SOUZA, Eneida M. De. Modernidade Tardia.

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 272

ESTUDOS: LINGUSTICOS E LITERRIOS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E CULTURA


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA

estudos 45.indd 1 26/05/14 14:55


Universidade Federal da Bahia

Reitor
Dora Leal Rosa

Vice-reitor
Luiz Rogrio Bastos Leal

Instituto de Letras

Diretora
Risonete Batista de Souza

Vice-diretor
Mrcio Ricardo Coelho Muniz

O Corpo Editorial da revista Estudos: Lingusticos e Literrios interfere apenas


nos aspectos tcnicos de formatao dos artigos.
A matria veiculada nos artigos da estrita responsabilidade dos autores.

Estudos: Lingusticos e Literrios - n. 45 - Salvador: Programa de Ps-Graduao


em Letras e Lingustica, Universidade Federal da Bahia, janeiro/junho 2012,
271 p. 15x21,5cm.
Semestral
ISSN 0102-5465

Letras - Peridicos I. Mestrado em Letras, Universidade Federal da Bahia.

CDU 8 (05)

estudos 45.indd 2 26/05/14 14:55


ESTUDOS: LINGUSTICOS E LITERRIOS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E CULTURA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA

N m e r o 45
j an eir o de 2 0 1 2 /junho d e 2012

estudos 45.indd 3 26/05/14 14:55


Universidade Federal da Bahia
PUBLICAO SEMESTRAL

Coordenadora do PPGLinC
Clia Marques Telles

Coordenador do PPGLitC
Srgio Barbosa de Cerqueda
Editora
Suzana Alice Marcelino Cardoso
Co-editora
Lgia Guimares Telles
Conselho Editorial
Clia Marques Telles (UFBA/PPGLL)
Celina de Arajo Scheinowitz (UFBA/UEFS)
Dcio Torres Cruz (UFBA/PPGLL)
Evelina Hoisel (UFBA/PPGLL)
Ilza Maria de Oliveira Ribeiro (UFBA/PPGLL)
Jacques Salah (UFBA/PPGLL)
Lizir Arcanjo Alves (UCSal)
Maria Helena Mira Mateus (Univ. de Lisboa)
Maria Teresa Abelha Alves (UEFS)
Myriam de Castro Lima Fraga (FCJA)
Norma Lopes (UNEB/FJA)
Regina Zilberman (UFRGS)
Rita Olivieri-Godet (Univ. de Rennes II)
Rosa Virgnia Mattos Oliveira e Silva (UFBA/PPGLL)
Serafina Maria de Souza Pond (UFBA/PPGLL)
Slvia Rita Magalhes de Olinda (UEFS)
Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)

Apoio tcnico-administrativo
Roblia Alves Cabral Pinto

Projeto Grfico
Simone Silva

Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia


Rua Baro de Jeremoabo, 147
Campus de Ondina, CEP 40170-115, Salvador, Bahia, Brasil
Telefones (71) 3283-6781, Fax: (71) 3283-6208
E-mail: [email protected]; [email protected]; [email protected]

estudos 45.indd 4 26/05/14 14:55


SUMRIO

APRESENTAO....................................................................7

LOPE DE VEGA, PREZ-REVERTE E O ESTUDANTE DO


SCULO XXI: DILOGOS..................................................... 19
Magnlia Brasil Barbosa do Nascimento

MODERNIDADE TARDIA..................................................... 41
Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda

PASSEIO PELA MEMRIA DO PRESENTE NA


LITERATURA ARGENTINA: UMA LEITURA DE CARLOS
GAMERRO E MARTIN KOHAN............................................. 61
Luciene Azevedo

A POESIA SECUNDRIA E ATENUANTE


DE SEVERO SARDUY........................................................... 85
Antonio Andrade

FORMAO DE PROFESSOR DE ESPANHOL NO


BRASIL E INTEGRAO REGIONAL...................................111
Marcia Paraquett

ERRAR ES HUMANO, POR ESO, NO HABLO:


UN ANLISIS DEL MIEDO DE HABLAR Y DE COMETER
ERRORES EN EL AULA DE ELE.......................................... 131
Nair Floresta Andrade Neta

estudos 45.indd 5 26/05/14 14:55


DESENVOLVER COMPETNCIA COMUNICATIVA EM
E/LE: COMPETNCIAS E EXIGNCIAS NA FORMAO
DOCENTE............................................................................171
Maria Tereza Nunes Marchesan

PRTICA E PESQUISA NA FORMAO DO


PROFESSOR DA EDUCAO BSICA................................. 199
Fernanda Almeida Vita

A DOMESTICAO/ESTRANGEIRIZAO DOS
ELEMENTOS CULTURAIS NO CURSO DE ESPANHOL
DO PROGRAMA DE PROFICINCIA EM LNGUA
ESTRANGEIRA PARA ESTUDANTES E SERVIDORES
DA UFBA.............................................................................227
Jorge Hernn Yerro

TEXTO E PLURALIDADE CULTURAL NOS LIVROS


DIDTICOS DE ESPANHOL................................................ 251
Patrcia Carvalho de Onofre

estudos 45.indd 6 26/05/14 14:55


Apresentao

O nmero 45 da Revista Estudos Lingusticos e Literrios do


Programa de Ps-Graduao em Lngua e Cultura e do Programa
de Ps-Graduao em Literatura e Cultura, ambos do Instituto de
Letras da Universidade Federal da Bahia, est dedicado a discutir
questes relativas ao universo hispnico, no que se refere a dois
eixos: a lngua espanhola em contexto de aprendizagem e litera-
turas em lngua espanhola. E se justifica porque estamos vivendo
um momento de intenso movimento em prol da sedimentao do
ensino de espanhol no Brasil e, particularmente, no Estado da Bahia.

Como se sabe, o Estado da Bahia tem uma longa tradio na


formao de professores de espanhol, mas infelizmente no foi
suficiente para garantir que esse idioma esteja sendo ofertado nas
escolas da educao bsica, em particular no Ensino Mdio, con-
forme prev a Lei 11.161, de agosto de 2005. Hoje, existem quatro
universidades pblicas no Estado (UFBA, UNEB, UESC, UEFS)
que oferecem cursos de Licenciatura em Espanhol, criando-se uma
disponibilidade de recursos humanos que, em mdio prazo, poder
atender s exigncias das mais de mil escolas baianas de Ensino
Mdio. Somada a esta questo, nota-se uma tmida interao aca-
dmica entre as referidas universidades, dificultando dilogos que
em muito poderiam colaborar para a realizao de um trabalho
acadmico mais integrado e colaborativo. Estas so, portanto, as
principais motivaes que tm levado a comunidade de professores
e aprendizes de espanhol da Bahia a organizarem-se em projetos
que nos deem visibilidade e que oportunizem nosso crescimento
acadmico e profissional.

estudos 45.indd 7 26/05/14 14:55


8 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Mas no se espera que o Nmero 45 da Revista Estudos Lin-


gusticos e Literrios fique limitado s fronteiras regionais e nem
mesmo nacionais, esperando-se, ao contrrio, que as vozes autorais
que compem esta coletnea sejam ouvidas como agentes que, desde
diferentes perspectivas, nos ajudam a entender a forma de produo
discursivo-cultural deste imenso universo hispnico, adjetivo que
pretende designar apenas o que se refere lngua espanhola, ainda
que guarde em si significados complexos que foram empreendidos
ao longo da histria da Espanha e de suas ex-colnias da Amrica.

Para compor esta edio, foram convidados nove autores, alm


da organizadora, selecionados de forma a garantir certa circularida-
de do lugar de onde se fala, seja no intuito de se dar ateno aos dois
eixos temticos, seja para propor cruzamentos de pesquisadores
oriundos de diferentes universidades brasileiras.

Dessa forma, na primeira parte, encontram-se os quatro textos


que discutem temas literrios, enquanto na segunda, esto os seis
artigos que se referem lngua espanhola em contexto de aprendi-
zagem. Cada autor(a) teve total liberdade no recorte que escolheu
para produzir o seu texto, ajudando-nos a perceber quais tendncias
estaro delimitando o campo da pesquisa em espanhol no Brasil
nos dias de hoje.

Vale observar que a Revista Estudos Lingusticos e Literrios


prev, justamente, a pulverizao de temas, na medida em que se
dedica a duas grandes reas de Letras: estudos de lngua e estudos
de literatura. O nmero 45, em particular, antev a discusso des-
sas duas grandes reas em lngua espanhola, o que determina uma
ainda maior pulverizao temtica. Talvez seja oportuno chamar
a ateno para a diferena que se estabelece no meio acadmico,
sobretudo nos cursos de Graduao (seja Bacharelado ou Licencia-
tura), onde as lnguas estrangeiras so entendidas como uma grande

estudos 45.indd 8 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 9

rea, enquanto pesquisadores e professores de lngua verncula se


organizam em pequenas reas, o que permite maior verticalidade
em suas pesquisas e, consequentemente, na formao dos egressos
de Letras. Os pesquisadores e professores de lnguas estrangeiras, a
exceo da Ps-graduao e dos Projetos de Pesquisas individuais,
somos especialistas de uma grande rea, espanhol, por exemplo,
conforme o caso de alguns autores que compem esta coletnea.
Estamos, portanto, acostumados pulverizao, o que nos d,
de certa forma, uma perspectiva mais plural e interdisciplinar na
forma como entendemos a lngua e suas manifestaes artsticas,
literrias ou culturais.

De todos os textos que compem o Nmero 45 da Revista Es-


tudos Lingusticos e Literrios, o de Magnlia Brasil Barbosa do
Nascimento, especialista em literatura espanhola na Universidade
Federal Fluminense (Niteri/RJ) o que mais se presta a confir-
mar o que se est dizendo aqui. E, por isso mesmo, o que abre
a Revista. A autora, como se ver, estabelece um dilogo entre a
literatura espanhola e o ensino de literatura, convidando-nos a
refletir sobre o lugar que a leitura do texto literrio est ocupando
na contemporaneidade e colocando sua ateno no jovem aprendiz
de literatura. Lamentavelmente, sua reflexo vem na contramo de
polticas de ensino que tm desprestigiado o texto literrio e a
disciplina literatura na educao bsica, pois, ao privilegiar novas
linguagens e novas tendncias, podem comprometer uma formao
mais humanstica. Mas seu texto otimista, pois Magnlia Brasil
Barbosa do Nascimento comprova que diferentes discursos podem
conviver.

Os autores do segundo texto so Eneida Maria de Souza e


Wander Melo Miranda, conhecidos e respeitados pesquisadores
brasileiros, da Universidade Federal de Minas Gerais, que nos tm

estudos 45.indd 9 26/05/14 14:55


10 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

ajudado a entender o dilogo que h entre a literatura brasileira e a


de alguns pases hispnicos da Amrica Latina. Seu artigo apresenta
uma didtica e cuidadosa discusso sobre a forma como alguns
autores esto entendendo e, consequentemente, nomeando nossas
temporalidades, observando como estes se apropriam da teorizao
aprendida pelos discursos hegemnicos, notadamente oriundos do
modelo ocidental e eurocntrico das teorias sobre a modernidade,
para desconstru-los. Focam sua ateno no continente latino-
-americano, onde, segundo os autores, as ocorrncias culturais e
artsticas no se realizam de modo homogneo, determinando que
o princpio de homogeneidade seja substitudo pelo de heteroge-
neidade. O texto apresenta, dessa forma, alternativas de definio
concernentes ao termo ps-moderno, nos mltiplos e complexos
mbitos da cultura na Amrica Latina, recuperando as propostas de
Nstor Canclini, Jess Martn-Barbero, Stuart Hall, Beatriz Sarlo,
Arjun Appadurai, Anthony Giddens e outros.

A autora do terceiro texto Luciene Azevedo, especialista em


teoria da literatura na Universidade Federal da Bahia. Para alm do
excelente nvel de discusso que prope a autora, sua participao
no Nmero 46 da Revista de Estudos Lingusticos e Literrios se
explica porque cada vez mais se tem observado uma aproximao
entre a produo literria brasileira e as de pases de lngua es-
panhola da Amrica Latina. Luciene Azevedo prope um dilogo
com a literatura argentina, aproximando-a de leitores brasileiros
e apoiando sua discusso em romances contemporneos. Sua
argumentao consiste em entender o papel onipresente da me-
mria nas narrativas argentinas contemporneas de recuperao
do passado e pressupe que a prosa literria argentina dos anos
90 realiza o trabalho de luto em relao prpria capacidade de
a literatura continuar contando suas histrias depois da ditadura.
Dessa forma, a autora no s prope um dilogo com a histria,

estudos 45.indd 10 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 11

assim como faz uma leitura interdisciplinar, permitindo que se


interrogue o passado como chave do presente, conforme observa
um dos autores que analisou.

O quarto texto de Antonio Andrade, especialista em literatu-


ra contempornea e que atua no Programa de Ps-Graduao em
Letras Neolatinas da UFRJ, assim como de Ensino de Portugus/
Espanhol da Faculdade de Educao desta mesma universidade.
professor das disciplinas didticas em espanhol da Faculdade de
Educao na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Observe-
se que Antonio Andrade exercita o que se falava antes, pois sua
formao literria, mas trabalha com a formao de professores,
impondo s suas aulas, certamente, uma perspectiva sempre in-
terdisciplinar. Em seu texto, o autor analisa a produo potica de
Severo Sarduy, tendo em vista o investimento secundrio do autor
cubano nesta atividade literria, relacionada por ele ao exerccio
de leitura e estudo, fosse de outros poetas e artistas plsticos, fosse
de textos cientficos. Chama a ateno a discusso proposta pelo
autor do artigo, ao sugerir uma leitura muito particular, na medida
em que nos convida a perceber categorias bastante originais, como
os procedimentos de travamento e destravamento da enunciao
lrica, por meio da erotizao do signo verbal, da celebrao do
prazer e da tropicalidade, dos recursos de atenuao da dor e do
sofrimento. Vale conferir.

O quinto texto ocupa um entre-lugar e, por isso mesmo,


o que inaugura o segundo eixo temtico da Revista. Sua autora,
Marcia Paraquett, linguista aplicada na Universidade Federal da
Bahia e seu artigo apresenta alguns aspectos de seu atual projeto
de pesquisa, que visa elaborao de atividades interculturais
que oportunizem a integrao regional, tomando como referncia
o Brasil (espao cultural dos aprendizes), e os demais pases da

estudos 45.indd 11 26/05/14 14:55


12 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Amrica Hispnica (espao cultural da lngua meta). Toma como


exemplo trs produes culturais de tradio oral, manifestadas
no cancioneiro popular da Venezuela (Simn Daz), da Argentina
(Atahualpa Yupanqui) e da Bahia (Elomar Figueira Mello), contexto
no qual desenvolve sua pesquisa e onde se dedica formao de
professores. Dessa forma, a autora procura estabelecer dilogos
culturais entre as trs produes, convidando os leitores a associa-
rem teoria prtica profissional, entendendo-a em seus aspectos
sociais e polticos.

Nair Floresta Andrade Neta, professora de espanhol na Univer-


sidade Estadual de Santa Cruz (Ilhus/Bahia), a autora do sexto
artigo, onde discute o componente emocional na aprendizagem de
lnguas estrangeiras. A autora centra sua discusso no medo de
cometer erros como desencadeador ou agravante do medo de falar,
mostrando que essa expectativa de falar sem errar antinatural,
pelo menos em um princpio, no processo de aprendizagem-aqui-
sio da lngua. Como afirma, errar humano tambm quando se
aprende o espanhol, conforme comprovou a pesquisa que realizou
com alunos do curso de espanhol na universidade onde atua, e que
resultou em sua tese de doutorado, dando origem a este artigo a
que agora se tem acesso.

A autora do stimo artigo, Maria Tereza Marchesan, vem do


extremo sul do pas, da Universidade Federal de Santa Maria
(RS), e nos ajuda a ver a questo do espanhol num contexto es-
pecfico, o de fronteira, lembrando-nos que o Brasil um pas de
propores continentais, quando se faz necessrio que qualquer
discusso em termos nacionais precisa ser relativizada. Se ao falar
do Brasil, mesmo em territrio nacional, essa perspectiva nem
sempre est presente, o que dizer, ento, das discusses feitas fora
do pas, quando somos vistos, grosso modo, como um conjunto

estudos 45.indd 12 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 13

homogneo? Seu texto remete a questes pertinentes como a for-


mao de professores, discutindo as orientaes formais e legais
que regem a educao nacional, em texto claro e objetivo. Ainda
propicia uma anlise contrastiva entre dois modelos de formao
em duas universidades pblicas brasileiras, localizadas no extremo
sul e no nordeste brasileiro, dando-nos a oportunidade de verificar
as possveis adequaes contextuais.

Fernanda Almeida Vita escreveu o oitavo artigo da coletnea,


onde discute a relao entre prtica e pesquisa na formao do
professor da educao bsica. Em seu texto, a autora faz um passeio
histrico pelo processo pelo qual passou a educao, retomando a
filosofia clssica e se atendo a diferentes modelos de concepes
que caracterizam os professores. Mas, ao fincar-se na atualidade,
Fernanda Almeida Vita se vale de autores que a ajudam a perceber
que hoje, alm da crescente heterogeneidade terica, h um avano
de modelo docente que se define como um agente reflexivo. essa
discusso sobre a formao do professor reflexivo que interessa
autora, que, ao final de seu artigo, conclui que todo professor ne-
cessita ser um pesquisador, pois, de outra maneira, no conseguiria
atender as demandas profissionais de maneira eficiente.

O nono texto, de Jorge Hernn Yerro, traz notcias de uma nova


modalidade de ensino de lnguas estrangeiras, que se insere na
esfera das polticas pblicas do Ministrio de Educao, e que est
relacionada ao aquecimento da circulao de alunos brasileiros em
universidades estrangeiras. O artigo divulga e, ao mesmo tempo, faz
uma anlise crtica do resultado de um Trabalho de Concluso de
Curso (TCC), que pesquisou o ensino de espanhol no Programa de
Proficincia em Lngua Estrangeira para Estudantes e Servidores
da Universidade Federal da Bahia (PROEMES). Atravs do artigo,
percebe-se o dinamismo que est ocorrendo no contexto acadmico

estudos 45.indd 13 26/05/14 14:55


14 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

na formao de professores de espanhol no Brasil, na medida em


que se confirma a vinculao entre teoria e prtica, e entre prtica
e pesquisa, pilares essenciais para a uma formao de professores
crticos. Alm desse aspecto to positivo, o artigo de Jorge Hernn
Yerro prope, com muita originalidade, uma associao entre o
ensino de lngua e a traduo, rea de interesse do autor.

O dcimo e ltimo texto da coletnea de Patrcia Carvalho de


Onofre, professora de espanhol do Ensino Mdio no Colgio Pedro II
no Rio de Janeiro. Este artigo fecha este volume exatamente porque
traz a voz de uma profissional e pesquisadora que atua na educao
bsica, fim e meta da maioria dos artigos aqui apresentados. A au-
tora faz uma interessante anlise sobre um importante aspecto dos
livros didticos: a forma de abordar o texto e a pluralidade cultural
do espanhol. Valendo-se das colees selecionadas pelo Programa
Nacional do Livro Didtico (PNLD 2012), a autora traz algumas
concluses que em muito nos ajudam a perceber o cenrio do en-
sino de espanhol em nosso pas. Fala-nos, por exemplo, que j no
ignoramos a existncia da Amrica Hispnica nem a apresentamos
de forma preconceituosa e estereotipada como antes, mas continua-
mos mantendo uma viso equivocada, na medida em que nos Livros
Didticos selecionados prevalecem textos oriundos da Espanha
e da Argentina, mantendo-se uma viso reduzida da pluralidade
do espanhol. E procura explicar essas escolhas, observando que a
grande parte dos textos contidos nas colees analisadas tem como
suporte a internet, o que explicaria a maior frequncia de buscas
em sites de maior procura, pois como explica a autora do artigo, os
sites de busca listam os sites por ordem de visitao, fazendo com
que os mais visitados apaream em primeiro lugar, o que demons-
tra a dificuldade de fugir do lugar comum, do que est institudo.

estudos 45.indd 14 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 15

Esperamos que a leitura do Nmero 45 da Revista Estudos Lin-


gusticos e Literrios seja agradvel e que nos ajude a compreender
o lugar que ocupam as lnguas estrangeiras e suas literaturas no
Brasil, em particular o espanhol, essa lngua com a qual mantemos
tantas relaes identitrias.

Agradeo aos editores a oportunidade de sua publicao, assim


como a Patrcia Arglo Rosa, que, cuidadosamente, fez a reviso
dos resumos e das palavras-chave em ingls.

Salvador, 30 de junho de 2013

Marcia Paraquett

Quem so os autores:

Eneida Maria de Souza Professora Emrita e Professora Titular


em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel
1A e de Professor Visitante Nacional Snior (CAPES), na Universi-
dade Federal So Joo del-Rei (UFRJ). O Endereo para acessar o
seu CV : http://lattes.cnpq.br/0519304809107377

Magnlia Brasil Barbosa do Nascimento doutora em Letras


(literaturas espanhola e hispano-americana) pela Universidade de
So Paulo (USP) e professora de literatura espanhola do Programa
de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal Fluminense
(UFF). O endereo para acessar o seu CV : http://lattes.cnpq.
br/2272705841713841

Luciene Azevedo doutora em literatura comparada pela


Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professora
de teoria literria da Graduao e do Programa de Ps-Gradu-
ao em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia

estudos 45.indd 15 14/07/14 15:06


16 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

(UFBA). O endereo para acessar o seu CV : http://lattes.cnpq.


br/2783013091209078

Antonio Andrade doutor em Literatura Comparada pela


Universidade Federal Fluminense, professor de Didtica Espe-
cial e Prtica de Ensino de Portugus/Espanhol na Faculdade de
Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
professor do Programa de Ps-Graduao em Letras Neolatinas
da UFRJ. O endereo para acessar o seu CV : http://lattes.cnpq.
br/9416610899767382

Marcia Paraquett doutora em Letras (literatura espanhola


e literatura hispano-americana) pela Universidade de So Paulo
(USP) e professora de espanhol na Graduao e de lingustica
aplicada no Programa de Ps-graduao em Lngua e Cultura da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). O endereo para acessar o
seu CV : http://lattes.cnpq.br/0816952548853040

Nair Floresta Andrade Neta doutora em Didctica de las


lenguas y la literatura pela Universidad Complutense de Madrid
(Espanha) e professora de espanhol na Universidade Estadual de
Santa Cruz (Ilhus/Bahia). O endereo para acessar o seu CV :
http://lattes.cnpq.br/6382414445111789

Maria Tereza Marchesan doutora em Letras pela Universidade


Federal do Rio Grande do Sul (UFGS) e professora de espanhol na
Graduao e no Programa de Ps-Graduao em Letras da Univer-
sidade Federal de Santa Maria (UFSM). O endereo para acessar o
seu CV : http://lattes.cnpq.br/5214558523776194

Fernanda Almeida Vita doutora em Lingustica Aplicada pela


Universidad de Alcal (Espanha) e professora de espanhol do Insti-
tuto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O endereo
para acessar o seu CV : http://lattes.cnpq.br/1826836072631449

estudos 45.indd 16 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 17

Jorge Hernn Yerro doutor em Letras e Lingustica (com


nfase em Traduo) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e professor de espanhol do Instituto de Letras nesta mesma uni-
versidade. O endereo para acessar o seu CV : http://lattes.cnpq.
br/7958252151975042

Patrcia Carvalho de Onofre doutora em Estudos Lingusticos


(com nfase em Lingustica Aplicada) pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) e professora de espanhol no Colgio Pedro II no
Rio de Janeiro. O endereo para acessar o seu CV : http://lattes.
cnpq.br/5967440653231955

Professora emrita da Faculdade de Letras da UFMG e Pro-


fessora titular de Teoria da Literatura. Pesquisadora 1A do CNPq.
Autora, entre outros livros, de O sculo de Borges (1999 e 2009);
Crtica cult (2002, 2007); Tempo de ps-crtica (2007). Organi-
zadora, com Reinaldo Marques, de Modernidades alternativas na
Amrica Latina (2009).

*Professor titular de Teoria da Literatura da UFMG. Pesquisador 1A do CNPq.


Diretor da Editora UFMG. Autor, entre outros livros, de Corpos escritos (1992,
2009); Graciliano Ramos, Publifolha, (2004); Organizador da Obra Completa
de Graciliano Ramos; Organizador de Contos antolgicos de Silviano Santiago
(2006).

estudos 45.indd 17 26/05/14 14:55


estudos 45.indd 18 26/05/14 14:55
Lope de Vega, Prez-Reverte e o
estudante do sculo XXI: dilogos

Lope de Vega, Prez-Reverte and the


student of the XXI century: dialogues

Magnlia Brasil Barbosa do Nascimento


Universidade Federal Fluminense

RESUMO: O presente artigo tem sua origem em uma comunicao


apresentada no Congreso Internacional Lope de Vega: Eljase el tema
Comedia, Literatura, Historia, Arte, Emblemtica, celebrado no Instituto
de Letras da Universidade Federal Fluminense, em parceria com a Uni-
versidad de Navarra, em 2009. Pela importncia do tema, a atualidade
de Lope de Vega (1526-1635), o ineditismo crtico de sua obra e o fato
de que a literatura espanhola do Siglo de Oro no pode ser esquecida,
optou-se, neste artigo, por estabelecer um dilogo entre Lope e o conhe-
cido narrador Arturo Prez-Reverte (1951), para mostrar a coincidncia
da crtica feita por ambos sobre a Espanha e sua sociedade, cada um em
seu tempo, porm muito prximos e semelhantes nos pontos em que se
apoiam. Vai-se alm, ao deixar clara a importncia de dar conhecimento
da literatura em sala de aula, buscando descartar o medo reverencial de
muitos professores pelo texto literrio. Para isso, lana-se mo de oportuna
crnica de Prez-Reverte, intitulada Cervantes, esquina a Len (2002), na
qual o escritor focaliza um grupo de estudantes que, acompanhados pela

estudos 45.indd 19 26/05/14 14:55


20 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

professora, visitam a regio onde viveram os grandes escritores do Siglo


de Oro, em Madri, sem demonstrar interesse pelo que lhes era comentado.
A uma solicitao da professora, Prez-Reverte, pelas artes do contar,
desperta a ateno dos jovens, comprovando que possvel estabelecer-se
um dilogo entre um dramaturgo a cavaleiro dos sculos XVI e XVII, um
escritor atual e jovens estudantes da era eletrnica sempre que se saiba
atrair-lhes o interesse, uma vez que ningum deixa de interessar-se por
uma boa histria.

Palavras-chave: Lope de Vega, Arturo Prez-Reverte, Ensino do texto


literrio.

ABSTRACT: This article has its origins in a paper presented at the


Congreso Internacional Lope de Vega: Eljase el tema Comedia,
Literatura, Historia, Arte, Emblemtica, held at the Instituto de Letras
of the Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro), in partnership
with the Universidad de Navarra, in 2009. Considering the importance of
the topic, the current relevance of Lope de Vega (1526-1635), the critical
novelty of his work and the fact that the Spanish literature of the Siglo
de Oro (Gold Century) can not be forgotten, we decided, in this article,
to establish a dialogue between Lope and the well known narrator Arturo
Prez-Reverte (1951). This dialogue shows the coincidence of the criticism
made by both towards Spain and their society - each one in his own time
- but very close and similar to the point such as criticism is based. It goes
however, beyond: to clearly establish the importance of acknowledging
literature in the classroom, as well as to seek to discard the reverential
fear many teachers have over literary texts. To accomplish those objectives
we use the chronicle of Prez-Reverte, entitled Cervantes, esquina a Len
(2002), in which the writer focuses on a group of students, accompanied
by their teacher, visiting the region where the great writers of the Siglo
de Oro lived: Madrid, without showing interest to what was commented
to them. At a teachers request, Prez-Reverte, for the pleasure of the
narrative, arouses the attention of young people, proving that it is possible
to establish a conversation between a distinguished play writer of the
sixteenth and seventeenth centuries, a current writer and young students

estudos 45.indd 20 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 21

of the electronic age whenever one can attract those students attention,
since no one loses the interest for a good story.

Keywords: Lope de Vega, Arturo Prez-Reverte, Teaching literary text.

No momento em que a informao envelhece,


no adianta deter informao.
(Moacyr Gadotti)

Uma boa histria nos faz voar com maior poetura do que uma
borboleta... Uma boa histria nos transforma e nos transporta,
com suas inventivas e encantadas asas de papel.
(Fanny Abramovich)

A modo de explicao

O presente artigo teve sua verso inicial elaborada em forma de


comunicao para o Congreso Internacional Lope de Vega: Eljase
el tema Comedia, Literatura, Historia, Arte, Emblemtica, rea-
lizado no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense,
em parceria com a Universidad de Navarra para celebrao do
quarto centenrio de El arte nuevo de hacer comedias1(1609-2009).
Naquela oportunidade, minha comunicao foi escrita e lida em
espanhol e teve por ttulo: LOPE DE VEGA y PREZ-REVERTE:
dilogos. A qualidade e atualidade das conferncias e comunicaes
apresentadas nessa celebrao internacional, deram origem ao livro
publicado em Pamplona, em 2012, pela Biblioteca urea Digital
del Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, sob
o ttulo: LOPE DE VEGA DESDE EL BRASIL. EN EL CUARTO
CENTENARIO DEL ARTE NUEVO - (1609-2009), que teve por
organizadores os professores Carlos Mata Indurin, Rosa Mara

1 A obra Arte Nuevo de hacer comedias en este tiempo um texto de Lope de Vega que
nos conta como se fazia teatro no comeo do sculo XVII e foi publicado pela primeira
vez no retrato de poemas Rimas, em 1609.

estudos 45.indd 21 26/05/14 14:55


22 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Snchez-Cascado Nogales, ambos da Universidad de Navarra e Ly-


gia Rodrigues Vianna Peres, da Universidade Federal Fluminense.

Pela importncia do tema, pela atualidade do dramaturgo Lope


de Vega (1562-1635), pelo ineditismo crtico de sua obra e, prin-
cipalmente, porque a literatura espanhola, especialmente a do to
comentado Siglo de Oro (que abarca o sculo XVI e a primeira parte
do XVII) no pode ser esquecida e merece permanecer em cena,
considerei oportuno refundir minha comunicao e dar-lhe forma
de artigo. Dessa maneira, a qualidade e inquietao presentes na
obra de Lope de Vega e dos demais autores desse perodo dito de
ouro, de que a Literatura Espanhola com razo tanto se orgulha, me
oferecero alguns elementos que, espero, no deixam dvidas quan-
to importncia do acesso literatura na escola, assunto que me
apaixona e ao qual volto sempre que se me oferece a oportunidade!

Valho-me, portanto, da possibilidade de estabelecer um dilogo


entre um dramaturgo do sculo XVII com um escritor do final do
sculo XX, comeos do XXI e um jovem leitor do sculo XXI para
trazer cena, uma vez mais, o sistema de confuses, as dificulda-
des e controvrsias originadas das concepes de lngua escrita e
de leitura que informam as estratgias, mtodos e, principalmente,
objetivos dos cursos de lngua estrangeira. No desconhecido o
fato de que a explorao de um texto como fonte privilegiada de
informaes sobre estruturas da lngua ou meio de sensibilizao
para a produo individual, ou ainda, como instrumento de encan-
tamento, uma atividade que pouco ou quase nunca est presente
de maneira regular nos cursos de lngua ou de literatura.

Disseminou-se a lenda de que, para ler o texto literrio preci-


so, antes de tudo, conhecer a fundo a teoria da literatura, quando
sabemos bem que o terico vem depois do texto literrio. Da a
abolir-se de sala de aula o texto literrio, pela suposta necessidade

estudos 45.indd 22 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 23

de dominar a to temida teoria, foi um passo, privando o aluno do


encontro com a contao de uma histria onde tudo pode aconte-
cer, como quer Fanny Abramovitch (ABRAMOVICH, 1998, n/p.).

Que ter isso a ver com Lope de Vega, Prez-Reverte e o jovem


estudante de hoje? Pois tudo! Um professor que seja um leitor, pode
apresentar escritores de perodos distantes no tempo a seus alunos
e provocar-lhes interesse pelo que contam, fazendo com que jovens
da era tecnolgica vivam as situaes por eles criadas e se atrevam a
atravessar a ponte para outros mundos propostos pelos escritores.
Continuo a defender a importncia do texto literrio em sala de aula,
seja de lngua primeira, seja de lngua estrangeira: atravs dele o
estudante desenvolver seu esprito crtico, ter dvidas e buscar
solues, refletir e, como desejamos que acontea, buscar outros
textos, em um exerccio que o levar a descobrir o mundo escondido
nas letras, nas asas de papel de que fala uma das epgrafes.

Lope de Vega

Meu primeiro encontro com Flix Lope de Vega y Carpio foi h


muitos anos, no segundo grau da escola secundria, o atual ensino
mdio, durante a aula de espanhol. Naquele tempo o espanhol era
oferecido durante um ano, duas vezes por semana, no primeiro
ano dos chamados cursos clssico e cientfico e convivia, harmo-
nicamente, com o francs e o ingls; a professora nos convidou,
ento, a fazer uma leitura dramatizada de um fragmento de Fuen-
teovejuna2. Ainda hoje, essa minha obra preferida dentre a farta
produo de Lope de Vega. importante dizer que meus olhos e

2 La Comedia famosa de Fuenteovejuna a ltima comdia de la Docena parte de las


Comedias de Lope, publicada em 1619. No h notcia certa sobre a data de sua redao.
Morley y Bruerton a situam entre 1611-1618, provavelmente 1612-1614.

estudos 45.indd 23 26/05/14 14:55


24 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

ouvidos adolescentes jamais se esqueceram do clamor a favor da


honra e da justia entranhado na resposta que repetamos bem alto
pergunta do juiz:
- Quin mat al comendador?
- Fuenteovejuna lo ha hecho
- Quin mat al comendador?
- Fuenteovejuna lo hizo
- Quin mat al comendador?
- Fuenteovejuna, seor
- Quin mat al comendador?
Pues Fuenteovejuna fue
(Acto Tercero, Folios 278r a 280v.
Disponvel na web).

Um texto escrito por um dramaturgo espanhol do sculo XVI/


XVII, distanciado no tempo, espao e idioma de seus leitores bra-
sileiros, ainda tinha, ou melhor, ainda tem o poder de emocionar e
entusiasmar uma jovem estudante empenhada no sucesso daquela
leitura, fascinada pela discusso sobre a honra e chamada ao exerc-
cio da justia. As palavras do fragmento escolhido aprisionadas em
uma lngua que, embora nos soasse familiar algumas vezes, no era
a nossa, ganharam vida, significaram, lograram desembalsamar-
se, para usar uma expresso do escritor portugus Jos Sarama-
go (SARAMAGO, 2003, n/p), graas proposta da professora e
leitura solidria que nos permitiu o acesso a um bem cultural
at ento desconhecido por ns, jovens estudantes brasileiros do
incio da segunda metade do sculo XX. Aquele encontro com o
texto clssico, aparentemente to distante de nosso cotidiano,
proporcionou-nos uma nova forma de ver o mundo, a descoberta
de outra realidade, um retorno ao real renovado, transfigurado na
fbula encerrada nas palavras da lngua espanhola de centenas de
anos passados. Tratava-se do idioma da Espanha e de um autor cujo
nome, simples meno, em palavras do romancista Arturo Prez-

estudos 45.indd 24 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 25

Reverte (1951), se estremeca la tierra (PREZ-REVERTE, 2003,


p. 62). Eram palavras de uma obra escrita por algum que conhecia
a fundo a sociedade de sua poca e deixava claro que a virtude e o
esprito de justia no eram atributo de uma classe social apenas.

Talvez ali tenha surgido minha convico de que a leitura, o


encontro com o outro por meio do texto literrio irradia luz sobre
um universo desconhecido e permite ao estudante ou leitor desco-
brir mundos ocultos por alguma barreira, seja da palavra, seja da
indiferena gerada pelo desconhecimento. bem certo o que afirma
Antonio Candido: ningum pode gostar daquilo que desconhece.
(CANDIDO, 1995, p. 149)

Essa pequena histria pessoal vem a propsito porque aqui


trato de um autor do sculo XVI/XVII e ao professor brasileiro
de literatura espanhola s lhe resta o recurso da leitura da obra
dramtica a ser estudada, uma vez que no comum a encenao
de tais obras em nossos teatros. necessrio, portanto, ler a obra,
o que ser desanimador para alguns, pois se trata de um texto do
Siglo de Oro, repleto de palavras em desuso, de ditos populares da
poca: Lope de Vega, senhor de uma vasta cultura, escrevia para
um pblico variado do ponto de vista social e tinha conscincia de
que os que se espremiam nos corrales3 para assistirem as suas
comdias, pertenciam a diferentes camadas da sociedade da poca.
Para ele, como ali estava o povo que o admirava, era justo falar-lhe
em sua linguagem, tal como registra nos versos 40 a 48 de El arte
nuevo de hacer comedias (1609):

3 Os Corrales de comedias surgem em 1579 e supem a estabilizao da prtica teatral,


pois esta abandona o espao da rua para ocupar construes destinadas a ser teatro.
Os primeiros e principais corrales de Madri foram o Corral de la Cruz e o Corral del
Prncipe, ambos receberam seus nomes das ruas onde respectivamente estiveram situados.

estudos 45.indd 25 26/05/14 14:55


26 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

y, cuando he de escribir una comedia,


encierro los preceptos con seis llaves;
saco a Terencio y Plauto de mi estudio
para que no me den voces (que suele
dar gritos la verdad en libros mudos),
y escribo por el arte que inventaron
los que el vulgar aplauso pretendieron,
porque, como las paga el vulgo, es justo
hablarle en necio para darle gusto. [] (1609, v. (40-48).

Se a lngua do sculo XVII difere da do leitor do sculo XXI por


razes diversas, evidente que a complexidade da leitura cresce,
mas isso no pode ser motivo, como modernamente se supe, para
deixar de oferecer ao estudante textos literrios de outras pocas e
em sua verso original, no em tradues que jamais conseguiro
manter o sabor prprio, o ar caracterstico, a allure do texto ori-
ginal. Seja qual for sua poca, o texto original est ao alcance do
estudante de espanhol sempre que se promover um movimento
dinmico para infundir-lhe o sopro vital que lhe permita revelar-se,
mostrando-se em seus vrios significados, desdobrando toda sua
riqueza significativa, suas infinitas possibilidades.

Arturo Prez-Reverte

A obra ficcional de Arturo Prez-Reverte (1951) transita pelo


mundo barroco, povoada que est por personagens como Quevedo,
Velzquez, Lope de Vega: um universo que indaga, como quer
Miguel Angel Queman, o mbito do popular espanhol daquele
tempo ao percorrer o mundo das tabernas e penses quando, ani-
mados pelo vinho, poetas y dramaturgos componan esas obras
hoy iniciales (QUEMAN, 1998, n/p). Desse modo, h, nela, uma
rica possibilidade de familiarizar ou provocar o interesse dos es-
tudantes de espanhol pela obra dos grandes nomes que forjaram

estudos 45.indd 26 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 27

o Siglo de Oro das letras espanholas. tempo, pois, de convidar


a que entre nesta modesta cena o escritor do sculo XX, comeos
do XXI, Arturo Prez-Reverte, que se confessa um admirador e
se revela um grande conhecedor do teatro clssico espanhol. Isso
se percebe pelas palavras do narrador de El caballero del jubn
amarillo (2003), Iigo de Balboa, para quem
ninguna nacin alumbr nunca tantos (hombres singulares) a
la vez, ni registr tan fielmente, como ellos hicieron hasta los
menudos pormenores de su poca. Por fortuna, todos siguen
vivos en los plteos de las bibliotecas, en las pginas de los li-
bros; a mano de quien se aproxime a ellos y escuche, admirado,
el rumor heroico y terrible de nuestro siglo y de nuestras vidas.
Slo as es posible comprender lo que fuimos y lo que somos.
(PREZ-REVERTE, 2003, p.62-63)

Na srie do Capitn Alatriste qual pertence El caballero del


jubn amarillo, o narrador refere-se inmeras vezes mais do que
com admirao, com reverncia a Lope de Vega. Para tanto, no
se vale do excesso da adjetivao. Algumas vezes deixa escapar
um el gran Lope, como no fragmento de El Capitn Alatriste: Y
mujeres de sas de las que dijo el gran Lope (PREZ-REVERTE,
1996, p. 78), a que se seguem quatro versos do ato I, cena IV de
El bobo del Colegio4. A Lope de Vega, segundo nos revela Iigo de
Balboa, todos en Espaa lo llamaban as, a secas, sin necesidad
del glorioso apellido. (PREZ-REVERTE, 2003, p. 51)

A leitura de semelhantes referncias de fragmentos diversos


da obra de Lope de Vega incentiva o leitor que procura saber mais
a empreender uma pesquisa que o leva, por via indireta, a um
mundo irrepetible, pleno de hombres singulares, talentos nunca

4 Hay locura de um mancebo/ Como verle andar perdido/ Tras una destas, que ha sido/
de mil ignorantes cebo? (De Lectura burlesca IV, de Francisco de Quevedo, disponvel
na web, conforme se v nas referncias, apresentadas ao final do texto)

estudos 45.indd 27 26/05/14 14:55


28 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

antes vistos que explican, cuando no justifican, aquella poca de


tanta grandeza y tanta gloria (PREZ-REVERTE, 2003, p. 62).
Aqueles dramaturgos e poetas, segundo afirma o jovem narrador,
renovaram, com seu talento e em diferentes registros, o castelhano,
do que resultou que a lngua espanhola fosse, para siempre, otra.
(PREZ-REVERTE, 2003, p. 51)

Estou convencida de que a leitura da obra do escritor conside-


rado por muitos, injustamente, a meu ver, um autor de bestsellers,
sem outro mrito que o de saber vestir bem as histrias que conta em
seus folhetins, provoca o jovem leitor de hoje a descobrir o mundo
criado pelos grandes das letras espanholas, ocultado pela indiferen-
a gerada pelo desconhecimento. Ou, o que sumamente mais gra-
ve, pelo apagamento da memria histrica, reduzindo-se o sentido
histrico do homem de hoje a nada, como afirma Prez-Reverte em
entrevista a Miguel Angel Queman. (PREZ-REVERTE, 1998, n/p)

Prez-Reverte entra em cena e dialoga com Lope de Vega

Entre as diferentes possibilidades para trazer Prez-Reverte a


este cenrio, prevaleceu a ideia de reproduzir parcialmente o dilogo
entre o fictcio Don Francisco de Quevedo e o Capitn Alatriste, em
um fragmento do captulo II, de El caballero del jubn amarillo,
obra de 2003: o famoso poeta revela a seu amigo espadachim que
lhe encomendaram uma comdia para ser representada no Palacio
del Escorial, onde estar o Rei Felipe IV para a temporada de caa.
Alatriste chama sua ateno para o fato de a comdia no ser sua
especialidade e Quevedo lhe contrape que pode atrever-se nesse
assunto porque foi o Conde Duque de Olivares em pessoa quem lhe
fez tal encomenda. pergunta de Alatriste com relao ao paga-
mento, Quevedo revela que, no presente so (ou sero) seiscentos
reais, pelo que lhe prometeu Olivares. E segue: Ved en qu vendr

estudos 45.indd 28 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 29

a parar / Obligado a su poder/ Haciendo yo mi deber/ Y l buscando


no pagar. (PREZ-REVERTE, 2003, p. 46)

E prosseguiu Quevedo, revelando a Alatriste os procedimentos


que seguiria para elaborar a comdia: De manera que echaremos
siete llaves a Aristteles y a Horacio, a Sneca y aun a Terencio, y
despus, como dice Lope, escribiremos unos cientos de versos en
vulgo. Lo justo de necio para darle gusto. (PREZ-REVERTE,
2003, p. 46), frase em que o leitor atento reconhece uma evidente
intertextualidade com El arte nuevo de hacer comedias, de Lope
de Vega.

Nos 376 endecasslabos de seu discurso de ingresso na Acade-


mia de Madri, em 1609, o dramaturgo, em El arte nuevo de hacer
comedias, deu especial importncia linguagem popular. A prtica
de conduzir um escritor de sucesso Academia continua viva no
Sculo XXI e em 2003 coube tal honra ao ex-jornalista e polmico
escritor Arturo Prez-Reverte. Sobre a cerimnia de posse de sua
cadeira na Real Academia Espaola de las Letras, Antonio Astorga,
do dirio ABC, de Madri, de 13 de junho de 2003, comentou: Arturo
Prez-Reverte ingresa en la Academia glosando el golfaray, el habla
de los hampones del Siglo de Oro. Afirma Astorga:
[] Hoy, Prez-Reverte es el escritor espaol en activo con ms
presencia en los territorios americanos de nuestra lengua. Es-
cribe novelas histricas ambientadas en el XVII para explicar, a
la generacin de su hija, la Espaa de hoy: Somos lo que somos
porque (a menudo ms para mal que para bien) fuimos lo que
fuimos. En ese intento por recuperar una memoria ofuscada
por la demagogia, la simpleza y la ignorancia eligi como
protagonista a un soldado veterano de Flandes que malvive
alquilando su espada. La ambientacin histrica le traslad a
los fascinantes vericuetos del habla de germana, esa lengua
marginal en continua interaccin con la general, el golfaray,
argot de los delincuentes y las crceles. Esa germana del XVI

estudos 45.indd 29 26/05/14 14:55


30 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

y XVII es un deleite y una fuente inagotable prctica, actual de


posibilidades expresivas. (ASTORGA, 2003, n/p)

A criao da personagem conhecida como el Capitn Alatriste,


o soldado veterano de Flandes, deve-se a uma deciso de Prez-
Reverte quando folheava os livros escolares de sua filha Carlota,
ento com 12 anos. Mais de uma vez, em suas entrevistas, o roman-
cista revelou seu processo de criao, ao contar que se surpreendera
ao verificar que os referidos livros apresentavam o Siglo XVII em
uma pgina e meia; a Transicin, entretanto, contava com umas
20 pginas, com fotos de Calvo Sotelo e Felipe Gonzlez e, mais
recentemente, tambm a de Aznar (NASCIMENTO, Hispanista,
2003, p. 119). Para o escritor, em consequncia disso, a gerao de
sua filha tiene la memoria descompensada y la memoria objetiva,
como referencia es fundamental. Sin saber lo que fuimos no pode-
mos saber lo que somos. (elmundolibro.com, 2002, n/p. Disponvel
na web). Ampliando sua perspectiva, prosseguiu:
Espaa es una plaza pblica en la que convive gente muy distin-
ta. Intent explicarle a mi hija un pedazo de historia de forma
divertida para que sepa de donde viene, pero no la visin gloriosa
y contaminada del franquismo, sino con una en la que ni se
vanaglorie ni se avergence[] (elmundolibro.com, 2002, n/p).

O apagamento da memria uma das preocupaes do escritor


Prez-Reverte e, j na dedicatria do primeiro volume da srie Las
aventuras del Capitn Alatriste, deixa isso bem claro: dedica-o aos
avs por la vida, los libros y la memoria. Isso talvez explique seu
gosto pela histria e pela literatura e sua preocupao de tentar
impedir que se concretize o borrado de memria ao qual sua filha
Carlota e seus coetneos so submetidos. Todos esses fatores foram
decisivos para que o Capitn Alatriste ganhasse uma dimenso
mais ampla: Lpez de Abiada afirma que o que comeara a ser es-
crito como uma diverso, um relato de 70 pginas, se aprofundou

estudos 45.indd 30 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 31

na histria e na literatura do sculo XVII, da Madri decadente dos


ustria porque todo lo que pasa hoy estaba entonces all. La co-
rrupcin, el poder de los validos, los fueros... (LPEZ DE ABIADA,
2000, p. 7), ou seja, trata-se, como afirma Prez-Reverte , de
la misma Espaa [...]: en vez de banqueros genoveses hay banque-
ros marioscondes, y en vez de Conde-Duque de Oivares, pues hay
lvarez Casco o Alfonso Guerra [...]. Cuando estaba trabajando
en esta novela me di cuenta de lo poco que hemos cambiado y de
los espaoles que somos [...]. Cuando ahora releo algunos de los
episodios, [...] asocio sin querer a la Iglesia, a la banca, al estado,
el poder, la corrupcin y la guerra sucia porque, en realidad, esta
novela es un episodio de la guerra sucia, aunque encaminada a
otro tipo de cosa. (LPEZ DE ABIADA, 2000, p.42)

Por seu lado, Lope de Vega sentia especial inclinao para ex-
trair lies para o presente da histria da Espanha e de Portugal
e, com relao ao perodo que precedeu o Renascimento, buscou
documentar-se nos cronistas, nas lendas e no Romancero5. Para
Wilson y Moir, Lope de Vega, em suas comdias de capa e espada
mais entretidas, tratava de modo hbil, ligero, a menudo satrico,
las costumbres, los tabes y los prejuicios de su propia clase social.
(1992, p. 102)

No Siglo de Oro, so muitas as obras que dramatizam os con-


flitos de honra. E Lope, em El arte nuevo de hacer comedia afirma
que as obras que tratam dos conflitos de honra mueven con fuerza a
toda la gente, o que, para Wilson y Moir reflete, seguramente, uma
das preocupaes reais do pblico para o qual Lope escrevia (1992,
p.119). O dramaturgo defende que a honra no atributo exclusivo
dos nobres, contrariando a convico aristocrtica de que os plebeus
no so capazes de ter o sentido da honra. Um exemplo est na fala

5 O Romancero Espaol uma coleo de poemas annimos sempre breves, compostos


originariamente para ser cantados ou recitados ao som de um instrumento.

estudos 45.indd 31 26/05/14 14:55


32 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

de Fernn Gmez, em Fuenteovejuna, aos aldees: Vosotros honor


tenis? / Qu frailes de Calatrava. (LOPE DE VEGA, 1619, p. 205).

Pelo que demonstram as atitudes das personagens na srie


do Capitn Alatriste, Prez-Reverte parece estar inteiramente
de acordo com Lope de Vega: todo ser humano, no importa sua
posio social, tem direito a ter honra e dignidade, a respeitar-se e
a ser respeitado. O tema da honra mantm-se bem vivo em nossa
poca e mais de uma vez o narrador de Prez-Reverte nos remete a
isso. Nas expresses usadas de maneira a concluir um relato sobre
falta de honra e dignidade, sobre suborno e corrupo no passado,
o leitor vai lendo tambm, criticamente, o tempo presente.

Os corrales de comedia da Madri do Sculo XVII, como o C orral


del Prncipe , eram frequentados por comerciantes, soldados,
6

nobres, artesos, pajens, estudantes, clrigos, escrives, lacaios,


escudeiros e rufies que para la ocasin se vestan con capa,
espada y pual, llamndose todos caballeros y dispuestos a reir
por un lugar desde el que asistir a la representacin, ambiente
fascinante ao que se acrescentavam as mulheres, como nos conta o
mochileiro do Capitn Alatriste e narrador da srie, Iigo de Balboa
(PREZ-REVERTE, 1996, p. 193), dando-nos ao mesmo tempo um
retrato da sociedade da poca, o povo que, segundo Lope, pagava
e a quem dedicava sua obra. Para o dramaturgo, honra e virtude
so os argumentos de maior sucesso: Los casos de la honra son los
mejores./ Porque mueven con fuerza a toda gente,/ Con ellos las
acciones virtuosas, / Que la virtud es dondequiera amada. (LOPE
DE VEGA,1609, v 327-330)

6 Situava-se na atual Plaza de Santa Ana, de Madrid, onde hoje se encontra o Teatro
Clsico Espaol.

estudos 45.indd 32 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 33

Segundo alguns de seus estudiosos, Lope escreveu suas obras


no s para divertir o povo e os nobres, como tambm para ensinar-
-lhes verdades teis, como se l em El arte nuevo de hacer comedia,
no qual situa a funo didtica do teatro espanhol: Oye atento, y
del arte no disputes, / Que en la comedia se hallar de modo/ Que,
oyndola, se pueda saber todo. (LOPE DE VEGA, 1609, v.386-389)

Prez-Reverte, por sua vez, senhor de uma preciosa documen-


tao histrica, apresenta os fatos que transforma em matria no-
velvel de maneira pitoresca, elaborando seu texto com os recursos
que se lhe oferece e ele domina: o relato oral e popular. Isso no o
impede de revelar sua erudio, sem romper o tom caracterstico
do relato oral. Segundo revela nas entrevistas, seu ofcio contar
histrias e faz-lo da melhor forma possvel. Sabemos que Prez-
-Reverte comeou a revelar sua admirao e a dialogar com Lope
de Vega e sua poca na srie do Capitn Alatriste; observamos,
porm, que continua a faz-lo e a contar histrias mesmo quando
caminha pelas ruas do Bairro de Letras, em Madri, em pleno sculo
XXI, como revela na crnica Cervantes, esquina a Len, publicada
em primeiro de maro de 2009, no El Semanal, nmero 1114, uma
revista online da atualidade.

A modo de concluso: o encontro e o desejado dilogo na


Madri do Sculo XXI

A crnica revertiana7 funciona como fecho deste artigo e deixa


claro o que defendo j a partir do ttulo: possvel (e desejvel) o
estabelecimento de um dilogo entre um dramaturgo do Siglo de
Oro, um escritor contemporneo, membro de la Real Academia

7 Pode ser lida em http://www.lanacion.com.ar/1109526-cervantes-esquina-a-leon

estudos 45.indd 33 26/05/14 14:55


34 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Espaola, nascido em 1951 e jovens do sculo XXI, desde que o


professor no esteja imerso no sistema de confuses que afastou a
literatura da sala de aula pelas assim ditas dificuldades que a leitura
de um texto literrio, especialmente em lngua estrangeira, oferece
ao aprendiz. Esse grande equvoco impede que o estudante descubra
outros mundos possveis pela prtica da leitura potica. Mas qual
ser o procedimento, o passe de mgica capaz de fazer com que os
jovens de hoje se interessem pela leitura, e possam at mesmo ler
ou assistir s obras dos dramaturgos do Sculo de Ouro?

Valho-me da crnica de Prez-Reverte para concluir minhas


reflexes. O escritor revela que gosta da Calle de Cervantes, em
Madri, pois ali tem a impresso de cruzar com amigveis fantasmas.
Explico: nesta parte de Madri viveu o criador de Don Quijote de la
Mancha, viveu tambm Lope de Vega, na esquina com a Calle de
Quevedo est a casa onde viveu o poeta que d nome a essa rua.
So esses alguns dos ilustres e amigveis fantasmas a que se refere
Prez-Reverte. Ali pertinho est o Convento de las Trinitarias onde
repousam os restos mortais de Cervantes. Neste lugar, com frequn-
cia, podem ser vistos estudantes acompanhados por um professor
que se esfora por despertar-lhes o interesse para a importncia e
toda a memria histrica e literria ali concentrada.

E em um de seus passeios pela Calle de Cervantes, Prez-Reverte


encontrou um grupo disperso de adolescentes acompanhados por
uma professora que tentava faz-los interessarem-se pelo que co-
mentava. Eis a cena, em palavras do escritor:
La estampa del grupo era la que pueden imaginar: una veintena
de chicos aburridos, la profesora contando lo de la casa cervan-
tina, cuatro o cinco atendiendo realmente interesados, y el resto
hablando de sus cosas o echando un vistazo al escaparate de un
par de tiendas cercanas. Cervantes les importa un carajo, me
dije una vez ms. (PREZ-REVERTE, 2009, n/p)

estudos 45.indd 34 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 35

Para Prez-Reverte, tal situao compreensvel, pois em sua


viso crtica e aguda observa que en el mundo que les hemos
dispuesto, poca falta les hace. Mejor, quizs, que ignoren a que su-
fran. (PREZ-REVERTE, marzo/2009, n/p). Seguia seu caminho,
quando foi reconhecido pela professora que mostrou aos jovens o
conhecido escritor, enumerando algumas de suas obras. meno
do Capitn Alatriste uns dois ou trs o olharam com interesse.
O escritor cumprimentou-os cortesmente e se disps a prosseguir
caminhando quando a professora lhe pediu que comentasse um
pouco sobre o bairro para seu grupo. Prez-Reverte confessa que a
docncia no o seu forte; entendia bem que aqueles adolescentes
no tivessem interesse pelas palavras de um homem de meia idade
em uma manh fria de inverno e, pensando rapidamente, apelou
para uma estratgia de seu antigo ofcio de jornalista: apresentar-
-lhes o tema como uma crnica de teledirio. Diante de uma pro-
fessora assustada, deu curso a sua criatividade, atraindo a ateno
at dos que, afastados, olhavam com interesse as vitrines das lojas
prximas. Seu relato trouxe-os de volta ao grupo:
Se odiaban a muerte, empec, viendo cmo la profesora abra
mucho los ojos, horrorizada. Eran tan espaoles que no podan
verse unos a otros. Se envidiaban los xitos, la fama y el dinero.
Se despreciaban y zaheran cuanto les era posible. Se escriban
versos mordaces, insultndose. Hasta se denunciaban entre s.
Eran unos hijos de la grandsima puta, casi todos. Pero eran unos
genios inmensos, inteligentes. Los ms grandes. Ellos forjaron la
lengua magnfica en la que hablamos ahora: (PREZ-REVERTE,
marzo/2009, n/p).

J disse algum que no basta contar: o que importa saber


contar. E nisso nosso narrador mestre! Naquela curiosa e inusi-
tada aula sob o cu cinzento e o ar frio de uma manh madrilense,
no se ouvia voar uma mosca, tal era o silncio que imperava entre

estudos 45.indd 35 26/05/14 14:55


36 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

os jovens, que, em atitude respeitosa, escutavam, interessados, a


histria que lhes contava o escritor. Prosseguiu Prez-Reverte:
Tenis suerte de estar aqu -dije, ms o menos-. Nunca en la
historia de la cultura universal se dio tanta concentracin de ta-
lento en cuatro o cinco calles. Se cruzaban cada da unos y otros,
odindose y admirndose al mismo tiempo, como os digo. Ah
est la casa de Lope, donde aloj a su amigo el capitn Contreras,
a pocos metros de la casa que Quevedo compr para poder echar
a su enemigo Gngora. Por esta esquina se paseaban el jorobado
Ruiz de Alarcn, que vino de Mxico, y el joven Caldern de la
Barca, que haba sido soldado en Flandes. En el convento que
hay detrs enterraron a Cervantes, tan fracasado y pobre que
ni siquiera se conservan sus huesos. Lo dejaron morir casi en la
miseria, y a su entierro fueron cuatro gatos. Mientras que al de
su vecino Lope, que triunf en vida, acudi todo Madrid. Son las
paradojas de nuestra triste, ingrata, maldita Espaa (PREZ-
REVERTE, 2009, n/p).

Todos os elementos que caracterizam as obras de Prez-Reverte


esto a presentes: o conhecimento profundo da histria da Espanha
e da Literatura espanhola, o esprito crtico, a ironia, a comparao
subentendida que estabelece entre a Espanha de sculos passados
e a Espanha de hoje, por exemplo, saltam aos olhos e seduzem o
leitor/ouvinte. aquela seduo que se impe quando um bom
professor-leitor faz chegar a seus alunos um texto literrio atravs
de sua voz, exercitando seu poder de seduo, de provocao pela
sutileza, a ao exata que conquista um possvel futuro leitor, na-
quele processo de contgio de que fala a argentina Mara Ins Bo-
gomolny:, para quem ler contagioso. (BOGOLMONY, 2003, n/p)

No encontro de Prez-Reverte com os adolescentes de uma


escola de Madri no havia a palavra escrita: ele falava sobre escri-
tores de quatro sculos passados, contando-lhes fatos de maneira

estudos 45.indd 36 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 37

a despertar-lhes a curiosidade, contagiando-os com seu conheci-


mento. o que se percebe quando Prez-Reverte comenta:
Los chicos todos estaban agrupados y escuchaban respetuosos.
No a m, claro, sino el eco de las gentes de las que les hablaba.
No las palabras de un escritor coazo cuyas novelas les traan
sin cuidado, sino la historia fascinante de un trocito de su propia
cultura. De su lengua y de su vieja y pobre patria. Y qu bien
reaccionan estos cabroncitos, cuando les das cosas adecuadas.
Cuando les hacen atisbar, aunque sea un instante, que hay
aventuras tan apasionantes como el Pars-Dakar [], y que es
posible acceder a ellas cuando se camina prevenido, lcido,
con alguien que deje miguitas de pan en el camino. (PREZ-
REVERTE, 2009, n/p).

No preciso dizer muito para comprovar que as artes do con-


tar de que se vale o escritor se no envolveram a todos os jovens,
capturando-os para a leitura, impressionou-os bastante e os fez
perceber novas maneiras de ver o mundo. Eles descobriram, pela
palavra sedutora de um escritor que sabe como contar que, seguindo
a trilha indicada pelas migalhinhas de po identificadas pelo olhar
observador possvel descobrir um mundo diverso, apaixonante,
pleno de novas aventuras e de outros modos de ser.

O dilogo atravs dos sculos estabelece-se, finalmente, pelo


movimento de abrir o mundo significativo atravs de diversos
recursos, provocadores, sempre, de maneira a que o jovem da era
eletrnica se decida a participar dele, e descubra a importncia do
conhecimento do outro e do mundo propiciado pela aventura da
palavra. No ensino de uma lngua estrangeira, por meio de diferen-
tes temas e de outros meios que costumo chamar de iscas para
capturar o interesse, o estudante aceder a valores ticos, estticos,
ideolgicos, morais, como quer Rodrigues Lima (LIMA, 2004,
p. 190), pois o ensino de uma lngua estrangeira, em uma esfera

estudos 45.indd 37 26/05/14 14:55


38 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

de objetivos pedaggicos mais amplos, vai muito alm dos limites


das habilidades e competncias previstas nas prticas curriculares
tradicionais.

Chegamos ao final, voltando s epgrafes: importa valer-se da


informao para construir um caminho novo por meio do qual se
facilite ao estudante a construo de saberes necessrios para no s
compreender o outro, mas perceber o mundo de maneira reflexiva
e reconhecer seu lugar nele. O dilogo do estudante com o mundo
pode ser facilitado pelo texto literrio graas diversidade de lin-
guagem e aos diversos temas que aborda, uma vez que ele provoca,
inquieta, suscita discusses, dvidas, reflexes e, principalmente, a
curiosidade de ler outros textos, de descobrir o mundo escondido
nas letras, nas palavras de uma boa e bem apresentada histria.

Referncias

CANDIDO, Antonio. El derecho a la literatura. In ___. Ensayos y


comentarios. Campinas: Unicamp; So Paulo: Fondo de Cultura
Econmica de Mxico, 1995. pp. 149-173.
LOPE DE VEGA. Peribez y el Comendador de Ocaa.
Fuenteovejuna. 2ed. Quito: Libresa, 1999.
LPEZ DE ABIADA, J.M. y LPEZ BERNASOCHI, A (Editores).
Territorio Reverte. Madrid: Verbum, 2000.
PREZ-REVERTE, Arturo. Las Aventuras del Capitn Alatriste.
Madrid: Alfaguara, 1996.
PREZ-REVERTE, Arturo. El Oro del Rey. Madrid: Alfaguara, 2000.
PREZ-REVERTE, Arturo. El Caballero del Jubn Amarillo. Madrid:
Alfaguara, 2003.
LIMA, Luciano Rodrigues. O uso de canes no ensino de ingls como
lngua estrangeira: a questo cultural. In: MOTA, K., SCHEYERL,

estudos 45.indd 38 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 39

D (Org.). Recortes interculturais na Sala de Aula de Lnguas


Estrangeiras. Salvador: EdUFBA, 2004, p. 173-191.
VALBUENA PRAT, ngel. Literatura Castellana. I. De los orgenes al
Romanticismo. Barcelona: Juventud, 1979.
WILSON, E.M. y MOIR, D. Historia de la literatura espaola 3. Siglo
de Oro: teatro. Barcelona, 1992.
DOCUMENTOS ELETRNICOS
ABRAMOVICH, Fanny. Fragmentos de texto, citados por Carlos
Brito no artigo: Literatura infantil e linguagem oral na clnica
fonoaudiolgica: em busca de um paradigma de subjetividade.
Disponvel em: www.unicap.br/Arte/ler.php?art_cod=1535. Consulta
em 03 de agosto de 2009
ASTORGA, Antonio. Arturo Prez-Reverte ingresa en la Academia
glosando el <<golfaray>>, el habla de los hampones del Siglo de Oro.
ABC.es Madrid, 13 de junio de 2003, no paginado. Disponvel em:
http://www.abc.es/hemeroteca/historico-13-06-2003/abc/Cultura/
arturo-perez-reverte-ingresa-en-la-rae-glosando-el-golfaray-el-habla-
de-los-hampones-del-siglo-de-oro_187592.html Consulta em 03 de
agosto de 2009
BOGOLMONY, Ma. Ins. Leer es contagioso, 2003, n/p. Disponvel
em: http://www.el-libro.com.ar/archivo_documental/PDFs/011-
Bogolmony.pdf Consulta em 03 de agosto de 2009
elmundolibro.com. Prez-Reverte explica el nacimiento de su
personaje ms famoso 25/11/2002. Disponvel em: http://www.
elmundo.es/elmundolibro/2002/11/25/anticuario/1038222123.html
Consulta em 02 de agosto de 2009.
LOPE DE VEGA y CARPIO. Fuenteovejuna Comedia Famosa (1619).
Disponvel em: www.alcudiavirtual.ua.es Consulta em 12 de agosto de
2009.
_____: El Arte Nuevo de Hacer Comedias (1609). Disponvel em:
http://www.trinity.edu/org/comedia/misc/artnue.html. Consulta em
02 de agosto de 2009.

estudos 45.indd 39 26/05/14 14:55


40 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

NASCIMENTO, Magnlia. Cipriano Salcedo y el Capitn Alatriste: una


mirada hacia el pasado de Espaa. Hispanista, Revista Electrnica,
nmero 14, 2003, p. 119. Disponvel em: http://www.hispanista.com.
br/revista/artigo119esp.htm. Consulta em 01 de agosto de 2009
PREZ-REVERTE, Arturo. Cervantes, esquina a Len. Patente de
Corso. XL Semanal, 01/03/2009. Disponvel em http://www.lanacion.
com.ar/1109526-cervantes-esquina-a-leon. Consulta em 01 de agosto
de 2009
QUEMAIN, M.A. Nueva novela folletn de un escritor envidiado.
Noviembre de 1998. no paginado. Disponvel em: http://www.icorso.
com/cola7.html. Consulta em 01 de agosto de 2009
QUEVEDO, F. Hay locuras de un mancebo. Let. Burlesca IV, in
Poesas., p. 264.
Disponvel em: http://books.google.es/books?id=2gABAAAAMAAJ&pg
=PA269&lpg=PA269&dq=%22Quevedo+Ved+en+qu%C3%A9+vendr%
C3%A9+a+parar,%22&source=bl&ots=W1ZHGKZwvD&sig=ewazqe21P
vFVqCsFSopWzLDQp58&hl=pt-BR&ei=yIJ8SoXYC4eCMseqtOYC&sa=
X&oi=book_result&ct=result&resnum=1#
Consulta em 02 de agosto de 2009.
SARAMAGO, Jos. Escola on line. Seo Fala, Mestre. Edio N 166
Outubro de 2003. http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/143_
jun01/html/fala_mestre. Consulta em 02 de agosto de 2009

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 40 26/05/14 14:55


Modernidade tardia

Late modernity

Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda


Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: O artigo discute o conceito de modernidade tardia, bem


como outros conceitos a ele associados, mostrando sua relevncia para
o desenvolvimento da teoria e da crtica produzida na/sobre a Amrica
Latina. A partir do desvelamento de complexos movimentos de tenso
e defasagem entre modernidade/modernizao, arte/cultura de massa,
local/global, evidenciam-se prticas contemporneas, desde o campo da
literatura at os da arquitetura, da poltica e da mdia, que problematizam a
possibilidade de se estipularem fronteiras precisas entre temporalidades e
valores scio-histricos em contextos perifricos. Nesse sentido, as noes
de entre-lugar e margem so convocadas a fim de ressaltar, ao lado do
qualificativo tardio, a importncia de se pensar a produo brasileira e
latino-americana, em geral, dentro de uma perspectiva ps-colonial que
evite modelos cristalizados de identidade, assim como a estabilizao de
padres interpretativos da nossa dinmica sociocultural.

Palavras-chave: modernidade tardia, teoria e crtica cultural, estudos


latino-americanos.

ABSTRACT: This article discusses the concept of late modernity, as


well as other concepts associated with it, showing its relevance to the

estudos 45.indd 41 26/05/14 14:55


42 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

development of theory and criticism produced in/on Latin America. The


unveiling of complex movements of tension and gap between modernity/
modernization, art/mass culture, local/global demonstrate contemporary
practices from the field of literature to architecture, politics and the media,
that question the possibility to stipulate precise boundaries between
temporalities and socio-historical values in peripheral contexts. In this
sense, the notions of in-between and margin are convened to highlight
beside the adjective late, the importance of thinking about the production
in Brazil and Latin America, in general, within a post-colonial perspective
that avoids crystallized models of identity as well as the stabilization of
interpretative standards of our socio-cultural dynamics.

Keywords: late modernity, theory and cultural criticism, Latin America


studies.

O modelo ocidental e eurocntrico das teorias sobre a moderni-


dade foi, por muito tempo, aceito como nico, sem que sua hegemo-
nia fosse contestada. Outras experincias da modernidade devero
ser observadas, considerando no s o descompasso temporal de
sua atualizao pelas distintas culturas, como as singularidades
mltiplas e divergentes dessa vivncia dentro das prprias culturas
locais. Pensadores e tericos contemporneos tm se empenhado
em apontar algumas possveis sadas para sair ou entrar na mo-
dernidade, como assim se expressou Nstor Canclini. Dotados de
pensamento nmade e de experincia vital em permanente deslo-
camento, esses autores se apropriam da teorizao aprendida pelos
discursos hegemnicos para desconstru-los. Romper estrategica-
mente com as teorias que consolidaram o mito da modernidade
se justifica pela emergncia em assumir novas propostas capazes
de contribuir para o norteamento das indagaes do presente.
Ao termo ps-modernidade, de carter geral e pertencente ao uni-
verso anglo-saxo, so criadas outras nomenclaturas, com vistas a
expressar mais objetivamente o pensamento e a realidade de cada

estudos 45.indd 42 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 43

cultura enfocada. A ps-modernidade, em toda sua dimenso e


abrangncia, no poder ser analisada sem a reflexo das vrias
vertentes que compem o esprito moderno. Os conceitos legados
pelas culturas hegemnicas so colocados em xeque e revisitados,
levando em conta a importncia que as transformaes polticas e
culturais representam atualmente para o entendimento do mundo
globalizado.

por demais consensual a afirmao de que no prprio con-


tinente latino-americano as ocorrncias culturais e artsticas no
se realizam de modo homogneo. Jess Martn-Barbero, terico
espanhol radicado na Colmbia, introduz uma reflexo original
nos estudos da mdia a modernidade descentrada que res-
ponde pelas vrias temporalidades detectadas perante a recepo
de culturas hegemnicas pelas perifricas. Nesse sentido, o modo
pelo qual a modernidade referencializada sempre no plural,
pela existncia de distinta configurao conceitual: o princpio de
homogeneidade substitudo pelo de heterogeneidade. Trata-se
de alternativas de definio concernentes ao termo ps-moderno,
quando se prope refletir sobre os mltiplos e complexos mbitos
da cultura na Amrica Latina.

A noo de atraso, por exemplo, se desvincula do teor negativo


e se impe como pea integrante da defasagem temporal, do tardio,
do sinal de mais das regies perifricas. A experincia simultnea
do tempo impede conceber a realidade dos pases perifricos si-
milar s demais, pois importante descartar raciocnios de ordem
causalista e progressista. Na perspectiva de Martn-Barbero, a
simultaneidade temporal aponta diferenas e no se orienta segun-
do critrios analgicos, mas busca pensar a potica sincrnica de
forma contextual e histrica. Verifica-se, portanto, a produo de
diversas denominaes relativas ao conceito de moderno, como o

estudos 45.indd 43 26/05/14 14:55


44 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

de modernismo tardio, de autoria de Fredric Jameson, associado s


noes de capitalismo tardio e de sociedade ps-industrial1; Stuart
Hall discorre sobre os conceitos de modernidades alternativas e
de modernidades tardias (HALL, 1998). Outras denominaes
referem-se a modernidades perifricas, como o caso de Beatriz
Sarlo2; modernidades livres (at large), segundo o terico indiano
Arjun Appadurai, no livro Modernity at large3; modernizao
reflexiva, no entender de Anthony Giddens4; contra-modernidade

1 Capitalismo tardio faz o mesmo efeito, mas com uma diferena: o qualificativo tardio
raramente significa algo to tolo quanto o envelhecimento, colapso ou fim do sistema como
tal (esta uma viso temporal, que parece pertencer mais ao modernismo do que ao ps-
-modernismo). O que tardio realmente transmite mais um sentido de que as coisas so
diferentes, que passamos por uma transformao de vida que de algum modo decisiva,
ainda que incomparvel com as mudanas mais antigas da modernizao e da industria-
lizao, menos perceptveis e menos dramticas porm mais permanentes, precisamente
por serem mais abrangentes e difusas. (JAMESON ,1996, p. 24)

2 Las orillas, el suburbio son espacios efectivamente existentes en la topografa real de la


ciudad y al mismo tiempo slo pueden ingresar a la literatura cuando se los piensa como
espacios culturales, cuando se les impone una forma a partir de cualidades no slo estticas
sino tambin ideolgicas. (...) Los escritores fundan el suburbio a partir de mezclas estticas
e ideolgicas particulares. La solucin de Borges incluye los ideologemas suburbanos,
que son una invencin de su primera poesa, y las citas que ponen en evidencia su trabajo
a partir de las literaturas extranjeras. Borges acriolla la tradicin literaria universal y, al
mismo tiempo universaliza las orillas, todava indecisas entre la ciudad y el campo.
(SARLO, 1988, p. 180-181)

3 Los Estados-nacin, en tanto unidades de un sistema interactivo complejo, probablemente


no sean los que van arbitrar, a largo plazo, la relacin entre la globalidad y la modernidad.
Esto es lo que quiero sugerir en el ttulo del libro cuando digo que la modernidad anda
suelta y est fuera de control, a la deriva, desbordada. (APPADURAI, 2001, p. 34)

4 Assim, em virtude de seu inerente dinamismo, a sociedade moderna est acabando


com suas formaes de classe, camadas sociais, ocupao, papis dos sexos, famlia
nuclear, agricultura, setores empresariais e, claro, tambm com os pr-requisitos e as
formas contnuas do progresso tcnico-econmico. Este novo estgio, em que o progresso
pode se transformar em autodestruio, em que um tipo de modernizao destri outro e

estudos 45.indd 44 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 45

cultural, como sinnimo de temporalidade disjuntiva, em Homi


Bhabha (1998); ou modernidade lquida, conceito cunhado por
Zygmunt Bauman (2001).

Uma das contribuies mais eficazes para se entender o deba-


te sobre o tema a de Appadurai, ao se apropriar da experincia
dos exilados indianos nos Estados Unidos para a legitimao do
conceito de modernidades livres. A eficcia consiste na sensibili-
dade do terico frente cultura de massa, concepo de moder-
nidades perifricas que fogem do padro elitista e eurocntrico.
Segundo sua anlise, so construdas comunidades imaginadas
que se identificam pelos meios de comunicao de massa, como
a televiso, o rdio, o cinema, sem passar pelo crivo de noes de
modernidade arbitrada pelos parmetros do Estado-nao. Um dos
mais importantes parceiros do esprito utpico e modernizador
para Appadurai as grandes salas de cinema, responsveis no s
para a transformao das subjetividades cotidianas, mas que iriam
atuar, deliberadamente, nos hbitos e nos costumes dos exilados.
A crescente atuao dos meios de comunicao de massa interfere
na concepo de universos imaginativos que desfazem barreiras
territoriais e lanam o indivduo em busca de prazer, reflexo e
vida em comunidade. A cultura de massa foi e ainda continua
banida da elite pensante moderna, interessada em copiar modelos
das metrpoles e em esquecer as peculiaridades locais, produtoras
de diferena.

Segundo Martn-Barbero (1997), a modernidade descentrada


refere-se a uma descontinuidade de modernidade no-contempo-
rnea, em que a no-contemporaneidade se distingue da ideia de
atraso constitutivo, de atraso convertido em chave explicativa da

o modifica, o que eu chamo de etapa da modernizao reflexiva. (GIDDENS; BECK;


SCOTT, 1997, p. 12)

estudos 45.indd 45 26/05/14 14:55


46 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

diferena cultural. Apresenta-se ainda sob duas verses: a primei-


ra, sinalizando que a originalidade dos pases latino-americanos,
e da Amrica Latina como um todo, dependeu de fatores que se
desvinculam da lgica do desenvolvimento capitalista; a segun-
da, considerando a modernizao como a recuperao do tempo
perdido, e, portanto identificando o desenvolvimento com o aban-
dono de identidades locais para nos tornarmos modernos. Essa
descontinuidade estaria situada em outra chave, ao permitir que
se rompa tanto com um modelo a-histrico e culturalista quanto
com o paradigma da racionalidade acumulativa, na pretenso de
unificar e subsumir num s tempo as diferentes temporalidades
scio-histricas. (MARTN-BARBERO, 1997, p. 214) A passagem
referente ao conceito de modernidade descentrada conceituada por
Barbero a que se segue:
El inacabado proyecto de la modernidad no puede entonces
separarse tan ntida y limpiamente de la razn que inspira la
modernizacin como pretende Habermas (El discurso filosfico
13 y ss). De ah que su crisis comporte para la periferia elementos
liberadores. As la posibilidad de afirmar la no simultaneidad
de lo simultneo (Rincn) la existencia de destiempos con
la modernidad que no son pura anacrona sino residuos (en el
sentido que esa nocin tiene para R. Williams en Marxismo y
literatura 144) no integrados de otra economa que al trastor-
nar el orden secuencial del progreso modernizador libera nuestra
relacin con el pasado, con nuestros diferentes pasados, hacien-
do del espacio el lugar donde se entrecruzan diversos tiempos
histricos, y permitindonos as recombinar las memorias y
reapropiarnos creativamente de una descentrada modernidad.
(MARTN-BARBERO, 2002, p.9)

Na mesma linha de raciocnio, Hans Ulrich Gumbrecht utiliza a


expresso cascatas de modernidade, com o intuito de refletir sobre
a dimenso simultnea do tempo, tendo em vista o rompimento

estudos 45.indd 46 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 47

com a perspectiva homognea e unvoca dos tempos contempor-


neos. Como Barbero, Gumbrecht prope abordar a modernidade
da seguinte maneira:
Quem opera com problemas e conceitos como os de modernida-
de e modernizao, perodos e transies de perodo, progresso
e estagnao pelo menos quem o faz dentro do campo da
cultura ocidental e est interessado em discutir a identidade do
prprio presente histrico no pode deixar de confrontar-se
com o fato de uma sobreposio desordenada entre uma srie
de conceitos diferentes de modernidade e modernizao. Como
cascata, esses conceitos diferentes de modernidade parecem
seguir um ao outro numa sequncia extremamente veloz, mas,
retrospectivamente, observa-se tambm como eles se cruzam,
como os seus efeitos se acumulam e como eles interferem mutu-
amente numa dimenso (difcil de descrever) de simultaneidade.
(GUMBRECHT, 1998, p. 9)

Julio Ramos refora a necessidade de se pensar na existncia de


mltiplas modernidades, ao analisar a questo do franco-centrismo
das teorias da modernidade em Benjamin,
centradas na experincia parisiense, modelo frequente, ainda
hoje, de teorizaes de uma modernidade global, que obviamente
nem sempre aplicvel a outras experincias da modernidade.
[...] Como falar da modernidade sem perder de vista as sin-
gularidades mltiplas e divergentes da experincia moderna?
(RAMOS, 2009, p. 33)

O exemplo ao qual o crtico se atm o de Walter Benjamin, por


meio da sua experincia vivida longe de Paris e fora dos parmetros
ditados por uma modernidade urbana. A ida ao porto francs de
Marselha lhe proporcionaria o contato com manifestaes perif-
ricas de cultura, como o jazz, interpretado por negros e imigrantes.
Como consequncia, o filsofo passa a articular o reconhecimento
da modernidade desigual, dominada pela interao irredutvel de

estudos 45.indd 47 26/05/14 14:55


48 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

temporalidades mltiplas. (RAMOS, 2009, p. 40) O argumento


utilizado por Ramos para justificar a descoberta, embora tmida,
de Benjamin, dessa outra vertente da modernidade, estaria na
experincia do haxixe, da droga que permite o deslocamento e a
passagem do mbito terico ao ficcional, ou em suas palavras, ao
narrativo. Experincia que se passa no nvel do corpo do filsofo,
uma das mltiplas formas de se conceber os traos dessa moder-
nidade tardia:
Ali, naqueles becos aos ps dos paredes dos molhes de onde
partiam os novos transatlnticos, Benjamin se afasta de Hegel
e do alemo de Goethe para celebrar, de maneira tmida, porm
firme, a irrupo do ritmo, esse ritmo que lhe invadia como um
maravilhoso e estranho dialeto; ali, num pequeno bar cheio de
marinheiros do sul, onde tudo [o Todo] desapareceu de repente
num rudo no de ruas, mas de vozes [...] e onde [lhe pareceu] de
repente que os marselheses no falavam francs suficientemente
bem (p. 35), e menos mal, sugere Benjamin, porque desses
murmrios surgia a lngua nova de uma modernidade distinta,
inaudita, incompreensvel e bela, inclusive para aquele leitor de
Proust e Baudelaire. (RAMOS, 2009, p. 41)

Essa posio descentrada e politicamente saudvel diante da


modernidade que se reestrutura nas margens da cultural hege-
mnica ocidental ainda percebida por Jess Martn-Barbero,
ao se referir s inseres do discurso marginal no espao urbano
contemporneo. No seu livro Al sur de la modernidad, ao tornar
reversvel a clebre frase de Benjamin, "todo documento de cultura
tambm um documento de barbrie", desfaz opinies negativas
de pensadores europeus sobre o rock, como as de Adorno, Milan
Kundera e George Steiner. O antroplogo afirma que "nesses obscu-
ros tempos, h documentos de barbrie que poderiam estar sendo
documentos de cultura." Contrrio acusao de ser o rock um pre-
texto para a instaurao da barbrie, Barbero avalia positivamente

estudos 45.indd 48 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 49

o gnero musical, por se apresentar como "nova esfera sonora capaz


de produzir formas de solidariedade grupal e abalar a velha autori-
dade da ordem verbal". So movimentos que atravessam, minam e
subvertem a cultura, seja atravs da ilegibilidade dos grafitti, dos
rudos das cidades, seja atravs dos ritmos que se mesclam aos
demais barulhos urbanos, fazendo irromper as frgeis utopias do
cotidiano. O antigo cenrio letrado das cidades cede lugar s ma-
nifestaes artsticas transnacionais e presena de comunidades
perifricas, produtoras de novas sensibilidades e mltiplas formas
de se conceber a modernidade. (MARTN-BARBERO, 2001, p.123)

O que h de comum entre Ramos e Barbero reside na ateno


sensvel s manifestaes marginalizadas da cultura moderna, como
a msica negra e indgena, relidas por intrpretes que rompem com
situaes culturais hegemnicas e etnocntricas. So estas as sadas
encontradas pelos pases perifricos para as solues arraigadas
impostas pelas estereotipias modernas. A importncia atribuda
cultura de massa na construo de modernidades alternativas, do
imaginrio popular que possibilita novas formas de incluso social
e de pequenas utopias se resume, nas palavras de Martn-Barbero,
no seguinte:
Como en la exasperante ilegibilidad de mucho del grafitti cal-
lejero de los ltimos aos, en la estridencia sonora del rock se
hibridan hoy los ruidos de nuestras ciudades con las sonoridades
y los ritmos de las msicas indgenas y negras, las estticas de
lo desechable con las frgiles utopas que surgen de la desazn
moral, el vrtigo audiovisual y la empata con una cultura tec-
nolgica en cuyos relatos e imgenes, fragmentaciones y veloci-
dades, los jvenes de todas las clases parecen haber encontrado
su ritmo y su idioma. (MARTN-BARBERO, 2001, p.123)

estudos 45.indd 49 26/05/14 14:55


50 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

O crtico discorda ainda da posio marxista de Fredric Jame-


son, ao postular, em Modernidade singular, que o nico signifi-
cado semntico satisfatrio para modernidade se encontre na sua
associao com o capitalismo, o que descarta a possibilidade de
existncia de modernidades alternativas, reduzindo-as a uma mo-
dernidade global. A dissociao do conceito de modernidade preso
a conotaes apenas ocidentais, possibilita a aproximao entre as
modernidades alternativas e as prticas ps-coloniais, como assim
tambm pensa Homi Bhabha. O ponto de vista de Jameson contra-
ria os demais tericos que defendem a existncia de modernidades
mltiplas e descontnuas:
Como ento os idelogos da modernidade (em seu sentido
atual) conseguem distinguir o seu produto a revoluo da in-
formao e a modernidade globalizada do livre-mercado do de-
testvel tipo mais antigo, sem se verem envolvidos nas respostas
e graves questes polticas e econmicas, questes sistemticas,
que o conceito de ps-modernidade torna inevitveis? A resposta
simples: falamos de modernidades alternadas ou alternati-
vas. Agora todo o mundo conhece a frmula: isso quer dizer que
pode existir uma modernidade para todos, diferente do modelo
padro anglo-saxo, hegemnico. O que quer que nos desagrade
a respeito deste ltimo, inclusive a posio subalterna a que nos
condena, pode apagar-se pela idia tranqilizadora e cultural
de que podemos confeccionar a nossa prpria modernidade de
maneira diversa, dando margem, pois, a existir o tipo latino-
-americano, o indiano, o africano, e assim por diante. (...) Mas
isso seria passar por cima de outro significado fundamental da
modernidade, que a de um capitalismo mundial. (JAMESON,
2005, p.21-22)

Essas distintas e prximas conceituaes referentes ps-mo-


dernidade se relacionam ao termo mais amplo de modernidades
alternativas assinado por Stuart Hall, Giddens entre outros,
motivados pela resistncia a definies hegemnicas sobre a moder-

estudos 45.indd 50 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 51

nidade. Sander Vinberg, na resenha feita sobre o livro Alternative


modernities, editado por Dilip P. Gaonkar (2001), considera que:
There is no single school of alternative modernities, but instead
a diffuse trend of recognizing certains postcolonial practices as
evidence of the existence of modernity that nonetheless takes
forms other than the modernity in the West. The literature lar-
gely revolves around a central theme, that everywhere, at every
national/cultural site, modernity is not but many; modernity
is not new but old and familiar, modernity is incomplete and
necessarily so. (VINBERG, s/d)

Modernidades tardias no Brasil5

No Brasil, possvel destacar o momento em que, de maneira


peculiar, arte e tecnologia se articulam com a razo do Estado, por
meio do projeto de construo da Pampulha em Belo Horizonte,
na dcada de 1940, pelo ento prefeito Juscelino Kubitschek, um
projeto modernizador que culmina com a criao de Braslia e a
poltica desenvolvimentista dos anos 50. Tem-se a uma espcie
de narrativa fundadora da nossa modernidade tardia tenta-

5 No Brasil, os estudos comparatistas tomaram novo impulso a partir de 1988,


com a realizao do primeiro congresso da Associao Brasileira de Literatura
Comparada (Abralic), que reuniu um grande nmero de comparatistas do Brasil e
do exterior. Nesse contexto, o dilogo com as culturas do rio da Prata destacou-se
rapidamente na configurao da literatura comparada como importante objeto de
estudo da Abralic. Esse interesse propiciou a realizao do projeto interdisciplinar
Modernidades Tardias no Brasil, desenvolvido de 1997 a 2000 na UFMG, com
financiamento da Fundao Rockefeller. O projeto teve como objetivo desenvolver
estudos sobre a heterogeneidade dos processos tardios de modernizao ocorridos
em vrias regies do Brasil a partir da dcada de 1940, a exemplo da construo
do complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, e seu posterior desdobramento
na construo de Braslia. O andamento da pesquisa permitiu o intercmbio com
pesquisadores e universidades latino-americanas e europeias, ampliando o raio
de alcance das discusses sobre o moderno tardio.

estudos 45.indd 51 26/05/14 14:55


52 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

tiva de curar uma ferida narcsica, de preencher o hiato entre


o impulso modernizante e a herana do passado. (MIRANDA,
1999, p.9)

A literatura e a arte surgidas nesta poca acompanham o de-


bate em torno da definio dos vrios tipos de modernidade, seja
pela continuidade aos princpios modernistas vigentes na dcada
de 1920, seja pela distinta resposta endereada aos parmetros
estticos do momento. Se no perodo modernista o conceito de
arte moderna no Brasil parecia estar consolidado, na arquitetura
essa tendncia no havia ainda se concretizado. A construo do
conjunto arquitetnico moderno da Pampulha por Oscar Niemeyer,
em 1943, se inscreve como marco dessa reflexo sobre outro tipo
de modernidade, entendida como manifestao cultural que se
realizava num tempo deslocado e defasado, fora de um lugar pre-
viamente estipulado e associada a vertentes perifricas de cultura.
As ressonncias dos movimentos culturais e polticos na socieda-
de mineira e brasileira podem ser caracterizadas pelos diferentes
tipos de modernizao processados nas vrias regies do pas (as
implicaes polticas do projeto modernizador de Juscelino Ku-
bitschek, a modernizao das cidades, a construo de Braslia, a
internacionalizao da arte moderna e novas propostas literrias).

O programa cultural promovido pela Prefeitura de Belo Horizon-


te tinha como meta principal transformar a cidade num frum de
debates em torno das tendncias mais atuais da cultura, uma vez que
a capital de Minas deveria mostrar-se sensvel s inmeras mudan-
as que estavam se processando no plano nacional e internacional.
A hegemonia artstica e poltica europeia comeava a contracenar
com a nascente influncia da cultura americana, com o advento da
cultura de massa, exatamente no ltimo ano da Segunda Guerra
Mundial: O plano de tornar Belo Horizonte cada vez mais inserida

estudos 45.indd 52 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 53

no espao das grandes metrpoles nacionais, pela transformao


de seu carter provinciano e conservador, era um dos principais
objetivos do programa poltico de JK. (SOUZA, 1998, p.22)

Como contrapartida hegemonia poltico-cultural dos centros


metropolitanos internos e externos, a conscincia de quem chega
tarde histria do progresso e do novo, quando o moderno parece j
estar consumado, reverte a ansiedade do atraso e do dbito a favor
de uma construo conceitual a posteriori, que seja capaz de dar
conta, de elaborar conexes alternativas da arte com a poltica, da
cultura com a vida social. Nesse caso, a noo de moderno tardio
no deve servir apenas para se pensar a constituio do estado
nacional brasileiro, do ponto de vista de Belo Horizonte e, depois,
do projeto que culmina com a construo de Braslia. Mais do que
isso, deve nos fazer ver, com a clareza necessria, o que a narrado
sobre a prpria modernidade.

A construo do conjunto arquitetnico da Pampulha, em rea


afastada do centro da cidade, revela a inteno de deslocar os es-
paos legitimados pelo poder estatal, ao se dirigir para uma regio
a ser ainda explorada, uma regio de lazer e um lugar do futuro.
Instaura-se nova concepo de cidade que, ao lado da jovem Belo
Horizonte, lhe acrescentava atributos capazes de tornar mais atra-
entes o cotidiano do cidado. A rea de lazer representaria a abertu-
ra no s para novos espaos como para novos tempos, criando-se
um ambiente cosmopolita, pela presena de shows no Cassino,
com artistas de vrias partes do Brasil e do mundo. A Pampulha
representaria, ainda no imaginrio belo-horizontino, com o Iate
Clube e a lagoa, a iluso do mar, "uma metfora a mais/no mar a
menos de Minas", to bem sintetizada no poema "iate clube", de
Affonso vila. (1998). Juscelino deslocava espaos e condensava o
tempo presente com o futuro, uma forma de embaralhar os centros

estudos 45.indd 53 26/05/14 14:55


54 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

hegemnicos do pas e de acreditar na ousadia da experincia local


como sada para a sua viso internacionalista e transnacional.

O perodo construtivo das artes e da poltica no Brasil culmina,


portanto, com a construo de Braslia, reunio do ideal utpico de
progresso com o sentido moderno e racionalista exigido pelo projeto
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. A poesia concreta, o
abstracionismo geomtrico nas artes plsticas, a prosa intimista,
a crnica carioca, a bossa-nova e o cinema novo representam o
estilo minimalista e experimental de se fazer arte, na tentativa de
utilizao de uma linguagem que pudesse ser entendida interna-
cionalmente, embora marcada pelo trao local.

A montagem moderna da cidade, pela reunio heterclita de


elementos dspares trazia, como no novidade, a contradio entre
sua forma revolucionria, que a igualava s construes dos pases
mais desenvolvidos e a realidade social do pas, marcada pelo atraso
e a misria. A euforia que caracteriza o eterno desejo de mudan-
a gerou a epidemia do novo, no mbito artstico e poltico, pelo
esforo conjunto de se redefinir o sentido de identidade nacional.
A dimenso abstrata da nova esttica recusa o figurativismo do alto
modernismo como forma de composio da paisagem nacionalista e
nutre-se do modelo poltico e artstico do plano-piloto de Braslia,
poema-concreto instalado no planalto central do pas.

A aceitao da sina de pas perifrico e a resistncia que impul-


siona a busca da diferena e das inseres residuais de nossa cultura
frente s demais colocam em xeque o preconceito de estarem as
ideias sempre fora do lugar de origem. Elas se desenvolvem segundo
uma temporalidade simultnea e em descompasso com o tempo
das metrpoles. E nem por isso podem ser consideradas inferiores.
Vivamos a poca da confiana no atraso como forma de insero
positiva na ordem mundial.

estudos 45.indd 54 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 55

A narrativa tardia na Amrica Latina

A reflexo sobre as modernidades tardias se amplia de forma a


retomar conceitos operatrios vinculados ao pensamento de inte-
lectuais da Amrica Latina, conforme se desenvolveu inicialmente.
Reside a a diferena por meio da qual se cogita transformar a dis-
tncia conceitual e operacional entre pases em aproximao que
promova maior articulao das ideias entre o continente. Embora
as noes relativas s modernidades tardias sejam distintas, a
depender do locus de enunciao de cada manifestao em parti-
cular, o importante permitir sua circulao e articulao mtuas,
ao invs de permanecerem relegadas ao desconhecimento. Muito
tem-se discutido sobre a questo de ter sido a modernidade na
Amrica Latina um caminho para se chegar modernizao e no
a sua consequncia. As ideias e os climas culturais demonstram,
muitas vezes, viajar mais rpido do que os objetos e processos a
que se referem, existindo a boa parte da riqueza potencial de uma
histria de cultura local. Esse desajuste permanente leva a resulta-
dos originais e especficos nas culturas ditas perifricas, fazendo-se
notar no processo de modernizao urbana e industrial no Brasil
durante as dcadas de 1940 a 1960, assim como na literatura e nas
artes. (GORELIK, 1999, p.64)

O ponto crucial dessa narrativa a defasagem entre moderni-


dade e modernizao, que o trabalho crtico de perlaborao, a ser
levado a efeito na atualidade, torna possvel detectar. A questo
cultural se associa questo terica para enfrentar a pergunta
talvez mais relevante que se coloca: em cada uma das experincias
tardias do moderno, que cabe levantar e analisar, existiriam pro-
gramas alternativos de modernidade? Em que rea sua diferena se
marcaria mais acentuadamente? A partir desses programas, seria

estudos 45.indd 55 26/05/14 14:55


56 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

possvel refazer conceitualmente a discusso sobre modernidade,


ps-modernidade, tradio?

As questes adquirem um complicador a mais quando passam


a ser discutidas luz da globalizao contempornea. Se verdade
que a globalizao revela o que ela mesma destri, trata-se de indi-
viduar percursos culturais localizados, com o objetivo de detectar
como se constroem e se transformam, sem fetichiz-los ou reific-
-los. Ao invs de estabelecer continuidades no interior de um sis-
tema fechado a modernidade como um todo unitrio interessa
considerar os deslocamentos e agenciamentos de experincias do
moderno como espao privilegiado para se investigar de que forma
a emergncia de novos valores culturais ir ampliar as alternativas
de escolha e experimentao dos indivduos e comunidades.

A problematizao dos limites culturais, acirrada atualmente


pelo confronto entre o no-sentido de lugar da mdia e o localismo
da cultura6 pauta-se pelo estabelecimento de novas perspectivas
de reflexo sobre a modernidade, que se projeta e se experimenta
como lembrana de exlio e desterritorializao, polissemia e mul-
ticulturalidade. A lgica suplementar que preside esse movimento
reflexivo promove um excedente interpretativo que resulta no des-
locamento dos valores institudos e sua insero numa outra ordem
de avaliao. Dar novo valor ao moderno ao se acrescentar a ele o
qualificativo tardio, por exemplo, estabelecer outro tempo para
narr-lo e, efetivamente, um espao de significao descentrada,
aberto a modalidades distintas de atuao narrativa.

A Amrica Latina tem se tornado um dos mais importantes


objetos de pesquisa terica do mundo contemporneo. A ocupao
desse lugar privilegiado no s revela, mas tambm refora um

6 Cf. APPADURAI, 2001, p. 31.

estudos 45.indd 56 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 57

contexto de ps-colonialismo, em que os grandes centros de estudo


se ocupam da redefinio de mapas terico-culturais, a partir das
novas condies poltico-geogrficas nascidas do xito das guer-
ras de independncia do sculo 20. Ao situar-se fora dos centros
hegemnicos, o continente latino-americano configura-se como
um entre-lugar: espao dialgico capaz de construir alternativas
crticas que ressignifiquem as relaes dissimtricas estabelecidas
com os referidos centros.7

Cabe, nesse caso, superar as noes de dependncia cultural,


subdesenvolvimento e periferia, na medida em que elas so insu-
ficientes para viabilizar uma perspectiva crtica do mundo globa-
lizado, em que os deslocamentos sociais e tericos desautorizam
postulaes de lugares estveis, no mbito das articulaes locais,
nacionais ou internacionais. Elaborar traos identitrios a partir de
tais conceitos significaria, na conjuntura atual, identificar-se com
uma imagem que busca superar a situao econmica desvantajosa
da Amrica Latina, mas que acaba por refor-la, uma vez que opera
com princpios dualistas (centro/periferia, desenvolvido/subde-
senvolvido) e, portanto, excludentes, que referendam os prprios
centros hegemnicos como espaos de definio de identidades e
lugares de enunciao latino-americanos.

Esquivar-se do olhar centralizador construdo sobre seu con-


tinente no significa, contudo, descartar a tradio crtica latino-
-americana. Pelo contrrio, trata-se de consider-la um importante
trao residual, que foi capaz de propor questes significativas em
seu tempo, configurando o espao cultural que nos permite dar
continuidade ao debate literrio e cultural contemporneo. Assim,
os pesquisadores do projeto Margens/Mrgenes preferem investir

7 Cf. a criao do conceito por Silviano Santiago em O entre-lugar do discurso latino-


americano. In: Uma literatura nos trpicos. So Paulo: Perspectiva, 1973.

estudos 45.indd 57 26/05/14 14:55


58 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

no desdobramento da ideia de entre-lugar enquanto perspectiva


transversal que, desdobrada no conceito de margem, permite
descrever a Amrica Latina como um objeto complexo, constitudo
por margens e centros diversos, bem como pelo deslocamento de
significados em vrias direes. Por seu carter interativo, compar-
tilhado e inclusivo, as margens so tematizadas como possibilidades
discursivas de enfrentamento das questes literrias, culturais e
polticas, atuando como um operador crtico que permite repensar
os processos de diferenciao cultural da Amrica Latina.

A revista Margens/Mrgenes, lanada em julho de 2002 e como


consequncia do projeto Modernidades tardias no Brasil, foi uma
publicao semestral e principal instrumento de divulgao dos
resultados das pesquisas do grupo. Os textos foram publicados em
portugus e espanhol, com o intuito principal de abordar a articula-
o de espaos sociopolticos distintos, em que as particularidades
regionais, diludas e reforadas pelas semelhanas e diferenas de
carter global, permitem repensar o conceito de margem como
inscrito nas dobras do tecido cultural, na superfcie das contradies
sociais e ao lado das lutas polticas.

Embutida no conceito de margem, a noo de tardio redimensio-


na as questes colocadas pelo violento processo de modernizao a
que os pases da Amrica Latina foram submetidos no decorrer do
breve sculo 20. Pretende-se, assim, abrir espao para um tipo de
escrita e reflexo que, em sua excentricidade histrica e geogrfica,
possa funcionar como uma metonmia produtiva da nossa condi-
o sociocultural no processo de globalizao econmica. Dessa
perspectiva, tem ficado cada vez mais claro que ningum passa em
vo pelos lugares esquecidos por uma modernizao que teima
em destruir possibilidades alternativas de arte, cultura poltica e
sociabilidade.

estudos 45.indd 58 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 59

Referncias

APPADURAI, Arjun. La modernidad desbordada. Dimensiones


culturales de la globalizacin. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econmica, 2001.
VILA, Affonso. O visto e o imaginado. So Paulo: Perspectiva;
EDUSP; Secretaria Estadual de Cultura, 1990.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade lquida. Traduo de Plnio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Traduo de Myriam vila, Eliana
Loureno de Lima Reis, Glucia Rnate Gonalves. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.
GAONKAR, Dilip P. (Ed.). Alternative modernities. Durham, NC: Duke
University Press, 2001.
GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; SCOTT, Lash. Modernizao
reflexiva. Poltica, tradio e esttica na ordem social moderna.
So Paulo: Editora UNESP, 1997.
GORELIK, Adrin.O moderno em debate: cidade, modernidade,
modernizao. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da
modernidade. Belo Horizonte: Autntica, 1999, p. 55-80).
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernizao dos sentidos. Traduo de
Lawrence Flores Pereira. So Paulo: Editora 34, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 1998.
JAMESON, Fredric. Modernidade singular. Ensaio sobre a ontologia
do presente. Traduo de Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2005.
JAMESON, Fredric. Ps-modernismo. A lgica cultural do capitalismo
tardio. Traduo de Maria Elisa Cevasco. So Paulo: tica, 1996.
MARTN-BARBERO, Jess. Al sur de la modernidad. Comunicacin,
globalizacin y multiculturalidad. Pittsburg: University of Pittsburg,
2001.

estudos 45.indd 59 26/05/14 14:55


60 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes. Rio de Janeiro:


Editora UFRJ, 1997.
MARTN-BARBERO, Jess. Globalizacin y multiculturalidad.
MORAA, Mabel (Editora). Nuevas perspectivas desde/sobre Amrica
Latina: el desafo de los estudios culturales. Santiago: Cuarto Propio.
2002. p. 19-34.
MIRANDA, Wander Melo. (Org.). Apresentao. In: Narrativas da
modernidade. Belo Horizonte: Autntica, 1999.
RAMOS, Jlio. Fices do sujeito moderno um dilogo improvvel
entre Walter Benjamin e Fernando Pessoa. In: MARQUES, R.; SOUZA,
E.M. Modernidades alternativas na Amrica Latina. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2009. p. 32-49.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trpicos. So Paulo:
Perspectiva, 1973.
SARLO, Beatriz. Una modernidad perifrica: Buenos Aires 1920 y
1930. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visin, 1988.
SOUZA, Eneida Maria de. Imagens da modernidade. In: SOUZA,
Eneida Maria de. Modernidades tardias. (Org.). Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998, p. 19-30.
VINBERG, Sander. Alternative modernities and postcolonial fetish
forms. HISTORY 64600/64602- Coll. Marx- 24/05/2007. Disponvel
em: http:://home.uchicago.edu. Acesso em: 28 out. 2007.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 60 26/05/14 14:55


Passeio pela memria do presente
na literatura argentina: uma leitura de
Carlos Gamerro e Martin Kohan

Memory of the present in argentine


literature: a reading of Carlos Gamerro
and Martin Kohan

Luciene Azevedo
Universidade Federal da Bahia

RESUMO: O ensaio tenta inscrever a tenso entre o peso e a leveza no


embate entre a vivncia do luto e a melancolia analisando os romances de
Carlos Gamerro e Martin Kohan. Apropriando-se dos conceitos freudianos,
a argumentao consiste em entender o papel onipresente da memria
nas narrativas argentinas contemporneas de recuperao do passado e
pressupe que a prosa literria argentina dos anos 90 realiza o trabalho de
luto em relao prpria capacidade de a literatura continuar contando
suas histrias depois da ditadura.

Palavras-chave: Literatura argentina, Leveza, Memria

ABSTRACT: This essay tries to give particular emphasis to the tension


between weight and lightness in the clash between the experience of

estudos 45.indd 61 26/05/14 14:55


62 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

mourning and melancholia, as conceptualized by Freud. Appropriating the


Freudian concepts, the argument consists in an attempt at understanding
the ubiquitous role of memory in the nineties Argentine narratives of
recovery of the past, and assumes that current Argentinian literary prose
writers do the work of mourning in relation to their own ability to continue
telling their stories after the dictatorship.

Keywords: Argentinian literature, Lightness, Memory.

Qu dice la literatura cuando habla directamente del presente


y, en este caso, de la memoria del presente?
(LUDMER, Temporalidades del presente, 2002)

Uma das possveis sendas a percorrer quando se trata de apontar


uma temtica insistententemente recuperada pela fico argentina
a da revisitao da histria pela literatura. Mas se essa uma
vertente facilmente identificvel em quase toda a tradio literria
argentina, possvel concordar tambm que essa imbricao entre
literatura e histria teve vrias nuances e adquiriu suas cores mais
intensas a partir da dcada de 70 quando se exigia da literatura
um comprometimento poltico em um contexto motivado por for-
tes embates ideolgicos: "Cmo no cultivar la convergencia del
discurso poltico-ideolgico con el literario, si todos lo hacan?"
(GIARDINELLI, 1995)

Nesse ensaio, a questo que nos interessa pensar diz respeito


aos motivos pelos quais uma vertente da literatura dos anos 90 na
Argentina resolveu escolher voltar histria (e no a qualquer his-
tria, mas histria da violncia, do fracasso e da guerra: ditadura
militar e Malvinas), a fim de analisar a maneira pela qual refaz essa
volta, suas estratgias e escolhas.

estudos 45.indd 62 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 63

Como uma espcie de anttese tese do engajamento poltico


do autor atravs da literatura, que se comprazia com a catarse de
um texto alegrico ou meramente alusivo aos horrores da ditadura
em um leque to amplo que abarcava desde o realismo fantstico
at o testemunho dramatizado do sofrimento, o projeto esttico
dos anos 80 defendeu o literrio como esfera autnoma. Ainda que
essa opo no significasse uma alienao poltica, a possibilidade
de reflexo sobre a histria recente do pas no espao ficcional era
franqueada atravs do ciframento de suas marcas, no apenas para
eludir a censura militar, mas como estratgia estruturante dos
relatos. Todo o esforo de encerramento do texto mimetiza o auge da
crise da representao vivida por esses anos. Piglia que inaugura,
de certa forma, a dcada ao publicar Respirao Artificial dando
conta de uma crise de comunicao (poca em que a experincia
do relato tende a desaparecer- SARLO, 2000, p. 51), enfrentando
o impasse atravs de subentendidos ("o mais importante nunca
se conta"- PIGLIA, 1994), lanando-se prolixidade de todos os
no-ditos (o jogo com as cartas pessoais e as diferentes dimenses
histricas do narrado podem ser apontados como exemplos dessas
estratgias em Respirao Artificial). Saer, para citar apenas um
dos nomes que se consolidaram como clssicos por esses anos,
faz sua opo pela negatividade angustiante que se revela atravs
da autorreflexividade do texto, do elogio ao silncio, ao mnimo,
contabilizando o nmero de leitores da obra em proporo inversa
ao seu potencial criador ("creo que no hay que hacerle concesio-
nes a los lectores"(SAER, 2002). A tenso criada pela conscincia
formal da construo da narrativa encerra o texto na sua prpria
intransitividade, atravs da concentrao milimtrica e minuciosa
na preciso, optando pelas elipses:

estudos 45.indd 63 26/05/14 14:55


64 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

El discurso sobre la ficcin incorporado a la ficcin misma ex-


presa tal vez las ilusiones perdidas respecto de la posibilidade
de la comunicacin...El discurso sobre la ficcin es un modo de
expresar la negatividad. (SAER, 2002)

A gerao dos novos escritores surgidos nos anos 80 assumiu


essa tradio, continuando "la labor de aquellos a quienes con-
sideramos hegemnicos" (BENZECRY, 1997, p. 559) apesar
de reivindicar um lugar prprio: "no quiero ser por reciente, ni
creciente, sino por algunas otras cosas"(CAPARRS, 1989) ,
se levarmos em conta a afirmativa de Martin Caparrs, em artigo
que pretendia fazer um balano do romance argentino na dcada
de 80. curioso perceber que apesar de negar a existncia de um
projeto comum que identificasse o grupo Shangai (que, em segui-
da, veio a constituir o ncleo de colaboradores da revista Babel:
Sergio Chejfec, Luis Chitarroni, Daniel Guebel e Alans Pauls, alm
do prprio Caparrs, diretor da revista), a verve autoral toma ares
de quase manifesto e deixa entrever nas entrelinhas um programa
ao se posicionar claramente contrria esttica engajada dos 60,
ironicamente classificada como "literatura Roger Rabbitt": "cuando
estava claro que la ficcin literaria estaba dispuesta a interactuar
valientemente con la vida, a rectificarla, a revelarle la verdad, a
encauzarla." (CAPARRS, 1989).

Ao renegar o paradigma do engajamento, considerando-o fra-


cassado e inatual, outras afinidades eletivas se apresentam: Borges,
Saer, Aira... Rechaa-se uma tradio em favor de outra, parece
afirmar subrepticiamente a voz de Caparrs. A retrica de manifesto
fica mais contundente quando radicaliza a afirmao de autonomia
da literatura (quizs podamos escribir desde nada, para nada in-
mediato, sin urgencias, para la escritura, para el placer ms ntimo,
para el bronce, para nada. - CAPARRS, 1989), arriscando-se a
mesma instrumentalizao do literrio, s avessas.

estudos 45.indd 64 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 65

Leveza e memria nos anos 90

O brevssimo passeio realizado por algumas das sendas da


literatura argentina das ltimas dcadas aponta para uma tenso
central entre o entendimento do literrio como instrumento poltico
e sua realizao autnoma como fico. Tenso que ativa a dialtica
da tradio e da ruptura, enquanto lugares a partir dos quais se
escolhe para falar.

Sem a negao da tradio ou a reivindicao da ruptura, essa


forte dualizao parece amainar-se nos anos 90, atravs de uma
operao de bricolage que se aproveita das runas de cada um
dos gestos j superados. Fazendo figurar a Histria nas histrias,
a literatura desse perodo resgata uma intencionalidade poltica
que, sem se deixar aprisionar como objeto comprometidamente
engajado, posta em jogo pela linguagem que abdica da opacidade
e do susurro entrecortado (CAPARRS, 1989) para fazer falar.
Uma operao que desliza do ciframento fabulao, superando a
impossibilidade de organizar o vivido enquanto matria narrvel.
(AVELAR, 2003, p. 218)

Em Seis Propostas para o Prximo Milnio1, talo Calvino dia-


loga com a crise dos valores que garantiam literatura um papel.
Cada uma das propostas, leveza, rapidez, exatido, visibilidade e
multiplicidade, no pretende excluir seu contrrio, nem se estabi-
lizar atravs de uma tica dualista, mas trocar de papis com seus
duplos a fim de buscar um ajuste ao novo cenrio contemporneo.
Mais do que frmulas de procedimentos formais, as propostas se

1 CALVINO, talo. Seis Propostas para o Prximo Milnio. Lies Americanas. Trad.
Ivo Barroso. 4 reimpresso. So Paulo, Cia das Letras, 1990. As propostas foram escritas
a fim de serem proferidas na Universidade de Harvard, durante o perodo letivo de 85-86.
A sexta conferncia no chegou a ser redigida.

estudos 45.indd 65 26/05/14 14:55


66 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

configuram como outros valores capazes de integrar a literatura a


seu esprito do tempo. Por trs da tentativa de pensar por novos
parmetros, se pe em pauta a refuncionalizao da literatura.

Talvez a qualidade mais emblemtica dessa nova funo seja


a leveza. Na troca de papis, o peso do mundo deixaria de ser o tema
principal e daria lugar perspectiva da leveza. Esse jogo funciona
pela ttica do desvio, negando-se ao enfrentamento direto com o
peso do viver.

Como seria possvel pensar a leveza em textos que operam


o resgate de uma histria traumtica? Como lembrar o horror e
a barbrie sem paralisar a linguagem? Enfim, como responder
ao velho epigrama de Adorno?

Como negar-se ao enfrentamento direto com o peso do viver,


como sugere Calvino, se as narrativas buscam instalar-se no mo-
mento exato em que esse peso se adensa? Como aceitar a proposta
da leveza como um valor no processo de escrever em narrativas que
optam pela gravidade do sinistro e do inumano? O embate entre o
peso e a leveza poder ser melhor caracterizado se o associarmos
a dois conceitos freudianos muitos utilizados quando o tema a
literatura ps-ditadura: o luto e a melancolia.
De manera en extremo paradjica, en la postdictadura el pensa-
miento es sufriente ms que celebratorio. Marcado por la prdida
de objeto, piensa desde la depresin o incluso piensa antes que
nada la depresin misma. A medida que el smbolo dictatorial
diluye sus aristas y se incripta en la mera administracin de
la prdida de sentidos dentro del marco tardocapitalista, la
situacin de prdida simblica y retraimiento libidinal tiende
mximamente a incrementarse. La posibilidad extrema es que
el impase libidinal lleve el duelo a condiciones de melancola
radical. (MOREIRAS apud Richard, 1998)

estudos 45.indd 66 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 67

A volta a uma histria traumtica recente por autores que


comeam a publicar seus primeiros livros em uma dcada que se
identifica com a consolidao do liberalismo, de forma singular e
perversamente pactuada pelos argentinos, sintomtica de uma
vontade de reconstruir o passado atravs de uma memria que se
constitua como uma espcie de reserva imaginria resistente fe-
tichizao dos valores pela lgica do mercado. Uma forma distinta
de repensar a literatura como prtica poltica. Voltar ao passado
para seguir pensando el mundo que nos toca vivir (CASULLO,
2001) implica se debater entre o luto e a melancolia.

Para Freud, a melancolia se caracteriza pela incapacidade de


identificar e superar o objeto da perda conscientemente, o que le-
varia o sujeito a uma cesacin del inters por el mundo exterior
(FREUD, s/d). Em oposio a ela, o luto seria um afeto normal
que exigiria um trabalho e uma economia dolorosos, mas necess-
rios superao da perda. O trabalho do luto demanda que a libido
se desprenda de seus enlaces com o objeto da perda, impondo ao
indivduo um processo doloroso enquanto permanece a existencia
psquica del objeto perdido (FREUD, s/d). Assimilao e superao
que no esto condicionados ao esquecimento. Na verdade, luto e
melancolia intercambiam as atuaes morbosas ou normais de suas
estratgias. A melancolia realiza um trabalho de luto incompleto
excedendo a compreenso econmica desse processo e impossi-
bilitando la emergencia de una fase de triunfo consecutiva a su
trmino (FREUD, s/d).

A memria da ditadura coloca em questo horizontes de pre-


sente que apontam na direo do passado e do futuro. Como o anjo
benjaminiano que volta ao passado para recolher as runas, o olhar
sobre o recente passado histrico vivido avana sua atuao sobre o
presente, projetando-se no futuro. A volta memria imps a tarefa
de realizar o trabalho de luto e vencer a melancolia.

estudos 45.indd 67 26/05/14 14:55


68 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

O impasse libidinal a que se referia Moreiras serve para realocar


o par peso-leveza. Se prprio economia do trabalho de luto o esta-
do de nimo doloroso, o peso do viver aparece aqui como inevitvel,
mas a necessidade dessa fase no subsume o luto exclusivamente
a um carter no-festejante. A memria um grande instrumento
mediador entre o peso e a leveza. Lembrar implica simultaneamente
recusar a naturalizao do passado e, por meio mesmo dessa ati-
tude, performar um futuro distinto. Se o peso se identifica com a
temtica, com a opo por voltar a uma historia autofracasada
(CASULLO, 1998), a leveza, presente em uma tenso nem sempre
resolvida, se efetiva como ttica de desvio, sem apelar a qualquer
escapismo ou devaneio, pelo prprio modo como atua a memria,
por uma redefinio das estratgias do realismo presente nos textos.

A leveza garantiria ao peso escapar a suas prprias armadilhas,


evitando que a narrao do horror se encapsule na esttica do indi-
zvel ou caia na tentao retrica de sua super-exposio. Trabalho
com o luto do dizer e no com a linguagem da melancolia.

Carlos Gamerro: desdramatizao da memria

Las Islas de Carlos Gamerro um romance surpreendente em


muitos sentidos: por se tratar da estreia literria do autor, por
colocar no centro da intriga a Guerra das Malvinas e, talvez o mais
inusitado nesses tempos que correm: fazer com que a trama se
sustente ao longo de suas mais de seiscentas pginas. A narrao
em primeira pessoa ganha um ritmo gil e imprevisto atravs de
dilogos bem tramados. Trata-se da histria de Felipe Flix, um
hacker, ex-malvineiro que tem literalmente um pedao da guerra
inscrustado no crnio: uma parte de seu capacete, devido a uma
exploso. A histria se inicia com a visita de Flix a Tamerln,
um multimilionrio que pretende refundar Buenos Aires como

estudos 45.indd 68 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 69

cidade do terceiro milnio e acalenta planos de se transformar em


um super-homem. As torres, onde est localizado o escritrio de
Tamerln e cenrio em que se desenrola o encontro, so descritas
como uma espcie de inferno dantesco em linguagem de cincia de
fico. Trata-se de sucessivos estamentos totalmente revestidos de
vidro que transformam todo o edificio em um imenso panptico
hierarquizador. A tarefa de Flix encontrar em arquivos oficiais e
secretos informaes sobre as testemunhas do assassinato cometido
pelo filho de Tamerln. Logo nos primeiros captulos impressio-
na o manejo enxundioso da linguagem, amparado por um ritmo
vertiginoso que vai mesclando referncias a desenhos animados.
medida que a trama se arma, o leitor se d conta de que dois
universos paralelos esto jogando entre si e que convergiro ao
final, imitando um desenho de Escher. H na histria duas tem-
poralidades imbricadas, a que comea dez anos aps a guerra e a
que o narrador vai reconstruir pela anamnese. Para se desincumbir
da tarefa proposta por Tamerln, o protagonista necessita obter
acesso s informaes arquivadas nos computadores do servio
secreto do exrcito. Comea a a cada vez mais estreita relao
entre dois universos que primeira vista parecem contrastantes.
A opo pela nova profisso diz muito das escolhas de Flix quanto
ao passado, principalmente se a compararmos ao discurso para-
noico delirante de seus ex-companheiros de guerra que continuam
aferrados a driblar a derrota atravs de insustentveis teorias para
a recuperao das Ilhas. Cada um tem seu fetiche particular que
funciona como sublimao da experincia da derrota: Ignacio e a
construo de uma maquete perfeita que restaure a geografia das
Ilhas antes da guerra; Sergio com sua mania revisionista buscan-
do siempre el nudo a partir del cual las cosas podran haber sido
de otra manera(GAMERRO, 1998, p.60); o dirio do major X e
sua verso enlouquecida da conquista das Malvinas. Quando Flix

estudos 45.indd 69 26/05/14 14:55


70 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

recria virtualmente a guerra como um jogo de videogame, uma


forma de colocar em prtica o plano para conseguir os nomes das
testemunhas, coloca em xeque a inverossimilhana da histria
real. por isso que ao lanar mo dos meios mais absurdos para
recriar a verso virtual da guerra, utilizando as tartarugas ninjas
como modelos dos soldados argentinos para enfrentar os ghurkas
ingleses, ao final termina sendo menos inverossmil ou pattico que
a verso de Verraco: a los ghurkas los corremos con los cuchilleros
correntinos(GAMERRO, 1998, p.107), evocando uma espcie de
saudosismo redivivo da tradio do duelo criollo (pero como la
versin duelo criollo no figuraba en el men, GAMERRO, 1998,
p.107). Se, por um momento, armar a verso virtual da guerra tam-
bm funciona para Flix como uma sublime substituio da derrota
(Le hicimos, pens...Ganamos., GAMERRO, 1998, p.110), como
uma possibilidade de voltar ao passado para reviv-lo de forma
triunfante, o passo seguinte a instalao de um vrus que reverta
os objetivos do jogo, restaurando a vitria aos ingleses. Segunda
fase do plano: a premeditao dessa falha lhe permitiria voltar aos
arquivos para obter mais informaes. A inverossimilhana do jogo
resulta bastante realista se confrontada com as hipteses histricas
ou com a divulgao oficialista de faanhas nunca realizadas durante
a guerra. O vrus se inserta nas falhas do sistema para convertir la
derrota en derrota (GAMERRO, 1998, p.113), fraturando o mito
nacional de uma guerra vivida como gesta histrica.

A narrativa a histria do trabalho de luto realizado pela dor de


lembrar. A trama da fico consiste em fazer com que uma memria
particular, privada, pessoal esteja conectada a uma memria social
atuando como uma espcie de vrus que desmantela a retrica natu-
ralizadora de mitos cristalizados. A memria percorre a contrapelo
uma histria que insiste na repetio como farsa, desvelando o lado
sombrio de uma identidade nacional como smbolo da violncia,

estudos 45.indd 70 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 71

da paranoia, da banalizao da morte. Por isso a investigao de


D. Benito que consiste em estabelecer uma conexo entre a derro-
ta na guerra e o roubo das mos de Pern, mais que um sinal de
delrio paranoico, um smbolo das intrincadas relaes entre os
acontecimentos histricos e a perigosa idealizao da nacionalidade.
A rede intrincada de uma teia de aranha a imagem que percorre o
romance como um fio de ariadne funcionando como uma alegoria
da interconexo dos fios da histria. A lgica narrativa oscila entre
os momentos de recuperao da lembrana dos horrores da guerra
por Flix e os discursos cnicos de Tamerln, la dignidad humana
se ha convertido en un valor de cambio ms (GAMERRO, 1998,
p. 164), como se se tratasse de desvelar uma formao discursiva que
tem como base a violncia, praticada agora, s claras, segundo os
valores do pragmatismo. As vozes das testemunhas a quem Flix en-
trevista teatralizam o domnio avassalador do mais vil capitalismo,
atravs da retrica neo-liberal. Todas as testemunhas do assassinato
participam como scias de uma empresa de vendas que tem como
modelo o mtodo da pirmide em que cada um dos scios deve
apresentar novos participantes para obter maiores porcentagens
sobre as vendas: En Surprise se ha realizado por primera vez el
sueo dorado y la promesa de nuestro lider y presidente: convertir
a todos los proletarios en propietarios (GAMERRO, 1998, p. 199).
Cada uma das falas representa uma faceta da perversidade da lgica
dominante na dcada menemista. Caricaturalmente, os personagens
desfilam lugares comuns (Surprise no es ms que un modelo a
escala de la selva en que vivimos, GAMERRO, 1998, p. 262) que
funcionam como espcie de imenso arcabouo transcendental que
conta com inesgotvel manancial e imensa capacidade adaptativa,
retornando sempre com nova roupagem.

estudos 45.indd 71 26/05/14 14:55


72 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Sem que se possa deduzir do movimento narrativo que oscila


entre os retrocessos ao passado e a continuidade do presente qual-
quer facilidade maniquesta do tipo tal passado, qual presente e
superando a mera inteno panfletria de denncia de degradao
dos tempos e dos valores, a estratgia parece ser a de capturar certas
permanncias cmplices entre temporalidades distintas.

O sinistro da desumanizao est presente tanto na irresponsa-


bilidad colectiva que se apoy en el impulso ciego del nacionalismo
(SARLO, 2002, p. 121) durante a guerra das Malvinas (e as cartas
escritas aos soldados por amas de casa pelotudas - GAMERRO,
1998, p. 344 - so apenas um exemplo), quanto na espoliao das
conscincias pela ganncia dos lucros: lo que se compraba y venda
en Surprise no eran fantasas y cosmticos baratos: eran personas.
(GAMERRO, 1998, p. 217)

Quanto mais o movimento narrativo se adensa na inescrupu-


losidade das mximas proferidas por Tamerln e pelos scios de
Surprise, mais imperativa se torna a volta ao passado e a renncia
ao esquecimento: ahora estaba condenado a recordar (GAMERO,
1998, p. 352). A memria no apenas desculpa para contar, mas
emerge como imperativo de uma trama que costura duas histrias
complementares em ritmo de thriller de ao, desenhando um equi-
lbrio entre sua autonomia ficcional e a referencialidade histrica.

A tenso entre o luto e a melancolia cresce medida que a ana-


mnese se instala (no tena ms remedio que volver. Adonde poda
ir, de todos modos?, GAMERRO, 1998, p.102) e resgata a dor, o
medo e o desconsolo para confront-los com a apatia e a imobili-
dade (perd densidad y nitidez... consegu desaparecer un truco
de supervivencia. GAMERRO, 1998, p.357)

estudos 45.indd 72 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 73

Viver a melancolia significa lutar contra a recordao, isolar-se


no mundo virtual dos computadores, evitar novas relaes pesso-
ais, encerrando-se no crculo dos ex-companheiros de combate,
angustiar-se por um futuro nada promissor, desejar a morte.

O trabalho de luto comea com a vontade de contar e consiste


em aceitar a convivncia com a lembrana de algo traumtico,
liberando-o para viver o presente, sem culpas por ter sobrevivido,
tornando possvel um renascimento, uma nova identidade, capaz
de bailar sobre los vidrios rotos del pasado. (GAMERRO, 1998,
p. 592)

Essa tenso no algo que se resolva definitivamente uma vez


que a barbrie conservar para sempre as marcas das runas. No en-
tanto, o trabalho com o luto ensina a danar, como diria Nietzsche.

Tambm a esttica realista encontra um novo modo de atuao


em Las Islas. Seu jogo consiste em ressaltar a inverrosimilhana
de um real enlouquecido que j no basta enquanto enunciacio-
nes acreditadas solamente por la referencia (BARTHES, 2002)
que aposta todas as cartas do contedo representado no efeito de
choque sobre o leitor. Contra as estratgias da conspirao e do de-
ciframento ou a obscenidade de um olhar panptico que prescruta
as filigranas do horror, o realismo atua para desenfatizar afetos.
O romance no funciona como catarse para purgar os sentimentos
dos leitores em relao a uma memria coletiva. A advertncia de
Gloria a Flix ao mostrar-lhe as cicatrizes provocadas pela tortura
que sofreu enquanto esteve presa na ditadura militar tambm um
aviso indireto ao leitor: Y no te asustes, que tienen ms de diez
aos. Ya no muerden. O sos de los compasivos? (GAMERRO,
1998, p. 300). Os laos realistas amarram a discursividade e no
a referncia, por isso possvel entremear chistes aos momentos
de maior tenso da trama. (cf. a descrio do momento de rendi-

estudos 45.indd 73 26/05/14 14:55


74 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

o para os ingleses na guerra. !Debe ser ingls! !Hagmosnos


los muertos! !Dijo che! !Es argentino!, GAMERRO, 1998, p.548).
O humor um agente corrosivo da dramaticidade.

O embate entre o luto e a melancolia tambm o embate para as


estratgias do romance entre o peso e a leveza. O desafio de voltar
a escrever sobre a ditadura ou a guerra s ganha nova razo de ser
enfrentando o dilema entre drama e desdramatizao. Realizar o
resgate de uma historia autofracasada (CASULLO, 2001), sem
dvida, constitui tarefa das mais pesadas, mas isso no significa
que os modos de contar essa histria (pois disso que se trata:
contar e no silenciar) estejam condenados a mimetizar esse peso.
Desdramatizar no significa se entregar felicidade complacente
prpria dos que so cegos catstrofe (AVELAR, 2003). Tampouco
investir na leveza como um valor a condenaria submisso la
coreografia publicitaria de lo nuevo que se agota en las variaciones
futiles de la serie-mercado. (RICHARD, 1998)

Las Islas uma resposta a qualquer resqucio de dvida: pos-


svel contar histrias depois da ditadura, inclusive sobre a prpria
ditadura. O humor, a mescla de linguagens, a variao alucinante
do ritmo narrativo, o confronto real/virtual, a capacidade de com-
binar tudo isso de maneira gil e imprevista sem perder o fio da
narrativa, contando uma histria, uma resposta aos prognsticos
apocalpticos da decadncia da literatura.

Superados os impasses da esttica do compromisso ou a culpa


pelo fracasso da linguagem frente ao horror da catstrofe histrica,
a literatura recupera sua autonomia atravs da capacidade de re-
atar os laos de uma experincia pessoal, privada com a memria
colectiva.

estudos 45.indd 74 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 75

Hablar es mentir. Vivir es colaborar

A terrvel epgrafe de El Secreto y las Voces do mesmo Gamerro


d a pista para a chave de leitura da narrativa. Nesse romance, pu-
blicado em 2002, voltam cena personagens e referncias presentes
em Las Islas. O povoado em que se desenrola a trama o mesmo
das recordaes idlicas da infncia de Gloria e Felipe Flix. Ainda
que, no primeiro romance do autor, o lugar j aparea desmitifica-
do como memria de um paraso perdido de inocncia e felicidade
(Malihuel no existe ms, Felipe, GAMERRO, 1998, p. 317), aqui
que o povoado ser alegorizado como microcosmo da sociedade.

O argumento narrativo sintetizado de maneira muito clara:


se comete un crimen en Malihuel. Tres mil habitantes. Todos
se conocen. Esa noche no haba extraos en el pueblo. O sea, el
asesino tiene que ser uno de ellos. Todos sospechan de todos.
O quizs, sea una conspiracin, en la que todo el pueblo est de
acuerdo. (GAMERRO, 2002, p. 17)

Trata-se do assassinato de Dario Ezcurra, um habitante de Ma-


lihuel que desaparece depois que o delegado Neri empreende uma
srie de consultas s pessoas mais influentes da cidade a respeito da,
digamos, convenincia, desse desaparecimento. O consentimento
de toda uma comunidade e a naturalizao do acontecido o enig-
ma para o qual o narrador pretende buscar respostas, refazendo o
mesmo caminho, vinte anos mais tarde. Apesar de a trama ganhar
ares detetivescos, a armadura narrativa est baseada em uma
conspiracin de locuacidad (GAMERRO, 2002, p. 73), e no de
silncio, optando por expor de maneira transparente as falas sem
reservas dos personagens, fazendo com que cada uma das vozes
delate, ainda que pela denegao, a responsabilidade pelo crime:
la verdadera [pregunta] no era ya sobre el pobre Ezcurra, sino so-
bre uno mismo. (GAMERRO, 2002, p. 61) As opinies reificadas

estudos 45.indd 75 26/05/14 14:55


76 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

pelos preconceitos e pelo senso comum insistem em culpabilizar


as vtimas, apontando-lhes erros de conduta. O pacto de leitura
expe a rasura que as falas pretendem impor sobre a conivncia
e a hipocrisia de toda uma comunidade. A memria que cada um
dos depoimentos resgata tenta eludir a cumplicidade sem reden-
o possvel. Por isso, o tom narrativo se abstm de atribuir a cada
uma das vozes uma posicionalidade cnica. Burlonamente, em um
dos pequenos captulos intermdios que entremeiam o fluxo cau-
daloso das falas, o significado etimolgico do nome do povoado
apresentado como constatao: una pobre coleccin de individuos
de carcter pattico y/o despreciable. (GAMERRO, 2002, p. 225)

Subrepticiamente o relato expe o confronto entre duas me-


mrias possveis: a dos moradores de Malihuel, para os quais a
memria como distraccin cotidiana (GAMERRO, 2002, p. 54)
serve para eludir a verdade, e a vontade de saber do narrador que
o faz voltar ao passado. A memria uma espcie de ponte que ata
os laos de uma identidade pessoal aos destinos coletivos de uma
sociedade, duas metades de uma mesma histria. Por isso, s ao
final do romance possvel conhecer a identidade do narrador,
reconstruda depois de aprender sobre la marcha. (GAMERRO,
2002, p. 260)

A narrativa atualiza o papel da memria como instrumento para


prescrutar as condies de possibilidade da naturalizao do horror,
descartando-a como mera crnica do passado. A persistncia da
memria no presente rejeita a petrificacin nostlgica del ayer en
la repeticin de lo mismo (RICHARD, 1998) e tampouco aceita se
salvaguardar como reserva de dignidade acusando raivosamente a
desmemria da atualidade.

A fim de evitar as armadilhas de uma memria cristalizada em


triunfo ou fracasso o melhor

estudos 45.indd 76 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 77

no postular una memoria que frente a excepcionalidades igno-


miniosas y lacras de la historia, se piense sustancialmente como
dignificadora de la sociedad, en tanto fortaleza de un recuerdo
acusatorio de lo inhumano frente a una sociedad aptica o cm-
plice. (CASULLO, 2001)

A memria desidealiza a Histria e atribui a cada gesto indi-


vidual a responsabilidade pela performance coletiva. O presente
cobra do passado a conscincia de uma conivncia involuntria,
impossvel de escamotear (vivir es colaborar), j que a Histria
a histria dos indivduos, seus fracassos e equvocos e, por certo,
h de ser tambm a de seus eventuais acertos.

Negando-se a aceitar a verso triunfalista do Prof. Gagliardi


(El idealismo enclaustrado del profesor quera hacer un hroe de
un mrtir involuntario, GAMERRO, 2002, p. 253), o narrador
nega-se a transformar a sua histria em uma Histria sem fraturas,
funcionalizante: Quizs de tanto leerlos[los libros de su biblioteca],
el profesor Gagliardi haba terminado por creer en la historia, como
Don Quijote en la literatura (GAMERRO, 2002, p. 229).

Tampouco a memria serve como uma lio de fracasso. Usan-


do como referncia o mesmo Cervantes, Gamerro evoca em Las
Islas o paradoxo do enforcado2 para colocar prova a perfeio
dos computadores. Como sistemas pensados para a eficincia, as
mquinas no sabem como resolver a questo, atolondradas pelo
paradoxo: Si deciden colgarlo, deca verdad y no merece morir;

2 O paradoxo do enforcado sintetizado por Felix: Vos sos gobernador de una isla. En la
isla hay un ro, sobre el ro cruza un puente, al cabo del puente hay una horca. Todo el que
quiera pasar debe decir adnde va; si dice verdad, pasar libremente; si miente, colgar
de la horca. El sistema funciona admirablemente, hasta que un da llega un hombre que
dice venir a ser colgado en esa misma horca. Ves cmo viene? Si deciden colgarlo, deca
verdad y no merece morir; si no muere, menta y es obligacin colgarlo. Qu hacs?
(GAMERRO, 1998)

estudos 45.indd 77 26/05/14 14:55


78 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

si no muere, menta y es obligacin colgarlo(GAMERRO, 1998,


p. 138). A resposta de Verraco a questo (Ahorcalo, por supuesto.
A qu viene todo esto?, GAMERRO, 1998, p. 139) reduplica o
paradoxo em franca oposio soluo apresentada por Sancho
(Que viva. Cuando la justicia est en duda, es mejor optar por
la misericordia, GAMERRO, 1998, p.139), enquanto a moral da
pequena fbula se explicita com a frase que encerra o episdio:
Entends, ahora, por qu somos irremplazables? (GAMERRO,
1998, p. 139). Tambm para a Histria somos insubstituveis, por-
que se h um passado mtico, herico, escamoteador de violncia e
morte, tambm existe a possibilidade de refundar uma memria de
lo que intuimos no contado en nosotros y de nosotros (CASULLO,
2001), reescrevendo-nos no presente no apenas como repetio.

A melancolia aptica e niilista parece definitivamente descartada


por um trabalho de luto bem sucedido que apesar de carregar o peso
da anamnese, reconhece-o como imprescindvel para a superao
da perda: de no haber venido, jams hubiera podido encontrarlo
(GAMERRO, 2002, p.255), diz o narrador pouco depois de revelar-
nos que havia uma motivao pessoal para a sua volta a Malihuel:
Ezcurra era seu pai.

Apesar da evidente intencionalidade poltica do gesto em direo


ao passado, as narrativas no buscam petrificar-se como documento
de uma poca. O investimento no trabalho com a linguagem reala
a aposta na ficcionalidade, expondo os personagens atravs de suas
prprias falas ambiguidade e contradio prprias linguagem,
tornando ilegtima e descartvel qualquer instncia exterior de acu-
sao. Falando, escorando-se em frases feitas, os personagens so
trados pela prpria linguagem. essa super-exposio da discursi-
vidade (quase todo o romance est construdo com base no discurso
direto, respeitando a oralidade) que desonera o compromisso com

estudos 45.indd 78 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 79

o elptico, rechaando o silncio em favor de uma conspiracin


de locuacidade.

Dessa forma, a busca poltica (interrogar el pasado como llave


del presente- GRAMUGLIO, 1991) descarta o compromisso en-
gajado e se redescobre possvel atravs da autonomia do literrio.

As passionalidades esto amainadas no apenas pela postura


distanciada do narrador (apesar de seu envolvimento emocional),
mas porque so mediadas pela memria que funciona como uma
espcie de interface de desdramatizao a partir do entendimento
de sua nova funo, permitindo narrativa flertar com a leveza.
Que, claro, no significa leviandade, mas outros modos de lidar
com o peso.

Martin Kohan: Entre o peso e a leveza

Em Dos Veces Junio de Martn Kohan, a tenso entre o peso e a


leveza parece se agudizar. A narrativa dispara com uma frase reti-
rada de um dos depoimentos sobre a represso poltica registrados
pelas Actas del Juicio: A partir de qu edad se puede empezar a
torturar un nio? (KOHAN, 2002, p. 11). O choque provocado pela
violncia da pergunta imediatamente rasurado pela surpreendente
preocupao do encarregado militar em corrigir um erro de orto-
grafia da sentena. O relato se mantm em delicado equilbrio entre
duas instncias narrativas: a primeira pessoa do militar e a neutra-
lidade descritiva do discurso. A estratgia desviante se mostra em
toda a sua evidncia atravs do olhar oblquo do protagonista que
estando no olho do furaco, vivendo a brutalidade dos horrores da
ditadura, prefere no saber, desentendendo-se dos acontecimentos.
Toda a obsesso do personagem com a correo ortogrfica alusiva
da sua apreenso por reconhecer-se como engrenagem perversa

estudos 45.indd 79 26/05/14 14:55


80 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

desse horror. Sua escolha pela atitude distrada aposta no azar ou


na sorte: j que seu nmero havia sido sorteado para o servio mi-
litar, bastava aceitar seu destino e cumpri-lo com resignao (era
como tena que ser- KOHAN, 2002, p. 14), sem culpa (yo en ese
lugar no era superior, era un subordinado, KOHAN, 2002, p. 15).
A conivncia leva ao cuidado com a linguagem, por isso preciso
lanar mo de eufemismos quando alude tortura, justificando
sempre a presena mdica na priso com a necesidade de consultas
avaliativas do estado de sade dos presos. A verossimilhana dessas
tticas desviantes est garantida pela ingenuidade simulada do
personagem. Fragmentos inteiros se ocupam em descrever a rotina
e o mtodo do oficial no cumprimento de seus deveres, afastando
a possibilidade de comprometimento:
el coche era llevado al lavadero una vez por semana, todos los
lunes. Un da apareci una mancha en el tapizado del asiento
de atrs, y hubo que hacer un lavado urgente esa misma noche.
(KOHAN, 2002, p. 40)

Aqui tambm se trata de apontar a responsabilidade de toda a


sociedade em relao aos rumos da histria nacional. Assim como
Malihuel representava para as proporciones de un nebuloso pas,
un pueblo en miniatura (KOHAN, 2002, p. 213), em Dos Veces
Junio, o protagonista um catalizador da conduta coletiva da
populao em relao ao regime de exceo: tenan, a un mismo
tiempo, la apariencia de los inocentes y la apariencia de los que no
son inocentes (KOHAN, 2002, p. 77). Por isso, os captulos sobre
o mundial de futebol de 1978 realizado na Argentina durante a dita-
dura representam o momento em que a narrativa mais se arrisca ao
meramente alegrico, aludindo comparao dos gritos de come-
morao da torcida com os gritos dos torturados ou proximidade
da localizao dos estdios a centros de tortura.

estudos 45.indd 80 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 81

A esttica do desvio praticada aqui est fundamentada no apelo


ao realismo dos detalhes, ateno deslocada para as trivialidades.
Os momentos de maior dramaticidade so contrabalanados com
consideraes e divagaes de brutal desimportncia, servindo para
desenfatizar o que est sendo contado. Durante todo um captulo
em que os mdicos discutem a possibilidade de sobrevivncia de um
recm-nascido a uma sesso de tortura na presena do protagonista,
a narrativa oscila entre a reproduo dos dilogos e a neutralidade
descritiva que nos brinda com informaes didticas e enciclop-
dicas sobre um detalhe presente no ambiente: uma balana.

O realismo dos detalhes serve ao movimento realizado pela nar-


rativa em torno a um centro elusivo, mas ao mesmo tempo presente.
As filigranas do real no obedecem a um pacto de verossimilhana
referencial. A ateno ao detalhe, ao desimportante, ao que parece
inessencial funciona como desvio armadilha em confiar demasia-
do en la potencia de lo que relata (SARLO, 2002, p. 125), evitando
descries de cenas de torturas, por exemplo.

A maneira pela qual o texto alcana o seu efeito de real apela


leveza. Ainda que a sua presena se justifique para realar o peso de
contar. Ao tentar burlar a tarefa irrealizvel de descrever o horror e
superar o impasse da potica da negatividade e seu elogio ao indi-
zvel, a notao insignificante do detalhe (e a estrutura da narrativa
em fragmentos mais um indcio disso) uma maneira de contar
novamente algo que parecia esgotado, sem deixar de pertencer ao
espao conflitivo da representao do horror pela linguagem.

A leveza s possvel porque a contraface mesma do peso


de contar uma histria sinistra, numa eterna tenso entre drama
e desdramatizao. No difcil equilbrio entre as duas medidas, a
leveza conta com um realismo que no es referencial, sino abierta-
mente discursivo (BARTHES, 2002) , com a memria desmitificada

estudos 45.indd 81 26/05/14 14:55


82 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

como redeno ou fracasso, at mesmo com um humor refinado,


sem se abster de cuidar da linguagem para falar s claras, evitando
o enclausuramento crptico dos no-ditos.

Referncias

AVELAR, I. Alegorias da Derrota. A fico ps-ditatorial e o trabalho


de luto na Amrica Latina. Trad. Saulo Gouveia, rev. pelo autor. Belo
Horizonte, UFMG, 2003.
BARTHES, R. El efecto de lo real in: RealismoMito, doctrina o
tendencia histrica? 1a ed. Ediciones Lunaria, Buenos Aires, 2002.
BENZECRY, C. E. Transformaciones del campo literario en la dcada
del 90, in: Margulis, M e Urresti, M. (comp.) La Cultura en la
Argentina de Fin de Siglo. Ensayos sobre dimensin cultural. Oficina
de Publicacin del CBC. Buenos Aires, 1997.
CAPARRS, M. Nuevos avances y retrocesos de la nueva novela
argentina en lo que va del mes de abril in: Babel, n.10, julio de 1989.
CASULLO, N. Una historia de la memoria para las muertes en la
Argentina in: Pensamiento de los Confines. nmero 9/10, primer
semestre de 2001. Ditima/Paids/UBA.
FREUD, S. Duelo y melancola, in: Obras Completas. v. 11. Ed. Orbis.
GAMERRO, C. Las Islas. Ediciones Simurg. Buenos Aires, 1998.
GAMERRO, C. El secreto y sus voces. 1a ed. Buenos Aires. Grupo
Editorial Norma, 2002
GIARDINELLI, M. Disertacin de apertura del VIII Congreso
Argentino de Literatura pronunciada en 11.10.95 en el Aula Magna de
Universidade del Nordeste, Resistencia, El Chaco, Argentina. In:
www.analitica.com/biblioteca/mempo/discurso.asp.
GRAMUGLIO, M.T.Genealoga de lo nuevo in SPILLER, R.(ed.)
La Novela Argentina en los aos 80. Frankfurt am Main. Verveuert
Verlag, 1991.

estudos 45.indd 82 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 83

KOHAN, M. Dos Veces Junio.Ed. Sudamericana. Buenos Aires, 2002.


PIGLIA, R. Teses sobre o conto, in: O Laboratrio do Escritor. S.P.
Iluminuras, 1994.
RICHARD, Nelly, Poltica de la memoria y tcnicas del olvido en
Residuos y metforas (Ensayos de crtica cultural sobre el Chile de la
transicin. Santiago, Cuarto Propio, 1998.
SAER, J. J., entrevista a Nora Catelli in: Babelia, suplemento de El Pas
em 19/01/2002.(www.elpais.es)
SARLO, B. Cenas da Vida Ps-Moderna. Intelectuais, Arte e
Videocultura na Argentina. Trad. Srgio Alcides, 2 ed., R. J., Editora
UFRJ, 2000.
SARLO, B. Tiempo Presente. Notas sobre el cambio de una cultura.
1a ed. 3a reimp. Buenos Aires. Siglo XXI Editores Aregentina, 2002.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 83 26/05/14 14:55


estudos 45.indd 84 26/05/14 14:55
A poesia secundria e atenuante
de Severo Sarduy

Secondary and mitigating poetry


of Severo Sarduy

Antonio Andrade
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Neste artigo, analisa-se a produo potica de Severo Sarduy


(Camagey - 1937 / Paris - 1993), tendo em vista o investimento secun-
drio do autor cubano nesta atividade literria, que se ligava para ele ao
exerccio de leitura e estudo, seja de outros poetas e artistas plsticos,
seja de textos cientficos. Sua poesia dialoga com poticas ideogrmicas
ps-vanguardistas, por um lado, e com formas fixas tradicionais so-
bretudo, da lrica catlica ibrica por outro, afastando-se das dices
neobarrocas em voga nos anos 1970 e 1980. Apesar do jogo dplice com
a desreferenciao concretista e com a metrificao, seus poemas ence-
tam uma tenso entre procedimentos de travamento e destravamento da
enunciao lrica, por meio da erotizao do signo verbal, da celebrao
do prazer e da tropicalidade, dos recursos de atenuao da dor e do so-
frimento. Esses textos, justamente por seu secundarismo, isto , por seu
distanciamento em relao aos modos de composio que protagonizam
o cenrio potico contemporneo, configuram esteticamente, de maneira
no-panfletria, outra forma de testemunho das experincias do exlio e
da Aids, problemticas polticas centrais da segunda metade do sculo XX.

estudos 45.indd 85 26/05/14 14:55


86 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Palavras-chave: Severo Sarduy, poesia contempornea, secundarismo.

ABSTRACT: This article analyzes the poetic production of Severo Sarduy


(Camagey - 1937 / Paris - 1993), in view of the secondary investment of
this Cuban author in that kind of literary activity, related to him to the
exercises of reading and study other poets and artists, or scientific texts.
His poetry has poetic dialogues with both post-avant-garde ideogram
and traditional fixed forms especially Iberian Catholic lyric keeping
distance from the neo-baroque voices in vogue in the 1970s and 1980s.
Despite the duplicitous game with concretist dereference and the
versification, his poems initiate a tension between procedures of locking
and unlocking the lyrical utterance, through the eroticization of verbal
sign, celebration of pleasure and tropicality, resources to attenuate the
pain and the suffering. These texts, precisely because of their secondary
nature, this is, their distance in relation to the modes of composition that
play in the contemporary poetry scene, configure aesthetically, in a non-
propagandistic, another way to witness the experiences of exile and AIDS,
major policy issues of second half of the twentieth century.

Keywords: Severo Sarduy, Contemporary poetry, Secondary literature.

el muerto se fue de rumba


S.S. [Epitafios]

Severo Sarduy escreveu poucos poemas. Publicou em vida


apenas trs livros de poesia: Big Bang (1974), Un testigo fugaz y
disfrazado (1985) e Un testigo perenne y delatado (1993). Deixou
ainda um pequeno manuscrito de textos poticos feito durante uma
viagem Turquia em 1961, intitulado Poemas bizantinos, alm de
alguns trabalhos publicados apenas dispersamente em jornais e
revistas, editados pela primeira vez em livro no tomo I de sua Obra
Completa (1999), pela Coleccin Archivos. O espao reduzido dado
pelo autor poesia tem a ver, claro, com sua grande dedicao s
atividades de romancista e de ensasta, o que me faz refletir sobre

estudos 45.indd 86 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 87

sua produo potica como o resultado de uma atividade secund-


ria, como ela , sem querer retir-la deste lugar atravs do esforo
de valorizao crtica. Na verdade, esse secundarismo da poesia,
atividade para ele ligada ao exerccio de leitura de outros poetas
e de apreciao de obras plsticas, foi abertamente indicado em
Poesa bajo programa (1991), palestra proferida na Universidad
Internacional Menndez y Pelayo, em Tenerife, onde o escritor
tambm afirma perceber na contemporaneidade perodo em que
a criao potica e pictrica vem gozando de liberdade total o
que ele chama de crise de sentido. Contrrio, portanto, a essa falta
de diretrizes programticas da arte atual, ele advoga em entrevista
a Julio Ortega pelo retorno forma fixa como meio de subverso,
afirmando o seguinte:
el gesto mtrico obedece, paradjicamente, a una subversin.
En cierto momento en que la poesa ha llegado a un grado de
dispersin, es decir, de total insignificancia en el sentido ms
semiolgico del trmino , en que cualquier acumulacin de ad-
jetivos se califica de barroca, y cualquier pereza de hai-ku, creo
que un regreso a lo ms riguroso, a lo ms formal, a ese cdigo
que es tambin una libertad el soneto, las formas precisas se
imponan. Barthes deca que el rgimen de la significacin es el
de la libertad vigilada, que el sentido no puede surgir si la libertad
es total o nula. Pues bien, las formas mtricas y estrficas son
eso. (SARDUY, 1999, p. 1827)

Um dos poucos romancistas neobarrocos a obter reconhecimento


internacional, ao lado de Lezama Lima com seu Paradiso, Sarduy
institui, com esse gesto mtrico de sua poesia, uma espcie de crtica
sub-reptcia em relao fecunda e proliferante produo potica
neobarroca hispano-americana, qual ele inclusive deixou de ser
vinculado. Ser possvel dizer que sua prosa narrativa neobarroca
mas sua poesia no? No acredito que essa seja uma proposta de
debate produtiva para os limites deste artigo. No me interessa

estudos 45.indd 87 26/05/14 14:55


88 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

exatamente aqui o problema da classificao, por isso daria uma


resposta rpida pergunta: dizer que a poesia de Sarduy no
neobarroca seria desconsiderar a herana de Gngora e Quevedo,
bem como a forte presena de formas fixas na produo potica de
Lezama, alm de ignorar a existncia, nas primeiras experincias
poticas sarduyanas, de poemas em verso livre ou que exploram a
disposio grfica na pgina, a exemplo dos ideogramas e caligramas.

Trs sonetos de Sarduy constavam de Caribe transplatino


(1991), seleo bilngue de poesia neobarroca cubana e rioplaten-
se, traduzida por Josely Vianna Baptista e organizada por Nstor
Perlongher, embora este acreditasse que a contribuio mais im-
portante do autor cubano para as letras fossem seus romances (PER-
LONGHER, 1991, p. 14). interessante notar, no entanto, a retirada
dos poemas sarduyanos da edio de Medusario: muestra de poesa
latinoamericana (2010), dirigida por Roberto Echavarren, Jacobo
Sefam e Jos Kozer, sob o pretexto de no se querer incluir nesta
compilao exemplos de verso mtrico tradicional (ECHAVAR-
REN et. al., 2010, p. 7). Partindo, assim, da reafirmao do carter
menor da poesia de Sarduy, empreendida pelos prprios poetas
neobarrocos, gostaria de investigar os procedimentos poticos
deste escritor que, de alguma maneira, afastam sua produo das
antologias e, consequentemente, do nebuloso discurso da crtica de
poesia contempornea, lugar onde se pratica contraditoriamente a
destituio dos valores cannicos e a censura sobre o dizer do ou-
tro, ou se preferir, sobre os modos de composio potica, os quais
podem produzir resultados interessantes ou andinos, de acordo
com a opinio de alguns estudiosos. 1

1 Em trabalho sobre a poesia de Lu Menezes, apresentado no IV Seminrio do


GRPESQ Poesia e contemporaneidade UFF/CNPQ, ocorrido na Universidade
Federal Fluminense, em 22 de setembro de 2010, Flora Sssekind afirmou, por

estudos 45.indd 88 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 89

Des-travar

Ao cotejar o poema Caminho da manh de Sophia de Mello


Breyner Andresen e o texto de uma carta onde a poetisa portuguesa
relata a Jorge de Sena a dificuldade de terminar um poema em meio
agitao do dia-a-dia, Sofia de Sousa Silva evidencia, a meu ver,
uma dinmica que se vem consolidando atualmente, ao dizer: Hoje,
o texto da carta, talvez pelo contato com as correntes da poesia
contempornea, parece-nos mais bem-sucedido que o do poema
(SILVA, 2008, p. 308 grifos meus). Penso que ocorre um processo
parecido com a recepo crtica da poesia sarduyana, que, ao ser
contraposta s dices poticas mais celebradas do neobarroco,
como a de Perlongher por exemplo, majoritariamente colocada
em segundo plano e silenciada, ou torna-se objeto de anlises que
tm como finalidade demonstrar sua excepcionalidade dentro de
um cenrio, eminentemente francs, em que o verso livre se tornou
a forma hegemnica de expresso da lrica moderna. At mesmo um
crtico de peso como Andrs Snchez Robayna, aps avaliar todas
as conexes entre a tradio hispnica da forma fixa, o barroco
espanhol, o concretismo, as relaes interartsticas e o neobarroco,
conclui seu ensaio dizendo que Sarduy supo, en efecto dibujar su
propio espacio potico y contribuir desde l a la definicin de un sec-
tor fundamental de la sensibilidad y de la cultura contemporneas
(ROBAYNA In: SARDUY, op. cit., p. 1570). Tal leitura da formao
de um estilo prprio e/ou da inaugurao de um espao no ter-
reno da literatura contempornea segue a tradio protagnica da
crtica literria, que acaba dando pouca ateno s problemticas
tenses entre subjetividade e alteridade, linguagem e comunidade,

exemplo, que tanto a abstrao elptica quanto a proliferao podem ter resultados
bons ou nulos.

estudos 45.indd 89 26/05/14 14:55


90 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

alm de servir como um contramovimento de anlise, cristalizando


e mitificando uma voz autoral extremamente heterognea.2

Parece-me muito mais produtivo o momento em que Sn-


chez Robayna assinala a dupla leitura possibilitada pelo aspecto
pornogrfico-festivo da poesia sarduyana, que, por um lado,
recupera a importncia da erotizao do signo verbal no barroco,
por outro, funciona como uma sorte de ironia beligerante contra
o tom de sublimidade adquirido pelo soneto hispnico devido
moda garcilasista. A isso poderia agregar uma nota biogrfica de
Haroldo de Campos, crtico que comenta a euforia e o gosto especial
pela festa demonstrados por Sarduy no petit comit feito na casa
de Caetano Veloso, durante a visita do cubano ao Brasil em 1986.
Ademais, leia-se a seguir um trecho de Sexteto habanero, poema
de Big Bang, que comprova a pertinncia da temtica da festa na
poesia de Sarduy: Del baile y Marquesano y la conga no quedan/
ni la persiana el abre y el asmate./ Tomaron cerveza en los clari-
nes/ y el bailador de Macorina estaba./ No han venido la China ni
la ojitos/ de piata. Flauta de canutillo, chacumbele.// Ya de aqu
no nos vamos (SARDUY, op. cit., p. 189)

Se o leitor-pesquisador percebe que tal apreo pela festa funcio-


na para Sarduy como uma forma de destravamento, logo tem incio a
tarefa de procura da trava. Ou seja, se o sujeito, para Lacan, nunca
alcana a plena identidade, se sua formao sempre incompleta,
se a barra um elemento constitutivo da subjetividade por repre-
sentar o fracasso de todo processo de interpelao, identificao e
constituio do eu (cf. IEK, 2003, p. 118), o trabalho da crtica

2 A problemtica do protagonismo na crtica literria contempornea encontra-se


mais amplamente desenvolvida na minha tese de doutorado, intitulada Por uma
comunidade desejante: um estudo sobre Nstor Perlongher e Severo Sarduy
(UFF, 2011).

estudos 45.indd 90 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 91

torna-se quase imediatamente a busca de estratgias poticas,


acompanhadas de suas respectivas glosas metalingusticas, capazes
de enformar uma enunciao que se trava, ou que se faz sob a tra-
va. As antologias tambm funcionam como instrumentos crticos
de entronizao desse procedimento. Um exemplo disso seria a
coletnea Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canes
contra o tdio (2005), em que Eucana Ferraz agrupa poemas que,
apesar de incorporarem a alegria como ncleo central de irradiao
de sentidos da linguagem lrica, quase sempre trazem consigo um
momento de retrao consciente, o que indicia as diversas formas
de falseamento do sujeito atravs de uma linguagem que tenta elidir
o vazio. Veja-se, nesse sentido, uma estrofe da cano Sins, de
Adriana Calcanhoto, publicada logo no incio do livro: Para estar
em movimento/ Invento alvos/ E finjo que estou perto/ Eu s minto
pra mim mesma. (CALCANHOTO In: FERRAZ, 2005, p. 20)

A valorizao crtica dessa conscincia potica, bem como dos


procedimentos que se organizam em torno dela, tem se tornado to
frequente que a poesia homoertica de Sarduy pode nos parecer
ser uma mostra de hedonismo ingnuo: Mete!/ Y si ardor o pudor
o amor, ay!/ Lamida maruga, mojada matraca/ entra mejor. Si en
este brete/ se te/ cae, recobra su natura de estaca:/(...)// Foutez
allgrement! La vida es eso:/ darle hasta que se caiga a la sin hueso/
untada con K.Y. (sabor a menta) (SARDUY, op. cit., p. 195). O que
se percebe a, na verdade, uma espcie de repdio do sofrimen-
to vinculado tradicionalmente temtica amorosa em prol de
uma busca, embora por meios artificiais (...untada com K.Y.), de
um prazer sem dor. Por isso, at mesmo o grito provocado pelo
coito parece estar vinculado afirmao do prazer. Note-se, nesse
sentido, a ambiguidade da interjeio que finaliza o poema Inter
femora: Lbrica hada/ a dolor ida/ metida/ sacada// con cuidado/
con K./ Y.// de lado/ ...s:/ ay! (Idem, p. 194). Evidentemente,

estudos 45.indd 91 26/05/14 14:55


92 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

nesse poema, o desejo tambm desarticula a linguagem lrica,


decompondo a moforlogia das palavras e reduzindo o verso letra
ou ao monosslabo, mas ao mesmo tempo produz jogos de duplo
sentido e submete o aspecto semntico sonoridade do gemido.

De certo modo, a poesia de Sarduy sugere a possibilidade de


continuidade (a-)significante do dizer, na verdade, a insistncia
matraqueante desse dizer, representante, ainda que no-panfletrio,
de uma manifestao ertica marginal, por meio do culteranismo
gongorino ou das repeties optofonticas la Kurt Schwitters,
cuja influncia se nota de maneira muito forte na primeira parte
de Big Bang, a exemplo do que ocorre no poema Magenta Haze,
em que se compe, apesar da desfigurao imagtica indicada
pelo ttulo (haze = nvoa), uma grande coluna formada pela reite-
rao do verso em caixa-alta RUMOR DE BOBINAS GIRANDO
(Idem, p. 151). Isso me recorda, evidentemente, uma interessante
passagem de A arte no horizonte do provvel na qual Haroldo de
Campos analisa a contraposio entre as mltiplas possibilidades
de explorao da visualidade e do som nos poemas de Schwitters
e as vertentes crticas incapazes de reconhecer qualidades liter-
rias em textos que objetivam o puro jbilo do objeto. O ensasta
brasileiro chega a classificar a atividade crtica acadmica como
um discurso de beira-tmulo em que nenhum oxignio de vida
pode ser valorizado. (CAMPOS, 1977, p. 52)

Na minha opinio, os procedimentos do poeta Sarduy confi-


guram um tipo de potica da ambivalncia, visto que nela o trava-
mento do sentido por meio da desreferenciao morfofonemtica
paralelo ao destravamento do significante em um jogo sinttico
voluptuoso, o travamento da forma via rigidez mtrica de muitos
poemas corresponde a um destravamento do tema pelo cruzamen-
to de motivos bblicos com questes erticas ou cientficas, por

estudos 45.indd 92 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 93

e xemplo. Tal ambivalncia comprovada ainda pela mistura de


prosa e poesia, citao e texto autoral. Justapem-se ainda poemas
feitos para serem lidos de maneira tradicional (leitura horizontal
descendente, da esquerda para a direita) com topoemas termo
usado por Octavio Paz para designar seus poemas visuais.

Trata-se de uma poesia onde a problematizao do eu como


categoria enunciativa centralizante no o que mais importa.
Na verdade, em Sarduy, a fuso entre o eu e o tu chega a um pon-
to tal que se torna impertinente tentar recuperar a as formas de
individuao. Em diversos sonetos e dcimas, o autor recupera
referncias do renascimento e do barroco espanhol, trazendo
baila conjuntamente um modo pr-romntico de enunciao lrica
no qual tem mais relevncia a interlocuo do que a confisso, o
desenvolvimento de um mote do que a expresso egocntrica de
sentimentos e vivncias. Leia-se por exemplo a primeira estrofe do
poema Santa Teresa de vila: Dios te perdone, Juan de la Mi-
seria,/ que la pintaste legaosa y fea,/ y perdone tambin a quien
la vea/ bajo este ruin disfraz de la materia (SARDUY, op. cit.,
p. 218). Os motivos orientais tambm podem ser entendidos a sob
essa clave, vide a afirmao de que El sujeto no es uno; sino un haz
(Idem, p. 241) em Palabras del Buda en Sarnath e a encenao da
unio dos corpos na dana balinesa em Ketjak: Contra tu piel lisa
recostado. T contra otro. De tres en tres: crculos concntricos
(Idem, p. 196). No s o movimento coletivo da dana mas tambm
a emisso coral das vozes na msica ocupam um espao significativo
na poesia sarduyana, haja vista a srie de poemas intitulada Fla-
menco, com a qual o poeta inicia Big Bang: El coro chilln (...)//
Una mano se alza y entonces se oyen los sopranos (Idem, p. 133).
Gostaria de retomar, para encerrar esta seo, a interpretao de
Sal Yurkievich a respeito da lrica lezamiana, apropriada tambm,
a meu ver, para se falar sobre a poesia de Sarduy:

estudos 45.indd 93 26/05/14 14:55


94 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

[Lezama] No es agente de una subjetividad que distorsiona el


referente objetivo para manifestarse (...). Esta poesa no
parece regida por el afn autoexegtico, no hay una manifiesta
individualizacin autobiogrfica, un anecdotario inmediata-
mente atribuible a la historia personal singularizada. Lezama
Lima no se autoexhibe. (YURKIEVICH, 2002, p. 409-410
grifos meus)

Do outro lado estamos todos

Os exerccios ecfrsticos de Sarduy, sobretudo os que dialogam


com a pintura contempornea, parecem ser os momentos que mais
despertam interesse nos crticos que se debruam sobre sua produ-
o potica. Provas disso so as belas tradues para o portugus
dos poemas Morandi e Rothko, feitas por Haroldo de Campos
e publicadas em O segundo arco-ris branco. A srie de poemas
Pginas en blanco (cuadros de Franz Kline) tambm est entre
as principais preocupaes de Snchez Robayna em seu trabalho
sobre a poesia sarduyana. O ensasta espanhol ressalta a la absor-
cin icnica o signogrfica de la pintura por parte de la escritura
(SNCHEZ ROBAYNA In: SARDUY, op. cit., p. 1555), assim como
os modos de mtua fecundao entre regimes enunciativos de am-
bas as artes, sem sublinhar, contudo, a destruio sub-reptcia da
lgica da semelhana no dilogo entre quadro e poema. O esforo
de desfigurao do pictrico d origem a um experimento verbal
resultante da transcodificao do figural para o figurativo pro-
cedimento que, se invertido, seria por certo muito mais valorizado
criticamente. Compare-se, a seguir, o quadro Black and white,
de Kline, e um trecho do poema homnimo de Sarduy, includo na
srie em homenagem ao pintor:

estudos 45.indd 94 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 95

La raya negra y el batello,


el monte siamo tutti,
el barco blanco sobre el agua blanca
y la fijeza
de los pjaros sobre la Salute.
Pase,
il fait beau del otro lado
del otro lado, digo,
del ro.
Estamos todos.
(SARDUY, op. cit., p. 193)

Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/franz-kline/black-and-white-png, acesso:


02/04/2013.

Este imperativo do movimento em direo ao lado onde esta-


mos todos , sem dvida, um dos elementos da poesia de Sarduy
que mais causa estranheza crtica de extrao moderna. como
se seu gesto lrico-pictural tentasse impregnar de certo fauvismo
mesmo os modelos mais abstratos e minimalistas. At o contato com
a pintura alegrica dos sculos XVI e XVII apresenta-se a como
um barroco germinativo em que a caveira pode ser associada ao

estudos 45.indd 95 26/05/14 14:55


96 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

rabisco, dana e s flores, a exemplo do que ocorre em Alegora


de Holbein. Alis, as idias de germinao e fecundao aparecem
com frequncia em Sarduy; basta notar a presena reiterada da
palavra smen nos seus poemas (leia-se, por exemplo, o seguinte
trecho de Moon Mist: Sol/ fetiche salpicado semen cogulos/
piedras blancas los ojos/ en el templo de Ochm Idem, p. 156).

Nem o domnio cromtico do vermelho dos quadros de Rothko,


metaforizado em Sarduy pela palavra sangue, liga-se exclusiva-
mente noo de morte (na ltima estrofe de Rothko diz-se:
prpura, bermelln, anaranjada.../ El rojo de la sangre derramada/
sell su exploracin. Tambin su vida Idem, p. 209). impor-
tante perceber que a ao de selar, nesse poema, tem duplo sentido:
o de concluir algo ou de deixar marca sobre algo. A gota de sangue
capaz de modificar totalmente outro organismo. E se pensarmos
que o poema foi publicado em 1985, j sob o medo da AIDS, per-
cebemos a potencialidade polissmica desse signo: possibilidade
de vida ou morte via transfuso sangunea, via transubstanciao
de procedimentos semiticos, ou por meio da imbricao arrisca-
da entre corporeidade e pintura, tal como aconteceu com o artista
norte-americano. Isso remete ao poema, lanado no mesmo ano,
em homenagem a Arturo Carrera (poeta neobarroco argentino),
em que a questo da tatuagem, comum no ensasmo sarduyano,
comparece de maneira cifrada: La letra con sangre entra./ Como
el amor. Mas no dura/(...) Se adentra/ en el cuerpo deseoso/ y
ms aumenta su gozo/ con su mal (Idem, p. 213). Atravs dessa
imagem, Sarduy evidencia o carter de inscrio da linguagem
no corpo, e vice-versa, e o no refreamento da pulso do desejo
na cena do discurso potico, aspectos que sempre caracterizaram,
segundo ele, o neobarroco.

estudos 45.indd 96 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 97

No s a abordagem do contemporneo est atravessada para


Sarduy por tal relao entre morte e desejo. Sua releitura dos
msticos espanhis, San Juan de la Cruz e Santa Teresa de vila,
tambm recupera indiretamente o mote muero porque no muero
repetido nas coplas destes autores. Dentro da lgica do catolicismo
ibrico, essa afirmao corresponde vontade de abandono da
materialidade do corpo para que a alma possa alcanar seu real
objeto de desejo: a juno com o divino. No poema San Juan de
la Cruz, Sarduy chama a ateno para este investimento desejante
presente na poesia religiosa e para o af de dejar de ser envolvido
neste processo de busca. Outro tema sarduyano em que se percebe
essa relao a caa, presente tambm no romance Colibr. Em
Del yin al yang, por exemplo, a matana e o esquartejamento so
encenados em um ambiente de burla e embriaguez: Lo cortaron en
pedazos/ uno a uno/ hasta cien./ Los contaban en coro/ tomando
ron y burlndose/ los hroes macharranes (Idem, p. 185).

A referncia bebida aparece mais de uma vez nos poemas


do autor. Em seus Epitafios, por exemplo, ela se junta a outros
procedimentos satricos como uma estratgia de rumberizao
da morte, em fragmentos como os que se seguem: Aqu reposa
burln,/ (...)/ el mago de la cuartilla/ y hasta del ms puro son./
Un trago de ron pelen,/ (...)/ Al que se muri de risa! (Idem,
p. 250); Que den guayaba con queso/ y haya son en mi velorio/
(...)/ Ni lamentos en exceso,/ ni Bach; msica ligera (Idem, p. 252).
Cabe aqui tambm uma nota biogrfica, retirada de El Cristo de la
rue Jacob, texto onde Sarduy fala sobre o alcoolismo como uma
forma de alegria irresponsvel, importante para a superao da
autocrtica paralisante que advm da pontual vigilncia do Outro,
en la omnipresente aparicin de la Ley (Idem, p. 54). Em um dos
sonetos de Un testigo fugaz y disfrazado, esta liberao do desejo
provocada pelo lcool (Cerveza transmutada o sida aeja,/ (...)/

estudos 45.indd 97 26/05/14 14:55


98 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

su apagado licor suma y proyecta/ sobre el cuerpo deseoso que


festeja Idem, p. 204) aparece, sem nenhum tipo de vexao,
como forma de atenuao do horror vacui: (...) Para que olvides/
el mudo simulacro de la nada (Ibidem). Ainda segundo Sarduy, o
relaxamento psicolgico obtido pelo cerveceo conduz a linguagem,
assim como no flerte, a uma espcie de repetio hipertlica, isto
, ao jogo verbal que no deseja apenas alcanar uma finalidade
objetiva.

A hipertelia, gerada pela associao da linguagem oral sen-


sualidade, ser incorporada escrita potica sarduyana no s
como modo de proliferao mas tambm de dilogo com a tradio
popular da dcima3 espanhola e cubana. O ar de simplicidade e
improvisao subsumido neste tipo de composio lrica abre ca-
minho para o deslizamento sensorial do significante. Perceba-se,
nesse sentido, o nonsense da dcima que inaugura a srie A partir
de frases dichas en espaol por F.W.: De tu cuerpo en el jardn/
vino a baarse el coqu/ sediento, y encontr all/ frescura. Puede
que al fin/ despus de tanto trajn/ en su safrn de azafrn/ haya
logrado su afn,/ y con la tarde lunada/ fijado canto y morada/ en
el cielo de celofn (Idem, p. 234). interessante notar, antes de
mais nada, a escuta atenta do poeta cubano riqueza meldica da
lngua e o resgate potico da noo de equvoco, aspecto constitutivo
da enunciao, metaforizado atravs dos deslizes cometidos pelo
falante de lngua estrangeira. Alm disso, a vinculao do nonsense
a um estilo de versificao tradicional implica a vontade de escapar
ao clich da desterritorializao como um meio de estar frente.
Desse modo, prope-se uma releitura do conceito de literatura
menor, segundo o qual a desterritorializao dos mecanismos

3 As dcimas tradicionais so estrofes de dez versos, com sete slabas mtricas


cada um e rima fixa em ABBAACCDDC.

estudos 45.indd 98 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 99

edipianos de controle do sujeito est ligada disperso lingustica,


dado que a linguagem se converte em um continuum de intensi-
dades onde todas as formas se desfazem, todas as significaes
tambm, (...) em proveito de uma matria no formada, (...) de
signos assignificantes (DELEUZE/GUATTARI, 1977, p. 20). Ou
seja, Sarduy procura tensionar um pouco mais essa potencialidade
do literrio apontada por Deleuze e Guattari, jogando talvez assim
a poesia contra sua prosa de fluxos desterritorializados, de modo a
evitar que a marginalidade do olhar desejante configurado pela sua
obra seja encarada de maneira imediatista como um estandarte da
cultura jovem de seu tempo.

Testemunhar fazendo a sesta

No soneto La transparente luz del medioda, que abre o livro


Un testigo fugaz y disfrazado, a vivncia do exlio configurada
pela imbricao das noes de recordao e presente, cor e trans-
parncia, corporeidade e figuralidade, fluxo espiral e geometria.
A casa litornea, o sol e o sopor da sesta ativam a memria (lejana/
de la isla Idem, p. 199), e a perspectiva lrica desvela o sutil nas-
cimento de formas a partir do contraponto entre brancura e sombra.
A nfase sobre este movimento de germinao, cujo efeito potico
oposto conscincia corrosiva que desmascara a vaziez por detrs
da aparncia, foi tambm explicitado por Sarduy em entrevista a
Jorge Schwartz, na qual o poeta comenta que o florescimento do
neobarroco em Cuba fruto, na verdade, da ausncia de arquite-
tura barroca na ilha e da vacuidade simblica do pas, sobretudo
na poca republicana. Da ausncia proliferao, este o sentido
que Sarduy atribui, analogamente, poesia de Gngora, cuja casa
em Crdoba, Espanha, , curiosamente, vaca, desnuda y blanca:

estudos 45.indd 99 26/05/14 14:55


100 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Esto me hizo reflexionar que, en medio de la vacuidad y del


blanco ms agresivo, surge la proliferacin ms incontrolable.
De ah que de la vacuidad insular de Cuba, y sobre todo de la va-
cuidad simblica pues vivamos en aquella poca republicana
en Cuba en medio de una miseria simblica, cultural y total ,
tena que surgir aquel deseo incontrolable por el barroco. (SAR-
DUY, op. cit., p. 1828)

O testemunho da experincia histrica da dispora anticastrista


traz para o centro dos poemas sarduyanos de temtica cubana a
idia de distncia. O afastamento espacial e temporal faz a mem-
ria se misturar ao esquecimento, de modo que, em La Habana, a
superposio de versos em retas horizontais, verticais e diagonais,
uns sobre os outros, ao passo que confunde o olhar do leitor, no
o impede de perceber a simultaneidade catica da lembrana, em
enunciados desconexos, tais como: fulgor de Varadero, los dioses
tomando una cristal bien fra durmiendo la siesta (Idem, p. 153):

estudos 45.indd 100 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 101

Severo Sarduy, En la Habana, in: Big Bang, 1974. [Imagem digitalizada.]

Sarduy assim evita focalizar nos poemas sobre Cuba os senti-


mentos de desterro e/ou de indignao quanto s condies pol-
ticas que no o permitem, entre outras coisas, rever sua famlia. A
reminiscncia, de alguma maneira, acontece e traz consigo vest-
gios do inconsciente, que, de acordo com Lacan, no somente se
apagam por si s, como todo uso de discurso (...) tende a apag-los
(LACAN, 2007, p. 120). Isso me faz pensar no comportamento da
srie Mood Indigo, de Big Bang, onde a prevalncia de traos cul-
turais cubanos, como do poema supracitado, vai cedendo lugar, iro-
nicamente, a referenciais da msica negra norte-americana (blues
e jazz), convertendo-se em pequenas fagulhas de representao.

estudos 45.indd 101 26/05/14 14:55


102 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Desse modo, acredito que Sarduy se esquive de qualquer ten-


tativa de leitura realista vitimizante de sua poesia. A temtica ex-
tremamente misturada que caracteriza seu trabalho lhe possibilita
lidar, em Un testigo perenne y delatado, com a exuberncia tropical
em sries sobre as frutas caribenhas e os orishas da religio afro-
cubana, sem cair no clich do exotismo. Em Pia, por exemplo, a
metonimizao insular atravs de frutas emblemticas da cultura
centro-americana desperta no sujeito lrico a ideia de rearrumar a
fruteira a seu bel prazer, como nas imagens de Arcimboldo, ence-
nando com isso possibilidades mais leves de simbolizao lutuosa
do exlio: Puse una pia pelona/ sobre tres naranjas chinas,/ y le
aad en las esquinas/ la guayaba sabrosona./ As, en exilio, corona/
la reina insular, barroca,/ la naturaleza poca / y muerte que le
he ofrecido./ Y el emblema que la evoca:/ No habr ms penas ni
olvido (SARDUY, op. cit., p. 227). O barroquismo dessa dcima no
est somente na inverso sinttica do segundo perodo (do quinto
ao oitavo verso), mas tambm na citao de No habr ms penas
ni olvido, ttulo de um livro do escritor argentino Osvaldo Soriano,
escrito em 1974 (ano da morte de Pern), uma associao indireta,
possivelmente, entre os infortnios polticos da Revoluo Cubana
e das naes capitalistas do continente latino-americano.

A escritura enquanto arte de dizer (art-dire) transforma-se


paulatinamente em ardor, no duplo sentido da palavra: ardncia
e paixo4. Uma das dcimas de Sarduy diz o seguinte: Tanto arder,
tanto valor,/ tanto ataque y retirada/ ante ese umbral en que nada/

4 Tal relao desenvolvida por Lacan no Seminrio 23, sobre o sinthoma na


obra de Joyce. Para o psicanalista, o sinthoma aquilo que, de algum modo, cessa,
bloqueia a escritura, na medida em que mantm uma relao intrnseca com o
real, que da ordem do desejante, do no simbolizvel. No entanto, verifica-se,
na obra de Joyce, por exemplo, um atravessamento do simblico pelo sinthoma,
gerando uma prxis qualquer, isto , alguma coisa proveniente do dizer quanto

estudos 45.indd 102 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 103

alivia ms el dolor/ que su incremento. O mejor:/ hay un punto


en que el exceso/ (...) bascula/ en su contrario (Idem, p. 212).
Ou seja, o excesso da dor, da ausncia, torna-se seu contrrio:
prazer, alvio. Com isso, o texto dobra-se por cima de uma noo
negativa, a do desterro no caso, como um modo de exorciz-la.
Percebe-se, assim, uma diferena significativa, por exemplo, entre
os poemas orientalista de aproximao mxima, quase fuso,
com a alteridade e os poemas sobre Cuba, em que a distncia
gera uma sensao ambivalente de nostalgia e alvio. No toa, a
vontade de regresso, presente em alguns momentos, contrasta
com o prazer de estar em Paris, explicitado sobretudo nas crnicas
de El Cristo de la rue Jacob.

Dessa forma, torna-se mais compreensvel a meno reiterada


sesta como um leitmotiv para a insero da memria na discur-
sividade lrica. Tal inoperncia diante da experincia pode ser vista
como uma recusa dos modos de atuao militante prototpicos.
A recluso voluntria de Sarduy j tinha sido demonstrada tambm
por Franois Wahl, para quem Il faut toujours revenir la traduc-
tion quil avait adopte de ses initiales, S. S.: Silence, Solitude5
(WAHL In: SARDUY, op. cit., p. 1470). Existe uma complexidade
em torno das performances sarduyanas performances no sentido
de ao e discurso que problematiza a assimilao de sua obra por
parte da crtica. Tanto sua figura autoral quanto o ponto de vista
lrico configurado por seus poemas sinalizam uma frequente osci-
lao do sujeito quanto aos modos de relao com a comunidade:
ora festivo, ora recluso.

ao que, no caso, chamarei igualmente de a arte-dizer [art-dire], para deslizar


rumo ao ardor [ardeur]. (LACAN, 2007, p. 114)

5 Traduo livre: preciso sempre voltar traduo que ele tinha adotado para
suas iniciais, S.S.: Silncio, Solido.

estudos 45.indd 103 26/05/14 14:55


104 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

A temtica da sesta remete tambm solido necessria ao es-


tudo e leitura, atividades que se imbricam, na poesia sarduyana,
noo de experincia, o que me relembra, casualmente, a primeira
frase do conto Despus del almuerzo, de Julio Cortzar: Despus
del almuerzo yo hubiera querido quedarme en mi cuarto leyendo
(CORTZAR, 2004, p. 175). A sonolncia indicia certo gosto pela
recepo distrada da leitura, propcia, claro, a conexes dspares
e a ressignificaes produtivas do sentido dos textos. Isso se nota,
com bastante nitidez, na srie Big Bang, onde o poeta mescla
diversas citaes retiradas de compndios de astronomia moderna
e de pginas cientficas do Le Monde a poemas de verso livre que
brincam com o deslizamento do tema cosmolgico ao homoertico.
Em Cuerpo divino, por exemplo, debaixo de um diagrama que
mostra o cruzamento das galxias Maffei 1 e Maffei 2, o leitor se
depara com os seguintes versos: El peso de tu cuerpo/ sobre mi
cuerpo/ (...)/ volmenes articulndose/ sembotant/ entrando/ en
silencio/ aceitados/ lentamente/ unos en otros (SARDUY, op. cit.,
p. 172). Assim, Sarduy desenvolve uma espcie de transfigurao
potica da ideia de testemunho, pois ele testemunha sem estar no
centro do acontecimento poltico: seja por estar dentro de casa, seja
por estar viajando pelo Tibet...

Completamente avesso ideia de originalidade, em Bosquejo


para una lectura ertica del Cntico espiritual seguido de Imita-
cin, Sarduy justape o gnero ensastico ao pastiche potico.
Na primeira parte do texto, analisa a obra de San Juan de la Cruz
sob a luz da reflexo lacaniana sobre o objeto a, demonstrando
o movimento pendular do desejo na poesia religiosa, visto que a
saciedade do instante de comunho d lugar em seguida vontade
de nova solicitao do desejado (cf. Idem, p. 245). Aps o ensaio, o
autor apresenta o que ele chama de imitao do Cntico espiritual
de San Juan, hibridizando e erotizando, logicamente, a forma fixa

estudos 45.indd 104 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 105

clerical com prazeres do cotidiano: Si otorgar decidiste/ lo que tan-


to mi sed encareca,/ con tal maa lo hiciste/ que apenas si saba:/
cerveza trabajada en m flua (Idem, p. 247). A leitura displicente
torna-se estudo, e o estudo transforma-se em homenagem. Sarduy
dedicou vrios sonetos e dcimas a escritores, pintores e amigos.
O endereamento desses poemas segue as tradies da lrica e da
stira barrocas. Quando no constitui homenagem ou suplemento,
sua poesia no se vexa de recuperar, em plena dcada de 1970, certo
gosto kitsch pelo satrico. Em Juana La Lgica, de Big Bang, a
pardia, por exemplo, da figura de Juana La Loca, que arrastou
enlouquecidamente por diversos meses o cadver embalsamado do
marido, serve como afirmao de um claro posicionamento antime-
lanclico: Mira cmo se te han roto los prpados de tanto llorar./
Qu haces arrastrndolo, mirndolo de noche,/ escribindote
la cara ante un esqueleto sangrante?/ Sintate. Slo Dios vence
(Idem, p. 188). Evidentemente, Sarduy tenta manter seu gosto pelo
estudo em um estado de amadorismo e hesitao entre o mstico e
o cientfico, o racional e o afetivo, solicitando assim o conceito de
aporia. No por acaso, em Lucidez, menciona a interessante fuso
do afeto com a abstrao desenvolvida por Borges em El hacedor.
O cubano diverte-se oferecendo jogos barrocos de lgica e erotismo
para o desciframento de seus leitores.

Como no poderia deixar de ser, nos anos 1980, o testemunho


sarduyano volta sua ateno para a emergncia da AIDS (o cncer
gay), doena em torno da qual, como bem apontou Susan Sontag
(2007, p. 89), se produziram metforas de culpabilizao de suas
prprias vtimas. Sarduy, no romance Pjaros de la playa, comenta
tambm esta converso do corpo, sobretudo do homossexual, em
um objeto que exige toda ateno possvel, enemigo despiadado,
ntimo, que sanciona con la vida la menor distraccin, el receso
ms pasajero (SARDUY, op. cit., p. 975). No toa, em Un testigo

estudos 45.indd 105 26/05/14 14:55


106 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

fugaz y disfrazado, verifica-se a obsesso do eu lrico pelo reflexo


do corpo nu no espelho. Se bem este enlace entre corpo e imagem
signifique uma forma simultnea de erotizao do visvel e de
transmutao do real em simulacro, no se pode negar que exista
nessa postura certo narcisismo que Sarduy recupera como desafio
lgica de ocultamento das marcas da doena, produzida pelo
discurso homofbico. Por isso, em uma mesma srie de dcimas,
possvel encontrar versos em que se evita a nomeao da enfer-
midade (Que no se nombre ni evoque/ este mal, o este castigo,/
que disfrazado de amigo/ se infiltra an ms Idem, p. 214),
enquanto se oferece o corpo s deformaes ticas do espelhismo:
Sin otra razn o nexo/ que el de anudar dos estratos,/ aparecen
los retratos/ en un espejo convexo./ Desnudos. Manos y sexo/ se
prolongan en un flujo/ de lneas (Idem, p. 216). A brincadeira com
os reflexos especulares distorcidos assinalam um possvel modo de
apropriao, barrocoldico como diria Haroldo de Campos, da
auto-imagem do corpo homoertico e aidtico, submetido a cmbios
progressivos de forma.6

Seguindo a esteira dessa colocao, pode-se dizer que a pre-


sentificao do corpo na poesia sarduyana traspassa o recalque
do discurso heteronormativo, pois encena o desejo por aquilo que
precisa ser omitido, funcionando como o reverso, muitas vezes

6 Gostaria de chamar a ateno para a diferena de tratamento da metfora


especular em Sarduy e em outros escritores contemporneos, como Herv
Guibert, para quem o ato de ver-se diante do espelho assume a dimenso tica
de recuperao da beleza do corpo aidtico. Leia-se uma citao do romance
lami que ne ma pas sauv la vie: Je me suis vu cet instant par hasard dans
une glace, et je me suis trouv extraordinairement beau, alors que je ny voyais
plus quun squelette depuis des mois (GUIBERT, apud EDELMAN, 1994, p. 115)
[traduo livre: Eu me vi, naquele momento, por acaso, em um espelho e me
achei extraordinariamente bonito. Naquela poca, fazia meses, eu s enxergava
ali apenas um esqueleto].

estudos 45.indd 106 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 107

debochado, da teleologia histrica que, na sua poca, investia pesa-


do na condenao dos grupos que irresponsavelmente praticaram
a liberdade sexual. Veja-se, por exemplo, como tal questo ganha
forma potica nos fragmentos de um soneto: Omtemela ms,
que lo omitido/ cuando alcanza y define su apora,/ enciende en el
reverso de su da/ un planeta en la noche del sentido; de amor y
de ardor en los anales/ de la historia la nupcia est cifrada (Idem,
p. 201). O ponto de poesia dos poemas de Sarduy no est na im-
possibilidade do desejo, que corresponde em Alejandra Pizarnik, por
exemplo, vergonha em relao a seus poemas, conforme indicou
Tamara Kamenszain (2007, p. 108). A poesia alegre e secundria
de Sarduy no quer deixar de ser secundria. Quer ser apenas me-
tfora lubrificante de uma possibilidade de alcance do desejo, que
sempre escorrega, claro, em direo a outras formas de satisfao,
indiciando de modo menos agnico sua incompletude. Concebe-se,
nada mais, como humilde exerccio de leitura e tentativa (frustrada)
de conteno dos fluxos discursivos sob a forma fixa, cada vez mais
tradicional e anti-original com o decorrer dos anos.

A duplicidade do testemunho sarduyano, tenso entre vivncia


e estudo, fugacidade disfarada pela forma e perenidade delatada
pelo deslizamento do significante observada na homologia de
procedimentos formais dos livros Un testigo fugaz y disfrazado e
Un testigo perenne y delatado configura um registro histrico
que no lamenta a perda das utopias e valores da modernidade
por afianar a produtividade do anacronismo (retombe): leiam-
-se as irnicas passagens presentes em Retrato (a los veinte aos
del mayo del 68): El leo abandon por Liquitex,/ Lacan y Lvi-
-Strauss por Asterix; De aquellos tiempos conserv el Mandrax
(SARDUY, op. cit., p. 224). A impossibilidade de entrega ao ertico,
devido doena, logicamente ser muito mais deplorvel para Sar-
duy. Por isso mesmo, sua poesia, ao contrrio de sua prosa, evita

estudos 45.indd 107 26/05/14 14:55


108 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

essa temtica. E mesmo quando ela surge nos seus ltimos poemas,
o poeta revitaliza a referncia santera, uma constante em sua
obra, a fim de focalizar, novamente, os modos de atenuao da
dor, tal como ocorre em Yemay: Madre de agua, Luna nueva:/
una paloma, un cordero,/ ofrecer al mar austero,/ para pasar esta
prueba. (Idem, p. 233)

Referncias

ANDRADE, A. Por uma comunidade desejante: um estudo sobre


Nstor Perlongher e Severo Sarduy. Niteri: Programa de Ps-
Graduao em Letras Universidade Federal Fluminense [Tese de
doutorado], 2011.
CAMPOS, H. A arte no horizonte do provvel. So Paulo: Perspectiva,
1977.
CORTZAR, J. Final del juego. Buenos Aires: Punto de Lectura, 2004.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor.
Rio de Janeiro: Imago, 1977.
ECHAVARREN, R. et al. (org.) Medusario. Muestra de poesa
latinoamericana. Buenos Aires: Mansalva, 2010.
EDELMAN, L. Homographesis: essays in gay literary and cultural
theory. New York: Routledge, 1994.
FERRAZ, E. (org.) Veneno antimonotonia: os melhores poemas e
canes contra o tdio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
KAMENSZAIN, T. La boca del testimonio. Lo que dice la poesa.
Buenos Aires: Norma, 2007.
LACAN, J. O seminrio, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
PERLONGHER, N. (org.) Caribe transplatino. Poesia neobarroca
cubana e rioplatense. So Paulo: Iluminuras, 1991.

estudos 45.indd 108 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 109

SARDUY, S. Obra completa. Vol. 1 [p.1-1005] Coleccin Archivos.


Madrid: ALLCA XX, 1999.
SARDUY, S. Obra completa. Vol. 2 [p. 1006-1896] Coleccin Archivos.
Madrid: ALLCA XX, 1999.
SILVA, S. S. A impessoalidade em Sophia: da carta ao poema. In:
PEDROSA, C.; ALVES, I. (org.) Subjetividades em devir: estudos de
poesia moderna e contempornea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008,
p. 304-310.
SONTAG, S. Doena como metfora. AIDS e suas metforas. So
Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
YURKIEVICH, S. Fundadores de la nueva poesa latinoamericana.
Barcelona: Edhasa, 2002.
ZIZEK, S. Lucha de clases o posmodernismo? S, por favor! In:
BUTLER, J.; LACAU, E.; ZIZEK, S. Contingencia, hegemona,
universalidad. Dilogos contemporneos en la izquierda. Mxico: FCE,
2003, p. 95-140.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 109 26/05/14 14:55


estudos 45.indd 110 26/05/14 14:55
Formao de professor de espanhol
no Brasil e integrao regional

Spanish teacher education in Brazil


and regional integration

Marcia Paraquett
Universidade Federal da Bahia

RESUMO: Este artigo se prope a apresentar uma proposta de projeto que


se identifique com polticas de integrao regional no contexto da Amrica
Latina, discutindo a formao de professores e modelos de aprendizagem
que priorizem o dilogo entre culturas no ensino de lnguas. Esses mode-
los estaro sendo entendidos como propostas que levem a posturas e at
mesmo a prticas que contribuam para a definio de questes inerentes
educao, tais como a incluso social e cultural, alm da compreenso
sobre as diferenas que nos constituem como sujeitos latino-americanos.
No propsito de materializar essa discusso, estabelecerei dilogos cul-
turais entre a produo de determinados discursos brasileiros e hispano-
-americanos, focando minha ateno na produo cultural de cunho oral,
como ocorre no serto brasileiro, na savana venezuelana e no pampa
argentino. Meu objetivo geral vincular essa produo formao de
professores de espanhol no Brasil, contribuindo para uma discusso que
priorize um modelo de formao adequado integrao regional.

estudos 45.indd 111 26/05/14 14:55


112 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Palavras-chave: Formao de professores; Interculturalidade; Culturas


latino-americanas

ABSTRACT: This article intends to present a proposal for a project


that identifies with regional integration policies in the context of Latin
America, discussing teacher education and learning models that prioritize
the dialogue between cultures in language teaching. These models will
be understood as proposals that lead to postures and even practices that
contribute to the definition of issues related to education, such as social
and cultural inclusion, beyond the understanding of the differences that
constitute us as Latin Americans individuals. In order to materialize this
discussion, I will establish cultural dialogues between the production
of certain Brazilian and Hispanic-Americans discourses, focusing my
attention on the oral nature of cultural production, as in the Brazilian
serto (semi-arid region in NortheasternBrazil), the Venezuelan savannah
and the Argentine pampas. My overall goal is to link this production to
Spanish teacher education in Brazil, contributing to a discussion that
prioritizes a training model suitable to regional integration.

Keywords: Teacher education; Interculturality; Latin American Cultures

Introduzindo

Este artigo toma como referncia algumas concepes ineren-


tes sua proposta, tais como formao de professor e abordagens
interculturais no ensino de lnguas e culturas latino-americanas,
visando a discutir uma proposta de projeto que se identifique com
polticas de integrao regional no contexto da Amrica Latina.
Estou tomando a formao de professores da forma como a en-
tendem, entre outros, DAHER e SANTANNA (2010, p.63), ou
seja, no seu sentido profissional e poltico, o que me leva a estar
de acordo com questes do tipo que saberes devem ser enfatiza-
dos para essa formao profissional, que guardem relao com as

estudos 45.indd 112 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 113

necessidades dos que frequentam as escolas de educao bsica?.


Esses saberes e essas necessidades, no meu ponto de vista, devem
estar relacionados funo poltica do ensino de espanhol a brasi-
leiros, em conformidade com os dispositivos legais e documentais
da educao nacional. Dessa forma, torna-se imprescindvel que
se priorizem modelos de abordagens interculturais para o ensino
de lnguas, entendidas como propostas que levem a posturas e at
mesmo a prticas que contribuam para a definio de aspectos
inerentes educao, tais como a incluso social e cultural, alm
da compreenso das diferenas que nos constituem como sujeitos
latino-americanos.

No propsito de materializar essa discusso, estabelecerei di-


logos culturais entre determinadas produes discursivas brasi-
leiras e hispano-americanas, focando minha ateno na produo
cultural de cunho oral, como ocorre no serto brasileiro, na savana
venezuelana e no pampa argentino. Meu objetivo geral vincular
essa produo discursiva formao de professores de espanhol no
Brasil, por entender que a escola pode trabalhar em prol da tomada
de conscincia sobre a importncia da integrao regional para o
futuro de nossos pases.

Comeo esclarecendo sobre o que estou chamando de Amri-


ca Latina, valendo-me das acertadas discusses propostas, mais
particularmente, por Ana Pizarro (2004) e Eurdice Figueiredo
(2010), que nos ajudam a perceber a complexidade que h em torno
desse termo, fortemente marcado por questes de ordem histrica
e poltica.

estudos 45.indd 113 26/05/14 14:55


114 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Pequena genealogia do termo Amrica Latina

O termo Amrica Latina surgiu na Frana no bojo de uma pre-


tensa inteno de se liderarem as naes menos favorecidas que
tambm pertencessem raa latina, movimento conhecido como
panlatinismo, idealizado por Michel Chevalier (1806/1879). Essa
pretensa hegemonia estava relacionada nascente dominao
norte-americana e , ento, hegemonia da Inglaterra. Segundo
Figueiredo (2010), o primeiro a empregar o termo foi o chileno
Francisco Bilbao, numa conferncia realizada em Paris, no ano de
1856. Nascia a Amrica Latina, esse lugar que parecia estar desti-
nado a pertencer ao Outro.

Mas a responsabilidade pela divulgao do termo se deve a


Jos Mara Torres Caicedo (1830/1889), um intelectual colom-
biano, respeitado e bem relacionado na Frana naquele momento,
mas que exclua o Brasil no que chamava de Amrica Latina, pois
a considerava o territrio de naes independentes, ou seja, de
repblicas, enquanto o Brasil ainda era um imprio portugus.
Estivemos, portanto, desde sempre fora do panlatinismo, esse
movimento ideolgico francs, que viria a influenciar intelectuais
hispano-americanos, conforme foi o caso de Jos Enrique Rod
(1871/1917), um homem de letras uruguaio, autor de Ariel1, tido por

1 Sugiro que se leiam as observaes de Enrique Krauze, em Os redentores. Ideias


e poderes na Amrica Latina, publicado pela Benvir (Saraiva), em 2011. Entre
outros aspectos interessantes, o autor observa que Rod teria escrito o seu Ariel
em meio a um importante evento histrico, que o sacudiu: os Estados Unidos
tomaram o poder em Cuba, expulsando os espanhis do comando da ilha. Como
neto de espanhis, mas nascido no Uruguai, esse episdio despertou-lhe dois
sentimentos: ver a Espanha humilhada e uma Cuba que parecia s ter mudado
de senhor. De qualquer forma, seu sentimento se voltava contra os Estados Uni-
dos, levando-o a escrever seu pequeno livro que, em palavras de Krauze, foi na
verdade uma homilia moral dirigida juventude latino-americana. Esse livro

estudos 45.indd 114 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 115

muitos como o primeiro idelogo do nacionalismo latino-ameri-


cano (KRAUZE, 2011, p. 37). A Amrica Latina nasce, assim, no
confronto entre foras ideolgicas que colocavam em lados opostos
as tendncias da tradio intelectual francesa e a nova ideologia
norte-americana, que viria a instalar-se, largamente, em nossos
territrios no decorrer do sculo XX.

Segundo Figueiredo (2010), a primeira ocorrncia em ingls do


termo Amrica Latina data de 1890 e viria a substituir a expresso
Amrica Hispnica. Segundo a autora, a imagem negativa dos
hispano-americanos nos Estados Unidos foi construda, at mea-
dos do sculo XIX, em torno dos termos catolicismo, indolncia,
ignorncia e falta de iniciativa, que se oporiam imagem que os
norte-americanos faziam de si prprios, protestantes, trabalhado-
res e empreendedores (...) (FIGUEIREDO, 2010, p. 45). curioso
observar que essa imagem pouco tem mudado ao longo do tempo,
pois ainda hoje os chamados latinos que vivem nos Estados Uni-
dos desempenham funes inferiorizadas, com relao s classes
dominantes.

representava uma expresso do desafortunado encontro entre as duas Amricas,


em um processo que se estenderia ao longo do sculo XIX (p.38/39). O repdio
aos Estados Unidos era, tambm, consequncia das influncias que sofreu dos
pensadores franceses e de seus seguidores na Amrica Latina, determinando um
discurso marcado pela oposio radical entre a essncia da cultura anglo-saxnica
e a hispano-americana. Rod falava em nordomana, ou seja, o surto da mania
pelo Norte, alertando a juventude para outro modelo de valores sociais e cultu-
rais. Alm disso, criou sua prpria leitura mitolgica, dizendo que eles [os do
Norte] so Calib, ns [os hispano-americanos] somos Ariel (o outro servo mas
atraente, leve como o ar do sbio Prspero); eles, no ns, tm dificuldade de
entender as coisas, so insensveis e at mesmo deficientes em esprito (p.52)

estudos 45.indd 115 26/05/14 14:55


116 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Em seu livro, El sur y los trpicos (2004), a intelectual chilena,


Ana Pizarro, coloca sua ateno no que chama de modernidade
tardia de nosso continente. Atm-se, portanto, segunda metade
do sculo XX, mais especificamente a partir dos anos sessenta,
procurando explicar a formao de nossas identidades. Ressalta
a autora que, apesar da Amrica Latina sempre ter ocupado um
lugar perifrico, a partir das vanguardas foi possvel construir sus
modelos literarios y culturales propios, capaces de constituir ya
referencias dentro de su mbito (PIZARRO, 2004, p. 29). Mas nos
anos sessenta se d incio ao que a autora chama de modernidade
perifrica tardia, afastando-se de uma postura impregnada por uma
viso imperialista dos Estados Unidos que teria predominado nos
anos cinquenta. Esse novo modelo, certamente, foi definido pelas
influncias ocasionadas pela Revoluo Cubana e pelas figuras de
Che Guevara e Fidel Castro.

Em palavras de Pizarro,
() los aos sesenta, pues, significaron para el continente la
apertura de la modernidad tarda, con una postura protagnica
en lo internacional y con fuertes vinculaciones en mbitos no
hegemnicos. Como cultura nacida de la colonizacin, Amrica
Latina puso en evidencia un cambio de sensibilidad, as como
de formaciones y prcticas discursivas (PIZARRO, 2004, p. 35).

No entanto, como sabemos, ainda naquela dcada, inaugura-


mos nossa nova era de autoritarismo, tendo o Brasil precedido s
ditaduras que viriam a afetar, mais particularmente, o Cone Sul.
A modernidade perifrica tardia deu lugar ao silncio e ao exlio,
gerando a crise dos modelos de representao.

O novo sculo, o XXI, nos est trazendo novos elementos his-


tricos que, no meu ponto de vista, precisam ser conhecidos pelos
cidados latino-americanos, onde se incluem, obviamente, os alunos

estudos 45.indd 116 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 117

de espanhol no Brasil e os de portugus nos pases hispnicos de


nosso continente. Encontra-se a o meu interesse por essa temtica
que estou discutindo aqui.

Formao de professores e as reas culturais latino-


americanas

Formar professores de espanhol se constitui na principal tarefa


que desempenho em minha profisso. Est claro para mim, hoje,
que ensinar espanhol se converteu em ensinar a ensinar espanhol.
bem verdade que so muitas as especificidades que podemos
viver como professores universitrios, mas esta foi a que escolhi
para mim, a da formao de professores, pois encontrei nela uma
funo social e, consequentemente, poltica, que me traz conforto
e comodidade. Mas como ressaltei no incio deste texto, estou pen-
sando a formao de professores da forma como a compreendem
Daher e SantAnna (2010), ou seja,
Vinculando a teoria prtica
Priorizando saberes relevantes para a prtica profissional;
Entendendo a prtica profissional no que ela tem de social e
poltico; [e]
Assumindo uma concepo de lngua e de ensino de lngua
prpria educao bsica, quando a aprendizagem de lnguas
estrangeiras tem funes particulares, previstas nos documen-
tos nacionais.

Como asseveram as autoras, a formao de professores preci-


sa abandonar uma postura j ultrapassada, quando se privilegia
o que se sabe sobre aprender lnguas e no como ensin-las.
Ao observarem a forma como se organizam os Cursos de Letras em
muitas das universidades brasileiras, Daher e SantAnna percebem
que a maior parte das disciplinas desse curso preocupa-se com
contedos sobre lngua e literatura, ignorando ou no valorizando

estudos 45.indd 117 26/05/14 14:55


118 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

a relevncia de articulao entre tal contedo e a atividade a ser


realizada em situao de trabalho (DAHER e SANTANNA 2010,
p. 64). Tenho conscincia da complexidade dessa discusso, mas
estou plenamente de acordo com as referidas autoras, quando se
tratem de Cursos de Licenciatura, quando o objetivo formar pro-
fissionais do magistrio.

Tambm foi dessas autoras que tomei para mim uma pergunta
formulada e que, de certa forma, norteia essas reflexes que lhes
estou trazendo. E a repito: que saberes devem ser enfatizados para
essa formao profissional, que guardem relao com as necessida-
des dos que frequentam as escolas de educao bsica?.

Lendo uma entrevista concedida pela conhecida intelectual


argentina, Elvira Arnoux, publicada em setembro do ano passado
no jornal Pgina 122, verifico que as preocupaes que temos no
Brasil, com relao ao ensino do espanhol na educao bsica, se
aproximam das que se tm na Argentina, pois tambm se fala da
necessidade de se conformar uma identidade e uma cidadania sul-
-americanas. Reclama-se, tambm, que o Estado, atravs da edu-
cao, deveria construir a conscincia da integrao continental.
E, de certa forma, eu sou o Estado brasileiro. Somos o Estado,
quando somos professores que formam professores que atuaro
na educao bsica, sobretudo os que estamos em universidades
pblicas.

Quando enfatizo os saberes que julgo essenciais a meus alunos,


no perco de vista esse meu compromisso social e poltico. Tambm
quero, como Arnoux, que meus alunos e os alunos de meus alunos
tomem conscincia de sua cidadania sul-americana ou, em termos

2 http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-203013-2012-09-10.html, acessado
em 10/09/2012.

estudos 45.indd 118 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 119

mais amplos, latino-americana, ainda que continuemos perifricos


ou tardiamente modernos3.

O meu atual projeto de pesquisa, intitulado reas culturais da


Amrica Latina e o ensino-aprendizagem de espanhol a brasileiros,
prev exatamente o conhecimento de quem somos os latino-ame-
ricanos, privilegiando o estabelecimento do dilogo entre nossas
formas de ser. Tomo a expresso reas culturais da j referida obra
de Ana Pizarro (2004), para quem a Amrica Latina est dividida,
minimamente, em sete reas:
A meso-americana e andina;
A do Caribe e costa atlntica;
A sul-atlntica;
A rea cultural Brasil;
O pramo mexicano, o serto brasileiro, a savana venezuelana
e o pampa argentino;
Os latinos nos Estados Unidos; [e]
A rea cultural amaznica.

Entende Pizarro que essa diviso nos ajuda a compreender-nos


atravs de nossa produo discursivo-cultural, que se realiza a partir
desses matizes que constituem a nossa histria:

3 claro que essa discusso complexa, pois a classificao do que seria perifrico
ou tardiamente moderno poderia ser outra se fossem mudados os parmetros
a partir dos quais os estudos sobre as sociedades so feitos. Sugiro que se leia o
artigo de Walter Mignolo (El pensamiento des-colonial, desprendimiento y aper-
tura: un manifiesto), publicado en WALSH, C., LINERA, A.G., MIGNOLO, W.
Interculturalidad, descolonizacin del estado y del conocimiento. Buenos Aires:
Ediciones del signo, 2006, p. 83-123. No referido artigo, Mignolo sugere que se faa
o que chama de giro des-colonial, criando-se um discurso des-colonial, que no
se baseie na lgica colonial. Segundo o autor, precisamos contar nossas histrias
e produzir nossos discursos, de forma que criemos a genealogia do pensamento
des-colonial, que des-conhecida na genealogia do pensamento europeu. A partir
desse giro, a concepo do que seria perifrico poderia mudar.

estudos 45.indd 119 26/05/14 14:55


120 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

A de tradio indgena;
A afrodescendente;
Os processos migratrios;
Nossa cultura popular de tradio oral; [ou]
Os novos modelos discursivos que esto sendo produzidos nessa
rea extraterritorial, que so os Estados Unidos.

Os latino-americanos somos isso tudo e mais um pouco, sendo


quase impossvel dar conta dessa complexidade na sala de aula, o
que me leva a privilegiar alguns saberes que julgo importantes para
a formao dos alunos de espanhol da Bahia, onde desenvolvo o
meu projeto de pesquisa.

Dessas sete reas privilegiadas por Pizarro, entendo que h trs


que falam mais diretamente a meus alunos da Bahia:
A de tradio indgena;
A afrodescendente [e]
A de tradio oral.

No intuito de objetivar essas reflexes, passo a apresentar uma


proposta de estabelecimento de dilogo entre produes discursivas
que se identificam com a quinta rea cultural, ou seja, a de tradi-
o oral. Vale ressaltar que o estabelecimento de dilogo cultural
entre diferentes produes discursivas se explica pela orientao
terico-metodolgica que sigo como professora e pesquisadora. Sou
adepta ao que estamos chamando de modelos de aprendizagem
intercultural, quando privilegiamos um ensino que se preocupe
com a incluso e integrao sociocultural.

rea de tradio oral. O caso de Simn Daz

Tomarei como exemplo trs autores que me ajudam a mostrar,


ainda que ligeiramente, a forma como se poderiam abordar seus
textos na sala de aula, de maneira a provocar discusses e reflexes
que tenham base intercultural. So eles:

estudos 45.indd 120 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 121

Simn Narciso Daz Mrquez ou, simplemente, Simn Daz,


nascido em Barbacoas, no Estado de Aragua, na Venezuela,
em 1928;
Atahualpa Yupanqui, que em quechua significa el que viene de
lejanas tierras para decir algo, pseudnimo de Hctor Roberto
Chavero Aramburu, nascido em Juan A. de la Pea, partido
de Pergamino, na Argentina, em 1908 e falecido em Nmes,
Frana, em 1992; [e]
Elomar Figueira Mello, nascido em Vitria da Conquista, no
Estado da Bahia, em 1937. O que h de comum entre esses trs
artistas a forma como expressam a poesia do campo, seja este
chamado de llano, de savana ou de serto.

De Simn Daz, seleciono versos de sua Tonada de la luna llena,


popularizada no Brasil atravs da gravao feita por Caetano Veloso,
no seu emblemtico CD Fina Estampa, no ano de 1994. Caetano
fez uma seleo de canes hispano-americanas, tendo privilegiado
clssicos como a que deu nome ao CD, assim como, Lamento Bo-
rincano, La Barca, Vete de m, Contigo en la Distancia e a tonada
llanera de Simn Daz, tambm utilizada por Almodvar, na voz
de Caetano Veloso, no seu filme La flor de mi secreto.

Esses versos que dizem,


Yo vide una garza mora
Dndole combate a un ro
As es como se enamora
Tu corazn con el mo
Luna, luna, luna llena menguante
Luna, luna, luna llena menguante

Anda muchacho a la casa


Y me traes la carabina
Pa mata este gaviln
Que no me deja gallina

La luna me est mirando


Yo no s lo que me ve
Yo tengo la ropa limpia
Ayer tarde la lav

estudos 45.indd 121 26/05/14 14:55


122 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Luna, luna, luna llena menguante


Luna, luna, luna llena menguante,

[...] remetem ao folclore venezuelano, sendo, possivelmen-


te, uma recompilao de uma cano de ninar, prpria daquela
tradio.

Conta-se que durante a poca da chuva, que coincide com o


inverno e que dura seis meses, se aproveita que o gado pode ficar
confinado numa rea relativamente pequena onde h pastagem
farta, para se ordenhar as vacas, que so separadas de seus bezer-
ros na noite anterior. De uma em uma, elas vo sendo liberadas
e tocadas pelo ordeador que canta uma tonada que se remete
ao nome da vaca e de seu bezerro, que so os mesmos. Sempre
cantando, o ordeador faz seu trabalho e a cano serve para falar
das novidades, da paisagem e tambm de suas dores, valendo-se
do discurso potico que, por isso mesmo, pode ser entendido por
muitos, mesmo que no se conhea a vida do campo. Quando me-
nino, Simn Daz trabalhou como becerrero, trabalho que consiste
no estmulo liberao do leite da vaca atravs da amamentao
dos bezerros. Vir da, certamente, o interesse por seu trabalho
de recompilador e de criador de muitos poemas-cano que falam
dos llanos. No caso da cano que estamos observando, a vaca se
chama Luna Llena, o que permite a oposio potica entre luna
llena x luna menguante4.

Posso inferir que Caetano Veloso tenha se impressionado com


o discurso potico de Simn Daz, mas tambm pela sonoridade
da cano, pois quase reproduz a forma como o autor a gravou no
seu CD Cuenta y Canta (volume 2). Ouve-se, nas duas produes,

4 Adaptado de http://liberitas.com/2007/10/04/caetano-veloso-tonada-de-luna-
-llena/, com acesso em 01/05/2013.

estudos 45.indd 122 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 123

um som gutural, fino, impostado, e que se estende com poucas os-


cilaes musicais, como a imitar o chamado do gado nos campos5.

rea de tradio oral de Atahualpa Yupanqui

Passemos oralidade potica de Atahualpa Yupanqui, atravs


da cano Los ejes de mi carreta, feita em parceria com Romildo
Risso, e que diz o seguinte:
Porque no engraso los ejes
me llaman abandonao
si a m me gusta que suenen
pa qu los quiero engrasaos

Es demasiado aburrido
seguir y seguir la huella
andar y andar los caminos
sin nada que me entretenga

No necesito silencio
yo no tengo en qu pensar
Tena pero hace tiempo
ahura, ya no pienso ms

Los ejes de mi carreta


nunca los voy a engrasar.

Conta-se que Atahualpa era um senhor que andava de povoado


em povoado, com sua carroa puxada por uma mula. Onde vivia,
os povoados estavam muito distantes uns dos outros, e Atahualpa
levava muito tempo para chegar a cada lugar. s vezes precisava
parar a carroa, soltar a mula e dormir at que amanhecesse. Sua
vida era triste e solitria, mas nunca fustigou sua mula para que

5 A interpretao de Caetano Veloso pode ser vista em http://www.youtube.com/


watch?v=XxagTf9xGnI, enquanto a de Simn Daza em http://www.youtube.
com/watch?v=2Xt6CHJrRJo. Acesso em 20/06/2013.

estudos 45.indd 123 26/05/14 14:55


124 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

apertasse o passo, pois no tinha nada, nem dinheiro, nem relgio


e nem amigos, mas tinha tempo. Dizem, tambm, que todos sabiam
quando ele chegava aos povoados, porque ouviam o rudo de sua
carroa e o chamavam de relaxado, porque no cuidava dela. Mas
a verdade que ningum sabia que Atahualpa tinha o corao fe-
rido e que nunca cicatrizou. possvel, ainda hoje, encontr-lo nos
pampas argentinos, em noite de lua cheia, explicando porque no
azeitava as engrenagens de sua carroa 6.

Est a a figura do carretero, do pampino abandonao, ou seja,


do campons abandonado, descuidado, seja porque no se cuida ou
porque no recebe cuidados. A melodia acompanha esse ambiente,
sugerindo um movimento arrastado e montono, como a repetir a
vida dos homens desses llanos latino-americanos.

Observemos que os autores registram na forma escrita algumas


expresses prprias da oralidade (abandonao, ahura), eliminando
possveis limites entre as duas formas de se expressar, e dando aten-
o quela que prpria realidade sociocultural que est sendo
observada. O mesmo faz, e com mais intensidade, o poeta baiano
que completa essas reflexes.

rea de tradio oral de Elomar Figueira Mello

Elomar Figueira Mello tem uma obra vasta e muito complexa,


estabelecendo dilogos importantes entre a msica clssica e a
popular, como em rias Sertnicas e Concerto Sertanez. Mesmo
nos trs volumes de Cantoria (I, II, III), cuja proposta era apresen-
tar uma coletnea da msica sertaneja, os limites entre o clssico

6 Adaptado de http://pesoles.blogspot.com.br/2009/02/los-ejes-de-mi-carreta-
-milonga.html, com acesso em 01/05/2013. Para ouvir a cano, pode-se visitar
http://www.youtube.com/watch?v=w9g9jvZ4yJ0

estudos 45.indd 124 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 125

e o popular no esto definidos, seja na sua voz ou na de outros


cantores que adotaram seu estilo, como Geraldo Azevedo, Vital
Farias ou Xangai. Outros msicos brasileiros se juntaram a Elomar,
como Arthur Moreira Lima ou Eduardo e Jacques Morelembaum,
conhecidos e respeitados como pianistas e maestros.

Vejamos o que diz Elomar na primeira estrofe de Violeiro:


V cant no canturi primero
as coisa l da minha mudernage
qui mi fizero errante e violro
Eu falo sro e num vadiage
E pra voc qui agora est mi vino
Juro int pelo Santo Minino
Vige Maria qui ve o qui eu digo
Si f mintira mi manda um castigo.

Ou em Retirada, onde se refere a um problema que marcou,


profundamente, a histria nordestina brasileira: a dos retirantes:
Vai pela istrada enluarada
Tanta gente a ritirar
Levando s necessidade
Saudades do seu lugar
Esse povo muito longe
Sem trabalho, vem pr c
Vai pela istrada enluarada
Com tanta gente a ritirar
Rumano para a cidade
Sem vontade de chegar.

O tema dos retirantes est presente na literatura brasileira, onde


se destacam nomes como os de Graciliano Ramos, Joo Cabral de
Melo Neto ou Ariano Suassuna, autor do antolgico poema Morte
e Vida Severina7. Elomar, alm de recuper-lo, estabelece a relao

7 Morte e Vida Severina, publicado originalmente em 1955, um livro de poemas


dramticos, onde seu ator, Joo Cabral de Melo Neto, denuncia a dura trajet-
ria pela qual passaram muitos migrantes nordestinos, que saam do campo (do

estudos 45.indd 125 26/05/14 14:55


126 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

entre esse xodo interno e a viola, companheira do retirante na sua


larga e silenciosa caminhada. Alis, essa parceria se v tambm
no poema de Sidney Miller (1945-1985), A Estrada e o Violeiro8,
confirmando-se a proposta de Ana Pizarro, que tomei como refern-
cia: somos latino-americanos porque temos nossas prprias formas
de produo discursiva, e que se explicam por razes histricas,
independente da regio onde vivamos. Sidney Miller nasceu no Rio
de Janeiro e, no entanto, deu voz estrada e ao violeiro, os dois
companheiros do retirante nordestino:
Sou um violeiro procurando s por uma estrada procurando s
Sou uma estrada procurando s levar o povo pra cidade e s.

Poderia estender-me, falando de outras vozes brasileiras que


permitiriam paralelos com as produes culturais de Simn Daz e
Athualpa Yupanqui, como a de Renato Teixeira9, o sertanejo caipira:
Sou caipira, Pirapora
Nossa Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida.

Mas paro por aqui, para fechar essas ideias dispensas.

serto brasileiro) em busca de uma vida mais favorvel no litoral ou em grandes


cidades do pas.

8 Confira a interpretao de Sidney Miller em http://www.youtube.com/


watch?v=MsY0QsgTQyQ, confirmando o que aqui se afirma. Acesso em
20/06/2013.

9 Confira a interpretao de Romaria com Renato Teixeira, juntamente com Pena


Branca e Xavantinho, em http://www.youtube.com/watch?v=SEOeo0w2Qc8.
Acesso em 20/06/2013.

estudos 45.indd 126 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 127

Fechando as ideias

Lembro que minha proposta, no s neste artigo, mas na minha


prtica profissional, refletir sobre o papel que deve cumprir a
escola na tomada de conscincia sobre a importncia da integra-
o regional para o futuro dos pases latino-americanos. Para tal,
tenho-me valido de uma base terico-metodolgica que me ajude
na formao dos professores de espanhol, que atuaro na educao
bsica, particularmente no Estado da Bahia, refletindo, juntamente
com eles, sobre alguns temas que nos levem a nos conhecer, seja en-
contrando nossas similitudes, seja reconhecendo nossas diferenas.

Como j tive a oportunidade de afirmar em ocasies anteriores10,


a opo pelo ensino da lngua espanhola na sua pluralidade cultural
ser consequncia natural de nossa conexo com as identidades
dos povos que falam essa lngua, mas tambm de nossa autonomia
diante das escolhas dos modelos de aprendizagem ou mesmo dos
materiais didticos que utilizamos. Repare-se que a esto duas
questes muito complexas, pois faz alguns anos que vivemos no
Brasil uma espcie de hegemonia da variante ibrica do espanhol,
consequncia de uma srie de fatores de ordem histrica, poltica e
econmica que no cabe discutir agora. Mas no se pode deixar de
chamar a ateno, pelo menos, para a perda da autonomia11, que

10 Confira-se, por exemplo, PARAQUETT, M. Amrica Latina e materiais didticos


de espanhol como lngua estrangeira. In: SCHEYERL, D; SIQUEIRA, S. Materiais
didticos de lngua estrangeira: contestaes e proposies. Salvador: EDUFBA,
2012, p.379-404.

11 Jos Contreras, em seu livro A autonomia de professores. So Paulo: Cortez,


2002, compreende A autonomia do professor em sala de aula, como qualidade
deliberativa da relao educativa, [que] se constri na dialtica entre as convices
pedaggicas e as possibilidades de realiz-las, de transform-las nos eixos reais do
transcurso e da relao de ensino. Porm, tal possibilidade de realizao s pode
se dar se os estudantes entenderem seu propsito e seu plano, e se o professor

estudos 45.indd 127 26/05/14 14:55


128 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

professores e aprendizes do espanhol no Brasil vivenciamos, sobre-


tudo, durante as dcadas de 1990 e 2000. Na atual dcada, graas
aos movimentos de diferentes instituies compostas por profes-
sores e pesquisadores de espanhol12, o cenrio tem-se modificado,
e j se pode perceber um amadurecimento quanto importncia
de se ver o espanhol como uma lngua plural, conforme alertaram
as Orientaes Curriculares Nacionais, desde 2006, ao formular a
j to conhecida proposta:
Que Espanhol ensinar? deve ser substituda por outra per-
gunta: como ensinar o Espanhol, essa lngua to plural, to
heterognea, sem sacrificar as suas diferenas nem reduzi-las a
puras amostragens sem qualquer reflexo maior a seu respeito?
(BRASIL, 2006, p.134)

E em nome dessas preocupaes que o projeto de pesquisa


que venho desenvolvendo, e que serviu de justificativa para a pro-
duo desse artigo, se prope a re-velar ou des-cobrir as culturas
hispano-americanas na formao de professores de espanhol, pois
estas, lamentavelmente, se mantiveram cobertas ou veladas por
muito tempo. Em particular, elegi para estas reflexes um possvel

entender as circunstncias e expectativas daqueles (p. 198). neste sentido que


afirmo que precisamos recobrar ou conquistar nossa autonomia como professores
e aprendizes.

12 Refiro-me s muitas Associaes de Professores de Espanhol de nosso pas,


fundadas desde 1981, e mais particularmente Associao Brasileira de Hispanis-
tas, que desde 2000 promove congressos onde temos percebido um significativo
amadurecimento das pesquisas que estamos realizando no Brasil, atravs dos
Programas de Ps-graduao de nossas universidades. Em recente artigo (A lngua
espanhola e a lingustica aplicada no Brasil. In Abeache, Revista da Associao
Brasileira de Hispanistas, ano 2, nmero 2 p.225-239), fiz um levantamento das
pesquisas na rea da lngua espanhola, disponvel em http://www.hispanistas.
org.br/abh/index.php?option=com_content&view=article&id=27%3Asumario-
-2&catid=21&Itemid=4. Acesso em 20/06/2013.

estudos 45.indd 128 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 129

dilogo que percebo entre nossas produes culturais de cunho


oral, especialmente na Bahia, e as que se produzem em pases da
Amrica Hispnica, tendo privilegiado a Venezuela e a Argentina.
E minhas escolhas se explicam porque tambm quero compreender
a Amrica Latina como um espao de produo cultural prpria,
conforme sugere Pizarro (2004); assim como quero crer que a partir
do conhecimento (ou do des-cobrimento) que meus alunos possam
ter dessas produes culturais, eles passam a conhecer melhor o
outro e a si prprios, de forma a mudar suas posturas e suas pr-
ticas, com respeito, sobretudo, compreenso das diferenas que
nos constituem como sujeitos latino-americanos, conforme anunciei
no incio deste texto.

Estou consciente de que esses exerccios que propus aqui so


apenas uma gota dgua no imenso oceano que temos por navegar.
Ou um pequeno caminho das estradas que temos por percorrer,
com nossas violas e nosso jeito de abandonados, como sugeriu o
discurso potico de Atahualpa Yupanqui.

Referncias

BRASIL. Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio de 2006.


Conhecimentos de Espanhol. Secretaria de Educao Bsica. Braslia:
Ministrio de Educao, p. 127-164.
DAHER, Del Carmen e SANTANNA, Vera Lcia. Formao e exerccio
profissional de professor de lngua espanhola: revendo conceitos e
percursos. In: BARROS, Cristiano Silva e GOETTENAUER, Elzimar de
Marins Costa (Coord.). Espanhol: ensino mdio. Braslia: Ministrio da
Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2010. Coleo Explorando o
Ensino, v. 16, p. 55-68.
FIGUEIREDO, Eurdice. Representaes de etnicidade: perspectivas
interamericanas de literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

estudos 45.indd 129 26/05/14 14:55


130 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

KRAUZE, Enrique. Os redentores. Ideias e poder na Amrica Latina.


So Paulo: Saraiva, 2011.
PIZARRO, Ana. El sur y los trpicos. Ensayos de cultura
latinoamericana. Murcia: Compobell, 2004.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 130 26/05/14 14:55


Errar es humano, por eso, no hablo:
un anlisis del miedo de hablar y de
cometer errores en el aula de ele

To err is human, therefore, i do not


speak: an analysis of fear of speaking and
making mistakes in sfl/ele class

Nair Floresta Andrade Neta


Universidade Estadual de Santa Cruz/Ilheus/Bahia

RESUMEN: Qu es el miedo, cul es la gnesis del miedo de hablar y


de cometer errores, qu puede hacer el profesor de ELE para ayudar al
alumno a afrontar ese miedo en el aula son algunas de las preguntas en
torno a las que girarn las reflexiones que planteamos en este artculo.
Para ello, adems de la introduccin y de las consideraciones finales,
el texto se estructura en cuatro partes. En la primera, haremos algunas
consideraciones acerca de la investigacin que ha dado origen a los datos
discutidos en este texto; en la segunda, trataremos del miedo como lo que
es, una emocin bsica y universal, que genera sensaciones desagradables
y que trae en s, como tendencia para la accin, el deseo de alejarse del
objeto o situacin que la desencaden, favoreciendo comportamientos
estereotipados por el buril de la naturaleza, que se resumen en tres ac-
ciones: huir, esconderse o luchar. En la tercera parte, nos centraremos

estudos 45.indd 131 26/05/14 14:55


132 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

en la comprensin del miedo de hablar como una extensin del miedo de


hablar en pblico (MHP), tan frecuente en el ambiente acadmico. En este
contexto, trataremos del miedo de cometer errores como un desencade-
nante del miedo de hablar. En el cuarto apartado, a modo de conclusin,
planteamos algunas situaciones que pueden acentuar o atenuar el miedo
de hablar que sienten los aprendices.

Palabras clave: componente emocional; miedo de hablar; miedo de co-


meter errores; Espaol como Lengua Extranjera; formacin de profesores

RESUMO: O que o medo, qual a gnese do medo de falar e de cometer


erros, o que pode fazer o professor de ELE para ajudar o aluno a enfrentar
esse medo na aula so algumas das perguntas em torno s quais giraro
as reflexes que propomos neste artigo. Para isso, alm da introduo, o
texto se estrutura em trs partes. Na primeira, trataremos do medo como
o que ele , uma emoo bsica e universal, que gera sensaes desagrad-
veis, e que traz em si, como tendncia para a ao, o desejo de afastar-se
do objeto ou situao que a desencadeou, favorecendo comportamentos
estereotipados pelo buril da natureza, que se resumem em trs aes: fugir,
esconder-se ou lutar. Na segunda parte, nos centraremos na compreenso
do medo de falar como uma extenso do medo de falar em pblico, to
frequente no ambiente acadmico. Neste contexto, trataremos do medo
de cometer erros como um desencadeante do medo de falar. No terceiro
momento, a modo de concluso, proporemos algumas situaes que podem
acentuar ou atenuar o medo de falar que sentem os aprendizes.

Palavras-chave: componente emocional; medo de falar; medo de co-


meter erros; Espanhol como lngua estrangeira; formao de professores.

ABSTRACT: What fear is; what the genesis of fear of speaking and of
making mistakes is; what the SFL(Spanish as a Foreign Language) teacher
can do to help the learner to face that fear in the classroom are some of the
issues we ponder on in the present article. In order to do so, besides an
introduction and final troughts, the textis structured in three parts. In the
first part, we will deal with fear as it is, a basic and universal emotion which

estudos 45.indd 132 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 133

generates unpleasant feelings and which brings in it, like a tendency for
action, the wish to get awayfrom the trigger object or situation and which
brings about natural stereotyped behavior reduced to three actions: run
away, hide or fight. In the second part, we will focus on the comprehension
of the fear of speaking (in the SFL classroom) as an extension of the fear
of speaking in public (FSP), very frequent in the academic environment.
In this context we will treat the fear of making mistakes as a trigger of
the fear of speaking. In the third part, as a conclusion, we suggest some
situations that may stress or attenuate the fear of speaking.

Key-words: Emotional component; Fear of speaking; Fear of making


mistakes; Spanish as a Foreign Language; Teacher education

Introduccin

Desde hace algunas dcadas, la produccin del error durante


el proceso de aprendizaje de una lengua extranjera (LE) o segunda
lengua (L2) goza de buena reputacin, puesto que, al menos terica-
mente, ha pasado de ser un villano para convertirse en un mensajero
de buenos augurios, toda vez que su presencia indica que el hablante
no nativo (HNN) est construyendo su competencia comunicativa
en la lengua objeto. En otras palabras, est desextranjerizando1
la LE para apropiarse de ella a lo largo de sucesivas etapas, en las
cuales cometer errores se considerar algo positivo, necesario, y
hasta cierto punto deseable, en la conformacin de la interlengua.
De acuerdo con este marco terico en boga,
Los errores han de ser considerados como elementos ca-
ractersticos de la interlengua del que aprende una L2/LE;
son inevitables, ya que el proceso de aprendizaje es activo y
creativo, es decir, conlleva la formulacin de hiptesis y la com-
probacin o refutacin de las mismas, y son necesarios, puesto

1 Me apropio del trmino desestrangeirizar, utilizado por Almeida Filho (2010).

estudos 45.indd 133 26/05/14 14:55


134 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

que denotan que el proceso se est llevando a efecto. (SANTOS


GARGALLO, 2008, p. 394, la negrita es nuestra)

Ahora bien, el hecho de que el error, por su significado, disfrute


de un lugar privilegiado en el mbito de las teoras de aprendizaje
y de adquisicin no significa aceptar sin ms su mantenimiento y
proliferacin. Eso hace que los profesores de Espaol como Lengua
Extranjera (en adelante, ELE) experimenten una realidad ambigua.
Por una parte, deben entender y aceptar el error como una mani-
festacin natural e inevitable de la interlengua del aprendiz. Por
otra, deben intervenir metodolgicamente para que su presencia
sea transitoria y su persistencia superada, a efectos de evitar la fo-
silizacin, fenmeno por el que el HNN tiende a conservar en su
IL [interlengua] formas, reglas y subsistemas errneos, de manera
recurrente y en estadios del aprendizaje en que estos esquemas
deberan estar superados. (SANTOS GARGALLO, 2008, p. 394)

Pese al loable reconocimiento del error como sntoma de


aprendizaje, avalado tanto por la Lingstica Aplicada como por la
Psicologa del Aprendizaje, el miedo de cometer errores al hablar en
espaol afecta a una gran parte de los aprendices, en la condicin
de profesores en formacin. Esto nos lleva a otra faceta del error
que ha sido poco considerada en la formacin del profesorado de
ELE: las emociones que lo acompaan antes, durante y despus de
hablar espaol y/o cometer errores al hacerlo.

Hechas estas consideraciones introductorias, podemos anunciar


el objetivo que perseguimos en este artculo: reflexionar sobre el
miedo de hablar que sienten los profesores de Espaol en Forma-
cin (en adelante, PEF), estrechamente vinculado con el miedo de
cometer errores.

estudos 45.indd 134 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 135

Qu es el miedo, cul es la gnesis del miedo de hablar y de


cometer errores y qu puede hacer el profesor de ELE para atenuar
el sufrimiento de los aprendices a la hora de expresarse oralmente
son algunas de las preguntas en torno a las que girarn las refle-
xiones que planteamos en este artculo. Para ello, adems de esta
introduccin, el texto se estructura en cuatro partes. En la primera,
haremos algunas consideraciones acerca de la investigacin que ha
dado origen a los datos discutidos en este artculo; en la segunda,
trataremos del miedo como lo que es, una emocin bsica y univer-
sal, que genera sensaciones desagradables y que trae en s, como
tendencia para la accin, el deseo de alejarse del objeto o situacin
que la desencaden, favoreciendo comportamientos estereotipados
por el buril de la naturaleza, que se resumen en tres acciones: huir,
esconderse o luchar. En la tercera parte, nos centraremos en la
comprensin del miedo de hablar en espaol como una extensin
del miedo de hablar en pblico (MHP), tan frecuente en el ambien-
te acadmico. En este contexto, trataremos del miedo de cometer
errores como un desencadenante del miedo de hablar. En el cuarto
apartado, a modo de conclusin, planteamos algunas situaciones
que pueden acentuar o atenuar el miedo de hablar que sienten los
aprendices.

El componente emocional en la formacin docente

El inters en investigar el componente emocional en la forma-


cin del profesorado surgi a raz de nuestra experiencia como
alumna y, posteriormente, como profesora de ELE. A lo largo de
esos aos, hemos acompaado el surgimiento, a veces repentino,
de intensas historias emocionalmente marcadas, unas redundaban

estudos 45.indd 135 26/05/14 14:55


136 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

en amor, aceptacin, pasin, gustatividad2, otras, en odio, aver-


sin, rechazo, disgusto hacia la lengua, la asignatura, el profesor,
el (futuro) ejercicio de la docencia. Reacciones teidas de miedo,
ansiedad, tristeza, alegra, sorpresa, vergenza, temor, hostilidad,
rabia eran frecuentes y su curso, imprevisible. Observbamos tam-
bin como un comentario, una mirada, un gesto, un suspenso, una
correccin tenan el poder de transformar las interrelaciones entre
profesor-alumno-lengua-metodologa para mejor o para peor. Los
profesores en formacin parecan muy susceptibles emocionalmen-
te y eso pareca intensificarse cuando se trataba de la correccin de
los errores segn qu, cundo y, sobre todo, cmo se les correga.

El deseo de entender esa susceptibilidad emocional fue uno de


los factores que nos motivaron a investigar, durante el doctorado,
el impacto del componente emocional en la formacin inicial del
profesorado de ELE. Pretendamos averiguar cmo los sujetos
participantes, en su mayora profesores en formacin, perciban
la influencia de las emociones y sentimientos en el aula de ELE
durante la carrera, con el objeto de evaluar el alcance, la extensin
y profundidad de esa influencia.

Al concluir el doctorado y reasumir nuestro puesto de traba-


jo, transformamos nuestras aulas en escenarios permanentes de
investigacin sobre las reacciones emocionales en el proceso de

2 El trmino ha sido acuado y definido en nuestra investigacin como un


fenmeno afectivo, mencionado por los participantes para referirse a sus
experiencias de gusto, afinidad e identificacin hacia la lengua extranjera,
la carrera, la docencia, etc. Es un fenmeno de gran relevancia en la docencia,
ya sea como aprendices de ELE, ya sea como profesores en formacin o como
profesores formadores. Su presencia ejerce una influencia positiva en la relacin
cclica: profesor-enseanza-alumno-aprendizaje-lengua y su ausencia o negacin,
interfiere en las relaciones intra e interpersonales que se establecen entre los pares
del proceso de enseanza-aprendizaje de ELE. (ANDRADE NETA, 2011)

estudos 45.indd 136 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 137

enseanza-aprendizaje de ELE, con el propsito de continuar am-


pliando el corpus y profundizando los hallazgos de nuestra investi-
gacin anteriormente desarrollada. Por lo tanto, los datos que sern
presentados y discutidos en este texto provienen de dos fuentes:
predominantemente de nuestra investigacin doctoral (ANDRADE
NETA, 2011), pero, de forma complementar, aadiremos infor-
macin recientemente recogida de nuestras investigaciones que
estn en curso. Los dos estudios se han erigido sobre la base de los
mismos marcos tericos y metodolgicos, con alguna que otra ade-
cuacin requerida por el contexto. A continuacin, describiremos
brevemente la metodologa empleada en la primera investigacin,
ya que la segunda es una extensin de aquella.

Se trata de una investigacin de tipo educativa3, de orientacin


comprensiva, centrada en el alumnado (profesores en formacin),
de corte cualitativo, que se ha llevado a cabo en carcter de cuasi-
-participacin. Los 66 sujetos participantes, subdivididos en tres
categoras de informantes profesores de Espaol en formacin
(PEF), profesores de Espaol egresados (PEE) y profesores de
Espaol formadores de profesores (PEFP) fueron seleccionados
mediante la tcnica del muestreo por accesibilidad (SABARIEGO,
2004), todos ellos vinculados al escenario de la investigacin, la
carrera de Letras-Espaol de una universidad pblica del Estado
de Baha, en la condicin de alumno, ex alumno o profesor forma-
dor. Para la recogida de los datos, fueron utilizadas tres tcnicas
cualitativas: la observacin cuasi participativa (OCP), la entrevista
focalizada de grupo (EFG) y la entrevista individual (EI). Como
procedimiento de anlisis, fue utilizado un modelo simplificado

3 Para una revisin sobre la investigacin educativa, consltense, por ejemplo:


BISQUERRA (2004); GIMENO SACRISTN; PREZ GMEZ (2008); SANDN
(2003).

estudos 45.indd 137 26/05/14 14:55


138 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

del Anlisis de Contenido (GUERRA, 2008). La representatividad


y la generalizacin de los datos fueron garantizadas mediante la
aplicacin de los principios de diversidad y saturacin. (GUERRA,
2008; SABARIEGO; BISQUERRA, 2004)

Al evaluar las entrevistas grupales e individuales de los 66


sujetos participantes de ese estudio, todos ellos vinculados insti-
tucionalmente a la carrera de Letras-espaol de una universidad
pblica, nos ha impactado la centralidad que se atribuye al profesor
formador como el ms potente desencadenante de emociones en el
aula de ELE. Esa percepcin de nuestros entrevistados concuerda
con la relevancia que se ha atribuido al papel del profesor en el
aprendizaje humano (vase ORMROD, 2005), en la motivacin del
alumno (consltense BORUCHOVITCH; BZUNECK; GUIMARES,
2010; CALLEGARI, 2008; LORENZO, 2006, 2008; SPTIZER,
2005), en la eficacia de la enseanza y del aprendizaje de una LE
(revsese ALMEIDA FILHO, 2010) que podramos sintetizar con
estas palabras de Sptizer, en su intento de construir un puente entre
la neurociencia y la educacin:
La persona del profesor es el instrumento didctico ms poten-
te! No es el retroproyector, la pizarra, las copias ni la presenta-
cin en Power Point. Ninguno de estos medios, sino un maestro
entusiasmado por su materia, que de vez en cuando elogia a los
alumnos y que tal vez sea incluso capaz de mirarles con afecto,
se es el maestro que logra poner en marcha su sistema de gra-
tificacin4. (2005, p. 194)

4 Segn las investigaciones neurocientficas, el cerebro humano est diseado


para asegurar la repeticin de las actividades que sostienen la vida, mediante su
asociacin con el placer, la recompensa o la gratificacin. Segn Spitzer (2005,
p. 178), el sistema de gratificacin del cerebro utiliza la dopamina como sustancia
mensajera y se compone de dos sistema de neuronas y fibras nerviosas: el
mesolmbico que conduce a una secrecin de neuropptidos en el crtex frontal,
sustancias que tienen efectos similares a los opiceos y que hacen que nos sintamos

estudos 45.indd 138 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 139

Sptizer llama la atencin sobre el valor que se atribuye al entu-


siasmo del profesor como desencadenante de procesos motivacio-
nales en el alumno. Si consideramos la vinculacin entre motivacin
y emocin, podemos aadir que adems de los procesos motivacio-
nales, el entusiasmo del profesor que ya es una emocin desen-
cadena procesos emocionales en el alumno que pueden potenciar su
motivacin para aprender. Consecuentemente, ese autor defiende
que slo quien est realmente entusiasmado por su materia es
capaz tambin de ensearla. Recuerda an que el entusiasmo no
se finge, que uno debe estar realmente entusiasmado y slo as
existe la posibilidad de que como se dice normalmente salte
la chispa. Si la chispa no est ah, no puede saltar. (2005, p. 194)

An en relacin a los resultados de nuestra investigacin, otro


hallazgo que nos ha impresionado y que, conforme veremos ms
adelante, est estrechamente relacionado con el primero acerca
de la centralidad del papel del profesor en el aprendizaje y en la
motivacin del alumno, es la presencia constante y significativa
del miedo de hablar en espaol en el aula. Encontramos que ese
miedo es muy expresivo y que esta experiencia emocional intensa
se vincula estrechamente con otro miedo, el de cometer errores.
Esa combinacin entre el miedo de hablar espaol y el de cometer
errores al hacerlo puede llegar a ser paralizante e impeditiva de las
experiencias de aprendizaje, llevando al alumno a evitar expresarse
en la lengua extranjera.

bien y el sistema mesocortical, que presenta el mismo punto de partida del anterior,
pero hace que las fibras se dirijan directamente al crtex frontal, donde se libera
la dopamina. Esos sistemas de gratificacin, enfatiza el autor, desempean un
papel importante en los procesos de motivacin.

estudos 45.indd 139 26/05/14 14:55


140 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Las impresiones, percepciones y expresiones de los entrevista-


dos nos llevan a inferir que, para ellos, cometer errores en espaol
al hablar ni es natural ni deseable, cuando mucho, es aceptable
y comprensible en los semestres iniciales, tal y como podemos
apreciar en la reflexin que hace Carlota, una de las profesoras en
formacin que participaron de nuestra investigacin:
Lo peor que le puede pasar a uno es decir pongu creyendo que
dijo puso. Es el miedo de errar, sabes?, cometer un error de
conjugacin gravsimo [] En el octavo semestre tenemos que
errar lo mnimo, creo que errar mucho es inadmisible, creo que
en el primero, segundo, tercer semestre puede pasar. Entonces,
por el miedo de errar en espaol, estando en el octavo semestre,
uno acaba evitando hablar y evitando hablar en espaol. Enton-
ces, hala! Vamos a hablar en portugus. (Carlota, PEF-EFG1).
(ANDRADE NETA, 2011, p. 397)

A medida que avanzan en la carrera, los profesores de ELE en


formacin se vuelven ms susceptibles a la evaluacin de los pro-
fesores y compaeros, lo que incrementa el miedo de hablar que
trae emparejada la posibilidad de errar. Al sentirse ms o menos
incapaces de hablar sin cometer errores, pasan a evitar expresarse
oralmente en espaol en el aula, acudiendo predominantemente a
la lengua materna como lengua de comunicacin. Se establece en-
tonces un crculo vicioso, que tiene como emocin nuclear el miedo
y sus variantes (ansiedad, temor, recelo, terror, pavor, pnico, etc.),
representado en la figura 1.

En otras palabras, debido a los propios mecanismos de la emo-


cin, el miedo de hablar desencadenar automticamente pensa-
mientos y recuerdos concordantes con esa emocin, que la nutren
y potencian. Si se siente incapaz de afrontar la situacin con xito,
el aprendiz optar por una reaccin de evitacin de la experiencia
de hablar la lengua. A su vez, esa evitacin har que sus oportuni-

estudos 45.indd 140 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 141

Crculo emocional
vicioso

(Figura 1)


dades de aprender a hablar hablando (aprender a hacer haciendo)
sean desaprovechadas, lo que, a la larga, empobrecer el proceso de
aprendizaje, por la ausencia del ejercicio constante. Cuanto ms se
evita la exposicin, menos experiencia se adquiere y, posiblemente,
se reducen las posibilidades de aprender a expresarse en espaol,
lo que refuerza la inseguridad para hacerlo y desencadena otras
emociones de la familia del miedo, que alimentan todava ms el
miedo de hablar.

Si de un lado estn los aprendices temerosos en hablar, del otro,


se encuentra el profesor formador con la intencin de romper con
este crculo, aunque no sea consciente de ello, intentando hacerles
hablar en espaol, ya sea mediante actividades que estimulen la par-
ticipacin espontnea, ya sea mediante la imposicin. Dependiendo
de cmo conduzca el proceso al adentrar en este campo emocio-
nalmente minado, el profesor podr colaborar para minimizar el
sufrimiento de los aprendices o, en el sentido contrario, acentuarlo,
y comnmente lo hace sin tener conciencia de ello.

estudos 45.indd 141 26/05/14 14:55


142 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

El miedo como emocin

Para entender el miedo de errar y el miedo de hablar es nece-


sario comprender, en primer lugar, qu es el miedo. Inicialmente,
hemos de ubicarlo en el marco de las investigaciones de la psicologa
(EKMAN, 1980, 2009, 2011); LAZARUS; LAZARUS, 2000) y de la
neurociencia (DAMASIO, 1996, 2000, 2004, 2010; LeDOUX, 2001)
como una emocin bsica o universal que disfruta del estatus de ser
la ms estudiada. De acuerdo con estos planteamientos tericos,
provenientes de las dos principales tendencias en la investigacin
de la emocin, la cognitivista y la biologicista, la emocin puede ser
definida satisfactoriamente como un conjunto de
Reacciones complejas en las que se ven mezcladas tanto la mente
como el cuerpo. Estas reacciones comprenden: un estado mental
subjetivo, como el sentimiento de enojo, ansiedad o amor; un
impulso a actuar, como huir o atacar, tanto si se expresa abier-
tamente como si no; y profundos cambios corporales, como un
ritmo cardaco ms acelerado o una presin arterial ms eleva-
da. Algunos de estos cambios corporales preparan y sostienen
las acciones de afrontamiento y otros, como posturas, gestos y
expresiones faciales, comunican a los dems lo que sentimos,
o lo que queremos que piensen que sentimos. (LAZARUS; LA-
ZARUS, 2000, p. 195-196)

Conforme se explicita en esta definicin, las emociones son


reacciones complejas. Al ser reacciones, son provocadas por algo.
Este algo puede ser denominado, entre otras posibilidades, de
estmulo emocionalmente competente (EEC), segn la terminolo-
ga adoptada en la teora de Antonio Damasio (1996, 2000, 2004,
2010), de gatillo, como prefiere Paul Ekman (2007, 2009, 2011) o
provocacin, expresin adoptada por Lazarus y Lazarus (2000).
Esas expresiones, que utilizaremos de forma alternada, hacen refe-
rencia a aquel objeto o acontecimiento que desencadena la emocin.

estudos 45.indd 142 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 143

Es decir, las emociones se ponen en marcha cuando sentimos, sea


de forma justificada o por engao, que algo que podra afectar de
forma significativa a nuestro bienestar, para bien o para mal, est
ocurriendo o a punto de acontecer. Al desencadenarse, ellas nos
preparan para lidiar de forma rpida con ese algo, que compone
los eventos esenciales de nuestra vida. Pero, una vez que se pone
en marcha, la emocin se aduea de nosotros, asumiendo el co-
mando de lo que hacemos, decimos y pensamos (EKMAN, 2011).
Eso significa que, siempre que experimentamos una emocin, ello
nos indica que nos ha ocurrido algo de importancia personal. Lo
ocurrido se ve como daino, amenazador o beneficioso (LAZA-
RUS; LAZARUS, 2000, p. 17). Lo que se percibe como daino o
amenazador, desencadenar emociones negativas, marcadas por
la ausencia de placer y por la presencia de algn grado de dolor,
generadoras de sensaciones percibidas como desagradables. En
el sentido contrario, lo que se percibe como beneficioso originar
emociones positivas, caracterizadas por la ausencia de dolor y por
la presencia del placer, acompaadas de sensaciones agradables.

A pesar de que las emociones, cuando son proporcionales, jus-


tificadas y adecuadas a la situacin desencadenante, desempean
una funcin positiva en el mantenimiento de la vida, stas pueden
perjudicarnos, ya sea por el impacto que produce en nuestro cuerpo
y en nuestra mente, en funcin de los profundos cambios corpo-
rales (internos y externos, unos ms visibles, audibles y medibles;
otros, menos) y mentales que las acompaan, sea por las acciones
inadaptadas que podemos emprender al calor de la emocin.

En otras palabras, decimos, al amparo de la teora damasiana,


que lo que hace que una emocin sea clasificada como positiva
(alegra, sorpresa, amor) o negativa (tristeza, miedo, ira, asco) no
est relacionado con su utilidad o eficacia, sino con el estado de

estudos 45.indd 143 26/05/14 14:55


144 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

fluidez o tensin de los procesos vitales que la emocin produce


en el cuerpo y en la mente. El miedo, por ejemplo, cuando es fruto
de una evaluacin correcta, ser una emocin ventajosa, porque
nos ayuda en la preservacin de la vida. Sin embargo, debido a la
tensin que causa en el organismo, colocndolo en total estado de
alerta, se considera como una emocin negativa.

Paralelamente al impacto de las emociones en el cuerpo, hemos


de considerar su impacto en la cognicin. Los recursos cognitivos
como la atencin y la memoria sufren alteraciones significativas
durante un episodio emocional, que pueden favorecer (en el caso
de emociones positivas) o ralentizar (como en el caso de las emo-
ciones negativas) el procesamiento cognitivo. Conforme explicita
Damasio (2010, p. 177), a medida que una emocin se desarrolla,
ciertos estilos de procesamiento mental son instituidos de inmedia-
to. En ese sentido, tomando como ejemplo la tristeza y la alegra,
tendramos que la primera, ralentiza el pensamiento, mientras que
la alegra puede acelerarlo.

Tras revisar una serie de hallazgos cientficos, Sptizer (2002,


p. 164) concluye que, en el caso del miedo, el estilo cognitivo que
se establece tiende a facilitar la ejecucin de rutinas simples apren-
didas, pero dificulta la asociacin libre, la creatividad. Es decir, la
ausencia de miedo hace que los pensamientos sean ms libres, ms
abiertos y ms amplios.

En los planteamientos tericos del bilogo Humberto Maturana,


toda emocin nos pone en un dominio de accin que le es caracte-
rstico, constituyendo un espacio relacional donde se puede esperar
ciertas acciones, pero otras no. En un rico e interesante dilogo que
l entabla con la investigadora de la emocin, Susana Bloch, en
una obra de autora compartida entre los dos, Maturana describe
el dominio de acciones del miedo en los siguientes trminos:

estudos 45.indd 144 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 145

Estoy en el miedo: me retiro, me escondo, cualquiera que sea


la situacin en que me encuentre; reacciono fcilmente como si
fuese atacado y escapo; me achico, me disminuyo; si puedo, me
desplazo hacia donde no sea visto; puede que no quiera estar solo
y que sea una compaa intranquila frente a las situaciones que
me parecen amenazantes; reacciono la mayora de las veces con
la atencin puesta en un supuesto peligro y con ceguera ante mi
entorno; mi lgica argumentativa es impecable, pero los funda-
mentos de mis argumentos estn asociados a la desconfianza.
(MATURANA; BLOCH, 2000, p. 205)

Esta primorosa descripcin de Maturana resume el estado


mento-corporal y comportamental de alguien que se encuentra en
un estado de miedo. Cuando el aula de ELE se convierte en una
amenaza para el aprendiz, frente a la posibilidad de tener que hablar
y exponer pblicamente sus errores, se reducen significativamente
las posibilidades de aprendizaje de la lengua y aumentan las posi-
bilidades de que se desencadenen conflictos intra-interpersonales
e interrelacionales.

Todo ello nos conduce a una constatacin lgica, la misma que


el poeta y cantautor Vinicius de Moraes ya haba intuido y plasmado
en versos cargados de veracidad, al decir que es mejor ser alegre
que ser triste, la alegra es la mejor cosa que existe, es as como luz
en el corazn. Por otras vas y en otro contexto, Damasio llega a
la misma conclusin:
La neurobiologa de la emocin y el sentimiento nos dice, de
manera sugerente, que la alegra y sus variantes son preferibles
a la pena y los afectos asociados, y que son ms favorables para
la salud y el florecimiento creativo de nuestro ser. Hemos de
buscar la alegra, por mandato razonado, con independencia
de lo disparatado que pueda parecer dicha bsqueda. (2006,
p. 250-251)

estudos 45.indd 145 26/05/14 14:55


146 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

En lo que atae a los procesos de enseanza-aprendizaje, Spitzer


(2005) infiere de todo ello que el aprendizaje debe trabajar con
emociones positivas (p. 172). Por eso, es importante saber que
se aprende siempre y cuando se realizan experiencias positivas.
Aclara tambin que las experiencias positivas, para el ser humano,
se refieren principalmente a contactos sociales positivos (p. 181).
Esa idea nos ayuda a entender por qu los aprendices de ELE nutren
tanto miedo de hablar en espaol y de cometer errores al hacerlo.

Pero, mientras no hayamos conquistado ese estado ideal en


el que predominen las emociones positivas en el aula, debemos
empearnos en entender las negativas, su curso, su incidencia en
el proceso de enseanza-aprendizaje y cmo afrontarlas con inte-
ligencia. En la secuencia, prestamos nuestra modesta contribucin
al entendimiento del miedo como emocin en el aula de ELE y de
dos de sus desencadenantes (EEC) en el contexto de la formacin
inicial del profesorado: hablar en espaol y cometer errores. Para
lograr ese objetivo, cederemos la voz y la vez a algunos de los parti-
cipantes de las investigaciones que sirven de base para este artculo.

El miedo de hablar de Victoria y la victoria del miedo de


hablar

Toda emocin tiene lo que Lazarus y Lazarus (2000) llaman de


una trama argumental, o sea, unas pautas caractersticas que son
fcilmente reconocibles, independientemente de quin est expe-
rimentando la emocin. La trama define nuestras creencias acerca
de lo que est desencadenando la emocin as como su significado
para nuestro bienestar. Siguiendo a estos autores, la trama argu-
mental del miedo es el hecho de enfrentarnos a un peligro concreto
y repentino a nuestro bienestar fsico, lo que significa la perspectiva
inmediata de dao o muerte sbita (LAZARUS; LAZARUS, 2000,

estudos 45.indd 146 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 147

p. 74). Dicho de otro modo y ampliando un poco ms el alcance de


esa trama, podemos decir que, en el hombre, el miedo es una emo-
cin que se desencadena cuando sentimos, percibimos o creemos
que estamos ante una amenaza de dao fsico o psicolgico. Esta
es la causa del miedo. Si empleramos los criterios filosficos de
necesidad y suficiencia, encontraramos que para que el miedo se
desencadene, es necesario que haya una percepcin (consciente o
no) de peligro o amenaza de dao fsico o psicolgico. Por otra parte,
el hecho de que el miedo se haya desencadenado es suficiente para
afirmar que la persona se siente amenazada o en peligro.

El hecho de que las emociones sean opacas (EKMAN, 2011)


hace que confundamos la causa (en el caso del miedo, la percepcin
de peligro o amenaza de dao) con el elemento desencadenante
(aquello que nos pone en peligro o nos amenaza, el gatillo que
dispara la emocin). Mientras que la causa del miedo es universal,
sus desencadenantes, o sea, lo que hace que sintamos miedo, puede
variar hasta el infinito. Parafraseando al grupo Tits, podramos
preguntar de qu tienes miedo? Las respuestas pondran de relieve
que hay algunos desencadenantes del miedo que son innatos, pero
la mayora de las cosas que nos amedrenta son fruto de un aprendi-
zaje que se produce por condicionamiento, en funcin de nuestras
experiencias personales y colectivas, individuales y sociales. Segn
LeDoux (1998), esa capacidad de formar memorias inmediatas de
estmulos asociados al peligro, mantenerlas por mucho tiempo y
utilizarlas de forma automtica cuando nos deparemos en situa-
ciones semejantes, es un lujo que tiene su precio, porque hace que
desarrollemos miedos y ansiedades que podramos ignorar. Al
final, debido a ese primoroso mecanismo mnemnico, acabamos
teniendo ms miedos de los que efectivamente necesitamos para so-
brevivir. Para muchos alumnos, el aula de ELE es un espacio donde

estudos 45.indd 147 26/05/14 14:55


148 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

se producen a diario encuentros de supervivencia con predadores


sociales, de ah la constante presencia del miedo en este ambiente.

Para ofrecer un ejemplo aplicado de lo que hemos estado tra-


tando hasta el momento acerca del miedo como emocin, vamos a
rememorar la experiencia de Victoria, una profesora en formacin
que se encontraba en el penltimo semestre de la carrera de Letras-
-Espaol cuando particip en nuestra investigacin, colaborando
tanto en la entrevista focalizada de grupo (EFG) como en la entre-
vista individual (EI).

Victoria nos cont cmo una experiencia, ocurrida en los dos


primeros semestres, le marc emocionalmente de forma negativa.
Se refiri, ms precisamente, a la metodologa utilizada por la
profesora para la correccin de los errores de los alumnos, que
consista en tomar nota en la pizarra de todos (es enftica al refe-
rirse a todos) los errores que los alumnos haban cometido durante
alguna actividad de expresin oral y todos tenan que pagar una
prenda, como por ejemplo, cantar una cancin, recitar un poema.
A continuacin, transcribimos algunos fragmentos de su EI.
Entrevistadora: Podras rescatar un poco de esa experiencia
que te marc?
Victoria: Fue durante una presentacin [oral de un trabajo] y
las palabras en las que nos equivocbamos, todas las palabras,
eran anotadas [por la profesora] en la pizarra. De ah, cuando
terminbamos la presentacin, ella [la profesora] las deca y las
escriba en la pizarra. Todos los compaeros se rean
Entrevistadora: Ella deca slo los errores en general o
tambin el nombre de los alumnos que los haban cometido?
Victoria: Ella escriba en la pizarra el nombre y los errores
y elega aquello que tendramos que traer en la prxima clase
para pagar y tambin ramos obligados a hablar espaol en el
aula siempre, porque cuando ella se daba cuenta de que estba-
mos hablando portugus tambin nos haca pagar una prenda.

estudos 45.indd 148 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 149

ramos castigados tambin por eso. [Al recordar los hechos,



Victoria empieza a llorar, solicita una pausa. Le concedemos
un tiempo con la grabadora apagada y le recordamos que puede
interrumpir la entrevista. Pero, en cuanto se siente ms calmada,
dice que quiere continuar].
Victoria: Cuando [como] esta entrevista, sobre afectividad,
implica el sentimiento, siempre hay una pregunta que acaba
tocando un punto que nos emociona, pero vamos a continuar
Entrevistadora: Estbamos hablando de cmo te marc
emocionalmente el tratamiento que una profesora haba dado
a tus errores en el aula. Cmo te sentas en esos momentos?
Victoria: Ah, yo pensaba, qu es lo que estoy haciendo aqu
si no s nada, si soy castigada? Estoy aqu para aprender, por
qu estoy intentando aprender, estoy intentando acertar y
soy castigada por ello. Entonces me quedaba pensando, qu
hago aqu si estoy aqu para aprender? Me senta psima, tena
miedo de hablar
Entrevistadora: Tenas miedo de hablar espaol en el aula?
Victoria: S, porque a veces ella [la profesora] haca alguna
pregunta ya no slo ella, otros profesores de las otras reas
tambin hacen una pregunta y yo s [contestarla] porque
estudio mucho. Entonces siempre lo s, pero tengo miedo de
contestar, a veces yo contesto, hablando con mi compaera de
al lado y ella responde [a la profesora] y est correcta.
(ANDRADE NETA, 2011, p. 384)

Lazarus y Lazarus proponen tambin que todas las emociones


tienen una psico-lgica implacable, que consiste en lo siguiente:
Queremos algo y, como su logro no est asegurado, hacemos
intentos por conseguirlo. Si tenemos xito o hacemos un buen
avance hacia aquello que queremos, experimentamos una emo-
cin positiva; nos hemos beneficiado. Si no lo conseguimos, ex-
perimentamos una emocin negativa; hemos sido perjudicados.
Si no hay un objetivo importante en juego, no habr emocin;
no existe ni beneficio ni perjuicio. (2000, p. 275-276).

estudos 45.indd 149 26/05/14 14:55


150 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Analizando el ejemplo anterior a la luz de esa psico-lgica,


verificaremos que el algo que Victoria anhela es aprender la len-
gua extranjera y, para ello, emprende algunos esfuerzos, como
someterse a la selectividad. Una vez que aprueba y se encuentra
en el aula de ELE, emprende otros esfuerzos, como sus intentos de
acertar las actividades que se le proponen, incluido el esfuerzo de
expresarse en espaol en una etapa tan incipiente de su formacin
lingstico-comunicativa, ya que los hechos relatados tuvieron
lugar en el primer semestre. Al hablar, ella comete errores y, como
retroalimentacin, recibe de la profesora lo que ella interpreta como
un castigo. Eso hace que no se sienta beneficiada, sino perjudicada.
Como consecuencia, experimenta emociones negativas. La meto-
dologa de correccin utilizada por la profesora hace que se sienta
doblemente expuesta. Por un lado, a las crticas de la profesora, al
divulgar pblicamente los errores y hacerle pagar por ellos y, por
otro, se siente expuesta a las crticas de sus compaeros que se
burlan de la situacin. En otro punto de la entrevista, Victoria lo
expresa con mayor claridad al explicar que:
Uno se expone en el aula. Siempre que vamos a presentar un
trabajo nos exponemos. Los compaeros ya se quedan con la
expectativa de que siempre pase lo mismo, que uno se confunda,
se olvide una palabra y como todo es comandado por la mente,
al final, eso acaba ocurriendo [] (Victoria, PEF-EI) (ANDRADE
NETA, 2011, p. 380)

Como se ve claramente en la experiencia de Victoria, lo que se


juega en el contexto acadmico al hablar en espaol y al cometer
errores no es la vida fsica, sino la imagen positiva que uno tiene
de s mismo y la que quiere que sus compaeros y profesores
valoren. Para Victoria, el hecho de sentirse expuesta y percibirse

estudos 45.indd 150 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 151

como objeto de burla equivale a una amenaza a su autoconcepto5 y


a su autoestima, lo que la lleva a cuestionarse qu es lo que estoy
haciendo aqu?, seguida de la conclusin si no s nada, si soy
castigada? Estoy aqu para aprender, por qu estoy inten-
tando aprender, estoy intentando acertar y soy castigada
por ello. Esta conclusin indica, por un lado, la evaluacin que
ella misma hace acerca del fracaso de los esfuerzos emprendidos
para alcanzar su meta (aprender la lengua) y, por otro, su deseo
de alejarse del objeto desencadenante de su malestar emocional.

Al indagar al respecto de sus sentimientos, lo que primero emer-


ge de sus recuerdos son los pensamientos desencadenados durante
la experiencia emocional, seguido de una expresin poco precisa
(psima) para etiquetar sus emociones. Empero su declaracin
no deja duda de que el estado emocional experimentado estuvo
marcado por la presencia del dolor y la ausencia del placer, carac-
terstico de las emociones negativas. El estmulo emocionalmente
competente de esa experiencia, identificado por Victoria, consista
en la forma en cmo la profesora lidiaba con sus errores al hablar
en espaol, y la experiencia fue lo bastante significativa como para
quedar registrada en la memoria de la alumna como algo daino,
peligroso, amenazante. Eso hace que siempre que ella vuelva a en-
contrarse en una situacin similar de tener que hablar en espaol

5 En la prctica, es difcil distinguir entre autoestima y autoconcepto, puesto


que hay una estrecha relacin entre ellos. De acuerdo con Cava y Musitu (2000,
p. 17), se suele considerar, en la investigacin en psicologa, que el autoconcepto se
compone de tres dimensiones: la cognitiva, la afectiva y la conductual. La afectiva o
evaluativa, corresponde a la autoestima. Es decir, el trmino autoconcepto remite a
las autodescripciones abstractas que no implican necesariamente juicios de valor,
mientras que el trmino autoestima s incluye necesariamente una valoracin, y
expresa el concepto que uno tiene de s mismo. En este sentido, la autoestima es
una de las dimensiones del autoconcepto.

estudos 45.indd 151 26/05/14 14:55


152 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

en pblico, con la alta probabilidad de cometer errores al hacerlo,


se encienda la alarma emocional, que acciona el miedo u otra
emocin de esta familia, ante el temor de repetirse la experiencia
dolorosa. Posiblemente, la experiencia con la profesora se junt a
otras del mismo patrn vividas durante la infancia y la adolescencia,
agudizando todava ms su miedo de hablar, de cometer errores y
sentirse castigada. La magnitud de esta experiencia desencaden,
en esta profesora en formacin, una especie de aversin hacia el
espaol, que era su principal meta al ingresar en Letras, instaln-
dose un conflicto del que ni ella, ni muchas personas que viven
experiencias semejantes, era consciente. En otro momento de la
entrevista, ella revela:
Siempre me ha gustado el espaol, incluso, cuando intent el
Vestibular por primera vez, fue para Letras, pero no consegu
aprobar. Despus, lo intent nuevamente para Letras, a causa
del Espaol. Pero cuando llegu aqu, me desencant debido a
los profesores, no era aquello que yo estaba pensando [] En-
tonces, fui desencantndome,desencantndome, me enamor
de otra rea, la literatura [] Ya no me gusta el espaol, [] ya
he desistido del espaol (Victoria, PEF-EI). (ANDRADE NETA,
2011, p. 296)

El anlisis integral de las entrevistas de Victoria nos llev a


constatar la existencia de un conflicto del tipo acercamiento-aleja-
miento, descrito por Kurt Lewin (1973) en sus investigaciones con
nios. Es decir, el verse en el enfrentamiento con algo (el espaol)
que posee una valencia positiva y negativa a la vez. Por un lado,
quisiera aprender la lengua, pero le atemoriza la posibilidad de
cometer errores y sentirse nuevamente castigada o fortalecer su
sentimiento de incapacidad. En las entrevistas, su rechazo hacia
el espaol, explicitado en esta ltima declaracin, se manifiesta en
los momentos en los que recuerda la experiencia anterior que ella
misma tach como lo peor que le ocurri durante la carrera: eso

estudos 45.indd 152 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 153

para m ha sido lo peor: ser castigada por estar hablando errado. Sin
embargo, al recordar las experiencias ms cercanas a su presente,
que han estado marcadas predominantemente por emociones po-
sitivas, vuelve a aflorar la gustatividad por el espaol que le haba
conducido a elegir Letras. Al preguntarle acerca de sus emociones
y sentimientos durante las actuales clases de ELE, su entusiasmo
era notable: ah, ahora me siento bien, he pensado incluso en in-
tentar hacer un curso al salir de aqu, de conversacin, que es mi
problema, quiero aprender [a hablar espaol] y estoy pensando en
hacer otros cursos de espaol, perfeccionar el espaol (ANDRADE
NETA, 2011, p. 298). Como se puede constatar, esta afirmacin
no corrobora su declaracin anterior, de que ya haba desistido
de aprender la lengua y que ya no le gustaba estudiarla. Al salir
del dominio de acciones establecido por las emociones negativas,
Victoria entra en otro dominio, marcado por emociones positivas,
lo que le permite rescatar la gustatividad por la lengua.

En sus investigaciones sobre el conflicto de tipo acercamiento-


-alejamiento, Kurt Lewin (1973) constat que cuando los intentos de
superacin de las barreras (en el caso de Victoria sera la dificultad,
el miedo de hablar) que suponen un obstculo a la consecucin de
una meta (aprender la lengua) redundan en un dao personal (el
haberse sentido castigada por cometer errores, sentirse incapaz) o
en un fracaso, la barrera adquiere una valencia negativa y la intensi-
dad de ese vector negativo tiende a incrementarse y termina siendo
ms intenso que el positivo (en su caso, era el deseo de aprender
la lengua). Cuando eso ocurre, los sujetos tienden a abandonar el
campo, ya sea fsica o mentalmente. El abandono del campo
de Victoria se manifest dirigiendo su inters hacia otra rea, la
literatura. Ese estado conflictivo, en el que el mismo objeto (para
Victoria, la lengua espaola) desencadena emociones contrarias,
fue denominado por el filsofo Spinoza, en su tratado de tica,

estudos 45.indd 153 26/05/14 14:55


154 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

fluctuacin del nimo. La persona desea acercarse al objeto por


un motivo y, a la vez, alejarse de l, por otras motivaciones. Victo-
ria quiere acercarse al espaol, porque le gusta la lengua y quiere
aprenderla. Pero, a la vez, intenta alejarse de esa experiencia que,
en ocasiones, le hace sufrir.

El miedo de hablar en espaol es ms comn de lo que nos


gustara. Pero, a mi modo de ver, esta clase de miedo no es exclu-
siva de ese contexto, sino ms bien una extensin o variedad del
miedo de hablar en pblico (MHP), investigado en el mbito de las
fobias sociales (GRAY, 1993). El MHP es una dificultad que afecta
a un buen porcentaje de la personas en general y, en especial, de
los estudiantes universitarios, quienes, frecuentemente, se ven
ante la necesidad de tener que expresarse pblicamente en las ms
diversificadas situaciones: interactuar en el aula, opinar, mostrar
desacuerdo, hacer preguntas, solicitar aclaraciones, exponer un
trabajo, hacer una evaluacin oral, participar en un debate, defender
sus puntos de vista en una reunin o asamblea, etc.

Recientemente, hemos estado recogiendo ms datos junto a los


alumnos del quinto semestre de Espaol, como parte de nuestras
investigaciones en el aula, con el propsito de ampliar el corpus de
la investigacin doctoral. Un anlisis previo de los ltimos datos
obtenidos nos ha permitido elucidar algunos aspectos que el cor-
pus anterior sugera, pero no explicitaba. Hemos observado, por
ejemplo, que el miedo de hablar en la lengua materna (portugus)
y el miedo de hablar en la lengua extranjera (espaol) se pueden
producir en tres circunstancias distintas:
a) El miedo de hablar en pblico puede ser generalizado, indepen-
diente de si se habla en espaol o en portugus:
Tengo miedo de hablar en portugus y en espaol, pues no me
gusta que las personas me miren cuando estoy hablando. Cuando
voy a hablar en pblico, mi voz baja, las personas casi no me escu-

estudos 45.indd 154 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 155

chan, me pongo nerviosa, aunque est segura de lo que voy a decir


(Nina, PEF).
b) El miedo de hablar en espaol es manifiesto, pero no se percibe
su desencadenamiento cuando se habla en portugus:
Por supuesto que no tengo miedo de hablar en portugus [] Pero,
cuando tengo que hablar en espaol, Dios mo! Parece que se me
acerca la muerte. [] No me acuerdo de todas las palabras, tengo
miedo de cometer errores y a que mi profesor piense que no soy
competente (Susana, PEF).
c) El miedo de hablar en espaol puede ser menor que el de hablar
en portugus:
Es algo raro, pero creo que me siento menos avergonzada cuando
hablo en espaol. Es que a pesar de ser una lengua extranjera y de
que yo no sepa casi nada, me gusta mucho practicarla. Mi senti-
miento hacia ella, as como mis ganas de aprenderla, hacen que mi
timidez disminuya (Jimena, PEF).

En base al anlisis de los dos corpus, el ms reciente y el de la


investigacin doctoral, constatamos que el miedo de hablar en es-
paol como una extensin del miedo de hablar en pblico (tem a)
parece ser el tipo ms comn. Pero, aunque el segundo sea una
variante del primero, el miedo de hablar en espaol suele ser un
agravante del miedo de hablar en pblico, porque incrementa los
temores tpicos del MHP, como el temor a ser criticado, rechazado,
evaluado negativamente, a ser visto como inferior, incapaz, incom-
petente, aburrido y aumenta la probabilidad de quedar en ridculo
ya sea por cometer errores o ya sea por no recordar lo estudiado.
En el corpus en construccin, algunos de esos temores se explicitan
con mayor claridad:
Tengo algunas dificultades, por eso, tengo miedo de hablar en
espaol. Me quedo nerviosa y me preocupo por lo que los otros
van a pensar (Candela, PEF).

estudos 45.indd 155 26/05/14 14:55


156 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Cuando tengo que hablar en espaol, tengo miedo por si estoy


hablando con la pronunciacin correcta y la concordancia ade-
cuada. Tambin me preocupo por hablar de manera natural,
sin parecer algo forzado y extrao. Creo que me pasa eso por
el miedo de parecer ridcula, incompetente o que las personas
piensen que no me dedico lo suficiente para aprender esta lengua
(Valentina, PEF).

Soy una persona que tiene pnico de hablar en pblico, pero


hay situaciones en que eso es inevitable. En el aula de ELE, me
veo en situaciones de gran afliccin [] Considero que ciertos
pensamientos sobre determinado tema son relevantes, pero evito
exponer mis ideas y participacin en el aula, debido al siguiente
pensamiento: qu estarn pensando de m? ser importante
lo que estoy diciendo? (Martina, PEF)

Todo ese estado de temeridad (al qu pensarn, al ridculo, a ser


visto como incompetente, a ser aburrido) manifestado por nuestros
participantes hace que se multipliquen los pensamientos negativos
del MHP que, a su vez, alimentan el crculo emocional vicioso,
pues tales pensamientos acompaados de emociones del grupo del
miedo incidirn sobre la memoria y la capacidad de concentracin,
dificultando la consecucin de las tareas cognitivas.

Si hablar en pblico en lengua materna produce miedo, hacerlo


en espaol duplica la sensacin de vulnerabilidad, puesto que conl-
leva un doble esfuerzo: el de pensar y expresar una idea o exponer
un contenido especfico y el de hacerlo con un vehculo lingstico
inestable (ARNOLD; BROWN, 2000, p. 26), como es la interlengua
de los aprendices. La situacin se vuelve an ms aflictiva porque
el alumno sabe que est constantemente siendo evaluado por el
profesor y se siente muy expuesto a las crticas de los compaeros.
Creo que entiendo mejor que hablo en espaol, y eso es una di-
ficultad. No me gusta hablar en pblico y en lenguas extranjeras
es todava peor, por ms que me gusta el espaol. [] Siento

estudos 45.indd 156 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 157

mucha vergenza, parece que todo el mundo me est viendo


cuando hablamos no percibimos los errores, no? entonces,
parece que todo el mundo est percibiendo que he dicho alguna
cosa errada que slo yo no percibo, me entiendes? [] Es muy
difcil pensar que vamos a errar y que alguien nos va a indicar
el error y eso nos va a hacer crecer, sabes? [] No tenemos
miedo a presentar un trabajo a causa de la crtica? Ahora, piensa
en lo que supone presentar un trabajo en lengua extranjera. La
crtica es doble: la del contenido y la de la forma como hablamos
(Beatriz, PEF-EI). (ANDRADE NETA, 2011, p. 380)

Hablar en otra lengua es algo que requiere de la persona mucha


habilidad. [] Siempre quiero seguir la regla que el profesor dijo
que tena que seguir, pero parece que la timidez habla ms fuerte
y me quedo en blanco, me pongo nerviosa, temblando por dentro
y las palabras desaparecen. El miedo de cometer errores tambi-
n contribuye para el miedo de hablar en espaol (Ma, PEF).

A m realmente me entra el pnico, no consigo recordar ni cmo


se dice yo. [] No se trata ni de que yo no sepa, a veces s lo
que quiero decir, pero tengo miedo de hablar, empiezo a tarta-
mudear, a hablarlo todo errado. (Loli, PEF-EFG 1) (ANDRADE
NETA, 2011, p. 397)

Todas esas declaraciones que hemos estado citando ponen de


relieve el conflicto de acercamiento-alejamiento en el que se en-
cuentran nuestros alumnos de espaol, profesores en formacin,
ante la posibilidad de hablar en la lengua que estn estudiando.
Por un lado, nutren el deseo de aprenderla y eso les hace buscar el
acercamiento, pero, por otro, les puede el miedo de fracasar en esta
empresa. Cuando nos referimos a fracaso, no solo queremos repor-
tarnos a no obtener xito cuantitativo en trminos de un aprobado
o un suspenso, que figurar en sus certificaciones acadmicas. Nos
referimos, tambin y principalmente, al fracaso personal (en sus
dimensiones intelectual, social y emocional) y a su impacto en la
autoestima y en el autoconcepto del aprendiz. No podemos ignorar

estudos 45.indd 157 26/05/14 14:55


158 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

que salir exitoso de una situacin de exposicin oral pblica, conl-


leva algunas ventajas sociales, como tener prestigio entre los com-
paeros y con el profesor, sentirse aprobado, aceptado y admirado.

El miedo de cometer errores aparece estrechamente relacionado


con el miedo de hablar en espaol, precisamente porque los errores
son, desde la percepcin de los aprendices, un termmetro de su
capacidad de aprender la lengua. En otras asignaturas del currculo
se puede disimular mejor cuando el contenido no ha sido asimila-
do, pero en una lengua extranjera, eso es casi imposible, al menos
cuando se trata de utilizarla como medio de comunicacin oral.
Los alumnos se debaten entre el deseo de hablar con correccin,
espontaneidad, naturalidad, fluidez, seguridad, facilidad, dominio
y tranquilidad y la frustracin de no estar an en condiciones de
hacerlo. Veamos una muestra de ello:
A veces, tengo tanto deseo de hablar, de hablar como una persona
que tiene facilidad y dominio, pero cuando empiezo a hablar, es
una desgracia. Me siento con tanto miedo que nada fluye como
quiero (Susana, PEF).

Nosotros tenemos miedo de hablar en espaol antes incluso de


abrir la boca. El miedo de errar es ms grande y antes de expresar
nuestro pensamiento, ya nos corregimos (Martina, PEF).

No me gusta hablar en espaol porque me quedo nerviosa, me


siento insegura, siempre creo que estoy cometiendo errores.
Siento miedo y vergenza de errar en el aula, porque aparento
que no he estudiado lo bastante (Marisa, PEF).

Se puede constatar en las declaraciones citadas a lo largo de


este texto, que el miedo es la emocin nuclear que la experiencia
de hablar en espaol desencadena en los profesores en formacin
que participaron de nuestra investigacin. Sin embargo, ese miedo
nunca viene solo, siempre se hace acompaar de otras emociones,

estudos 45.indd 158 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 159

especialmente con la vergenza, la inseguridad y la timidez. Hemos


encontrado referencia a otros procesos menos intensos, como el
recelo, el temor, la ansiedad, la angustia, la frustracin, la inhibi-
cin, la rabia y la culpa y a otros ms intensos como la afliccin, la
desesperacin y el pnico.

Cuando el miedo de hablar espaol no es superado por el deseo


y la voluntad deliberada de aprender la lengua, el aprendiz termina
por abandonar sus metas iniciales, mediante reacciones de evita-
cin. Puede llegar a aprobar todas las asignaturas del currculo,
graduarse e, incluso, ejercer la docencia en el rea, pero seguir
sin (saber) hablar espaol. Cuando est impartiendo clases, se
comunicar a travs de la lengua materna. Si le preguntan por qu
no habla en espaol, podr presentar las ms convincentes excusas
para disimular su miedo de hacerlo. Si eso llegara a ocurrir, ten-
dramos la victoria del miedo. Solo con coraje se le puede vencer,
como sugiere Jimena: El miedo de hablar siempre lo he tenido y
todava lo tengo. Pero, el coraje de arriesgarme es mayor porque s
que solo de esa manera puedo aprender de verdad (Jimena, PEF).

En cuanto al miedo de Victoria, no sabemos quin ha salido


vencedor, puesto que no hemos vuelto a saber nada de ella.

El tratamiento didctico del miedo de hablar y de cometer


errores en el aula de ELE

Tener algo de miedo cuando nos vemos ante la inminencia de


hablar en pblico es un proceso natural y, hasta cierto punto, de-
seable y benfico, porque nos prepara para lidiar con los posibles
riesgos de dao a nuestra autoimagen y autoestima. Activado en la
proporcin adecuada, el miedo nos ayudar a concentrarnos en la
tarea y nos mantendr en un estado ptimo de vigilancia y alerta.

estudos 45.indd 159 26/05/14 14:55


160 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

De acuerdo con LeDoux (1999), cuando estamos alertas y atentos


a algo relevante, el crtex se encuentra en un estado de excitacin.
Esa excitacin cortical es importante para todas las funciones
mentales, porque contribuye significativamente para la atencin, la
percepcin, la memoria, la emocin y la resolucin de problemas. Si
est ausente, limitamos nuestra percepcin y no nos fijamos en los
detalles. Sin embargo, cuando es excesiva, la excitacin deja de ser
ventajosa pues, cuando estamos en un estado acentuado de excita-
cin, nos volvemos tensos, ansiosos e improductivos. Dicho de otro
modo, para que obtengamos un desempeo ptimo, necesitamos
un nivel correcto de excitacin. Esa idea lleg a ser defendida por
Krashen (1985), bajo la hiptesis del filtro afectivo que, desafor-
tunadamente, no tuvo el deseado desarrollo terico.

Ante lo expuesto en este artculo, queda evidente que los profe-


sores de ELE no podemos evitar que los profesores en formacin,
nuestros alumnos aprendices, tengan, sientan y expresen su mie-
do de hablar en el aula, en conformidad con la trama argumental
prototpica de esa emocin. Sabemos que achacarnos la total res-
ponsabilidad de ello sera simplificar demasiado la problemtica
que incluye, entre otros factores, los de orden intrapersonal que
huyen de nuestro alcance y control. Aun as, nuestros entrevistados
atribuyen un rol relevante al profesor en el sentido de agudizar o
suavizar el sufrimiento de aquellos cuando tienen que hablar y ser
corregidos. La protagonista del apartado anterior, Victoria, por
ejemplo, identific en la metodologa del profesor el factor agra-
vante de su miedo de hablar en espaol y de cometer errores. Tras
esa experiencia negativa, Victoria tuvo otras ms positivas que le
ensearon lo importante que es cuando el profesor nos transmite
confianza, t puedes, no importa si te equivocas, ah, uno se sien-
te tan bien! [Lo dice con una mirada tierna y una ligera sonrisa]
(ANDRADE NETA, 2011, p. 384)

estudos 45.indd 160 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 161

Lo curioso del caso Victoria es que entre las experiencias


positivas que le marcaron, ella se refiri a una que guardaba un
parecido muy grande, en trminos de procedimiento, con la que le
hizo sufrir: producir errores pblicamente expuestos. Nos lo relata
en esos trminos:
El semestre pasado bamos a la pizarra, la profesora deca: ve
y hazlo de la manera como lo has entendido, bamos, no ten-
amos miedo de equivocarnos, los errores quedaban expuestos,
todo el mundo iba, pero era bueno. (ANDRADE NETA, 2011,
p. 384-385)

Tanto en la experiencia anteriormente narrada como en esta que


Victoria acaba de citar, hay dos elementos comunes: la presencia
del error y su registro pblico en la pizarra. Al notar esta similitud,
quisimos saber por qu en esta ltima experiencia ella se haba
sentido tan bien, mientras la otra le haba marcado de forma tan
negativa, a lo que ella nos contest: creo que porque [en este ltimo
caso] no ramos castigados. La profesora trabajaba sobre el error
(ANDRADE NETA, 2011, p. 385). En otras palabras, la principal
diferencia no estribaba en la tcnica utilizada en las dos situaciones,
sino en cmo la alumna perciba la actitud de los profesores en lo
que respecta a la finalidad de la correccin que, en el primer caso,
era evaluar, juzgar el conocimiento de la alumna, mientras que en
el segundo, era para ayudarla a superar sus dificultades y con ello,
mejorar su produccin y favorecer el aprendizaje de la lengua.
Al menos as lo ha sentido Victoria. Otras compaeras suyas hicie-
ron comentarios encauzados en el mismo sentido:
[] la forma como el profesor transmite el contenido es muy
importante, porque con un profesor que hace que nos sintamos
bien, que queramos aprender, es mucho ms fcil asimilar el
asunto, que con un profesor al que le tenemos miedo hasta
de preguntar aquella duda que tenemos [] Muchos alumnos

estudos 45.indd 161 26/05/14 14:55


162 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

tienen vergenza de preguntar por temor a la respuesta. En-


tonces, cuando el profesor es ms abierto, ms amigo, sabemos
que su respuesta no ser algo que nos har sentir vergenza
por haber preguntado (Beatriz, PEF-EI). (ANDRADE NETA,
2011, p. 372)

[] Tuve una profesora aqu que, en cierto modo, me inhibi.


Tanto es as que hasta el da de hoy tengo resquicios de su m-
todo de enseanza: no me gusta participar en las clases de ELE,
apenas consigo hablar en espaol por eso. [] Aun gustndome
la asignatura, siento mucha dificultad para aprenderla, es como
si fuera una lengua que, pese a las muchas clases que he tenido,
no la domino todo lo que debera. [] Es la forma de tratar al
alumno que puede hacer que este se apasione por la asignatura
como puede formar en l el rechazo, el miedo, porque lo que
siento hoy por el espaol es miedo (Amaya, PEF-EI). (ANDRADE
NETA, 2011, p. 256)

Los aprendices de ELE, en general, parecen hipersensibles a


la correccin de los errores, a la evaluacin y a la crtica, explcita
o encubierta. Pero, no cabe ninguna duda de que en un contexto
de formacin de profesores, es til y necesaria la intervencin
correctiva de los errores. Sin embargo, debemos estar igualmente
conscientes de que esos sern reincidentes, hasta que se haya in-
ternalizado la forma correcta.

Adems de ensearles la lengua y corregir constructiva e incan-


sablemente los errores que vayan surgiendo o repitindose, hay
algo que podemos hacer los profesores para mitigar el miedo de
hablar y de cometer errores que sienten los alumnos en el aula de
ELE?, qu es lo que debemos evitar para no acentuar ese sufri-
miento? Afortunadamente, el corpus de nuestro estudio tambin
nos ha permitido inferir en qu circunstancias la correccin del error
es un desencadenante (EEC) de emociones negativas, acentuando
el miedo de hablar.

estudos 45.indd 162 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 163

Al analizar las percepciones de los participantes de nuestra


investigacin, llegamos a la conclusin de que la correccin de los
errores es un EEC del miedo y de otras emociones negativas cuando:
a) el profesor trata al alumno como si este tuviera la obligacin de
saber la lengua, por el simple hecho de haber aprobado el Vestibular
o de ya haber dado tal o cual asunto, o por estar en un semestre
ms avanzado;
b) el profesor se muestra crtico, irnico, severo o intolerante ante
el error cometido;
c) el profesor hace comentarios del tipo: te ests equivocando en
tal cosa y eso ya lo hemos visto, eso ya lo hemos trabajado, ya
lo tenas que saber, ya hemos dado ese asunto y t todava no
lo sabes?, se me hace muy raro que estando en el semestre X, co-
metas ese tipo de error, pronuncies de tal o cual forma esa palabra,
no sepas decirlo bien, etc.;
d) el profesor se niega a explicar la forma correcta porque ya lo
ha hecho en otra ocasin; e) no reconoce ni elogia los aciertos del
alumno, tan slo apunta los fallos;
f) no se preocupa con los sentimientos del alumno ante sus propias
dificultades;
g) le obliga al alumno a repetir la forma correcta de una palabra
exhaustivamente (sobrecorreccin);
h) utiliza expresiones faciales que indican al alumno que ha come-
tido un error durante la presentacin de un trabajo;
i) interrumpe al alumno durante una exposicin o participacin en
la clase, para corregirle el error;
j) corrige al alumno de forma grosera o agresiva.
(ANDRADE NETA, 2011, p. 386)

De acuerdo con las declaraciones de los sujetos investigados,


estas actitudes suelen ser generadoras de malestar en el alumnado,
incrementan su ansiedad y miedo de hablar y de cometer errores,
lo que resulta en una reduccin significativa de los intentos de
expresarse en la lengua extranjera, llevndoles, incluso, a evitar

estudos 45.indd 163 26/05/14 14:55


164 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

hablar en el aula y a vivir experiencias de bloqueos emocionales y


cognitivos.

En contrapartida, tambin hemos inferido que hay unas ac-


titudes y comportamientos docentes que pueden desencadenar
emociones positivas, que atenan el miedo de hablar y de cometer
errores que sienten los alumnos. Eso ocurre cuando:
a) el profesor se muestra respetuoso, paciente, comprensivo y em-
ptico ante la dificultad demostrada por el alumno;
b) no le corrige sobre la marcha para no interrumpirle el razona-
miento;
c) ayuda al alumno a entender en qu ha consistido su error;
d) le aclara las dudas relacionadas con el error, con paciencia y
empeo hasta que el alumno logre entender el asunto;
e) adems de sealar los errores, destaca tambin los aciertos;
f) incentiva la autocorreccin del alumno;
g) no permite que se burlen unos compaeros de otros en el aula;
h) consulta al alumno sus preferencias con respecto a cmo quiere
que se le corrija;
i) trata el error como un hecho natural y aceptable en el proceso de
aprendizaje de LE;
j) comparte sus propias experiencias y las dificultades que ha tenido
cuando estaba aprendiendo la lengua;
k) indica caminos al alumno para la superacin de las dificultades
relacionadas con los errores cometidos.
(ANDRADE NETA, 2011, p. 386)

Cuando el alumno percibe que el profesor adopta esa clase de


actitud, se siente ms a gusto y confiado para participar en la clase,
aclarar dudas, y eso contribuye a que desarrolle una actitud positi-
va ante la lengua, ante el profesor y ante la correccin. El alumno
que se siente en un ambiente favorecido por esa clase de actitud y

estudos 45.indd 164 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 165

comportamiento docente, tiende a entender la inevitabilidad del


error y se empea en autocorregirse.

En fin, si bien es cierto que los profesores de ELE no podemos


evitar que el miedo de hablar se despliegue en el aula, s que pode-
mos minimizar el sufrimiento de los aprendices o bien acentuarlo
segn la actitud que tengamos y el comportamiento que adoptemos
a la hora de hacerles hablar y de corregirles los errores. Lo que
aprendices y enseantes sentimos (y expresamos), lo que decimos,
lo que pensamos y lo que hacemos en el aula de ELE ante las in-
fracciones lingsticas que ocurren en el proceso de aprendizaje
de la lengua, denuncian nuestro nivel de (in)tolerancia hacia los
errores y hacia los errantes.

En consecuencia de todo ello, defendemos que tanto el pro-


fesorado como el alumnado necesitan entender qu es el miedo,
cmo se desencadena, qu funcin biolgica y social cumple y
cmo superarlo. Esa comprensin general nos ayudar a entender
tambin por qu hablar en pblico en espaol y cometer errores
son desencadenantes tan expresivos del miedo en el aula de ELE.

Consideraciones finales

La discusin que hemos entablado en este artculo pone de ma-


nifiesto que tanto el miedo como el error han de ser compaeros
naturalmente inseparables de los aprendices de un nuevo idioma,
especialmente en las etapas de desextranjerizacin de la lengua y
de la larga y paulatina fase de apropiacin lingstica de ese cuer-
po extrao que ha de penetrar nuestro psiquismo, acomodarse
en nuestras estructuras cerebrales y flexibilizar nuestro aparato
fonador. Parafraseando a Damasio (2000, p. 83), en el proceso de
aprendizaje de una lengua, ser errantes es, queramos o no, nuestra

estudos 45.indd 165 26/05/14 14:55


166 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

condicin humana natural. Negar esa tendencia natural es ir en


contra de nuestra naturaleza. En ese sentido, podemos aceptar la
sabidura implcita en el dicho popular segn el cual errar es huma-
no. Errar al hablar espaol como lengua extranjera tambin lo es, a
fin de cuentas, hay otras especies que traen en s las posibilidades
de ensear y de aprender una lengua extranjera? Quizs en potencia
las haya, pero, solo la especie humana es capaz de actualizar esa
potencia. Luego, nuestras reflexiones y anlisis nos han llevado
a concluir que cuando el aprendiz, en su proceso de formacin,
quiere aprender a hablar la lengua espaola sin cometer errores y
sin tener miedo en su justa medida, manifiesta el deseo de alejarse
de su condicin de humanidad y se coloca por encima del hombre,
o sea, de lo que efectivamente es.

Al buscar un desempeo sobrehumano en el proceso de apren-


dizaje de la lengua extranjera, los aprendices ponen sus expectativas
por encima de sus posibilidades y condiciones naturales. En la raz
de sus creencias, subyace la idea de que errar es humano, pero como
inconscientemente anhelan ser sobrehumanos, no hablan para no
cometer errores, que seran admisibles en la condicin hominal,
pero no en esa imagen idealizada de sobrehumanidad que parecen
haber construido sobre s mismos, marcada por la ausencia de re-
flexin tericamente bien orientada.

Concluimos este artculo invitando a alumnos y profesores,


aprendices y enseantes, a conocer ms (sobre) su emocionalidad,
para entender cmo las emociones influyen en el aula de ELE y en
otros mbitos, espacios y relaciones intra e interpersonales. Solo as,
podemos ampliar nuestra comprensin acerca de quines fuimos,
quines somos y quines podemos llegar a ser emocionalmente.

estudos 45.indd 166 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 167

Referencias

ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimenses comunicativas no ensino de


lnguas. 6.ed. Campinas: Pontes, 2010.
ANDRADE NETA, N. F. Emociones y sentimientos en la formacin
de profesores de Espaol como Lengua Extranjera. 2011, 484 p. Tese
(Doutorado em Didctica de la Lengua y la Literatura) Facultad
de Educao, Centro de Formacin del Profesorado, Universidad
Complutense de Madrid, Madrid, 2011.
ARNOLD, J.; BROWN, H. D. Mapa del terreno. In: ARNOLD, J. La
dimensin afectiva en el aprendizaje de idiomas. Madrid: Cambridge
University Press, 2000. p. 19-41.
BORUCHOVITCH, E.; BZUNECK, J. A.; GUIMARES, S. E. R.
Motivao para aprender: aplicaes no contexto educativo. Rio de
Janeiro: Vozes, 2010.
CALLEGARI, M. O. Motivao, ensino e aprendizagem de espanhol:
caminhos possveis. Anlise e interveno num centro Centro de
Estudos de Lnguas de So Paulo. 2008, 232 p. Tese (Doutorado em
Educao) Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, 2008.
CAVA, M. J.; MUSITU, G. La potenciacin de la autoestima en la
escuela. Barcelona: Paids, 2000.
DAMASIO, A. O mistrio da conscincia: do corpo e das emoes ao
conhecimento de si. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DAMASIO, A. En busca de Spinoza: neurobiologa de la emocin y los
sentimientos. Barcelona: Crtica, 2006.
DAMASIO, A. El error de Descartes. 3. ed. Barcelona: Crtica, 2007.
DAMASIO, A. Y el cerebro cre al hombre: cmo pudo el cerebro
generar emociones, sentimientos, ideas y el yo? Barcelona: Destino,
2010.
EKMAN, P. The face of man: Expressions of universal emotions in a
New Guinea Villaje. New York: Garland STPM, 1980.

estudos 45.indd 167 26/05/14 14:55


168 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

EKMAN, P. (Org.). Sabidura emocional: una conversacin entre S. S.


el Dalai Lama y Paul Ekman. Barcelona: Kairs, 2009.
EKMAN, P. A linguagem das emoes. So Paulo: Lua de Papel, 2011.
GIMENO SACRISTN, J. Planificacin de la investigacin educativa
y su impacto en la realidad. In: GIMENO SACRISTN, J.; PREZ
GMEZ, A. (Eds.). La enseanza: su teora y su prctica. Madrid: Akal,
2008.
GRAY, J. A. La psicologa del miedo y el estrs. Barcelona: Labor, 1993.
GUERRA, I. C. Pesquisa qualitativa e Anlise de contedo: sentidos e
formas de uso. Cascais: Principia.
KRASHEN, S. The input hypothesis: issues and implications. London:
Longman, 1985.
LAZARUS, R. S.; LAZARUS, B. N. Pasin y razn: la comprensin de
nuestras emociones. Barcelona: Paids, 2000.
LeDOUX, J. El cerebro emocional. Barcelona: Ariel, 1999.
LEWIN, K. Dinmica de la personalidad. Madrid: Morata,1973.
LORENZO, F. Motivacin y segundas lenguas. Madrid: Arco Libros,
2006.
MATURANA, H.; BLOCH, S. Biologa del emocionar y Alba Emoting:
respiracin y emocin, bailando juntos. Santiago: Dolmen, 1996.
ORMROD, J. E. Aprendizaje Humano. 4. ed. Madrid: Pearson
Educacin, 2005.
SABARIEGO, M.; BISQUERRA, R. Fundamentos metodolgicos de la
investigacin educativa. In: BISQUERRA, R. (Coord.). Metodologa de
la investigacin educativa. Madrid: La muralla, 2004. p. 19-49.
SANDN, E. M. P. Investigacin cualitativa en educacin:
fundamentos y tradiciones. Madrid: McGraw Hill, 2003.
SANTOS GARGALLO, I. El anlisis de errores en la interlengua del
hablante no nativo. In: SNCHEZ-LOBATO, J.; SANTOS GARGALLO,
I (Dir.). Vademcum para la formacin de profesores. Ensear espaol

estudos 45.indd 168 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 169

como segunda lengua (L2)/lengua extranjera (LE). Madrid: SGEL,


2008. p. 391-410.
SPITZER, M. Aprendizaje: neurociencia y la escuela de la vida.
Barcelona: Omega, 2005.

estudos 45.indd 169 26/05/14 14:55


estudos 45.indd 170 26/05/14 14:55
Desenvolver competncia
comunicativa em E/LE: competncias e
exigncias na formao docente

Competencies and skills required for


teacher education courses to develop SFL
communicative competence

Maria Tereza Nunes Marchesan


Universidade Federal de Santa Maria

RESUMO: A importncia do conhecimento da lngua espanhola no Brasil


se acentua, atualmente, pela proximidade de eventos esportivos como a
Copa das Confederaes, este ano (2013). Em vrias regies do Brasil,
no entanto, a interao com hispanos uma constante e a crena de que
espanhol fcil d lugar falta de fluncia. A questo chave no ensino
como preparar o aluno para expressar-se comunicativamente. No entanto,
a formao de professores de Espanhol no Brasil deficiente e a necessi-
dade de professores competentes para formar alunos comunicativamente
competentes em espanhol sensvel. Assim, este artigo apresenta uma
anlise de dois Cursos de Licenciatura em Espanhol UFSM e UFC na
perspectiva da formao lingustico-comunicativa dos egressos.

Palavras-chave: licenciatura em espanhol, formao de professores,


ensino de espanhol

estudos 45.indd 171 26/05/14 14:55


172 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

ABSTRACT: The importance of Spanish language in Brazil increases


for the next sporting events to happen in the country like currently the
Confederations Cup. In several regions of Brazil, however, the interaction
with Spanish speakers is a constant and the belief that Spanish is easy
gives rise to the lack of fluency. So, the key issue in teaching languages is to
prepare student to express themselves communicatively. But, the need for
competent teachers to help their students develop Spanish communicative
is very clear in Brazil. Few teacher training courses seem to succeed though.
Thus, this article presents an analysis of two Spanish Courses - UFSM
and UFC aiming at the linguistic-communicative training of graduates.

Keywords: Spanish teacher education, teacher education, Spanish


teaching.

A importncia do conhecimento da lngua espanhola no Brasil


se acentua, atualmente, pela proximidade do Campeonato Mundial
de Futebol (evento, transitrio) muito mais do que pela exigncia
legal imposta pela Lei 11.161/2005, publicada no Dirio Oficial da
Unio em 8 de agosto de 2005, ainda descumprida em grande parte
do territrio nacional. Como gacha que sou, no entanto, poderia
ainda acrescentar a proximidade (permanente) com a Argentina e o
Uruguai, o que proporciona constante e mais frequente possibilida-
de de interao aqui ou em territrio estrangeiro de brasileiros
e hispanofalantes nas mais diversas situaes e contextos sociais;
situao essa que se repete em outros limites do Brasil com outros
vizinhos.

Nessas zonas brasileiras de fronteira, no raro o estudo de


espanhol negligenciado pela crena de que, por muito pareci-
do com o portugus, o espanhol uma lngua fcil que dispensa
aprendizagens formais. Isso no verdadeiro, mas tambm no
totalmente falso.

estudos 45.indd 172 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 173

A necessidade de ensino se faz invisvel, de modo geral, em


situaes de compra e venda no comrcio fronteirio. As situaes
de ir comprar em Libres (Argentina)/ Rivera (Uruguai) ou vir
comprar em Uruguaiana/ Livramento so muito comuns e al-
ternadas conforme a fora das moedas de um e outro pas. Para
essas transaes, pouco necessrio o domnio do espanhol: os
comerciantes de all conhecem o suficiente de portugus para levar
adiante suas vendas, ento, alguns gestos e poucas palavras bastam.
Ainda assim, presenciam-se confuses de expresso/ compreenso
originada(s) pela facilidade enganosa (Almeida Filho, 1995, p. 19)
que a proximidade das lnguas propicia.

As relaes entre brasileiros e seus vizinhos, no entanto, no


se resumem a compras de oportunidade na fronteira, da mesma
forma que no se resumem a contatos apenas com fronteirios.
Essas relaes abrangem as mais diversas situaes de interao:
familiares, de amizade, de turismo, comerciais, oficiais, virtuais.

Em alguns desses casos, a comunicao pode acontecer como


acontece via portunhol, uma interlngua perigosa ainda que til,
mas, como toda interlngua, insuficiente para uma plena comuni-
cao, no sentido dado por Hymes (1995) ao trabalhar o conceito
de competncia comunicativa.

Nos deparamos, ento, com uma real necessidade de ensinar/


aprender espanhol: atuar com (pleno) domnio sobre os sentidos
que se quer dar em interaes em lngua estrangeira (LE). Mas,
como chegar a esse domnio a partir do ensino formal em sala de
aula? Como preparar o aluno para expressar-se comunicativamen-
te? Ora, naturalmente a resposta ser atravs de um ensino que
atenda as necessidades dos alunos, isto , que prepare o aluno para
interagir com hispanos com segurana e domnio de uma compe-

estudos 45.indd 173 26/05/14 14:55


174 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

tncia comunicativa independentemente do modelo pedaggico


(comunicativo) escolhido para o ensino de espanhol.

O que se observa hoje, no entanto, que esse conceito funda-


mental para a comunicao ainda no faz parte do cotidiano do
ensino de lnguas. O conceito de competncia comunicativa vai
sendo lentamente compreendido na sua essncia por professores
e autores de livros didticos, mas ainda no base para o ensino
de espanhol.

Professores-pesquisadores-autores tm se posicionado criti-


camente quanto realidade do ensino de lnguas, dizendo que os
alunos saem mal preparados e apontando deficincias nos cursos
de Letras. Pesquisas de e com professores em formao informam
das condies insuficientes de preparo para o exerccio da docncia:
alunos sem fluncia, sem domnio de teorias bsicas de ensino/
aprendizagem, com deficientes conhecimentos pedaggicos. Muitos
problemas so relatados quer quanto formao especfica, quer
quanto formao pedaggica: queixam-se os alunos de currculos
inchados, compartimentalizao do conhecimento, falta de obje-
tividade e de orientao para a necessria relao teoria-prtica,
problemas que se evidenciam na conscincia do despreparo para
o exerccio do magistrio.

O resultado que temos professores inseguros e, assim como


muitos materiais didticos se dizem comunicativos sem atender aos
fundamentos desse conceito, muitos professores, no af de estarem
atualizados e atenderem ao que preconizam as mais modernas
teorias mascaram o ensino com alguns recursos e mal aplicam
algumas tcnicas identificadas como comunicativistas, sem de fato
atender aos princpios da Competncia Comunicativa.

Sobre os professores, Llobera (1995, p.26) nos diz que

estudos 45.indd 174 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 175

(El) docente que se maneje bien con estos conceptos no podr


volver a plantearse la docencia con un programa cerrado de
estructuras, sino que inevitablemente deber estar atento a las
necesidades de comunicacin que aportan al aula los aprendien-
tes o las que mediante la motivacin se lleguen a generar en la
misma. Y esto conlleva inevitablemente una mayor atencin no
slo al significado de las expresiones sino tambin al sentido.

Considerando-se a ineficincia da formao de professores


hoje, a verdade que ainda que os professores consigam detectar
as necessidades dos alunos, poucos conseguem atender a essas
necessidades/interesses adequadamente.

O despreparo docente para o ensino de LE tem origem nos Cur-


sos de Formao (depois se agrava com as exigncias e condies
de trabalho oferecidas para o exerccio da profisso), e para ns
que formamos professores, essas observaes levam, ..., a uma con-
cluso incmoda: estamos falhando na formao... (Barros, s/d.).
Por isso, exatamente, devemos analisar a situao, se no em geral,
aquela em que atuamos para propor ajustes ou at mudana mais
radicais a partir de reflexo comprometida.

Considerando o acima exposto e como professora formadora de


novos professores de espanhol (particularmente, de um curso que
ora discute reformulao curricular), me proponho a olhar para o
ensino de espanhol sob a perspectiva da formao de professores
de lnguas. Em primeiro lugar, abordo a formao inicial conforme
proposto pela legislao federal; em segundo lugar, com base na
legislao apresentada, analiso os projetos poltico-pedaggicos de
dois cursos de licenciatura em espanhol e por fim, teo considera-
es sobre a formao inicial e a comunicao com estrangeiros
falantes de espanhol.

estudos 45.indd 175 26/05/14 14:55


176 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Formao inicial

A formao inicial de professores no Brasil responsabilidade


de Cursos de Licenciaturas, regidos por legislao nacional.

Nas ltimas dcadas do sculo passado, a formao de profes-


sores, como hoje, se dava em cursos superiores de quatro anos, mas
seguiam o modelo 3+1, isto , trs anos de formao terica e, no
ano final do curso, a formao pedaggica. Nos trs primeiros anos
eram oferecidas as disciplinas especficas, como Lngua Portugue-
sa, Lnguas Estrangeiras, Latim, Filologia, Literatura, Lingustica
(a partir do final dos anos 70), etc. Em 10 de outubro de 1969, pela
Resoluo 09, determina-se a oferta de disciplinas pedaggicas
Psicologia da Educao, Didtica, Estrutura e Funcionamento do
Ensino de 2 Grau e a Prtica de Ensino, no ltimo ano do curso.

Esse modelo vigeu por bom tempo e teve seus resultados; no


se pode dizer que no teve seu valor. Para a sociedade da poca era
adequado e, por que no dizer, suficiente. Muitos de ns, profes-
sores ainda em exerccio, hoje, somos oficialmente oriund@s
desse modelo. Continuamos em exerccio e, de modo geral, tivemos
uma boa formao. Naturalmente, tivemos que nos adaptar a novas
posies de uma sociedade que evoluiu para dar conta do recado
e tivemos que nos adequar s demandas dos novos tempos.

A exigncia atual de um currculo para licenciatura que todos


os professores do curso sejam responsveis pela formao de novos
professores e no apenas os afetos s disciplinas pedaggicas, como
se pode ler no Parecer CNE/CES 492/2001(p. 29):
A flexibilizao do currculo, na qual se prev nova validao de
atividades acadmicas, requer o desdobramento do papel
de professor na figura de orientador, que dever responder

estudos 45.indd 176 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 177

no s pelo ensino de contedos programticos, mas tambm


pela qualidade da formao do aluno. (grifos meus)

Hoje, a formao regida pelas Diretrizes Curriculares Nacio-


nais (DCN) para o curso de Letras estabelecidas pela Resoluo
CNE/CES n 18/2002, tendo fundamento no Parecer CNE/CES
n 492/2001, que dispe sobre as DCN de diversos cursos de gra-
duao, entre eles o de Letras, retificado pelo Parecer CNE/CES
n 1.363/2001.

As determinaes desses documentos apontam para a formao


de um professor autnomo, capaz de regular sua prtica de acordo
com seu contexto de atuao a partir de uma formao interdisci-
plinar, onde teoria e prtica dialoguem ao longo de todo o curso.
No excerto a seguir, percebe-se a orientao terico-prtica.

A rea de Letras, abrigada nas cincias humanas, pe em relevo


a relao dialtica entre o pragmatismo da sociedade moderna e o
cultivo dos valores humanistas.

Decorre da que os cursos de graduao em Letras devero


ter estruturas flexveis que:

facultem ao profissional a ser formado opes de conheci-


mento e de atuao no mercado de trabalho;

criem oportunidade para o desenvolvimento de habilidades


necessrias para se atingir a competncia desejada no de-
sempenho profissional;

dem prioridade abordagem pedaggica centrada no de-


senvolvimento da autonomia do aluno;

promovam articulao constante entre ensino, pesquisa e


extenso, alm de articulao direta com a ps-graduao;

estudos 45.indd 177 26/05/14 14:55


178 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

propiciem o exerccio da autonomia universitria, ficando


a cargo da Instituio de Ensino Superior definies como
perfil profissional, carga horria, atividades curriculares
bsicas, complementares e de estgio.

Portanto, necessrio que se amplie o conceito de currculo, que


deve ser concebido como construo cultural que propicie a aquisi-
o do saber de forma articulada. (CNE/CES n 492/2001, p. 29)

Essas mesmas Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de


Filosofia, Histria, Geografia, Servio Social, Comunicao Social,
Cincias Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museo-
logia (CNE/CES 492/2001), determinam que um curso de Letras
deve contribuir para o desenvolvimento das seguintes competncias
e habilidades:

domnio do uso da lngua portuguesa ou de uma lngua es-


trangeira, nas suas manifestaes oral e escrita, em termos
de recepo e produo de textos;

reflexo analtica e crtica sobre a linguagem como fenmeno


psicolgico, educacional, social, histrico, cultural, poltico
e ideolgico;

viso crtica das perspectivas tericas adotadas nas inves-


tigaes lingsticas e literrias, que fundamentam sua
formao profissional;

preparao profissional atualizada, de acordo com a din-


mica do mercado de trabalho;

percepo de diferentes contextos interculturais;

utilizao dos recursos da informtica;

estudos 45.indd 178 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 179

domnio dos contedos bsicos que so objeto dos processos


de ensino e aprendizagem no ensino fundamental e mdio;

domnio dos mtodos e tcnicas pedaggicas que permitam


a transposio dos conhecimentos para os diferentes nveis
de ensino. (p30)

Para isso, a Resoluo CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002


institui a durao e a carga horria dos cursos de licenciatura, de
graduao plena, de formao de professores da Educao Bsica
em nvel superior. Esse documento estabelece a integralizao
mnima de 2800 (duas mil e oitocentas) horas, da seguinte forma:
I - 400 (quatrocentas) horas de prtica como componente cur-
ricular, vivenciadas ao longo do curso;

II - 400 (quatrocentas) horas de estgio curricular supervisio-


nado a partir do incio da segunda metade do curso;

III - 1800 (mil e oitocentas) horas de aulas para os contedos


curriculares de natureza cientfico-cultural;

IV - 200 (duzentas) horas para outras formas de atividades


acadmico-cientfico-culturais.

(Resoluo CNE/CP 2)

Uma anlise dessa distribuio permite concluir que das


2.800 horas totais, 600 horas no podem ser consideradas para
o desenvolvimento lingustico-comunicativo do aluno em ln-
gua estrangeira. As 200 horas para outras formas de atividades
acadmico-cientfico-culturais no podem ser contabilizadas para
o desenvolvimento da fluncia, da sua competncia comunicativa
em espanhol, primeiro, porque as universidades tm autonomia de
estruturao curricular e, portanto, as atividades propostas podem
ou no estar direcionadas a esse objetivo. Em segundo lugar, porque
da mesma forma que a instituio tem flexibilidade para a oferta

estudos 45.indd 179 26/05/14 14:55


180 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

de atividades, o aluno tem liberdade para escolher as atividades


com que completar as 200 horas. J para cumprir as 400 horas
de estgio curricular supervisionado a partir da segunda metade do
curso, pressupe-se que o aluno j tenha domnio mnimo de nvel
intermedirio da lngua espanhola. Dessa forma, a prtica vai con-
tribuir para sua formao lingustica, mas de forma complementar,
porque o estgio o momento de por em prtica na escola o que
ele j sabe, hora de ensinar. Ora, s ensinamos o que sabemos...

Em 2.200 horas, portanto, deve estar concentrado o ncleo


de formao do egresso do Curso de Letras. nessas 2.200 horas
que devem estar alocadas as disciplinas que daro competncia
lingustico-comunicativa e pedaggica ao aluno, junto com as de-
mais disciplinas que atendem a outras exigncias legais, como a
literatura, por exemplo.

A formao na prtica

Como tem sido aplicada a legislao em cursos de formao de


professores de espanhol? Um olhar sobre cursos de formao de
professores de espanhol a partir de documentos legais normativos,
em duas universidades federais pode dar uma imagem do que est
acontecendo na formao.

A escolha das duas instituies - Universidade Federal de Santa


Maria (UFSM) e Universidade Federal do Cear (UFC) se deve,
sobretudo ao fato de os dois cursos serem licenciaturas simples e
oferecidas no turno noturno.

O Curso de Letras Espanhol e Literaturas de Lngua Espa-


nhol da UFSM teve sua primeira turma em 1994. De l para c,
viu o quadro de professores de espanhol lngua, lingustica ou
literatura aumentar, j sofreu uma reformulao curricular e j

estudos 45.indd 180 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 181

passou por oscilaes na procura pelas 30 vagas que oferece. O


PPP do Curso de Letras da UFSM vlido para as Habilitaes em
Ingls e respectivas Literaturas e Espanhol e respectivas Literaturas.
O tempo mdio de integralizao de 10 semestres.

O Curso de Letras: Lngua Espanhola e suas Literaturas,


daUFC, foi criado em 2010, como alternativa licenciatura dupla
oferecida durante o dia, para alunos que trabalham nesse perodo
e/ou desejam formar-se em apenas uma habilitao. Oferece, no
entanto, a opo bacharelado. Tem ingresso anual, com turmas de
25 alunos em cada semestre. O tempo de integralizao mdio
de 8 semestres.

Ambos os Projetos Polticos Pedaggicos (PPP) esto afinados


com o que determinam as Resolues e Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN) para os Cursos de Letras.

Assim, o foco posto nesta anlise restringe-se possibilidade


do desenvolvimento lingustico-comunicativo e pedaggico no que
est proposto por cada curso, aspectos fundamentais para que o
professor desenvolva um trabalho adequado ao ensinar espanhol e
melhorar as interaes com hispanofalantes, e porque so relatados
na literatura como os mais deficientes nos egressos e nos alunos
em formao.

Dessa forma, de cada projeto analiso os objetivos, as habilidades


e competncias, o perfil do egresso, as reas de atuao e a carga
horria, em funo desses aspectos.

De maneira geral, os objetivos determinados para o Curso de


Letras da UFSM e da UFC atendem s DCNs normativas.

O curso de Letras da UFSM tem um objetivo geral

estudos 45.indd 181 26/05/14 14:55


182 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Refletir analtica e criticamente sobre a linguagem nos aspectos


lingstico, histrico, social, cultural, esttico, poltico, psicol-
gico e educacional, estabelecendo a relao entre teoria e prtica
em uma dimenso criativa e tica;

e trs objetivos especficos. Os primeiro desses objetivos


Desenvolver competncias na lngua objeto da habilitao
escolhida, nos seus diferentes registros e variedades em
termos de estrutura, funcionamento e manifestaes
culturais; (grifos meus)

bastante amplo na medida em que prev o desenvolvimento de


competncias no em um mas nos diferentes registros e variedades;
da mesma forma que nas manifestaes culturais. diferena do
ingls, o espanhol uma das lnguas mais faladas no mundo como
primeira lngua, como lngua primeira da identidade de vrias
sociedades, tornando, assim, muito difcil no s conhecer como
desenvolver competncias considerando essa amplitude.

Os dois outros objetivos so mais realistas, sem deixar de aten-


der s normativas.

refletir analiticamente sobre os processos de ensino e apren-


dizagem da linguagem;

integrar o ensino, pesquisa e extenso simultnea e conti-


nuamente visando formao do profissional em Letras em
uma perspectiva humanstica.

J o PPP do Curso da UFC apresenta 11 objetivos a serem al-


canados, sem subdividi-los:

1. Formar docentes de Lngua Espanhola e suas Literaturas,


para atuar na educao bsica;

estudos 45.indd 182 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 183

2. Motivar a iniciao pesquisa em lngua e literatura estran-


geira;

3. Iniciar a preparao dos discentes para o ingresso na docncia


universitria, a ser completada na ps-graduao;

4. Preparar o profissional para buscar novas alternativas educa-


cionais, enfrentando como desafio as dificuldades do magistrio;

5. Formar profissionais capazes de autocrtica;

6. Fomentar o conhecimento crtico da realidade scio-poltica


e educacional brasileira;

7. Habilitar os alunos para acompanhar e compreender os avan-


os cientfico-tecnolgicos e educacionais

8. Habilitar os alunos para utilizar diferentes recursos tecnol-


gicos que favorecem o aprendizado da lngua estrangeira;

9. Habilitar o aluno a elaborar programas de ensino e material


didtico em lngua estrangeira adequados realidade de seus
futuros aluno;

10. Implementar a concepo de professor-pesquisador de sua


prtica, como veculo de reformulao de concepes, rupturas
com percepes tradicionais, mudanas das aes escolares e
das prticas pedaggicas de sala de aula;

11. Favorecer viso ampla das cincias da natureza, humanas e


sociais de modo a aprimorar as prticas educativas e propor-
cionar aos alunos uma viso interdisciplinar do conhecimento;

Embora o grande nmero de objetivos, o conjunto no se afasta


da proposta legal. Chama a ateno o forte vis para a preparao
pedaggica. Os objetivos 1, 3, 4, 8, 9 e 11 remetem para a prtica e

estudos 45.indd 183 26/05/14 14:55


184 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

os demais objetivos, ainda que no tratem diretamente de docncia,


so complementares para uma formao integral.

Quanto s habilidades e competncias que o aluno deve


ter desenvolvido ao longo do curso, o texto apresentado no PPP da
UFSM uma reproduo fiel da Resoluo CNE/CES 429/2001
reproduzida anteriormente.

No PPP da UFC, as competncias e habilidades pretendidas so


expressas pela busca do saber atravs

(i)da atualizao da cultura cientfica geral e da cultura profis-


sional especfica;

(ii)do desenvolvimento de uma conscincia tica na atuao


profissional e na responsabilidade social ao compreender a ln-
gua estrangeira e suas literaturas como conhecimento histrico
desenvolvido em diferentes contextos scio-polticos, culturais
e econmicos;

(iii) do dilogo entre a sua rea e as demais reas do conheci-


mento ao relacionar o conhecimento acadmico-cientfico
realidade social, e ao conduzir e aprimorar prticas profissio-
nais, propiciando a percepo da abrangncia da relao entre
conhecimento e realidade social;

(iv) da liderana pedaggica e/ou intelectual, articulando-se


com os movimentos scio-culturais da comunidade em geral e,
especificamente, da sua categoria profissional; do

desenvolvimento de pesquisas no campo terico-investigativo


da rea de lngua e literaturas estrangeiras; e

estudos 45.indd 184 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 185

(v) do uso das atuais tecnologias de informao e de comunica-


o como instrumentos de aprendizagem e de desenvolvimento
profissional.

O perfil do formando em Letras-Espanhol e Literaturas de


Lngua Espanhola da UFSM est redigido de forma muito objetiva
e clara. So cinco reas perfeitamente coerentes com a normativa.
Visto sob a perspectiva do desenvolvimento das competncias
linguistico-comunicativa e pedaggica, mostra um profissional
autnomo, apto a atuar em diferentes contextos para atender a
diferentes necessidades.

Para atingir o perfil desejado para o formando em Espanhol e


Literaturas de

Lngua Espanhola, o aluno deve apresentar:

competncia lingstica: no nvel intermedirio-avanado,


tanto no plano da produo como no da compreenso oral e
escrita;

formao pedaggica: de recursos tcnicos e metodolgicos


que lhe permitam agir com criatividade e esprito crtico na
implementao da sua prtica pedaggica e na transposio
do conhecimento para os diferentes nveis de ensino. Alm do
domnio das tcnicas e mtodos pedaggicos, devero ser for-
talecidos princpios ticos de modo a que orientem sua aes
em relao ao respeito pela diversidade cultural no trato com
o outro;

formao crtica: a fim de que o aluno possa ser um futuro


profissional com senso crtico e capacidade para resolver pro-
blemas e tomar decises, assim como agir com uma viso no
reprodutora, mas criadora de conhecimento ;

estudos 45.indd 185 26/05/14 14:55


186 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

formao na pesquisa: dever ser incentivado no aluno o in-


teresse pela participao em projetos de investigao, de modo
a fortalecer seu senso crtico e esprito de equipe, em prol da
formalizao de novos conhecimentos e de solues aos proble-
mas relacionados a sua profisso ;

formao continuada: desenvolver no aluno uma postura


auto-crtica em relao ao exerccio de sua futura profisso, de
modo a incutir-lhe a importncia e a necessidade de reatualizar,
constantemente, os conhecimentos adquiridos.

O perfil do formando expresso no PPP da UFC, por sua vez,


um texto detalhado em 24 tpicos.

De modo mais especfico, a graduao em Letras: Lngua Es-


panhola e suas Literaturas, as modalidades licenciatura ou bacha-
relado visa a desenvolver, no aluno, as seguintes caractersticas:

1. Capacidade de analisar, descrever e explicar a estrutura


e funcionamento da lngua espanhola em seus aspectos
fonolgicos, morfossintticos, semnticos e discursivo-
-pragmticos;

2. Capacidade de relacionar questes de uso da lngua espa-


nhola a conceitos tericos relevantes e de conduzir inves-
tigaes sobre a lngua e a linguagem e suas manifestaes
na sociedade;

3. Domnio ativo e crtico de um repertrio representativo das


literaturas associadas lngua espanhola, bem como das
condies sob as quais a lngua e torna literria;

4. Conhecimento de diferentes variedades de lngua existentes,


dos fatores que condicionam tais variedades e das implica-
es sociais decorrentes dos diferentes usos;

estudos 45.indd 186 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 187

5. Respeito s diferentes variedades lingsticas do espanhol


e reconhecimento as implicaes sociais decorrentes do uso
da norma padro e das demais variedades em diferentes
manifestaes discursivas;

6. Domnio de conceitos que possibilitem compreender e ex-


plicar a linguagem como uma faculdade inata e ao mesmo
tempo um fenmeno cognitivo, scio-histrico e cultural;

7. Domnio de conceitos que permitam a produo de textos


em espanhol,considerando diferentes gneros e registros
lingsticos;

8. Atitude investigativa que favorea a construo contnua


do conhecimento na rea e sua aplicao na rea das novas
tecnologias;

9. Conhecimento da lngua espanhola e de suas literaturas nas


suas manifestaes orais e escritas, assim como das teorias
e dos mtodos que fundamentam as investigaes sobre a
linguagem e a arte literria e facilitam a soluo dos proble-
mas nas diferentes reas de saber;

10. Capacidade de formular e trabalhar problemas cientficos;

11. Capacidade de anlise e interpretao de obras literrias em


lngua espanhola baseadas no domnio ativo de um reper-
trio representativo da literatura;

12. Conhecimento das relaes de intertextualidade e reconhe-


cimento das condies sob as quais a expresso lingstica
se torna literria;

estudos 45.indd 187 26/05/14 14:55


188 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

13. Capacidade de anlise e reflexo crtica da estrutura e do


funcionamento de sistemas lingsticos e de manifestaes
diversas da linguagem, com base no domnio de diferentes
noes de gramtica e no reconhecimento das variedades
lingsticas e dos diversos nveis e registros de linguagem;

14. Capacidade de realizar uma classificao histrica, poltica,


social e cultural de produtos e processos lingsticos e lite-
rrios, na lngua espanhola, particularmente de textos de
diferentes gneros e registros lingsticos e de suas relaes
com outros tipos de discurso;

15. Domnio da terminologia apropriada que possibilite a dis-


cusso e a construo do conhecimento referente lngua
e s suas respectivas literaturas;

16. Capacidade para atuar como mediador em contextos inter-


culturais;

17. Capacidade para realizar crtica lingstica e literria em


lngua espanhola;

18. Capacidade de convivncia crtica, responsvel e compe-


tente com diferentes resultados de pesquisas em estudos
lingsticos e literrios;

19. Capacidade de estabelecer relaes com as disciplinas afins


e suas perspectivas de investigao cientfica (interdiscipli-
naridade);

20. Capacidade de lidar com as novas tecnologias desenvolvidas


para sua rea;

estudos 45.indd 188 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 189

21. Capacidade de aplicar o conhecimento da lngua espanhola


em tradues e verses, bem como a anlise e compreenso
de processos tradutrios;

22. Capacidade de interpretar simultnea ou consecutivamente


textos orais em lngua espanhola.

23. Domnio de software de traduo de legenda.

24. Capacidade de aplicar as normas vigentes do idioma estu-


dado na reviso de textos.

A leitura do PPP da UFC leva a crer que este um de seus pontos


mais importantes, considerado o grau de detalhamento das carac-
tersticas do egresso. No entanto, h um contraste com os objetivos
definidos para alcanar ao longo de quatro anos. Como j visto, os
objetivos enfatizam a prtica docente e o perfil pulveriza capacida-
des e conhecimentos. Talvez essa discrepncia se explique porque os
objetivos so exclusivos para a licenciatura e o perfil para o egresso,
para ambas as modalidades, a licenciatura e o bacharelado.

No PPP da UFSM, diferentemente da viso realista na determi-


nao das habilidades e competncias, as reas de atuao do
formando, repetindo a normativa, so muito amplas. Os egressos
devem sair preparados para atuar como professores, pesqui-
sadores, crticos literrios, tradutores, intrpretes, revisores de
textos, roteiristas, secretrios, assessores culturais, entre outras
atividades.

No curso da UFC, o campo de atuao est de acordo com os


objetivos determinados, pois, est previsto que o professor de espa-
nhol atuar como Professor de Espanhol no Ensino Fundamental
e Mdio; Professor de Espanhol em Cursos Livres; Professor de
Lngua Espanhola e suas Literaturas e Lingstica Aplicada; ain-

estudos 45.indd 189 26/05/14 14:55


190 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

da que a Resoluo CNE/CES 429/2001 seja para a formao de


professores para a Escola Bsica.

A carga horria das diferentes dimenses dos componentes


curriculares para a integralizao curricular dos dois cursos apre-
sentada no quadro 1.

UFSM UFC Resoluo CNE/CP 2

Carga horria total 3.180 3.080 2.800


Contedos curriculares
2130 1840 1.800
cientfico-culturais
Prtica como
componente curricular 420 592 400
ao longo do curso
Estgio curricular
supervisionado 2. 420 448 400
Metade do curso
Atividades acadmico-
210 200 200
cientco-culturais
Quadro 1 - Distribuio da carga horria do Curso de Espanhol da UFSM. Fonte: CNE/CP
2/2002; PPP Curso de Letras Espanhol UFSM; PPP Curso de Letras Espanhol UFC.

A Resoluo CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002, determina


2.800 horas mnimas para os cursos de Letras a serem integrali-
zados em no menos de 3 anos. Entende-se, portanto, que dentro
dessa carga horria e nesse prazo possvel formar professores
competentes e autnomos para o ensino de lnguas.

Nas duas universidades, os Cursos prevem carga horria mais


alta e mais tempo para atender s exigncias de formao determi-
nadas pelos documentos normativos relativos formao de pro-
fessores de Letras. Assim, o Curso de Espanhol da UFC tem 3.080
horas a serem integralizadas em quatro anos: 280 horas e um ano
alm do mnimo legal. Na UFSM, so 380 horas e dois anos a mais.

estudos 45.indd 190 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 191

Resoluo
UFSM UFC
CNE/CP 2
Carga horria total 3.180 3.080 2.800
Contedos curriculares
330 (18,3%) 40 (2,2%) 1.800 (100%)
cientfico-culturais
Prtica como
componente curricular 20 192 400
ao longo do curso 40 2 4 0 800
Estgio curricular (5%) (30%) (100%)
supervisionado 2. 20 48 400
Metade do curso
Atividades acadmico-
10 00 200
cientco-culturais
Quadro 2 - Diferenas de carga horria entre cada curso e o mnimo legal. Fonte: CNE/CP
2/2002; PPP Curso de Letras Espanhol UFSM; PPP Curso de Letras Espanhol UFC

Observando-se a alocao dessas horas excedentes, percebe-se


um claro direcionamento para a prtica na UFC e para a teoria na
UFSM. O quadro 2 apresenta as diferenas de carga horria entre
cada curso e o mnimo determinado na legislao.

Pode-se ver que a nfase nos contedos curriculares tcnico


cientficos na UFSM corresponde a um aumento de 18,2% da car-
ga horria mnima estipulada na Resoluo, enquanto que para
esse mesmo componente, na UFC o aumento de apenas 2,2%.
J quanto ao que se refere a prticas, na UFSM h um acrscimo de
5% da carga horria, enquanto que na UFC o acrscimo de 30%.

Uma possvel inferncia dessas diferenas que a relao teoria-


-prtica se d com mais intensidade na UFC do que na UFSM,
inferncia respaldada nos objetivos de cada curso, discutidos an-
teriormente.

Passando adiante, a anlise das disciplinas que compem os


contedos curriculares cientfico-culturais de cada curso levar ao
segundo foco proposto, o desenvolvimento linguistico-comunicativo
do formando em espanhol. Para tanto, adaptei o modelo proposto

estudos 45.indd 191 26/05/14 14:55


192 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

por Wagner (2012) na apresentao dos dados. O quadro 3 apre-


senta os dados da UFSM e o quadro 4, os dados da UFC.

Carga Grupos de disciplinas por


Disciplinas
horria habilidade/ competncias

Produo oral e leitura em lngua


90h
espanhola Disciplinas que objetivam a
Produo oral e escrita em lngua fluncia na lngua espanhola (180h)
90h
espanhola
Histria e evoluo da lngua
60h
espanhola
Fundamentos gramaticais da lngua
60h
espanhola
Disciplinas de base estrutural/
Morfossintaxe da lngua espanhola 60h gramatical da lngua espanhola
(300h)
Semntica e pragmtica da lngua
60h
espanhola
Gramtica do texto em lngua
60h
espanhola
Literatura espanhola I 60h

Literatura espanhola II 60h


Literatura hispano- Disciplinas de literatura espanhola
60h
americana:origens (300h)
Literatura hispanoamericana:poesia 60h

Literatura hispanoamericana:fico 60h

Latim 40h
Outras disciplinas (105h)
Lingstica contempornea 65h

Quadro 3 - Carga horria de contedos curriculares cientfico-culturais da licenciatura em


lngua espanhola na UFSM: 885 horas. (Fonte: adaptado de Wagner, 2011)

Novamente pode-se ver que os cursos tm orientaes divergen-


tes entre si. As disciplinas com o objetivo de desenvolver fluncia
em lngua espanhola, dos cursos analisados, totalizam 180 horas na
UFSM e 640horas na UFC. Alm dessas disciplinas, outras que no
visam fluncia em espanhol, mas tambm constroem a competn-
cia lingustico-comunicativa totalizam 300 horas na UFSM e 448 na
UFC. As disciplinas de literatura so o grupo que tem carga horria
mais semelhante entre os cursos, 300h na UFSM e 384 na UFC.

estudos 45.indd 192 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 193

As disciplinas do quarto grupo, embora possam potencialmente


contribuir para um melhor desempenho lingustico-comunicativo
do aluno, no foram consideradas no computo geral, porque po-
dem ser ministradas sem relao direta com o desenvolvimento da
fluncia em espanhol.

Grupos de disciplinas
Carga
Disciplinas por habilidade/
horria
competncias
Espanhol I: Lngua e Cultura 96
Espanhol II: Lngua e Cultura 96
Espanhol III: Lngua e Cultura 96 Disciplinas que objetivam
Espanhol IV: Lngua e Cultura 96 a fluncia na lngua
Espanhol V: Lngua e Cultura 96 espanhola
(640h)
Prticas Orais em Lngua Espanhola 64
Compreenso e Produo de Textos em
96
Lngua Espanhola
Fontica e Fonologia da Lngua Espanhola I 64
Fontica e Fonologia da Lngua Espanhola II 64
Morfologia da Lngua Espanhola 64 Disciplinas de base
estrutural/gramatical da
Sintaxe da Lngua Espanhola 64
lngua espanhola
Histria da Lngua Espanhola 64 (448)
Variantes Lingsticas do Espanhol 64
Semntica e Pragmtica da Lngua Espanhola 64
Teoria da Literatura I 64
Teoria da Literatura II 64
Literatura Espanhola I 64 Disciplinas de literatura
espanhola
Literatura Espanhola II 64 (384)
Literatura Hispano-Americana I 64
Literatura Hispano-Americana II 64
Teorias de Lngua e Segunda Lngua 64
Fundamentos da Lingstica Aplicada 64
Mtodos de Pesquisa em Lingstica Outras disciplinas
64 (256h)
Aplicada
Teorias e Princpios da Aquisio de Segunda
64
Lngua
Quadro 4 - Carga horria de contedos curriculares cientfico-culturais da licenciatura em
lngua espanhola na UFC: 1.728 horas. Fonte: PPP Curso de Letras Espanhol UFC.

estudos 45.indd 193 26/05/14 14:55


194 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Dessa forma, o Curso de Espanhol da UFC proporciona 1472


horas distribudas em diferentes disciplinas que, em conjunto, tm
o objetivo de construir a competncia lingustico-comunicativa do
aluno.
O Curso de Letras: Lngua Espanhola e suas Literaturas, na
modalidade licenciatura, tem por finalidade especfica propor-
cionar aos discentes uma formao consistente e adequada ao
exerccio do magistrio no nvel fundamental e mdio, nas reas
de Lngua Espanhola e suas Literaturas, procurando proporcio-
nar situaes educativas nas quais o aluno possa desenvolver
o raciocnio e a capacidade de aprender, alm de exprimir-se
oralmente, ler e produzir diferentes tipos de textos, sejam aca-
dmicos, literrios ou de outros gneros. Buscar-se-, tambm,
estimular a utilizao crtica de novas tecnologias e a promoo
da interdisciplinaridade entre os contedos do Curso.

A UFSM , por sua vez, prope uma carga de 780 horas para o
mesmo fim.
O acadmico de Letras, das trs habilitaes, a partir do Projeto
Poltico Pedaggico (PPP) dever:

Refletir analtica e criticamente sobre a linguagem nos aspectos


lingstico, histrico, social, cultural, esttico, poltico, psicol-
gico e educacional, estabelecendo a relao entre teoria e prtica
em uma dimenso criativa e tica.

Ambas as propostas apresentam-se coerentes com os objetivos


definidos para cada curso, como j verificado tambm com relao
carga horria.

Consideraes finais

Alguns resultados de pesquisa sobre cursos de formao em an-


damento, como o caso da UFSM, indicam insuficincia na formao.
Mulik (2008) investigando crenas de 20 formandos em Letras/

estudos 45.indd 194 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 195

UFPR encontrou que 97% dos alunos que participaram da pesquisa


acreditam que saber uma LE facilita na comunicao e interao
com outros povos e 93%, que o melhor lugar para aprender uma
LE no na universidade. Amaro (2010), nos resultados de seu
trabalho de monografia de final de curso, entre seus resultados,
encontrou que os alunos entraram motivados e que se desmoti-
varam ao longo do curso. Algumas causas apontadas foram a no
preparao para atuar em todos os nveis de ensino e a prepara-
o inadequada para a realidade. Wagner (2011), em trabalho de
monografia, relata as dificuldades encontradas para desenvolver
um bom estgio em consequencia da falta de domnio linguistico-
-comunicativo em espanhol.

Esses, entre muitos outros trabalhos, confirmam a necessidade


de anlise e reflexo sobre a formao de professores de LE em geral,
e de espanhol, em particular. Se quisermos que os professores que
formamos sejam reflexivos, devemos comear, ns os formadores,
a sermos reflexivos em primeiro lugar.

No intuito de contribuir com essa reflexo, exponho, ento,


algumas consideraes que podem ser tecidas a partir das anlises
apresentadas.

1. No h uniformidade de perspectiva quanto ao perfil do


professor de espanhol para o Ensino Bsico no Brasil. Os
PPPs de universidades brasileiras opostas geograficamente
indicam que a compreenso das normativas legais bastante
ampla.

2. As 2.800 horas mnimas estipuladas pela Resoluo CNE


2/2002 para a formao de professores para o Ensino Bsico
parecem ser insuficientes para (trans)formar alunos em pro-

estudos 45.indd 195 26/05/14 14:55


196 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

fessores, haja vista as propostas analisadas que ultrapassam


em, pelo menos, um ano e 200 horas o limite mnimo.

3. V-se que os cursos tentam atender s determinaes le-


gais para a formao de professores. Mas se por um lado a
legislao d flexibilidade para a estruturao dos cursos,
por outro lado sugere um perfil difcil de alcanar no tempo
sugerido (e mesmo em mais tempo, como visto nos cursos
tomados como exemplo).

4. Ainda que a orientao legal e as perspectivas tericas coin-


cidam sobre o ensino terico-prtico apontem para uma
integrao teoria-prtica durante o curso, ao que parece
continuamos com um sistema semelhante ao 3+1, confor-
me a distribuio dos componentes curriculares de alguns
cursos em vigncia, como o da UFSM. Alm disso, muitos
professores de disciplinas cientfico-culturais no se sentem
formadores e esperam que professores de outras disciplinas
mais adequadas ao ensino de como ensinar o faam.

5. Um trabalho interessante ser o estudo dos resultados do


Curso da UFC, ainda novo e no tem egressos em exerccio,
uma vez que tem seu foco muito especfico na formao de
professores.

E, por fim, parafraseando o que li no PPP da UFC1, penso que


urgente o investimento na formao humana, em especial, na
formao de professores, porque a escassez de profissionais com-

1 Neste contexto, claramente promissor, preciso alertar que, sem dvida,


urgente o investimento na formao humana, em especial, na formao de pro-
fessores, pois a escassez de profissionais habilitados no pode ser, em princpio,
o principal obstculo para a expanso e a consolidao do ensino de espanhol.
PPP da UFC, p. 42.

estudos 45.indd 196 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 197

petentes no pode ser o principal obstculo para o desenvolvimento


da competncia lingustico-comunicativa na escola.

Referncias

ALMEIDA FILHO, J.C. Uma metodologia especfica para o ensino


de lnguas prximas? In : ___ (org.).Portugus para estrangeiros
interface com o espanhol. Campinas, SP: Pontes. 1995, p. 9-21.
AMARO, R. As crenas dos acadmicos de Letras habilitao Espanhol
em relao ao curso e profisso de professor de lngua espanhola.
Monografia de graduao em Letras, 2010, indita.
BARROS, C.S. Formao de professores: os (des)caminhos entre a
teoria, a reflexo e a prtica (s/d). Disponvel em: http://www.google.
com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=6&cad=rja&ved=
0CFkQFjAF&url=http%3A%2F%2Fwww.nead.unama.br%2Fsite%2Fbi
bdigital%2Fmonografias%2Fformacao_professores.pdf&ei=Gde1UZG6
D6fL0QH13oDwBg&usg=AFQjCNFhYU8xddNpU_1VX_IW2J14ftGNC
A&sig2=OtGH7VfCrNYfoAkZ-V8-zA&bvm=bv.47534661,d.dmQ
HYMES, D. Acerca de la Competencia Comunicativa. In: Llobera, M. et
al.Competencia comunicativa. Documentos bsicos en la enseanza de
lenguas extranjeras. Madrid: Edelsa, 1995.
MULIK, K. B. Crenas de professores em formao sobre o ensino/
aprendizado de lngua estrangeira. In: VIII Congresso Nacional De
Educao; III Congresso Ibero-Americano Sobre Violncias Nas
Escolas, 2008, Curitiba. Anais. Curitiba, 2008. p. 1-14.
Resoluo CNE/CP 1/2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Formao de Professores da Educao Bsica, em nvel superior,
curso de licenciatura, de graduao plena. http://www.mec.gov.br/cne/
pdf/CP012002.pdf
Resoluo CNE/CP 2/2002. Institui a durao e a carga horria dos
cursos de licenciatura, de graduao plena, de formao de professores
da Educao Bsica em nvel superior.http://www.mec.gov.br/cne/
pdf/CP022002.pdf

estudos 45.indd 197 26/05/14 14:55


198 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

SILVA, A.L.S. da A anlise de abordagem e a formao do professor de


lnguas estrangeiras: uma alternativa prtica reflexiva. Cadernos do
CNLF, vol. XII, 2008, N 05.
UFC. Projeto Poltico Pedaggico do Curso de Letras Habilitao
Espanhol e suas Literaturas. Disponvel em: www.si3.ufc.br/sigaa/verP
roducao?idProducao=77939&key. Acesso em: 22 de maro de 2013.
UFSM . Projeto Poltico Pedaggico do Curso de Letras Habilitao
Espanhol e Literaturas de Lngua Espanhola. Disponvel em: http://
ufsm.br/. Acesso em: 13 de maro de 2013.
WAGNER, A.M. O Currculo do curso de Letras Espanhol da UFSM
e a formao de professores reflexivos. Monografia de graduao em
Letras UFSM, 2011, indita.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 198 26/05/14 14:55


Prtica e pesquisa na formao do
professor da educao bsica

Practice and research on


basic education teacher training

Fernanda Almeida Vita


Universidade Federal da Bahia

RESUMO: Este artigo prope uma discusso, baseada em estudos rea-


lizados por Schn (1992), Drewey (1989), Contreras (2002), Zambrano
(2006), Paulo Freire (2005), entre outros, sobre a formao do professor
e a necessidade da pesquisa e da reflexo na prtica docente. O mbito
educativo atual exige que o professor seja um pesquisador prtico reflexivo.
Um profissional que integre ao seu trabalho dirio a funo investigadora
como uma forma de se desenvolver profissionalmente. Tal funo deve
servir principalmente como uma ferramenta de melhora da aprendizagem
dos estudantes e de sua atividade docente. No lugar de ver a prtica como
um espao de aplicao da teoria, devemos considerar a reflexo sobre a
prtica, e, portanto, assumir o papel de professor pesquisador, para revelar
a teoria inerente prtica e assim teorizar sobre a prtica. Isso significa
dizer que o docente pode indagar, analisar e interpretar as prticas e a
partir disso construir uma valiosa teoria de sua ao docente.

Palavras-chave: Formao docente, prtica reflexiva, pesquisa-ao.

estudos 45.indd 199 26/05/14 14:55


200 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

ABSTRACT: This article proposes a discussion based on studies performed


by Schn (1992), Drewey (1989), Contreras (2002), Zambrano (2006),
Paulo Freire (2005), among others, on teacher training and the need
for research and reflection in teaching practice. The current educational
context requires that the teacher be a reflective practical researcher.
A professional who embraces in their daily work the investigative function
as a way to develop professionally. Such function should serve primarily
as a tool for improving student learning and their teaching activity.
Rather than see the practice as a scope of application of the theory, we
must consider the reflection on practice, and therefore, assume the role of
researcher teacher to reveal the theory inside the practice and thus theorize
about the practice. This means that professor can ask, analyze and interpret
the practices and from there build a valuable theory of teaching activities.

Keywords: Teacher education, reflective practice, action research

Ensinar exige segurana, capacidade


profissional e generosidade.

(Paulo Freire)

Introduo

A profisso docente sempre esteve no centro de muitos debates


e reflexes filosficas pelo mundo. O professor foi, e sempre ser
uma figura importante no contexto social, seja para bem ou para
mal. Para bem, quando em uma sociedade a justia e a igualdade
predominam. Para mal, no momento em que os membros da co-
munidade desrespeitam as leis e o prximo. Isso porque a base
de uma sociedade est na educao e, precisamente, na educao
bsica. Se a base social est na formao inicial do ser, o grande
responsvel pelo indivduo a escola, ou melhor, os responsveis
diretos por ela: os professores.

estudos 45.indd 200 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 201

Historicamente o pensamento educativo proporcionou diferen-


tes modelos para caracterizar o professor. Segundo Gimeno Sacris-
tn (1992), podemos destacar quatro enfoques: 1) uma concepo
espiritualista e idealista que se baseia no desenvolvimento das
virtudes e qualidades ideais que teria que ter o docente; 2) o pro-
fessor como agente que toma decises racionais na prtica, guiado
por certo processamento linear de informao; 3) os docentes que
recorrem imagem do artista arteso que tem que reencontrar sua
tcnica para planejar cada situao repetida; e 4) o professor tec-
nicista que reduz seu profissionalismo a um conjunto de destrezas.

Altet (2005), por sua parte, identifica quatro modelos ou para-


digmas de profissionalizao que historicamente predominaram na
Frana: 1) o docente magister (ou mago), visto como o modelo inte-
lectualista da antiguidade que carece de formao especfica porque
seu carisma e competncias retricas so suficientes; 2) o docente
tcnico que se torna profissional por aprendizagem imitativa, em
companhia de um professor mais especialista que lhe transmite
seu saber-fazer; 3) o docente engenheiro, tecnlogo que se apoia
nos aportes cientficos e racionaliza sua prtica tentando aplicar a
teoria; e, por ltimo, 4) o docente profissional, prtico-reflexivo, a
quem a dialtica teoria-prtica converte num profissional reflexivo
capaz de analisar suas prprias prticas, de resolver problemas e
de inventar estratgias.

J Prez (1999) define os modelos de professor em outras quatro


categorias: prtico-artesanal, academista, tecnicista eficientista e
hermenutico-reflexivo. O modelo de professor prtico-artesanal
aquele que entende o ensino como uma atividade quase artsti-
ca, um ofcio que se aprende em cursos livres, de maneira rpida.
O modelo academista acredita que o essencial de um docente
seu slido conhecimento da disciplina ao ministrar as aulas. J o

estudos 45.indd 201 26/05/14 14:55


202 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

modelo tecnicista eficientista toma a tcnica estruturalista como


base para um o ensino racionalista, com economia de esforos,
eficincia no processo e nos resultados, ou seja, o professor no
somente tem que dominar a lgica do conhecimento cientfico, tem
tambm que conhecer as tcnicas de transmisso mais rpidas. No
entanto, diferentemente dos anteriores, o professor no modelo her-
menutico-reflexivo supe que o ensino uma atividade complexa,
no ecossistema instvel, quer dizer, o professor se compromete a
enfrentar, com sabedoria e criatividade, situaes prticas imprevi-
sveis que solicitam, constantemente, resolues claras e imediatas
para as que no servem regras rgidas nem receitas prontas.

Atualmente, no marco desse ltimo perfil docente, encontramos


as pesquisas realizadas por diferentes autores, como por exemplo,
Schn (1992), Zeichner (1993 e 1995), Contreras (2002) e Zambrano
(2006) os quais nos mostram que h, alm da crescente heteroge-
neidade terica sobre o professor, um avano de modelo docente
que se define como agente reflexivo. Esse desenho de profissional
abarca uma ampla gama de atividades na qual exige do professor
uma complexa e diversificada bagagem de conhecimento.

Tal profissional reflexivo que reivindica a atualidade se con-


verteu num lema caracterstico a favor do ensino e da formao do
professor em todo o mundo. Isso parece uma forma de reao contra
a ideia de que os professores so meros tcnicos que devem cumprir
um currculo escolar decidido por pessoas externas ao ambiente
educativo. Por outro lado, a demanda pelo professor reflexivo res-
gata a produo do conhecimento pelos docentes, entendendo que
eles tambm so possuidores de saberes tericos. Ou seja, se trata
agora de exigir do profissional de educao que seu conhecimento
seja tanto prtico como terico sobre a sua prtica.

estudos 45.indd 202 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 203

Nesse artigo refletiremos sobre o prottipo de professor que


alguns filsofos defenderam em suas pocas e, principalmente, qual
modelo que atualmente demanda a nossa sociedade dinmica e
irrequieta. Fizemos a opo de rever os pensamentos mais antigos
porque a histria pode nos ajudar a entender alguns problemas
educativos e explicar sua natureza, ou simplesmente ser usada
como forma de conhecimento de uma rea.

Antonio Nvoa (2009) nos recorda que conhecer a histria da


educao nos serve para comparar o passado frente s diferenas
do presente. Isso nos ajuda tanto a revitalizar as ideias e propostas
educativas no tempo, como tambm nos proporciona, aos educado-
res, um conhecimento do pretrito da profisso docente, ampliando
a nossa viso sobre a diversidade de ideias e prticas escolares.

Nosso desejo que a pequena reflexo histrica nos sirva como


ferramenta que nos ajude a elucidar o presente. A reflexo histrica
no mbito educativo nos sinaliza o patrimnio de conceitos, projetos
e experincias vividas para podermos compreender as mudanas
sem perder de vista s referncias da sociedade atual com suas de-
mandas reais. Atualmente a preocupao pelo exerccio pedaggico
e pela formao do profissional do ensino tem crescido gradativa-
mente, sempre atentando para as necessidades da educao bsica.

A profisso docente segundo Plato

A formao do homem esteve presente em quase todos os estu-


dos de Plato. De acordo com suas ideias, para que uma sociedade
seja possvel preciso que se forme nessa sociedade o homem
autntico e, segundo ele, isso depende da existncia de verdadeiros
mestres. Ou seja, antes de se discutir a organizao escolar e os
mtodos de ensino/aprendizagem, h uma questo bsica: o modelo

estudos 45.indd 203 26/05/14 14:55


204 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

de homem que queremos formar. Isso consequentemente nos leva


a refletir qual deve ser o modelo de professor que devemos formar
para levar adiante a tarefa de formar homens sociais.

Portanto, para Plato, no existe Educao sem a verdadeira


profissionalizao do educador, ou seja, aquilo que essencial para a
profisso docente. Para o filsofo, um dos pontos chave da docncia
ter-se o conhecimento necessrio para a sade da alma. O conhecer
e o ser sendo uma mesma coisa, constituindo o verdadeiro mestre,
aquele que tambm se preocupa em ensinar a virtude, que para o
pensador a essncia da arte do professor. Isso significa dizer que
o conhecimento da virtude est na busca dos verdadeiros valores
que levam sade da alma. Portanto o caminho dos valores vai alm
dos conhecimentos objetivos que o ser deve aprender. O professor
deve transcender o concreto e projetar suas metas, principalmente
nos valores para a vida. (PENALVA, 2006)

De acordo com Plato a arte do professor pode ser verdadeira


ou falsa. Ela verdadeira quando se preocupa com a alma e o cor-
po nos estados sadio e enfermo. O professor leva o conhecimento
necessrio para aquele estado da alma. Por exemplo, a legislao
cuida da alma s e a justia cuida da alma enferma. A ginstica cuida
do corpo sadio e a medicina cuida do corpo doente. Assim as artes
verdadeiras buscam o melhor para o corpo e para a alma. A arte
falsa trabalha com o agradvel que se caracteriza por ser a imagem
enganosa da verdadeira arte. (PENALVA, 2006)

Desse modo, para Plato a essncia da profisso docente est em


levar o conhecimento que realmente beneficia o homem, aquilo que
mais valioso para a vida. Portanto, para o filsofo a profisso de
professor no consiste prioritariamente como ensinar, mas, antes
de tudo, o que ensinar. Uma vez de posse do que benfico para
o homem, o segundo passo do professor encontrar os meios de

estudos 45.indd 204 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 205

ensin-lo. A essncia da arte do professor consiste na sua referncia


do saber, que no se refere a nenhum interesse particular, mas sim
a o que realmente beneficia o seu grupo de aprendizes. No entanto,
para possuir e distinguir esse saber necessrio e, portanto ser
um profissional verdadeiro preciso que o professor se esforce,
esteja disposto ao trabalho, e, principalmente, tenha compromisso
pessoal como educador.

O Renascimento Filosfico e a figura do professor

O Renascimento Filosfico foi um perodo da histria da hu-


manidade caracterizado por uma falta de unidade das ideias, pelo
exagero e excesso. Nessa poca se destacaram muitos pesadores
como, por exemplo, Copernicus(1473-1543), Thomas More(1478-
1535), Desiderius Erasmus(1466-1536) e Juan Luis Vives(1492-
1540). O ltimo deles, Luis Vives, nos chama mais ateno por sua
identificao com os temas educativos e sua influncia na teoria
da educao. Na sua obra De disciplinis (Sobre os ensinamentos,
1531) imaginou e descreveu uma teoria abrangente da educao,
propondo uma reforma cultural, uma arte nova, baseada num
novo modelo de postura diante do mundo: uma perspectiva edu-
cativa renovada. (PENALVA, 2006)

Essa renovao educativa, proposta por Vives, est essencial-


mente comprometida com a regenerao da cultura mediante a
formao do homem. Entendemos que para o filsofo, a renovao
educativa est diretamente ligada formao do professor, e este
deve ser aquele que oferece respostas s necessidades humanas.

Semelhante a Plato, Vives diferencia o verdadeiro educador


do falso. De acordo com Vives o falso educador tem uma postura
de demagogo que gera discrdia e defensor de uma falsa ideia de

estudos 45.indd 205 26/05/14 14:55


206 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

educao, j que se caracteriza por no oferecer respostas reais e


vitais s verdadeiras necessidades humanas. O professor a figura
central do processo educativo e este no pode estar a servio de
nenhum interesse social particular. O professor deve servir ao ho-
mem, no aos partidos ou grupos sociais, pois, para Vives, o que
gera uma crise cultural exatamente a demagogia educativa dos
professores que se apropriam da funo para interesses particulares.
(PENALVA, 2006)

Atravs dessas ideias, podemos entender que para Vives a


educao deve estar fundamentada numa ideia de cultura que
possa responder s demandas da sociedade. A cultura existe para
dar respostas aos problemas reais, de maneira tal, que para o ser
humano supe um marco de possibilidades para estar no mundo.
Desse modo, fica claro que a cultura a referncia da educao, e
a educao a resposta s necessidades vitais do homem. Ou seja,
a teoria da educao de Vives est caracterizada por dar sentido
real ao homem, e no pode estar sujeita livre escolha particular,
e sim a uma realidade com um conhecimento rigoroso dela. Assim,
entendemos que a pesquisa uma condio imprescindvel para o
professor e deve estar associada reflexo crtica e coragem de
construir uma educao que d sentido s necessidades do homem.

Jean-Jacques Rousseau e a formao do professor

Indiscutivelmente Jean-Jacques Rousseau foi e ainda continua


sendo uma das maiores referncias na histria da educao. Sua
obra Emilio se caracteriza, no contexto educativo, por servir de
base terica para as maiores e mais importantes correntes peda-
ggicas dos sculos XIX e XX. Nela, a prioridade de Rousseau o
despertar do professor, da sua vocao no exerccio do ensino, pois,

estudos 45.indd 206 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 207

segundo o autor, isso condio indispensvel para criar homens.


(PENALVA, 2006)

Para Rousseau a construo de uma boa educao est em saber


o que necessrio para conduzir a formao do educando, e para
isso a sociedade deve formar verdadeiros professores, preparados
para enfrentar os aspectos negativos que cada indivduo em forma-
o traz dentro de si. Segundo ele, a base fundamental para formar
o profissional da educao que tenha como finalidade a liberdade,
ou seja, que o professor possua a independncia e autonomia para
decidir e conduzir o processo formador. Isso no significa que de-
vemos deixar a conduo da educao de maneira espontnea, sem
planejamento e preparo profissional. Ao contrrio, a autonomia
deve ser pautada em metas bem delineadas e fundamentadas com a
prtica e no conhecimento da condio humana para saber aplicar
o conhecimento da cincia oportuna. (PENALVA, 2006)

A partir dessas ideias, compreendemos que no entendimento


de Rousseau, o professor o mediador necessrio para o processo
de educao do aluno. Assim, segundo ele, s conseguiremos al-
canar as metas na formao do educando se formarmos autnticos
professores, na atividade educativa e portador do conhecimento da
realidade em questo.

Esse pequeno resumo de reflexes passadas, em trs momen-


tos da humanidade, sobre a profisso docente, nos serve aqui para
perceber que mais adiante os estudos sobre o papel do professor
convergem para um ideal quase nico: no h bom profissional sem
uma boa formao e no h formao docente sem o conhecimento e
a pesquisa educativa. Com isso nos perguntamos: o que fazer diante
disso? A seguir discutiremos sobre alguns pontos que entendemos
como vital para uma boa formao profissional.

estudos 45.indd 207 26/05/14 14:55


208 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

O enfoque reflexivo na formao e na prtica docente

John Dewey (1998) afirma que a essncia de toda filosofia a


filosofia da educao. Nesse sentido podemos dizer que a educao
que almeja uma sociedade est diretamente relacionada com suas
razes e seu contexto social. Da que, em nossa opinio, a formao
de professores seja o resultado de mltiplas variveis, de tipo con-
textual, que tem repercusses positivas e negativas, dependendo da
ideologia que adote a universidade e do currculo que ela aplique
na graduao.

O enfoque reflexivo na formao e na prtica docente confere


ao professor o papel de um profissional do ensino que maneja as
situaes complexas, mutantes, conflitivas e incertas de forma in-
vestigativa, transformando cada situao desafiadora em pesquisa
motivadora na busca de uma prtica ideal. A reflexo se converte
em um processo no qual a pesquisa o meio que permite tanto ao
docente quanto aos estudantes conhecer efetivamente a realidade
que os cerca. Essa ideia de vincular a realidade prtica permite
aos dois grupos apresentar posturas crticas e reflexivas sobre o en-
torno educativo em que esto inseridos, sem que haja preocupao
com o certo e o errado, ou a reproduo e imitao de padres
antigos. Na formao docente inicial esse enfoque se baseia, prin-
cipalmente, na aprendizagem da prtica, para ela e a partir dela, ou
seja, a convivncia com o ambiente escolar e a sala de aula se torna
indispensvel desde o incio do curso universitrio.

Se partirmos da ideia de que o processo de ensino e aprendi-


zagem, de uma lngua estrangeira, por exemplo, uma atividade
complexa, que se desenvolve em ambientes particulares, claramente
determinados pelo contexto escolar, onde o professor muitas vezes
enfrenta situaes imprevisveis, que exigem frequentemente solu-
es imediatas, para as quais no existem receita ou regra tcnica,

estudos 45.indd 208 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 209

a soluo para um bom resultado do trabalho vai muito alm do


que se aprende nas salas de aula da universidade. Essas condies
requerem do profissional uma formao que nem sempre um
conhecimento que parte do que foi aprendido nos estudos sobre
mtodos e enfoques. A formao que ajuda a dar respostas s
demandas dinmicas do processo de ensino e aprendizagem deve
estar baseada, sobretudo, na reflexo e na pesquisa em sala de aula,
sinalizando que a formao docente ocorre atravs de um processo
criativo e, muitas vezes, fruto de uma metodologia prpria desen-
volvida a partir da pesquisa. Dessa forma, o professor aprende a
analisar sua prtica, se responsabilizando por ela e buscando filtrar
o seu comportamento nas decises que devem ser tomadas em aula.

A maioria dos trabalhos de pesquisa que falam do modelo de


professor reflexivo se remonta ou faz referncia a trs autores que
surgem como pilares desse enfoque: John Dewey, Donald Schn e
Max Van Manen. E como atualmente no podemos nos referir ao
enfoque reflexivo sem mencionar o modelo de pesquisa-ao, ine-
vitavelmente nos recordamos de Stephen Kemmis, Ulf Lundgren,
Lawrence Stenhouse e John Elliott que se dedicaram a pesquisar
sobre a viabilidade das transformaes no processo de ensino e
aprendizagem a partir da pesquisa-ao e da aplicao do currculo.

A partir dessa perspectiva do professor como sujeito do conhe-


cimento e ao pedaggica, a tarefa do docente no desempenho
profissional tem como objetivo mais imediato resolver situaes
de ensino que invariavelmente exigem a reflexo crtica sobre a
prtica. Segundo Schn (1998), somente as formaes que do
ateno especial s prticas profissionais, com suporte cientfico,
oferece condies ao professor de atuar sem a reproduo de mode-
los educativos elaborados por quem est fora da sala de aula. Para
o autor, atuar na docncia exige reflexo sobre o trabalho que vai

estudos 45.indd 209 26/05/14 14:55


210 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

desenvolvendo dia-a-dia, j que o processo de ensinar e aprender e a


funo que deve exercer a aprendizagem na formao do educando
pedem um profissional que reflita no somente o como ensinar,
mas tambm porque ensinar.

Em concordncia com as ideias de Schn (1998), Paulo Freire


(2005) nos diz que a reflexo crtica sobre a prtica se torna uma
exigncia da relao entre a teoria e a prtica, adquirida na formao
profissional, sem a qual a teoria pode se converter em palavreado
e a prtica em ativismo.

A atividade docente a prxis, ou seja, podemos dizer que a


essncia da atividade do professor so o ensino, a aprendizagem e,
talvez atualmente, a pesquisa. Prxis provem do termo grego que
faz referncia prtica e se trata de um conceito que se utiliza em
oposio teoria, que costuma ser usado para nomear o processo
pelo qual uma teoria passa a formar parte da experincia vivida.
Na concepo marxista, a prxis a atitude terico-prtica huma-
na de transformao da natureza e da sociedade. No suficiente
conhecer e interpretar o mundo terico; preciso transformar
esse mundo atravs da prxis. Dessa forma a relao entre teoria e
prxis para Marx teoria e prtica. prtica quando a teoria, como
uma orientao da ao se adapta atividade do homem. No caso
de Marx, refere-se atividade revolucionria. terica quando
essa relao consciente, porm esttica, ou seja, no transforma
o contexto. (Vsquez, 1980).

Se a prxis o exerccio do professor, ela uma forma de


atividade especfica, e por isso deve aparecer como uma etapa
necessria na construo do conhecimento durante o processo
de formao docente. Na universidade, a teoria vista na sala de
aula e focalizada, talvez, de uma forma abstrata, mas a prxis,
em contrapartida, deve ser in lcus, momento em que a teoria

estudos 45.indd 210 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 211

experimentada no mundo fsico escolar para dar continuidade s


situaes terico-reflexivas.

No momento de planejar uma licenciatura devemos ter claro que


a formao prtica dos futuros docentes tambm saber o que e
o que intervm na sua prtica profissional. Os futuros professores
devem possuir conhecimentos e capacidades que permitam a eles
enfrentar adequadamente os desafios prticos que podem surgir
no exerccio profissional. No entanto, essa prtica no significa que
somente esteja relacionada com contextos escolares. Ela tambm
pode se estender a outros mbitos do ensino como, por exemplo,
ncleos de extenso ou cursos livres. Atravs do contato com dife-
rentes realidades de ensino, o docente tem maior possibilidade de
refletir, pesquisar, construir e sedimentar sua prtica. No futuro,
essas experincias serviro de suporte na orientao da interpreta-
o e interveno no processo educativo da realidade escolar em que
se encontra o professor. Ou seja, as diversas formas e contextos de
atuao profissional, experimentadas durante a formao, serviro
de farol para o entendimento e reflexo sobre a realidade em que
estar atuando, podendo assim orientar sua prtica nas anlises e
pesquisas sobre ela.

O processo de ensino e aprendizagem de qualquer disciplina


pode ser considerado complexo, contnuo e dependente de diversos
fatores que podero contribuir para o seu sucesso ou o seu fracasso.
No entanto, a formao do docente baseado no enfoque reflexivo
permite ao professor perceber com mais clareza as exigncias para
conseguir dar respostas aos mltiplos desafios que se apresentaram
no contexto de aprendizagem. Isso nos coloca em alerta sobre a im-
portncia de formar professores em e para a prtica. Dessa forma
um currculo de licenciatura deve compreender, na maioria dos
seus componentes curriculares, uma formao prtica reflexiva que

estudos 45.indd 211 26/05/14 14:55


212 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

conecte as questes de aprendizagem, ensino e contexto profissional


com os contedos tericos planejados nas matrias.

Perrenoud (2001) prope dez critrios bsicos que deveramos


levar em conta na hora da elaborao dos currculos de una forma-
o profissional:
1. Uma transposio didtica fundada na anlise das prticas e de
suas transformaes.
2. Um referencial de competncias que identifique os saberes e
capacidades requeridos.
3. Um plano de formao organizado em torno das competncias.
4. Uma aprendizagem atravs de problemas, um procedimento
clnico.
5. Uma verdadeira articulao entre teoria e prtica.
6. Uma organizao modular e diferenciada para cada realidade
social.
7. Uma avaliao formativa fundamentada na anlise do trabalho.
8. Tempos e dispositivos de integrao e de mobilidade curricular.
9. Uma associao negociada com os profissionais formadores.
10. Uma seleo dos saberes, favorvel a sua mobilizao no tra-
balho.

Um professor em formao no possui um pensamento prtico


reflexivo a partir de sua prpria experincia como aluno. Talvez ele
possua algumas concepes iniciais, fruto do desejo de ser professor.
Por isso importante, e qui indispensvel para a formao, que
o currculo da licenciatura preveja uma diversidade de experin-
cias prticas que estejam conectadas com os diferentes contextos
de aprendizagem. O objetivo disso que os futuros professores
incorporem, aos poucos, as possveis dificuldades que podero
encontrar nos processos de aprendizagem e nos comportamentos
dos estudantes.

estudos 45.indd 212 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 213

A universidade e seu papel na formao do professor

A sociedade do sculo XXI se caracteriza por uma maior preo-


cupao e conscincia pelas questes relacionadas com a educao
bsica e a formao dos seus profissionais. No entanto, de maneira
geral, historicamente no Brasil, a formao do professor dificilmente
foi assumida como de fundamental importncia para a consolidao
da democracia. Nos ltimos sculos, as constantes mudanas nas
diretrizes de formao do professor da educao bsica revelaram
um panorama descontnuo. As polticas educativas no conseguiram
estabelecer um padro minimamente consistente para enfrentar os
problemas educativos do pas. At pouco tempo, no se percebia
nas universidades, nas faculdades, nos institutos superiores, ou
mesmo nas diretrizes legais dos governos, uma proposta de mo-
delo curricular de formao docente com claridade de objetivos,
com referncia ao tipo de professor que se considera adequado, e,
principalmente, que defenda a autonomia profissional a travs do
exerccio da prtica reflexiva.

Constatamos que as atuais diretrizes curriculares para a


formao de professores no Brasil mostram um grande avano.
E para que as diretrizes saiam do papel indispensvel que durante
a graduao o docente tenha a oportunidade de discutir e debater
temas tericos visando a sua atuao profissional, melhorando
assim a qualidade da educao no pas. Para isso fundamental
que a formao universitria seja construda tambm no sentido
de garantir ao professor a condio de profissional reflexivo, pos-
suidor das competncias demandadas pelos processos de ensino e
aprendizagem nas escolas, e, principalmente, com capacidade para
ser gestor de seu prprio desenvolvimento intelectual.

estudos 45.indd 213 26/05/14 14:55


214 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Para Perrenoud (2001), a construo de saberes e competncias


na formao de um professor remetem a duas posturas fundamen-
tais: prtica reflexiva e implicao crtica. Ele esclarece essa postura
com a seguinte explicao:
Prctica reflexiva porque en las sociedades en transformacin,
la capacidad de innovar, de negociar, de regular su prctica es
decisiva. Pasa por una reflexin sobre la experiencia, la que
favorece la construccin de nuevos saberes. Implicacin crtica
porque las sociedades necesitan que los profesores se compro-
metan en el debate poltico sobre la educacin, a nivel de los
establecimientos, de las colectividades locales, de las regiones,
del pas. No slo en apuestas corporativas o sindicales, sino a
propsito de los fines y de los programas de la escuela, de la
democratizacin de la cultura, de la gestin del sistema educa-
tivo, del lugar de los usuarios, etc. (PERRENOUD, 2001, p. 506)

A partir do que nos diz Perrenoud (2001) na citao acima, nos


remetemos a Schn (1998) que levanta alguns questionamentos
que nos encorajam a refletir sobre a responsabilidade que temos,
ns professores formadores, no papel que desenvolvemos dentro
da universidade: no que consiste ser um profissional competente?
No que se aproxima ou se distancia o saber profissional dos tipos de
conhecimentos que esto nos livros acadmicos, artigos cientficos
e revistas eruditas? Em que sentido, se houver, existe um rigor inte-
lectual na prtica profissional? A partir desses questionamentos po-
demos justificar a importncia da relao entre a teoria e a prtica.

Sabemos que a formao inicial no funciona como uma re-


ceita inflexvel para todo e sempre, j que no se pode antecipar
diversidade que predomina no espao educativo nem no tempo,
em diferentes contextos, em diferentes pocas. No entanto, desde
o incio da graduao se pode, de fato, oferecer uma formao sig-
nificativa a partir das experincias docentes e, portanto, contribuir

estudos 45.indd 214 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 215

para uma formao de um profissional consciente do seu papel


em sala de aula. Para que isso efetivamente ocorra, necessria,
periodicamente, uma reviso do projeto pedaggico do curso de
licenciatura em questo, no que se refere a sua efetiva aplicao.
Isso vai exigir da universidade, novos e importantes esforos nas
reformas curriculares, principalmente no que tange formao
docente a partir do exerccio profissional. Nesse sentido, as licen-
ciaturas podem efetivamente criar futuros professores que estejam
comprometidos com o processo de ensino e aprendizagem e que
tambm sejam capazes de responder s demandas de trabalho.

Tambm somos conscientes de que o curso de graduao no


dar conta de todas as necessidades do estudante, por isso, como
afirma Giroux (1990), a formao de um professor reflexivo su-
pe tambm reconhecer que o processo de aprender a ensinar se
prolonga durante toda a licenciatura e vai muito alm dela. Ser
responsvel pela formao do professor da educao bsica, alm
do que j dissemos, exige uma atitude permanente do docente de
querer aprender com a experincia. Por isso quando o professor
assume uma prtica reflexiva tem que se apropriar de uma postura
mais comprometida, em primeiro lugar com o seu educando, e em
segundo lugar com ele mesmo.

As solues para muito dos problemas enfrentados nas aulas


da educao bsica no esto nos livros. Esto nos conhecimentos
disciplinares e didticos adquiridos nas pesquisas educativas.
Os saberes aprendidos nos diferentes meios, como por exemplo,
bibliografias, seminrios, congressos e o prprio entorno da sala
de aula na universidade so imprescindveis para a formao, mas
no suficientes para a verdadeira formao profissional docente.
O professor que reflete profundamente sobre sua tarefa docente
capaz de ser consciente do que faz e normalmente tem disposio

estudos 45.indd 215 26/05/14 14:55


216 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

para avanar na sua atuao pedaggica, e, portanto, suscitar indire-


tamente uma aprendizagem mais eficiente. Desse modo, o professor
no ser capaz somente de descobrir problemas ou aspectos parti-
culares de sua prtica, mas tambm poder empreender iniciativas
concretas em beneficio da prpria metodologia que aplica em sala.

Daniel Madrid (2004) nos mostra que, historicamente, os


caminhos da pesquisa sobre a formao de professores estiveram
marcados pelas seguintes caractersticas de evoluo:

1 Ensino centralizado no aluno, em suas necessidades e inte-


resses.

2 Maior ateno aos processos de aprendizagem. Em lugar de


centralizarmos exclusivamente nos resultados finais, nos detemos
na oferta de ensino dirigido ao processo.

3 Maior ateno natureza social da aprendizagem. Em lugar


de tratar os alunos como sujeitos isolados e desligados do contexto
social e escolar, trata-se de contemplar o contexto social e escolar
como o local onde h lugar para a construo social da aprendi-
zagem.

4 Considerao diversidade do alunado, sua variedade de


nveis e estilos cognitivos, sua procedncia cultural, social y lin-
gustica.

5 Construo sobre a especificidade dos contextos acadmicos,


levando em considerao as demandas que surgem dos alunos, suas
apreciaes subjetivas e afetivas.

6 Fomento a uma aprendizagem holstica em conexo com o


mundo exterior, se distanciando da aprendizagem fragmentada e
dos elementos de outras pocas.

estudos 45.indd 216 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 217

7 Conscientizao dos alunos sobre os objetivos e contedos que


aprendem e sobre as estratgias de aprendizagem que usam para
que sejam mais conscientes dos seus processos de aprendizagem.

8 Fomento aprendizagem autnoma e ensinar ao alunado a


aprender a aprender, a aprender por si mesmo.

9 Propiciar a aprendizagem significativa em relao com as


experincias prvias do alunado.

10 Favorecimento do desenvolvimento de una aprendizagem


duradoura (lifelong learning) e que no se centre exclusiva-
mente nos conceitos e princpios, e sim no desenvolvimento das
capacidades.

11 Favorecimento da aprendizagem por descobrimento atravs


da anlise e pesquisa de situaes variadas.

12 Favorecimento da aprendizagem cooperativa, intensifican-


do o trabalho por conjunto, para que os alunos aprendam em coo-
perao com outros e o professor passe tambm a ser co-aprendiz.

13 Dar bases para que o alunado busque o desenvolvimento


profissional, mais alm da formao que recebe na universidade.

Analisando essa evoluo histrica e tomando como base a


teoria crtica do currculo, um currculo de licenciatura deve ser
elaborado, levando em considerao o contedo terico, a prtica
profissional e o desenvolvimento humano, projeto este, fundamen-
tado no dilogo entre as diversas reas que o sedimenta. Assim
tambm acreditamos que se deve construir uma formao inicial
docente, dentro de um processo aberto, dialgico e crtico. No en-
tanto, os ajustes e transformaes no ensino superior, em especial
das licenciaturas, somente iro acontecer quando responderem s
necessidades que tm as pessoas implicadas no processo, particu-

estudos 45.indd 217 26/05/14 14:55


218 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

larmente, os professores em formao. Se a universidade deixar um


pouco de lado os modelos cartesianos e positivistas, os substituindo
pela construo de um conhecimento profissional que estimule a
problematizao do ensino, levar o futuro professor a exercitar
continuamente a reflexo crtica das experincias vivenciadas.

Com relao a essa postura, Zabala (1998) afirma que as prti-


cas deveriam se converter numa pea chave dentro dos currculos
das licenciaturas, j que elas iniciam o processo de vivncias das
situaes reais de ensino e de aprendizagem com vrios propsitos
de uma s vez. Esses propsitos podem ser o ponto de referncia e
de contraste para a aplicao e reviso dos conhecimentos tericos
oferecidos nas distintas disciplinas dispostas na grade curricular.

No h dvida de que todos os tipos de prticas existentes du-


rante o processo formador geram no professor uma reflexo sobre
sua autonomia. E, sem deixar de considerar as reformas e promul-
gaes das leis que regulamentam a educao no Brasil, devemos
ter claro que as experincias na universidade o princpio de tudo.
Ou seja, s haver transformao efetiva na educao escolar de
base quando os professores tiverem uma formao que responda
s necessidades que apresentam as pessoas que esto implicadas
no contexto educativo. Saber atender s necessidades do contexto
educativo implica em saber identificar essas necessidades, e isso
ocorre de forma mais positiva quando os professores so conscientes
de que, colocando em ao as teorias espontneas que sustentam
as prticas nas aulas e tomando o controle do seu prprio saber
profissional, estaro mais bem preparados para enfrentar os de-
safios da docncia.

E para superar os desafios impostos pelos contextos educati-


vos atuais, entendemos que a prtica reflexiva deve se converter
numa atividade permanente durante e aps a formao inicial

estudos 45.indd 218 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 219

do professor. Para isso se faz necessrio ampliar os horizontes e


lanar mo de outras experincias de sucesso como modelo para
conseguirmos suprimir as deficincias e falhas identificadas no
processo formador docente. A seguir, veremos um modelo que pode
ser bastante benfico para a formao e prtica do profissional da
educao.

A pesquisa-ao como instrumento na formao e na


prtica docente

A pesquisa-ao (doravante P-A) surgiu a partir dos trabalhos


realizados nos Estados Unidos pelo psiclogo prussiano Kurt
Lewin por volta de 1940, sustentando a ideia da criao de conhe-
cimentos cientficos no mbito social com a interveno direta da
comunidade. Seu artigo Action Research and Minority Proble-
ms1, publicado em 1946, o ponto de partida de todas as outras
propostas vindouras. Embora questionado pelo seu pragmatismo,
Lewin apresentou a definio de P-A atravs de um tringulo para
mostrar a necessidade da pesquisa, da ao e da formao como
elementos essenciais para o desenvolvimento profissional. Para o
autor as trs extremidades do tringulo devem permanecer unidas
para que se d a integrao entre essas trs dimenses do processo
reflexivo, como podemos ver na figura abaixo:

1 A Pesquisa-Ao e os Problemas das Minorias (traduo nossa).

estudos 45.indd 219 26/05/14 14:55


7. A pesquisa-ao como instrumento na formao e na prtica docente

A pesquisa-ao (doravante P-A) surgiu a partir dos trabalhos realizados nos


Estados Unidos pelo psiclogo prussiano Kurt Lewin por volta de 1940, sustentando a
ideia da criao de conhecimentos cientficos no mbito social com a interveno direta
da comunidade. Seu artigo Action Research and Minority Problems1, publicado em
1946, o ponto de partida de todas as outras propostas vindouras. Embora questionado
220 ESTUDOS LINGUSTICOS
pelo seu pragmatismo, Lewin apresentou E LITERRIOS
a definio de P-A atravs de um tringulo
para mostrar a necessidade da pesquisa, da ao e da formao como elementos
essenciais para o desenvolvimento profissional. Para o autor as trs extremidades do
tringulo devem permanecer unidas para que se d a integrao entre essas trs
dimenses do processo reflexivo, como podemos ver na figura abaixo:

Pesquisa

Ao Formao

Figura 1. Tringulo de Lewin (1946)


Figura 1. Tringulo de Lewin (1946)

1
A Pesquisa-Ao e os Problemas das Minorias (traduo nossa).
No ano de 1953 foi publicada a obra Action Research to Im-
prove School Practices2 que, utilizando o conceito de pesquisa
ao cooperativa gerou iniciativas no campo educativo graas
colaborao de vrios professores da educao bsica. No entanto,
foi o pesquisador John Dewey quem impulsionou as ideias da P-A
dentro do movimento de educao progressista depois da Primeira
Guerra Mundial. (McKernan, 2008).

Somente a partir de 1970, com os pesquisadores Elliott e Adel-


man, relacionados com o Projeto Ford de Ensino, e com Stenhouse,
criador do movimento do professor pesquisador e responsvel pelo
Projeto Humanidades na Inglaterra, a P-A toma um impulso mais
slido permanente.

Diversos pesquisadores como Elliott (2005), McKernan (2008),


Carr e Kemmis (1988), conceituaram a P-A como um diagnstico
dos problemas prticos cotidianos, ou seja, uma definio do proble-
ma que se necessita pesquisar como incio de processos mudanas
sistemtico bem planejado. Propem um programa progressivo

2 Pesquisa-Ao para melhorar as prticas da Escola (traduo nossa), obra de Stephen


Maxwell Corey (1953) publicada por Teachers College, Columbia University.

estudos 45.indd 220 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 221

de hipteses procedente da indagao auto-reflexiva para poder


reunir e interpretar dados que ajudem a uma melhor compreenso
interpretativa da situao social pesquisada. Dessa maneira h uma
unio entre a teoria e a prtica que, segundo Grundy (1991), reflete
em trs aspectos que so particularmente significativos: participa-
o nas decises, planejamento e processo reflexivo. Quer dizer,
uma espiral reflexiva da P-A compreende, basicamente, quatro
fases ou momentos representativos: planejar, atuar, observar e
refletir. A seguir podemos ver graficamente o resumo do processo
histrico da P-A:

Processo Histrico da Pesquisa-Ao

1942 Nascimento - Lewin

1950 Adormecimento da Pesquisa-Ao

1970 Despertar

Pesquisa-Ao sobre o Currculo



Escola


Inglesa Australiana
Elliott Carr
Stenhouse Kemmis

Figura 2. Resumo do processo histrico P-A

Figura 2. Resumo do Para


processo
definir a histrico P-Aabrangente podemos esclarecer que no mbito
P-A de maneira
educativo : a) situacional, porque se centraliza num contexto particular; b)
colaboradora, porque pode contar com a ajuda de outras pessoas do contexto; c)
participativa, porque, para que ocorra, temos que ter todos os membros do grupo da
Para definir a P-A de maneira abrangente podemos esclarecer
aula participando e d) auto-avaliadora ou reflexiva, porque para, que o processo de
pesquisa se d, necessrio que haja reviso tanto do planejamento como das etapas
que no mbito educativo : a) situacional, porque se centraliza num
sucessivas, j que a finalidade a melhora da prtica de uma maneira ou de outra.
Portanto, podemos graficamente representar o conceito de P-A da seguinte forma:

contexto particular; b) colaboradora, porque pode contar com a


ajuda de outras pessoas do contexto; c) participativa, porque,
para que ocorra, temos que ter todos os membros do grupo da aula

estudos 45.indd 221 26/05/14 14:55


222 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

participando e d) auto-avaliadora ou reflexiva, porque para, que


o processo de pesquisa se d, necessrio que haja reviso tanto
do planejamento como das etapas sucessivas, j que a finalidade
a melhora da prtica de uma maneira ou de outra. Portanto, pode-
mos graficamente representar o conceito de P-A da seguinte forma:

Planejar Plano Revisado


3


Refletir 1
Atuar Refletir 2
Atuar

Observar Observar

Figura 3 Espiral das etapas da P-A (Latorre, 2004)

Figura 3. Espiral das Aetapas


partir doda P-A (Latorre,
pouqussimo que vimos2004)
sobre a P-A importante ressaltar que esse
tipo de trabalho parte de uma nova ideologia e de uma concepo de mundo e da vida
na qual pressupe uma aproximao peculiar com a realidade. Caracteriza-se pelo af
de ler, perceber e apreender a prxis cotidiana que se manifesta cada vez de forma
A partir do pouqussimo que vimos sobre a P-A importante
distinta. Esta modalidade de trabalho enfoca a realidade a partir da busca do estudo dos
problemas prticos, das conexes entre teoria com a prxis, procurando dar
ressaltar que esse tipo de trabalho parte de uma nova ideologia e de
protagonismo ao prtico como principal agente do processo, com a finalidade de
solucionar os problemas que surjam e lograr a melhoria de uma situao ou realidade
concreta, seja esta social, poltica ou educativa.
uma concepo de mundo e da vida na qual pressupe uma apro-
Mas importante recordar que no estamos diante de um processo de pesquisa
neutra, mas, antes de quaisquer coisas, de um processo que implica explicao e
ximao peculiar com a realidade. Caracteriza-se pelo af de ler,
reflexo enquanto analisa diferentes situaes de melhoria do planejamento de um
determinado contexto. Embora haja certa flexibilidade no processo, a P-A exige um
perceber e apreender a prxis cotidiana que se manifesta cada vez
determinado rigor metodolgico como uma nova atitude do professor pesquisador
diante daquilo que vai analisar.
Dessa maneira, podemos afirmar que a principal finalidade da P-A so as
de forma distinta. Esta modalidade de trabalho enfoca a realidade
mudanas de atitude, a melhoria e a transformao de determinados aspectos, situaes
e contextos. No obstante, transformar alguma realidade implica sempre uma viso
a partir da busca do estudo dos problemas prticos, das conexes
crtica de reflexo e de denncia de tudo o que convm melhorar. Isso implica tambm
na formao profissional que vai moldando o fazer dirio do professor em discusso
entre teoria com a prxis, procurando dar protagonismo ao prtico
com a teoria e a prtica, a realidade e a utopia, entre o que e o que deveria ser. Essas
reflexes, inevitavelmente constituem um novo modelo de professor, mais exigente e
como principal agente do processo, com a finalidade de solucionar
flexvel, com capacidade de educar e de se educar num marco que caracteriza um
avano permanente de melhoria do processo de ensino e de aprendizagem.

os problemas que surjam e lograr a melhoria de uma situao ou


8. Consideraes finais
realidade concreta, seja esta social, poltica ou educativa.
Vimos nas nossas reflexes que ao longo da histria da humanidade, o homem
sempre demonstrou interesse e reconhecimento pela necessidade da formao docente.
Mas importante
dos autores citados, recordar que no estamos dada diante
formao dode um pro-
Embora com nomenclaturas no uniformizadas, as diferentes falas, das distintas pocas,
todas elas so marcadas pela importncia
professor. Outra caracterstica unnime entre os estudiosos o alerta para a necessidade
cesso de pesquisa neutra,
de o professor ser mas,
um pesquisador, antes
j que sem deassociada
a pesquisa quaisquer coisas, de um
ao exerccio docente
fica muito difcil que consigamos atender as demandas de maneira eficiente. Atualmente
processo que implica explicao e reflexo enquanto analisa dife-
rentes situaes de melhoria do planejamento de um determinado
contexto. Embora haja certa flexibilidade no processo, a P-A exige

estudos 45.indd 222 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 223

um determinado rigor metodolgico como uma nova atitude do


professor pesquisador diante daquilo que vai analisar.

Dessa maneira, podemos afirmar que a principal finalidade


da P-A so as mudanas de atitude, a melhoria e a transformao
de determinados aspectos, situaes e contextos. No obstante,
transformar alguma realidade implica sempre uma viso crtica de
reflexo e de denncia de tudo o que convm melhorar. Isso implica
tambm na formao profissional que vai moldando o fazer dirio
do professor em discusso com a teoria e a prtica, a realidade e a
utopia, entre o que e o que deveria ser. Essas reflexes, inevita-
velmente constituem um novo modelo de professor, mais exigente
e flexvel, com capacidade de educar e de se educar num marco
que caracteriza um avano permanente de melhoria do processo
de ensino e de aprendizagem.

Consideraes finais

Vimos nas nossas reflexes que ao longo da histria da huma-


nidade, o homem sempre demonstrou interesse e reconhecimento
pela necessidade da formao docente. Embora com nomenclaturas
no uniformizadas, as diferentes falas, das distintas pocas, dos
autores citados, todas elas so marcadas pela importncia dada
formao do professor. Outra caracterstica unnime entre os
estudiosos o alerta para a necessidade de o professor ser um
pesquisador, j que sem a pesquisa associada ao exerccio docente
fica muito difcil que consigamos atender as demandas de maneira
eficiente. Atualmente a preocupao pelo exerccio pedaggico e
pela formao do profissional do ensino continua sendo foco de
ateno e estudo, no entanto, sempre atentando para a demanda
da educao bsica e instituies de ensino, ou seja, de forma mais
consciente e coerente com o contexto educativo.

estudos 45.indd 223 26/05/14 14:55


224 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

A reflexo da sua prtica docente concede ao professor a opor-


tunidade de escolher e aplicar atividades de aprendizagem compa-
tveis com o perfil do seu grupo e que, portanto, sejam mais bem
aproveitadas pelo alunado. Da mesma forma, o professor pode revi-
sar contedos, metodologias e criar estratgias de aprendizagem que
culminaro em melhores resultados dos objetivos anteriormente
programados. No entanto, no podemos esquecer que ao assumir a
postura de professor pesquisador o docente no pode prescindir de
estar atento ao contexto sociocultural e de ser sensvel s situaes
problemticas de aprendizagem que provavelmente encontrar no
exerccio da profisso.

Se estivermos de acordo que o professor um ser social e se


forma e se transforma no seu contexto, fundamentalmente a partir
das orientaes recebidas no ambiente em que se gradua, ento,
a universidade, lugar onde se pesquisa e ensina a pesquisar, tem
um papel fundamental no preparo desse professor, principalmente
no que se refere a ajud-lo a enfrentar os desafios atuais de uma
sociedade que exige constantemente a demonstrao de uma com-
petncia real, baseada em um conhecimento slido e na capacidade
de exercer a tarefa como professor.

Referncias

ALTET, M. La competencia del maestro profesional o la importancia


de saber analizar las prcticas. Em Paquay, L., Altet, M., Charlier, .
e Perrenoud, P. La formacin profesional del maestro. Estrategias y
competencias. Mxico, Fundo de Cultura Econmica, p. 30-41, 2005.
CARR, W. y KEMMIS, S. Teora crtica de la enseanza. La
investigacin-accin en la formacin del profesorado. Barcelona,
Martnez Roca, 1998.

estudos 45.indd 224 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 225

CONTRERAS, J. D. Enseanza, currculum y profesorado. Madrid,


Ediciones Akal, 1990.
DEWEY, J. Cmo pensamos. Nueva exposicin de la relacin entre
pensamiento reflexivo y proceso educativo. Barcelona, Paids, 1998.
Elliot, J. El cambio educativo desde la investigacin-accin. Madrid,
Morata, 4 Ed. 2005.
FREIRE, P. Cartas a quien pretende ensear. Buenos Aires, Siglo
Veintiuno Editores, 5 ed. 2005.
GIMENO, J. S. Reformas educativas: utopa, retrica y prctica.
Cuadernos de Pedagoga. Madrid; v. 209, p. 62-68, dez, 1992.
GIMENO, J. S. Educar y convivir en la cultura global. Madrid,
Editorial Morata, 2001.
GIMENO, J. S. El currculum una reflexin sobre la prctica. Madrid,
Morata, 8 ed. 2002.
GIMENO, J. S. La educacin an es posible. Madrid, Morata, 2005.
GIROUX, A. H. Los profesores como intelectuales. Hacia una
pedagoga crtica del aprendizaje. Barcelona, Paids, 1990.
GRUNDY, S. Producto o praxis del curriculum. Madrid, Ediciones
Morata, 1991.
LATORRE, A. La investigacin-accin. Conocer y cambiar la prctica
educativa. Barcelona, Gra, 2 Ed. 2004.
MADRID, D. F. Gua para investigacin en el aula de idiomas.
Granada, Editorial Universitario, 2004.
MCKERNAN, J. Investigacin-accin y currculum. Madrid, Morata,
3 ed. 2008.
NVOA, A. Para una formacin de profesores construida dentro de la
profesin. In Revista de Educacin. Instituto de Evaluacin, Ministerio
de Educacin, Madrid; n. 350 p. 203-218, 2009.
PENALVA, J. B. El nuevo modelo de profesor: un anlisis crtico.
Madrid, La Muralla, 2006.

estudos 45.indd 225 26/05/14 14:55


226 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

PREZ, A. G. Autonoma profesional del docente y control democrtico.


Em Varios autores, Volver a pensar la educacin. Madrid, Morata,
2 ed. p. 335-353, 1999.
PERRENOUD, P. La formacin de los docentes en el siglo XXI. In
Revista de Tecnologa Educativa v. 14, p. 503-523, 2001.
PERRENOUD, P. Diez nuevas competencias para ensear. Barcelona,
5 ed. 2002.
PERRENOUD, P. Desarrollar la prctica reflexiva en el oficio de
ensear. Profesionalizacin y razn pedaggica. Barcelona, Gra,
2004.
SCHN, D. La formacin de profesionales reflexivos. Hacia un nuevo
diseo de la enseanza y el aprendizaje en las profesiones. Barcelona,
Paids, 1992.
VSQUEZ, A. S. Filosofa de La Praxis. Barcelona, Editorial Crtica,
1980.
ZABALA, M. A. El prcticum en la formacin de maestros. En la
formacin de maestros en los pases de la Unin Europea. Madrid,
Narcea, 1998.
ZABALA, M. A. Diarios de clase. Un instrumento de investigacin y
desarrollo profesional. Madrid, Narcea, 2004.
ZAMBRANO, A. L. Tres tipos de saber del profesor y competencias: una
relacin compleja. En Revista Educere, vol. 10, n. 33, p. 225-232, 2006.
ZEICHNER, K.M. Los profesores como profesionales reflexivos y la
democratizacin de la reforma escola. In varios autores, Volver a
pensar la educacin. v. 2, Madrid, Morata, p. 385-398, 1999.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 226 26/05/14 14:55


A domesticao/estrangeirizao
dos elementos culturais no curso de
espanhol do programa de proficincia
em lngua estrangeira para estudantes e
servidores da UFBA

The domestication/foreignization of
cultural elements in the spanish course
in the proficiency program in foreign
language for students and servers from
UFBA

Jorge Hernn Yerro


Universidade Federal da Bahia

RESUMO: Com base nos resultados de um Trabalho de Concluso de


Curso (TCC) de graduao defendido recentemente na Universidade
Federal da Bahia por Renata Silva Pereira, Dilogos entre culturas e o
material didtico em espanhol (2013), este artigo analisa a forma como
os contedos culturais so abordados em um conjunto de aulas e no ma-
terial didtico utilizado no PROEMES (Programa Especial de Monitoria
de Espanhol), parte integrante do PROFICI (Programa de Proficincia

estudos 45.indd 227 26/05/14 14:55


228 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

em Lngua Estrangeira para Estudantes e Servidores da UFBA). Uma vez


que os estudos tericos das reas de Ensino de Lnguas Estrangeiras e de
Traduo encontram, na atualidade, vrios pontos em comum, a reflexo
que conduz este artigo se sustentar em dois conceitos prprios deste
ltimo campo do saber: a domesticao e a estrangeirizao, de Lawren-
ce Venuti. O artigo apresenta, em um primeiro momento, os resultados
do TCC; a continuao desenvolve a base terica e suas relaes com o
corpus estudado e, finalmente, observa estes resultados sob o olhar dos
conceitos chave. Sua proposta se justifica na possibilidade que permite o
dilogo interdisciplinar de ampliar as reflexes de uma rea do saber como
acontece, neste caso, com a do Ensino de Lnguas Estrangeiras olhada pelo
vis dos Estudos da Traduo.

Palavras-chave: Ensino de espanhol, Estudos da Traduo, Domesti-


cao/Estrangeirizao.

ABSTRACT: Based on the results of a monograph for a undergraduation


course, recently defended by Renata Silva Pereira in Universidade
Federal da Bahia, Dilogos entre culturas e o material didtico em
espanhol (2013), this work analyzes the way how the cultural contents
are dealt in a set of classes and also analyzes the didactic material used
in PROEMES - Programa Especial de Monitoria de Espanhol (Special
Program for Spanish Language Monitory), part of PROFICI - Programa
de Proficincia em Lngua Estrangeira para Estudantes e Servidores da
UFBA (Proficiency Program in Foreign Language for Students and Servers
from UFBA). Once the theoretical studies on Foreign Language Teaching
and Translation find, nowadays, many common points, the reflection
which leads this article will be based on two concepts from the Translation
studies: the domestication and foreignization by Lawrence Venuti. The
article presents, at the first moment, the results of the monograph; second,
develops the theoretical bases and their relations to the studied corpus
and finally, observes these results under the key concepts presented.
The purpose of this work is justified by the possibility that allows the
interdisciplinary dialog to expand the reflections of a knowledge area as
it is, in this case, what happens to the Foreign Language Teaching Studies
observed under the Translation Studies.

estudos 45.indd 228 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 229

Keywords: Spanish Teaching, Translation Studies, Domestication/


Foreignization.

Introduo

Tanto quando se trabalha com o ensino de Lnguas Estrangeiras


(LE), quanto com a traduo interlingual, se produz um paradoxo:
o outro, o desconhecido ao que s se tem acesso atravs da ln-
gua, , em sua ausncia, presena inevitvel. O que fazer com ele
uma questo central, uma vez que se trata, em ambos os casos, de
torn-lo inteligvel, tir-lo do mbito do estranhamento e dar pra
ele um lugar simblico na comunidade domstica. O tratamento
das marcas culturais , portanto, fundamental, uma vez que elas
esto atreladas a questes poltico-identitrias tanto da comunidade
estrangeira, quanto da local.

Entre os atores que participam nestes processos de domesti-


cao, existem quatro sobre os quais me concentrarei. O primeiro
par est composto pelo professor e pelo tradutor. O outro, pelo
material didtico e pelo prprio texto traduzido. Todos eles so
atores que, cada um desde seu lugar, determinaro de que forma a
cultura forasteira ser representada na comunidade local. Existem
outros atores cujos interesses interferem nos resultados desta re-
presentao, no entanto, nesta oportunidade me concentrarei em
dois destes quatro, professor e material didtico, porm sempre
em relao direta com os dois restantes, tradutor e texto traduzido.

Assim sendo, discutirei aqui o tratamento das marcas culturais


no mbito do ensino de LE, com base em dois conceitos prprios
da traduo. O corpus para minha reflexo ser retirado de um
trabalho de concluso de curso de graduao, recentemente de-
fendido por Renata Pereira Silva e orientado por Mrcia Paraquett,

estudos 45.indd 229 26/05/14 14:55


230 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

na Universidade Federal da Bahia. O ttulo do trabalho Dilogos


entre culturas e o material didtico em espanhol (2013) e nele ob-
servado o comportamento dos monitores do PROEMES (Programa
Especial de Monitoria de Espanhol), parte integrante do PROFICI,
(Programa de Proficincia em Lngua Estrangeira para Estudantes
e Servidores da UFBA), ao longo de uma srie de aulas. Tambm,
a partir desta monografia, refletirei sobre o material didtico neste
mesmo curso. Desta forma, farei uso de dois conceitos do terico
da traduo Lawrence Venuti e identificarei se o curso de lngua
espanhola, PROMES, e o material didtico usado nele domesticam
ou estrangeirizam os elementos culturais estrangeiros trabalhados
em aula.

O contedo cultural no PROEMES

O trabalho de Silva, corpus deste artigo, observa um espao de


ensino de LE particular. O PROFICI, criado em agosto de 2012,
um projeto institucional da UFBA que, em consonncia com o
programa Cincias sem fronteiras, visa a auxiliar a Universidade
atravs da qualificao em lngua estrangeira de sua comunidade,
colaborando
na consolidao, expanso e internacionalizao da cincia e
tecnologia, da pesquisa, criao e novao, e da sua competiti-
vidade, por meio do intercmbio e da mobilidade internacional,
propiciando a formao e capacitao de pessoas com elevada
qualificao em universidades, instituies de educao pro-
fissional e tecnolgica, e centros de pesquisa estrangeiros de
excelncia. (UFBA, 2012, p. 1)

A tendncia internacionalista do Cincias sem fronteiras jus-


tifica a criao do PROFICI. Assim, este ltimo visa qualificao
em Lnguas Estrangeiras de seus estudantes e, em um primeiro

estudos 45.indd 230 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 231

momento, com um objetivo bem especfico: preparar seus alunos


para fazer os testes internacionais de proficincia na lngua da uni-
versidade para onde pretendem ir. Cabe perguntar, ento, em um
contexto de ensino to especfico, que lugar deveria ocupar a cultura
nas aulas. Neste sentido, ser de grande importncia a proposta do
livro didtico adotado pelo curso, pois dele depender boa parte do
recorte das amostras das culturas estrangeiras que entrem na sala
de aula. O material usado no PROEMES El arte de leer espaol
(2010), de Deise Cristina de Lima Picano e Terumi Koto Bonnet
Villalba, sobre o qual falarei mais adiante.

Para responder estas questes, entrarei nos resultados alcan-


ados pela pesquisa de Silva, no que se refere ao comportamento
dos monitores do curso durante as aulas em relao aos aspectos
culturais. importante salientar que o TCC se focou em analisar
especificamente a presena destes elementos, tanto no desenvolvi-
mento das aulas quanto no livro didtico, pois a autora entende que
a importncia de um ensino de lngua estrangeira que se baseie
no dilogo cultural reconhecida pelo prprio governo brasilei-
ro, uma vez que, segundo os Parmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL. MEC, 1998, p.38), aprender uma lngua estrangeira no
apenas conhecer formas e estruturas lingusticas em um cdigo
diferente, mas uma possibilidade de agir discursivamente no
mundo. (SILVA, 2013, p. 6)

Conforme indicado no TCC, as observaes feitas em campo


focalizaram, em relao aos alunos,
os interesses de temas manifestados atravs das interaes em
sala de aula; o nvel de dificuldades da compreenso da lngua;
a forma como se percebe a cultura estrangeira; se o material
didtico satisfaz ao aluno; de que tipo de atividades mais gosta
e de que menos gosta. (Ibid. p. 24)

estudos 45.indd 231 26/05/14 14:55


232 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Alm dos alunos, outro foco importante de anlise foram os


professores e sua prtica diante destes aspectos. necessrio men-
cionar, antes de entrar nos resultados das observaes, que o corpo
docente do PROFICI est composto por alunos da graduao de
letras da prpria universidade, pois o programa se apresenta como
um espao de ensino de LE para a comunidade UFBA e tambm
como um lugar de prtica de ensino e pesquisa para os professores
em formao de Lnguas Estrangeiras.

Silva observou quatro professores durante trs semanas.


As aulas examinadas aconteceram duas vezes por semana de for-
ma presencial, com uma durao de 2 horas, e corresponderam
ao quarto perodo de oito que tem o curso. O nvel deste perodo
equivale ao bsico 2, segundo o Marco Comum Europeu de Refe-
rncia para Lnguas.

Na seguinte tabela trago um resumo dos assuntos tratados nas


aulas e dos comentrios de Silva sobre a forma como foram traba-
lhados, pois estes so a base de reflexo deste artigo.
Tabela 1 - Contedos culturais observados durante a pesquisa de campo do TCC.

Aula e
Tema da aula Comentrio sobre a aula
monitor
O subtema gastronomia foi mais relevante para
Regies da analisar aspectos culturais do que o utilizado para
1A Espanha atravs abordar o tema Regies da Espanha. Os textos
da gastronomia. trabalhados revelam uma viso tradicionalista. A
receita trabalhada est em portugus.

Explorao O elemento cultural foi trabalhado com relevncia


de crianas e social. O tema abriu inmeras possibilidades de
2B
adolescentes na anlise, discusso e reflexo sobre de aspectos
Amrica Latina. culturais, sociais e valores pessoais.

Os temas culturais que apareceram nos textos como


Futebol. Prtica
o futebol, o uso de jogos eletrnicos e o isolamento
3C de jogos virtuais
social foram deixados em segundo plano nessa aula.
e no virtuais.
Prevaleceu o estudo de estruturas lingusticas.

estudos 45.indd 232 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 233

A cultura foi mais bem trabalhada ao se chamar a


Comida e hbitos ateno para os hbitos alimentares de povos da
4A
alimentares. cultura alvo e da cultura dos estudantes, fazendo-se
comparaes e reflexes.

O elemento cultural foi tratado na aula de forma a


aproximar o aluno da realidade dos povos da cultura
Comida e hbitos alvo e poder comparar com sua realidade. O tema
5B
alimentares. Comida e o material selecionado e organizado
trouxeram muitas possibilidades para avaliar
aspectos culturais, em especial hbitos alimentares.

O tema, por ser muito amplo permite muitas


possibilidades de avaliar aspectos culturais,
mas o material didtico adotado pela professora
Dilogos.
dificultou esse trabalho, pois se tratava de um texto
Pessoas
6C programado e no uma experincia real, o que o
conversam sobre
tornaria mais espontnea. As atividades foram
temas cotidianos.
focadas na estrutura da lngua e em perceber o uso de
algumas formas gramaticais, o que no levou a uma
reflexo cultural.

O tema da aula possibilitava a anlise de muitos


aspectos culturais. O primeiro texto que falava de
esporte e sade poderia ter sido melhor discutido,
permitindo que os alunos opinassem e refletissem
7A Esportes.
mais sobre o assunto, e o segundo texto teve uma
funo mais ilustrativa por mostrar figuras com
nomes de esportes, mas tambm chamou a ateno
para o uso de estruturas lingusticas.

O tema da aula trouxe diversas possibilidades para


anlises, discusses e reflexes sobre aspectos
culturais, sociais e valores pessoais, o material
Preconceito,
tambm selecionado permitiu que isso fosse feito.
discriminao
8B Os textos traziam experincias reais com as quais
racial e de
os alunos se identificaram, o que tornou mais
nacionalidade.
espontneas as atividades de discusso e de escrita
de um texto reflexivo sobre os assuntos explanados
na aula.

estudos 45.indd 233 26/05/14 14:55


234 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

O tema da aula foi interessante, assim como o texto


escrito e a imagem mostrada, e tambm as perguntas
feitas pela professora, mas a discusso poderia
ter sido estendida mais um pouco. A atividade de
criar e contar uma histria foi muito criativa, mas
9B Histrias.
ficou muito no mbito da fico, talvez se os alunos
criassem uma histria sobre si mesmos tentando
fazer um paralelo com a do personagem do texto eles
pudessem se identificar mais culturalmente com o
universo da lngua estrangeira.

O tema da aula trouxe muitas oportunidades para


a realizao de anlises, discusses e reflexes,
chamando a ateno para aspectos culturais, sociais
e valores e atitudes pessoais e o material selecionado
e organizado pela professora permitiu que isso
As mulheres e
fosse feito de uma maneira muito satisfatria. Os
10 C os homens na
textos eram de fcil compreenso e tornaram a aula
sociedade.
bastante dinmica e os alunos puderam se identificar
com eles, o que favoreceu as atividades de discusso.
Isso tambm ajudou os alunos a terem boas ideias
para a hora de elaborar a produo textual solicitada
pela professora.

O tema da aula bastante relevante para trabalhar


aspectos culturais. O material levado e organizado
pela professora e adequado, assim como as atividades
Corpo e do livro, que, ao propor que os alunos comparassem
11 A qualidade de as pirmides alimentares propostas para os
vida. espanhis e para os brasileiros, permitiram que eles
percebessem diferenas culturais no somente no
contexto da cultura estrangeira, mas tambm na sua
cultura e na de seus colegas.

O tema da aula, sem dvida, era relevante para os


alunos, por falar do continente do qual eles fazem
parte e comparar o conceito atual de descobrimento
Descobrimento
12 B com o que eles aprenderam na poca da escola. Os
da Amrica.
textos do livro traziam informaes novas sobre
a histria do descobrimento da Amrica e dos
personagens envolvidos nela.

estudos 45.indd 234 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 235

A aula se concentrou bastante no aspecto gramatical


da lngua e o estudo de elementos culturais foi
deixado de lado. O texto da pgina 13 do livro, bem
Traduo e
como a proposta de atividade de traduzi-lo, poderiam
13 C Agente da
contribuir melhor para a anlise de aspectos
passiva.
culturais, ao se chamar a ateno para os elementos
culturais que poderiam interferir na traduo do
texto do portugus para o espanhol.

O tema da aula possibilitou discusses que


abordaram elementos culturais e o material
selecionado pela professora permitiu que tais
As mulheres e discusses levassem a reflexes significativas. Os
14 D os homens na textos eram contemporneos, permitindo que os
sociedade. alunos se identificassem melhor com eles. O tema
gramatical foi introduzido na aula a partir de uma
frase presente em um dos textos, contextualizando-o
assim com o tema da aula.

Embora o tema gramatical tenha prevalecido na aula,


tanto os trabalhos apresentados pelos alunos como os
Modo textos selecionados pela professora serviram de ponte
15 D
imperativo. para contextualizar o tema da aula, e alguns aspectos
culturais foram observados nos anncios mostrados
pela professora.

Antes de retomar os dados apresentados na tabela, gostaria de


lembrar que no farei aqui uma anlise crtica dos resultados e dos
comentrios trazidos por Silva. Entendo que, como toda pesquisa, a
exposio e anlise feitas por ela apresentam um grau de subjetivi-
dade que, neste caso, est refletido nas opinies com que se coloca
em relao aos dados coletados. No entanto, considero que essa
subjetividade genuna e reflete sua postura terica. Sendo assim,
aproveitarei sua investigao e sua interpretao da pesquisa de
campo para contrapor aos conceitos tericos em que sustentarei
minha reflexo.

estudos 45.indd 235 26/05/14 14:55


236 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Como se pode ver na tabela, os assuntos que conduzem as aulas


so variados e, a partir deles, so tratadas diversas questes cultu-
rais. As diferentes regies do mundo hispano e suas particularidades
no funcionam como ponto de partida; ao invs disso, as aulas tra-
tam questes comuns s diversas culturas, permitindo, dessa forma,
que os alunos dialoguem com problemticas tanto suas quanto do
outro. Na grande maioria dos encontros, os assuntos condutores
promovem a discusso reflexiva; a cultura estrangeira sai de foco,
mas no por isso deixa de ocupar um espao de importncia e de
estar presente em todas as aulas.

Ao longo das observaes, Silva destaca o material didtico em-


pregado. Fala tanto das caractersticas do prprio material quanto
do uso que os professores fazem dele. Comenta que, na primeira
semana de observaes, foram utilizados recursos trazidos pelos
docentes, uma vez que o livro ainda no estava disponvel. E indica
que este material acrescentado estava composto por textos verbais,
audiovisuais e imagticos; todos adequados ao assunto das aulas.

Alm destas observaes, dedica uma parte de sua pesqui-


sa ao livro usado pelo curso. Dos trs volumes com que conta
a ltima edio de El arte de leer espaol, a autora se dedica a
analisar algumas unidades dos dois primeiros, usados nas aulas
observadas. As unidades temticas do volume 1 so: Identidade; A
lngua espanhola; A escola da vida; O corpo e A qualidade de vida.
As unidades temticas do volume 2 so: Amrica; Trabalho e socie-
dade; O mundo urbano; Sade e Relaes humanas. Sobre os textos
destas unidades, a autora comenta que so de diversos gneros e
tipologias, e possuem origens variadas, incluindo muitos autores
latino-americanos, no somente de lngua hispnica, mas tambm
brasileiros. (SILVA, 2013, p. 39) E, ainda sobre a procedncia do
contedo, diz que o livro amplia o dilogo intercultural quando

estudos 45.indd 236 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 237

traz o espao geogrfico e cultural do aluno para as discusses dos


temas propostos em seus captulos. (Ibid, p. 39)

Uma vez feitos estes comentrios gerais, entra na anlise da


unidade temtica 1, que trata do continente americano, e reala as
referncias cultura brasileira como recurso didtico. Nesta uni-
dade, dialogam a tela Descobrimento, de Cndido Portinari; o texto
El misterioso Cristval Coln, dos espanhis Germn Vzquez e
Nelson Martnez Daz; uma sequncia didtica que contrape uma
imagem de Nova York com outra do Rio de Janeiro; o texto Esto
es Amrcia, y al sur la nada, de Eduardo Galeano; e, finalmente,
uma atividade que traz imagens de uma famlia alem, outra esta-
dunidense e uma terceira mexicana e que compara os gastos com
alimentos das trs.

A unidade trazida como exemplo da abordagem proposta pelo


livro, que faz com que o aluno, a partir de sua prpria cultura, en-
xergue a cultura estrangeira para voltar novamente ateno para
si mesmo e refletir sobre sua identidade cultural. (Id. Ibid. p. 50)
Silva afirma tambm que a abordagem de El arte de leer espaol
atravs dos textos selecionados e das propostas de atividades faz
com que o aluno se sinta mais prximo do universo cultural da
lngua estrangeira que est estudando. Perceber que aspectos
da cultura estrangeira e de sua prpria cultura - que no se con-
centram em ocasies festivas, comidas tpicas ou conceitos es-
tereotipados, mas que abarcam questes polticas, econmicas,
sociais e hbitos comuns do cotidiano - so comparados no livro
didtico, com um direcionamento para a reflexo, confere um
carter mais significativo ao processo de ensino/aprendizagem.

Neste sentido, as autoras do material afirmam, na apresentao


do livro, que sua ideia

estudos 45.indd 237 26/05/14 14:55


238 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

mais do que apresentar um panorama da cultura hispnica,


que o aluno tenha contato com temas comuns a seu entorno
escolar ou no , buscando ampliar sua compreenso de mundo
e de si mesmo. Assim, estamos somando esforos na construo
de conceitos importantes para os mais variados campos do
saber, fundamentais para que o aluno construa conhecimento
significativo para a compreenso dos fenmenos naturais e dos
processos histricos e sociais de formao do mundo em que
vivemos. (2010, p. 4)1

Como pode ser visto, de acordo com os resultados da pesquisa,


tanto os professores do curso quanto o material didtico trabalhado
adotam uma abordagem intercultural, pois em ambos os casos, o
aluno estimulado a dialogar com a cultura estrangeira sempre
em relao com a sua.

Desta forma, uma vez trazidas as informaes feitas em campo


por Silva e suas consideraes, analisarei os resultados da pesquisa
com o objetivo de identificar estratgias domesticadoras ou estran-
geirizadoras no tratamento das marcas culturais, tanto na prtica
pedaggica dos professores quanto na proposta do material did-
tico. Para isto farei, previamente, uma reflexo sobre os conceitos
tericos em que se apoiar a anlise.

1 Traduo minha de: Ms que presentar un panorama de la cultura hispnica,


es poner al alumno en contacto con temas comunes a su entorno escolar o no ,
buscando alargar su comprensin de mundo y de s mismo. As, estamos suman-
do esfuerzos en la construccin de conceptos importantes para los ms variados
campos del saber, fundamentales para que el alumno construya conocimiento
significativo para la comprensin de los fenmenos naturales y de los procesos
histricos y sociales de formacin del mundo en que vivimos.

estudos 45.indd 238 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 239

A domesticao e a estrangeirizao no ensino de LE

As discusses dos ltimos anos em relao ao ensino de Lnguas


Estrangeiras no Brasil tm girado em torno de assuntos ligados di-
retamente a questes identitrias e de formao cidad. As reflexes
tericas dominantes na academia e contempladas nos documentos
oficiais procuraram fazer desta rea do ensino um espao educativo
que superasse o mero uso instrumental e colaborasse, com o resto
das disciplinas do currculo, para o desenvolvimento cvico dos
alunos. Neste sentido, as Orientaes Curriculares para o Ensino
Mdio (OCEM) afirmam que
As propostas epistemolgicas (de produo de conhecimento)
que se delineiam de maneira mais compatvel com as necessida-
des da sociedade atual apontam para um trabalho educacional
em que as disciplinas do currculo escolar se tornam meios.
Com essas disciplinas, busca-se a formao de indivduos, o
que inclui o desenvolvimento de conscincia social, criatividade,
mente aberta para conhecimentos novos, em fim, uma reforma
na maneira de pensar e ver o mundo. (Brasil, 2006, p. 90)

Esta tendncia ideolgico-pedaggica se reflete na prtica de


ensino do PROMES, conforme vimos nos resultados levantados por
Silva. No curso, mesmo sem se tratar de um espao de formao
bsica ou secundria, os contedos so tratados com o objetivo de
promover a reflexo do aluno como sujeito de uma comunidade
com caractersticas especficas e, ao mesmo tempo, em dilogo
com outras.

Por outro lado, no mbito dos Estudos da Traduo, atualmente


as discusses tericas tambm esto concentradas em questes de
natureza poltica, uma vez que o processo tradutrio compre-
endido como um espao de embate entre diversos interesses que
decidem a forma em que os textos estrangeiros so publicados.

estudos 45.indd 239 26/05/14 14:55


240 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

No mbito acadmico, a traduo deixou de ser observada apenas


atravs de anlises lingusticas contrastivas para ser contemplada
ao longo de todo o processo, que inclui desde a seleo do que ser
traduzido, at sua publicao e leitura posterior. Com uma ampla
gama de saberes, os estudos da rea contemplam trabalhos interlin-
guais, intralinguais e intersemiticos, entendidos como processos
interpretativos e, portanto, de natureza subjetiva.

Assim sendo, a partir do momento em que o ensino de Lnguas


Estrangeiras lida diretamente com o outro, entendendo este ltimo
como o desconhecido por causa da barreira imposta pela lngua e
pela cultura, possvel estabelecer um vnculo com as reflexes
surgidas no mbito dos Estudos da Traduo, cuja problemtica
est relacionada quando se trata da natureza do processo tradutrio
interlingustico. Tanto em uma quanto em outra, o tratamento das
marcas culturais se constituem em uma questo central, uma vez
que dependem dela, em grande medida, aspectos poltico-identit-
rios tanto da comunidade cultural domstica quanto da estrangeira.

Proporei um exemplo como ponto de partida para pensar este


assunto e trazer os dois conceitos que aplicarei na anlise.

Um tradutor brasileiro recebe um texto literrio em lngua


espanhola, procedente da Espanha, para reescrever em sua lngua
nacional. Como parte de seu processo tradutrio, dever decidir
que estratgia adotar para traduzir as marcas da cultura estran-
geira, responsveis por boa parte da identidade do texto. Mesmo
consciente ou inconscientemente, estas decises alternaro entre
apagar tais marcas, de forma que a voz do outro no seja percebida
pelo leitor de seu texto, e mant-las, alertando assim, por meio dos
estranhamentos que elas produzem, que o texto que est sendo lido

estudos 45.indd 240 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 241

provem de uma cultura que no a sua2. O terico Lawrence Venuti


entende que, por trs destas eleies do tradutor, se esconde uma
postura poltica que ele classifica de duas formas: domesticao e
estrangeirizao.

A domesticao e a estrangeirizao so dois conceitos que o


autor estadunidense prope em seu livro Escndalos da traduo
(2002) como resultado da anlise que fez de um conjunto de obras
de literatura japonesa traduzidas nos Estados Unidos. Segundo
ele, o processo tradutrio destas obras se sustentou em estratgias
domesticadoras e, assim, produziu o apagamento das marcas cultu-
rais japonesas em favor das norte-americanas. Com isto, produziu
um cnone de literatura nipnico construdo com base em valores
determinados por um grupo minoritrio, responsvel pela traduo
das obras. Venuti afirma que, desta forma,
mesmo quando projetos tradutrios refletem os interesses de
uma comunidade cultural especfica (...), a imagem resultante
de uma cultura estrangeira pode ainda atingir domnio nacional,
aceito por muitos leitores dentro da cultura domstica, qualquer
que seja sua posio social. (2002, p. 140)

Venuti estuda, em seu trabalho, a capacidade que tem a traduo


de formar identidades culturais atravs de padres tradutrios.
Entre estes, identifica as estratgias usadas pelo tradutor que, por
sua vez, incluem a domesticao e a estrangeirizao. Segundo o
autor, estes padres respondem a interesses domsticos particulares

2 Esta oscilao entre domesticao e estrangeirizao dificilmente acontea de


maneira absoluta. Ou seja, muito raro encontrar tradues que apaguem com-
pletamente as marcas da cultura forasteira e vice-versa, tradues que no faam
nenhuma referncia cultura local. O mais comum que acontea uma mistura de
ambas as estratgias. No entanto, em contextos com alto grau e censura, como no
caso de governos ditatoriais, as tradues so fortemente domesticadoras enquanto
que, em territrios coloniais, a estrangeirizao a que domina.

estudos 45.indd 241 26/05/14 14:55


242 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

e, por isso, produzem efeitos polticos e culturais que variam de


acordo com diferentes contextos institucionais e posies sociais
(VENUTI, 2002, p. 129). Assim, mediante a eliminao de ele-
mentos conflitantes, criam esteretipos que respondem a agendas
domsticas e, atravs deles, vinculam respeito ou estigma a gru-
pos tnicos, raciais e nacionais especficos, gerando respeito pela
diferena cultural ou averso baseada no etnocentrismo, racismo
ou patriotismo (Id. Ibid., p. 130).

Ainda a este respeito, o norte-americano afirma que a domes-


ticao, em todo processo tradutrio, inevitvel, uma vez que a
prpria traduo domesticadora por natureza, pois reinterpreta
o outro e o faz interpretvel numa comunidade cultural especfi-
ca. No obstante, junto com esta reinterpretao, toda traduo
constri sujeitos domsticos especficos. Em palavras de Venuti,
Uma vez que as tradues so geralmente destinadas a comuni-
dades culturais especficas, elas iniciam um processo ambguo
de formao de identidade. Ao mesmo tempo em que a traduo
constri uma representao domstica para um texto ou cultura
estrangeiros, ela tambm constri um sujeito domstico, uma
posio de inteligibilidade que tambm uma posio ideol-
gica, informada pelos cdigos e cnones, interesses e agendas
de certos grupos sociais domsticos. (VENUTI, 2002, p. 130-31)

Venuti observa, tambm, que tal construo se daria ao longo de


todo o processo tradutrio: na seleo dos textos estrangeiros, na
traduo propriamente dita, nos elementos paratextuais da edio
final, em sua distribuio e at na forma em que o texto traduzido
ser comentado e ensinado pelos especialistas da rea. Assim, um
texto religioso ao ser traduzido, por exemplo, ser escolhido, edita-
do e interpretado por uma instituio com autoridade no assunto,
que ser a responsvel por sua validao entre os fieis. Um texto
literrio, de maneira semelhante, poder ingressar no sistema da

estudos 45.indd 242 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 243

literatura estrangeira traduzida de determinado pas por diversos


motivos, seja pelos interesses econmicos de uma editora, pelo
prestgio internacional de seu autor, pela necessidade de o sistema
literrio local preencher um espao ainda no ocupado pela pro-
duo domstica, em face das caractersticas do texto estrangeiro,
ou por uma combinao de quaisquer destes elementos. Uma vez
escolhido, ser traduzido, editado, circular e ser lido, responden-
do aos interesses da instncia que promoveu sua traduo.

Mesmo que o controle das instncias interessadas no processo


tradutrio no garanta a efetividade de suas intenes, posto que
a traduo ganha vida prpria atravs de cada um de seus leitores,
sua participao em todas as etapas de importao procurar de-
terminar uma interpretao que fortalea seu discurso. A escolha
calculada de um texto estrangeiro e da estratgia tradutria pode
mudar ou consolidar cnones literrios, paradigmas conceituais,
metodologias de pesquisa, tcnicas clnicas e prticas comerciais
na cultura domstica (Id., Ibid., p.130-31). Assim, ainda segundo
Venuti, por meio deste processo, as tradues ajudam a posicionar
os sujeitos domsticos, equipando-os com prticas de leitura espe-
cficas, afiliando-os a comunidades e valores culturais especficos,
fortalecendo ou transpondo limites institucionais (Id., loc. cit.).

No entanto, em toda traduo se infiltra a voz do outro e, com


ela, se produz algum tipo de desestabilizao no sistema local.
Venuti, citando Laclau e Mouffe, afirma que
Uma prtica cultural como a traduo tambm pode precipitar
uma mudana social porque nem os indivduos, nem as ins-
tituies, conseguem ser sempre absolutamente coerentes ou
imunes s diversas ideologias que circulam na cultura doms-
tica. A identidade nunca irrevogavelmente fixa, mas relativa, o
ponto nodal para uma multiplicidade de prticas e instituies

estudos 45.indd 243 26/05/14 14:55


244 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

cuja simples heterogeneidade cria a possibilidade de mudana.


(Ibid., p.152)

Assim sendo, o terico entende que cabe ao tradutor assumir


esta capacidade prpria da traduo para, assim, promover a de-
sestabilizao das instncias de poder importadoras que tentam
controlar o sistema. E, para tal, prope uma tica da diferena que
evite a traduo domesticadora, estimulando a estrangeirizao do
texto importado. Isto porque se, por um lado, domesticar implica
silenciar a voz do outro e, desta forma, validar um discurso local
especfico, por outro, estrangeirizar significa alertar ao leitor que
est diante de um texto estrangeiro e, privilegiando a diferena,
reforma[r] identidades culturais que ocupam posies domi-
nantes na cultura domstica (VENUTI, Ibid., p.159). Alm disso,
uma traduo domesticadora que se apoia na noo de fidelidade
tende necessariamente a apagar a presena do tradutor, ao tempo
que desconsidera que todo processo tradutrio interpretativo e,
portanto, basicamente subjetivo. Contrariamente, a estrangeiriza-
o ser voluntariamente infiel cultura domstica e s suas leis
internas, chamando ateno para o que elas permitem e limitam,
admitem e excluem no encontro com os textos estrangeiros (Id.,
Ibid., p. 158).

No obstante, o projeto estrangeirizante de Venuti apresenta


alguns aspectos que podem ser questionados. O que aconteceria
em um caso como o do nosso exemplo, onde um tradutor brasileiro
reconstitui um texto espanhol? Mesmo aceitando que toda traduo
domesticadora, uma estratgia estrangeirizadora no se compor-
taria como um instrumento silenciador da cultura domstica? Se
os estranhamentos se produzem no mbito do lingustico e, par-
ticularmente no tratamento dos elementos culturais estrangeiros,
a presena evidente dos traos alheios no estaria priorizando

estudos 45.indd 244 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 245

determinados valores e interferindo diretamente na formao das


identidades domsticas?

O terico norte-americano estuda um processo de importao


literria que se produz desde um pas perifrico, como o Japo
de ps-guerra, para outro hegemnico, os Estados Unidos. Assim,
a estratgia tradutria que ele prope como eticamente correta faz
sentido, posto que a comunidade receptora a dominante enquanto
a traduzida, a silenciada. Mas quando o circuito da traduo o
inverso, como costuma acontecer na maioria dos casos, uma vez
que o grande fluxo de tradues acontece no sentido norte-sul, a
estratgia precisaria ser revisada. Acho importante considerar isto,
pois a reflexo deste artigo gira em torno a um espao de ensino de
Lnguas Estrangeiras cuja lngua alvo, o espanhol, pode ser vista
tanto como hegemnica, quanto como perifrica ou universal, a
depender da postura ideolgica e, com ela, pedaggica do mbito
em que ensinada.

Na prxima sesso, procurarei aproximar os conceitos de Ve-


nuti, e os questionamentos levantados sobre eles, dos resultados
da pesquisa feita sobre o PROEMES em relao ao tratamento da
cultura em sala de aula.

O caso do PROEMES

No ensino de LE, diferentemente que na traduo, o circuito


lingustico de mo dupla, uma vez que o aluno comea a lidar
com a lngua do outro tanto desde a compreenso, quanto da
produo. No obstante, entendo que esta diferena no impede
que as aulas sejam domesticadoras ou estrangeirizadoras. Isto
porque, mesmo nos momentos em que o estudante usa sua prpria
voz para se expressar, atravs da lngua estrangeira, toda vez que

estudos 45.indd 245 26/05/14 14:55


246 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

o faz procurando falar como o outro, atravs de abordagens que


tem por objetivo a adquisio de uma lngua que no a prpria,
a estratgia pedaggica que conduz esse aluno estrangeirizadora.
Outro tanto acontecer, e aqui de forma mais prxima da traduo,
quando realiza atividades de compreenso que no estimulam uma
reflexo dialgica.

No caso do PROEMES, em que os contedos culturais so tra-


balhados desde uma perspectiva que, alm de ser transdisciplinar,
no se concentra nem nas culturas da lngua alvo do aluno, nem na
dele prprio, seno a partir de temas transversais, se produz um
relativismo cultural em que no h hierarquizao. Isto significa
que a estratgia pedaggica escolhida pelo curso, em relao ao
tratamento da cultura, no pode ser entendida como estrangei-
rizadora, posto que a voz estrangeira no abordada como um
conjunto de assuntos estticos, que deve ser aprendido pelo aluno,
sem relao com a cultura domstica. Vejo isto de forma positiva,
uma vez que esta forma de estrangeirizao, unida proibio que
muito frequentemente recebe o aprendiz de usar sua lngua nas
aulas, produziria um silenciamento das identidades locais ao tempo
que estimularia um deslocamento simblico em direo ao outro
como modelo identitrio idealizado.

Por outro lado, entendo que o PROEMES tambm no domes-


tica, uma vez que a domesticao implicaria em silenciar a voz
estrangeira e, mesmo no usando a cultura do outro, como ponto
de partida didtico, no curso de espanhol do PROFICI a presena
estrangeira to constante como inevitvel. Neste ponto, possvel
afirmar que, como a traduo tem uma natureza domesticadora,
o ensino de LE naturalmente estrangeirizador. Seria impossvel
imaginar uma aula de lngua estrangeira em que s se trate de

estudos 45.indd 246 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 247

assuntos nacionais, a partir do momento em que todo idioma traz


consigo representaes de seu contexto de uso.

Portanto, penso que o curso de espanhol do PROFICI, ao ado-


tar uma prtica pedaggica intercultural que promove o dilogo
crtico entre a cultura do aluno e as da lngua estudada, atravs de
assuntos universais, supera as barreiras do domstico/estrangeiro.
Isto no significa que no se enquadre nestas categorias, uma vez
que lida com contedos que, a partir do lingustico, aproximam o
aluno do novo ou, melhor ainda, oportunizam que o desconhecido
se aproxime do aluno. O que acontece neste caso um encontro
dialgico entre a cultura domstica e a estrangeira que, ao invs
de conformar uma dicotomia, viram parceiras como parte de uma
reflexo que as inclui.

Assim, as identidades culturais no estariam condicionadas a


interesses especficos, representados por grupos editoriais, polticas
lingusticas estrangeiras ou interesses econmicos de particula-
res. Ao invs disso, conduzidos por uma abordagem pedaggica
reflexivo-crtica orientada por uma proposta educativa pblica
que se pergunta como desenvolver o senso de cidadania em aula
de Lnguas Estrangeiras? Como trazer para Lnguas Estrangeiras
questes que podem desenvolver esse senso de cidadania? (BRA-
SIL, 2006, p. 91), os aprendizes tm a possibilidade de reafirmar,
questionar ou, melhor, repensar o lugar que ocupam dentro de uma
comunidade em que os saberes circulam sem respeitar fronteiras
nacionais ou lingusticas.

Finalmente, e com base nestas reflexes, concluo que, da


mesma forma que numa abordagem intercultural, o dilogo in-
terdisciplinar, ao aproximar os saberes, desperta o interesse sobre
os diferentes sistemas de valores e interpretaes do mundo do
outro. (SCHNEIDER, 2010) Assim, graas proximidade entre

estudos 45.indd 247 26/05/14 14:55


248 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

as novas tendncias epistemolgicas das reas do ensino de Ln-


guas Estrangeiras e dos Estudos da Traduo, procurei estabelecer,
neste trabalho, vnculos conceituais entre ambas com o intuito de
enriquecer nossa reflexo terica.

Referncias

BRASIL. Parmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos


do ensino fundamental: lngua estrangeira /Secretaria de Educao
Fundamental. Braslia: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Orientaes curriculares para o ensino mdio: linguagens,
cdigos e suas tecnologias. Vol. 1. Braslia: MEC/SEB, 2006.
MENDES, Edleise. A perspectiva intercultural no ensino de lnguas:
uma relao entre-culturas. In: SILVA, Kleber Aparecido da; ORTIZ,
Maria Luisa. (Org.). Lingstica Aplicada: mltiplos olhares. v. 1.
Campinas-SP: Pontes Editora, 2007.
PICANO, Deise Cristina de Lima; VILLALBA, Terumi Koto Bonnet.
El Arte de Leer Espaol, v.2. Curitiba: Base Editorial, 2010.
SCHNEIDER, Maria Nilse. Abordagens de ensino e aprendizagem de
lnguas: comunicativa e intercultural. Contingentia, v.5, n.1,
p.68-75, 2010. Disponvel em: <http://seer.ufrgs.br/contingentia/
article/view/13321/7601>. Acesso em: 10 set. 2012.
SILVA, Renata Pereira. Dilogo entre culturas e o material didtico de
espanhol. 64 f. Trabalho de Concluso de Curso Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2013. [Indito]
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. EDITAL (2012). EDITAL
PROPCI-PROGRAD-PROPLAN-AAI-IL/UFBA 05-2012
CoPROEMF/CoPROEMIT/CoPROEMES. Edital destinado seleo
de coordenadores no mbito do PROFICI (Programa de Proficincia
em Lngua Estrangeira para Estudantes e Servidores da UFBA) para
atuarem na coordenao dos Programas Especiais de Monitoria de

estudos 45.indd 248 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 249

Francs (PROEMF), Italiano (PROEMIT) e Espanhol (PROEMES).


Salvador: 2012.
VENUTI, Lawrence. Escndalos na traduo: por uma tica da
diferena. So Paulo: EDUSC, 2002.

Submetido em: 01/06/2013


Aceito em: 30/06/2013

estudos 45.indd 249 26/05/14 14:55


estudos 45.indd 250 26/05/14 14:55
Texto e pluralidade cultural nos
livros didticos de espanhol

Text and cultural plurality


in spanish textbooks

Patrcia Carvalho de Onofre


Colgio Pedro II/Rio de Janeiro

RESUMO: Neste artigo, aborda-se a questo da pluralidade cultural no


ensino de E/LE, especificamente no que diz respeito aos textos contidos
nas colees aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD
2012). A procedncia desses textos foi verificada e constatou-se grande
variedade nesse quesito; no entanto, nas trs colees evidencia-se um
grande predomnio numrico de textos espanhis e argentinos, o que
aponta para a necessidade de se evitarem hegemonias, contribuindo para
promover um contato maior com a riqueza cultural do mundo hispnico.

Palavras-chave: texto; pluralidade cultural; livro didtico de E/LE

ABSTRACT: This article addresses the issue of cultural plurality in


the teaching of S/FL, specifically with regard to the texts contained in
the collections approved by the National Textbook (PNLD 2012). The
origin of these texts was checked and was observed a great variety in
this question, however, the three collections evidenced a large numerical

estudos 45.indd 251 26/05/14 14:55


252 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

predominance of Argentine and Spanish texts, which point to the need to


avoid hegemonies, helping to promote greater contact with the cultural
richness of the Hispanic world.

Keywords: Text; Cultural plurality; S/FL textbook

Ao longo do tempo, estudiosos de variadas reas se dedicaram a


criar diferentes definies para o termo cultura, a partir de distintas
concepes. O socilogo Denys Cuche (1999) explica a dificuldade
de existir um consenso sobre o tema: O uso da noo de cultura
leva diretamente ordem simblica, ao que se refere ao sentido,
isto , ao ponto sobre o qual mais difcil entrar em acordo.
O autor esclarece que a noo de cultura, compreendida em seu
sentido vasto, que remete aos modos de vida e de pensamento,
hoje bastante aceita (CUCHE, 1999, p.11).

A histria da humanidade est marcada pelo contato entre dife-


rentes culturas. Motivado principalmente pela busca de melhores
condies de vida, o homem se desloca e, no encontro com o outro,
forma novos grupos sociais, constitudos de forma hbrida, tanto no
aspecto tnico quanto no aspecto cultural. Sendo assim, apesar da
tendncia atual em direo homogeneizao global denunciada
por Hall (2005), evidente que a natureza dos agrupamentos sociais
multicultural, isto , a ideia de um pas homogneo, fechado,
etnicamente puro, culturalmente tradicional e intocado (HALL,
2005, p.80) no se sustenta.

Gimnez (2003) identifica tanto o multiculturalismo como a


interculturalidade como desdobramentos do pluralismo cultural,
sendo esta uma nova fase daquele, ou melhor, uma reformulao
que parte da constatao dos limites e erros no campo do multi-

estudos 45.indd 252 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 253

culturalismo1. Entre as duas vertentes existem muitos pontos de


interseo, j que ambas partem da ideia defendida pelo pluralismo
cultural de que se deve combater a excluso. Racismo, xenofobia,
anti-semitismo, apartheid, holocausto so manifestaes de um
modelo scio-poltico que, diante da diversidade cultural, reage com
a discriminao, a segregao e a eliminao do outro. O pluralis-
mo cultural e suas vertentes, ao contrrio, propem a aceitao da
diversidade cultural como positiva e enriquecedora.

Nos documentos norteadores brasileiros referentes ao Ensino


Mdio, faz-se meno questo cultural como um aspecto fun-
damental na formao do aluno cidado. Como as Orientaes
Curriculares para o Ensino Mdio (OCEM) possuem um captulo
especfico sobre o ensino de espanhol, esse o documento que
mais profundamente aborda a temtica da pluralidade do mundo
hispnico, enfatizando a necessidade de se substituir a hegemonia
do espanhol peninsular pela pluralidade lingustica e cultural do

1 A citao a seguir esclarece bem como o autor distingue multiculturalismo e


interculturalidade: Si en el movimiento multiculturalista el acento est puesto
en cada cultura, en el planteamiento intercultural lo que preocupa es abordar la
relacin entre ellas. Si el multiculturalismo acenta, con acierto, la identidad de
cada cual como un paso absolutamente necesario para reclamar el reconocimiento,
y ello conlleva el nfasis en las diferencias, la perspectiva intercultural buscar
las convergencias sobre las cuales establecer vnculos y puntos en comn. Si el
multiculturalismo enfatiza la cultura y la historia propias, los derechos de cada
cual, el sistema jurdico de cada pueblo, el interculturalismo va a poner el acento
en el aprendizaje mutuo, la cooperacin, el intercambio. El multiculturalismo
parece conformarse con la coexistencia, o en todo caso espera que la convivencia
social surja del respeto y la aceptacin del otro; sin embargo, la perspectiva inter-
cultural sita la convivencia entre diferentes en el centro de su programa, por lo
que incorpora un mensaje de regulacin pacfica en la conflictividad intertnica,
de la que nada o poco dicen los multiculturalistas. Si el multiculturalismo aborda
la diversidad, el interculturalismo trata de ver cmo construir la unidad en la
diversidad. (GIMNEZ, 2003, p. 8)

estudos 45.indd 253 26/05/14 14:55


254 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

universo hispano-falante, com o intuito de no sacrificar as suas


diferenas (do espanhol) nem reduzi-las a puras amostragens sem
qualquer reflexo maior a seu respeito (BRASIL, 2006, p. 134).
A opo por um modelo standard de espanhol, livre de marcas
regionais, criticada no documento. Primeiramente, porque se
considera quase impossvel determinar um uso geral e neutro da
lngua2; alm disso, entende-se que, ao se buscar esse modelo, na
realidade, muitos estariam tomando como mais valorosa a varie-
dade castelhana do espanhol peninsular mais especificamente,
a madrilense.

E como evitar ento o apagamento das diferenas, buscando o


respeito pela diversidade? Promovendo o contato do aluno com as
variedades do idioma, por meio de textos de diferentes gneros e
de diferentes origens (regional, social, cultural), ou seja, distintas
amostras de lngua que revelem a riqueza do universo hispnico,
em lugar de apagar as marcas identitrias, pois a homogeneidade
uma construo que tem na sua base um gesto de poltica lingus-
tica, uma ideologia que leva excluso (BRASIL, 2006, p. 135), e
exatamente o contrrio o que se pretende ao se ensinar/aprender
uma lngua estrangeira.

Entre as importantes aes do governo para melhorar a qualida-


de da educao no pas, encontra-se o Programa Nacional do Livro
Didtico (PNLD), que tem por objetivo prover as escolas pblicas
de livros didticos, dicionrios e outros materiais de apoio prtica

2 Para exemplificar essa impossibilidade, cita-se no documento o estudo de


Ventura (2005) sobre as variaes em alguns usos pronominais, no que se refere
s formas de tratamento. A autora concluiu, por meio de consulta a especialistas,
que nenhum deles foi capaz de determinar o uso padro para a segunda pessoa do
plural de tratamento, justamente pela riqueza das formas de tratamento existentes
no mundo hispnico. (VENTURA, 2005, p. 115-120 apud BRASIL, 2006, p. 135)

estudos 45.indd 254 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 255

educativa. Esse programa vem passando ao longo do tempo por


muitas reformulaes e seu alcance cada vez maior3. recente a
incluso da lngua estrangeira entre as disciplinas contempladas
pelo PNLD: 2011 para os alunos do ensino fundamental e 2012
para os do ensino mdio.

No Edital do PNLD 2012, encontram-se listados os vrios crit-


rios eliminatrios especficos para o componente curricular Lngua
Estrangeira Moderna. Deles, destaco o primeiro, por meio do qual
se pretende observar se a obra:
rene um conjunto de textos representativos das comunidades
falantes da lngua estrangeira, com temas adequados ao ensino
mdio, que no veiculem esteretipos nem preconceitos em
relao s culturas estrangeiras envolvidas, nem nossa prpria
em relao a elas. (BRASIL, 2009)

No PNLD 2012, das nove colees inscritas, trs foram selecio-


nadas, tomando como base esse e outros critrios de avaliao4.
As colees so as seguintes: Enlaces espaol para jvenes brasi-
leos, Sntesis: curso de lengua espaola e El arte de leer espaol,
das editoras Macmillan, tica e Base Editorial, respectivamente.

No manual do professor dessas trs colees, atendendo s


exigncias do Edital, destaca-se a importncia de expor o alunado
a textos de origem diversa, de forma a se reconhecer a pluralidade

3 Para se ter uma ideia das propores desse Programa, somente para o Ensino
Mdio Regular, no PNLD 2012, foram investidos R$720,7 milhes e distribudos
79.565.006 livros didticos de todas as disciplinas para 7.981.590 alunos. (http://
www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-dados-estatisticos).
Acesso em 30/maio/2013.

4 Podem-se conhecer todos os critrios de avaliao das colees avaliadas pelo


PNLD 2012 acessando o seguinte endereo eletrnico: http://www.fnde.gov.br/
index.php/edital-pnld-2012-ensino-medio

estudos 45.indd 255 26/05/14 14:55


256 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

lingustica e cultural do mundo hispnico e se evitarem, assim,


preconceitos e esteretipos:
En el caso del espaol, es importante llamar la atencin sobre la riqueza cultural
relacionada con los pases hispanohablantes e insistir en la idea de que no existe una
cultura nica o mejor, sino que todas coexisten. () La coleccin no privilegia los usos de
determinada regin o pas, sino que busca exponer al alumno a esa variacin mediante
diversas fuentes escritas y orales, sin la pretensin de agotar esa heterogeneidad
inabarcable en un libro didctico. (Enlaces, Gua del profesor, p. 7)

propor a leitura de textos autnticos de origens diferentes, a audio de msicas de


outros povos, a visita a endereos eletrnicos de jornais em lngua espanhola, etc., para
que a aprendizagem de lngua estrangeira sirva de acesso ao conhecimento de outras
culturas. Alm disso, com essa estratgia espera-se que o aluno aprenda a distinguir
algumas variantes lingusticas. (Sntesis, Manual do Professor, p. 2)
As propostas de discusso e de trabalho com os textos procuram fomentar o respeito
pela diversidade, que prpria do mundo plural e plurilngue em que vivemos, e criam
oportunidades para que o estudante reflita sobre as diferentes realidades vividas pelos
povos hispanofalantes... (Sntesis, Manual do professor, p. 8)

...lo ms importante es que el alumnado se concientice de la riqueza regional. Es


necesario y esencial que los alumnos perciban sin prejuicios que hay formas distintas
tanto en su lengua como en la extranjera, sin hacer juicios de valor sobre el origen de
la lengua y la importancia de cada pas en el escenario internacional. () El estudio
de la lengua extranjera puede contribuir para disminuir manifestaciones prejuiciosas
que, adems de estigmatizar, excluyen a sus hablantes y sus culturas. (El arte de leer
espaol, Livro do professor, p. 12)

Em tese de doutorado recentemente defendida5, busquei, dentre


outros objetivos, identificar a procedncia dos textos contidos nes-
sas colees. Para tal, centrei-me nos textos presentes nas sees
de leitura dos trs volumes de cada coleo, pois a pesquisa girava
em torno da natureza dos textos e da sua abordagem de leitura.
Assim, os dados foram levantados por meio da identificao de
cada texto, verificando de que pas procedia. Para tal, recorri s
fontes apresentadas ao final dos textos predominantemente fontes

5 Tese intitulada Texto e leitura no ensino de espanhol como lngua estrangeira:


os documentos norteadores do MEC e as colees aprovadas pelo Programa
Nacional do Livro Didtico (PNLD 2012), defendida em abril de 2013, no Programa
de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal Fluminense, sob orientao
da professora Dra Marcia Paraquett.

estudos 45.indd 256 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 257

que remetem ao meio virtual, em detrimento de meios impressos.


No entanto, nem sempre a simples leitura dessas fontes foi suficiente
para identificar o pas de origem dos textos, que no estava explcito
no endereo eletrnico; assim, muitas vezes foi necessrio acessar
o site para obter tal informao. Algumas vezes, o site acessado
no continha o pas de origem, o que inviabilizou sua identificao,
mas esse caso corresponde a menos de dez por cento dos textos, em
mdia, considerando-se as trs colees.

De fato, ao verificar nas colees a origem dos textos, confir-


ma-se a grande diversidade recomendada no Edital do PNLD e
anunciada nos livros do professor das colees aprovadas. Foram
encontrados ali textos procedentes de distintos pases hispano-
falantes e, inclusive, originrios tambm de outras regies, tais
como, por exemplo, Brasil, Alemanha, Portugal, Estados Unidos,
Reino Unido e Sua. Entretanto, nas trs colees evidencia-se
o grande predomnio numrico de textos espanhis e argentinos,
o que se confirma por meio dos grficos que seguem, resultantes
do levantamento dos dados:

estudos 45.indd 257 26/05/14 14:55


258 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Na coleo El arte de leer espaol, os textos localizados na seo


de leitura denominada !Mira! e !Acrcate!6- totalizaram cento
e vinte e trs. Entre eles, os textos argentinos so protagonistas,
seguidos pelos espanhis. Os outros pases so representados por
um nmero bastante pequeno de textos (um ou dois por cento do
total), enquanto o Uruguai est presente com seis por cento dos
textos (quatro textos do mesmo autor - Eduardo Galeano - e trs
letras de msica).

Em um nmero considervel de textos (dezoito por cento),


apesar de constar a fonte, no foi possvel identificar o pas (s.i.p.),
muitas vezes porque o site ao qual remetia o endereo eletrnico
no continha essa informao. Alguns textos (dois por cento) no
estavam acompanhados das fontes (s.f.).

6 Em !Mira! encontra-se o texto, que vem acompanhado de !Acrcate!, onde esto


as questes de compreenso leitora.

estudos 45.indd 258 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 259

Na coleo Sntesis, os textos identificados nas sees de leitura


Para leer y reaccionar, Para leer y reflexionar e Apartados 1 e 2
somam noventa e oito. Nessa coleo, inverte-se o protagonismo:
a Espanha possui a maior porcentagem de textos, seguida pela
Argentina. Os outros pases esto presentes em um a quatro por
cento dos textos, exceto, novamente, o Uruguai, com oito por cento
(compostos por quatro textos de Eduardo Galeano, dois de Mario
Benedetti e duas letras de msica).

Quatro por cento dos textos vm acompanhados de fontes que


no conferem (f.n.c.), ou seja, ao digitar o endereo eletrnico
informado, no se tem acesso ao site e em sete por cento no foi
possvel identificar o pas (s.i.p.).

estudos 45.indd 259 26/05/14 14:55


260 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

So cem os textos identificados na coleo Enlaces, nas sees!


Y no slo esto!, En otras palabras7e Un poco ms de todo Com-
prensin lectora. Nessa coleo, o protagonismo se encontra nos
textos sem fonte (trinta e cinco por cento) que, observados, pa-
recem ter sido criados pelos autores do LD, isto , so textos que
no circularam anteriormente no meio social. Entre os pases de
procedncia dos outros textos, a Espanha encontra-se em segundo
lugar, seguida pela Argentina, que possui uma porcentagem seme-
lhante. Os outros pases correspondem a, no mximo, quatro por
cento do total de textos.

7 Apesar de ter como finalidade a produo escrita, a seo En otras palabras


traz, primeiramente, uma proposta de leitura de um gnero discursivo, com o
intuito de analisar suas caractersticas. Sendo assim, tambm inclu essa seo
no corpus da pesquisa.

estudos 45.indd 260 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 261

Apresentado esse quadro comum s trs colees, caberia refle-


tir sobre os provveis motivos que teriam levado ao protagonismo
espanhol e argentino no quesito procedncia dos textos. A essa
questo, certamente, no se pode atribuir uma nica resposta, mas
ao contrrio, devem ser consideradas mltiplas vertentes.

Uma dessas vertentes diz respeito ao lugar que o espanhol pe-


ninsular ocupou tradicionalmente no ensino dessa lngua no Brasil,
o que pode ser exemplificado por meio de alguns LD adotados no
passado. Da dcada de 1970, cito Espaol en Directo, da SGEL
(1975) e Vida y Dilogos de Espaa, da Didier (1976), ambos de
abordagem estruturalista, o primeiro publicado na Espanha e o
segundo, na Frana. Em ambos, o mundo latino e as variantes do
espanhol eram simplesmente inexistentes. Paraquett (2001), anali-
sando o primeiro ttulo, relembra que, naquela poca, ensinvamos
e aprendamos o espanhol da Espanha, abandonando radicalmente
as demais manifestaes lingusticas e culturais do mundo hispni-
co. A Amrica Latina de lngua espanhola se manteve ausente nesse
processo por muito tempo (PARAQUETT, 2001, p.187). Da dcada
de 1980, cito Espaol 2000, da Coloquio e da SGEL (1981), Entre
nosotros, da SGEL (1982), Para empezar, da Edi 6 (1984), Esto
funciona, da Edi 6 (1986), Antena 1, da SGEL (1986) e Intercambio,
da Difusin (1989) todos publicados na Espanha. Nos primeiros,
continuava-se ignorando a cultura latina e as variantes lingusticas
do espanhol. Observam-se, nos da segunda metade daquela dcada,
referncias a pases hispnicos ou mesmo ao Brasil, como o caso
de Antena 1 (Nivel Elemental) que, em sua segunda unidade, cujo
tema eram as profisses, retrata um brasileiro de maneira estere-
otipada e preconceituosa: em um campo de futebol, vestido com

estudos 45.indd 261 26/05/14 14:55


262 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

a camisa da seleo brasileira e com a fisionomia de um macaco8.


J nos anos noventa, o mtodo Ven, da Editora Edelsa (1990) avana
bastante na tentativa de abarcar o mundo hispnico, ampliando-o
para alm da Espanha. Encontram-se, por exemplo, textos que tra-
tam de festas e tradies do Mxico e da Bolvia, letras de msicas
de Cuba, fotos de quadros de pintores mexicanos e equatorianos e
biografias de personalidades como Evita, Pancho Villa e Emiliano
Zapata. No entanto, o espao e a localizao que ocupam dentro
do livro uma pgina ao final da unidade assim como a ausncia
de propostas de abordagem desses gneros revela ainda a pequena
importncia dada a essa questo.

Tambm chama ateno a forma como o lxico apresentado.


Na seo denominada Lxico, aps uma lista de palavras relaciona-
das ao tema da unidade, encontra-se, ao final da pgina, outra lista
bem menor, chamada OJO! Lxico de Hispanoamrica, contendo
palavras da variante peninsular e sua correspondncia na variante
americana. Essa forma de ampliao do vocabulrio bastante redu-
cionista, pois, alm de estar presente ali como simples curiosidade,
reforando a ideia de que as variantes seriam um desvio do padro
o espanhol peninsular , do a falsa ideia de que o espanhol
americano formaria um bloco nico, homogneo, que se oporia ao
espanhol peninsular, tambm supostamente homogneo. No se
deve deixar de mencionar duas outras obras, da dcada 90, publica-
das no Brasil e voltadas para o ensino de espanhol para brasileiros:
Vamos a hablar (1991), da Editora tica e Hacia el espaol (1997),
da Saraiva. Na primeira, predominavam dilogos criados pelas

8 importante registrar que a editora retirou os livros de circulao, to logo


os rgos diplomticos brasileiros se manifestaram, esclarecendo que se estava
cometendo um equvoco ao se representar o brasileiro daquela forma. Na edio
seguinte, o desenho do macaco foi substitudo pelo de um homem.

estudos 45.indd 262 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 263

autoras da coleo, ambas de origem espanhola. J na segunda, de


autoria de professoras formadas pela USP, identificam-se textos de
variados gneros e de procedncia tambm variada. Como analisa
Paraquett, Hacia el espaol sai do campo do meramente comuni-
cativo para trabalhar com o cultural. (PARAQUETT, 2001, p. 189)

A presena massiva do espanhol peninsular nos LD contribuiu


em muito para a manuteno da imagem que o brasileiro possui
sobre a lngua espanhola e os pases onde se fala essa lngua. Vale
fazer referncia ao trabalho de Santos (2005) que, aps aplicar um
questionrio em noventa e um alunos de espanhol de cursos livres
e de faculdades de Letras da cidade de So Paulo, concluiu que a
grande maioria (oitenta e seis por cento) tinha a Espanha como
referncia de pas onde gostariam de estudar essa lngua. Dentre
as justificativas dessa preferncia constavam o reconhecimento da
riqueza cultural do pas, o fato de ser a Espanha um pas europeu
e de ser o lugar onde se deu a origem da lngua, remetendo ideia
de pureza, clareza e correo:
Em vrios casos, o espanhol falado nesse pas [Espanha] apa-
rece como a lngua original, pura, ideal, livre de adulteraes.
Embora no haja manifestaes explcitas de desprezo pelos
demais pases hispnicos e por suas variantes lingusticas, estas
so colocadas, muitas vezes, como um elemento de comparao,
de complementao e de curiosidade. (SANTOS, 2005, p.28)

A autora tambm v nos LD publicados na Espanha e adotados


no Brasil um dos possveis motivos para a recorrncia de respos-
tas que remetiam positivamente cultura espanhola e variante
peninsular:
As menes a Madri e variante castelhana tambm chamam a
ateno e podem estar motivadas pelo contato com os materiais
didticos produzidos na Espanha, nos quais essa variante ocupa
um lugar de prestgio e acaba sendo tomada como o espanhol

estudos 45.indd 263 26/05/14 14:55


264 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

padro, o espanhol que pode ser entendido por todos. (SANTOS,


2005, p.32)

Dentre os pases hispano-americanos citados no questionrio


aplicado aos alunos informantes, a Argentina foi o que mais se des-
tacou. De acordo com Santos, ao serem indagados sobre as primeiras
variantes que lhes vinham cabea quando pensavam na variedade
lingustica e nos diferentes sotaques do espanhol, grande parte dos
alunos citou as variantes espanhola e argentina: esses dois pases
so os que mais esto presentes na relao e no imaginrio que
circunda a lngua espanhola para o estudante brasileiro da regio
de So Paulo. (SANTOS, 2005, p. 32)

Ainda que tenhamos avanado bastante na qualidade dos


LD j no ignoramos a existncia da Amrica Hispnica nem a
apresentamos de forma preconceituosa e estereotipada como antes -
continuamos mantendo, de certo modo, uma viso equivocada com
os LD atuais, na medida em que neles prevalecem textos oriundos
da Espanha e da Argentina, ou seja, assim ainda se dissemina a
ideia de que o modelo de espanhol o da Espanha e que, dentre os
pases da Amrica Hispnica existiria uma escala de valor ocupa-
da, em primeiro lugar, pela Argentina. Diante desse fato, caberia
questionar o motivo pelo qual os autores das colees, apesar de
manifestarem reconhecer a importncia de se oferecer aos alunos
textos procedentes de distintas regies onde se fala o espanhol,
com o fim de retratar a pluralidade lingustico-cultural do mundo
hispnico, acabaram selecionando majoritariamente textos desses
dois pases. Obviamente, no se espera que uma coleo de LD de
espanhol d conta de abarcar toda a riqueza dessa lngua-cultura

estudos 45.indd 264 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 265

usando o termo utilizado por Mendes (2004)9 mas que dian-


te dessa impossibilidade se evite ao menos tanto desequilbrio.
Se vinte e um pases tm o espanhol como lngua oficial, que se bus-
que contemplar a maior diversidade possvel, evitando privilegiar
to fortemente um ou outro pas. importante deixar claro que no
se est aqui acusando os autores das colees, todos profissionais
ps-graduados em instituies de renome e envolvidos seriamente
com questes relacionadas ao ensino-aprendizagem de espanhol,
de privilegiar determinados pases por crerem em sua supremacia,
mas, de certa forma, eles reproduzem e realimentam aquelas cren-
as detectadas na pesquisa de Santos.

Como grande parte dos textos contidos nas colees em anlise


tem como suporte a internet, uma possibilidade que se aventa a
de que o acesso a eles, por meio de busca a partir de temas j que
as unidades dos livros didticos so temticas tenha remetido
majoritariamente a endereos eletrnicos desses dois pases, pois,
como se sabe, os sites de busca listam os sites por ordem de visitao,

9 A autora, que prope o ensino de lnguas estrangeiras por meio de uma


abordagem intercultural, define lngua-cultura como um fenmeno social e
simblico de construo da realidade que nos cerca, modo de construirmos
os nossos pensamentos e estruturarmos as nossas aes e experincias e as
partilharmos com os outros (...) Um sistema complexo que envolve diferentes
nveis de estruturas formais, como os aspectos fonolgicos, morfolgicos, sintticos
e semnticos, as unidades de sons e suas representaes grficas, assim como
um sistema de normas e regras de organizao dessas estruturas. Alm disso, ou
junto com isso, envolve um conjunto de cdigos sociais e culturais que inclui tudo
o que ns fazemos com o nosso corpo, com a nossa voz e com nossos movimentos
quando nos comunicamos, assim como tudo o que precisamos saber quando
interferimos numa conversa, aceitamos um convite para jantar, pedimos opinio
sobre a roupa que vestimos, cumprimentamos um desconhecido, demonstramos
interesse amoroso ou simplesmente reagimos ao que se apresenta diferente de
ns. (MENDES, 2004, p. 20)

estudos 45.indd 265 26/05/14 14:55


266 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

fazendo com que os mais visitados apaream em primeiro lugar, o


que demonstra a dificuldade de fugir do lugar comum, do que est
institudo. Assim, os prprios autores podem simplesmente no
ter se dado conta dessa predominncia. Entretanto, isso apenas
conjectura, j que no seria possvel, nem o objetivo nesse mo-
mento, conferir essa hiptese.

Essa viso disseminada da Espanha como modelo tambm


se construiu e continua sendo construda muito em funo do
investimento realizado no Brasil por aquele pas. Entre as aes
do Ministerio de Educacin, Cultura y Deporte de Espaa para
difundir a lngua espanhola e incrementar a presena de sua cul-
tura no exterior, encontra-se o Diploma de Espaol como Lengua
Extranjera (DELE)10. No mundo inteiro, so aproximadamente
setecentos centros em mais de cem pases. Somente na cidade do
Rio de Janeiro, existem oito centros de examen autorizados.

As provas so elaboradas com base nas diretrizes do Marco


Comn Europeo de Referencia (MCER) do Consejo de Europa e o
ttulo outorgado pelo Instituto Cervantes. Em 2009, a notcia de
um acordo firmado entre o MEC brasileiro e esse Instituto para a
formao de professores de espanhol gerou grande polmica, levan-
do manifestao contrria de distintas universidades e associaes

10 Para se ter uma ideia do alcance e importncia desse exame de proficincia


no Brasil, o DELE (nvel B1) um dos requisitos para o candidato que queira
concorrer bolsa para graduao-sanduche na Espanha, por meio do Programa
Cincia sem Fronteiras do CNPq e Capes, instituies de fomento do governo
brasileiro. A Espanha o nico pas de lngua espanhola que se encontra na lista
das opes de pases. http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/c/document_library/
get_file?uuid=f7734c9b-e574-4443-923e-b08a8badb76c&groupId=214072

estudos 45.indd 266 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 267

de professores de espanhol de todo o pas.11 Mais recentemente,


em maro deste ano, foi publicado no blog Espanhol do Brasil12
um abaixo-assinado defendendo o ensino de espanhol no pas de
forma autnoma e sem tutelas, sem a perspectiva centralizadora
da Consejera de Educacin de la Embajada de Espaa en Brasil,
que financiou a viagem de representantes de diversas associaes
de professores de espanhol do pas com o fim de divulgar suas aes
relativas formao continuada de professores junto s Secretarias
de Estado e s universidades. O documento chama ateno para o
risco de, nessas condies, estabelecer-se uma relao de assimetria
e subordinao:
H antecedentes, de notrio e pblico conhecimento, sobre atu-
aes marcadas por uma indevida ingerncia por parte de rgos
do governo espanhol, como o Instituto Cervantes, em relao
educao regular brasileira, que j motivaram desconforto
sonoramente expressado por milhares de profissionais da rea
em manifestaes em torno de diversos fatos, sobretudo nos
ltimos seis anos. E os setores que hegemonizam, na Espanha,
as polticas para a lngua no mundo declaram aberta e constan-
temente sua viso do espanhol como um recurso econmico para
conquistar mercados, sendo o Brasil um dos seus declarados
alvos privilegiados.

(http://espanholdobrasil.wordpress.com/2012/03/12/espa-
nhol-no-brasil-autonomo-e-sem tutelas/)

11 Pode-se ter acesso a cartas de distintas instituies brasileiras, dirigidas ao MEC,


por meio das quais foram solicitados esclarecimentos, manifestando insatisfao
e at mesmo repdio a esse convnio em: http://espanholdobrasil.wordpress.
com/category/cartas-ao-mec/

12 Blog criado com o fim de acompanhar a implantao do espanhol no sistema


educativo brasileiro, especialmente aps a sano da Lei 11.161/05, conhecida
como Lei de obrigatoriedade do espanhol.

estudos 45.indd 267 26/05/14 14:55


268 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

A Argentina, por sua vez, tambm vem fomentando o ensino e a


difuso do espanhol como LE. O CELU (Certificado de Espaol: Len-
gua y Uso), criado em 2004, tem o aval do Ministerio de Educacin,
Ciencia y Tecnologa de la Repblica Argentina e reconhecido
pelo governo brasileiro, assim como o CELPE-Bras (Certificado Bra-
sileiro de Portugus como Lngua Estrangeira) reconhecido pelo
governo argentino. Atualmente, existem onze postos de aplicao
do exame em nosso pas. Dentre os que se candidatam internacio-
nalmente, os brasileiros se destacam em nmero13.

A presena de muitos professores argentinos nas universidades


brasileiras tambm uma realidade. A USP, por exemplo, uma das
mais importantes universidades do pas, possui cinco professores
argentinos em seu Departamento de Letras Modernas (Lngua
espanhola e Literaturas espanhola e hispano-americana)14, o que
viabiliza ainda mais o intercmbio lingustico e cultural entre os dois
pases, ao se promoverem congressos e cursos em suas universida-
des. Alis, retomando o tema do CELU, em 2006, o exame (nvel
intermedirio) passou a ser aceito pelos cursos de ps-graduao
da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP como
comprovante de proficincia em lngua espanhola. Alm disso,
o Centro de Lnguas dessa instituio o local no qual se aplica o
CELU em So Paulo.

13 Obtive acesso a esses dados consultando o site do Centro de Lnguas da FFLCH/


USP: http://clinguas.fflch.usp.br/content/certificado-de-espa%C3%B1ol-lengua-y-
uso. (Acesso em fevereiro de 2013)

14 Cheguei a esse nmero por meio de consulta ao site do Departamento: http://


www.dlm.fflch.usp.br/espanhole ao Currculo Lattes dos professores. (Acesso em
fevereiro de 2013).

estudos 45.indd 268 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 269

Vejo como positivo o movimento no Brasil em direo ao inter-


cmbio na rea da educao com os pases da Amrica Hispnica,
movimento esse comentado no blog Espanhol do Brasil como
distinto do que se v na relao com a Espanha, que tem investi-
do na divulgao da lngua como um grande ativo capaz de abrir
mercados:
Paralelamente, e mostrando uma tendncia muito diferente, h
um processo de integrao regional em andamento na Amrica
do Sul que tem gerado inmeras aes de reciprocidade com
pases vizinhos, com seus sistemas educativos e suas universi-
dades, para a difuso do portugus brasileiro e do espanhol na
regio. (http://espanholdobrasil.wordpress.com/2012/03/12/
espanhol-no-brasil-autonomo-e-sem-tutelas/)

No entanto, importante buscar que essas aes efetivamente se


ampliem para outros pases e que sejam cada vez mais frequentes,
caso contrrio, corremos o risco de simplesmente substituir uma
hegemonia pela outra.

Se quisermos propor um trabalho pedaggico pautado na pers-


pectiva do pluralismo cultural, devemos estar atentos seleo dos
textos que se apresentam aos alunos nos livros didticos no que
diz respeito aos mais variados aspectos e, mais especificamente,
quanto procedncia desses textos. As colees analisadas revelam
essa preocupao, mas preciso selecionar os textos de forma mais
equitativa, evitando que determinados pases continuem ocupando
posies hegemnicas. A expectativa a de que a qualidade dos
livros didticos de espanhol selecionados seja cada vez melhor, a
cada nova edio do Programa Nacional do Livro Didtico.

estudos 45.indd 269 26/05/14 14:55


270 ESTUDOS LINGUSTICOS E LITERRIOS

Referncias

BRASIL. Edital de convocao para inscrio no processo de


avaliao e seleo de colees didticas para o Programa Nacional
do Livro Didtico PNLD 2012. Braslia: Ministrio da Educao,
2009. Disponvel em http://www.fnde.gov.br/index.php/edital-pnld-
2012-ensino-medio
_______. Orientaes Curriculares Nacionais. Linguagens, cdigos e
suas tecnologias. Braslia: Secretaria de Educao Bsica, 2006.
CASTRO, Francisca; MARN, Fernando; MORALES, Reyes; ROSA,
Soledad. Ven. Espaol Lengua Extranjera. Madrid: Edelsa, 1990.
CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru/SP:
EDUSC, 1999.
GIMNEZ ROMERO, Carlos. Pluralismo, Multiculturalismo e
Interculturalidad. In: Educacin y futuro: revista de investigacin
aplicada y experiencias educativas, n. 8, 2003. In: www.cesdonbosco.
com/revista/impresa/8/estudios/texto_c_gimenez.doc
HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
MARTIN, Ivan. Sntesis: curso de lengua espaola. So Paulo:
tica, 2011.
MENDES, Edleise. A mesma face, duas moedas: materiais para o ensino
de portugus a falantes de espanhol. In: PARAQUETT, M; TROUCHE,
A. Formas & Linguagens: tecendo o hispanismo no Brasil. Rio de
Janeiro: PublishingHouse, 2004, p. 17-36.
OSMAN, Soraia; ELIAS, Neide; REIS, Priscila; IZQUIERDO, Sonia;
VALVERDE, Jenny. Enlaces: espaol para jvenes brasileos. So
Paulo: Macmillan, 2010.
PARAQUETT, Marcia. Da abordagem estruturalista comunicativa: um
esboo histrico do ensino de espanhol/LE no Brasil. In: TROUCHE,
Andr; REIS, Livia. (Org.) Hispanismo 2000, Vol. 1, Ministerio de
Educacin, Cultura y Deporte / Associao Brasileira de Hispanistas, 2001.

estudos 45.indd 270 26/05/14 14:55


NMERO 45, JANEIRO DE 2012/JUNHO DE 2012 271

PICANO, Deise Cristina de Lima; VILLALBA, Terumi Koto Bonnet. El


arte de leer espaol. Curitiba: Base Editorial, 2010.
SANCHEZ, Aquilino; FERNNDEZ, Juan Manuel; DAZ, Mara
Carmen. Antena 1. Curso de espaol para extranjeros. Madrid: SGEL,
1986.
SANTOS, Helade Scutti. Quem sou eu? Quem voc? Ser que a
gente pode se entender?As representaes no ensino-aprendizagem
do espanhol como lngua estrangeira. Dissertao de mestrado.
Universidade de So Paulo, 2005.

estudos 45.indd 271 26/05/14 14:55


Colofo

Formato 15 x 21,5 cm

Tipologia Georgia 11/16

Papel Alcalino 75g/m2 (miolo)


(capa)

Impresso Edufba

Capa e acabamento Cian Grfica

Tiragem 250 exemplares

estudos 45.indd 272 26/05/14 14:55

Você também pode gostar