Nietzche Questao Corpo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

JULIE CHRISTIE DAMASCENO LEAL

NIETZSCHE E A QUESTÃO DO CORPO NA MODERNIDADE

Belém-Pará
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA

JULIE CHRISTIE DAMASCENO LEAL

NIETZSCHE E A QUESTÃO DO CORPO NA MODERNIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade Federal do
Pará como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre, na área de concentração Filosofia
Contemporânea.

Orientador: Prof. Ph.D.. Roberto de Almeida Pereira


de Barros.

Belém-Pará
2016
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFPA

Leal, Julie Christie Damasceno, 1981-


Nietzsche e a questão do corpo na modernidade /
Julie Christie Damasceno Leal. - 2016.

Orientador: Roberto de Almeida Pereira de


Barros.
Dissertação (Mestrado) - Universidade
Federal do Pará, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, Belém, 2016.

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm - 1844-1900.


2. Niilismo (Filosofia). 3. Corpo humano
(Filosofia). I. Título.
CDD 22. ed. 193
JULIE CHRISTIE DAMASCENO LEAL

NIETZSCHE E A QUESTÃO DO CORPO NA MODERNIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade Federal
do Pará como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre, na área de concentração
Filosofia Contemporânea.

Belém, 30 de março de 2016.


Banca Examinadora:

__________________________________________________

Prof. Dr. Roberto de Almeida Pereira de Barros (Orientador)


Universidade Federal do Pará (UFPA)

__________________________________________________

Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea (Examinador Externo)


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

__________________________________________________

Prof. Dr. Nelson José de Souza Júnior (Examinador Interno)


Universidade Federal do Pará (UFPA)

__________________________________________________
Profa. Dra. Mariana Lage Miranda (Suplente)
Colaborador – Bolsista PNPD/CAPES (UFPA)

Belém-Pará
2016
À Mauro Leal, por todo companheirismo e amor
incondicionais.
AGRADECIMENTOS

A meu pai, Jorge Damasceno, pelo incentivo constante aos meus estudos e aprimoramento
intelectual.
A Mauro Lopes Leal, por ter contribuído de forma indelével para os rumos da presente
pesquisa, com a sua leitura enriquecedora e indicações precisas. Em virtude do diálogo
frutífero e impulsionador, assim como também, pelo cuidado e confiança irretocáveis.
À querida amiga Rosinete Maciel que, mesmo à distância, nunca mediu esforços em apoiar-
me com palavras de estímulo sempre renovadas, convidando-me a longos e estimulantes
debates filosóficos.
Aos colegas e amigos do mestrado, pelo apoio demonstrado sempre que necessário, com
especial ênfase a Isabella Heinen, Héden Costa e Lívia Coutinho.
Ao Prof. Dr. Roberto de Almeida Pereira de Barros, a quem admiro pela intrepidez do olhar
crítico e seriedade na condução de suas pesquisas acadêmicas, pela orientação perspicaz e
valorosa, continuamente atenta às minúcias intrínsecas ao deslindar das questões filosóficas
que se apresentaram no decorrer de minha escrita.
Ao Prof. Dr. Nelson José de Souza Jr., pelas respeitosas considerações emitidas durante o
exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea, pelas primorosas e atentas contribuições à revisão
e aprofundamento desta dissertação, às magníficas sugestões bibliográficas e à estimada
interlocução.
À Profa. Mariana Lage, estimulante presença durante a defesa, pela acuidade reflexiva acerca
de minha escrita.
À Profa. Dra. Jovelina Ramos, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(PPGFIL) da UFPA, pela seriedade, profissionalismo e delicadeza, sobretudo no que se refere
à resolução das mais diversas dúvidas e situações acadêmicas.
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará (PPGFIL-
UFPA) e seu corpo docente.
Sempre escrevi minhas obras com todo o meu
corpo e minha vida; ignoro o que sejam
problemas ‘puramente espirituais’ (IX, 4
(285))

Nietzsche
RESUMO

A presente dissertação visa desenvolver uma interpretação acerca da concepção de corpo em


Nietzsche, levando em conta o viés perspectivista e a dimensão instintiva do todo corpóreo,
bem como a multiplicidade de forças inerentes à investigação do corpo. Tendo em vista que,
de acordo com a interpretação de Nietzsche, a noção de corpo coloca-se enquanto fio
condutor de toda reflexão, sobretudo porque a retomada de tal questão se demonstra
pertinente para se pensar o corpo no decurso do pensamento ocidental, desde a concepção dos
gregos antigos, passando pelo socratismo estético, platonismo e moral cristã, até a
modernidade e suas reverberações no que tange ao processo do niilismo. Posto isso, é
particularmente importante empreender uma crítica da má compreensão do corpo erigida pela
filosofia tradicional, sem deixar de ressaltar a apropriação do platonismo pela moral cristã,
que resultou na depreciação do corpo e degenerescência dos instintos e impulsos corpóreos
mais vitais, tornados doentes, fato este que concorreu ao adoecimento e apequenamento do
homem na modernidade. Para tanto, pretende-se analisar a noção de corpo atravessada pelas
valorações instituídas, tanto de ordem estética, quanto moral, cultural e filosófica,
especialmente nos textos O nascimento da tragédia, Humano Demasiado Humano, Além de
bem e mal, Genealogia da Moral e Assim falou Zaratustra, basilares para situar a questão do
corpo nas dimensões que possibilitaram sua ascensão e decadência. Destarte, a dissertação
demonstra-se relevante uma vez que possibilita o aprofundamento em uma questão que se
coloca de forma latente no contexto do pensamento ocidental: a noção de corpo, tida, a partir
do viés proposto pelo filósofo alemão, como campo de forças e conflito na modernidade.

Palavras-chave: Nietzsche; Corpo; Modernidade.


ABSTRACT

The present dissertation aims to develop an interpretation concerning the conception of body
in Nietzsche, taking into account the perspectival bias and instinctive dimension of whole
body, as well as the multiplicity of forces inherent in the investigation of the body. In view of
that, according to the assimilation of Nietzsche, the notion of body places itself as conducting
wire of his lucubrations, especially because the resumption of such a question demonstrates
pertinent for thinking about the body in the course of Western thought, since the concept of
ancient Greeks, passing the aesthetic Socratism, Platonism and Christian morality to
modernity and its reverberations in relation to nihilism process. That said, it is particularly
important to provide a critique of the poor understanding of body erected by traditional
philosophy, while emphasizing the appropriation of Platonism by Christian morality, which
resulted in the depreciation of the body and degeneration of the instincts and most vital bodily
impulses, become sick, a fact that contributed of illness tendencies and belittlement of man in
modernity. For that, we intend to analyze the notion of body crossed by the established
valuations, both from aesthetic, and moral, cultural and philosophical, especially in the texts
The Birth of Tragedy, Human Too Human, Beyond Good and Evil, Genealogy of Morals and
Thus spoke Zarathustra, basic to place the question of the body in the dimensions that made
possible their rise and decay. In this manner, the dissertation this shows that relevant because
it allows the deepening on a question that arises latently in the context of Western thought:
body notion, taken from the bias proposed by the German philosopher, as a forces field and
conflict in modernity.

Keywords: Nietzsche. Body. Modernity.


LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE NIETZSCHE*

GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)

MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1))

MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol.


2))

VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano,


demasiado humano (vol. 2):Miscelânea de opiniões e sentenças)

WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein


Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2):O andarilho e sua sombra)

M/A - Morgenröte (Aurora)

FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)

Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)

JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)

GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)

WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner)

GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)

AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)

EH/EH - Ecce homo

CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não
escritos)

PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica
dos gregos)

WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no
sentido extramoral)

Nachlass/FP – Fragmentos Póstumos

*Convenção para a citação das obras de Nietzsche, conforme adotado pelos Cadernos
Nietzsche.

LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE SCHOPENHAUER

MVRI – O mundo como vontade e como representação. Trad. J. Barboza. São Paulo:
UNESP, 2005.
MRVII – Suplementos ao mundo como vontade e representação. Trad. E. F. J. Payne. New
York: Dover, 1958.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO I: PENSAR O CORPO A PARTIR DE NIETZSCHE 18

1.1. Crítica nietzschiana: a filosofia enquanto má-compreensão do corpo 18

1.1.1. Corpo: afirmação e declínio 18

1.2. Corpo enquanto hipótese interpretativa 35

1.3. Corpo e linguagem em Nietzsche 51

CAPÍTULO II: CORPO NA II DISSERTAÇÃO DA GENEALOGIA DA MORAL 61

2.1. Corpo, memória e esquecimento 61

2.2. Corpo e crítica à noção de consciência 72

2.3. Má-consciência e adoecimento do corpo 81

2.4. Modernidade e Niilismo 90

CAPÍTULO III: O CORPO RESSIGNIFICADO 106

3.1. Corpo e saúde 106

3.1.1. Corpo: ponto de partida para a afirmação da vida 106

3.1.2. Corpo: adestramento e grande saúde 116

3.2. Corpo e jogo de forças em Nietzsche 124

CONSIDERAÇÕES FINAIS 139

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 144


11

INTRODUÇÃO

A tarefa a qual Nietzsche se propõe centra-se, basicamente, na superação de


determinados aspectos metafísicos que permeiam a filosofia desde a antiguidade, o que, por
sua vez, resultou em uma interpretação esquálida e, em muitos casos, depreciativa da natureza
e do mundo, no qual se inclui o próprio corpo. Seu esforço, portanto, volta-se para a retomada
e o devido reposicionamento destas questões suprimidas ou ignoradas durante tanto tempo,
principalmente no campo filosófico, cuja participação nesse cenário foi a de reforçar juízos de
valor que visavam, e ainda o fazem, atingir uma determinada compreensão das coisas
convergindo-se para assuntos que, inegavelmente, priorizam temas de escopo metafísico,
enfaticamente problematizados por Nietzsche.
O corpo, aspecto central nesse grande corpus nietzschiano, ganha representação a
partir de Schopenhauer1 e adquire força significativa em Nietzsche, o qual, radicalizando a
questão, situa o corpo como “a grande razão” 2 , demonstrando sob esse prisma a
indissociabilidade entre a interpretação do corpo e o aspecto fisiológico dessa investigação,
observando-o em um sentido que, de forma alguma, limita-se à materialidade do mesmo, pois
o corpo não pode ser divisado como substância, mas espraia-se para outras esferas de
compreensão do homem e do devir. Vislumbra-se o corpo, dessa forma, como um aspecto
integrado ao todo vigente, cuja importância está interligada às esferas de saúde, vontade,
potência, psique, arte, organização social, dentre outros vastos aspectos. Logo, corpo não é
matéria, e sim jogo de forças, devir.
O homem, perpassado pela dimensão instintiva, é anulado, obscurecido pelas pré-
concepções morais e racionalizantes, que lhe retiram a sua liberdade de atuação pulsional,
pois para Nietzsche, conforme elucida Cordeiro3, o ato instintivo é o único agir voltado para
as afecções. Nesse sentido, corrobora Patrick Wotling: “Equivalente do afeto, que sublinha
sua dimensão passional, o instinto constitui um centro de perspectiva a partir do qual uma

1
Ao apresentar a concepção de vontade atrelada a um querer irrefreável do homem, Schopenhauer inaugura um
novo fio condutor na filosofia, no qual o corpo, portador dessa vontade, é a chave para a sua devida
compreensão, aspecto este em que Schopenhauer se deteve, mas ainda sob um viés metafísico, e do qual
Nietzsche se apropriou possibilitando a abertura para uma nova linha de interpretação que tem como
pressupostos: o não-eu, a vontade, a natureza, o “irracional”, o pulsional, enfim, o corpóreo. Aspectos estes
enfatizados por Nietzsche e, posteriormente, por Freud, onde ocorre uma realocação da representatividade da
razão, não o seu abandono.
2
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p. 35.
3
“Instinto para Nietzsche, diz respeito ao poder ser, à afecção, ao ‘pathos’. Por isso, segundo ele, o agir livre é o
agir a partir do instinto, o agir que acontece quando o homem se encontra inserido, perpassado, tomado por um
modo próprio de ser” (CORDEIRO. R. C. O corpo como grande razão: análise do fenômeno do corpo no
pensamento de Friedrich Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2012. p.83).
12

interpretação é elaborada [...]. Nietzsche repensa a psicologia e faz dela o estudo dos instintos
e dos afetos” 4.
Constata-se, assim, que Nietzsche opta por um campo de estudo divergente daquele
meramente racional com o intuito de erigir uma interpretação cuja primazia se volta para o
corpo, colocando em destaque os atributos que lhe são característicos, tais como os aspectos
instintivos e do campo das afecções. Com base nesse pressuposto, considera que a adoção da
referida perspectiva proporciona uma ênfase maior à Terra e à Vida, pontos de partida para a
ponderação em torno do mundo e de nós mesmos.
É nesse conflituoso terreno entre instintivo e racional que o corpo se perfaz,
demonstrando sua múltipla representação no que concerne aos processos criativos e a busca
por estados saudáveis. Assim, o corpo apresenta inegável importância, uma vez que ele marca
o ponto nevrálgico de toda a construção cultural vigente, que, por seu turno, é abalizada pela
atuação individual do homem e a sua participação no grupo social, ou seja, o que o homem é
particularmente e aquilo que ele deve ser quando inserido no seio do convívio grupal. Nesse
último aspecto, mostra-se perigoso, em diversas esferas e para distintos centros de controle,
tais como para a Igreja e até mesmo o Estado, que o homem atue de forma espontânea,
pulsional, instintiva. É preciso doutriná-lo, reprimi-lo5 utilizando para tanto os mais diversos
meios que vão desde os castigos até as concepções enfermiças que refreiam a vontade,
tornando-a débil.
A crítica nietzschiana à razão, entretanto, não a exclui do homem, do corpo, este que
somente apresenta uma unidade quando considerados aspectos como racionalidade,
consciência, memória, em conexão com os instintos, impulsos, desejos. O resultado da
reunião desses fatores é um corpo que se caracteriza como “um conjunto de processos
organizados e coordenados” 6.
Desse modo, a organização e coordenação dos processos corpóreos, conforme visto
acima, são postas em suspensão desde a decadência da cultura grega, apresentando o seu
exato ponto de inflexão com a filosofia socrática. Desde então, a filosofia convergiu para
caminhos que tornaram o corpo um viés de importância reduzida, uma vez que se delimitou,
erroneamente, a razão como o aspecto mais elevado no homem, como se esta fosse algo

4
WOTLING, P. Vocabulário de Nietzsche. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 45.
5
Segundo Corbin: “O corpo é ao mesmo tempo receptáculo e ator face a normas prontamente enterradas,
interiorizadas, privatizadas, como pôde mostrar Norbert Elias: lugar de um lento trabalho de repressão, isto é, de
um distanciamento do pulsional e do espontâneo.” (CORBIN, A; COURTINE, J; VIGARELLO, G. Prefácio à
História do corpo. In História do corpo: da Renascença às Luzes. Vol. 1. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
p.11)
6
WOTLING, op. cit., p. 26.
13

externo ao corpo. Tal racionalidade foi cuidadosamente situada em uma esfera de intelecção
da qual se excluem sensações, subjetividade, sentimentos, aspectos inerentes ao corpo, que
poderiam macular o pensamento lógico, desviando-lhe da sua retidão e exatidão na busca
filosófica pela “verdade”.
Suprimiu-se a natureza e a efetividade em nome de um mundo ideal, único lugar no
qual se poderia encontrar a veracidade das coisas, em contraposição à imperfeição e ao caráter
perecível do mundo e do próprio homem, apontando-se, por essa perspectiva, para o corpo. A
caverna, ou seja, o mundo, o terreno, o sensível, foi teorizado por Platão como um aspecto
possuidor de características bastante peculiares, que, no decurso de seu pensamento,
sofisticou as concepções de alma e mundo perfeito, proscrevendo o corpo e suas
características particulares, que, no exame filosófico, poderia, através dos sentidos, das
sensações e dos desejos, comprometer a busca pelo “belo”, “justiça” e “felicidade”.
Assinalou-se, dessa forma, a separação entre corpo e razão7, que, após gerações de filósofos, é
desfeita por Nietzsche e perpetuada por outros filósofos da contemporaneidade, tais como
Foucault, Derrida, dentre outros.
Desde o platonismo, o homem tem se guiado por pressupostos equivocados que
marcaram um incontestável prejuízo a si, ao seu corpo e à sua saúde. Notadamente arraigado
pelo cristianismo, sistema de ideias moralizantes, acentuado por regras de conduta que
estabelecem um conhecimento antinatural, pois situam o pensamento em um plano
desvinculado do mundo e do fisiológico. O homem, para Nietzsche, guia-se por instintos,

7
Sobre a questão da cisão entre corpo (soma) e alma (psyche) segundo a perspectiva de Platão, pairam diversas
interpretações, algumas contrárias e outras favoráveis a essa visão. De um modo geral, é interessante atestar,
mesmo que esse não seja o nosso objetivo maior, as bases elementares em que se assentam tais discussões. Para
Giovanni Reale, por exemplo, “Uma concepção que sempre chamou a atenção dos estudiosos é a que Platão
oferece do corpo humano. Para ele, de fato, em muitos diálogos, o corpo é não só e não é tanto um “instrumento”
a serviço da alma, e portanto algo sem o qual a alma não poderia exercitar as suas funções, mas é algo antitético
à alma, e, sob certos aspectos, um obstáculo às funções que lhe são próprias. [...]. Todavia, se isso é verdade,
também é verdade que essa antítese é apresentada pelo filósofo sobretudo sob a forma de uma mensagem de
caráter absolutamente provocador. De fato, no plano físico e antropológico, Platão assumiu posições bem
temperadas e equilibradas, considerando “natural” a conjugação da alma com o corpo, e essencial o “cuidado”
do corpo.” (REALE, G. Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus,
2002. p. 175). Assim, para Reale, fica expresso que mesmo que Platão tenha assumido – especialmente em
diálogos como Fédon, Fedro, Górgias – uma interpretação que estabelece uma antítese entre corpo e alma, o
filósofo, em outros escritos, compreende o homem enquanto uma espécie de complexo auferido da relação entre
corpo e alma, conferindo, inclusive, grande relevância à ginástica e medicina, diretamente ligadas ao corpo. Do
exposto, é possível constatar que a problemática da separação entre corpo e alma ganha contornos decisivos no
pensamento de Platão, os quais, de certo modo, irão se perpetuar por toda tradição filosófica. Não se quer dizer
aqui que Platão deva ser desmerecido, muito pelo contrário, o fato de ter conferido importância aos cuidados
com o corpo em escritos como Timeu, demonstra a atualidade de seus escritos. Contudo, e é esse o
posicionamento que pretendemos adotar no presente texto, Nietzsche irá empreender uma crítica severa a Platão,
estritamente por conta da postura adotada nos diálogos precipuamente citados, e mais do que tudo, ao
platonismo, corrente filosófica de cunho negativo ante a realidade, uma vez que para os mesmos, as ideias
eternas e transcendentes originam todos os objetos sensíveis. Com Nietzsche, tem-se, enfim, um processo de
ruptura com essa forma de interpretação do mundo.
14

cujas atividades encontram nas pulsões sua forma motriz, logo, a razão não seria o soslaio
norteador da vida humana, uma vez que o homem não pode ser determinado, sendo a razão
apenas mais um mecanismo humano, resultante de instintos cruéis, utilizado para a própria
sobrevivência.
Assim, acerca da relação que se pode estabelecer entre o caráter instintivo e o racional
no pensamento nietzschiano, aponta Barrenechea: “Ele mostra que a racionalidade não é um
atributo distintivo que colocaria o homem acima da natureza, que o diferenciaria claramente
da “bestialidade”. Ao contrário, para Nietzsche, a razão é o fruto dos instintos mais cruéis...”
8
. Percebe-se por meio do excerto que, para o filósofo, a existência não pode ser
compreendida como algo desvinculado dos instintos e pulsões. Na antiguidade, como
qualquer outro animal, o homem valeu-se de seus instintos para realizar sua efetividade no
mundo. Equívoco acreditar que tais instintos, em nome do progresso e da civilidade, foram
extintos ou definitivamente reprimidos no homem. O corpo decadente, enfermo, debilitado, é
um exemplo dos resultados desse processo de contingência dos impulsos.
Incapaz de uma efetiva resistência, o homem decai e torna-se uma vítima bastante
aprazível para as concepções morais/políticas dominantes. O controle pelo poder mascara-se
através de inúmeros mecanismos, como política, arte, educação, religião, para forçar o homem
a negar quem é e a sua natureza. O corpo, nesse processo de opressão, foi o alvo principal,
sobretudo no que diz respeito ao Cristianismo:
No Cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano: são
as classes mais baixas que nele buscam sua salvação. Nele a casuística do pecado, a
autocrítica, a inquisição da consciência é praticada como ocupação, como remédio
para o tédio; nele o afeto em relação a um poderoso, chamado “Deus”, é
continuamente sustentado [...]. Nele o corpo é desprezado, a higiene repudiada como
9
sensualidade; a Igreja se opõe até à limpeza [...].

O corpo foi cerceado de todas as formas e utilizado como meio de suplício para a
purificação da alma, quanto maior a dor e o sacrifício, mas digno, cria-se, tornava-se o
homem. Calando-se o corpo, silencia-se toda uma organização natural que vai de encontro ao
sistema social vigente de hierarquização cultural, política, estética. Adoecido e enfraquecido,
restou ao homem juntar-se a outros homens em condições semelhantes para tentar uma
subsistência que foi tomada como natural. A vida terrena foi associada à dor e ao sofrimento;
ao mundo ideal, metafísico, caracterizou-se como perfeito. O indivíduo, existencialmente
desfavorecido e abatido, pois foi-lhe ensinado desde cedo que a vida é somente isso, reserva
para esse mundo imaginário suas esperanças, sua confiança e vontade, postura esta que

8
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e o corpo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 40.
9
AC/AC, §21.
15

termina por submetê-lo a uma ordem degenerativa. Entretanto, existem outras formas de
pensar o corpo, conforme evidencia Corbin et al.:

O corpo pode conduzir à consciência em vez de ser seu objeto. De repente, o estudo
deste corpo e de seus atos revela de modo diferente do que revelava até aqui:
considerar por exemplo que existe uma inteligência do movimento fora do trajeto
clássico que subordina o motor à “ideia”, é estudar de modo diferente as práticas, é
estudar de modo diferente as maneiras de fazer e de experimentar. Enfim, é ter em
10
vista recursos de sentido exatamente onde eles não pareciam existir.

Este aspecto confirma a possibilidade de se pensar o corpo a partir de diversas


vertentes interpretativas, retirando-o do cárcere empreendido pela “ideia” e a alma. Tais
possibilidades de estudo dizem respeito, por exemplo, às abordagens pós-modernas de corpo e
corporeidade11, que tanto pela perspectiva científica quanto filosófica, abarcam o fenômeno
corpóreo por intermédio das bases materialista, naturalista, psicológica, fisiopsicológica etc.
Neste trabalho, evidenciar-se-á o projeto nietzschiano de ressignificação do corpo
como fonte da qual emanam as perspectivas de interpretação de si e do mundo. A intenção,
portanto, é apresentar o posicionamento do referido filósofo por um viés interpretativo que
institui o corpo enquanto fio condutor, ressaltando, desse modo, os prismas fisiológico,
naturalista e psicológico inerente a essa abordagem. Objetiva-se também retomar, ao seu
cerne da questão, um aspecto tão significativo para a existência do homem: o seu próprio
corpo, que sente, apreende, interage, assimila, incorpora conscientemente e, ainda mais,
inconscientemente.
No primeiro tópico do capítulo 1, abordar-se-á a crítica nietzschiana à filosofia
enquanto má compreensão do corpo, de modo a assinalar a ascensão e decadência do corpo no
pensamento ocidental, e sob quais meandros se deram tais processos. Propõe-se enfatizar, por
conseguinte, como a noção de corpo ascendeu enquanto afirmação da vida, especificamente
no período da antiguidade grega, conforme Nietzsche, sobretudo a partir da compreensão
trágica de existência projetada por meio das dimensões apolínea e dionisíaca. Em um segundo
momento deste tópico, apontar-se-á de que maneira a visão cristã de mundo e o platonismo
acarretaram o declínio e adoecimento do corpo, tendo como arauto, o socratismo estético, ou

10
CORBIN, A; et. al, Prefácio à História do corpo, p. 10.
11
As análises do corpo e da corporeidade desenvolvidas no pensamento pós-moderno possuem múltiplas
acepções, posto que privilegiem tanto o caráter histórico quanto representativo dos usos e valores que se
atribuem à corporeidade. Conforme Villaça e Góis (1998), os estudos sobre o corpo na pós-modernidade podem
ser interpretados: “[...] seja como organismo (linha nietzschiana), seja como campo de forças (Deleuze). Opções
pelo corpo hedonista e narcísico no contexto da cultura do consumo (Lipovetsky), delação das estratégias de
controle nas suas mais diversas formas com propostas de micropolíticas defensivas (Foucault), reflexões sobre o
corpo do consumo de viés neomarxista (Featherstone, Canclini), versões das novas apropriações do corpo
alienado no consumo (Eagleton) ou tiradas apocalípticas sobre o fim da corporeidade na simulação total
(Baudrillard)” (VILLAÇA, N. & GOÉS, F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 42).
16

o que Nietzsche denominou de décadence, momento no qual a vontade entra em declínio, ou


seja, ocorre um retrocesso fisiológico. Tal instância, conforme dito, abrirá precedente para a
atuação do platonismo, cujo procedimento suscitará a degenerescência do homem, marcando
uma concepção que sustenta a ruptura definitiva entre corpo e alma, que resultou na
apropriação cristã desses preceitos que tendem a desvalorização do corpo.
No tópico seguinte, abordar-se-á o corpo enquanto hipótese interpretativa em
Nietzsche. Nesse momento, será trabalhada a influência da noção de vontade schopenhauriana
sobre o pensamento do jovem Nietzsche, buscando estabelecer os pontos de aproximação e
afastamento entre os dois filósofos, sem deixar de frisar, contudo, a significativa contribuição
de Schopenhauer para a possibilidade de uma ruptura com a linha da razão, caracterizada pelo
intelecto, consciência e a delimitação do ‘eu’. Além disso, daremos enfoque à leitura
naturalista do pensamento de Nietzsche, mais fortemente vinculada a uma visão analítica,
próxima das ciências naturais; a perspectiva de investigação fisiológica do corpo, a qual,
servirá de subsídio para o estudo dos vieses psicológico e fisiopsicológico; e por fim, corpo e
linguagem em Nietzsche tendo como pressuposto, sobretudo, Za/ZA.
O segundo capítulo traz a lume a questão do corpo na II dissertação da GM/GM, no
qual traçarei o percurso proposto por Nietzsche na referida passagem, a saber: a relação entre
corpo, memória e esquecimento, ponto este em que procuraremos demonstrar o valor salutar
do esquecimento para os processos orgânicos; a crítica à noção de consciência, posto que a
mesma seja essencial para a dissolução do eu e a revalorização do caráter instintivo humano;
o enfoque da má consciência e o adoecimento do corpo, visando mostrar que a formação da
má consciência está diretamente ligada ao sentimento de culpa instituído pela moral cristã, o
que acarreta o adoecimento do corpo e apequenamento do homem na modernidade; e
finalmente, a nuance que põe em relevo modernidade e niilismo, enquanto faces da mesma
moeda.
Além disso, acreditamos relevante estabelecer uma relação entre corpo e niilismo, pois
este é considerado um estágio paradoxal para a humanidade, de acordo com Nietzsche. Ora
interpretado por um viés social, no qual os valores vigentes entram em suspensão, perdendo,
assim, seu sentido, ora por um viés individual, em que certas concepções pessimistas
particulares tendem a se transformar em posturas niilistas, ou seja, em atitudes de negação
perante os valores de sustentação da vida, para o filósofo, entretanto, niilismo possui um
duplo caráter: o de destruição e o de criação. O primeiro viés diz respeito a desestruturação
dos valores em suas bases de sustentação, uma espécie de denúncia do esvaziamento de
sentido valorativo entrevisto na modernidade, o que acarreta desconfiança, desconforto e
17

angústia perante tal diagnóstico, e posterior abandono dos valores, por se verificar sua
insustentabilidade; o segundo faz referência a abertura para novas possibilidades ou
perspectivas de interpretação12. A intenção é demonstrar em que medida, para Nietzsche, esse
processo tão crucial e conflitante para a humanidade denominado niilismo está imbricado
também com a noção de corpo.
Não podemos deixar de frisar, entretanto, que iremos acionar as demais obras que
servem como arcabouço teórico e interpretativo para o projeto ao qual nos arvoramos, a saber,
especialmente, Za/ZA, no que se refere às três metamorfoses do espírito, de fundamental
importância para se pensar o corpo pelo viés da criação; a via de significação aberta pela
seção intitulada Dos desprezadores do corpo, onde Zaratustra se contrapõe às doutrinas e
posturas que se articulam em preterição ao corpo e sua significação para a vida; e, acima de
tudo, o corpo interpretado como grande razão.
No terceiro e último capítulo, traremos a discussão para a conceituação que Nietzsche
empreende acerca de uma noção basilar ao seu pensamento, a saber, a vontade de poder.
Logo, situaremos o corpo, a partir do enfoque nietzschiano, enquanto vontade de poder. Sem
deixar de considerar, contudo, a relevância de alguns processos intrínsecos ao corpo como
saúde (a alegria trágica da vida) e adoecimento do mesmo (provocado pelo ressentimento, por
exemplo).
Destarte, a pesquisa demonstra-se relevante porque possibilita o aprofundamento em
uma questão que se coloca de forma latente no contexto do pensamento ocidental: a noção de
corpo. Por isso, alguns questionamentos serão levantados no decorrer do trabalho, com o
intuito de problematizar o corpo, mais acima de tudo, as significações e valores atribuídos ao
mesmo, uma vez que se faz necessário pensar o corpo atravessado pelas interpretações
filosóficas, morais, culturais, estéticas. Enfim, o corpo observado pela via de interpretação
nietzschiana, corpo da memória, da má consciência, da modernidade, assim como também, do
esquecimento, da criação e abertura para o novo, isto é, da alegria trágica da vida.

12
Clademir Araldi esclarece, com precisão, o referido ponto ao afirmar que: “O niilismo, na Europa “moderna”
de Nietzsche, pode ser visto como um processo de dissolução, que se desencadeia sob o signo de uma
ambiguidade inquietante. A autodestruição dos valores morais ocasiona uma despotenciação do valor do homem,
tal como foi moralmente estabelecido. [...] Os movimentos modernos que se consomem em seus próprios
antagonismos são as características próprias desse tempo. Há, no entanto, um contra movimento, por parte de
espíritos livres, os “mais modernos entre os modernos”, comedidos ao extremo na posição de valores,
desconfiados de que a existência e seus males não tenham um sentido. Eles deveriam ser fortes o bastante para ir
ao outro extremo do niilismo, no perigoso limite a partir do qual poder-se-iam antever novas formas de criação.”
(ARALDI, C. Nietzsche: o niilismo e a consumação da modernidade. Semana Acadêmica do PPG em Filosofia
da PUCRS. Anais. Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS. Dados eletrônicos. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2012. p. 1)
18

CAPÍTULO I: PENSAR O CORPO A PARTIR DE NIETZSCHE

1.1. Crítica nietzschiana: a filosofia enquanto má-compreensão do corpo


1.1.1. Corpo: afirmação e declínio

Pensar o corpo a partir de Nietzsche é mais do que um desafio que se apresenta àquele
que se propõe a tal empreitada, é uma tarefa árdua, um exercício de arguição. E adotando tal
postura iremos não apenas nos deter sobre a noção de corpo em Nietzsche, escopo central
desse trabalho, mas também discutir os posicionamentos favoráveis e/ou contrários a essa
perspectiva. Pois, antes de qualquer coisa, é exatamente disso que estamos tratando quando
nos submetemos a presente investigação: perspectivas. O filósofo de Röcken não se pretende
detentor de verdades, pelo contrário, contrapõe-se à concepção de verdade: “A vontade de
verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos
os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou!” 13.
Por isso, não temos a intenção de sugerir uma mera inversão do que Platão instituiu, a
saber, a supervalorização da alma em detrimento do corpo. Não se quer aqui afirmar o corpo
como a nova verdade, colocando-o em papel de destaque em lugar da alma. Para o filósofo
alemão, conforme veremos mais adiante, alma é só uma palavra para designar algo que existe
no corpo e não está para além dele. Por conta disso, nos propomos, neste primeiro momento, a
explicitar o conflito entre Nietzsche e a filosofia tradicional, instaurado especificamente no
problema da compreensão do corpo.
A filosofia tradicional racionalista, enquanto campo privilegiado do pensamento
humano agrega para si inúmeras temáticas de abrangência universalizantes, com a clara
intenção de construir uma interpretação do homem e do mundo pautada por valores absolutos
de cunho estritamente conceitual. Assim, moral, ética, estética, passaram a se orientar por
pensamentos abstratos, doravante preocupados em encontrar a essência das coisas e
organizados pela pergunta “o quê?”, cuja resposta será sempre a definição dada a determinada
coisa. Uma das questões para as quais frequentemente se buscou uma definição fora a
seguinte: “o que é o homem?” e algumas das respostas ou definições mais ordinárias para a
referida questão são: “o homem é um ser racional” ou “o homem é um ser consciente”.
Nietzsche dirá, em contrapartida, que: “[...] Se eliminarmos “a coisa como tal, a coisa em si e

13
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 1.
19

por si” [...]. Toda essa contraposição, como aquela mais antiga entre “matéria e espírito”,
revela-se inútil”. 14
Nietzsche não tencionava conhecer a essência das coisas, pois discordava da
concepção de que existiria uma origem para o conhecimento humano. Com efeito, Nietzsche
se contrapõe a toda e qualquer compreensão originária da realidade, especialmente aquela de
cunho metafísico, que pretende definir ou circunscrever o homem em uma conceituação
especifica e/ou substancial ou que entreveja o mundo como algo estático. À vista disso,
explicita Nietzsche:

O ser humano busca “a verdade”: um mundo que não se contradiga, não se engane,
não mude, um mundo de verdade – um mundo em que não se sofra: contradição,
engano, mudança – causas do sofrimento! Ele não duvida que haja um mundo como
ele deveria ser; gostaria de procurar para si o caminho até ele [...]. O desprezo, o
ódio contra tudo o que desaparece, se modifica, muda: -- de onde essa valorização
do permanente, do que se conserva?15

Os questionamentos levantados acima pelo filósofo conduzem para a constatação de


que o homem ocupou-se, primordialmente, com a crença em um mundo tal qual ele deveria
ser, sem levar em consideração que o mundo existe enquanto devir. Destacaram-se, na
história da filosofia, as interpretações de mundo e de homem antagônicas a afirmação do
corpo e realidade. Em GT/NT, de 1872, uma das obras basilares para a construção de sua
empreitada crítica, o filósofo de Röcken já começa a estabelecer os primeiros passos de sua
árdua tarefa, a saber, a crítica à tradição filosófica.
O jovem Nietzsche preocupa-se, nesse primeiro momento, com a arte e a cultura no
mundo moderno, ainda fortemente influenciado pela metafísica da vontade de Arthur
Schopenhauer e a teoria da arte de Richard Wagner. O projeto de uma crítica radical às
tendências culturais de sua época começa a emergir, para Giacóia Junior (2000), quando o
filósofo questiona a confiança cega em uma evolução e progresso do homem que teria como
mote fundamental a racionalização social, assim como também, a subsunção de uma
intelectualidade erudita e esvaziada de conteúdo que se pretendia cientificamente neutra, na
mesma medida em que se mostrava indiferente diante dos anseios sociais.
A relevância do projeto crítico nietzschiano iniciado com a referida obra coaduna-se
com a percepção de que os gregos do período trágico serviriam como modelo – a despeito dos
homens de seu tempo – para pensar a vida em todas as suas dimensões trágicas, na afirmação
do caráter atroz da existência e na elevação da mesma através da beleza: “[...] os gregos

14
Nachlass/FP, 6 [23].
15
Nachlass/FP, 9 [60].
20

souberam, exemplarmente, dominar o caos de seus impulsos, atingindo um domínio de si que


lhes permitia transfigurar em beleza os horrores da existência.” 16
Considerando o mérito da questão, portanto, permitimo-nos refletir sobre a influência
da cultura grega pré-socrática sobre o pensamento nietzschiano, a qual, impossível negar, fora
fundamental para a concepção de corpo como fio condutor em sua filosofia. Um opúsculo
escrito pelo filósofo em 1873, intitulado PHG/FT, já antecipava tal tese: “[...] os Gregos
souberam começar na altura própria, e ensinam mais claramente do que qualquer outro povo a
altura em que se deve começar a filosofar.” 17. O filosofar tipicamente grego ao qual se refere
Nietzsche no excerto acima, concorre, particularmente, para algo muito expressivo, pois o
situa na esteira de uma crítica radical à filosofia estabelecida pelo platonismo, responsável
pela promoção de uma cisão entre corpo e alma, depauperando a importância do corpo,
colocando-o em segundo plano.
Faz-se necessário frisar, contudo, que é possível considerar duas perspectivas
interpretativas, a saber, a de Platão e a do platonismo. Platão, por sua vez, promoveu, em
muitas de suas obras, aquilo que Nietzsche denomina de cisão entre corpo e alma,
valorizando, efetivamente, a segunda. Todavia, em alguns excertos de suas obras se evidencia
o contrário, uma vez que não demonstra preocupação em estabelecer um sistema deliberado
de oposição ao corpo, ressaltando, inclusive, a importância de aspectos concernentes ao corpo
e seus cuidados. O que ele fez, de fato, foi promover uma hierarquia da vontade18. Platão
afirma no Fédon que a razão deve dominar o corpo, pois é necessário:

16
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 33.
17
PHG/FT, p. 18.
18
Com base nesses pressupostos, podemos situar claramente em que se perfaz a crítica de Nietzsche à Platão,
isto é, na crença de que o impulso deve estar submetido a racionalidade. Acerca do posicionamento adotado por
Platão no que se refere ao corpo, esclarece Thomas M. Robinson: “Um aspecto final e crítico de sua psicologia
reavaliada – coincidemente também prenunciado no Górgias – é o evidente abandono da teoria do Fédão a
respeito do que constitui a saúde da alma e do corpo. Pois a saúde, vista como uma metáfora básica para a
justiça, é agora cuidadosamente descrita, nos moldes da medicina grega contemporânea, como uma harmonia de
itens no organismo, seja este o corpo ou a alma. Falando nos termos escrupulosamente funcionalistas e
teleológicos elaborados no final do livro 1, Sócrates descreve como o correto funcionamento (=saúde) do corpo
envolve o correto funcionamento de cada uma das partes que o compõem; em sua própria terminologia, cada
parte executa a função que lhe foi destinada. De modo semelhante, na alma justa (=saudável), a saúde/justiça
consiste em cada uma das três partes da alma executar a função que lhe foi destinada.Se a parte racional da alma
é ainda, para Platão, de longe a mais importante, e talvez a única a ser imaterial e imortal (cf. infra), o papel
necessário das outras duas partes icibas levou Platão a um passo gigantesco para além das opiniões
anteriormente propostas no Fédão. Agora, o corpo não é mais visto como alguma forma de contra-indivíduo
material, completo, com desejos próprios, em oposição ao indivíduo imaterial que é a alma. Todos os desejos
são, realmente, diz Platão, uma característica da alma; ainda que muitos deles se descrevam corretamente
operando via corpo. E todos estes, se corretamente canalizados, podem ser comandados de modo a servirem aos
fins de nossos eus racionais e, em última instância, mais genuínos.” (ROBINSON, T. M. As características
definidoras do dualismo alma-corpo nos escritos de Platão. LETRAS CLÁSSICAS, n. 2, p. 335-356, 1998. p.
344).
21

[...] examinar as coisas apenas com o pensamento, sem pretender aumentar sua
meditação com a vista, nem sustentar seu raciocínio por nenhum outro sentido
corporal, aquele que se servir do pensamento sem nenhuma mistura procurará
encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxilio dos olhos ou dos ouvidos e, por
assim dizê-lo, completamente isolado do corpo, que apenas turba a alma e impede
que encontre a verdade.19

Em Platão, conforme o fragmento acima, a razão é a via de acesso ao conhecimento


verdadeiro, prescindindo do corpo para tanto, tido como elemento capaz de obscurecer o
pensamento na busca pela verdade. Lançando-se a um ponto de vista gnosiológico, o filósofo
grego aponta que o apego ao corpóreo pode ser nocivo à alma.
Tal viés interpretativo se prenuncia em outras passagens do diálogo Fédon:

E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não


o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio? Quero dizer com isso,
mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens
por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a
estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir
incessantemente, e que nem vemos nem ouvimos com clareza? [...] Quando é, pois,
que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que, quando ela deseja investigar com
a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente.
20

Afigura-se, com base no excerto acima, que o filósofo grego acena para um
distanciamento entre corpo e alma, por considerar o âmbito das afecções corpóreas uma
espécie de entrave ao conhecimento verdadeiro. A dimensão corpórea carregaria, a partir
desse viés, uma conotação negativa, pois os sentidos seriam enganosos, impossibilitando o
acesso a um saber confiável. Com base nisso, seria preferível romper a associação e contato
entre corpo e alma, já que a alma pode aspirar à verdade, enquanto o corpo não pode.
No livro III de A República, contudo, Platão parece refletir acerca da relação corpo-
alma pelo viés de conjunto, conforme explana Morais:

[...] Platão se consagra à tarefa de examinar o tipo de educação e práticas físicas


adequadas ao guerreiro (410b-e). Nestas linhas ele nos mostra que o guerreiro, além
de ter na sua alma um forte furor combativo, deve contar, também, com a força dos
músculos, com a capacidade de resistir às dores, bem como possuir habilidade no
manejo das armas. Platão mostra, aí, a interação necessária e harmoniosa do perfil
psicológico do indivíduo e da sua condição corpórea. 21

Todavia, foi exatamente entre os gregos antigos, antes mesmo de Platão, que se
manifestaram decisivas preocupações em torno dos fenômenos corporais e mentais e das

19
PLATÃO. Fédon. In: Diálogos: Fédon, Sofista, Político. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 127.
20
PLATÃO. Fédon. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Coleção Os
pensadores). 65b
21
PLATÂO apud MORAIS, A unidade corpo-alma na fisiologia-ética do Timeu de Platão. Dissertação de
mestrado, UFMG, Belo Horizonte, MG, 2009. p. 12.
22

relações daí decorrentes, manifestamente arroladas pelos médicos e filósofos da Grécia antiga,
uma vez que, segundo Castro & Fernandez (2011, p. 799), “É a partir desta civilização que
surgem observações mais sistemáticas sobre estrutura e funcionamento do corpo, da mente e a
relação entre estas duas entidades”. Nota-se que existia, no seio do pensamento grego antigo,
uma preocupação relevante com estados corpóreos, aliados à prática da ginástica, à
preparação para a guerra etc. Nesse contexto, a mente humana era vista como um arcabouço
dos afetos, intelecto, em íntima relação com o corpo, porém, detentora de autonomia em
relação ao mesmo.
No Timeu, conforme evidencia Reis (2007, p. 389), entrevê-se unidade entre corpo e
alma: “[...] No caso do homem, ainda que a alma encarnada (triádica 22) possua elementos
irracionais que possam levar o homem ao conflito, ao desequilíbrio [...], o estado de completo
entrelaçamento entre corpo e alma, no homem vivo, é destacável em várias passagens”.
Deve-se ressaltar, porém, que tal interpretação, ainda que não seja uma das mais correntes
entre os principais comentadores de Nietzsche, é significativa e deve ser devidamente
considerada no rol das investigações filosóficas. Entretanto, esse não é o nosso enfoque no
presente texto.
Retornando, assim, ao propósito basilar da dissertação, outro ponto bastante
elucidativo da crítica nietzschiana a filosofia tradicional, empreendida por meio do
contraponto com a filosofia grega pré-socrática, concorre para a consideração do apego que os
gregos do período trágico tinham pela vida, tornando-os inventores de um tipo de sabedoria
cujos pressupostos consistem em uma exaltação das formas naturais, do corpo, da relação
entre forças físicas e mentais, aspectos estes que, repercutem inclusive no modo como se
relacionavam com as divindades, representações das forças terrestres que atuavam de maneira
efetiva sobre a vida das pessoas. O antropomorfismo dos deuses também legitima o que foi
dito, posto que nos permite concluir que a forma humana se evidenciava como a mais natural
para se imprimir às divindades.
A filosofia na era trágica dos gregos converge em Nietzsche, acima de tudo, para uma
crítica à modernidade, e como tal, reivindica uma retomada dos aspectos trágicos da
existência cultivados pelos gregos antigos, a saber, o cerne do embate harmonioso entre os
impulsos apolíneos e dionisíacos que permeavam o modo de vida dos gregos nesse período.
Segundo Miguel Angel de Barrenechea (2014), o trágico se anunciava, para o filósofo
alemão, como um complexo de forças em conflito, representativo da cultura grega em seu

22
O apetitivo, o irascível e o racional, denominada por alguns comentadores de “teoria da tripartição da alma”.
23

momento de maior fascínio e magnificência. Tendo isso em vista, podemos encontrar em


Nietzsche a seguinte passagem:

O juízo desses filósofos sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais
significativo do que um juízo moderno, porque tinham diante de si a vida numa
plenitude exuberante e porque neles o sentimento do pensador não se enreda, como
em nós, na cisão do desejo da liberdade, da beleza, da grandeza da vida, e do instinto
de verdade, que só pergunta: o que a vida vale? 23

O filósofo argumenta acima que o modo de enxergar e viver a realidade, próprio dos
gregos da era trágica, é essencial para que se possa levar a cabo o projeto de remodelação da
cultura moderna, uma vez que esta se encontrava muito mais comprometida com a vontade de
verdade que busca consolidar pontos fixos e imutáveis de compreensão do mundo,
responsável pelo nivelamento do homem e supressão de instintos e vontades intrínsecos. Com
o instinto de verdade promove-se uma normatização da vida, pois ela passa a ser gerida e
enquadrada em parâmetros de pensamento cujo propósito é elaborar conceitos que possam
servir de sustentação para a mesma, deixando de lado os aspectos não cobertos pelo
pensamento consciente, isto é, os desejos, as pulsões, o orgânico. Enfim, atribui-se valor à
vida, sem se questionar sobre o valor desses valores. Vê-se que aqui já estão postas, de forma
embrionária, as questões que darão sustentação ao projeto nietzschiano de crítica à filosofia
enquanto má-compreensão do corpo.
Antes de adentrarmos na análise da obra onde tais questões se evidenciam com maior
clareza, a saber, GT/NT, aflui quase imediatamente o fascínio que as poesias de Homero
exerciam sobre as concepções do jovem filósofo. A visão grega de corpo construiu-se a partir
de elementos herdados da filosofia do século V a.C., assim como também de alguns aspectos
já esboçados por Homero antes do primado da filosofia. Suas obras descrevem não apenas os
hábitos sociais, costumes religiosos e posicionamentos políticos dos antigos gregos, mas
também os conflitos de forças e os embates humanos personificados pela força plástica da
guerra e pela referência frequente à morte, mais especificamente à bela morte
(kalòsthánatos24), a mais venerável pelos heróis homéricos.

23
PHG/FT, p. 22.
24
Em seu texto, Jean-Pierre Vernant descreve magistralmente no que consiste a bela morte dos guerreiros: “Para
aqueles que a Ilíada chama anéres (Andrés), os homens na plenitude de sua natureza viril, ao mesmo tempo
machos e corajosos, existe um modo de morrer em combate, na flor da idade, que confere ao guerreiro defunto,
como o faria uma iniciação, aquele conjunto de qualidades, prestígios, valores, pelos quais, durante toda a sua
vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em competição. Esta “bela morte”, kalòsthánatos, [...], faz aparecer,
à maneira de um revelador, na pessoa do guerreiro caído em batalha, a eminente qualidade de anèragathós,
homem valoroso, homem devotado. [...] A bela morte é também a morte gloriosa, eukleèsthanatós.”
(VERNANT, P. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso. São Paulo, n. 9, 1978. p. 31-32).
24

A bela morte, portanto, significava morrer em ação, de forma gloriosa, no auge da


juventude e de suas forças físicas. O guerreiro não se esquiva à batalha, mesmo que isso
acarrete a sua morte, pois é preferível morrer de maneira valorosa, em conformidade com o
destino traçado, do que padecer velho e decrépito pela ação do tempo. Todos esses elementos
demonstram que o corpo do guerreiro é atravessado por relações de poder, posto que todo o
seu percurso de vida tenha sido primorosamente traçado para alçar àquele momento. A morte
gloriosa seria então a ocasião em que o guerreiro suplanta a ação da crueldade do tempo que
tudo apaga, para permanecer vivo, através de seus feitos, na memória dos homens.
Com efeito, compreende-se que as concepções de morte e de vida cultivadas pelos
gregos antigos diferem absolutamente da percepção moderna. Na era trágica, os gregos,
conforme Vernant (1978), exaltavam a bela morte porque acreditavam ser preferível evitar a
decrepitude do corpo ocasionada pela velhice, a qual levava consigo todos os elementos que,
representativos da vida pulsante, configuravam-se como mais valorosos especialmente para os
jovens guerreiros, isto é, graça, beleza, pujança, destreza etc. Por isso, exaltavam a morte em
campo de batalha, em tenra idade, o que possibilitava ao herói a conquista da juventude
inabalável. Tal digressão ratifica que a relação que os gregos antigos tinham com a morte não
se enraizava no medo, e sim no enfrentamento e aceitação da mesma como uma etapa natural
da vida, já que é inegável o fato de que os homens e mesmo os deuses do mundo homérico
possuíam um forte apelo à natureza: “‘Natureza’ é a grande palavra nova, que o espírito grego
amadurecido contrapõe à magia arcaica. E daí decorre em linha reta o caminho que leva à arte
e a ciência dos gregos.” 25
O apego à perspectiva natural propagado pelo helenismo grego fundamentou o modo
de ver nietzschiano26 até o seu pensamento maduro, uma vez que o filósofo corrobora com o
posicionamento de que a morte deve ser aceita enquanto um fato natural da existência
humana. Logo, querer a morte ou decidir o momento exato em que se deve morrer se
apresenta como algo positivo se levarmos em consideração a afirmação da liberdade de
escolha para a morte ou a noção de “morte voluntária”. Contudo, a morte não deve ser
buscada como uma forma de negação ou fuga da vida tornada medíocre. Para Nietzsche, a
vida deve ser vivida em todos os seus aspectos, dos mais elevados aos mais sombrios, e não é

25
OTTO, Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus, 2005. p.
32.
26
Pois, para o filósofo alemão, no prefácio intitulado A disputa de Homero: “Quando se fala de humanidade, a
noção fundamental é a de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas uma tal separação não existe na
realidade: as qualidades “naturais” e as propriamente chamadas “humanas” cresceram conjuntamente. O ser
humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante
duplo caráter.” (CV/CP, 5).
25

almejável fazer dessa vida um estágio de preparação para a morte, como se a mesma pudesse
trazer alento ante uma vida de dor e sofrimento, abrindo-se as portas de outro mundo, um
“mundo melhor” onde a angústia inexiste. O filósofo alemão se contrapõe a tal visão, visto
que a morte não deve ser desejada por ser algo inevitável, e menos ainda, segundo a ideia
cristã, almejada como etapa derradeira pela qual se deve devotar uma vida inteira de
abstenções físicas e de outras espécies, já que “Todos dão grande peso ao fato de morrer: mas
a morte ainda não é uma festa. Os homens não aprenderam como consagrar as mais bonitas
festas.” 27.
Em algumas sociedades e culturas, a morte é vista como algo a ser festejado, em
outras, é considerada a etapa de encerramento de um ciclo, mas para as sociedades modernas,
atravessadas pelos valores morais cristãos, a ideia de morte perpassa pelo sentimento de
medo, redenção e culpa: “A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar
e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa,
segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome” 28. Isto
posto, para Nietzsche “Existem pregadores da morte; e a terra está cheia daqueles a quem se
29
deve pregar o afastamento da vida” . Nietzsche irá se esquivar a última hipótese,
especificamente por considerar que o medo da morte pode acarretar o declínio do indivíduo,
que mais preocupado em cultivar uma vida ascética pela via da supressão dos instintos
corpóreos, acaba por adoecer fisicamente e psiquicamente.
Nasser (2008) assinala que a “reinterpretação da morte” empreendida pelo filósofo
possui um duplo dimensionamento, aquele que aponta para o viés da “morte covarde”, e outro
que especula acerca da “morte voluntária”. No primeiro caso, almeja-se a morte porque a vida
é breve e efêmera, além de levar a decrepitude do corpo e das forças ocasionado
enfermidades, angústias e sofrimentos considerados insuportáveis. Os “pregadores da morte”,
conforme Nietzsche (2011) denomina esse tipo de homem, dão maior ênfase à hora da morte
de um indivíduo do que às experiências e prazeres vivenciados. Para o referido tipo de
homem a morte deve ser desejada como o momento capital, pois proporciona a expurgação
dos pecados que o indivíduo carregou em vida, o anestesiamento das dores infligidas e a
passagem de um mundo cruel para um “mundo melhor”, no qual ele estará livre de todas as

27
Za/ZA, Da morte voluntária, p. 69.
28
ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p.
35-36.
29
Za/ZA, Dos pregadores da morte, p. 44.
26

máculas, porquanto “Há os tuberculosos da alma: mal nasceram, já começam a morrer e


anseiam por doutrinas do cansaço e da renúncia”. 30
No segundo caso, “morte voluntária” significa a afirmação do querer do homem, pois
a morte deve ser afirmada como um momento indissociável da vida, logo afirmar a vida é o
mesmo que aceitar a morte, não como algo a ser evitado a todo custo, e sim a ser celebrado,
caso o indivíduo tenha usufruído a vida em todas as possibilidades que ela oferece. Aquiles,
por exemplo, não se esquivou à guerra de Tróia, mesmo sabendo que aquela seria a sua última
empreitada. Para Nasser (2008, p. 106), “A maneira de querer a morte agora distingue-se
daquela cultivada pelos pregadores da morte. Antes de desejar a morte porque se morre, o
adepto da morte voluntária quer a morte para afirmar a si mesmo”. Em vista disso, conclui-se
que a concepção de morte voluntária compreende também a afirmação do próprio homem em
todos os aspectos que o compõem, isto é, nas dores e prazeres. Logo, cultivar o medo da
morte pode levar ao declínio dos instintos corpóreos, porque temer a morte seria o mesmo que
negar a vida, suprimindo-lhe a dor. Para Nietzsche, a dor não pode ser evitada, negada ou
suprimida, porque é inerente ao ser humano sentir dor, assim como a morte também o é.
Entretanto, retornando ao ponto inicial de nossas problematizações, em GT/NT,
Nietzsche se propõe a investigar o florescimento da cultura ocidental a partir da influência
grega, considerada decisiva para se pensar a tragédia. Empreende, assim, um estudo filológico
que teria como arauto, até aquele momento, o projeto musical de Richard Wagner 31 e, acima
de tudo, uma compreensão estética vislumbrada na oposição entre os deuses Apolo e
Dionísio, representantes de forças ao mesmo tempo díspares e complementares, as quais
contribuem, de forma efetiva, para a compreensão de corpo em Nietzsche, aproximando-o
significativamente da concepção grega acerca do mesmo tema, conforme já antecipamos.
Nessa perspectiva, aponta Machado:

30
Za/ZA, Dos pregadores da morte, p. 45.
31
É importante frisar que, a princípio, Wagner concebe a arte trágica em acepção estética muito próxima daquilo
que Nietzsche compreende por arte, a saber, enquanto afirmação do caráter trágico da vida. Posteriormente,
entretanto, o próprio músico alemão empreende uma ruptura com tal perspectiva, assumindo para si a acepção
schopenhauriana de arte, idealista e pessimista, contraposta à visão nietzschiana. Outro aspecto que possibilitou
o distanciamento entre o filósofo e o músico alemão fora a conversão do último ao cristianismo, conversão essa
que reverberou sobre a sua música, a qual passou a ser composta com a finalidade de arrebatar as massas pela
grandiosidade de estilo: “O artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe
de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde – e a música, além disso!” (WA/CW, § 5).
Para Nietzsche, o músico deve ser criticado tanto pelo viés estético, quanto pelo aspecto fisiológico, pois
enquanto artista da décadance, a sua música reflete a negação dos instintos vitais e o declínio do corpóreo. A
propósito disso, elucida Ernani Chaves, “Não por acaso, O Caso Wagner procura mostrar a exaustão, que os
temas wagnerianos giram em torno da castidade, da pureza e da inocência, contra os perigos do corpo, do
pecado, da devassidão.” (CHAVES, E. Considerações sobre o ator: uma introdução ao projeto nietzschiano da
fisiologia da arte. Trans/Form/Ação [online], vol.30, p. 51-63, n.1, 2007. p. 61).
27

O apolíneo é para Nietzsche o princípio de individuação, um processo de criação do


indivíduo, que se realiza como uma experiência da medida e da consciência de si.
[...] Apolo é o brilhante, o resplandecente, o solar. [...] Por outro lado,
intrinsecamente ligada à ideia do brilho está a da aparência. [...] Já o dionisíaco é
pensado por Nietzsche a partir do culto das bacantes [...] trata-se de uma experiência
de reconciliação das pessoas com as pessoas e do homem com a natureza [...]. A
experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade
[...] o dionisíaco produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade [...]. 32

O equilíbrio da existência do homem grego, fundada basicamente em dois polos, o


apolíneo e o dionisíaco, foi desfeita na modernidade. Os gregos, cuja visão de mundo era
pautada pela efetividade e apego aos instintos corpóreos, tinham uma noção mais ampla e
definida de que a vida é também constituída de valores negativos, de perigos e adversidades.
Contudo, a postura de tais homens perante esse aspecto da vida é bem distinta da postura do
homem moderno, que se entrega ao pessimismo, à desilusão e ao apequenamento, o homem
grego utilizava a arte como contraponto a tais aspectos negativos da vida. Apolíneo representa
o campo da sobriedade, da beleza, do comedimento, da individualização, da medida certa, que
concebia a possibilidade de entusiasmo perante a vida, se os traços obscuros da existência
fossem embelezados artisticamente.
No que se refere ao dionisíaco, este se volta mais para a afirmação da vida nas suas
contingências, desmedida, excesso, êxtase, o que situa o homem no plano do real, no terreno
do incerto, do vir a ser.
Esses dois polos, antes em harmonia, pois o homem necessita de ambos, são
desequilibrados pelo culto à razão da filosofia. Será esta razão que agora irá governar o
pensamento do homem, ditando-lhe regras, leis, morais, valores, diretrizes que devem ser
seguidas, pois são frutos da racionalidade, ou seja, o homem social, urbanizado, evoluído, age
racionalmente, pondo em segundo plano os seus apetites, as suas inclinações.
De acordo com Barrenechea (2014), o jovem Nietzsche compreende a tragédia grega
como o momento de maior exuberância do período helenista, porque aquela se transfigura em
demonstração mais cristalina de exaltação das forças vitais e potência de instintos próprios
dessa cultura, e tem na arte sua expressão mais bem acabada. A interpretação de mundo
helênica, cuja plasticidade se delineia particularmente nas tragédias tem como mote, de um
lado, a alegria, o riso, a serenojovialidade, e de outro, a desmesura dos instintos, a dor, o
sofrimento, como diferentes facetas de compreensão da realidade e do caráter efêmero do
mundo que se mesclam de forma singular.

32
MACHADO, R. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Tradução do alemão e notas
Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 7-8.
28

O filósofo cogita, de fato, promover uma revalorização da cultura grega antiga em sua
era de glória, com o objetivo de retirar o homem moderno de uma existência pálida e
superficial, reconduzindo-o a uma nova era trágica: “Desde a sua juventude, o filósofo antevê
o retorno ao espírito grego, a possibilidade de restaurar uma cultura vital, forte,
esplendorosa.” 33. Assim, promove-se uma retomada dos princípios estéticos que nortearam o
helenismo, pois a cultura ocidental havia caído em incontestável declínio desde Sócrates. As
principais evidências do referido declínio são: o desequilíbrio dos afetos e dos instintos, a
desvalorização dos impulsos corpóreos e a decadência das forças.
Desde a concepção racionalista socrática, seguida pelo platonismo, judaísmo e pelo
cristianismo, o Ocidente desvalorizará e condenará todas as potências trágicas da
vida, acreditando em utopias de pretensos mundos perfeitos, em quimeras de
supostos além-mundos. Nietzsche visualiza, então, haver uma concepção trágica que
declina após os primeiros gregos e uma concepção antitrágica que dominará todo o
devir do Ocidente, num processo doentio que exaure forças e tira da humanidade
todo sentido, todo valor, em prol de fantasias escatológicas, em prol da adoração de
“ídolos” inconsistentes. 34

Nesse contexto, tem-se o declínio da tragédia, especialmente a partir da concepção


racionalista socrática, responsável pela degeneração dos instintos helênicos afirmadores da
vida e, por conseguinte, dos aspectos corpóreos antes relacionados à força, ao espírito
guerreiro, a vitalidade, a saúde. Em lugar dessa concepção trágica de existência, Sócrates
preparará o solo grego para o primado da razão, a qual encetará seus dardos de forma
vertiginosa por todo o pensamento Ocidental. Com o “socratismo” 35 advém uma concepção
de mundo pautada nos âmbitos racional e inteligível, que busca, antes de qualquer coisa,
ratificar o papel da razão enquanto mantenedora da conduta humana virtuosa, pois a razão
seria, segundo essa concepção, a única que poderia disciplinar e dominar os instintos
corpóreos em desequilíbrio.

A sabedoria instintiva mostra-se, nessa natureza tão inteiramente anormal, apenas


para contrapor-se, aqui e ali, ao conhecer consciente, obstando-o. Enquanto, em
todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a
consciência se conduz de maneira crítica e dissuadora, em Sócrates é o instinto que
se converte em crítico, a consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade
per defectum! 36

Assim, evidencia-se com o socratismo uma espécie de inversão ou, como dirá
Barrenechea (2014, p. 13), “uma transvaloração dos valores trágicos”, que acarretará em um

33
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. p. 14.
34
BARRENECHEA, op. cit., p. 14.
35
Terminologia crítica utilizada por Nietzsche como expressão máxima da dissolução dos afetos vitais,
transformados em impulsos declinantes, promovida pelo racionalismo socrático. O socratismo propôs-se fazer
uso da razão enquanto mecanismo de controle dos instintos caóticos que assolavam a sociedade grega à época.
36
GT/NT, 13, p. 83.
29

contramovimento antinatural, pois os instintos afirmadores da vida, os impulsos corpóreos,


serão desvalorizados em prol da razão, do intelecto, da consciência. Para o socratismo importa
detectar o que diz a razão ou a consciência sobre o corpo, tornado refém do aparelho
intelectivo. Não é o corpo quem deve falar. Na verdade, o corpo passará, a partir desse
momento decisivo, a ser silenciado, vilipendiado em favor da negação da vida, pois “... o
socratismo condena tanto a arte quanto a ética vigentes; para onde quer que dirija o seu olhar
perscrutador, avista ele falta de compreensão e o poder da ilusão; dessa falta, infere a íntima
insensatez e a desestabilidade do existente.” 37
Percebe-se, desse modo, que a figura de Sócrates é determinante para se pensar o
corpo, visto que foi através dele que a filosofia se voltou para o ideal racional em detrimento
dos apetites corpóreos que, agora, passaram a se regulamentar pela razão. Os impulsos
orgânicos, segundo o socratismo, devem ser geridos pela consciência, considerada criadora.
Pelo viés interpretativo nietzschiano, Sócrates, para além do papel de corruptor da juventude
grega, deve ser tratado como um corruptor dos instintos corpóreos afirmadores da vida, já que
se volta contra tudo aquilo que é efetivo, vivente, terreno, ao afiançar o papel da razão na
orientação da conduta humana, instaurando, assim, o fenômeno da décadence no seio da
filosofia, conforme pondera Onate: “[...] Sócrates, o monômano da moral, o décadent que
expressou a fórmula razão=virtude=felicidade e com ela enfeitiçou o pensar antigo à medula,
a ponto de não mais se liberar de seus grilhões.” 38
Em GD/CI, Nietzsche dirá:
Não apenas a anarquia e o desregramento confesso dos instintos apontam para a
décadence em Sócrates: também a superafetação do lógico e a malvadez de
raquítico que é sua marca. [...] Tudo nele é exagerado, buffo [burlesco], caricatura;
tudo é ao mesmo tempo oculto, de segundas intenções, subterrâneo. – Tento
compreender de que idiossincrasia provém a equação socrática de
razão=virtude=felicidade: a mais bizarra equação que existe, e que, em especial, tem
contra si os instintos dos helenos mais antigos. 39

Décadence40, portanto, refere-se, de um lado, a severa crítica de Nietzsche ao projeto


estético wagneriano, e de outro, a degenerescência da cultura Ocidental impetrada por

37
GT/NT, 13, p. 82.
38
ONATE, O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. São Paulo:
Discurso Editorial, 2000. p. 77.
39
GD/CI, II, §4.
40
Não podemos deixar de enunciar que o termo décadence comporta em si, segundo a interpretação
nietzschiana, duas configurações: uma negativa e outra positiva, a vida em ascensão e a vida em declínio.
Segundo o verbete encontrado em Niemeyer: “Para Nietzsche, a décadence é uma fase intermediária necessária
no processo de desenvolvimento da vida. Numa carta a C. Fuchs, inspirando-se diretamente no ensaio de
Bourget dedicado a Baudelaire, ele descreve o estilo da décadence – tomando Wagner como exemplo – como
dissolução da unidade formal mediante o domínio de um impulso individual, isto é, por meio do princípio de
decomposição [...]. Mais ainda assim ele enfatiza em sua carta a Fuchs (de abril de 1886): “No entanto, isso é
décadence, um termo que, tal como nos parece ser evidente, não deve rechaçar, mas apenas descrever algo”. E
30

Sócrates, sobre isso, dirá o filósofo: “[...] devemos nos acercar mais da essência do socratismo
estético, cuja suprema lei soa mais ou menos assim: ‘Tudo deve ser inteligível para ser belo’,
como sentença paralela à sentença socrática: ‘Só o sabedor é virtuoso. ’” 41. Compreende-se
acerca da passagem que o caráter intelectivo sobrepõe-se aos demais aspectos, enquanto pré-
condição basilar para a conduta virtuosa, assim como também, para a delimitação do que pode
ser considerado belo. Ou seja, tem-se a crença metafísica no primado da razão em detrimento
do corpo, por meio da concepção de que o pensamento não apenas conhece o ser das coisas,
como está apto a corrigi-lo. Em contrapartida, para o filósofo alemão, conforme atesta
Machado (2002), não é possível conhecer o mundo, a natureza, o ser das coisas, e tampouco,
apartar essência e aparência, como o quer o socratismo.
Logo, no décadent exprimem-se as vontades em declínio, o que se configura como um
retrocesso fisiológico, pois ao invés da intensidade vital, serão sublinhados em demasia,
conforme Onate, “a contradição dos instintos, fruto da deficiência no centro de gravidade
responsável pela força organizadora; fica obstruído o canal hierarquizador natural, impedindo
assim que os instintos fundamentais desfrutem da supremacia e os tornando gradativamente
voláteis, vazios, ideais.” 42. Nesse sentido, a décadence age sobre os instintos mais vitais,
adoecendo-os, tornando-os fracos e débeis, seja através da religião, da cultura, da moral e até
mesmo da filosofia, conforme vemos. Para tanto, impetra a degeneração dos instintos,
desestabilizando a expansão de potência afirmadora, o que, por sua vez, acarreta um
cerceamento das potências vitais, tolhidas em prol do escopo que intenta transformar o efetivo
em ideal.
Nesse âmbito, faz-se mister enfatizar que, embora Nietzsche se oponha radicalmente à
filosofia tradicional, cujo estigma maior foi ter se debilitado em décadence, processo esse
iniciado com o socratismo, a filosofia a marteladas se prefigura, irrevogavelmente, enquanto
uma herança do racionalismo ocidental, que, entretanto, procura se comportar de forma
antípoda em relação aos seus pressupostos, uma vez que desconfia terminantemente da
concepção de que a racionalidade ou o intelecto humanos sejam absolutamente essenciais
para a interpretação do real, pois, segundo Roberto Barros:

De tal aspiração provém, segundo Nietzsche, a elaboração arbitrária de uma noção


de realidade (Realität) 1, fundada na estaticidade da identidade, que a seu ver

acrescenta a esse respeito: “mesmo na décadance há um sem-número de elementos muitíssimos atraentes,


valiosos, novos e admiráveis – nossa música moderna, por exemplo”. [...] Quase sempre ressoa em sua descrição
dos traços da décadence uma dada valoração.” (NIEYEMER, C. Léxico de Nietzsche. São Paulo: Edições
Loyola, 2014. p. 141).
41
GT/NT, 12, p. 78.
42
ONATE, 2000, p. 76.
31

determinou os rumos da metafísica, da filosofia e da ciência no ocidente. Para ele tal


princípio apresenta-se criticável por: a) primeiramente não possuir correlativos
existenciais e por outro lado, b) por sua justificação teórica apresentar enorme
carência lógica, tendo-se em consideração que o próprio princípio de identidade, a
base fundante de toda lógica e metafísica, não passa de um pressuposto
arbitrariamente formulado, cuja origem pode ser elucidada por meio da compreensão
da função, forma de atuação e necessidade biológica da racionalidade humana
(SPIEKERMANN, K. NaturwissenschaftalssubjektloseMacht, p. 85).43

Deduz-se, com isso, que a subsunção de uma perspectiva que vislumbra a realidade
pelo viés das conceituações, pontos fixos de apresentação do real, enlevadas pelos
determinismos próprios aos dualismos metafísicos, tais como: alma e corpo, verdade e
mentira, bem e mal, razão e irrazão, precisam ser questionados. Por conta disso, Nietzsche
propõe-se a adotar o corpo como fio condutor – e viés de interpretação da efetividade –, cujo
propósito é derrocar os maniqueísmos típicos da tradição filosófica. É necessário, para tanto,
escavacar as estruturas sobre as quais o pensamento ocidental fora alicerçado, a saber, os
conceitos e valorações depreciativos do corpo e da vida.
Dentre esses conceitos, encontra-se o viés inaugurado por Platão, o qual propagou a
cisão entre corpo e alma. Para o filósofo grego, o método por excelência consiste na dialética,
enquanto mecanismo de dialogo que permite às pessoas alçar uma compreensão mais elevada
acerca de determinados temas, por meio da contraposição e contradição de ideias que levam a
outras ideias como, por exemplo, no que tange a questão da alma, assunto circunscrito ao
mundo das ideias, e apartado do mundo das aparências sensíveis, responsáveis pelos enganos
e equívocos dos homens.
A alma, para o referido filósofo, habita o corpo, fonte de corrupção e engano, sendo
que a mesma é tida como imortal, enquanto o corpo é finito e corruptível. E para além de uma
simples crítica a Platão, é preciso empreender uma problematização da perspectiva
inaugurada pelo platonismo, como interpretação dos conceitos platônicos. A crítica
nietzschiana, desse modo, volta-se as posturas dualistas que distinguem corpo e alma, dando
maior ênfase a segunda, conforme esclarece Barrenechea:
Em resumo, o corpo, para Platão, como para toda uma tradição precedente oriunda
da perspectiva órfico-pitagórica, nada diz respeito à natureza do homem. Apenas
patenteia a falha, a queda originária. Trata-se de um outro, com o qual a alma
convive com muitas dificuldades, com muito pesar (Cf. Vernant, 2008: p. 459-460).
Os sentidos, vinculados à natureza corporal, enganam permanentemente, não ajudam
na procura da sabedoria; ao contrário, torna-se uma permanente tentação para
incorrer no erro, na falsidade, na debilidade moral. Assim, configurou-se desde
épocas longínquas uma visão do homem como um ser esquizofrênico, como uma
espécie de nostálgico centauro que sonha com o “outro” mundo, mas padece na
terra. A concepção que cinde homem em corpo e alma estabelece a separação, a

43
BARROS, R. de A. P. de. Complexidade da efetividade, realidade e perspectivismo. Revista Trágica: Estudos
sobre Nietzsche, Vol. 3, nº 2, 2º semestre de 2010. p. 113.
32

ruptura e confusão como condição do humano. Trata-se de uma mescla, de uma


conjunção nada harmônica de duas substâncias heterogêneas, cuja convivência não é
amigável, mas de tensão, de confronto; daí que os instintos, os sentidos, os
sentimentos, os amores e tudo o que diz respeito ao corpo seja considerado como
“cárcere da alma”. 44

Desse modo, Platão, mais acima de tudo, o platonismo, através da separação entre
mundo sensível e mundo inteligível, acaba por possibilitar o ensejo para a desvalorização do
corpo, concepção esta apropriada pelo cristianismo. O homem torna-se o centro convergente
das teorizações platônicas a partir do momento em que o intelecto e a razão são
supervalorizados. Logo, o homem passa a ser detentor de uma essência, ligada ao plano do
ideal. Isto é, a alma passa a ser o âmbito mais privilegiado, ganhando realce em prejuízo do
corpo, arcabouço das paixões dissolutas que desencadeiam enganos e corrupção, o que pode
desvirtuar o intelecto do percurso que necessita trilhar até o conhecimento verdadeiro.
Assim, no momento em que o homem, influenciado pelo platonismo, passa a crer nas
concepções idealizadas decorrentes da cisão entre corpo e alma, a percepção acerca de sua
própria condição humana fica comprometida, pois, de um lado, terá os conceitos estáticos e
substanciais para se remeter a si mesmo, seja por intermédio da linguagem, cultura, filosofia e
moral, de outro, os instintos e sentimentos característicos do todo corpóreo, os quais não
podem ser simplesmente suprimidos por via da negação. A deflagração da ruptura entre os
aspectos corporal e intelectivo vai acarretar inúmeras tensões, posto que os instintos não
deixem, com isso, de se manifestar no indivíduo. As noções de instinto e pulsão, contudo,
serão abordadas de forma mais detalhada no último capítulo. No contexto atual, importa
demonstrar os perigos que Nietzsche vislumbra em Platão:
Minha desconfiança de Platão vai fundo, afinal: acho-o tão desviado dos instintos
fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão cristão anteriormente ao
cristianismo – ele adota o conceito “bom” como conceito supremo –, que eu
utilizaria, para o fenômeno Platão, a dura expressão “embuste superior” ou, se soar
melhor, idealismo, antes de qualquer outra palavra. [...] Na grande fatalidade que foi
o cristianismo, Platão é aquela ambiguidade e fascinação chamada de “ideal”, que
possibilitou às naturezas mais nobres da Antiguidade entenderem mal a si mesmas e
tomarem a ponte que levou à “cruz”...45

Não à toa, Platão é visto com desconfiança por Nietzsche, afinal, contrariamente aos
helenos, tão afeitos à afirmação da vida em suas múltiplas possibilidades, aquele se afasta dos
instintos mais peculiares ao corpóreo, destilando a toxina da moral por todos os lados, a ponto
de o filósofo alemão considerá-lo uma espécie de anunciador do cristianismo. Já que,
enquanto agente empenhado em desvirtuar os gregos antigos da celebração da vida, pela via

44
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche: corpo e subjetividade. O percevejo Online. Volume 03, Número 02,
p. 1-18, agosto-dezembro/2011. p. 4-5.
45
GD/CI, X, §2.
33

aberta a negação do corpo, acaba por criar o campo fecundo para o estabelecimento da moral
cristã.
Ao contrário do que se propõe Nietzsche quando coloca o corpo e, como
consequência, a vida em papel de destaque no seio de sua filosofia, Platão institui a alma
como aspecto central de suas elucubrações. O filósofo alemão destaca ainda que a filosofia
platônica deve ser interpretada como uma preparação para a morte: “Trata-se, para Nietzsche,
de uma filosofia que prepara o homem para remeter-se ao além e, então, esta vida fica
subjugada à outra vida [...]. Foi assim que ele entendeu o que chamou de platonismo.” 46
Desse modo, fica claro que a distinção platônica entre corpo e alma, conforme visto, acaba
por atrelar o homem a uma existência que tem por finalidade a busca por um além, no sentido
em que a vida terrena passa a valer como etapa de preparação para outra forma de existência
que, transcorrida a dissolução do corpóreo, será alcançada pela alma imortal.
Outro aspecto que ficou relegado a um plano secundário, a partir da perspectiva
platônica alicerçada na cisão corpo/alma, e pela apropriação cristã articulada por intermédio
desse mesmo viés, foi o âmbito erótico. A natureza erótica do homem fora associada com
concepções pecaminosas. Ao ato da masturbação, por exemplo, foram agregadas as mais
bizarras doenças, e o prazer durante a relação sexual também fora rechaçado, uma vez que o
ato sexual era visto com fins à procriação. A filosofia tradicional, problematizada por
Nietzsche, nesse âmbito, assemelha-se aos mecanismos utilizados pelo cristianismo, pois
ambos estabelecem padrões de pensamento e conduta, razão e ascese, respectivamente, para o
encarceramento e negação do corpo. Logo, o todo corpóreo, assim como os impulsos e
instintos humanos são postos em um lugar subterrâneo. Posto isso, em MA I/HH I, Nietzsche
expõe:
Toda coisa natural a que o homem associa a ideia de mau, de pecaminoso (como até
hoje costuma fazer em relação ao erótico, por exemplo), incomoda, obscurece a
imaginação, dá um olhar medroso, faz o homem brigar consigo mesmo e o torna
inseguro e desconfiado; até os seus sonhos adquirem um ressaibo de consciência
atormentada. No entanto, esse sofrimento pelo que é natural é, na realidade das
coisas, totalmente infundado: é apenas consequência de opiniões acerca das coisas.
47

Conforme o filósofo elucida acima, todos os aspectos que remetem aos caracteres
naturais inerentes ao corpo humano, incluindo-se aí a maneira como o homem se expressa
eroticamente, são taxados de antinaturais, tanto pela metafísica quanto pela moral cristã. Ao
erótico, algo natural, associa-se a ideia de mau. Isso decorre, segundo ele, de uma psicologia

46
SOUSA, M. A. de. Alma em Nietzsche: a concepção de espírito para o filósofo alemão. São Paulo: Leya,
2013. p. 71.
47
MA I/HH I, § 141.
34

que busca tornar tudo o que é humano em algo suscetível de recriminação, combate e até
mesmo deboche. Os corpos e seus apetites são vistos como vergonhosos, depreciáveis e
pecaminosos. A própria concepção e o ato de procriação, segundo o filósofo, são
compreendidos como ruins, negativos, já que: “Sem dúvida o cristianismo afirmou que todo
48
homem é concebido e gerado em pecado...”. Visando “purificar” o corpo dos desejos
sexuais e do ato da concepção, as religiões pessimistas, conforme as descreve Nietzsche,
exaltam a vida ascética em detrimento da vida pulsional, a degenerescência dos afetos em
desfavor da multiplicidade de forças.
Logo, o que se quer de fato é transformar o homem e os seus aspectos corpóreos mais
naturais em teses morais pecaminosas. O prazer tornado pudor e vergonha; o desejo subtraído
em nome de ideais supraterrenos; dor e sofrimento supervalorizados através da negação da
vida. Fazer com que o homem sinta desprezo pela sua própria condição humana, esse é um
dos principais objetivos do cristianismo: “[...] veremos que os requisitos são exagerados, de
modo que o homem não possa satisfazê-los; a intenção não é que ele se torne mais moral, mas
que se sinta o mais possível pecador.” 49
Nietzsche (2005), uma vez mais, ressaltará o mundo antigo no qual os homens se
ocupavam do aumento da alegria de viver, caracterizado pelos cultos festivos, rituais
orgiásticos, danças, assim como também, do encanto e horror 50 perante as guerras, lutas e
batalhas, momentos esses em que todos os ciclos naturais, tanto de vida, quanto de morte,
eram celebrados. O corpo era celebrado, e seus estímulos auscultados em detalhes. Em
contrapartida, “no tempo do cristianismo um incomensurável montante de espírito foi
sacrificado em outra aspiração: de toda maneira o homem devia se sentir pecador e com isso
ser estimulado [...].” 51 Com o cristianismo, percebe-se que os estímulos são outros, contrários
ao campo das afecções, da afirmação da efetividade e do fisiológico, concernentes à criação
de fronteiras supramundanas, ideais, edênicas, responsáveis por incutir no homem a
necessidade de redenção, uma vez que tais homens se imaginam, de fato, pecadores.
Sob a influência da moral cristã, o homem despreza o corpo, a afetividade, o natural,
pois ao invés de buscar causas e consequências naturais para as grandes catástrofes, por
exemplo, justificará tais eventos a partir de explicações sobrenaturais: “[...] ao conceder-se,
igualmente por princípio, bem menor atenção às verdadeiras consequências naturais de uma

48
MA I/HH I, § 141.
49
MA I/HH I, § 141.
50
Sobre o horror e, por conseguinte, a crueldade, afirma Nietzsche: “A crueldade está entre as mais velhas
alegrias festivas da humanidade.” (M/A, I, §18).
51
MA I/HH I, § 141.
35

52
ação do que às sobrenaturais (as chamadas punições e graças da divindade).” Logo, a
opressão do natural, gera o temor à vida, pois promove uma desconfiança crescente em
relação às coisas terrenas, efetivas, em favor de uma reverência incondicional que beneficia
sentimentos superiores, tais como, o amor ao próximo, a comiseração, a compaixão etc.
Nesse sentido, com a moral cristã e o platonismo, obtém-se uma oposição psicofísica
que reverbera sobre a maneira pela qual corpo, morte, efetividade, são interpretados na
modernidade. Por conta disso, para Nietzsche, tais processos levaram ao declínio dos instintos
e, consequente, adoecimento do corpo. Assim, a filosofia tradicional e a história do
pensamento ocidental alimentaram o solo propício à interpretação do corpo, tal qual
conhecemos:
O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da
ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta – e frequentemente me
perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma
interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo. Por trás dos supremos
juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más
compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes ou de raças
inteiras. 53

Enfim, Nietzsche expressa que a busca desenfreada pela objetividade, seja no campo
das ciências ou da filosofia, como uma propriedade científica que permite estabelecer
afirmações precisas e passíveis de serem testadas, ou enquanto algo que possui validade
universal, respectivamente, revela-se uma obliteração às necessidades fisiológicas.
Além desse aspecto, o ponto de vista filosófico que erige a ideia e a pura
espiritualidade como parâmetros de interpretação do corpo, evidenciam, na verdade, uma má
compreensão do corpo, conforme enunciado por Nietzsche, pois tal compreensão se sustenta
em valorações morais e conceituações que não levam em conta os instintos e o caráter
pulsional que marcam a multiplicidade humana.
Desse modo, no próximo tópico, iremos investigar o corpo enquanto hipótese
interpretativa em Nietzsche e todas as nuances que compõem essa abordagem, especialmente
aquelas que se referem às dimensões fisiológica, psicológica e fisiopsicológica.

1.2. Corpo enquanto hipótese interpretativa em Nietzsche

A noção de corpo passa a se configurar como uma espécie de fio condutor na


perspectiva nietzschiana, que o distancia de todos os dualismos inexauríveis na história da

52
M/A, I, §33.
53
FW/GC, Prólogo, §2.
36

filosofia tradicional desde Platão. Dualismos estes responsáveis pelo estabelecimento de uma
visão dicotômica entre corpo e alma, mundo sensível e mundo inteligível, levando, com isso,
à compreensão de que o corpo seria um lugar de aprisionamento da alma. Segundo Nietzsche,
o filósofo grego foi o responsável pela instituição de uma metafísica de valores. Que espécie
de valores são esses? Qual o valor desses valores? São os questionamentos aos quais devemos
nos lançar com o intuito de reconsiderar muitos dos posicionamentos e dogmas instituídos
pela crença metafísica na concepção de verdade.
A partir da crença metafísica na concepção de verdade platônica, retiraram-se,
irrevogavelmente, os pressupostos ou alicerces mais basilares da moral cristã. Platão concebe
a ideia de verdade enquanto teoria mais elevada: “Com isso, a filosofia aparece em Sócrates e
mais ainda em Platão como autorreflexão do espírito a respeito de seus mais altos valores
teóricos e práticos, os valores do verdadeiro, do bom e do belo.” 54
O corpo, em contrapartida, pertencente ao mundo sensível, é considerado falho e
corruptível, especialmente para o platonismo. No cristianismo temos uma nuance aproximada,
contudo bastante peculiar. O corpo é desvalorizado, diminuído, tido como algo pertencente a
uma esfera concupiscente e secundária, porque é o lugar da mácula, do pecado, do sofrimento.
Ou seja, os adjetivos utilizados para descrever o corpo em Platão não são necessariamente
iguais aos utilizados na moral cristã. Mais uma vez, a problemática se perfaz em torno do
platonismo, posto que:

[...] enquanto o Cristianismo se refere à ação salvífica de Cristo como sendo um fato
histórico, o Platonismo se remete ao fato de que dispõe de um saber originário que
jamais foi modificado. De fato, neste saber nada há que possa ser modificado, uma
vez que a verdade é imutavelmente única e idêntica. Deste modo, o platonismo
assume em relação ao Cristianismo, bem como no que tange às outras religiões de
revelação, a mesma posição negativa: nada há que possa e deva ser revelado; a
verdade não tem planos de desenvolvimento. Esta mostrou-se aos grandes homens,
aos sábios da época originária, do mesmo modo de como se mostra hoje. Não
depende da vontade de Deus o fato de que a verdade ora se mostre e ora se esconda,
mas depende da fraqueza do homem, precisamente de seu intelecto, o fato de que
nem todos são capazes de conhecer a verdade do mesmo modo.55

Posto isto, para o platonismo, o homem deve se submeter à verdade absoluta, e tal
subsunção não permitiria ao mesmo nenhuma espécie de liberdade de escusa ante a soberania
da razão; já para o segundo, Deus seria o centro convergente em torno do qual os seres
humanos deveriam girar, tomando-o como embasamento e reflexo. Portanto, no caso do

54
HESSEN, J. Teoria do Conhecimento. Tradução: João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 8.
55
SANTOS, B. S. Platonismo e cristianismo: irreconciabilidade radical ou elementos comuns? Veritas. Revista
de Filosofia 48, p. 323-336, 2003. p. 332.
37

platonismo o homem deve caminhar no sentido da razão, enquanto na moral cristã, esse
mesmo homem deve se orientar pela intuição de Deus. De similar, ambas as concepções tem o
seguinte: caracterizam-se enquanto verdades absolutas, negando categoricamente a vontade
humana.
Nietzsche posiciona-se de forma contrária tanto ao ponto de vista metafísico, pautado
pela separação entre corpo e alma, quanto ao viés de interpretação da moral cristã, pelo fato
de esta submeter o homem à divindade. Nesse sentido, o filósofo alemão irá deflagrar o corpo
enquanto hipótese interpretativa para a filosofia, por compreender que aquele inaugura uma
criativa possibilidade de se pensar o homem, necessariamente distanciada dos dualismos por
meio dos quais este fora concebido até então, posicionamento este herdado, em certa medida,
de Arthur Schopenhauer, filósofo do qual Nietzsche pode ser considerado um antípoda em
muitos aspectos, especialmente nas obras que sucederam GT/NT, mas também uma espécie
de continuador de alguns posicionamentos desenvolvidos por aquele, e tal afirmação se torna
palpável se tomarmos como paralelo exatamente o primeiro livro publicado por Nietzsche,
baseado no quadro metafísico do filósofo de Danzig.
Seguindo as colocações de Ivan Soll no artigo intitulado Schopenhauer as Nietzsche’s
“Great Teacher” and “Antipode”56, é possível dizer que as convergências entre esses dois
filósofos deve ultrapassar a velha concepção de que a influência filosófica só se perfaz em
questões sobre as quais ambos estejam de acordo. É mais significativo pensar, pela
perspectiva do autor, que: “A influência que um filósofo exerce sobre outro é melhor
manifestada no desacordo do que no acordo que provoca.” 57
Nesse sentido, a influência schopenhauriana se faz sentir principalmente na
discordância, no desacordo que inspira, pois as influências, segundo Soll, podem ocorrer não
apenas quando concordamos com os pontos de vista elencados por um autor, mas também
quando nos revoltamos contra eles. É claro que Nietzsche sabia escolher seus “antípodas”
entre aqueles que representavam oponentes à altura de seu pensamento, dignos de seus
questionamentos, uma vez que se mantendo em confronto constante com adversários
desafiadores ele pôde desenvolver melhor seus próprios argumentos filosóficos, como enuncia
Soll (2013): “Em Schopenhauer, Nietzsche não encontrou apenas a fonte de algumas de suas

56
Título do artigo que traduzimos por: Schopenhauer um “Grande Mestre” e “Antípoda” de Nietzsche (SOLL, I.
Schopenhauer as Nietzsche’s “Great Teacher” and “Antipode. Oxford Handbooks Online. 2013-12-16, p. 1,
tradução nossa).
57
“[…] the influence that one philosopher exerts upon another is manifested in the disagreement as well as the
agreement he provokes” (SOLL, op. cit., p. 1, tradução nossa)
38

ideias mais importantes, mas também um dos seus mais dignos adversários. Nietzsche
descreveu Schopenhauer tanto como seu “Grande Mestre” e seu “Antípoda”. 58
Não se pretende aqui detalhar minuciosamente a profundidade e abrangência da
influência schopenhauriana sobre o jovem Nietzsche, entretanto é importante frisar, ainda
conforme Soll (2013), que a compleição das considerações sobre o Apolíneo e o Dionisíaco,
estratégicas para a sua concepção estética e sua crítica à cultura moderna, tiveram como
inspiração a leitura da obra O mundo como vontade e representação, adquirida em 1865,
quando o filósofo de Röcken ainda era um estudante em Leipzig.
A definição do Apolíneo em Nietzsche, desse modo, perpassa pelo enfoque dado por
Schopenhauer ao princípio de individuação: “poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo como a
esplêndida imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos
falam todo o prazer e toda a sabedoria da “aparência”, juntamente com a sua beleza” 59 .
Associar a imagem de Apolo ao principium individuationis, conforme descrito, pressupõe,
pelo viés schopenhauriano: “singularizar e multiplicar, no espaço e no tempo, o Uno essencial
e indiviso” 60. Sobre esse assunto, Ivan Soll nos diz o seguinte:

A individuação, que Nietzsche apresenta como a pré-condição central da


possibilidade de uma unidade orgânica e, portanto, da experiência apolínea da
beleza, já é uma característica fundamental da experiência cotidiana e, como
Schopenhauer tinha argumentado de forma convincente, uma consequência direta e
necessária da ordenação espaço-temporal de toda a experiência. 61

Ainda segundo Soll (2013), no tratamento que Nietzsche confere ao dionisíaco, a


exemplo do que ocorreu em relação ao apolíneo, o filósofo de Röcken irá se utilizar de
algumas concepções epistemológicas e metafísicas schopenhaurianas, porém com o único
propósito de elucidar certos fenômenos humanos que não apelam à noção de verdade para
explicar o que os produz.
O que podemos deduzir até aqui é que a relação entre Nietzsche e Schopenhauer pode
ser interpretada pelo viés da apropriação de ideias, uma vez que Nietzsche adotou alguns dos
principais posicionamentos do filósofo de Danzig, e é importante percebermos como ele

58
“In Schopenhauer Nietzsche found not just the source of some o this most important ideas, but also one of his
most worthy opponents. Nietzsche described Schopenhauer both as his “great teacher” and his “antipode”
(Ibidem, tradução nossa)
59
GT/NT, O principium individuationis, § 1.
60
Ver nota 23, de J. GUINSBURG apud NIETZSCHE, F W. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007. p. 144.
61
The individuation, which Nietzsche presents as the central precondition of the possibility of organic unity and
thus of the Apollonian experience of beauty, is already a fundamental feature of everyday experience and, as
Schopenhauer had cogently argued, a direct and necessary consequence of the spatio-temporal ordering of all
experience (SOLL, 2013, p. 9, tradução nossa)
39

desenvolveu e/ou adaptou algumas dessas concepções schopenhaurianas, criando, a partir


delas, suas próprias alternativas e posições, especificamente no que se refere a corpo.
Outro aspecto relevante dessa influência, de sumo valor para o que pretendemos
expor, diz respeito à apresentação do conceito schopenhauriano de vontade. Ao adentrarmos
propriamente em tal conceituação, percebe-se que estamos no cerne de uma discussão maior,
a saber, a que sinaliza para a compreensão acerca do ser humano em si. E, nesse sentido, é
possível dizer que o referido filósofo assume uma direção radicalmente oposta a da filosofia
tradicional, pois, segundo Günter Zöller (1999, p. 19), ao enfatizar o papel da vontade,
Schopenhauer propõe-se a revisar inteiramente o status que o corpo humano detinha até
então, sobretudo porque será um dos primeiros filósofos a repensar a relação mente-corpo, tão
cara à tradição filosófica, especialmente em Descartes, indicando, em seu lugar, a relação
vontade-corpo, relevante para se ponderar, inclusive, novas interpretações acerca dessa
relação: “Ainda, em vez de simplesmente substituir o início da primazia e monopólio do
intelecto pelo da vontade, Schopenhauer oferece uma sutil e detalhada descrição da complexa
relação entre os lados intelectual e volitivo ou aspectos do humano em si.” 62
Conforme se deduz do exposto acima, Schopenhauer não sugere uma simples
inversão, e sim uma reinterpretação da relação mente-corpo, posto que irá enfatizar uma
complexa analogia que ainda não fora suficientemente explorada, a relação entre o caráter
intelectual e o caráter volitivo do ser humano.
Zöller (1999, p. 27) aponta, em conformidade com as concepções de Schopenhauer,
que o corpo humano não deve ser interpretado apenas como objeto de conhecimento para o
intelecto, mas como algo que nós somos, que, de certo modo, pertence ao cerne de nossa
existência, já que a relação entre corpo e intelecto deve ser complementada pela relação de
nosso corpo com nossa vontade. E desse complexo arrolamento, o filósofo concluirá pela
manutenção de que ambos seriam a mesma coisa ou praticamente idênticos, apontando para a
expressiva conexão entre os atos da vontade e os atos corporais voluntários.
Schopenhauer, influenciado por certa visão pessimista do mundo – pessimismo este
que deve ser compreendido como uma crítica fundamental à racionalidade e não como um
convite para a morte – que, na Europa do final do século 18 e início do século 19, encontrava
vozes reverberantes nas poesias de Byron, Leopardi, De Musset e Heine 63, mas, sobretudo,

62
No original: “Yet, rather than simply replacing the earlier primacy and monopoly of the intellect with that of
the Will, Schopenhauer provides a subtle and detailed account of the complex relations between the intellectual
and volitional sides or aspects of the human self.” (ZOLLER, 1999, p. 19, tradução nossa)
63
Will Durant nos fala acerca do pessimismo schopenhauriano na obra A história da filosofia: “Por que será que
a primeira metade do século XIX levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas – Byron na
40

valendo-se de seus conhecimentos acerca das ciências biológicas que estavam despontando na
época, descreverá a vontade como um querer perene, que não cessa, ainda que satisfeito. O
mundo é vontade, tudo o que existe só o é em decorrência da vontade. Entretanto, sendo a
vontade inconsciente, ela necessita da ação humana para alcançar seu objeto e, por
conseguinte, seu querer. Nesse sentido, o mundo é fenômeno, sendo a objetividade da vontade
a sua manifestação enquanto fenômeno e o que é externalizada é uma parcela desconhecida da
essência desta, que não pode ser conhecida.
Para o filósofo alemão, a vontade se caracteriza pela luta e conflito constantes, porque
sempre que uma vontade é saciada, cederá lugar a uma nova vontade, premente por satisfação,
em um processo ininterrupto: “O desejo, por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo
provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina a excitação, porém o desejo, a
necessidade, aparece em nova figura...”. 64
Compreende-se a partir das afirmações acima que Schopenhauer afasta-se da tradição
filosófica, a qual enfatizava o predomínio do intelecto e da razão em detrimento da vontade,
do querer. O filósofo propõe, ao contrário, uma preponderância do querer frente à razão.
Como crítico da razão, portanto, institui que o princípio norteador do mundo seria a vontade,
princípio esse fortemente “irracional”, impossível de ser alcançado ou transcrito pela
racionalidade.
Schopenhauer, assim, postula uma metafísica da vontade, onde a vontade é
identificada com a coisa-em-si, prerrogativa para a concepção de que não existe nenhuma
espécie de causa inteligente para o mundo, assim como também, para a afirmação de que a
vontade identifica-se com o corpo, sendo este finito. Para Maria Lucia Cacciola, a fonte da
metafísica da vontade pode ser assim descrita:
Assim, é essa Metafísica da Vontade que vem suprir a ausência da metafísica
exigida, segundo Schopenhauer, pela filosofia crítica. Sua fonte é deslocada do
supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em
ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a
metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como
ser corporal finito. 65

Logo, tem-se de fato, conforme Cacciola (1994), a afirmação de que a Metafísica da


Vontade sustentada por Schopenhauer caminha em um sentido antagônico ao que foi
empreendido por Kant com sua filosofia crítica, a qual teve como mérito, acima de tudo, a

Inglaterra, De Musset, na França, Heine na Alemanha, Leopardi na Itália, Púshkin e Lermontof na Rússia; um
grupo de compositores pessimistas – Schubert, Schumann, Chopin, e até mesmo o Beethoven de sua última fase
[...]. e, acima de tudo, um filósofo profundamente pessimista – Arthur Schopenhauer?” (DURANT, W. A
história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 285).
64
SCHOPENHAUER, MVRI, §57-60.
65
CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994. p. 23.
41

distinção entre fenômeno e coisa-em-si, fundamental para o combate ao dogmatismo, que,


entretanto, efetivamente não realizou. Outro ponto bastante criticado por Schopenhauer é
justamente a passagem em que Kant irá conceber “Deus” como um postulado teórico segundo
o qual o mundo deve ser explicado, transformando a moral racional em uma teologia moral.
Desse modo, é importante enfatizar, conforme o referido excerto, que a fonte da
Metafísica da Vontade schopenhauriana, nada mais é do que o interior de cada corpo em
ação. Tem-se o deslindar de um deslocamento que vai do suprassensível, como aquilo que
está para além da delimitação espaço-tempo, ao corpo, campo de atuação da Vontade que não
encontra satisfação; de Deus (infinito, segundo a concepção cristã) ao homem em si (finito), e
tais elementos configuram-se enquanto prementes para a constatação de uma metafísica
imanente, pautada na negação da existência de Deus e na afirmação do mundo como vontade
e representação, posto que o mundo como representação seja o que chega ao homem através
do “eu”, enquanto o mundo como vontade não obedece ao princípio da razão. Dito de outro
modo, o mundo não será alcançado por um saber conceitual produzido pela razão, e sim por
um ponto de apoio alicerçado em uma representação intuitiva, a qual perpassa pelo corpo.
Com base no que foi dito, tomaremos como posicionamento central, portanto, o que
Schopenhauer expõe no §60, de O mundo como vontade e representação onde ele dirá o
seguinte:
A AFIRMAÇÃO DA VONTADE é o constante querer mesmo, não perturbado por
conhecimento algum, tal qual preenche a vida do homem em geral. Ora, como o
corpo do homem é já a objetividade da Vontade como ela aparece neste grau e neste
indivíduo, segue-se que o querer individual, a desenvolver-se no tempo, é, por assim
dizer, a paráfrase do corpo, a elucidação do sentido referente ao todo e às partes: é
um outro modo de exposição da mesma coisa-em-si cujo fenômeno o corpo já é. Eis
por que, em vez da afirmação da Vontade, podemos também dizer afirmação do
corpo.66

A Vontade é afirmada, de acordo com o supracitado, como um querer constante sem


objetivo definido. Ela é, partindo desse pressuposto, carência, movendo-se em busca de algo
que ela não detém, um querer motivado pela ausência de algo, daí a afirmação de que o
mundo é dor e sofrimento. E o corpo, nesse ínterim, é um princípio independentemente da
razão, conhecido de forma imediata como vontade. Tem-se aqui um privilégio do corpo em
Schopenhauer, sobretudo porque aquele escapa ao controle da razão.
Logo, de certo modo influenciado pela problematização encetada por Schopenhauer, a
saber, no que diz respeito à crítica ao papel da razão e a verificação de que o corpo é a fonte
primeira de identificação da vontade, conhecimento esse proveniente do corpo, implicando

66
SCHOPENHAUER, MVRI, §60.
42

em um caráter imanente, Nietzsche irá fundamentar a sua apreciação acerca da tirania da


racionalidade sobre o corpo, elaborando as bases para o estabelecimento do último enquanto
fio condutor interpretativo. É claro que tal influência é bastante peculiar, uma vez que a
vontade schopenhauriana, cega e “irracional”, compreendida como um impulso físico,
orgânico e não consciente, será apropriada e transformada por Nietzsche em vontade de
poder, e essa se configura como vontade de expansão ou vontade de se afirmar, não sendo a
mesma nem cega, tampouco irracional: “[...] A vontade não é apenas um complexo de sentir e
pensar, mas sobretudo um afeto: aquele afeto do comando”. 67 A hipótese da vontade de poder
nietzschiana parece instituir uma lógica: “Em todo querer a questão é simplesmente mandar e
obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas “almas”...” 68. É, na
verdade, uma afirmação da vida, mas esse é um ponto que discutiremos mais à frente.
Além da influência schopenhauriana sobre a construção do corpo enquanto hipótese
interpretativa no pensamento de Nietzsche, tem-se também, e isso é digno de nota, o influxo
do naturalismo, o qual se fez sentir de forma expressiva nas últimas décadas, sobretudo nos
contextos anglo-saxão e americano, segundo Clademir Araldi (2013, p. 13), e o mesmo irá
assinalar que tal contexto interpretativo introduzido pela vertente naturalista 69 se prefigura
como um esforço louvável no sentido de atualização do pensamento de Nietzsche.
Christopher Janaway, a despeito dos posicionamentos contrários a uma leitura
naturalista do pensamento de Nietzsche 70 , articulará que o filósofo é um naturalista em
sentido amplo, por vislumbrar em Nietzsche uma série de aversões, dentre as quais à
metafísica, à moral cristã, a Platão, à alma imaterial, afirmando que em lugar disso ele
articulará outra leitura, na medida em que busca ressaltar aspectos inerentes a estados
corpóreos: “[...] enfatiza o corpo, a natureza animal dos seres humanos e busca assim explicar
diversos fenômenos recorrendo aos impulsos, instintos e afetos, localizados por ele na nossa
existência física e corpórea. Os seres humanos devem ser ‘traduzidos de volta à natureza’”
(JANAWAY apud LEITER, 2011, p. 79). Notadamente, é possível entrever na enumeração de
Christopher Janaway um leque variado de traços bastante específicos da filosofia

67
JGB/BM, Dos preconceitos morais, §19.
68
JGB/BM, Dos preconceitos morais, §19.
69
Alguns nomes alusivos a essa chave naturalista de investigação do pensamento nietzschiano são: Christopher
Janaway, Richard Schacht e Brian Leiter.
70
Sobre o posicionamento nietzschiano acerca do naturalismo ou mesmo a respeito da caracterização de
Nietzsche enquanto pensador naturalista, Richard Schacht afirma o seguinte: “Essa é uma caracterização com a
qual muitos vieram a concordar — ao menos na parte da comunidade filosófica em que predomina uma
mentalidade analítica. Mas existem muitos tipos de coisas chamadas ‘naturalismo’ na literatura filosófica; e seria
um erro supor que qualquer uma delas em particular é aquela esposada por Nietzsche, ou à qual ele tenderia —
especialmente porque existem alguns tipos de naturalismo acerca dos quais ele é bastante desdenhoso, e até
contundentemente crítico.” (SCHACHT, 2011, p. 36-37).
43

nietzschiana, tais como a recusa à metafísica tradicional, e a tudo o que caracteriza esse tipo
de vertente interpretativa, posto que evidencia uma ênfase sobre o corpo, a partir da afirmação
dos impulsos e afecções estritamente corpóreos, demonstrando, assim, que Nietzsche estaria
propondo um retorno do homem à natureza. Contudo tais preceitos enfatizados por Janaway
serão descritos por Brian Leiter como um “naturalismo de lista de lavanderia”, num claro
confronto de opiniões entre os dois comentadores acerca do pensamento de Nietzsche.
Deve-se ressaltar também a vertente interpretativa que tem como expoentes
contemporâneos Barbara Stiegler, Éric Blondel e Wilson Frezzatti, dentre outros, os quais
buscam situar as problematizações em torno do pensamento de Nietzsche e sua relação com a
biologia. Frezzatti é bastante contundente em frisar, por exemplo, que:

Embora Nietzsche tenha sido um leitor intenso da ciência de sua época,


especialmente biologia, fisiologia e psicologia, isso não significa que o filósofo
tenha simplesmente trazido os conceitos biológicos para a sua filosofia. Nietzsche
rumina e digere as ideias científicas, transformando-as e incorporando-as ao seu
pensamento conforme suas necessidades filosóficas, suas perspectivas. 71

Fica evidente, conforme o excerto, que Nietzsche nutriu profundo interesse pelas
teorias científicas de sua época, a ponto de buscar avidamente se familiarizar com as obras
produzidas no cerne de varias ciências. Mas, é importante deixar claro que o filósofo não
buscava uma simples transposição ou assimilação dessas teorias para a sua filosofia. Ele se
preocupava, na verdade, com uma incorporação que não subjugasse as suas próprias
reflexões, provavelmente assimilando alguns aspectos em detrimento de outros, em respeito,
acima de tudo, às suas interpretações, originais e particulares.
Não pretendemos aqui adentrar no mérito dessa discussão, tampouco descrever de
forma detalhada seus meandros, o que almejamos de fato, sendo este um dos propósitos da
presente argumentação, é evidenciar que Nietzsche estava fortemente ligado às pesquisas
científicas, e mais especificamente biológicas, de sua época, e tal aspecto não deixou de ser
observado por seus comentadores. Por conta disso, têm-se as recentes abordagens analíticas
que apontam a vinculação do pensamento de Nietzsche a um naturalismo flagrante. O que nos
interessa mais diretamente é ressaltar o quanto tais argumentações instituem o corpo como
centro convergente interpretativo.
No transcurso dessas argumentações, alguns comentadores de Nietzsche afirmarão o
interesse do filósofo pelas ciências naturais. Schatcht enunciará, tendo em vista tal interesse,
que: “[...] o naturalismo de Nietzsche é uma modalidade nova e diferente, devidamente atenta

71
FREZZATTI JUNIOR, W. A. Nietzsche contra Darwin. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 136.
44

tanto aos tipos de fenômenos e aspectos das coisas que as ciências naturais são boas em
descrever e explicar (à sua maneira), quanto, de maneira diversa, aos processos históricos ”. 72
O jovem Nietzsche, portanto, buscou entrar em contato com as investigações
científicas de sua época, tendo cogitado, inclusive, retornar a universidade para estudar Física
e Matemática73, além de ter se embasado em estudos biológicos e físicos para elaboração de
algumas de suas principais teorias, tais como: forças, centro, quantum etc. Na maturidade, seu
envolvimento com as ciências naturais assumiu novas direções com o desenvolvimento das
noções fisiológicas.
Wilson Frezzatti Junior (2006) põe em relevo as nuances fisiológicas que subsidiam o
enfoque nietzschiano em torno da cultura, por exemplo, discorrendo que Nietzsche fora o
primeiro filósofo a abordá-la de forma contundente. Nesse sentido, o homem, assim como
todas as produções humanas, dentre as quais, a moral e a própria filosofia, prefiguram-se
enquanto expressão de determinados estados fisiológicos, e estes dizem respeito a um
conjunto de impulsos, que em hierarquia formam uma constituição saudável e criadora; e em
desordem, promovem o adoecimento do todo orgânico, levando à busca da mera conservação.
Observa-se que Frezzatti (2006, p. 24) destaca, antes de qualquer coisa, os
pressupostos biológicos que emergem da fisiologia de Nietzsche, sem, contudo, deixar de
levar em consideração que a “fisiologia” esboçada na filosofia nietzschiana ultrapassa o
domínio biológico, uma vez que se espraia igualmente para o caráter inorgânico e para as
produções humanas, conforme dito antes. Assim, o fisiológico deflagra tanto aquilo que
determina o ser humano em uma perspectiva somática, concernente às funções orgânicas e ao
conjunto de forças e impulsos que o regem, quanto às produções humanas e os aspectos
inorgânicos. Tal delimitação demonstra-se essencial à concepção de corpo em Nietzsche,
segundo o que explicita o comentador:

A palavra “fisiologia”, [...] denota o que determina de modo somático os homens,


isto é, as funções orgânicas ou o afetivo no sentido de imediato corpóreo (as
afecções) – em suma, fisiológico é o relativo ao corpo ou à unidade orgânica. [...] O
corpo ou a unidade orgânica nada mais é, para Nietzsche, do que um conjunto de
impulsos. Sendo este conjunto bem hierarquizado, ou seja, sendo tornado uma
“unidade” pela potência e dominação de um (alguns) impulso(s), o corpo é saudável;
sendo desorganizado ou anárquico, o corpo é mórbido. 74

72
SCHACHT, 2011, p. 72-73.
73
Conforme esclarece Scarlett Marton no início do prefácio escrito à obra de W. Frezzatti, A fisiologia de
Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia.
74
FREZZATTI JUNIOR, W. A. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2006. p. 25.
45

Aproximadamente a partir de 1880, Nietzsche encetará, conforme apresentado acima,


um novo direcionamento ao cômputo de suas pesquisas, pois passará de uma articulação
filológica para uma fisiologia, interesse esse talvez desperto em decorrência de seu estado de
saúde debilitado75. Mas a despeito de qualquer coisa, é interessante notar que a interpretação
fisiológica assumirá uma preponderância decisiva no pensamento do filósofo, a ponto de o
mesmo alegar que a compreensão acerca do homem perpassa, definitivamente, nossa unidade
orgânica ou corpórea como um conjunto de impulsos que precisam estar em harmonia para
alcançar um corpo saudável.
Em um interessante aforismo de JGB/BM o filósofo alemão expõe que o caráter
instintivo ou pulsional do homem não se opõe ao seu estado de consciência, se referindo aqui,
mais especificamente, ao trabalho dos filósofos metafísicos, verdadeiros ilusionistas
perspicazes em manipular supostas verdades. As atividades instintivas, segundo o filósofo,
abarcam grande parte do pensamento consciente, e o trabalho filosófico não se exclui a isso:
“[...] o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas
trilhas pelos seus instintos”. 76
Nietzsche também procurou observar que a relevância dada às “verdades” em prejuízo
da aparência, aos valores em detrimento do que é desconhecido, são instâncias reguladoras,
que tem por função apenas servir como referenciais à sobrevivência, à autoconservação: “Por
trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando
mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de
vida” 77. Importa identificar tais valorações enquanto meras designações conceituais que não
carregam em si o significado particular das coisas, mas tão somente, generalizações que não
correspondem de fato aquilo que as coisas são. Então, as referidas valorações podem ser
entendidas como juízos falsos acerca da realidade que, no entanto, são batizados de
“verdadeiros”, principalmente pela tradição filosófica: “Reconhecer a inverdade como
condição de vida: isso significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais
sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além
do bem e do mal.” 78
Propondo-se a filosofar além do bem e do mal, ou seja, para além das valorações
morais que engessam a realidade, Nietzsche põe em xeque a tradição metafísica ocidental que

75
Segundo contribuição de Christof Windgätter, com o verbete Fisiologia, para o Léxico de Nietzsche: “Com
efeito, Nietzsche, em razão de sua doença que durou a vida toda, ocupa-se da recuperação e da teorização de
estados corpóreos, impulsos, estímulos, sintomas etc.” (NIEMEYER, 2014, p. 223).
76
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §3.
77
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §3.
78
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, §4.
46

pouca importância relegou à realidade. Ele institui uma filosofia da imanência que visa
reconstruir os percursos necessários a uma nova compreensão dos fatos. Compreensão essa, é
bom frisar, imbricada em um entrelaçamento indissociável entre filosofia e fisiologia, a qual
intenta restabelecer ao corpo e aos processos orgânicos um papel de relevo. Tal afirmação
reitera a delimitação particular de cada organismo, em suas características mais intrínsecas,
demonstrando a sua singularidade, opondo-se, assim ao estabelecimento de princípios
valorativos absolutos que se esforçam por generalizar o homem e universalizar o mundo. Para
o filósofo alemão, filosofia:

[...] tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a
busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até
agora baniu. Uma longa experiência, trazida por tais andanças pelo proibido,
ensinou-me a considerar de modo bem diferente do desejável as razões pelas quais
até agora se moralizou e se idealizou: a história oculta dos filósofos, a psicologia de
seus grandes nomes surgiu-me às claras. Quanta verdade suporta? Quanta verdade
ousa um espírito? 79

Isto posto, o que Nietzsche entende por filosofia relaciona-se, sem dúvida, a uma
busca incessante por tudo aquilo que até agora fora apresentado como questionável no existir.
O corpóreo e todos os processos orgânicos foram classificados como réprobos, corruptíveis e
contraproducentes no decurso da filosofia metafísica; depreciados a favor de uma moralização
dos costumes; denegridos em prol de uma idealização que desqualifica a vida; enfim, banidos
pela moral vigente. Nietzsche não ficou alheio a isso, por isso buscou perscrutar “a história
oculta dos filósofos” e todo o castelo de pretensas “verdades” nas quais arvoraram seus
pensamentos, para fazer emergir daí o corpo enquanto fio condutor, antes encoberto e
solapado.
O cerceamento do corpo e seus processos orgânicos impuseram-se enquanto máximas
irredutíveis entre os metafísicos e os moralistas, pois era necessário tiranizar a “natureza”,
para dominá-la. No decorrer de um longo processo de coerção se solidificaram os valores
morais. As artes, a linguagem, os governos, os pensamentos e os costumes foram
vilipendiados e/ou tiranizados em favor de leis e normas arbitrárias que intentavam se
estabelecer como “naturais”, levando os indivíduos a aceitá-las de forma supostamente “livre”
e “espontânea”. Por isso Nietzsche irá afirmar que: “Toda moral é, em contraposição ao
laisser aller [“deixar ir”], um pouco de tirania contra a “natureza”...”. 80
Tentar situar a natureza em um determinado ponto fixo, segundo Nietzsche, fora o
devaneio dos filósofos até então. Escamotear a existência a favor dos ideais ou morais

79
EH/EH, Prólogo, § 3.
80
JGB/BM, Máximas e interlúdios, § 188.
47

estabelecidos, posto que: “vocês se obrigaram por tanto tempo, tão obstinadamente, tão
rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver
de maneira diversa...” 81, colocando-se perante a mesma com austeridade e total indiferença
em relação aos males físicos e morais, como se fosse possível viver apenas em conformidade
com a razão, de modo exemplarmente antagônico às afecções orgânicas.
A propósito disso, deve-se situar o contexto da filosofia de Nietzsche em um viés
“fisiológico”, não apenas porque ele fez ruir os castelos metafísicos construídos sobre
“verdades” e valores absolutos que restringem a vida, e sim novamente pelo fato de ele
compreender o corpo humano como uma combinação de fatores instintivos, agregando em si
múltiplas expressões vitais, assim posto, o que o filósofo alemão apreende por “fisiologia” se
refere “[...] aos processos de assimilação e regulação do organismo como um todo e aos
instintos e atividades que potencializam ou diminuem a sua vitalidade, incluindo assim tanto o
âmbito ‘físico’ (digestão, circulação, ruminação), quanto o âmbito ‘psíquico’...”. 82
O âmbito psíquico contempla, conforme Bittencourt (2011, p. 68), “os afetos, os
instintos, os estímulos nervosos”, aspectos esses que não podem ser circunscritos pela razão
ou consciência pensante, pois nos afetam de forma inconsciente, sem que tenhamos a
capacidade de descrevê-los ou defini-los de maneira imediata, posto que os liames da
excitação nervosa ou instintiva nos sejam, em grande parte, desconhecidos.
MA I/HH I, nesse sentido, já antecipa algumas dessas questões, entretanto, de forma
introdutória. O través psicológico descrito na referida obra aproxima-se mais da pesquisa da
linguagem e dos subsídios históricos que propriamente da perspectiva fisiológica, pois,
segundo Itaparica (2002, p. 61), somente em JGB/BM, Nietzsche irá traçar um percurso mais
elaborado inter-relacionando de forma vigorosa as temáticas da linguagem, história e
fisiologia, “que tem como eixo a doutrina da vontade de potência e, como pano de fundo, a
questão do niilismo e suas consequências para a civilização.” 83
O soslaio psicológico pode ser evidenciado em MA I/HH I, por exemplo, no capítulo
segundo, aforismo 35, onde o filósofo irá apresentar “as vantagens da observação
psicológica” para a vida. Segundo Nietzsche (MA I/HH I), a vida afirmada em todos os seus
aspectos, incluindo-se os negativos ou cruéis, pode ser serenada pela esguelha da observação
psicológica, sendo essa afirmação bastante reconhecida em épocas passadas, mas quase

81
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 9.
82
BITTENCOURT, R. N. Nietzsche e a fisiologia como método de interpretação de mundo. Revista Trágica:
estudos sobre Nietzsche. Vol. 4, nº 1, pp. 67-86, 1º semestre de 2011. p. 68.
83
ITAPARICA, A. L. M. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí; Editora UNIJUÌ, 2002.
p. 61.
48

completamente esquecida na modernidade, pois “[...] falta a arte da dissecação e composição


psicológica na vida social de todas as classes, onde talvez se fale muito das pessoas, mas não
do ser humano. Por que se deixa de lado o mais rico e inofensivo tema de conversa?”. 84 Com
este sugestivo questionamento, o filósofo alemão deixa expresso o seu descontentamento
perante a modernidade, uma vez que essa época reflete um alheamento do homem em relação
às questões psicológicas que o perpassam, já que, conforme vimos, o domínio psíquico é de
fundamental importância para se pensar o organismo como um todo.
Dessa maneira, o filósofo instaura uma nova possibilidade interpretativa humana,
demasiado humana, que tem no corpo e nas configurações orgânicas seu mote central.
Nietzsche (MA I/HH I) apontará que a filosofia tradicional desconhece ou interpreta de forma
equívoca a história dos sentimentos morais, chegando mesmo a erigir uma falsificação ética.
Assim, às observações psicológicas aparentes, solidificas em uma inclinação humana para as
explicações metafísicas, faz-se necessário encetar um posicionamento contrário, que, nesse
período de sua escrita, identifica-se com a perspectiva científica: “Portanto: se a observação
psicológica traz mais utilidade ou desvantagem aos homens permanece ainda sem resposta;
mas certamente é necessária, pois a ciência não pode passar sem ela.” 85 Logo, percebe-se que
nesse momento Nietzsche tem um projeto maior, qual seja, engendrar artifícios teóricos para
desestruturar uma visão epistemológica de mundo pautada, principalmente, na tradição
metafísica e na moral cristã. Portanto, seu profundo interesse pela ciência nesse período
explica-se pelo alijamento que nutre em torno das tentativas de explicação do homem por
intermédio da metafísica e religião cristã, explicações essas preceituadas por idealistas.
Ora, o ponto de vista da psicologia aberto por Nietzsche configura-se enquanto uma
via basilar de interpretação da cultura, incluindo-se aí uma investigação da filosofia e do
próprio homem, pautada, mais diretamente, na apreciação crítica dos idealismos que
estiveram presentes no decurso da história do pensamento: “Derrubar ídolos (minha palavra
para “ideais”) – isto sim é o meu ofício”. 86 O aspecto psicológico se evidencia também na
afirmação de que em seus livros, fala um psicólogo sem precedentes à espera de bons leitores,
que saibam, acima de tudo, compreendê-lo: “Que em meus escritos fala um psicólogo sem
igual é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor – um leitor como eu o

84
MA I/HH I, Contribuição à história dos sentimentos morais, § 35.
85
MA I/HH I, Contribuição à história dos sentimentos morais, § 38.
86
EH/EH, Prólogo, § 2.
49

mereço, que me leia como os bons filólogos de outrora liam Horácio”. 87 Segundo Giacóia Jr.,
a psicologia em Nietzsche deve se denominar “grande psicologia”:

O programa dessa “grande psicologia” deve incluir, portanto, além da tarefa de


reportar a esfera espiritual da cultura aos seus condicionantes afetivos e pulsionais,
uma série de outras tarefas. Dentre elas, gostaria de apontar a desconstrução do
primado atribuído à consciência no domínio psicológico, o reconhecimento e a
valorização de um vasto e inaudito psiquismo inconsciente, a proposta de um novo
conceito de unidade subjetiva – ou de processos de subjetivação --, que se
orienta por uma compreensão ampliada do corpo e da racionalidade.88

A psicologia nietzschiana, conforme exposto, se anuncia como uma forma de


interpretação capaz de questionar os preconceitos morais dos filósofos e, por conseguinte,
todas as concepções idealistas que tem por objetivo rebaixar o corpo. Nietzsche, por isso,
propõe-se descer às profundezas dos preconceitos morais, visando colocar em destaque os
meandros da vontade de poder89, por exemplo.
Porém, de que maneira iremos introduzir a noção de vontade de poder no cerne de
nossas elucubrações? Sem nos aprofundarmos na questão, mas já antecipando algumas
nuances significativas em torno dessa concepção basilar a interpretação de corpo em
Nietzsche, poderíamos dizer que vontade de poder deve ser entrevista não como uma vontade
de conservação, e sim como vontade de ampliação de poder, conforme evidencia Müller-
Lauter: “Por toda a parte encontra Nietzsche a vontade de poder em obra. “Mais
inequivocadamente” ela se deixa mostrar ‘em todo vivente [...] que tudo faz não para se
conservar, mas para se tornar mais.’”. 90
O tema da vontade de poder, assim, é de fundamental importância para a compreensão
da noção de corpo em Nietzsche, nosso escopo principal, porque traduz, de forma expressiva,
a concepção que o filósofo tem acerca da corporeidade e do mundo, considerando os impulsos
humanos em conflito: “São nossas necessidades que interpretam o mundo: nossos impulsos e
seus prós e contras. Cada impulso é apresentado como uma espécie de despotismo, cada um
87
EH/EH, Por que escrevo tão bons livros, § 5.
88
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2001. p. 11.
(Grifo nosso)
89
Optamos pela tradução da noção nietzschiana Der wille zur macht enquanto vontade de poder e não pelo seu
correlato vontade de potência, apesar de sabermos que o segundo uso tornou-se corrente nos meios acadêmicos.
Corroboramos aqui com o posicionamento adotado pelo pesquisador Oswaldo Giacóia Junior ao traduzir a obra
A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, de Wolfgang Müller-Lauter, o qual expressa o seguinte: “[...] A
tradução tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o conceito demasiadamente no registro da filosofia
política, mas apresenta também a vantagem de evitar a ressonância e a evocação da distinção metafísica entre ato
e potência – o que certamente contraria a intenção de Nietzsche – ,assim como de manter presente um dos mais
fundamentais aspectos de seu pensamento, qual seja, um concepção de força e poder se esgotando, sem resíduos,
a cada momento de sua efetivação.” (Nota do tradutor a obra A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p.
52).
90
NIETZSCHE apud MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo:
Annablume, 1997. p. 55.
50

tem sua perspectiva, que ele desejaria impor como norma a todos os demais impulsos”. 91
Logo, o real como um todo deve ser pensado através da tessitura da vontade de poder, em
uma possibilidade interpretativa que estabelece uma ruptura efetiva com o pensamento
filosófico projetado pela tradição:

Trata-se, portanto, de um princípio ontológico que responde pela semântica da


totalidade do real. Se comparado com os demais princípios ontológicos cunhados
através dos séculos pela tradição filosófica, a vontade de poder apresenta um traço
singular. Ela não repete a empreitada da tradição, cujo sentido sempre foi o de
fundamentar o real a partir de um princípio ontológico situado para além das
injunções fenomênicas e devenientes que compõem a semântica do todo. A vontade
de poder se inscreve em um novo horizonte hermenêutico que de alguma forma
rompe com o horizonte interpretativo a partir do qual a tradição, a despeito das suas
vicissitudes e da pluralidade de modos de compreensão do todo, sempre respondeu
pela indagação acerca da textura ontológica do mundo, isto é, pelo problema do
fundamento.92

Lado a lado com essa nova possibilidade de interpretação do real promovida pela
hipótese da vontade de poder nietzschiana responsável por uma cisão com o pensamento da
tradição, conforme visto, tem-se a esfera inconsciente de nosso psiquismo, representada pelas
vontades, sentimentos e afetos, por meio da desestruturação do primado da consciência e
proposição do corpo enquanto hipótese interpretativa.
Tal proposição, entretanto, só é possível para ele se levar em conta uma articulação
muito íntima entre história, psicologia, filosofia, fisiologia, dentre outras áreas de
conhecimento 93 . Logo, o esforço do filósofo reside naquilo que ele irá denominar de
fisiopsicologia:

Uma autêntica fisiopsicologia tem de lutar com resistências inconscientes no


coração do investigador, tem “o coração” contra si: já uma teoria do
condicionamento mútuo dos impulsos “bons” e “maus” desperta, como uma mais
sutil imoralidade, aversão e desgosto numa consciência ainda forte e animada – e
mais ainda uma teoria na qual os impulsos bons derivem dos maus. 94

O direcionamento fisiopsicológico da filosofia de Nietzsche inicia, de fato, no contato


com a filosofia de Schopenhauer, conforme vimos anteriormente, pois, se tudo o que ocorre
no mundo fenomênico está subordinado à vontade, a própria razão não se esquiva a tal
subordinação, levando a interpretação de que a racionalidade só pode ser pensada em
referência ao corpo. Para isso, o filósofo precisa desnudar o condicionamento dos impulsos

91
Nachlass/FP 7 [60].
92
CABRAL, A. M. Nietzsche e a semântica da vontade de poder. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche.
Vol.2, nº1, pp.20-37, 1º semestre de 2009. p. 21.
93
Para uma discussão mais aprofundada, cf. Nietzsche como psicólogo, de Oswaldo Giacóia Jr., obra na qual se
encontra a delimitação precisa da psicologia no pensamento de Nietzsche em toda a sua especificidade.
94
JGB/BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 23.
51

empregados de forma ardilosa pela metafísica e moral vigentes, perspicazes em forjar


derivações arbitrárias – impulsos “bons” dos “maus” –, como enunciou o filósofo.
Nesse sentido, a fisiopsicologia nietzschiana encontra-se atrelada às inclinações
orgânicas elementares esboçadas pela hierarquia dos impulsos, e tal hipótese constitui-se
como a linha interpretativa por meio da qual o filósofo chega à evidência de que o corpo é
uma multiplicidade de forças em relação constante, questão essa que será abordada no
capítulo 3. Por ora, traçaremos, a seguir, um breve esboço da interpretação nietzschiana de
corpo relacionada à linguagem.

1.3. Corpo e linguagem em Nietzsche

Colocar toda a verdade em suspeita, é o que pretende Nietzsche ao voltar-se contra os


ídolos cultuados na sociedade moderna, o que inclui, principalmente, os valores estabelecidos
e alimentados como inquestionáveis. Em WL/VM, Nietzsche expõe de forma mais direta esse
ataque que efetua sobre aquilo que o intelecto humano estipula como elevado e superior:

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número


de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram
o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da "história
universal": mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da
natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim
poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente
quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o
95
intelecto humano dentro da natureza.

O intelecto humano, tão celebrado pela civilização como um ponto de distinção para
com os demais animais, é visto por Nietzsche como um acontecimento menor se comparado à
exuberância e complexidade da natureza, e que, na “história universal” durou apenas um
minuto, ou seja, é insignificante perante outras incomensuráveis medidas e reais potencias. É
a partir dessa equivocada visão de superioridade de si que o homem estabelece medidas, cria
valores, estabelece verdades. Arbitrariamente, mas guiado pela razão e pelo conhecimento, o
homem instaura esse saber como o mais alto recurso do homo sapiens. Com ele, poder-se-á
agora refletir sobre a efetividade da vida, os deveres, as leis que precisam gerir não somente a
sociedade como um todo, mas o sujeito individualmente. Percebe-se, portanto, que Nietzsche
argumenta sobre uma forma singular do homem que aprisiona a si mesmo através de correntes
e celas, mas estes não são grilhões comuns, mas aqueles que aprisionam o corpo na sua
totalidade, incluindo-se ai o próprio pensamento, uma vez que até mesmo a forma de

95
WL/VM, §1.
52

conceber o mundo e as coisas agora se mostra marcada por esse intelecto, por esse caráter de
suposta superioridade do homem em relação aos demais seres vivos.
O recurso do intelecto é, conforme Nietzsche, o recurso desenvolvido pelos animais
humanos menos capazes, aqueles que, superados fisiologicamente, tenderiam, se não fosse o
artifício do conhecimento, essa trapaça para com a natureza, a sucumbir: “É notável que o
intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos
mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência”. 96
Os animais deficitários, incapazes de proteção, presas fáceis para os demais,
desenvolveram o intelecto como tentativa de subsistência, o que, conforme Nietzsche, retira o
intelecto de seu alto grau de importância e o situa no plano da artimanha, do artifício como
meio de evitar o perecimento diante de presas e chifres mais afiados e mais adaptáveis para a
existência.
Conforme a visão nietzschiana, o intelecto não aspira à verdade, uma vez que aquele é
um recurso de sobrevivência, uma dentre tantas ferramentas do todo corpóreo que foi eleita
como a principal pelo homem, no que se configura o seu erro, posto que desse ponto em
diante, sua existência seja marcada por essa única vertente, renegando outras, tão ou mais
importantes que esta. O homem, portanto, nunca esteve inclinado à verdade, uma vez que o
seu próprio corpo não está voltado para este propósito, isto é, encontrar a “coisa em si”, o
puro, o eterno, o uno, o indissociável, o verdadeiro. 97
Nessa busca pela chamada “verdade”, a inclusão da linguagem no contexto se faz
inevitável, pois será através desta que o homem tentará fixar valores que sejam válidos para si
e, portanto, obrigatório a todos. Dessa forma, têm-se os primórdios do processo de estipulação
de verdade, que, por conseguinte, também gera a mentira:

Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é
descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a
legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui
98
pela primeira vez o contraste entre verdade e mentir.

96
WL/VM, §1.
97
Roberto Barros corrobora com bastante perspicácia acerca dessa questão, pois esclarece de que maneira a
linguagem, dado o seu caráter simbólico, servirá ao estabelecimento de generalizações, à criação de ideias fixas e
imutáveis e a conceituação do efetivo, engendradas pela metafísica, a qual, apropriando-se desse simbolismo
linguístico, estabelece a busca pela verdade: “Para Nietzsche o aparato simbólico mais refinado da atividade
representativa do homem é, a saber, a linguagem. É com ela que efetuamos as nossas primeiras generalizações,
das quais decorrem as identidades e as regras dos conceitos que, para ele, passaram a justificar e a servir de
fundamento a toda aspiração humana pela verdade, esta baseada em princípios como universalidade e exatidão.
Disso decorrem as dicotomias metafísicas e a crença na essencialização do real.” (BARROS, 2010, p. 113).
98
WL/VM, §1.
53

É preciso ter em mente que a busca de uma verdade e a fixação desta através da
linguagem objetivava princípios bastante concretos, uma vez que a linguagem, além de
permitir uma maior interação social99, também serviu, como se viu no fragmento acima, como
legisladora basilar desses fundamentos que desse momento em diante seriam utilizados para
regular a vida em grupo, união esta necessária ainda, pois a comunidade, entre outros
benefícios, aumenta a chance de sobrevivência e de vitória em um possível confronto.
Nesse aspecto de necessidade social, a linguagem uniformiza determinadas práticas,
que, no âmbito do coletivo, convergem para regras que, posteriormente, com a tradição,
estratificam-se em leis. Sobre o assunto, aponta Itaparica:

Para Nietzsche, a linguagem é resultado de experiências compartilhadas por


determinadas comunidades, a essa ideia [...] é acrescentada a concepção segundo a
qual a linguagem, enquanto gramática comum, petrifica vivências habituais que
podem ser comunicadas para fins utilitários. 100

O homem expressa a si e ao mundo através da linguagem, esforço este louvável se não


conduzisse a outros efeitos colaterais: a perda da possibilidade de vislumbre da realidade
sobre outros aspectos, a imposição de determinadas visões e concepções, que se
autoproclamam únicas, verdadeiras, inquestionáveis, o aprisionamento do homem aos limites
da linguagem, pois esta passou a ser concebida como parâmetro limite do campo de atuação
do homem, ou seja, até aonde se pode ir no campo do pensamento, da imaginação, da
conjectura e da criação. O homem, através da linguagem, limitou-se, desconfigurando o que
havia de natural em si, e nesse âmbito de discussão, o corpo não poderia ser ignorado, uma
vez que ele está presente em todos os rumos do debate, sobretudo porque ele também fala, se
expressa, não apenas por meio da linguagem ou da ação manual de rabiscar. O corpo fala por
si e através de si, seja por meio de um olhar, um gesto, uma expressão facial. Em MA I/HH I,
Nietzsche evidencia tal aspecto, denominando-o de simbolismo dos gestos:
Mais antiga que a linguagem é a imitação dos gestos, que acontece
involuntariamente e que ainda hoje, com toda a supressão da linguagem gestual e a
educação para controlar os músculos, é tão forte que não podemos ver um rosto que
se altera sem que haja excitação do nosso próprio rosto [...]. Tão logo as pessoas se
entenderam pelos gestos, pôde nascer um simbolismo dos gestos: isto é, pudemos
nos pôr de acordo acerca de uma linguagem de signos sonoros, de modo a produzir

99
Sobre o referido assunto, complementa Gonçalves: “Necessitamos da linguagem, dirá Nietzsche, porque
necessitamos do outro uma vez que, se chegamos ao outro, só o fazemos através de signos de comunicação. Na
sua origem, a linguagem é a denúncia da fraqueza, da carência e da indigência humanas; é a ‘queda’ por
excelência. Ela revela o nosso limite, já que Nietzsche não a concebe sem conceber antes a prévia consciência de
si. Entretanto, este mesmo gesto que marca o limite da consciência do “Eu sou” também o abre no infinito
interpretativo por vir. Este antagonismo, que está desde sempre presente na linguagem, pode ser talvez sua
própria condição.” (GONÇALVES, 2010, p. 4).
100
ITAPARICA, 2002, p.62.
54

som e gesto (ao qual o primeiro se juntava simbolicamente) e mais tarde só o


101
som.

Contudo, elegendo a linguagem como melhor e mais sofisticada forma de interação


social, o homem deixou de lado um ponto importante para a sua existência, pois afastou-se
dos seus impulsos mais primevos, em grande parte reprimidos, desvalorizados, tornados
doentes, para tentar ser alguma coisa que o distancia efetivamente do âmbito “fisiológico”: o
homem civilizado, do intelecto aprimorado, da verbosidade técnica entediante e contaminada
pelos valores já aqui mencionados. Esse tipo busca afastar-se do fisiológico, e tenta, sob todos
os meios possíveis, silenciar seus instintos mais básicos, seus impulsos, seja para a vida, para
o prazer ou para a destruição.
Esse homem moderno guia-se pelos princípios estabelecidos como verdadeiros ou
falsos, afirma que algo é bom posto que lhe foi ensinado, exaustivamente, que este algo é
bom, e não houve reflexão, e inexistiu a crítica para se adotar este ou aquele posicionamento
considerado agradável, verdadeiro, desejável. O que é uma palavra, questiona-se Nietzsche,
que responde, é: “A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo
nervoso uma causa fora de nós já é o resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio
da razão”. 102 Como, portanto, arquiteta o homem a pretensão em, através da linguagem, dessa
articulação de sons, de fonemas, da organização racional do sujeito, verbo e objeto, expressar
aquilo que lhe é externo, que está fora de si em um plano de compreensão e assimilação?
A própria história da humanidade não é, segundo Nietzsche, narrada de forma
apropriada. Todos os conflitos de forças, dentre triunfos e aniquilamentos, enquanto
rudimentos inalienáveis de constituição das raças, responsáveis por momentos em que a
compleição física dos homens alcança patamares elevados de vigor, saúde e esplendor físico,
são obscurecidos pela linguagem que tinge com tons cinzentos os feitos que deveriam ser
efetivamente valorizados:
A história natural, enquanto história da guerra e do triunfo da força ético-espiritual
em luta contra medo, presunção, inércia, superstição, loucura, deveria ser narrada de
maneira tal que, cada um que a ouvisse fosse irresistivelmente levado ao empenho
por saúde e florescimento espiritual e físico, ao feliz sentimento de ser herdeiro e
prosseguidor do humano, e a uma cada vez mais nobre necessidade de
empreendimento. Até agora ela não achou a sua linguagem correta, pois os artistas
eloquentes e de linguagem inventiva – é deles que aí se necessita – não se livram de
uma obstinada desconfiança em relação a ela e, sobretudo, não querem aprender
103
seriamente com ela.

101
MA I/HH I, § 216.
102
WL/VM, §1.
103
VM/OS, §184.
55

Em vista disso, o filósofo evidencia a necessidade de se traduzir o florescimento


espiritual e físico da humanidade em linguagem inventiva, com o claro propósito de
ressignificar e enaltecer certos eventos humanos, especialmente aqueles que estejam
relacionados ao vigor, à força, ao empenho por saúde, isto é, ao corpóreo. Mas percebe que
talvez, nem os artistas, tão necessários nesse processo por serem arautos de uma linguagem
criadora, estão isentos de desconfianças em relação à história natural.
Todavia, para Nietzsche, a questão é ainda mais densa do que parece, já que, como
pode o homem, através da linguagem, articular pensamentos que muitas vezes fogem até
mesmo do princípio da razão? Como falar de um Deus, por exemplo, que sempre existiu,
sempre existira infinitamente? O que vem a ser esta coisa, cujos princípios elementares são
subtraídos violentamente para serem inseridas, nesse caso específico, novas regras que se
caracterizam pela impossibilidade de articulação no pensamento racional? A fé, nesse campo,
ultrapassa o pensamento lógico e, instaurando-se na linguagem, cria conceitos que
permanecem apenas no plano das conjecturas. A alma, ideia de perfeição e de imortalidade, é
apresentada por Platão como a parte do homem a ser divinizada, designada como a mais
importante e necessária.
Mas há uma forma, conforme Scarlett Marton, de se desfazer dessa rigidez
estabelecida pela linguagem que aferroa no homem ideais e ídolos que se pretendem eternos:
a dança. O homem tentou fixar o mundo através de valores que, da metafísica passaram para o
plano religioso. Tal passagem encerra em si a resposta para a questão da superação desse
aprisionamento:

Certa dose de ceticismo traz, sem dúvida, a dança. Pelo movimento, ela leva a
suspeitar de tudo que é rígido e inerte. Faz vacilar a crença numa vida melhor, mais
feliz, eterna; põe a balançar a certeza de um mundo verdadeiro, essencial, imutável.
Com a dança, desaparece toda a transcendência; com ela, vem abaixo toda a visão de
104
mundo.

A dança representa, portanto, o movimento necessário para o rompimento da fixidez


estabelecida pelos valores instituídos principalmente pela linguagem. O movimento tem a
representação simbólica ou metafórica do gesto que se contrapõe à imobilidade, que por sua
vez importa, entre outras coisas, características negativas, como algo que estagnou, deixou de
evoluir, crescer, que não progride, pois lhe foi retirada a possibilidade do movimento. A
inércia, em uma análise particular, é o gesto do covarde, que não quer tentar, por medo de
falhar, e por isso prefere a imobilidade, uma vez que movimento também pode representar um

104
MARTON, S. Extravagâncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2º ed, São Paulo: Discurso Editorial e
Editora Unijuí, 2001. p. 58.
56

retrocesso. Ao homem moderno, apático e supostamente feliz na sua zona de conforto, a


movimentação traz angústia, pois se apresenta o incerto, o até então impensado, o vir a ser. Se
o mundo não é o ideal para o homem do estagnamento, ao menos ele se acostumou ao mesmo,
pois tal criatura a tudo tolera e se acostuma. 105
O gesto de movimentar-se, e novamente a representação do corpo se faz presente,
marca o ato de desconfiança, ceticismo e insubmissão do homem perante a uniformização da
vida, uma exigência da vida grupal e gregária. Necessidade esta que levou a uma
simplificação da linguagem, pois a interação entre membros do mesmo grupo deve ser feita de
forma rápida e se possível sem equívocos, uma vez que, inicialmente, o que estava em jogo
era a sobrevivência do grupo e a comunicação deveria efetuar-se em um plano de eficiência.
Esse caráter simplificador da linguagem estendeu-se para outros planos da comunicação, que
não apenas voltados para a subsistência do homem, como também para a classificação de
determinados termos, ideias, cujos termos se petrificarão. Nesse sentido, expõe Marton:
Supõe-se, então, que cada termo designa algo bem preciso, que, embora se ache para
além de seu domínio, com ele se identifica. Com isso, petrifica-se a palavra e fixa-se
aquilo a que ela se refere. Atribuindo-se à palavra um único sentido nela impressa
desde sempre, considerando-a inequívoca, desprezam-se os sentidos possíveis que
106
poderiam comportar.

A restrição do pensamento do homem a interpretações fixas tem como consequência o


aniquilamento da perspectiva, ou, no melhor dos casos, o seu enfraquecimento. Baseando-se
em conceituações maniqueístas, o homem empobrece a sua percepção do mundo, uma vez
que, de fato, não há respostas definitivas para os fenômenos que cercam tal indivíduo, apenas
probabilidades interpretativas, por isso comete-se um equívoco ao se tentar fechar uma
determinada concepção em um conceito, uma vez que as possibilidades inerentes de
investigação e, posteriormente, de respostas para um determinado objeto, acontecimento,
estado etc., são múltiplas.
Em Za/ZA, Nietzsche reforça a questão da dança como fator significativo para a
superação das chamadas verdades: “Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar.”
107
. Nesta interessante visão de Zaratustra sobre a divindade, tem-se a percepção do filósofo
alemão sobre o deus fixado no âmbito cristão, uma vez que neste, a vingança e a autoridade se
fazem sentir no decorrer de toda a sua trajetória expressa em obras como a bíblia, a qual,

105
Dostoiévski explana sobre tal questão em Recordações da Casa dos Mortos. O escritor russo narra acerca dos
homens que suportam tudo, como o sofrimento e até se acostumam a ele, assim, diz o escritor: “Somos capazes
de tolerar tudo, somos os únicos entes criados capazes de se afazer a isso [...]. Talvez tal conceito seja a melhor
definição cabível ao homem!”. (DOSTOIÉVSKI, F. Recordações da casa dos mortos. Tradução de Nicolau
Peticov. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. p.23).
106
MARTON, 2001, p. 59.
107
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
57

108
ainda assim, impõe-se como manual de propagação da fé cristã . Um deus que exige
sacrifícios, que ordena assassinatos, que incendeia cidades inteiras, sempre sob o estandarte
da punição dos pecados e a incursão de medo sobre a possibilidade de castigo. Mas esse
mesmo ídolo é, ironicamente, posto como o deus do amor, do perdão e da fraternidade. Tem-
se, portanto, um deus fixo, tal como a linguagem, que não se modifica, que se mantêm inerte,
pois seus valores são inquestionáveis, do contrário, sentencia-se o pecador com excomunhão,
o que, por sua vez, geraria a perdição eterna da alma de tal indivíduo, conforme a concepção
cristã.
Ao apresentar a possibilidade de crer em um deus que saiba dançar, Zaratustra aponta
para um universo de infinitos caminhos, de infinitas interpretações. Nesse aspecto, a própria
linguagem tornar-se-ia mais flexível, fluida, de significados que se alteram, se
complementam, se adequam à capacidade imaginativa e criadora do homem. É preciso leveza,
contrário daquilo que é pesado, que força o homem a inclinar-se para baixo, curvar-se diante
das leis, das regras que devem ser seguidas, tal como o camelo nas três transformações de
Zaratustra, que será abordada mais adiante. A leveza, o alçar de voo, condições indispensáveis
para todo corpo que se quer dançarino, estágio alcançado por Zaratustra: “Agora sou leve,
agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim”. 109
O que vem a ser o deus cristão? É o deus do peso, do fardo, dos deveres, das leis a
serem seguidas, a divindade que põe sobre o homem as responsabilidades, as diretrizes que
não podem ser desrespeitadas. No cristianismo o homem já nasce detentor do pecado original,
o de Adão e Eva, marcado pelo estigma de um erro que não cometeu, mas que lhe é imposto,
pois desde cedo o embargo dos instintos humanos é efetuado no plano religioso. Não pode,
não deve, não lhe é permitido, uma série de negativas que o ensinam, desde os primeiros
momentos de vida, de que existe uma força que atua sobre a vida dos seres humanos e que
esta precisa ser respeitada e louvada. Tem-se, desse modo, um deus que impõe seus valores,
que impede o movimento do homem, que o encarecera em si mesmo, diante do seu peso e da
sua imobilidade.
Zaratustra é o porta-voz que anuncia a boa-nova: a de que o homem pode ser tornar
um dançarino, que ele pode ser livre, e aponta para o corpo como solução, mas não qualquer
corpo, mas aquele que saiba dançar, essencialmente, pois neste corpo depositam-se as

108
Em VM/OS, § 98, Nietzsche evidencia que o autoproclamado excesso de fé cristã não se demonstra suficiente
para que os praticantes dessa crença se mantenham a ela aferroados, uma vez que necessitem retornar
constantemente aos ensinamentos bíblicos para reafirmá-la, sobretudo porque são os seus atos e palavras que
atentam de forma incessante contra a sua própria fé.
109
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
58

esperanças do homem, não no futuro, nem no além, muito menos na figura de um deus
raivoso, mas em si mesmo. O corpo, através de sua linguagem particular, aprende e ensina, é
fonte de vida, não é um símbolo esquematizado, como são os símbolos da linguagem, que
possuem a pretensão de tudo explicar e definir, criando a falsa ilusão de saber: “Símbolos são
todos os nomes do bem e do mal: não enunciam, apenas acenam. É tolo quem deles espera
saber!” 110
A dança, espontânea, torna o homem um espírito criador, alegre, pois o ressentimento,
a angústia que haviam sobre si, sobre o seu corpo, foram desfeitas com os movimentos, o que
o conduz a reaprender o ato de ficar em pé, ereto, pois somente nessa postura, não curvado,
que ele aprenderá a dar os mais belos e sadios saltos, retornando à percepção dionisíaca do
mundo:

Movimento, cadência, leveza, a dança é ainda alegria. Não é por acaso que
Nietzsche faz dela sua cúmplice ao elaborar a própria visão de mundo. Eliminando o
dualismo entre mundo verdadeiro e mundo aparente, instaurado pela metafísica,
mantido pela religião cristã, perpetuado por doutrinas morais, o filósofo julga que só
111
a alegria dionisíaca está à altura das velhas concepções.

Mas não basta suprimir o dualismo entre o mundo supraterreno e o físico, é preciso ir
além, para tanto Nietzsche propõe pensar o homem e o mundo a partir do corpo, sendo este
não fixidez, movimento incessante e, sobretudo, perspectiva. Posto isso, não é possível
delimitar o homem unicamente enquanto substância pensante, tampouco encerrá-lo em visões
dualistas. O homem é um ser plural, multifacetado. É preciso, portanto, desfazer as velhas
concepções de mundo sustentadas pela tradição para dar lugar a uma visão interpretativa dos
fatos.
A tarefa não é simples, nem curta, uma vez que o homem utiliza a linguagem desde os
seus primórdios para criar o seu próprio mundo, no qual os objetos foram substituídos por
palavras, e estas, no decorrer do tempo, tornaram-se verdades eternas. É preciso, como ponto
de partida, que o homem diga sim à vida e supere o medo ou a desconfiança contra o natural,
como aponta Nietzsche, que se efetivou através da criação de termos como “deus”, “vida
eterna”:
[...] “arrependimento”, “remoroso”, “tentação do Demônio”, “presença de Deus”
[...]. Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com enorme
desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia,
desvaloriza e nega a realidade. Somente depois de inventado o conceito de
“natureza”, em oposição a “Deus”, “natural” teve de ser igual a “reprovável” – todo

110
Za/ZA, Da virtude dadivosa, p.73.
111
MARTON, 2001, p. 65.
59

esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (- a realidade! -), é a expressão de
112
um profundo mal-estar com o real...

A linguagem foi utilizada pelo homem para mascarar a realidade, aprisiona-la em


ficções que amenizassem o sofrimento e a dor do homem, provenientes do real. Era preciso
atenuar tais sentimentos, represá-los, narcotizá-los, para que vida se tornasse menos
angustiante, mas os efeitos colaterais de tal medicamento mostraram-se mais perniciosos do
que a própria doença e, aquilo que visava consagrar-se como uma possibilidade de solução,
ou pelo menos de ilusão, potencializou ainda mais o tormento humano, pois a realidade
tornou-se, sob a sombra do deus cristão e toda a sua terminologia de pecados e punições, mais
insuportável. O erro do homem, ao utilizar a linguagem, foi o de, dirigindo-se em caminho
oposto ao da efetividade, buscar na metafísica os elementos de justificação da vida, tomando-
os como verdadeiros, tal como se exercessem sobre a existência do homem uma determinada
efetividade. 113
Ao contrário do que se é exposto, a linguagem que busca a consolidação de verdades
limitou a visão do homem sobre as coisas que o cercam, uma vez que simplificou o mundo, e
também o próprio homem. Mas, é preciso observar, que o homem objetivou tal procedimento
com o intuito de estabilização desse mundo, pois, fixando-o, também seria possível apreendê-
lo nos moldes científicos, que, por sua vez, não trabalha com fenômenos inconsistentes,
tornando-se necessário, como exigência também da razão, aprisioná-lo em um contexto, sob
um determinado ângulo, para que, somente assim, fosse possível a conjectura sobre tal
contexto. Mas ao fazer isto, o homem, na ânsia por superar o terreno movediço do
pensamento, tornou-o enfraquecido, debilitado, pois relegou a um terceiro plano a
imaginação, a criação, a diversidade e a multiplicidade, o próprio corpo, aquele que entra em
contato direto com tal mundo, em nome da segurança, do plausível, do comensurável.
Para resgatar a vida é preciso saber dançar. Através da dança diz-se sim a esse mundo
e a essa vida, que não pode ser fixada, uma vez que se encontra em constante mudança, em
perpétuo vir a ser, transformação dos homens, das posturas, daquilo que é belo ou grotesco,
pois bom ou ruim são ultrapassados, em um constante processo de criação que se efetua no
cerne do próprio homem, no seu corpo, na sua dimensão de efetividade.

112
AC/AC, § 15.
113
Sobre a questão, afirma Gonçalves: “Desse modo, toda a crítica nietzschiana sobre a linguagem incide sobre
esta pretensão metafísica de se encontrar unidades e identidades no mundo para em seguida constituir em terra
firme um conhecimento último e verdadeiro sobre a vida.” (GONÇALVES, A. Linguagem e psico-fisiologia na
filosofia de Nietzsche. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche. Vol. 3. nº 2. p. 01-15. 2º semestre de 2010.
p.8).
60

É na dança que Nietzsche/Zaratustra se inspira para expressar sua selvagem


sabedoria: a dança das forças cósmicas que se aglutinam e se separam, formando um
mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio e do eternamente-destruir-a-si-
próprio; a dança das palavras que, numa bem-aventurada irrisão de momentos, se
dizem, se contradizem e desdizem, tentadora, exploradora, descobridora, se move
114
para além de bem e mal.

Conforme Marton, a dança representa a mudança constante, que é e não é, pois não
segue princípios rígidos, uma vez que sua natureza é movimentar-se, é nunca estar parada,
sempre em constante oscilação, tal como as coisas. Nada no mundo é fixo, tudo é perecível,
então por que falar em coisas eternas, imortais? Por que criar deuses que não morrem e que,
ao contrário, desdenham da finitude humana, da metamorfose do homem de corpo em resíduo
e deste em corpo novamente? Por isso Nietzsche propõe a metáfora da dança e leveza a
personificar cada gesto, cada movimento. Nesse ínterim algo é construído e no mesmo
instante destruído, pois aquele movimento não se fixou na história, durou um instante, uma
vez que, depois dele, outros virão, sempre e sempre. A linguagem deve seguir esse percurso
do homem, deve se adequar à efemeridade de um determinado homem que futuramente dará
lugar a outro homem e assim continuamente em um retorno constante, no qual há coisas que
se fixam, mas se desfazem no mesmo instante, uma vez que o que seria a existência de um
único homem no decorrer da história universal? Um segundo, responderia Nietzsche, talvez
até menos.
No próximo capítulo, abordar-se-á a noção de corpo à luz da segunda dissertação da
GM/GM, relacionando-a aos parâmetros da memória e esquecimento, a noção de consciência,
à má consciência e adoecimento do corpo e ao advento da modernidade e do niilismo. Pois tal
abordagem ganha contornos bem definidos na referida obra, o que nos permite vislumbrar um
panorama mais abrangente do desenvolvimento dessas nuances no pensamento maduro de
Nietzsche.

114
MARTON, 2001, p.68.
61

CAPÍTULO II: CORPO NA II DISSERTAÇÃO DA GENEALOGIA DA MORAL

2.1. Corpo, memória e esquecimento

Segundo a mitologia grega, corre nos domínios de Hades, deus do mundo dos mortos
ou mundo inferior, um rio denominado Lete, cujas águas possuíam a capacidade de apagar as
memórias de quem as bebesse. Dependendo da quantidade, podia-se esquecer de um dia, um
ano ou uma vida inteira. Tal rio possuía, além desta, outra função mais específica: apagar as
memórias das almas que iriam reencarnar. O esquecimento, nesse processo, é visto como uma
exigência, do contrário a nova existência da alma não se efetuaria de forma harmoniosa.
Edmund Husserl (apud RICOEUR, 2007, p. 52), argumenta sobre a experiência de um
chamado “ponto-existência”, que marcaria a vivência do indivíduo em um ponto anterior e
outro posterior a um determinado evento. Tal pensamento pode ser exemplificado tanto em
acontecimentos felizes, quanto tristes, dolorosos, que marcariam a vida do indivíduo de forma
indelével. Entretanto, é de se observar que entre a alegria e a tristeza são estabelecidos
parâmetros completamente distintos, uma vez que a segunda parece exercer uma força que
perdura de forma mais significativa do que a primeira. Um homem agredido, ofendido,
humilhado, certamente reterá em suas lembranças tal momento desagradável de forma mais
consistente do que reteria a recordação de um abraço, ou um presente recebido. Nesse caso,
pode-se dizer que o esquecimento não agiu como uma força inibidora diante da deplorável
situação, não ocorreu, para aproximarmos a discussão de Nietzsche, uma adequada digestão.
A água do Lete não foi ingerida.
Nietzsche, por sua vez, aponta para os aspectos negativos do excesso de memória. Ou
seja, quando o fato doloroso vivenciado se torna uma constante nas lembranças do indivíduo,
isso o impede de ultrapassar tais recordações, mantendo-o refém das mesmas, e essas
rememorações, ao invés de torna-lo mais forte fisiológica ou psiquicamente, o adoecem, pois
ficam retidas, acumulando-se. Apresentam-se aqui as primeiras relações com o corpo, uma
vez que o apego excessivo à memória incida, de imediato, sobre o corpo e através do corpo,
seja por meio de uma agressão, uma ofensa ou um ato de despeito e negligência. O homem
forte possui a capacidade do esquecimento efetivo, ou seja, não o tipo de esquecimento
temporário, cuja lembrança retorna de tempos em tempos, como no indivíduo fraco, que, por
sua vez, mediante a incapacidade do efetivo esquecimento, não retrocede a um estado
62

saudável, uma vez que o antigo, o pretérito, não permitirá que o novo surja, prejudicando-se,
dessa forma, inclusive “as funções orgânicas, as mais nobres”. 115 Assim, atesta Nietzsche:

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer


imperturbado pelo barulho e a luta de nosso submundo de órgãos serviçais a
cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência,
para que novamente haja lugar para o novo [...]. 116

Prometer, ao contrário, é também responsabilizar-se por algo, significa comprometer-


se com a promessa futura, empenhando o corpo em uma tarefa de cerceamento, tal como, a
vontade que se deixa dominar mediante fatores externos, como horários, datas, morais,
valores culturais, dentre outros aspectos. A promessa de não mais pecar, efetivada em
inúmeras celebrações cristãs, provoca no homem crente a desregularização dos seus instintos
e desejos. O sofrimento, diante da impossibilidade de cumprimento de tais preceitos, conduz o
indivíduo a um estágio de aflição que se efetua na lembrança e na sua incapacidade de
efetivar a promessa empenhada diante de sacerdotes, do próprio Deus e, pior, de si mesmo
através de sua consciência.
Na segunda dissertação da GM/GM, Nietzsche expõe de forma contundente os perigos
da memória e como esta foi, de certo modo, desenvolvida e estimulada no homem, sendo este,
conforme o pensador germânico, o único animal com a capacidade de prometer. Mas o
aparente simples ato de efetivar uma promessa encerra em si mais do que uma projeção futura
acerca de uma possibilidade que não ocorreu, mas julga-se, da parte daquele que promete e
daquele que recebe a promessa, que ela se cumprirá. Tem-se, através da promessa o penhor de
uma ação que está implícita, mas que não se sustenta na factualidade da existência humana,
uma vez que ao homem as circunstâncias decorrem de modo inesperado. O próprio organismo
desse homem que promete é, indiscutivelmente, imprevisível. Logo, esse ato aparentemente
simples de prometer exige do homem conjunturas que estão para além do seu controle.
Como alcançar um tipo assim, questiona-se Nietzsche. Por meio da moralidade dos
costumes, responde o filósofo. Através desta moral o homem tornou-se um ser responsável,
posto que a repetição das ações cotidianas, os esquematismos, as regras vigentes que visam
não só inserir o homem em um ciclo controlável, mas também domesticável, no qual cada ato
humano esteja condicionado para um fim previamente estabelecido, como: alimentação,
veneração, entretenimento, formas de lazer, indumentária, a forma como o homem se
relaciona com o próprio corpo e sexualidade, dentre outros incontáveis aspectos que,
interligados, criam um mecanismo de controle que se disfarça sob a máscara da urbanidade,
115
GM/GM, II, §1.
116
GM/GM, II, §1.
63

da sociabilidade e do bem viver. Qualquer quebra nessa ordem estabelecida, configura-se


como algo estranho, incomum, indesejável. É preciso que o homem tenha a sensação, ainda
que suposta, de controle, de estabilização, que não é algo intrínseco a si – pelo fato de o
homem caracterizar-se enquanto ser pulsional –, mas imposto. Sobre o assunto, argumenta
Giacóia Junior: “As instituições culturais primárias seriam os meios pelos quais o homem
executa as tarefas de estabilização, tornando-se assim capaz de proteger e conservar, contra os
efeitos corrosivos do decurso do tempo, o resultado das experiências coletivas acumuladas”.
117

As diversas instituições que regem a vida humana visam mais do que se propõem: as
escolas, por exemplo, não se sustentam na exclusiva função de instruir, mas também de
doutrinar. A escolha das matérias, a forma como o conteúdo é repassado, a escolha criteriosa
e regimentar das temáticas, tudo isto visa um ou mais objetivos que não somente o
educacional. A forma de organização, as filas, a disposição das cadeiras em um simples
ônibus, demonstram que a doutrinação do homem, o seu posicionamento em uma lógica
organizacional com fins doutrinatórios e lucrativos está presente e se faz sentir em
praticamente todos os lugares, sagrados ou mundanos, urbanos ou rurais. O animal homem
precisa ser domesticado, para que apresente um comportamento confiável, podendo-se, assim,
afagá-lo à cabeça tal como se faz a um animal domado. Mas é preciso observar que essa
domesticação nada mais é do que o resultado acabado de um processo anterior, ou seja, da
crueldade118 como forma de estabelecimento de uma consciência.
A promessa está intrinsecamente interligada com a memória, sem esta não haveria
aquela. Mas é justamente nessa promessa que se encerra uma problemática consistente aos
olhos de Nietzsche, uma vez que a promessa estabelece uma desordem de natureza psíquica,
sobretudo porque retém o indivíduo em um lugar fixo, que o impede de progredir, pois agora
se encontra preso ao passado. A ação mostra-se, com a promessa, embargada, pois a vontade
não é mais senhora de si, não se efetiva de modo espontâneo, pois o passado, a lembrança, a
dominam. O tempo, força natural que a civilização não consegue dominar, demonstra que o
homem, ao prometer, apresenta a nula pretensão de fixidez. Mas ainda assim, tal homem é
visto como necessário por Nietzsche, pois, conforme Azeredo (2003, p. 111), a memória

117
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche: o humano como memória e como promessa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
p. 27.
118
Nietzsche propõe-se a compreender a crueldade, acima de tudo, pela perspectiva psicológica, uma vez que o
filósofo considera tal característica como pertencente, de forma inalienável, à natureza humana, presente, assim,
em todo o percurso cultural engendrado pela ação do homem. É possível deduzir, desse modo, que a crueldade
teve significativa parcela de contribuição para a formação e estabelecimento da consciência.
64

estaria também atrelada a uma forma de vontade, concretizada pelo desejo de não deixar de
cumprir o que foi prometido.
Ao prometer, estabelece-se a afirmação diante do prometido, o empenho de que aquilo
que foi estipulado num momento futuro venha efetivamente a ocorrer. Neste contexto, está-se
falando do homem soberano (souveraine individuum), aquele que se mostra autônomo e
moral, ou seja, aquele que, de fato, não vem a ser nenhum dos dois119. Esse indivíduo é o
resultado do processo de inserção de uma memória ao homem, a fruta que, enfim, por
inúmeros processos, amadureceu, mesmo que tardiamente.
O esquecimento, no cenário apresentado por Nietzsche na segunda dissertação da
GM/GM, é posto como o procedimento reabilitador do homem naquilo que se pode classificar
como força. O mergulho no rio Lete se mostra necessário, conforme o pensamento do filósofo
germânico, uma vez que esse esquecimento funcionará como um rompimento com a
moralidade dos costumes, cujo objetivo, como foi visto, é o de determinar ao homem normas
de comportamento não jurídicas que visem situá-lo em uma posição de tradição. Esta,
efetivada ao homem pela via do medo, da superstição, posto que a tradição se configure de
forma efetiva no corpus social. Segundo o filósofo, o sentimento do costume traduz-se como
um obstáculo ao novo:

O costume representa a experiência dos homens passados acerca do que presumiam


ser útil ou prejudicial – mas o sentimento do costume (moralidade) não diz respeito
àquelas experiências como tais, e sim à idade, santidade, indiscutibilidade do
costume. E assim esse sentimento é um obstáculo a que se tenham novas
experiências e se corrijam os costumes: ou seja, a moralidade opõe-se ao surgimento
120
de novos e melhores costumes: ela torna estúpido.

Nesse sentido, ir de encontro a esse caráter tradicional é, inevitavelmente, sofrer as


punições devidas. Um indivíduo, cidadão, perde tal status ao ultrapassar a fina margem que
separa o homem dito comum, trabalhador produtivo, do marginalizado, do criminoso, que
ousou romper com um sistema estabelecido há muito responsável pela chamada harmonia
social, configurada através da tradição.
Tradição, portanto, é o passado trazido ao presente, é a marca estabelecida que não
deve ser excedida, ou melhor, é o ponto ao qual o homem deve sempre retornar, pois assim
foi ensinado, ensinamento efetuado através de ferro e fogo, delineado pelo sofrimento
infligido, incorporado através da dor. O sofrimento se faz marcante sobre o corpo do homem:
“Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade

119
“Pois ‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem” (GM/GM, II, §2).
120
M/A, § 19.
65

de criar em si uma memória”. 121 E nesse aspecto a história humana espraia-se, uma vez que a
condição para o enraizamento da consciência perpassa, de modo expressivo, pelas práticas de
crueldade, uma vez que a dor se mostra “como o mais poderoso auxiliar da mnemônica”. 122
O corpo afligido traz de forma marcante à memória as sensações provocadas pela
experiência dolorosa, e nesse âmbito, através desse sistema de flagelação, marca-se qualquer
coisa na memória do indivíduo, ou seja, não apenas os ideais ascéticos, mas o que quer que
seja como forma de doutrinação. Deus, inferno, justiça, verdade etc., são conceitos e doutrinas
arraigados nos homens pelo viés da crueldade. O homem esquartejado em praça pública,
diante de qualquer um, impõe ao espectador a fixação de valores que, uma vez aferroados,
dificilmente serão removidos. A passagem do tempo, o aprimoramento das leis, os avanços
tecnológicos, a descoberta de certos enigmas referentes ao corpo humano não impedem que
essa mesma população, esses mesmos homens ditos modernos e civilizados, façam justiça
pelas próprias mãos perante determinadas situações limites. Homens que, retirados do seu
cotidiano, tornam-se tão cruéis quanto aqueles que massacram. Não se pode aqui falar em
uma “natureza humana” de inclinação à violência, pois desta forma, estar-se-ia situando o
homem em um plano de indissociável barbárie, mas a justificativa nietzschiana mostra-se
mais plausível, uma vez que tais comportamentos foram assentados na moralidade do homem,
e não apenas isto, mas também tornados normativos, como se determinadas situações de
violência ratificassem a validade da punição, do flagelamento, independente das regras
jurídicas, das leis regulamentadoras da vivência humana.
A intenção, com a dor, é fixar, para doutrinar, resultando dessa perspectiva o homem
de confiança. A ideia de um inferno, de um submundo no qual chamas ardem ad infinitum
marca o pensamento do homem religioso, a invenção da alma cerceia o seu raciocínio lógico
caso se efetue uma tentativa de fuga, através da finitude do corpo, da ideia de punição eterna.
Mulheres queimadas, homens torturados das mais diversas formas para que a concepção cristã
se tornasse hegemônica. Na contemporaneidade, as pressões do mundo exterior, representadas
pelo papel do trabalho na vida dos indivíduos, o clamor das responsabilidades cotidianas, o
represamento das pulsões, contribui para a ampliação desse quadro. Exemplos mais do que
claros da fundamentação dos argumentos pela angústia. Medo que prevalece através da
tradição perante o homem que promete e que não esquece.
A memorização dos signos, o aprendizado das noções comuns, diverge da
espontaneidade instintiva, da inconsciência e imprevisão orgânica. Para forjar essa
faculdade, foi necessário deturpar profundamente as condições iniciais desse animal;

121
GM/GM, II, §3.
122
GM/GM, II, §3.
66

foi necessária a imposição de numerosas torturas para que se gravasse uma


memória; necessitou-se de inúmeros constrangimentos para essa inteligência
humana voltada apenas para o presente, ficasse atenta ao passado, acendendo a luz
de alerta para aquilo que foi dolorosamente experimentado, brutalmente gravado no
123
já vivido.

Nesse âmbito, vê-se o homem constrangido a se voltar compulsoriamente para o


passado, especialmente porque os fatos vividos ficaram violentamente marcados em seu
corpo. Desse modo, outro fenômeno interessante surge: o da culpa. A invenção de
mecanismos de doutrinação e alienação, tais como: pecado, inferno, justiça, dentre outros,
repassaram ao indivíduo o sentimento de compromisso, de nivelamento ao qual o mesmo
deve se submeter para que seja integrado ao rebanho, e, enfim, receber as beneficências dessa
condição, se tais existirem. Em outras palavras, os sistemas repressores são criados e
internalizados nos indivíduos como uma forma de controle constante, visando à estabilização
da sociedade em parâmetros de aplanamento instintivo, o qual se efetua através da
consciência, que se transforma em má consciência, conforme Edmilson Paschoal, quando o
homem: “[...] se viu ‘definitivamente encerrado na proscrição da sociedade e da paz’, os
antigos instintos ficaram ‘subitamente sem valor e suspensos’, porém, eles ‘não cessavam de
fazer suas exigências’, forçando o homem a buscar ‘gratificações subterrâneas’”. 124 Nesse
sentido, ressalta-se que os instintos represados, posto que destituídos de seu valor, voltaram-
se para o interior do próprio homem, originando, assim, a má consciência, fonte de
adoecimento orgânico.
Ao homem, por exemplo, é dado o livre-arbítrio, a ideia deformada de uma liberdade
concebida no plano cristão: “O sacerdote, o metafísico e o moralista usam esse conceito para
impô-lo ao ‘rebanho’, para exigir-lhe submissão às suas ordens, para fortalecer seu direito de
ser juiz e carrasco dos fiéis”. 125 Tal liberdade será sustentada pela Igreja como forma de
persuasão de que homem é o único responsável pelas suas atitudes e pensamentos, o que, de
fato, mostra-se falacioso, uma vez que a liberdade proposta já se encontra condicionada pelas
regras e doutrinas impostas anteriormente. Mentir, roubar, assim como outros atos
considerados criminosos, ou ações que ferem a moral da sociedade, não expressam
efetivamente um ato de liberdade, uma vez que na ação criminosa já estão presentes as
questões da repreensão e punição. A transgressão, dessa forma, está implícita e atuante na

123
BARRENECHEA, 2009, p. 104-105.
124
PASCHOAL, E. Da polissemia dos conceitos “ressentimento” e “má consciência”. Rev. Filos., Aurora,
Curitiba, v. 23, n. 32, p. 201-221, jan./jun. 2011, p. 213.
125
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 19-20.
67

consciência do criminoso. Em Raskólnikov 126 , personagem de Dostoiévski, em Crime e


Castigo, obra lida por Nietzsche, e sem dúvida fonte para sua afirmação de que Dostoievski
teria sido um grande psicólogo, tem-se o exemplo de como essa concepção é factível, uma vez
que o estudante angustia-se excessivamente antes de praticar o crime, o assassinato de duas
mulheres, demonstrando assim que os efeitos da punição e do chamado pecado já se
apresentam antes mesmo da efetividade da infração.
A vontade do homem foi cerceada, assim posto, pelos valores estabelecidos pelas
instituições sociais, como a Igreja, que, tal como o Estado, estabelece a relação crime e
castigo como ações lógicas que devem ser seguidas, sem a possibilidade de outra solução ao
transgressor. O chamado “sentimento de justiça”, de acordo com Nietzsche (2008, p. 53),
recai sobre o criminoso pelo seu ato de diferenciação em relação à normativa imposta aos
demais indivíduos. O dano causado pelo criminoso encontra agora seu equivalente através da
dor.
Ainda hoje, em diversos países, a subversão às leis estabelecidas resulta no ceifamento
da vida do delituoso. Em outros casos, como em períodos passados, retira-se uma parte do
corpo do indivíduo infrator, como em alguns países islâmicos. A justiça popular também
funciona como um tribunal não regulamentado oficialmente, mas que também dispõe sobre a
vida e a morte de um determinado delinquente. Em algumas religiões, a autoflagelação ainda
se mostra uma prática comum, pois visa à purificação da alma, a retirada de alguma
transgressão no plano religioso, através do sofrimento aplicado ao corpo, equivalendo-se a
intensidade desta ao tipo de pecado cometido. No campo afetivo, por exemplo, muitos
indivíduos ainda cobram a quebra do sentimento de fidelidade com a violência e, em casos
mais extremos, a morte.
A analogia entre culpa e castigo, conforme Nietzsche (2008, p. 53), está fundamentada
na relação entre credor e devedor. Este empenha ao primeiro, por vezes a quantia roubada ou
equivalente ao prejuízo provocado, outras vezes o próprio corpo, ou de parentes, bem como,
em alguns casos, a própria “alma”. Mas a possibilidade de infligir sofrimento ao outro não se
baseia na concepção de reposição daquele bem perdido ou furtado, e sim, conforme o filósofo
(2008, p. 54), em uma satisfação íntima. A intenção, portanto, esteve longe de uma retratação

126
Raskolnikov, personagem central da obra Crime e Castigo de Dostoiévski, é um estudante que se vê
compelido à prática de um assassinato por motivações ideológicas (a sua teoria acerca dos homens ordinários e
extraordinários, aqueles, homens comuns aos quais falta a coragem, audácia e força necessárias a execução de
um crime, e estes, homens audaciosos que estão acima do bem e do mal, e que podem não apenas tirar vidas,
como sustentar vigorosamente seus feitos) e financeiras. Contudo, um sentimento de culpa crescente o persegue
mesmo antes de concretizar o crime, por meio de reações somáticas que ganham contornos dramáticos até a sua
“redenção” final.
68

ou de correção, mas principalmente no deleite da sensação prazerosa que a prática da punição


poderia provocar no credor.
A dor e o sofrimento sempre estiveram presentes na filosofia nietzschiana, mas sob
aspectos que os afastam da condição simplista de angústia que aflige o homem enfermo ou
martirizado pelo outro. Em Nietzsche a dor está mais associada à enfermidade, uma fez que
sua saúde mostrou-se, desde cedo, bastante debilitada, mas será esta mesma condição que
possibilitará ao filósofo de Weimar encontrar um caminho diferenciado, questionando, assim,
o tradicionalismo: “A doença libertou-me lentamente: poupou-me qualquer ruptura, qualquer
passo violento e chocante. Não perdi então nenhuma benevolência, ganhei muitas mais. A
doença deu-me igualmente o direito a uma completa inversão de meus hábitos...” 127 Dessa
forma, a dor proveniente de uma tortura, de uma agressão externa não é a mesma que
Nietzsche observa como crucial para que o homem venha a desenvolver uma visão própria de
si e do mundo, uma vez que, no campo das enfermidades, a dor é algo interior, um convite à
reflexão sobre o corpo, sobre a posição do homem no mundo e as limitações impostas, muitas
vezes por tais enfermidades.
A dor provocada por tortura, tornada sofisticada e legalizada em muitos períodos da
história humana, visa, em grande parte, à domesticação do indivíduo. O homem moderno é o
produto desse processo, fruto da repressão que lhe fora imposta, da histeria e supressão
forçada dos instintos. A boa educação, os valores morais defendidos, a organização, a
oratória, as boas maneiras, tudo isso considerado ideal e bom, na verdade é proveniente do
açoite, das algemas, do cárcere, da crueldade humana. Nietzsche, como profundo psicólogo
que é, entrevê a crueldade e as suas reverberações:

Quase tudo a que chamamos “cultura superior” é baseado na espiritualização e no


aprofundamento da crueldade – [...] O que constitui a dolorosa volúpia da tragédia é
a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão trágica, e
realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais que delicados da
metafísica, obtém sua doçura tão-só do ingrediente “crueldade” nele misturado. O
que o romano, na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras
e as touradas, o japonês de hoje, quando corre às tragédias, o operário de subúrbio
parisiense [...] o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é
a poção bem temperada da grande Circe – “crueldade”. 128

No referido contexto, o filósofo demonstra que a crueldade constitui o real de modo


tão intenso quanto a dor e o sofrimento. A crueldade é compreendida como um traço
inalienável da cultura humana, segundo Nietzsche, e se coloca na base constitutiva das
mesmas. Interessante notar que a crueldade é não só um traço característico da cultura como,

127
EH/EH, §4, p. 72.
128
JGB/BM, §229.
69

por conseguinte, do próprio ser humano especialmente se considerarmos os sentimentos de


poder.129
Destarte o homem, com o passar do tempo, declara-se culpado até pelo que não
praticou, e, em alguns casos, apenas pensou, pois “Foram os conscienciosos, não os sem
consciência, que tiveram de sofrer terrivelmente sob a coação das prédicas à penitência e
medos do inferno, sobretudo se eram também homens de imaginação.” 130 Isto é, o excesso de
consciência acarreta a culpa e o sofrimento, ceifando a imaginação. Assim, tal homem sente-
se responsável pela transgressão de leis que foram criadas com o intuito de instruir, limitar,
nivelar, reposicionando-se como um tipo domesticado em um determinado local na sociedade,
para que seja produtivo, exemplar, tradicional: família, Estado, Deus. A tríade que cerceia o
cidadão, moldando-o, conforme interesses superiores, em uma vertente que é imposta como
ideal e desejável.
Se a transgressão efetua-se, principalmente em uma das três esferas, o sentimento de
culpa se apresenta, pronto para desconfigurar os instintos em um processo que resultará em
uma má consciência. O denominado “animal avaliador” 131, se fará presente, pois o crime, o
delito, a violação ou o pecado, serão avaliados conforme os preceitos em voga. O assassinato
torna um homem em um criminoso; um assassinato com requintes de crueldade, confere-lhe a
alcunha de monstro. Há moral, portanto, até na forma de ceifar a vida alheia.
Esquecer é preciso, afirma Nietzsche (1998, p. 47), uma vez que se configura
enquanto uma força inibidora, que auxilia o ser humano no seu processo digestivo, ou seja,
assimilação e excreção daquilo que, após der experienciado, mostrou-se positivo ou negativo
para o organismo como um todo. Sobre o assunto, argumenta Barrenechea:

O esquecimento, por sua vez, longe de ser interpretado por Nietzsche como uma
falha, ou como a incapacidade temporária da consciência para reter o já vivido, trata-
se de um mecanismo de digestão psíquica que permite relaxar diante das
experiências vividas, se distender diante do passado.132

O esquecimento, comparado por Nietzsche ao processo de digestão, não é posto pelo


referido filósofo como um mecanismo utilizado para o apagamento de determinadas
lembranças, e sim como estrutura inibidora, em um sentido de se antecipar às fixações
empreendidas pela memória, possibilitando, desse modo, ao ser humano, uma atividade
considerada salutar diante do esquecimento. O homem, único animal capaz de prometer e,

129
A relação entre crueldade e sentimento de poder é muito relevante na argumentação nietzschiana: “[...] pois o
ser cruel desfruta o supremo gozo do sentimento de poder.” (M/A, §18)
130
M/A, §53.
131
GM/GM, II, § 8.
132
BARRENECHEA, 2009, p. 103.
70

portanto, de fixar, demonstra sob esse aspecto uma condição única que lhe permite o cultivo,
a continuidade, resultando desse processo o que se conhece por cultura. 133 Esta que, para
alguns filósofos, como Bacon, configuram-se como o refinamento, no sentido de formação,
do homem. 134 Para Nietzsche, entretanto, o esquecimento, conforme já dissemos antes, é de
fundamental importância para o homem porque lhe permite a abertura para o novo, a
possibilidade de criação. A lembrança bloqueia a possibilidade do futuro, impede o indivíduo
de governar a si mesmo, retendo-o em uma espécie de subterrâneo. 135
É preciso desvencilhar-se do passado para que os afetos não se tornem indigestos e
atuem de modo negativo sobre o orgânico ou sobre o psicológico. Esse esquecimento desfaz,
permitindo-nos estabelecer tal relação, a memória escrava, presa em valores desagregadores
que resultam no adoecimento do corpo. Não se está aqui situando a questão no campo do
perdão, uma vez que este conceito cristão, não considera o expurgar dos sentimentos
enfermos, mas a sua ocultação, ou em uma tentativa de se alcançar este feito, resultando dai
que os sentimentos desagregadores ainda se farão sentir. É preciso buscar o novo, segundo
Barrenechea (2009, p. 104), já que se faz necessária outra vez a espontaneidade instintiva, da
inconsciência e imprevisão orgânica.
Esse cerceamento do homem através da memória enfraquece-lhe os impulsos animais,
impedindo-o de agir, uma vez que, no lugar da ação, atua a consciência, esta sim, irá, no
campo das conjecturas, das possibilidades, da previsão, do cálculo e da projeção futura,
bloquear a efetividade. Ao homem temeroso, por exemplo, é-lhe vetado, por sua própria
consciência, sair em determinadas horas, frequentar certos locais, pois a ideia interiorizada
acerca da violência, criminalidade e desrespeito às leis, atua de modo continuo. O resultado

133
Heidegger compreendia a palavra construir (bauen) no sentido de habitar, interpretando-se tal relação não
através do simples ato de construção do local no qual o homem reside, mas sim o modo como ele, em relação ao
mundo, encontra-se posicionado em relação a este. Ou seja, a construção, conforme Heidegger, está mais
articulada com a forma como o homem intervém no mundo, a expectativa daquele em relação aos frutos da sua
intervenção no local em que se encontra. Mas tal expressão, observando-se a partir do latim, associa-se ao termo
“cultura”: “Ambos os modos de construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar
construções, aedificare – estão contidos no próprio bauen, isto é, no habitar” (HEIDEGGER, 2007, p.127).
134
Para Nicola Abbagnano, em Dicionário de Filosofia, o termo cultura “[...] tem dois significados básicos. O
primeiro e mais antigo é aquele pelo qual significa a formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se. Fr.
Bacon considerava a Cultura nesse sentido como ‘a geórgica do espírito’ (De Augm. Scient., VII, 1),
esclarecendo assim a origem metafórica da expressão. O segundo significado é aquele pelo qual indica o produto
dessa formação, isto é, o conjunto dos modos e viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam
também indicar pelo nome de civilização [...]. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 212-213).
135
Expressão esta utilizada por Dostoiévski na sua novela Notas do Subsolo, para designar a inércia do homem,
representado através do seu personagem, de nome ignorado, que se projeta ressentido sobre o mundo e as
pessoas. Este personagem adequa-se à visão nietzschiana sobre a memória, uma vez que ele representa o
indivíduo das ideias fixas, preso a elas como em um cárcere no subsolo da sua consciência, impedindo-o de uma
existência efetiva.
71

desse processo é o indivíduo anêmico moralmente, fisiologicamente adoecido. Aquele que,


em um processo de inversão, toma por valoroso, ideal, aquilo que é contraproducente. O
estado de enfermidade dita as ordens que o corpo segue. Mostra-se mais seguro o lar, as
portas fechadas, a janela trancada. Doença transvertida em cautela. A chamada razão, diante
da violência em questão, fala mais alto, impõe-se pelo desejo de auto preservação física do
indivíduo. Medo da morte que se apresenta como sombra diante do receio da vida. E assim,
tem-se mais uma ovelha para o rebanho.
Para Nietzsche, o homem é “[...] esse animal que necessita esquecer, no qual o
esquecer é uma força, uma forma de saúde forte...” 136, e que não pode ser definido por aquilo
que busca acumular. Ou seja, sentir a vida não é preenchê-la de conceituações ou definições
que visem tentar, de forma falha, abarcar a multiplicidade da mesma. É preciso esquecer, uma
vez que o homem não delibera a partir do que sabe, mas sim do que sente. Sua vida não é boa,
nem má, pois tais classificações mostram-se falhas e supérfluas ao tentar dar conta de uma
multiplicidade de fatores: físicos, psicológicos, orgânicos.
O esquecimento funciona como uma espécie de “depurador psíquico” que torna o
corpo saudável, pois o afasta do excessivo apelo às promessas que são exigidas na vida
moderna e sociedade moralizada, ou seja, neutraliza o exagero, aquilo que, uma vez dentro do
organismo, causará efeitos colaterais danosos, visto que o homem memoriza, além daquilo
que lhe é adjudicado à força, e tal conhecimento se mostra falho, insípido, questionável. O
que é a verdade, por exemplo, além de perspectiva, ângulo de visão diversa, ponto de vista
mutável no tempo e no espaço. A história não resgata nada, uma vez que a história passada
nunca poderá ser trazida à tona, não na sua integralidade e através de uma imparcialidade.
Histórias são formas de ver contaminadas por aquilo que vê.
Desse modo, o esquecimento marca um plano salutar ao organismo, depurando aquilo
que adentra na consciência. Para Nietzsche, o esquecimento, nesse sentido, pode ser
interpretado como uma força ativa, sobretudo por assinalar uma possibilidade de libertação no
que se refere aos aspectos doentios. Por isso, entreve-se uma valorização do esquecimento no
pensamento nietzschiano, a qual está relacionada ao surgimento do novo, e também de uma
saúde forte. Destarte, a cultura Ocidental elegeu a memória, segundo o filósofo, como a
faculdade mais refinada, elevando-a enquanto característica distintiva entre homem e animal.
Nietzsche questiona inteiramente tal assertiva por não conceber nenhuma espécie de
superioridade do homem se comparado aos demais animais.

136
GM/GM, II, §1.
72

Isto posto, a própria consciência, igualmente supervalorizada, deve atuar como um


órgão de direção, o que nem sempre ocorre, suscitando uma crítica veemente ao papel que ela
desempenha.

2.2. Corpo e crítica à noção de consciência

É comumente explicitado na sociedade contemporânea o termo “consciência” como de


elevada representatividade no cerne social. Pode-se dizer que um homem não tem consciência
perante uma atitude vil cometida, por não se sensibilizar diante de um acontecimento triste ou
chocante, assim como também, com a miséria alheia. Diz-se também não ter consciência o
homem que age de forma impulsiva ou passional, lançando-se ao perigo ou a prática de uma
atitude arriscada, violenta, sem medir as consequências de seus atos.
Mas a consciência também representa para muitos, e talvez seja este o seu conceito
mais difundido no mundo, o próprio pensamento do homem, ou aquilo que o norteia. Quando
se afirma que um indivíduo não está consciente das motivações que o levam a determinadas
atitudes, seja por motivo de doença ou por efeito de substâncias alucinógenas, está-se situando
a consciência como governante do pensamento humano nos seu mais amplo sentido, ou seja,
de que, sem consciência, o indivíduo perde a capacidade de discernir moralmente, o que
afetará significativamente sua convivência com as outras pessoas. A perda de controle sobre o
próprio corpo, nesse ínterim, ocasiona um desequilíbrio orgânico, levando ao descontrole da
fala, sentimentos, desejos, percepção sensorial etc.
Um homem que sofre um acidente e é golpeado na cabeça perde a sua “consciência”.
Dessa forma, a consciência apresenta um duplo aspecto, a saber, no que se refere ao interior e
exterior do indivíduo. No primeiro ponto, a articulação do discurso através da interpretação de
signos estabelecidos socialmente; no que diz respeito ao segundo ponto, a relação com o
outro, apresenta-se como o elemento fornecedor de perspectiva e identificação de si, sua
interpretação de mundo e sua significação. Um ato criminoso, para alguns indivíduos, poderá
ser justificado mediante determinados aspectos, como pobreza, desigualdade social, por
exemplo, mas para outros, tal atitude não é compreensível no sentido de uma alegação.
Ou seja, o mundo, projetado ao sujeito dos acontecimentos, a sucessão cotidiana de
episódios, são interpretados conforme os preceitos de cada indivíduo, com base na
experiência própria de cada um. Assim explana-se o mundo, que não pode ser considerado
como certo ou errado, mas somente perspectiva. A partir desse aspecto, pode-se dizer que a
73

consciência está vinculada, de modo significativo, aos valores estabelecidos em sociedade, o


que permite a concepção de uma consciência da moral, produto da moralidade dos costumes,
já abordada anteriormente.
Segundo Nietzsche, uma consciência moral, ao contrário do que se supõe de favorável,
reafirma valores, como “bem” e “mau”, que prescreve na consciência como regra
inquestionável muitas vezes aquilo que foi socialmente imposto por meio da crueldade:
“Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse mundo de conceitos
morais: ‘culpa’, ‘consciência’, ‘dever’, ‘sacralidade do dever’ – o seu início, como o início de
tudo grande na terra, foi largamente banhado de sangue”. 137 Dessa forma, pode-se dizer que a
consciência moral nada mais é do que um produto acabado que se processou ao longo da
história humana, estruturando valores que deveriam ser seguidos e respeitados, no que se pode
interpretar como outra forma de assujeitamento do homem. Nietzsche, sobre tal assunto,
questiona-se já no prólogo a GM/GM: “Sob que condições o homem inventou para si os
juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles?”. 138
Como se viu, tais valores foram marcados a ferro no homem, ou seja, a bondade
apresenta-se, por exemplo, diante do ato de abnegação, de auxílio ao próximo, preceitos
baseados em concepções cristãs identificadas na atualidade com o amor ao próximo. “Amor”
este imposto pela espada, conquistado com fogueiras e outras tantas formas de tortura. O
Deus cristão é o Senhor do amor, mas também da justiça, aplicada de modo contundente se os
princípios que fundamentam o cristianismo forem rompidos: inferno, danação pela eternidade,
perdição da alma mediante a recusa de Deus personificado em simples gestos de “bondade” e
“respeito à vida”. E, conforme Nietzsche, os homens tiveram que pagar um alto custo para
conquistar à força a harmonia e a “boa” convivência social: foi preciso sacrificar o instinto
humano. De acordo com Verônica Azeredo:

Nietzsche defende a valorização dos instintos, do corpo e seus ritmos naturais como
os únicos capazes de se orientarem em direção a uma vida potente e vigorosa. A
tentativa de atribuir sentido à vida, contrariando e negando sua natureza trágica,
caótica e desprovida de certezas e de segurança, promove a degeneração das forças
vitais, uma vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós se
caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento. A guerra contra
os instintos, contra o corpóreo provoca o enfraquecimento do homem, pois é
justamente o combate, o jogo de forças que são fundamentais para a saúde do
139
homem.

137
GM/GM, II, §6.
138
GM/GM, P, §3.
139
AZEREDO, V. P. de O. Nietzsche: a grande saúde e o sentido trágico da vida. Cadernos Nietzsche 28, p. 249-
261, 2011. p. 250-251.
74

Ao impor o sacrifício dos instintos, a moral cristã, a partir da negação do corpo e


supervalorização da alma, e a metafísica, que tem como pressupostos teses maniqueístas que
sustentam uma visão dicotômica da natureza humana, pautada na contraposição entre razão e
instinto, mundo das ideias e mundo sensível, promovem, cada uma ao seu modo, uma
desconfiguração do homem. Para o filósofo, o homem não pode ser definido por meio de
meros dualismos, uma vez que o jogo de forças inerente à sua natureza corpórea configura-se
como basilar para a elevação da vida e da saúde, o que se manifesta nos conflitos instintivos e
pulsionais que nos marcam de forma indelével. Acerca disso, expõe Christoph Cox:

[...] segundo Nietzsche, o próprio corpo é "uma estrutura política", "uma


aristocracia" (WP 660, 490; 259 BGE) ou "oligarquia" (GM II: 1): isto é, uma
hierarquia de órgãos, tecidos e células, cada uma das quais tem um papel e função
particular. Em um corpo saudável, estas várias partes cumprem as suas funções a
serviço do todo; enquanto que num corpo doente ou a morrer, esta relação de partes
para o todo (e, assim, a integridade do corpo) está ameaçada ou dissolvendo. [54] Por
outro lado, o dado de pré-unidade relativamente do corpo não é uma verdade eterna,
mas o produto ou resultado da "interpretação" (no sentido mais amplo de Nietzsche
da palavra), ou seja, de milênios de luta evolucionária. 140

Tampouco as definições moralizantes podem servir como padrão de definição do ser


humano. O homem, ao condenar um ato, julgando-o conforme tais valores, ao recriminar uma
determinada atitude alheia, e até mesmo em relação a si mesmo, acredita estar fazendo uso de
seu livre-arbítrio; pensa, credulamente, que exerce sua liberdade de determinar se algo está
certo ou errado.
Nesse ponto especificamente insere-se Schopenhauer e sua crítica ao princípio de
individuação, cujo véu de Maya141 esvoaça sobre os rostos humanos. Através da individuação
do homem, observam-se as guerras, os crimes, aquele que, em benefício próprio, não hesitará

140
NIETZSCHE apud COX, C. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley, Los Angeles: University of
California Press, 1999. p. 131. No original: “[...] according to Nietzsche, the body itself is "a political structure,"
"an aristocracy" (WP 660, 490; BGE 259) or "oligarchy" (GM II:1): that is,a hierarchy of organs, tissues, and
cells, each of which has a particular role and function. In a healthy body, these various parts fulfill their
functions in service of the whole; while in a sick or dying body, this relation of parts to whole (and thus the
integrity of the body) is threatened or dissolving.[54] Furthermore, the relatively pre-given unity of the body is
not an eternal verity but the product or result of "interpretation" (in Nietzsche's extended sense of the word), that
is, of millennia of evolutionary struggle.”
141
Expressão que encontra referência no plano de determinadas religiões místicas na Índia. Designa o poder que
determinados deuses ou demônios possuem de criar ilusões que nublarão a visão do indivíduo para a verdade,
impedindo-o de uma progressão no plano do espiritual, uma vez que não consegue visualizar os próprios erros e,
assim, superá-los, permanecendo preso ou estagnado a um plano do sensualismo, do sensorial. Aquele que
desfaz as ilusões do véu de Maya se encaminha satisfatoriamente ao plano da iluminação. A forma como
Schopenhauer apropria-se de tal expressão em O mundo como vontade e como representação está mais voltada
para o sentido de ignorância que o indivíduo estabelece para si mesmo, ou seja, como único, ao redor do qual o
mundo gira e para quem todas as coisas convergem. A ganância e o egoísmo, por exemplo, são resultados do véu
de Maya, pois o indivíduo colocará sempre a si como aquele que mais precisa de determinadas vantagens, cuja
necessidade é maior do que a do outro.
75

em sacrificar o seu semelhante, uma vez que a sua vontade se mostra mais urgente. O
sofrimento do homem, conforme Schopenhauer, está em grande parte atrelado a essa postura
individualista do outro, na sua percepção do que é bom para si, que muitas vezes não
considera o que é mau para o outro. O exemplo da individuação, entretanto, não se restringe a
um homem, mas também a um grupo social e países inteiros.
Há aquelas nações que, considerando seus próprios valores, sentem-se na necessidade
de governar outras, por considerá-las atrasadas, inferiores, fracas, ou simplesmente visando
benefícios econômicos particulares. Para Schopenhauer, a supressão do véu de Maya requer
uma trajeto lento, que converge para dois pontos específicos:
[...] nós, à medida que percebemos cada vez mais claramente o sentido do princípio
de individuação, permitimos em primeiro lugar a justiça espontânea, em seguida o
amor elevado até a extinção completa do egoísmo, e, finalmente, a resignação ou
142
supressão completa da vontade.

Em um primeiro momento, a vontade caracteriza-se pelo sua particularização egoísta,


que representa uma radicalização da individuação, que, como vista, atinge patamares de
crueldade expressivos; em um segundo momento, a negação da vontade representa o
desvelamento de Maya. Tanto Schopenhauer quanto Nietzsche concordam, na primeira etapa
de sua obra, que o homem, de fato, não tem controle sobre aquilo que deseja, nem sobre a
forma como deseja, uma vez que a vontade, querer sem fim, não se esgota, não encontra um
fim no objeto desejado e conquistado, uma vez que, alcançando-se o almejado, volta-se o
desejo egoísta do homem para outro objeto, outro ser, outra condição. Aquilo que ele não tem,
deseja; o que já se encontra em seu poder, destitui-se, de alguma forma, do poder atrativo que
até então exercia fascínio sobre o homem. Logo, fica bastante evidente que a questão
fundamental encontra-se no mundo como vontade. Para Nietzsche, tem-se a vontade como
algo que ultrapassa a complexa linha existente entre sentir e pensar, pois ela:

[...] não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto: aquele
afeto do comando. O que é chamado de livre-arbítrio é, essencialmente, o afeto de
superioridade em relação àquele que tem que obedecer: “eu sou livre, ‘ele’ tem de
obedecer” – essa consciência se esconde em toda vontade, e assim também aquele
retesamento da atenção, o olhar direto que fixa exclusivamente uma coisa, a
incondicional valoração que diz: “isso e apenas isso é necessário agora”, a certeza
interior de que haverá obediência, e o que mais for próprio da condição de quem
143
ordena.

Nesse aspecto, tem-se efetivamente a vontade interpretada pela perspectiva


nietzschiana como multiplicidade, pois somos, “ao mesmo tempo a parte que comanda e a que

142
SCHOPENHAUER, MVRI, §70.
143
JGB/BM, § 19.
76

obedece” 144, e tais aspectos não podem ser reduzidos ao conceito de “eu”, que tenta abarcar a
multiplicidade humana condicionando a vontade e represando as paixões, instituindo
valorações da vontade afastadas da efetividade. O querer, a vontade, portanto, relacionam-se
com as nossas necessidades orgânicas e fisiológicas, pois o querer é múltiplo, ao contrário do
que Schopenhauer sinalizou, vislumbra-se assim um ponto de afastamento entre os dois
filósofos, pois, para Nietzsche, a vontade é múltipla, enquanto para Schopenhauer (MVRI, p.
226), a vontade é una: “[...] todas as partes da natureza se encaixam, pois é uma Vontade
UNA que aparece em todas elas”.
A vontade, portanto, exerce um poder sobre o indivíduo, poder esse que não pode ser
controlado, o que demonstra que o conceito de consciência, em contraste com o de vontade,
sagra-se equivocado, pois a consciência não exerce controle sobre o todo orgânico, e isso
permite deduzir que a consciência é uma interpretação, as vezes falha, acerca de determinado
mecanismo humano representado pelo querer. A consciência, quando muito, é um órgão de
direção: “É ‘essencial que não se equivoque sobre o papel da consciência’. Esta é somente
‘UM MEIO DE COMUNICAÇÃO’; não é ‘a direção, senão que um ÓRGÃO DE
DIREÇÃO’” (NF 1887-88, 11 [145]). 145
O mundo, mais do que antes, tornou-se uma fonte de inúmeras possibilidades
interpretativas: as facilidades de comunicação, a interação cultural, as representações diversas
de mundo e de visão sobre os fenômenos e os acontecimentos permitem agora uma maior
probabilidade de ver o mundo e interpretá-lo. Definir o que é “certo” ou “errado” através de
uma consciência moral configura-se tão somente como um mecanismo valorativo, e até
mesmo, coercitivo, que institui a partir de julgamentos prévios os valores dominantes. Para
Nietzsche, todavia, tais ajuizamentos afastam o homem da observação perspectivista:

Então: quando o homem julga “Isso está certo”, depois conclui “Por isso tem de
acontecer”, e faz o que assim reconheceu como certo e definiu como necessário –
então essa essência do seu ato é moral! [...] Por que você acha isso moral? – “Porque
minha consciência me diz que é assim; a voz da consciência nunca é imoral, pois
146
somente ela determina o que deve ser moral!”.

Conforme Nietzsche, a consciência moral advém de um longo processo que encontra


sua maior expressividade no platonismo, que estabelece a razão como o cerne do pensamento
humano, demonstrando que é através dela que o homem raciocina, argumenta, estabelece
padrões e articula conhecimentos, acrescentando-se a isso o desnível entre as forças vigentes

144
JGB/BM, § 19.
145
NIEMEYER, 2014, p. 109.
146
FW/GC, §335.
77

representadas através do apolíneo e dionisíaco, uma vez que o homem tornava-se cada vez
mais atrelado à polis, o que representa, também, um afastamento do mesmo em relação a
natureza. Posto isso, as cidades, no seu desenvolvimento natural, marcam, em muitos
aspectos, a tentativa humana de se sobrepor à natureza, buscando controlá-la. Logo, o
distanciamento entre homem e natureza, a degenerescência do homem, a domesticação e
requinte que o farão cada vez mais debilitado, afasta-o do meio no qual seus instintos se
faziam mais vivazes. A vida urbana marca, portanto, a inserção do homem em uma lógica
racional que exige como tributo o freio de suas paixões, dos seus impulsos, ou, até mesmo, a
degenerescência de seus afetos. Nesse cenário, o aspecto pulsional da vida também se
enfraquece, pois o excesso, a embriaguez, os rituais dionisíacos perdem lugar para a
racionalidade e a temperança, a organização e sobriedade apolíneas, representadas,
principalmente, através da filosofia.
Tal filosofia instaura o espírito apolíneo como o desejável para o homem, pois este
promove um embelezamento da existência, e o consequente encobrimento de seus aspectos
mais vis, processo esse que, em contrapartida, representa a supressão do espírito dionisíaco,
caracterizado, fundamentalmente, pela afirmação da vida em todas as suas especificidades. O
equilíbrio que antes havia entre essas duas forças foi suprimido em nome de uma
racionalidade soerguida ao patamar de instância superior e diretiva. O homem, deste ponto em
diante, precisa reafirmar sua soberania sobre os demais impulsos e o faz através daquilo que
ele julga ser uma vantagem sobre os outros seres vivos, a sua racionalidade, que lhe permite
intervir na natureza, moldando-a conforme seu desejo, instituindo, dessa forma, uma cultura,
aspecto celebrado pelo homem como fonte de orgulho, mas que em algumas circunstâncias
representa a perda da autonomia humana em nome de valores socialmente erigidos, incluindo-
se ai os cristãos, que trazem em seu arcabouço o produto mais perigoso sobre a repressão dos
instintos, uma vez que, com a atuação do cristianismo, não ocorre apenas a supressão dos
impulsos primordiais do homem, mas também a do seu próprio corpo, marcando, dessa
forma, um postura que estabelece em definitivo a supremacia da alma em relação ao físico.
Isto é, o ser humano, que atua, vive, sente, sofre através das afecções do seu corpo,
agora deve abrir mão da sua existência efetiva, da sua forma de interação com o aqui e sua
atuação no agora em nome de uma projeção metafísica ideal, que estipula a troca do concreto,
do orgânico pelo imaterial, o imaginário, o idealizado, marcando a perda absoluta de
referências sobre o corpo e a natureza, como um processo interativo essencial para o homem e
sua saúde, física e psicológica.
78

Para Nietzsche, os instintos são mais fundamentais e certeiros que a razão e a


consciência. Eles são a afirmação da vida. Ao valorizá-los o filósofo assume uma
posição estratégica que lhe permite fazer oposição às definições do homem pela
racionalidade, ou pela consciência. Não sendo mais fundamental do que os instintos,
a consciência não pode ser apontada como regente dos mesmos. A consciência, em
Nietzsche, é considerada apenas como um órgão e, enfatiza ele, “o órgão mais
frágil”, “mais falível”. Sendo mais falível, não pode ser erigido como o grau mais
elevado da evolução orgânica nem, tampouco, o objetivo, o valor, ou o critério
superior da vida. O corpo é, em Nietzsche, uma “grande razão”, um “soberano
poderoso”, um “sábio desconhecido”. Assim, no corpo, parece encontrar um
caminho alternativo àqueles da consciência racional. O cerne do pensamento
147
nietzschiano é a crítica ao conceito de consciência.

A consciência e a razão encontrar-se-iam, portanto, em uma relação de dependência


com o corpo, este sim, a “grande razão”, concepção esta que vai de encontro ao pensamento
de Descartes148. Para Nietzsche o corpo tem um papel significativo nos processos cognitivos,
uma vez que os impulsos estão relacionados com o orgânico, que por sua vez, estabelece que
o caráter instintual é vital para o corpo. Determinadas concepções, como a cristã, visam
desfazer ou renegar a importância desse instinto na tentativa de submeter o homem a um viés
que tem em vista descaracteriza-lo e subjugá-lo, desestabilizando as pulsões:
A disposição dos impulsos em um organismo indica sua condição fisiológica: se os
impulsos estiverem hierarquizados, ou seja, organizados segundo um impulso ou
conjunto de impulsos dominantes, o corpo é sadio; se estiverem desagregados, é
decadente ou doente. Culturas, filosofias, morais e pensamentos são expressões
desses impulsos. A doença, para Nietzsche, inspira as noções desejosas de um além,
um fora, um acima: a filosofia do transcendente origina-se da interpretação da vida
por parte de um conjunto de impulsos que não podem ou não conseguem crescer em
149
potência.

Um organismo sadio, portanto, necessita que os impulsos encontrem-se


hierarquizados, prerrogativa que se veicula a afirmação da vida em todos os seus aspectos
mais expressivos, tais como: o vigor e a potência do querer. O corpo, e não a consciência, é o
grande centro convergente da filosofia nietzschiana, uma vez que o corpo, diferentemente do
‘EU”, precisa ser retomado na sua importância, diminuída ou desfeita na concepção cristã,
que aproximava o corpo de uma desagregação de impulsos, cujo controle não lhe era possível
sem a intervenção de uma alma, mesmo que alguns de seus pontos de vista afirmem o
contrário, como o fato de o próprio Jesus ter ascendido ao plano divino em corpo e alma,
147
BARBOSA, M. G. Crítica ao conceito de consciência no pensamento de Nietzsche. São Paulo, Beca, 2000. p.
56.
148
Para o referido filósofo, alma e corpo são distintos, independentes, mas que, na constituição do homem,
integram-se, apesar de manterem suas especificidades. Por exemplo, o ato de sentir, ver, são exclusivos da alma.
Dessa forma, o filósofo francês expressa o posicionamento de que o pensamento é uma faculdade que somente à
alma pertence, substancia considerada pensante. O corpo, se produz pensamento, se encontra em um nível
inferior ao pensamento da alma. A consciência para Descartes, portanto, seria uma espécie de “eu” que, na
modernidade, reverte-se na concepção de sujeito. Apresenta-se no pensamento do referido filósofo uma forma de
desigualdade no que se refere ao corpo e a alma, fundamentação que se baseia nos moldes antigos de alma como
elemento perfeito.
149
FREZZATTI JUNIOR, 2006, p. 25.
79

concepção esta que se adequa a muitos mitos gregos, nos quais os homens mais valorosos e
justos eram elevados ao patamar de deuses, alguns conquistando tal privilégio, por assim
dizer, momentos antes de morrer, ou seja, o corpo também era inserido nessa transformação
do humano em olímpico. 150
Na simbologia presente em algumas religiões africanas, por exemplo, o corpo e a
divindade ou entidade entram em contato, para resultarem em um ser único, geralmente
representado pelo pai ou mãe de santo. Em tais exemplos, o corpo não é renegado e nem
situado em uma posição inferior, ao contrário, é posicionado em nível de igualdade com as
divindades, observando-se que a imortalidade, nos preceitos religiosos cristãos, é concedida à
alma, não ao corpo. Nas narrativas míticas gregas, a imortalidade é concedida ao homem por
seus feitos heroicos.151
Observa-se, portanto, que a derrocada do pensamento grego é também reforçada pela
instauração da razão, reinterpretada posteriormente sob o aspecto de alma e consciência,
como cerne do pensamento do homem, ignorando aspectos bastante significativos, como o
próprio corpo, que até então possuía forte representação e presença na cultura grega.
É decisivo, para a sina de um povo – e da humanidade, que se comece a cultura no
lugar certo – não na “alma” (como pensava a funesta superstição dos sacerdotes e
semi-sacerdotes): o lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é
consequência disso [...]. Por isso os gregos permanecem o primeiro acontecimento
cultural da história – eles sabiam, eles faziam o que era necessário; o cristianismo,
152
que desprezava o corpo, foi até agora a maior desgraça da humanidade.

Alma, bem como consciência, situadas naquilo que Nietzsche denominou de “resto”,
ou seja, aspectos que, se possuem algum valor, mínimo que seja, está subordinado ao corpo.
Sobre a perspectiva passada, e a nova, fala Zaratustra: “’Corpo sou eu e alma’ – assim fala a
criança. E por que não se deveria falar como as crianças?/ Mas o desperto, o sabedor, diz:
corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma apenas uma palavra para um algo no corpo”.
153

Assim, alma, conforme as palavras de Zaratustra, é parte intrínseca ao corpo, este todo
que existe por inteiro, sem partes subordinadas. O corpo já não é mais um mero instrumento
diante da razão ou da alma; não se alcança mais a perfeição (termo cristão) através da dor, do
suplício. Os dias de submissão do corpo ao espírito terminaram. São contestadas, assim, todas
150
De certo modo, é possível afirmar que os heróis míticos gregos ou deuses do Olimpo eram parte humana,
parte divinos, o que lhes possibilitava a entrada no Olimpo, lar dos deuses. Contudo, tal característica é ainda
mais significativa, pois dessa forma, está-se falando de uma integração harmoniosa entre o plano do sublime, do
majestoso, com o físico.
151
Muitos heróis da mitologia grega preferiram morrer com bravura buscando a imortalidade de seus atos, dentre
eles, Aquiles e Heitor.
152
GD/CI, IX, §47.
153
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p. 34-35.
80

as noções que aludem a um substrato subjetivo no homem: razão, alma, espírito, eu, sujeito,
consciência:
A consciência não desempenha a função mais nobre no organismo, ao contrário, na
visão do filósofo, desenvolveu-se devido à necessidade de comunicação, devendo
ser vista como um órgão condutor de algo sem, todavia, responsabilizar-se pela
condução dos processos no organismo [6]. Em vista disso ele enunciar que “tudo o
que se torna consciente foi previamente preparado, simplificado, esquematizado,
interpretado” (KSA 13.52, Nachlass/FP 11[113]). O filósofo não acredita na
supremacia desses órgãos que teriam, em si, a competência e a função de atingir as
coisas mesmas ou condicionantes referentes à verdade dessas coisas. Entende o seu
desenvolvimento na perspectiva da utilidade. 154

Sepultando a consciência, o inconsciente, não como uma estrutura ou um fundo


inconsciente, mas como jogo de forças inconscientes, mostra-se tão digno de abordagem
quanto o consciente, talvez até mais, uma vez que tais forças atuam sobre o homem de modo
completamente indireto, através de sonhos, dos impulsos e outros aspectos que demonstram
que o indivíduo não se situa no mundo através unicamente da razão. Um ser humano, ao ver-
se ameaçado, pode reagir de diversas formas. Em uma situação hipotética, ele estabelece de
forma consciente e racional sua possível reação diante de um assalto, por exemplo, mas
durante a efetividade do crime, sua ação pode ser outra bastante diversa.
A consciência, associada a essa necessidade indispensável de organização social, é,
antes, um imperativo que nasce no cerne da sociedade e da interação entre os homens, não
como uma faculdade particular ou capacidade de raciocínio. Ambas efetuam-se
simultaneamente, uma vez que a consciência, longe de ser uma articuladora do pensamento, é,
antes, um meio que permite a emissão desses pensamentos anteriormente concebidos, como
se ela funcionasse mais em um sentido de tradução do que de concepção das ideias
confeccionadas e articuladas. Isto porque, conforme afirma Barrenechea (2009, p.111), a
consciência não é algo autônomo.
Assim posto, percebe-se que Nietzsche, em sua crítica à consciência, afirma que esta
não funciona como uma reguladora dos impulsos humanos, como uma forma de controle
central do qual seriam emitidos os pensamentos permitidos somente mediante a liberação da
consciência. Ao contrário, o homem encontra-se subordinado aos seus instintos, cujas ações
visam à satisfação dos mesmos. Dessa forma, Nietzsche não quer desfazer-se da consciência,
anulá-la em sua totalidade, mas apenas retirá-la do cerne, concebido no decorrer da história da
filosofia tradicional, que a colocou em uma posição privilegiada, ao ponto de ser, para muitos,
confundida com a própria alma. Segundo Nietzsche, a consciência é apenas um dos tantos

154
AZEREDO, V. D. de. Nietzsche e a modernidade: ponto de virada. Cadernos Nietzsche 27, p. 143-168, 2010,
p. 151-152.
81

órgãos presentes no corpo, que, em conjunto, auxiliam no correto funcionamento do


organismo.
Sem a linguagem, pode-se dizer, não existiria consciência, uma vez que não existiriam
meios para o homem exteriorizar aquilo que pensa, seus sentimentos e impressões. Faz-se
necessário, portanto, situar a consciência no seu devido lugar, ou seja, como um órgão
eficiente, utilizado pelo homem na sua interação social, não como sistema central do pensar e
sentir humano.

2.3. Má-consciência e adoecimento do corpo

Nietzsche, na segunda dissertação de GM/GM, questiona-se sobre o surgimento da


má-consciência, entendendo-se por esta o sentimento de culpa diante de um erro cometido, ou
alguma falta que esteja relacionada, de algum modo, a uma responsabilidade que o indivíduo
deveria ter com respeito a uma regra previamente estipulada, sobre um assunto, coisa ou
pessoa. A falta desta responsabilidade, a consciência do encargo e o descumprimento dessa
espécie de acordo ou promessa, conduz o indivíduo a um sentimento de culpabilidade.
Tal fenômeno é possível devido o sentimento de culpa, mas, para que tal estado seja
efetivo, é preciso que ele esteja inserido em outro plano, ou uma determinada concepção, a
saber, a do livre-arbítrio, a da suposta liberdade em agir ou não. Se um indivíduo,
conscientemente, subverte uma determinada regra, descumprindo-a, os resultados dessa ação,
muitas vezes independente de satisfatórias ou não, conduzem a um estado de má-consciência,
posto que o “transgressor” considerar-se-á culpado mediante o seu ato.
Mas, conforme Nietzsche, esse autorreconhecimento da violação, não se efetuou de
modo natural na história da humanidade, uma vez que suas origens encontram-se, conforme o
filósofo germânico, na “dívida”:
Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado, por exemplo, que o grande
conceito moral de “culpa” teve origem no conceito muito material de “dívida”? Ou
que o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de
qualquer suposição acerca da liberdade ou não liberdade da vontade? – e isto ao
ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o animal
“homem” comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como
“intencional”, “negligente”, “casual”, “responsável” e seus opostos, e a levá-las em
155
conta na atribuição de castigos.

No fragmento acima, Nietzsche aborda diversos aspectos no que se refere à questão da


má-consciência: a dívida, como alicerce do conceito de culpa, baseava-se, portanto, em um

155
GM/GM, II, § 4.
82

aspecto econômico, cujo funcionamento detinha-se no caráter de troca, o que permite deduzir
que o tema da culpa, em seus primórdios, surgiu de forma não natural, mas externamente,
como um processo de acordo, no qual um indivíduo se compromete a fornecer determinado
produto ou coisa a outro que, por sua vez, compromete-se em pagar por tal artigo. Tem-se,
portanto, a clara imagem de uma transação comercial como força motivadora para o
desenvolvimento daquilo que hoje se chama culpa, pois um descumprimento por parte de um
dos envolvidos acarretava prejuízos que deveriam ser cobrados, mesmo que fosse através do
corpo do indivíduo.
Interessante observar que Nietzsche, para compor uma possibilidade de explicação
para o surgimento da má-consciência, tenha se voltado para os primórdios das relações
comerciais, o que se mostra plausível, uma vez que tais trocas mostram-se como o início da
relação do homem com o outro no sentido não meramente familiar ou comunitário. Através
do comércio, seja de escambo, ou da troca monetária, tem-se o contato de um homem com
outro visando determinado resultado que seja benéfico para ambos. Contudo, sabe-se que as
relações humanas são marcadas por conflitos e disputas, corriqueiras em um dos sistemas
comerciais mais primitivos para o homem, a troca, já que esse sistema mostrou-se vital para o
florescimento de vilarejos, cidades etc. 156
Uma dívida não era, e ainda hoje não é, uma simples falta, mas um ato que gera, em
muitos casos, consequências extremas. A falta de compromisso, no pagamento de um
determinado produto, por exemplo, encerra em si toda uma relação que perpassa pelos
sistemas mais fundamentais da sociedade, como o trabalho, a organização social, o modo de
interação, o desenvolvimento de técnicas. 157 Nietzsche aborda tal aspecto sob o ângulo da
moral, uma vez que, na relação credor/devedor, foram estabelecidas, transversalmente a
humanização ao mais alto grau, as concepções de responsabilidade e negligência. O homem,
racional, mais “humanizado”, agora passa a ser responsabilizado pelos seus pensamentos e,
principalmente pelos seus atos. Ao seu critério está o cerne da ação, considerada boa ou má a
partir da moral social vigente, da sua concretude ou não. O devedor, portanto, é aquele que

156
O comércio efetivo, monetário e mercantilista, entre países diferentes, tem seu início por volta do século XVII
e amadurecimento no séc. XVIII, o que, dada a longa história da humanidade, é algo recente, demonstrando que
a argumentação de Nietzsche está voltada para os períodos mais basilares das interações comerciais, nos quais as
trocas internacionais já eram um fato concreto, mas não havia, nesse processo, a moeda ou o meio monetário,
apenas o escambo. É preciso salientar a importância desse aspecto no contexto histórico, pois a questão das
dívidas não se efetuava apenas em nível individual, mas também em geral, ou seja, entre tribos, comunidades,
países, o que gerava violentas guerras. Conflitos estes que marcaram, e marcam, de modo contundente, a visão
do homem sobre o mundo e as relações humanas.
157
O escambo encerra em si o excedente de produção, o que equivale a dizer que determinado grupo social, a
partir da sua forma de trabalho e organização social, produziu mais do que o necessário, cujo excedente era,
portanto, trocado por outros produtos ou materiais que lhes eram escassos ou inacessíveis.
83

empenha sua palavra, promete, acionando uma perspectiva futura de cumprimento de um


compromisso que não se efetiva no tempo estabelecido.

O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a


seriedade e a santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição
como dever e obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de
não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo,
158
sua mulher, sua vida [...].

A esse devedor, cuja promessa não cumprida deve ser cobrada, instaura-se a percepção
de justiça, ou seja, que seja cobrada a dívida, a falta, o delito, de alguma forma por aquele que
faltou com a sua palavra. Esse homem demarca uma quebra na estruturação social, pois a
dívida representa, mais do que um simples não pagar, um ato de negligência, de possibilidade
de se fugir às obrigações, de descumprimento de algo até então estabelecido como concreto: o
empenho da palavra, o acordo, o compromisso.
Negar o pagamento de uma dívida, por qualquer motivo, representa uma falta que, de
um modo significativo, ameaça as relações sociais. De uma forma ou de outra o conflito irá
existir (entre credor e devedor), mas tal desordem não pode ser incentivada, pois é perigosa
para a sociedade, para o Estado em potência, embrionário, é preciso a coerção, a marca do
conflito sobre os corpos dos indivíduos, mas sob um aspecto que seja minimamente
satisfatório para aqueles que, de uma forma ou de outra, se beneficiam com essa organização
social: é preciso submeter o animal-homem à “paz” e à “regularidade”. Os costumes sociais
não podem ser ameaçados por aspectos negativos, como a dívida, que ainda parece marcar
uma individualidade do homem, ou um aspecto instintivo, não civilizado, pois o homem
civilizado promete e cumpre com seus compromissos. Assim, segundo Patrick Wotling, a
civilização se impõe ao homem por intermédio da supressão dos instintos e afetos mais fortes:

Na tipologia hierarquizada das culturas, a Civilisation opõe-se, em contrapartida, ao


que Nietzsche chama de cultura em sentido estrito, isto é, às culturas superiores, às
culturas de alto valor: embora seja uma modalidade específica da organização
axiológica das comunidades humanas, é uma versão fraca dela, de menor valor,
caracterizada pelo sufocamento dos afetos e instintos poderosos – resultado da
valorização sistemática dos afetos deprimentes e, muito especialmente, da má
consciência associada às pulsões fortes. 159

A crueldade será a forma encontrada para inserir no homem ainda não domesticado,
esse animal não confiável, que não cumpre com o que estabelecido, a civilidade. Sem a
confiança não há sociedade, não ocorre a domesticação, o adestramento do homem. É preciso
“punir” para gravar no corpo, e, portanto, na memória do devedor, a “santidade da promessa”:

158
GM/GM, II, § 5.
159
WOTLING, 2011, p. 22.
84

Através da “punição” ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores;


experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar
alguém como “inferior” – ou então, no caso em que o poder de execução já passou
160
“autoridade”, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado.

No fragmento acima, Nietzsche expõe uma espécie de efeito colateral da punição:


aqueles que não são senhores, através do poder a eles concedido pela falta do devedor, irão
desfrutar de uma sensação que deveria ser concedida aos senhores: o maltratar, o desprezo ao
outro, postura esta que somente podia desfrutar o nobre, o que já indica, nesse ponto, uma
inversão dos valores, pois agora se tem indivíduos, que não são senhores, fruindo dos
privilégios destes. Enquanto inversão dos valores, a contaminação de uma vontade nobre por
uma moral ressentida e enferma, portanto, está também na base do sentimento de culpa e má
consciência.
Ao ser submetido à paz e aos costumes sociais através da crueldade, o homem teve
que reprimir instintos naturais, como o desejo de destruição, a crueldade, o que gerou
sentimentos inversos, uma vez que tais sentimentos, não se voltando para uma exterioridade,
voltaram-se para aqueles que os nutriam, adoecendo o homem, sua memória e seu corpo,
domesticando-o e tentando fazê-lo crer que tais aspectos que antes cultivava e eram-lhe
saudáveis agora são vistos como errados, pecaminosos e moralmente condenáveis. Assim
nasce o homem da má consciência, o indivíduo passivo, treinado, à base da violência, a dizer
“sim”, em um sentido negativo, a tudo o que lhe é imposto, conforme Nietzsche expõe em
GM II 22: “Quando aquela crueldade do animal homem foi reprimida e todo aquele ‘querer-
fazer-mal’ já não encontrava mais o ‘caminho natural’, tudo isso foi dirigido para o interior do
homem, dando origem à má consciência”. 161 Desse modo, sua ação transforma-se em reação,
torna-se o indivíduo da não agressão, do perdão diante da ofensa, tentativas de se crer um ser
civilizado, associando, dessa forma, inércia com elevação moral.

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o
que chamo interiorização do homem; é assim que no homem cresce o que depois se
denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que
comprimido entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se
protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses
bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e
errante se voltassem para trás, contra o próprio homem. 162

160
GM/GM, II, § 5.
161
PASCHOAL, 2011, p. 213.
162
GM/GM, II,§ 16.
85

Reprimida sua vontade, o homem da má consciência torna-se reativo, falta-lhe


potência. Sua existência é limitada a uma subsistência insípida, constituída não mais de vigor,
mas de subserviência, depondo suas decisões e sua própria vida em mãos alheias, Igreja,
Estado, Cultura, que de agora em diante nortearão sua existência indicando-lhe o que é
“certo” ou “errado”. Dor, corpo e memória criam laços que se mostram, no seu processo de
enraizamento cultural, quase insuperável, uma vez que, internalizados, refletem-se nos valores
adotados e defendidos pelo indivíduo. A dor da existência, da doença, da pobreza, dentre
outras, a partir de agora são justificadas como condições necessárias para se alcançar uma
vida além-mundo. Quanto maior o sofrimento e o sacrifício, mais digno do mundo edênico tal
homem se mostra, conforme o pensamento cristão. O sofrimento, seja em qual esfera for,
constitui-se como modo de doutrinação, de alienação, de cerceamento que visa inviabilizar a
saída do indivíduo desse mecanismo de aprisionamento instintivo, já que se encontra
impedido de fazer a descarga para o exterior de si. 163
O corpo, em todo esse processo, mostra-se de fundamental importância, uma vez que
ele é, mesmo que ignorado por muitos preceitos e concepções, o centro inquestionável de
possibilidade de aprisionamento ou liberdade do indivíduo, até então encarcerado, dentre
outros artifícios e visões, no dualismo alma/corpo, no qual a primeira concepção tem sido
mais valorizada, posto que dotada de imortalidade, única forma de se alcançar o mito cristão
de divindade. Nietzsche se coloca de maneira diversa em relação a essa questão, a ponto de
propor uma ruptura no dualismo corpo e alma, por meio da promulgação do corpo pensado
pelo viés da multiplicidade instintiva, e alma como algo que faz parte do todo corpóreo. Sobre
tal assunto, fala-nos o filósofo dando voz a Zaratustra:
Corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para algo no
corpo. O corpo é a grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra
e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena
razão que chamaste de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo
164
de tua grande razão.

Segundo Zaratustra, o essencial é o corpo, não existe fragmentação do corpo, não há


partes separadas, mas um grande todo que é o corpo. Dentro deste encontra-se toda a

163
Nesse sentido, a interiorização de certos impulsos agressivos pode acarretar consequências bastante danosas
ao homem, conforme enuncia Itaparica: “[...] vemos que a consciência moral surge da introjeção de impulsos
agressivos. Essa exteriorização é impedida em nome da preservação de um grupo já organizado, que estabelece
regras internas, punindo aqueles que não as respeitam, por se constituir como uma ameaça para a coesão e
perpetuação do grupo. Sob a pressão dessa forma primitiva de ‘Estado’, a violência que antes seria externada
contra o semelhante passa a ser internalizada, formando assim a consciência (Gewissen). Esta nasce, assim,
como uma violência contra o próprio indivíduo, já que sua exteriorização pode resultar em punição, por quebrar
as regras impostas pelo grupo, tendo ele de pagar com sofrimento o desvio de conduta”. (ITAPARICA, 2012, p.
17)
164
Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p.34-35.
86

multiplicidade dos homens, sua bondade e maldade, sua vontade de vida e de morte,
destruição e construção. A alma, tão privilegiada no campo religioso, é integrante do corpo,
este que o homem percebe, sente, intui, deseja, raciocina, calcula, sonha, desfazendo a
percepção cristã de um espírito, que deve ser purificado, para somente assim torna-se digno
das bênçãos divinas.
Contudo, em uma tentativa de reverter tais visões cristãs, é preciso conceber a vida do
homem, a sua efetividade no mundo a partir de aspectos não excludentes, mas que se integram
para moldar o homem na sua integridade, conforme aponta Giacóia Junior sobre o trabalho
genealógico de Nietzsche:
Nietzsche jamais deixou de considerar [...] que a gênese da linguagem, da
consciência e da sociedade são simultâneas e que esse complexo influi de modo
determinante em toda maneira de estruturar uma visão de mundo. Esta, por sua vez,
165
não somente organiza nossas mentes, mas também influencia nossos corpos.

O corpo, portanto, está interligado de modo indissociável a uma visão de mundo que
está para além de dualismos que visam desconfigurá-lo, reduzindo seu campo de significação
em prol da exaltação da alma. Negar o corpo é também negar o mundo no qual o homem
habita, ao resgatar um, está-se também trazendo o outro ao cerne do debate, antes marcado
pela visão de pureza, no plano do imaterial, e imperfeito, no aspecto material, físico, orgânico.
Um dos aspectos mais combatidos em relação ao corpo, conforme Barrenechea (2009,
p.71), foi o sentido de erotismo, uma vez que as práticas de reprodução foram situadas no
plano do pecado e da fraqueza. Jacques Gélis, sobre o assunto, argumenta:
Mas existe uma outra imagem do corpo, igualmente cheia de sentido, que é a
imagem do ser humano pecador. A Igreja da Contrarreforma reforçou a
desconfiança que o magistério já havia manifestado nos séculos medievais a respeito
do corpo, “esta abominável veste da alma”. Corpo depreciado do ser humano
pecador, pois se ouve incessantemente dizer que é pelo corpo que ele corre o risco
de perder-se. O pecado e o medo, o medo do corpo, principalmente o medo do corpo
da mulher, retornam como uma ladainha sob forma de precauções ou de
166
condenações.

O desejo do corpo e sobre o corpo foi desfigurado, tornado doentio, moralizado. O


cristianismo demarcou qualquer aspecto referente ao corpo de forma a estigmatizá-lo. A
celebração da vida, da concepção, do nascimento foi tornado pecaminoso. Adão, o primeiro
homem, segundo a concepção judaico cristã, amaldiçoado por ter ido contra os desígnios
divinos (a primeira punição no que se refere ao homem e que está atrelada essencialmente ao
ato da alimentação, a ingestão de comida, proibida, representada através da maçã).

165
GIACÓIA, 2001, p. 12-13.
166
GÉLIS, J. O corpo, a igreja e o sagrado. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.J.; VIGARELLO, G. (Orgs.).
História do corpo: da renascença às luzes. Tradução de Lúcia M. E. Orth. Rio de Janeiro: Vozes. 2012. p. 19.
87

Em contrapartida, a própria escritura sagrada, a bíblia cristã, descreve subsídios à


vigência do corpo, caso se empreenda uma leitura mais rigorosa e desatrelada das valorações
cristãs, pois o corpo está presente nas relações sexuais, na nudez de Adão e Eva, e inclusive,
na paixão de cristo (corpo ao qual se infringe a dor) e na concepção de que o Deus cristão
veio a terra através de um corpo e em/com o corpo ascendeu aos céus.
Para além das concepções cristãs, cujas construções argumentativas são evidentes e
visam, de modo contundente, inclinar a visão do homem para uma desavalorização do corpo,
Nietzsche afirma, na seção 18 de GM/GM que, apesar de todo caráter de enfermidade da má
consciência, esta ainda é “a mesma força ativa”, uma forma negativa de vontade de poder,
mas que, ao contrário de encontrar uma forma de exteriorização, volta-se para o interior do
próprio homem, mas “em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás”. 167
Na seção 19, Nietzsche reafirma, de forma enfática, o caráter doentio da má
consciência, como um tipo singular de doença, pois, tal como a gravidez, ela gera outras
consequências que atingem patamares terríveis, como a negação pelo viés cristão de uma vida
natural sob a imagem de um Deus que não se encontra no plano do natural, algo que expõe
nas seções 20, 21 e 23. A má-consciência não se situa mais no mero plano entre credor e
devedor, mas abarca a ambos, uma vez que o homem tornou-se, pelo viés cristão, devedor de
Deus, a mais terrível dívida: “esse homem da má consciência se apoderou da suposição
religiosa para levar seu auto martírio à mais horrenda culminância. Uma dívida para com
Deus”. 168
O cristão, segundo os preceitos religiosos, é aquele que já nasce em dívida para com o
seu Criador. O batismo tem a função de purificar do recém-nascido a concepção do pecado
original cometido por Adão e Eva, mas o sentimento de culpa, de débito para com Deus
permanecem, pois o sentimento de responsabilidade do indivíduo tende apenas a crescer e a se
enraizar no pensamento desse novo escravo, pois, conforme argumenta o filósofo alemão, o
devedor projeta o seu “não” à vida e a si mesmo, como um “sim” através da figura de Deus,
este visto “como tormento sem fim, como Inferno, como incomensurabilidade do castigo e da
culpa”. 169
Diante de imagem estruturada de Deus, o homem, adoecido pela má consciência,
agride-se, volta-se contra si mesmo, em um sentimento de ressentimento que se transveste de
piedade, abnegação, sacrifício, renúncia, moldando-lhe a forma de se representar a si e o

167
GM/GM, II, § 18.
168
GM/GM, II, § 22.
169
GM/GM, II, § 22.
88

mundo, bem como a sua interação com este: “Ora, a maneira de ‘ser’ e de ‘falar’ que
caracteriza o homem moralmente determinado não surge do nada e tampouco é obra do
divino”. 170
Abordar os efeitos nocivos do cristianismo sobre o indivíduo implica, necessariamente
em abordar a questão do ressentimento, uma vez que é deste solo de culpa e má consciência
que nasce o cristianismo: “O espírito do ódio do qual brota o cristianismo é o ressentimento
[...]”. 171 Através do cristianismo e da atuação do sacerdote, a vida e tudo aquilo que lhe é
natural, se volta contra si, se opõe a ela mesma, negando-se, para que, dessa forma, ceda lugar
a uma nova vida, a ascética, com sua abnegação da vida e a desconfiguração dos seus
caracteres mais primordiais. Auto flagelamento, mortificação, resignação, sacrifício, em nome
do outro, de Deus, de leis que exigem o abandono da vida, do corpo agora marcado pelo
caráter hipocondríaco. A doença da alma revela-se uma doença do corpo, nesse sentido,
aponta Moura: “É a moral judaico-cristã que diz não a todo movimento ascendente de vida, ao
poder e à afirmação de si. E agora o instinto de ressentimento inventa outro mundo, um
mundo a partir do qual a afirmação da vida apareceria como um mal, como algo reprovável”.
172

O sacerdote atua no sentido de nunca cessar o ataque ao natural e passional. A


natureza será interpretada como imperfeita, distante do divino, acusação esta que alcançará o
corpo, o fisiológico, o psicológico, aprisionando o ressentido não apenas em um aspecto de
sua vida, mas em sua totalidade, principalmente no caráter social, como afirma Paschoal sobre
a nova interpretação que Nietzsche confere ao termo “ressentimento”: “Além de considerar o
ressentimento como um fenômeno fisiopsicológico, já de modo peculiar, Nietzsche amplia o
significado usual do termo, ligando-o também a uma análise sobre o direito, a moral, enfim, a
uma análise social”. 173
Com base no que foi exposto, pode-se dizer que o ressentido, conforme Nietzsche, é o
indivíduo marcado pelo sentimento de culpa, ódio e desejo de vingança, desejo este que nunca
se realiza, pois é-lhe vedada tal ação, o que intensifica o ressentimento em relação ao outro,
ou seja, qualquer um que possa agir guiado por sua própria vontade. Nesse aspecto, o homem
ressentido posiciona-se no local daquele que se vê como o oprimido, martirizado, perseguido,
ou seja, como já foi dito, esse é o homem da má digestão, que não consegue assimilar os

170
BARROS, F. de M. A maldição transvalorada: o problema da civilização em O Anticristo de Nietzsche. São
Paulo: Editora Unijuí, 2002. p. 26.
171
MOURA, C.A.R. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 133.
172
MOURA, op. cit., 134-135.
173
PASCHOAL, E. As formas de ressentimento na filosofia de Nietzsche. PHILÓSOPHOS 13 (1): 11-33,
jan./jun. 2008. p. 12.
89

afetos que lhes são direcionados. Ofendido, acusado, maltratado, tal homem interioriza tais
eventos negativos por incapacidade de uma regular digestão e, consequentemente, expurgação
dos afetos negativos para o orgânico.
Esse homem que, sob certo aspecto, diminui-se diante do ressentimento, anulando-se
nos seus aspectos mais humanos, é considerado por Nietzsche como um ser doente, mas
portador de uma doença particular, que afeta sua fisiologia, seus instintos e o impede de viver
o seu presente, uma vez que se encontra fixado em algum lugar no passado, preso a algum
acontecimento que lhe feriu profundamente.
Mas com esse homem da má consciência e do ressentimento ocorre fenômeno
interessante: o ressentimento, impossibilitado de ser combatido pelo indivíduo enfermo, atua
sempre no sentido de buscar causar mais sofrimento ao seu hospedeiro, transformando outros
acontecimentos em motivos para rancor, crueldade e revigoramento do sentimento,
apresentando-se, sob esse viés, como uma ferida que nunca cicatriza. Nesse ciclo de
adoecimento, está presente a própria vontade, uma vez que esta se encontra também enferma
e, por sua vez, necessita sempre mais de sofrimento, angústia e rancor. Para tanto, em cada
novo caso, cada nova ação, vislumbrará em tais acontecimentos novo interesse, a ser
interpretado sob o olhar da má-consciência.
Conforme o apresentado pode-se dizer que o ressentido é aquele que, além de não
superar determinado fato doloroso, acrescenta outros mais, em um processo continuo e que
visa propagar a enfermidade do indivíduo ressentido. Paschoal resume a questão a seguir:

O termo “ressentimento” corresponde, assim, já no interior da filosofia de Nietzsche,


a um problema fisiológico, de um organismo sem forças para reagir frente às
intempéries da vida e que também não consegue digerir os sentimentos ruins, aquele
veneno produzido por sua não reação, passando a apresentar uma desordem
psíquica que o impede de viver efetivamente o presente. Nesse organismo, a
percepção da própria fraqueza e o sentimento de frustração que se segue à obstrução
da ação gera um rancor, uma vontade de ferir e produzir sofrimento naquele que o
174
detratou.

Logo, o ressentimento é a expressão máxima de adoecimento corpóreo, pois o homem


acometido por tal problema fisiológico, conforme enunciou Paschoal acima, torna-se
apequenado e incapaz de agir, criar. Perfaz-se enquanto prisioneiro dos próprios sentimentos
negativos que cultiva, uma vez que se torna inapto à prática da digestão dos afetos, tão
necessária ao bom funcionamento orgânico.
Entretanto, Nietzsche aponta uma alternativa à má-consciência, uma possibilidade de
regeneração, e com ela o esfacelamento do ressentimento. Nas seções 24 e 25 de GM/GM, o

174
PASCHOAL, 2008, p. 14.
90

filósofo afirma: “Uma tentativa inversa é em si possível – mas quem é forte o bastante para
isso?”. 175 A proposta de Nietzsche é bastante complexa: retirar da má consciência o remédio
para a mesma: “As propensões inaturais, todas essas aspirações ao Além, ao que é contrário
aos sentidos, aos instintos, à natureza, ao animal, em suma, os ideais até agora vigentes, todos
os ideais hostis à vida, difamadores do mundo, devem ser irmanados à má consciência”. 176
Assim, a má consciência deve ser colocada no mesmo patamar que os aspectos enumerados
pelo filósofo, de forma que o homem consiga identificar os danos decorrentes de tal postura.
Lembra-se aqui que os aspectos citados por Nietzsche, todos aqueles contrários à vida,
estão presentes na má-consciência, dentre eles, a representação de Deus e a concepção de que
haveria uma impagável dívida do homem para com aquele.
Inicialmente parece quase incompreensível tal projeto nietzschiano, há nele uma
fundamentação que se revigora na mudança natural dos conceitos culturais que, em um
processo apropriado e já presenciado na história humana, apresentaria uma inversão dos
valores que hoje se mostram nocivos ao homem em algo mais salutar no futuro.
Uma forma de resolver a dificuldade envolveria em reconhecer os sentidos
diferentes de “má consciência” que operam na análise de Nietzsche. Já fomos
preparados para essa possibilidade nas Seções 12 e 13, em que Nietzsche insistiu
sobre a natureza histórica dos conceitos culturais, cujo significado é fluido e
suscetível a mudanças inesperadas. Dessa maneira, a má consciência terapêutica
sugerida por ele não seria idêntica à má consciência que é alvo do resto da
177
Genealogia.

Contudo, esse processo apontado por Nietzsche não é uma realidade factível no
presente, pois concerne ao futuro, uma vez que a atualidade pertence aos ressentidos, aos
ascéticos, aos “homens santos”. Somente no amanhã surgirão espíritos robustos: “fortalecidos
por guerras e vitórias, para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo uma
necessidade...” 178. Esse espírito, detentor da “grande saúde” e de corpo sadio, negador do
transcendente, nasceria, conforme o filósofo alemão, do niilismo, para suprimi-lo.

2.4. Modernidade e Niilismo

A modernidade, no Ocidente, é o produto acabado de um processo desvirtuador da


vida, de apequenamento das forças ativas, desvaloração da vontade e adoecimento do homem
que, por sua vez, foi forçado, através do sentimento de culpa, ao assimilar a transcendência (o

175
GM/GM, II, § 24.
176
GM/GM, II, § 24.
177
HATAB, L. J. Genealogia da Moral de Nietzsche: uma introdução. Trad.Nancy Juozapavicius. São Paulo:
Madras. 2010. p. 118-119.
178
GM/GM, II, § 24.
91

mundo chamado ideal) em detrimento da imanência (mundo concreto). Como confiar em tal
homem que nega a si em nome de uma razão, dominando-lhe a vida?
É a este homem, marcado por grandes eventos históricos, como a Revolução
Industrial, que Nietzsche volta seu ataque. A Modernidade caracteriza-se por grandes
fenômenos sociais que reconfiguraram a forma de ver da sociedade, sua relação social, o
plano cultural, econômico etc. Os conflitos no campo do trabalho configuram-se por dois
aspectos distintos, patrões e empregados e os seus interesses opostos. As ciências e avanços
tecnológicos marcaram, de forma irreversível, as relações humanas. 179 Tais aspectos,
aparentemente benéficos para esse homem moderno, de fato colocou-o em profunda angústia,
uma vez que temos uma sociedade cujo pensamento baseia-se nas evidências científicas e, em
igual patamar, nas crenças em um além-mundo, em uma vida pós terrena que se projeta para o
campo das idealizações. A ciência questiona e esfacela mitos judaico cristãos que, entretanto,
subsistem mediante o medo, a inserção de valores através da violência, dor e intolerância no
passado, mas que, no presente, configuram-se como “naturais”.
O resultado desse complexo conflito gerou diversos efeitos colaterais, por assim dizer,
e dentre estes se ressalta o niilismo180, fenômeno social predominante na sociedade moderna,
mas cuja origem remonta aos gregos, como expõe Nietzsche 181 , ou seja, desde Sócrates,
quando este, através da concepção de uma vida cuja moral baseia-se no bom, no belo e no
verdadeiro, marca de forma negativa a existência do homem e sua concepção de mundo que,
além de se voltar para um aspecto subjetivo e imaterial, consagrava a razão como cerne do
homem, como visto anteriormente.

179
Especificamente a forma de se ver a vida e os constituintes do mundo, observando-se agora desde galáxias até
as mais reduzidas formas de vida na terra.
180
Niilismo é um fenômeno da modernidade entrevisto por Nietzsche em todas as esferas de valor e poder
concernentes à vida social, desde as religiosas e estéticas, até as políticas e científicas. Refere-se a ausência de
sentido e valor das coisas que pode expressar, na perspectiva de Nietzsche, tanto esvaziamento e aniquilação dos
valores vigentes, quanto estágio necessário à possibilidade de crescimento e criação de novos valores: “Ele pode
ser um sinal de vigor: a força do espírito pode ter crescido tanto que as metas até hoje existentes (“convicções”,
artigos de fé) são-lhe inadequadas...” (Nachlass/FP, 9 (35), p. 54). Por outro âmbito, especialmente na
modernidade, onde os valores morais cristãos já se encontram esvaziados de significação e sentido,
especialmente se pensarmos no niilismo em contexto europeu, teremos o homem da modernidade destituído de
seus “artigos de fé’, o que acarreta um profundo vazio, conforme expõe Clademir Araldi, acerca dos aforismos
escritos por Nietzsche na cidade de Lenzerheide, constituintes do excerto intitulado “O niilismo europeu”: “O
homem moderno, por sua vez, não tem mais necessidade de artigos de fé extremos, como “Deus” e o valor
absoluto do homem (cf. § 3). O cultivo da ciência e o esclarecimento afastam o perigo que o niilismo trouxe em
sua primeira eclosão. [...] A posição extrema da fé no Deus moral reverte-se no outro extremo, na crença na
“absoluta imoralidade da natureza”. O solitário de Lenzerheide conclui o § 4 com a descrição do afeto
predominante no seu século: o sentimento do vazio, do “em vão”, depois que sucumbiu aquela que se julgava ser
a única interpretação válida do mundo.” (ARALDI, C. Os extremos do niilismo europeu. Estudos Nietzsche,
Curitiba, v. 3, n. 2, p. 169-182, jul./dez. 2012. p. 174).
181
GD/CI, II, §2.
92

Sócrates situa a vida, conforme Nietzsche, no plano da doença, sendo que a cura
encontrar-se-ia apenas na morte, passando-se, dessa forma, de uma existência terrível para
outra diversa, mais feliz. Configura-se, através dos pensamentos de Sócrates, o embrião da
vida ascética, que se desenvolverá no decorrer da história até resultar no que hoje o homem
conhece como paraíso, alma, inferno, Deus, não sem significativos prejuízos ao homem.
O ideal ascético tem marcado a existência dos homens de forma anômala, pois a partir
da ideia de uma vida que se estrutura de forma perfeita e harmoniosa, além de perpétua e boa,
em detrimento da vida terrena, imperfeita, marcada por infortúnios e incertezas, o homem
deixa de lado a sua compreensão da realidade para se lançar em expectativas que, em um
processo puramente sedutor, concedem conforto e esperança, ainda que inconsistentes, ao
homem que se vê perdido no mundo, sem saber de onde veio e nem que caminho seguir.
O sofrimento é explicado como uma espécie de necessidade, de purificação da alma.
Quanto maior a dor, humilhação, pobreza, mais digno se torna o indivíduo penitente. Institui-
se, a partir de Sócrates, uma “verdade”, que no decorrer do tempo, pela violência e costume,
tornou-se inquestionável, não por sua absoluta fundamentação, mas pelo medo, receio do
pecado, do castigo, da perdição da alma imortal, do inferno sulfúreo, apropriações estas feitas
pelo cristianismo.
Mas, é interessante notar que, ao se erigir um Deus como resposta para tudo, o homem
também, em movimento simultâneo, marca a destruição deste ídolo, pois ao abrir mão do
governo de si mesmo, resulta em ilusória verdade, que na modernidade alcança o ápice do
desconforto, pois, com os avanços tecnológicos, a concepção de dois mil anos atrás não tem
forças para se sustentar diante das evidências. Posto isso, o último homem, o homem moderno
é o do tempo da morte de Deus. Desse modo, Nietzsche enfatiza:

Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é meu “mau olhar” para este
mundo, é também meu “mau ouvido”... Fazer perguntas com o martelo e talvez
ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas – que
deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos – para mim, velho
psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se.
182

Mas a destruição dos ídolos, conforme demonstrou o filósofo alemão, precisa de


maturação, desvendamento, retorno a si, ações estas que demandam tempo e considerável
esforço. Mas certamente o primeiro estágio desse processo é o niilismo, que, por sua vez, é o
resultado natural de um esforço metafísico de supressão dos valores aristocráticos através do
nivelamento do homem na modernidade. Reprimir não é suprimir, logo, tal força, dada a

182
GD/CI, P, p. 7-8.
93

situação propícia, tenderia a efetuar o que Barrenechea denominou de contramovimento, uma


vez que: “As sociedades modernas com sua tendência a nivelar a todos os cidadãos, a reduzir
esses homens a sua mínima expressão, a aplainar todas as diferenças e minar suas forças,
gerará, aos poucos, um contramovimento”. 183
Desde a concepção socrática de mundo que o homem tem sofrido uma constante
desvalorização de si, do seu corpo, dos seus instintos, pulsões, que no decorrer do tempo não
arrefeceram, ao contrário, tornaram-se cada vez mais sofisticadas, mais impositivas e
destrutivas. Contramovimento, portanto, conforme expõe Barrenechea cima, seria restabelecer
as forças, afirmar o corpo, a vontade, a vida.
O resultado natural de tudo que é represado, cujo fluxo não cessa, mas que se
intensifica, é que, um dia, faça ruir as barreiras de contenção. Foi o que aconteceu nesse
limiar entre homem e niilismo, aqui representado como a força aplicada na derrubada dos
muros morais de contenção das forças vitais, uma vez que o fenômeno do niilismo também
possui um aspecto positivo.
Definir o que vem a ser o niilismo não é uma tarefa fácil, porquanto, do seu termo
original em latim, ou seja, nihil, que significada nada, muito agregou-se a tal terminologia.
Para alguns, o termo significa a dissolução dos valores ditos absolutos e conceitos mais
tradicionais, a inserção do homem em um terreno desértico no qual toda crença é subtraída,
seja ela de qual natureza for, ou seja, cultural, moral, política etc. Para Franco Volpi (1999),
por exemplo, Nietzsche desponta como o primeiro grande teórico a abordar o tema do
niilismo. A Schopenhauer, mestre e antípoda de Nietzsche, foi creditado uma espécie de
niilismo embrionário no sentido de questionamento existencial, devido o caráter pessimista de
sua obra O mundo como vontade e como representação. Heidegger apresenta a sua
compreensão sobre o que vem a ser esse “nada” na obra Nietzsche II. 184
Nietzsche, em seus fragmentos póstumos, explicita o tema do niilismo, o qual permeia
muitas páginas de seus escritos, o que demonstra que o filósofo demandou muita importância

183
BARRENECHEA, 2014, p. 96.
184
A seguir, a interpretação que Heidegger empreende acerca do que Nietzsche expõe sobre niilismo: “Niilismo
é aquele processo histórico por meio do qual o domínio do “supra-sensível” se torna nulo e caduco, de tal modo
que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido. Niilismo é a história do próprio ente: uma história por
meio da qual a morte do Deus cristão vem à tona de maneira lenta, mas irremediável. Pode ser que ainda se
acredite nesse Deus e que ainda tomemos seu mundo por “real”, “eficaz” e “normativo”. Isso é similar àquele
processo por meio do qual o brilho de uma estrela que se apagou há milênios continua reluzindo, mas
permanece, contudo, uma mera “aparência” com essa refulgência. Com isso, o niilismo não é, para Nietzsche, de
maneira alguma um ponto de vista “defendido” por uma pessoa qualquer, nem tampouco um “dado” histórico
arbitrário entre muitos outros, que se pode documentar historiograficamente. O niilismo é muito mais aquele
acontecimento apropriativo de longa duração, no qual a verdade sobre o ente na totalidade é transformada
essencialmente e é impelida para um fim por ela determinado” (HEIDEGGER, 2007, p. 23).
94

a tal assunto. E não poderia ser diferente, pois o niilismo assinala o florescer de uma nova
perspectiva que também resulta em um morrer, morte esta que se observa através do vazio
existencial, à completa falta de respostas: “Nihilismo: falta a meta; falta a resposta ao “por
quê?”; o que significa o niilismo? – que os valores supremos se desvalorizam.” 185 O niilismo
demarca a impossibilidade de resposta aos questionamentos mais basilares do homem. Nem a
razão possuiu força suficiente para amenizar a angústia do homem diante dos abismos
existenciais abertos em seu interior.
Assim, desde a ruptura, a invenção da alma como contraponto do corpo, que é
reafirmada pela lógica de Descartes, pensamento este que marca a filosofia moderna de modo
significativo, delimitada não mais pela distinção entre corpo e alma, mas entre sujeito e
objeto, que, em seu cerne, possui igual representatividade, uma vez que tanto Sócrates e
Platão186 quanto Descartes anunciam a alma como independente do corpo, com clara ênfase
na primeira, como fonte primária de atenção, uma vez que a alma se encontraria mais próxima
do plano sobrenatural, ou de Deus, em oposição ao corpo, apegado à terra. Para este plano do
metafísico tenderiam todas as expectativas humanas, sendo que, com o advento do niilismo,
encontram-se em descrédito, desvalorizam-se, uma vez que a “verdade” não é mais factível,
dando lugar agora à perspectiva, segundo a interpretação nietzschiana.
Nietzsche, por sua vez, elabora uma argumentação sólida sobre a insustentabilidade de
distinção entre corpo e alma. Em Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, Nietzsche apresenta o
corpo como a grande razão, em contraposição ao “eu”, a “pequena razão” 187. Nietzsche não
quer inverter os polos de poder, ou seja, ele não deseja que o corpo se sobreponha à alma, pois
assim procedendo ele ainda vislumbraria a dualidade entre esses dois elementos. O que
Nietzsche pretende é exatamente extinguir essa distinção, por compreender alma e corpo em
um só organismo, uma vez que o corpo, conforme raciocina Nietzsche, não é meramente um
conjunto de tecidos e órgãos, destituídos de qualquer possibilidade de interação com o
racional, ao contrário, todos esses aspectos, a saber: órgãos, tecidos, sensibilidade, razão,
fazem parte do corpo como um todo, pois o homem só pode falar de si a partir do seu próprio
corpo, caracterizado por seus instintos e impulsos.

185
Nachliass/FP, 9 (35).
186
“Enquanto tivermos corpo e nossa alma tiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de
nossos desejos, isto é, a verdade. Por que o corpo nos oferece mil obstáculos pela necessidade que temos de
sustentá-lo, e as enfermidades perturbam nossas investigações. Em primeiro lugar nos enche de amores, de
desejos, de receios, de mil ilusões e de toda classe de tolices, de modo que nada é mais certo do que aquilo que
se diz correntemente: que o corpo nunca nos conduz a algum pensamento sensato” (PLATÃO, 2004, p. 128).
187
“Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, um pequeno
instrumento e brinquedo de tua grande razão” (Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, p.35).
95

A modernidade não marcou esse corpo somente através dos aspectos religiosos e
negação dos instintos, mas também de outras formas, como o ideal de beleza instituído, ou a
concepção de um corpo dito perfeito, moldado conforme padrões que são estipulados como os
desejáveis. A moda, a estética tem ainda conferido ao corpo um papel acessório na sociedade,
nunca como algo central, mas apenas de representatividade de conceitos que se voltam para a
manutenção de valores que permanecem conferindo ao corpo uma posição secundária no
cerne do pensamento humano. Antes, percebido através dos valores guerreiros e saudáveis, o
corpo agora se transformou em um receptáculo de preceitos e idealizações que se
fundamentam em um niilismo que situa o homem e sua corporeidade em um plano de
nulidade, posto que o corpo seja desprezado na sua efetividade e potencialidade, voltando-se
agora, como se vê nos esportes por exemplo, para a sua utilização como meio de
enriquecimento. Os valores ditos aceitáveis, de riqueza, de beleza, marcam o corpo de forma
negativa na modernidade.
O corpo detém papel significativo no que se refere ao niilismo, pois é através daquele
que Nietzsche irá contestar os conceitos fundamentadores da filosofia platônica, ou seja, o
rompimento com a concepção tradicional metafísica, que resultará por sua vez em uma crítica
aos valores da modernidade.
Heidegger apresenta uma conceituação de niilismo que se aproxima em alguns
aspectos da compreensão que Nietzsche traça acerca de tal fenômeno, uma vez que para o
segundo, a questão do niilismo está intrinsecamente associada ao caráter histórico, posto que a
sociedade moderna esteja marcada, como abordado anteriormente, por uma concepção
metafísica que se interliga com a imagem de um ser sem início ou fim que a tudo criou,
conforme a mítica judaico cristã.
O enunciado de Nietzsche sobre a morte de Deus marca, de forma irreversível, o
diagnóstico de um sintoma social que há muito manifestava suas características, mas pouco se
falava de modo mais contundente, ou seja, que o homem assinalou a morte da divindade
através de diversos pressupostos. Sobre o assunto, cita-se Heidegger:

Nietzsche utiliza o termo niilismo para designar o movimento histórico que ele
reconheceu pela primeira vez, esse movimento já dominante nos séculos precedentes
e que determinaria os séculos seguintes, cuja interpretação mais essencial se resume
na breve frase: Deus está morto. Isto quer dizer: Deus cristão perdeu seu poder sobre
o ente e sobre o destino do homem. A figura do Deus cristão seria, nesse contexto, a
representação principal para referir-se ao supra-sensível em geral e às suas diferentes
interpretações, os ideais e normas, os princípios e regras, os fins e valores que foram
constituídos (elegidos) sobre o ente para dar-lhe em sua totalidade uma finalidade, e
188
uma ordem, em resumo, um sentido.

188
HEIDEGGER, 2007, p. 34.
96

A morte de Deus assinala a dissociação entre homem e valores transcendentes que até
então pareciam fazer sentido, os quais, todavia, postos sob um julgamento mais crítico, não se
mostraram satisfatórios. E o que seria o homem da modernidade a não ser o tipo que agora se
questiona tendo por suporte a ciência, que desvela “milagres” e põe em suspensão certezas
que, em um efeito interessante, angustiam o homem, este que percebe a ilusão que se
apresentava diante de si, apesar de que os moldes de venda que usa na atualidade não sejam
mais divinas, e sim técnicas.
Essa percepção do conceito de niilismo, Nietzsche teve-a, conforme explicita Müller-
189
Lauter (2009, p.121-122), quando em contato com romancistas como Turguêniev e
Dostoiévski. 190 No caso dos dois romancistas, o segundo é o que mais merece atenção no que
se refere ao pensamento de Nietzsche, uma vez que o filósofo alemão, por diversas vezes,
creditou a Dostoiévski o título de único psicólogo com o qual teve algo a aprender 191, o que,
no que se refere a Nietzsche, não é fato a ser desprezado, uma vez que o filósofo enfatizou em
seus livros a importância da psicologia, mas não a chamada psicologia comum, mas outra,
mais peculiar. 192
Salienta-se, portanto, não apenas a admiração que o filósofo tinha pela escrita do
escritor russo, como também a possibilidade de ter sido influenciado pelas ideias presentes em
seus textos literários. Em Os irmãos Karamazov, a saber, institui-se, a famosa concepção de
193
que, se Deus está morto, ao homem tudo é permitido. Nietzsche, declarado leitor de

189
Ivan Sergueievitch Turguêniev (9 de novembro de 1818 – 3 de setembro 1883). Autor de Pais e filhos,
romance considerado o difusor do termo niilismo.
190
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (11 de Novembro de 1821 - 9 de Fevereiro de 1881). Escreveu diversas
obras consagradas mundialmente, nas quais são retratadas questões existenciais, políticas, filosóficas,
psicológicas e morais, como Crime e castigo e Os irmãos Karamazov.
191
Reproduzo a passagem onde Nietzsche apresenta sua feliz descoberta: “Dostoiévski, o único psicólogo, diga-
se de passagem, com o qual tive algo a aprender: ele está entre os mais belos golpes de sorte de minha vida, mais
até do que a descoberta de Stendhal”. (GD/CI, IX, § 45). Em carta escrita a Peter Gast, Nietzsche compara a
descoberta de Dostoiévski a de Stendhal: “Conhece Dostoiévski? Exceto por Stendhal, nada havia me causado
tanto prazer e surpresa: um psicólogo, com o qual me entendo”. Assim, com vistas a identificar o aspecto
psicológico existente na obra de Dostoiévski, entrevisto por Nietzsche, cito Os irmãos Karamázov, datada de
1879, na qual se tem a apresentação de um conflito familiar que resulta em um parricídio. A questão torna-se
mais complexa com os motivos que conduzem a tal desfecho: o caráter niilista dos articuladores do assassinato.
Ivan Karamázov, o protótipo do homem moderno, influencia seu irmão bastardo Svidrigáilov através de
elucubrações que especulam sobre a autonomia do homem perante suas ações, já que não há Deus para
estabelecer um controle sobre os indivíduos.
192
Nietzsche a definiria como “psicologia das profundezas”.
193
Cito trecho de Os irmãos Karamazov: “Não mais que uns cinco dias atrás, debatendo numa reunião social
aqui na cidade, em que predominavam senhoras, ele (Ivan Fiódorovitch Karamazov) declarou em tom solene que
em toda a face da Terra não existe terminantemente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes,
que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje
existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão só ao fato de que os homens acreditavam na
própria imortalidade. Ivan Fiódorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural,
de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor
97

Dostoiévski, entreviu a morte de Deus como algo diverso do que foi observado pelo escritor
eslavo, pois para este tal fato incorria em acentuado perigo para a sociedade e seus valores.
Para o filósofo da Basiléia, a morte de Deus marca de forma contundente a
mentalidade do homem moderno, que, tal como Ivan Karamázov, agora é posto em um
turbilhão de novas teorias que se confrontam diretamente com a fé e a crença metafísica. Mas
é preciso observar que tal luta iniciou-se nos primórdios da história humana, conforme
ilustrou Nietzsche em GM/GM, ao inverterem-se os valores até então dispostos, a saber, a
moral do senhor e a do escravo. Subvertendo-se essa ordem, ou seja, reinterpretando a moral
escrava, moral esta da fraqueza e do ressentimento, como boa, em detrimento da aristocrática,
triunfou, desse modo, a visão do homem debilitado, doentio, que se volta para um deus
cristão, que marca a destruição do homem ao se projetar para um campo vazio. Nesse sentido,
corrobora Araldi:

O deus cristão nada mais seria do que o nada divinizado; o “triunfo” da inversão de
valores da moral cristã acabada em destruição. [...] O cristianismo e sua moral, que
antes triunfou dos fortes, fatalmente sucumbe: nem o forte, nem o fraco poderão
194
impedir a marcha decadente-niilista da humanidade.

O projeto nietzschiano é reverter tal situação, em um sentido de recuperar a vida


arrastada a planos vazios, nos quais se acredita em elementos destituídos de consistência e
efetividade. É preciso repensar novamente o homem, esquecido em nome de uma projeção
transcendente de mundo idealizado. A crítica à razão, portanto, faz-se necessária, uma vez
que, desde Sócrates, ela tem situado na existência humana como diretriz. Porém, deve-se
ressaltar que a crítica nietzschiana não estabelece a negação de todo e qualquer valor
estabelecido no campo da vida, e sim apenas aqueles que ele considera antinaturais. Em
WL/VM, Nietzsche expõe os fundamentos do seu projeto ainda incipiente à época, o qual,
entretanto, demonstra de maneira efetiva, o percurso que o filósofo viria a traçar:

A minha missão consiste em preparar para a humanidade um momento supremo de


retorno à consciência de si mesma, um grande meio-dia com o qual a mesma possa
olhar para trás, bem longe de si, situado – pela primeira vez – o problema do “por
quê?” e do “com que fim?”. Este escopo é uma consequência necessária da
convicção de que a humanidade não caminha por si mesma, em linha reta, não é
realmente governada pela providência divina, mas, ao contrário, debaixo de seus

como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais moral,
tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo
particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da
natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando
até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a
mais racional e quase a mais nobre para a situação.” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.108-109)
194
ARALDI, C. Niilismo, criação e aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso
Editorial: Ijuí, RS: Editora UNIJUÌ, 2004. p. 26.
98

mais sagrados conceitos de valor se ocultou, imperando o instinto da negação, o


195
instinto da corrupção, o instinto de decadência.

Decadência esta associada a uma degenerescência do homem. O niilismo apresenta-se


como uma vontade, contudo uma vontade do nada, que não visa à ascensão do homem, mas o
impulsiona em um sentido descendente, ao subterrâneo. 196 O caráter criador do homem
moderno está presente no niilismo, mas em uma acepção totalmente diversa da desejável por
Nietzsche, uma vez que os valores alicerçantes voltam-se a um vazio aniquilante, o qual é
utilizado para uma concepção fundante do mundo.
Será na modernidade que tal processo, esse hóspede sinistro, irá encontrar sua forma
mais desenvolvida e que, por esse motivo, será o período de maior contraste, de extenso
questionamento, uma vez que, radicalizado na sua efetividade no mundo, coloca-se em
suspensão aspectos culturais, religiosos, morais, políticos:
A modernidade é, para o filósofo alemão, o momento decisivo desse transcurso ou
processo, visto que na mesma o niilismo se radicaliza e apresenta suas formas mais
acabadas. Assim sendo, a modernidade é por ele compreendida como uma época de
crise e de questionamento do sentido da existência, do mundo e da interpretação
197
moral de ambos.

As certezas que o homem acreditava ter sobre si e sobre o futuro, baseado em


conjecturas ideológicas cristãs, não conseguem mais dar conta da visão de mundo que se
instaurou. O vazio da existência, portanto, não se efetua em um sentido de ausência de tudo,
mas em uma perda de referência que a humanidade acreditava possuir. Não é sem motivo que
pessimismo, melancolia, associam-se ao niilismo, posto que, como se vê, a angústia do
homem é marcada pela terrível consciência de que aquilo em que acreditava, concretamente,
nunca existiu. O sentimento de desamparo e abandono são quase indissociáveis, em
determinados aspectos, do niilismo, pois a crise do homem não é somente a sua confrontação
com o vazio, mas de como posicionar-se diante dele, como viver sabendo que está só no
mundo e que, desde sempre só havia a si mesmo com quem contar.
Denota-se, assim, que muitos homens, em confronto com o nada evidente, reagem de
modo negativo, renegam os fatos, voltam-se para outros deuses, como a ciência, que ocupa no
pensamento de muitos indivíduos, o vazio deixado pela morte de Deus. Mas o erigir de uma
nova divindade, mesmo que supostamente mais plausível, não é o indicado, posto que, agindo
dessa forma, o homem continue depositando em mãos alheias os rumos de sua própria vida.
195
WL/VM, Prólogo.
196
“O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande
nojo ao homem; é também a grande compaixão pelo homem. supondo que esses dois um dia se casassem,
inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua vontade do nada, o
niilismo”. (GM/GM, III, §14)
197
ARALDI, 2004, p. 63.
99

Diante do niilismo o homem percebe a sua ingenuidade, constata que o seu pensamento ainda
se encontra em um estágio embrionário.
Posto isso, Araldi (2004) afirma que o filósofo alemão concebe a modernidade em um
plano de declínio e desordenação dos instintos e impulsos mais vitais. O homem moderno é o
tipo debilitado, que não consegue mais digerir satisfatoriamente os chamados estímulos
externos, que se sobrecarregam, excessivos. No mesmo movimento em que concepções são
destruídas, ideais desfeitos, crenças tornadas sem fundamentos, o homem, em sentido
contrário, questiona-se sobre quem é de fato, para que existe nesse mundo, o que deve fazer e
como proceder, se os seus objetivos anteriores não mais existem.
Os efeitos colaterais do niilismo são muitos. E aqui se aciona outra vez Dostoiévski:
em Crime e castigo, tem-se como personagem central o estudante Raskólnikov, que assassina
duas mulheres para subtrair, de uma delas, um montante monetário. A sua justificativa para tal
ato é o de que uma das mulheres, a que detinha o poder aquisitivo, era um verme 198 e ele,
como homem superior, tinha o direito de se apossar daquele dinheiro para utilizá-lo em fins
mais nobres do que a pura e simples extorsão do trabalho alheio, tal como fazia a idosa. Aqui
se apresenta a concepção moderna de que, desfeitos os valores morais, como o valor à vida,
seja qual for, toda ação é permitida, inclusive o assassinato. Assim posto, argumenta-se que a
barbárie, a violência, a submissão e exploração do homem pelo homem, dentre outros fatores,
também podem estar interligados ao niilismo, conforme deduz o escritor russo.
Raskólnikov fundamenta suas atitudes criminosas em argumentos que podem ser
considerados modernos, uma vez que são alicerçados na concepção histórica, progressista e
niilista. Julga-se Napoleão, que matou milhares, mas que, além de não ter sido condenado por
suas ações, ainda foi alçado ao posto de herói. Para que as novas concepções sejam
instituídas, é preciso que antigas sejam destruídas. Raskólnikov e a velha usurária assinalam
esses dois aspectos na sociedade. Mas, longe de ser um além do homem nietzschiano,
Raskólnikov, simples criminoso, é apenas um produto mal acabado da modernidade, no
sentido apresentado por Patrick Wotling (2013, p.231-232), resultado da história da cultura.
O niilismo assinala um caminho que não tem volta, pois não se pode retornar ao
estágio de inocência após esse fenômeno social desconcertante. Em GD/CI, Nietzsche faz
uma dura crítica a Rousseau, a quem chama de “primeiro homem moderno”, posto que este

198
Conforme Chevalier (2005), no que se refere ao simbolismo dos sonhos, os ‘vermes’ podem ser interpretados
“como intrusos indesejáveis que nos vêm tirar ou roer um afeto muito caro [...]” (CHEVALIER, 2005, p. 944).
Assim, no contexto da obra, Raskolnikov pode ter associado a figura da velha usurária a um verme, justamente
porque a mesma representava uma espécie de inconveniente aos seus objetivos, sendo, por isso, vista como um
ser abjeto, que deveria ser eliminado.
100

deseje um retorno à natureza 199 , tal como Nietzsche (GD/CI, IX, §48), contudo em um
aspecto completamente diferente, porque o retorno de Rousseau fundamenta-se em um anseio
de igualdade, no sentido de moralidade. Já Nietzsche, segundo Araldi (2004, p. 65), aponta
para esse retorno à natureza no aspecto de recuperação do homem, dos seus instintos,
suprimidos na modernidade em nome das instituições. Escolas, igrejas, universidades etc.,
marcam a resignação do homem em nome de uma vida normativa que lhe retira as forças
instintivas, a saúde do corpo, em favor de uma integração, de uma harmonia fundamentada na
obediência e no respeito irrestrito às regras as mais diversas, isto é, jurídicas, culturais,
morais, religiosas.
A noção da morte de Deus é de fundamental importância, pois marca, de forma
indelével, a derrubada dos ídolos até então cultuados na modernidade: o além deixa de ter
sentido fundante para a concepção humana de existência, não há mais um aqui e um lá. A
procura por Deus, tal como o efetuado pelo homem louco em FW/GC, §125, resulta em nada.
Através do niilismo o homem viu-se forçado a voltar ao estágio da criança, tal como
exposto por Zaratustra nas três transformações do espírito: a primeira a do camelo, fase em
que carrega os valores que lhe são impostos, um estar doente; a segunda do leão, em que se
cria a liberdade para a construção do novo, contrário ao antigo “Tu deves” e, por fim, a da
criança:

Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda a girar


por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo da
criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora sua
200
vontade, o perdido para o mundo conquista seu mundo.

O ser humano precisa passar por essas três metamorfoses para que se possa falar na
efetividade de uma liberdade do homem, mas não liberdade no sentido corriqueiro do termo, e
sim na acepção nietzschiana inspirada na possibilidade de destruição e construção
interpretativas de mundo, afastadas dos pontos fixos, e afirmadoras da vida.
Na primeira transformação, o homem a tudo suporta. Nele depositam-se todos os
valores do mundo, os quais ele carrega sem questionar. Verdades absolutas, coisas em si,
Deus, tudo isso e muito mais o homem sustenta sem saber o motivo, apenas por tradição,
carregando tais conceitos e ideias de um lado para o outro, sem se preocupar se são

199
Ainda acerca da tentativa de retorno à natureza intentada por Rousseau, questiona-se Nietzsche: “A entrega à
natureza, o viver segundo a natureza dos estoicos e de Rousseau, o mens sana in corpore sano etc. 1. Quem
conhece os objetivos da natureza e quem seria capaz de ir contra o natural? 2. A natureza não é algo tão
inofensivo ao qual poderíamos nos entregar sem arrepios. 3. A questão é se podemos algo contra a natureza e se
podemos nos entregar totalmente a ela.” (Nachlass/FP (7 [155]).
200
Za/ZA, Das três metamorfoses, p. 28-29.
101

sustentáveis. Frases como “É a vontade de Deus” ou “Assim quis a providência”, marcam a


mentalidade desse homem-camelo, que se refugia no cômodo lugar onde não necessita pensar
por si próprio, deixando, incauto, tal função a homens mais preparados, os sacerdotes.
Na terceira transformação, o espírito humano inicia o processo de esfacelamento
daquilo que lhe era cominado. Aqui se tem um olhar de revolta, um questionar ainda insípido,
mas que apresenta valor no processo como um todo, pois marca a passagem de um estado de
submissão para o outro, inverso. O camelo, insatisfeito, quer se tornar “senhor no seu próprio
deserto”, uma vez que o peso sob suas costas apenas faz aumentar e suas forças parecem
extinguir-se. Incapaz de sustentar tal situação, o antigo “tu deves” começa a abrir caminho
para o “eu quero”, em uma evidente metamorfose, transfiguração do espírito, que antes se
curvava a tudo, como o camelo que se ajoelha para depositarem sobre si os devidos pesos,
gesto tal comum diante de representações consideradas sagradas na sociedade.
Na terceira transformação, o espírito finalmente alcança o estágio da criança, cuja
força supera a do leão, mas em quê? Nietzsche responde: em inocência e esquecimento. Aqui
retomamos alguns aspectos já abordados antes, pois o esquecimento, mais uma vez, contribui
de forma salutar para que o homem possa se lançar ao novo. Tem-se a abertura para a
possibilidade de criação, caminho essencial a “grande saúde”, a afirmação da vida que, por
conseguinte, acarreta a revalorização do corpo enquanto jogo de forças em movimento
constante. A inocência do olhar – estranha aos valores impostos – afeita à vontade, ao querer,
aos impulsos criadores que orientam a vida.
Em Za/ZA, Nietzsche expõe, conforme vimos, a possibilidade de criação futura
através da sua representação do filósofo persa, como expressa também em GM/GM, bastante
significativa: “Neste ponto não devo senão calar: caso contrário estaria me arrogando o que
somente a um mais jovem se consente, a um “mais futuro”, um mais forte do que eu – o que
201
tão só a Zaratustra se consente, a Zaratustra, o ateu...” Zaratustra afasta-se
consideravelmente da percepção que comumente se tem sobre os escritos filosóficos de
significativos filósofos. Sua linguagem é poética e sua narrativa insere-se em um contexto
quase romanceado que muitas vezes seduz especialmente pelas palavras e jogo de imagens.
Mas Zaratustra é, mais do que a reunião dos principais aspectos do pensamento nietzschiano,
uma afirmação da vida, e contém uma ressignificação do corpo na modernidade. A tarefa não
é simples, está-se falando em derrubar valores seculares tradicionais que marcam de modo
significativo a vida social em todas as suas esferas.

201
GM/GM, II, §25.
102

Nesse ponto, o niilismo apresenta-se de forma positiva, uma vez que ele assinala a
supressão da tradição valorativa, ou pelo menos o seu arrefecimento, para possibilitar o
advento do novo, do inédito, no qual Deus, verdade, eternidade, alma pura etc., não possuem
mais espaço, nem merecem mais crédito. Mas, ao observarem-se tais conceitos, reconhece-se
que os mesmos são os pilares de sustentação da cultura moderna. O que ocorrerá a tal cenário
com a subsunção do niilismo? Sobre a questão, elucida Giacóia Jr.:

Não é o niilismo a causa da decadência cultural, antes pelo contrário: ele é o


resultado necessário de um lento, até então insuspeitado, processo de decadência e
perda de potência, pois na medida em que se aprofunda, são extraídas as
consequências lógicas inexoráveis das pretensões sustentadas pelos valores axiais,
cujo conteúdo se esvazia. 202

Sob esse ângulo, o niilismo é o resultado natural de todo o processo de desvalorização


do homem e do corpóreo em nome de um deus e da fundamentação construída em torno de tal
ser, o que inclui ai a própria ciência. Assim, o niilismo apresenta um duplo significado, de
decadência, mas também de ascensão. O antigo pensamento deve perecer para que algo
inédito tome o seu lugar. A modernidade, em colapso, é marcada, até então, pela existência do
homem em meio à ausência de meta.
Uma vez que o niilismo estabeleceu os seus propósitos, a saber, a desarticulação do
pensamento do homem, é preciso, pois suprimir tal niilismo, para que o homem tenha a
oportunidade de viver outra vez, não mais ligado às concepções enfermiças, e sim a uma
disposição positiva, através de um dizer sim à vida: “Afirmar não é tomar a cargo, assumir o
que é, mas liberar, descarregar aquilo que vive. Afirmar é tornar leve: não é carregar a vida
sob o peso dos valores superiores, mas criar novos valores que sejam os da vida.” 203 Esse
tornar leve e ativa a vida remete à primeira metamorfose observada por Zaratustra, a do
camelo, à qual pode ser comparada à vida do homem que, pesado pelos valores que é
obrigado a carregar, tem a sua existência desnaturalizada.
A superação do niilismo consiste no rompimento com a percepção platônica de mundo
para se retomar o estatuto dionisíaco da existência, desatrelando-a do caráter de sofrimento
com o qual maculou-a o cristianismo, tornando a realidade um tormento, uma indesejável
efetividade. É preciso, assumindo a vida na sua efetividade, também reabilitar o mundo e o
corpo, ambos indissociáveis, em contraposição ao “mundo verdadeiro” e à alma,
respectivamente. Os sentidos, ignorados durante gerações pela filosofia e pela religião,

202
GIACÓIA, 2013, p. 227.
203
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Tradução Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 154.
103

precisam ser reintroduzidos como compreensão da realidade concreta, o que antes se efetuava
apenas pela razão.
Com a morte de Deus, evidenciou-se a melancolia do homem cristão, que desejava um
mundo que de fato nunca existiu. Nietzsche aponta uma superação do niilismo em um
processo que ele mesmo já percorreu, uma vez que se considerou também um niilista 204 :
substituir a negação pela afirmação, ou seja, a transvaloração de todos os valores, pois
somente a partir desse movimento é que se poderá sobrepor o além do homem ao último
homem. 205
Sobre o último homem, explica a professora Marta de La Vega Visbal:
O ‘último homem’ é, em primeiro lugar, comprovação e expressão de um projeto, a
partir de uma situação vivida e pensada; logo, produto de um conjunto de ‘feitos
humanos’ inseparavelmente ligados a uma ‘visão do mundo’. Essa, por sua vez,
aparece ao mesmo tempo incerta num tecido de estruturas significativas que
respondem a um modo determinado de interpretação da realidade e de relação com o
mundo, segundo uma perspectiva axiológica particular. Nesse sentido, o “último
homem” é sintoma e também sinal, quer dizer, significante e significado. Por isso, a
necessidade do “último homem” nos parece patente na obra filosófica de Nietzsche,
inclusive se esse conceito é “relativo”, já que está condicionado desde o princípio
por certos valores, no mesmo nível em que toda visão do mundo.

Esse tipo-homem, portanto, configura-se, na concepção nietzschiana, como o


integrante do rebanho, o sujeito moderno, que deseja a felicidade e o comodismo, estando
inserido na história através da mediocridade dos feitos humanos, voltando-se para a produção
e o consumo exacerbados, que tendem mais e mais a uma intensificação do processo de
apequenamento do homem, agora, visto na modernidade como bom, moral.
Esse apequenamento do homem tornado o “último homem” suscita várias estruturas
significativas. O “para quê?” do mundo, da vida, será tornado sem efeito, pois não há mais um
finalidade a ser buscada, um objetivo último. Pela perspectiva nietzschiana, a vida é
multiplicidade. As medidas entre o aqui e o amanhã foram desfeitas, inexistem para se avaliar
o presente, pois tudo agora retorna, premissa esta diretamente ligada como um resultado do
niilismo e morte de Deus:
Se em um regime niilista Deus está morto, junto com ele foram enterradas as ideias
de criação e de tempo finito; se o universo não foi criado, então há uma infinidade
temporal do mundo para trás, e deve-se conceber como legítima a ideia de um
regressus in infinitum [...]. Se Deus morreu, e com ele a ideia de um começo de
206
mundo, é forçoso compreender o tempo como infinito.

204
Nachliass/FP, 11 [411], KSA.
205
VISBAL, Marta de La Veja. Ética e política. Genealogia e alcance do “último homem” na filosofia de
Nietzsche. Cadernos Nietzsche 17, p. 57-90, 2004. p. 58.
206
MOURA, 2005, p. 266-267.
104

Se agora o homem tateia no vazio deixado pela morte de Deus, não significa, contudo,
que a sua existência já não tenha mais valor ou que a vida agora caminhe, em linha retilínea,
para o vazio absoluto. O que se perdeu, nesse caso, foi uma perspectiva, insustentável na
modernidade e enferma, que induzia o pensamento, o corpo, à enfermidade. O tempo,
independente de Deus ou de qualquer outro preceito metafísico, segue seu percurso no
concernente aos conflitos humanos, cujas forças, por sua vez, são finitas. Se houvesse algum
objetivo para ser alcançado, este já teria se feito presente, pois houve tempo suficiente para
isso.
O vir a ser, portanto, se não se torna possível encontrar um fim último para as coisas,
tende, assim posto, a sempre retornar a si mesmo. Sem Deus não há meta, desse modo tudo
retornaria incessantemente, o que impediria, por sua vez, a tentação de se construir um novo
deus, pois com o eterno retorno o homem estaria sempre em uma constante perspectiva
criadora de valores, que não subsistiriam, assim, o processo de retorno iria infinitamente ser
acionado, o que impediria a fixação de valores, de preceitos e verdades.
Pelo ponto de vista nietzschiano, portanto, o eterno retorno 207 do mesmo pode ser
interpretado como um preceito filosófico que surge como uma proposta de superação das
concepções teleológicas, que buscam delimitar um fim às coisas, isto é, uma ordenação
lógico-racional. O eterno retorno propõe, assim, a possibilidade do novo, introduzindo um
caráter de afirmação da vida: “Consequentemente, o desenvolvimento deste instante tem de
ser uma repetição, e também o que o gerou e o que nasce dele, e assim por diante, para a
frente e para trás!”. 208
Assim, o mundo, excetuando-se a ideia de um Deus transcendente, trás a perspectiva
da circularidade, desde que se leve em consideração seus elementos constituintes:
Será preciso considerar o mundo do ponto de vista dos seus elementos constitutivos,
ou seja, do ponto de vista das forças ou da força total da natureza. Segundo
Nietzsche, para afastar de vez as concepções finalistas é preciso considerar o
conjunto da força total da natureza como sendo finita e sempre igual, isto é, como
força determinada e centros de forças determinados. 209

Nesse ponto, ao afirmar que o eterno retorno faz referência ao caráter finito das forças
da natureza, o que Nietzsche quer de fato é se afastar das concepções metafísicas que erigem

207
Assim posto, observa-se que o eterno retorno pode ser também concebido como um esforço intelectual para
afastar a concepção teológica-cristã de criação do mundo, do homem etc., como elucida Barbosa: “Löwith está
certo de que “em sua essência, a doutrina do eterno retorno equivale, ao mesmo tempo, a um substituto ateu de
religião e a uma ‘metafísica física’”. (BARBOSA, I. M., 2010, p. 83).
208
Nachlass/FP, 11 (202) do outono de 1881.
209
BARBOSA, I. M. O pensamento do eterno retorno e da vontade de poder como superação das teleologias
cristã e científica, Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, 1º semestre 2010, Vol.3, nº1. p. 75.
105

forças infinitas, pois a noção de força, para o filósofo, deve ser interpretada pelo viés da
finitude e recorrência.
Com isso, o significado da vida agora se mostra múltiplo e imanente. Deve-se viver
desse momento em diante de tal modo que esta vida seja desejável de se viver outras infinitas
vezes.

É preciso, dirá Nietzsche, que todo traço característico que está no fundamento de
cada acontecer seja sentido por um indivíduo como seu traço característico
fundamental; isso impeliria esse indivíduo a achar bom, triunfantemente, cada
instante da existência universal; isso dependeria, justamente, de sentir em si esse
traço característico fundamental do bom, valioso, com prazer. 210

Nietzsche, muitas vezes criticado pelos seus posicionamentos políticos, acusado de


niilista, de destruidor dos valores morais, demonstra que, se em muitos momentos de sua
filosofia ele critica certos preceitos, se os golpeia vigorosamente, para destruí-los, ele visa,
sobretudo, com isso, atingir outras esferas da vida, não as que pregam o determinismo, o
aprisionamento a instituições que, como bem se viu, inclinam o homem à fraqueza e a
arrebanhamento. Dessa forma, Nietzsche expõe uma postura que até então foi ignorada pelo
homem no decorrer do tempo, o amor por si, pelo seu corpo, pela sua vida. Reafirmando os
mecanismos de uma existência saudável através de um sagrado dizer-sim à vida que tem
como ponto de partida a relação entre corpo e saúde.

210
MOURA, 2005, p. 274.
106

CAPÍTULO III: O CORPO RESSIGNIFICADO

3.1. Corpo e saúde


3.1.1. Corpo: ponto de partida para a afirmação da vida

Inquestionavelmente, a figura do herói nos mitos gregos é presença recorrente.


Personagem este que, na atualidade figura nos mais diversos meios de entretenimento
(cinema, revista em quadrinhos, desenhos animados etc.), possui traços que, desde os gregos,
se mantêm inalterados: a coragem, a astúcia, a inteligência. Estas e outras características 211
tornam o herói uma espécie de modelo que, não raro, envolve questões morais que assinalam
o seu caráter e sua personalidade. Brandão (1997) afirma que o herói é aquele que figura
como o “guardião, o defensor, o que nasceu para servir”. 212 Será nesta figura que os olhares
dos leitores se deterão com mais atenção, uma vez que a história, de um modo geral, efetivar-
se-á em torno de si.
Capazes de grandes feitos, dos quais não estão isentos os atos cruéis 213 e nos quais o
corpo é o alvo principal: Aquiles, ao concretizar-se a profecia do oráculo de Apolo de que não
cruzaria os portões de Tróia, morre alvejado por Páris, iniciando-se em decorrência disso uma
disputa ferrenha pelo corpo do grande herói.
O corpo, objeto de disputa, revela-se como precioso troféu para o exército inimigo.
Conquistá-lo significa humilhar o oponente através dos suplícios infligidos ao cadáver, algo
que se acentuava ainda mais quando do elevado valor do guerreiro abatido.
Outra característica evidenciada nos heróis gregos é a presença do armamento: lanças,
espadas, armaduras, escudos tanto divinos quanto confeccionados por mãos humanas, os
quais visam proteger e potencializar ainda mais a força do corpo do herói, cujas qualidades
são acentuadas pelos referidos armamentos. Contudo, é preciso frisar que o próprio corpo do
herói já é uma arma. O exercício físico como forma de melhoramento corporal, o treino, a
preocupação com a alimentação, disciplina, saúde, são alguns dos componentes essenciais do
corpo guerreiro. Algo interessante de se notar é que o guerreiro, no manejo de suas armas e no

211
Conforme evidenciam Vernant & Vidal-Naquet: “[...] a timé, a ‘honorabilidade pessoal’ e a areté, a
‘excelência’, a superioridade em relação aos outros mortais...”. (VERNANT, J. P. & VIDAL-NAQUET, P. Mito
e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. p.23).
212
BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. v. 3. Petrópolis: Vozes, 1987. p.15.
213
Não são poucas as narrativas míticas nas quais os heróis gregos, em diversos casos, tiveram que recorrer a
atitudes mais violentas para a solução de determinadas situações. O desfecho do embate pessoal entre Heitor e
Aquiles é um exemplo, o que resultou no atrelamento do corpo do primeiro à carruagem do segundo e o desfile
por parte do vencedor com o corpo sendo arrastado. A presença em guerras por parte dos referidos heróis
também é uma constante.
107

seu desenvolvimento físico como forma de torná-lo mais eficaz na arte do combate, usa o
próprio corpo como meio de efetuar a destruição.
Na guerra, o homem que se lança contra o outro representa o digladiar de corpos que
visam, basicamente, à inutilização ou absoluta destruição do corpo alheio considerado
inimigo: “Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo. Na guerra, são os
corpos que infligem violência, mas também são os corpos que sofrem a violência”. 214
A intenção, neste ponto do trabalho, não é levantar questões morais sobre a natureza
da guerra, mas apontar que ela é um fato concreto inegável e que, independente dos discursos
e épocas de paz, a guerra se faz presente e de modo contundente ainda hoje, o que permite
refletir sobre a postura do homem diante dos conflitos. Nietzsche, em diversos aforismos,
ressalta a importância da guerra, afirmando que somente o homem doente abdica da mesma.
Contrário a este há o homem nobre, aristocrata:

Os juízos de valor cavalheirescos-aristocráticos têm como pressuposto uma


constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo transbordante,
juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça, dança,
torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”. 215

No fragmento acima, percebe-se nas palavras de Nietzsche a importância dada ao


físico, especialmente ao corpo saudável, pois este está ligado às atividades que exigem do
físico uma constituição sólida, robusta. Exige movimento e, consequentemente, esforço físico.
A guerra, mais do que qualquer outra atividade, até mesmo se tomarmos como critério de
comparação as atividades esportivas, posiciona-se em papel de destaque, pois nela o corpo é
exigido em um nível maior do que em uma disputa esportiva, pois naquela a questão da vida e
da morte se fazem presentes, o que conduz o guerreiro ao seu limite para a manutenção da sua
subsistência. Aponta-se ainda a questão de que a guerra, no sentido que é apresentada pelos
europeus, em particular, esboça uma característica cultural, como afirma Magnoli:

Na tradição europeia, a guerra não é um desvio patológico, e sim uma etapa do fluxo
incessante das relações internacionais. Essa visão, realista e cínica, forjada na
geografia das rivalidades dinásticas e das disputas por territórios, não exclui o horror
diante do sofrimento. Mas ela opera na moldura filosófica construída por Maquiavel,
que separa a moral política da moral comum. Guerra é história. Guerra é cultura. 216

A guerra, mais do que outra coisa, chega a ser uma necessidade para a sobrevivência
do Estado. Não sem motivo obras como O príncipe, de Maquiavel, são emblemáticas na

214
CORBIN, A.; COURTINE, J.; VIGARELLO, G. 2012, p.365.
215
GM/GM, I, §7.
216
MAGNOLI, D. (Org.). História das guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.11.
108

história do homem como forma de guia para que o monarca, ou governante, para o vigor e
manutenção do seu comando sob quaisquer circunstâncias.
Nietzsche observa tal questão sob o aspecto do corpo e expõe a guerra, o conflito,
como uma expansão, uma representação efetiva da vontade de poder que se apresenta em
todas as coisas. Um corpo saudável é um corpo guerreiro, pois está pronto para o combate,
para a ação e a defesa dos seus princípios.
É preciso observar, entretanto, que esta concepção nietzschiana de uma postura
guerreira está essencialmente voltada para um caráter genealógico, cuja presença na
modernidade efetuar-se-ia, não como um modo de retorno à postura bélica antiga e ao seu
modo de efetuação, mas em uma vertente mais espiritual, considerando-se a racionalidade
nesses tempos atuais: “A espiritualidade da guerra está precisamente em não renunciar à
guerra, pois se estaria, desta forma, renunciando-se à própria vida, em não renunciar a própria
guerra que o homem já é (ABM:200)”.217
“Renunciamos à vida grande, ao renunciar à guerra...” 218, de acordo com Nietzsche.
Há no homem, inegavelmente, o gosto pela luta e a necessidade de ampliação, mesmo que
isto custe a destruição de determinados valores. Tal concepção, apesar de polêmica, sobretudo
por suscitar os sentimentos diversos, não tem forças para afastar a evidência inquestionável de
que o homem possui uma forte ligação com a guerra, o conflito. O próprio corpo e a
constituição orgânica do homem, segundo Nietzsche, constituem-se em seu caráter interno de
conflitos de forças constantes. Levando-se em consideração o âmbito de forças, de modo
ainda embrionário, é possível distinguir os homens em nobres ou não, guerreiros ou fracos,
como expôs Nietzsche em GM/GM. 219
Na referida obra, o filósofo argumenta, dentre outras coisas, que a necessidade de
manutenção de um corpo saudável está ligada a uma vida voltada para o plano terrestre, para
os valores nobres, para aquilo que é efetivo. No campo moral/cristão, a inércia é condição
indispensável e, portanto, a debilidade do corpo se faz atuante. Mas é preciso observar que tal
enfermidade não se efetua apenas no campo físico, mas também espiritual, como explicita
Nietzsche:

Nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma
nova saúde, até agora. Aquela cuja alma anseia haver experimentado o inteiro
compasso dos valores e desejos até hoje existentes [...] para isso necessita mais e
antes de tudo de uma coisa, a grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas

217
NIETZSCHE apud VIESENTEINER. J. L. A grande política em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2006. p.
202.
218
GD/CI, V, §3.
219
GM/GM, I, §7.
109

constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é


preciso abandonar. 220

O adoecer é requisito necessário para a grande saúde, que não é apenas corporal, mas,
acima de tudo, espiritual. Corroborando com o pensamento de Nietzsche, tanto as filosofias
que desprezam o corpo e os procedimentos naturais da vida, quanto as religiões que sustentam
o enfraquecimento espiritual do homem, nos âmbitos físico e das forças ativas inerentes ao
humano:

[...] estão doentes, e a preocupação em busca da paz, do alívio e da proteção


demonstram esses sintomas, pois se a vida possui como traço fundamental o
combate, o jogo de forças, as ameaças naturais de sofrimento e de dor, não podem
ser interpretadas como se fossem isoladas da saúde, da alegria, da felicidade. A
necessidade de um consolo em “outro mundo”, que propiciou a crença em um
mundo idealizado é, por sua vez, completamente oposta à vida terrestre. Tal crença
foi interpretada, a partir de uma concepção dicotômica, constituindo-se apenas por
enfermidades, perdas e fraquezas.221

Deduz-se do exposto, que o homem é combate e jogo de forças em conflito constante,


pluralidade de perspectivas, e que uma das marcas indeléveis da vida é justamente a aceitação
de todos os aspectos que a constituem. Nesse sentido, dor, sofrimento, saúde, alegria são
características inerentes à vida e devem ser compreendidas enquanto tal, uma vez que
personificam o homem em sua existência trágica. Faz-se mister, portanto, abstrair certas
noções enfermiças pautadas em concepções ideais de mundo, denegridoras da vida.
Posto isso, compreende-se que o homem necessita do novo, do movimento, para que
possa ter contato com um bem-estar que não se impõe como ilusório, ideal, mas factível. É
preciso o inconformismo com o homem atual, indivíduo que se satisfaz com a ingenuidade da
falsa segurança e com o ideal de uma existência destituída de perigo.
Mas quem é o homem atual? Nietzsche o descreveria como o homem da modernidade.
Desse modo, o filósofo assume-se enquanto crítico feroz da modernidade. Aponta,
estrategicamente, seus oponentes: a metafísica (filosofia tradicional), a educação, a cultura, a
moral, o Estado, o conceito de subjetividade e substrato etc., e empreende uma interpretação
genealógica de todos os pressupostos que fundamentaram por tantos séculos tais
conceituações de homem e de mundo.
Volta-se, principalmente, contra a cultura europeia e seus aparatos de sustentação e
valoração moral. Questiona o acabamento conferido ao homem da modernidade, uma vez que
este se encontra com os seus instintos enfraquecidos e desagregados, consumido em seus
próprios antagonismos. Acerca disso evidencia Clademir Araldi:
220
FW/GC §328.
221
AZEREDO, V. P. de O., 2011, p. 252-253.
110

A modernidade (die Modernität) é, por um lado, a época de declínio do poder e da


disciplina do espírito. O homem moderno (der moderne Mensch) é marcado por uma
“irritabilidade doentia”, por um caos de instintos e paixões que não estão mais
ordenados hierarquicamente3. As tendências de desagregação se instalam nas
formações de poder modernas, de modo a enfraquecer os homens, que se debatem
entre estimativas de valor opostas.222

Com vistas a situar sua crítica genealógica da modernidade, Nietzsche confere-lhe um


caráter peculiar. Entrevê no homem da modernidade, um declínio de forças ocasionado pela
desagregação dos instintos, assim como também, pela crise dos valores vigentes. A crise da
modernidade é, assim, o momento em que já não é mais possível continuar alimentando os
mesmos valores, uma vez que eles perderam suas bases de sustentação. O produto desse
processo: um homem débil, enfraquecido e enfermiço. Refém das dicotomias e dos critérios
valorativos de seu tempo.
Em contraposição à cultura europeia de sua época e ao seu produto acabado, o homem
da modernidade, Nietzsche irá engendrar, não necessariamente um retorno à grecidade nos
moldes antigos, apesar de sublinhar veementemente o valor da grecidade trágica no sentido de
romper com uma visão pessimista do mundo, mas uma perspectiva de interpretação do mundo
voltada para os critérios das forças em ascensão, vigor dos instintos e afirmação da vida. Tais
critérios terão como ponto de partida o corpo:
Ponto de partida do corpo e da fisiologia: por quê? – Ganhamos uma concepção
correta da nossa unidade subjetiva, ou seja, como um governante no alto de uma
comunidade [...], assim como da dependência desse governante dos governados e da
condição de hierarquização e de divisão de trabalho como possibilidade tanto do
indivíduo quanto da totalidade [...]; do mesmo modo, que a luta também se expressa
na obediência e no mando e que uma determinação de limites de poder pertence à
vida. [...] Em resumo, ganhamos uma estima também pelo não saber, pelo ver de
forma dilatada e grosseira, pela simplificação e falsificação, pelo perspectivo [...]. 223

Logo, interpreta-se o corpo, segundo a ótica de Nietzsche, como um ponto de partida


privilegiado porque permite compreender a vida pelo critério das forças, tanto em declínio,
quanto em ascensão. Tem-se uma relação ativa entre as forças instintivas de obediência e
comando, na qual a multiplicidade de impulsos e afetos emergem enquanto parte estrutural
constitutiva. E a perspectiva do devir, deflagrada por um caráter perspectivístico da vida,
delineia significativamente o panorama inaugurado pela noção que coloca o corpo em
destaque.
Nesse âmbito, o homem ativo, afirmador dos impulsos característicos da vida, em
alguns momentos identificado com o tipo nobre, ao contrário do homem enfermo, não precisa

222
ARALDI, 2012, p. 2.
223
Nachlass/FP, 1885, 11, 40[21].
111

idealizar uma felicidade, projetá-la em outro mundo, uma vez que o estado de felicidade está
interligado ao agir:
Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”; eles não tinham que
construir artificialmente a sua felicidade [...] Enquanto o homem nobre vive com
confiança e franqueza diante de si mesmo [...], o homem do ressentimento não é
franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través, ele ama
os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo,
sua segurança, seu bálsamo [...]. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará
necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência
numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira
ordem.224

Neste ponto precisamente, como se observa no excerto acima, Nietzsche associa a


falta de vigor, de saúde, a um ressentimento enfermiço, que conduz o homem a um estado
subterrâneo e não de superfície, como seria o natural. O indivíduo ressentido, enfermo, busca
fugir da vida, escondendo-se dela. Um de seus ardis é, conforme o filósofo, o intelecto, a
inteligência, a capacidade de raciocínio, a qual venera e supervaloriza como condição
primeira de existência.
Em contrapartida, o homem dito nobre busca equacionar corpo e razão, sem, contudo,
supervalorizar a segunda. Na verdade, de acordo com Nietzsche, o indivíduo nobre busca dar
vazão aos sentimentos de tal modo que os mesmos não venham a se tornar um entrave às suas
ações. Em oposição a tal tipo, há o homem do ressentimento 225 , que empreende uma
interiorização de sentimentos tais como: rancor, ódio, desejo de vingança. E tais sentimentos
acabam se transformando em algo danoso à sua compleição psicofisiológica, uma vez que são
assimilados e lançados ao interior do corpo sem uma apropriada digestão dos afetos pelo
organismo. 226
Não sem fundamento Nietzsche observou que os gregos antigos aprenderam a
organizar o caos, o que os conduziu a uma unidade, no sentido de sociedade, povo, portador,
portanto, de uma cultura única, rica, na qual o corpo possuía expressiva relevância, como se
percebe nos poemas de Ilíada e Odisséia, obras nas quais o combate, a necessidade de
disputa, o conflito se faziam presentes enquanto condições indispensáveis de saúde para o
próprio combatente e, consequentemente, para a sua cidade-estado:

224
GM/GM, I, §10.
225
Tal homem foi exaustivamente trabalhado por Nietzsche em GM/GM, como observa-se nos aforismos §10,
§11,§13 §14, dentre outros. O homem do ressentimento seria o tipo acabado do indivíduo moderno, aquele cuja
incapacidade de agir apresenta-se mais contundente e vigorosa do que outra inclinação. É o sujeito da eterna
espera, apequenado, exaurido, incapacitado, que vê na sua condição uma vantagem que ele, assim como os seus
semelhantes, acredita ser o desejável.
226
PASCHOAL, E. A superação do ressentimento na filosofia de Nietzsche, Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, nº
2, p. 183-206, jul./dez. 2012. p. 184-185.
112

O poema Ilíada contém, como se sabe, a narração do intenso conflito que ficou
conhecido na história como A Guerra de Tróia, entre o povo aqueu e o troiano, mas,
sobretudo, transmite perfeitamente o espírito cultural - especificamente da esfera
moral – que tanto influenciou pensadores como Nietzsche. Os gregos, “os homens
mais humanos da época antiga”, sobretudo dos tempos homéricos, possuíam um
certo gosto pela crueldade e, nela, o constante anseio pelas disputas entre homem e
homem, povo e povo etc. não é por acaso que a característica mais marcante dos
poemas de Ilíada é precisamente o de relatos dos mais cruéis e sangrentos combates
entre gregos e troianos, mas com um grande diferencial: a consciência clara de uma
educação para a competição, para o agon, e da absoluta necessidade destes conflitos
para a saúde tanto do próprio guerreiro quanto da própria cidade-estado.227

Saúde, portanto, para Nietzsche, também pode ser compreendida sob o viés da
política. O desejo de guerra, de enfrentamento em relação ao outro, salutar em tempos
antigos, foi, na modernidade, alterado para o medo, o adoecimento do espírito. O espírito
guerreiro, devido as concepções cristãs de submissão e humilhação, represaram no homem o
seu instinto de luta. O indivíduo moderno, moldado por uma educação aprimorada, por um
estilo de vida cômodo, voltado para o mero acúmulo de bens, algo que o faz através,
principalmente, do seu intelecto, tornou-se debilitado, organicamente fragilizado.
A guerra, como dito anteriormente, faz parte da cultura e da vida do homem grego.
Este não negou esse lado violento de si e da vida, mas aceitou-a e a utilizou no
aprofundamento da sua cultura. A vida também é cruel e não apenas bela. Negar a primeira
característica é repudiar uma parte importante do homem, algo que os gregos antigos não
fizeram:

Nietzsche elogia precisamente a capacidade helênica de embelezamento do caráter


terrível da existência, para ele o meio segundo o qual os gregos não apenas
superaram o terror de existir, como construíram um modelo elevado e afirmativo da
cultura. Para ele o grego, convicto da totalidade da Physis, é o produtor de uma arte
que expressa, sem negá-la, toda a atroz incerteza do existir.228

A vida, para o homem grego dos tempos homéricos, encontra-se em todos os lugares,
em qualquer situação. Não houve, por parte dos helênicos, uma fuga da existência efetiva.
Seus deuses amavam, odiavam, guerreavam, sofriam. 229 A terra, presente nos mitos gregos,
sempre possuiu lugar de relevância, mesmo se considerando a existência do Olimpo, local no
qual somente eram aceitos os indivíduos mais notáveis por suas façanhas. Em toda a cultura
grega, vigor, movimento, ação, corpo e saúde, enfim, se fazem presentes.

227
VIESENTEINER, 2006, p.171.
228
BARROS, R. de A. P. de. Naturalização da cultura ou culturalização da natureza? In LINS, D.; OLIVEIRA,
N.; BARROS, R. (Orgs.). Nietzsche/Deleuze Natureza/Cultura. São Paulo: Lumme Editor, 2011. p. 131.
229
“Os deuses (gregos) estão, pois, muito acima da humana existência. E contudo sua natureza é muito
aparentada à humana. A aparência externa é semelhante, por mais que a perfeição e a imperecibilidade sejam
privilégios dos divinos. Eles sabem e podem incomparavelmente mais que os homens, mas compartem com os
afetos e paixões. Nem mesmo o sofrimento lhes é de todo poupado, já que os ‘bem-aventurados’ com frequência
choram a morte de seus favoritos humanos. Sim, eles também podem sofrer”. (OTTO, 2005, p.116-117).
113

O corpo, agindo, sentindo, evidencia-se como a grande razão que Nietzsche expôs. O
homem não pode ser ficar circunscrito, conforme definiu Descartes230, à distinção entre corpo
e alma, de acordo com o filósofo alemão, pressuposto esse que a filosofia tradicional, durante
muito tempo sustentou, especialmente no que tange aos equívocos em relação à alma e
principalmente ao corpo:
[...] O completo desprezo pelo corpo não permitia ao indivíduo ver a completa e
minuciosa arte de seu jogo organizacional para a autopreservação e purificação do
modo de ser da espécie: -- em outras palavras, o infinito valor da personalidade
individual como representante do processo vital e, portanto, o seu supremo direito
ao egoísmo, -- como toda a sua impossibilidade de não o ser... .231

A importância do corpo parece ainda não ter assumido um papel de destaque no


âmbito da filosofia, esta ainda voltada para determinados assuntos que, essencialmente, são de
natureza metafísica. Contudo, ao relacionar doença com os instintos mais debilitantes,
Nietzsche apresenta, no campo filosófico, uma inclinação que começa a ganhar forma
consigo, espraiando-se para outros filósofos e pensadores: a importância do corpo no processo
de (auto) conhecimento do homem. Mas é preciso atenção para o que Nietzsche chama de
enfermidade, pois ela, em alguns casos, não pode ser compreendida ao pé da letra:

A partir da ótica do doente ver conceitos e valores mais saudáveis, e, pelo lado
inverso, da abundância e da autoconfiança da vida abastada, olhar para baixo em
direção ao trabalho clandestino do instinto de décadence – esse foi o meu exercício
mais longo, a minha verdadeira experiência; se me tornei mestre em alguma coisa,
então foi nisso. Agora o tenho às mãos, agora tenho a mão para a inversão das
perspectivas.232

Nietzsche associa doença com possibilidade. É preciso reconhecer-se enfermo, doente,


para que se possa buscar a inversão dessa condição. Neste caso, estar na condição de enfermo
é expressar um posicionamento que está fortemente ligado ao estado do homem que se

230
Não é nossa intenção descrever aqui a crítica de Nietzsche a perspectiva de Descartes (2004), no que tange a
separação entre corpo e alma, contudo é importante frisar, minimamente, os seus arcabouços. Descartes concebe
o corpo com algo que, diferente da alma, pode ser medido através das três dimensões. Afirma ainda que esta
matéria não se move por si só, mas apenas com o auxílio de outro corpo, no caso, a alma, o que significa dizer
que o corpo, para o referido filósofo, não é autônomo, mas algo absolutamente dependente, ou seja, o corpo não
possui vontade, conceito este que, como se sabe, tão caro a Schopenhauer e, posteriormente, a Nietzsche. Porém,
Descartes não nega a junção do corpo com a alma, mas apresenta tal ligação como algo que se efetua entre dois
elementos de acentuada disparidade. Descartes corrobora que a alma é responsável pelo pensamento do homem,
e que se há alguma participação do corpo nesse processo de efetivação do pensamento, do raciocínio, esta é
mínima, incerta e inferior àquela produzida pela alma: “Ora, o primeiro e principal requisito que previamente se
exige para o conhecimento da imortalidade da alma é que dela nos formemos um conceito, o mais claro
possível e que seja completamente distinto de todo conceito do corpo”. (DESCARTES, 2004, p.37) Dessa forma,
percebe-se no pensamento do referido filósofo francês, uma primazia da alma em relação ao corpo, concepção
esta que durante muito tempo permeou a postura filosófica, a qual só podia ser alcançada efetivamente através da
alma e que gerou, entre outros efeitos, a supervalorização da consciência e do “eu”, em detrimento do corpo,
algo que Nietzsche buscou reverter em suas obras.
231
Nachlass/FP, 22 (22). (Grifos originais)
232
EH/EH, Por que sou tão sábio, p.24.
114

encontra estagnado, que se deixou abater. Enfermidade, portanto, como condição de


inatividade, de enfraquecimento daquele indivíduo que aceitou de bom grado, muitas vezes, a
condição de servo, de escravo.
Não agir, eis a condição imediata para aquele que busca reafirmar o seu desprezo e
medo em relação a tudo o que é real. Sinal de saúde é inverter os valores estabelecidos, não
aceitar a enfermidade daqueles que se deixam dominar, que efetuam a manutenção de um
sistema no qual o novo, a ação, o vigor, a saúde, são elementos perigosos e devem ser
combatidos. O apequenamento do homem, como assim pregou o cristianismo e,
posteriormente, a modernidade, envolveu mais do que uma imposição de idealismo e dogmas,
convergiu também para a depreciação da fisiologia e sua extenuação.
É preciso retomar a saúde perdida, o corpo esquecido e vilipendiado. A transvaloração
dos valores aponta para essa perspectiva, para esse trazer de volta o corpo como fonte
significativa de contato e interpretação do mundo e das coisas, bem como dos fenômenos que
ocorrem a todo o momento ao redor do homem. A resolução agora, para o restabelecimento
da saúde, é afirmar a vida:
A revolução almejada por Nietzsche, a transvaloração visada por ele, está para além
do bélico e do econômico, para além das burocracias conhecidas. O seu diagnóstico
mostra que o economicismo, o belicismo e a exaltação do estado levam, nas suas
formas extremas, ao nada da mediocrização humana, ao niilismo da ausência dos
valores. Os novos lesgisladores, ao contrário, deverão produzir uma mudança nos
parâmetros éticos e estéticos, sob o prisma da afirmação da vida, da terra. 233

Neste ponto, a saúde pode ser considerada uma característica daqueles que Nietzsche
denominou de “espíritos livres”, indivíduos que se opõem ao espírito escravo, cativo, uma vez
que o primeiro está livre de convenções, principalmente as morais, pois ele mesmo busca para
si as respostas que procura, não necessita que outro o governe nem que o oriente, do contrário
sua liberdade não seria algo efetivo. É preciso ressaltar o caráter de autonomia do espírito
livre, cuja vida está centrada em um senso de múltiplas perspectivas que não coadunam com o
sentimento de grupo desenvolvido e estimulado nos espíritos cativos, temerosos e incapazes
de uma ação livre, uma vez que depositaram sua liberdade em mãos alheias, que podem ser
representadas pelo Estado, Igreja ou outro sistema de doutrinação. O espírito livre anseia pelo
novo, não se acomoda, não estagna, mas movimenta-se, assumindo posições que muitas vezes
constituem-se em sentido contrário ao costume, ao hábito e à moral vigente. Tal indivíduo

233
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche: memória trágica e futuro revolucionário, In: FEITOSA, C.;
BARRENECHEA, M. A.; PINHEIRO, P. (Orgs.) A fidelidade à terra: arte, natureza e política - Assim falou
Zaratustra IV. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.49.
115

somente é possível através da transvaloração dos valores, concepção bastante cara a


Nietzsche.
O que tem sido o homem, segundo Nietzsche? Em qual posição o corpo saudável tem
sido posto na sociedade? Como expresso em GM/GM, a moral escrava suplantou a moral
nobre, invertendo aquela que seria uma ordem natural, o que resultou no homem moderno
enfermo, niilista. A redução da multiplicidade de deuses na antiguidade para uma única
representação divina, o deus cristão, resultou na modificação do conceito de divindade, agora
apropriada por um ser que não tem começo, nem fim, deformado, ao qual o homem se
submeteu como criatura e não criador.
É possível falar, através de Nietzsche em uma recuperação da saúde, em uma
superação dessa doença moral que se instaurou no seio da sociedade, sugando-lhe as forças
vitais em nome de um controle através de uma massificação, ou, no termos de Nietzsche, um
arrebanhar? A resposta do referido filósofo é afirmativa, mas somente através da
transvaloração desses valores que foram alterados em algum momento da história, não ao
modo discipular, tal como Jesus, e sim à maneira de Zaratustra: “Zaratustra não se propõe a
arrebanhar os homens para sobre eles exercer o seu poder; e tampouco se dispõe a reunir os
234
discípulos para deles fazer seus cúmplices ou comparsas”. Zaratustra quer que seus
discípulos caminhem sozinhos, que não se apeguem a ele, ao contrário, incentiva-lhes que o
reneguem, ensinamento máximo do verdadeiro mestre que não quer que o seu discípulo se
torne uma espécie de seguidor.
Zaratustra, ao contrário dos sacerdotes cristãos, não tem intenção de ser um líder, não
almeja seguidores, tampouco o título de profeta, afasta-se do título de referência, não quer
estruturar uma seita ou uma nova religião, pois isto é escravizar os homens, domá-los e
adoecê-los. Tudo o que ele anseia é que o seu discípulo torne-se aquilo que é, que reflita sobre
si mesmo e sua posição no mundo, para poder enfim buscar o seu lugar devido, sem ignorar
que a vida é uma junção de corpo/alma e mundo/natureza. Para tanto, faz-se primordial
ultrapassar as vias de adestramento do corpo, segundo Nietzsche, para atingir uma perspectiva
interpretativa que leve em consideração o corpo enquanto grande saúde.

234
MARTON, S. Assim silenciou Nietzsche. In: BARRENECHEA, M. A.; FEITOSA, C. (Orgs.) Assim falou
Nietzsche II: memória, tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p.167.
116

3.1.2. Corpo: adestramento e grande saúde

Nietzsche denuncia o adestramento do homem e sua submissão. Os espíritos livres são


aqueles que atestam e denunciam, aos olhos do filósofo, a dualidade cristã que cega o homem
acerca da realidade, a tradição, a dualidade de determinados pensamentos:

É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria
com base em sua procedência, seu meio e função, ou com base nas opiniões que
predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são as regras; estes
lhe objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até
mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa
[...]. De resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões corretas, mas
sim ter se libertado da tradição, com felicidade ou com um fracasso. 235

O problema da distinção entre mundo real e mundo imaginário precisa ser revertido,
cabendo a estes espíritos tal tarefa, pois eles, como novos filósofos, irão reafirmar a
importância do mundo efetivo, esfacelando a separação entre “corpo” e da “alma”, erro que
contaminou a humanidade desde o platonismo e situou o homem em um nível de inferioridade
em relação ao deus que ele mesmo criou.

Até agora foi o homem, concebido como criatura em relação a um Criador, quem
avaliou; e os valores que criou desvalorizaram a Terra, depreciaram a vida,
desprezaram o corpo. É preciso, pois, combatê-los, para que surjam outros. É
preciso denunciar que se forjou a alma "para arruinar o corpo", que se inventou o
"mundo verdadeiro" como "nosso ATENTADO mais perigoso contra a vida", que se
fabulou a noção de Deus como "a máxima objeção contra a existência". Só então
será possível engendrar uma nova concepção de humanidade; só então será possível
criar novos valores. Tornando-se criatura e criador de si mesmo, o além-do-homem
prezará os valores em consonância com a Terra, com a vida e com o corpo. 236

A vida é múltipla, como o é o corpo. Não há apenas dois caminhos a seguir, a saber, o
do bem e o do mal. Compreender esse sistema de aprisionamento e posicionar-se contra ele é
tarefa do espírito livre, precursor do além-do-homem, aquele que está em sintonia com o
mundo e consigo, e não fixado em uma só ideia, imaterial, metafísica, e por isso ressentido,
enfermiço.
Mas a tarefa dos espíritos livres não é pequena, há todo um mecanismo a ser
combatido, concepções a serem vencidas, costumes para derrubar, algo que será defendido,
protegido, pois os homens doentes estão acomodados, protegem-se mutuamente e não querem
iniciar uma nova forma de pensar e ver o mundo. Para derrubar tais muros, é preciso saúde
robusta, para se afastar daquilo que é nivelador, de natureza escrava, para tornar-se outra vez

235
MA I/HH I. §225.
236
MARTON, S. A morte de Deus e a transvaloração dos valores. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia
de Nietzsche. 3ª. ed. São Paulo: Barcarolla, 2009. p.135.
117

nobre, senhor de si, portador de uma experimentação. 237 É preciso sofrer, pois sofrimento é
enobrecimento, conforme Nietzsche, posicionando-se contrário aos princípios cristãos de
alívio e suspensão da dor:

A altivez e o nojo de todo homem que sofre profundamente – a hierarquia é quase


que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegar -, a
arrepiante certeza da qual é impregnado e tingido, de mediante seu sofrimento saber
mais do que os mais inteligentes e sábios podem saber, de ter estado e ver versado
em tantos mundos distantes e horríveis, dos quais “vocês nada sabem”!? [...] essa
altivez espiritual silenciosa daquele que sofre, esse orgulho do eleito do
conhecimento, do “iniciado”, do quase sacrificado, tem como necessárias todas as
formas de disfarce, para proteger-se do contato com mãos importunas e compassivas
e, sobre tudo, de todo aquele que não lhe é igual na dor. O sofrimento profundo
enobrece; coloca à parte. 238

Na própria filosofia, inúmeros pensadores elaboraram receitas para que o homem


evitasse a dor e o sofrimento, tentando instaurar uma possibilidade de existência pacífica,
venturosa e prazerosa. Religiões, seitas etc., apresentam, entre seus dogmas, posturas e
práticas que podem conduzir a um estado de felicidade plena, com a suplantação dos estados
de infortúnio. Não é sem motivo que muitos veem o sofrimento como algo negativo, a ser
evitado, sendo procurado somente o seu oposto, o prazer, o bem-estar, como se a dor fosse
algo não natural. Entretanto, o corpo, na sua natureza, é também dor. Tentar escapar a essa
condição representa uma fuga, superficial e equivocada, daquilo que constitui o ser humano
na sua complexidade.
Nietzsche associa a dor à postura dos grandes homens, os espíritos livres, os
afirmadores da vida, pois estes não a renegam, aceitam-na como parte da existência, o que
não significa, em nenhum momento, que o referido filósofo apreende a dor sob um aspecto
apologético, mas que a dor, assim como o prazer são processos simultâneos e naturais ao
homem. Logo, é importante perceber que Nietzsche aceita a dor como algo intrínseco ao ser
humano, tanto quanto a alegria e, por isso, posiciona-se contrário aos valores morais e
religiões que insistem em adotar princípios que visem suprimir ou atenuar a dor inerente ao
existir. Nesse sentido, a aceitação da dor e da alegria, na mesma medida, corrobora para a
afirmação da vida.
A filosofia de Nietzsche mostra-se controversa e incompreensível para alguns por
abordar temas e assuntos que outros preferem negar ou diminuir como algo secundário. A
questão da dor perfaz-se pouco debatida na filosofia tradicional, ou quando efetivada o é

237
Cf. WEBER, J. F. Formação (Bildung), educação e experimentação: sobre as tipologias pedagógicas em
Nietzsche. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. p. 147-160.
238
JGB/BM, §270.
118

sempre por um viés negativo. Nietzsche sustenta outra direção: amar a dor, pois nesta há tanta
importância quanto no seu oposto:

Na dor há tanta sabedoria como no prazer: como este, ela está entre as forças de
primeira ordem na conservação da espécie. Se não, há muito já teria desaparecido; o
fato de doer não é argumento contra ela, é sua essência. Eu escuto, na dor, o grito do
capitão do navio: “Recolham as velas!”. O ousado navegador “homem” tem de
aprender mil maneiras de dispor das velas, senão logo teria passado, o mar o teria
engolido [...]. Existem homens, é verdade, que ouvem o comando oposto, ao sentir a
aproximação da grande dor, e nunca são mais orgulhosos, belicosos e felizes do que
quando surge a tempestade; sim, a dor mesma lhes proporciona seus maiores
momentos! São os homens heróicos, os grandes portadores da dor da humanidade:
estes seres poucos ou raros, que necessitam exatamente da mesma apologia que a
dor – e, verdadeiramente, ela não lhes deve ser negada! São forças de primeira
ordem na conservação e promoção da espécie: ainda que fosse apenas por resistirem
à comodidade e não esconderem seu nojo a tal espécie de felicidade. 239

Ao dividir-se o mundo em perfeito e imperfeito, situou-se a dor na esfera do


imperfeito. Para Nietzsche, sofrer é uma condição dos organismos robustos, das constituições
mais rígidas, que não fogem à dor, mas tomam-na como condição indispensável para um
estado de superação. As angústias, a perda, a desolação, dentre outros aspectos, são inerentes
à vida. É preciso aceitar tais condições, vencê-las. O que a religião oferece é o entorpecimento
dos sentidos, a falsa sensação de bem-estar, mas os problemas, as tormentas permanecem, é
preciso, portanto, agir efetivamente para superar tais situações.
Diante do fracasso, da perda, da dor, o homem deve refletir, precisa reposicionar-se no
mundo, ou seja, exige-se do homem movimento, ação, e não estagnação. Mas isto apenas para
aqueles que buscam superação, os que se sentem incomodados com os costumes, a
moralidade vigente, o tradicionalismo e queiram uma reversão dos valores impostos:
Nietzsche entende que a obediência aos costumes – quaisquer que sejam eles –
constitui a moralidade. Os indivíduos habituam-se a certas maneiras de agir e
pensar, transmitidas de geração a geração. Tornando-se tradicionais, elas acabam
consolidadas, não admitindo dúvidas nem tolerando questionamentos; têm de ser
respeitadas de forma absoluta. Considera-se imoral o indivíduo que a elas não quer
submeter-se; seu modo de agir é imprevisto, sua maneira de pensar arbitrária. A
moralidade estaria, pois, intimamente ligada às necessidades do rebanho. 240

O que é o arrebanhar além de um aprisionamento do corpo, uma submissão dos


instintos naturais e a anulação dos aspectos mais caracterizadores do orgânico? Assim, para
Nietzsche: “o temor quanto aos sentidos, quanto aos desejos, quanto às paixões, quando ele
chega ao ponto de desaconselhar os mesmos, isso já é por si um sintoma de fraqueza [...]”. 241
Segundo a moral do rebanho, todas as características particulares devem ser comprometidas
em nome de uma igualdade. Tal ideia de igualdade perpassa por um caráter de absurdo
239
FW/GC, §318.
240
MARTON, S. Nietzsche: a transvaloração dos valores. 3 ed. São Paulo: Moderna, 1993. p.49.
241
Nachlass, FP, 14 (157).
119

inegável, visto que um homem, mesmo na mais idealizadora das concepções, das normas, dos
regramentos, não é igual ao outro, mesmo que se queira estabelecer tal concepção como
verdadeira e concretamente sustentável, vê-se que ela carece inteiramente de sentido, uma vez
que:
A pretensão de um tornar igual, homogeneizar todos os homens a partir da exclusão
das diferenças para se tornar dominante, ou seja, a exigência de uma perspectiva
universal “é nociva precisamente para os homens elevados”, visto que “o que é justo
para um não pode absolutamente ser justo para outro” (ABM, 228).242

A desigualdade, afastando-a de um sentido negativo que ela pode parecer carregar em


um primeiro momento, é colocada sob outra esfera de visão. Representa liberdade, autonomia,
pois o agir de um não pode ser igual ao do outro, já que ambos pensam, constituem-se,
projetam-se no mundo de formas diferentes. Do contrário estaríamos em vias de suprimir os
talentos, as aptidões de cada um em nome de uma regularidade e igualdade que inibe o
homem, nivelando-o através da repressão e adestramento.
Por conta disso, enquanto medida de superação dos valores e costumes moralmente
impostos e, visando suprimir o adestramento do corpo e nivelamento do homem, Nietzsche
introduz o espírito livre, a quem descreve como “aquele capaz de pensar de modo diverso do
que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base
nas opiniões que predominam em seu tempo [...]” 243, o qual difere, sobretudo, do espírito
cativo, a saber, o homem adestrado, reprimido em seus impulsos mais intrínsecos, o tipo
gregário, o qual assume posicionamentos por mero hábito e resignação, uma vez que possui
um aguçado senso de pertencimento à dada comunidade.
Conforme Nietzsche, o espírito livre não possui uma visão estreita de mundo, tal qual
o espírito cativo. Aquele está, portanto, liberto das convenções sociais que tem por intuito
reprimir os instintos mais vitais. Não necessita da moral vigente para a afirmação de si, ao
contrário, pressupõe uma superação de todo e qualquer tipo de moral que se imponha sobre o
indivíduo, suprimindo-lhe as forças. De certo modo, a noção de espírito livre já está presente
na crítica nietzschiana à filosofia tradicional e morais vigentes tecidas na primeira parte deste
trabalho. Intenta-se, apenas, frisar o quão significativa é a referida noção para o filósofo,
especialmente no que se refere à concepção de corpo como grande saúde.
Assim, ao espírito livre cabe a responsabilidade de retomar a postura de proximidade à
vida, negada durante o seu período de enfermidade. A convalescência traz uma nova postura,
um novo olhar, um desejo mais salutar, de mais vida e mais saúde:

242
VIESENTEINER, 2006, p. 184.
243
MA I/HH I, §225.
120

Um passo adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à


vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, seu tanto desconfiado. Em sua volta há
mais calor, mais dourado talvez [...]. E, falando seriamente: é uma cura radical para
todo pessimismo (o câncer dos velhos idealistas e heróis da mentira, como se sabe –)
ficar doente à maneira desses espíritos livres, permanecer doente por um bom
período e depois, durante mais tempo, durante muito tempo tornar-se sadio, quero
dizer, “mais sadio”. Há sabedoria nisso, sabedoria de vida, em receitar para si
mesmo a saúde em pequenas doses e muito lentamente. 244

A partir dessa explanação é possível ver que o fundamental no espírito livre é a


aceitação dos momentos de dor e sofrimento, para posterior valorização do estado de saúde,
posto que quanto mais tempo o homem permanecer enfermo, maior será a sua afirmação da
vida. Isto é, é preciso ter sido enfermo por longos períodos, para ver uma nova postura diante
da vida efetivamente surgir. Indivíduos dotados de saúde, a grande saúde, promovem a
abertura para o novo que, nesse contexto, significa ir contra o que a sociedade atual estabelece
como certo, verdadeiro, ideal:
Nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós rebentos prematuros de um
futuro ainda não provado, nós necessitamos para um novo fim, também de um novo
meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as
saúdes até agora. 245

Nietzsche quer uma nova saúde, mas para que o homem venha a alcançá-la é preciso a
luta, o tornar-se guerreiro, a busca pelo conflito, a saída do estado de apatia e ausência de
mobilidade. Alcançar essa grande saúde não significa estar livre da sedução da inércia, dos
morais que resistirão e empreenderão luta para que os componentes do seu rebanho
mantenham-se, pois “[...] essa degeneração ou diminuição do homem, até tornar-se o perfeito
animal de rebanho (ou, como dizem eles, o homem da ‘sociedade livre’), essa animalização
do homem em bicho anão de direitos e exigências iguais é possível”. 246 Por isso é mais do
que necessário buscar a grande saúde, torná-la cada vez mais poderosa, uma vez que a
“grande saúde” “não significa a eliminação da doença, uma vez que a doença, enquanto
produtora de tensão é um poderoso estimulante”.247
É preciso compreender que por doença não há somente aspectos referentes ao
organismo, ou seja, aquilo que se entende por enfermidade, mas também aquilo que se
apresenta em outros campos, como o moral, capaz de tornar o indivíduo débil.
O empreendimento da grande saúde, desse modo, marca o retorno do homem aquilo
que lhe é mais caro, ou seja, à sua condição de efetividade no mundo, cuja significação
nenhuma relação concreta possui com o caráter metafísico que inventou para si, mas que se

244
MA I/HH I, Prólogo §5.
245
FW/GC, §382.
246
JGB/ABM, §203.
247
PASCHOAL, A. E. Nietzsche e a auto-superação da moral. Ijuí, Ed. Unijuí, 2009. p. 161.
121

tornou uma forma de aprisionamento de si, dos seus instintos, do seu corpo. É preciso buscar
ao que se é, para sobrepujar a si, conforme pondera Barrenechea:

O homem deve retornar ao seu eixo, após o extravio milenar idealista que o afastou
de sua procedência trágica. Impõem-se a memória dessas forças arcaicas, terrestres
e instintivas que ainda agem soterradas pelas falsas luzes de uma racionalidade que,
após o socratismo, conduziram a humanidade para o niilismo. 248

Segundo Nietzsche, no decorrer da história, o homem foi condicionado e teve os seus


instintos, a sua natureza submetida a uma interpretação de mundo de cunho metafísico,
processo no qual a sua liberdade, o seu corpo, os seus instintos tornaram-se controlados pelos
sacerdotes, que, por sua vez, em busca de poder, fragmentaram o homem, decidindo quais
aspectos eram importantes e quais deveriam ser desprezados, Nietzsche questiona sobretudo a
“crença de que somos compostos de substâncias de natureza distintas. Pequena razão será
como ele passará a denominar a antiga alma e seus derivados [...]. Grande razão será como ele
designará o que se chamava de corpo, substância outrora dominada pela alma”. 249 É preciso
que o homem valorize a sua efetividade, como corpo, como agente para quem a Terra é seu
único e inexorável lar. É preciso retomar o caminho concreto, não a alma, mas o corpo:

É decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a cultura no


lugar certo – não na alma (como pensava a funesta superstição dos sacerdotes): o
lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é consequência
disso...250

O caminho para uma cultura mais salutar, mais vigorosa esta no corpo e na retomada
deste como elemento significativo na existência humana. O corpo é a chave, mas não qualquer
corpo, como dito anteriormente, mas aquele cuja saúde seja fonte de força para suas criações,
para o seu desenvolvimento. Este homem afastará de si a máscara do mundo, confeccionada
por mãos e mentes que pregam o perdão, a piedade, a subserviência, o adoecimento e a
inanição através da moral, por um lado, e em um momento bastante específico. E por outro
viés, afastará de si o vazio característico do homem da modernidade, destituído de todos “os
artigos de fé” que cultivou por milênios.
Este homem há de vir, conforme Nietzsche, pois o futuro àquele pertence:

Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de
si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem de grande amor e de grande
desprezo, o espírito criador cuja força impulsora afastará sempre de toda
transcendência e toda insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo
povo, como se fosse fuga da realidade – quando será apenas a sua imersão,

248
BARRENECHEA, 2003, p.49.
249
SILVA JUNIOR, I. da. Em busca de um lugar ao sol: Nietzsche e a cultura alemã. São Paulo: Discurso
Editorial: Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2007. p. 134.
250
GM/GM, §24.
122

absorção, penetração, na realidade, para que, ao retornar à luz do dia, ele possa
trazer a redenção dessa realidade: sua redenção da maldição que o ideal existente
sobre ela lançou. Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente,
como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada,
do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna
novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua
esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem
que vir um dia... 251

A concepção de Nietzsche sobre o espírito criador não pode ser compreendida


levianamente: não o classifica como um tipo que está em um nível de superioridade em
relação ao tipo decadente, mas como aquele que compreende a sua posição no mundo e
entende-se como efetivo autor de sua própria existência. Enquanto o tipo gregário, tal qual o
último homem, observa a vida sob a perspectiva do esvaziamento de sentido e desagregação
dos instintos, do testemunho passivo, conferindo a outros homens os rumos da sua própria
existência. Sobre tal tipo, fala Heidegger apud Giacóia Junior:

No círculo de visão de seu pensamento, Nietzsche denomina o homem existente até


aqui de “o último homem”. Esse nome não significa que com o homem assim
denominado acabe, em geral, a essência do homem. O último homem é, pelo
contrário, aquele que não é mais capaz de olhar para além de si, de uma vez escalar
por sobre si mesmo, no território de sua tarefa e de assumi-la em conformidade com
a essência dela. O homem de até agora não o consegue, porque ele próprio ainda não
ingressou em sua plena essência própria. 252

O homem sadio é elevado, criador, almeja a altura das montanhas e aceita a vida tal
como ela é, ou seja, uma contínua experiência de dor e prazer, afastando de si o ressentimento
que abranda negativamente as forças vitais, o próprio corpo, algo que o homem enfermo não
faz, por temer a vida, por recusar qualquer ação que exija de si uma postura mais efetiva no
mundo.
É interessante ressaltar ainda, nesse contexto, que a noção de corpo tem uma função
primordial e estratégica no pensamento de Nietzsche, uma vez que postula a base para a
elucubração que empreenderá em torno de determinadas expressões que só podem ser
alicerçadas considerando, também, o aspecto corpóreo, a saber: “fraco”, “forte”, “doente”,
“saudável”, antagonizando, uma vez mais, com as morais responsáveis pela criação de
sintomas e estados corporais desfavoráveis, já que “é preciso que a vida não venha se
253
submeter a um ideal, às dicotomias de valores, à verdade”. Assim, acerca do tipo
decadente, desvitalizado, expõe Bittencourt:

251
GM/GM, p. 84.
252
HEIDEGGER, apud GIACÓIA JUNIOR, O. O último homem e a técnica moderna. Nat. hum. São Paulo, v.
1,n. 1, p. 33-52, jun. 1999. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
24301999000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 jan. 2016. (Trecho traduzido por Giacóia Junior).
253
VIEIRA, M. C. A. O desafio da Grande Saúde em Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. p. 44.
123

O tipo decadente é desvitalizado, por sua vez, pelo fato de considerar o esforço de
superação de si mesmo como um evento arriscado, demasiado perigoso para a
conservação de sua individualidade, tende a depreciar qualquer tipo de ação pautada
na imposição de sua força em prol da elevação do nível de sua potência, preferindo
então sobreviver com o mínimo de energia necessária para a manutenção de suas
funções vitais mais básicas.254

O homem que cultiva a saúde – segundo a perspectiva nietzschiana, ao contrário do


tipo decadente – quer a Terra255, a realidade, o novo através da efetividade e expansão da sua
vontade. É preciso, conforme as palavras de Zaratustra, uma fidelidade à terra e,
consequentemente, ao corpo, desprezado e tornado débil:

Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam
de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não [...]. Uma vez a
alma olhava com desprezo para o corpo: e esse desdém era o que havia de maior: -
ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e à terra.
256

Zaratustra apresenta o homem criador, o além-do-homem, o grande desprezador da


felicidade vigente e dos valores racionais, virtuosos. A compaixão nascida da crucificação é
fraqueza, entorpecimento. O pecado do homem até agora foi o de ter negado a si e a terra, em
nome de um confortável sonho de um Deus regulador, que a tudo observa sem qualquer
possibilidade de efetiva intervenção. O homem precisa abandonar a condição de animal
cativo, cujo instinto maior é o da sobrevivência a qualquer custo, mesmo que isso signifique
abdicar aquilo que lhe é mais caro. Transformação essa pautada na percepção daquilo que é
ineficaz e ultrapassado em favor do novo. É preciso que o homem compreenda que ele é a
própria vida, pois a realidade que se apresenta é sua enquanto fonte de perspectiva.
Não se está falando aqui de um tipo ideal de homem, melhor, perfeito, ideia, e sim de
superação, de compreensão e aceitação das constantes mudanças. O estatuto do que se
considera ideal esfacela-se com o homem nietzschiano, que é todo movimento, transição,
ponte de si mesmo.
O corpo, nesse cenário, é de importância indiscutível, conforme explicita Zaratustra:
“De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e

254
BITTENCOURT, R. N. A decadência dos instintos vitais na moral do ressentimento, Revista AdVerbum 3
(2), p. 156-167, agosto a dez. de 2008, p. 164. Disponível em:
<http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/vol3_2/03_2_6decadencia_dos_instintos.pdf.>. Acesso em:
02/12/2015.
255
Expressão que na filosofia de Nietzsche vai bem mais além do que o sentido costumeiro do termo: pode-se
situá-la, conforme o pensamento do referido filósofo como a existência propriamente dita dos homens, não em
um sentido individual, mas coletivo, em contraposição à ideia de céu, paraíso, éden, o “outro mundo”, conquistas
metafísicas alcançadas particularmente conforme o merecimento de cada um.
256
Za/ZA, Prólogo 3, p.14.
124

verás que sangue é espírito” 257. Pode-se afirmar que o sangue, elemento basilar do corpo, é o
que flui, que não cessa no organismo. Seu movimento deve ser incessante, para que os outros
órgãos não falhem. É com sangue que se deve escrever, compreendendo-se esse verbo
também no sentido de viver. O próprio homem é responsável pelo seu amanhã e não deuses
ou demônios. O sangue representa também a luta, o sacrifício daqueles que estão em combate,
essência da vida.

3.2. Corpo e jogo de forças em Nietzsche

Em JGB/BM, no aforismo 36, Nietzsche expressa: “O mundo visto de dentro, o


mundo determinado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de poder’, e nada
mais”. Com tais palavras, o filósofo alemão aponta a relevância do conceito de vontade de
poder para o homem e para o mundo, em um sentido que permeia não apenas os elementos
externos, mas internos ao ser humano. E nesse âmbito é possível relacioná-lo com a questão
orgânica. Entretanto, para que se possa estabelecer tal relação com maior concretude, é
preciso retomar algumas concepções que fundamentam aquilo que vem a ser vontade de
poder, pensamento este tão controverso, uma vez que a própria irmã do referido filósofo
adulterou escritos e anotações de Nietzsche referentes a tal ideia.
Partindo-se, portanto, da afirmação nietzschiana da morte de Deus, tem-se uma
alteração significativa nos paradigmas que sustentavam as concepções de homem e de mundo
pautadas na revelação divina, no dualismo platônico responsável por distinguir entre mundo
sensível (imperfeito, corruptível, material) e mundo inteligível (perfeito, incorruptível, ideal)
e, acima de tudo, no entendimento acerca do que se pode compreender por “verdade”, pois “a
partir do mundo que conhecemos é impossível demonstrar o Deus humanitário: a tal ponto
pode-se hoje vos obrigar e vos impor [...]. Ele não nos é demonstrável”. 258 Nietzsche coloca
em questão o estatuto das “verdades” apontadas pelas escrituras sagradas, assim como, a ideia
de Deus judaico-cristã. Logo, tal concepção já não se sustenta mais na modernidade, e com a
desestruturação desses pressupostos, desarticulam-se igualmente toda e qualquer valoração
absoluta ou dogmática. O filósofo, com isso, aponta para outra possibilidade de interpretação
de homem, não mais alicerçada em um mundo ultrassensível, exterior a si, mas arrolada em
suas próprias forças e vontades.

257
NIETZSCHE, Za/ZA, Do ler e escrever, p.40.
258
Nachlass/FP, 2 (153).
125

Depreende-se que não há forças externas ao mundo, este existe e é regido por forças
que se mantêm em constante movimento, pois se, ao contrário, fosse possível falar em um
estágio de repouso, tais forças deixariam de existir. Compreende-se, dessa forma, que não se
pode conceber o mundo como algo em harmonia, equilíbrio, e sim em constante conflito, pois
prevalece uma necessidade de expansão: “os processos culturais são processos seletivos, tais
como os biológicos. O ponto em comum dos dois processos está nos impulsos ou nas forças:
igual ao organismo humano, a cultura é expressão de forças que lutam entre si [...]”. 259 É este
cenário basilar no qual se vislumbra a vontade de poder:
[...] seu ser consiste não em conservar-se, mas em exercer seu poder sobre outras
forças que se lhe resistem. Portanto, não conservação de energia, mas querer ser
mais forte por parte de qualquer centro de força; não preservação de si mesmo, mas
vontade de apropriar-se, de apoderar-se do estranho para ser mais e poder mais. A
hipótese de que se parte aqui para abarcar o caráter geral da existência se explica
como esforço em direção ao poder.260

No devir das coisas, na existência efetiva e não criacionista do mundo, a vontade de


poder é algo inerente ao que existe. Sua existência independe de condições para vigorar. Não
há, em um sentido originário, modos que sejam indispensáveis para a vigência da vontade de
poder, ela existe e faz parte das coisas e das suas realidades, o que permite afirmar que é esta
vontade que funciona como um pressuposto que mantém em funcionamento o fluxo do
mundo, expressa principalmente através da daquilo que é concebido como Natureza:

O curso da natureza seria previsível, necessário e calculável, justamente porque não


há leis naturais – porque na natureza vigora a vontade de poder. A necessidade nela
presente é aquela que vige em toda força, em toda relação de domínio e sujeição:
todo poder, a todo instante, extrai sua derradeira consequência. 261

Tal vontade é, por assim dizer, o pressuposto da existência humana, a sua alavanca
inicial, pois está em tudo o que se pode ver, ouvir, tocar, imaginar etc. Nesse ponto, adentra-
se com mais vigor na questão do corpo, pois é através deste que o homem é atingido pelo
mundo em seu mais plural sentido. Por isso, não se pode dizer que existe uma vontade, mas
diversas, que se efetivam das mais diferentes formas, desde os modos mais brandos, até os
mais conflituosos: “A moral tem ensinado, por conseguinte, mais profundamente a odiar e a
desprezar aquilo que é o traço básico do caráter dos senhores: a sua vontade voltada para o
poder”. 262

259
FREZZATTI, 2006, p. 41.
260
MECA, Diego Sánchez. Vontade de potência e interpretação como pressupostos de todo processo orgânico.
Cadernos Nietzsche 28, 2011. p. 25.
261
GIACÓIA JUNIOR, O. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p.32.
262
Nachlass/FP, 5 (71) 9.
126

Nesse aspecto, percebe-se que a vida do homem é conduzida pelo jogo de forças da
vontade de poder: em tudo o que o cerca, sua vontade dirige seu olhar, sua fome de
apropriação: “o que um ser humano quer, o que cada partícula de um organismo vivo quer é
um a-mais de poder”. 263 Vontade de poder e o caráter orgânico não podem ser dissociados,
pois o mundo chega ao homem, conforme Zaratustra, através da grande razão: o corpo.
Agora, o homem não quer apenas existir, ou subsistir, ele quer dominar, criar,
expandir-se. Somente o homem cristão ou o indivíduo doente, busca e enaltece a estagnação,
a impossibilidade de mudança significativa, assim como também o homem da modernidade,
que, em uma perspectiva contrária, encontra-se refém dos valores esvaziados e dos instintos
desagregados, debilitantes. O homem ativo, por sua vez, quer afirmar-se e para tanto a
atividade no mundo se faz mais do que necessária, o que o conduz a asseveração da sua
vontade de poder, que não pode ser compreendida aqui somente no sentido de disputa, de
eterno e incansável conflito, mas também como possibilidade de criação, aquilo que faz
suscitar novas perspectivas.
O homem de organismo sadio, o indivíduo da ação, aquele que não aceita a moral
escrava, quer dizer sim à vida, e o faz através do vigorar de sua vontade. Nietzsche inclusive
aproxima tal tipo à questão da justiça:

O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o
homem reativo [...]. Efetivamente por isso o homem agressivo, como o mais forte,
nobre, corajoso, em todas as épocas possuiu o olho mais livre, a consciência melhor.
264

A vontade possui esse anseio de dominação, conquista, quer dominar e assimilar as


forças mais brandas, menos vigorosas, o que não significa algo negativo, pois a dominação, e
necessidade de expansão cria novas perspectivas, novos caminhos, alargando horizontes antes
estreitos ou estagnados.
Assim posto, percebe-se que a vontade de poder possui uma relevância significativa na
filosofia nietzschiana. Atrelada ao corpo, confere a este um papel ímpar: ao corpo cabe a
tarefa da realização dessas vontades. Um ato de predomínio também pode se configurar como
uma nova perspectiva sobre algo que se encontrava estagnado. Nesse ponto, a questão da
vontade de poder mostra outra percepção, para além da visão que se impõe sobre atos
violentos ou dominadores: o viés da criação.

263
Nachlass/FP, 14 (174).
264
GM/GM, II, §11. (Grifos originais)
127

Salvo raras exceções, um povo dominante agrega a própria cultura elementos da


cultura do povo dominado, o que pode resultar no surgimento de uma cultura diversa, em um
processo que nada há de excepcional ou puramente violento, mas que atende a características
humanas de expansão, uma vez que o homem é conflito e não reconciliação. 265
O corpo, necessário frisar, está presente em todas as obras de Nietzsche, sob os mais
diversos aspectos: seja através da memória, do ressentimento, das figuras do senhor e escravo,
da decadência e tantos outros temas, o que possibilita a enunciação de Nietzsche como o
filósofo do corpo, da fisiologia, do humano. Só se pode falar em vida, conforme o referido
filósofo, se esta estiver atrelada à saúde, a grande saúde, que conduz o homem aos níveis mais
elevados, às montanhas mais altas, contanto que não sejam ignorados os polos dionisíacos e
apolíneos do corpo, podendo-se falar, dessa forma, em um corpo sadio, sob o qual a dor não
representa algo negativo, mas uma possibilidade de renascimento através da convalescência.
Como exemplo, Nietzsche utiliza a si mesmo para representar a questão da saúde:

Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer
fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode
ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao
contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-
viver. 266

O homem, como ser labiríntico, não pode ser classificado sob um título, uma posição
social, uma inclinação, uma postura. Saúde e doença, levianamente separados, como coisas
distintas, apresenta-se para Nietzsche como estados que se complementam: sem a doença, o
estado de saúde perde a sua razão de ser, tornando-se algo banal. É através da primeira que o
homem busca a segunda, desejando-a, estimulando-o a alcançar o estado sadio, mas sem
ignorar que uma está implícita na outra, uma vez que estar saudável implica também em uma
possibilidade futura de doença.
Desse modo, exige-se do homem atenção nessa dupla vertente do físico que se pode
relacionar com a própria condição de vida. Tal concepção, vista também sob o prisma da
metáfora, sugere ao homem, em uma interpretação pessoal, o seu adoecimento moral, a sua
enfermidade que se manifesta através de valores que foram inoculados em si através de
diversos meios, como religião e Estado. Sobre tais enfermidades, o indivíduo precisa buscar
revigorar-se para uma futura possibilidade de, curando-se, tornar-se são daquilo que o
enfraquece e que o impede de se tornar aquilo que é.

265
Sobre o assunto, ver artigo de Isabelle Wienand, intitulado Reconciliação no pensamento de Nietzsche?
Cadernos Nietzsche 31, 2012.
266
EH/EH, Por que sou tão sábio, §2.
128

Não é sem propósito que Nietzsche fala, como já visto, em várias saúdes 267, pois o
homem pode adoecer de diversas formas, em diferentes graus. O nivelamento, a crença em
mundos supraterrenos, a busca pela verdade, o desejo de salvação da alma, e apenas desta, a
fé, nos moldes cristãos, ou mesmo a vontade de nada, afiguram-se como tipos de doenças que
se manifestam através da suspensão da vitalidade e do apego à vida terrena. A superação da
metafísica hipervalorativa da alma, mais do que uma necessidade, é, para Nietzsche, uma
questão de saúde, pois a intenção do referido filósofo é a retomada do corpo e sua
multiplicidade de impulsos e forças de dominação, elementos estes que se representam e que
encontram expressividade também no mundo, o qual não deve ser esquecido, uma vez que é
este mundo que fornece ao corpo determinados elementos que constituem a grande razão:

[...] é o corpo o ponto de apoio para Nietzsche e o lugar de separação das águas em
seu pensamento com respeito à tradição. O radical e intempestivo de seu
esclarecimento se mostra quando afirma que não é simplesmente o espírito ou a
razão o que filosofa no homem, mas, desde o início, as carências ou as riquezas e
forças de seu corpo.268

Corpo e mundo, assim, interligam-se, o que evoca novamente a questão da vontade de


poder, que também é uma forma de dominação das demais forças, mas em um sentido mais
perspectivístico. 269 O corpo, como força também, está em combate constante, situação esta
que subjaz às relações de domínio, de expansão, que se efetuam a todo o momento 270 ,
desfazendo-se desse modo a concepção de homem como unidade, uma vez que o caráter
fragmentário do corpo, que busca a dilatação, o expansionismo, denota a complexidade do
homem, o seu caráter labiríntico, uma vez que, conforme declara Nietzsche, o corpo se
configura por: “forças espontâneas, agressivas, usurpadoras, expansivas, criadoras de novas
formas [...]”. 271 E tal concepção adequa-se ao plano daquilo que Nietzsche compreende por
corpo atuante no mundo, posto que “o corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma
pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, “unidade de
dominação” [...]”. 272 O homem embebido pela vontade de poder expõe e efetua a sua força,

267
FW/GC, § 382.
268
“[...] es el cuerpo el punto de apoyo para Nietzsche y el lugar de separación de las aguas de su pensamiento
con respecto de la tradición. Lo radical e intempestivo de su planteamiento se muestra cuando afirma que no es
sin más el espíritu o la razón lo que filosofa en el hombre, sino que, desde la partida, las carencias o las riquezas
y fuerzas de su cuerpo.” (JARA, J. Nietzsche, un pensador póstumo. El cuerpo como centro de gravedad.
Anthropos Editorial, Barcelona, 1998. p. 61).
269
PASCHOAL, 2009, p.43.
270
Ver Nachlass/FP, 14 (173), 14 (174).
271
GM/GM, II, §12.
272
DELEUZE, 1976, p. 33.
129

comportamento este que não coaduna com a postura do homem moralmente ou


organicamente enfermo.
É preciso esclarecer que esta força, da qual fala Nietzsche, não é uma força qualquer,
como esclarece Paschoal, mas algo que exige, para vigorar, efetividade:
Também o que Nietzsche entende por força não pode ser confundido com a noção
mecânica de força. Uma força, para ele, não é qualquer tipo de “força física,
dinâmica ou o psíquica” (KSA 13, p.300) ou mesmo alguma forma constante de
energia, algo que em última instância se daria no “espaço” e poderia ser medido.
Uma força se define do mesmo modo como se define a própria vontade de poder,
pelo seu atuar. Uma força só “é” enquanto ação, somente tem realidade no seu agir.
273

A não ação, a resignação, a vida ascética no seu sentido mais romantizado, a pregação
de uma harmonia baseada na tentativa de supressão do conflito, dentre outros aspectos,
marcam a existência cristã como algo não natural, pois renega a vida e o corpo naquilo que
ambos possuem de mais particular: o desejo de realização e ampliação. Enaltecer a inanição
moral e fisiológica é condenar o homem a uma vigência subterrânea na qual a vontade de
poder não encontra formas de propagação, o que se reflete no próprio corpo.
O que Nietzsche como fisiologista quer é um sim à vida e o faz através da afirmação
do corpo, que também é vontade de poder. O homem, na sua efetivação, através das mais
diversas formas, desde um simples caminhar até a prática de atos mais extremos, é todo
permeado de vontade fisiológica que está para além de conceituações, designações racionais
ou metafísicas.
O método genealógico dos procedimentos nietzschianos, na sua tarefa de auscultar as
enfermidades do corpo físico, é não apenas detectar a doença, mas também prescrever
possibilidades de cura. A história, por exemplo, deixará claro, conforme o método
genealógico de Nietzsche, que muitos conceitos nascidos e impostos como verdades ou
dogmas nasceram de modos distintos aos que na atualidade são postos, como as concepções
de bem e mal. O conceito de alma, tão adulterado no decorrer do tempo, hoje serve como
mecanismo de domesticação através da subsunção de temores e receios primitivos que
adestram o homem e o aprisionam em um sistema de vida corrompido, desregulador do corpo
e amestrador dos impulsos, algo que ocorre, como já dito, desde Sócrates e considerável parte
da tradição filosófica.

Imbuídos da tarefa de dirigir a humanidade tanto quanto os sacerdotes, os filósofos


igualmente se investem de um direito à mentira. Platão acima de todos. Religiosos e
filósofos, todos eles, criaram dogmas que, por meio da educação, impõem a visão do
mundo e que procedem a domesticação dos impulsos humanos. Eles aboliram a

273
PASCHOAL, 2009, p.47.
130

noção de curso natural das coisas, postularam o sobrenatural, o “além”, o “pós-


morte”, uma esfera que escapa ao homem, mas que é necessário atingir através da
tutela dos mestres religiosos e filosóficos para se obter a beatitude. 274

Nietzsche quer apontar perspectivas a ultrapassar esse mecanismo aprisionador do


homem. Além da compreensão genealógica, a hipótese da vontade de poder é uma
possibilidade de retorno ao “curso natural das coisas”, no qual não se pode falar em unidade,
pois a vontade de poder atua sobre qualquer coisa. Poder, como explica Paschoal “designa, na
filosofia de Nietzsche, ‘domínio’, tornar-se dominante no jogo onde emerge para torná-lo
favorável a sua expansão”. 275 Expandir-se no sentido de dominação sobre novos domínios,
numa busca por mais poder, em um interminável ato afirmativo que possui significativa
ligação com o mundo, este ignorado durante muito tempo pelo caráter metafísico da filosofia.
Mas não apenas domínio sobre pessoas, mais um domínio mais amplo, sobre o seu próprio
destino. Tornar-se o que se é.
Na história do homem muito de si foi ignorado, como o próprio corpo e seus instintos.
Ponderações filosóficas sobre o “ser-aí” ou a “verdade”, impulsionaram o pensamento do ser
humano para uma direção na qual o fisiológico não possuía espaço. A alma, sempre em
primeiro plano, desvirtuou o pensamento da civilização sobre aquilo que está próximo e que é
efetivo. Os fatos da história giram em torno de guerras, de aniquilação de civilizações, embate
de potências, mas nunca observando em tais conflitos a vontade, o desejo de expansão, como
se o homem fosse apenas um ser que se guia por vantagens e/ou desvantagens. O corpo, em
cada momento da humanidade, se faz presente: flagelado, esgotado, sacrificado, manipulado,
distorcido etc., ele é indissociável da história humana. Em si não há verdades, mas impulsos,
energia em movimento, caos, destruição e reconstrução.
Com Nietzsche, o corpo extrapola os limites conceituais padronizados, interligando-se
com aquilo que se pode chamar de natureza. Por esta, Nietzsche compreende como o conceito
que se opõe à tradição metafísica centrada na figura divina. 276 O afastamento do homem
daquilo que se compreende por natureza277 resultou em uma espécie de desnaturalização do
homem, principalmente no que diz respeito ao homem moderno, este que se volta para uma
existência cada vez mais permeada de sistemas opressores, bem como categorizantes: o

274
FREZZATTI JR, W. A. A pia fraus (mentira piedosa) sob a perspectiva da genealogia da moral. In:
FREZZATTI, JR.,W. A. & PASCHOAL, A. E. (Orgs.). 120 anos de Para a genealogia da moral. Ijuí (RS):
Editora UNIJUÍ, 2008. p.266-267.
275
PASCHOAL, 2009, p.51.
276
Ver. AC/AC, §15.
277
Sempre necessário lembrar a oposição de Nietzsche com respeito a Rousseau, a qual não iremos abordar aqui
por se desviar um pouco de nosso propósito. É preciso frisar, contudo, que natureza, natural em Nietzsche são
sempre perspectivismos.
131

homem da modernidade se sujeita não mais à imagem de um deus hierarquizado como a fonte
moral, mas a formas de sujeitamento que o sufocam cada vez mais. Ideais de vida, conforto,
avanço tecnológico, dentre outros aspectos, substituem a figura divina como norteador da vida
e orientam a visão do homem para outros meios de controle, no qual o corpo ainda não possui
uma representação satisfatória, mas é observado apenas como mero instrumento de
corroboração de sistemas de alienação. Assim posto, a agressividade reprimida, a ilusão da
civilidade, o culto ao intelecto como única forma superior de hierarquização do homem em
relação aos demais animais, situam o homem em uma nova forma de carceragem na qual a
natureza e os impulsos são outra vez refreados.
Sem o aspecto natural, não se pode falar em uma vontade de poder, pois sem a
natureza o homem não consegue dar conta de quem ele próprio é, uma vez que o corpo é
também natureza. É preciso que o homem, para poder se tornar o que é, busque naturalizar-se,
uma vez que a sua natureza foi deturpada por valores que visam apenas a sua domesticação e
enfraquecimento, em outras palavras, a anulação da sua vontade de poder. E uma das formas
de concretização de tal projeto é o silenciamento do corpo, a constante supressão de seu
caráter fisiológico, a debelação dos seus impulsos.
Nesse âmbito, não se pode falar em uma harmonia entre os aspectos metafísicos e os
naturais, pois ambos situam-se em polos que se mostram contrários. Este mundo, da natureza,
não é o mundo das projeções ansiadas, dos paraísos imaculados e perpétuos, estagnados. O
mundo real, a realidade, como afirma Nietzsche, está em constante mudança e o corpo,
também efetivo e natural, segue-o em suas mutações, sua composição e decomposição.
O corpo não é somente prazer, satisfação, mas também dor, angústia, doença, e a
compreensão em torno desses últimos estados corpóreos é tão importante quanto os estados
afirmativos se quisermos abordar a saúde em Nietzsche. E neste aparente contrassenso que as
concepções morais fundamentam suas ofertas de sedução ao homem moderno. No outro
mundo não há sofrimento, não há aflição, somente deleite. E o homem que não aceita a vida e
os seus aspectos naturais, acolhe tal pensamento, adoecendo ainda mais. O homem moderno,
em contrapartida, é o indivíduo da artificialidade, das regras e dos valores impostos e
seguidos, mas que no âmbito da natureza perdem sua razão de ser.

O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme sua
natureza – a natureza é sempre isenta de valor: – foi-lhe dado, oferecido um valor, e
fomos nós esses doadores e ofertadores! O mundo que tem algum interesse para o
ser humano, fomos nós que o criamos! – Mas justamente esse saber nos falta, e se
num instante o colhemos, no instante seguinte voltamos a esquecê-lo. 278

278
FW/GC, §301.
132

Em nome de um pretenso conhecimento, o homem enganou-se, primeiramente.


Depois, no decorrer do tempo, esqueceu-se desse engano. Contudo, nada pode apagar a
evidência de que, apesar da sua racionalidade e orgulho desta, o homem ainda é um dos
animais mais fracos. A única mudança significativa é que na atualidade o homem foi
domesticado, acorrentado, ou seja, teve suprimida a sua força primordial. E todo o esforço da
civilização atual é o de ainda manter tais amarras: a ciência, tanto quanto a religião ou a
filosofia, busca também a desnaturalização do homem e a negação dos seus instintos:

Refiro-me à moralização e ao amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho


“homem” aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. A caminho de tornar-se
“anjo” (para não usar palavra mais dura) o homem desenvolveu em si esse estômago
arruinado e essa língua saburrenta, que lhe tornaram repulsivas a inocência e a
alegria do animal, e sem sabor a própria vida. 279

Tornar-se “anjo” ou acreditar em preceitos científicos não possuem, no pensamento


nietzschiano inicial, significativa distância, uma vez que as ciências, para o referido filósofo, a
fortuna da tradição racional científica em muito deve a Sócrates, conforme podemos inferir a
seguir, pois: “Em O Nascimento da Tragédia (GT, 1872), Nietzsche defende uma tese
polêmica: o pensamento mítico ou trágico presente na tragédia ática é um tipo de
conhecimento mais amplo e autêntico que a ciência nascida do racionalismo socrático”. 280
Contudo, posteriormente, Nietzsche concebe que, na tarefa para a transvaloração dos valores,
conforme elucida Barrenechea, a presença das ciências se faz indispensável:

Determinar o valor dos valores – ponderar se são nobres ou vis, sadios ou doentes –
é fundamental nesse momento niilista que predomina no ocidente. Ao analisarmos
esses valores, Nietzsche mostra que é possível elaborar um prognóstico – tarefa de
médico filósofo – a fim de ultrapassar essa etapa doentia da humanidade. Ele aponta
para a transvaloração dos valores que resgate as tendências vitais, restabelecendo as
forças de uma sociedade declinante. Lembremos que, como foi assinalado
anteriormente, nessa tarefa avaliativa é fundamental, para Nietzsche a participação
das ciências. 281

A mudança de Nietzsche em relação às ciências não é aleatória: o filósofo detectou


particularidades e inclinações em determinadas ciências as quais apontavam não mais para a
busca de uma resposta ou sustentáculo de ideais ascéticos somente, mas que também

279
GM/GM, §7.
280
RAMACCIOTTI, B. L. Nietzsche e a ciência: Do Romantismo ao “Novo Esclarecimento” (Aufkärung). In: II
Congresso Internacional Spinoza e Nietzsche, 2009, São Paulo. Conferência. São Paulo: USP, 2009. p. 127.
Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_11/Nietzsche_Ciencia.pdf>. Acesso em:
03/12/2015.
281
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche cientista? In: BARRENECHEA, M. A. de. [et. al.]. Nietzsche e as
ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p. 43.
133

enveredavam por um caráter mais plausível, concreto, nos quais Nietzsche pode desenvolver
suas percepções e teorias sobre o corpo, o orgânico, o fisiológico:

Nesses anos, interessado em tematizar os fenômenos vitais, a dinâmica dos instintos,


a compreensão dos corpos, Nietzsche aprofunda as teorias de biólogos, naturalistas e
físicos. Encontra nessas interpretações importantes subsídios para aprimorar suas
teses propriamente filosóficas acerca da vida, da vontade de potência, do corpo, do
eterno retorno etc. A biologia será fundamental para pensar o fenômeno vital, para
fundamentar a sua concepção de forças e da vontade de potência. 282

É preciso, para compreender essa posição de Nietzsche em relação às ciências, atentar


para o fato de que, aos olhos do referido filósofo, as ciências ainda estão atreladas a uma
busca por uma verdade que se assemelha, em essência, à procura pelo ideal ascético, como se
o homem, o corpo e o mundo fossem elementos estáveis que estivessem apenas aguardando
para serem desvendados, resultando em algum conceito ou teoria cuja validade científica se
fundamentará em uma lógica construída em termos de verdadeiro ou falso.
O homem mantém, mesmo que civilizado e adestrado, uma animalidade instintiva que
permanece adormecida em si. Em um esforço que se pode considerar até então recente, a
filosofia outorgou-se uma tarefa de condutora do homem, pela qual, em diversos tratados e
sistemas filosóficos, a conduta humana sempre era condicionada a uma busca pela superação
da condição de animalidade do homem.
Contudo, Nietzsche observa que mesmo o homem estando preso a regulamentos,
normas e valores, ainda assim os instintos, os impulsos são forças que não o abandonam e, de
algum modo, continuam a influenciar de forma direta em suas ações. Qualquer atitude
contrária a esses princípios representa enfraquecimento, adoecimento, debilidade fisiológica.
Sobre os instintos, Nietzsche afirma que estes foram reprimidos em nome da razão,
algo que se deu a partir de Sócrates. É sabido que o homem, para o filósofo alemão, apresenta
como postura adequada o vislumbre da postura dionisíaca em harmonia com a apolínea. Um
desnivelamento desses dois elementos resultará em um processo de desnaturalização do
homem, algo que ocorreu com a defesa e influência socrática em nome de uma racionalidade.
O caráter criador do homem, antes em consonância com esses dois polos, foi desfeito e com
ele o desejo de expansão inerente à vida. A arte trágica, que tão bem representava tal postura,
é suprimida em nome de uma estética racional, cujo ápice mostrou-se e avolumou-se no culto
à razão.
Por instinto, compreende-se aqui aquilo que se mostra inerente ao ser humano, ou seja,
um comportamento que se pode denominar de inato, que está mais basicamente atrelado à

282
Ibidem, p. 42.
134

vontade de sobrevivência. Isto não significa dizer que um indivíduo decadente não possua
instintos, entretanto, os seus são distintos se comparados aos de homens fortes:

Com uma abundância de caracterizações, Nietzsche empreende uma diferenciação


entre os instintos de décadence no NIILISMO (europeu) e aqueles instintos fortes,
guiados por forças ascendentes do agir humano [...]. Na medida em que Nietzsche
põe frente a frente em disputa a grande razão do corpo contra a pequena razão do
espírito, ele formula, além disso, uma proposição científico-natural dos instintos. 283

A relação dos instintos com o corpo não pode ser mensurada. Entretanto, faz-se
necessário lembrar que muitos destes instintos sofreram, no decorrer da história, inúmeras
tentativas de bloqueio, de anulação, cujo sucesso não se efetivou, mas criou barreiras que na
atualidade são sentidas através de problemas que afetam o âmbito psicológico dos indivíduos.
O corpo, cujos instintos não são devidamente extravasados, é forçado a imergir em um estado
de debilidade, de insuficiência, uma vez que saúde pode ser também classificada como a
ativação e prática desses instintos mais elevados, vigorosos.
Em FW/GC, Nietzsche aponta para a importância dos instintos como força reguladora:

Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no
conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu
fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua
consciência. 284

É preciso reconhecer que a razão não é suficiente para dar conta da multiplicidade
instintiva do homem, dos seus impulsos que muitas vezes até mesmo se contradizem. Agir
apenas racionalmente, ou tentar, é empreender um projeto cuja falibilidade mostra-se
inevitável, pois os instintos, como formas elementares de sobrevivência do homem,
apresentam-se mais intensamente na medida em que a consciência, como aponta Nietzsche,
chega a tornar-se um perigo para o organismo, pois se acredita que ela é a grande reguladora
do homem, o que se mostra um equívoco.
Nos instintos não há engano, o corpo não cria subterfúgios para desejar algo, ele quer,
ele anseia, diferentemente da consciência, que, entre outras tarefas, disfarça, tangencia os
desejos humanos, mascarando-os ou retendo-os em nome de uma postura, de uma educação
polida, de um querer aparentar, conforme observa Granier, para quem: “faz-se necessário
deixar de dar crédito à consciência e se direcionar para o corpo, pois este é o único capaz de
nos instruir sobre o valor de nossa personalidade profunda [...]”. 285

283
NIEMAYER, 2014, p. 303-304.
284
FW/GC, §11.
285
GRANIER, J. Nietzsche. Tradução: Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2011. p. 90.
135

A nobreza dos instintos é, por Nietzsche, apontada, pois conferindo-se ao corpo a


tarefa de tutor, o homem permanecerá atento ao que aquele quer, deseja, anseia. Dessa forma,
os padrões avaliativos da vida, do mundo, de tudo aquilo que cerca o homem será alterado
para um plano mais concreto, mais físico, desfazendo-se desse modo o engano metafísico, os
desvios dos instintos, dando vasão à vontade de poder, que, como já dito, quer expansão, algo
possível somente quando o racional der lugar ao instintivo. A sabedoria do homem, assim
posto, rumaria em outra direção, distante daquela na qual a consciência seria uma dentre
tantas formas de percepção do corpo, não a maior nem a melhor, pois corpo é fragmento,
depreendendo-se daí que não existe certo ou errado no corpo, melhor ou pior. Reverter os
princípios norteadores é afastar o mundo metafísico e apresentar o corpo como a perspectiva
mais plausível, uma vez que corpo é mundo, natureza, força:

A metafísica é a perspectiva de quem não ama esta vida terrena, isto é, perspectiva
de quem a nega. Porém, esta vida terrena, a qual nem precisaríamos afirmar como
imanente, parece que é a única existente, uma vez que a transcendência não existe,
ou seja, esta tal metafísica somente existe, ao que parece, para aqueles que não
amam o seu destino, que é o seu próprio corpo, sua própria vida. E destino como
natureza, como este mundo plural enquanto mundo das forças, mundo como VP
(vontade de potência). 286

Nietzsche, muitas vezes criticado por seu pensamento, e compreendido como


pessimista e niilista, condição essa que ele mesmo assume em diversas passagens de sua obra,
diz sim à vida em todas as esferas, e o faz através da afirmação do corpo, este, por sua vez,
silenciado em nome de ideais que não se sustentam concretamente. A intimidação do homem
através de imagens e pensamentos de dor e eterno sofrimento, como na concepção cristã,
resultaram em valores que renegaram o corpo em quase todas as suas características.
O controle pelo medo, pela coerção, direta ou indireta, física ou psíquica, gerou uma
negação da vida que ainda hoje se faz sentir de forma consistente na civilização. Aceitar a
dor, afirmar a vontade de poder, o corpo e os instintos é a forma que Nietzsche encontrou para
que o homem não mais fugisse da realidade, mas a aceitasse como única e inexorável. O
mundo mascarado pelo homem e sua racionalidade, através da religião, educação, ciência,
filosofia etc., unidos ao desejo humano de controlar a natureza, bem como a sua própria, é um
modo grosseiro de dissimular, de escapar da efetividade e concretude, na qual a comodidade,
o desejo de segurança e estabilidade, o anseio por afirmação, se desfazem, pois o homem, ao
contrário do que pensa, não detém controle sobre quase nada. A morte, desse modo,
prefigura-se também como fato estarrecedor e implacável sobre o homem, que busca se

286
SOUSA, M. A. Nietzsche: Viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.
136

esquivar de tal destino das mais variadas formas, seja alimentando o sonho edênico de um
mundo extraterreno perfeito, onde a dor e a doença não se fazem mais presentes, seja por
intermédio da concepção moderna segundo a qual é preferível viver uma efetividade
esvaziada de sentido do que simplesmente não viver.
Mas a morte, tão real quanto a própria vida, efetivada através do fim orgânico do
corpo, assinala uma perspectiva que não pode e não deve ser negada. A “espiritualidade” fez
do homem refém de um sistema no qual ele renega a vida efetiva, incluindo-se ai a sua
própria morte. Nesse processo, perde-se a concepção do que é verdadeiramente sagrado, o que
não significa aqui a representação dos adereços ou adornos tipicamente utilizados pelas mais
diversas religiões ou cerimônias nas quais se efetivam votos de negação do corpo e do mundo.
Sagrado, para Nietzsche, está relacionado com movimento: “Eu acreditaria somente em um
deus que soubesse dançar”. 287 Nesse sentido, natureza e divindade se conectam, pois ambos,
no pensamento nietzschiano, apresentam ação, movimento e não fixidez.
O que seria o corpo sem movimento? Impossível conceber de forma satisfatória tal
pensamento, uma vez que tudo que é concreto e real está em movimentação constante, avança
ou retrocede, não no sentido evolutivo do termo. Uma pedra decompõe-se, bem como também
pode agregar em si partículas. Contudo, um deus metafísico permanece imutável,
indefinidamente, sem qualquer possibilidade de alteração. Para tanto a invenção da alma foi
providencial, pois aproximou metafisicamente os homens da sua máxima criação divina, pois
com a alma o homem, tal qual a divindade, acreditou tornar-se imortal.
Os instintos foram postos de lado, internalizados, pois o homem deixou de amar a si e
o mundo:
O homem que quer internalizar seus instintos adoece mais rapidamente. Ou melhor:
o instinto razão, que ainda não sentiu os outros instintos, que não os experimentou
dentro de si, não é capaz do amor fati. É capaz, apenas, de “exorcizar” esses mesmos
instintos que o incomodam. Também os instintos foram divididos em Bem e Mal.
Daí a necessidade de irmos para além do Bem e Mal, o que nada tem a ver com
relativismo e, sim, com perspectivismo. 288

O próprio deus cristão assinala a distinção entre valores bons e maus, entre aquilo que
é o ideal e o repulsivo. E no que se refere a este último aspecto, muitos instintos estão
forçosamente inseridos, em uma tentativa de estagnar o homem em duas vertentes, dicotomia
que não abre precedentes para uma terceira ou quarta perspectiva. Assim o homem encontra-
se preso, estagnado em um plano no qual se pode aceitar uma das direções impostas. Tal

287
Za/ZA, Do ler e escrever, p.41.
288
SOUSA, 2013, p.85.
137

imposição está longe de representar, para Nietzsche, o sagrado, que está mais relacionado
com vontade de poder, natureza, força.
Deus está morto e nós o matamos, conforme Nietzsche. Para falar em possibilidades
de movimentação e inserir outra vez o corpo como cerne das perspectivas reais presentes no
mundo, conceitos estes atrelados à vontade de poder e terra, é preciso afastar a mobilidade das
morais engessadas, cujo reflexo pretende no homem um seguidor. Nesse sentido, Barrenechea
aponta que:

[...] a noção de vontade de potência aparece como tema central. Veremos que “terra”
e “vontade de potência” estão profundamente interligadas. Há uma convergência
significativa entre as noções de terra, mundo, vida e vontade de potência. Todas elas
aludem ao jogo de forças, às pulsões intramundanas que permeiam os movimentos
do universo. 289

Independente de toda a tradição que desvaloriza corpo e vida, Nietzsche expõe o


contrário: a ação afirmativa deste e de outros elementos ignorados pela postura ascética. Para
tanto, Zaratustra surge, no plano do pensamento nietzschiano, como um guia para o homem.
O que Nietzsche busca expor é o amor pela vida, algo alegre, real, que para ser efetivado deve
voltar-se contra a hostilidade cristã à vida terrena.
Zaratustra, através das três transformações do espírito, propõe uma possibilidade: o
tornar-se outra vez criança. 290 Nas palavras de Zaratustra outra vez a imagem do movimento,
contudo, um movimento tal que se efetue por si mesmo, ou seja, sem qualquer crença em uma
força externa que tornaria possível esse movimento circular.
Não há nascimento e morte como ponto de partida ou chegada, mas um ciclo de vida
que não cessa, constante. Não há imortalidades, eternidades para a fixação do homem, mas
apenas a efetivação natural das coisas. O corpo, nesse cenário, é a chave que irá abrir novas
portas, fechadas em nome de um sonho ideal que por muitas gerações tem cegado o homem e
silenciado o seu corpo como voz ativa, que deseja, que quer e apresenta uma vontade que não
pode ser traduzida além da linguagem fisiológica, que por sua vez também é movimento,
princípio da vida: “Quem não se move na vida, quem não dança, descobre profundidade nela.
[...]. Quem quiser dançar não deve refletir sobre isso. A vida quer ser vivida, não só pensada”.
291

Aos enfermos, Zaratustra oferece sua indulgência: “Tolerante é Zaratustra com os


doentes. Não se irrita, em verdade, com suas formas de consolo e gratidão. Que se tornem

289
BARRENECHEA, 2008, p.97.
290
Ver Za/ZA, Das três metamorfoses, p.28-29.
291
SAFRANSKI, R. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução Lya Luft. São Paulo: Geração editorial,
2011. p. 256.
138

convalescentes e superadores e criem para si um corpo superior”. 292 Saúde e doença são
formas de luta, são personificações também da vontade de poder, uma vez que os impulsos
pela convalescência se fazem sentir, e aqui toma-se tal concepção em sentido abrangente, não
apenas físico, pois a decadência é assinalada pela desorganização dos impulsos, algo que com
o homens sadios se reorganiza, reestrutura-se, em anterior estado de enfermidade.
A presença da saúde é organização, hierarquização, é poder criar e afastar-se do que se
encontra imobilizado. Vitalidade é poder alcançar o novo, algo que se efetiva através da
revalorização do corpo, esta grande razão afirmativa da vida. Sobre esta, é preciso aceitá-la
em todas as suas instâncias, seus particularidades, para que o homem não se acovarde e
busque, outra vez, em longínquos e impalpáveis sonhos, um conforto superficial.

292
Za/ZA, Dos transmundanos, p.33-34.
139

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se buscou demonstrar no decorrer da presente dissertação é a relevância e


riqueza da questão do corpo na modernidade a partir de Nietzsche, colocando em destaque o
desenvolvimento da referida temática no percurso do pensamento nietzschiano, desde os seus
escritos de juventude, até os textos de maturidade. Não foi nossa pretensão, é importante
frisar, abarcar a totalidade das interpretações do corpo no pensamento de Nietzsche, uma vez
que a referida temática exibe muitas especificidades, as quais elevam a questão a vários níveis
interpretativos. Assim, nosso objetivo foi traçar uma linha reflexiva em torno das
considerações de Nietzsche acerca do corpo, tendo em vista o quão significativo é esse
assunto para as pesquisas a respeito do pensamento do filósofo na atualidade, e de que como
essa nuance vem ganhando cada vez mais proeminência nos debates acadêmicos.
Tendo em vista tais aspectos, o escopo central desse texto foi investigar a concepção
de corpo em Nietzsche considerando, tanto o aspecto genealógico, metodologia de
investigação utilizada pelo filósofo, que possibilita um caráter interpretativo aos seus
posicionamentos, quanto o viés perspectivístico e instintivo do todo corpóreo. Refletir acerca
do corpo levando em consideração a multiplicidade de forças intrínsecas a essa fonte de
investigação.
Primeiramente, buscou-se delimitar que, para Nietzsche, a noção de corpo assume a
perspectiva de fio condutor porque instaura o corpo enquanto campo de possibilidades
interpretativas, em uma tentativa de reverter o processo de má-compreensão do corpo
estabelecido, a princípio, pela filosofia tradicional racionalista, e posteriormente, pela moral
cristã. Assim, para José Jara:

Com a expressão escolhida para nomear o corpo, Nietzsche faz alusão ao complexo
conjunto de elementos que compõem a parte central de um sistema, em que adquire
o seu significado e pode ser entendido. O corpo é o centro de gravidade do homem
dentro do sistema de sua existência, composto tanto por elementos fisiológicos como
teóricos, morais e valorativos, levando à sua inserção em um povo ou uma cultura
[...]. 293

Nesse sentido, pensar o corpo a partir de Nietzsche se configura, acima de tudo, como
uma tarefa crítica. O filósofo compreende que o papel da filosofia tradicional racionalista,

293
“Con la expresión elegida para nombrar al cuerpo, Nietzsche alude al complejo conjunto de elementos que
convierten a dicho centro en parte de un sistema, dentro del cual adquiere su sentido y puede ser entendido. El
cuerpo es el centro de gravedad del hombre dentro del sistema de su existencia, compuesto tanto por elementos
fisiológicos como teóricos, morales y valorativos, dando lugar a la vez a su inserción dentro de un pueblo o una
cultura […]” (JARA, 1998, p. 109 – Tradução nossa).
140

assim como também, da moral cristã, foi muito significativo no sentido de erigir um desprezo
aos aspectos corpóreos mais salutares. Construindo-se, a partir dessa flagrante desvalorização,
uma visão dualista de homem e mundo, pautada em critérios declinantes da vida.
Para além do soslaio dualista, restritivo e decadente, segundo a interpretação
nietzschiana, buscou-se evidenciar a complexidade de elementos que compõem o homem,
com ênfase nos subsídios afirmadores da vida, os quais estão intimamente relacionados aos
aspectos corpóreos, tanto fisiológicos quanto valorativos.
Nietzsche volta sua crítica contundente precipuamente contra os valores morais,
culturais e estéticos responsáveis pela depauperação do corpo estabelecida, sobretudo, pela
crença na noção de verdade. Opõe-se a uma visão de vida que a quer estática, regular,
previsível, visando demonstrar critérios de afirmação da vida pautados pelo movimento,
irregularidade e devir constantes, estes sim característicos do homem.
O corpo, nesse interim, se configura como o “centro de gravidade” em torno do qual
paira a interpretação de Nietzsche acerca da modernidade, não apenas por servir de arcabouço
para a crítica empreendida a tradição filosófica e aos valores morais declinantes da vida, mas
também porque expressa, em grande medida, os esforços do filósofo em manter-se distante da
“[...] linguagem empregada pela tradição para se referir ao tema do corpo”. 294
Tomando por base tais pressupostos, buscamos ressaltar, lançando mão dos escritos de
Nietzsche, desde GT/NT, que houve dois momentos fundamentais para a compreensão de
homem e mundo que esboçamos na modernidade, o momento de afirmação e o momento de
declínio do corpo, momentos esses descritos pelo filósofo, respectivamente, como de aumento
e decadência das forças que compõem o todo corpóreo. O período de afirmação, desse modo,
corresponde à visão grega de corpo, anterior ao primado da filosofia, em que os conflitos e
embates humanos eram personificados em matéria de jogo de forças, sendo a vida afirmada
aqui em todos os seus aspectos, tanto os mais cruéis, quanto os mais alegres, prazerosos. O
período de declínio dos valores afirmadores da vida, conforme Nietzsche, pode ser entrevisto
na decadência das forças e, sobretudo, na desagregação dos instintos e impulsos corpóreos.
Assevera-se de tal modo que Nietzsche compreende a relevância da grecidade295 para
a visão afirmadora da vida e do corpo, pois foi nesse momento que se delinearam os
pressupostos de ascendência das forças e afirmação dos elementos corpóreos. Nesse âmbito,
tendo em vista a reflexão erigida em torno da importância desses elementos, sua oposição se

294
“[...] al lenguaje empleado por la tradición para referirse al tema del cuerpo.” (Cf. JARA, 1998, p. 107 –
Tradução nossa).
295
Sem, contudo, demarcar um retorno à mesma.
141

fará contra explicações de mundo pautadas em critérios de verdade, racionalidade e vida


improfícua, a saber, destituída de um aspecto elementar, a criação. Na filosofia nietzschiana, a
perspectiva da criação está, inegavelmente, associada ao corpo, uma vez que este, superado o
viés dualista em relação à alma, emerge como pluralidade de forças em vir-a-ser.
Falar em corpo, na modernidade, requer uma visão que busque reafirmar a sua
importância no cerne social e intelectual que não pode, nem deve mais ser negado. Tantas
vezes relegado a um plano inferior, como uma questão imperfeita, impura e perecível, o corpo
precisa ser retomado como tese principal nos debates intelectuais, principalmente os
filosóficos, uma vez que a razão, a inteligência, a sabedoria, nada representam sem este
aspecto que torna o homem possível no mundo, cuja forma de pensar, ver a si e ao mundo, é
efetuado de forma direta não por via puramente racional, mas instintiva, orgânica, sensitiva.
Não é sem motivo que o denomina de “a grande razão”, pois é através do corpo que o homem
projeta-se ao que o cerca, bem como assimila aquilo que se apresenta a si. É preciso corrigir o
equívoco efetuado há séculos, no qual não somente o corpo foi negligenciado, mas o próprio
homem, em nome de subterfúgios metafísicos que o desvirtuaram daquilo que ele é, como
vontade, impulso, animalidade.
Se o homem hoje percorre caminhos que se apresentam sob um viés niilista, não terá
sido isto uma consequência do desvio proposto pela filosofia tradicional e seus mundos
perfeitos, razões puras, coisa em si? A filosofia forçou o homem a tentar assimilar uma
realidade que de fato nunca existiu, revestindo-a de aspectos que conduziram a uma negação
de si mesmo. Tal realidade, apropriada pelo cristianismo, buscou converter o homem em um
ser impossível de sustentar, a saber, aquele que renuncia aos seus instintos, seus desejos, suas
inclinações, em prol de uma suposta vida edênica, na qual o corpo não possuía espaço, dada
as suas características consideradas negativas. Esse esforço antinatural tornou-se a fonte de
subsídios declinantes que degeneraram no ser humano os seus aspectos mais particulares.
Retorna-se, assim visto, à efetividade, à concretude e à realidade através do corpóreo e
de tudo aquilo que a ele se apresenta. Estamos falando de mudanças significativas, de
alterações de pensamento que podem conduzir o homem a uma nova visão e percepção da
vida, ou melhor, uma afirmação desta através do corpo. Nesse aspecto o niilismo possui
significativa importância, pois sua tarefa de minar compreensões sacralizantes no pensamento
do indivíduo moderno efetuou-se de modo expressivo, o que não pode ser ignorado quando se
busca apresentar uma nova perspectiva de olhar. O último homem precisa ser superado. Sua
inércia, fidedigna à postura cristã, precisa ser confrontada com a ressignificação do corpo e
sua importância efetiva. A saúde, o vigor, abandonados e ignorados, necessitam tornar-se a
142

ordem da vez. A debilidade, a subserviência, o desprezo ao corpo tem que dar espaço ao
homem que diz sim à vida e a afirma através do corpo e da existência salutar.
Nietzsche enfatizou em diversas obras a questão da saúde. A enfermidade não deve ser
vista como regra, mas como uma etapa a ser superada para que o homem possa reconhecer as
duas condições, de saúde e debilidade, e se posicionar sobre elas. Esse tipo moderno de
homem, que ainda se faz presente na sociedade de modo significativo, não reconhece sua
extenuação. Reconhecer que esta vida retorna é uma forma de tentar romper com esse
pensamento desnivelador do homem, empobrecedor, mas retornar não em um sentido vulgar,
mas de que a vida efetua-se neste, e somente, neste mundo, cujo ciclo é constante e não cessa,
uma vez que não existe um ponto final a ser alcançado, não há uma linha de chegada. Ser um
espírito livre se faz necessário para retomar a grande saúde, conforme Nietzsche:

Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o


caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a
própria doença como meio e anzol para o conhecimento, até a madura liberdade do
espírito, que é também autodomínio e disciplina do coração e permite o acesso a
modos de pensar numerosos e contrários [...]; até o excesso de forças plásticas,
curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande
saúde [...]. 296

Novos valores que revitalizem a postura sobre o corpo fazem-se necessários. O


aspecto criador do homem precisa ser reafirmado, bem como a sacralidade da vida e o amor à
terra, pois ao falarmos nesta, também, de modo quase indissociável, estamos falando de
corpo, pois este apresenta-se efetivo no mundo, realidade esta que, por sua vez, somente
encontra um significação diante do olhar humano. O ressentimento e a má-consciência, que
durante muito tempo foram as grandes temáticas do pensamento humano, basearam-se na
falácia interpretativa da existência e dos seus elementos constitutivos. Esse tempo, iniciado
ainda com os gregos antigos, com Sócrates e o platonismo, fundamentou-se na construção
filosófica da primazia da alma. O corpo guerreiro, aristocrata, foi deixado de lado para dar
lugar ao corpo debilitado, enfermiço, incapacitado para a luta e para a guerra, o corpo
deteriorado pela inatividade e pela postura de compaixão para com a fraqueza e a derrota.
Mas o homem moderno precisa lembrar que a guerra, o combate, a disputa, nunca o
abandonam. A todo o momento é exigido de si uma postura mais aguerrida, uma vitalidade
perante as adversidades da vida, um esforço sobre determinada situação limite. Ignorar que o
homem erige-se do e no conflito é o mesmo que afastá-lo da realidade. Suprimir os instintos
afirmadores da vida, como fazem os homens do ressentimento, os seres cuja má consciência é

296
MA I/HH I, Prólogo, §4.
143

um fator a mais para a não ação, é algo que deve ser superado. O homem cristão, o escravo, o
ressentido, encontra seu oponente no homem que aceita a vida tal como ela é. Não há
negação, não há medo diante dos infortúnios, mas resistência. Para tanto, é necessária uma
nova forma de interpretação: um corpo saudável e um pensamento reflexivo que esteja sempre
pronto a aceitar que a vida, apesar de breve, é intensa e mais do que qualquer outra coisa,
precisa ser vivida, não renegada: o homem precisa “tornar-se o que se é”. Se o homem
desenvolver tal postura, talvez enfim possamos falar não em um mundo satisfatório, mas em
um início efetivo de uma existência consagrada ao homem, ao seu corpo e ao mundo.
Destarte, é no corpo que vislumbramos os vestígios do tempo e as marcas da finitude
do homem. Ele é a acepção dos conflitos de forças e do campo de batalha que o homem é.
Logo, o que marca o corpo na modernidade? O movimento de negação do corpo (forjado pela
filosofia tradicional e moral cristã, as quais serviram de preparação para a debilidade e
apequenamento do homem moderno), o movimento de afirmação das potências plásticas da
vida, relacionadas ao adoecimento e revigorar orgânico, tangenciados por um viés
perspectivístico, que toma o homem pelo que ele é.
Há muito ainda para se abordar sobre a questão do corpo no pensamento e na filosofia
nietzschiana, entretanto, como forma de contribuição, este trabalho encerra-se aqui,
reconhecendo que a perspectiva do corpo encetada por Nietzsche a partir da modernidade
suscita várias problematizações que jamais serão esgotadas.
144

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