linguagem, os governos, os pensamentos e os costumes foram
vilipendiados e/ou tiranizados em favor de leis e normas arbitrárias que intentavam se
estabelecer como “naturais”, levando os indivíduos a aceitá-las de forma supostamente “livre”
e “espontânea”. Por isso Nietzsche irá afirmar que: “Toda moral é, em contraposição ao
laisser aller [“deixar ir”], um pouco de tirania contra a “natureza”...”. 80
Tentar situar a natureza em um determinado ponto fixo, segundo Nietzsche, fora o
devaneio dos filósofos até então. Escamotear a existência a favor dos ideais ou morais
79
EH/EH, Prólogo, § 3.
80
JGB/BM, Máximas e interlúdios, § 188.
47
estabelecidos, posto que: “vocês se obrigaram por tanto tempo, tão obstinadamente, tão
rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver
de maneira diversa...” 81, colocando-se perante a mesma com austeridade e total indiferença
em relação aos males físicos e morais, como se fosse possível viver apenas em conformidade
com a razão, de modo exemplarmente antagônico às afecções orgânicas.
A propósito disso, deve-se situar o contexto da filosofia de Nietzsche em um viés
“fisiológico”, não apenas porque ele fez ruir os castelos metafísicos construídos sobre
“verdades” e valores absolutos que restringem a vida, e sim novamente pelo fato de ele
compreender o corpo humano como uma combinação de fatores instintivos, agregando em si
múltiplas expressões vitais, assim posto, o que o filósofo alemão apreende por “fisiologia” se
refere “[...] aos processos de assimilação e regulação do organismo como um todo e aos
instintos e atividades que potencializam ou diminuem a sua vitalidade, incluindo assim tanto o
âmbito ‘físico’ (digestão, circulação, ruminação), quanto o âmbito ‘psíquico’...”. 82
O âmbito psíquico contempla, conforme Bittencourt (2011, p. 68), “os afetos, os
instintos, os estímulos nervosos”, aspectos esses que não podem ser circunscritos pela razão
ou consciência pensante, pois nos afetam de forma inconsciente, sem que tenhamos a
capacidade de descrevê-los ou defini-los de maneira imediata, posto que os liames da
excitação nervosa ou instintiva nos sejam, em grande parte, desconhecidos.
MA I/HH I, nesse sentido, já antecipa algumas dessas questões, entretanto, de forma
introdutória. O través psicológico descrito na referida obra aproxima-se mais da pesquisa da
linguagem e dos subsídios históricos que propriamente da perspectiva fisiológica, pois,
segundo Itaparica (2002, p. 61), somente em JGB/BM, Nietzsche irá traçar um percurso mais
elaborado inter-relacionando de forma vigorosa as temáticas da linguagem, história e
fisiologia, “que tem como eixo a doutrina da vontade de potência e, como pano de fundo, a
questão do niilismo e suas consequências para a civilização.” 83
O soslaio psicológico pode ser evidenciado em MA I/HH I, por exemplo, no capítulo
segundo, aforismo 35, onde o filósofo irá apresentar “as vantagens da observação
psicológica” para a vida. Segundo Nietzsche (MA I/HH I), a vida afirmada em todos os seus
aspectos, incluindo-se os negativos ou cruéis, pode ser serenada pela esguelha da observação
psicológica, sendo essa afirmação bastante reconhecida em épocas passadas, mas quase
81
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 9.
82
BITTENCOURT, R. N. Nietzsche e a fisiologia como método de interpretação de mundo. Revista Trágica:
estudos sobre Nietzsche. Vol. 4, nº 1, pp. 67-86, 1º semestre de 2011. p. 68.
83
ITAPARICA, A. L. M. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí; Editora UNIJUÌ, 2002.
p. 61.
48
84
MA I/HH I, Contribuição à história dos sentimentos morais, § 35.
85
MA I/HH I, Contribuição à história dos sentimentos morais, § 38.
86
EH/EH, Prólogo, § 2.
49
mereço, que me leia como os bons filólogos de outrora liam Horácio”. 87 Segundo Giacóia Jr.,
a psicologia em Nietzsche deve se denominar “grande psicologia”:
tem sua perspectiva, que ele desejaria impor como norma a todos os demais impulsos”. 91
Logo, o real como um todo deve ser pensado através da tessitura da vontade de poder, em
uma possibilidade interpretativa que estabelece uma ruptura efetiva com o pensamento
filosófico projetado pela tradição:
Lado a lado com essa nova possibilidade de interpretação do real promovida pela
hipótese da vontade de poder nietzschiana responsável por uma cisão com o pensamento da
tradição, conforme visto, tem-se a esfera inconsciente de nosso psiquismo, representada pelas
vontades, sentimentos e afetos, por meio da desestruturação do primado da consciência e
proposição do corpo enquanto hipótese interpretativa.
Tal proposição, entretanto, só é possível para ele se levar em conta uma articulação
muito íntima entre história, psicologia, filosofia, fisiologia, dentre outras áreas de
conhecimento 93 . Logo, o esforço do filósofo reside naquilo que ele irá denominar de
fisiopsicologia:
91
Nachlass/FP 7 [60].
92
CABRAL, A. M. Nietzsche e a semântica da vontade de poder. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche.
Vol.2, nº1, pp.20-37, 1º semestre de 2009. p. 21.
93
Para uma discussão mais aprofundada, cf. Nietzsche como psicólogo, de Oswaldo Giacóia Jr., obra na qual se
encontra a delimitação precisa da psicologia no pensamento de Nietzsche em toda a sua especificidade.
94
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 23.
51
O intelecto humano, tão celebrado pela civilização como um ponto de distinção para
com os demais animais, é visto por Nietzsche como um acontecimento menor se comparado à
exuberância e complexidade da natureza, e que, na “história universal” durou apenas um
minuto, ou seja, é insignificante perante outras incomensuráveis medidas e reais potencias. É
a partir dessa equivocada visão de superioridade de si que o homem estabelece medidas, cria
valores, estabelece verdades. Arbitrariamente, mas guiado pela razão e pelo conhecimento, o
homem instaura esse saber como o mais alto recurso do homo sapiens. Com ele, poder-se-á
agora refletir sobre a efetividade da vida, os deveres, as leis que precisam gerir não somente a
sociedade como um todo, mas o sujeito individualmente. Percebe-se, portanto, que Nietzsche
argumenta sobre uma forma singular do homem que aprisiona a si mesmo através de correntes
e celas, mas estes não são grilhões comuns, mas aqueles que aprisionam o corpo na sua
totalidade, incluindo-se ai o próprio pensamento, uma vez que até mesmo a forma de
95
WL/VM, §1.
52
conceber o mundo e as coisas agora se mostra marcada por esse intelecto, por esse caráter de
suposta superioridade do homem em relação aos demais seres vivos.
O recurso do intelecto é, conforme Nietzsche, o recurso desenvolvido pelos animais
humanos menos capazes, aqueles que, superados fisiologicamente, tenderiam, se não fosse o
artifício do conhecimento, essa trapaça para com a natureza, a sucumbir: “É notável que o
intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos
mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência”. 96
Os animais deficitários, incapazes de proteção, presas fáceis para os demais,
desenvolveram o intelecto como tentativa de subsistência, o que, conforme Nietzsche, retira o
intelecto de seu alto grau de importância e o situa no plano da artimanha, do artifício como
meio de evitar o perecimento diante de presas e chifres mais afiados e mais adaptáveis para a
existência.
Conforme a visão nietzschiana, o intelecto não aspira à verdade, uma vez que aquele é
um recurso de sobrevivência, uma dentre tantas ferramentas do todo corpóreo que foi eleita
como a principal pelo homem, no que se configura o seu erro, posto que desse ponto em
diante, sua existência seja marcada por essa única vertente, renegando outras, tão ou mais
importantes que esta. O homem, portanto, nunca esteve inclinado à verdade, uma vez que o
seu próprio corpo não está voltado para este propósito, isto é, encontrar a “coisa em si”, o
puro, o eterno, o uno, o indissociável, o verdadeiro. 97
Nessa busca pela chamada “verdade”, a inclusão da linguagem no contexto se faz
inevitável, pois será através desta que o homem tentará fixar valores que sejam válidos para si
e, portanto, obrigatório a todos. Dessa forma, têm-se os primórdios do processo de estipulação
de verdade, que, por conseguinte, também gera a mentira:
Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é
descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a
legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui
98
pela primeira vez o contraste entre verdade e mentir.
96
WL/VM, §1.
97
Roberto Barros corrobora com bastante perspicácia acerca dessa questão, pois esclarece de que maneira a
linguagem, dado o seu caráter simbólico, servirá ao estabelecimento de generalizações, à criação de ideias fixas e
imutáveis e a conceituação do efetivo, engendradas pela metafísica, a qual, apropriando-se desse simbolismo
linguístico, estabelece a busca pela verdade: “Para Nietzsche o aparato simbólico mais refinado da atividade
representativa do homem é, a saber, a linguagem. É com ela que efetuamos as nossas primeiras generalizações,
das quais decorrem as identidades e as regras dos conceitos que, para ele, passaram a justificar e a servir de
fundamento a toda aspiração humana pela verdade, esta baseada em princípios como universalidade e exatidão.
Disso decorrem as dicotomias metafísicas e a crença na essencialização do real.” (BARROS, 2010, p. 113).
98
WL/VM, §1.
53
É preciso ter em mente que a busca de uma verdade e a fixação desta através da
linguagem objetivava princípios bastante concretos, uma vez que a linguagem, além de
permitir uma maior interação social99, também serviu, como se viu no fragmento acima, como
legisladora basilar desses fundamentos que desse momento em diante seriam utilizados para
regular a vida em grupo, união esta necessária ainda, pois a comunidade, entre outros
benefícios, aumenta a chance de sobrevivência e de vitória em um possível confronto.
Nesse aspecto de necessidade social, a linguagem uniformiza determinadas práticas,
que, no âmbito do coletivo, convergem para regras que, posteriormente, com a tradição,
estratificam-se em leis. Sobre o assunto, aponta Itaparica:
99
Sobre o referido assunto, complementa Gonçalves: “Necessitamos da linguagem, dirá Nietzsche, porque
necessitamos do outro uma vez que, se chegamos ao outro, só o fazemos através de signos de comunicação. Na
sua origem, a linguagem é a denúncia da fraqueza, da carência e da indigência humanas; é a ‘queda’ por
excelência. Ela revela o nosso limite, já que Nietzsche não a concebe sem conceber antes a prévia consciência de
si. Entretanto, este mesmo gesto que marca o limite da consciência do “Eu sou” também o abre no infinito
interpretativo por vir. Este antagonismo, que está desde sempre presente na linguagem, pode ser talvez sua
própria condição.” (GONÇALVES, 2010, p. 4).
100
ITAPARICA, 2002, p.62.
54
101
MA I/HH I, § 216.
102
WL/VM, §1.
103
VM/OS, §184.
55
Certa dose de ceticismo traz, sem dúvida, a dança. Pelo movimento, ela leva a
suspeitar de tudo que é rígido e inerte. Faz vacilar a crença numa vida melhor, mais
feliz, eterna; põe a balançar a certeza de um mundo verdadeiro, essencial, imutável.
Com a dança, desaparece toda a transcendência; com ela, vem abaixo toda a visão de
104
mundo.
104
MARTON, S. Extravagâncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2º ed, São Paulo: Discurso Editorial e
Editora Unijuí, 2001. p. 58.
56
105
Dostoiévski explana sobre tal questão em Recordações da Casa dos Mortos. O escritor russo narra acerca dos
homens que suportam tudo, como o sofrimento e até se acostumam a ele, assim, diz o escritor: “Somos capazes
de tolerar tudo, somos os únicos entes criados capazes de se afazer a isso [...]. Talvez tal conceito seja a melhor
definição cabível ao homem!”. (DOSTOIÉVSKI, F. Recordações da casa dos mortos. Tradução de Nicolau
Peticov. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. p.23).
106
MARTON, 2001, p. 59.
107
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
57
108
ainda assim, impõe-se como manual de propagação da fé cristã . Um deus que exige
sacrifícios, que ordena assassinatos, que incendeia cidades inteiras, sempre sob o estandarte
da punição dos pecados e a incursão de medo sobre a possibilidade de castigo. Mas esse
mesmo ídolo é, ironicamente, posto como o deus do amor, do perdão e da fraternidade. Tem-
se, portanto, um deus fixo, tal como a linguagem, que não se modifica, que se mantêm inerte,
pois seus valores são inquestionáveis, do contrário, sentencia-se o pecador com excomunhão,
o que, por sua vez, geraria a perdição eterna da alma de tal indivíduo, conforme a concepção
cristã.
Ao apresentar a possibilidade de crer em um deus que saiba dançar, Zaratustra aponta
para um universo de infinitos caminhos, de infinitas interpretações. Nesse aspecto, a própria
linguagem tornar-se-ia mais flexível, fluida, de significados que se alteram, se
complementam, se adequam à capacidade imaginativa e criadora do homem. É preciso leveza,
contrário daquilo que é pesado, que força o homem a inclinar-se para baixo, curvar-se diante
das leis, das regras que devem ser seguidas, tal como o camelo nas três transformações de
Zaratustra, que será abordada mais adiante. A leveza, o alçar de voo, condições indispensáveis
para todo corpo que se quer dançarino, estágio alcançado por Zaratustra: “Agora sou leve,
agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim”. 109
O que vem a ser o deus cristão? É o deus do peso, do fardo, dos deveres, das leis a
serem seguidas, a divindade que põe sobre o homem as responsabilidades, as diretrizes que
não podem ser desrespeitadas. No cristianismo o homem já nasce detentor do pecado original,
o de Adão e Eva, marcado pelo estigma de um erro que não cometeu, mas que lhe é imposto,
pois desde cedo o embargo dos instintos humanos é efetuado no plano religioso. Não pode,
não deve, não lhe é permitido, uma série de negativas que o ensinam, desde os primeiros
momentos de vida, de que existe uma força que atua sobre a vida dos seres humanos e que
esta precisa ser respeitada e louvada. Tem-se, desse modo, um deus que impõe seus valores,
que impede o movimento do homem, que o encarecera em si mesmo, diante do seu peso e da
sua imobilidade.
Zaratustra é o porta-voz que anuncia a boa-nova: a de que o homem pode ser tornar
um dançarino, que ele pode ser livre, e aponta para o corpo como solução, mas não qualquer
corpo, mas aquele que saiba dançar, essencialmente, pois neste corpo depositam-se as
108
Em VM/OS, § 98, Nietzsche evidencia que o autoproclamado excesso de fé cristã não se demonstra suficiente
para que os praticantes dessa crença se mantenham a ela aferroados, uma vez que necessitem retornar
constantemente aos ensinamentos bíblicos para reafirmá-la, sobretudo porque são os seus atos e palavras que
atentam de forma incessante contra a sua própria fé.
109
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
58
esperanças do homem, não no futuro, nem no além, muito menos na figura de um deus
raivoso, mas em si mesmo. O corpo, através de sua linguagem particular, aprende e ensina, é
fonte de vida, não é um símbolo esquematizado, como são os símbolos da linguagem, que
possuem a pretensão de tudo explicar e definir, criando a falsa ilusão de saber: “Símbolos são
todos os nomes do bem e do mal: não enunciam, apenas acenam. É tolo quem deles espera
saber!” 110
A dança, espontânea, torna o homem um espírito criador, alegre, pois o ressentimento,
a angústia que haviam sobre si, sobre o seu corpo, foram desfeitas com os movimentos, o que
o conduz a reaprender o ato de ficar em pé, ereto, pois somente nessa postura, não curvado,
que ele aprenderá a dar os mais belos e sadios saltos, retornando à percepção dionisíaca do
mundo:
Movimento, cadência, leveza, a dança é ainda alegria. Não é por acaso que
Nietzsche faz dela sua cúmplice ao elaborar a própria visão de mundo. Eliminando o
dualismo entre mundo verdadeiro e mundo aparente, instaurado pela metafísica,
mantido pela religião cristã, perpetuado por doutrinas morais, o filósofo julga que só
111
a alegria dionisíaca está à altura das velhas concepções.
Mas não basta suprimir o dualismo entre o mundo supraterreno e o físico, é preciso ir
além, para tanto Nietzsche propõe pensar o homem e o mundo a partir do corpo, sendo este
não fixidez, movimento incessante e, sobretudo, perspectiva. Posto isso, não é possível
delimitar o homem unicamente enquanto substância pensante, tampouco encerrá-lo em visões
dualistas. O homem é um ser plural, multifacetado. É preciso, portanto, desfazer as velhas
concepções de mundo sustentadas pela tradição para dar lugar a uma visão interpretativa dos
fatos.
A tarefa não é simples, nem curta, uma vez que o homem utiliza a linguagem desde os
seus primórdios para criar o seu próprio mundo, no qual os objetos foram substituídos por
palavras, e estas, no decorrer do tempo, tornaram-se verdades eternas. É preciso, como ponto
de partida, que o homem diga sim à vida e supere o medo ou a desconfiança contra o natural,
como aponta Nietzsche, que se efetivou através da criação de termos como “deus”, “vida
eterna”:
[...] “arrependimento”, “remoroso”, “tentação do Demônio”, “presença de Deus”
[...]. Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com enorme
desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia,
desvaloriza e nega a realidade. Somente depois de inventado o conceito de
“natureza”, em oposição a “Deus”, “natural” teve de ser igual a “reprovável” – todo
110
Za/ZA, Da virtude dadivosa, p.73.
111
MARTON, 2001, p. 65.
59
esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (- a realidade! -), é a expressão de
112
um profundo mal-estar com o real...
112
AC/AC, § 15.
113
Sobre a questão, afirma Gonçalves: “Desse modo, toda a crítica nietzschiana sobre a linguagem incide sobre
esta pretensão metafísica de se encontrar unidades e identidades no mundo para em seguida constituir em terra
firme um conhecimento último e verdadeiro sobre a vida.” (GONÇALVES, A. Linguagem e psico-fisiologia na
filosofia de Nietzsche. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche. Vol. 3. nº 2. p. 01-15. 2º semestre de 2010.
p.8).
60
Conforme Marton, a dança representa a mudança constante, que é e não é, pois não
segue princípios rígidos, uma vez que sua natureza é movimentar-se, é nunca estar parada,
sempre em constante oscilação, tal como as coisas. Nada no mundo é fixo, tudo é perecível,
então por que falar em coisas eternas, imortais? Por que criar deuses que não morrem e que,
ao contrário, desdenham da finitude humana, da metamorfose do homem de corpo em resíduo
e deste em corpo novamente? Por isso Nietzsche propõe a metáfora da dança e leveza a
personificar cada gesto, cada movimento. Nesse ínterim algo é construído e no mesmo
instante destruído, pois aquele movimento não se fixou na história, durou um instante, uma
vez que, depois dele, outros virão, sempre e sempre. A linguagem deve seguir esse percurso
do homem, deve se adequar à efemeridade de um determinado homem que futuramente dará
lugar a outro homem e assim continuamente em um retorno constante, no qual há coisas que
se fixam, mas se desfazem no mesmo instante, uma vez que o que seria a existência de um
único homem no decorrer da história universal? Um segundo, responderia Nietzsche, talvez
até menos.
No próximo capítulo, abordar-se-á a noção de corpo à luz da segunda dissertação da
GM/GM, relacionando-a aos parâmetros da memória e esquecimento, a noção de consciência,
à má consciência e adoecimento do corpo e ao advento da modernidade e do niilismo. Pois tal
abordagem ganha contornos bem definidos na referida obra, o que nos permite vislumbrar um
panorama mais abrangente do desenvolvimento dessas nuances no pensamento maduro de
Nietzsche.
114
MARTON, 2001, p.68.
61
Segundo a mitologia grega, corre nos domínios de Hades, deus do mundo dos mortos
ou mundo inferior, um rio denominado Lete, cujas águas possuíam a capacidade de apagar as
memórias de quem as bebesse. Dependendo da quantidade, podia-se esquecer de um dia, um
ano ou uma vida inteira. Tal rio possuía, além desta, outra função mais específica: apagar as
memórias das almas que iriam reencarnar. O esquecimento, nesse processo, é visto como uma
exigência, do contrário a nova existência da alma não se efetuaria de forma harmoniosa.
Edmund Husserl (apud RICOEUR, 2007, p. 52), argumenta sobre a experiência de um
chamado “ponto-existência”, que marcaria a vivência do indivíduo em um ponto anterior e
outro posterior a um determinado evento. Tal pensamento pode ser exemplificado tanto em
acontecimentos felizes, quanto tristes, dolorosos, que marcariam a vida do indivíduo de forma
indelével. Entretanto, é de se observar que entre a alegria e a tristeza são estabelecidos
parâmetros completamente distintos, uma vez que a segunda parece exercer uma força que
perdura de forma mais significativa do que a primeira. Um homem agredido, ofendido,
humilhado, certamente reterá em suas lembranças tal momento desagradável de forma mais
consistente do que reteria a recordação de um abraço, ou um presente recebido. Nesse caso,
pode-se dizer que o esquecimento não agiu como uma força inibidora diante da deplorável
situação, não ocorreu, para aproximarmos a discussão de Nietzsche, uma adequada digestão.
A água do Lete não foi ingerida.
Nietzsche, por sua vez, aponta para os aspectos negativos do excesso de memória. Ou
seja, quando o fato doloroso vivenciado se torna uma constante nas lembranças do indivíduo,
isso o impede de ultrapassar tais recordações, mantendo-o refém das mesmas, e essas
rememorações, ao invés de torna-lo mais forte fisiológica ou psiquicamente, o adoecem, pois
ficam retidas, acumulando-se. Apresentam-se aqui as primeiras relações com o corpo, uma
vez que o apego excessivo à memória incida, de imediato, sobre o corpo e através do corpo,
seja por meio de uma agressão, uma ofensa ou um ato de despeito e negligência. O homem
forte possui a capacidade do esquecimento efetivo, ou seja, não o tipo de esquecimento
temporário, cuja lembrança retorna de tempos em tempos, como no indivíduo fraco, que, por
sua vez, mediante a incapacidade do efetivo esquecimento, não retrocede a um estado
62
saudável, uma vez que o antigo, o pretérito, não permitirá que o novo surja, prejudicando-se,
dessa forma, inclusive “as funções orgânicas, as mais nobres”. 115 Assim, atesta Nietzsche:
As diversas instituições que regem a vida humana visam mais do que se propõem: as
escolas, por exemplo, não se sustentam na exclusiva função de instruir, mas também de
doutrinar. A escolha das matérias, a forma como o conteúdo é repassado, a escolha criteriosa
e regimentar das temáticas, tudo isto visa um ou mais objetivos que não somente o
educacional. A forma de organização, as filas, a disposição das cadeiras em um simples
ônibus, demonstram que a doutrinação do homem, o seu posicionamento em uma lógica
organizacional com fins doutrinatórios e lucrativos está presente e se faz sentir em
praticamente todos os lugares, sagrados ou mundanos, urbanos ou rurais. O animal homem
precisa ser domesticado, para que apresente um comportamento confiável, podendo-se, assim,
afagá-lo à cabeça tal como se faz a um animal domado. Mas é preciso observar que essa
domesticação nada mais é do que o resultado acabado de um processo anterior, ou seja, da
crueldade118 como forma de estabelecimento de uma consciência.
A promessa está intrinsecamente interligada com a memória, sem esta não haveria
aquela. Mas é justamente nessa promessa que se encerra uma problemática consistente aos
olhos de Nietzsche, uma vez que a promessa estabelece uma desordem de natureza psíquica,
sobretudo porque retém o indivíduo em um lugar fixo, que o impede de progredir, pois agora
se encontra preso ao passado. A ação mostra-se, com a promessa, embargada, pois a vontade
não é mais senhora de si, não se efetiva de modo espontâneo, pois o passado, a lembrança, a
dominam. O tempo, força natural que a civilização não consegue dominar, demonstra que o
homem, ao prometer, apresenta a nula pretensão de fixidez. Mas ainda assim, tal homem é
visto como necessário por Nietzsche, pois, conforme Azeredo (2003, p. 111), a memória
117
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche: o humano como memória e como promessa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
p. 27.
118
Nietzsche propõe-se a compreender a crueldade, acima de tudo, pela perspectiva psicológica, uma vez que o
filósofo considera tal característica como pertencente, de forma inalienável, à natureza humana, presente, assim,
em todo o percurso cultural engendrado pela ação do homem. É possível deduzir, desse modo, que a crueldade
teve significativa parcela de contribuição para a formação e estabelecimento da consciência.
64
estaria também atrelada a uma forma de vontade, concretizada pelo desejo de não deixar de
cumprir o que foi prometido.
Ao prometer, estabelece-se a afirmação diante do prometido, o empenho de que aquilo
que foi estipulado num momento futuro venha efetivamente a ocorrer. Neste contexto, está-se
falando do homem soberano (souveraine individuum), aquele que se mostra autônomo e
moral, ou seja, aquele que, de fato, não vem a ser nenhum dos dois119. Esse indivíduo é o
resultado do processo de inserção de uma memória ao homem, a fruta que, enfim, por
inúmeros processos, amadureceu, mesmo que tardiamente.
O esquecimento, no cenário apresentado por Nietzsche na segunda dissertação da
GM/GM, é posto como o procedimento reabilitador do homem naquilo que se pode classificar
como força. O mergulho no rio Lete se mostra necessário, conforme o pensamento do filósofo
germânico, uma vez que esse esquecimento funcionará como um rompimento com a
moralidade dos costumes, cujo objetivo, como foi visto, é o de determinar ao homem normas
de comportamento não jurídicas que visem situá-lo em uma posição de tradição. Esta,
efetivada ao homem pela via do medo, da superstição, posto que a tradição se configure de
forma efetiva no corpus social. Segundo o filósofo, o sentimento do costume traduz-se como
um obstáculo ao novo:
119
“Pois ‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem” (GM/GM, II, §2).
120
M/A, § 19.
65
de criar em si uma memória”. 121 E nesse aspecto a história humana espraia-se, uma vez que a
condição para o enraizamento da consciência perpassa, de modo expressivo, pelas práticas de
crueldade, uma vez que a dor se mostra “como o mais poderoso auxiliar da mnemônica”. 122
O corpo afligido traz de forma marcante à memória as sensações provocadas pela
experiência dolorosa, e nesse âmbito, através desse sistema de flagelação, marca-se qualquer
coisa na memória do indivíduo, ou seja, não apenas os ideais ascéticos, mas o que quer que
seja como forma de doutrinação. Deus, inferno, justiça, verdade etc., são conceitos e doutrinas
arraigados nos homens pelo viés da crueldade. O homem esquartejado em praça pública,
diante de qualquer um, impõe ao espectador a fixação de valores que, uma vez aferroados,
dificilmente serão removidos. A passagem do tempo, o aprimoramento das leis, os avanços
tecnológicos, a descoberta de certos enigmas referentes ao corpo humano não impedem que
essa mesma população, esses mesmos homens ditos modernos e civilizados, façam justiça
pelas próprias mãos perante determinadas situações limites. Homens que, retirados do seu
cotidiano, tornam-se tão cruéis quanto aqueles que massacram. Não se pode aqui falar em
uma “natureza humana” de inclinação à violência, pois desta forma, estar-se-ia situando o
homem em um plano de indissociável barbárie, mas a justificativa nietzschiana mostra-se
mais plausível, uma vez que tais comportamentos foram assentados na moralidade do homem,
e não apenas isto, mas também tornados normativos, como se determinadas situações de
violência ratificassem a validade da punição, do flagelamento, independente das regras
jurídicas, das leis regulamentadoras da vivência humana.
A intenção, com a dor, é fixar, para doutrinar, resultando dessa perspectiva o homem
de confiança. A ideia de um inferno, de um submundo no qual chamas ardem ad infinitum
marca o pensamento do homem religioso, a invenção da alma cerceia o seu raciocínio lógico
caso se efetue uma tentativa de fuga, através da finitude do corpo, da ideia de punição eterna.
Mulheres queimadas, homens torturados das mais diversas formas para que a concepção cristã
se tornasse hegemônica. Na contemporaneidade, as pressões do mundo exterior, representadas
pelo papel do trabalho na vida dos indivíduos, o clamor das responsabilidades cotidianas, o
represamento das pulsões, contribui para a ampliação desse quadro. Exemplos mais do que
claros da fundamentação dos argumentos pela angústia. Medo que prevalece através da
tradição perante o homem que promete e que não esquece.
A memorização dos signos, o aprendizado das noções comuns, diverge da
espontaneidade instintiva, da inconsciência e imprevisão orgânica. Para forjar essa
faculdade, foi necessário deturpar profundamente as condições iniciais desse animal;
121
GM/GM, II, §3.
122
GM/GM, II, §3.
66
123
BARRENECHEA, 2009, p. 104-105.
124
PASCHOAL, E. Da polissemia dos conceitos “ressentimento” e “má consciência”. Rev. Filos., Aurora,
Curitiba, v. 23, n. 32, p. 201-221, jan./jun. 2011, p. 213.
125
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 19-20.
67
126
Raskolnikov, personagem central da obra Crime e Castigo de Dostoiévski, é um estudante que se vê
compelido à prática de um assassinato por motivações ideológicas (a sua teoria acerca dos homens ordinários e
extraordinários, aqueles, homens comuns aos quais falta a coragem, audácia e força necessárias a execução de
um crime, e estes, homens audaciosos que estão acima do bem e do mal, e que podem não apenas tirar vidas,
como sustentar vigorosamente seus feitos) e financeiras. Contudo, um sentimento de culpa crescente o persegue
mesmo antes de concretizar o crime, por meio de reações somáticas que ganham contornos dramáticos até a sua
“redenção” final.
68
127
EH/EH, §4, p. 72.
128
JGB/BM, §229.
69
O esquecimento, por sua vez, longe de ser interpretado por Nietzsche como uma
falha, ou como a incapacidade temporária da consciência para reter o já vivido, trata-
se de um mecanismo de digestão psíquica que permite relaxar diante das
experiências vividas, se distender diante do passado.132
129
A relação entre crueldade e sentimento de poder é muito relevante na argumentação nietzschiana: “[...] pois o
ser cruel desfruta o supremo gozo do sentimento de poder.” (M/A, §18)
130
M/A, §53.
131
GM/GM, II, § 8.
132
BARRENECHEA, 2009, p. 103.
70
portanto, de fixar, demonstra sob esse aspecto uma condição única que lhe permite o cultivo,
a continuidade, resultando desse processo o que se conhece por cultura. 133 Esta que, para
alguns filósofos, como Bacon, configuram-se como o refinamento, no sentido de formação,
do homem. 134 Para Nietzsche, entretanto, o esquecimento, conforme já dissemos antes, é de
fundamental importância para o homem porque lhe permite a abertura para o novo, a
possibilidade de criação. A lembrança bloqueia a possibilidade do futuro, impede o indivíduo
de governar a si mesmo, retendo-o em uma espécie de subterrâneo. 135
É preciso desvencilhar-se do passado para que os afetos não se tornem indigestos e
atuem de modo negativo sobre o orgânico ou sobre o psicológico. Esse esquecimento desfaz,
permitindo-nos estabelecer tal relação, a memória escrava, presa em valores desagregadores
que resultam no adoecimento do corpo. Não se está aqui situando a questão no campo do
perdão, uma vez que este conceito cristão, não considera o expurgar dos sentimentos
enfermos, mas a sua ocultação, ou em uma tentativa de se alcançar este feito, resultando dai
que os sentimentos desagregadores ainda se farão sentir. É preciso buscar o novo, segundo
Barrenechea (2009, p. 104), já que se faz necessária outra vez a espontaneidade instintiva, da
inconsciência e imprevisão orgânica.
Esse cerceamento do homem através da memória enfraquece-lhe os impulsos animais,
impedindo-o de agir, uma vez que, no lugar da ação, atua a consciência, esta sim, irá, no
campo das conjecturas, das possibilidades, da previsão, do cálculo e da projeção futura,
bloquear a efetividade. Ao homem temeroso, por exemplo, é-lhe vetado, por sua própria
consciência, sair em determinadas horas, frequentar certos locais, pois a ideia interiorizada
acerca da violência, criminalidade e desrespeito às leis, atua de modo continuo. O resultado
133
Heidegger compreendia a palavra construir (bauen) no sentido de habitar, interpretando-se tal relação não
através do simples ato de construção do local no qual o homem reside, mas sim o modo como ele, em relação ao
mundo, encontra-se posicionado em relação a este. Ou seja, a construção, conforme Heidegger, está mais
articulada com a forma como o homem intervém no mundo, a expectativa daquele em relação aos frutos da sua
intervenção no local em que se encontra. Mas tal expressão, observando-se a partir do latim, associa-se ao termo
“cultura”: “Ambos os modos de construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar
construções, aedificare – estão contidos no próprio bauen, isto é, no habitar” (HEIDEGGER, 2007, p.127).
134
Para Nicola Abbagnano, em Dicionário de Filosofia, o termo cultura “[...] tem dois significados básicos. O
primeiro e mais antigo é aquele pelo qual significa a formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se. Fr.
Bacon considerava a Cultura nesse sentido como ‘a geórgica do espírito’ (De Augm. Scient., VII, 1),
esclarecendo assim a origem metafórica da expressão. O segundo significado é aquele pelo qual indica o produto
dessa formação, isto é, o conjunto dos modos e viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam
também indicar pelo nome de civilização [...]. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 212-213).
135
Expressão esta utilizada por Dostoiévski na sua novela Notas do Subsolo, para designar a inércia do homem,
representado através do seu personagem, de nome ignorado, que se projeta ressentido sobre o mundo e as
pessoas. Este personagem adequa-se à visão nietzschiana sobre a memória, uma vez que ele representa o
indivíduo das ideias fixas, preso a elas como em um cárcere no subsolo da sua consciência, impedindo-o de uma
existência efetiva.
71
136
GM/GM, II, §1.
72
Nietzsche defende a valorização dos instintos, do corpo e seus ritmos naturais como
os únicos capazes de se orientarem em direção a uma vida potente e vigorosa. A
tentativa de atribuir sentido à vida, contrariando e negando sua natureza trágica,
caótica e desprovida de certezas e de segurança, promove a degeneração das forças
vitais, uma vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós se
caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento. A guerra contra
os instintos, contra o corpóreo provoca o enfraquecimento do homem, pois é
justamente o combate, o jogo de forças que são fundamentais para a saúde do
139
homem.
137
GM/GM, II, §6.
138
GM/GM, P, §3.
139
AZEREDO, V. P. de O. Nietzsche: a grande saúde e o sentido trágico da vida. Cadernos Nietzsche 28, p. 249-
261, 2011. p. 250-251.
74
140
NIETZSCHE apud COX, C. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley, Los Angeles: University of
California Press, 1999. p. 131. No original: “[...] according to Nietzsche, the body itself is "a political structure,"
"an aristocracy" (WP 660, 490; BGE 259) or "oligarchy" (GM II:1): that is,a hierarchy of organs, tissues, and
cells, each of which has a particular role and function. In a healthy body, these various parts fulfill their
functions in service of the whole; while in a sick or dying body, this relation of parts to whole (and thus the
integrity of the body) is threatened or dissolving.[54] Furthermore, the relatively pre-given unity of the body is
not an eternal verity but the product or result of "interpretation" (in Nietzsche's extended sense of the word), that
is, of millennia of evolutionary struggle.”
141
Expressão que encontra referência no plano de determinadas religiões místicas na Índia. Designa o poder que
determinados deuses ou demônios possuem de criar ilusões que nublarão a visão do indivíduo para a verdade,
impedindo-o de uma progressão no plano do espiritual, uma vez que não consegue visualizar os próprios erros e,
assim, superá-los, permanecendo preso ou estagnado a um plano do sensualismo, do sensorial. Aquele que
desfaz as ilusões do véu de Maya se encaminha satisfatoriamente ao plano da iluminação. A forma como
Schopenhauer apropria-se de tal expressão em O mundo como vontade e como representação está mais voltada
para o sentido de ignorância que o indivíduo estabelece para si mesmo, ou seja, como único, ao redor do qual o
mundo gira e para quem todas as coisas convergem. A ganância e o egoísmo, por exemplo, são resultados do véu
de Maya, pois o indivíduo colocará sempre a si como aquele que mais precisa de determinadas vantagens, cuja
necessidade é maior do que a do outro.
75
em sacrificar o seu semelhante, uma vez que a sua vontade se mostra mais urgente. O
sofrimento do homem, conforme Schopenhauer, está em grande parte atrelado a essa postura
individualista do outro, na sua percepção do que é bom para si, que muitas vezes não
considera o que é mau para o outro. O exemplo da individuação, entretanto, não se restringe a
um homem, mas também a um grupo social e países inteiros.
Há aquelas nações que, considerando seus próprios valores, sentem-se na necessidade
de governar outras, por considerá-las atrasadas, inferiores, fracas, ou simplesmente visando
benefícios econômicos particulares. Para Schopenhauer, a supressão do véu de Maya requer
uma trajeto lento, que converge para dois pontos específicos:
[...] nós, à medida que percebemos cada vez mais claramente o sentido do princípio
de individuação, permitimos em primeiro lugar a justiça espontânea, em seguida o
amor elevado até a extinção completa do egoísmo, e, finalmente, a resignação ou
142
supressão completa da vontade.
[...] não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto: aquele
afeto do comando. O que é chamado de livre-arbítrio é, essencialmente, o afeto de
superioridade em relação àquele que tem que obedecer: “eu sou livre, ‘ele’ tem de
obedecer” – essa consciência se esconde em toda vontade, e assim também aquele
retesamento da atenção, o olhar direto que fixa exclusivamente uma coisa, a
incondicional valoração que diz: “isso e apenas isso é necessário agora”, a certeza
interior de que haverá obediência, e o que mais for próprio da condição de quem
143
ordena.
142
SCHOPENHAUER, MVRI, §70.
143
JGB/BM, § 19.
76
obedece” 144, e tais aspectos não podem ser reduzidos ao conceito de “eu”, que tenta abarcar a
multiplicidade humana condicionando a vontade e represando as paixões, instituindo
valorações da vontade afastadas da efetividade. O querer, a vontade, portanto, relacionam-se
com as nossas necessidades orgânicas e fisiológicas, pois o querer é múltiplo, ao contrário do
que Schopenhauer sinalizou, vislumbra-se assim um ponto de afastamento entre os dois
filósofos, pois, para Nietzsche, a vontade é múltipla, enquanto para Schopenhauer (MVRI, p.
226), a vontade é una: “[...] todas as partes da natureza se encaixam, pois é uma Vontade
UNA que aparece em todas elas”.
A vontade, portanto, exerce um poder sobre o indivíduo, poder esse que não pode ser
controlado, o que demonstra que o conceito de consciência, em contraste com o de vontade,
sagra-se equivocado, pois a consciência não exerce controle sobre o todo orgânico, e isso
permite deduzir que a consciência é uma interpretação, as vezes falha, acerca de determinado
mecanismo humano representado pelo querer. A consciência, quando muito, é um órgão de
direção: “É ‘essencial que não se equivoque sobre o papel da consciência’. Esta é somente
‘UM MEIO DE COMUNICAÇÃO’; não é ‘a direção, senão que um ÓRGÃO DE
DIREÇÃO’” (NF 1887-88, 11 [145]). 145
O mundo, mais do que antes, tornou-se uma fonte de inúmeras possibilidades
interpretativas: as facilidades de comunicação, a interação cultural, as representações diversas
de mundo e de visão sobre os fenômenos e os acontecimentos permitem agora uma maior
probabilidade de ver o mundo e interpretá-lo. Definir o que é “certo” ou “errado” através de
uma consciência moral configura-se tão somente como um mecanismo valorativo, e até
mesmo, coercitivo, que institui a partir de julgamentos prévios os valores dominantes. Para
Nietzsche, todavia, tais ajuizamentos afastam o homem da observação perspectivista:
Então: quando o homem julga “Isso está certo”, depois conclui “Por isso tem de
acontecer”, e faz o que assim reconheceu como certo e definiu como necessário –
então essa essência do seu ato é moral! [...] Por que você acha isso moral? – “Porque
minha consciência me diz que é assim; a voz da consciência nunca é imoral, pois
146
somente ela determina o que deve ser moral!”.
144
JGB/BM, § 19.
145
NIEMEYER, 2014, p. 109.
146
FW/GC, §335.
77
representadas através do apolíneo e dionisíaco, uma vez que o homem tornava-se cada vez
mais atrelado à polis, o que representa, também, um afastamento do mesmo em relação a
natureza. Posto isso, as cidades, no seu desenvolvimento natural, marcam, em muitos
aspectos, a tentativa humana de se sobrepor à natureza, buscando controlá-la. Logo, o
distanciamento entre homem e natureza, a degenerescência do homem, a domesticação e
requinte que o farão cada vez mais debilitado, afasta-o do meio no qual seus instintos se
faziam mais vivazes. A vida urbana marca, portanto, a inserção do homem em uma lógica
racional que exige como tributo o freio de suas paixões, dos seus impulsos, ou, até mesmo, a
degenerescência de seus afetos. Nesse cenário, o aspecto pulsional da vida também se
enfraquece, pois o excesso, a embriaguez, os rituais dionisíacos perdem lugar para a
racionalidade e a temperança, a organização e sobriedade apolíneas, representadas,
principalmente, através da filosofia.
Tal filosofia instaura o espírito apolíneo como o desejável para o homem, pois este
promove um embelezamento da existência, e o consequente encobrimento de seus aspectos
mais vis, processo esse que, em contrapartida, representa a supressão do espírito dionisíaco,
caracterizado, fundamentalmente, pela afirmação da vida em todas as suas especificidades. O
equilíbrio que antes havia entre essas duas forças foi suprimido em nome de uma
racionalidade soerguida ao patamar de instância superior e diretiva. O homem, deste ponto em
diante, precisa reafirmar sua soberania sobre os demais impulsos e o faz através daquilo que
ele julga ser uma vantagem sobre os outros seres vivos, a sua racionalidade, que lhe permite
intervir na natureza, moldando-a conforme seu desejo, instituindo, dessa forma, uma cultura,
aspecto celebrado pelo homem como fonte de orgulho, mas que em algumas circunstâncias
representa a perda da autonomia humana em nome de valores socialmente erigidos, incluindo-
se ai os cristãos, que trazem em seu arcabouço o produto mais perigoso sobre a repressão dos
instintos, uma vez que, com a atuação do cristianismo, não ocorre apenas a supressão dos
impulsos primordiais do homem, mas também a do seu próprio corpo, marcando, dessa
forma, um postura que estabelece em definitivo a supremacia da alma em relação ao físico.
Isto é, o ser humano, que atua, vive, sente, sofre através das afecções do seu corpo,
agora deve abrir mão da sua existência efetiva, da sua forma de interação com o aqui e sua
atuação no agora em nome de uma projeção metafísica ideal, que estipula a troca do concreto,
do orgânico pelo imaterial, o imaginário, o idealizado, marcando a perda absoluta de
referências sobre o corpo e a natureza, como um processo interativo essencial para o homem e
sua saúde, física e psicológica.
78
concepção esta que se adequa a muitos mitos gregos, nos quais os homens mais valorosos e
justos eram elevados ao patamar de deuses, alguns conquistando tal privilégio, por assim
dizer, momentos antes de morrer, ou seja, o corpo também era inserido nessa transformação
do humano em olímpico. 150
Na simbologia presente em algumas religiões africanas, por exemplo, o corpo e a
divindade ou entidade entram em contato, para resultarem em um ser único, geralmente
representado pelo pai ou mãe de santo. Em tais exemplos, o corpo não é renegado e nem
situado em uma posição inferior, ao contrário, é posicionado em nível de igualdade com as
divindades, observando-se que a imortalidade, nos preceitos religiosos cristãos, é concedida à
alma, não ao corpo. Nas narrativas míticas gregas, a imortalidade é concedida ao homem por
seus feitos heroicos.151
Observa-se, portanto, que a derrocada do pensamento grego é também reforçada pela
instauração da razão, reinterpretada posteriormente sob o aspecto de alma e consciência,
como cerne do pensamento do homem, ignorando aspectos bastante significativos, como o
próprio corpo, que até então possuía forte representação e presença na cultura grega.
É decisivo, para a sina de um povo – e da humanidade, que se comece a cultura no
lugar certo – não na “alma” (como pensava a funesta superstição dos sacerdotes e
semi-sacerdotes): o lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é
consequência disso [...]. Por isso os gregos permanecem o primeiro acontecimento
cultural da história – eles sabiam, eles faziam o que era necessário; o cristianismo,
152
que desprezava o corpo, foi até agora a maior desgraça da humanidade.
Alma, bem como consciência, situadas naquilo que Nietzsche denominou de “resto”,
ou seja, aspectos que, se possuem algum valor, mínimo que seja, está subordinado ao corpo.
Sobre a perspectiva passada, e a nova, fala Zaratustra: “’Corpo sou eu e alma’ – assim fala a
criança. E por que não se deveria falar como as crianças?/ Mas o desperto, o sabedor, diz:
corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma apenas uma palavra para um algo no corpo”.
153
Assim, alma, conforme as palavras de Zaratustra, é parte intrínseca ao corpo, este todo
que existe por inteiro, sem partes subordinadas. O corpo já não é mais um mero instrumento
diante da razão ou da alma; não se alcança mais a perfeição (termo cristão) através da dor, do
suplício. Os dias de submissão do corpo ao espírito terminaram. São contestadas, assim, todas
150
De certo modo, é possível afirmar que os heróis míticos gregos ou deuses do Olimpo eram parte humana,
parte divinos, o que lhes possibilitava a entrada no Olimpo, lar dos deuses. Contudo, tal característica é ainda
mais significativa, pois dessa forma, está-se falando de uma integração harmoniosa entre o plano do sublime, do
majestoso, com o físico.
151
Muitos heróis da mitologia grega preferiram morrer com bravura buscando a imortalidade de seus atos, dentre
eles, Aquiles e Heitor.
152
GD/CI, IX, §47.
153
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p. 34-35.
80
as noções que aludem a um substrato subjetivo no homem: razão, alma, espírito, eu, sujeito,
consciência:
A consciência não desempenha a função mais nobre no organismo, ao contrário, na
visão do filósofo, desenvolveu-se devido à necessidade de comunicação, devendo
ser vista como um órgão condutor de algo sem, todavia, responsabilizar-se pela
condução dos processos no organismo [6]. Em vista disso ele enunciar que “tudo o
que se torna consciente foi previamente preparado, simplificado, esquematizado,
interpretado” (KSA 13.52, Nachlass/FP 11[113]). O filósofo não acredita na
supremacia desses órgãos que teriam, em si, a competência e a função de atingir as
coisas mesmas ou condicionantes referentes à verdade dessas coisas. Entende o seu
desenvolvimento na perspectiva da utilidade. 154
154
AZEREDO, V. D. de. Nietzsche e a modernidade: ponto de virada. Cadernos Nietzsche 27, p. 143-168, 2010,
p. 151-152.
81
155
GM/GM, II, § 4.
82
aspecto econômico, cujo funcionamento detinha-se no caráter de troca, o que permite deduzir
que o tema da culpa, em seus primórdios, surgiu de forma não natural, mas externamente,
como um processo de acordo, no qual um indivíduo se compromete a fornecer determinado
produto ou coisa a outro que, por sua vez, compromete-se em pagar por tal artigo. Tem-se,
portanto, a clara imagem de uma transação comercial como força motivadora para o
desenvolvimento daquilo que hoje se chama culpa, pois um descumprimento por parte de um
dos envolvidos acarretava prejuízos que deveriam ser cobrados, mesmo que fosse através do
corpo do indivíduo.
Interessante observar que Nietzsche, para compor uma possibilidade de explicação
para o surgimento da má-consciência, tenha se voltado para os primórdios das relações
comerciais, o que se mostra plausível, uma vez que tais trocas mostram-se como o início da
relação do homem com o outro no sentido não meramente familiar ou comunitário. Através
do comércio, seja de escambo, ou da troca monetária, tem-se o contato de um homem com
outro visando determinado resultado que seja benéfico para ambos. Contudo, sabe-se que as
relações humanas são marcadas por conflitos e disputas, corriqueiras em um dos sistemas
comerciais mais primitivos para o homem, a troca, já que esse sistema mostrou-se vital para o
florescimento de vilarejos, cidades etc. 156
Uma dívida não era, e ainda hoje não é, uma simples falta, mas um ato que gera, em
muitos casos, consequências extremas. A falta de compromisso, no pagamento de um
determinado produto, por exemplo, encerra em si toda uma relação que perpassa pelos
sistemas mais fundamentais da sociedade, como o trabalho, a organização social, o modo de
interação, o desenvolvimento de técnicas. 157 Nietzsche aborda tal aspecto sob o ângulo da
moral, uma vez que, na relação credor/devedor, foram estabelecidas, transversalmente a
humanização ao mais alto grau, as concepções de responsabilidade e negligência. O homem,
racional, mais “humanizado”, agora passa a ser responsabilizado pelos seus pensamentos e,
principalmente pelos seus atos. Ao seu critério está o cerne da ação, considerada boa ou má a
partir da moral social vigente, da sua concretude ou não. O devedor, portanto, é aquele que
156
O comércio efetivo, monetário e mercantilista, entre países diferentes, tem seu início por volta do século XVII
e amadurecimento no séc. XVIII, o que, dada a longa história da humanidade, é algo recente, demonstrando que
a argumentação de Nietzsche está voltada para os períodos mais basilares das interações comerciais, nos quais as
trocas internacionais já eram um fato concreto, mas não havia, nesse processo, a moeda ou o meio monetário,
apenas o escambo. É preciso salientar a importância desse aspecto no contexto histórico, pois a questão das
dívidas não se efetuava apenas em nível individual, mas também em geral, ou seja, entre tribos, comunidades,
países, o que gerava violentas guerras. Conflitos estes que marcaram, e marcam, de modo contundente, a visão
do homem sobre o mundo e as relações humanas.
157
O escambo encerra em si o excedente de produção, o que equivale a dizer que determinado grupo social, a
partir da sua forma de trabalho e organização social, produziu mais do que o necessário, cujo excedente era,
portanto, trocado por outros produtos ou materiais que lhes eram escassos ou inacessíveis.
83
A esse devedor, cuja promessa não cumprida deve ser cobrada, instaura-se a percepção
de justiça, ou seja, que seja cobrada a dívida, a falta, o delito, de alguma forma por aquele que
faltou com a sua palavra. Esse homem demarca uma quebra na estruturação social, pois a
dívida representa, mais do que um simples não pagar, um ato de negligência, de possibilidade
de se fugir às obrigações, de descumprimento de algo até então estabelecido como concreto: o
empenho da palavra, o acordo, o compromisso.
Negar o pagamento de uma dívida, por qualquer motivo, representa uma falta que, de
um modo significativo, ameaça as relações sociais. De uma forma ou de outra o conflito irá
existir (entre credor e devedor), mas tal desordem não pode ser incentivada, pois é perigosa
para a sociedade, para o Estado em potência, embrionário, é preciso a coerção, a marca do
conflito sobre os corpos dos indivíduos, mas sob um aspecto que seja minimamente
satisfatório para aqueles que, de uma forma ou de outra, se beneficiam com essa organização
social: é preciso submeter o animal-homem à “paz” e à “regularidade”. Os costumes sociais
não podem ser ameaçados por aspectos negativos, como a dívida, que ainda parece marcar
uma individualidade do homem, ou um aspecto instintivo, não civilizado, pois o homem
civilizado promete e cumpre com seus compromissos. Assim, segundo Patrick Wotling, a
civilização se impõe ao homem por intermédio da supressão dos instintos e afetos mais fortes:
A crueldade será a forma encontrada para inserir no homem ainda não domesticado,
esse animal não confiável, que não cumpre com o que estabelecido, a civilidade. Sem a
confiança não há sociedade, não ocorre a domesticação, o adestramento do homem. É preciso
“punir” para gravar no corpo, e, portanto, na memória do devedor, a “santidade da promessa”:
158
GM/GM, II, § 5.
159
WOTLING, 2011, p. 22.
84
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o
que chamo interiorização do homem; é assim que no homem cresce o que depois se
denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que
comprimido entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se
protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses
bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e
errante se voltassem para trás, contra o próprio homem. 162
160
GM/GM, II, § 5.
161
PASCHOAL, 2011, p. 213.
162
GM/GM, II,§ 16.
85
163
Nesse sentido, a interiorização de certos impulsos agressivos pode acarretar consequências bastante danosas
ao homem, conforme enuncia Itaparica: “[...] vemos que a consciência moral surge da introjeção de impulsos
agressivos. Essa exteriorização é impedida em nome da preservação de um grupo já organizado, que estabelece
regras internas, punindo aqueles que não as respeitam, por se constituir como uma ameaça para a coesão e
perpetuação do grupo. Sob a pressão dessa forma primitiva de ‘Estado’, a violência que antes seria externada
contra o semelhante passa a ser internalizada, formando assim a consciência (Gewissen). Esta nasce, assim,
como uma violência contra o próprio indivíduo, já que sua exteriorização pode resultar em punição, por quebrar
as regras impostas pelo grupo, tendo ele de pagar com sofrimento o desvio de conduta”. (ITAPARICA, 2012, p.
17)
164
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p.34-35.
86
multiplicidade dos homens, sua bondade e maldade, sua vontade de vida e de morte,
destruição e construção. A alma, tão privilegiada no campo religioso, é integrante do corpo,
este que o homem percebe, sente, intui, deseja, raciocina, calcula, sonha, desfazendo a
percepção cristã de um espírito, que deve ser purificado, para somente assim torna-se digno
das bênçãos divinas.
Contudo, em uma tentativa de reverter tais visões cristãs, é preciso conceber a vida do
homem, a sua efetividade no mundo a partir de aspectos não excludentes, mas que se integram
para moldar o homem na sua integridade, conforme aponta Giacóia Junior sobre o trabalho
genealógico de Nietzsche:
Nietzsche jamais deixou de considerar [...] que a gênese da linguagem, da
consciência e da sociedade são simultâneas e que esse complexo influi de modo
determinante em toda maneira de estruturar uma visão de mundo. Esta, por sua vez,
165
não somente organiza nossas mentes, mas também influencia nossos corpos.
O corpo, portanto, está interligado de modo indissociável a uma visão de mundo que
está para além de dualismos que visam desconfigurá-lo, reduzindo seu campo de significação
em prol da exaltação da alma. Negar o corpo é também negar o mundo no qual o homem
habita, ao resgatar um, está-se também trazendo o outro ao cerne do debate, antes marcado
pela visão de pureza, no plano do imaterial, e imperfeito, no aspecto material, físico, orgânico.
Um dos aspectos mais combatidos em relação ao corpo, conforme Barrenechea (2009,
p.71), foi o sentido de erotismo, uma vez que as práticas de reprodução foram situadas no
plano do pecado e da fraqueza. Jacques Gélis, sobre o assunto, argumenta:
Mas existe uma outra imagem do corpo, igualmente cheia de sentido, que é a
imagem do ser humano pecador. A Igreja da Contrarreforma reforçou a
desconfiança que o magistério já havia manifestado nos séculos medievais a respeito
do corpo, “esta abominável veste da alma”. Corpo depreciado do ser humano
pecador, pois se ouve incessantemente dizer que é pelo corpo que ele corre o risco
de perder-se. O pecado e o medo, o medo do corpo, principalmente o medo do corpo
da mulher, retornam como uma ladainha sob forma de precauções ou de
166
condenações.
165
GIACÓIA, 2001, p. 12-13.
166
GÉLIS, J. O corpo, a igreja e o sagrado. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.J.; VIGARELLO, G. (Orgs.).
História do corpo: da renascença às luzes. Tradução de Lúcia M. E. Orth. Rio de Janeiro: Vozes. 2012. p. 19.
87
167
GM/GM, II, § 18.
168
GM/GM, II, § 22.
169
GM/GM, II, § 22.
88
mundo, bem como a sua interação com este: “Ora, a maneira de ‘ser’ e de ‘falar’ que
caracteriza o homem moralmente determinado não surge do nada e tampouco é obra do
divino”. 170
Abordar os efeitos nocivos do cristianismo sobre o indivíduo implica, necessariamente
em abordar a questão do ressentimento, uma vez que é deste solo de culpa e má consciência
que nasce o cristianismo: “O espírito do ódio do qual brota o cristianismo é o ressentimento
[...]”. 171 Através do cristianismo e da atuação do sacerdote, a vida e tudo aquilo que lhe é
natural, se volta contra si, se opõe a ela mesma, negando-se, para que, dessa forma, ceda lugar
a uma nova vida, a ascética, com sua abnegação da vida e a desconfiguração dos seus
caracteres mais primordiais. Auto flagelamento, mortificação, resignação, sacrifício, em nome
do outro, de Deus, de leis que exigem o abandono da vida, do corpo agora marcado pelo
caráter hipocondríaco. A doença da alma revela-se uma doença do corpo, nesse sentido,
aponta Moura: “É a moral judaico-cristã que diz não a todo movimento ascendente de vida, ao
poder e à afirmação de si. E agora o instinto de ressentimento inventa outro mundo, um
mundo a partir do qual a afirmação da vida apareceria como um mal, como algo reprovável”.
172
170
BARROS, F. de M. A maldição transvalorada: o problema da civilização em O Anticristo de Nietzsche. São
Paulo: Editora Unijuí, 2002. p. 26.
171
MOURA, C.A.R. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 133.
172
MOURA, op. cit., 134-135.
173
PASCHOAL, E. As formas de ressentimento na filosofia de Nietzsche. PHILÓSOPHOS 13 (1): 11-33,
jan./jun. 2008. p. 12.
89
afetos que lhes são direcionados. Ofendido, acusado, maltratado, tal homem interioriza tais
eventos negativos por incapacidade de uma regular digestão e, consequentemente, expurgação
dos afetos negativos para o orgânico.
Esse homem que, sob certo aspecto, diminui-se diante do ressentimento, anulando-se
nos seus aspectos mais humanos, é considerado por Nietzsche como um ser doente, mas
portador de uma doença particular, que afeta sua fisiologia, seus instintos e o impede de viver
o seu presente, uma vez que se encontra fixado em algum lugar no passado, preso a algum
acontecimento que lhe feriu profundamente.
Mas com esse homem da má consciência e do ressentimento ocorre fenômeno
interessante: o ressentimento, impossibilitado de ser combatido pelo indivíduo enfermo, atua
sempre no sentido de buscar causar mais sofrimento ao seu hospedeiro, transformando outros
acontecimentos em motivos para rancor, crueldade e revigoramento do sentimento,
apresentando-se, sob esse viés, como uma ferida que nunca cicatriza. Nesse ciclo de
adoecimento, está presente a própria vontade, uma vez que esta se encontra também enferma
e, por sua vez, necessita sempre mais de sofrimento, angústia e rancor. Para tanto, em cada
novo caso, cada nova ação, vislumbrará em tais acontecimentos novo interesse, a ser
interpretado sob o olhar da má-consciência.
Conforme o apresentado pode-se dizer que o ressentido é aquele que, além de não
superar determinado fato doloroso, acrescenta outros mais, em um processo continuo e que
visa propagar a enfermidade do indivíduo ressentido. Paschoal resume a questão a seguir:
174
PASCHOAL, 2008, p. 14.
90
filósofo afirma: “Uma tentativa inversa é em si possível – mas quem é forte o bastante para
isso?”. 175 A proposta de Nietzsche é bastante complexa: retirar da má consciência o remédio
para a mesma: “As propensões inaturais, todas essas aspirações ao Além, ao que é contrário
aos sentidos, aos instintos, à natureza, ao animal, em suma, os ideais até agora vigentes, todos
os ideais hostis à vida, difamadores do mundo, devem ser irmanados à má consciência”. 176
Assim, a má consciência deve ser colocada no mesmo patamar que os aspectos enumerados
pelo filósofo, de forma que o homem consiga identificar os danos decorrentes de tal postura.
Lembra-se aqui que os aspectos citados por Nietzsche, todos aqueles contrários à vida,
estão presentes na má-consciência, dentre eles, a representação de Deus e a concepção de que
haveria uma impagável dívida do homem para com aquele.
Inicialmente parece quase incompreensível tal projeto nietzschiano, há nele uma
fundamentação que se revigora na mudança natural dos conceitos culturais que, em um
processo apropriado e já presenciado na história humana, apresentaria uma inversão dos
valores que hoje se mostram nocivos ao homem em algo mais salutar no futuro.
Uma forma de resolver a dificuldade envolveria em reconhecer os sentidos
diferentes de “má consciência” que operam na análise de Nietzsche. Já fomos
preparados para essa possibilidade nas Seções 12 e 13, em que Nietzsche insistiu
sobre a natureza histórica dos conceitos culturais, cujo significado é fluido e
suscetível a mudanças inesperadas. Dessa maneira, a má consciência terapêutica
sugerida por ele não seria idêntica à má consciência que é alvo do resto da
177
Genealogia.
Contudo, esse processo apontado por Nietzsche não é uma realidade factível no
presente, pois concerne ao futuro, uma vez que a atualidade pertence aos ressentidos, aos
ascéticos, aos “homens santos”. Somente no amanhã surgirão espíritos robustos: “fortalecidos
por guerras e vitórias, para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo uma
necessidade...” 178. Esse espírito, detentor da “grande saúde” e de corpo sadio, negador do
transcendente, nasceria, conforme o filósofo alemão, do niilismo, para suprimi-lo.
175
GM/GM, II, § 24.
176
GM/GM, II, § 24.
177
HATAB, L. J. Genealogia da Moral de Nietzsche: uma introdução. Trad.Nancy Juozapavicius. São Paulo:
Madras. 2010. p. 118-119.
178
GM/GM, II, § 24.
91
mundo chamado ideal) em detrimento da imanência (mundo concreto). Como confiar em tal
homem que nega a si em nome de uma razão, dominando-lhe a vida?
É a este homem, marcado por grandes eventos históricos, como a Revolução
Industrial, que Nietzsche volta seu ataque. A Modernidade caracteriza-se por grandes
fenômenos sociais que reconfiguraram a forma de ver da sociedade, sua relação social, o
plano cultural, econômico etc. Os conflitos no campo do trabalho configuram-se por dois
aspectos distintos, patrões e empregados e os seus interesses opostos. As ciências e avanços
tecnológicos marcaram, de forma irreversível, as relações humanas. 179 Tais aspectos,
aparentemente benéficos para esse homem moderno, de fato colocou-o em profunda angústia,
uma vez que temos uma sociedade cujo pensamento baseia-se nas evidências científicas e, em
igual patamar, nas crenças em um além-mundo, em uma vida pós terrena que se projeta para o
campo das idealizações. A ciência questiona e esfacela mitos judaico cristãos que, entretanto,
subsistem mediante o medo, a inserção de valores através da violência, dor e intolerância no
passado, mas que, no presente, configuram-se como “naturais”.
O resultado desse complexo conflito gerou diversos efeitos colaterais, por assim dizer,
e dentre estes se ressalta o niilismo180, fenômeno social predominante na sociedade moderna,
mas cuja origem remonta aos gregos, como expõe Nietzsche 181 , ou seja, desde Sócrates,
quando este, através da concepção de uma vida cuja moral baseia-se no bom, no belo e no
verdadeiro, marca de forma negativa a existência do homem e sua concepção de mundo que,
além de se voltar para um aspecto subjetivo e imaterial, consagrava a razão como cerne do
homem, como visto anteriormente.
179
Especificamente a forma de se ver a vida e os constituintes do mundo, observando-se agora desde galáxias até
as mais reduzidas formas de vida na terra.
180
Niilismo é um fenômeno da modernidade entrevisto por Nietzsche em todas as esferas de valor e poder
concernentes à vida social, desde as religiosas e estéticas, até as políticas e científicas. Refere-se a ausência de
sentido e valor das coisas que pode expressar, na perspectiva de Nietzsche, tanto esvaziamento e aniquilação dos
valores vigentes, quanto estágio necessário à possibilidade de crescimento e criação de novos valores: “Ele pode
ser um sinal de vigor: a força do espírito pode ter crescido tanto que as metas até hoje existentes (“convicções”,
artigos de fé) são-lhe inadequadas...” (Nachlass/FP, 9 (35), p. 54). Por outro âmbito, especialmente na
modernidade, onde os valores morais cristãos já se encontram esvaziados de significação e sentido,
especialmente se pensarmos no niilismo em contexto europeu, teremos o homem da modernidade destituído de
seus “artigos de fé’, o que acarreta um profundo vazio, conforme expõe Clademir Araldi, acerca dos aforismos
escritos por Nietzsche na cidade de Lenzerheide, constituintes do excerto intitulado “O niilismo europeu”: “O
homem moderno, por sua vez, não tem mais necessidade de artigos de fé extremos, como “Deus” e o valor
absoluto do homem (cf. § 3). O cultivo da ciência e o esclarecimento afastam o perigo que o niilismo trouxe em
sua primeira eclosão. [...] A posição extrema da fé no Deus moral reverte-se no outro extremo, na crença na
“absoluta imoralidade da natureza”. O solitário de Lenzerheide conclui o § 4 com a descrição do afeto
predominante no seu século: o sentimento do vazio, do “em vão”, depois que sucumbiu aquela que se julgava ser
a única interpretação válida do mundo.” (ARALDI, C. Os extremos do niilismo europeu. Estudos Nietzsche,
Curitiba, v. 3, n. 2, p. 169-182, jul./dez. 2012. p. 174).
181
GD/CI, II, §2.
92
Sócrates situa a vida, conforme Nietzsche, no plano da doença, sendo que a cura
encontrar-se-ia apenas na morte, passando-se, dessa forma, de uma existência terrível para
outra diversa, mais feliz. Configura-se, através dos pensamentos de Sócrates, o embrião da
vida ascética, que se desenvolverá no decorrer da história até resultar no que hoje o homem
conhece como paraíso, alma, inferno, Deus, não sem significativos prejuízos ao homem.
O ideal ascético tem marcado a existência dos homens de forma anômala, pois a partir
da ideia de uma vida que se estrutura de forma perfeita e harmoniosa, além de perpétua e boa,
em detrimento da vida terrena, imperfeita, marcada por infortúnios e incertezas, o homem
deixa de lado a sua compreensão da realidade para se lançar em expectativas que, em um
processo puramente sedutor, concedem conforto e esperança, ainda que inconsistentes, ao
homem que se vê perdido no mundo, sem saber de onde veio e nem que caminho seguir.
O sofrimento é explicado como uma espécie de necessidade, de purificação da alma.
Quanto maior a dor, humilhação, pobreza, mais digno se torna o indivíduo penitente. Institui-
se, a partir de Sócrates, uma “verdade”, que no decorrer do tempo, pela violência e costume,
tornou-se inquestionável, não por sua absoluta fundamentação, mas pelo medo, receio do
pecado, do castigo, da perdição da alma imortal, do inferno sulfúreo, apropriações estas feitas
pelo cristianismo.
Mas, é interessante notar que, ao se erigir um Deus como resposta para tudo, o homem
também, em movimento simultâneo, marca a destruição deste ídolo, pois ao abrir mão do
governo de si mesmo, resulta em ilusória verdade, que na modernidade alcança o ápice do
desconforto, pois, com os avanços tecnológicos, a concepção de dois mil anos atrás não tem
forças para se sustentar diante das evidências. Posto isso, o último homem, o homem moderno
é o do tempo da morte de Deus. Desse modo, Nietzsche enfatiza:
Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é meu “mau olhar” para este
mundo, é também meu “mau ouvido”... Fazer perguntas com o martelo e talvez
ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas – que
deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos – para mim, velho
psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se.
182
182
GD/CI, P, p. 7-8.
93
183
BARRENECHEA, 2014, p. 96.
184
A seguir, a interpretação que Heidegger empreende acerca do que Nietzsche expõe sobre niilismo: “Niilismo
é aquele processo histórico por meio do qual o domínio do “supra-sensível” se torna nulo e caduco, de tal modo
que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido. Niilismo é a história do próprio ente: uma história por
meio da qual a morte do Deus cristão vem à tona de maneira lenta, mas irremediável. Pode ser que ainda se
acredite nesse Deus e que ainda tomemos seu mundo por “real”, “eficaz” e “normativo”. Isso é similar àquele
processo por meio do qual o brilho de uma estrela que se apagou há milênios continua reluzindo, mas
permanece, contudo, uma mera “aparência” com essa refulgência. Com isso, o niilismo não é, para Nietzsche, de
maneira alguma um ponto de vista “defendido” por uma pessoa qualquer, nem tampouco um “dado” histórico
arbitrário entre muitos outros, que se pode documentar historiograficamente. O niilismo é muito mais aquele
acontecimento apropriativo de longa duração, no qual a verdade sobre o ente na totalidade é transformada
essencialmente e é impelida para um fim por ela determinado” (HEIDEGGER, 2007, p. 23).
94
a tal assunto. E não poderia ser diferente, pois o niilismo assinala o florescer de uma nova
perspectiva que também resulta em um morrer, morte esta que se observa através do vazio
existencial, à completa falta de respostas: “Nihilismo: falta a meta; falta a resposta ao “por
quê?”; o que significa o niilismo? – que os valores supremos se desvalorizam.” 185 O niilismo
demarca a impossibilidade de resposta aos questionamentos mais basilares do homem. Nem a
razão possuiu força suficiente para amenizar a angústia do homem diante dos abismos
existenciais abertos em seu interior.
Assim, desde a ruptura, a invenção da alma como contraponto do corpo, que é
reafirmada pela lógica de Descartes, pensamento este que marca a filosofia moderna de modo
significativo, delimitada não mais pela distinção entre corpo e alma, mas entre sujeito e
objeto, que, em seu cerne, possui igual representatividade, uma vez que tanto Sócrates e
Platão186 quanto Descartes anunciam a alma como independente do corpo, com clara ênfase
na primeira, como fonte primária de atenção, uma vez que a alma se encontraria mais próxima
do plano sobrenatural, ou de Deus, em oposição ao corpo, apegado à terra. Para este plano do
metafísico tenderiam todas as expectativas humanas, sendo que, com o advento do niilismo,
encontram-se em descrédito, desvalorizam-se, uma vez que a “verdade” não é mais factível,
dando lugar agora à perspectiva, segundo a interpretação nietzschiana.
Nietzsche, por sua vez, elabora uma argumentação sólida sobre a insustentabilidade de
distinção entre corpo e alma. Em Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, Nietzsche apresenta o
corpo como a grande razão, em contraposição ao “eu”, a “pequena razão” 187. Nietzsche não
quer inverter os polos de poder, ou seja, ele não deseja que o corpo se sobreponha à alma, pois
assim procedendo ele ainda vislumbraria a dualidade entre esses dois elementos. O que
Nietzsche pretende é exatamente extinguir essa distinção, por compreender alma e corpo em
um só organismo, uma vez que o corpo, conforme raciocina Nietzsche, não é meramente um
conjunto de tecidos e órgãos, destituídos de qualquer possibilidade de interação com o
racional, ao contrário, todos esses aspectos, a saber: órgãos, tecidos, sensibilidade, razão,
fazem parte do corpo como um todo, pois o homem só pode falar de si a partir do seu próprio
corpo, caracterizado por seus instintos e impulsos.
185
Nachliass/FP, 9 (35).
186
“Enquanto tivermos corpo e nossa alma tiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de
nossos desejos, isto é, a verdade. Por que o corpo nos oferece mil obstáculos pela necessidade que temos de
sustentá-lo, e as enfermidades perturbam nossas investigações. Em primeiro lugar nos enche de amores, de
desejos, de receios, de mil ilusões e de toda classe de tolices, de modo que nada é mais certo do que aquilo que
se diz correntemente: que o corpo nunca nos conduz a algum pensamento sensato” (PLATÃO, 2004, p. 128).
187
“Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, um pequeno
instrumento e brinquedo de tua grande razão” (Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p.35).
95
A modernidade não marcou esse corpo somente através dos aspectos religiosos e
negação dos instintos, mas também de outras formas, como o ideal de beleza instituído, ou a
concepção de um corpo dito perfeito, moldado conforme padrões que são estipulados como os
desejáveis. A moda, a estética tem ainda conferido ao corpo um papel acessório na sociedade,
nunca como algo central, mas apenas de representatividade de conceitos que se voltam para a
manutenção de valores que permanecem conferindo ao corpo uma posição secundária no
cerne do pensamento humano. Antes, percebido através dos valores guerreiros e saudáveis, o
corpo agora se transformou em um receptáculo de preceitos e idealizações que se
fundamentam em um niilismo que situa o homem e sua corporeidade em um plano de
nulidade, posto que o corpo seja desprezado na sua efetividade e potencialidade, voltando-se
agora, como se vê nos esportes por exemplo, para a sua utilização como meio de
enriquecimento. Os valores ditos aceitáveis, de riqueza, de beleza, marcam o corpo de forma
negativa na modernidade.
O corpo detém papel significativo no que se refere ao niilismo, pois é através daquele
que Nietzsche irá contestar os conceitos fundamentadores da filosofia platônica, ou seja, o
rompimento com a concepção tradicional metafísica, que resultará por sua vez em uma crítica
aos valores da modernidade.
Heidegger apresenta uma conceituação de niilismo que se aproxima em alguns
aspectos da compreensão que Nietzsche traça acerca de tal fenômeno, uma vez que para o
segundo, a questão do niilismo está intrinsecamente associada ao caráter histórico, posto que a
sociedade moderna esteja marcada, como abordado anteriormente, por uma concepção
metafísica que se interliga com a imagem de um ser sem início ou fim que a tudo criou,
conforme a mítica judaico cristã.
O enunciado de Nietzsche sobre a morte de Deus marca, de forma irreversível, o
diagnóstico de um sintoma social que há muito manifestava suas características, mas pouco se
falava de modo mais contundente, ou seja, que o homem assinalou a morte da divindade
através de diversos pressupostos. Sobre o assunto, cita-se Heidegger:
Nietzsche utiliza o termo niilismo para designar o movimento histórico que ele
reconheceu pela primeira vez, esse movimento já dominante nos séculos precedentes
e que determinaria os séculos seguintes, cuja interpretação mais essencial se resume
na breve frase: Deus está morto. Isto quer dizer: Deus cristão perdeu seu poder sobre
o ente e sobre o destino do homem. A figura do Deus cristão seria, nesse contexto, a
representação principal para referir-se ao supra-sensível em geral e às suas diferentes
interpretações, os ideais e normas, os princípios e regras, os fins e valores que foram
constituídos (elegidos) sobre o ente para dar-lhe em sua totalidade uma finalidade, e
188
uma ordem, em resumo, um sentido.
188
HEIDEGGER, 2007, p. 34.
96
A morte de Deus assinala a dissociação entre homem e valores transcendentes que até
então pareciam fazer sentido, os quais, todavia, postos sob um julgamento mais crítico, não se
mostraram satisfatórios. E o que seria o homem da modernidade a não ser o tipo que agora se
questiona tendo por suporte a ciência, que desvela “milagres” e põe em suspensão certezas
que, em um efeito interessante, angustiam o homem, este que percebe a ilusão que se
apresentava diante de si, apesar de que os moldes de venda que usa na atualidade não sejam
mais divinas, e sim técnicas.
Essa percepção do conceito de niilismo, Nietzsche teve-a, conforme explicita Müller-
189
Lauter (2009, p.121-122), quando em contato com romancistas como Turguêniev e
Dostoiévski. 190 No caso dos dois romancistas, o segundo é o que mais merece atenção no que
se refere ao pensamento de Nietzsche, uma vez que o filósofo alemão, por diversas vezes,
creditou a Dostoiévski o título de único psicólogo com o qual teve algo a aprender 191, o que,
no que se refere a Nietzsche, não é fato a ser desprezado, uma vez que o filósofo enfatizou em
seus livros a importância da psicologia, mas não a chamada psicologia comum, mas outra,
mais peculiar. 192
Salienta-se, portanto, não apenas a admiração que o filósofo tinha pela escrita do
escritor russo, como também a possibilidade de ter sido influenciado pelas ideias presentes em
seus textos literários. Em Os irmãos Karamazov, a saber, institui-se, a famosa concepção de
193
que, se Deus está morto, ao homem tudo é permitido. Nietzsche, declarado leitor de
189
Ivan Sergueievitch Turguêniev (9 de novembro de 1818 – 3 de setembro 1883). Autor de Pais e filhos,
romance considerado o difusor do termo niilismo.
190
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (11 de Novembro de 1821 - 9 de Fevereiro de 1881). Escreveu diversas
obras consagradas mundialmente, nas quais são retratadas questões existenciais, políticas, filosóficas,
psicológicas e morais, como Crime e castigo e Os irmãos Karamazov.
191
Reproduzo a passagem onde Nietzsche apresenta sua feliz descoberta: “Dostoiévski, o único psicólogo, diga-
se de passagem, com o qual tive algo a aprender: ele está entre os mais belos golpes de sorte de minha vida, mais
até do que a descoberta de Stendhal”. (GD/CI, IX, § 45). Em carta escrita a Peter Gast, Nietzsche compara a
descoberta de Dostoiévski a de Stendhal: “Conhece Dostoiévski? Exceto por Stendhal, nada havia me causado
tanto prazer e surpresa: um psicólogo, com o qual me entendo”. Assim, com vistas a identificar o aspecto
psicológico existente na obra de Dostoiévski, entrevisto por Nietzsche, cito Os irmãos Karamázov, datada de
1879, na qual se tem a apresentação de um conflito familiar que resulta em um parricídio. A questão torna-se
mais complexa com os motivos que conduzem a tal desfecho: o caráter niilista dos articuladores do assassinato.
Ivan Karamázov, o protótipo do homem moderno, influencia seu irmão bastardo Svidrigáilov através de
elucubrações que especulam sobre a autonomia do homem perante suas ações, já que não há Deus para
estabelecer um controle sobre os indivíduos.
192
Nietzsche a definiria como “psicologia das profundezas”.
193
Cito trecho de Os irmãos Karamazov: “Não mais que uns cinco dias atrás, debatendo numa reunião social
aqui na cidade, em que predominavam senhoras, ele (Ivan Fiódorovitch Karamazov) declarou em tom solene que
em toda a face da Terra não existe terminantemente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes,
que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje
existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão só ao fato de que os homens acreditavam na
própria imortalidade. Ivan Fiódorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural,
de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor
97
Dostoiévski, entreviu a morte de Deus como algo diverso do que foi observado pelo escritor
eslavo, pois para este tal fato incorria em acentuado perigo para a sociedade e seus valores.
Para o filósofo da Basiléia, a morte de Deus marca de forma contundente a
mentalidade do homem moderno, que, tal como Ivan Karamázov, agora é posto em um
turbilhão de novas teorias que se confrontam diretamente com a fé e a crença metafísica. Mas
é preciso observar que tal luta iniciou-se nos primórdios da história humana, conforme
ilustrou Nietzsche em GM/GM, ao inverterem-se os valores até então dispostos, a saber, a
moral do senhor e a do escravo. Subvertendo-se essa ordem, ou seja, reinterpretando a moral
escrava, moral esta da fraqueza e do ressentimento, como boa, em detrimento da aristocrática,
triunfou, desse modo, a visão do homem debilitado, doentio, que se volta para um deus
cristão, que marca a destruição do homem ao se projetar para um campo vazio. Nesse sentido,
corrobora Araldi:
O deus cristão nada mais seria do que o nada divinizado; o “triunfo” da inversão de
valores da moral cristã acabada em destruição. [...] O cristianismo e sua moral, que
antes triunfou dos fortes, fatalmente sucumbe: nem o forte, nem o fraco poderão
194
impedir a marcha decadente-niilista da humanidade.
como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais moral,
tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo
particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da
natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando
até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a
mais racional e quase a mais nobre para a situação.” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.108-109)
194
ARALDI, C. Niilismo, criação e aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso
Editorial: Ijuí, RS: Editora UNIJUÌ, 2004. p. 26.
98
Diante do niilismo o homem percebe a sua ingenuidade, constata que o seu pensamento ainda
se encontra em um estágio embrionário.
Posto isso, Araldi (2004) afirma que o filósofo alemão concebe a modernidade em um
plano de declínio e desordenação dos instintos e impulsos mais vitais. O homem moderno é o
tipo debilitado, que não consegue mais digerir satisfatoriamente os chamados estímulos
externos, que se sobrecarregam, excessivos. No mesmo movimento em que concepções são
destruídas, ideais desfeitos, crenças tornadas sem fundamentos, o homem, em sentido
contrário, questiona-se sobre quem é de fato, para que existe nesse mundo, o que deve fazer e
como proceder, se os seus objetivos anteriores não mais existem.
Os efeitos colaterais do niilismo são muitos. E aqui se aciona outra vez Dostoiévski:
em Crime e castigo, tem-se como personagem central o estudante Raskólnikov, que assassina
duas mulheres para subtrair, de uma delas, um montante monetário. A sua justificativa para tal
ato é o de que uma das mulheres, a que detinha o poder aquisitivo, era um verme 198 e ele,
como homem superior, tinha o direito de se apossar daquele dinheiro para utilizá-lo em fins
mais nobres do que a pura e simples extorsão do trabalho alheio, tal como fazia a idosa. Aqui
se apresenta a concepção moderna de que, desfeitos os valores morais, como o valor à vida,
seja qual for, toda ação é permitida, inclusive o assassinato. Assim posto, argumenta-se que a
barbárie, a violência, a submissão e exploração do homem pelo homem, dentre outros fatores,
também podem estar interligados ao niilismo, conforme deduz o escritor russo.
Raskólnikov fundamenta suas atitudes criminosas em argumentos que podem ser
considerados modernos, uma vez que são alicerçados na concepção histórica, progressista e
niilista. Julga-se Napoleão, que matou milhares, mas que, além de não ter sido condenado por
suas ações, ainda foi alçado ao posto de herói. Para que as novas concepções sejam
instituídas, é preciso que antigas sejam destruídas. Raskólnikov e a velha usurária assinalam
esses dois aspectos na sociedade. Mas, longe de ser um além do homem nietzschiano,
Raskólnikov, simples criminoso, é apenas um produto mal acabado da modernidade, no
sentido apresentado por Patrick Wotling (2013, p.231-232), resultado da história da cultura.
O niilismo assinala um caminho que não tem volta, pois não se pode retornar ao
estágio de inocência após esse fenômeno social desconcertante. Em GD/CI, Nietzsche faz
uma dura crítica a Rousseau, a quem chama de “primeiro homem moderno”, posto que este
198
Conforme Chevalier (2005), no que se refere ao simbolismo dos sonhos, os ‘vermes’ podem ser interpretados
“como intrusos indesejáveis que nos vêm tirar ou roer um afeto muito caro [...]” (CHEVALIER, 2005, p. 944).
Assim, no contexto da obra, Raskolnikov pode ter associado a figura da velha usurária a um verme, justamente
porque a mesma representava uma espécie de inconveniente aos seus objetivos, sendo, por isso, vista como um
ser abjeto, que deveria ser eliminado.
100
deseje um retorno à natureza 199 , tal como Nietzsche (GD/CI, IX, §48), contudo em um
aspecto completamente diferente, porque o retorno de Rousseau fundamenta-se em um anseio
de igualdade, no sentido de moralidade. Já Nietzsche, segundo Araldi (2004, p. 65), aponta
para esse retorno à natureza no aspecto de recuperação do homem, dos seus instintos,
suprimidos na modernidade em nome das instituições. Escolas, igrejas, universidades etc.,
marcam a resignação do homem em nome de uma vida normativa que lhe retira as forças
instintivas, a saúde do corpo, em favor de uma integração, de uma harmonia fundamentada na
obediência e no respeito irrestrito às regras as mais diversas, isto é, jurídicas, culturais,
morais, religiosas.
A noção da morte de Deus é de fundamental importância, pois marca, de forma
indelével, a derrubada dos ídolos até então cultuados na modernidade: o além deixa de ter
sentido fundante para a concepção humana de existência, não há mais um aqui e um lá. A
procura por Deus, tal como o efetuado pelo homem louco em FW/GC, §125, resulta em nada.
Através do niilismo o homem viu-se forçado a voltar ao estágio da criança, tal como
exposto por Zaratustra nas três transformações do espírito: a primeira a do camelo, fase em
que carrega os valores que lhe são impostos, um estar doente; a segunda do leão, em que se
cria a liberdade para a construção do novo, contrário ao antigo “Tu deves” e, por fim, a da
criança:
O ser humano precisa passar por essas três metamorfoses para que se possa falar na
efetividade de uma liberdade do homem, mas não liberdade no sentido corriqueiro do termo, e
sim na acepção nietzschiana inspirada na possibilidade de destruição e construção
interpretativas de mundo, afastadas dos pontos fixos, e afirmadoras da vida.
Na primeira transformação, o homem a tudo suporta. Nele depositam-se todos os
valores do mundo, os quais ele carrega sem questionar. Verdades absolutas, coisas em si,
Deus, tudo isso e muito mais o homem sustenta sem saber o motivo, apenas por tradição,
carregando tais conceitos e ideias de um lado para o outro, sem se preocupar se são
199
Ainda acerca da tentativa de retorno à natureza intentada por Rousseau, questiona-se Nietzsche: “A entrega à
natureza, o viver segundo a natureza dos estoicos e de Rousseau, o mens sana in corpore sano etc. 1. Quem
conhece os objetivos da natureza e quem seria capaz de ir contra o natural? 2. A natureza não é algo tão
inofensivo ao qual poderíamos nos entregar sem arrepios. 3. A questão é se podemos algo contra a natureza e se
podemos nos entregar totalmente a ela.” (Nachlass/FP (7 [155]).
200
Za/ZA, Das três metamorfoses, p. 28-29.
101
201
GM/GM, II, §25.
102
Nesse ponto, o niilismo apresenta-se de forma positiva, uma vez que ele assinala a
supressão da tradição valorativa, ou pelo menos o seu arrefecimento, para possibilitar o
advento do novo, do inédito, no qual Deus, verdade, eternidade, alma pura etc., não possuem
mais espaço, nem merecem mais crédito. Mas, ao observarem-se tais conceitos, reconhece-se
que os mesmos são os pilares de sustentação da cultura moderna. O que ocorrerá a tal cenário
com a subsunção do niilismo? Sobre a questão, elucida Giacóia Jr.:
202
GIACÓIA, 2013, p. 227.
203
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Tradução Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 154.
103
precisam ser reintroduzidos como compreensão da realidade concreta, o que antes se efetuava
apenas pela razão.
Com a morte de Deus, evidenciou-se a melancolia do homem cristão, que desejava um
mundo que de fato nunca existiu. Nietzsche aponta uma superação do niilismo em um
processo que ele mesmo já percorreu, uma vez que se considerou também um niilista 204 :
substituir a negação pela afirmação, ou seja, a transvaloração de todos os valores, pois
somente a partir desse movimento é que se poderá sobrepor o além do homem ao último
homem. 205
Sobre o último homem, explica a professora Marta de La Vega Visbal:
O ‘último homem’ é, em primeiro lugar, comprovação e expressão de um projeto, a
partir de uma situação vivida e pensada; logo, produto de um conjunto de ‘feitos
humanos’ inseparavelmente ligados a uma ‘visão do mundo’. Essa, por sua vez,
aparece ao mesmo tempo incerta num tecido de estruturas significativas que
respondem a um modo determinado de interpretação da realidade e de relação com o
mundo, segundo uma perspectiva axiológica particular. Nesse sentido, o “último
homem” é sintoma e também sinal, quer dizer, significante e significado. Por isso, a
necessidade do “último homem” nos parece patente na obra filosófica de Nietzsche,
inclusive se esse conceito é “relativo”, já que está condicionado desde o princípio
por certos valores, no mesmo nível em que toda visão do mundo.
204
Nachliass/FP, 11 [411], KSA.
205
VISBAL, Marta de La Veja. Ética e política. Genealogia e alcance do “último homem” na filosofia de
Nietzsche. Cadernos Nietzsche 17, p. 57-90, 2004. p. 58.
206
MOURA, 2005, p. 266-267.
104
Se agora o homem tateia no vazio deixado pela morte de Deus, não significa, contudo,
que a sua existência já não tenha mais valor ou que a vida agora caminhe, em linha retilínea,
para o vazio absoluto. O que se perdeu, nesse caso, foi uma perspectiva, insustentável na
modernidade e enferma, que induzia o pensamento, o corpo, à enfermidade. O tempo,
independente de Deus ou de qualquer outro preceito metafísico, segue seu percurso no
concernente aos conflitos humanos, cujas forças, por sua vez, são finitas. Se houvesse algum
objetivo para ser alcançado, este já teria se feito presente, pois houve tempo suficiente para
isso.
O vir a ser, portanto, se não se torna possível encontrar um fim último para as coisas,
tende, assim posto, a sempre retornar a si mesmo. Sem Deus não há meta, desse modo tudo
retornaria incessantemente, o que impediria, por sua vez, a tentação de se construir um novo
deus, pois com o eterno retorno o homem estaria sempre em uma constante perspectiva
criadora de valores, que não subsistiriam, assim, o processo de retorno iria infinitamente ser
acionado, o que impediria a fixação de valores, de preceitos e verdades.
Pelo ponto de vista nietzschiano, portanto, o eterno retorno 207 do mesmo pode ser
interpretado como um preceito filosófico que surge como uma proposta de superação das
concepções teleológicas, que buscam delimitar um fim às coisas, isto é, uma ordenação
lógico-racional. O eterno retorno propõe, assim, a possibilidade do novo, introduzindo um
caráter de afirmação da vida: “Consequentemente, o desenvolvimento deste instante tem de
ser uma repetição, e também o que o gerou e o que nasce dele, e assim por diante, para a
frente e para trás!”. 208
Assim, o mundo, excetuando-se a ideia de um Deus transcendente, trás a perspectiva
da circularidade, desde que se leve em consideração seus elementos constituintes:
Será preciso considerar o mundo do ponto de vista dos seus elementos constitutivos,
ou seja, do ponto de vista das forças ou da força total da natureza. Segundo
Nietzsche, para afastar de vez as concepções finalistas é preciso considerar o
conjunto da força total da natureza como sendo finita e sempre igual, isto é, como
força determinada e centros de forças determinados. 209
Nesse ponto, ao afirmar que o eterno retorno faz referência ao caráter finito das forças
da natureza, o que Nietzsche quer de fato é se afastar das concepções metafísicas que erigem
207
Assim posto, observa-se que o eterno retorno pode ser também concebido como um esforço intelectual para
afastar a concepção teológica-cristã de criação do mundo, do homem etc., como elucida Barbosa: “Löwith está
certo de que “em sua essência, a doutrina do eterno retorno equivale, ao mesmo tempo, a um substituto ateu de
religião e a uma ‘metafísica física’”. (BARBOSA, I. M., 2010, p. 83).
208
Nachlass/FP, 11 (202) do outono de 1881.
209
BARBOSA, I. M. O pensamento do eterno retorno e da vontade de poder como superação das teleologias
cristã e científica, Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, 1º semestre 2010, Vol.3, nº1. p. 75.
105
forças infinitas, pois a noção de força, para o filósofo, deve ser interpretada pelo viés da
finitude e recorrência.
Com isso, o significado da vida agora se mostra múltiplo e imanente. Deve-se viver
desse momento em diante de tal modo que esta vida seja desejável de se viver outras infinitas
vezes.
É preciso, dirá Nietzsche, que todo traço característico que está no fundamento de
cada acontecer seja sentido por um indivíduo como seu traço característico
fundamental; isso impeliria esse indivíduo a achar bom, triunfantemente, cada
instante da existência universal; isso dependeria, justamente, de sentir em si esse
traço característico fundamental do bom, valioso, com prazer. 210
210
MOURA, 2005, p. 274.
106
211
Conforme evidenciam Vernant & Vidal-Naquet: “[...] a timé, a ‘honorabilidade pessoal’ e a areté, a
‘excelência’, a superioridade em relação aos outros mortais...”. (VERNANT, J. P. & VIDAL-NAQUET, P. Mito
e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. p.23).
212
BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. v. 3. Petrópolis: Vozes, 1987. p.15.
213
Não são poucas as narrativas míticas nas quais os heróis gregos, em diversos casos, tiveram que recorrer a
atitudes mais violentas para a solução de determinadas situações. O desfecho do embate pessoal entre Heitor e
Aquiles é um exemplo, o que resultou no atrelamento do corpo do primeiro à carruagem do segundo e o desfile
por parte do vencedor com o corpo sendo arrastado. A presença em guerras por parte dos referidos heróis
também é uma constante.
107
seu desenvolvimento físico como forma de torná-lo mais eficaz na arte do combate, usa o
próprio corpo como meio de efetuar a destruição.
Na guerra, o homem que se lança contra o outro representa o digladiar de corpos que
visam, basicamente, à inutilização ou absoluta destruição do corpo alheio considerado
inimigo: “Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo. Na guerra, são os
corpos que infligem violência, mas também são os corpos que sofrem a violência”. 214
A intenção, neste ponto do trabalho, não é levantar questões morais sobre a natureza
da guerra, mas apontar que ela é um fato concreto inegável e que, independente dos discursos
e épocas de paz, a guerra se faz presente e de modo contundente ainda hoje, o que permite
refletir sobre a postura do homem diante dos conflitos. Nietzsche, em diversos aforismos,
ressalta a importância da guerra, afirmando que somente o homem doente abdica da mesma.
Contrário a este há o homem nobre, aristocrata:
Na tradição europeia, a guerra não é um desvio patológico, e sim uma etapa do fluxo
incessante das relações internacionais. Essa visão, realista e cínica, forjada na
geografia das rivalidades dinásticas e das disputas por territórios, não exclui o horror
diante do sofrimento. Mas ela opera na moldura filosófica construída por Maquiavel,
que separa a moral política da moral comum. Guerra é história. Guerra é cultura. 216
A guerra, mais do que outra coisa, chega a ser uma necessidade para a sobrevivência
do Estado. Não sem motivo obras como O príncipe, de Maquiavel, são emblemáticas na
214
CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G. 2012, p.365.
215
GM/GM, I, §7.
216
MAGNOLI, D. (Org.). História das guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.11.
108
história do homem como forma de guia para que o monarca, ou governante, para o vigor e
manutenção do seu comando sob quaisquer circunstâncias.
Nietzsche observa tal questão sob o aspecto do corpo e expõe a guerra, o conflito,
como uma expansão, uma representação efetiva da vontade de poder que se apresenta em
todas as coisas. Um corpo saudável é um corpo guerreiro, pois está pronto para o combate,
para a ação e a defesa dos seus princípios.
É preciso observar, entretanto, que esta concepção nietzschiana de uma postura
guerreira está essencialmente voltada para um caráter genealógico, cuja presença na
modernidade efetuar-se-ia, não como um modo de retorno à postura bélica antiga e ao seu
modo de efetuação, mas em uma vertente mais espiritual, considerando-se a racionalidade
nesses tempos atuais: “A espiritualidade da guerra está precisamente em não renunciar à
guerra, pois se estaria, desta forma, renunciando-se à própria vida, em não renunciar a própria
guerra que o homem já é (ABM:200)”.217
“Renunciamos à vida grande, ao renunciar à guerra...” 218, de acordo com Nietzsche.
Há no homem, inegavelmente, o gosto pela luta e a necessidade de ampliação, mesmo que
isto custe a destruição de determinados valores. Tal concepção, apesar de polêmica, sobretudo
por suscitar os sentimentos diversos, não tem forças para afastar a evidência inquestionável de
que o homem possui uma forte ligação com a guerra, o conflito. O próprio corpo e a
constituição orgânica do homem, segundo Nietzsche, constituem-se em seu caráter interno de
conflitos de forças constantes. Levando-se em consideração o âmbito de forças, de modo
ainda embrionário, é possível distinguir os homens em nobres ou não, guerreiros ou fracos,
como expôs Nietzsche em GM/GM. 219
Na referida obra, o filósofo argumenta, dentre outras coisas, que a necessidade de
manutenção de um corpo saudável está ligada a uma vida voltada para o plano terrestre, para
os valores nobres, para aquilo que é efetivo. No campo moral/cristão, a inércia é condição
indispensável e, portanto, a debilidade do corpo se faz atuante. Mas é preciso observar que tal
enfermidade não se efetua apenas no campo físico, mas também espiritual, como explicita
Nietzsche:
Nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma
nova saúde, até agora. Aquela cuja alma anseia haver experimentado o inteiro
compasso dos valores e desejos até hoje existentes [...] para isso necessita mais e
antes de tudo de uma coisa, a grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas
217
NIETZSCHE apud VIESENTEINER. J. L. A grande política em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2006. p.
202.
218
GD/CI, V, §3.
219
GM/GM, I, §7.
109
O adoecer é requisito necessário para a grande saúde, que não é apenas corporal, mas,
acima de tudo, espiritual. Corroborando com o pensamento de Nietzsche, tanto as filosofias
que desprezam o corpo e os procedimentos naturais da vida, quanto as religiões que sustentam
o enfraquecimento espiritual do homem, nos âmbitos físico e das forças ativas inerentes ao
humano:
222
ARALDI, 2012, p. 2.
223
Nachlass/FP, 1885, 11, 40[21].
111
idealizar uma felicidade, projetá-la em outro mundo, uma vez que o estado de felicidade está
interligado ao agir:
Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”; eles não tinham que
construir artificialmente a sua felicidade [...] Enquanto o homem nobre vive com
confiança e franqueza diante de si mesmo [...], o homem do ressentimento não é
franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través, ele ama
os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo,
sua segurança, seu bálsamo [...]. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará
necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência
numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira
ordem.224
224
GM/GM, I, §10.
225
Tal homem foi exaustivamente trabalhado por Nietzsche em GM/GM, como observa-se nos aforismos §10,
§11,§13 §14, dentre outros. O homem do ressentimento seria o tipo acabado do indivíduo moderno, aquele cuja
incapacidade de agir apresenta-se mais contundente e vigorosa do que outra inclinação. É o sujeito da eterna
espera, apequenado, exaurido, incapacitado, que vê na sua condição uma vantagem que ele, assim como os seus
semelhantes, acredita ser o desejável.
226
PASCHOAL, E. A superação do ressentimento na filosofia de Nietzsche, Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, nº
2, p. 183-206, jul./dez. 2012. p. 184-185.
112
O poema Ilíada contém, como se sabe, a narração do intenso conflito que ficou
conhecido na história como A Guerra de Tróia, entre o povo aqueu e o troiano, mas,
sobretudo, transmite perfeitamente o espírito cultural - especificamente da esfera
moral – que tanto influenciou pensadores como Nietzsche. Os gregos, “os homens
mais humanos da época antiga”, sobretudo dos tempos homéricos, possuíam um
certo gosto pela crueldade e, nela, o constante anseio pelas disputas entre homem e
homem, povo e povo etc. não é por acaso que a característica mais marcante dos
poemas de Ilíada é precisamente o de relatos dos mais cruéis e sangrentos combates
entre gregos e troianos, mas com um grande diferencial: a consciência clara de uma
educação para a competição, para o agon, e da absoluta necessidade destes conflitos
para a saúde tanto do próprio guerreiro quanto da própria cidade-estado.227
Saúde, portanto, para Nietzsche, também pode ser compreendida sob o viés da
política. O desejo de guerra, de enfrentamento em relação ao outro, salutar em tempos
antigos, foi, na modernidade, alterado para o medo, o adoecimento do espírito. O espírito
guerreiro, devido as concepções cristãs de submissão e humilhação, represaram no homem o
seu instinto de luta. O indivíduo moderno, moldado por uma educação aprimorada, por um
estilo de vida cômodo, voltado para o mero acúmulo de bens, algo que o faz através,
principalmente, do seu intelecto, tornou-se debilitado, organicamente fragilizado.
A guerra, como dito anteriormente, faz parte da cultura e da vida do homem grego.
Este não negou esse lado violento de si e da vida, mas aceitou-a e a utilizou no
aprofundamento da sua cultura. A vida também é cruel e não apenas bela. Negar a primeira
característica é repudiar uma parte importante do homem, algo que os gregos antigos não
fizeram:
A vida, para o homem grego dos tempos homéricos, encontra-se em todos os lugares,
em qualquer situação. Não houve, por parte dos helênicos, uma fuga da existência efetiva.
Seus deuses amavam, odiavam, guerreavam, sofriam. 229 A terra, presente nos mitos gregos,
sempre possuiu lugar de relevância, mesmo se considerando a existência do Olimpo, local no
qual somente eram aceitos os indivíduos mais notáveis por suas façanhas. Em toda a cultura
grega, vigor, movimento, ação, corpo e saúde, enfim, se fazem presentes.
227
VIESENTEINER, 2006, p.171.
228
BARROS, R. de A. P. de. Naturalização da cultura ou culturalização da natureza? In LINS, D.; OLIVEIRA,
N.; BARROS, R. (Orgs.). Nietzsche/Deleuze Natureza/Cultura. São Paulo: Lumme Editor, 2011. p. 131.
229
“Os deuses (gregos) estão, pois, muito acima da humana existência. E contudo sua natureza é muito
aparentada à humana. A aparência externa é semelhante, por mais que a perfeição e a imperecibilidade sejam
privilégios dos divinos. Eles sabem e podem incomparavelmente mais que os homens, mas compartem com os
afetos e paixões. Nem mesmo o sofrimento lhes é de todo poupado, já que os ‘bem-aventurados’ com frequência
choram a morte de seus favoritos humanos. Sim, eles também podem sofrer”. (OTTO, 2005, p.116-117).
113
O corpo, agindo, sentindo, evidencia-se como a grande razão que Nietzsche expôs. O
homem não pode ser ficar circunscrito, conforme definiu Descartes230, à distinção entre corpo
e alma, de acordo com o filósofo alemão, pressuposto esse que a filosofia tradicional, durante
muito tempo sustentou, especialmente no que tange aos equívocos em relação à alma e
principalmente ao corpo:
[...] O completo desprezo pelo corpo não permitia ao indivíduo ver a completa e
minuciosa arte de seu jogo organizacional para a autopreservação e purificação do
modo de ser da espécie: -- em outras palavras, o infinito valor da personalidade
individual como representante do processo vital e, portanto, o seu supremo direito
ao egoísmo, -- como toda a sua impossibilidade de não o ser... .231
A partir da ótica do doente ver conceitos e valores mais saudáveis, e, pelo lado
inverso, da abundância e da autoconfiança da vida abastada, olhar para baixo em
direção ao trabalho clandestino do instinto de décadence – esse foi o meu exercício
mais longo, a minha verdadeira experiência; se me tornei mestre em alguma coisa,
então foi nisso. Agora o tenho às mãos, agora tenho a mão para a inversão das
perspectivas.232
230
Não é nossa intenção descrever aqui a crítica de Nietzsche a perspectiva de Descartes (2004), no que tange a
separação entre corpo e alma, contudo é importante frisar, minimamente, os seus arcabouços. Descartes concebe
o corpo com algo que, diferente da alma, pode ser medido através das três dimensões. Afirma ainda que esta
matéria não se move por si só, mas apenas com o auxílio de outro corpo, no caso, a alma, o que significa dizer
que o corpo, para o referido filósofo, não é autônomo, mas algo absolutamente dependente, ou seja, o corpo não
possui vontade, conceito este que, como se sabe, tão caro a Schopenhauer e, posteriormente, a Nietzsche. Porém,
Descartes não nega a junção do corpo com a alma, mas apresenta tal ligação como algo que se efetua entre dois
elementos de acentuada disparidade. Descartes corrobora que a alma é responsável pelo pensamento do homem,
e que se há alguma participação do corpo nesse processo de efetivação do pensamento, do raciocínio, esta é
mínima, incerta e inferior àquela produzida pela alma: “Ora, o primeiro e principal requisito que previamente se
exige para o conhecimento da imortalidade da alma é que dela nos formemos um conceito, o mais claro
possível e que seja completamente distinto de todo conceito do corpo”. (DESCARTES, 2004, p.37) Dessa forma,
percebe-se no pensamento do referido filósofo francês, uma primazia da alma em relação ao corpo, concepção
esta que durante muito tempo permeou a postura filosófica, a qual só podia ser alcançada efetivamente através da
alma e que gerou, entre outros efeitos, a supervalorização da consciência e do “eu”, em detrimento do corpo,
algo que Nietzsche buscou reverter em suas obras.
231
Nachlass/FP, 22 (22). (Grifos originais)
232
EH/EH, Por que sou tão sábio, p.24.
114
Neste ponto, a saúde pode ser considerada uma característica daqueles que Nietzsche
denominou de “espíritos livres”, indivíduos que se opõem ao espírito escravo, cativo, uma vez
que o primeiro está livre de convenções, principalmente as morais, pois ele mesmo busca para
si as respostas que procura, não necessita que outro o governe nem que o oriente, do contrário
sua liberdade não seria algo efetivo. É preciso ressaltar o caráter de autonomia do espírito
livre, cuja vida está centrada em um senso de múltiplas perspectivas que não coadunam com o
sentimento de grupo desenvolvido e estimulado nos espíritos cativos, temerosos e incapazes
de uma ação livre, uma vez que depositaram sua liberdade em mãos alheias, que podem ser
representadas pelo Estado, Igreja ou outro sistema de doutrinação. O espírito livre anseia pelo
novo, não se acomoda, não estagna, mas movimenta-se, assumindo posições que muitas vezes
constituem-se em sentido contrário ao costume, ao hábito e à moral vigente. Tal indivíduo
233
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche: memória trágica e futuro revolucionário, In: FEITOSA, C.;
BARRENECHEA, M. A.; PINHEIRO, P. (Orgs.) A fidelidade à terra: arte, natureza e política - Assim falou
Zaratustra IV. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.49.
115
234
MARTON, S. Assim silenciou Nietzsche. In: BARRENECHEA, M. A.; FEITOSA, C. (Orgs.) Assim falou
Nietzsche II: memória, tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p.167.
116
É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria
com base em sua procedência, seu meio e função, ou com base nas opiniões que
predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são as regras; estes
lhe objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até
mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa
[...]. De resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões corretas, mas
sim ter se libertado da tradição, com felicidade ou com um fracasso. 235
O problema da distinção entre mundo real e mundo imaginário precisa ser revertido,
cabendo a estes espíritos tal tarefa, pois eles, como novos filósofos, irão reafirmar a
importância do mundo efetivo, esfacelando a separação entre “corpo” e da “alma”, erro que
contaminou a humanidade desde o platonismo e situou o homem em um nível de inferioridade
em relação ao deus que ele mesmo criou.
Até agora foi o homem, concebido como criatura em relação a um Criador, quem
avaliou; e os valores que criou desvalorizaram a Terra, depreciaram a vida,
desprezaram o corpo. É preciso, pois, combatê-los, para que surjam outros. É
preciso denunciar que se forjou a alma "para arruinar o corpo", que se inventou o
"mundo verdadeiro" como "nosso ATENTADO mais perigoso contra a vida", que se
fabulou a noção de Deus como "a máxima objeção contra a existência". Só então
será possível engendrar uma nova concepção de humanidade; só então será possível
criar novos valores. Tornando-se criatura e criador de si mesmo, o além-do-homem
prezará os valores em consonância com a Terra, com a vida e com o corpo. 236
A vida é múltipla, como o é o corpo. Não há apenas dois caminhos a seguir, a saber, o
do bem e o do mal. Compreender esse sistema de aprisionamento e posicionar-se contra ele é
tarefa do espírito livre, precursor do além-do-homem, aquele que está em sintonia com o
mundo e consigo, e não fixado em uma só ideia, imaterial, metafísica, e por isso ressentido,
enfermiço.
Mas a tarefa dos espíritos livres não é pequena, há todo um mecanismo a ser
combatido, concepções a serem vencidas, costumes para derrubar, algo que será defendido,
protegido, pois os homens doentes estão acomodados, protegem-se mutuamente e não querem
iniciar uma nova forma de pensar e ver o mundo. Para derrubar tais muros, é preciso saúde
robusta, para se afastar daquilo que é nivelador, de natureza escrava, para tornar-se outra vez
235
MA I/HH I. §225.
236
MARTON, S. A morte de Deus e a transvaloração dos valores. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia
de Nietzsche. 3ª. ed. São Paulo: Barcarolla, 2009. p.135.
117
nobre, senhor de si, portador de uma experimentação. 237 É preciso sofrer, pois sofrimento é
enobrecimento, conforme Nietzsche, posicionando-se contrário aos princípios cristãos de
alívio e suspensão da dor:
237
Cf. WEBER, J. F. Formação (Bildung), educação e experimentação: sobre as tipologias pedagógicas em
Nietzsche. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. p. 147-160.
238
JGB/BM, §270.
118
sempre por um viés negativo. Nietzsche sustenta outra direção: amar a dor, pois nesta há tanta
importância quanto no seu oposto:
Na dor há tanta sabedoria como no prazer: como este, ela está entre as forças de
primeira ordem na conservação da espécie. Se não, há muito já teria desaparecido; o
fato de doer não é argumento contra ela, é sua essência. Eu escuto, na dor, o grito do
capitão do navio: “Recolham as velas!”. O ousado navegador “homem” tem de
aprender mil maneiras de dispor das velas, senão logo teria passado, o mar o teria
engolido [...]. Existem homens, é verdade, que ouvem o comando oposto, ao sentir a
aproximação da grande dor, e nunca são mais orgulhosos, belicosos e felizes do que
quando surge a tempestade; sim, a dor mesma lhes proporciona seus maiores
momentos! São os homens heróicos, os grandes portadores da dor da humanidade:
estes seres poucos ou raros, que necessitam exatamente da mesma apologia que a
dor – e, verdadeiramente, ela não lhes deve ser negada! São forças de primeira
ordem na conservação e promoção da espécie: ainda que fosse apenas por resistirem
à comodidade e não esconderem seu nojo a tal espécie de felicidade. 239
inegável, visto que um homem, mesmo na mais idealizadora das concepções, das normas, dos
regramentos, não é igual ao outro, mesmo que se queira estabelecer tal concepção como
verdadeira e concretamente sustentável, vê-se que ela carece inteiramente de sentido, uma vez
que:
A pretensão de um tornar igual, homogeneizar todos os homens a partir da exclusão
das diferenças para se tornar dominante, ou seja, a exigência de uma perspectiva
universal “é nociva precisamente para os homens elevados”, visto que “o que é justo
para um não pode absolutamente ser justo para outro” (ABM, 228).242
242
VIESENTEINER, 2006, p. 184.
243
MA I/HH I, §225.
120
Nietzsche quer uma nova saúde, mas para que o homem venha a alcançá-la é preciso a
luta, o tornar-se guerreiro, a busca pelo conflito, a saída do estado de apatia e ausência de
mobilidade. Alcançar essa grande saúde não significa estar livre da sedução da inércia, dos
morais que resistirão e empreenderão luta para que os componentes do seu rebanho
mantenham-se, pois “[...] essa degeneração ou diminuição do homem, até tornar-se o perfeito
animal de rebanho (ou, como dizem eles, o homem da ‘sociedade livre’), essa animalização
do homem em bicho anão de direitos e exigências iguais é possível”. 246 Por isso é mais do
que necessário buscar a grande saúde, torná-la cada vez mais poderosa, uma vez que a
“grande saúde” “não significa a eliminação da doença, uma vez que a doença, enquanto
produtora de tensão é um poderoso estimulante”.247
É preciso compreender que por doença não há somente aspectos referentes ao
organismo, ou seja, aquilo que se entende por enfermidade, mas também aquilo que se
apresenta em outros campos, como o moral, capaz de tornar o indivíduo débil.
O empreendimento da grande saúde, desse modo, marca o retorno do homem aquilo
que lhe é mais caro, ou seja, à sua condição de efetividade no mundo, cuja significação
nenhuma relação concreta possui com o caráter metafísico que inventou para si, mas que se
244
MA I/HH I, Prólogo §5.
245
FW/GC, §382.
246
JGB/ABM, §203.
247
PASCHOAL, A. E. Nietzsche e a auto-superação da moral. Ijuí, Ed. Unijuí, 2009. p. 161.
121
tornou uma forma de aprisionamento de si, dos seus instintos, do seu corpo. É preciso buscar
ao que se é, para sobrepujar a si, conforme pondera Barrenechea:
O homem deve retornar ao seu eixo, após o extravio milenar idealista que o afastou
de sua procedência trágica. Impõem-se a memória dessas forças arcaicas, terrestres
e instintivas que ainda agem soterradas pelas falsas luzes de uma racionalidade que,
após o socratismo, conduziram a humanidade para o niilismo. 248
O caminho para uma cultura mais salutar, mais vigorosa esta no corpo e na retomada
deste como elemento significativo na existência humana. O corpo é a chave, mas não qualquer
corpo, como dito anteriormente, mas aquele cuja saúde seja fonte de força para suas criações,
para o seu desenvolvimento. Este homem afastará de si a máscara do mundo, confeccionada
por mãos e mentes que pregam o perdão, a piedade, a subserviência, o adoecimento e a
inanição através da moral, por um lado, e em um momento bastante específico. E por outro
viés, afastará de si o vazio característico do homem da modernidade, destituído de todos “os
artigos de fé” que cultivou por milênios.
Este homem há de vir, conforme Nietzsche, pois o futuro àquele pertence:
Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de
si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem de grande amor e de grande
desprezo, o espírito criador cuja força impulsora afastará sempre de toda
transcendência e toda insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo
povo, como se fosse fuga da realidade – quando será apenas a sua imersão,
248
BARRENECHEA, 2003, p.49.
249
SILVA JUNIOR, I. da. Em busca de um lugar ao sol: Nietzsche e a cultura alemã. São Paulo: Discurso
Editorial: Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2007. p. 134.
250
GM/GM, §24.
122
absorção, penetração, na realidade, para que, ao retornar à luz do dia, ele possa
trazer a redenção dessa realidade: sua redenção da maldição que o ideal existente
sobre ela lançou. Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente,
como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada,
do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna
novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua
esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem
que vir um dia... 251
O homem sadio é elevado, criador, almeja a altura das montanhas e aceita a vida tal
como ela é, ou seja, uma contínua experiência de dor e prazer, afastando de si o ressentimento
que abranda negativamente as forças vitais, o próprio corpo, algo que o homem enfermo não
faz, por temer a vida, por recusar qualquer ação que exija de si uma postura mais efetiva no
mundo.
É interessante ressaltar ainda, nesse contexto, que a noção de corpo tem uma função
primordial e estratégica no pensamento de Nietzsche, uma vez que postula a base para a
elucubração que empreenderá em torno de determinadas expressões que só podem ser
alicerçadas considerando, também, o aspecto corpóreo, a saber: “fraco”, “forte”, “doente”,
“saudável”, antagonizando, uma vez mais, com as morais responsáveis pela criação de
sintomas e estados corporais desfavoráveis, já que “é preciso que a vida não venha se
253
submeter a um ideal, às dicotomias de valores, à verdade”. Assim, acerca do tipo
decadente, desvitalizado, expõe Bittencourt:
251
GM/GM, p. 84.
252
HEIDEGGER, apud GIACÓIA JUNIOR, O. O último homem e a técnica moderna. Nat. hum. São Paulo, v.
1,n. 1, p. 33-52, jun. 1999. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
24301999000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 jan. 2016. (Trecho traduzido por Giacóia Junior).
253
VIEIRA, M. C. A. O desafio da Grande Saúde em Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. p. 44.
123
O tipo decadente é desvitalizado, por sua vez, pelo fato de considerar o esforço de
superação de si mesmo como um evento arriscado, demasiado perigoso para a
conservação de sua individualidade, tende a depreciar qualquer tipo de ação pautada
na imposição de sua força em prol da elevação do nível de sua potência, preferindo
então sobreviver com o mínimo de energia necessária para a manutenção de suas
funções vitais mais básicas.254
Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam
de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não [...]. Uma vez a
alma olhava com desprezo para o corpo: e esse desdém era o que havia de maior: -
ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e à terra.
256
254
BITTENCOURT, R. N. A decadência dos instintos vitais na moral do ressentimento, Revista AdVerbum 3
(2), p. 156-167, agosto a dez. de 2008, p. 164. Disponível em:
<http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/vol3_2/03_2_6decadencia_dos_instintos.pdf.>. Acesso em:
02/12/2015.
255
Expressão que na filosofia de Nietzsche vai bem mais além do que o sentido costumeiro do termo: pode-se
situá-la, conforme o pensamento do referido filósofo como a existência propriamente dita dos homens, não em
um sentido individual, mas coletivo, em contraposição à ideia de céu, paraíso, éden, o “outro mundo”, conquistas
metafísicas alcançadas particularmente conforme o merecimento de cada um.
256
Za/ZA, Prólogo 3, p.14.
124
verás que sangue é espírito” 257. Pode-se afirmar que o sangue, elemento basilar do corpo, é o
que flui, que não cessa no organismo. Seu movimento deve ser incessante, para que os outros
órgãos não falhem. É com sangue que se deve escrever, compreendendo-se esse verbo
também no sentido de viver. O próprio homem é responsável pelo seu amanhã e não deuses
ou demônios. O sangue representa também a luta, o sacrifício daqueles que estão em combate,
essência da vida.
257
NIETZSCHE, Za/ZA, Do ler e escrever, p.40.
258
Nachlass/FP, 2 (153).
125
Depreende-se que não há forças externas ao mundo, este existe e é regido por forças
que se mantêm em constante movimento, pois se, ao contrário, fosse possível falar em um
estágio de repouso, tais forças deixariam de existir. Compreende-se, dessa forma, que não se
pode conceber o mundo como algo em harmonia, equilíbrio, e sim em constante conflito, pois
prevalece uma necessidade de expansão: “os processos culturais são processos seletivos, tais
como os biológicos. O ponto em comum dos dois processos está nos impulsos ou nas forças:
igual ao organismo humano, a cultura é expressão de forças que lutam entre si [...]”. 259 É este
cenário basilar no qual se vislumbra a vontade de poder:
[...] seu ser consiste não em conservar-se, mas em exercer seu poder sobre outras
forças que se lhe resistem. Portanto, não conservação de energia, mas querer ser
mais forte por parte de qualquer centro de força; não preservação de si mesmo, mas
vontade de apropriar-se, de apoderar-se do estranho para ser mais e poder mais. A
hipótese de que se parte aqui para abarcar o caráter geral da existência se explica
como esforço em direção ao poder.260
Tal vontade é, por assim dizer, o pressuposto da existência humana, a sua alavanca
inicial, pois está em tudo o que se pode ver, ouvir, tocar, imaginar etc. Nesse ponto, adentra-
se com mais vigor na questão do corpo, pois é através deste que o homem é atingido pelo
mundo em seu mais plural sentido. Por isso, não se pode dizer que existe uma vontade, mas
diversas, que se efetivam das mais diferentes formas, desde os modos mais brandos, até os
mais conflituosos: “A moral tem ensinado, por conseguinte, mais profundamente a odiar e a
desprezar aquilo que é o traço básico do caráter dos senhores: a sua vontade voltada para o
poder”. 262
259
FREZZATTI, 2006, p. 41.
260
MECA, Diego Sánchez. Vontade de potência e interpretação como pressupostos de todo processo orgânico.
Cadernos Nietzsche 28, 2011. p. 25.
261
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p.32.
262
Nachlass/FP, 5 (71) 9.
126
Nesse aspecto, percebe-se que a vida do homem é conduzida pelo jogo de forças da
vontade de poder: em tudo o que o cerca, sua vontade dirige seu olhar, sua fome de
apropriação: “o que um ser humano quer, o que cada partícula de um organismo vivo quer é
um a-mais de poder”. 263 Vontade de poder e o caráter orgânico não podem ser dissociados,
pois o mundo chega ao homem, conforme Zaratustra, através da grande razão: o corpo.
Agora, o homem não quer apenas existir, ou subsistir, ele quer dominar, criar,
expandir-se. Somente o homem cristão ou o indivíduo doente, busca e enaltece a estagnação,
a impossibilidade de mudança significativa, assim como também o homem da modernidade,
que, em uma perspectiva contrária, encontra-se refém dos valores esvaziados e dos instintos
desagregados, debilitantes. O homem ativo, por sua vez, quer afirmar-se e para tanto a
atividade no mundo se faz mais do que necessária, o que o conduz a asseveração da sua
vontade de poder, que não pode ser compreendida aqui somente no sentido de disputa, de
eterno e incansável conflito, mas também como possibilidade de criação, aquilo que faz
suscitar novas perspectivas.
O homem de organismo sadio, o indivíduo da ação, aquele que não aceita a moral
escrava, quer dizer sim à vida, e o faz através do vigorar de sua vontade. Nietzsche inclusive
aproxima tal tipo à questão da justiça:
O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o
homem reativo [...]. Efetivamente por isso o homem agressivo, como o mais forte,
nobre, corajoso, em todas as épocas possuiu o olho mais livre, a consciência melhor.
264
263
Nachlass/FP, 14 (174).
264
GM/GM, II, §11. (Grifos originais)
127
Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer
fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode
ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao
contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-
viver. 266
O homem, como ser labiríntico, não pode ser classificado sob um título, uma posição
social, uma inclinação, uma postura. Saúde e doença, levianamente separados, como coisas
distintas, apresenta-se para Nietzsche como estados que se complementam: sem a doença, o
estado de saúde perde a sua razão de ser, tornando-se algo banal. É através da primeira que o
homem busca a segunda, desejando-a, estimulando-o a alcançar o estado sadio, mas sem
ignorar que uma está implícita na outra, uma vez que estar saudável implica também em uma
possibilidade futura de doença.
Desse modo, exige-se do homem atenção nessa dupla vertente do físico que se pode
relacionar com a própria condição de vida. Tal concepção, vista também sob o prisma da
metáfora, sugere ao homem, em uma interpretação pessoal, o seu adoecimento moral, a sua
enfermidade que se manifesta através de valores que foram inoculados em si através de
diversos meios, como religião e Estado. Sobre tais enfermidades, o indivíduo precisa buscar
revigorar-se para uma futura possibilidade de, curando-se, tornar-se são daquilo que o
enfraquece e que o impede de se tornar aquilo que é.
265
Sobre o assunto, ver artigo de Isabelle Wienand, intitulado Reconciliação no pensamento de Nietzsche?
Cadernos Nietzsche 31, 2012.
266
EH/EH, Por que sou tão sábio, §2.
128
Não é sem propósito que Nietzsche fala, como já visto, em várias saúdes 267, pois o
homem pode adoecer de diversas formas, em diferentes graus. O nivelamento, a crença em
mundos supraterrenos, a busca pela verdade, o desejo de salvação da alma, e apenas desta, a
fé, nos moldes cristãos, ou mesmo a vontade de nada, afiguram-se como tipos de doenças que
se manifestam através da suspensão da vitalidade e do apego à vida terrena. A superação da
metafísica hipervalorativa da alma, mais do que uma necessidade, é, para Nietzsche, uma
questão de saúde, pois a intenção do referido filósofo é a retomada do corpo e sua
multiplicidade de impulsos e forças de dominação, elementos estes que se representam e que
encontram expressividade também no mundo, o qual não deve ser esquecido, uma vez que é
este mundo que fornece ao corpo determinados elementos que constituem a grande razão:
[...] é o corpo o ponto de apoio para Nietzsche e o lugar de separação das águas em
seu pensamento com respeito à tradição. O radical e intempestivo de seu
esclarecimento se mostra quando afirma que não é simplesmente o espírito ou a
razão o que filosofa no homem, mas, desde o início, as carências ou as riquezas e
forças de seu corpo.268
267
FW/GC, § 382.
268
“[...] es el cuerpo el punto de apoyo para Nietzsche y el lugar de separación de las aguas de su pensamiento
con respecto de la tradición. Lo radical e intempestivo de su planteamiento se muestra cuando afirma que no es
sin más el espíritu o la razón lo que filosofa en el hombre, sino que, desde la partida, las carencias o las riquezas
y fuerzas de su cuerpo.” (JARA, J. Nietzsche, un pensador póstumo. El cuerpo como centro de gravedad.
Anthropos Editorial, Barcelona, 1998. p. 61).
269
PASCHOAL, 2009, p.43.
270
Ver Nachlass/FP, 14 (173), 14 (174).
271
GM/GM, II, §12.
272
DELEUZE, 1976, p. 33.
129
A não ação, a resignação, a vida ascética no seu sentido mais romantizado, a pregação
de uma harmonia baseada na tentativa de supressão do conflito, dentre outros aspectos,
marcam a existência cristã como algo não natural, pois renega a vida e o corpo naquilo que
ambos possuem de mais particular: o desejo de realização e ampliação. Enaltecer a inanição
moral e fisiológica é condenar o homem a uma vigência subterrânea na qual a vontade de
poder não encontra formas de propagação, o que se reflete no próprio corpo.
O que Nietzsche como fisiologista quer é um sim à vida e o faz através da afirmação
do corpo, que também é vontade de poder. O homem, na sua efetivação, através das mais
diversas formas, desde um simples caminhar até a prática de atos mais extremos, é todo
permeado de vontade fisiológica que está para além de conceituações, designações racionais
ou metafísicas.
O método genealógico dos procedimentos nietzschianos, na sua tarefa de auscultar as
enfermidades do corpo físico, é não apenas detectar a doença, mas também prescrever
possibilidades de cura. A história, por exemplo, deixará claro, conforme o método
genealógico de Nietzsche, que muitos conceitos nascidos e impostos como verdades ou
dogmas nasceram de modos distintos aos que na atualidade são postos, como as concepções
de bem e mal. O conceito de alma, tão adulterado no decorrer do tempo, hoje serve como
mecanismo de domesticação através da subsunção de temores e receios primitivos que
adestram o homem e o aprisionam em um sistema de vida corrompido, desregulador do corpo
e amestrador dos impulsos, algo que ocorre, como já dito, desde Sócrates e considerável parte
da tradição filosófica.
273
PASCHOAL, 2009, p.47.
130
274
FREZZATTI JR, W. A. A pia fraus (mentira piedosa) sob a perspectiva da genealogia da moral. In:
FREZZATTI, JR.,W. A. & PASCHOAL, A. E. (Orgs.). 120 anos de Para a genealogia da moral. Ijuí (RS):
Editora UNIJUÍ, 2008. p.266-267.
275
PASCHOAL, 2009, p.51.
276
Ver. AC/AC, §15.
277
Sempre necessário lembrar a oposição de Nietzsche com respeito a Rousseau, a qual não iremos abordar aqui
por se desviar um pouco de nosso propósito. É preciso frisar, contudo, que natureza, natural em Nietzsche são
sempre perspectivismos.
131
homem da modernidade se sujeita não mais à imagem de um deus hierarquizado como a fonte
moral, mas a formas de sujeitamento que o sufocam cada vez mais. Ideais de vida, conforto,
avanço tecnológico, dentre outros aspectos, substituem a figura divina como norteador da vida
e orientam a visão do homem para outros meios de controle, no qual o corpo ainda não possui
uma representação satisfatória, mas é observado apenas como mero instrumento de
corroboração de sistemas de alienação. Assim posto, a agressividade reprimida, a ilusão da
civilidade, o culto ao intelecto como única forma superior de hierarquização do homem em
relação aos demais animais, situam o homem em uma nova forma de carceragem na qual a
natureza e os impulsos são outra vez refreados.
Sem o aspecto natural, não se pode falar em uma vontade de poder, pois sem a
natureza o homem não consegue dar conta de quem ele próprio é, uma vez que o corpo é
também natureza. É preciso que o homem, para poder se tornar o que é, busque naturalizar-se,
uma vez que a sua natureza foi deturpada por valores que visam apenas a sua domesticação e
enfraquecimento, em outras palavras, a anulação da sua vontade de poder. E uma das formas
de concretização de tal projeto é o silenciamento do corpo, a constante supressão de seu
caráter fisiológico, a debelação dos seus impulsos.
Nesse âmbito, não se pode falar em uma harmonia entre os aspectos metafísicos e os
naturais, pois ambos situam-se em polos que se mostram contrários. Este mundo, da natureza,
não é o mundo das projeções ansiadas, dos paraísos imaculados e perpétuos, estagnados. O
mundo real, a realidade, como afirma Nietzsche, está em constante mudança e o corpo,
também efetivo e natural, segue-o em suas mutações, sua composição e decomposição.
O corpo não é somente prazer, satisfação, mas também dor, angústia, doença, e a
compreensão em torno desses últimos estados corpóreos é tão importante quanto os estados
afirmativos se quisermos abordar a saúde em Nietzsche. E neste aparente contrassenso que as
concepções morais fundamentam suas ofertas de sedução ao homem moderno. No outro
mundo não há sofrimento, não há aflição, somente deleite. E o homem que não aceita a vida e
os seus aspectos naturais, acolhe tal pensamento, adoecendo ainda mais. O homem moderno,
em contrapartida, é o indivíduo da artificialidade, das regras e dos valores impostos e
seguidos, mas que no âmbito da natureza perdem sua razão de ser.
O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme sua
natureza – a natureza é sempre isenta de valor: – foi-lhe dado, oferecido um valor, e
fomos nós esses doadores e ofertadores! O mundo que tem algum interesse para o
ser humano, fomos nós que o criamos! – Mas justamente esse saber nos falta, e se
num instante o colhemos, no instante seguinte voltamos a esquecê-lo. 278
278
FW/GC, §301.
132
Determinar o valor dos valores – ponderar se são nobres ou vis, sadios ou doentes –
é fundamental nesse momento niilista que predomina no ocidente. Ao analisarmos
esses valores, Nietzsche mostra que é possível elaborar um prognóstico – tarefa de
médico filósofo – a fim de ultrapassar essa etapa doentia da humanidade. Ele aponta
para a transvaloração dos valores que resgate as tendências vitais, restabelecendo as
forças de uma sociedade declinante. Lembremos que, como foi assinalado
anteriormente, nessa tarefa avaliativa é fundamental, para Nietzsche a participação
das ciências. 281
279
GM/GM, §7.
280
RAMACCIOTTI, B. L. Nietzsche e a ciência: Do Romantismo ao “Novo Esclarecimento” (Aufkärung). In: II
Congresso Internacional Spinoza e Nietzsche, 2009, São Paulo. Conferência. São Paulo: USP, 2009. p. 127.
Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_11/Nietzsche_Ciencia.pdf>. Acesso em:
03/12/2015.
281
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche cientista? In: BARRENECHEA, M. A. de. [et. al.]. Nietzsche e as
ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p. 43.
133
enveredavam por um caráter mais plausível, concreto, nos quais Nietzsche pode desenvolver
suas percepções e teorias sobre o corpo, o orgânico, o fisiológico:
282
Ibidem, p. 42.
134
vontade de sobrevivência. Isto não significa dizer que um indivíduo decadente não possua
instintos, entretanto, os seus são distintos se comparados aos de homens fortes:
A relação dos instintos com o corpo não pode ser mensurada. Entretanto, faz-se
necessário lembrar que muitos destes instintos sofreram, no decorrer da história, inúmeras
tentativas de bloqueio, de anulação, cujo sucesso não se efetivou, mas criou barreiras que na
atualidade são sentidas através de problemas que afetam o âmbito psicológico dos indivíduos.
O corpo, cujos instintos não são devidamente extravasados, é forçado a imergir em um estado
de debilidade, de insuficiência, uma vez que saúde pode ser também classificada como a
ativação e prática desses instintos mais elevados, vigorosos.
Em FW/GC, Nietzsche aponta para a importância dos instintos como força reguladora:
Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no
conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu
fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua
consciência. 284
É preciso reconhecer que a razão não é suficiente para dar conta da multiplicidade
instintiva do homem, dos seus impulsos que muitas vezes até mesmo se contradizem. Agir
apenas racionalmente, ou tentar, é empreender um projeto cuja falibilidade mostra-se
inevitável, pois os instintos, como formas elementares de sobrevivência do homem,
apresentam-se mais intensamente na medida em que a consciência, como aponta Nietzsche,
chega a tornar-se um perigo para o organismo, pois se acredita que ela é a grande reguladora
do homem, o que se mostra um equívoco.
Nos instintos não há engano, o corpo não cria subterfúgios para desejar algo, ele quer,
ele anseia, diferentemente da consciência, que, entre outras tarefas, disfarça, tangencia os
desejos humanos, mascarando-os ou retendo-os em nome de uma postura, de uma educação
polida, de um querer aparentar, conforme observa Granier, para quem: “faz-se necessário
deixar de dar crédito à consciência e se direcionar para o corpo, pois este é o único capaz de
nos instruir sobre o valor de nossa personalidade profunda [...]”. 285
283
NIEMAYER, 2014, p. 303-304.
284
FW/GC, §11.
285
GRANIER, J. Nietzsche. Tradução: Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2011. p. 90.
135
A metafísica é a perspectiva de quem não ama esta vida terrena, isto é, perspectiva
de quem a nega. Porém, esta vida terrena, a qual nem precisaríamos afirmar como
imanente, parece que é a única existente, uma vez que a transcendência não existe,
ou seja, esta tal metafísica somente existe, ao que parece, para aqueles que não
amam o seu destino, que é o seu próprio corpo, sua própria vida. E destino como
natureza, como este mundo plural enquanto mundo das forças, mundo como VP
(vontade de potência). 286
286
SOUSA, M. A. Nietzsche: Viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.
136
esquivar de tal destino das mais variadas formas, seja alimentando o sonho edênico de um
mundo extraterreno perfeito, onde a dor e a doença não se fazem mais presentes, seja por
intermédio da concepção moderna segundo a qual é preferível viver uma efetividade
esvaziada de sentido do que simplesmente não viver.
Mas a morte, tão real quanto a própria vida, efetivada através do fim orgânico do
corpo, assinala uma perspectiva que não pode e não deve ser negada. A “espiritualidade” fez
do homem refém de um sistema no qual ele renega a vida efetiva, incluindo-se ai a sua
própria morte. Nesse processo, perde-se a concepção do que é verdadeiramente sagrado, o que
não significa aqui a representação dos adereços ou adornos tipicamente utilizados pelas mais
diversas religiões ou cerimônias nas quais se efetivam votos de negação do corpo e do mundo.
Sagrado, para Nietzsche, está relacionado com movimento: “Eu acreditaria somente em um
deus que soubesse dançar”. 287 Nesse sentido, natureza e divindade se conectam, pois ambos,
no pensamento nietzschiano, apresentam ação, movimento e não fixidez.
O que seria o corpo sem movimento? Impossível conceber de forma satisfatória tal
pensamento, uma vez que tudo que é concreto e real está em movimentação constante, avança
ou retrocede, não no sentido evolutivo do termo. Uma pedra decompõe-se, bem como também
pode agregar em si partículas. Contudo, um deus metafísico permanece imutável,
indefinidamente, sem qualquer possibilidade de alteração. Para tanto a invenção da alma foi
providencial, pois aproximou metafisicamente os homens da sua máxima criação divina, pois
com a alma o homem, tal qual a divindade, acreditou tornar-se imortal.
Os instintos foram postos de lado, internalizados, pois o homem deixou de amar a si e
o mundo:
O homem que quer internalizar seus instintos adoece mais rapidamente. Ou melhor:
o instinto razão, que ainda não sentiu os outros instintos, que não os experimentou
dentro de si, não é capaz do amor fati. É capaz, apenas, de “exorcizar” esses mesmos
instintos que o incomodam. Também os instintos foram divididos em Bem e Mal.
Daí a necessidade de irmos para além do Bem e Mal, o que nada tem a ver com
relativismo e, sim, com perspectivismo. 288
O próprio deus cristão assinala a distinção entre valores bons e maus, entre aquilo que
é o ideal e o repulsivo. E no que se refere a este último aspecto, muitos instintos estão
forçosamente inseridos, em uma tentativa de estagnar o homem em duas vertentes, dicotomia
que não abre precedentes para uma terceira ou quarta perspectiva. Assim o homem encontra-
se preso, estagnado em um plano no qual se pode aceitar uma das direções impostas. Tal
287
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
288
SOUSA, 2013, p.85.
137
imposição está longe de representar, para Nietzsche, o sagrado, que está mais relacionado
com vontade de poder, natureza, força.
Deus está morto e nós o matamos, conforme Nietzsche. Para falar em possibilidades
de movimentação e inserir outra vez o corpo como cerne das perspectivas reais presentes no
mundo, conceitos estes atrelados à vontade de poder e terra, é preciso afastar a mobilidade das
morais engessadas, cujo reflexo pretende no homem um seguidor. Nesse sentido, Barrenechea
aponta que:
[...] a noção de vontade de potência aparece como tema central. Veremos que “terra”
e “vontade de potência” estão profundamente interligadas. Há uma convergência
significativa entre as noções de terra, mundo, vida e vontade de potência. Todas elas
aludem ao jogo de forças, às pulsões intramundanas que permeiam os movimentos
do universo. 289
289
BARRENECHEA, 2008, p.97.
290
Ver Za/ZA, Das três metamorfoses, p.28-29.
291
SAFRANSKI, R. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução Lya Luft. São Paulo: Geração editorial,
2011. p. 256.
138
convalescentes e superadores e criem para si um corpo superior”. 292 Saúde e doença são
formas de luta, são personificações também da vontade de poder, uma vez que os impulsos
pela convalescência se fazem sentir, e aqui toma-se tal concepção em sentido abrangente, não
apenas físico, pois a decadência é assinalada pela desorganização dos impulsos, algo que com
o homens sadios se reorganiza, reestrutura-se, em anterior estado de enfermidade.
A presença da saúde é organização, hierarquização, é poder criar e afastar-se do que se
encontra imobilizado. Vitalidade é poder alcançar o novo, algo que se efetiva através da
revalorização do corpo, esta grande razão afirmativa da vida. Sobre esta, é preciso aceitá-la
em todas as suas instâncias, seus particularidades, para que o homem não se acovarde e
busque, outra vez, em longínquos e impalpáveis sonhos, um conforto superficial.
292
Za/ZA, Dos transmundanos, p.33-34.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a expressão escolhida para nomear o corpo, Nietzsche faz alusão ao complexo
conjunto de elementos que compõem a parte central de um sistema, em que adquire
o seu significado e pode ser entendido. O corpo é o centro de gravidade do homem
dentro do sistema de sua existência, composto tanto por elementos fisiológicos como
teóricos, morais e valorativos, levando à sua inserção em um povo ou uma cultura
[...]. 293
Nesse sentido, pensar o corpo a partir de Nietzsche se configura, acima de tudo, como
uma tarefa crítica. O filósofo compreende que o papel da filosofia tradicional racionalista,
293
“Con la expresión elegida para nombrar al cuerpo, Nietzsche alude al complejo conjunto de elementos que
convierten a dicho centro en parte de un sistema, dentro del cual adquiere su sentido y puede ser entendido. El
cuerpo es el centro de gravedad del hombre dentro del sistema de su existencia, compuesto tanto por elementos
fisiológicos como teóricos, morales y valorativos, dando lugar a la vez a su inserción dentro de un pueblo o una
cultura […]” (JARA, 1998, p. 109 – Tradução nossa).
140
assim como também, da moral cristã, foi muito significativo no sentido de erigir um desprezo
aos aspectos corpóreos mais salutares. Construindo-se, a partir dessa flagrante desvalorização,
uma visão dualista de homem e mundo, pautada em critérios declinantes da vida.
Para além do soslaio dualista, restritivo e decadente, segundo a interpretação
nietzschiana, buscou-se evidenciar a complexidade de elementos que compõem o homem,
com ênfase nos subsídios afirmadores da vida, os quais estão intimamente relacionados aos
aspectos corpóreos, tanto fisiológicos quanto valorativos.
Nietzsche volta sua crítica contundente precipuamente contra os valores morais,
culturais e estéticos responsáveis pela depauperação do corpo estabelecida, sobretudo, pela
crença na noção de verdade. Opõe-se a uma visão de vida que a quer estática, regular,
previsível, visando demonstrar critérios de afirmação da vida pautados pelo movimento,
irregularidade e devir constantes, estes sim característicos do homem.
O corpo, nesse interim, se configura como o “centro de gravidade” em torno do qual
paira a interpretação de Nietzsche acerca da modernidade, não apenas por servir de arcabouço
para a crítica empreendida a tradição filosófica e aos valores morais declinantes da vida, mas
também porque expressa, em grande medida, os esforços do filósofo em manter-se distante da
“[...] linguagem empregada pela tradição para se referir ao tema do corpo”. 294
Tomando por base tais pressupostos, buscamos ressaltar, lançando mão dos escritos de
Nietzsche, desde GT/NT, que houve dois momentos fundamentais para a compreensão de
homem e mundo que esboçamos na modernidade, o momento de afirmação e o momento de
declínio do corpo, momentos esses descritos pelo filósofo, respectivamente, como de aumento
e decadência das forças que compõem o todo corpóreo. O período de afirmação, desse modo,
corresponde à visão grega de corpo, anterior ao primado da filosofia, em que os conflitos e
embates humanos eram personificados em matéria de jogo de forças, sendo a vida afirmada
aqui em todos os seus aspectos, tanto os mais cruéis, quanto os mais alegres, prazerosos. O
período de declínio dos valores afirmadores da vida, conforme Nietzsche, pode ser entrevisto
na decadência das forças e, sobretudo, na desagregação dos instintos e impulsos corpóreos.
Assevera-se de tal modo que Nietzsche compreende a relevância da grecidade295 para
a visão afirmadora da vida e do corpo, pois foi nesse momento que se delinearam os
pressupostos de ascendência das forças e afirmação dos elementos corpóreos. Nesse âmbito,
tendo em vista a reflexão erigida em torno da importância desses elementos, sua oposição se
294
“[...] al lenguaje empleado por la tradición para referirse al tema del cuerpo.” (Cf. JARA, 1998, p. 107 –
Tradução nossa).
295
Sem, contudo, demarcar um retorno à mesma.
141
ordem da vez. A debilidade, a subserviência, o desprezo ao corpo tem que dar espaço ao
homem que diz sim à vida e a afirma através do corpo e da existência salutar.
Nietzsche enfatizou em diversas obras a questão da saúde. A enfermidade não deve ser
vista como regra, mas como uma etapa a ser superada para que o homem possa reconhecer as
duas condições, de saúde e debilidade, e se posicionar sobre elas. Esse tipo moderno de
homem, que ainda se faz presente na sociedade de modo significativo, não reconhece sua
extenuação. Reconhecer que esta vida retorna é uma forma de tentar romper com esse
pensamento desnivelador do homem, empobrecedor, mas retornar não em um sentido vulgar,
mas de que a vida efetua-se neste, e somente, neste mundo, cujo ciclo é constante e não cessa,
uma vez que não existe um ponto final a ser alcançado, não há uma linha de chegada. Ser um
espírito livre se faz necessário para retomar a grande saúde, conforme Nietzsche:
296
MA I/HH I, Prólogo, §4.
143
um fator a mais para a não ação, é algo que deve ser superado. O homem cristão, o escravo, o
ressentido, encontra seu oponente no homem que aceita a vida tal como ela é. Não há
negação, não há medo diante dos infortúnios, mas resistência. Para tanto, é necessária uma
nova forma de interpretação: um corpo saudável e um pensamento reflexivo que esteja sempre
pronto a aceitar que a vida, apesar de breve, é intensa e mais do que qualquer outra coisa,
precisa ser vivida, não renegada: o homem precisa “tornar-se o que se é”. Se o homem
desenvolver tal postura, talvez enfim possamos falar não em um mundo satisfatório, mas em
um início efetivo de uma existência consagrada ao homem, ao seu corpo e ao mundo.
Destarte, é no corpo que vislumbramos os vestígios do tempo e as marcas da finitude
do homem. Ele é a acepção dos conflitos de forças e do campo de batalha que o homem é.
Logo, o que marca o corpo na modernidade? O movimento de negação do corpo (forjado pela
filosofia tradicional e moral cristã, as quais serviram de preparação para a debilidade e
apequenamento do homem moderno), o movimento de afirmação das potências plásticas da
vida, relacionadas ao adoecimento e revigorar orgânico, tangenciados por um viés
perspectivístico, que toma o homem pelo que ele é.
Há muito ainda para se abordar sobre a questão do corpo no pensamento e na filosofia
nietzschiana, entretanto, como forma de contribuição, este trabalho encerra-se aqui,
reconhecendo que a perspectiva do corpo encetada por Nietzsche a partir da modernidade
suscita várias problematizações que jamais serão esgotadas.
144
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