Revpat 36
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Revpat 36
Nº 36 Nº 36 Nº 36
2017 2017 2017
Neste número
Alexandre Alves Costa
Chiara Bortolotto
Dominique Poulot
George Yúdice
Luciane Gorgulho
Marcia Sant’Anna
Patrimônio:
desafios e perspectivas
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 36 / 2017
ISSN 0102-2571
Patrimônio:
desafios e perspectivas
OrganizaçãO: Andrey Rosenthal Schlee
Presidente da rePública do brasil
Michel Temer
foto da caPa
Marcel Gautherot
Patrimônio:
desafios e perspectivas
Juan Luis Isaza Londoño Marcia Sant’Anna
Uma ordem imaginada 13 Desafios e perspectivas da política federal 95
de salvaguarda do patrimônio cultural
Chiara Bortolotto
Patrimônio e o futuro da autenticidade 23 Dominique Poulot
A compreensão do patrimônio 107
Ulpiano T. Bezerra de Meneses contemporâneo e seus limites
Repovoar o patrimônio ambiental urbano 39
Flávio de Lemos Carsalade
Antonio Augusto Arantes Neto A preservação do patrimônio como 137
Oportunidades globais para o patrimônio 53
construção cultural
imaterial: novos desafios para as vidas
locais Alexandre Alves Costa
Quando a luz se encontra com o silêncio 151
GeorgeYúdice
Músicas plebeias 61 Virgolino Ferreira Jorge
Salvaguarda dos bens histórico- 163
eclesiásticos em Portugal
Luciane Gorgulho
Financiamento às instituições culturais sob 179
a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preservação do patrimônio
cultural brasileiro
Ouro Preto
Acervo: Cyro Corrêa Lyra.
Kát i a B ogéa
A pr e s e nta ç ã o
a ajuda do Santo”, desenvolvido pela Estação Andrey Rosenthal Schlee, não apresenta
Primeira de Mangueira para o Carnaval de uma lógica estrutural. Mas apenas uma
n
com a iniciativa. O tema era “nosso”, ou do patrimônio. Ao todo são onze artigos
seja, nada mais ligado à trajetória do Iphan assinados por especialistas de renome
a
Kátia Bogéa
i s t ó r i c o
desfile criado por Leandro Vieira, resultou construção de um modelo, certamente mais
em uma festejada exposição realizada no participativo e compartilhado, de gestão
P
expliquei que uma das funções do Iphan, Juan Luis Isaza Londoño, o norte-americano
desde a sua criação em 1937, sempre foi George Yúdice, os franceses Dominique
r
patrimônio.
Vale
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
12
Juan Luis Isaza Londoño Uma ordem imaginada
Juan Luis Isaza Londoño
a c i o n a l
U ma
n
ordem imaginada
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Uma ordem imaginada se encontra sempre em Uma l i s ta e l a b o r a d a
risco de desmoronar, porque depende de mitos, e
estes desvanecem quando deixamos de
Segundo se aceita hoje, os gregos da
P
acreditar neles.
d o
Antiguidade tinham o hábito de elaborar
e v i s t a
Yuval Noah Harari1. listas (os nossos atuais top ten) com os maiores
ou os mais belos, entre muitos outros tipos
r
de listas; também se aceita que o sete era um
número mágico para eles, da mesma forma
como é sagrado em algumas religiões.
Talvez uma das primeiras ordens
imaginadas e uma das primeiras listas
relacionadas ao patrimônio cultural e sobre a
qual há um consenso universal tenha sido a 13
das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Essa
lista foi construída ao longo de vários séculos
e autores muito diferentes nela deixaram
sua marca. Presume-se que Heródoto de
Halicarnasso (c. 484 a.C–c. 425 a.C.), tido
como o primeiro historiador, e Calímaco de
Cirene (c. 310 a.C–c. 235 a.C.), um poeta
e erudito alexandrino, contribuíram para
determinar essas maravilhas. No entanto,
a lista elaborada em que havia uma série
de obras humanas destacáveis no mundo
(com valor universal excepcional) se deve
a Filão de Bizâncio (290–220 a.C.), que Carranca
Acervo: Copedoc/Iphan/
só se referiu a locais dali. A lista que surgiu Marcel Gautherot.
Sídon (século II a.C.), poeta grego que fez (1836–1914), Alois Riegl (1858–1905),
a c i o n a l
monge beneditino e erudito, escreveu como Carta de Atenas. Essa lista foi
a t R i m ô n i o
sobre muitos temas, desde música até delimitada, mas não encerrada, com a famosa
religião; em sua obra De septem mundi Carta Internacional para Conservação
P
ele incluiu construções romanas e descartou conhecida como Carta de Veneza e assinada
e v i s t a
a c i o n a l
que confiamos e acreditamos sobre o que é ao patrimônio que a espécie humana já
patrimônio cultural, as pegadas que nossa conseguiu ao longo de toda a sua história.
espécie tem deixado no planeta e, há pouco Ambas as convenções (1972 e 2003)
nR t í s t i c o
tempo, no sistema solar, e que, dentro de possuem, entre muitos outros aspectos e
a
conservadas, protegidas e valorizadas. verdadeira vertigem. A Lista do Patrimônio
e
Mundial inclui 1.073 bens e a Lista
i s t ó R i c o
Representativa do Patrimônio Cultural
Imaterial da Humanidade tem 429 itens.
H
Resumindo, e fazendo contas rápidas e
a t R i m ô n i o
ligeiras, temos hoje mais de 1,5 mil itens
materiais e imateriais que todos concordamos
P
serem importantes para os humanos, de todos
d o
os rincões do planeta.
e v i s t a
São muitas e longas as discussões entre
R
não especialistas e “especialistas”, indicando
que nem todos os itens estão nas listas, e nem
todos são o que se pensa; entretanto, há um
radiografia imprecisa certo consenso internacional, que é aceito por
do presente muitos, apesar de suas contradições e lacunas.
Nas últimas três décadas do século XX e
Desde 2011, são 195 os estados-membros no decorrer do século XXI, temos construído
15
da Organização das Nações Unidas para e consolidado as listas do que, por consenso,
Educação, Ciência e Cultura – Unesco. Até consideramos que possui importância
o momento, 193 Estados depositaram seus patrimonial para todos os humanos. As
respectivos instrumentos de aceitação, adesão, listas tendem a crescer e assim acontece ano
aprovação ou ratificação da Convenção após ano, mas, são infinitas? É difícil supor
sobre Proteção do Patrimônio Mundial, quando também chegaremos a um consenso
Cultural e Natural (1972); as Diretrizes para decidir que tais listas estão encerradas. A
Práticas para a aplicação da Convenção do argumentação para inscrever um sítio na Lista
Patrimônio Mundial insistem que mais do Patrimônio Mundial está cada vez mais
países adiram à Convenção e elaborem listas difícil e complicada, assim como também
indicativas e propostas de inscrição de bens a argumentação para demonstrar seu Valor
na Lista do Patrimônio Mundial. Um total Universal Excepcional; muitos dos estados-
Pegada do homem na Lua
de 174 Estados depositou seus respectivos membros empregam suas redes e estruturas de Acervo: www.google.com.co/
search?q=huella+del+hom-
instrumentos de aceitação, adesão, aprovação poder e política para inscrever novos sítios e bre+en+la+luna&source=lnms&-
tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKE-
wjlnoS33o7VAhVCZCYKHcTTBS-
ou ratificação da Convenção para Salvaguarda itens presentes em seus territórios, em um afã gQ_AUICigB&b
por conquistar ou manter uma posição dentro Deve-se fazer todo o possível para manter
Uma ordem imaginada
desse top ten patrimonial que, obviamente, se um equilíbrio razoável entre patrimônios
a c i o n a l
político e econômico por trás de muitos distante já está incluída nessa Lista.
Juan Luis Isaza Londoño
patrimônio cultural (material e imaterial) e possam abarcar não só os sítios que já estão
e v i s t a
É sempre viável e possível descobrir os para que se possam fazer novas leituras e
valores universais excepcionais de um novo reinterpretações dos sítios inscritos, como já
sítio ou a representatividade de algum item; tem acontecido com certa frequência. Assim,
no entanto, a Lista do Patrimônio Mundial já ainda estamos sujeitos a novas descobertas
começa a mostrar seus limites, apesar de estar arqueológicas e, também, a novas leituras
indicado clara e explicitamente nas Diretrizes ou aproximações conceituais com relação
Práticas para a Aplicação da Convenção do aos sítios e elementos incluídos nas listas.
16
Patrimônio Mundial que não se fixou um Também é certo que o gênio criador
limite ao número de itens que nela podem ser humano não para e sempre produz sítios e
inscritos, o que permite entender-se que se itens que merecem proteção e salvaguardas
encontra aberta e pode ser infinita. no âmbito global.
Existe uma Estratégia Global para uma Embora se trate de um processo que
Lista do Patrimônio Mundial representativa, não é recente, originado nesse passo
equilibrada e crível, que já foi concebida fundamental que permitiu que os humanos
para identificar e preencher as principais começassem lenta e paulatinamente a se
lacunas dessa Lista do Patrimônio Mundial. apropriar da natureza em uma situação
Inicialmente, essa estratégia se referia apenas de produção, gerando o desenvolvimento
ao patrimônio cultural. A pedido do Comitê progressivo da agricultura e da pecuária
do Patrimônio Mundial, ampliou-se a (que hoje conhecemos como revolução
estratégia para também incluir o patrimônio agrícola), estamos presenciando agora, dia
natural, bem como o de natureza mista a dia, a extinção de inúmeras espécies não
(cultura e natural). humanas, os alarmantes fenômenos que
causam o aquecimento global (tais como o tecnologia, artes monumentais, planejamento
a c i o n a l
elevação do nível do mar, assim como a seca cidades que se assemelham bastante a estações
e a desertificação de novas áreas) e somos espaciais, em meio a condições em que é
obrigados a tomar várias decisões urgentes muito difícil se desenvolver vida humana,
nR t í s t i c o
e irrevogáveis para a proteção de sítios não estariam entre esses sítios? Também
a
representativos de processos ecológicos e pesquisa e exploração de combustíveis fósseis?
e
biológicos da evolução e do desenvolvimento E, como se trata de troca de valores, também
i s t ó R i c o
dos ecossistemas terrestres, aquáticos, não seria o caso dos grandes aeroportos e
costeiros e marinhos e das comunidades portos internacionais?
H
de vegetais e animais terrestres, aquáticos,
a t R i m ô n i o
costeiros e marinhos; mesmo assim, torna-se
urgente proteger essas áreas cada vez mais
P
ameaçadas e restritas em que se encontram
d o
os hábitats naturais mais representativos e
e v i s t a
importantes para a conservação in situ da
R
diversidade biológica, incluindo aqueles em
que sobrevivem espécies ameaçadas.
Igualmente ao que está acontecendo
com os indivíduos não humanos, as
formas de vida tradicionais e seus hábitats
correspondentes (incluindo assentamentos, Essa mudança irreversível está na ordem
caminhos e, fundamentalmente, arquiteturas do dia e a absorção de nossa cultura global,
17
genuínas, tão frágeis e vulneráveis, que predadora e dominante, que avança como
estão sendo arrasadas todos os dias por uma mancha de óleo sobre testemunhos
novas formas de ocupação do território, únicos ou, pelo menos excepcionalmente,
técnicas modernas de construção e sistemas sobre tradições culturais ou civilizações vivas
homogeneizados com padrões de conforto ou desaparecidas, não nos obriga hoje a tomar
idealizados e dominadores) terão de ser medidas urgentes?
analisados pelos especialistas e protegidos No caso particular da América Latina
material e imaterialmente pelas comunidades e do Caribe, os assentamentos humanos
e pelos Estados. irregulares de crescimento espontâneo, que
Ao longo do século XX e no decorrer do são estabelecidos em geral nos arredores das
século XXI, são muitos e variados os sítios grandes cidades e se caracterizam por serem
Plataforma petrolífera
que testemunham uma troca considerável muito pobres, pela miséria e altos índices de https://www.google.com.co/
search?q=plataformas+petrole-
ras&source=lnms&tbm=isch&-
de valores humanos durante um período criminalidade, não constituem um exemplo sa=X&ved=0ahUKEwiR-vH-4I-
7VAhVBPiYKHQNbBTAQ_AUICi-
definido ou em uma área cultural determinada bastante representativo de um tipo de gB&biw=1366&bih=638#q=pla-
taformas+petroleras&tbm=is-
ch&tbs=isz:l&imgrc=q1HE0g-
do mundo nos âmbitos de arquitetura ou construção ou de conjunto arquitetônico ou FoymqlgM:
tecnológico ou de paisagem que ilustra um permitirão registrar tais acontecimentos,
Uma ordem imaginada
do México) como patrimônio mundial? São, artísticas e literárias que possuem importância
Juan Luis Isaza Londoño
território, paisagens culturais e formas de vida podem ficar de fora sítios que, por exemplo,
e
de assentamento humano durante os séculos criador humano não para e sempre produz
XX e XXI? sítios e bens que merecem proteção e
P
ou do mar, representando uma cultura (ou demais âmbitos da criação humana, que
R
a c i o n a l
sobre os territórios onde será possível desenvolvimentos tecnológicos, ainda em
identificar, proteger e valorizar lugares em que uso ou em desuso (tais como plataformas
ainda se podem identificar as grandes fases da petrolíferas, canais, minas a céu aberto,
n
R t í s t i c o
história da Terra, incluindo o do testemunho estações espaciais, observatórios astronômicos,
a
evolução das formas terrestres ou de elementos Também como já foi apontado, serão inseridas
e
geomórficos ou fisiográficos significativos. as grandes obras de infraestrutura, tais como
i s t ó R i c o
aeroportos, portos, represas, canais, centrais
somas e sUbtrações atômicas, hidroelétricas e usinas térmicas,
H
silos para conservação e armazenamento de
a t R i m ô n i o
Ao longo da história (a nossa história), grãos, fábricas e muitos outros bens e itens que
temos protegido duas classes fundamentais testemunham a história e o desenvolvimento
P
de bens e itens que me permito denominar humano dos séculos XX e XXI, que hoje não
d o
patrimônio por criação, construção ou estão representados ou estão sub-representados.
e v i s t a
adição e patrimônio por destruição, extinção Há sempre essa dificuldade em considerá-
R
ou subtração. Novas obras (materiais ou los sob uma lente patrimonial, devido à sua
imateriais) se somam a um repertório existente proximidade estética, funcional, material e
e, por diversas razões, se tornam paradigmas, temporal, entre outras dimensões, que não
divisores de águas, primeiros de uma série excluem a econômica e a política.
ou ícones de determinado período, cultura
ou região. Também protegemos geralmente p at r i m ô n i o por
obras humanas (materiais ou imateriais) destrUição, extinção
19
e da natureza que consistem em relíquias, oU sUbtração
restos, marcas, ruínas ou formas tangíveis de
uma época que já se passou. Estas também No futuro, é possível arriscar e afirmar
merecem conservação e salvaguarda por sua que protegeremos relíquias de arquitetura
singularidade, escassez, excepcionalidade e popular, tradicional ou genuína que
unicidade. As listas nacionais e internacionais ainda permaneçam à margem dos grandes
estão cheias dessas obras. desenvolvimentos tecnológicos e estilísticos,
construídos com o concreto armado,
p at r i m ô n i o por criação, as estruturas metálicas e da arquitetura
constrUção oU adição moderna como patrimônio por destruição,
extinção ou subtração. Também, como já
No futuro, é possível arriscar e afirmar têm feito alguns Estados, protegeremos
que protegeremos cidades ou partes delas legados materiais e imateriais das minorias
e os assentamentos humanos dos séculos culturais étnicas, políticas, religiosas, sexuais
XX e XXI, formais e informais, incluindo e sociais, entre outras.
Considerando a extinção generalizada da Como já foi apontado, aumentarão os
Uma ordem imaginada
nossas relações com tais espécies, tais como de extermínio (humano e não humano),
Juan Luis Isaza Londoño
com relação às espécies não humanas, o sido fácil, certamente o maior protagonista
i s t ó R i c o
A transformação que hoje realizamos O território implica uma visão mais ampla
e v i s t a
nos territórios, com alta tecnologia e grandes e complexa do que as paisagens culturais ou
R
maquinários, está gerando uma alteração das naturais e também implica a consideração de
paisagens naturais de tal forma que podemos muitos componentes e variáveis.
imaginar que, em um futuro não distante,
aumentará a proteção das paisagens extrativas, n ormas qUe , apesar de
das grandes minas (subterrâneas e a céu existirem Unicamente em nossa
aberto) e das instalações relacionadas com estas imaginação , acreditamos
(tais como acampamentos, infraestrutura de serem reais e invioláveis
20
transformação e transporte de materiais etc.).
Considerando a mudança climática Atualmente, a nova fé no crescimento
evidente e inevitável, haverá muitos sítios econômico, que, segundo parece, é a origem
e itens que serão fortemente impactados, de todo o bem, nos convida a esquecer ou
ficando em risco de extinção. Serão superar dilemas éticos; tudo que gerar algum
definidas novas orlas costeiras, com todas tipo de obstáculo é esmagado sob as rodas do
as suas consequências; desaparecerão carro do crescimento econômico, e isso não
glaciares, locais ermos, neves eternas e exclui os hábitats ecológicos, as estruturas
massas de gelo; determinadas espécies sociais e os valores tradicionais. São cada
serão propagadas e outras serão reduzidas vez mais frequentes casos (alguns bastante
ou desaparecerão. Considerando esses referidos, divulgados e discutidos) em que
fenômenos, que já presenciamos hoje, não esse crescimento econômico se interpõe nos
ficaremos indiferentes e, adotando uma ótica patrimônios cultural e natural. Os casos
patrimonial, também tomaremos medidas de do Santuário do Órix Árabe, em Omã, e o
proteção e salvaguarda urgentes. Vale do Elba, em Dresden, Alemanha, que
foram eliminados da Lista do Patrimônio referências
a c i o n a l
são exemplos claros do que muito certamente Embora o texto seja uma criação própria, em que não
se indicou nenhuma citação ou notação bibliográfica,
aumentará: os estados-membros e seus
o autor está em dívida e é profundamente influenciado
governos pesam as vantagens de proteger e
n
pelas obras e pelo pensamento do doutor Yuval Noah
R t í s t i c o
conservar seu patrimônio ou de se render Harari. Assim, suas obras são amplamente recomendáveis
a
arrebenta do lado mais fraco... HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: breve historia del
e
Talvez seja prudente e oportuno pensar mañana. Barcelona: Debate, 2016.
i s t ó R i c o
______. Sapiens: de animales a dioses. Breve historia de la
que essa ordem imaginada e as normas humanidad. Barcelona: Debate, 2015.
que reforçam a sustentação mundial dos
H
patrimônios cultural e natural podem ter
a t R i m ô n i o
começado a ser solapadas e que sua estrutura
principal também pode estar em risco de
P
colapso; talvez ainda demore muitos anos
d o
para serem seriamente afetadas, mas vale a
e v i s t a
pena pensar nisso.
R
21
Estátua de São Jorge
e seu cortejo
Acervo: Jean Baptiste Debret.
1816-1831.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
22
Chiara Bor tolotto Patr imônio e o futuro da autenticidade
Chiara Bor tolotto
a c i o n a l
p atrimônio
n
e o fUtUro da aUtenticidade
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Concebido historicamente como objeto torno da noção proscrita de autenticidade,
de preservação, cujo monumento é o tanto no cenário internacional quanto em
exemplo mais paradigmático, o patrimônio escalas nacionais e locais. Essas controvérsias
P
é doravante definido como um recurso
d o
permitem apreender, de modo específico, o
e v i s t a
dinâmico constantemente recriado, em que problema da transformação em direção a um
o imperativo da transmissão do vivo faz do novo paradigma de patrimonialização, em
r
futuro o seu tempo forte. Essa transformação que o ideal de perenização é substituído por
coloca à prova os princípios fundadores um imperativo moral de durabilidade que
da instituição patrimonial e, em primeiro
afasta o patrimônio do reino da conservação
lugar, a noção de autenticidade. Dentre
do passado e aproxima as questões
as inúmeras implicações da instituição do
patrimoniais daquelas da sobrevivência
patrimônio cultural imaterial – PCI para
ecológica. Essa mudança tem efeitos sobre
pensar o futuro do patrimônio, a eliminação 23
o plano operacional da governança do
da autenticidade como critério para a
patrimônio, pois implica novas abordagens
identificação do patrimônio abre, assim,
para a sua gestão. Ela tem também um
perspectivas inéditas que colocam um grande
interesse antropológico mais geral, porque o
desafio à retórica patrimonial autorizada,
ao introduzir novas ambiguidades. Baseado questionamento dos princípios fundadores da
1. Agradeço a Aurélie Elisa Gfeller, Christoph Brumann e Harriet Em 2010, quatro anos após a entrada
Deacon por seus preciosos comentários sobre as versões anteriores
deste texto. Chérif Khaznadar, Marc Jacobs, Panayiota Andria- em vigor da Convenção para a Salvaguarda
nopoulou e Riecks Smeets por terem compartilhado comigo seus
pontos de vista de especialistas sobre a relação entre o valor da do Patrimônio Cultural Imaterial, o Comitê São Francisco
autenticidade e a governança do PCI. Sou grata a Simone Toji Acervo: Copedoc/Iphan/
por sua ajuda na redação deste artigo. Intergovernamental de Salvaguarda do Marcel Gautherot.
Patrimônio Cultural Imaterial2 se reunia Os órgãos de avaliação4 responsáveis
Patr imônio e o futuro da autenticidade
que “os termos ‘autêntico’ e ‘autenticidade’ atualidade” (Unesco, 2011b:8). Por exemplo,
R
a c i o n a l
nas Listas da Convenção entre 2009 e
o patrimônio cultural imaterial em uma forma
2012, os primeiros anos do programa,
engessada e idealizada (Unesco, 2011a:9).
mostrou que, de fato, os termos “autêntico”
n
R t í s t i c o
e “autenticidade” são amplamente utilizados
De modo ainda mais explícito, o órgão
sem, no entanto, indicar alguma tendência
subsidiário, na avaliação de uma candidatura
a
geográfica, nem evolução nesse período: para
e
para inscrição na Lista Representativa
os 168 bens inscritos na Lista Representativa
i s t ó R i c o
H
país implicado que “vele pela coerência das
foram encontradas nos dossiês de trinta bens
a t R i m ô n i o
medidas propostas e evite as referências à
inscritos na Lista de Salvaguarda Urgente. Em
autenticidade” (Unesco, 2012:32).
muitos casos, essas palavras foram utilizadas
Essa abordagem é coerente com a
P
diversas vezes no mesmo dossiê (Bortolotto,
d o
concepção dinâmica que a Convenção almeja
2011). O dossiê mexicano acima mencionado
e v i s t a
lançar nos modos de pensar o patrimônio
é significativo nesse sentido, pois, se o
imaterial como “recriado permanentemente
R
termo foi suprimido da denominação do
pelas comunidades e grupos em função de seu
bem, ele pode ser encontrado nove vezes no
ambiente, de sua interação com a natureza e
decorrer do documento. A manutenção da
de sua história” (Unesco, 2003, art. 2). Como
autenticidade é explicada como um “desejo de
evidencia uma funcionária da Unesco, esse
não falsificar os originais” (Unesco, 2010:4),
paradigma se afasta radicalmente do modelo
sendo a autenticidade apresentada como uma
incorporado pelo Patrimônio Mundial,
propriedade de certos territórios; é associada
em que a autenticidade é um critério 25
às culturas indígenas, à harmonia ambiental
fundamental: com o PCI trata-se mais de
e à sustentabilidade e é apresentada como
identificar “o que é útil para as comunidades
ameaçada pela economia e pelo turismo. Esse
na sua vida cotidiana, do ponto de vista
exemplo é representativo dos argumentos
material ou espiritual”5.
realçados em diversos outros casos, em que
o termo “autenticidade”, frequentemente
as v i o l a ç õ e s d o ta b U
associado à ideia de tradições apresentadas
como milenares, refere-se geralmente a um
Se a expressão “autenticidade”
traço territorial.
não é coerente com os princípios e os
Como a análise dos usos desse conceito
objetivos declarados da Convenção e está,
nos dossiês dos sítios inscritos na Lista do
consequentemente, banida da terminologia
Patrimônio Mundial demonstrou, insistir
autorizada, na prática essa noção se encontra
sobre a autenticidade do patrimônio
tem visivelmente a função de construir a
5. Entrevista com Susanne Schnuttgen; citação retirada do meu
caderno de campo. imagem de uma cultura nacional sólida
por parte dos países (Labadi, 2010). Esse destaca-se o argumento contrário, pois o
Patr imônio e o futuro da autenticidade
é para a Nação o que a alma é para a pessoa geográficas, que permitem a uma comunidade
e
outros exemplos, o dossiê da arte dos Ashiqs e ganhos de monopólio sobre práticas
de Azerbaijão, inscrita na Lista Representativa culturais representadas como especificidades
H
Pelo fato de essa arte constituir um dos estratos colocadas à disposição aos Estados Parte pelo
d o
os mais profundos e mais autênticos da cultura secretariado da Unesco acabará por eliminar
e v i s t a
a c i o n a l
reconhecem a dificuldade dessa restrição. “capacitação” organizadas pela Unesco, os
Por exemplo, segundo um ator-chave da projetos de valorização patrimonial pelos
delegação japonesa, essa ideia é necessária atores locais ou as reuniões de ONGs
n
R t í s t i c o
para exprimir a natureza patrimonial (Kono, credenciadas à Convenção. Assim, por
2012). O delegado do Marrocos, que chamou exemplo, a participação como formadora6 em
a
a atenção do Comitê a respeito do uso do uma oficina de “capacitação” organizada em
e
termo “autêntico” para caracterizar a cozinha 2011 em Cetinje (Montenegro) pela Unesco,
i s t ó R i c o
H
como a crença na autenticidade de uma
a t R i m ô n i o
reações dos profissionais do patrimônio
expressão cultural, ainda idêntica a si mesma frente à eliminação do vocabulário da
desde o começo dos tempos, motiva os autenticidade. Os dezesseis participantes
P
agentes do patrimônio em seu compromisso dessa oficina, consagrada ao tema “inventários
d o
(Skounti, 2009:77). pelas comunidades”, eram etnólogos
e v i s t a
A defesa em recorrer à noção de formados pela Universidade de Belgrado e
R
autenticidade parece, ainda, uma questão técnicos do Museu Nacional, dos museus
de terminologia que poderíamos comparar locais ou dos parques naturais. Apoiando-
ao que os antropólogos chamam de um me sobre o material de formação fornecido
“tabu linguístico”. No entanto, uma certa pela Unesco, expliquei que, no âmbito da
complacência é exercida vis-à-vis esse tabu, Convenção, a noção de autenticidade não
embora as razões para recorrer a essa noção é considerada pertinente para identificar
não sejam as mesmas para os diferentes tipos os bens do PCI a serem incluídos em um
27
de atores do patrimônio. inventário. Rapidamente compreendi que os
participantes estavam incomodados com o
a a U t e n t i c i d a d e pa r a a que eu dizia. Um ruído se disseminou pela
p r á t i c a d o pat r i m ô n i o : sala e os participantes começaram a discutir
U m va l o r i n c o n t o r n á v e l de maneira bastante animada entre eles.
Eu não conseguia acompanhá-los porque o
Ao lado da observação dos trabalhos tradutor, conquistado pelo animado debate,
do Comitê, minha posição híbrida de participava da discussão e tinha parado de
pesquisadora e de especialista e, portanto, traduzir.
de agente no dispositivo que eu observo,
deu-me acesso, após uma dezena de anos, 6. Em março de 2011, convidada pela Seção PCI da Unesco,
participei de uma “formação de formadores” com outros nove
a inúmeras situações nas quais a aplicação “especialistas regionais”. Essa primeira formação, organizada em
da Convenção gera tensões com os regimes Sophia, foi seguida por uma reunião de exame do programa em
2014, ainda em Sophia, e por inúmeras reuniões organizadas pelo
patrimoniais existentes. Essas zonas de Secretariado da Unesco em correspondência às sessões do Comitê
Intergovernamental das quais participam diversos facilitadores
contato permitem compreender as reações ativos em todas as regiões.
O organizador local dessa oficina, esse episódio revela como as profissões do
Patr imônio e o futuro da autenticidade
aprovada alguns meses antes . Como é o 7 disciplina acadêmica nos Estados Unidos e de
caso também de outras legislações nacionais etnologia na Alemanha.
a
a c i o n a l
e comunidades localizadas. A definição de após uma enchente, a partir dos anos 1960
“danças autênticas” contida no glossário passou a ser feita também em papel. Segundo
minha interlocutora, trata-se de uma inovação
n
redigido por essa associação para o Fórum
R t í s t i c o
suíço para o patrimônio cultural imaterial em relação à tradição. Essa variação, contudo,
admite que as danças sofrem modificações permanece autêntica, contrariamente àquela
a
ao longo do tempo. A ligação entre os feita em Deli não mais pelos “detentores
e
praticantes e seu ambiente é, portanto, nativos” e, ainda assim, comercializada como
i s t ó R i c o
H
em uma infinidade de casos, a noção de
a t R i m ô n i o
dança folclórica que
autenticidade é aqui mobilizada para
(...) podem ser considerados como originais reivindicar direitos sobre expressões culturais
P
e autênticos, na medida em que salvaguardam (Comaroff e Comaroff, 2009). Em outras
d o
as próprias danças em seu ambiente geográfico, palavras, ela tem para uma comunidade a
e v i s t a
na sua aldeia ou em sua região (Centre CIOFF mesma função que o estatuto do autor para
Suisse, s.d.).
R
os indivíduos (Noyes, 2006:33), revelando-
se um componente essencial nos usos
A autenticidade aglutina, ainda, contemporâneos da cultura e das tradições
indivíduos, nos coletivos que se percebem como recurso social, político e econômico
como “reais, essenciais e vitais, dando a seus (Brown, 2003; Yúdice, 2003).
membros uma motivação, uma unidade e um
extraordinário sentimento de pertencimento” conclUsão: de Uma
(Lindholm, 2008: 1). 31
aUtenticidade à oUtra
Essa mesma associação entre a noção
de autenticidade e uma comunidade de A eliminação da autenticidade,
determinado local retorna no discurso compreendida como efeito da preservação
da representante de uma ONG indiana de uma forma originária, permite
credenciada à Convenção. Interrogada sobre entender a transformação do regime de
o significado que ela atribuía à noção de patrimonialização tradicional, que prosperou
autenticidade, recorrente nas suas colocações, na Europa dos séculos XIX e XX, em direção
explicou que a autenticidade de uma a um novo regime em imposição. Essas
expressão cultural depende da manutenção duas abordagens se apoiam sobre maneiras
dessa prática no círculo de seus detentores diferentes de articular passado, presente e
nativos, mais que da reprodução idêntica futuro no projeto patrimonial. Essa evolução
de uma determinada prática. O exemplo põe em crise o agenciamento de categorias
da arte Madhubani dado por ela serve para temporais que pareciam evidentes para
ilustrar sua colocação. Esse estilo de pintura, pensar o patrimônio, bem como os objetivos
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
32
Chiara Bor tolotto Patr imônio e o futuro da autenticidade
Diogo Vianna.
Acervo: Iphan/
Carimbó
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
33
dos modos de pensar o patrimônio, não como critério de seleção patrimonial era
e
somente considerado como vivo, mas necessária para ir mais além no regime da
i s t ó R i c o
continua sendo um valor-chave tanto para comunidades, visa dar-lhes voz principal
e v i s t a
a c i o n a l
coerência à sua posição. Segundo um com o espírito da Convenção o recurso
antigo secretário da Convenção, ativamente às marcas de certificação que autorizam
envolvido no programa de capacitação, a atualização de uma prática liberando-a
n
r t í s t i c o
o recurso à noção de autenticidade – que da lógica da preservação, ao fundar sua
ele encara como aceitável – por parte das razão de ser em referência a um contexto
a
comunidades se opõe àquela dos especialistas cultural, social e geográfico imaginado
e
(técnicos, etnólogos etc.) porque essas como fixo e imutável. Trata-se, além
i s t ó r i c o
H
exemplos dados no material utilizado grupos específicos para evitar os riscos de
a t r i M ô n i o
pelas oficinas de capacitação comenta “descontextualização” contra os quais a
denominações, como o Label of Authenticity Convenção (Unesco, 2016, art. 102) nos
P
registrado pela National Indigenous adverte (Deacon e Smeets, 2013).
d o
Arts Advocay Association Incorporated Essa abordagem se inscreve em uma
e v i s t a
na Austrália ou a marca Authentically tendência largamente observada pelos
r
Aboriginal, utilizada pelas primeiras antropólogos: por um lado, considera-
nações do Canadá, para introduzir uma se que a autenticidade de uma cultura
distinção entre a acepção de autenticidade pode ser autodeterminada por um grupo
como sinônimo da perenidade de uma cuja identidade cultural é cada vez mais
expressão cultural, que teria sido conservada compreendida como “o objeto de uma
inalterada, e uma acepção de autenticidade, escolha e de uma autoconstrução”; por
tal como as dessas marcas, que retorna à outro lado, consideram-se esses grupos
35
ideia de continuidade que uma comunidade como imutáveis, essenciais e fixos e sua
reivindica através de uma expressão dada11. identidade, como “o produto
Essa perspectiva faz eco àquela dos etnólogos incontestável da biologia, da
que militam ao lado de seus interlocutores genética, da essência humana”
e que consideram o patrimônio como uma (Comaroff e Comaroff,
ferramenta para “agir num mundo cada 2009:1). Em outras palavras,
vez mais global e interconectado, de modo “dessencializa-se” a cultura,
a manter um sentimento de identidade mas “essencializam-se” as
e de continuidade”, considerando que relações entre seus detentores.
“em tal contexto, são os atores locais Promover um dispositivo
que estabelecem seus próprios valores de fundado pelos usos estratégicos
autenticidade” (Alivizatou, 2012:139). da cultura, purificando acepções
essencialistas, revela-se, em
10. Anotações de campo. resumo, algo extremamente
11. UNESCO, s.d. Notas do facilitador, plano de curso, Políticas
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R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
38
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s Repovoar o patr imônio ambiental urbano
Ulpiano T. Bezer ra de Meneses
a c i o n a l
r epovoar
n
o patrimônio ambiental Urbano
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A premissa destas reflexões é o valor Segue-se listagem em que encontramos,
cultural entendido como o potencial de derivados da mesmíssima matriz, espaços,
qualificar (diferencialmente) qualquer tempo objetos, estruturas, práticas, saberes
P
ou segmento da vida humana integral e corporificados, mediações sensoriais e outras
d o
e v i s t a
seus processos de socialização pela interação formas de objetivação da vida.
recíproca com espaços, coisas, práticas. Não A redação e a estrutura dos incisos e pa-
r
se justificam, assim, polaridades excludentes rágrafos, assim como os artigos correlatos,
entre sujeito e objeto, utensílios e usuários, apresentam certas estranhezas e alguma ambi-
hábitat e habitante, patrimônio material guidade. Por exemplo, o inciso V do mesmo
e imaterial. No entanto, a intervenção artigo retoma valores (históricos, artísticos,
do Estado institucionalizando a esfera da arqueológicos etc.), que parecem inerentes
preservação tem favorecido, no campo do aos bens (conjuntos urbanos e sítios). Apesar
patrimônio ambiental urbano, a concepção disso, as inovações introduzidas são preciosas. 39
de cidade como essencialmente artefato. Antes de mais nada, a matriz do valor cultural
Serão apresentados, porém, alguns caminhos passa do Estado para a sociedade, substituin-
do conhecimento para superar uma presença do o Decreto-lei no 25/1937, segundo o qual
apenas fantasmagórica do habitante. o tombamento é que instituía o patrimônio
A Constituição Federal de 1988, ao nacional; agora, instituinte é a sociedade,
conceituar o patrimônio cultural brasileiro, ou melhor, seus “grupos formadores”, cuja
armou uma bomba-relógio que está longe de identidade, ação e memória são alimentados
ser desativada. Diz seu artigo 216: e alimentam determinados bens materiais ou
imateriais, indistintamente. Deve-se reco-
Constituem patrimônio cultural brasileiro os
nhecer a interação de bens e sujeitos como
bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores característica do patrimônio. O poder público
de referência à identidade, à ação, à memória pode ter função declaratória e protetora – e,
dos diferentes grupos formadores da sociedade mesmo assim “com a colaboração da comuni- Salvador
Acervo: Copedoc/Iphan/
brasileira, nos quais se incluem (...). dade” (art. 216, parágrafo 1º). Marcel Gautherot.
Judiciosamente, Antônio A. Arantes (2009) locais e os especialistas. Os próprios
Repovoar o patr imônio ambiental urbano
cultural distante das simples mediações cultu- Property – Iccrom montou um projeto de
rais de objetos e práticas. Quero crer, todavia, formação denominado The People-Centred
a
ciais ou efetivas e inserções que criam tanto A chamada conservação integrada, surgida
i s t ó R i c o
continuidades quanto divergências. nos anos 1960/1970 numa Itália que ainda
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s
Seja como for, ocorre que, na maioria procurava cicatrizar suas feridas de guerra,
H
a c i o n a l
Impõe-se, portanto, repovoar o que alerta contra danos e incômodos trazidos
patrimônio urbano, nele reintroduzir o seu ao habitante por essa indústria de massa. É
protagonista. Se examinarmos a bibliografia
n
raro, porém, que o habitante seja mais que
R t í s t i c o
nacional disponível, veremos que nossos uma atração passiva ou parceiro de interesses.
estudiosos produziram um vasto rol de dados Contudo, uma categoria especial de tu-
a
e análises sobre o papel do Estado, da política, rismo cultural oferece condições propícias à
e
dos intelectuais, dos interesses econômicos, emergência do habitante concreto, nas suas
i s t ó R i c o
das ideologias, da trajetória dos órgãos de singularidades e interações: refiro-me ao
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s
preservação, dos aspectos técnicos e sociais chamado dark tourism (turismo em lugares
H
da preservação e conservação, da reabilitação
a t R i m ô n i o
emblemáticos de pobreza, tragédias humanas
urbana e temas conexos. Há também ou naturais, ou sofrimento em geral), fenô-
numerosos estudos de muita qualidade sobre meno das últimas décadas e que tem incen-
P
cidade e cultura, cidade e patrimônio, cultura tivado a atenção de estudiosos, sem excluir o
d o
urbana. Conviria, agora, dar ao habitante, tratamento específico do patrimônio cultural
e v i s t a
no universo do patrimônio cultural, uma (Convey, Consane e Davis, 2014). No Brasil,
R
presença menos etérea. a favela vem despertando um interesse cada
As referências que a seguir apresento vez maior de turistas e pesquisadores. Não
não têm qualquer pretensão de revisão por acaso, já que, nesses contextos, subjetivi-
bibliográfica ou seleção de obras exemplares. dade e destinos humanos são componentes
Destinam-se essencialmente a atrair a atenção fortes. Aí são mais frequentes as abordagens
para temas ou abordagens com potencial de que melhor põem em cena o visitado – e o
incentivar pesquisas que contemplem um visitante. Um bom exemplo vem da favela 41
perfil mais definido do habitante. da Rocinha, no Rio de Janeiro, que conta até
Uma oportunidade está nos estudos
com um museu comunitário em que o habi-
de impactos da consagração de cidades
tante autorrepresenta. A pesquisa de Bianca
como patrimônio mundial, gerando efeitos
Freire-Medeiros (2010) demonstra como se
negativos sobre a população. Há muitos
pode trabalhar a interação entre os habitantes
trabalhos sobre tais “efeitos perversos” de uma
e os demais agentes envolvidos, quando “as
“tragédia do patrimônio” ou a “alienação dos
identidades são constituídas, observadas e
sujeitos” e assim por diante. Rogério Proença
julgadas, não apenas exibidas”. Assim,
Leite (2004), que tem se dedicado ao tema
do enobrecimento urbano (gentrification)
(...) moradores, turistas, guias, pesquisadores
em Pernambuco (2004) e alhures, e outros mais estamos todos constantemente
também formulou um arcabouço teórico- negociando e renegociando uma nova gramática
metodológico que pode abrir caminhos para cuja pretensão é acomodar, no território da favela
analisar o comportamento do habitante na turística, lazer e pobreza, diversão e comiseração
esfera pública e na ação política. (Freire-Medeiros, 2010:49).
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
42
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s Repovoar o patr imônio ambiental urbano
Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/Iluchar Desmons.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
43
expressão entre nós, mas grande potencial dos serviços que lhes são prestados. Assim,
a c i o n a l
estudo sem maiores pretensões, mas bem critérios e instrumentos de ação: debates
H
a c i o n a l
artística de cada época” e assim por diante profissional de patrimônio. Paradoxalmente,
–, mas não como sujeito ativo, que tenha pouco se conhece das percepções do
definido, nas suas práticas e representações, habitante urbano. Grande parte dos estudos
n
R t í s t i c o
seus valores e expectativas e formas do imaginário, das representações sociais,
diferenciadas de se apropriar do que lhe é da iconografia etc. dedica-se à legibilidade
a
oferecido. De notar que certos recortes, como da cidade e suas projeções – opção legítima
e
os usos da rua (Frehse, 2009) são sempre –, mas tem deixado à sombra o “leitor”
i s t ó R i c o
férteis de possibilidades, quando há interesse concreto, contextualizado e histórico dessa
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s
nas sociabilidades. mesma cidade-imagem (Meneses, 1996).
H
É na França que a difusão da pesquisa de A história acadêmica começa a esboçar
a t R i m ô n i o
campo de tipo etnográfico, para investigar o caminhos para desfazer essa sombra,
processo do habitar ao vivo, tem produzido principalmente na Inglaterra e nos Estados
P
algumas obras que definem o habitante na Unidos. David Carr (2014) acredita numa
d o
experiência cultural. A coletânea La ville abordagem fenomenológica, em que, em vez
e v i s t a
patrimoine (Saint-Pierre, 2014) põe em de perguntar o que é história ou como se
R
cena o caráter performático do patrimônio conhece história – para nós: o que é histórico
habitado. Habiter le patrimoine (Gravari- no patrimônio? –, procura saber como as
Barbas, 2005) tem, como denominador pessoas vivem a história na dimensão de
comum das diversificadas contribuições, fenômeno. O que se privilegia é a experiência
a importância das apropriações de tempo do histórico, como a história se apresenta,
e espaço, que vão interferir nos modos de entra na vida das pessoas, quais as formas
habitar, salientando-se que o ato de “habitar de existir que ela configura. Para tanto,
45
um patrimônio” não é neutro. Os quinze trabalha com o espaço vivido, o tempo
ensaios de Les monuments sont habités (Fabre vivido, inclusive o “tempo cultural”. Carr
e Iuso, 2009), fruto de pesquisa franco- trata tais questões como matéria de teoria
italiana, acentuam a historicidade dos padrões da história e não se preocupa com estudos
de viver em espaços patrimonializados ou empíricos. Interesses comparáveis dominam
nas imediações, o que torna inteligíveis no campo conhecido como da história
as heterogeneidades, contradições e pública, basicamente história não acadêmica,
mutabilidade. A pesquisa canadense, expressa cuja ambição é socializar o mais possível o
na coletânea La patrimonialisation de conhecimento histórico e cujo efeito constitui
l’urbain (Bernier, Dormaels e Le Fur, 2012) também objeto de pesquisa (Beck, 2012).
demonstra a fecundidade desses estudos, ao O que mais nos interessa da história pública
diversificar as situações: apropriações de elite são os estudos de consumo da história, como
versus apropriações do habitante, mudanças ocorre na obra de Jerome de Groot (2009)
de função, intervenção de agentes sociais, o apoiada em experiências no Reino Unido,
banal e o excepcional, reações identitárias. EUA, França e Alemanha. Aqui, o objetivo
é examinar como a sociedade incorpora estética por hierarquias de cânone ou estilo
Repovoar o patr imônio ambiental urbano
e eletrônica, games, literatura (romances apto a estetizar seu ambiente. Para tanto,
históricos ou “de época”, livros para crianças), é a prática da cidade – antes de mais nada,
a
quadrinhos, museus, etc. No bojo da história a prática do espaço – que lhe fornece os
e
pública vem se desenvolvendo uma disciplina insumos, através dos quais ele procura
i s t ó R i c o
popular, de que Roy Rosenzweig (2013) estética é condição seminal para a cidade
H
é referência. Para ele, o que importa, mais significar, gerando subjetivação. Assim, numa
a t R i m ô n i o
que a arte é apenas uma das manifestações Rapidamente começaram a surgir, nas
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s
como a ponte fundamental que os sentidos têm caráter abrangente, como, em 1996, o
fornecem para sairmos de dentro de nós e pequeno e famoso livro de Pallasmaa (2005,
P
estética é condição de vida social, melhor poucos numa perspectiva histórica (Cowan &
dizendo, é a mediação que nos faz humanos. Steward 2007).
Correlatamente, tem-se que associar a A maior parte dos estudos, porém, elegeu
mediação sensorial, a sensorialidade, um sentido específico (além da visão, cuja
com o corpo, já que, como dizem os abundância dispensa referências): o olfato,
fenomenologistas, mais que termos um com seu poder de orientar fortemente os
corpo, somos um corpo, como modo de ser modos de experimentar espaço e lugar
48
no mundo – até na superação da condição (Henshaw, 2014) ou servir às políticas
corporal. Daí a importância que o corpo vem de higienização social (Rago, 1987). A
assumindo na compreensão da cidade, muito arquitetura aural não está ausente (Blesser
além de uma problemática funcionalista e e Salter, 2006), mas estranhamente – já que
ergonômica (Britto, Pereira e Jacques, 2010). é um dos alvos prediletos da antropologia
Fala-se hoje que haveria uma “virada sensorial – o sentido do tato está mal
sensorial” no universo das ciências sociais, representado, embora sejam numerosos
gestada no interior da história, da sociologia os estudos do chamado haptic design, de
e, sobretudo, da antropologia, a partir da tendência mais tecnológica, fornecedora de
década de 1980 (Howes e Classen, 2014). parâmetros para a arquitetura. Até para o
Daí também a proposição de questões paladar se encontraram algumas (poucas)
especificamente sensoriais no campo pistas para iluminar os espaços urbanos
de estudos da arquitetura, urbanismo e (Lemasson 2006).
patrimônio, no esforço de investigar o papel Do ponto de vista aqui privilegiado – o
do sensorial na formação das experiências habitante –, seu peso é ainda insuficiente
nesses estudos, mas as perspectivas que aos suportes materiais do patrimônio e seus
a c i o n a l
insumos teórico-metodológicos. Corpo Ressalve-se, ainda, que é impróprio
e sensorialidade implicam experiências separar sujeitos e bens. Laurajane Smith
de seres concretos e já começa a aparecer, (2006) pretende que o patrimônio é mais
n
R t í s t i c o
principalmente em estudos com bem entendido como processo, ou verbo,
compromissos metodológicos, uma presença, e não substantivo. Eu acrescentaria: como
a
mais que inferida, do habitante. Pinar verbo transitivo, que necessita de objetos
e
Yelmi (2015) cuida do projeto Soundscape diretos para se realizar. Cidade e cidadão estão
i s t ó R i c o
of Istanbul, que organiza mapas sonoros e o unidos até mesmo pelos vínculos indissolúveis
U l p i a n o T. B e z e r r a d e M e n e s e s
arquivo dos sons do cotidiano e medidas de da etimologia.
H
proteção, mas também desenvolve inúmeras Aqui, o protagonismo estratégico,
a t R i m ô n i o
atividades comunitárias, como oficinas com portanto, não pretende desqualificar
adultos e crianças dos locais. Já Alessandra nosso precioso acervo de saber já
P
Mariani (2008) examina a recriação virtual acumulado, nem desmobilizar doravante
d o
em museu de uma “imersão sensível” de as atividades dos órgãos de patrimônio
e v i s t a
habitantes (e demais visitantes) em ambientes ou de pesquisa e sugerir outro paradigma.
R
de Montreal, como exercício de interpretação Fundamentalmente, desejei chamar a atenção
sensorial de seu viver na cidade. para uma lacuna que precisa ser anulada
-- o que certamente revitalizará o paradigma
conclUindo vigente. Por isso mesmo é que não toquei
em aspectos práticos, organizacionais ou
O objetivo maior destas reflexões foi metodológicos de pesquisa. Desejo apenas
ressaltar ser conveniente, para respeitar a salientar a responsabilidade especial da
49
natureza social do patrimônio ambiental universidade e instituições semelhantes –
urbano, transferir o excessivo e por vezes aliás, positivamente convocadas para os
exclusivo foco de interesse nos bens (materiais registros de patrimônio imaterial, assim
ou imateriais), e no poder público, para como nos levantamentos do Centro Nacional
os sujeitos – os agentes humanos, nas suas de Referência Cultural – CNRC. Por isso, o
multiformes interações. Contudo, longe de Inventário Nacional de Referências Culturais
qualquer inaceitável perspectiva relativista – INRC (Corsino et al., 2000) e demais
ou paternalista, o importante é evitar, na inventários de patrimônio poderiam servir
arena do patrimônio, atores ocultos. Assim, o de ponto de partida para o desenvolvimento
protagonismo dos sujeitos aqui explícito deve de alguns novos temas e abordagens. Última
ser considerado apenas como uma espécie de observação: seria bom introduzir entre as
“ação afirmativa”, para compensar essa antiga rotinas de pesquisa alguns dos protocolos
marginalização e a consequente carência de da etnografia urbana (Magnani, 2002),
conhecimento, principalmente em face de um mesmo que o objetivo não se limite a
quadro muitíssimo mais fornido em relação estudos de caso.
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R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
52
Antonio Augusto Arantes Neto Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
Antonio Augusto Arantes Neto
a c i o n a l
o portUnidades globais para o patrimônio
imaterial : novos desafios para as vidas locais *
n
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Histórico reconstruídas por meio de relações com
parceiros distantes. Tais relações podem
Para discutir as oportunidades, ameaças e ser diretas, como no caso de viagens, ou
P
acontecer por meio de migração espontânea
d o
desafios apresentados pela globalização para
e v i s t a
o patrimônio imaterial, eu começaria do ou forçada, ou da mediação de sofisticados e
seguinte ponto de vista. O assunto desta mesa eficientes sistemas de comunicação, como a
r
redonda deriva, por um lado, das restrições internet, a televisão interativa etc.
e possibilidades características de contextos Além disso, em muitos ambientes sociais,
etnográficos específicos e concretos. Por valores e atitudes não são mais aceitos
outro lado, deriva de processos econômicos, simplesmente como ecos atuais de tradições
culturais e políticos induzidos por agências vivas. Tornam-se altamente reflexivos e,
que operam em escalas sociais mais amplas do agora, sua legitimação exige sólidos e bons
que os territórios imediatos dos grupos sociais argumentos, de preferência validados e 53
envolvidos e que os incluem. apoiados pelo que cada vez mais se torna
Em primeiro lugar, vamos considerar uma esfera pública global efetiva – ainda que
alguns exemplos. As finanças e os negócios, virtual. Não é de espantar que as diferenças
por exemplo, atualmente se tornaram uma culturais estejam sendo novamente ressaltadas
esfera praticamente autônoma de atividade pela agenda de política cultural da maior
social. Cruzam fronteiras nacionais, parte dos países!
provocados pelas flutuações do mercado Assim, as realidades globais pertencem
monetário. simultaneamente ao nosso mundo comum
Quanto à organização e às estruturas da vida cotidiana e a âmbitos que vão
sociais, elas tendem a ser dinamicamente além de qualquer espaço que possa ser
concretamente delimitado e experimentado
*. Discurso na ocasião da conferência da Unesco-UNU realizada por agentes sociais individuais. Assim, elas
em Tóquio, em 26 de agosto de 2004, sobre o tema
“Globalização e patrimônio cultural imaterial: oportunidades,
pressupõem, por sua própria natureza, a Capoeira
Acervo: Iphan/
ameaças e desafios”. construção institucional e o acesso a redes de Carlos Café.
comunicação eficientes. Como é característico a globalização não apenas aumenta ou
Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
dos fenômenos culturais, as realidades globais amplifica uma realidade anterior, mas tem
a c i o n a l
tiver que ser ressaltado como crucial para estéticos pelo ambiente social anterior.
nossa discussão, sem dúvida eu escolheria a Por meio de um complexo processo de
a
preservação como excepcional e, por essa e flexíveis por meio da articulação de signos
e v i s t a
razão, digno de salvaguarda, muitas vezes de diversas origens. Essa é, talvez, uma das
R
Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
Essas hipóteses, que apontam
principalmente para o tema do “patrimônio frequentemente alcançam apenas parte de
a c i o n a l
como economia”, levantam questões seus objetivos. Algumas razões importantes
importantes para a compreensão e para essa limitação dizem respeito à
dificuldade que planejadores e instituições
n
monitoramento da preservação cultural hoje.
R t í s t i c o
Consequentemente, oferecem uma base normalmente encontram para incorporar, no
relevante para nossa discussão: ressaltar o desenvolvimento, implementação e avaliação
a
bem-estar de pessoas concretas; os direitos de tais ações, as motivações, prioridades e
e
legais relacionados às atividades realizadas por projetos das populações-alvo, bem como
i s t ó R i c o
elas, bem como ao conhecimento e formas de estimular sua capacidade ativa como
expressão que desenvolveram coletivamente; protagonistas dos processos sociais em que
H
e, finalmente, a eficiência e o compromisso estão envolvidos.
a t R i m ô n i o
democrático de agências multilaterais na Em outras palavras, aspectos cruciais
regulação e monitoramento dos processos por de tais problemas derivam de seu modo de
P
meio dos quais as realidades globais se tornam implementação, ou seja, de como ocorre
d o
parte das vidas locais. a articulação real entre as agências que
e v i s t a
executam políticas sociais e os segmentos
territorializando sociais envolvidos. E isso, é claro, depende
R
as
Brasil, para finalmente retornar a alguns absorvido pelas atividades oficiais da igreja.
a c i o n a l
c U lt U r a l aceitáveis do Cristianismo.
Entretanto, a despeito dessa situação
a
são rituais do Catolicismo popular, como uma arena política, reforçando assim o
d o
celebrações de santos padroeiros que têm papel dos líderes locais como protagonistas de
e v i s t a
Heitor Reali.
Acervo: Iphan/
Pintura corporal
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
57
Antonio Augusto Arantes Neto Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
mostra que alguns aspectos de uma prática de salvaguarda, participamos da vida local
Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
social complexa podem ser menos permeáveis de forma semelhante à dos recém-chegados
a c i o n a l
discussão que tais manifestações «tradicionais» de bens culturais, e visados por nós, os
da vida comunitária tenham um certo grau responsáveis pelas políticas culturais. Em
H
totalmente exclusivas: são, na verdade, feitas por essa flexibilidade ambígua. Torna-se,
d o
essa permeabilidade parcial é atributo-chave interferência na vida local. Até que ponto
Antonio Augusto Arantes Neto
Opor tunidades globais para o patr imônio imater ial: novos desafios para as vidas locais
do mundo. inventários e registros que preservam e
a c i o n a l
No Brasil, por exemplo, eles estão dão às gerações presentes e futuras acesso
sendo levados em consideração para
ao conhecimento acumulado.
n
desenvolvimento e implementação pelo
R t í s t i c o
Iphan. Fazemos referência a alguns projetos
experimentais de salvaguarda do patrimônio Um último aspecto do assunto ainda
a
imaterial, no contexto de programas locais de deve ser mencionado. Trata-se de saber se
e
i s t ó R i c o
preservação integrada, focados no patrimônio a comunidade local se organiza ou não, e
material e imaterial de grupos sociais como, para interagir com as agências externas
específicos e seus territórios.
H
de salvaguarda e desenvolvimento. Esse
a t R i m ô n i o
Com base no argumento aqui
problema, de natureza política, não se encerra
desenvolvido, para conseguir os efeitos
no plano institucional. O empoderamento
desejáveis gerados por tais políticas é
P
necessário observar algumas premissas básicas, das comunidades locais é absolutamente
d o
central para assegurar a viabilidade e a eficácia
e v i s t a
entre as quais eu apontaria as seguintes ao me
aproximar do fim desta apresentação: de programas sociais como aqueles enfocados
R
pela presente reunião. Muitas vezes, a
60
G e o rge Y ú d i c e Músicas plebeias
George Yúdice
a c i o n a l
m úsicas plebeias *
n
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
Imaginemos uma mulher quase extravagantes, bregas e vulgares? E não apenas
septuagenária que veste collant de bolinha nesses exemplos, mas também nas músicas
ou oncinha, com decote generoso, uma mais escutadas e dançadas na América Latina.
P
juba loura e garras com as quais provoca Este ensaio questiona a transformação
d o
e v i s t a
seu público no YouTube. Imaginemos agora das culturas populares em relação aos pro-
uma menina andina de 12 anos que canta cessos transnacionais e tecnológicos atuais
r
folclore aos berros e um camponês, também pela análise das músicas que caracterizo como
indígena, que veste um traje de vaqueiro plebeias1. Por “plebeias”, refiro-me a práticas
e grita “não pode ser!”. E, para desafiar a culturais das classes de baixa renda e/ou de
imaginação, digamos que estão cantando grupos racializados ou subordinados que não
uma homenagem a Israel. E o que diremos tenham se domesticado ao negociarem sua
quando nos contarem que eles têm mais entrada nas esferas midiáticas nacionais ou
de 40 milhões de acessos no YouTube, globais. E, por “domesticação”, refiro-me à 61
que se tornaram famosos, que assinaram modificação ou afinação que essas práticas
contratos fonográficos e apresentações ao sofreriam para serem aceitas ou patrimoniali-
redor do mundo? Agora, visualizemos uma zadas como “expressão do povo” e, portanto,
jovem encaixando o traseiro rebolante entre “cultura popular”, por públicos hegemônicos,
as pernas de um rapaz... em um colégio
distrital de Bogotá. Uma reportagem diz: *. Agradeço a Sylvie Durán Salvatierra pelas longas conversas
sobre os temas aqui tratados e as muitas sugestões. Este é quase
“Na Colômbia, crianças a partir de 8 anos um trabalho escrito a quatro mãos e, definitivamente, por
duas almas comunicantes. Também gostaria de agradecer pelos
ou menos frequentam fiestas de choque, o comentários de Ana María Ochoa e Pablo Vila e pelas respostas
de Santiago Alfaro às minhas perguntas sobre os temas deste
que acontece especialmente nos setores ensaio.
1. “A articulação problemática das práticas socioculturais,
mais pobres das cidades, pois se trata de um políticas e artísticas das chamadas culturas populares na América
Latina, frente aos processos globais de homogeneização,
baile caracterizado não só por seu conteúdo massificação, transnacionalização e tecnocracia do capitalismo
sexual, mas também pelo status social que global” é o tema do “Colóquio Interdisciplinar: Memórias,
saberes e redes das culturas populares na América Latina em
implica” (Páez, 2011). O que explica a tempos de capitalismo global”, em que se apresentou uma versão
Festa do Guerreiro
preliminar deste ensaio na Pontificia Universidad Javeriana, Acervo: Copedoc/Iphan/
proliferação, hoje em dia, dessas performances Bogotá, em 14 a 16 de maio de 2013. Marcel Gautherot.
ou para serem dignas de apoio financeiro da – foram valorizadas na primeira metade do
Músicas plebeias
Como se verá, o que está em jogo são os jul- de consolidação nacional na América Latina.
gamentos de valor, provenientes de diversas O tango na Argentina, o samba no Brasil,
o son em Cuba e a ranchera no México, que
G e o rge Y ú d i c e
n
ou as vanguardas artísticas que reivindicam eram expressões que pouco antes haviam sido
a “qualidade” ou a “ruptura” estéticas; fol- consideradas pelas elites como toscas, quando
a
cloristas e gestores que adotam critérios do não incultas, exerceram um papel importante
e
tipo Unesco e apadrinham práticas culturais nessa consolidação. Em Cuba, podemos ver
i s t ó R i c o
(festas, rituais e tradições orais, musicais e de essa transformação entre demonização e valo-
dança) de comunidades rurais, étnicas e su- rização na pessoa de Fernando Ortiz. No iní-
H
preferências de massa das indústrias culturais. “se tornarem negros”, ou seja, regredir civi-
e v i s t a
Pois bem, as músicas plebeias a que me refiro lizatoriamente (Ortiz, 1973:174). Algumas
décadas depois, Ortiz escandalizou as elites ao
R
Músicas plebeias
identidade nacional, ocorre em conjunturas forças hegemonizante, possibilitou enfrentar
a c i o n a l
bastante específicas, embora existam o eurocentrismo com uma singularidade
características comuns, como a confluência valorizada.
G e o rge Y ú d i c e
de diversas migrações para as cidades, os A ênfase na nacionalização das culturas
n
R t í s t i c o
processos de urbanização e educação popular populares, entre os anos 1920 e 1940, dá
e o auge do rádio e do cinema, que também menos destaque às expressões “rebeldes” que
a
cumprem uma função formativa. Isso continuavam nos pagodes (festas) das favelas
e
resulta em um duplo polimento: as práticas e nas rumbas dos terreiros. Por “rebeldes”,
i s t ó R i c o
populares são profissionalizadas, polindo-se não me refiro a expressões em influências
as “bordas desiguais”, um processo que, por de outras formações culturais, mas àquelas
H
sua vez, serve para modernizar, conformar e que não se encaixam na estrutura ideológica
a t R i m ô n i o
até disciplinar as massas. Por exemplo, sob estudada pelas culturas populares. Até os anos
o regime de Getúlio Vargas nos anos 1930, 1920, predominava a rejeição ao indígena,
P
as classes populares e os afrodescendentes ao afro-americano e ao mestiço. Depois,
d o
foram incorporados às escolas de samba surgiram a visão transcultural de figuras
e v i s t a
do Carnaval, estendendo-se assim seu como Gilberto Freyre ou Ortiz ou a visão
R
reconhecimento social e cultural e ampliando- afrocêntrica dos movimentos de negritude.
se os direitos dos subalternos, mas, ao mesmo No entanto, sabe-se menos da vida cotidiana
tempo, exigindo-se que registrassem essas das comunidades populares no século XIX
escolas (inclusive na polícia), obedecessem a e no início do século XX. E sabe-se menos
uma nova bateria de regulações, orientassem ainda das apropriações de outras formas
suas apresentações aos gostos das elites e se culturais dentro de suas práticas “de raiz” para
convertessem em combustível para a máquina seus próprios desígnios, e não para o interesse
63
política clientelista (Raphael, 1980:cap. 3). que os intelectuais possam ter tido na nação.
Em Cuba, nesse mesmo período, e segundo Em “Del rancho al Internet” (Da fazenda
Moore (1997:126), “promoveu-se uma à Internet), Carlos Monsiváis assinala que o
música afro-cubana “embranquecida”... que popular, tal como se entendia na primeira
reforçaria a imagem de uma nação aceita por metade do século XX na América Latina,
muitos, doméstica e internacionalmente,... é resultado da migração das experiências e
assegurando que a cultura cubana mantivesse tradições rurais para a cidade, um fenômeno
sua vitalidade e não sucumbisse a influências impulsionado pela transformação capitalista
norte-americanas”, ou seja, ao imperialismo. e pelas guerras (por exemplo, a Revolução
Nessa época, a cultura popular era moderada Mexicana) e que é captado no cinema, na
pelo Estado, e a indústria cultural servia música gravada e no rádio, três mídias que
não apenas como fundamento para uma costuram, por assim dizer, os diversos grupos
consolidação nacional interna, mas também em uma identidade nacional. Monsiváis
como uma plataforma de resistência contra nos ensinou que os gêneros populares –
a penetração externa e neocolonialista. A quadrinhos, rádio e cinema – proporcionam
modelos de conduta e constituem a escola (Aí está o detalhe), em que rompe-se toda
Músicas plebeias
comportamento. “Entre 1930 e 1950, sendo origem camponesa quanto migrante do norte
n
R t í s t i c o
uma companhia inevitável e o centro acústico – e sua fala. Monsiváis (2002) esclarece que
do local, o rádio recompõe as dimensões não se trata de um virtuosismo logístico,
a
do isolamento” (1999:6). Com relação aos que se manifesta e, talvez, compensa com
i s t ó R i c o
quadrinhos, ele descreve que estes demandam “risadinhas, meneios de cabeça, movimentos
a identificação com tramas, personagens, de dança... lutas ou duelos de luta livre com
H
“atmosfera formativa... [que] provê às famílias contaminação”. Poderia ser adaptada a noção
o linguajar utilizável na hora da solenidade de ilusão entre fala e gestos que Martín-
e das tormentas emocionais, ratifica as Barbero atribui (1987:127-128) ao parentesco
proibições da moral em uso, condiciona a do cinema com o melodrama: “a proibição da
psicologia conveniente na crise da alma e palavra nas representações populares – com a
nas representações da honra, ensina sobre as necessidade correspondente de um excesso de
reações convenientes aos dilemas entre o bem gestos – e a expressividade dos sentimentos
64
e o mal, oferece as fórmulas verbais adequadas em uma cultura que não teria podido ser
no processo amoroso e na convivência “educada” pelo patrão burguês”. Esse excesso
familiar, além dos blocos de expressões a é a outra face do melodrama, que aponta
serem empregados em casos de paixões, um “universo dessacralizado” (idem:131).
tragédias, métodos de reparação, incertezas Lembrando que Cantinflas começou sua
que resultam em canalhice ou sacrifício, carreira nas lonas circenses, pode-se ecoar
obediência aos pais ou enfrentamentos Martín-Barbero, para quem o “bobo”, por
dramáticos com estes, preocupações com a um lado, relaxa a tensão do melodrama
honra e heroísmos da pobreza” (2005:27). “depois de um forte momento de tensão”
Logicamente, nesse mesmo cinema e, por outro lado, “remete... ao plebeu, ao
mexicano, Monsiváis nos diz que anti-herói incapaz e até grotesco, com sua
comediantes, como Cantinflas e Tin Tan, linguagem deselegante e grosseira, escapando
mudam para um melodrama que confirma da correção e da retórica dos protagonistas,
padrões morais por meio do transbordamento introduzindo a ironia de sua aparente
da fala popular, como em Ahí está el detalle incapacidade física, atuando como um
equilibrista, com sua fala repleta de ditados e que acreditava-se que este acarretava o risco
Músicas plebeias
jogos de palavras” (idem:130). É justamente de estimular desejos contra-hegemônicos,
a c i o n a l
esse aspecto plebeu que procuro destacar. sobretudo em mulheres e crianças, mas, ao
Adiante, veremos como o plebeu exerce um mesmo tempo, engajava-os em um novo
G e o rge Y ú d i c e
papel importante na nova conjuntura da regime de coordenação social (Ewen, 1976).
n
R t í s t i c o
internet, global e do capitalismo afetivo em Atualmente, o consumismo cada vez mais
que se reconfigura a mediação equilibrada em personalizado e de conteúdo simbólico e de
a
que o melodrama operava entre o “folclore informação, em vez de mercadorias físicas,
e
das feiras e o espetáculo popular-urbano” do constitui um dispositivo central na sociedade
i s t ó R i c o
passado (idem:131). de controle, já que são gerados dados com
cada consumo, que servem não apenas para
H
2. plUralização de adequar a oferta ao que os consumidores
a t R i m ô n i o
imaginários desejam, mas também para obter todo
tipo de informação sobre estes. A “polícia”
P
Nessa nova conjuntura, a identidade foucaultiana se transformou: na sociedade
d o
coletiva ou a comunidade imaginada que se de controle, estimula-se o cidadão a querer o
e v i s t a
procurava com a nacionalização de certas que lhe der a vontade perfeita, conseguindo,
R
músicas e culturas populares são cada vez assim, rastrear molecularmente toda
menos persuasivas, pois nem a ranchera, nem atividade, penetrando em cada segundo da
o tango, nem o son definem a mexicanidade, vida, sobretudo se a pessoa estiver conectada
a argentinidade ou a cubanidade, se é que ao celular. Pareceria ser contraintuitivo, mas
alguma vez o fizeram para todos os residentes a redução da disciplina é fundamental para
desses países. E o que entendemos por a coordenação social. Longe de induzirmos
música popular – especialmente o que chamo uma volta ao moralismo disciplinador,
65
de músicas plebeias – não “referenda as esta reflexão deveria levar à inovação de
proibições da moral em uso”. E isso ocorre perspectivas pós-moralistas, como já vêm
por muitas razões. E uma das principais é que postulando pensadores, tais como Jesús
se vem passando da sociedade disciplinar para Martín-Barbero e Néstor García Canclini.
a sociedade de controle. Elaborarei mais essa No que tange ao audiovisual, embora
observação na conclusão, mas cabe antecipar cadeias televisivas que geravam um imaginário
a seguinte proposta: a redução da disciplina comum para todos os espectadores tenham
é funcional para o novo controle social. A dominado por várias décadas, a televisão se
sociedade disciplinar pretendia “formatar” pluralizou na segunda metade do século XX
o espírito por meio de técnicas corporais, com os serviços pagos de difusão por cabo
condicionando os sujeitos-cidadãos para o e satélite. Neste novo milênio, a internet dá
trabalho e a coesão social. Essa disciplina acesso a todo tipo de programação a um
é tão mais importante ao passo que o número crescente de cidadãos conectados,
consumismo evolui (a partir do início do com uma penetração de 45% ou mais em 10
século XX nos países industrializados), já dos 20 países latino-americanos e uma taxa
de crescimento de mais que o dobro da média magros, compactos e ágeis da publicidade
Músicas plebeias
tem mais de 70% de usuários únicos, promete capacidade aquisitiva aumentou nas últimas
n
R t í s t i c o
vez mais por meio do celular (Statista, 2014 representações do popular, muitas vezes em
e
e 2014a). O crescimento do uso da internet sentido contrário ao que impera nas mídias,
i s t ó R i c o
(Facebook, YouTube etc.) e uma multidão de pelas elites que dominavam a produção
a t R i m ô n i o
programas para fazer e editar vídeos e músicas das indústrias culturais”, retrabalhadas
possibilitam que se consuma cada vez mais na linguagem persuasiva das indústrias
P
interagidos pelos usuários, algo que se fazia dessa linguagem para que esse público possa
e v i s t a
de modo limitado na época das mídias de entendê-la e aceitá-la dentro de seu próprio
R
Músicas plebeias
incorporar o rural ao urbano, mudou. Como são múltiplos e complexos. Nessa conjuntura,
a c i o n a l
escreve Rosalía Winocur (2005:2), contrariamente à primeira metade do século
XX, os tratados de livre-comércio geram mais
desde o seu início, o rádio, em seu afã de
G e o rge Y ú d i c e
n
processos de abertura do que de isolamento
R t í s t i c o
conquistar o gosto do público, produziu narrativas
em economias protegidas, e essa abertura
sobre a presença rural na cidade, ao mesmo tempo
é acompanhada por ideologias e práticas
que aproximava a sensibilidade urbana à cultura
a
camponesa. O imaginário, que, no início, permitia culturais que transcendem as fronteiras
e
nacionais: consumismo e migrações. O
i s t ó R i c o
que os migrantes (futuros habitantes pobres
dos bairros periféricos, operários, empregados e consumismo já não é massivo, mas se sustenta
vendedores ambulantes) e as famílias tradicionais em uma proliferação de identidades. O
H
pensassem e concebessem uns aos outros a partir
a t R i m ô n i o
negócio de cauda longa – a venda de poucos
do fato de viverem e progredirem na cidade, bens para cada um dos muitos conjuntos
está agora fragmentado. Viver na cidade já não
de consumidores em vez de uma venda
constitui uma aspiração de superação pessoal ou um
P
massiva (e, portanto, homogênea) a um único
d o
horizonte de progresso, mas um cenário de conflitos
agrupamento de massa de consumidores – é
e v i s t a
multiculturais, que se expressam na disputa por
espaço, serviços e acesso aos canais midiáticos. concomitante com a constituição de múltiplas
R
comunidades de consumidores contrariamente
Ou seja, as mídias já não entregam uma a uma massa de cidadãos. Ou seja, esse tipo
audiência de massa nacional, mas apontam de consumismo promove a diversificação.
para diversos públicos. Adicionalmente, o direito já não é por
Em Del rancho a internet, um ensaio reconhecimento de grupos como parte de uma
resumido na tabela a seguir, Monsiváis comunidade nacional homogênea, mas sim por
(1999) elabora as diferenças entre a época uma cidadania cultural baseada na diferença.
67
das grandes comunidades imaginadas e o Por outro lado, as migrações de constante ida
fracionamento de hoje: e volta e as remessas culturais multidirecionais
fazem com que estilos e gêneros transitem
verifica com a transculturalização de gêneros, todo tipo de oferta cultural, inclusive muita
a c i o n a l
tais como hip hop, reggaeton e cumbia e sua oferta trazida pelos que antes se chamavam
ampla hibridização. público, não só nos reality shows, mas também
G e o rge Y ú d i c e
n
Observaremos que as músicas plebeias lhes têm rendido não só zombaria – de forma
i s t ó R i c o
G e o rge Y ú d i c e
n
R t í s t i c o
a
e
i s t ó R i c o
H
a t R i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
Viola de Cocho
Acervo: Iphan/
Francisco da Costa.
R
com sua extravagância e “roupa de oncinha” Bayly responde: “é uma grande sabedoria!”6
(como diz Jaime Bayly em uma entrevista), O arremate acontece quando Bayly fala para
se assemelha a uma comediante em um show a Tigresa que gosta da estética do vídeo,
de variedades. Ou seja, a apresentação que fazendo referência à incongruência do
a Tigresa faz é complexa. Sua vontade de surgimento abrupto de um bailarino vestido
69
se apresentar como artista – considerando como halterofilista e de um cavalo ao lado
sua voz e sua indumentária – provoca de uma jovem seminua que faz algum tipo
zombaria. A primeira entrevista que ela fez de dança do ventre ou rebolado exagerado.
com Bayly fornece algumas pistas de como Diante disso, Bayly exclama “ótimo, muito
lidar com o plebeu nas mídias. Para mim, interessante, mudei de opinião, um aplauso,
de Bayly pela Tigresa e uma ironia contida Nessa entrevista, a Tigresa parecia en-
carnar o que Celeste Olalquiaga caracteriza
em relação à sua trajetória artística: ela
como o primeiro grau do kitsch, enquanto
explica que o sucesso de sua música “Nuevo
Bayly é o segundo grau. Os que produzem o
amanecer” se deve “à letra, que tem muita
mensagem muito bonita”, e ele responde
6. Ver a primeira parte (de quatro) da entrevista com Jaime Bayly,
que “não há dúvida” e pergunta, com leve de 7’25” a 7’51”. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=xBKT0nT5zJ0.
ironia: “e qual é a mensagem oculta cifrada 7. Ver a segunda parte da entrevista com Jaime Bayly, de
6’00” a 6’33”. Disponível em https://www.youtube.com/
na música?” Ela cita uma parte da letra e watch?v=xBKT0nT5zJ0.
kitsch de primeiro grau têm fascinação com o dessa iconicidade produz um prazer que deriva
Músicas plebeias
ou fenômeno que gera uma forte emoção no quando o estilo prevalece sobre o significado
artista. Na verdade, o que se procura é alcan- que se procura (artisticidade, religiosidade,
çar esse poder por meio do estilo do objeto ou bom gosto etc.). Susan Sontag identificou esse
G e o rge Y ú d i c e
n
R t í s t i c o
performance. Porém, a partir de uma perspec- segundo grau como “camp”, uma sensibilidade
tiva de cultura, o artista comum não possui as que aprecia a estilização por cima do conteúdo,
a
ferramentas culturais para reproduzir o estilo um prazer pelo diferente, por coisas que não
e
associado com o valor religioso, estético ou são exatamente o que pretendem ser. Sontag
i s t ó R i c o
social aprovado. Nas definições tradicionais descreveu pela primeira vez a estética particu-
do kitsch, insiste-se de maneira tosca e incon- lar gay, segundo a qual se tem prazer com as
H
do”. Essa parece ser a relação que a Tigresa daí o gosto pelos “filmes de mulher” dos anos
mantém com o papel de artista-músico, que, 1940, protagonizados por atrizes como Greta
P
popularidade do vídeo que, como diz Bayly, Bankhead etc. O camp implica uma falsidade:
e v i s t a
obteve mais acessos no YouTube do que os de ele precisa da inocência do kitsch do primeiro
Madonna ou Shakira. E o espectador “bem grau, que, a partir de uma posição “superior”
R
informado” da entrevista quase consegue ler (de segundo grau), se vê subvertida pela ex-
o pensamento de Bayly: a Tigresa obtém esses travagância da qual não se está consciente no
acessos apesar de ser uma versão “inferior” primeiro grau. Trata-se de um sentimento,
dessas superestrelas globais8. um prazer, mas não um julgamento (Sontag,
No kitsch de segundo grau, se está cons- 1964). Essa parece ser a reação de Bayly ante a
ciente da separação entre o contato desejado Tigresa, embora sua ironia condescendente se
70 com o poder e a representação rebaixada com deixe ver aos poucos9. Uma reação que poderia
que procura estabelecer esse contato. O que ser resumida com a frase de Oscar Wilde, cita-
prevalece é o valor de ícone do objeto ou da por Sontag: “A gente deveria ser uma obra
fenômeno e a peculiaridade da aproximação de arte ou vestir uma obra de arte” (idem:277).
empobrecida ou quimérica ao poder. Para o Ou seja, a Tigresa vê a si mesma como artista,
artista de segundo grau do kitsch, a constatação e Bayly a enxerga como trajando-se comica-
mente mal como tal, mas aprecia a estilização
do defeito. Curiosamente, o camp parece pas-
8. Logicamente, poderia se falar de algumas das superestrelas
que tiveram certo glamour ou aparência contracultural (tais sar por um processo semelhante ao “puro”, tal
como Cher ou Cindy Lauper) que, à medida que tentam manter
esse encanto na velhice, a única coisa que parece se manter é a como define Kant (2003:62): a razão estimula
caricatura kitschificada do que foram. Idade e gênero, além do a imaginação a conceber uma ideia impossível
talento, exercem um papel no julgamento do que é “apropriado”:
o extravagante parece ser aceito mais em mulheres jovens (por de representar (como o infinito) e a dor do
exemplo, Madonna, nos anos 1980, e Lady Gaga, atualmente)
e em homens velhos (por exemplo, Mick Jagger, Steven Tyler).
Compare Cher em um show em 2012, disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=O8aH7iLegP0, e Cindy Lauper em 9. De fato, em uma segunda entrevista em 2009, Bayly zomba
um show em Montreal em 2014, disponível em https://www. abertamente da Tigresa. Disponível em https://www.youtube.
youtube.com/watch?v=_mFfBe02dUE. com/watch?v=oheigH1Nasw.
fracasso é compensada por um deleite ante a segundo grau), mas por seu reconhecimento,
Músicas plebeias
intuição do suprassensível. Talvez se poderia valorização e manuseio e prazer nos códigos
a c i o n a l
dizer que o camp ou kitsch de segundo grau é estético-sociais. Em meados dos anos 1980,
um “puro plebeizado” – que, para Kant, teria Gerardo Mosquera escreveu sobre uma arte
sido impossível, já que o “puro” não admite que questiona as transformações de referência
G e o rge Y ú d i c e
n
R t í s t i c o
rebaixamento ou desproporção de nenhum pelas quais transitam os objetos ou signos. Para
tipo)10. Mosquera (1986:58), essa arte pós-moderna
não procura resgatar formas de outro sistema
a
Contudo, também existe um kitsch de
e
terceiro grau. Nesse tipo, recicla-se o kitsch de de significação (estilo histórico ou popular):
i s t ó R i c o
primeiro grau em um contexto artístico apro- quem se apropria de formas kitschificadas não
vado. Olalquiaga se refere às obras de artistas pode deskitchificá-las ou devolvê-las ao status
H
feministas chicanas, que incorporam os altares que perderam. Porém, como assinala Rubén
a t R i m ô n i o
tradicionais de suas avós em seus quadros ou Torres Llorca, um dos artistas dessa geração de
instalações, que são exibidos em galerias e recicladores do kitsch, há recursos de seus siste-
museus. Assim, valoriza-se o simples11, o que mas estéticos que podem ser trabalhados criti-
P
d o
se acredita a partir de estéticas domésticas, camente (Knafo y Fusco, 1986:47). Voltando
e v i s t a
que já não são apreciadas por sua ridiculari- aos altares chicanos, tudo depende da estrutura
dade ou excesso (como no caso do kitsch de interpretativa com que se enxerga o kitsch ou o
R
ridículo, para fazer alusão ao termo usado para
10. De fato, Kant exclui um meio de acesso ao “puro”, pois o referir-se à afetação mexicana: sua representa-
prazer estético, ainda que se dê necessariamente “na relação com
o corpo”, não obstante “se fundamenta em algum princípio
ção de uma comunidade, uma sensibilidade
anterior”, que é a liberdade. No entanto, essa liberdade é o que compartilhada, um rebaixamento paródico
pode levar a uma representação estética no limite do excesso,
caracterizada como grotesca: “Dessa maneira, o gosto inglês das referências culturais de um ou outros, uma
pelos jardins e o gosto extraordinário pelos móveis impulsionam
a liberdade da imaginação ao limite do grotesco – com a ideia consagração patrimonial, uma crítica da cul-
sendo que, nessa ausência de qualquer restrição de regras, produz- tura dominante etc. Parece que, no momento
se a instância precisa em que o gosto pode exibir sua perfeição 71
ao máximo nos projetos da imaginação”. Porém Kant mantém a de abordar e se referir ao kitsch, não podemos
linha divisória entre o que pertence propriamente à obra e o que
excede como “ornamento” ou qualquer outro material “externo” deixá-lo em paz12.
ou “estranho”, o que resulta no que Derrida chama de “lógica de
parergonalidade”, que se refere ao excesso com relação ao qual se
constitui o interior do sistema. Entre esses elementos “estranhos”,
o mais mencionado por Kant é o encanto (2003:33), que se
associa ao “grosseiro” (238), ao “impuro” (74), ao “grotesco” (54), 12. Proveniente da academia e do mundo das grandes fundações,
ao “repugnante” (226), ao “monstruoso” e ao “extraordinário” que valorizam as práticas genuínas como fontes de saber e
(61), à “superstição” (69), aos “ídolos” (237), ao “delírio”, ao sensibilidade. Tomás Ybarra-Frausto resgata o “ridículo” e a
“fanatismo” e à “mania” (76), aos “índios caribe” e aos “índios diferença entre o que não é kitsch e o camp, argumentando que
iroqueses” (91), e aos “cumprimentos cansativos e estudados as artistas chicanas o assumem como plataforma para colocar
dos chineses” (237). Portanto, no início da estética moderna, em dúvida as sensibilidades endossadas no mundo da cultura
encontramos a rejeição a tudo que possa ser associado ao plebeu. hegemônica (ver entrevista com Ybarra-Frausto em Yúdice,
11. Não é fácil encontrar um termo que não seja ideologicamente Franco y Flores). Poderia dizer-se que o olhar de Ybarra-Frausto
comprometido para se referir ao que o pessoal sem muita faz parte de um zeitgeist em que se reivindicam culturas genuínas
escolaridade ou conhecimento formal produz, pois “tradicional” subalternas como patrimônio. García critica essa posição
é mais ou menos sinônimo de “popular”, um termo já apropriado porque, segundo ele, reflete mais uma perspectiva acadêmica
para se referir ao folclore ou a outra produção reconhecida pelos e de classe média do que a dos chicanos da classe operária que,
especialistas por seu valor, algo que se determina a partir de uma segundo García, rejeitam ver a si mesmos como pobres, bregas
estrutura ideológica particular. Outros possíveis termos seriam: e carentes de bom gosto. Em todo caso, o que García valoriza
“simples”, “ingênuo”, “humilde” ou “franco”, com cada um tendo é o poder crítico de uma sensibilidade limítrofe, que coloca em
seus inconvenientes. É por isso que se opta por usar “tradicional” dúvida tanto a sensibilidade camp gay eurocêntrica quanto o
em alguns casos, mas sem atribuir-lhe um sentido oficial ou heterossexismo predominante na comunidade chicana. Nenhum
institucionalizado. Certamente, “plebeu” é o termo que uso para dos dois valoriza o kitsch ou o ridículo pelo prazer que isso pode
me referir ao que ilude uma aprovação. produzir ou remete ao valor de uma comunidade ou da crítica.
Existem várias maneiras de trabalhar os das composições dos três cantores: a
Músicas plebeias
processos que geram o kitsch, para além do exclamação “não pode ser!”, diante dos
a c i o n a l
por La Tigresa del Oriente, Wendy Sulca Wendy e as incongruências dos vídeos da
e Delfín Quishpe. Este último, um cantor Tigresa, já apontadas por Bayly. Além do
a
mais recente dedicado à Copa do Mundo. que fez campanhas para a Asociación
e v i s t a
Ele também tem feito vários comerciais em Solidaridad España-Israel”, uma cantora
R
Músicas plebeias
com os videoclipes profissionais do tipo andinos sobrepostos em cenários israelenses,
a c i o n a l
MTV de Talarico é extremo, inclusive camelos nos Andes e um sotaquezinho
com aqueles que parecem ter sido filmados chassídico17.
G e o rge Y ú d i c e
n
entre bastidores ou em um ensaio de baile, Aponto este último aspecto porque
R t í s t i c o
tais como “Pa’ Bailar – Fiesta Tanguera- vários comentaristas alegam que o vídeo
Electrónica”, de Bajofondo, e outros com foi comissionado como parte de uma
a
câmera manual trêmula e iluminação campanha propagandística da Brand Israel
e
i s t ó R i c o
deficiente, mas em contraste com a má para melhorar a imagem de Israel, arruinada
qualidade do cinema de Nollywood pela apropriação de terras palestinas e pelos
determinada pela infraestrutura pirata ataques brutais à Faixa de Gaza. No começo
H
a t R i m ô n i o
(Larkin, 2004) e muitos dos vídeos andinos do vídeo, a voz do típico apresentador dos
a que faço referência adiante, os videoclipes vídeos andinos anuncia: “As superestrelas
de Talarico combinam uma vanguarda da música popular reunidas para uma
P
audiovisual com um ritmo pop MTV, mas mensagem de amor e igualdade”; e Wendy
d o
surge cantando: “Caminando por Israel,
e v i s t a
com a simplicidade do andino-popular . 15
R
o que Kerpel compõe geralmente. Embora vamos, vamos a cantar” (Caminhando
folclore e música de baile jutem-se em “En por Israel, encontrarei um amorzinho,
tus tierras bailaré”, a composição contrasta paixãozinha, amorzinho, vamos, vamos
bastante com a música mais vanguardista de cantar) (0’36” a 1’09”). Como observou
King Coya (um alter ego de electrocumbia Residente, do Calle 13, embora a música
de Kerpel) e as vozes combinadas e ágeis seja um tipo de “We are the World” do
de cantores de folclore, como Balvina YouTube e “saia de um coração honesto, 73
Ramos . Mesmo com a maioria dos
16 com disposição de melhorar as coisas”, no
comentários aos mais de 10 milhões de entanto “deve-se entender que a beleza da
reproduções consistindo de ataques e música pode ser a desinformação, o que
ofensas, há numerosos espectadores que não é culpa deles, mas das circunstâncias de
gostam do kitsch, e outros (entre os quais sua vida. Afinal, a mensagem é de amor e
me incluo) que se sentem contagiados pelo igualdade” (Gorodischer). O articulista da
estilo audiovisual e musical incongruente:
17. Posso me equivocar, mas creio que sou capaz de identificar
um sotaque na música que os chassídicos dançam no refrão
15. Alguns vídeos de Talarico são encontrados em http://imvdb.com/video/ “Israel, Israel, qué bonito es Israel/Israel, Israel, en tus tierras
bajofondo/pa-bailar. bailaré”, o que se torna explícito na sequência entre 1’54” e
16. Pode-se ouvir as composições de Cumbias de Villa Donde, de 2’02”, em que se vê um grupo de chassídicos dançando na
King Coya, em https://www.youtube.com/watch?v=WB9YezxA- rua. O recorte dos chassídicos dançando na rua se assemelha
pA&index=9&list=PL97ISVilOoYAqO_Xt1a1-VObjRwsCsFOj ao que se vê e ouve no vídeo “Jasídicos bailando en las calles
e o canto de Balvina Ramos no disco Tiro Torito, com de Tel Aviv”, disponível em https://www.youtube.com/
composições de Kerpel, em http://www.youtube.com/ watch?v=jy1fsK38TMI (por exemplo, 0’42” a 1’08”), e
watch?v=ADafNRrsf0M&list=RDADafNRrsf0M#t=10. Os em “Thousands of Orthodox Jews dancing with enthusiasm,
“Popular Gaby Kerpel Videos” são encontrados em https://www. amazing”, disponível em https://www.youtube.com/
youtube.com/watch?v=73VLT-QwJOw&list=PLToO4F_H- watch?v=gj9Ceyo6Vug&list=RDlibQkHDEOMI&index=8 (por
gZWjah24ThuKstbZrHaE28jO. exemplo, 1’00” a 1’30”).
Página 12, que inclui a citação de Residente, ... porém 93,83483645% dos comentários
Músicas plebeias
editorializa: “os criativos tiveram a ideia são de zombaria. Falando sério, vamos analisar.
A letra da música tem uma mensagem bastante
a c i o n a l
aposta tediosa em uma possível “campanha refiro a zombar. Fica claro que ninguém sabe
viral” que parecesse um ato espontâneo?” cantar!! Principalmente o decote dessa Tigresa,
a
disseram que não se tratava de uma musicais, não tem harmonias profundas capazes
propaganda pró-Israel, mas sim de um de tocar o coração ou alma de uma pessoa. Se é
H
dos publicitários, e o articulista acrescenta me identificar com uma mulher como ela, e não
e v i s t a
que sentiu que as músicas e os vídeos dos com esses palhaços de picadeiro musicalmente
R
plebeus eram “um gênero musical autóctone, incorretos em todos os sentidos. Falando sério,
um folclore particular que merece ser dizem que é uma boa produção musical, mas
classificado como arte”. O mesmo escutando o nível da produção musical que
ouvimos, o que digo? Hein, MTV? Para dizer
videomaker Talarico disse: “Vi uma ausência
qualquer coisa, pois a diferença é gigantesca,
absoluta de pré-julgamentos e preconceitos
inclusive intelectual, por favor, se não fosse pelo
com relação à lente real: o que deve ser e o YouTube, eu acharia que a música é monofônica
que não deve. Depois de ter feito duzentos ou talvez é uma pista midi que transformaram
74
vídeos musicais, eu nunca pude filmar em mp3. u.u. Concluindo, LIXO!! (pudrete
com esse nível de ingenuidade. Já estava na delfinwendytigresacollardetetas, cit. em Serquén).
hora disso acontecer” (cit. em Gorodischer,
2010). Para eles, trata-se de um tipo de grau Esses comentários comprovam a opinião
zero estético, válido em si mesmo, e todo o do publicitário, para quem os compatriotas
contrário da maioria dos comentários, como dos plebeus “se negam a ser representados”
o que se segue, em resposta a um elogio ao por eles (cit. em Gorodischer). Além da
sincretismo audiovisual de “Israel, Israel, diferença dos valores sociais (tratando-se
en tus tierras bailaré” e à diversão que se de “índios [sem] cabeça”, que a Tigresa
produz: “pobres índios, passando ridículo é uma sexagenária peituda, que os três
perante o mundo e, depois, acreditando que são palhaços), o contraste estético é mais
representam algo, mas nada que eu saiba; interessante. Para os publicitários, tal como
lamento a falta de cabeça para se deixarem para Kerpel e Talarico, o que está faltando
manipular por gente tão perversa... haha” para o segundo comentarista (arranjos e
(Xavier, cit. em Serquén, 2010). harmonias profundas) é justo e valioso, algo
que tiveram de se esforçar para se aproximar. travestido e com uma voz que ele próprio diz
Músicas plebeias
Se formos acreditar em Kerpel e Talarico, não ser horrível, embora diga que encanta (“O
a c i o n a l
se trata de kitsch. Trata-se sobretudo do que novo”). Ou seja, ele reconhece que “o mundo
Ana María Ochoa Gautier (“Disencounters”) está cheio de vozes pessoais” e que a voz se
G e o rge Y ú d i c e
chamou de atrativo estético (“the allure of encaixar dentro dos registros normativos não
n
R t í s t i c o
art”) como razão para a circulação de algo faz falta para que seja interessante. Pode-se
que fascina os fanáticos e que, nesse caso, pensar na voz de Satchmo ou Bob Dylan para
a
pode ser o gosto pelo kitch ou bizarro ou pelo reconhecer que um cantor interessante não
e
êxtase artístico. De fato, eles compareceram precisa ter uma voz bonita ou treinada. Em
i s t ó R i c o
à Ciudad Cultural Konex, em Buenos todo caso, Umpi classifica a si mesmo como
Aires, para o show You Fest, alguns meses um personagem que faz performances, um
H
ícone e, da mesma forma, valoriza Wendy
a t R i m ô n i o
após o lançamento de “Israel, Israel en tus
tierras bailaré” . Não se trata de um espaço
18 Sulca: “Foi minha obsessão por um tempo
qualquer, pois o Konex é um dos ícones e, toda vez que eu ia ao Peru, a visitava.
P
do underground, para “oferta alternativa, Cantei com ela, conheço sua família. Me
d o
inovadora e vanguardista de qualidade” . 19 interessou como ícone” (idem). A seguir,
e v i s t a
Cabe apontar que Wendy Sulca e La no mesmo artigo, Umpi revela que, para
R
Tigresa del Oriente também tiveram uma ele, ser um ícone é ser um freak, um bufão,
aparição como convidadas no videoclipe e que isso “dá muito poder, pois ninguém
“Pa’ tras”, de Dante Spinetta com Calle 13 e quer estar ali” (idem). Ele tende a identificar
Andrés Calamaro . Essa e outras aparições
20 sua bizarrice com a posição subalterna de
em videoclipes de artistas notáveis sugerem Wendy: “Wendy Sulca é uma artista que vem
que o pop começava a aceitá-las, pelo de uma tradição folclórica e responde a uma
menos como fenômenos ou curiosidades história antiquíssima, que vem evoluindo.
75
de celebridade. Porém Wendy Sulca tem Por isso, me parece que o fenômeno em
feito esforços para se converter em uma torno dela fala de todos os preconceitos que
cantora pop legítima, com covers, como as pessoas têm e como lidam com o exótico e
“Like a virgin”, de Madonna, em 2011. No da ignorância que elas têm de outras culturas,
mesmo ano, ela colaborou com Dani Umpi pois a zombaria com relação a Wendy se
e Fito Páez, em “El tiempo pasar” (O passar refere basicamente a três coisas: seu tom de
do tempo), do álbum Mormazo, de Umpi. voz; o aspecto racial, quando a chamam de
Conhecido por suas performances underground “macaquinha”; e o último, que é o aspecto
e bizarras, Umpi aparece em cena meio cultural, quando riem de músicas como “La
tetita”, que fala de amamentar... Escolhe-se a
18. Ver “You Fest ‘los origenes’ HD oficial”, https://www.youtube. zombaria e, no meu caso, uma personagem
com/watch?v=i3WYb215w-Q&index-4&list=PL929175E-
CB9911EDA. como Wendy Sulca me interessa muito, pois
19. Ciudad Cultural Konex, http://www.ciudadculturalkonex. sempre estou adotando o personagem do
org/?page=institucional&subpage=mision-vision-valores. Ver
“You Fest”. bufão” (Mardones, 2012). Se, para Umpi,
20. Ver “Dante Pa’ tras”, disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=yZ-o3Bzfy0E. a bizarrice e a bufonaria são performances
pessoais com valor político, não parece ser troca os brinquedos e a roupa de sua infância
Músicas plebeias
o caso de Wendy Sulca. Umpi a assume por um visual mais roqueiro e sai em vários
a c i o n a l
que aprende com as críticas. A estética de viro hardcore/vou mudar minha vida/viro
Umpi não é pós-moderna e apolítica, como hardcore/vou me acabar no mundo/viro
a
políticas do pessoal (identidade sexual, racial, uma estrela/e vou conseguir/ser a maior diva/
i s t ó R i c o
cultural) e, referindo-se a alguns artistas de de todo o meu país/e andar em Nova York/e
performance, Muñoz (2003:121) caracterizou conquistar Paris”, justo o que diziam, mutatis
H
enquanto a primeira cultiva – agora seria Doritos24. Nessa viagem ao México, lançou
d o
mais correto dizer “cultivava” – um estilo sua nova música “Explosión” (Explosão), que é
e v i s t a
Músicas plebeias
censurou La Tigresa por estimular a aceitação show de Bayly, ela manda “um abraço a
a c i o n a l
dos gays, que ele considera depravados . E, 26
todos os amigos gays em Buenos Aires”, com
de fato, La Tigresa parece ter entrado nesse o que o apresentador responde que “com
G e o rge Y ú d i c e
universo de estrelas pop seguidas por um
n
isso, se enchem dez boates” (2’24” a 3’06”).
R t í s t i c o
público gay que cultiva a estética camp . Ela 27
“O exagero dos trejeitos” já era evidente
encarna a figura com que Umpi refere a si nas performances de La Tigresa, mas, no
a
mesmo e a Wendy: um ícone. De fato, na videoclipe “Dáte placer con mi cuerpo” (Vou
e
cultura gay ou LGBTIQ, o termo “ícone gay” lhe dar prazer com meu corpo), cover de “Do
i s t ó R i c o
tem grande ressonância. A Wikipédia possui what u want”, de Lady Gaga, ela multiplica à
um verbete sobre isso: enésima potência o aspecto burlesco evidente
H
a t R i m ô n i o
na performance da norte-americana29. Vemos
Um ícone gay ou LGBT é uma figura histórica, a quase septuagenária Tigresa e a obesa
uma celebridade ou um personagem público Berta Rodas assumindo poses de femmes
P
que serve como referência em determinados
fatales, imitando Lady Gaga e Christina
d o
âmbitos das comunidades lésbica, gay, bissexual
Aguilera; a primeira com um vestido de
e v i s t a
e transgênero. As qualidades de um ícone gay
noite rosa sem oncinha, e a segunda – com
incluem frequentemente beleza, elegância e
R
glamour, força frente à adversidade, androginia, longa trajetória na gayzíssima Fiesta Plop,
exagero de trejeitos e, no caso dos artistas, que para a qual fizeram o clipe – com um traje
sejam intérpretes ou autores de alguma obra idêntico. Cabe citar o que um comentarista
famosa que a comunidade gay tenha assumido gay escreve sobre o videoclipe: “E o resultado,
como parte de sua cultura . 28
apesar de elas cantarem como se estivessem
atropelando quinze caminhões carregados
Além disso, La Tigresa se une ao ativismo de concreto enquanto macacos oligofrênicos
77
gay (como já haviam feito Madonna, Midler, arrancam todos os pelos de seus corpos, é
Cher, Lady Gaga), o que se verifica na francamente surpreendente, por causa dessa
entrevista que Bayly fez com ela e Wendy base cumbia-reggeatonera do Do What You
Sulca. Provocativamente, Bayly disse que Want nos ENLOUQUECE” (Hidroboy).
tinha muitos amigos gays que “adoram” E La Tigresa consolida seu status de ícone
La Tigresa e ela confirma o que preocupa ao participar de outros vídeos burlescos30.
o arcebispo de La Plata: ela gravou uma Poderíamos dizer, junto com Martín-Barbero
música chamada “Sin discriminación” (Sem (1987:251), que La Tigresa encarna a lógica
circense de “transações... entre credos e cultos
26. “La Tigresa del Oriente & La Pocha Leiva - ‘El Cuerpo de
Cristo’ - Fiesta Yumy”, disponível em https://www.youtube.com/ incompatíveis”.
watch?v=Fv-JX89O4wA, e “El arzobispo de La Plata contra
los gays y la Tigresa del Oriente”, disponível em http://www.
diarioregistrado.com/sociedad/95692-el-arzobispo-de-la-plata- 29. “La Tigresa del Oriente & Berta - Dáte placer con
contra-los-gays-y-la-tigresa-del-oriente.html. mi cuerpo”. Disponível em https://www.youtube.com/
27. As referências dos EUA são Judy Garland, Cher, Cindy watch?v=UWj70gloOtA.
Lauper, Bette Midler, Madonna, Lady Gaga, entre muitas outras. 30. Aparece rebolando em https://www.youtube.com/
28. Ver “ícone gay” em https://pt.wikipedia.org/ watch?v=o3joEf01FsY; e aparece em fio dental, disponível em
wiki/%C3%8Dcone_gay. https://www.youtube.com/watch?v=NY0LTF0_98E.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
78
G e o rge Y ú d i c e Músicas plebeias
Luiz Santos.
Acervo: Iphan/
Recôncavo Baiano
Samba de Roda do
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
79
Alfaro estuda, nos quais se protagoniza familiares, com divisão de trabalho pobre,
a música folclórica andina, tanto para movimentadas por pessoas envolvidas na
R
peruana e música andina, filmes de baixo são entregues aos copiadores piratas, que
custo feitos em regiões onde não existem distribuem os vídeos entre os vendedores
salas de cinema, documentários de festas ambulantes espalhados pelo país (Alfaro,
e rituais tradicionais, assim como esquetes 2009 e 2013). Como se verá mais adiante,
de comediantes, inundam hoje as ruas existem outros modelos de músicas e
(por meio do comércio ambulante) e a audiovisuais plebeus.
internet (por meio do YouTube), onde são Como no caso do cinema nigeriano,
normalmente postados” (Alfaro, 2013:70).
trata-se, mutatis mutandis, de representações
Cada vídeo leva o nome da produtora
e seu número telefônico e/ou endereço 32. Em 0’25” a 0’25” de “La Tetita”, disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=ZO8R1kjpoo0; em 0’12” a
0’34” de “Cerveza”, disponível em https://www.youtube.com/
31. Este é o título de um ensaio recente de Santiago Alfaro watch?v=hyOG7y5K1LE; e em 0’28” a 0’37” de “Papito”,
Rotondo (“Peruwood”) sobre os vídeos andinos. disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-vA9jbCliW4.
inspiradas nas tradições locais33, conferindo abrindo espaço para outras sexualidades,
Músicas plebeias
aos vídeos formas que contrastam com como é o caso dos MCs travestis, como MC
a c i o n a l
o cânone euro-norte-americano (Alfaro, Transnitta, que, segundo uma reportagem de
2013:71), embora se fundam com outros televisão, “brilham em um reduto machista e
G e o rge Y ú d i c e
n
gêneros e estilos. Talvez pudéssemos falar de homofóbico”35.
R t í s t i c o
tradições translocalizadas entre comunidades As músicas plebeias são
serranas e costeira ou com a diáspora, que se empreendimentos, com suas próprias
a
comunicam por meio da circulação desses formas de circulação, que são cada vez mais
e
i s t ó R i c o
vídeos. Também surgem estrelas do folclore demandadas por atores sociais (tais como os
pop que se tornam tão populares que são travestis do funk carioca) ou atores estatais e
requisitadas por programas de rádio e até de do terceiro setor. Em conjunturas específicas,
H
a t R i m ô n i o
TV. É o caso de Dina Páucar, a “bela deusa ocorrem transformações empresariais e
do amor [que era] muito venerada pelo institucionais, o que quer dizer que isso
público em massa antes de ser filmada em também ocorre nos processos de gestão e
P
uma minissérie de TV de grande sucesso” intermediação. Não há casos em que “a
d o
e v i s t a
(Alfaro, 2009:7). A popularidade de Páucar própria população” toma as rédeas dos
e outras estrelas dessa música tem a ver processos institucionais e os altera a seu gosto.
R
justamente com o observado por Fontanella, A “atuação” popular não acontece de forma
citado mais acima, sobre a incorporação pelas direta, mas em uma estrutura complexa
mídias de formas renegadas pelas elites. É de forças, entre as quais se encontram os
justo o que reconhece Alfaro com relação a intermediários e os gestores (Yúdice, 2012a
Páucar: “tem a ver com sua personificação dos e 2014:230-234). O escritor, linguista e
fenótipos, etnias e classes de seus públicos, etnólogo peruano José María Arguedas, a
algo que estava ausente na grande mídia, quem Alfaro se refere em suas reflexões sobre 81
em uma sociedade em que as elites brancas a música popular andina híbrida na indústria
tratam as populações indígenas e mestiças cultural no final do século XX, foi justamente
com condescendência ou desprezo”34. E a um dos intermediários mais interessantes no
abertura para as músicas plebeias não se limita processo de reconversão dessa música. Ele foi
a corporalidades raciais. As mulheres exercem Chefe do Setor de Folclore do Ministério da
um papel protagonista no tecnohuayno, Educação no final dos anos 1940 e nos anos
assim como no tecnobrega (observado 1950. Javier García Liendo dedica grande
mais adiante), e, no funk carioca, vem-se parte de sua tese ao papel de Arguedas como
33. Segundo o produtor Charles Igwe, o fato de não existir 35. Ver o programa “A Liga”, dedicado aos “Travestis do
fora da Nigéria uma expressão audiovisual que tenha a ver Funk”, de 19 de agosto de 2014, disponível em https://www.
com as peculiaridades nigerianas deixa um hiato no mercado, youtube.com/watch?v=JPpsTQDAs24. Logicamente, nem tudo
que o cinema nigeriano preencheu. Ele acrescenta que esse é paradisíaco para outras sexualidades em qualquer cenário
cinema não enfatiza o sexo e a violência gratuitos e se arraiga plebeu. Por exemplo, no dancehall jamaicano, vários músicos
nas narrativas de interesse local. Ver “Good Copy Bad Copy”, têm se destacado por sua agressividade e hostilidade para com
26’12” a 26’42”, disponível em https://www.youtube.com/ homossexuais, razão pela qual grupos de direitos LGBTQI
watch?v=ZKiLI7XFB9k. estrangeiros (sobretudo ingleses e norte-americanos) têm
34. Alfaro, comunicação pessoal, 12 de novembro de 2009. boicotado shows desses músicos. Ver Henry (2012).
intermediário. Ele escreve que Arguedas músicas desse tipo no âmbito da Plazuela
Músicas plebeias
dentro da tecnologia, mas estimula sua Culturais de Lima, ele se juntou a artistas
metamorfose e reconhece as possibilidades e desenhistas de materiais gráficos para a
G e o rge Y ú d i c e
de massas não se limita à capital, pois a bastante grande. Na verdade, como mostra
a t R i m ô n i o
migração alimenta um maior intercâmbio Alfaro em seu estudo, elas não precisam das
entre esta e as províncias, entre os migrantes classes médias e altas para obter sucesso; elas
P
e seus locais de origem (“Cultura” 395). têm conseguido tudo sem ajuda do Estado e
d o
Segundo García Liendo, Arguedas não com seus próprios gestores e intermediários
e v i s t a
Músicas plebeias
jurídico porque isso ajuda a avaliar a elementos africanos, caribenhos hispânicos e
a c i o n a l
complexidade da valorização dos elementos não hispânicos e colombianos locais.
étnicos e raciais nas músicas populares. O Tem surgido recentemente um desejo
G e o rge Y ú d i c e
em declarar algumas músicas plebeias de
n
interesse na patrimonialização imaterial
R t í s t i c o
surge mais ou menos na mesma época em raiz afro (como a champeta e o reggaeton)
que se procura reconhecer a composição como patrimônio cultural imaterial,
a
multiétnica ou racial e a pluriculturalidade considerando-se que derivam de comunidades
e
subalternas com visões de mundo baseadas
i s t ó R i c o
de cada nação. De fato, existe um vínculo
entre esse reconhecimento e a necessidade em parte nessa subalternidade e também
de apontar apropriadamente as tradições nos habitus formados nos cruzamentos dessa
H
subalternidade com as tradições étnicas
a t R i m ô n i o
correspondentes. Para a Unesco, o patrimônio
imaterial se refere a “tradições ou expressões e as indústrias culturais. Por um lado, o
vivas herdadas de nossos antepassados e patrimônio deve transmitir valores estimáveis
P
transmitidas a nossos descendentes, tais como de comunidades étnicas; por outro lado,
d o
essas duas músicas/danças se associam
e v i s t a
tradições orais, artes de espetáculo, usos
com condutas “vulgares”. Logicamente,
sociais, rituais, atos festivos, conhecimentos e
R
tanto o estimável quanto o vulgar remetem
práticas relacionadas à natureza e ao universo
a julgamentos de valor ancorados em
e saberes e técnicas vinculados ao artesanato
complexos de estilos de vida, vontades e
tradicional” (Unesco, 2003). Em seguida, o
expectativas associados à classe social, gênero
texto da Unesco explica que o patrimônio
e etnicidade, ou seja, esquemas generativos
cultural imaterial é integrador e representativo
ou habitus a partir dos quais se percebe a
e se baseia na comunidade. Portanto, esse
vida (Martín Criado, 2009). A pergunta a ser
processo de transmissão entre antepassados 83
feita é: a partir de quais posições sociais e em
e descendentes define linhagens, nas quais
quais campos de força vão sendo construídos
se distinguem os grupos sociais. O tipo de
os discursos que celebram e ofendem essas
hibridização proposto por García Canclini e
expressões plebeias?
as mediações referidas por Martín-Barbero
Entretanto, antes de abordar essa
requerem uma flexibilização da compreensão
pergunta, cabe dizer alguma coisa sobre as
das interações sociais que são formuladas a
músicas plebeias “vulgares”. Em primeiro
partir de depósitos patrimoniais. E, de fato,
lugar, elas são “vulgares” por causa da letra
os estudos mais recentes sobre a champeta (que se refere explicitamente a órgãos e
atos sexuais), da atitude (muitas vezes
37. O único país com reconhecimento jurídico anterior
aos anos 1980 é o Panamá (1971). Depois, instituíram-se a subordinadora da mulher) e do modo de
multietnicidade e a pluriculturalidade na Nicarágua (1986), no
Paraguai (1992), no Peru (1993), na Argentina (1994), na Bolívia dançar (rebolando e simulando o ato sexual
(1994, 2009), no Equador (1994, 1998, 2008), na Venezuela ou, como dizem alguns comentaristas,
(1999) e no México (2001) (Carrasco et al.). Esta não é uma lista
completa, e nem se supõe que as leis tenham sido respeitadas. fazendo “sexo com roupa”). As músicas
Entretanto, os instrumentos jurídicos servem como plataforma
para que se possam reclamar os direitos especificados. plebeias contemporâneas (como o dub
jamaicano, o hip hop, a champeta e o funk não de autoria, o que requer uma correção
Músicas plebeias
manipulação de discos de vinil e fitas variedade de novas práticas nos setores formal
eletromagnéticas) e, depois, da extração e (streaming) e informal – neste último caso,
G e o rge Y ú d i c e
mistura (sampleamento) de pistas digitais. cabe esclarecer que nem todas as músicas
n
R t í s t i c o
aproveitado pelas músicas plebeias: o compositores e músicos por obras que devem
i s t ó R i c o
funk carioca é alimentado pelo funk afro- gerar demanda, ou seja, atrair o público
americano, pelo hip hop e pelo samba, entre que gosta de dançar. Botero, Ochoa e Pardo
H
outras músicas; a champeta combina pistas apontam que esse setor industrial se baseia na
a t R i m ô n i o
Músicas plebeias
viva) apresenta quatro elementos que sexual nos cafuçus, homens brutos de origem
a c i o n a l
caracterizam a champeta: o ritmo africano popular que se comportam vulgarmente
(que é “mais saboroso” e uma “diversão [que (xingam, falam em voz alta, mexem nos
G e o rge Y ú d i c e
n
excita ou desinibe] a gente, 3’31” a 3’51”); o genitais, cospem etc.). As piriguetes e os
R t í s t i c o
espírito comunitário (um dos entrevistados, cafuçus vão ao baile brega para se sentirem
Wilson Muñoz, cantor e apresentador de hipermulheres e hiper-homens (Soares,
a
champeta, diz: “A champeta é, para mim, a 2012:62-63). Na champeta, moças chamadas
e
expressão musical dos bairros populares de
i s t ó R i c o
de “extremas” ou “boletas” “dançam com os
Cartagena”, 1’51” a 2’09”, “é um símbolo membros de um grupo específico de fãs ou
de identidade cultural”, 4’31”); um gerador do pessoal do picó, mas com uma tendência
H
a t R i m ô n i o
de participação que produz sustentabilidade a sentir a ereção de seu parceiro – como
para fortalecer a identidade dos habitantes uma exploração corporal do outro”. De
(5’38” a 5’50”); e é uma dança erótica fato, essas moças não dançam a menos que
P
“desavergonhada”, que se vê nas imagens, sintam a ereção de seu parceiro de dança
d o
mas da qual não se fala nada40. (Muñoz Vélez, 2003:42). Mas isso não quer
e v i s t a
Semelhantemente, no caso do reggaeton, dizer que elas transem com esses parceiros
R
o rebolado simula o ato sexual, uma dança de dança. Da mesma forma, no reggaeton,
que talvez derive do dancehall jamaicano que, as mulheres rebolam de forma provocativa,
por sua vez, deriva do reggae do fim dos anos mesmo quando as letras das músicas
1970. No filme Dancehall Queen (1997), parecem degradantes42. Em “El jaleo del
pode-se verificar o balanço dos quadris e das perreo” (O motim do rebolado), a escritora
nádegas e o impulso do púbis com que as portorriquenha Ana Lydia Vega argumenta
dançarinas competem . Semelhantemente,
41
que o hipermacho acaba sendo uma 85
no tecnobrega, os bailarinos executam caricatura, enquanto a mulher se impõe: “Por
coreografias que ilustram as letras das músicas sua parte, as mulheres se entregam sem pudor
(Fontanella, 2005:25). ao frenesi corporal. Alheias ao estardalhaço
Uma mudança de direção importante do macho da espécie, elas praticam um
em todas essas músicas é o crescente tipo de terrorismo sexual autossuficiente.
protagonismo das mulheres. No brega, Enquanto eles fazem rap, elas rebolam. A
destaca-se a figura da piriguete (vocábulo paródia inconsciente da masculinidade e da
provavelmente derivado de pretty girl), uma feminilidade sabota, em alguma medida, a
mulher exibicionista que procura seduzir glorificação dos papéis convencionais”
os homens. Ela se veste provocativamente (Vega, 2002).
Embora o dancehall, que talvez tenha
40. Héctor Crespo Salcedo, “La champeta sigue viva” (Cartagena
de Indias, 2007). Disponível em https://www.youtube.com/ a exibição mais extrema da sexualidade
watch?v=uk11-HZLHtw.
41. Dancehall Queen, dirigido por Rick Elwood e Don Letts.
Hawk’s Nest Productions, Jamaica, 1997. Disponível em https:// 42. “Mujeres bailando reggaeton locamente 2014 HD”. Disponível
www.youtube.com/watch?v=4vBVBCGBEVg. em https:/www.youtube.com/watch?v=qm_Wq4yx8QM.
aberta e “vulgar” da mulher, receba muitos Outra reviravolta desse tipo de
Músicas plebeias
de autoempoderamento, que muitas vezes debaixo dos quais palpitam corpos generosos.
i s t ó R i c o
não é aceito fora do círculo de pessoas com Artistas como Michelle Melo e Gaby
ideais afins. Segundo Walker, as mulheres Amarantos “não aceitam os padrões corporais
H
têm a opção de formar uniões temporárias de beleza que são vistos na TV” (Fontanella,
a t R i m ô n i o
baseadas no atrativo físico do homem. “Na 2005:13). Vários autores associam essa
pista de baile, as mulheres têm a vantagem, resistência à “perfeição” consumista: Judith
P
e seu parceiro de dança só vai tão longe Butler disse que se trata de uma performance
d o
Bakare-Yusuf (“Eu amo a mim mesma vigor, tais como o carnavalesco bajtniano ou
enquanto estou dançando e me excitando”)
R
Studies), pois reconhecem que as políticas que lhes são inerentes) que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
a c i o n a l
ofícios tradicionais.
de classe e etnia e a fetichização do
conhecimento especializado têm exercido Várias críticas têm sido feitas ao conceito
H
a t R i m ô n i o
forte influência sobre como se utiliza, define e à sua aplicação: porque o conceito é muito
e administra o patrimônio” . É possível
44
amplo, não havendo nada que não se encaixe
estabelecer que a patrimonialização é um nele; por exigir especialistas – mais que
P
perguntarmos para que serve o próprio que será incluído; por uma noção de resgate
R
Músicas plebeias
pelas instituições culturais e para celebridades cada vez mais burlesca Tigresa del Oriente
a c i o n a l
formadas nas mídias e indústrias culturais. e da popificada Wendy Sulca, essas músicas
O que quer dizer o Conselho Distrital “vulgares” ganham força, tanto na internet
G e o rge Y ú d i c e
como nas mídias. Como propus no início,
n
de Cartagena ao propor a champeta como
R t í s t i c o
candidata a patrimônio cultural imaterial? me parece que se vem produzindo um
Será que se superou a estigmatização da desdisciplinamento e que os critérios de valor
a
champeta e da cultura afrodescendente da (que, por sua vez, se sustentam na distinção
e
qual ela emerge? Quer dizer que já não se e, portanto, na hierarquização social) vêm
i s t ó R i c o
rejeita (o que a “gente de bem” considera deixando de ser necessários. Logicamente,
ser) o que é baixo e vulgar? Logicamente, me refiro ao nível geral de uma sociedade ou
H
nação: se o patrimônio é direito de todos,
a t R i m ô n i o
continuarão existindo vozes que rejeitam essas
músicas plebeias. Por exemplo, a champeta então a tendência já é não subordinar práticas
continua sendo estigmatizada como vulgar, simbólicas. Mas, se nos posicionarmos
P
violenta, desprovida de qualidade e coisa de no nível das instituições particulares e da
d o
negro: “incita ao sexo desenfreado, ao vício sociedade civil (por exemplo, as igrejas), fica
e v i s t a
em drogas e à violência e não é cultural” é um evidente que continua-se advogando contra
R
comentário típico de um artigo do jornal El os direitos de certos grupos, principalmente
Universal de Cartagena, no qual se informa os LGBTQI. Ou seja, existem tentativas
que o prefeito propõe incluir a champeta de disciplinamento a partir de valores
nos espetáculos patrocinados pela prefeitura específicos. Além disso, em um nível geral,
(Mejía Mesa, 2012) . Semelhantemente, o
45 continua-se disciplinando no sentido de
reggaeton tem sido contestado – e até mesmo conduzir os atores segundo as oportunidades
restringido nas transmissões radiofônicas em de trabalho, os lugares em que se pode
89
Cuba, República Dominicana, Guatemala tocar, o acesso às mídias e ao público, a
e Venezuela – por ser “vulgar”, “medíocre” visibilidade etc. Porém as músicas (e não
e [...] conter “textos agressivos, sexualmente necessariamente os músicos) a que se faz
explícitos e obscenos, que tergiversam sobre referência neste ensaio prosperam nos
a sensualidade como parte integrante da mercados informais e, até certo ponto,
mulher... projetando-a como um objeto também nos formais (sobretudo em shows
sexual grotesco em um entorno gestual ainda e bailes), apesar dos pavores morais, que
mais grotesco”. Críticas semelhantes são feitas são muitas vezes hipócritas. As músicas
plebeias vêm conquistando espaço e, senão
com relação ao tecnobrega, o funk carioca e a
sempre, aprovação. A proliferação de opções
cumbia das comunidades pobres.
de consumo apoia essa observação. Existe
45. Um comentarista que condena a champeta a partir de sua alguma coisa para todos os gostos. Mas,
condição de “negro fino” se transforma em objeto de zombaria se é assim, isso também quer dizer que o
de outros comentaristas: por exemplo, um que escreve: “Amigo,
não sei o que é negro fino, pois, até onde sei, são os cachorros que já foi rebelde e subversivo (o burlesco,
que têm raça fina”. Esse comentário expõe o racismo por trás da
aversão de muita “gente de bem” à champeta (Mejía Mesa, 2012). o grotesco, o antinormativo) perde agora
um pouco de seu poder. O plebeu pode à estirpe desavergonhada de nossos senhores. O
Músicas plebeias
continuar a ser o que é sem necessidade de controle é de curto prazo e de mudança rápida,
mas também é contínuo e ilimitado, enquanto
a c i o n a l
sociedades contemporâneas.
tem mantido a extrema pobreza de 75% da
Tenho que esclarecer que, ao constatar humanidade como constante, com estes sendo
a
sociedade. O disciplinamento surge no final explosões nas comunidades pobres ou nos guetos.
a t R i m ô n i o
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94
Marcia Sant’Anna Desafios e perspectivas da política federal de salvaguarda do patrimônio cultural
Marcia Sant’Anna
n
salvagUarda do patrimônio cUltUral
R t í s t i c o
r
a
e
H r i c o
i s t ó R
m ô n i o
introdUção Embora inserida em um contexto
internacional e em diálogo com esse contexto,
R i M
a t r
Com uma história que tem mais de 80 que, capitaneado pela Unesco, também se
P
voltou para a matéria, essa política teve,
d o
anos e que, portanto, antecede a própria fun-
e v i s t a
dação do Instituto do Patrimônio Histórico desde o início, contornos muito próprios
e Artístico Nacional (Iphan), as propostas e e mesmo descolados das formas como essa
Marcia Sant’Anna
R
r
ações do Brasil em torno da salvaguarda do questão vinha sendo conduzida no plano
que denominamos hoje de patrimônio cultural internacional. Com base numa bagagem
imaterial ganharam, nos últimos 15 anos, im- conceitual e numa prática própria, o
portância nacional e o respeito internacional. Brasil construiu seu caminho de modo
Sob diversas denominações, entre as quais se independente, mas, ao mesmo tempo,
destaca a noção de patrimônio artístico de influente, uma vez que a participação de
Mário de Andrade, e com diversas perspecti- especialistas brasileiros nas discussões e 95
vas, entre as quais se destacam a dos folcloris- tratativas que culminaram na Convenção
tas, nos anos 1950, e a do Centro Nacional de para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Referências Culturais, nos anos 1970, o poder Imaterial em 2003 foi reconhecidamente
desde os anos 1930, ainda que com distintas Mas, em que exatamente consiste essa
intensidades e muitos altos e baixos. Mas, a abordagem própria, e no que ela se diferencia
daquela preconizada em nível internacional?
partir de discussões que foram retomadas no
Mesmo antes da aprovação da
final dos anos 1990, e, principalmente, com a
Convenção de 2003, a Unesco propunha
criação de instrumentos legais e técnicos espe-
como modelo, para os países membros, a
cíficos, além de espaço institucional próprio,
política de salvaguarda de origem japonesa
na década de 2000, uma política federal de
que ficou mundialmente conhecida como
salvaguarda desse patrimônio foi formulada e
vem sendo implementada de modo sistemático Carranca
1. Participaram dessas discussões, como especialistas convidados, Acervo: Copedoc/Iphan/
e bem-sucedido. Maria Cecília Londres Fonseca e Antônio Augusto Arantes. Marcel Gautherot.
Tesouros Humanos Vivos. Uma política, outra direção e com outros objetivos. Se nos
Desafios e perspectivas da política federal de salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial, essa política não inclui os contextos mas que traz para o centro a expressão
i s t ó R i c o
territoriais, ambientais e sociais de produção cultural, seus atores no dia a dia, sua vida,
desses bens culturais, tendendo a ressaltar o seu trabalho. Em suma, uma visão ampla
H
detentores. Nada mais estranho à trajetória da manifestação cultural. Ainda que com
histórica do Brasil. especificidades, é possível verificar que essa
P
Uma rápida pesquisa no conteúdo abordagem foi adotada por folcloristas nos
d o
de 2003, de fato, mostra a influência mais tarde, pelos projetos da antiga Fundação
asiática na abertura dessa nova vertente de
Marcia Sant’Anna
R
a c i o n a l
a ser estruturada nessas bases. A despeito social e o grande interesse despertado pela
do seu sucesso e do reconhecimento da salvaguarda de bens culturais imateriais, o
sua importância, muitos estados brasileiros
n
que pode ser confirmado não somente pela
R t í s t i c o
optaram pelo caminho apontado pelo sistema significativa atuação de setores da sociedade e
Tesouros Humanos Vivos. Esse sistema, instituições não governamentais neste campo,
a
contudo, não foi implementado aqui de mas, principalmente, pelo grande número
e
modo completo e com a necessária vinculação de solicitações de registro e inventário que
i s t ó R i c o
dos mestres patrimonializados a programas chegaram ao Iphan a partir do ano 2000. A
de transmissão dos seus saberes e habilidades mobilização social em torno da salvaguarda
H
(Castro & Fonseca, 2008). Tem funcionado
a t R i m ô n i o
de bens, como o Modo de Fazer Viola de
muito mais como uma política afirmativa e Cocho, o Frevo e a Roda e o Ofício dos
de reparação, de forte cunho assistencialista, Mestres de Capoeira, dá uma boa medida
P
do que como política de salvaguarda capaz do apreço e do acolhimento devotados a essa
d o
de fortalecer a prática e a continuidade dos política junto a amplos setores da sociedade.
e v i s t a
bens culturais a ela relacionados. Com isso, Como expressão desse interesse, têm-se os 41
Marcia Sant’Anna
R
o Brasil acabou abrigando duas formas e bens culturais registrados entre 2002 e 2017,
entendimentos de salvaguarda que, até o 35 processos em instrução, 58 arquivados, 38
momento, não se integraram, e este é, sem em análise preliminar e, aproximadamente,
dúvida, entre outros, um dos grandes desafios 160 inventários concluídos em todas as
que se coloca para o Iphan no futuro. regiões do país.4
O Iphan, por meio do DPI e da sua
c o n q U i s ta s , problemas Unidade Especial, o Centro Nacional de
97
e desafios Folclore e Cultura Popular (CNFCP),
tem também investido sistematicamente
Nos últimos 15 anos, a política federal no treinamento e formação de pessoas,
de salvaguarda do patrimônio cultural dentro e fora da instituição, para lidar
imaterial logrou importantes conquistas. com a salvaguarda do patrimônio cultural
Para além da abertura e consolidação de um imaterial em todas as etapas e dimensões
espaço institucional e da aplicação, teste e desse processo. Essas unidades têm cumprido,
aperfeiçoamento do instrumental conceitual, ainda, de modo sistemático e constante,
técnico e normativo que a ampara, o Iphan,
o princípio basilar dessa política que diz
por meio do Departamento do Patrimônio
respeito ao seu caráter necessariamente
Imaterial (DPI), tem demonstrado uma
grande capacidade de flexibilidade e de 4. Fonte: Inventários concluídos - http://portal.iphan.gov.br/
adaptação, aprendendo com erros, revendo e pagina/detalhes/681/; registros – http://portal.iphan.gov.br/
uploads/ckfinder/arquivos/Lista%20Bens%20Registrados%20
regulamentando procedimentos (Instituto do por%20estado%202017%20(3).pdf. Há ainda 20 inventários em
andamento em todo o Brasil. Fonte: http://portal.iphan.gov.br/
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pagina/detalhes/680/
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
98
Marcia Sant’Anna Desafios e perspectivas da política federal de salvaguarda do patrimônio cultural
Acervo: Iphan/
Glauco Fernandes.
Cavalo Marinho, PE
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
99
pelo Iphan.
R t í s t i c o
anos, seja possível identificar alguns processos Tomemos como exemplos, desse tipo de
de salvaguarda que já podem ser considerados apropriação oportunista e inconsequente, as
a
do bem registrado seja avaliado para efeito Cabe registrar que, nesses casos, o título
d o
Cultural do Brasil, tem sido uma esplêndida mediante instrumentos legais específicos
Marcia Sant’Anna
R
a c i o n a l
isolada de quem quer que seja – que tal ou manipulações oportunistas e inconsequentes
qual manifestação cultural é patrimônio do seu patrimônio e informá-las das ações
não significa nada. Além disso, uma de identificação, documentação, apoio
n
R t í s t i c o
declaração dessa natureza não pode ter e fomento, disponíveis para ajudar a
qualquer consequência em termos de salvaguardá-lo.
a
salvaguarda – aqui entendida como Embora sério, o problema acima
e
processo de fortalecimento da existência e mencionado, infelizmente, não é o único
i s t ó R i c o
continuidade do bem cultural – já que lhe a colocar em risco os resultados da política
falta algo essencial, ou seja, uma base social de salvaguarda que o Iphan vem realizando.
H
ativa e comprometida com esse processo. Mesmo “dentro de casa”, ou seja, no próprio
a t R i m ô n i o
Mesmo assim, diversos governos estaduais e Iphan, tem havido muita dificuldade de
municipais, além de câmaras legislativas das integrar as políticas relativas às dimensões
P
várias esferas, têm trilhado esse caminho. Um material e imaterial do patrimônio cultural
d o
caminho, mais do que inócuo, que esvazia o e mesmo de dividir equilibradamente, entre
e v i s t a
conteúdo e, mesmo, compromete a política elas, os recursos financeiros da instituição.
Marcia Sant’Anna
R
exemplar que vem sendo implementada pelo Essa dificuldade decorre, em grande parte,
Iphan nessas quase duas décadas. da persistência de uma cultura interna,
O DPI vem tentando contornar esse longamente sedimentada, que privilegia
problema não apenas mediante investida o patrimônio construído e concentra
junto às instâncias de poder, seminários, muitos recursos – financeiros e humanos
congressos, oficinas, mas também por meio – em obras de conservação e restauração,
da publicação da série Patrimônio cultural em detrimento de ações sistemáticas de
101
imaterial: para saber mais (2012, 2017a, promoção da preservação do patrimônio
2017b), na qual, com linguagem acessível ao cultural pela sociedade e demais esferas de
grande público e também aos detentores de governo. Decorre ainda da dificuldade de se
bens culturais, e mediante fartas ilustrações, transformar uma prática institucional ainda
a delicadeza, a complexidade e o trabalho muito centrada no especialista e no seu saber
sério e constante exigidos na salvaguarda de técnico, em outra, de cunho mais aberto e
referências culturais são explicitados. Mas é participativo, a exemplo do que já é feito na
preciso ir mais além nessa cruzada de bem área do patrimônio cultural imaterial. Essa
informar. Instrumentos de comunicação, diferença de abordagem constitui um entrave
como redes sociais e outros, devem ser importante para a integração das políticas
também utilizados por meio da produção, relativas às dimensões imaterial e material do
por exemplo, de vídeos ou outras formas de patrimônio e contribui para separar as duas
comunicação da era digital, que auxiliem a áreas. A salvaguarda do patrimônio imaterial
atingir mais amplamente esse objetivo. Não sofre as consequências mais danosas dessa
há dúvida de que as pessoas sabem o que é situação, já que sua exemplaridade e eficiência
não têm sido suficientes para que recursos partir de agora, objeto de reflexão e revisão.
Desafios e perspectivas da política federal de salvaguarda do patrimônio cultural
sejam destinados, diante da eterna urgência preservação do patrimônio cultural seja uma
de salvar edifícios e obras de arte atividade interdisciplinar. Não seria este,
da destruição. então, o momento de se começar a praticar
n
R t í s t i c o
dos terreiros tombados, que integrou os foi listado como um princípio fundamental
departamentos do Patrimônio Material para a sustentabilidade dos processos de
H
parceria com a Universidade Federal da outras das áreas de educação, saúde, meio
Bahia (UFBA),6 produziu planos integrados ambiente, desenvolvimento social, trabalho,
P
de culto (Gestão e salvaguarda de terreiros, articulações foram feitas, como nas ações de
s/d).7 Esses planos, ainda que apresentem
Marcia Sant’Anna
R
Maurício Albano e
Jeferson Hamaguchi.
de Santo Antônio,
R
r e v i s t a d o P a t r
R i M
m ô n i o H i s t ó R
r i c o e a R t í s t i c o
r n a c i o n a l
puderem ter acesso a escolas bilíngues? Como processos de salvaguarda,8 a meta de tornar
i s t ó R i c o
a c i o n a l
como já apontado, de uma postura flexível ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz; edição de
texto apurado, anotada e acrescida de documentos por
que tem possibilitado a não mecanização da
Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo; Leandro
implementação da política, de seus concei-
n
Raniero Fernandes – colaborador. Brasília: Iphan, 2015.
R t í s t i c o
tos e abordagens, bem como o permanente CASTRO, Maria Laura Viveiros de; FONSECA, Maria
aperfeiçoamento de seus instrumentos e pro- Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil. Brasília:
Unesco: Educarte, 2008.
a
cedimentos. Essa postura deve ser defendida
GESTÃO E SALVAGUARDA DE TERREIROS –
e
de modo intransigente no futuro, e, para
i s t ó R i c o
Gestão e salvaguarda do patrimônio cultural dos povos
tanto, é preciso permitir que a realidade e as e comunidades de terreiros. Salvador: CIAGS/UFBA;
Brasília: Iphan, s/d.
necessidades, em última análise, conduzam a
H
INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico
ação, pois são as normas e os procedimentos
a t R i m ô n i o
Nacional. Documentos de referência da Política de
institucionais que devem se adaptar a elas, e Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Brasília:
Iphan/DPI, outubro/2016.
não o contrário. Não se permitir, sobretudo,
INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico
P
que um excesso de burocracia administrativa
d o
Nacional. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais.
obscureça a percepção da realidade e das ações Texto e revisão de Natália Brayner – 3ª ed. Brasília:
e v i s t a
efetivamente necessárias para que o sucesso Iphan, 2012.
Marcia Sant’Anna
R
Nacional. Salvaguarda de bens registrados: patrimônio
O fortalecimento de uma concepção de cultural do Brasil: apoio e fomento. Coordenação e
patrimônio cultural plural, democrática e organização Rívia Ryker Bandeira de Alencar. Brasília:
Iphan, 2017a.
inclusiva, nas últimas décadas, deve muito
INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico
à atuação do Iphan no campo da salvaguar-
Nacional. Salvaguarda da Roda de Capoeira e do Ofício
da do patrimônio cultural imaterial. Neste dos Mestres de Capoeira: apoio e fomento. Coordenação
momento em que a instituição completa 80 e organização Rívia Ryker Bandeira de Alencar. Brasília:
Iphan, 2017b. 105
anos, essa conquista deve ser reconhecida e
louvada, mas, principalmente, deve ser com-
preendida como resultado da implementação Convento da Ajuda
Acervo: P.G. Bertichem,
1837-1856.
de uma política participativa cujos princípios
e abordagens devem ser amplamente absor-
vidos, no âmbito da instituição, nas demais
áreas em que atua. Deve ser apropriada, en-
fim, como um farol capaz de
iluminar o futuro.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
106
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Dominique Poulot
a c i o n a l
a compreensão do patrimônio contemporâneo
n
e seUs limites
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A compreensão do Patrimônio deve criados durante os anos 19902. A presença de
refletir sobre uma questão recentemente objetos desse tipo nos museus pode assumir
levantada pelo antropólogo Igor Kopytoff: uma legitimidade científica, tanto quanto
P
d o
“é possível falar em valor de uso para coisas apela-se para o que podemos chamar de
e v i s t a
“melancolia cultural”. Eles ressaltam uma
que ficaram obsoletas?”1. Um caso extremo
antropologia de restos ou resíduos. Sabemos
é o dos objetos identificados precisamente
r
que, desde os anos 1930, Marcel Mauss
com a vanguarda da história, como
estimulava os etnólogos considerá-la mais
instrumentos ou como fatores de progresso.
uma “lata de conserva” do que uma joia,
Este é o caso das ferramentas da pesquisa afirmando que “ao pesquisarmos um monte
científica ou, mais ainda, das obras de arte de lixo, podemos entender toda a vida de
contemporânea. uma sociedade”3.
Com o passar do tempo, e com sua De fato, a lata de conserva em uma 107
difícil, para dizer o mínimo, no caso de estudos sobre conservação (tais como
a c i o n a l
um bem patrimonial marcado pelo éthos aqueles evocados por Françoise Waquet ou
do progresso, pelo culto à instrumentação Peter Burke em suas respectivas histórias7)
n
por essa melancolia democrática tão pura cause o esquecimento dos objetos, e
e
de arte contemporâneas.
P
científicos e técnicos
incontestável profundidade histórica.
R
a c i o n a l
o Museu Central da República no Louvre. torno de 1840) aos Museus Tecnológicos
Como um estabelecimento consagrado às do Fim do Século – de modo a recuperar as
“artes mecânicas”, o Conservatório de Artes e categorias propostas pouco tempo depois
n
R t í s t i c o
Ofícios nasceu em 1794 como um depósito por Françoise Hamon. O surgimento da III
de aparelhos científicos, modelos de máquinas República incluiu, graças ao Tour de France
a
e invenções, graças ao abade Grégoire. Em (Circuito da França) de Madame Bruno, a
e
seguida, após 1819, ele exerceu um papel de importância do martelo-pilão de Creusot
i s t ó R i c o
ensino formal, particularmente de química para a indústria francesa e, mais amplamente,
industrial, mecânica e economia política, para o orgulho nacional. Essa tradição de
H
como demonstrou Jacques Payen. diferentes Tours nacionais se manifestou em
a t R i m ô n i o
Grégoire, tão importante para o toda a Europa. Até os anos 1950, muitos
D o m i n i q u e Po u l o t
posicionamento sobre a política patrimonial livros escolares elogiavam uma ou outra
P
francesa, estigmatiza os mais diversos tipos de proeza, tecnológica ou humana (tal como
d o
destruição em seus diferentes Rapports sur le é o caso, notadamente, das descobertas
e v i s t a
vandalisme (Relatórios de Vandalismo). Pois científicas). Pasteur, cuja residência foi
R
o vandalismo que ele queria eliminar não se transformada em museu, precedeu Marie
resume apenas ao ataque ou ao desprezo de Curie no perfil legendário nacional.
obras de arte, mas também compreende as As “virtudes e os vícios” do patrimônio
perseguições praticadas contra os homens científico e técnico vão desta primeira
da ciência e os obstáculos colocados contra era até os Gloriosos Anos 1930 – talvez
o progresso do saber e das práticas. Nesse o episódio do Concorde seja o último a
sentido, reúne-se o patrimônio imaterial da ter mobilizado tal rede de representações
109
ciência aos patrimônios materiais das “artes”, coletivas, de patriotismo científico e
como já dissemos antes, liberais e mecânicas. empresarial para hábitos populares. As obras-
Por fim, as espoliações cometidas em primas tecnológicas povoam ainda mais a
detrimento dos diferentes príncipes europeus, iconografia de marca – por exemplo, La
em favor dos sucessos militares republicanos, Rance ou Pleumer-Bodou. Qualquer que
ocorreram igualmente com as ciências e as seja a razão, temos visto se instalar então
tecnologias. Mais tarde, a reorganização certa negligência, mais ou menos assumida,
das exposições e dos museus executada com relação aos testemunhos materiais da
pelo ministro Chaptal ou, adicionalmente, ciência e da tecnologia. O relatório oficial
a configuração das coleções das Escolas de Françoise Héritier, produzido em 1991,
Centrais se inspiraram sempre nos modelos sobre a penúria dos museus de educação
enciclopédicos. nacionais marca uma tomada de consciência
O século XIX viu o estabelecimento quanto aos investimentos a serem dados
de ligações estreitas e frequentemente e aos ajustes a serem feitos. A elaboração
determinantes entre as exposições temporárias da grande Galeria da Evolução no Museu
Nacional de História Natural ou, após muitos documentação dos dispositivos e objetos
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Museu Patrimonial, em vez de uma nova dos assistentes de laboratório faz parte de uma
configuração para a seção Exploratória “era do testemunho”. Essa patrimonialização
de um Palácio da Descoberta ou de uma relaciona-se de fato com o que Philippe
n
R t í s t i c o
Cidade das Ciências, indicam as etapas da Lejeune chama de “pacto autobiográfico”, que
patrimonialização contemporânea. proporciona um estímulo a uma estrutura –
a
caso dos ecomuseus. Elas têm se baseado modo a permitir a comunidade relacionar-se
d o
a c i o n a l
do caráter mais elaborado de algumas de no Museu Nobel de Estocolmo como
suas novas ferramentas, que apresentam uma fetichização de objetos ligados a um ou outro
construção teórica que já está integrada à pesquisador. O museu de ciências tradicional
n
R t í s t i c o
medida. Contudo, à exceção dos artistas, o conserva, de fato, materiais de seus grandes
uso de uma instrumentação antiga é uma vultos – com efeito, esses instrumentos
a
excentricidade – da mesma forma que o uso puderam se parecer rapidamente com
e
nostálgico de ferramentas ultrapassadas por relíquias, bem antes de sua musealização,
i s t ó R i c o
um profissional é uma vaidade sem grande assim como foi o caso de Galileu, em
importância coletiva se não estiver dentro do Florença. Além disso, o objeto de Galileu
H
cenário de uma dramatização. tem tido uma carreira notável, sob a forma
a t R i m ô n i o
O novo patrimônio da ciência obsoleta autêntica e como réplicas, até como seus usos
D o m i n i q u e Po u l o t
Durante a primeira modernidade nas representações de Galilée de Brecht, no
P
científica, os dispositivos antigos de várias Piccolo Teatro de Milão, no passado. Nos dois
d o
gerações podiam ser utilizados para usos casos (museu e teatro), os dispositivos valem
e v i s t a
pedagógicos ou mercantis: entre esses estão as evidentemente como símbolos do avanço do
máquinas de vácuo, os dispositivos elétricos espírito humano. A proposta museográfica
R
ou o planetário físico ou de demonstração do historiador Raoul Hilberg, que queria
cujas telas de Joseph Wright of Derby nos colocar uma lata de zyklon B sobre um
legaram um testemunho. Porém, atualmente, pedestal, como obra-prima representativa do
os dispositivos de ontem são muito nazismo, no Museu do Holocausto, responde
sofisticados para serem usados dessa forma precisamente a esse tipo de destaque nas
em um processo de mediação científica e exposições11. Porém a polêmica de 1995 sobre
tecnológica, que exige dispositivos operados 111
o local do bombardeiro de Hiroshima, o
ad hoc10. Enola Gay, exposto no Museu da História do
Certamente, não é difícil pensar que, Ar e do Espaço do Smithsonian, demonstrou
no meio de tantos dispositivos com funções as ambiguidades da mediação de um
obscuras e aparências insignificantes para o objeto tratado, ora em nome do progresso
profano, podem-se encontrar alguns dignos científico e técnico, ora em nome de seus usos
de uma museografia. Instrumentos ligados históricos12.
à vida de um cientista notável podem ser O cuidado de uma interatividade é
reunidos, enquanto relíquias, em um museu atualmente constante nos museus de ciência
dedicado às glórias contemporâneas ou e está ligado à necessidade de preencher
um abismo entre a cultura cotidiana e
10. Duas apresentações recentes foram objeto dessa considera-
ção: Bernard Schiele, “Science museums and centres”. Routledge
Handbook of Public Communication of Science and Technolo- 11. Raoul Hilberg, La Politique de la mémoire, Paris, Gallimard,
gy (2014):40, e Serge Chaumier, “Le musée de science: agent de 1996.
socialisation aux sciences ou acteur de changement? Du musée 12. Vera L. Zolberg, “Museums as contested sites of remembrance:
temple aux sciences citoyennes”. THEMA. La revue des Musées de the Enola Gay affair.” The Sociological Review 43, nº 1 (1995):
la civilisation 2 (2015):10-22. 69-82.
o mundo dos cientistas. Supomos que a nossa segurança fisiológica”14, ao contrário
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
de todos de modo criativo. Por outro lado, de grande valor, aparelhos e dioramas que
ela constitui uma aposta teórica, na reflexão ilustram e identificam a história das grandes
contemporânea, sobre as relações entre
n
descobertas”15.
R t í s t i c o
humanos e não humanos. Por fim, ela realça- Portanto, a experiência da espetacularização
se sobre o corpo do visitante no momento é uma tentação. Pode-se aplicar a noção da
a
em que o corpo do cientista tem se afastado sala histórica (ou period room) a conjuntos que
e
fascinação prejudicial com um reflexo sobre biológico. Por fim, em certos casos, os museus
d o
a c i o n a l
a apresentação em uma perspectiva eventual, Após uma crise de confiança com
como uma maravilha: uma tentativa que relação a isso, que assumiu diversas formas,
n
realça o desvio e consiste em uma variante de acordo com países e instituições, esses
R t í s t i c o
um pouco heterodoxa, mas que hoje está estabelecimentos entenderam mais uma
relativamente banalizada com a multiplicação vez, no fim do século XX, que suas coleções
a
de muitas coleções de curiosidades . Por 16
tinham alimentado continuamente a “criação”
e
isso os museus de tecnologia e ciência, tal
i s t ó R i c o
e que continuavam a fazê-lo. Exposições
como os de ciências naturais, montam cada como Museum as Muse foram igualmente
vez mais exposições dedicadas à estética ou afirmações da responsabilidade do museu
H
a t R i m ô n i o
à apropriação indevida das peças. O prazer pela arte atual18. Simultaneamente, dentro
da mudança de cenário ou da desorientação, da história da arte, a “maneira de ver”19
D o m i n i q u e Po u l o t
e até de uma fascinação verdadeira, parece, particular do museu tem sido objeto de um
P
então, preponderar sobre o (re)conhecimento reconhecimento amplamente reafirmado,
d o
dos contextos e dos significados primários realizada enquanto fundadora da disciplina.
e v i s t a
dos objetos. O Museu de Artes e Ofícios tem, Tais proposições podem ser consideradas
R
assim, se sobreposto à arte contemporânea, como uma das respostas às descobertas feitas
mobilizando objetos de cientistas ou pelos próprios artistas, a partir da década
tecnológicos, ora a capricho da inspiração de 1970, acerca dos poderes do museu20.
de um artista convidado17, ora para evocar Em seu artigo fundamental “Função do
(como a suíte de Lautréamont, de 1869) a Museu”, Daniel Buren reconheceu um papel
“beleza como (…) o encontro fortuito de triplo para a instituição: estético, econômico
uma máquina de costura e um guarda-chuva e místico (“o museu/galeria confere 113
sobre uma mesa de dissecção”. imediatamente o status de “arte” a tudo que
se expõe com credibilidade (...) O museu
os poderes do mUseU (galeria) é o corpo místico da arte”)21. No
de arte caso de outros autores, a história do museu
é a de um controle social: trata-se de uma
Se os objetos científicos colocam a aparência de prisão, sugerida por Krzysztof
questão dos interesses e das mediações Wodiczko, quando este faz considerações
ao patrimônio de uma maneira nova e,
muitas vezes, inesperada, os museus de arte 18. The museum as muse, artists reflect, MoMA, 1999.
19. Svetlana Alpers, ‘Ways of Seeing’, in Ivan Karp and Steven
contemporânea têm de fazê-lo frente a uma D. Levine, Exhibiting Cultures: The Poetics and Politics of Museum
Display, Washington, Smithsonian Institute Press, 1991, pp.
25-32.
16. Stephen Greenblatt, “Resonance and wonder.” Bulletin of the 20. Museums by Artists, ed. AA Bronson and Peggy Gale, Art
American Academy of Arts and Sciences (1990): 11-34. Metropole, Toronto, 1983.
17. Mécanhumanimal – Enki Bilal No Museu de artes e ofícios – ex- 21 “Fonction du Musée”, (New York, oct. 1970), in cat. Function
posição de 4 de junho de 2013 em 5 de janeiro de 2014; Michael of the Museum, Oxford: Museum of Modern Art, mars 1973,
D. Picone, “Comic Art in Museums and Museums in Comic Art. reimpresso em Daniel Buren, Les Écrits, (1965-1990), tome I:
“European Comic Art 6, nº 2 (2013): 40-68. 1965-1976, pp. 169-173.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
114
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
Museu de Arte Sacra-BA
sobre os museus, observando a grande de Bordéus27, ou, no caso de Kwame Anthony
a c i o n a l
monumentos de agressão ou repressão22. Rockefeller sobre arte africana28.
Para Douglas Crimp23, a crítica da
colocação do helicóptero Bell D47 no os U s o s d a c o n s e r va ç ã o
n
R t í s t i c o
MoMA, um objeto de design, mas também
uma ferramenta de guerra usada contra O trabalho de naturalização da
experiência do museu nos últimos séculos
a
guerrilhas na América Latina, iniciou, a partir
e
de então, um registro bem conhecido de tem levado a um triunfo da visualidade e
i s t ó R i c o
protestos, um princípio de várias intervenções das tendências que lhe são associadas – é
artísticas. Estes podem se apoiar na natureza isso que Jonathan Crary tem chamado de
H
das peças expostas ou, ainda, se apoderar diferentes imperativos de controle de si
a t R i m ô n i o
do dispositivo do museu como tal. A próprio e da retenção social, da atenção,
do silêncio e da imobilidade, que quase
D o m i n i q u e Po u l o t
denúncia acerca da ligação dos museus com
não eram despertados nos primeiros
P
os poderes políticos, industriais, financeiros,
d o
e até militares-industriais, tomou depois estabelecimentos e são manifestados pelo
e v i s t a
a aparência de lugar-comum24. A crítica ideal da conversação29. Encontramos uma
institucional25 quis, de fato, pensar o museu ilustração notável no caso de Marcel Proust,
R
dentro do que os sociólogos da arte (junto em que a celebração do museu passa por uma
com Howard Becker) chamam de “mundos negação de sua materialidade: uma “sala de
da arte”, e que compreendem, junto com o museu […] simboliza (...) por sua nudez e seu
mercado, o colecionismo e o espaço público despojamento de todas as particularidades, os
da crítica26. Nesse cenário, o catálogo de espaços internos onde o artista se abstrai para
exposição se torna o objeto por excelência criar”. Como observa Antoine Compagnon, o
dos estudos críticos por parte dos semiólogos, propósito, que parece se referir ao triunfo do 115
historiadores da arte ou filósofos, e, ainda, no cubo branco descrito por Brian O’Doherty
caso de Louis Marin, a partir de um exemplo em meados dos anos 1970, quase não tem
relação com “as paredes dos museus com que
Proust estava familiarizado” ou com “as telas
que eram apresentadas nos salões artificiais”30.
22. Assim como no Museu Whitney, em 1989 “Image World: Art
and Media Culture”.
23. Douglas Crimp, On the Museum’s Ruins, Cambridge, MA:
MIT Press, 1997.
24. O movimento dos indignados de Wall Street, de 20 de
outubro de 2011, criou, junto com o artista Noah Fischer, um 27. “La célébration des œuvres d’art: notes de travail sur un cata-
moveimento Occupy Museums! para combater “a intensa comer- logue d’exposition”, Actes de la Recherche en sciences sociales, 1975,
cialização e cooptação da arte”. n° 5-6: La critique du discours lettré, pp. 50-65.
25. Benjamin Buchloh, “From the Aesthetic of Administration 28. Kwame Anthony Appiah, “Is the Post- in Postmodernism the
to Institutional Critique (Some Aspects of Conceptual Art 1962- Post - in Postcolonial?”, Critical Inquiry, 17:2 (1991:Winter) p.
1969”, L’art conceptuel: une perspective, edited by C. Gintz. Paris: 336.
Musée d’art moderne de la Ville de Paris. 1989, pp. 41-54. Andrea 29. Jonathan Crary, “Géricault, the panorama, and sites of reality
Fraser, ““From the Critique of Institutions to an Institution of in the early nineteenth Century”. Grey Room Fall 2002, Nº 9,
Critique,” in John C. Welchman, ed., Institutional Critique and pp. 5-25.
After, Zurich: JPR/Ringier, 2006, pp. 123-136. 30. Antoine Compagnon “Proust au musée”, Marcel Proust,
26. Howard S. Becker, Les mondes de l’art. Paris, Flammarion, l’écriture et les arts, sous la direction de Jean-Yves Tadié, Galli-
1988. mard-BnF, RMN, 1999, p. 71.
Pelo contrário, a materialidade da de Copenhague35. Além disso, a revisão
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
instituição se tornou evidente depois de documental mais notória trazia uma confusão
a c i o n a l
algumas décadas: La Jeunesse des musées (A provinda dos sistemas de informação ligados
Juventude dos Museus), em Orsay, expôs a novas tecnologias e pelo uso dos museus
pouco tempo depois esses museus como que como fontes para interrogar, in situ ou não.
n
R t í s t i c o
tornados por estrangeiros, povoados por A coleta de dados diz respeito não apenas às
bancos repletos de pelos e vitrines obscuras, obras expostas ou conservadas, mas também
a
referência obrigatória da museografia31. impõe mais que uma simples atualização dos
Uma preocupação semelhante quanto aos conhecimentos elaborados ou difundidos
H
dispositivos materiais dos museus antigos pelos museus: ela usa sua legitimidade
a t R i m ô n i o
está ligada a debates arquitetônicos atuais e científica e até política. A nova ambição
D o m i n i q u e Po u l o t
contemporânea33. Além disso, para certos global a partir das coleções reexaminadas,
profissionais, o museu deverá, nos próximos virtualmente completas ou reconfiguradas.
R
a c i o n a l
artes – e dos patrimônios – autóctones, escândalos do passado41, a propósito, assim
ligadas ao reconhecimento de especificidades como os falsos Vermeer e o verdadeiro Van
culturais e processos políticos. Porém, na Meegeren42. Quando o museu começa a
n
R t í s t i c o
verdade, as ligações entre os museus e os manifestar sua responsabilidade artística,
poderes nesse novo cenário “global” ressaltam escolhe a partir de agora a forma de se dirigir
a
“uma etnografia da produção e do movimento diretamente ao público.
e
dos objetos”, dentro de um “comércio” O museu Boijmans, de Roterdã,
i s t ó R i c o
cultural inédito nessa escala e dentro desta consagrou uma sala às telas “rejeitadas” da
“forma”38. Nesse sentido, as configurações coleção permanente, que explica as razões
H
locais de apresentação de obras (se fossem que fizeram com que fossem descartadas.
a t R i m ô n i o
mundializadas) permanecem determinantes. Aprendemos que uma coleção permanente
D o m i n i q u e Po u l o t
O museu de arte, que quase não tem deve excluir telas por razões de espaço ou de
P
proposto ou conhecido outras classificações qualidade tanto material quanto artística ou,
d o
além do sistema de escolas elaborado entre ainda, devido a conveniências para com a
e v i s t a
o final do século XVIII e o início do século sua amarração e suspensão. Porém, além das
XIX, tem visto surgir outros modelos opiniões de um especialista, há o gosto do
R
na segunda metade do século XX39, cuja conservador, que assume sozinho sua escolha
proposta temática de Nicolas Serota para a de exposição. Um dos aspectos problemáticos
Tate Modern constitui uma ilustração. Tal nessa ocorrência é que ele se parece com um
reinvenção do modo do século passado, ou colecionador particular, por meio de uma
do que se chama de “coleção de curiosidades”, série de negativas e identificações paradoxais.
também tem servido como classificações Em uma sala do museu, a 27, lemos, de
alternativas40. Ao ligarem-se às tradições fato, com relação a uma seleção de obras 117
são evidentemente ideológicas: não será difícil importante que você deve ter em mente
comparar a semelhança do heroísmo ideal do quando passa pela porta consiste em seguir
n
reprodutibilidade técnica das obras, que tem mesmo nível com relação a práticas culturais.
transformado a visita ao museu, que pode se Não evocaremos aqui os “direitos de leitor”
H
a t R i m ô n i o
desenvolver a partir de então no interior das listados ao mesmo tempo pelo romancista
salas dispostas em rede, cheias de informações Daniel Pennac, que deseja permitir uma
D o m i n i q u e Po u l o t
que alimentam canais heteróclitos. Como leitura prazerosa, e também tão casual quanto
P
118
o grande desgosto dos que defendem o
Os museus têm colocado os interesses fechamento dos espaços de contemplação
do público em primeiro plano nas últimas e criticam a abertura das portas de vidro
décadas. Contrariamente aos modos de acesso para o percurso de escultura do Louvre. Em
regulados ao conhecimento especializado, todos esses casos, a promoção de um museu
sempre exigentes, ou mesmo intimidatórios, concebido como lugar de deambulação
a possibilidade de uma visita ao museu, urbana queria acabar com a limitação
livre de todo constrangimento devido à falta tradicional à arte e ao conhecimento. As
de aprendizado, tem parecido ser o novo intenções nos estabelecimentos buscaram
ideal. Entre outros elementos, o sucesso o convite aos seus visitantes por meio de
de livrarias de David Finn, lançado em práticas de apropriação e caça ilegal. No
1985, com o título How to visit a museum, lugar da autoridade exclusiva do conservador
43. Neil Harris, ‘Polling for Opinions’, Museums News, 69, 44. David Finn, How to visit a museum, New York, 1985, pp. 10-
5, 1990, pp. 48-53. Ver também Julia D. Harrison, “Ideas of 11, citado por Donald Preziosi,
Museums in the 1990s”, Museum Management and Curatorship “Palpable and Mute as a Globed Fruit: Art and/as Embodiment”,
(1993), 13, pp. 160-176. Tate Papers, 15, 1, abril de 2011.
sobre as coleções, surgiu, mais ou menos passa por uma apropriação singular do
a c i o n a l
experiências do visitante – evidente quando Assim o Le Monde pôde saudar, em 1989,
“objetos de família” se tornam objetos a apresentação de uma relíquia no museu
de museu no Museu de Etnologia, como
n
de Caen – era o sapato perdido por Maria
r t í s t i c o
escreveu recentemente Chantal Georgel, Antonieta quando subiu no cadafalso,
porém, a partir de agora, ampliado para tendo sido comprado pelo conde de
a
muitas coleções . Assim, o museu se torna
45
Guernon-Ranville, ministro de Charles
e
algumas vezes um teatro de lembranças e
i s t ó r i c o
X. Presenciamos a apresentação de um
saberes dos visitantes. objeto em três locais de descanso, segundo
Em certos casos, principalmente, trata-se os diferentes momentos do processo, sob
H
a t r i M ô n i o
de um museu em que se simula a discussão a forma de um culto fetichista, ao qual
pública da memória e da história, de suas os visitantes foram levados, de fato, a
D o m i n i q u e Po u l o t
apostas e seus méritos respectivos nos debates transformar em zombaria.
P
cívicos e políticos. Nos museus do holocausto,
d o
Mais geralmente, uma geração de
do terror ou de genocídios, o passado é
e v i s t a
artistas (de Warhol a Fred Wilson)
conjugado ao presente dentro do ritmo de
tem começado a explorar as
r
exposições comemorativas. Sarah Gensburger
reservas dos museus ao atualizar
e Marie-Claire Lavabre são interrogadas, junto
certas peças e testemunhar
a outras pessoas, sobre “o fato de se imputar
passados difíceis ou
uma eficácia à memória, à evocação do passado
contestáveis. Esse é
ou, mais ainda, a uma narrativa histórica”,
especialmente o caso
entre a instrumentação e a instrumentalização.
de Hans Haacke,
O desafio consiste em “compreender essa
quando, depois de 119
crença na capacidade da memória em atuar
atacar a biografia
nas representações coletivas e nas ligações
cultural de objetos,
constituídas em um contexto paradoxal, não
descobriu a sucessão
obstante ainda permeado por uma razão
ritualizada; a afirmação de uma crise das de proprietários
m U ta ç ã o d o pat r i m ô n i o
obras, antigas e modernas, é particularmente i m at e r i a l
a c i o n a l
acerca não só das transferências e espoliações, França, em 2006, marcou uma mudança na
mas também das devoluções e, enfim, relação nacional com objetos do patrimônio.
a
Certas iniciativas dos museus, como os mundo”, cujo movimento arquitetônico leva
do Vaticano, que, depois do verão de 2012, a crer que seu responsável (Jean Nouvel)
H
a pastoral48, parecem escolher, no sentido então que “pela primeira vez, uma inflexão
d o
a c i o n a l
ratificação de “uma decisão que rompe com Contudo, além do projeto presidencial
dois séculos de hierarquização estética dos do Museu do Cais Branly, a construção
bens culturais”. pluridisciplinar do Museu das Confluências
n
R t í s t i c o
De fato, a definição do patrimônio de Lyon54, a construção do Museu de Artes
francês permanece em grande parte e Civilizações Mediterrâneas em Marselha
a
dominada pelos interesses tradicionais. Ela assim como a reorganização do Museu do
e
é mais estrita do que aquela imaginada pelo Homem55 têm marcado a década de 201056.
i s t ó R i c o
Conselho da Europa, a propósito da herança O fenômeno merece ser notado, pois a
cultural europeia, “constituída por criações divulgação da etnografia francesa vulgarizada
H
da natureza e do homem, por riquezas por meio de certas narrativas de sucesso nos
a t R i m ô n i o
materiais, mas também por valores morais e anos 1970-1980, ligadas à nostalgia de um
D o m i n i q u e Po u l o t
religiosos, por convicções e conhecimentos, mundo perdido57, não resultou em uma
P
por temores e esperanças e por visões de renovação das exposições ou museus.
d o
mundo e modos de vida, cuja diversidade é Muito pelo contrário, Jean Jamin notou,
e v i s t a
a origem da riqueza da cultura comum sobre em 1991, que “museus, coleções e objetos quase
a qual se funda a construção europeia”. Para não parecem interessar à antropologia. Por causa
R
os juristas franceses, certas atividades ou de uma deserção tanto física quanto intelectual
práticas, tais como os costumes, as tradições
e as habilidades, não têm “necessidade de 53. A segunda reprimenda é desenvolvida particularmente em
um enquadramento jurídico para poder se Sally Price, Paris primitive. Jacques Chirac’s Museum on the Quai
Branly, Chicago, University of Chicago Press, 2007, capítulo 5,
manifestar. Nesse sentido, o patrimônio “An anti-palace on the Seine”, que enxerga um dispositivo de pu-
rificação de eventuais comunitarismos no museu, em nome do
no aspecto jurídico não cobre mais que princípio da laicidade. O texto de Daniel Fabre (“O patrimônio
um subgrupo do patrimônio no aspecto cultural imaterial. Notas sobre a conjuntura francesa”) acompanha 121
a apresentação do relato do estudo de Gaetano Ciarcia, O prejuízo
amplo. O legislador seleciona certo número permanente. Relatório de um estudo sobre a noção de “patrimônio
imaterial”, Ministério da Cultura e Comunicação, 2006.
de elementos para organizar seu regime 54. A apresentação do projeto no site na internet evoca: “sete expo-
sições de declínio, por exemplo: conflitos e exclusões, diversidade
de proteção. A direita francesa está hoje cultural e mestiçagem, biodiversidade e todas as questões ligadas
ao domínio do moderno”. Michel Côté, seu diretor, publicou,
concentrada na proteção dos elementos durante o ano de 2008, uma série de trabalhos sobre a aposta do
projeto (A paixão da coleção: as origens do Museu das Confluências,
materiais do patrimônio, em uma abordagem séculos XVII-XIX, maio; Práticas de exposição e mediação e atividades
bem mais restritiva”52. As críticas endereçadas culturais, setembro; Coleções, política e práticas, dezembro; todos
editados pelo Departamento do Rhône).
ao Museu do Cais Branly revelam uma 55. Isso após um primeiro relatório de Jean-Pierre Mohen, O Novo
Museu do Homem, Paris, Odile Jacob-Muséum nacional de his-
situação marcada continuamente pelo tória natural, 2004. Sobre sua história Claude Blanckaert, éd. Le
Musée de l’Homme. Histoire d’un musée laboratoire, Paris, Musée de
“culto exclusivo do objeto tridimensional, l’Homme, 2015.
desprezando todas as outras expressões de 56. Em 16 de fevereiro de 2009, a Ministra da Cultura divulgou
um relatório sobre os “diferentes sítios prováveis de acolher o fu-
culturas” e pela “ausência das comunidades turo Museu da História da França”, entre os quais Fontainebleau,
Mansão de Soubise, Invalides, Versalhes e Vincennes. Com relação
a esse fenômeno paralelo da museologia francesa, eu me permito
reenviar a D. Poulot a referência “Gloires et opprobres politiques au
musée”, Sociétés & Représentations, n° 26, nov. 2008, pp. 197-217.
52. Marie Cornu, Droit des biens culturels et des archives, Legame- 57. Assinala Philippe Joutard em Ces voix qui nous viennent du
dia, novembro de 2003. passé, Hachette, 1983.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
122
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Acervo: Iphan.
de Belém
Ladrilho hidráulico
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
123
caso francês, em que as etnologias do pós- a fonte para os pesquisadores do futuro (...).
guerra foram paralisadas devido à lembrança Porém essa opção unânime causa uma seleção
a
de Vichy. Os sucessivos colóquios ligados tácita e insidiosa dos sujeitos de estudo: nós
e
Populares durante a década de 1990 oscilaram etnografia de obras, conferindo a esse último
regularmente entre o retorno enraivecido de termo seu sentido mais amplo. Os objetos da
H
diversos estabelecimentos se parecem com oral... são sempre os primeiros eleitos e, por
d o
homenagens devotadas aos fundadores da isso, sua descrição externa, sua numeração e,
e v i s t a
etnologia francesa, respeitando uma liberdade portanto, sua capitalização patrimonial são
às vezes suavizante. Nesse contexto, não imediatamente concebíveis60”. Entretanto,
R
deixa de ser interessante que uma evolução esse paradigma tem ele próprio uma história,
aparentemente terminológica – de que o e os “últimos” puderam conhecer certas
patrimônio imaterial substituiu o patrimônio épocas de ressurreições.
etnológico – consiste em uma mudança Como demonstrou David L. Hoyt, “ao
dentro do âmbito disciplinar e político59. contrário da imagem de relíquias ou fósseis
de uma cultura desaparecida, cultivada
124 a energia do primitivo e pelos estudos das últimas décadas do século
a p o l í t i c a f o l c l o r i s ta XIX, os etnógrafos do século XX têm seus
objetos vivos. Eles não têm mais necessidade
Em longo prazo, a tentativa da etnologia de restaurar a vida nas coleções”61. A
parece se confundir com a busca por objetos, afirmação de um sujeito vivo se opera no
em número sempre crescente, suscetíveis de reconhecimento de um “primitivo” sempre
também se tornarem materiais de exposição. ativo, atuante no presente, e não no passado.
Daniel Fabre evocou, em seu propósito, um Não se trata mais de coletar restos de uma
“paradigma dos últimos”: o etnólogo seria “o cultura desaparecida ou dos últimos exemplos
último a poder dizer: tal prática, tal crença, tal de tal costume ou prática: abandonamos
objeto ou tal conhecimento existiu; tal palavra
60. Daniel Fabre, “L’ethnologue et ses sources”, Terrain, n° 7, Paris,
1986, pp. 3-12; “D’une ethnologie romantique”, Daniel Fabre
58. Jean Jamin, “Les musées d’anthropologie sont-ils dépassés ?”, et Jean-Marie Privat (dir.), Savoirs romantiques. Une naissance de
Le futur antérieur des musées, Ed. du Renard, maio de 1991, p. 113. l’ethnologie, Presses universitaires de Nancy, 2010.
59. Gérard Derèze demonstrou isso para o francófono belga em 61. David L. Hoyt, “The Reanimation of the Primitive: Fin-de-
“De la culture populaire au patrimoine immatériel”, Hermès, 42, Siècle Ethnographic Discourse in Western Europe”, History of
2005, pp. 47-53. Science, vol. 39, pp. 331-354.
a perspectiva histórica e positivista para o que apresentaram um olhar erudito sobre
a c i o n a l
que coloca um fim na tese das sobrevivências. do folclore, da Mélusine ou da Revue des
Uma mudança semelhante de pontos traditions populaires, aparecem como cientistas
de referência temporais resulta em uma inúteis para a recuperação francesa. Maurice
n
R t í s t i c o
articulação do regionalismo e da etnologia, Barrès também condena a salvaguarda das
que se transformam em ferramentas igrejas da França, que assumiram a forma de
a
políticas62. museus ou pontos culturais, sem, portanto,
e
No final do século XIX, diversos museus defenderem similarmente o catolicismo, fato
i s t ó R i c o
nasceram após a organização de uma sala da este dado após a separação da Igreja e do
França no Museu de Etnografia do Trocadéro, Estado em 1905. Este é o nome da energia
H
em 1884 (que fechou em 1928). Esses nacional, da força de suas paisagens e dos
a t R i m ô n i o
museus eram o Museu Basco, de Bayonne, modos de vida imbuídos nos monumentos,
D o m i n i q u e Po u l o t
o Museu Bretão, de Quimper, ou o Museon bem como das tradições, que não devem
P
Arlaten, de Arles, concebido em 1898 por ser conservadas para fins de estudo ou
d o
Frédéric Mistral. Em 1904, inaugura-se um arquivamento, mas sim mobilizadas a fim de
e v i s t a
Museu de Dauphine, em Grenoble, concebido alimentar um projeto efetivo. Nada é pior que
por Hippolyte Müller, destinado para “recriar o embalsamento dos museus ou a restauração
R
o pensamento que criou o objeto”. Todavia, a segundo os procedimentos científicos como
França não conhecia o importante museu ao os de Viollet-Le-Duc.
ar livre, ao contrário dos “Museus das casas”, Basta citar Arnold Van Gennep, fundador
que se multiplicavam no início do século da etnologia francesa, para compreender a
XX nos países escandinavos, na Holanda, na diferença assim declarada: “quem se interessa
Alemanha e também na Romênia, no Reino por folclore, escreve ele, o torna vivo e direto;
Unido e nos Estados Unidos. é isso que queremos, na biologia sociológica, 125
modernidade
e
a c i o n a l
de vida” de uma população70. Os primeiros descontinuidade ou continuidade das gerações.
ecomuseus, concebidos em Marquèze, no É um espelho que essa população oferece a
seus componentes, para se compreenderem
n
contorno do Parque Natural Regional de
R t í s t i c o
Landes de Gascogne, e, depois, em Ouessant, melhor, com relação a seu trabalho, seus
dentro do Parque Natural Regional da comportamentos e sua intimidade”71.
a
Armórica, servem como referências. Essa Museu do homem e da natureza, o
e
ecomuseu visa valorizar o restabelecimento
i s t ó R i c o
geração de ecomuseus é resultado do ativismo
de representantes políticos ou líderes do ponto temporal em que o homem
apaixonados que encontraram os meios para apareceu e, depois, a demonstração tanto da
H
sociedade tradicional, quanto da sociedade
a t R i m ô n i o
um reconhecimento coletivo. Os exemplos
industrial, resultando finalmente no futuro,
mais célebres são, então, os ecomuseus
D o m i n i q u e Po u l o t
em nome de uma “função de informação e
da Comunidade Urbana de Creusot
P
análise crítica”. O ecomuseu ideal reivindica
Montceau-les-Mines, de Fourmies-Trélon, de
d o
a dupla qualidade de ser conservador do
e v i s t a
Nord-Dauphiné e da cidade nova de Saint-
patrimônio natural e cultural das populações
Quentin-en-Yvelines.
referidas, bem como de ser o laboratório deste
R
Um ecomuseu reúne, em princípio,
patrimônio, porque é assunto, ao mesmo
diferentes lugares no interior de uma região e
tempo, de estudos teóricos e práticos, assim
oferece a seus visitantes os meios para conhecer
como da operacionalização desses estudos.
a história e a geografia locais; ele mostra
Concretamente, trata-se de um conjunto de
as ligações estreitas estabelecidas por uma
museus constituídos em rede, organizados
comunidade de habitantes entre o ambiente,
por pessoas com status algumas vezes incerto,
os recursos naturais e as técnicas agrícolas, 127
entre voluntário e profissional.
artesanais, manufatureiras ou industriais. A maior parte deles é construída
Assim, o ecomuseu é definido como o oposto com vistas às atividades em vias de
do museu tradicional (“o templo da cultura”) desaparecimento, mesmo que isso não seja
e se assenta sobre um território, sua paisagem seu princípio: eles apresentam as ferramentas
e a população. Em 1976, Georges-Henri e técnicas tradicionais e convidam artesãos
Rivière precisou esta definição: “É um espelho antigos para dar explicações aos visitantes e
onde essa população se vê e reconhece, até realizar diversas demonstrações72. Nesse
onde ela procura por uma explicação sentido, eles participam de uma dinâmica do
“patrimônio” na sociedade, a qual as pesquisas
70. A primeira definição de ecomuseu, proposta por Georges-Henri
Rivière, foi adotada em 1971, na Nona Conferência do Conselho
Internacional de Museus, nestes termos: “o ecomuseu é um museu 71. Hugues de Varine, Nouvelles Muséologies, Macon, Editions
aberto e interdisciplinar, que exibe o homem no tempo e no espaço, W./M.N.E.S., 1986.
em seu ambiente natural e cultural, convidando toda a população 72. Ver o manifesto de Terrain, a revista da Missão do Patrimônio
a participar de seu próprio desenvolvimento por intermédio de di- etnológico do Ministério da Cultura; Fleury (E.), “Avant-propos”,
versos meios de expressão baseados essencialmente na realidade dos Terrain, nº 11, 1988, pp. 5-7. Um balanço dessa etnologia é forne-
sítios, dos edifícios, dos objetos, das coisas reais mais falantes que as cido por Martine Segalen (sob a direção de), L’autre et le semblable,
palavras ou que as imagens que invadem nossa vida”. Paris, Presses du CNRS, 1989.
comandadas simultaneamente pela Missão A categoria dos “Museus da Sociedade”
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
história local. Hugues de Varine, um dos explícita dos habitantes. Esses Museus da
P
a c i o n a l
de museus franceses: a rudeza das discussões Missão ao lado da Diretoria do Patrimônio,
político-administrativas fica ligada tanto a uma propriamente em três ou duas dimensões,
competição pelos recursos quanto a lógicas permanecendo como o principal atributo
n
R t í s t i c o
institucionais contraditórias79. dos museus. Entretanto, o Conselho reuniu
em sua composição todos os atores da cadeia
a
a
a p o s ta d o i n v e n t á r i o patrimonial, com as diferentes diretorias
e
d o pat r i m ô n i o i m at e r i a l do ministério interessadas na música,
i s t ó R i c o
dança, espetáculos ao vivo, arquivos etc. e,
Após o decreto de 2006, a Missão do evidentemente, em museus”82.
H
Patrimônio Etnológica, depois transformada Tratava-se de investigar a identidade em
a t R i m ô n i o
em Missão de Etnologia, teve o objetivo geral e sua transmissão, mas sem o cuidado
D o m i n i q u e Po u l o t
de “estudar e promover, junto com outras de um inventário, nem de conservação83. Ao
P
instâncias competentes, diversos aspectos contrário, dois representantes eminentes da
d o
dos patrimônios material e imaterial que antropologia francesa insistiam, nesse caso,
e v i s t a
interessam à etnologia através do território no imperativo de assegurar que os objetos
estudados (festas, práticas, manifestações etc.)
R
nacional ou que dizem respeito aos campos
de ação da Diretoria, notadamente os não fossem “mais tratados como sobreviventes
territórios e a arquitetura”. A primeira de fatos antigos que foram degenerados, mas
Missão, fundada após o relatório “A que, pelo contrário, fossem tratados como a
Etnologia da França. Necessidades e Projetos”, expressão contemporânea de representações
apresentado por Redjem Benzaïd, Inspetor- conflituais das identidades [... ] e dos grupos
Geral de Finanças, em 197980, já considerava sociais de que participavam”84. A tarefa do
centro de pesquisas ligado ao CNRS, que 129
todos os objetos da futura convenção com
um título emblemático, como provam os
pedidos de oferta regulares81, publicados na
82. Em 1980, foram criados dois organismos distintos, em nível
revista Terrain. Daniel Fabre acreditou assim ministerial: o Conselho do Patrimônio Etnológico e a Missão
do Patrimônio Etnológico. Ambos substituindo a Diretoria de
que o Conselho do Patrimônio Etnológico Arquitetura e Patrimônio, com a missão de “recensear, estudar,
proteger, conservar e divulgar o patrimônio arqueológico, arqui-
do Ministério da Cultura, criado em 1980, tetônico, urbano, etnológico, fotográfico e das riquezas artísticas
da França”. O Conselho do Patrimônio Etnológico, formado por
teve, desde a origem, o cuidado de defender quatro anos por representantes do governo e especialistas, era “a
os bens “imateriais”, caracterizando os instância científica que definia, dentro do ministério encarregado
pela cultura, as orientações de uma política nacional de etnologia
modos de vida, e as formas de pensamento e da França”. A Missão do Patrimônio Etnológico era ser o órgão
de execução, composto por um grupo de funcionários centrais e
“etnólogos regionais” ou “conselheiros de etnologia”, em princí-
pio no número de catorze, pertencentes às Diretorias Regionais de
Assuntos Culturais.
79. Ver em outro campo Nathalie Heinich, “La collecte du 83. Sylvie Grenet, “Problématiques et enjeux du patrimoine
contemporain comme enjeu professionnel” [“A coleta do culturel immatériel au Ministère de la culture”, Patrimoine culturel
contemporâneo como desafio profissional”], Bulletin du Musée immatériel et transmission la polyphonie corse traditionnelle peut-elle
basque [Boletim do museu Basco] (2012): 56-60. disparaître? Centre des musiques traditionnelles corses, 22 e 23 de
80. Rapport sur l’ethnologie de la France. Besoins et projets. op. cit. junho de 2006, Ajaccio.
81. A Terrain foi lançada em 1983, e a coleção “Ethnologie de la 84. Jean Cuisenier et Martine Segalen, Ethnologie de la France,
France” foi iniciada no ano seguinte, sob a forma de duas séries. Paris, PUF, 1986, p. 87.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
130
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Aurelio Fabian.
Acervo: Iphan/
Feira de Caruaru, PE
Artesanato tradicional da
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
131
desafio mUseológico
uma perspectiva paralela: analisar o objeto do e mUseográfico
a c i o n a l
a c i o n a l
de “civilização”, e não apenas de “cultura nos Museus da Sociedade. Tratava-se de
popular”88. Ele resumiu o projeto nestes introduzir o visitante à prática cotidiana
termos: “Diante dos movimentos potentes
n
do etnólogo em sua coleta de informações,
R t í s t i c o
de desistências de identidade e comunitárias por meio de entrevistas e filmes. O novo
que caracterizam o mundo contemporâneo, museu queria aparecer na condição de
a
torna-se indispensável criar locais de herdeiro da tradição das ATP, de forma que
e
encontro e abertura. Diante dos muros ele influencia ainda hoje os estabelecimentos
i s t ó R i c o
que são levantados, das incompreensões da região. Mas essa declaração de intenção
que se acumulam e das rejeições que são nunca foi completamente condenada. Como
H
preparadas, torna-se indispensável restabelecer
a t R i m ô n i o
escreveu, nesse caso, Christian Bromberger,
as pontes entre as culturas europeia e “o MuCEM mistura as fronteiras e não
D o m i n i q u e Po u l o t
mediterrânea […]. A criação do MuCEM corresponde a nenhuma entidade política
P
traduz preferencialmente a vontade de reatar estabelecida: nem Marselha, nem Provença,
d o
em vez de se enclausurar, de escolher trocar nem França, nem Europa. O projeto não
e v i s t a
e compartilhar em vez de rejeitar o outro, pretende, em suas melhores bases, apresentar
de criar um grande lugar de encontro e
R
sucessivamente ares culturais, mas (…),
meditação entre as culturas em Marselha”. preferencialmente, reforçar identidades e
Portanto, o Museu das Civilizações mudar como se pensam as convergências,
da Europa e do Mediterrâneo (MuCEM) os parentescos e as diferenças. Esse
se interessava pelas civilizações da Europa estabelecimento, onde não se questionaria
e do Mediterrâneo, da Idade Média até nem a si mesmo, nem aos outros, mas a
a época contemporânea, apoiando-se no
si mesmo e aos outros em conjunto, suas
133
conjunto das ciências sociais, com a etnologia
afinidades, seus atritos e seus conflitos, não se
permanecendo como disciplina central. O
sujeita às dimensões habituais de um museu,
programa museográfico se pautava em um
podendo gerar incômodo”89.
questionamento reduzido para cinco temas,
Durante o ano de 2008, Stéphane
com estes sendo renovados a cada cinco
Martin, presidente do Museu do Cais
anos: “O paraíso”, “A água”, “A cidade”,
“O caminho” e “Masculino e feminino”. 89. Christian Bromberger, membro do Conselho Científico do
Na espera de sua realização definitiva, o MuCEM, a propósito de seu projeto científico, em “D’un mu-
sée… l’autre. Réflexions d’un observateur participant”, etnográ-
MuCEM realizou uma série de exposições fica, novembro de 2007, 11 (2), pp. 407-420: “não está certo
em qual estágio estaremos se a configuração escolhida for a mais
temporárias que definiam notadamente a pertinente e a mais convincente”. “Falta considerar a deslocaliza-
ção e a transformação do MNATP em termos de continuidade ou
ambição de sua campanha de coleta. Uma ruptura? A área coberta pelo museu também deveria ser vasta e se
estender da Escandinávia ao Saara, de Portugal ao Irã e à Rússia?
Se a conservação das coleções do MNATP é uma prioridade na-
88. Michel Colardelle, Le Musée et le Centre Interdisciplinaire cional, ele deve ocupar um local preeminente no futuro museu
d’études des civilisations de l’Europe et de la Méditerranée, Étude focado no presente, sem negligenciar seu fundo histórico e em um
préalable pour un projet de “délocalisation” du MNATP-CEF de espaço que se situe bem longe na França rural? Sem dúvida, falta
Paris à Marseille. Et Michel Colardelle, Réinventer un musée, considerar dois sítios, na condição de dois projetos distintos, cada
RMN, 2002 um marcado por seu tempo.”
Branly, recebeu a missão de conduzir uma entre uma museologia de colaboração com as
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
povos mediterrâneos” em Marselha – o que e uma museologia crítica enraizada, por sua
e
tradicional e funcionaria como uma cidade das possíveis explicações das vicissitudes do
P
com vocação dupla, nacional e internacional, MuCEM seria que a reorganização de uma
d o
dedicada a questionar as relações que unem instituição prestigiosa e central não podia
e v i s t a
a Europa aos países mediterrâneos, por tomar a forma de um museu crítico na região
R
a c i o n a l
disponíveis em vários dossiês temáticos. O estatal. Uma transformação emblemática
segundo inventário afirmava, segundo o ou sentimental do patrimônio imaterial
n
propósito ministerial, estar “mais próximo afastaria a França do programa científico
r t í s t i c o
do espírito da Convenção”, que “visava a que representava a afirmação do patrimônio
reunir as práticas vivas, em colaboração com etnológico durante a década de 1980. Uma
a
a ajuda das comunidades, dos grupos e dos primeira aposta é a mudança ou não das
e
i s t ó r i c o
indivíduos”. Ele teve início em março de normas do patrimônio, considerando o
2008 e se apoiou nas ferramentas utilizadas
gerenciamento da disciplina. Uma segunda
para o inventário dos recursos etnológicos
H
aposta é a eventual desapropriação das
a t r i M ô n i o
do patrimônio imaterial (IREPI) da
comunidades patrimoniais precisamente para
Universidade Laval de Quebec.
D o m i n i q u e Po u l o t
o benefício do etnólogo94.
Portanto, as fragilidades da tentativa
P
d o
patrimonial francesa aplicada ao imaterial 94. Um exemplo, o do Companheirismo, foi desenvolvido por
e v i s t a
ficam evidentes. Uma política de patrimônio Nicolas Adell em “Polyphony vs. Monograph: The Problem of
Participation in a French ICH Dossier”, Nicolas Adell, Regina F.
imaterial que passa da postura documental Bendix et alii ed. Between Imagined Communities and Communities
r
of Practice Participation, Territory and the Making of Heritage, Göt-
para a postura participativa, do inventário tingen Studies in Cultural Property, Volume 8, 2015, p. 237 sqq.
135
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
136
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Flávio de Lemos Carsalade
a c i o n a l
a preservação do patrimônio como
n
constrUção cUltUral
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A noção de patrimônio cultural visão de mUndo:
contemporânea é muito mais ampla do princípios correntes de
que aquela que se fazia há poucas décadas, p r e s e r va ç ã o
P
quando ela se estabelecia apenas sobre os
d o
e v i s t a
pilares da história e da arte, época em que Ao analisarmos a história do restauro,
a excepcionalidade artística ainda tutelava ou seja, da intervenção consciente em
r
o reconhecimento histórico. Os tempos contextos materiais históricos reconhecidos
mudaram, mas as raízes de formação do como documentos importantes para a
pensamento patrimonial ainda definem com humanidade, temos que seus primórdios
bastante intensidade o tratamento que é dado como “ciência” remontam ao século
aos bens patrimoniais. A abordagem que se XIX, período marcado pela maioria dos
pretende fazer aqui é, antes, uma maneira historiadores como fundante, a partir das
de investigar as diversas faces do conceito de diferenças de pensamento entre Viollet-le- 137
patrimônio e as consequências que elas têm Duc e Ruskin. Sua consolidação como campo
nas estratégias de preservação, evitando-se de conhecimento se deu ao longo do século
mascará-las como se houvesse uma unidade XX, por meio de sucessivas contribuições de
de pensamento supostamente estabelecida teóricos e das “cartas internacionais”, as quais
pelas “cartas internacionais” ou que certas funcionaram como pactos procedimentais,
tensões, como, por exemplo, a opção entre mas são, também, e talvez principalmente,
instância estética ou instância histórica, já recomendações técnicas.
tivessem sido superadas pela história do A consolidação moderna de uma
restauro. consistente “teoria da restauração” foi
realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-
1988), a partir das contribuições sobre o
tema que já vinham sendo debatidas na
Europa desde o século XIX. A sua teoria Brasília
Acervo: Copedoc/Iphan/
se estabeleceu sobre os dois pilares acima Marcel Gautherot.
citados, a história e a arte, levando-o a imagem e matéria. A primeira direção
A preser vação do patrimônio como construção cultural
discorrer sobre uma instância histórica aponta para três paradigmas, quais sejam
a c i o n a l
e uma instância artística aplicáveis aos o objetivismo histórico (a matéria como prova
objetos a serem restaurados. Dois conceitos inequívoca do passado), a imanência da
fundamentais para o entendimento arte (a imagem dotada de uma aura única
n
R t í s t i c o
bens a serem preservados, desconhecendo que visão aponta para certa confusão do que
toda ela foi estabelecida apenas com relação seja a natureza da arquitetura – arquitetura
H
às obras de arte, hoje apenas uma parcela de aqui entendida de forma ampla como todo
a t R i m ô n i o
instância histórica (na maior parte das vezes, cidade e o edifício, se é que é possível separá-
d o
relacionada à matéria) e artística (na teoria los assim. Passemos a examinar esses pontos
e v i s t a
também uma separação entre imagem e O objetivismo histórico pode ser abordado
matéria, o que muitas vezes aponta para uma sob dois ângulos. O primeiro diz respeito
atitude simplista que reduz o trabalho de à epistemologia da própria disciplina da
restauro a mera adaptação da matéria à obra de história; e o segundo, ao par autenticidade/
arte em sua exigência formal, desconhecendo verdade, que documentaria inequivocamente
envolventes da memória e da cultura. a historiografia.
É claro que as teorias da restauração são Quanto às questões epistemológicas,
138
profundamente marcadas pelas correntes embora a história contemporânea questione
filosóficas e diferentes visões de mundo que a ideia “objetiva” de verdade histórica, essa
marcaram o período do seu desenvolvimento, noção está de tal modo arraigada no senso
especialmente o positivismo do século XIX comum e na patrimonialidade “agregada” aos
e o paradigma da infalibilidade da ciência objetos, que se confunde com a impossível
que dominou o século XX. Ao longo da busca de recuperar os fatos passados como
história do restauro, conviveram também realmente aconteceram, contrariando a
outras correntes filosóficas idealistas ou constatação de que o discurso histórico é
materialistas. Não nos aprofundaremos essencialmente dedutivo e as suas explicações
muito na história da filosofia – o que seria são antes “avaliações” que “demonstrações”.
conveniente, mas extenso demais para os Por um lado, é impossível uma reconstrução
limites deste artigo. Parece-nos que duas integral dos fatos exatamente como ocorreram,
direções de visão têm tido influência decisiva pois, na realidade, a história agrupa fatos
na história do restauro, a partir das distinções em função do método e do historiador,
entre instância histórica e instância artística, sendo, portanto, por um lado, extremamente
influenciada pelo momento em que é escrita, O ponto de vista da imanência
a c i o n a l
“documentariam” objetivamente os fatos provida de uma “aura” ou de uma expressão
podem ter sido manipuladas pelo poder metafísica que automaticamente se revelaria
(documentos “oficiais”) ou pela opinião
n
à humanidade com toda a expressividade
R t í s t i c o
(fontes jornalísticas) ou ainda pelo filtro do nela contida, como uma “epifania”, segundo
narrador (indeterminação da memória). os dizeres de Cesare Brandi. Sem querer
a
Quanto às questões relacionadas ao par desmerecer a clara expressividade da obra
e
autenticidade/verdade – temas que por si só de arte e a sua consistência própria ou a
i s t ó R i c o
ensejaram congressos e cartas internacionais sua coerência de totalidade, devemos nos
–, podemos sinteticamente dizer que, muitas lembrar, no entanto, de que as questões de
H
vezes, esses conceitos também partem
a t R i m ô n i o
restauração se aplicam sobre a recuperação da
P
também ele não fosse sujeito a manipulações deterioração, a sua importância para a cultura
d o
e desvios e sobre os quais só temos acesso dos diferentes grupos sociais em tempos
e v i s t a
a certas partes de sua própria história. diversos (aliás, como já dizia Riegl em 19031),
R
Assim, temos que a prática tem muitas vezes a legibilidade da obra em função do deterioro
colocado a sua atenção mais no objeto de e das diferenças culturais e das formas de
estudo e esquecido do sujeito que o estuda, legibilidade desejáveis, diferentes formas de
como se a “verdade” ou “autenticidade” de tratamento de lacunas, isso tudo sem falar
um documento ou de um patrimônio não das vertentes arquiteturais, em que esses
dependesse fundamentalmente da interação problemas se mostram ainda mais complexos,
entre o que é observado e quem o observa. conforme veremos adiante.
139
Qualquer que seja a sua forma, no entanto, O ponto de vista da estabilidade da
o documento antigo constitui um acervo cultura trata a cultura, a responsável pela
patrimonial, posto que é herança e tem sua identidade dos povos, como se fosse imutável
origem em um tempo que não volta mais, e cuja perda levaria ao deterioro de uma
mas, independentemente de seu valor de determinada civilização. Também aqui se
“verdade”, ele é objeto do passado, com confundem conceitos. Se, por um lado,
potencial próprio de expressão. Isso não quer é clara a função identitária da cultura e a
dizer, no entanto, que ele é certamente o importância da preservação de seus valores
documento comprobatório da história e nem para a coesão dos povos, por outro lado, isso
que ele é “original” de um determinado fato não significa que a cultura seja imutável e que
histórico ou de um único momento específico a identidade seja fixa. Estamos submetidos
de criação: ele deve ser absolutamente a processos de transformação de crença e
relativizado como sobrevivente do passado,
mas sem a aura de documento inconteste de 1. RIEGL, Alois. El culto moderno a los monumentos: caracteres y
uma história “real”. origen. Madrid: Visor, 1987.
valores, tanto como indivíduos quanto como arquitetura tem levado a distorções, à criação
A preser vação do patrimônio como construção cultural
grupos, e uma análise, ainda que breve, sobre de híbridos descaracterizados e até mesmo
a c i o n a l
a um período histórico mais largo, quando adotados para as artes visuais, e, embora se
e
documental.
a t R i m ô n i o
O estudo dos paradoxos que a outras artes visuais, podemos dizer que a
problemática do restauro traz consigo e do arquitetura é uma arte que se faz em função
P
seu desenvolvimento histórico, bem como a do uso e é feita para servir e materializar as
d o
– a própria mistura de três vertentes tão essa propriedade. Tanto o edifício quanto
diferentes já se apresenta muito complicada a cidade e a paisagem estão em constante
–, nos mostra que “patrimônio” é um transformação, diferentemente de um quadro
conceito difuso, relativo e circunstancial e
ou de uma escultura.
que a “patrimonialidade” não está apenas na
matéria, mas também depende de quem a
a crítica aos princípios
define e nos valores em que crê – sua visão de
140 d e r e s ta U r o
mundo, portanto.
Quando se discute a natureza da
Alguns pontos críticos dessa visão de
arquitetura sob esse arcabouço paradigmático,
mundo aplicada à intervenção/restauro da
os problemas se tornam ainda mais
arquitetura são claramente evidentes:
complexos. Profundamente influenciadas
pela noção de restauro da obra de arte, as
O fenômeno artístico é um “acontecimento”
questões de restauro arquitetônico foram que envolve tanto o objeto artístico como seu
trabalhadas como se a arquitetura fosse uma fruidor, e tanto um como o outro são sempre
arte visual e desde um ponto de vista relativo outros: o primeiro pela ação do tempo e das
a um conceito de integridade visual, de que intervenções sobre ele realizadas, o último
a obra seria um todo fechado do qual nada pelas diferenças de maturidade e bagagem
se poderia retirar ou acrescentar – para a pessoal ou pelas transformações sociais e
sobrevivência dos artefatos arquitetônicos, culturais;
seria uma tarefa impossível. A aplicação A história como “pura” é uma concepção
dos métodos de restauro da obra de arte na ilusória de que as coisas podem permanecer
inalteradas. Isso se revela com muita clareza ou seja, quando tentamos entender o bem
a c i o n a l
suas peças deterioradas substituídas, o contexto no qual nasceu. Esse é o perigo que
que, no limite, levaria a uma mudança conduz ao embalsamento e à mumificação do
n
total da matéria e ao questionamento da bem, e que também conduz à sua apropriação
R t í s t i c o
“autenticidade” do monumento; excessivamente setorial (geralmente pela
indústria do turismo) e que, ao tentar lhe
O patrimônio como sendo eternamente
a
recuperar a “verdade” do significado, acaba
e
ameaçado (conforme já nos mostrou José
i s t ó R i c o
por lhe retirar quase toda ela;
Reginaldo Santos Gonçalves2) e com
ele ameaçadas a nossa identidade e a O perigo psicológico acontece quando,
autenticidade do bem, uma preocupação na preservação, procuramos interpretar a
H
a t R i m ô n i o
também com a conspurcação do documento, intenção do autor ou o espírito da época em
P
A impossibilidade da conservação da imagem O perigo objetivista4 acontece quando se
d o
e v i s t a
e da história, como se as coisas pudessem procura derivar o sentido do bem a ser
ser conservadas imutáveis, o que remete ao interpretado a partir apenas dele próprio,
R
paradoxo da redoma, exemplificado pela “tornando-o independente do autor, do contexto
conservação dos documentos em papel, caso e do intérprete”;
em que o máximo de preservação ocorreria
O perigo relativista, próximo ao historicista,
na completa reclusão do documento à luz, o
acontece quando obliteramos nosso modo
que, é claro, lhe retiraria toda a sua função
próprio de interpretação pela tentação de
social e cultural.
relativizar sempre a obra ao seu contexto
original. Por esse perigo substituímos a
fruição/intervenção do presente pelo excesso 141
A partir dessas constatações, temos que
alguns perigos se apresentam à compreensão/ de zelo pelo suposto documento;
2. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os O perigo positivista acontece quando se
discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ/Iphan, 1996. acredita poder trabalhar o bem apenas pelo
3. Os cinco primeiros perigos foram trabalhados a partir daqueles método científico, sobre supostas bases
apresentados por Carlos Antônio Leite Brandão (BRANDÃO,
Carlos Antônio Leite. Introdução à hermenêutica da arte e da
arquitetura. In: Topos – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo 4. BRANDÃO chama a este perigo de “positivista”, mas preferi
Horizonte, v. 1, nº 1, jul.-dez. 1999, pp. 115 e 116). A eles, reservar este termo para as posturas esteticistas e filológicas do
acrescentamos os últimos três. limiar dos séculos XIX e XX.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
142
Flávio de Lemos Carsalade A preser vação do patrimônio como construção cultural
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
em Salvador
Igreja de São Francisco,
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
143
respectivamente, os centros da expressão de arte, um pouco como fez Aldo Rossi, que
artística ou da historicidade do objeto;
a entendia como artefato cultural sempre
a
O perigo do senso comum aparece na suposta em transformação. Para ele, a cidade pode
e
“verdade” superficial assimilada coletivamente ser uma obra de arte, pois confere sentido
i s t ó R i c o
nem a partir de algo que seria imanente um lado, estimulam certos fatos urbanos
e v i s t a
ainda sobre o esforço analítico, mas sim da outro, ensejam esforços de preservação desses
consciência da filiação da obra a nosso mundo. mesmos elementos referenciais. A cidade
A crítica brasileira tem estado atenta a essas seria, então, função do espaço e do tempo, o
questões e, em alguns momentos, procura resultado da dialética entre permanência e
substituir a visão imobilista por uma visão transformação dentro do jogo da história.
mais aberta, mas há, a nosso ver, ainda muito A terceira crítica importante seria àquela
a caminhar e muito a se buscar. Podemos da recomposição da integridade da obra
144
apontar algumas direções como propostas de de arte, o que, tantas vezes, tem levado a
abertura de caminhos para a reflexão. uma conservação estilística ou mesmo a
Em primeiro lugar, podemos trazer à tona uma inadequação à vida moderna, cujo
a crítica da dimensão material desapegada custo é, muitas vezes, a própria morte do
da sua dimensão imaterial, baseada na bem ou sua deterioração por inservível
constatação que fizemos anteriormente da ou por perda de significado. Henri-Pierre
indissociabilidade entre matéria e sujeito. Jeudy6 nos tem alertado que nossas práticas,
Parece-nos que não há como atuar no quanto à gestão patrimonial, levam-nos a
material sem atuar no imaterial, e que as uma uniformização dos bens, resultando
transformações do bem necessariamente
em museificação (no sentido de perda
não concorrem para a perda de seu
significado, mas, muitas vezes, o reforçam. 5. SANTANA, Mariely Cabral de. Alma e festa de uma cidade:
a devoção e a construção da Colina do Bonfim. Dissertação
A comprovação dessa assertiva pode ser (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal
encontrada na Igreja de Nosso Senhor da Bahia. Salvador, 2003.
6. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa
do Bonfim, em Salvador. As sucessivas da Palavra, 2005.
de presença na vida atual e isolamento) A questão da preservação se centra agora,
a c i o n a l
simbólico. Por outro lado, há uma tendência seja, como manejar essa transformação de
de “magnificação” e supervalorização de maneira que não se rompa a delicada tessitura
tudo que é considerado patrimônio, levando entre a tradição e a contemporaneidade,
n
R t í s t i c o
a distorções de significado e de tratamento pois, ao intervir no bem patrimonial, nós
físico dos bens, muitas vezes dotando-os de o estamos modificando, sempre. Afinal,
a
atributos e presença que não são condizentes pela tradição, ele já nos chega alterado,
e
com sua forma ou história. Tudo isso, ainda pela cultura ele, nos chega tematizado e,
i s t ó R i c o
segundo Jeudy, levaria a um “totalitarismo pelo tempo, com sua significação “original”
patrimonial” baseado na aniquilação da perdida.
H
alteridade ao tentar assimilá-la e reinseri-la, Assim, para examinar com consciência
a t R i m ô n i o
P
valores e transformam-se, também, é claro, restauro está na evanescência de seu objeto de
d o
as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro?
e v i s t a
parece que o que se preserva, na realidade, O que se restaura? A palavra restaurar, de
R
é a identidade em transformação, ou seja, a origem latina, traz consigo a ideia de recobrar,
preservação não está na capacidade do bem de reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que
permanecer como está, mas na sua capacidade vimos até agora, estas são ações impossíveis
de mudar junto com as mudanças socioculturais. com relação ao bem patrimonial, posto
Essa concepção se choca com a acepção de que, ao intervirmos na sua matéria, seja na
imutabilidade do bem a ser preservado, pois sua estrutura, seja na sua aparência, não o
também ele, como a tradição e a cultura, estamos recuperando, mas modificando.
145
está em constante transformação. Não Além do mais, preservar e restaurar, apesar
há, portanto, como buscar a essência do de serem conceitos interligados, não são
objeto de restauro em uma ideia imutável exatamente ações associadas e nem sempre
de “objeto” que sobreviveu à história, pois complementares, pois restaurar significa
ele está inserido na história da vida, que se intervir em um bem, ao passo que preservar
caracteriza pela transformação. Não há esse significaria apenas, em princípio, a sua
objeto a-histórico “essencial” – além do que, transmissão através do tempo. A interligação
isso seria uma contradição com seu valor biunívoca entre as práticas de preservação
como “patrimônio histórico”, conferido e restauração, portanto, só teria sentido se
exatamente por estar inserido na história. fosse indispensável a sua recuperação para
Mesmo a ideia de uma transmissão “neutra”, a transmissão do bem – e o seu vigor no
independente da cultura e da tradição, não presente –, o que já vimos não ser também
se sustenta, ainda mais que sabemos que as sempre necessário. A ação de restaurar,
palavras “tradição” e “traição” têm a mesma portanto, se aplica apenas quando há um
raiz etimológica. objetivo precípuo de superar a destruição
causada na transmissão daquele bem que, O bem “intocado”, pois, se o não tocarmos,
A preser vação do patrimônio como construção cultural
sem a ação do restauro, perderia totalmente ele se degrada e, ao nele tocarmos, acabamos
por modificá-lo;
a c i o n a l
jogo do presente por meio da recuperação A forma “congelada” do bem, posto que é
de suas próprias perdas e é, portanto, sempre impossível parar a ação do tempo e de cada
a
recriação que se faz sobre a matéria que Uma suposta “verdade” histórica, posto que
conseguiu sobreviver ao tempo. esta não existe objetivamente;
Essas premissas poderiam nos dar a ilusão
H
a c i o n a l
desenvolvimento recente, apontam para
sua vivência no presente;
a solução de problemas típicos não só da
A abertura de significados que a obra de área ambiental, mas também, com muita
n
R t í s t i c o
arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial pertinência, da área cultural. Fazem parte
não dotado de caráter artístico) “fixou” de seus preceitos o respeito à preexistência,
na matéria e no lugar, e não apenas pelas
a
o encontro das agendas social, patrimonial,
e
características objetivas (formais e físicas) do
econômica e ambiental, o reconhecimento
i s t ó R i c o
objeto, portanto as suas dimensões material e
imaterial;
de que não se busca um estado idealizado
e imutável, mas que, na realidade, a
H
A identidade em transformação: a capacidade
a t R i m ô n i o
sustentabilidade é um processo, diz respeito
de mudança do bem, mantendo o equilíbrio
P
legitimação social dos atos de conservação.
d o
Essas duas possibilidades de investigação
e v i s t a
investigação de saídas podem ainda ser fundamentadas pelos
R
estudos da intersubjetividade e pelo aporte da
A saída para uma compreensão hermenêutica. A análise da intersubjetividade
contemporânea da preservação passa, a nosso nos faz reconhecer que é necessário fazer
ver, por uma profunda e franca análise dos circular as informações e formar uma
métodos e princípios empregados, bem sociedade consciente, o que pressupõe
como por uma capacidade de despojamento um entendimento amplo da realidade e o
quanto a práticas bastante sedimentadas e compartilhamento de decisões, entendendo
147
bastante arraigadas. Se não está consolidado, que a patrimonialidade não está apenas
até o momento, um modelo alternativo no objeto, mas é também um ato social, o
que possa substituir as práticas vigentes, que aponta para uma ética de intervenções
pelo menos é possível fazer a sua crítica e baseada na negociação, equilíbrio, discussão,
estabelecer possíveis direções a investigar. diálogo e consensos.
Conjuntamente com o desenvolvimento A contribuição da hermenêutica
dessa chave conceitual, há que se desenvolver de Gadamer8, de base fenomenológica,
a compreensão de que a arquitetura não também pode ser uma importante referência
é uma arte visual, mas tem um estatuto teórica. Essa base fenomenológica nos faz
próprio a ser considerado, que influencia as compreender as relações que estabelecemos
práticas de intervenção e, como a paisagem, com o bem patrimonial, associadas ao
profundamente relacionado com as práticas conceito de cura. A cura é um conceito de
sociais.
Outra possibilidade de investigação 8. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços funda-
é o aporte, para a área de patrimônio, mentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
148
Flávio de Lemos Carsalade A preser vação do patrimônio como construção cultural
Heidegger9 que pode ser entendido, de Quanto ao terceiro ponto, Gadamer
a c i o n a l
ser na sua existencialidade, ou seja, na lida como sendo um tipo de compreensão que se
cotidiana do homem com as coisas, com as realiza a partir do próprio centro da relação
outras pessoas, com o mundo, dentro da vida. entre o fruidor e a obra de arte – na “verdade”
n
R t í s t i c o
Outro ponto importante relacionado à que aí, na relação, se estabelece. Para ele, a
questão da cura – e que se dá em decorrência verdade da arte não estaria na referência à
a
da ilusão de perenidade – é que o objeto realidade, como resultado de sua imitação
e
patrimonial é a imagem congelada do ou transformação, mas no mundo que
i s t ó R i c o
passado. Como imagem, ele teria, portanto, ela própria institui, que cria a sua própria
imanência própria que o desvincularia do verdade quando a nós se apresenta.
H
fruidor, possuindo em si as propriedades Podemos concluir, portanto, entendendo
a t R i m ô n i o
P
de interação reflexiva com o fruidor, seja pela preexistência, mas sem magnificações
d o
consciência histórica ou artística, seja como artificiais, reconhecendo valores urbanos e
e v i s t a
estímulo à sua compreensão pessoal. sociais do espaço e suas alterações sustentáveis
Em segundo lugar, a hermenêutica tanto da matéria quanto dos significados,
R
de Gadamer reforça a importância da tanto mais estaremos preservando nossos
relatividade do pensamento presente sítios urbanos não só naquilo que eles têm de
na consciência histórica. Para Gadamer, o peculiar, mas também na sua conexão com
homem moderno tem o privilégio de “ter seus cidadãos e com a personalidade própria
consciência da historicidade de todo presente de cada lugar.
e da relatividade de toda opinião (...) e ter
senso histórico significa pensar expressamente n o ta 149
interpretação hermenêutica.
150
Alexandre Alves Costa Quando a luz se encontra com o silêncio
Alexandre Alves Costa
a c i o n a l
q Uando
n
a lUz se encontra com o silêncio
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
introdUção Bem ou mal, têm sido os arquitetos
os agentes principais no tratamento e
Como ponto de partida, gostaríamos de transformação dos bens patrimoniais e a
P
contribuição fundamental que têm dado,
d o
afirmar que não consideramos a reabilitação
e v i s t a
como uma especialização ou ramo da parece nem aos próprios aproveitar, na
arquitetura, constituindo cada intervenção consolidação teórica e conceptual que se
r
uma obra de autor, única e irrepetível. impõe trazer à superfície.
Sendo hoje consensual que uma intervenção Bastará, pois, de discursos genéricos de
contemporânea, numa estrutura patrimonial, “boas intenções”, tantas vezes associados a
está obrigada a um atento escrutínio da uma atitude muito alargada de resistência à
história daquela estrutura, isso não implicará mudança e de desconforto perante ela: muitas
que abdiquemos de participar do seu vezes, o patrimônio é o álibi estruturante da
processo de transformação. É o edifício incompreensão da cidade contemporânea, 151
ou conjunto edificado que comanda; ele nas suas características formais, culturais e
é matriz de partida e de chegada, nunca vivenciais, pelos meios da cultura e da política.
podendo ser marginalizado, sempre presente A questão mais séria que se põe nesse
na nossa consciência. O nosso tema é, pois, a contexto é, talvez, a de saber até que ponto o
arquitetura. totalitarismo patrimonial não esconde uma
Temos defendido que, aos arquitetos, utopia ou uma demagogia da continuidade
sob o peso de discursos sobre o patrimônio, – da vida, da cidade, da memória – que
de tão distintos sentidos, tem faltado, nesse é, paradoxalmente, acompanhada pela
âmbito, uma clarificação disciplinar que liquidação quase sistemática da potência
só a eles compete. E temos respondido em evocativa dos restos do passado.
vários tribunais de opinião, com alguma Parece necessário desenvolver a
má consciência, quase sempre de maneira consciência popular patrimonial que passa,
Interior da Igreja Santa
delicadamente defensiva ou arrogantemente muito claramente, para além de outras Clara-a-Velha após a
intervenção
ofensiva. questões de natureza ética ou cultural, pela Acervo: Atelier 15.
consciência do valor do patrimônio como neste momento, da abertura urgente de um
Quando a luz se encontra com o silêncio
de congelar a construção do futuro pela que pode centrar-se na análise crítica de casos,
preservação de restos do passado, cujo no âmbito dos edifícios ou das áreas urbanas.
significado consiste, tantas vezes, apenas,
n
desenfreada e, menos ainda, com o sistema leitores estão forçosamente marcadas pelo
econômico que a favorece. sítio de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, e
H
a t R i m ô n i o
sempre reconstruída sobre sedimentos do como que pensar alto, neste pequeno texto a
passado. Defenderemos a memória sagrada que chamei, lembrando Louis Kahn, Quando
dos lugares, dando-lhes nova vida, tentando a luz se encontra com o silêncio.
evitar, com igual entusiasmo, a má qualidade
da arquitetura construída fora das áreas de Tendo atuado por meio do desenho,
proteção patrimonial. aceitando que ele se densificasse com a
152 A intervenção regeneradora da arquitetura informação até se transformar em projeto
que todos, cada vez mais, esperam, necessita, consistente e em construção, como acontece
contradições insolúveis entre o meu gosto otimismos filosóficos – aquelas ruines affreuses
burguês e o tormento da história que, foram o desmentido de qualquer tipo de
provavelmente, retomado, representa uma
n
nova cidade é a cidade geométrica, luminosa e por meio, sobretudo, do uso operativo, da
R
a c i o n a l
O seu valor de obra de arte, relevado
como eco da sua fundação desejada como
tal, dependerá de ações de transformação
n
R t í s t i c o
e apresentação que se movam entre a
consideração daquele desejo fundacional
a
e o nosso gosto contemporâneo que a
e
transportará, naturalmente, para o nosso
i s t ó R i c o
H
seu usufruto público, o tratamento da ruína
a t R i m ô n i o
obrigou a decisões projetuais de uma grande
delicadeza, no que diz respeito à libertação
P
do espaço da igreja de todos os elementos
d o
espúrios que prejudicavam a leitura do seu
e v i s t a
espaço, ao tratamento e hierarquização dos
R
pavimentos nas áreas em que estava perdida
Apesar da sua falta de utilidade, a ruína a sua integridade, ao sistema de acessos e
pode desempenhar o seu papel graças à mobilidade, à pormenorização, à coloração
imaginação que vê nela um símbolo de das argamassas etc. que, constituindo
acontecimentos do passado, investindo-a importantes aspectos do desenho do projeto,
de valores particulares. As ruínas tornam-se se pretenderam sempre muito pouco
ostensivos.
fontes para o conhecimento histórico que, 155
Como já uma vez escrevemos, foi nossa
por meio de um processo de pesquisa, extrai
posição de princípio que uma obra de
os dados relativos ao seu uso antigo, ao seu
arquitetura, por mais importante que seja
significado, aos seus artífices, à produção
do ponto de vista patrimonial, íntegra ou
artística do seu tempo ou dos seus tempos. A
arruinada, deve ser visitada livremente,
arqueologia e a história cumprem aqui o seu
sem imposição de percursos que obriguem
papel, encontrando e interpretando.
a visões parciais ou tenham implícitas
A sua conservação refere-se sobretudo às interpretações não verificáveis senão por
instituições que assumem a decisão política quem teve acesso a toda a informação.
de a recuperar ou restituir, para usufruto Importante é mesmo a dimensão dos
público do seu proprietário coletivo, que é a devaneios, formas de inscrição por meio
comunidade. da escrita deambulatória, labiríntica, em
A ruína de Santa Clara será, finalmente deriva: calcorrear, cartografar, como se
Ruínas do Claustro
e sobretudo, uma metáfora de caducidade numa terra por vir. Todos deveremos ser e da Igreja de Santa
Clara-a-Velha
e finitude, apresentada como um ambiente autores insubstituíveis de Santa Clara. E, Acervo: Atelier 15.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
156
Alexandre Alves Costa Quando a luz se encontra com o silêncio
Acervo: Atelier 15.
Interior da Igreja
após a intervenção
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
157
158
Alexandre Alves Costa Quando a luz se encontra com o silêncio
a c i o n a l
Conservação é, por isso, muito mais do
que consolidar; é e foi um projeto de uma
grande complexidade, em que a ruína foi
n
R t í s t i c o
preparada para uma participação ativa na
construção de uma paisagem contemporânea,
a
síntese que se deve em exclusivo à
e
competência disciplinar da arquitetura.
i s t ó R i c o
H
nova, de razoável dimensão, e esse parecia
a t R i m ô n i o
ser o grande desafio. Começamos por aí,
pensando, inicialmente, que o tratamento da
P
ruína seria mais ou menos pacífico, técnico,
d o
algo passivo.
e v i s t a
Sabíamos que o novo edifício viria a
constituir a marca de contemporaneidade mais
R
visível e queríamos assumir isso, sem competir
com o monumento, mas constituindo com ele
uma unidade significante.
Daí decorreu, simplesmente, o conceito:
tentativa de invenção de um lugar para
ver, emoldurando a paisagem, conferindo
protagonismo à ruína. 159
Alçado sul,
entrada do Museu
Alçado norte do Museu
Acervo: Atelier 15.
Mas talvez os olhares não se bastem
naqueles impostos limites e deles possam
nascer novos espaços e novas relações, novos
pontos de partida.
O olhar, do outro lado da solidão, no
seu desejo de liberdade, aspira sempre a
outros diferentes espaços, na matriz do
sistema de relações que vai estabelecendo. O
limite é, afinal, um limiar, e o convite é para
transgredir a fronteira.
A leitura daquele sistema e a sua
indispensável utilidade modelou o terreno,
alterou a topografia e, sobre a sua nova
conformação, estabeleceu caminhos, idas e
voltas, paragens, escondeu e abriu o olhar a
novas surpresas, dobrou esquinas, permitiu,
andando, leituras mais dinâmicas, como um
trilho para um travelling sobre pavimentos
com diferentes texturas e diferentes materiais,
correspondentes a diferentes significados.
A relação entre o presente e a herança
do passado foi sempre emblematizada pela
presença predominante da ruína. Foi a sua
vitalidade exclusivamente interpretativa,
subjetiva e antropológica e que torna
essencialmente cultural o discurso que sobre
ela se faz, que nos moveu, afinal. Vejo isso
Em conclusão, não temos, nem Cabeceira da Igreja
após a intervenção
agora, com clareza.
construímos, uma nova visão do passado que Vista parcial do alçado sul
Acervo: Atelier 15.
Esperamos ter deixado ao visitante a
contenha uma alternativa para o espaço. O
construção do seu próprio discurso, a sua
nosso pensamento foi sobre o presente, difuso
pessoal escolha de sentidos, porque e aberto, como a cidade contemporânea.
Esperamos, ainda, que a luz se encontre
a ruína pode evocar o passado glorioso e a
com o silêncio e traga a arquitetura à vida.
caducidade de todas as coisas e ser objeto de reflexão
histórico-filosófica; pode dar lugar a um sentimento
subtilmente crepuscular; pode ser uma ruína
referências
clamorosa, eloquente como uma massa obstrutiva ou CARENA, Carlos. Ruína/Restauro. In: Enciclopédia
pelo contrário, um efémero bastidor visual, um frio Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa de Moeda,
contraste, uma ironia irrisória (Carena, 1984). 1984. Vol. 1.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
162
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
Virgolino Fer reira Jorge
a c i o n a l
s alvagUarda dos bens Histórico - eclesiásticos
em p ortUgal
n
a
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i M ô n i o
O título simples deste breve escrito e diligências que visem, prioritariamente,
oculta uma dimensão substantiva de interesse a acautelar a sua genuinidade, limitando
histórico, artístico, teológico, político, social, a intervenção direta e retardando a ruína
P
técnico, científico e econômico multissecular (Jorge, 2005:17-36). Porque estamos a tratar
d o
e v i s t a
e uma tarefa objetiva e incomensurável de um tema do domínio eclesiástico, cabe
das estruturas eclesiásticas portuguesas. perguntar, desde já, qual foi a preocupação da
r
Na sua globalidade diversificada, trata- Igreja Portuguesa, no passado recente, com
se do patrimônio qualificado de valor a defesa do seu importantíssimo patrimônio
arquitetônico, arqueológico, documental e histórico-cultural. A questão relaciona-se
etnológico criado e enriquecido ao longo muito, evidentemente, com a problemática
da história humana, para satisfação cultual da lenta secularização e educação laicista
das comunidades cristãs. Salvaguardar estes da nossa sociedade. Mas que efeitos se
bens mobiliários ou imobiliários, tangíveis produzem no comportamento de uma 163
ou imateriais, inseparáveis de uma convicção comunidade cristã cuja igreja paroquial está
de fé, equivale à conservação da identidade deficientemente conservada? As comunidades
histórica da Igreja e da nossa memória religiosas, rurais ou urbanas, só sobrevivem
religiosa. Preservar este legado espiritual, caso se identifiquem com a sua igreja, vendo
produto da função evangelizadora e pastoral nessa presença física o depósito de uma
da Igreja, que vê nele um expoente autêntico fé inabalável e o testemunho exultante e
de culturas e tradições (evolução tecnológica, convicto da sua crença e da sua orientação
flutuações econômicas, influências culturais, moral. Foi assim que, no decurso e pelo
sistema social etc.), exprime também a concurso de muitos séculos, com entusiasmo,
precaução do patrimônio histórico nacional, generosidade, esforço árduo e idealismo
logo, do reforço da nossa existência ou intrépidos, se acumulou uma apreciável
identidade profunda e memória cultural. riqueza arquitetônica e de substância
No âmbito alargado da salvaguarda dos construída, de inspiração religiosa, que nos Azulejos portugueses
Acervo: Iphan/
bens culturais, incluem-se todas as ações foi sendo transmitida de geração para geração Caio Reisewitz.
de crentes. Por isso, as igrejas estão presentes ser utilizados como recurso e instrumento
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
nacional: da história da arte à história local exigente de uma nova pastoral e missão
e da história cultural à das mentalidades. evangelizadora, que respeite e responda às
A identidade portuguesa está, por transformações de coexistência emergentes
n
R t í s t i c o
conseguinte, fortemente marcada por uma de uma sociedade aberta e pluralista. Que
aglutinação espiritual assente numa cultura significado de identidade religiosa e de
a
dessa matriz cultural cristã. Esta herança o país e vê, com atenção e realismo, como se
patrimonial, determinada e amadurecida pela constroem “templos” gigantescos de evasão
H
verdadeira natureza e cultura, do nosso modo ditadura voraz contra o culto do passado
e v i s t a
Se é uma verdade triste que a Igreja e e de alarme social (progresso tirânico, sonho
a generalidade das paróquias já não têm do especulador e anátema do conservador).
capacidades financeiras suficientes para A silhueta recortada das nossas cidades
suportarem, sozinhas, a conservação do históricas, ainda fortemente desenhada por
seu precioso patrimônio artístico, e que a torres de igrejas e catedrais, engana, pois
responsabilidade constitucional do Estado a sociedade atual está muito laicizada e
deve ser exercida sem vacilações, é decisivo regida pela frieza despótica do materialismo
164
manter uma atitude dialogante e promover prático (sociedade “light”). O homo sapiens,
a valorização desse legado cultural religioso na arrogância exacerbada e preocupante do
junto da opinião pública. Ou seja, a Igreja seu bem-estar material imediato, perdeu
deverá realizar, no seu interior e no exterior, o sentido da cultura cristã e transformou-
um trabalho político esclarecido e persuasivo. se num homo speculans. Este processo de
Do ponto de vista interno, as instituições conversão hedonista, de razão secularizada
religiosas têm de sensibilizar mais pessoas e perniciosa, porque ditado pela ambição
para a atualidade e importância do tema e insaciável do lucro e da posse fáceis, amiúde
inevitabilidade da tarefa histórica, apelando sem moral nem licitude, exige da Igreja um
ao reconhecimento da sua dimensão moral debate amplo e de urgência inadiável, que
inerente e ao seu enquadramento político, transcenda as habituais considerações e meras
social e técnico (catequese do patrimônio). Os preocupações de substância econômica. Esses
bens culturais eclesiásticos, como documentos esforços requerem muita lucidez crítica,
históricos da Igreja, certificam a crença e a ousadia e confiança e são “particularmente
elevação humanas para Deus; logo, devem urgentes no momento histórico atual, quer
para contrariar os processos de secularização, um parceiro e um recurso indispensáveis
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
como de dispersão e profanação” (Cadernos para a defesa dos seus bens culturais. Sem
a c i o n a l
SPPC, 1996:27-28) que ameaçam a perda este reconhecimento de assimilação no
da memória religiosa e o devir espiritual da espírito da opinião pública, forte, distendido,
humanidade. Trata-se de inculcar consciência sincero e inalienável, nunca a sua salvaguarda
n
R t í s t i c o
histórica coletiva pela responsabilidade será um tema político-cultural e, portanto,
social, perante os dislates cometidos público. Comprova-o o fato conhecido de
a
contra a precariedade dos monumentos que a noção de salvaguarda dos monumentos
e
religiosos, cristãos ou não cristãos. E, históricos jamais alcançou tanto eco no seio
i s t ó R i c o
como onde está o perigo cresce também a da sociedade portuguesa como durante e após
proteção, o despertar da opinião pública o Ano Europeu do Patrimônio Arquitetônico,
H
para esse zelo e reconhecimento criará, não sobretudo entre 1975 e 1985. Nunca os
a t R i m ô n i o
somente manifestações de benevolência, de governos disponibilizaram tantas verbas para
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
participação e de corresponsabilidade, mas iniciativas e ações conjuntas de conservação
P
também a compreensão exigível para os meios e de valorização dos seus monumentos
d o
financeiros necessários com a sua defesa e históricos nem as sondagens consideraram
e v i s t a
recuperação (consciência do patrimônio). estas tarefas tão importantes e urgentes,
R
assumidas culturalmente. Desta apoteose
invulgar e fecundante e desta vaga de
responsibilidade sonoridade e de apelo popular do patrimônio,
t r i pa r t i d a : i g r e j a , sem precedentes e sustentada por vigorosos
e s ta d o e s o c i e d a d e movimentos culturais e intelectuais de ação
concertada, disse-se que o patrimônio esteve
A Igreja, o Estado e a sociedade civil, no em moda (culto do patrimônio)! A Igreja
165
âmbito específico das suas competências e deve, pois, e muito rapidamente, ancorar a
responsabilidades solidárias e subsidiárias, sua cultura e política cultural de salvaguarda
devem conjugar esforços e colaborar mais e promoção dos bens histórico-eclesiais
estreitamente na investigação, defesa, nas virtualidades deste estado de espírito
conservação e promoção dos bens culturais favorável, ou seja, desta nova consciência do
eclesiásticos. Efetivamente, trata-se de uma patrimônio, de grande consenso ideológico,
matéria vasta de interesse geral que não diz e nas sinergias públicas ainda prevalecentes.
respeito somente aos especialistas: ao público, Deve, ainda, fazer desse acervo um tema
exige-se sensibilidade e uma atitude positiva de atualidade, apelando aos seus valores
a favor da salvaguarda integrada do seu ente histórico-artísticos, socioculturais, científicos
histórico (dever de proteção); ao especialista, e religiosos. Deverá, por fim, apresentá-los
exige-se o reconhecimento e a garantia de maneira tão simples e argumentativa que
dessa necessidade de proteção e conservação a generalidade da opinião os aceitem com
eficazes, com ciência e consciência (saber pertinência, vantagem e interesse sociais.
conservar). A Igreja deverá ver na comunidade Enquanto não ganhar a vontade empatizada
e a interação efetiva da sociedade civil patrimônio passado corresponde a urgência
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
incapaz de assumir esta tarefa delicada e ao futuro, a fim de que não se interrompa
complexa de garantir um futuro ao seu esta sequência de autênticas tradições de
valioso patrimônio cultural, sem nostalgia uma geração a outra, ao serviço da fé e da
n
R t í s t i c o
bens culturais comuns sejam um referente entre o Estado Português e a Igreja Católica,
i s t ó R i c o
a compreensão e a articulação dialética dos eclesiástico, esta deve refletir e definir a sua
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
bens cultuais e culturais da Igreja e da sua posição sem dogmatismo nem ambiguidade,
P
surgirão como fator de identidade nacional propósito e os atos (agir em vez de reagir),
e v i s t a
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
as rivalidades e as desconfianças, mesmo maiores e de uma colaboração governamental
a c i o n a l
aparentemente justificadas, não são boas mais estreita e cuidada. Mas, para que o
conselheiras nem salvaguardam o patrimônio, Estado, como pessoa de bem, possa honrar
foram revistos ou revogadas as insuficiências e as suas obrigações e assumir os encargos
n
R t í s t i c o
os desajustamentos principais daquele quadro de conservação patrimonial eclesiástica
jurídico. Assim, a Lei nº 107/2001, de 8 de apropriados, terá de haver um entendimento
a
setembro, que estabelece as bases atuais da ideal entre a Igreja e a sociedade e entre as
e
política e do regime de proteção e valorização freguesias e os respectivos párocos. As decisões
i s t ó R i c o
do patrimônio cultural português, reconhece políticas devem apoiar-se no consenso
a especificidade da Igreja Católica, enquanto alargado dos cidadãos, o que não é fácil de
H
detentora de uma quota significativa dos bens alcançar diante de ideias ou objeções relativas
a t R i m ô n i o
que integram o acervo nacional (cerca de à Igreja clerical e a certos comportamentos
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
70%). Por outro lado, os pactos alcançados pouco eclesiais, entre a doutrina e a prática,
P
com a nova Concordata entre Portugal e a que condicionam a elaboração de leis afins
d o
Santa Sé, subscrita em 2004, aperfeiçoam e e a sua execução satisfatória (por exemplo,
e v i s t a
reforçam a mútua cooperação entre a Igreja além de outros, a queixa ou o conceito, ainda
R
e o Estado em áreas comuns da cultura, muito enraizados, de que a Igreja é rica e não
atendendo às realidades e necessidades necessita de apoios públicos).
hodiernas das duas instituições. O Estado Uma vez que nem todos os cidadãos
compromete-se, entre outros deveres, a contribuintes têm, rigorosamente, o mesmo
respeitar os espaços afetos ao culto público assentimento da igreja como casa do povo
da religião católica ou a outros fins religiosos de Deus, espaço de solidariedade e de união
e a promover e valorizar os bens culturais e local de culto sacralizado (sacramento do
167
eclesiásticos em igualdade de oportunidades Espírito), talvez a base do empenho possa
com os do patrimônio estatal. firmar-se na perspectiva comum da igreja
Se o país se assume como um estado também como monumento cultural, obra de
cultural, então a promoção da cultura e arte, elemento marcante da paisagem e lugar
da salvaguarda dos valores monumentais de memória. Ou seja, apelar aos seus valores
não deve ser simulada nem retórica; de culto e de cultura (cultu-r-alização), por
implica gestos espontâneos e imperativos e meio das suas funções litúrgicas, históricas
pressupõe atitudes coerentes e permanentes e arquitetônicas. Daí que, uma cidade ou
que exprimam e objetivem uma verdadeira uma paisagem sem igrejas seria um sítio
cultura do patrimônio. Os monumentos a-histórico, um nenhures da vida entre o
religiosos, como testemunhos espirituais da ontem e o amanhã.
humanidade, são bens culturais coletivos, e Ao lado do Estado, as estruturas
não patrimônio exclusivo das comunidades eclesiais têm dado provas inequívocas de
cristãs; exigem a nossa ação e compromisso, serem das que mais amplamente apoiam a
que não se delegam, e devem beneficiar, sociedade civil na educação, na luta contra
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
168
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
Diamantina
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
169
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
o drama da fome e da pobreza, no auxílio de alguns monumentos sacros para
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
dizer “sim” à salvaguarda dos seus bens palácios, catedrais, mosteiros, conventos
e v i s t a
culturais, aposta que não se afasta da sua e igrejas (Fátima, Batalha, Alcobaça,
R
própria missão cultural e pastoral. Com Mafra, Jerónimos, Queluz, Sintra, Tomar
a participação alargada da Administração etc.). O crescimento exponencial de
Central, da sociedade civil e de instâncias visitantes destes lugares e monumentos
supranacionais (ligas de amigos, fundações históricos emblemáticos, com primazia
ad hoc, doações, mecenato cultural privado e para a arquitetura religiosa classificada
de empresas, União Europeia, Unesco, World de importância nacional ou mundial,
Monuments Fund, Fundação Calouste está a tomar proporções apoquentadoras
170
Gulbenkian etc.), a Igreja será capaz de para a sua dignidade e integridade física
reunir apoios humanos e obter contributos (massificação turística). Este aumento
financeiros que o Governo, dificilmente, acelerado do “consumo” quotidiano de
poderia assegurar-lhe. Ainda no quadro bens culturais, com desgastes associados
da compreensão atual da relação binômica assinaláveis, requer medidas progressivas
Estado-Igreja, o entendimento do interesse de planeamento e gestão técnica e de
geral com a salvaguarda, manutenção proteção e segurança permanentes e
e promoção do patrimônio eclesiástico eficazes contra os riscos da turistização
pode decorrer, eventualmente, por meio e dos abusos endêmicos do patrimônio
da concretização de ações públicas de (recursos humanos, horários de abertura,
reciprocidade e acordos de parceria amigável acessibilidades, visitas guiadas, vigilância,
e especializada, com fins essencialmente roubos, atos de vandalismo, prevenção
culturais. Esta divisão de responsabilidades contra sinistros naturais e acidentais etc.). A
poderia concretizar-se, por exemplo, na sua salvaguarda e conservação é, portanto,
definição de práticas de cedência temporária uma tarefa obrigatória e onerosa, que a
sociedade, como coproprietária fruitiva, ensino
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
e formação
também deverá assumir claramente (pagar
artística do clero
a c i o n a l
entradas, por exemplo). Nas igrejas mais
visitadas, e em local bem visível, sugere-se
A importância do conhecimento,
que os serviços eclesiásticos, em colaboração
n
salvaguarda, valorização e divulgação dos
R t í s t i c o
com os organismos estatais da tutela do
tesouros culturais da Igreja, como fatores de
patrimônio cultural, exibam uma pequena
civilização e de desenvolvimento intrínsecos,
a
exposição sobre a história e a arquitetura
requer o ensino e a formação artística
e
do monumento, o estado de conservação,
i s t ó R i c o
ajustados do clero e dos seus colaboradores
a tipologia e a extensão dos danos ou
leigos, sob conteúdos específicos e conceitos
destruições e as dificuldades financeiras com
H
fundamentais. Com efeito, não poderá haver
a sua recuperação adequada e as exigências
a t R i m ô n i o
uma consciência patrimonial, transformada
de uma manutenção contínua e durável.
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
em memória crítica ativa, sem uma exigência
Esta apresentação interpretativa e exemplar
conveniente de saberes construídos desde
P
dos monumentos, que exige também guias
d o
a juventude dos candidatos ao ministério
ou meios audiovisuais e uma sinalização e
e v i s t a
iluminação corretas para facilitar as visitas do sacerdócio. Ora, em nossa opinião,
a autoridade eclesiástica competente
R
e entender os espaços, pela apreciação
imediata e de contexto que permite, (Conferência Episcopal Portuguesa) deve
surpreenderá e tocará a sensibilidade de investir neste domínio prioritário com
muitos visitantes, gerando, com toda a mais afinco e preocupação educativa,
certeza, fluxos de solidariedade ativa e correspondendo ao apelo exortativo e à
comprometida. observância das várias recomendações da
Enquanto nas nossas igrejas se pregar Santa Sé e da Comissão Pontifícia para os
Bens Culturais da Igreja. De fato, os curricula 171
e viver segundo os princípios de fidelidade
ao Evangelho e a Igreja for testemunho dos Seminários e das quatro Faculdades
de comunhão e referencial privilegiado de Teologia mostram-se notoriamente
de valores éticos e espirituais, de paz e de indigentes em matéria de pedagogia do
confiança (congregação maternal), haverá patrimônio cultural sacro, confinando-se a
comunidades eclesiais vivas e militantes e um ensino e a uma aprendizagem escassos
não faltarão fiéis empenhados na construção ou quase inexistentes de História da Arte,
dos “seus” locais de culto e na salvaguarda de Arte Sacra e de Arqueologia Cristã.
dos bens culturais religiosos. Esta perspectiva Não admira, pois, que desta insuficiência
moralizante e de fiabilidade na Igreja é de qualificada de performatividade cultural
importância decisiva e fundamental para e artística dos futuros sacerdotes e dos
unir vontades e ganhar a aceitação e a religiosos, para o exercício esclarecido das suas
simpatia de outras opiniões, vulgarizadas de responsabilidades, resultem faltas de acerto
niilismo e desespero, convencidas de que a de critérios ou de observância das normas
Igreja não as representa. da liturgia e da arte sacra, estabelecidas
para a conservação, restauro e reparação dos religiosos, e também dos fiéis leigos
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
inventário-catálogo do seu acervo artístico serviço religioso e com a arte das suas igrejas.
R
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
artística e técnico-científica mais cuidada ao desbarato ou vandalizados e caíram,
a c i o n a l
e extensa do clero e dos seus colaboradores rapidamente, em inexoráveis escombros
resulta num acrescido e renovado sentido e cinzas, transformando-se em pedreiras
moral de responsabilidade participativa, de (conjunção de “religioclastia” com “vandalismo
n
R t í s t i c o
competência e de agilidade para tratar estas patrimonial”).
questões cruciais e difusas, nas suas constantes Entretanto, e deve referir-se
a
e variantes, evitando erros e exageros expressamente, por constituir uma verdade
e
irreversíveis ou que elas sejam confiadas quase histórica, a Igreja Portuguesa experimentou
i s t ó R i c o
somente aos outros. um período de paz, de cerca de meio século
de Estado Novo, de bom entendimento
H
secUlarização e rUína e aproximação com os poderes públicos
a t R i m ô n i o
dos bens eclesiásticos e a sociedade civil, como testemunhou
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
a referida Concordata de 1940 (Cruz,
P
As nossas maiores construções religiosas 1998). Esta circunstância possibilitou-lhe
d o
efetuaram-se numa época de grande curar feridas, reparar desolações e restaurar
e v i s t a
compreensão cristã entre o Estado, a Igreja e perdas, levando Salazar a escrever que “ela
R
a sociedade civil. Daí, que a sua conservação e dá à Igreja a possibilidade de se reconstruir e
manutenção decorressem no quadro de uma mesmo de vir a recuperar por tempos o seu
responsabilidade tripartida. Esta conjuntura ascendente na formação da alma portuguesa”
tradicional manteve-se até o ano de 1834, (Salazar, 1951:373). Todavia, que sinais de
data de exclaustração das ordens religiosas no perseverança e de confiança mostraram as
país e do arresto compulsivo e maciço dos autoridades hierárquicas da Igreja Católica de
seus numerosos e valiosos bens materiais, e então para recuperar e vivificar, passo a passo,
173
agravou-se com a primeira lei republicana a identidade religiosa perdida?
de autonomização administrativa entre Quanto aos mosteiros e conventos que
o poder público e a Igreja, em 1911, que foram espoliados e desintegrados do seu valor
nacionalizou quase todo o remanescente e função histórica iniciais e refuncionalizados
do espólio eclesiástico nacional. A partir em quartéis, hospitais, asilos, escolas, museus,
desta última data, sobretudo, introduziu- fábricas etc., na sequência das secularizações
se um claro divórcio de responsabilidades e vicissitudes supracitadas, impunha-se uma
institucionais com a conservação do avaliação pública conjunta, séria e objetiva,
patrimônio cultural religioso, de assinalável sem exterioridade. Mas, para o efeito e porque
expansão e relevância tipológica, e verificou-se a realidade é complexa, os órgãos internos
o agravamento das condições econômicas da da Igreja teriam de apresentar propostas de
Igreja, para essa ação dispendiosa e atribulada. mediação razoáveis, do ponto de vista da
Na sequência deste espírito persecutório conciliação de interesses, e projetos concretos
anticlericalista e iconoclasta, muitas igrejas de afetação estruturada e diferenciada para o
e edifícios religiosos foram violentamente resgate e prolongamento da vida útil desses
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
174
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
edifícios profanados. Caso contrário, é Igreja, do Estado e da sociedade civil, de
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
preferível manter-se tudo como está! O que grande responsabilidade ética perante o
a c i o n a l
teria sucedido com alguns antigos mosteiros, nosso futuro histórico, cultural, espiritual e
conventos e paços episcopais do Porto, também político. Assim e sucintamente, com
convicção firme e como interpelação e desafio
n
Coimbra, Lorvão, Leiria, Alcobaça, Batalha,
R t í s t i c o
Mafra, Lisboa, Portalegre, Évora, Tomar, Beja estimulante, defendo que:
etc., se não fossem, ou não tivessem sido, 1 – a Igreja tem o dever explícito e
a
usados longamente como casernas, hospitais, a responsabilidade educativa de atribuir
e
maior importância e rigor à integração
i s t ó R i c o
escolas, museus, repartições públicas ou... até
fábricas? Por não terem tido uma efetiva e ou alargamento da consciência do seu
apropriada utilização, veja-se o que sucedeu patrimônio na formação normal e coerente
H
dos seus presbíteros. Clero devidamente
a t R i m ô n i o
aos esvaziados conjuntos monásticos ou
instruído e proficiente é um valor
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e
conventuais de Santarém, Tarouca, Salzedas,
Maceira Dão, Cós, Almoster, Aguiar, Tabosa, acrescentado ao seu ministério e estatuto, em
P
Pombeiro, Pitões das Júnias... particular neste desígnio significativo;
d o
A defesa e a revalorização urgentes deste 2 – a proteção qualificada do patrimônio
e v i s t a
patrimônio coletivo são, por conseguinte, cultural eclesiástico, móvel e predial, exige a
R
uma iniludível obrigação de solidariedade elaboração prévia e criteriosa de inventários
e catálogos interativos, incluindo os registros
e um exercício moral de cidadania ativa
fotográfico, desenhado e documental, que
comum, independente de confissões ou
sejam facilmente atualizados e acessíveis e
credos pessoais. Não deve ser entendida
permitam ter uma visão de conjunto desse
apenas como um encargo participativo, mas,
legado;
sobretudo, como uma missão estimulante e
3 – as necessidades de empenho
incessante para os atos do futuro, assumida 175
governamental para a incumbência da
e partilhada conscientemente. E só quem
conservação e requalificação dos bens
sabe olhar o passado e conhece a força do
culturais religiosos, baseadas nas suas
“ontem” saberá contemplar e responder
peculiaridades e num justo conhecimento
melhor às questões e incertezas do “amanhã”;
do passado, requerem e impõem maior
neste traço de união transitável, o “hoje” é
desvelo social e vontade política (solicitude
o momento verdadeiramente decisivo para
patrimonial). Não podem assumir o caráter
assumir o passado com esperança e, com fé,
de subvenção voluntária estatal e devem ser
preparar o futuro (futuro do passado)!
apreciadas e concorrer, em paralelo e de modo
transparente e previdente, como res mixta,
apelo e advertência com outras formas e necessidades de interesse
público;
A salvaguarda dinâmica dos bens culturais 4 – a Igreja deverá desenvolver, junto
religiosos, como causa e coisa de interesse do Governo, estratégias argumentativas Alcântara
Acervo: Iphan/
coletivo, é uma tarefa conjunta da própria e programas específicos e inovadores que José Paulo Lacerda.
respondam à globalidade dos problemas religiosos. Todos nós queremos legá-los, tão
S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
com o seu patrimônio histórico, em vez incólumes quanto possível, à Igreja do futuro.
a c i o n a l
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
franciscano de Cairu
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
177
V i r g o l i n o Fe r r e i r a J o r g e S a l va g u a r d a d o s b e n s h i s t ó r i c o - e c l e s i á s t i c o s e m Po r t u g a l
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
178
L u c i a n e G o rg u l h o Financiamento às instituições culturais sob a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preser vação do patrimônio cultural brasileiro
Luciane Gorgulho
a c i o n a l
f inanciamento às institUições cUltUrais sob a ótica
n
na
r t í s t i c o
preservação do patrimônio cUltUral brasileiro
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
introdUção utilização das deduções fiscais previstas na Lei
Rouanet, seja com recursos oriundos de fun-
A herança cultural arquitetônica e urbana dos estatutários próprios (Fundo Cultural).
P
O BNDES dispõe, ainda, de meios de
d o
que permeia os cenários das cidades brasileiras
e v i s t a
é um dos nossos mais ricos ativos. O precário apoio financeiro ao setor público (municípios
estado de conservação desse patrimônio, sua e estados) para desenvolvimento e execução
r
riqueza e diversidade e a extrema necessidade de ações que acarretem – direta ou indireta-
de sua preservação de modo perene motiva- mente – valorização do patrimônio histórico
ram o BNDES a definir o patrimônio cultural e cultural.
como seu foco prioritário de atuação há mais Para as empresas inseridas nas cadeias
de vinte anos, tornando-o parceiro indissociá- produtivas da cultura, o Banco oferece ainda
vel do Iphan nessa missão. linhas de crédito rotativo ou de longo prazo,
Além do indiscutível mérito de salvaguar- em condições adequadas ao seu perfil (Cartão 179
no campo cultural. Nestes quase vinte anos no campo da economia da cultura e, portanto,
e
permanência desse apoio tornaram o BNDES Cultural), com recursos não reembolsáveis
d o
No entanto, a partir de 2006, o BNDES com base na Lei Rouanet, a partir de 2009,
R
a c i o n a l
Acostumados a terem seu valor reconhecido da localidade onde se encontra.
pelo ponto de vista simbólico, de identidade e Para isso, deve-se buscar associação a ações
educativo, os segmentos que compõem o setor de revitalização urbana, com investimentos
n
R t í s t i c o
da cultura, por não terem sido tradicionalmente complementares, que visem à recuperação do
mapeados e “empacotados” de maneira entorno, iniciativas voltadas para o estímulo às
a
conjunta, sempre tiveram sua contribuição atividades econômicas derivadas do patrimônio
e
econômica desconhecida ou subestimada. como, por exemplo, o artesanato cultural
i s t ó R i c o
O surgimento, portanto, da terminologia ou atividades culturais correlatas. Pode-se
da economia da cultura contribuiu para essa considerar ainda ações relativas à preservação
H
mensuração, permitindo maior valorização dos do patrimônio num conceito mais amplo,
a t R i m ô n i o
segmentos culturais no âmbito das políticas tais como ações de educação patrimonial e
públicas em diversos países. No Brasil, estima-se capacitação de mão de obra local.
P
que a chamada economia da cultura represente Cada restauro torna-se uma oportunidade
d o
2,6% do PIB e cerca de 800.000 empregos para estimular ações de capacitação e
e v i s t a
formais (Firjan, 2016). qualificação profissional. Em função da
R
No campo do patrimônio cultural, esse complexidade das técnicas de restauro e da
valor pode ser mensurado pela contribuição especialização necessária para esse ofício,
L u c i a n e G o rg u l h o
dos profissionais que atuam no setor, na observa-se carência de profissionais na
geração de valor de museus e monumentos, área. Assim, apoiar de maneira efetiva o
nas suas coleções, na produção artística, na patrimônio histórico passa também por
cadeia de fornecedores que se estende por trás estimular a formação desses profissionais,
dos equipamentos culturais, sem mencionar preferencialmente em situações reais de
181
seus efeitos indiretos sobre o desenvolvimento obra. As iniciativas de educação patrimonial,
local, o turismo, o comércio etc. porém, têm caráter muito mais amplo do que
Para o BNDES, a adoção do conceito a obra em si. Só se valoriza o que se conhece
de economia da cultura pressupôs ampliar e se admira, por isso o trabalho de educação
a visão da preservação do patrimônio, patrimonial busca levar a comunidade a um
como um fim em si, para o enfoque sobre o processo ativo de conhecimento, apropriação
desenvolvimento gerado a partir da ação de e valorização de sua herança cultural,
preservação e às externalidades potenciais que capacitando-a para melhor usufruto dos
podem ser daí geradas. bens patrimoniais. Torna-se também uma
O objetivo passa a ser, mais do que apenas oportunidade de conhecimento sobre as
recuperar o patrimônio, estimular e facilitar técnicas construtivas utilizadas em cada época,
o usufruto do bem restaurado e promover os materiais, os artistas e a própria história
sua melhor utilização pela sociedade, mas do lugar ao qual pertence. Projetos culturais
principalmente promover o maior dinamismo associados têm também papel relevante na
econômico local, tornando o patrimônio divulgação do patrimônio, podendo envolver
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
182
L u c i a n e G o rg u l h o Financiamento às instituições culturais sob a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preser vação do patrimônio cultural brasileiro
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
franciscano de Cairu
Convento
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
183
a c i o n a l
educacionais, sociais, simbólicas e econômicas e decadência do patrimônio que se restaurou.
que dignifiquem e deem concretude à Quando a ação de restauro do patrimônio
ação do patrimônio. Não surpreende não vem acompanhada de processos e ações
n
R t í s t i c o
que tal entendimento venha permeando destinadas ao fortalecimento da instituição
a mesma política da Unesco em nível que detém a responsabilidade por sua guarda e
a
internacional e do Iphan em nível nacional, proteção, o apoio se torna vão, no intervalo de
e
estabelecendo-se o patrimônio como vetor alguns anos.
i s t ó R i c o
do desenvolvimento em si, no seu sentido Outrossim, dada a natureza do BNDES,
mais amplo. Concretamente, os exemplos não um mero patrocinador como tantas
H
de projetos demandantes e apoiados nos empresas que hoje destinam recursos a
a t R i m ô n i o
últimos anos comprovam que o instituto projetos culturais, mas sim uma instituição
da proteção, consubstanciado na figura do com foco de atuação no desenvolvimento,
P
tombamento proferido pelos colegiados nada mais natural que nossa atuação se
d o
legitimamente estabelecidos, não garante volte à compreensão das necessidades e
e v i s t a
per si a consecução dos efeitos de natureza potencialidades das instituições apoiadas,
R
cultural, simbólica e social, muito menos sua estrutura financeira, de gestão e de
econômica. Os projetos apoiados pelo governança, de maneira idêntica ao que é
L u c i a n e G o rg u l h o
BNDES, em que isso se verificou de forma tão naturalmente incorporado no processo
mais assertiva, demonstram que tais efeitos de análise, quando se trata de outros entes
devem ser perseguidos de partida, e não empresariais que não as instituições sem
intuídos ou considerados assumidamente fins lucrativos que caracterizam o segmento
induzidos pelo ato em si da preservação. Há da cultura como um todo. Tal expertise do
185
que se buscar, em conjunto com a proteção, a BNDES na compreensão das estruturas e
consecução desses demais objetivos, sob pena suas dinâmicas deve ser aproveitada na análise
de a preservação perder o seu sentido. do apoio não reembolsável a projetos de
Outra importante dimensão derivada da instituições sem fins lucrativos.
experiência do BNDES na área de apoio ao Nesse sentido, o fortalecimento de
patrimônio foi revelada na atuação em projetos instituições culturais deixa de configurar
de fortalecimento de instituições culturais. O uma categoria de apoio, como se vislumbrou
apoio a projetos dessa natureza deu luz ao fato originalmente, mas passa a permear
óbvio, mas que encontrava-se obnubilado pelo transversalmente a análise e foco de apoio de
foco no patrimônio per si, de que a instituição todo o universo de projetos de preservação
detentora e responsável pela guarda e gestão do patrimônio cultural brasileiro. Uma das
do patrimônio deve merecer a mais profunda dimensões mais promissoras dessa visão é a
atenção no processo de análise. Casos se contribuição a ser dada ao fortalecimento da
contam, no passado, dessa atuação em que o sustentabilidade financeira de tais instituições.
apoio do Banco na preservação do patrimônio, Hoje relegadas a fundear o seu sustento em
patrocínios e dotações orçamentárias de entes Entende-se como valorização do uso
Financiamento às instituições culturais sob a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preser vação do patrimônio cultural brasileiro
188
L u c i a n e G o rg u l h o Financiamento às instituições culturais sob a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preser vação do patrimônio cultural brasileiro
Elysângela Freitas.
Acervo: Iphan/
Maracatu
pelo patrimônio e/ou proponente na Busca-se não só uma metodologia para a
a c i o n a l
da reunião de atributos que evidenciem ao BNDES que, em sua maioria, carecem de
essa competência; uma visão que valoriza o atendimento aos
Para tanto, são importantes, entre efeitos desejados pelos três eixos, mas também
n
R t í s t i c o
outros quesitos, a gestão e competência uma comunicação institucional reformulada a
técnica da proponente e da instituição implementar-se nos canais de comunicação e
a
responsável pelo patrimônio. nas ações de fomento, de modo a destacar os
e
efeitos positivos desta nova visão.
i s t ó R i c o
Eixo III: Estímulo à cadeia produtiva da Resumidamente, o que se passa a buscar
cultura e suas externalidades com o novo foco de atuação são não apenas
H
• Ações voltadas para o estímulo à projetos de preservação do patrimônio, em
a t R i m ô n i o
cadeia produtiva da cultura e suas que a figura do tombamento responda pelo
externalidades: mérito do projeto em si, mas sim projetos de
P
Consiste da apresentação de um desenvolvimento (em cultura, educação, cida-
d o
conjunto abrangente de ações voltadas dania, economia), por meio de intervenções
e v i s t a
a potencializar as externalidades do no patrimônio e do fortalecimento das insti-
projeto, em particular ao explorar novas tuições que dele se ocupam.
R
possibilidades de beneficiar o turismo, o
L u c i a n e G o rg u l h o
comércio local e os serviços, e as cadeias a s U s t e n ta b i l i d a d e
produtivas da economia da cultura; financeira de institUições
O projeto poderá envolver, entre outros, c U lt U r a i s e o m o d e l o d e
ações para capacitação de profissionais f U n d o s pat r i m o n i a i s
da economia da cultura; revitalização de
áreas degradadas; articulação com gover- Historicamente, as instituições 189
O que se observa no setor é uma extrema abre possibilidade de trazer novos recursos,
dificuldade no custeio de instituições e não incentivados, para o mercado cultural e
equipamentos culturais, principalmente artístico.
n
R t í s t i c o
governo federal (dos respectivos Ministérios, cultura são alguns dos objetivos de atuação
i s t ó R i c o
cultural é quase sempre relegado a segundo a entidades sem fins lucrativos, destinados
plano. Além disso, existe outro problema a cobrir, com seus rendimentos, as despesas
que é a manutenção desses projetos em correntes da instituição. A utilização das
momentos de transição: projetos de receitas desse endowment fund pode ser
longo prazo que ultrapassam uma gestão restringida pelos doadores, para serem
190 governamental e que, por isso, passam por aplicadas em objetivos específicos.
períodos de descontinuidade. Portanto, o Diferentemente de uma doação
apoio via terceiro setor torna-se primordial, tradicional, que prevê a aplicação direta
mas também complexo em virtude do do recurso na reforma de um laboratório
atual modelo de financiamento via Lei ou na construção de uma biblioteca, por
Rouanet, desenhado para projetos de curta exemplo, os fundos endowment buscam criar
duração e que não atende, como deveria, às um patrimônio perpétuo, que gere recursos
especificidades de estruturas permanentes, contínuos para a conservação, expansão e
como museus, orquestras e corpos artísticos promoção de uma determinada atividade,
de modo geral. por meio da utilização dos rendimentos
Portanto, faz-se necessário expandir desse patrimônio. Os endowment funds são
a discussão sobre novos modelos de estruturados de modo que o principal se
sustentabilidade de instituições culturais, mantenha e os rendimentos do valor aplicado
com objetividade, para além da própria Lei (ou um percentual desses rendimentos) sejam
Rouanet e outros mecanismos fiscais. Ou utilizados na manutenção da instituição.
A legislação brasileira ainda não reconhece ambientais já são pioneiras na criação de
a c i o n a l
4643/2012 iniciou a discussão sobre a governança do modelo de endowment.
regulação de fundos patrimoniais na Câmara Neste contexto, o BNDES se coloca como
dos Deputados, originalmente voltados uma das lideranças na discussão e viabilização
n
r t í s t i c o
para instituições federais de ensino superior. para a criação de endowment funds no Brasil,
O PLS 16/2015, em trâmite no Senado para captação de recursos de longo prazo
a
Federal, busca regulamentar a criação e o para instituições culturais sem fins lucrativos.
e
funcionamento de Fundos Patrimoniais Para isso, o BNDES promoveu, em 2016,
i s t ó r i c o
Vinculados. Ambos concedem benefícios o I Fórum Internacional de Endowments
fiscais para as pessoas físicas e jurídicas Culturais, passo importante para o avanço
H
que tenham interesse em fazer doações aos dessa agenda, somando-se ao esforço iniciado
a t r i M ô n i o
referidos fundos, assim como estabelecem pelo Instituto para o Desenvolvimento do
regras para a segregação patrimonial do Investimento Social – IDIS.
P
endowment e preveem isenções fiscais para os Como resultados, são esperados a
d o
rendimentos do fundo. construção de um plano de ação para
e v i s t a
Enquanto esses projetos de lei não são endereçar essa importante questão e guias
com diretrizes para as instituições culturais
r
aprovados, as instituições que desejam
constituir fundo patrimonial no Brasil interessadas já criarem estruturas
L u c i a n e G o rg u l h o
enfrentam dificuldades para a captação de jurídicas similares aos endowment funds
recursos, principalmente pelas questões existentes no exterior. A possibilidade
mencionadas abaixo: de apoio pioneiro do BNDES a
(i) ausência de legislação específica e, esse tipo de iniciativa pretende
portanto, de uma figura jurídica contribuir para a sustentabilidade
191
específica para o modelo de endowment, financeira das instituições
que estabeleça uma segregação dos apoiadas diretamente, e também
patrimônios do fundo e da instituição para desenvolver melhor o
que o controla; instrumental e os modelos
(ii) inexistência de isenção fiscal para os que possam ser replicados por
rendimentos do fundo e de benefícios outras instituições culturais,
fiscais para os doadores; além de contribuir para outras
(iii) cultura de doações pouco desenvolvida instituições sem fins lucrativos,
no país; e como as destinadas a temas
(iv) inexperiência do Brasil na administração sociais e ambientais, que
e gestão de fundos endowment. vivem dificuldades e desafios
No entanto, sabe-se que, mesmo na semelhantes às do setor da
ausência de regulamentação facilitadora Economia da Cultura.
dos endowment funds no Brasil, algumas
instituições culturais, educacionais e
novos conclUsões
Financiamento às instituições culturais sob a ótica da sustentabilidade de longo prazo:
o BNDES na preser vação do patrimônio cultural brasileiro
desafios
a c i o n a l
sustentável.
o contraponto do modelo da expansão O BNDES almeja, desse modo,
r
linear das moradias e, consequentemente, prosseguir por muitos anos nessa trajetória,
L u c i a n e G o rg u l h o
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193
Convento de
Santo Antônio.
Acervo: P.G. Bertichem, 1856.
n o ta s cHiara bortolotto
Notas biográficas
biográficas
Chiara Bortolotto é antropóloga e
a c i o n a l
docente de Arquitetura. Autor de Introdução (Centre for Research in the Arts, Social
ao estudo da arquitectura portuguesa e outros Sciences and Humanities/Clare Hall), durante
textos (2007) e Textos datados (2007). os anos de 2013 e 2014, e bolsista Marie
Curie na Universidade Livre de Bruxelas
antonio aUgUsto arantes (Laboratório de Antropologia dos Mundos
Bacharel em Ciências Sociais, mestre e Contemporâneos), de 2010 a 2013. Trabalha
doutor em Antropologia. Foi um dos regularmente com a Unesco, o Ministério da
194
criadores do Departamento de Antropologia Cultura e da Comunicação francês e diversas
da Universidade Estadual de Campinas. ONGs na França e em outros países.
Ex-presidente da Associação Brasileira de
Antropologia. Organizador de Produzindo dominiqUe poUlot
o passado: estratégias de construção do Historiador francês. Professor de História
patrimônio cultural (1984) e autor de O da Arte na Sorbonne, Universidade Paris
patrimônio imaterial e a sustentabilidade de I. Membro do Instituto Interdisciplinar
sua salvaguarda (2004). Ex-presidente de Antropologia do Contemporâneo, do
do Iphan. Centro Nacional de Pesquisa Científica da
França. Autor de Les lumières (2000); Musées
en Europe: une mutation inachevée (2004);
e Uma história do patrimônio no
Ocidente (2009). Dirige as coleções Logiques
historiques e Patrimoine et sociétés das edições
L’Harmattan (França).
flávio de lemos carsalade jUan lUis isaza londoÑo
Notas biográficas
Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo Arquiteto colombiano. Pós-graduado
a c i o n a l
pela Universidade Federal de Minas Gerais em História da Arte Latino-Americana.
(1979), Mestrado em Arquitetura pela Professor da faculdade de Estudos do
Universidade Federal de Minas Gerais (1997) Patrimônio da Universidad Externado de
n
r t í s t i c o
e Doutorado pela Universidade Federal da Colombia. Ex-Diretor do Instituto Carlos
Bahia (2007). Foi presidente do Instituto Arbeláez Camacho para el Patrimonio
a
Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico Arquitectónico y Urbano, Universidad
e
de Minas Gerais (1999-2002) e do Instituto Javeriana; e ex-Diretor de Monumentos
i s t ó r i c o
de Arquitetos do Brasil/ Departamento Minas Nacionais da Colômbia. Autor de Centro
Gerais (1995-1998) e Secretário Municipal Histórico de Mompox, Colombia,
H
de Administração Urbana Regional Pampulha 1996 (2004); Santa Cruz de Mompox,
a t r i M ô n i o
da Prefeitura de Belo Horizonte (2004-2007). en Los Andes: Patrimonio Vivo (2005); e
É professor da Escola de Arquitetura da Poblamiento y urbanismo entre los siglos XVI
P
Universidade Federal de Minas Gerais desde y XVII (2005).
d o
1982, onde foi seu diretor (2008-2012) e seu
e v i s t a
vice-diretor (1988-1991). Tem experiência na lUciane gorgUlHo
área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase É chefe do Departamento de Economia da
r
em Planejamento e Projetos da Edificação Cultura do BNDES, criado em 2006 para
e Urbanismo, atuando principalmente nos desenvolver instrumentos financeiros para
seguintes temas: projetos arquitetônicos e os setores ligados à cultura, especialmente
urbanísticos, patrimônio cultural e ensino de o editorial, o de audiovisual e de games
arquitetura. Atualmente é Diretor da (Programa BNDES Procult). É responsável
Editora UFMG. também pelo programa de apoio ao
patrimônio cultural brasileiro, assim como 195
de
Bahia. Entre 1987 e 2011, foi servidora do Humanas da Universidade de São Paulo,
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
titular aposentado de História Antiga,
a
Notas biográficas
199
L u c i a n e G o rg u l h o
200