Tese - Claudio Aurelio Hernandes - Final
Tese - Claudio Aurelio Hernandes - Final
Tese - Claudio Aurelio Hernandes - Final
TESE DE DOUTORADO
CURITIBA
2016
CLÁUDIO AURÉLIO HERNANDES
CURITIBA
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba - PR
CDU
65.011.8
Termo de Aprovação
À Luiza, minha filha.
À minha esposa, Alina.
Aos meus pais, Claudinei e Maria.
AGRADECIMENTOS
Uma tese é feita de muitas mãos. Tantas que jamais será possível fazer agradecimentos sem
cometer alguma injustiça. Talvez justo fosse não agradecer. Mas, não vejo como não agradecer
imensamente à três pessoas sem as quais esta tese não teria sido possível. A primeira é Peter
Hammer, mestre cuteleiro, artesão que veio a se tornar amigo. Ele inspirou este trabalho e a
mim de muitas outras formas, mas inspira diariamente outras pessoas. A segunda é minha
esposa, Alina. Sem sua presença, apoio e sobretudo amor eu realmente não teria conseguido
chegar aqui. A terceira, Rene Seifert, meu orientador. Ainda não sei como agradece-lo por tudo
que fez por mim nesse processo de doutoramento. Ele simplesmente acreditou mais em mim
que eu mesmo. Quando eu já tinha me abandonado, nas horas mais difíceis, estava lá ao meu
lado. Não há como não ser grato por isso. Eu o trataria como pai, se ele não fosse mais novo
que eu. Nesse caso, espero continuar tendo a honra se ser seu amigo. Aos demais, peço perdão
pelo não registro aqui. Estejam certos que também os levo comigo em meu coração.
O fogo destrói a madeira, mas fortalece o ferro.
Provérbio Oriental
RESUMO
Este trabalho teve por objetivo a criação de uma teoria substantiva que explicasse a relação
entre o crescimento organizacional e o trabalho artesanal no contexto de uma pequena
organização. A construção do problema de pesquisa e definição da área substantiva de
investigação contemplou a visitação das referências teóricas sobre crescimento organizacional
e trabalho artesanal. O crescimento organizacional foi inicialmente relacionado ao incremento
da produção, de insumos, de estrutura e de pessoas na organização. Trabalho artesanal foi
entendido inicialmente como aquele realizado manualmente pelo artesão, mesclando habilidade
técnica de produção e arte na criação e produção de objetos funcionais. A área substantiva de
investigação definida compreende pequenas organizações cuja essência do trabalho é artesanal
e fazem a opção pelo não crescimento. Para a geração de incidentes e amostras teóricas contou-
se com uma tradicional cutelaria artesanal localizada em Curitiba. Os dados foram coletados
por meio de entrevistas, observação, observação participante, participação observante.
Registros de notas de campo, de áudio e vídeo foram usados como auxiliares na coleta e análise
dos dados. Os dados foram analisados seguindo os pressupostos da Grounded Theory por meio
da codificação aberta, axial e seletiva. Das análises emergiram as categorias (i) centralidade no
artesão, (ii) corporeidade, (iii) relação entre pensar e fazer, (iv) valores substantivos e (v)
limites. A categoria limites foi identificado como categoria central, uma vez que se relaciona
com todas as outras categorias potencializando o poder explicativo de cada uma delas. Das
relações entre as categorias e delas com a categoria central foram edificadas as primeiras
proposições que culminaram na Teoria do Limite Artesanal. De acordo com essa teoria, o
artesão ocupa posição central no processo do trabalho artesanal. Quanto maior sua autoridade,
conhecimento, respeito, experiência e capacidade de executar peças que se aproximem ao
estado da arte do trabalho artesanal, maior será seu reconhecimento. O reconhecimento do
artesão se dá em relação aqueles que compartilham o interesse pelo seu produto. Esse
reconhecimento agrega valor ao produto artesanal que leva sua assinatura. Quanto maior o
conhecimento, experiência e capacidade de realização do artesão, maior o reconhecimento do
artesão, maior o potencial de agregação de valor ao produto. A agregação de valor ao produto
artesanal permite que a organização artesanal tenha uma produção em menor escala. O trabalho
artesanal se dá por intermédio das mãos, e a habilidade manual contribui para a qualidade do
fazer artesanal. Quanto maior o desenvolvimento das habilidades do corpo maior a possiblidade
de produção artesanal de qualidade superior. A vitalidade do corpo habilita ao mesmo tempo
em que limita o fazer artesanal. O aumento do condicionamento físico contribui até um
determinado limite a produção artesanal, mas a não vitalidade, ou doença, influencia limitando
ou impossibilitando essa produção. O fazer artesanal é uma ação reflexiva por meio da qual o
artesão materializa objetos pensados. O ato de criação artesanal aproxima o artesão da práxis e
o distancia do trabalho alienado. Desta forma, o trabalho artesanal possui sentido para o artesão.
A produção artesanal é permeada por valores substantivos que influenciam na produção e na
relação entre a organização artesanal e o mercado. A qualidade, a tradição e o ensino da
cutelaria artesanal estabelece a relação metre-aprendiz que potencializa a difusão da tradição
da cutelaria artesanal. A liberdade do fazer artesanal permite que o artesão desenvolva trabalhos
que lhe façam sentido. A manutenção da liberdade do fazer artesanal implica em um
desacoplamento total ou parcial do mercado. A produção artesanal é limitada por fatores ligados
à centralidade do cuteleiro no processo de criação e do fazer artesanal, a aspectos fisiológicos
relacionados à corporeidade e a valores substantivos que permeiam o trabalho artesanal
tradicional. Respeitar limites implica em limitar a produção artesanal.
LISTA DE QUADROS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desta tese foi a elaboração de uma teoria substantiva que explicasse
como se dá a relação entre o trabalho artesanal e o crescimento organizacional.
Ontologicamente, parte-se do pressuposto de que a realidade não é dada, mas construída
socialmente (BERGER e LUCKMANN, 2003). O papel do pesquisador social, nesse sentido,
é entre outras coisas, o de interpretar a realidade já interpretada pelos sujeitos (GIDDENS,
1978). Fica, portanto, explícito nisso o papel central do indivíduo no processo. Admite-se a
impossibilidade de isenção ou isolamento do pesquisador em relação ao fenômeno pesquisado.
Conforme Weber (2001), sempre há elemento de parcialidade presente nas análises sociais e
não há como exercer a prática científica livre de pressupostos.
Cabe dizer desde logo que o termo ‘pequena organização’ refere-se ao seu
tamanho, mas o conceito de tamanho organizacional não é consenso entre pesquisadores. A
forma mais comum de medir o tamanho de uma organização é por meio do número de
empregados (em tempo integral) (BLAU, 1970; INGHAM 1970), às vezes considernado
empregados em tempo parcial como a metade (CHILD 1973), ou vendas anuais
(SYMEONIDIS 1996). Em outros estudos, o património líquido, número de sites, (CHILD
14
O tamanho parece ser uma variável simples. Algumas discussões sobre as fronteiras
organizacionais sugeriram que é problemático saber quem está dentro ou fora da organização.
O tamanho tem quatro componentes (KIMBERLY, 1976): o primeiro é a capacidade física das
organizações; o segundo é a quantidade de pessoal disponível na organização o terceiro e quarto
aspectos são representados pelos insumos e produtos organizacionais.
Fonte: elaborado pelo autor com base no conceito de crescimento de Kimberly (1976)
a uma taxa anual média de 3,3% nos últimos anos. A taxa de crescimento do PIB brasileiro em
2014 ficou na ordem de 0,1% com estimativa de queda para -3,0% em 2015. Segundo esse
relatório, a China apresenta uma das maiores taxas médias anuais de crescimento: com projeção
de 6,8% em 2015, mas com média acima dos 10% na última década. No caso chinês, o
crescimento tem sido empurrado com grandes investimentos estatais. Fontes não oficiais
relatam supostos impactos negativos sobre a sociedade chinesa, em especial sobre o ambiente
natural e, sobretudo sobre a qualidade de vida das pessoas.
Dados e projeções do FMI são usados como parâmetros por muitos países a fim
de estabelecerem metas de crescimento. Basicamente o relatório do FMI traz dados referentes
ao crescimento ou decrescimento da economia mundial. O próprio termo crescimento (growth)
é citado 679 vezes no relatório mai recente (FMI, 2015).
Acredita-se que pelos menos dois eventos contribuíram para esse fenômeno: um
deles, a crise provocada pela geada que dizimou plantações inteiras de café na década de 1970
prejudicando essa atividade cuja importância econômica para o Estado era, na época, muito
grande, e fez com que muitas famílias migrassem à procura de emprego. Outro, a criação da
Cidade Industrial de Curitiba (CIC), um distrito industrial de 43,4 milhões de metros quadrados
que correspondem a 10% da extensão territorial total da cidade. Como vetor de industrialização,
foram oferecidos incentivos fiscais como isenção de impostos (ICMS e IPTU) e áreas com
financiamento direto e de longo prazo (IPARDES, 2014; IPUC, 2014).
mais difícil em seu local de origem por privar os pequenos municípios de sua principal riqueza
potencial, o capital humano, o que gera desperdício de suas potencialidades produtivas.”
O fazer artesanal parece ser uma constante nesses casos. Interessante notar que,
muitas vezes, produtos de origem artesanal e de produção em baixa escala são reconhecidos
pela qualidade acima da média. Aristóteles (1973) afirma que “...toda arte visa à geração e se
ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode ser
como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido. Para Sennett (2013,
p.34), “toda perícia artesanal é um trabalho voltado para a busca da qualidade”. O trabalho
artesanal é um tipo de trabalho no qual o sujeito tem controle de todas as suas fases. A perícia
do artesão, foi em certa medida, transferida para as máquinas industriais (HOBSBAWN, 1996).
Nos próximos parágrafos apresento alguns casos que serviram de inspiração para
a construção do presente problema de pesquisa, todos foram em algum momento objeto de
pesquisas e observações durante a elaboração do projeto da presente tese. Algumas vezes esses
negócios são destaque na mídia por sua característica de exceção. É o caso da Padaria América,
19
fundada em 1913 e que manteve-se uma pequena padaria até recentemente em Curitiba. Com
as novas gerações acabou por ganhar ares de modernidade com a abertura de filiais e divulgação
na world wide web. Nesse caso, a tradição parece ter se rendido a visão de negócios dos netos
herdeiros (REINHARDT, 2006). Outro caso parecido é o da Casa do Kibe, um pequeno negócio
da área ade alimentação iniciado em 1982. Seu proprietário optou pela não expansão para
shoppings ou filiais espalhadas pela cidade por valorizar o que chama de “viver bem”. Nesses
dois exemplos, contudo, talvez se possa considerar que no ramo de alimentação, padarias e
lanchonetes teriam facilidades ou tendência de manterem-se pequenas pela natureza do negócio.
Diferente da indústria, uma vez que indústrias parecem tender ao crescimento.
1
Ver http://goo.gl/LYc6Ug
2
Disponível em http://goo.gl/g2k0tr
20
Brasil, a região de Minas Gerais é famosa pela tradição da produção de queijos artesanais,
especialmente na Serra do Serro, Serra do Salitre e na Serra da Canastra (MENESES, 2006). O
modo artesanal de fazer queijo está registrado no livro de registro dos saberes do Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Essa atividade é exercida por pequenos
produtores e além de ser uma alternativa bem sucedida de conservação e aproveitamento da
produção de leite regional, constitui um conhecimento tradicional e um traço marcante da
identidade cultural dessas regiões (IPHAN, 2014). Nesse caso, o não crescimento pode ser uma
forma de manutenção de práticas tradicionais que poderiam perder-se em um eventual processo
de industrialização e mesmo de manutenção de uma identidade local. Sobre os pequenos
produtores de queijo de Minas, Meneses (2006, p. 85) afirma: “...o mito de crescimento
econômico como via única de promover o desenvolvimento social não se aplica aqui. Espaços
rurais têm outra lógica e culturas rurais exigem outro tratamento...”.
OBJETIVOS DA PESQUISA
principais atividades, ainda que essas atividades não representem necessariamente etapas
separadas ou hierarquizadas no processo de elaboração da teoria substantiva.
No mesmo sentido, esse estudo lançará sementes para reflexões sobre a questão
dos limites. No ambiente organizacional e mesmo na vida cotidiana civilizada moderna o
respeito aos limites parece ter sido deixado de lado. Limite é, nos dias atuais, sinônimo de
ineficiência, incapacidade ou deficiência. Aceitar certos limites parece não fazer parte do
homem civilizado moderno, uma vez que o triunfo da ciência sobre a natureza possibilitou ao
homem ultrapassar limites sistematicamente. Crescer superando limites seria, nesse sentido,
natural para as organizações e a tarefa da Administração é dar as ferramentas necessárias para
isso.
Além disso, ao olhar para o trabalho artesanal, coloca-se mais uma pedra no
caminho que busca a compreensão das relações entre indivíduos e trabalho no contexto da
modernidade (BRAVERMAN,1981; ANTUNES, 2002; SENNETT, 2013). Sabe-se que estas
relações passaram por modificações significativas durante e após a Revolução Industrial
ocorrida no século XVIII (HOBSBAWN, 1996). Muitas lacunas estão por serem preenchidas,
não obstante os esforços desprendidos até os dias atuais. A compreensão da dinâmica do
trabalho artesanal certamente lançará luzes sobre questões relacionadas ao trabalho não apenas
do ponto de vista teórico, mas também do ponto de vista da valorização da figura humana
enquanto transformadora do meio e de si própria.
Com isso foi possível criar um quadro que, embora parcial, possibilita uma
visualização panorâmica da alocação do termo crescimento. Metade das publicações
relacionam crescimento à estratégia, inovação, competitividade e aspectos financeiros. A
grande maioria dos trabalhos apresentados tem o crescimento com um objetivo organizacional
ou como a consequência de uma bem estruturada agenda estratégica. Crescimento como
resultado, objetivo ou ligado aos processos de estratégia, inovação ou de competitividade.
Vantagem competitiva, diversificação, estratégias de fusões e aquisições, mudança estratégica,
relação entre estratégia inovação e crescimento. Contribuições de estratégia e inovação para o
crescimento. A relação entre crescimento e aspectos financeiros, sendo o próprio crescimento
financeiro uma das definições de crescimento. Estudos sobre crescimento financeiro costumam
associar alavancagem financeira com os determinantes financeiros para o crescimento, bem
como a estrutura de capital e sua relação com o crescimento.
da área. Em âmbito mundial a Fortune Magazine3 publica anualmente rankings das grandes
empresas mundiais. Os critérios avaliados são baseados nas receitas, lucro e retorno para os
acionistas. Em 2014, o Walmart ocupava o topo do ranking. No Brasil, algumas vezes as
publicações destacam as empresas brasileiras nos rankings internacionais, como costuma fazer
a Revista Exame (As 7 empresas brasileiras entre as 500 maiores do mundo4), outras vezes
repetem a metodologia para eleger as maiores brasileiras (Jornal Valor econômico: Ranking
das 1000 maiores5; revista Exame: As 100 maiores empresas do Brasil em 20136).
3 http://fortune.com/fortune500/
4
http://goo.gl/s6DIqe
5
http://goo.gl/NZpz2
6
http://goo.gl/pEIHVB
28
A razão como orientadora da ação moderna por vezes ocupa o lugar da tradição.
A tradição é uma “orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada
influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente”.
(GIDDENS, 1997, p. 80). Para ele, vivemos uma época marcada por confusão, pela sensação
de que não entendemos de forma plena os eventos sociais e estamos sem controle. A
modernidade provocou alterações nas relações sociais, bem como a percepção dos indivíduos
e coletividades sobre questões de segurança e confiança, da mesma forma sobre os perigos e
riscos do viver (GIDDENS, 1991). O desenvolvimento social moderno tem, na visão de
Giddens, um processo marcado por ruptura ou descontinuidade.
Para Bauman a modernidade criou condições para que a insatisfação seja parte
do cotidiano. Segundo o autor, “ser moderno significa estar à frente de si mesmo, num Estado
de constante transgressão... ter uma identidade que só pode existir como projeto não realizado”
(BAUMAN, 2003, p.37). Ser moderno significa ser incapaz de permanecer parado em uma
perene atividade que o leve a ser não apenas bom, mas ótimo. O ideal buscado pela atividade
moderna não é aquele que se alcança, mas aquela que nunca será atingido sob pena de não mais
cumprir sua função, a de manter a roda girando.
dinâmica do sistema. Em outras palavras, a busca pelo bom e satisfatório foi substituída na vida
moderna pela busca do ótimo. Com isso, limites tornaram-se elásticos e a busca pelo ótimo
torna-se muitas vezes no encontro do ruim. A contradição no sistema por um lado sinaliza uma
vida melhor, mas que cria um estado de permanente insatisfação, uma vez que o melhor está
sempre à frente.
internacional7. Dito isso, podemos afirmar que, embora faça sentido a afirmação de Milton
Santos (2005), não apenas o interesse corporativo é privilegiado em detrimento do interesse
púbico, mas muitas vezes também são privilegiados os interesses individualizados. Ainda, não
só o mercado transformou tudo em mercadoria com anuência do Estado (POLANYI, 1980),
mas o próprio Estado parece ter se tornado mercadoria.
7
http://goo.gl/JvTc9p
8
Em tradução livre: desenvolvimento
32
complexo, partindo de uma situação pior para outra melhor. Assim, o termo é utilizado
metaforicamente para descrever o crescimento natural de animais e plantas que, em processo
final de desenvolvimento atingem seu máximo grau de potencialidades. A mesma metáfora
atinge as organizações vistas como organismos (MORGAN, 1996). Neste sentido, o
crescimento organizacional seria sinônimo de desenvolvimento tal como o é para os organismos
vivos (ESTEVA, 2010).
Cechin (2010) chama atenção para o fato de que a economia não é um sistema
total, mas um subsistema pertencente a um sistema maior. Não pode haver crescimento
ilimitado em um sistema cujos recursos são limitados. Nesse sentido, a natureza é por si um
limite ao crescimento econômico.
da Noruega, publicou o livro "Nosso Futuro Comum" que ficou conhecido como "Relatório
Brundtland".
De acordo com Hall (2001), pode-se perceber um paradoxo. Uma vez que as
organizações complexas, embora possam diminuir custos por meio de economia de escala, ao
35
mesmo tempo, têm aumentados seus custos devido ao aumento do tamanho de sua organização
e a consequente complexidade. Necessitam, deste modo, de mais pessoal para a resolução de
conflitos, controle e coordenação das atividades.
O tamanho parece ser uma variável simples, entretanto algumas discussões sobre
as fronteiras organizacionais sugerem que é problemático saber quem está dentro ou fora da
organização. O tamanho é uma variável que está na interface da organização e do ambiente,
pois o mesmo é também definido pelas condições externas. O tamanho pode ser tratado como
uma variável independente que molda e determina outras variáveis estruturais. A maioria dos
estudos sobre organização e estrutura tem utilizado o número de participantes como indicador
de tamanho, no entanto nem sempre este indicador é confiável (Scott, 2003).
para as organizações. Assim, nesse trabalho, embora se possa referir também ao crescimento
econômico em aspecto amplo, busca-se o entendimento da questão do crescimento em nível
organizacional. Contudo, uma vez que se admita ser o crescimento uma instituição presente no
contexto organizacional moderno, como é possível explicar a existência de organizações que
voluntariamente optam pelo não crescimento? Especificamente este estudo focaliza a
organização de trabalho artesanal na medida que se entende esta constituir instância de
resistência ao crescimento, tal como será apresentado nas seções 5.3 e 5.4.
Hoje, o trabalho artesanal talvez seja reflexo daquilo que já foi antes da
Revolução Industrial, mas adaptado aos tempos atuais com algumas características que
sobreviveram ao tempo. O artesão moderno dispõe de máquinas e ferramentas que facilitam o
trabalho. Muitas vezes máquinas e ferramentas produzidas por grandes indústrias. O trabalho
artesanal contudo, pressupõe em si uma componente artística no ato de produção de um objeto.
Arte, nesse sentido, denota que a produção de um objeto vai além da eficiência.
séculos passando pelos conceitos ligados à imitação da natureza, passando pela valorização da
qualidade do objeto imitado até à visualização do artista como gênio e criador separado da
natureza e igualando-se à Deus.
9
A convecção aqui reproduzida a.C. representa o termo Antes de Cristo, conforme referências consultadas.
42
tenha ocorrido por acaso, mas a descoberta do bronze inaugurou o período conhecido como
Idade do Bronze e corresponde a mais ou menos 3300 a.C.
A produção e uso de ferro foi concomitante ao uso bronze por um longo período,
mas por volta de 1000 a.C. o uso do ferro passou a ser predominante. A produção de ferro
envolvia seu derretimento em fornos primitivos tendo como primeiro resultado um tipo de ferro
fundido. Este ferro é duro e quebradiço, mas sua resistência é aumentada à medida que o ferro
ganha percentuais de carbono em sua composição. O carbono era adicionado ao ferro por meio
da contaminação do ferro pelo próprio carvão utilizado na fundição e forja10 das peças.
Inicialmente os ferreiros acreditavam que estavam purificando o ferro no processo de forja,
contudo, eles estavam na verdade transformando o ferro em aço por meio da adição de carbono
em sua composição química. A produção mais antiga de aço que se tem conhecimento é a de
aço wootz no Sul da Índia. Esse aço é produzido em cadinho e tem alto teor de carbono, tipicamente
entre 1,0 e 2,1%. Era produzido sob a forma de lingotes fundidos (FEUERBACH, 2006).
10
Forja é o processo de modelagem do metal por meio do aquecimento e choque mecânico. Forja também é o
nome que se dá ao forno utilizado para o aquecimento do metal que será moldado pelo ferreiro ou cuteleiro. Após
o aquecimento do metal a forma é dado por sucessivos golpes de martelo na peça sobre uma bigorna.
43
maleável não retém fio, como o ouro. Deste modo, deve haver um equilíbrio entre dureza e
maleabilidade. O teor de carbono dos primeiros aços fabricados variava de 0,07% até 0,8%
,sendo este último considerado um aço de verdade (SHERBY, 1999). Provavelmente, o
equilíbrio entre dureza e maleabilidade foi sendo desenvolvido empiricamente por tentativa e
erro.
A origem deste tipo de aço não é consenso, mas acredita-se que tenha recebido
o nome da primeira região em que este tipo aço foi visto pelos ocidentais, a cidade de Damasco,
Pérsia, atual Síria. As características das espadas de aço damasco impressionavam pela beleza,
leveza e habilidade de corte. Características nunca antes vistas reunidas em uma lâmina com
tanta harmonia. Atualmente as facas de aço damasco são bastantes valorizadas na produção de
44
facas artesanais. Não apenas na produção artesanal, mas também na produção industrial. Facas
de aço damasco são produzidas também em larga escala e até falsificadas. Atualmente muitas
facas de uso culinário são feitas usando essa técnica, como se pode observar na figura 2.
No final do século XIX descobriu-se o aço inox. Diferente do aço carbono o aço
inox é extremamente resistente à corrosão e assim foi considerado um potencial substituto do
aço carbono na confecção de armas de fogo cujos gases resultantes da queima da pólvora negra
eram extremamente corrosivos ao aço carbono. Contudo, a primeira aplicação para o aço inox
não foi para armas, mas para utensílios de cozinha, como facas e talheres que oxidavam
facilmente em contato com ácidos presentes nos alimentos (TYLECOTE, 2002). Ainda assim,
apreciadores de facas costumam preferir facas de aço carbono por sua maior capacidade de
retenção de fio.
É curioso que a metalurgia extrativa no país tenha sido inaugurada em São Paulo. Seu
início coincide com a união das Coroas portuguesa e espanhola entre 1580 e 1640, e
a principal preocupação colonial espanhola sempre foi a obtenção de metais preciosos.
Assim, os "engenhos de ferro" ligados ao nome de Afonso Sardinha, de 1590, em
Araçoiaba e Sorocaba, e o de Diogo de Quadros, em 1606, em Santo Amaro, são
incentivados pelo 7Q Governador Geral do Brasil, D. Francisco de Souza.
As forjas construídas por Sardinha operaram até a sua morte, em 1616. Após
essa data, a siderurgia brasileira entrou em um período de estagnação que durou até o século
seguinte.
46
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Por dispensar um referencial teórico, a priori não é método dedutivo, mas por
considerar teorias preexistentes, também não é indutiva. A lógica da Grounded Theory é
abdutiva e calcada em dois pilares principais: comparação constante e amostragem teórica
48
tese, a área empírica sobre a qual foi elaborada a teoria substantiva são as pequenas empresas
de trabalho artesanal que optam pelo não crescimento organizacional.
• Escolher um local ou grupo para estudo – escolha essa guiada pela questão principal da
pesquisa;
11
“as propriedades e as dimensões importantes de uma categoria foram identificadas, construindo variação, dando
precisão a uma categoria e aumentando o poder explanatório da teoria” (STRAUSS; CORBIN, 2008, p. 156).
50
Strauss e Corbin (2008) estimulam o uso da literatura não técnica como forma
de promover a sensibilidade teórica, uma vez que ela pode fornecer questões conceitos iniciais
e ideias para amostragem teórica e assim auxiliar na geração de subsídios para a formulação da
teoria. Encontrei uma vasta rede de cuteleiros, apreciadores, compradores, colecionadores de
52
facas em redes sociais e me inseri nelas. Desta forma, além de realizar observações e fazer
contatos face a face, também pude fazê-lo de forma virtual. Isso me possibilitou perceber mais
facilmente algumas nuances em minhas observações na cutelaria.
perguntas que inicialmente faziam sentido foram postas de lado e outras não faziam parte do
roteiro emergiram naturalmente.
Fonte: o autor
Depois de caída a barreira do estranhamento inicial, passei a ser visto como parte
daquele meio, mais ainda um observador externo. No final do período de observação, ou seja,
mais de sete meses depois eu já não era visto como um externo, mas como um dos tantos
frequentadores do local. Cabe dizer que, mais ou menos na metade do período de observação,
eu deixei de apenas observar e fui aceito como aprendiz do mestre cuteleiro.
A próxima seção diz respeito aos aspectos ligados ao tratamento dos dados.
Equipamentos de
Registro de imagens Observação
registro em mídia Codificação aberta,
eletrônica Anotações axial e seletiva
Registro de vídeos Observação participante.
em diário.
Equipamentos de
Práticas, atividades, Participação observante registro em mídia Codificação aberta,
técnicas Observação participante eletrônica Anotações axial e seletiva
em diário.
Fonte: o autor
Codificação aberta
Fonte: o autor
Codificação Axial
Codificação Seletiva
Strauss e Corbin (2008) afirmam que a ajuda de outros pesquisadores, que estão
mais distantes do estudo, pode ser altamente benéfica na identificação da categoria central.
Assim, nessa fase da investigação os dados foram discutidos com colegas do grupo de pesquisa
de Formas de Organização e Gestão de modo que eles pudessem contribuir na construção dessa
teoria substantiva.
58
Apresento, neste capítulo, o processo de análise dos dados que possibilitou a geração
da teoria substantiva. Nesse processo estão contidas a codificação aberta, axial e seletiva. Procuro
descrever elementos importantes para a compreensão do processo de pesquisa e da construção da
teoria substantiva, tais como a descrição da trajetória do pesquisador em campo e a análise descritiva
do contexto dos informantes, além das codificações. Cabe dizer que as etapas da pesquisa são
apresentadas separadamente em subseções, mas se sobrepuseram durante o processo de pesquisa
conforme orientam Strauss e Corbin (2008).
Esta análise, portanto, não é um processo estático ou rígido, mas dinâmico, criativo
e com constantes movimentos. Não houve pré definição de categorias analíticas como seria comum
na lógica dedutiva de investigação científica, mas definição a posteriori durante o processo de
tratamento dos dados seguindo a lógica abdutiva comum ao método da Grounded Theory (STRAUS
e CORBIN, 2008; MACIEL, 2011).
A organização desse capítulo segue lógica semelhante a de outras teses nas quais se
utilizaram do método da Grounded Theory (MACIEL, 2011; MENEGASSI, 2013). Descreve
importantes elementos para a construção da teoria substantiva como a trajetória do pesquisador em
campo e análise descritiva do contexto dos informantes.
Fazem parte destes tópicos como se deu o meu processo de inserção no meio
estudado, minhas impressões, dificuldades e o processo de adaptação. Conforme Charmaz (2009),
cabe o registro dos fatores que marcaram a passagem do pesquisador pelo campo, uma vez que é o
pesquisador parte do processo de coleta dos dados.
Para descrever a minha jornada em campo foi necessário rever todo o histórico de
informações geradas a partir de documentos escritos, imagens e vídeos. Partindo disso, elaborei uma
59
descrição densa em primeira pessoa de toda a experiência. Lembrando ser este um método
interpretativista, passei a analisar minhas próprias impressões sobre os fatos que se apresentavam
diante de meus olhos. A sensibilidade teórica para fazer perguntas, como sugerido por Strauss e
Corbin (2008), foi sendo construída desde o início das investigações iniciais e se aprofundando dia
a dia com contato com o campo.
A cutelaria ocupa parte de uma grande casa antiga cuja fachada se parece com uma
antiga fábrica. Outra parte da casa é ocupada por uma outra organização que trabalha com madeira.
Há um espaço em frente a essa casa onde ficam estacionados os carros.
Fonte: o autor
local em potencial para a pesquisa. Além dos dados positivos já levantados, minha intuição dizia
ser o local ideal. Abaixo, trecho de minhas anotações iniciais12:
Fiquei com receio de lidar, resolvi ir direto à cutelaria, dar uma sapeada por lá. Lá
chegando, o cuteleiro não estava. Conversei com duas pessoas que estavam lá, não sei se
eram cuteleiros ou aprendizes. Esperei por 15 min. Como ele não chegou fui embora. Fiquei
um pouco frustrado, mas estou com medo de forçar a barra. Por outro lado preciso definir
logo o período de observação. Talvez eu devesse ser mais assertivo. Caso não seja possível
o campo nessa cutelaria, continuo o processo. Mas espero que isso se resolva logo. (Nota
de campo do dia 18/Março/2015)
Mais uma vez não quis ligar e resolvi vir direto à cutelaria novamente, cheguei lá por volta
das 14 horas. O cuteleiro não estava, então pedi às duas pessoas que estavam trabalhando
para aguardar por ele. Ele não apareceu. Disseram que ele poderia estar com enxaqueca,
que eventualmente isso ocorria. Acabei ficando e passei a tarde toda na oficina observando
e foi bastante agradável. Conversei muito com um dos alunos (Cláudio) que é chefe de
cozinha de São Paulo. Está fazendo curso de cuteleiro e nele está fazendo uma faca de
cozinha. Quando cheguei ele estava usando a furadeira para cortar uma chapa de metal. Em
breve essa chapa vai virar uma faca, disse ele. De quebra ele me ensinou uma receita de
tempero para carne de porco. (Nota de campo do dia 19/Março/2015)
Os primeiros contatos com o mestre cuteleiro Peter foram muito amistosos. Apesar
do ar intimidador imposto pela grande barba ruiva, estabelecemos inicialmente um diálogo amistoso
e informal. Na primeira entrevista formal eu tive muita preocupação de tudo gravar. Essa entrevista
ocorreu no início do mês de Março e determinou a escolha definitiva da cutelaria. No segundo
encontro eu levei a transcrição para sua apreciação, e solicitei a autorização para realizar a
observação que se iniciou imediatamente. Minhas notas contém, além das minhas impressões, o
descritivo mais apurado que pude fazer do ambiente.
Abaixo segue minha escrita feita após a primeira entrevista formal com o cuteleiro
onde relato minhas primeiras impressões. Esta entrevista marcou o início da observação
participante. Abaixo algumas notas sobre minha inserção no campo:
12
Serão citadas doravante trechos de anotações de campo e de entrevistas. Notas de campo corresponderão à anotações
feitas por mim sobre minhas próprias impressões de fatos observados ou experiências, mas podem também representar
a voz dos informantes, uma vez eu procurei anotar suas falas do modo como foram ditas em momentos diversos do
cotidiano da cutelaria. Trechos de entrevistas corresponderão sempre à fala literal de cuteleiros ou aprendizes que
concederam entrevistas formais e informais.
62
impressionado por falar com alguém “importante”. Uso as palavras que primeiro me vêm
à mente, talvez não sejam as melhores, mas o fato é que hesitei um pouco até adentrar à
cutelaria e perguntar sobre Peter. Depois de estacionar a moto, andei uns poucos passos ao
lado da construção e adentrei por uma porta. O local parecia um depósito cheio de máquinas
diversas, lixadeiras, estantes com coisas diversas, muitas delas antigas. Havia algumas
mesas sobre as quais muitas coisas eram amontoadas. Mais ou menos ao fundo, cerca de
2/3 da sala, havia uma escrivaninha, que se percebia ser escrivaninha depois de ver que
havia uma cadeira do outro lado. Em um dos lados da sala estavam as lixadeiras nas quais
dois alunos trabalhavam. Peter me recebeu com um grande sorriso. Estava vestindo calça
jeans surrada, uma jaqueta camuflada tipo gandola de exército e botas pesadas.
Naturalmente senti grande empatia. Tanto pelo local, que me lembrava a oficina de meu
pai onde cresci em meio ao cheiro de graxa (no caso da cutelaria não havia tal cheiro),
quanto pela aparência despojada do sujeito. Imediatamente me lembrou os tempos de
escoteiro. Ele é ruivo e apresenta uma grande barba. Sua figura lembra a de um lenhador
canadense. Ele parecia ter chegado a pouco tempo na cutelaria, parecia estar ainda se
arrumando. Enquanto nos apresentávamos ele ia guardando uma ou outra coisa. Me
orientou a deixar a mochila na cadeira e então percebi que conversaríamos ali mesmo, em
pé no meio da oficina enquanto ele cuidava de seus afazeres, e os alunos lixavam suas facas.
Pedi autorização para gravar e iniciamos o bate papo. (Nota de campo do dia
30/Março/2015)
Fui apresentado aos aprendizes como alguém que estava fazendo um estudo sobre
trabalho artesanal. Todos ficaram curiosos sobre o teor da minha pesquisa, mas procurei omitir os
detalhes. De fato, embora eu soubesse que ocorriam cursos nesse local, foi para mim uma surpresa
a forte relação entre o ensino da cutelaria com as demais atividades.
Nos primeiros dias tentei fazer uso do notebook para registros, mas desisti. Não havia
um local adequando e a limalha de ferro poderia causar problemas técnicos no equipamento.
Durante todo período de observação, os registros digitais foram realizados por meio de notas
adicionadas em um aparelho de celular, um tablet e um notebook de acordo com a conveniência.
Esses aparelhos faziam automaticamente a sincronia de anotações entre eles e também com o
computador, que utilizei para centralizar os dados. Áudio, imagens e vídeos também foram
registrados com auxílio desses equipamentos. Também usei em alguns momentos uma câmera
filmadora GoPro.
A primeira semana foi uma sensação de alívio por finalmente estar em meu local de
observação misturada com outras tantas sensações. Uma delas, a de observar sendo observado.
Desde o início de minha trajetória acadêmica relutei um pouco com o termo ‘observação não
participante’. Embora não tivesse dado maior atenção a isso antes, durante as primeiras visitas de
observação em campo me deparei com essa questão. Tive a mesmo impressão relatada por Maciel
(2011) quanto à impossibilidade de não participar de algum modo da rotina do meio em que me
encontrava. O simples fato de estar lá já causava alguma impressão nas pessoas e isso já era o
suficiente para ‘participar’ de algum modo. Por mais que eu tentasse me fazer despercebido, por
óbvio isso não era possível. Eu fingia estar fazendo alguma coisa, afiando uma faca, cortando um
couro ou folheando uma revista. Em uma conversa futura com um dos aprendizes tive uma pista de
como eu era visto. Registrei em minhas anotações:
63
... a frase de um cuteleiro me deixou meio sem jeito hoje... disse ele “aqui todo mundo está
sempre ocupado com alguma coisa, ninguém está à toa... ninguém fica perdendo tempo e
isso é bom porque cada um faz o seu trabalho... (Anotações de campo do dia 05/Maio/2015)
Quando percebi que minha presença era motivo de curiosidade, procurei ser discreto quanto
aos meus objetivos de pesquisador, ainda que tivesse que explicar por que ali estava.
Contudo, me pareceu que o fato de estar ali como observador não constituiu uma
preocupação para as pessoas. Alguns até pareciam gostar de mostrar o que estavam
fazendo. Com exceção de um cuteleiro mais antigo. Esse parecia se incomodar de me ver
parado, sem nada produzir. Esse me falou umas duas ou três vezes que ele gostava daquele
ambiente, porque, entre outras coisas, todos estavam sempre ocupados fazendo alguma
coisa, ninguém estava ocioso. (Anotações de campo do dia 01/Maio/2015)
Eu realmente gostaria de estar fazendo alguma coisa útil, mas por outro lado, não
queria interferir no andamento das atividades da oficina. Principalmente sem a orientação do mestre
cuteleiro. O desconforto perdurou por um bom tempo até que eu parei de me incomodar.
Eventualmente um dos aprendizes me perguntava quando eu começaria a fazer minha faca e eu
desconversava, pois isso não estava nos meus planos. Eu costumava conversar sobre as atividades
que estavam sendo desenvolvidas pelas pessoas. Com o cuidado para não incomodar, afastava-me
quando achava que cuteleiros ou aprendizes estavam concentrados. Mas o normal, na maioria das
vezes, era que quisessem trocar ideias, davam conselhos e ensinavam coisas. Algumas vezes bastou
que eu passasse meu canivete em uma pedra de afiar para que eu imediatamente recebesse algumas
lições de afiação.
Com o passar do tempo essa relação foi se estreitando e eu fui sendo aceito pelo
grupo. A relação de alteridade foi sendo modificada pela minha incorporação de alguns traços da
identidade daquele grupo. Como já mencionei, houve empatia desde o início. Então, foi-me natural
a aproximação. O fato de estar afastado do trabalho na faculdade me proporcionou um bom grau de
liberdade. Com o passar de alguns meses minha barba já se mostrava mais comprida como nunca
havia estado. Eu passei a usar roupas um pouco mais pesadas como calças de algodão, cinto e botas
e, para espanto de alguns, adicionei por algum tempo uma faca ao meu kit diário de coisas que
carregava. 13
Roupas mais pesadas são, além de estilo, necessárias para a proteção no ambiente da
oficina. Há materiais cortantes, perfurantes e principalmente a forja que eventualmente fica o dia
todo funcionando. Estas forjas usadas em cutelaria podem atingir facilmente mais de mil graus
Celsius e as lâminas são retiradas delas incandescentes. Botas de couro e roupas de algodão são,
13
Em alguma medida passei por um processo aproximação identitária.
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portanto, necessárias. Eu diria que são usadas apenas pela questão de segurança, se não tivesse
percebido que alguns cuteleiros não possuem roupa de trabalho. Usam as mesmas roupas com as
quais chegam da rua. A maioria com botas de couro e calças com bolsos grandes. Alguns gostam
de jaquetas camufladas. Além de roupas apropriadas, usam-se equipamentos de proteção como
óculos, avental de couro e outros a depender da atividade a ser exercida.
Algo que me chamou muito a atenção foi o fato de que o porte de facas, para vários
cuteleiros com quem tive contato, é algo tão natural quanto usar um relógio de pulso. Isso me
pareceu inicialmente um traço muito natural para eles, ainda que socialmente tenha-se a ideia
construída de que uma faca é uma arma. Perguntado sobre isso, um cuteleiro disse que ninguém
pode ser preso pelo porte de uma faca.
De fato, a faca é tida como arma branca pelo artigo 3º do Decreto 3.665/2000
(BRASIL, 2000) que define como arma branca o “artefato cortante ou perfurante, normalmente
constituído por peça em lâmina ou oblonga”. Este decreto destina-se a estabelecer as normas
necessárias para a fiscalização de produtos controlados pelo Exército. Contudo, a Lei de
Contravenções Penais (BRASIL, 1941) não trata de armas brancas e assim objetos desta natureza
não estão tipificados. Em outras palavras: não estão proibidos pela lei, assim não se pode punir o
cidadão pelo simples porte de uma faca. A Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, II diz que
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL,
1988). Deste modo, abre-se uma brecha para interpretações jurídicas.
Sempre foi meu costume portar canivete. Sou apreciador dos canivetes suíços
Victorinox desde criança. Mas sempre tive um sentimento de estar fora da lei com isso.
Eventualmente, algum amigo questionava: Mas você anda armado? A mesma pergunta é feita
quando alguém vê o facão no porta malas do meu carro. Ainda assim, eu quis passar pela experiência
de portar uma faca tal qual fazem os cuteleiros. Vários dos cuteleiros que participaram dessa
pesquisa portavam sempre facas por eles próprios produzidas, uma vez que facas comerciais não
são vistas com bons olhos. Embora algumas marcas seja reconhecidas como boas, é nítido a
preferência pelas facas produzidas de forma artesanal. Além dos aspectos mecânicos, outros
aspectos elevam a faca artesanal a um patamar superior. Inicialmente achei isso uma questão de
marketing, como ocorre em qualquer outra situação de valorização de um produto. Mas essa questão
se mostrou um pouco mais profunda, tanto no relato de cuteleiros, descrito no primeiro trecho
abaixo, quanto no de aprendizes, descrito no segundo trecho:
Então, aquilo que o samurai e outros falavam que a espada... é claro que eles falavam muito
das espadas... que elas tinham alma, que elas tinham energia. A gente considera isso, até
nas facas. Porque quando eu faço uma faca, eu fico horas e horas trabalhando numa peça.
Ela, de alguma maneira, absorve a minha energia de trabalho. E eu já senti isso. Eu estudo
um pouco essas coisas, empiricamente, é claro. Eu já senti que às vezes você tá fazendo
65
uma faca para uma pessoa, encomendado por outra. Você não conhece a pessoa. Você
começa a sentir certas características de certas pessoas. É engraçado se a pessoa está
passando por um problema. Aí depois você comenta com o que encomendou: - Escuta, esse
cara aí...? A pessoa comenta com você... E bate, sabe? Parece que uma forma, assim, uma
antena. É um negócio interessante... místico, mas eu acho que não. É místico pela nossa
ignorância, mas eu acho que é uma coisa física. De alguma maneira ela ocorre, e a gente
não entende bem. O ferro tem propriedades magnéticas. Isso é fato. E a gente não conhece
muito sobre isso. Magnetismo é uma incógnita. (Entrevista com cuteleiro,
25/Fevereiro/2015)
Então, cara, é assim, as vezes a gente tá trabalhando em uma peça e tudo começa a dar
errado. Aí você percebe que você não está legal. Tem alguma coisa no ar. Então você vai
fazer alguma outra coisa, porque é um fato que se você não está bem vai passar isso pra
faca. Pra você trabalhar precisa estar sereno. É o lance que os orientais falam, tudo é energia
e a sua energia também vai pra faca... (Entrevista com aprendiz, 20/Maio/2015)
No início eu fazia muitas anotações e registros, mas à medida em que o tempo foi
passando e as coisas deixando de ser novidades, eu diminuí meu ritmo de registros. A codificação
já não exigia tantos códigos novos. Um tempo depois eu fiquei preocupado, pois tinha a sensação
de que estava deixando as coisas passarem sem registrar. Tudo parecia ser importante, e isso foi
tema de discussão com meu orientador. Também me senti mais integrado ao espaço à medida que
o tempo passava. Isso foi registrado em minhas anotações de campo:
Minhas primeiras observações na oficina ocorreram já há três meses. Durante todo esse
tempo estive quase todas as tardes acompanhando o trabalho dos cuteleiros e de seus
aprendizes. Se por alguns momentos eu procurava ficar invisível para que não fosse
percebido pelos olhares dos presentes, com o passar do tempo eu passei a me sentir parte
do lugar. Não apenas pela hospitalidade daqueles que me recebiam, mas pela minha
percepção de estar em local familiar. Esta percepção foi construída durante esse período.
Concluí, intimamente, que observações não participantes, fazem parte de um rol de
conceitos científicos deslocados da realidade, pois a minha experiência me mostrou que
não há como não participar de um grupo social quando se está inserido nele. Por mais que
tentasse passar despercebido tornou-se óbvio que eu era notado. (Anotações de campo do
dia 30/Junho/2015)
Eu observei uma hierarquia informal, mas muito clara na dinâmica daquele ambiente.
Embora ninguém precisasse dizer, sabia-se que os mais velhos e conhecedores do ofício tinham
66
autoridade sobre os mais novos. Curiosa foi a conversa que tive com um dos alunos, o mais velho
entre eles, na qual ele demonstra se posicionar nessa hierarquia:
Não havia horário para entrar ou para sair, nem tampouco alguém controlando isso.
Aprendizes mais antigos podiam abrir a oficina ou ficar até mais tarde trabalhando, uma vez que
dispunham das chaves do local. Mas em geral a oficina era fechada quando dava o horário do Peter
ir embora.
A primeira aula do curso é teórica. Inicia-se com a história da relação que temos
como os metais desde a pré história até os dias atuais. Já havia ouvido essa história quando
acompanhei o início do curso de outro aprendiz, mas Peter pareceu fazer questão de cumprir o
protocolo. Mas o que para mim mais se destacou foi que nesse, e absolutamente em todos os outros
inícios de curso que acompanhei, ouvi o seguinte discurso:
... nesse momento você assume o compromisso moral comigo de repassar um pouco ou
muito do que aprender para outra pessoa. Pode ser para um futuro aluno seu, um amigo ou
mesmo para o cliente que vai comprar sua faca... (Anotação de campo do dia
08/junho/2015)
67
Uma profissão fechada morre. Ela acaba. Hoje tem mais de 600 (cuteleiros). Eu posso te
garantir que mais da metade é por minha causa. Existe uma geração de alunos, de alunos
dos meus alunos. Todos os meus alunos saem daqui com o compromisso de ensinar alguém
um dia. E já foram bem uns 250 alunos nesse tempo todo. Existe gente que leva isso muito
a sério e deu muita aula. Esse meu primeiro aluno, exatamente dez anos depois de ter feito
suas aulas, era professor de biofísica e bioquímica, ele estava fazendo seu doutorado. De
família alemã, morando em Florianópolis. Era um camarada que tem uma visão muito
pragmática, muito lógica, muito clara das coisas, por efeito do próprio trabalho e pela
origem, da criação alemã. Dez anos exatamente depois que ele fez... no mesmo mês do ano
em que faziam dez anos ele trouxe o filho dele pra fazer o curso. (Entrevista do dia
26/Março/2015)
Houve muitas interrupções de pessoas que chegavam na oficina, e uma pausa grande
para que um ex-aluno contasse sua história de como conseguiu se livrar da rotina de trabalho do
“mundo normal” para fazer o que gostava. Uma história que parece corroborar com que o próprio
Peter diz desde o começo de nossas conversas sobre as pessoas que procuram pelas suas aulas,
frequentemente pessoas frustradas com os destinos que suas vidas seguiram. Procurando remediar
isso com uma atividade que lhes dê algum sentido e satisfação.
Na segunda aula iniciamos o trabalho depois de muito bate papo. Peter fez o projeto
de uma faca explicando como e por que fazia dessa ou daquela maneira e em seguida pediu que eu
fizesse. Não que copiasse, mas que refizesse obedecendo alguns limites que ele estabeleceu quanto
a comprimento, largura, proporção etc.
... Peter orientou “As médias são bem simples, você pode usar ¼ ou 5/8 ou 3/8. Porque é
isso que você vai encontrar para comprar”. Peter sempre se atém aos detalhes práticos como
coisas fáceis de se encontrar para comprar ou de fácil acesso na região do aluno. Tudo
muito prático e orientado à uma situação pragmática comprometida com a viabilização de
uma atividade futura. O primeiro aluno com quem conversei estava fazendo tudo sem usar
a lixadeira. Dava um trabalho muito menor se fizesse uso da máquina. Peter me explicou
depois que, como ele morava em uma outra cidade e não teria máquinas à sua disposição,
deveria aprender a fazer sem elas. (Anotações de campo do dia 09/Junho/2015)
Depois de algum tempo terminei o meu desenho, que era cópia quase fiel do desenho
dele. Preferi a segurança da cópia à aventura do desconhecido. Há muito tempo não desenhava e
não imaginava que faria um desenho tão bom, ainda que estivesse copiando. Peter insistia dizer que
ele nunca teve nenhuma habilidade inata, que precisou aprender como muita gente faz.
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Figura 7 - Projeto
Fonte: o autor
Após realizar o desenho, fiz três cópias dele. Uma para fazer o molde da lâmina,
outra para fazer o cabo e uma reserva. Fazer o molde da lâmina é basicamente recortar a parte da
lâmina do desenho e colar em uma folha de metal que depois também é recortada. Essa lâmina de
metal é um tipo de zinco e se corta com uma tesoura especial. Segundo o Peter, o alicate que ele usa
é um alicate da Corneta14 que foi projetado sob encomenda para cortar alho. Honestamente, não dá
nem para imaginar como se cortaria alho com um alicate como aquele.
14
Corneta é nome de uma indústria brasileira que produz ferramentas e peças para indústria automobilística. Peter
trabalhou nessa indústria durante o desenvolvimento de um projeto de cutelaria. Nesse projeto houve a associação da
indústria com o cuteleiro de onde se resultou a faca Wotan, uma das facas nacionais mais valorizadas por colecionadores.
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assim o arremate é feito no esmeril. O molde será usado depois, quando estivermos trabalhando na
lâmina. Será um guia para verificar se as medidas estão corretas de acordo com o projeto inicial.
Tendo o molde e uma peça de aço já é possível trabalhar na lâmina por desbaste.
Nesse caso, as próximas ferramentas seriam esmeril, lixadeira, lima, furadeira etc. Contudo, uma
opção ainda mais artesanal é moldar a peça por meio da forja. Forjar é dar forma ao aço por meio
de sucessivos golpes de martelo no aço quente. Assim, se você tem um pedaço de metal qualquer
pode transformá-lo em uma barra de comprimento, largura e espessura adequadas à faca que
pretende construir. Forjar é, portanto, dar forma.
- a temperatura da peça: é preciso deixar a peça dentro da forja até que adquira uma
cor vermelho cereja. Lembrei disso quando me foi ensinado pelo aprendiz assistente de Peter15,
enquanto ele forjava sua própria peça. Antes disso (mais frio), o aço é mais duro, consequentemente
mais difícil de forjar. Depois disso (muito quente), pode perder suas propriedades químicas
tornando-se inútil para uma faca.
- a posição: inicialmente eu adotei uma posição de boxeador, com uma perna para
frente e outra bem para trás, o que fazia com que meu corpo se projetasse para frente para dar os
golpes de martelo. Com o tempo e dicas do Franco, adotei uma posição mais ereta e mais próxima
da bigorna. Isso facilitou muito o trabalho.
- o ritmo: as batidas exigem uma cadência, não basta força. Bater de forma ritmada
diminui o esforço e faz cansar menos. Mas eu não consegui chegar a esse ritmo sem antes ficar
exausto. Por vezes, pensei em parar e continuar outro dia, mas prossegui.
15
A maioria dos nomes foram alterados ou omitidos com a intenção de preservar a privacidade dos informantes. O
assistente de Peter era um jovem aprendiz que já havia terminado o curso básico de formação de cuteleiro, mas que
frequentava quase diariamente a oficina. Era aluno do curso de graduação em História e tinha predileção por facas e
armamentos medievais. Atuava como assistente do cuteleiro na oficina e em assuntos diversos.
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- a intensidade: as batidas devem ser firmes e precisas. O martelo deve atingir a peça
em plano. Não se deve bater com a lateral, porque assim se faz “buracos” na peça
Ao final de umas duas horas eu já estava exausto, com as mãos inchadas, cheias de calos. Há muito
tempo não pegava no pesado dessa forma.
Figura 8 - Mãos
Fonte: o autor
Olhava para minhas mãos, lembrando-me de quando trabalhava com enxada quando era criança.
Seja na horta de minha mãe, seja carregando areia. As mãos são as primeiras que sofrem. Chegando
em casa eu mal conseguia fechar as mãos. Ainda estavam inchadas e avermelhadas com algumas
bolhas aparecendo. Deixei para o dia seguinte a tarefa de digitação das observações do dia. No dia
seguinte restavam as bolhas e os calos. As bolhas lembravam as queimaduras que sofro
eventualmente quando eu faço pão. Já os calos, esses voltaram depois de anos sem aparecer. Talvez
uma das grandes redescobertas que fiz foram minhas mãos. Quando nos referimos ao trabalho
artesanal, como aquele em que se trabalha com as mãos, e nunca trabalhamos com as nossa próprias
mãos, não temos a exata compreensão dessa definição em mente. Essa experiência me fez refletir
no modo como a experiência nos faz atribuir os sentidos das coisas.
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No segundo dia forjando percebi que minhas marteladas não eram eficientes. Mas
Peter me deixava lá martelando. Nesse período tive a impressão de que de isso era proposital, para
que eu sentisse o peso do martelo e adquirisse a experiência necessária com esse trabalho. Nesse
dia, ele me deixou sozinho na oficina, pois precisava fazer algo fora. Fiquei horas martelando minha
peça. Já não machuquei tanto as mãos. Adquiri uma postura melhor para martelar. Ainda que me
sentisse ineficaz no trabalho, já conseguia martelar com muito mais jeito. Aproveitei para fazer
alguns vídeos do meu trabalho de forja.
Em uma tarde, chegando na oficina avistei uma senhor sentando esperando. Era um
homem negro, alto e forte, portando uma mochila camuflada. Cumprimentei-o e perguntei se
esperava por Peter. Ele disse que sim. Esse homem tinha por hobby trabalhar com madeira, e Peter
lhe fazia uma goiva16 enquanto ele estava por lá. Enquanto Peter fazia a ferramenta para o amigo
eles conversavam e eu trabalhava em minha peça. Depois que o homem foi embora Peter falou das
qualidades do amigo. A goiva não foi uma venda, nem tampouco um presente. Percebi que algumas
vezes não havia dinheiro envolvido nas trocas. O escambo era algo relativamente comum, tanto para
cuteleiros formados quanto para os aprendizes que estavam a fazer suas primeiras facas. No trecho
abaixo, um cuteleiro novato relata a finalidade de seus trabalhos recentes:
[...] essa faca é para minha mãe, depois vou fazer um para minha namorada e tenho que
terminar a Karambit17 pra pagar minha tatuagem [...] é uma Karambit, parece uma garra de
tigre né? Sua função é furar e rasgar, como um predador mesmo. É mais uma arma que uma
faca. É usada nas Filipinas. Conhece o Doug Marcaida? Tem uns vídeos dele no youtube.
Animal! (Nota de campo do dia 16/06/2015)
Hoje Peter estava orientando um cuteleiro novato sobre uma troca. Interessante que ele
valoriza e ensina a valorizar o trabalho. Ele dizia: “Você precisava valorizar seu trabalho.
O cara tá fazendo uma conta mental de quanto vale o item dele e você tem que ter em mente
quanto vale suas facas... não vai entregando de graça ou seu trabalho não vai valer nada.
Quanto vale cada faca dessas que você fez? Então, esse é o valor. (Nota de campo do dia
07/07/2015)
No dia da goiva, Peter criticou meu trabalho. Reclamou pelos defeitos que eu havia
deixado na peça. Eu fiquei chateado com isso. Principalmente porque o defeito, ao meu ver, estava
em uma parte da peça que não seria usada (porque tinha um furo) e era um defeito (dobra), e estava
lá desde o primeiro dia de trabalho. Fiquei brabo, porque o Peter foi áspero, seco, como sempre foi
com os demais alunos. Na verdade, esse seu jeito sempre foi assim. Desde que eu iniciei as
observações. Mas é diferente quando se está vivendo uma situação. Mas eu nada disse. Apenas
16
Um tipo de ferramenta parecido com um formão, mas de seção côncavo-convexa, com o corte do lado côncavo,
utilizada por artesãos e artistas para talhar os contornos de peças de madeira.
17
Karambit é uma pequena faca curva em forma de garra. É utilizada em combate e teve origem no sudeste asiático. É
comum ser associada a lutas Filipinas.
72
deixei de sorrir e me mantive mais sério. Penso que ele percebeu. Algum tempo depois, quando me
despedia senti que ele queria dizer algo, mas não disse, apenas houve uns segundos de silêncio
seguidos de algum comentário sobre o problema econômico nacional.
No dia seguinte, eu não estava com vontade de ir à oficina. Por um lado, não queria
ir, mas por outro me sentia no dever de fazer meu trabalho, ainda que pudesse estar chateado. Enrolei
em casa e resolvi ir já no final da tarde. Cheguei lá já tarde. Era sexta-feira e Peter iria para outra
cidade ministrar um curso de afiação. Acompanhei-o até uma serralheria próxima à cutelaria. Fiquei
impressionado por haver um local como aquele bem no meio da cidade. Um espaço muito grande
com muita madeira.
Neste ponto Peter me pediu que o ajudasse com numa apresentação que ele faria em
um congresso de gastronomia. Segundo ele, esse tipo de atividade ajuda a divulgar seu trabalho e
desperta no público o interesse para cutelaria. Nos dias que se seguiram eu trabalhei na pesquisa e
montagem da apresentação, que teve mais ou menos a mesma sequência do curso de cuteleria, mas,
obviamente, com muito menos conteúdo. Foi necessário de minha parte um pouco de estudo para
levantar algumas informações históricas e imagens ilutrativas, e isso me ajudou também a entende
melhor o contexto da indústria siderúrgica e suas contribuições para o desenvolvimento da
humanidade. A coleta de dados encerrou-se em meados de Novembro de 2015, uma vez que já se
havia atingido a saturação teórica.
Sennet (2013) aponta que o trabalho artesanal demanda uma certa dose de tolerância
com bagunça. Para os olhos de um neófito aquela cutelaria não representava outra coisa além de
uma grande bagunça. Entretanto, com o passar do tempo percebe-se uma ordem sob o aparente caos.
Como se a bagunça fosse uma camada assentada sobre algo inicialmente organizado. Os locais de
trabalho foram organizados logicamente e eram usados de acordo com a tarefa a ser realizada. Havia
a bancada de morsas, de confecção de couro, o local das lixadeiras, a área de afiação, o local de
solda, a área da forja e das bigornas, bem como os locais das máquinas pesadas como a prensa e a
furadeira industrial.
74
Figura 9 - A oficina
Fonte: o autor
...E aí naquele momento eu comecei a achar uma atividade funcional pra faca. Mais legal,
tinha instrução, cada um tinha seu facão... cada um tinha seu canivete, cada um tinha sua
faca... todos os escoteiros, todos... se o chefe encontrasse em qualquer momento na cidade:
você tinha que ter seu canivete, o apito e dois metros de cordel no bolso... e a sua carteira
de escoteiro. Era para ser assim. Na escola era assim, na rua era assim... porque o escoteiro
está sempre pronto. Sempre pronto. E a vida inteira eu gostei de faca, então quando eu vim
para o sul em 83 ou 84, que eu vim eu voltei para o estado de São Paulo, a gente via coisas
maravilhosas. Aí saía uma revista brasileira sobre armas e facas, mostrava coisas fantásticas
que eu não tinha a menor condição de comprar. Eu mal conseguia compra a revista, né? Era
a revista mais cara do Brasil e eu economizava as moedas para poder comprar. Quando eu
tinha... 20 anos... eu decidi fazer uma cutelaria. E até então existia sete cutelarias no Brasil.
E todas eram de caras bem, bem, bem mais velhos do que eu, o mais novo tinha 48 anos. E
a revista falava: o cara tem que ter um conhecimento técnico absurdo, tem que ter um
equipamento formidável, tem que ter uma habilidade sobre-humana para conseguir realizar
75
isso aqui. Eu fiz a primeira cutelaria de gente, na faixa dos 20 anos. E fez um enorme
sucesso. E dela se derivaram, quando ela se dissolveu como sociedade... os dois assistentes
montaram uma cutelaria que derivou depois em duas, o meu ex-sócio com o irmão dele
manteve a cutelaria, eu abri a Hammer, em 93, e daí pra frente eu venho trabalhando com
isso. Comecei como autodidata, eu não tive condição naquela época... sem internet... sem
ninguém falar inglês... sem nada disso. Daí você tinha que ir perguntando, acumulando
experiências exitosas, descartando as fracassadas e tentar nisso chegar a um resultado
estável... por um caminho razoável... (Entrevista do dia 27/02/2015)
O espaço descrito acima era, antes de tudo, uma área de encontro e convivência. Por
esta área passavam frequentemente, aprendizes, ex-aprendizes (cuteleiros novatos) cuteleiros,
clientes, fornecedores, parceiros e amigos.
Hoje iniciou o curso um aluno novo. Leandro. Aparentemente ele já faz facas em casa. Ele
trouxe duas facas feitas por ele para mostrar. Esse intercâmbio é comum, como se fosse um
cartão de visitas. Disse que viu outras opções de curso, mas pesquisou e viu que na Hammer
poderia ter aula com ex professor dos outros cuteleiros que ensinam. Então ele preferiu
aprender com o Peter. Esse aluno parece ser bem envolvido no meio da cutelaria. Como
todos nesse meio, carrega sua própria faca, canivete, uma pequena lanterna etc...
(Anotações de campo do dia 25/06/2015)
Ivo estuda design. É um pouco diferente dos demais. Não tem um estilo tão rústico. Parece
que seus interesses são mais acadêmicos. Já terminou sua primeira faca e está trabalhando
na bainha. (Anotações de campo do dia 13/05/2015)
[...] moro em São Paulo, sou chef de cozinha. Vou ficar umas duas ou três semanas aqui
só. É só tempo de aprender. Tô aproveitando um tempo que tenho e depois eu volto... lá
também tem curso, mas achei melhor vir aqui em Curitiba (Entrevista realizada em
17/03/2015)
O segundo grupo de aprendizes era formado por aqueles que permaneciam um grande
período na cutelaria sob orientação do mestre cuteleiro. Embora já podendo ser considerados
cuteleiros pelo fato de terem autonomia para produzir suas próprias peças, consideravam-se ainda
aprendizes.
[...] Takao trabalha com cutelaria a dez anos, iniciou seu aprendizado com seu pai no Estado
de São Paulo. Trabalha muito quase todos os dias. É uma presença quase permanente na
oficina. Nunca está parado. Está sempre trabalhando em uma faca ou uma espada. Embora
18
Como não solicitei a autorização expressa de todos os envolvidos para referencia-los nessa tese adoto alguns nomes
fictícios nas descrições a fim de preservar suas privacidades.
76
tenha dito ser aluno ele é responsável por ensinar novatos. Na hierarquia da oficina ele é o
mais respeitado depois do mestre cuteleiro. (Anotações de campo do dia 24/06/2015)
[...] Fabio é uma figura. Aparenta ter não mais que 25 anos, mas tem muitas vezes o ar de
gente ainda mais jovem. É meio estabanado e vive recebendo repreensões do Peter. Seja
por estar fazendo algo errado ou por estar dizendo algo errado. É o mais novo na oficina e
a relação entre ele e o Peter muito se assemelha a uma relação paternal. Já está em um nível
avançado, pois faz suas próprias peças, mas tudo que faz mostra para o Peter e pede sua
opinião. Costuma ensinar os mais novos casualmente no dia a dia (Anotações dia
25/06/2015)
Ex-aprendizes às vezes passavam algumas poucas horas para visitar ou para mostrar
alguma peça produzida ou por tempo mais prolongado quando precisavam fazer uso da oficina.
Havia um custo a ser pago pelo uso das máquinas, mas eu percebi que a relação monetária ficava
em segundo ou terceiro plano. Em geral, havia sempre alguma troca ou colaboração. Alguém que
encontrou no ferro velho boas capas de rolamento que poderiam ser forjadas ou lâminas de zinco
para molde ou madeira para os cabos. Muitos materiais usados na produção de facas eram
aproveitados dessa forma por serem muito mais em conta.
Muitos dos amigos que frequentavam a cutelaria tinham atividades afins com a
cutelaria. Algumas vezes eram cuteleiros, outras vezes artesãos que trabalhavam com madeira ou
couro. Eventualmente artesãos em tempo integral, outras apenas hobbistas. Alguns desses eram
parceiros auxiliando em trabalhos específicos de suas áreas de conhecimento ou com recursos
específicos. Eventualmente tínhamos a visita de algum colecionar de facas, normalmente amigos ou
amigos de amigos.
...Fabio, o que o senhor está fazendo? De costa pra forja? Você tá doido? Quantas vezes eu
já falei? (Anotação de campo do dia 12/04/2015)
Quem deixou a cola aberta? Quantas vezes eu já falei que tem que fechar a maldita lata de
cola? Se não fechar seca tudo e é matéria que tem que ser reposta. (Anotação de campo do
dia 17/04/2015)
77
[...] E a questão do trabalho do jovem ficou isso. A coisa mais legal que tinha antes: o pai
é carpinteiro, vai levar o filho dele para ver o trabalho dele desde pequeno, ele vai se
acostumando com aquele ambiente, vai se acostumando a ver o que é aquilo, para que na
hora que ele decidir procurar um trabalho ele sabe o que é o trabalho, o que é um dia de
trabalho, o que é um dia de esforço... não, o pessoal agora pega alguém com 16, 17 anos
que nunca bateu um prego numa barra de sabão e fala: olha, diante dessa lista aqui você
escolhe uma profissão e você vai seguir ela para o resto de sua vida. O resultado: são
profissionais horríveis que escolheram o curso porque era o que pagava mais, o que era
mais fácil de entrar... com o qual ele não tinha nenhuma afinidade e vai ficar um péssimo
dentista, um péssimo medico, um péssimo psicólogo, um péssimo professor... (Entrevista
do dia 30/Março/2015)
(...) veja, seu quisesse ganhar mais dinheiro eu teria que mandar meus alunos embora.
Aluno gasta mais material, quebra ferramenta, faz um monte de coisa que eu tenho que
repor depois. Mas se esse cara apareceu no meu caminho é porque eu tenho que lidar com
ele. Eu creio nisso. Há um motivo para cada um que veio aqui ter vindo pra cá. (Nota de
campo do dia 30/04/2015)
[...] Eu me formei em administração, mas queria mesmo ter feito desenho industrial ou
design. Mas eu precisava ganhar dinheiro e acabei fazendo algo prático. Depois de doze
anos fui demitido. Agora não sei bem o que fazer [...] Fazer facas sempre foi um sonho.
Então eu resolvi fazer o que queria pelo menos uma vez na vida. Duro é que eu tenho um
padrão de vida caro. Tá complicado. O Peter ajuda muito. Conversamos muito e ele me
ajuda a pensar. Eu sempre gostei de engenharia mecânica, quem sabe... talvez pudesse aliar
minha vontade de desenhar e produzir com retorno financeiro razoável... (Entrevista do dia
02/07/215)
A figura do mestre artesão, muito mais que apenas relacionada ao fazer, esteve muitas
vezes ligada à figura de orientador de conduta. Algumas vezes a técnica era o foco da explicação,
outras era a conduta diante da técnica. Dito de outra forma, algumas vezes se falava como fazer,
outra por que fazer desta ou daquela forma. Como se vê nas falas do mestre cuteleiro abaixo:
Ildo, você tem que pensar! Como um cara que tá fazendo faculdade faz as coisas sem ao
menos refletir antes? Cara, olha, pense no que está fazendo. Não se preocupe com o passo
seguinte. Se você não se concentrar no momento presente poderá estar vagando em outro
momento qualquer, mas a cagada vai acontecer no momento presente. Então presta atenção
no que tá fazendo agora! (Anotação de campo de 15/04/2015)
Aqui seguimos o modelo espartano. Se tem uma maneira difícil de fazer alguma coisa é
essa que ensinamos primeiro. Porque se o cara aprender o difícil, o fácil depois é moleza.
Hoje tudo é muito imediatizado, todo mundo quer as coisas para ontem como se tudo fosse
assim. Na cutelaria o cara tem que saber fazer as coisas com pau e pedra. Depois, se tiver
uma máquina que facilite o trabalho aí ele vai ter vantagem, porque não vai ser dependente
78
da máquina. A máquina vai ser apenas um facilitador. O cara que aprende a fazer tudo em
condições ideais não consegue fazer as coisas quando alguma variável muda. É isso que
acaba com a sociedade, porque a gente vê um bando de zumbi que não sabe fazer nada além
do que mandam ou além do que tá na receita de bolo. (Entrevista do dia 04/08/2015)
Alguns porquês, entretanto, permaneciam ocultos aos alunos. O trecho abaixo reflete
a fala de um ex-aluno:
...o Peter é fogo... ele não te mostra o caminho das pedras... ele coloca o cara novo pra
martelar e deixa o cara se ferrando por horas... outros cuteleiros passam as manhas e tal...
sei lá... eu não acho certo... o cara perde muito tempo... talvez seja pro cara achar o caminho
sozinho, tipo, aprender fazendo... (Entrevista do dia 04/08/2015)
Na Cutelaria Hammer a produção é toda artesanal. Nesse sentido, as peças não são
fabricadas de forma seriada ou em uma linha de produção, mas por demanda individualizada. O
processo de produção de uma faca ou outro objeto tinha duas motivações principais. A primeira
delas, uma encomenda de algum cliente. A segunda, o desejo do próprio artesão em produzir uma
peça. Sendo que, no segundo caso, essa peça poderia ser vendida em algum espaço de tempo ou
permanecer disponível para algum futuro comprador. Desta forma, a demanda não era,
simplesmente uma demanda comercial, embora ficasse claro que há um valor comercial. Um
cuteleiro, ao me apresentar uma peça, na qual estava trabalhando há dias, referiu-se ao seu valor:
[...] não, essa aqui (uma espada estilo oriental) não é encomenda, não... mas poderá ser de
alguém se alguém estiver disposto a pagar por ela o quanto ela vale [...] ah, para alguém
tirar ela de mim, vai precisar de pelo menos uns mil e quinhentos... (Anotações de campo
do dia 03/08/2015)
79
Fato é que, além do valor material envolvido, o processo de trabalho parece agregar
outros valores substantivos tanto para o artesão que produz o objeto quanto para aqueles que
adquirem tais objetos. Sobretudo, para aquele que produz. Nas palavras de um cuteleiro:
[...] Então, aquilo que o samurai e outros falavam que a espada... é claro que eles falavam
muito das espadas... que elas tinha alma, que elas tinham energia. A gente considera isso,
até nas facas. Porque quando eu faço uma faca, eu fico hora e horas trabalhando numa peça,
ela, de alguma maneira, absorve a minha energia de trabalho. E eu já senti isso. Eu estudo
um pouco essas coisas, empiricamente, é claro. Eu já senti que às vezes você tá fazendo
uma faca para uma pessoa, encomendado por outra. Você não conhece a pessoa. Você
começa a sentir certas características de certas pessoas... [...] às vezes você faz uma faca e
deixa ali, meio que não quer vender, e de repente chega alguém que se apaixona por ela e
você fala, pra esse eu dou, para esse realmente eu dou, esse é o dono dela. Ela escolheu
esse camarada. (Entrevista do dia 25/02/2015)
19
Típica espada longa usada por Samurais
20
Refiro-me ao termo “escola” como sinônimo de estilo conforme foi verificado na fala de cuteleiros e nos materiais
consultados como fontes secundárias de informações.
80
ou em escola alguma. A versatilidade do artesão varia de acordo com o domínio desses estilos
tradicionais e também com o domínio de diferentes técnicas e tipos de materiais.
É necessário dominar a técnica para que você não precise pensar nela. Se você não precisar
pensar na técnica pode se concentrar no que realmente importa: a criação. Um bom cuteleiro
pode até inspirar-se nos clássicos, mas precisa ser capaz de criar. (Anotações de campo do
dia 01/092015)
O fato de traduzir ideias e objetos concretos faz com que o artesão tenha domínio
sobre o processo de fabricação em sua totalidade. Isso implica em reconhecer os porquês envolvidos
nesse processo.
Muitas ferramentas são utilizadas no processo de produção, desde o lápis até lixa de
acabamento, mas todo o corpo é demandado no trabalho artesanal. As mãos podem simbolizar o
trabalho do artesão, contudo o trabalho do artesão tem cores, cheiros, sons, formas, texturas, peso...
As mãos, contudo, são a ligação entre o artesão e objeto durante o processo de transformação. A
técnica, a qual me referi anteriormente, também abarca a técnica corporal. O corpo enquanto
ferramenta do artesão é utilizado com técnica. Convencionei chamar o conjunto de habilidades
corporais necessárias à condução do trabalho artesanal como habilidades do corpo. Essas
habilidades são ligadas aos cinco sentidos da percepção e à força muscular em conjunto com o
equilíbrio e a coordenação motora. São desenvolvidas no decorrer do processo do trabalho artesão
de acordo com seu contexto e experiência.
81
... primeiro o aluno aprende o mais difícil, depois quando ele dominar o que faz a ponto de
não precisar de uma máquina ele pode usar essa máquina. Por exemplo: ele deverá aprender
a afiar uma faca na pedra tão bem a ponto de não precisa usar uma lixadeira, ou o esmeril.
Depois, se ele quiser usar tudo bem, mas isso só pra ganhar tempo, pois ele não depende
disso. Quando você aprende a maneira complicada de fazer as coisas você pode se virar
bem em qualquer situação... (Anotações de campo do dia 23/07/2015)
[...] Tudo que deve estar presente em uma faca deve estar presente. Tudo que não deve estar
presente em uma faca não deve estar presente. (Anotação de campo do dia 03/06/2015).
[...] Facas são ferramentas e devem ser adequadas ao seu uso. Não se pode querer usar uma
faca de cozinha em uma caçada, nem uma Bowie como faca de pescoço (Anotação de
campo do dia 04/06/2015)
[...] o sujeito queria uma faca para sangria, é pra uso em ritual mesmo... ele gostou de uma
faca que viu na oficina, uma faca bonita, estilo gaúcha, era uma faca que estava sendo
trabalhada por alguém. Peter entendeu o qual era a necessidade do cara, explicou para ele
que aquela faca não seria adequada, por que não seria adequado e qual seria uma boa opção
para ele. O sujeito parecia bem seguro de si, mas aceitou a sugestão. Penso que fariam uma
faca gaúcha se ele quisesse mesmo, mas sob protesto. (Anotação de campo do dia
04/06/2015)
Uma coisa muito importante nesse sentido é que o objetivo do artesão é fazer o melhor
possível não importa o custo. O da indústria é fazer o mínimo possível pra cobrir o custo.
(Entrevista do dia 26/Março/2015)
Depois de alguns meses na oficina já era, para mim, perfeitamente natural reconhecer
quem era o autor de uma faca sem saber de antemão quem a havia produzido. Em minha percepção,
não se tratava apenas de habilidade, embora esta também estivesse em jogo, mas de características
próprias que cada artesão imprime em suas peças. Reconhecer o artista em sua arte implica em
observar traços de personalidade em objetos artesanais cuja fonte repousa no artesão. Em
observações realizadas em um universo um pouco envolvendo cuteleiros brasileiros pude notar,
apesar de minha pouca experiência nisso, que as facas artesanais tinham elementos singulares de
acordo com o artesão que as produziu.
Mais uma vez, cuteleiros fazem escolhas e estas escolhas refletem-se na sua obra. A
capacidade de imprimir sua vontade ou desejo em uma peça está relacionada à sua habilidade, mas
também a esse processo de fazer uso da liberdade que tem para decidir entre materiais, formas,
processos e outros. Ao final do processo, vê-se que a faca produzida pelo cuteleiro tem uma história
e essa história é parte integrante daquela peça. Não por outro motivo, algumas facas tem seu valor
final aumentado de acordo com o cuteleiro que assina a peça. Há quem considere isso injusto, uma
vez que o valor de uma faca deve envolver aspectos mais objetivos como funcionalidade, qualidade
invisível (materiais e processos) e qualidade visível (design, estilo)21. Contudo, independentemente
de agregar mais ou menos valor a uma peça, parece ser fato que a obra do artesão espelha o próprio
artesão. Apenas como exemplo simples do que foi dito, apresenta-se a figura abaixo.
21
O valor de uma faca é objeto de discussão em artigo da revista Magnum número 101 de Janeiro/Fevereiro de 2008.
83
Fonte: Artknives22
Considerando a apresentação e a faca talvez seja desnecessário dizer que esta peça
foi produzida por uma artesã. Na época em que esta tese foi escrita, essa artesã era uma das raras
cuteleiras em atividade no Brasil. Além da opção por diferentes formas e linhas podemos identificar
um artesão pela preferência de certos materiais ou processos. Enquanto alguns cuteleiros dedicam-
se ao uso de aços comuns, outros preferem aços mais elaborados como aço damasco 23, mas é o
conjunto da obra que permite que se identifique o cuteleiro em suas peças.
Em 94 de tanto um cliente me aporrinhar que queria porque queria aprender a fazer facas...
eu falava: eu não sei ensinar, eu não faço ideia, eu não tenho didática pra isso... ele falou:
não, mas eu vou até sua oficina, você faz uma faca, eu vou imitando o que você vai fazendo
22
Artknives é a marca da cuteleira Silvana Mouzinho, a organizadora do Salão Paulista de Cutelaria, evento anual que
reúne cuteleiros brasileiros. Disponível em http://silvanaartknives.com/
23
O aço damasco é união de dois ou mais tipos de aço por meio de um processo conhecido por caldeamento. Uma
barra de aço damasco pode ter centenas de camadas resultando na peça linhas que formam padrões de desenho na
lâmina.
24
Pelo termo convencional refiro-me às organizações formais modernas inseridas na lógica de mercado.
84
e eu te pago pelas duas. Eu falei: ah, tá bom. Decidi que ia dar aula. E veio meu primeiro
aluno que não foi esse, foi outro. Porque esse quando eu decidi finalmente aceitar, ele não
podia. Comentei com outro cliente, e ele: tô indo aí. Isso foi em junho de 94. A partir daí
eu comecei a dar aula [...] O fato de eu dar aula criou inimizades absurdas com os outros
cuteleiros do Brasil. Eles achavam que eu ia estragar o mercado, porque ía por gente demais
para dividir o mercado. Eu falava: rapaz, você não sabe o que você está falando. Uma
profissão fechada morre. Ela acaba. Hoje tem mais de seiscentos (cuteleiros). Eu posso te
garantir que mais da metade é por minha causa. Existe uma geração de alunos, de alunos
dos meus alunos. Todos os meus alunos saem daqui com o compromisso de ensinar alguém
um dia. (Entrevista do dia 26/03/2015).
Eu gosto de fazer meus alunos darem aula... serem monitores dos outros alunos... É a
melhor coisa que tem. Quando você vai ensinar você tem que se questionar: por que, por
que isso, por que aquilo.... (Anotação de campo do dia 13/04/2015)
(...) E outra coisa é não perder esta técnica, passar para outras gerações. Por isso que a gente
dá os cursos [...] Aí eu fiz um curso lá com o Peter. Melhorou muito a minha qualidade, e
tal, de … aprimorei... o Peter ele era muito perfeccionista. Ele é um perfeccionista. [...] Isso
aqui é um Tantô25. Eu faço esses Tantôs de inox... o Peter me enche o saco por fazer essas
coisas... me enche o saco, por que eu estava fazendo de inox. A gente, de vez em quando,
tem umas brigas assim técnicas. No bom sentido, né. (Entrevista do dia 23/03/2015)
Ninguém valoriza aquilo que não conhece. É preciso que as pessoas saibam como uma faca
artesanal é produzida e quais as diferenças entre estas facas e as facas comerciais. Facas
comerciais não podem ser comparadas às facas feitas por um cuteleiro. Facas artesanais
têm história. (Entrevista do dia 14/05/2015)
25
Pequeno punhal estilo japonês feito originalmente em aço carbono com ou sem guarda. Era uma peça usada pelo
guerreiro samurai em conjunto com a katana. Essa era a lâmina utilizada nos rituais suicidas de Seppuku, mais conhecido
no ocidente por haraquiri ou haraquiri, por meio do qual o guerreiro samurai abria o próprio ventre morrendo em
decorrência do esventramento. Essa era considerada uma forma honrosa de se morrer.
85
Esta seção descreve como se deu o processo de codificação que deu origem aos dados
dos quais foram extraídas as categorias com que se construiu a teoria substantiva. A codificação dos
dados é parte essencial do método da Grounded Theory. Diferente de outras metodologias, na
Grounded Theory o dados são analisados ao mesmo tempo em que são coletados (STRAUSS e
CORBIN, 2008). Portanto, não se faz aqui um retorno às descrições de metodologia, mas se continua
o processo descritivo da análise realizada dos dados à medida em eles foram emergindo.
Fonte: o autor
Fonte: o autor
Com as primeiras categorias definidas, foi possível retornar ao campo com olhos
mais atentos para a geração de dados que fizessem sentido e pudessem contribuir para o
entendimento das categorias geradas ou gerar novas informações. Esse processo repetiu-se várias
vezes até que as propriedades das categorias fossem estabelecidas e que os conceitos fossem
refinados. As categorias resultantes desse processo são apresentadas na próxima seção.
As categorias que inicialmente emergiram dos dados foram (i) ensino, (ii) liberdade,
(iii) mercado, (iv) trabalho, (v) valores substantivos, (vi) qualidade, (vii) limites, (viii) relação entre
pensar e fazer, (ix) adequação social, (x) centralidade no artesão (xi) experiência, (xii) controle,
(xiii) tradição, (xiv) hierarquia e (xv) corporeidade. Dessas categorias surgiram as primeiras
proposições acerca do problema de pesquisa que informa este estudo. Contundo, como essa ainda
era uma fase inicial, foi necessário retorno ao campo para o refinamento dos conceitos. Até que se
88
chegasse ao ponto de saturação, esse processo foi repetido várias vezes. Durante esse período, além
das observações em campo também procurei na literatura sensibilidade teórica que auxiliasse no
processo de geração de sentido em relação aos dados. A amostragem teórica em Grounded Theory
é um processo que, inicialmente, demanda mais esforço, mas com o passar do tempo e com a
experiência adquirida torna-se natural. Assim, dados são gerados, estes por sua vez geram questões
analíticas e insights de onde procurar por novos dados (STRAUS e CORBIN, 2008).
Essa categoria emergiu dos dados à medida em que percebi nos eventos (incidentes)
a associação da pessoa (o artesão) com o seu trabalho. Isso parece óbvio quando dito desta forma,
mas no trabalho que se faz em organizações modernas convencionais a relação do indivíduo com
seu trabalho não necessariamente se dá a estreita relação entre o indivíduo e seu trabalho. Um
trabalho, nesse contexto, pode ser apenas uma atividade com fins utilitários sem relação com quem
a desempenha. No caso de trabalho artesanal, há uma relação identitária forte que envolve o artesão
e seu ofício. O cuteleiro artesanal não está cuteleiro, ele é cuteleiro. Deste modo, se desenvolve uma
ligação forte entre a organização (cutelaria) e o artesão (cuteleiro). Perguntado sobre como a
cutelaria ficaria, caso o Peter, por algum motivo, estivesse mais ali, um aluno sintetizou esse
conceito em uma frase:
artesão com o trabalho artesanal e a necessidade que tem o artesão de dominar os processos
necessários à execução de um trabalho. Tem subjacente à sua formação a subcategoria (1) controle,
cujas propriedades estão descritas no quadro X. Nas primeiras linhas transcritas de conversas com
o cuteleiro Peter essa detalhe já foi evidenciado, conforme registrei:
Hoje tivemos a primeira entrevista formal. Foi em pé, no meio da oficinal, eu meio sem
jeito pela sensação de estar atrapalhando. Peter foi claro quando comentei isso: “Cara, você
não vai me atrapalhar, você tá fazendo que você tem o que fazer... eu concordei, então tá
beleza, só que a gente tem que ir conversando e fazendo ao mesmo tempo... como eu já dei
aula muito tempo e tal já tô bem acostumado a fazer três, quatro coisas ao mesmo tempo
[...] certas coisas eu não posso delegar. O meu trabalho eu preciso fazer. Então a gente vai
conversando e eu vou dando conta das coisas... (Nota de campo do dia 30/03/2015)
O controle sobre os processos na cutelaria artesanal é fator tido como base para a
realização e um bom trabalho. O objetivo do artesão é chegar ao estado da arte daquilo que faz,
portanto, o controle dos processos e materiais está vinculado ao resultado final do processo, que no
caso do trabalho artesanal, tem na qualidade um fator importante. Na fala de um cuteleiro:
“Quando você olha uma faca, ou uma espada comercial aquilo não tem história. Quando é
uma faca artesanal, aí sim, você sabe que ela percorreu um caminho longo até chegar a ser
o que é. Nós (cuteleiros), conhecemos todo esse caminho”. (Nota de campo do dia
02/04/2015).
[...] para se ter uma faca de qualidade você precisa ter uma serie de requisitos atendidos...
numa grande empresa você automatiza isso, depois que se estabelece um padrão você tem
uma segurança mais ou menos precisa de que aquele padrão vai ser seu resultado final.
Mesmo que o padrão estipulado seja uma merd*. Aqui quem cuida disso é o cuteleiro. O
cara precisa a todo momento verificar se o que tá fazendo tá bem feito e tal... isso faz com
que o trabalho demore mais que na indústria, mas ao final, você não tem um padrão como
resultado, você tem um resultado de qualidade... Quem detém o processo comanda a
produção, porque a produção depende do processo. (Entrevista do dia 28/05/2016)
trabalho. Outras vezes os alunos traziam o resultado parcial de algum trabalho para exame do
cuteleiro.
Fonte: o autor
A figura do cuteleiro tinha, para alguns aprendizes, feições paternas. Não raro os
conselhos e orientações do cuteleiro extrapolavam os limites do trabalho cutelaria e invadiam as
esferas particulares. Peter dava broncas, conselhos, fazia elogios e orientava especialmente os mais
novos. Presenciei cuteleiros já formados que frequentavam a oficina recebendo conselhos. De fato,
algumas vezes também observei alunos mais antigos fazendo algo parecido com alunos mais novos.
Em minhas anotações de campo registrei um acidente ocorrido na oficina com um aluno:
Hoje minha estada na oficina terminou um pouco mais cedo. Ocorreu um pequeno acidente.
Fabio estava tentando consertar uma extensão de tomada. Um extensão bem velha,
emendada com fita crepe e aparentemente guardada há muito tempo. Ele parecia estar
refazendo a emenda. Eu, sabia que não estava fazendo direito, pois já fiz muito disso
quando trabalhava com eletrônica. Deu vontade de falar, de fazer no lugar dele, mas não
interferi, apenas fiquei olhando. Ele estava descascando o fio ressecado com sua faca. De
repente, fez um corte profundo entre os dedos. Imediatamente ele gritou pelo Peter e correu
em sua direção. O sangue pingava. Fabio ficou pálido e pareceu que ia desmaiar. Peter
olhou de perto e cuidadosamente e deu o veredito: “Precisa dar uns pontos aqui... não tem
91
agulha de sutura nem linha, se tivesse eu mesmo poderia costurar. Acho melhor você ir ao
pronto socorro de uma vez”. Peter estancou o sangramento, e improvisou uma proteção
com plástico. Levei o aluno no hospital Evangélico e fiquei com ele por algumas horas lá,
até que fosse atendido. Depois levei-o de volta à oficina. Me impressionou um pouco o fato
de que o aluno correu para o lado do Peter igual uma criança corre para os braços do pai
quando está assustada... (Anotações de campo do dia 09/07/2015)
Proposição 3: quanto maior for o valor agregado às peças produzidas pelo artesão, maior
sua demanda de produção.
4.5.1.2 Corporeidade
... primeiro, fique atento à forja, nunca de costas para ela. Esse negócio chega a 1500 graus!
Você consegue ver pela cor, quanto mais perto do vermelho mais frio, quanto mais perto
do branco, mais quente. O ideal no seu caso é trabalhar com ela não muito quente, mais ou
menos 900 graus. Trabalhando nessa temperatura você não corre o risco de matar sua
peça26. Perceba, a cor ideal é o vermelho cereja, antes disso está muito frio, depois disso
muito quente. A tonalidade é importante você perceber. (Nota de campo do dia 14/05/2015)
Cada bigorna tem um timbre, um som característico. Isso depende do seu tamanho, quanto
maior a bigorna mais robusto é o som. É bonito. Parece uma música quando você aprende
a ouvir. Cuteleiro precisa ter bons ouvidos também. Pelo som da bigorna eu sei quando um
aluno tá forjando com aço frio. Não preciso nem olhar. (Nota de campo do dia 03/0/2015)
26
Matar é um jargão que significa inutilizar, prejudicar, tornar inútil, perder o material.
27
Talvez disto tenha resultado a expressão “malhar em ferro frio” que significa: perder tempo com algo que não ai
mudar. Trabalhar à toa, sem resultado.
93
do contato, são elas que produzem as transformações nos materiais. E por meio das mãos que os
artesãos transformam aço em lâminas. Abaixo, alguns trechos de falas de cuteleiros sobre o corpo:
A marreta é extensão da sua mão. Segure a marreta com firmeza. Não é força, é jeito. Como
você acha que as mulheres cuteleiras trabalham? Essa posição de boxeador tá errada, suas
pernas precisam ficar paralelas, e você perto da bigorna. Bata com jeito para não errar. Se
errar, precisará martelar outras três ou quatro vezes para consertar. Se você não se
posicionar e não tiver jeito, logo fica cansado e seu trabalho tem que parar. (Anotação de
campo do dia 04/05/2015 - orientação a aluno)
Um cuteleiro pode não ter um bom ouvido como um músico, ou um olfato apurado como
um enólogo, nem ter a visão de um piloto de caça. Mas sem as mãos um cuteleiro não é
nada. Portanto, cuide delas. Você vai fazer trabalhos pesados com a marreta, mas vai
precisar fazer trabalhos extremamente delicados quando estiver fazendo um acabamento,
por exemplo. Veja essa faca28, uma faca com acabamento de prata e cabo de madrepérola
exigem que você seja extremamente preciso. Esse trabalho é como o de um cirurgião. Não
pode titubear. (Nota de campo do dia 04/06/2015 – orientação a aluno)
[...] eu tive um acidente lá no restaurante 29. Prendi a mão numa porta. Sei lá, acho que não
quebrou, mas não dava para trabalhar não... Médico? Não, eu cuidei em casa mesmo.
Medicina oriental tradicional. Duro é ficar três semanas sem poder trabalhar. No restaurante
até dava para me virar, mas aqui, sem chance... melhor recuperar bem antes, ou pode até
piorar... (Nota de campo do dia 15/08/2015)
[...] Ele não apareceu. Disseram que ele poderia estar com enxaqueca, que eventualmente
isso ocorria. Acabei ficando e passei a tarde toda na oficina observando e foi bastante
agradável. (Nota de campo do dia 19/03/2015)
Um dos cuteleiros sofre de dores crônicas de cabeça, eventualmente ele fica um ou dois
dias sem aparecer na oficina. Ele diz que remédios comuns não fazem efeito, precisa de
analgésicos muito fortes. Isso o impossibilita de trabalhar. (Nota de campo do dia
05/05/2015)
Há algum tempo um aluno se acidentou, cortou a mão. Teve que levar pontos e ficou um
tempo esperando melhorar. Engraçado que ele não esperou nem cicatrizar o corte e já tá
novamente na oficina. De fato, parece que ele tem uma boa capacidade de cicatrização, mas
se fosse em uma situação normal de trabalho convencional ele estaria ‘de atestado’ em casa.
Quando perguntei o porquê de ele não esperar a cicatrização completa do ferimento antes
de voltar à oficina, ele disse acidentes acontecem, que são normais, não acidentes tão
graves, mas acidentes de pequena monta. Disse que prefere não ficar em casa. (Nota de
campo do dia 18/07/2015)
28
Tratava-se de uma faca em que o mestre cuteleiro estava trabalhando há alguns dias. Uma faca de aço damasco,
guarda em prata e cabo de madrepérola.
29
Esse era o caso de um cuteleiro que trabalhava na oficina em tempo parcial. Em parte do tempo ele trabalhava em
um restaurante. Essa era a mesma situação de outros cuteleiros.
94
Se por um lado, as mãos fazem a ligação do artesão com o objeto, por outro os limites
do corpo representam limites à produção artesanal.
Quando você vai fazer uma faca é necessário que você tenha em mente qual o resultado
que você deseja. Fazer um projeto é muito importante, mesmo que seja em um papel de pão
amassado. Talvez, com a experiência, você possa pegar um pedaço de ferro qualquer e fazer
dele uma faca, mas ainda assim, talvez o resultado seja apenas o resultado possível, não
aquilo que desejava. Talvez você cometa erros que não cometeria se tivesse planejado isso
antes. Quando a gente faz um desenho, muitas coisas acontecem durante o processo e as
vezes você não chega exatamente naquilo que desenhou. Imagina sem ele... se você tem
95
um molde pode, a cada etapa, fazer comparações para ver se o que você está fazendo está
dentro daquilo que você planejou. Outro fator é o cliente. Quando você senta com ele para
definir uma faca, você está combinando algo com ele. O projeto que sai dessa sentada é um
compromisso seu com ele. (Entrevista do dia 09/06/2015)
... você tem que pensar naquilo que tá fazendo! Você não pode simplesmente ir fazendo
p****! Cara, olha, pense no que está fazendo. Pensa se faz sentido fazer a coisa do jeito
que você tá fazendo. Quem não pensa o que tá fazendo é peão e ninguém faz cutelaria para
ser peão. Não quero desmiolado aqui. O trabalho precisa ter sentido, então você tem que se
perguntar: faz sentido isso que tô fazendo? Trabalho sem sentido é trabalho ruim.
(Anotação de campo de 15/04/2015)
A noção de não separação entre o fazer e o pensar é, deste modo transmitida ao alunos
que, principalmente quando mais jovens e no início do curso, ficam um pouco atrapalhados com
isso. Não que não saibam ou sejam incapazes, mas que, algumas vezes, se mostravam tendentes a
serem meros cumpridores de ordens. Isso era tolerada inicialmente, mas à medida que o aluno tinha
experiência suficiente, era lhe cobrado a reflexão sobre o próprio trabalho. Em minhas anotações
registrei uma situação a esse respeito:
Dois alunos são bem novos. Ambos são alunos de graduação, um faz história outro faz
Desenho Industrial, ou algo parecido. Um é meio estabanado, às vezes fica horas
trabalhando em algo e quando vai mostrar para o Peter leva uma bronca. Normalmente em
tom de brincadeira, mas com fundo sério. O outro é mais novo, ainda no meio do curso.
Presenciei uma situação na qual ele fez uma bainha para uma faca e foi mostrar. Peter fez
duas ou três perguntas e eu vi que o aluno ficou com cara de dúvida. Questionado, ele disse
que levou uma bronca, porque fez errado. “Deveria ter pensando antes de fazer”, disse ele.
Alunos universitários são cobrados pelo fato estarem cursando um curso superior. Cobrados
no sentido de que eles têm um nível educacional que os obriga a serem cognitivamente
mais ativos. Alunos mais velhos cometem menos erros, mas são mais exigidos quanto ao
domínio do seu processo de trabalho de forma plena. (Nota de campo do dia 19/09/2015)
O ato de pensar durante ação também está ligado ao fato de que o artesão tem controle
sobre seu trabalho, como já apontado na categoria ‘centralidade no artesão’, deste modo é
responsável sobre ele e precisa agir com responsabilidade que lhe é inalienável. Como se pôde
constatar nos dados, o artesão trabalha com seus próprios recursos e também faz parte do seu
trabalho gerir estes recursos. Planejar a execução do trabalho também está relacionado com melhor
utilização possível dos recursos. Pode-se identificar nesse trecho de uma conversa com um cuteleiro:
A gente aproveita os materiais que tem da melhor forma, antigamente era pior, porque você
tinha que aproveitar tudo que era retalho, porque não havia lojas de venda de aço. O aço
era um recurso escasso. Dizem que é uma das razões do surgimento do aço damasco. Porque
se misturavam um monte de peças de retalhos e no final aços diferentes não se misturavam.
Sei lá. Só sei que se você tem uma peça boa de aço planeja bem o uso dela para não
desperdiçar. A menos que você tenha dinheiro sobrando né, que só faça isso por hobby,
mas o cuteleiro experiente não faz isso. Ele aproveita bem. (Notas de campo do dia
15/08/2015)
É necessário dominar a técnica para que você não precise pensar nela. Se você não precisar
pensar na técnica pode se concentrar no que realmente importa: a criação. Um bom cuteleiro
pode até inspirar-se nos clássicos, mas precisa ser capaz de criar. (Anotações de campo do
dia 01/092015)
O trabalho artesanal pressupõe liberdade para o artesão executar seu trabalho. Essa
liberdade pode estar relacionada ao processo criativo ou à dinâmica da execução do trabalho. Desse
modo, a liberdade relaciona-se também a escolha do ritmo adequado, seja pelas características do
material usado, seja por necessidades relacionadas ao corpo. Faz parte do processo de trabalho
artesanal liberdade para o controle do processo integral de trabalho. Nas palavras de um cuteleiro:
... se você não pode definir o que fazer, como fazer e quando fazer, já não será você fazendo,
mas outra pessoa fazendo através de você. Isso não tem nada a ver com o trabalho do
cuteleiro. Veja, eu tenho meus compromissos, claro, afinal, o que é combinado não é caro,
mas quem define meu trabalho sou eu. (Nota de campo do dia 25/09/2015)
Se você quiser uma faca a gente senta, você me diz mais ou menos como quer, que estilo
prefere e a gente faz um esboço. Não vou te garantir um prazo específico. [...] eu já fiz
muitas espadas cenográficas, espadas de decoração... hoje eu não faço mais isso. Se não for
para fazer algo de verdade prefiro não fazer. Tem gente que pede cada barbaridade... Não
dá para ficar fazendo salada de fruta, colocar um cabo de Bowie 30 em uma lâmina de uma
faca para cortar Sashimi.... Eu não faço. (Anotações de campo do dia 05/05/2015)
O cuteleiro é um especialista e como tal exerce o pleno domínio do seu trabalho. Essa
especialização lhe confere reconhecimento e também possibilita que tenha possiblidades de
escolhas em um curso de ação. Em muitos momentos, registrei aparentes sinais de rebeldia.
Rebeldias contra o sistema social, contra o Estado, contra o mercado. Interpretei que a possiblidade
de cerceamento das liberdades individuais ou o próprio cerceamento era algo visto com certo
repúdio. A liberdade para fazer escolhas pressupõe o controle do processo no fazer artesanal.
30
Bowie é um estilo de faca norte-americana bastante associada à expansão ao oeste dos Estados Unidos. É uma faca
de grandes dimensões, pontiaguda e de cabo não cilíndrico. Versões dessa faca foram muito popularizadas em filmes
como Crocodilo Dundee, Rambo e Os Mercenários.
97
Proposição 8: o fazer artesanal é uma ação reflexionada por meio da qual o artesão
materializa objetos pensados. O ato de criação artesanal aproxima o artesão da práxis e o
distancia do trabalho alienado.
Proposição 10: a liberdade do fazer artesanal permite que o artesão desenvolva trabalhos
que lhe façam sentido.
[...] Então, aquela conduta que você faz aquilo, porque você sabe que tem que fazer. Não é
porque alguém tá te impondo. Aliás, tem estudos filosóficos muito nesse tipo de... tem até
termos filosóficos sobre esses tipos de questões, né? De você fazer, não porque aquilo te
dá vantagens... às vezes, certas atitudes elas não vão te dar vantagens, pelo contrário elas
98
vão te dar desvantagem, vamos dizer material, financeira, mas é o certo a ser feito.
(Entrevista do dia 23/03/2015)
(...) veja, seu quisesse ganhar mais dinheiro, eu teria que mandar meus alunos embora.
Aluno gasta mais material, quebra ferramenta, faz um monte de coisa que eu tenho que
repor depois. Mas se esse cara apareceu no meu caminho é porque eu tenho que lidar com
ele. Eu creio nisso. Há um motivo para cada um que veio aqui ter vindo pra cá. [...] veja o
caso do Fulano, que já não é mais aluno, você acha que ele me dá algum lucro usando a
oficina? Acho que eu ganho alguma coisa? Não. Mas para ele, poder estar aqui é muito
bom. Ele é um cara meio perdido, até meio esquisito. Mas estando perto de mim, eu posso
eventualmente dar um conselho, jogar uma ideia... no fundo ele é um cara bom, mas precisa
de um direcionamento que eu não sei se teve alguma vez na vida. É assim.... (Nota de
campo do dia 30/04/2015)
Entre eles, o mestre cuteleiro, assumindo uma postura de orientador para assuntos
que extrapolam os limites da cutelaria. A relação mestre-aprendiz não é padrão, modifica-se de
acordo com o tipo de aluno, mas, no caso da Cutelaria Hammer, todos os alunos recebem uma carga
de dever moral no sentido de repassarem parte do que aprenderam.
Todos os meus alunos saem daqui com o compromisso de ensinar alguém um dia. E já
foram bem uns 250 alunos nesse tempo todo. Existe gente que leva isso muito a sério e deu
muita aula. Esse meu primeiro aluno, exatamente dez anos depois, de ter feito suas aulas,
era professor de biofísica e bioquímica, ele estava fazendo seu doutorado. De família alemã,
morando em Florianópolis. Era um camarada que tem uma visão muito pragmática, muito
lógica, muito clara das coisas, por efeito do próprio trabalho e pela origem, da criação
alemã. Dez anos exatamente depois que ele fez... no mesmo mês do ano em que faziam dez
anos ele trouxe o filho dele pra fazer o curso. (Entrevista do dia 26/Março/2015)
... é uma questão simples. Antigamente o cara não tinha máquinas para fazer o serviço,
tinha que dar seus pulos e criar soluções pras coisas... hoje tem um monte de gente com
tudo à mão e não sabe usar... o cara foi criado com toda a comodidade e não aprendeu a se
virar... os moleques de hoje em dia não sabem martelar um prego numa barra de sabão...
isso é triste porque é uma geração perdida...
99
A questão da tradição também está presente na formação dessa categoria, uma vez
que orienta a ação artesão à manutenção de práticas tradicionais. Essa orientação, contudo, sofre
pressões contrárias. Um exemplo pode ser visto na cutelaria de tradição oriental. De acordo com os
preceitos que regem a cutelaria oriental, as facas orientais tem seus cabos construídos em madeira,
entretanto, normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) proíbem o uso de
madeira, uma vez que estes não podem ser higienizados de acordo com tais normas.
[...] eles enchem o saco, mas não faz sentido uma faca de sushi com cabo de plástico... isso
é uma aberração... eu li num fórum esses dias que no Rio de Janeiro tão pegando forte, até
o oshibori (toalhinha) tá proibido... segundo um amigo meu, o jeito é usar o taron... taron
de cheques (risos). (Nota de campo do dia 18/08/2015)
Às vezes a pessoa quer ter um Tantô na mesa dele, e tal. Porque ele faz arte marcial. Aí
você faz um de carbono, todo mundo que chega lá, que é bobo alegre, enfia o dedo. Às
vezes você não limpa e tal. Daqui a pouco ele começa uma corrosão 31. Aí eu resolvi fazer
em inox. Porque se alguém puser o dedão e você não vê ou esquecer de limpar ele vai, né...?
(Entrevista do dia 23/03/2015)
A cutelaria artesanal foi descrita como uma forma de preservar habilidades ancestrais
de autossuficiência. Nesse sentido, os dados apontam a cutelaria atrelada à atividades ligadas à vida
natural em campo como camping, caça, pesca, sobrevivencialismo, escotismo, arqueria e outros
afins. São valores ligados à autossuficiência, ainda que o contexto de vida dos sujeitos seja urbano.
Outra coisa é preservar esse conhecimento, essa arte. Por quê? Porque a humanidade
sempre dependeu das lâminas de corte. A humanidade sempre dependeu disso daqui, vai
depender... vai ser a última coisa que nós vamos prescindir. Nos perdemos garra, perdemos
dente, por algum motivo aí do nosso processo, da nossa genética, e nós não podemos viver
sem isso daqui, em todas as etapas da vida. Até hoje nesses programas de sobrevivência, o
cara vai lá pro meio do mato... naquele “Perdidos e Pelados” 32 ... tem que levar uma faca.
Sempre né? Uma faca e uma pederneira. (Entrevista do dia 23/03/2015)
31
Como se descreveu na seção 2.2.1, o aço carbono possui habilidade de corte superior ao aço inox, contudo, é mais
susceptível à corrosão. Modernamente o uso do aço inox é largamente difundido existindo inúmeras ligas de aço com
características inoxidáveis.
32
O cuteleiro se refere à série de televisão “Largados e Pelados”. É a versão traduzida do original americano “Naked
and Afraid”. Trata-se de um reality show norte-americano televisionado pelo Discovery Channel no qual duas pessoas,
um homem e uma mulher, são deixados nus em um ambiente natural desabitado (floresta, cerrado, ilha, deserto etc) e
devem sobreviver por 21 dias. Eles podem levar apenas um objeto cada. Em geral levam um facão ou faca além de outro
objeto como pederneira.
100
produto, de um determinado cuteleiro sempre poderá ser identificado. Isso reforça o fato de que, se
algo deve ser feito, deve ser bem feito. Na visão abaixo, exposta como exemplo desse conceito, o
cuteleiro descreve possíveis problemas decorrentes da falta de foco na qualidade.
... porque é uma coisa muito interessante, porque quem entende muito de cutelaria artesanal
não entende nada de indústria, quem entende de indústria não entende nada de qualidade
artesanal. Eu sou o único profissional no Brasil que entende os dois. A gente tem uma
supervalorização do grande, da empresa grande, de empresas. Que a empresa grande, pra
poder se manter, diante de tudo que eu falei, de impostos, e tal... É mínimo de custos,
máximo de retorno, e a qualidade compensa o valor que vai cobrar. Isso gera uma situação
de complicação, porque faz muito, produz muito, vende, a margem é pequena, mas produz
muito lixo. Isso desvaloriza, em termos de status o pequeno. Às vezes, você olhando lá
fora, empresas com administrações familiares de cinco gerações e estão bem pra caramba.
Por quê? Porque existe um compromisso qualitativo com aquela marca que só se perpetua
assim. Quando o pessoal começa a implantar plano Toyota pra todo lado, isso pode ser bom
para empresa em crise... mas não pra sobrevivência de longa data da organização. Produzir
mais barato, produzir mais barato, produzir mais barato... é um rumo a produzir com menos
qualidade. A Toyota tomou uma baita de uma sabocada (?) por implantar de forma muito
radical essa visão que chegou um momento que ela teve que puxar o frio de mão e, opa!
“Se não a gente vai quebrar”. Se fosse isso, a China nunca precisaria comprar marcas
importantes fora da China. Por que é que a China está comprando várias marcas ocidentais?
Porque elas carregam em si uma visão de qualidade que produto chinês nenhum, marca
chinesa nenhuma vai transmitir pra ninguém. Eles compram pra estragar a marca, eles são
cientes que o nome deles não vende. Eles têm que comprar o nome de alguém que tem
gerações ali produzindo com alta qualidade pra tentar emprestar um pouco desta qualidade
pra si. (Entrevista do dia 30/03/2015)
...você até pode ter qualidade numa faca comercial, mas é raro isso ocorrer, em geral a
indústria quer o máximo de retorno com o mínimo de investimento no menor prazo
possível, isso acaba no quê? Em lixo. Não é que os caras não possam fazer coisa boa, podem
sim, mas quem manda é o mercado. Então, os caras colocam a qualidade no mínimo, para
poder produzir muito e barato para poder vender para muita gente. O problema é que tem
gente para compra porcaria aos montes. Claro que o marketing ajuda... agora, uma faca
artesanal, produzida por um cuteleiro de verdade é garantia de qualidade. Por quê? Porque
nenhum cuteleiro de verdade coloca seu nome em uma faca porcaria. Quando o cara tá
começando e não tem as manhas ainda ele comete erros, mas vai evoluindo. Normalmente,
quando esse cara desponta e começa a fazer um trabalho primoroso, aquelas facas que ele
fez no começo de carreira ganham valor para os colecionadores. Tipo, seria como comprar
o primeiro carro do Airton Sena, ou ter a bola que o Pelé jogava quando era moleque...
(Nota de campo do dia 08/10/2015)
[...] uma faca artesanal é para um tipo específico de pessoa: a que está disposta a pagar três
ou quatro vezes o valor de uma faca comercial. Uma pessoa assim, ou valoriza a qualidade,
ou precisa de uma ferramenta de qualidade em função do seu trabalho, ou é um
colecionador. Estes três aspectos podem fazer parte da mesma pessoa, ou não. (Nota de
campo do dia 21/025/2015)
Cara, a cutelaria de verdade é uma parada muito profunda. Quando eu comecei a aprender
com meu pai, era muito sério. Meu pai era muito rigoroso. Pro japonês as coisas são sérias.
101
Você imagina que antigamente se trabalhava meses a fio para fazer uma espada 33. E essa
espada podia valer mais que uma casa. Você acha que uma espada como essa é só um
pedaço de ferro afiado? Sem chance... Era muito mais do que isso. (Entrevista do dia
24/04/2015)
Eu tenho para mim que modificar a matéria é algo próximo de Deus. (Nota de campo do
dia 09/10/2015)
[...] Tudo é cíclico. Agora, as facas... aí tem um outro lado também, que eu quero falar: pra
mim elas tem uma conotação espiritual. Eu acho que isso é bonito de falar. Primeira coisa:
nós não damos valor pra ferro, porque o núcleo do nosso planeta tem 90% de ferro. Então,
nós achamos que o que abunda não vale nada, o que vale é aquilo que é raro. Tudo bem, de
certa forma tem uma razão. Mas o ferro é um dos elemento mais interessantes do universo.
Eu sempre repito isso, porque as pessoas não sabem: o ferro é que mata a estrela. O ferro é
produzido no núcleo da estrela. A maior parte dos minerais. Quando a estrela começa a
produzir ferro, só as estrelas muito grandes produzem ferro em quantidade, ela começa a
morrer. Só na maturidade... assim, seria o homem quando chega num ponto filosófico da
vida... da maturidade que ela começa a produzir o ferro. Só que o ferro consome mais
energia do que libera, pra estrela. Então ela começa a entrar num stress, que cada vez ela
quer produzir energia, pra produzir mais ferro, ela vai entrando num stress, num stress, num
stress, até que ela explode numa supernova. E no fim da vida dela, e na explosão, é que ela
produz uma série de metais pesados, que depois ela espalha no Universo. Então, o ferro é
produzido no núcleo da estrela, que é, entre aspas, o assassino da estrela. Ele tem tanta
energia... disse até alguns físicos aí, que ele tem mais energia que urânio. Nós não sabemos
retirar essa energia do ferro. E na verdade o ferro, eles são cristais 34. E ele tem uma série
de aspectos comportamentais, etc, e tal. Então, os cristais a gente sabe também eles têm
inúmeras propriedades que a gente não conhece. Algumas estamos conhecendo
ultimamente e tal, os quais assim pragmaticamente. (Entrevista do dia 23/03/2015)
[...] a gente tem um respeito pela peça. A gente tem quase que uma veneração pela peça.
Então aquele Tantô que ele comprou, que ele mostra lá no vídeo... Aí eu trouxe pra cá. E
eu fiquei aborrecido, porque isso daí dá um trabalho. É um negócio que a gente faz assim,
minucioso, e tal. E quando... eu já sabia, quando eu fui, depois de uns 6 meses, refazer o
Tantô, aquela peça que quebrou, eu tive que refazer tudo. Porque muda tudo, né? Aí
praticamente eu refiz toda a bainha dele de novo. Eu falei: eu não vou vender esse troço.
Eu tenho esse problema, eu faço as faca e não quero vender. Acontece demais. Por isso que
eu comecei a optar, uma época a fazer série. Mais ou menos série. Ainda não tá bem como
eu quero, porque, tudo bem, né... eu faço, sei lá, dez peças parecidas. Tá bom. Porque... eu
já fiz isso aqui... eu já vendi pra pessoa que caça javali. Isso aqui tá a dois anos aqui. Nem
afiei ela e não vendo. É uma adaga feita em aço inox. Essa adaga é baseada num tipo de
lâmina interessante. Era umas espadas que eles faziam que era pro cara morrer mesmo,
quando se tocava, porque, se você notar, a parte de trás ela é côncava. E a parte da frente
ela é quando o cara torcia. Então aquilo faz um corte enorme, de difícil recuperação, pelo
menos nas épocas mais antigas. E isso daí eu já fiz esse modelo pro pessoal que caça javali,
com arco e flecha. Principalmente com arco e flecha. A gente chama faca arrematadora,
finalizadora. Às vezes o bicho tá ali... Ele usa pra matar... pro bicho sofrer menos...
(Entrevista do dia 23/03/2015)
33
O aluno se referia às tradicionais katanas usadas por guerreiros japoneses no período feudal do Japão.
34
Sobre a presença de cristais no ferro, cabe dizer que
102
Proposição 12: o produto do fazer artesanal carrega significados atribuídos pelo artesão
durante o processo do fazer artesanal.
Proposição 13: a produção artesanal é permeada por valores substantivos que influenciam
na produção e nas negociações de produtos artesanais.
Proposição 15: a tradição é uma valor substantivo que influencia no sentido da manutenção
de práticas e no compartilhamento de outros valores substantivos.
4.5.1.5 Limites
[...] há uma coisa muito importante quando se fala de administração em qualquer campo
que é você estabelecer o seu limite de crescimento... eu conheço casos, na Europa, aqui...
de pessoas que tem restaurantes fantásticos e que nunca transformaram eles numa rede,
nunca abriram uma filial, porque o objetivo é: fazer o melhor trabalho possível num
tamanho que eu possa administrar de forma pessoal, presencial o negócio para que ele não
deteriore em qualidade para que ele não crie fissuras difíceis que acabam se tornando depois
buracos sem fundo... Então, aqui no Brasil a gente nunca recusa um trabalho por mais que
a gente não possa fazer bem feito, a gente nunca recusa um contrato por mais que a gente
esteja lotado de serviço, a gente acha que jamais pode perder uma chance. Então a gente se
compromete sempre muito acima do que é às vezes nosso limite de capacidade. Quando a
gente estabelece limites para o crescimento de alguma coisa mesmo que por um tempo,
você está permitindo que aquela coisa amadureça. Nenhuma empresa nunca quebrou por ir
devagar demais, mas quebram frequentemente por irem rápido demais. (Entrevista do dia
23/03/2015)
[...] Pois é, mas mesmo assim às vezes quando o cara começa ele não tem noção do limite
sustentável pra aquela atividade. Então tá, vou fazer uma cutelaria industrial, grande. Dez
funcionários é pouco, 50 funcionários, roda, 100 funcionários, roda com uma produção
muito boa, 200 funcionários, começa a ser perigoso.... Demais...
[...] Claro, claro, claro... aqui o pessoal tenta crescer na marra...chuta e corre atrás... ele
tenta fazer um investimento que vai dar um chute na produção pra cima sem que essa
demanda já exista... aí ele acha que: não... eu vou produzir mais, daí eu vou vender mais
independente de analisar se o mercado tá bom pra isso ou não. Eu penso que não. Eu penso
que se o mercado puder comprar 1000 unidades por mês eu estaria bem fabricando 700.
Enquanto o mercado estiver carente o produto se torna valorizado. Quando o cara encontrar
isso na prateleira do supermercado acabou o status do produto.
[...] Tudo tem limite... Às vezes você tem cara que é um excelente vendedor aí você acha
que ele é bom demais e passa ele para supervisor e ele se torna um supervisor ruim, aí você
acha que tá faltando espaço e joga ele para diretor... O limite de capacidade daquela pessoa
é ser o melhor vendedor da empresa... Dê um prêmio para ele, aumente o salário dele
mantenha ele no cargo... (Entrevista do dia 23/03/2015)
Quanto ao objeto, estabelecem-se limites desde sua concepção. Ao projetar uma faca
o cuteleiro estabelece seus próprios limites quanto à forma, aplicabilidade e materiais. Mas estes
limites são oriundos de outras esferas, como a que contempla valores substantivos. O impulso do
fazer, ou a demanda externa, não abre mão da qualidade nem tampouco de fatores tradicionais, como
estilo. O artesão deseja ser visto na peça que produz, deseja ser bem visto e assim estabelece limites
mínimos quanto à qualidade, uma vez que aquela peça o representa. Portanto, limites não se referem
apenas a fronteiras acima ou à frente, mas também há limites dos quais se partem. Então, valores
substantivos atuam no sentido de estabelecerem limites à produção artesanal.
A passagem para a modernidade, conforme apontou Bauman (2003), pode ser vista
como uma promessa otimista de um futuro sem dúvidas ou limites. Uma vez que toda dúvida poderia
ser examinada por meio do método e a ciência poderia dar ao homem o poder de previsão e controle
sobre a natureza. No caso do trabalho artesanal, conforme observado, embora a noção de controle
esteja presente, limites não são desafios a serem superados. Não é o constante superar de metas, que
se acumulam, que levam para o caminho do sucesso. O sucesso está ligado à noção de liberdade,
como descreveu Peter:
[...] sucesso é dormir quando tem sono, comer quando tem fome e ir fazer o que você gosta
quando você quer... (Nota de campo do dia 05/11/2015)
[...] eu digo, cara, você não imagina o quanto é bom ser pequeno! [...] crescer não é a única
forma de ter sucesso na vida (...) é absolutamente factível e muito fácil de acontecer de uma
empresa pequena ou média muito bem administrada ter mais lucro e mais tranquilidade na
104
vida que uma grande... eu tenho uma vantagem nas minhas mãos que eu posso trabalhar
para não perder. Crescer significa que eu tenho um monte de problemas que eu não quero
ter. Governo, funcionário, imposto, logística... (Entrevista do dia 21/10/2015)
Fonte: o autor
Ainda de acordo com Strauss e Corbin (2008) a próxima etapa da pesquisa foi a
codificação seletiva. Sua finalidade foi integrar as categorias a fim de se formar um esquema teórico
maior. Nesse processo se determina a categoria central, representada por aquela que reflete o tema
principal da pesquisa. Ela incorpora em si outras categorias importantes e também foi definida em
termos de suas propriedades e dimensões.
Da análise das categorias emergiu a categoria limites como sendo a categoria central,
uma vez que ela se relaciona com todas as demais categorias e ainda aumento o poder explicativo
de cada uma delas (STRAUSS E CORBIN, 2008). Os limites estabelecidos pelos valores
substantivos, pela relação entre pensar e fazer, pela corporeidade e pela centralidade no
artesão condicionam a produção artesanal qualitativamente e quantitativamente. A primeira
por limites mínimos e a segunda por limites máximos.
Partindo desse primeiro corpo explicativo formado pelas categorias iniciais procedi
com a validação da teoria conforme Strauss e Corbin (2008) orientam. Esta validação não tem
sentido quantitativo, mas visa verificar que há ajuste entre a abstração desenvolvida e os dados
brutos. Deste modo, elaborei um documento simples (Apêndice 4) com as dezoito proposições de
modo que os informantes pudessem ler e manifestar concordância ou discordância em relação aos
conceitos. Pedi que, em caso de não concordância, fosse apontando os porquês. Quatro pessoas
auxiliaram nesse processo, três cuteleiros e um aprendiz. Duas validações foram feitas
presencialmente e duas por e-mail. As dezoito proposições iniciais, resultaram em onze proposições
que são descritas no próximo capítulo.
106
Apresento neste capítulo a teoria fundamentada nos dados (substantiva) que explica
a relação entre o trabalho artesanal e crescimento organizacional. A Teoria do Limite Artesanal é
uma explicação da relação entre o trabalho artesanal e o crescimento organizacional. O trabalho
artesanal é entendido como aquele que é fruto do pensamento, feito pelas mãos, permeado de valores
substantivos, focado no objeto e indissociável do artesão. Crescimento foi definido como aumento
na produção de produtos.
Proposição 5: o fazer artesanal é uma ação reflexiva por meio da qual o artesão materializa
objetos pensados. O ato de criação artesanal aproxima o artesão da práxis e o distancia do
trabalho alienado. Desta forma, o trabalho artesanal possui sentido para o artesão.
de troca. A qualidade, a tradição são valores substantivos característicos do fazer artesanal que
podem promover aproximação ou afastamento do mercado. A aproximação ou acoplamento ao
mercado pode ocorrer mediante a incorporação dos valores qualidade e tradição pelo mercado ou o
distanciamento do artesão destes valores. O afastamento ou desacoplamento pode ocorrer à medida
em que o mercado não incorpore a qualidade e a tradição como valores.
Uma vez que trabalho artesanal depende do corpo, é o corpo que possibilita e ao
mesmo tempo limita o artesão no desempenho do seu trabalho. Na produção artesanal inexiste a
automação industrial, de modo que o artesão desempenha seu trabalho diretamente. Esse trabalho
109
é, portanto um tipo de trabalho não delegável ou alienável como ocorre na produção industrial
convencional. A produção artesanal, portanto, limita-se à capacidade fisiológica do corpo.
6 CONCLUSÕES
Theory possibilitou isso, uma vez que nesse método se faz um esforço para ir ao campo sem o apego
de pressupostos. Todos temos os nossos pressupostos, mas a Grounded Theory pede que os
deixemos de lado, ainda que por um instante, para que possamos enxergar além do que já foi visto.
Nesse sentido, esse é um método que permite que se faça, ainda que modestamente, como nessa
tese, descobertas originais honestas. Mas isso só se faz com desapego.
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119
Na revisão da literatura sobre crescimento organizacional foram consultados os anais dos principais
encontros de administração, estratégia e estudo organizacionais do Brasil - (EnANPAD, EnEO,
EnPQ, 3ES e EnGPR) e 32 periódicos. A lista dos periódicos consta abaixo em ordem alfabética.
Foram consideradas as últimas versões de artigos que eventualmente foram publicados em eventos
e posteriormente em periódico.
Periódicos
Brazilian Administration Review
Brazilian Business Review
Cadernos EBAPE
Contextus - Revista Contemporânea de Economia e Gestão
Desenvolvimento em Questão
Future Studies Research Journal
Gestão & Regionalidade
GESTÃO.Org - Revista Eletrônica de Gestão Organizaciona
NAVUS - Revista de Gestão e Tecnologia
Organizações & Sociedade
Organizações Rurais & Agroindustriai
RAE-eletrônica
RAE-Revista de Administração de Empresas
Revista ADM.MADE
Revista Brasileira de Estudos Organizacionais
Revista Brasileira de Gestão de Negócios
Revista Brasileira de Inovação
Revista Capital Científico
Revista Contabilidade & Finanças
Revista da Micro e Pequena Empresa
Revista de Administração
Revista de Administração Contemporânea
Revista de Administração da UFSM
Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS
Revista de Administração e Inovação
Revista de Administração Pública
Revista de Administração - USP
Revista de Ciências da Administração
Revista de Economia e Administraçã0
Revista de Gestão
Revista Eletrônica de Administração
Revista Eletrônica de Estratégia & Negócios
120
Como você vê as diferenças entre uma produção artesanal e uma produção industrial?
Como seus clientes/compradores avaliam o valar das facas produzidas por você?
Você considera uma faca artesanal melhor que uma faca “comercial”? Por que?
É possível haver uma produção industrial com a mesma qualidade da produção artesanal ou
melhor?
Por que alguém se dispõe a pagar mais caro por uma faca artesanal?
Se em algum momento a demanda for maior que sua capacidade para produzir, qual sua ação?
Como você vê a questão de ter que ensinar alguém depois que terminar o curso?
Você é colecionador?
Proposição 1: o artesão ocupa posição central no processo do trabalho artesanal. Quanto maior seu conhecimento,
habilidades e capacidade de executar peças que se aproximem do estado da arte do trabalho artesanal, maior será sua
notoriedade.
Concordo
Não concordo
Proposição 2: o notoriedade do artesão se dá em relação aqueles que compartilham o interesse pela cutelaria. Essa
notoriedade agrega valor ao produto artesanal que leva sua assinatura. Quanto maior a notoriedade do artesão, maior o
potencial de agregação de valor ao produto.
Concordo
Não concordo
Proposição 3: quanto maior for o valor agregado às peças produzidas pelo artesão, maior sua demanda de produção.
Concordo
Não concordo
Proposição 4: a qualidade do produto artesanal está relacionada ao controle do processo de produção pelo artesão.
Concordo
Não concordo
Proposição 5: o trabalho artesanal se dá por intermédio das mãos e a habilidade manual contribui na aquisição de
experiências exitosas no fazer artesanal. Quanto maior o desenvolvimento das habilidades do corpo maior a possiblidade
de notoriedade.
Concordo
Não concordo
Proposição 6: a vitalidade do corpo habilita ao mesmo tempo em que limita o fazer artesanal. O aumento do
condicionamento físico contribui até um determinado limite a produção artesanal, mas a não vitalidade, ou doença,
influencia limitando ou impossibilitando essa produção.
Concordo
Não concordo
Proposição 7: a qualidade do produto artesanal está relacionada às habilidades do corpo desenvolvidas pelo artesão.
Concordo
Não concordo
Proposição 8: o fazer artesanal é uma ação reflexionada por meio da qual o artesão materializa objetos pensados. O ato
de criação artesanal aproxima o artesão da arte e o distancia do trabalho alienado.
Concordo
Não concordo
Não concordo
Proposição 10: a liberdade do fazer artesanal permite que o artesão desenvolva trabalhos que lhe façam sentido.
Concordo
Não concordo
Proposição 11: a manutenção da liberdade do fazer artesanal implica em um desacoplamento total ou parcial do mercado
convencional.
Concordo
Não concordo
Proposição 12: o produto do fazer artesanal carrega significados atribuídos pelo artesão durante o processo do fazer
artesanal.
Concordo
Não concordo
Proposição 13: a produção artesanal é permeada por valores substantivos que influenciam na produção e nas
negociações de produtos artesanais.
Concordo
Não concordo
Proposição 14: a qualidade é um valor substantivo que condiciona a produção artesanal ao máximo valor qualitativo
possível ao mesmo tempo em que influencia no estabelecimento de um limite máximo quantitativo.
Concordo
Não concordo
Proposição 15: a tradição é uma valor substantivo que influencia no sentido da manutenção de práticas e no
compartilhamento de outros valores substantivos.
Concordo
Não concordo
Proposição 16: o ensino da cutelaria artesanal estabelece a relação metre-aprendiz que potencializa a difusão da tradição
da cutelaria artesanal.
Concordo
Não concordo
Proposição 17: a produção artesanal é limitada por fatores ligados à centralidade do cuteleiro no processo de criação e
do fazer artesanal, a aspectos fisiológicos relacionados à corporeidade e à valores substantivos que permeiam o trabalho
artesanal tradicional.
Concordo
Não concordo
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APENDICE 4 – FOTOS
Foto 1 – Pesquisador