Revista Entre Aspas Volume 3 PDF
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ISSN 2179-1805
REVISÃO E IMPRESSÃO
Coordenação de Serviços Gráficos do TJBA
TIRAGEM
2.000 exemplares
ISSN: 2179-1805.
CDD: 340.05
CDU: 34
SECRETÁRIA-GERAL
Maria Guadalupe de Viveiros Libório
Uma (re) leitura do garantismo penal à luz da proteção penal dos bens 282
jurídicos supraindividuais
José Ferreira Coelho Neto
Resumo: Este trabalho tem, como breve objetivo, demonstrar a crise epistemológica do paradigma
tradicional, emanado do iluminismo e que não mais serve ao Direito, na atualidade, em face do
seu esgotamento. A análise do tema perpassa uma nova proposta, trazendo ao debate a teoria
crítica do Direito, a qual, além de romper com o velho paradigma, procura evidenciar as verda-
des do Direito, encobertas e silenciadas, falaciosamente, pelos modelos positivista e
neopositivista. Noutra perspectiva, será analisada a possibilidade da existência de uma teoria
do direito, em Marx, e não, necessariamente, uma teoria crítica, em sua obra, uma vez que, no
próprio Direito, há discussão, a respeito desta última. Do mesmo modo, serão trazidas, à baila,
as ideias e o pensamento dos autores russos, neomarxistas do Direito.
1. Introdução
Trata-se de simples trabalho – daí suas limitações – que tem, como breve objetivo,
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Antes de tudo, vale acentuar que, na atualidade, os diversos campos do saber ociden-
tal vivem verdadeira crise epistemológica de paradigma.
Segundo a definição de Kuhn, o vocábulo paradigma deve ser tomado como sendo:
“(...) aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunida-
de científica consiste em homens que partilham um paradigma”3.
As verdades teleológicas, metafísicas e racionais4, que, à luz dos séculos, serviram de
fundamento às diferentes falas da ciência e às racionalidades dominantes esgotaram-se. Não
mais se constituem em oráculo das inquietações e das necessidades das vítimas5 do atual
sistema social capitalista, principalmente, nos arraiais dos países periféricos.
Além disso, é certo que os modelos teórico-políticos, gestados, a partir do século
XVIII, e que nortearam todo o século XX, encontram-se exauridos. É preciso, pois, repensar um
direito para a época transmoderna6. É urgente nova reflexão, sobre os fundamentos da existên-
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cia de um direito pós-moderno, uma vez que o direito “moderno” foi construído, sobre princí-
pios filosóficos, em homenagem a uma época, que leva seu nome, na qual se tinha uma crença
pia no caráter universal das soluções jurídicas e nas benfeitorias da lei toda-poderosa7.
Contudo, assevere-se, de logo, não se tratar, aqui, de uma reflexão crítica, mística e
desalentadora, de referência às promessas não cumpridas pela modernidade jurídica.
Mas ninguém, por maior ilusão que tenha, nos dias atuais, será capaz de defender os
ideais iluministas, diante da crise global da sociedade contemporânea, a ponto de ainda crer
possível a realização de suas promessas.
Ao contrário, o viés pessimista, em relação à “modernidade industrial capitalista, e
com a visão de mundo construída a partir do ideal racionalista de Descartes”, já vem
proclamado, desde Horkheimer e Adorno, segundo Edmundo Lima de Arruda Júnior, o ilustre
professor, brasileiro, de sociologia jurídica da Universidade Federal de Santa Catarina8
Nessa linha de ideias, Boaventura de Souza Santos, catedrático de Coimbra, também,
assinala, em resumo, que “(...) as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas
ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. Sobretudo, no que respeita à promessa
de igualdade (...) No que respeita à promessa de liberdade (...) No que respeita à promessa
da paz perpétua”9.
Após haver enumerado as três grandes promessas incumpridas da modernidade, Souza
Santos, indignado, chega a ser enfático:
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Sim, porque o direito há de ser pensado, não de forma abstrata e metafísica, mas, sempre,
na dimensão do justo. Enfim, é necessário ser ele recolocado no locus da práxis político-social
libertadora, o que, em última análise, significa o resgate de sua dignidade política16.
Por outras palavras, essa juridicidade crítica pressupõe novas perspectivas de reflexão,
mediante o rompimento com a tradicional racionalidade da cultura jurídica ocidental. Sem dúvi-
da alguma, é tarefa da teoria crítica do Direito17 promover a sua desideologização, transforman-
do-o em instrumento pedagógico de efetivação de um direito novo, que possa representar a
vocalização máxima da dignidade humana.
Em síntese, diferentemente do teórico tradicional, que não se ocupa da gênese social
dos problemas, das situações reais, nas quais a ciência é usada, diria Horkheimer “(...) a tarefa
do teórico crítico é superar a tensão entre a sua compreensão e a humanidade oprimida,
para a qual ele pensa”18.
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dos anos 60, através da contribuição de juristas europeus, que passaram a estudar o Direito,
criticamente, de forma distanciada do modelo tradicional.
Enfatize-se que, segundo o autor, no referido período, o movimento crítico no Direito
sofreria o influxo do economicismo jurídico-soviético, mediante o pensamento de Stucka e
Pashukanis, da releitura gramsciana da teoria marxista, realizada pelo grupo de Althusser, da
teoria crítica frankfurtiana e das teses arqueológicas de Foucault, sobre o poder. Ademais,
esclarece Wolkmer que o movimento, de inspiração neomarxista e de contracultura, começou
a questionar o sólido pensamento juspositivista, dominante no âmbito acadêmico e das
instâncias das instituições19.
De acordo com a linha histórica, traçada por Wolkmer, nos anos 70, o movimento se
consolidaria, na França, através de professores universitários de esquerda, e, num segundo
momento, na Itália, tendo, à frente, magistrados antipositivistas e politizados, precursores
do "uso alternativo do direito"20.
Na década de 80, o movimento de crítica jurídica espalharia seus raios, na América
Latina, notadamente, na Argentina, tendo, como expoentes, Carlos Cárcova, Ricardo Entelman,
Alicia Ruiz, Enrique Mari e Outros, no México, Oscar Correas, no Chile, Eduardo Novoa
Monreal, na Colômbia, um grupo de juristas, integrantes do Ilsa e, no Brasil, são realçados,
dentre outros, Roberto Lyra Filho, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Luiz Fernando Coelho e Luis
Alberto Warat21.
Seguindo essa mesma perspectiva histórica, Eros Roberto Grau, atual Ministro do
Supremo Tribunal Federal brasileiro, situa o surgimento do movimento da crítica jurídica, na
França, na segunda metade dos anos 70, com a publicação do Pour une critique du droit,
coletânea de ensaios que se abre com um manifesto. Antes disso, em 1976, havia sido
publicado Une introduction critique au droit, de Michel Miaille22. Prossegue Grau, citando
Cárcova, que:
3.1. Conceito
Após esta breve introdução histórica, pode-se conceituar a teoria crítica do Direito,
seguindo os passos do nunca bastante citado Wolkmer:
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Por seu turno, conceitualmente, Luis Fernando Coelho assevera estar o contexto da
teoria crítica do direito entrelaçada, dialeticamente, “(...) entre a teoria e a experiência, na
realização do direito como espaço de luta e conquista com vistas à autonomia dos indivídu-
os e à emancipação das sociedades”25.
Entre os que se posicionam a favor da existência de uma teoria crítica do Direito, a partir
de determinados pressupostos teóricos, avultam-se Michel Miaille e Ricardo Entelman, além
de Luiz Fernando Coelho, no Brasil26.
Argumenta Wolkmer que a contribuição de Miaille, como adepto de uma teoria crítica
do Direito, traduz-se em uma crítica, radical e contundente, ao sistema jurídico capitalista e à
normatividade burguesa dominante27.
Esclarece Wolkmer que, para Miaille, é necessário desconstruir os mitos e os pressu-
postos ideológicos, encobertos pela legalidade burguesa, mediante nova proposta
epistemológica, embasada no materialismo dialético e histórico, bem assim o rompimento com
o modelo de dominação socioeconômico e individualista, inerente à estrutura jurídica capitalis-
ta, desse modo, possibilitando o surgimento da teoria crítica do Direito, seja no nível do
pensamento, seja no nível da prática, capaz de dessacralizar os mitos normativos28.
Vista, assim, por Miaille, a teoria crítica do Direito tem uma conformação de ciência
social revolucionária, servindo de verdadeiro instrumento de transformação política, ao dar
forma a uma nova racionalidade científica, capaz de erradicar os modelos jurídicos de domina-
ção. É certo que os postulados críticos de Miaille, inicialmente, inspiraram-se, na epistemologia
francesa e no cientificismo de Althusser, portanto, de vertente neomarxista29.
Porém, Wolkmer explicita que ocorreria verdadeira mudança epistemológica, na evolu-
ção do pensamento de Miaille, o qual abdicaria de suas posturas althusserianas, contidas, em
sua obra, Uma Introdução Crítica ao Direito, abandonadas e refutadas, na segunda parte de
L’État de Droit, de modo que, na atualidade, o referido autor não mais tem uma visão do Direito,
como instância ideológica superestrutural, única, mas como forma específica de produção e de
relação social capitalista30.
A partir dessas fontes, Miaille desenvolve sua teoria crítica do Direito, na sociedade
capitalista. Principalmente, segundo Joaquim Falcão, “uma teoria marxista renovada do Di-
reito, capaz de suplantar as insuficiências da concepção do Direito, como mero reflexo da
infra-estrutura, ou como instância ideológica”31.
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No que se refere à posição de Luiz Fernando Coelho, vale acrescentar, apenas, que sua
contribuição, em favor de uma teoria crítica, é de cunho culturalista e equidistante das posturas
socialista e marxista37.
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do os séculos e tirando o sono dos jusfilósofos: O que é Direito?39 Pergunta, aliás, homônima
de um pequeno grande livro de Lyra Filho40.
Além da dificuldade de se obter resposta para tal questionamento, tão tormentoso e
vexatório, sustenta a corrente, contrária à existência de uma teoria crítica, que esta esbarraria,
também, na questão do próprio objeto do direito.
Sobretudo, porque, conforme assevera Horácio Wanderley Rodrigues:
Na esteira dos que criticam a teoria crítica do Direito, figura Leonel Severo Rocha,
jurista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Parte ele do pressuposto de que,
numa verdadeira teoria crítica, não pode haver oposição, entre ciência e ideologia.
Por isso, afirma que “... a ideologia moderna é positiva, ou seja, não é uma mera ilusão
no sentido negativo do positivo. Desta maneira, todo conhecimento científico tem um forte
componente ideológico, o que não torna fortuita a lógica interna do seu discurso, mas
apenas desmascara o compromisso de sua racionalidade com a política”42.
É de concluir-se, pois, de suas afirmações, serem os pressupostos da crítica do Direito
mais políticos que científicos. Quanto a isso, por sinal, o autor é por demais claro “(...) o que se
pode efetuar é a proposta de uma nova diretriz política, nunca científica, para o saber
jurídico”43.
Mas a crítica de Rocha à teoria crítica do Direito vai, mais além, ao pontuar que:
No que se refere à posição de Luis Alberto Warat, este, de igual modo, coloca-se,
contrariamente, à possibilidade de se falar de uma teoria crítica do Direito. Segundo Warat, o
que há é uma pluralidade de movimentos, uma heterogeneidade de tendências. Em consequência
de tal multiplicidade, não se pode falar de uma única teoria crítica do Direito45.
Analisando o pensamento waratiano, Wolkmer reforça a tese, até aqui, exposta: a de
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que Warat, também, nega a existência de uma verdadeira teoria crítica do Direito, enquanto
escola ou corrente de pensamento, em face da fragmentariedade do saber crítico, que não se
apresenta de forma monolítica46, além de ser cheio de promessas. Diz Wolkmer textualmente:
Apesar disso, não se pode negar ser a obra waratiana de extrema importância para a
teoria crítica do Direito, em que pesem as críticas levantadas a esta, como visto, uma vez que o
autor procura desmitificar os vários discursos jurídicos, seja o do intérprete, seja a dos opera-
dores jurídicos, seja, enfim, do cientista do Direito.
Além disso, Warat busca desconstruir os pressupostos epistemológicos das teorias
idealistas e positivistas, já que os seus achados, no campo da semiologia e da psicanálise,
permitem desnudar e dessacralizar as falácias do discurso jurídico tradicional.
Eros Roberto Grau é outro jusfilósofo que nega, enfaticamente, a existência de uma
teoria crítica do Direito, ao afirmar que “o que há são movimentos ou correntes de crítica do
direito”48. Em sequência, prossegue Grau:
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A partir de tal premissa conceitual, não se pode cogitar de uma verdadeira teoria do
Direito em Marx. Enfatize-se que Marx não se debruçou, mais de espaço, sobre a questão
jurídica, a ponto de se poder elevá-la ao status de uma teoria, em sua vasta obra. Até porque, em
seus textos históricos e econômicos, aparecem, apenas, breves alusões ao vocábulo Direito,
mesmo assim, em diversas sinonímias, ora “para designar as normas jurídicas que sustentam
o poder das classes dominantes, ora para apontar o Direito dos espoliados e oprimidos.
Marx não foi um filósofo do Direito...”, diria Tarso Genro53. Tal assertiva mantém coerência
com o pensamento marxiano.
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Aliás, Marx sempre defendeu a tese, segundo a qual, tanto o Estado como o direito
estatal, numa etapa do comunismo evoluído, tenderiam a desaparecer e deveriam ser relegados
ao museu da história, como autênticos inutensílios. Assim sendo, não existiam razões, para que
ele se demorasse, mais a fundo, numa análise teórica do fenômeno jurídico.
Daí porque, nessa linha de reflexão, verbera Arruda Jr.: “Hoje sabemos que Marx tinha
uma concepção pouco desenvolvida do Estado e do Direito”54.
Não há dúvida de que a ideia que Marx fazia do Direito era a de que este completava e
consagrava a força55, enquanto que o Estado, nas mãos da classe exploradora, era um instru-
mento suplementar de exploração das classes oprimidas56.
Assim sendo, não é demais repetir que seria verdadeira contradição, por parte de Marx,
elaborar uma teoria sobre algo (o direito), fadado ao desaparecimento, por se tratar de instru-
mento coercitivo de uma classe, numa futura sociedade comunista, sem classe dominante, nem
classe dominada.
Nesse mesmo sentido, sinalizam Martônio Mont'Alverne Barreto Lima e Enzo Bello, ao
textuarem que:
Nessa mesma trilha, Souza Santos, também, nega, veementemente, a existência de uma
teoria marxiana do Direito, ao pontuar que:
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Argumente-se, ainda, com Elster, quando afirma que “Marx era constitucionalmente
incapaz de chegar a conclusões sem estudo profundo, prolongado e independente, sempre
buscando as fontes originais e apenas desenvolvendo seus próprios argumentos depois de
tê-los assimilado satisfatoriamente”60.
Ao contrário, conforme aponta Elster, Marx formulou densa crítica, quando escreveu,
sobre economia, por exemplo, tendo, neste campo do conhecimento, elaborado espessa teoria
econômica. Eis o que disse Elster, a propósito das elaborações teóricas de Marx:
Diante de tudo quanto asseverado, conclui-se que, ainda por esse aspecto de sua
formação intelectual, Marx, jamais, seria capaz de elaborar uma teoria do Direito, de forma
superficial, assistemática, enfim, com argumentos de segunda mão.
No Brasil, quem mais se aprofundou, sobre o tema examinado, – da existência, ou não,
de uma teoria do Direito, em Marx, segundo Wolkmer, foi o jusfilósofo Roberto Lyra Filho, “no
ensaio inacabado Humanismo Dialético e no livro Karl, meu Amigo: Diálogo com Marx
sobre o Direito”62.
Tanto assim que, fulcrado nas falas transgressivas de Lyra Filho, Wolkmer afirma que
“inicialmente, o autor lembra que, quanto mais cresce a literatura marxista sobre o Direito,
‘tanto mais aumenta a confusão em torno do assunto que ela pretende elucidar”63.
Analisando, percucientemente, o pensamento de Lyra Filho, prossegue Wolkmer:
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Não se pode olvidar, em arremate, que o próprio Wolkmer73 filia-se à corrente doutrinária
daqueles que infirmam a possibilidade de uma teoria científica do Direito, em Marx, fazendo
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coro com a maioria dos intérpretes marxistas, segundo os quais, como visto, não se pode
cogitar de uma teoria ou de uma doutrina, na obra do filósofo alemão, sem dúvida alguma, um
dos maiores pensadores da humanidade, de que se tem notícia, no curso da história.
Tanto assim que Sartre chegou a proclamar: “o marxismo é a filosofia insuperável do
nosso tempo (…) porque as circunstâncias que o engendraram não foram superadas”74.
Entretanto, Wolkmer admite:
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Nessa linha de ideias, Pashukanis, após haver promovido cerrada crítica às doutrinas
jurídicas ocidentais, põe, em relevo, o aspecto histórico do Direito, em face da infraestrutura
econômica, com o escopo de demonstrar, de modo claro, que o normativismo tradicional pos-
suía um caráter burguês-capitalista81.
Pashukanis, além de haver concebido o Direito, como um sistema de relações sociais,
preocupou-se, diferentemente de Stuchka, com o aspecto da conversão dessas relações, em
instituições jurídicas82.
Para Pashukanis, o Direito está circunscrito à ordem capitalista, portanto, tendente ao
desaparecimento, no marco superior do comunismo. Tanto mais que, “numa sociedade
coletivista, na qual haverá unidade de propósito social e harmonia de interesses, o Direito
deixará de ser necessário e será substituído por normas técnico-sociais baseadas na utilida-
de e conveniência econômicas”83.
Pashukanis sofreria crítica acre de Kelsen, por considerá-lo equivocado, porque o
economicismo de sua obra, fincado na interpretação econômica de Marx dos fenômenos polí-
ticos, “acabou reduzindo o ‘jurídico’ ao econômico”84. Kelsen faz ainda outras severas críti-
cas, em sua obra, Teoría Pura del Derecho y Teoría Marxista del Derecho, sobre as concepções
econômico-mecanicistas do Direito, em Pashukanis. Entretanto, em função da natureza reduzi-
da deste trabalho, não serão, aqui, examinadas.
Convém salientar, apenas, que Pashukanis não deixaria, sem resposta, as objeções de
Kelsen aos seus achados teoréticos marxistas. Tanto assim que, replicando a crítica de Kelsen,
Pashukanis, como expoente máximo da teoria do Direito, argumenta, segundo a citação de
Wolkmer, que:
De referência a Stuchka, apesar de admitir uma relação vinculada, entre Direito e Econo-
mia, destarte, repulsando as teorias burguesas, que confundem Direito, com norma, ou com
emoção, ou com justiça, certo é que este autor, de acordo com Wolkmer, “desvia-se da concep-
ção marxista de que o Direito é mera forma ideológica, admitindo que pertence à infra-
estrutura das relações sociais”86.
Após esse período clássico da teoria marxista do Direito e com as mudanças
socioeconômicas e político-ideológicas, ocorridas na ex – URSS, os ideólogos estalinistas
procuraram desconstruir o axioma do desaparecimento do Direito e a concepção de ser o
Direito produto das relações sociais, gestadas pelo sistema capitalista burguês. Tudo isso com
o fito exclusivo de justificarem o Estado burocrático do período estalinista e, dessa forma,
elaborarem um Direito socialista, visando à tutela e preservação dos interesses do Partido
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Nessas condições, o Direito deixa de ser a expressão de uma relação social de cunho
socioeconômico, como queriam Stuchka e Pashukanis, para se tornar ‘o meio de realizar a
vontade da classe dominante; a classe dominante empresta-lhe um caráter obrigatório,
dando-lhe regras de comportamento estabelecidas ou sancionadas pelo Estado e garanti-
das pela pressão por parte do Estado’88.
Vê-se, desenganadamente, que Vyschinski nega ser o Direito um sistema de relações
sociais, adotando posição, claramente, normativista, o que demonstra ter ele uma concepção
teleológica do Direito, marcada pela definição do Direito soviético. Assim, segundo este autor,
o Direito seria “um sistema de normas estabelecidas pela legislação do Estado de Trabalha-
dores, que expressa a vontade de todo o povo soviético, conduzido pelas classes trabalhado-
ras encabeçadas pelo Partido Comunista, a fim de proteger, fortalecer e desenvolver as
relações socialistas e a construção de uma sociedade comunista”89.
Trata-se, como analisado, de duas correntes clássicas do marxismo, antagônicas e
irreconciliáveis: a primeira, influenciada e representada por Stuchka e Pashukanis, fincada na
ortodoxia do economicismo e para a qual o Direito é mero reflexo da economia; a segunda,
influenciada e representada por Vyschinski, conotada pelo positivismo jurídico-socialista.
No entanto, atualmente, em face de uma releitura da obra marxiana, vislumbra-se uma
terceira via de interpretação, mediante a qual Marx é revisitado. Por este novo fio condutor,
vem consolidando-se o entendimento de que, se o Direito é produzido pela estrutura econômi-
ca, também, interage, em relação a ela, ocasionando-lhe mudanças. No Brasil, merecerem realce
a alentada releitura dos textos marxistas, realizada por Eros Roberto Grau, segundo o qual “a
economia condiciona o direito, mas o direito condiciona a economia”90.
É inegável a profundidade da obra de Marx, daí, as divergências acentuadas de seus
seguidores, a seu respeito. Talvez, de Marx, pudesse ser dito o que se disse, certa vez, algures,
de Proust: mais citado do que lido, mais lido do que compreendido. Ou pudesse ser dito, de
outra forma, pela pena fina, mordente e cintilante de Lyra Filho:
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Não se podendo olvidar, ainda, que não se deve fazer dos textos de Marx uma incorreta
interpretação, sob pena de se inferir destes, “coisas que este não escreveu”92, como diria Ariel
Germán Petruccelli.
Por isso, parafraseando-se Roberto Lyra Filho, pode-se afirmar que, sem Marx, nada se
intenta, validamente, no plano da reflexão, sobre o Direito, “porém com ele o trabalho apenas
começou”93.
6. Conclusão
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Notas ______________________________________________________________________________
1. Este artigo, com ligeiras alterações, foi resultado de um trabalho do autor, apresentado, no curso de
doutorado, na UMSA, em Buenos Aires, para a disciplina Teoria del Derecho. Dedico-o ao prof. Antônio
Carlos Wolkmer, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, que, no curso de pós-graduação, em
convênio entre a UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e a UFSC, ensinou-me, com suas falas,
mágicas e transgressivas, um novo jeito de caminhar, pelos entremeios frios da lei, pelos novos caminhos de
um Direito insurgente, vocalizador de um “discurso sedicioso”, dessacralizador das velhas e jurássicas ensinanças
dogmáticas. De Wolkmer, sempre serei discípulo.
2. Roberto Lyra Filho in Por que estudar Direito, hoje?
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3. Thomas S. Kuhn. A Estrutura das Revoluções Científicas, 5. ed., São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 219.
4. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1.
5. O termo vítima é aqui empregado, como sinônimo de seres humanos que não podem reproduzir ou
desenvolver sua vida, enfim, excluídos, conforme o sentido que lhe deu Enrique Dussel. Ética da Libertação.
Na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002, p. 303.
6. Luis Alberto Warat prefere usar o termo “transmodernidade”, para se referir aos fenômenos, geralmente,
agrupados, sob o rótulo: pós-modernidade. Isto porque, segundo pensa o autor, a “pós-modernidade” não é
outra coisa que a modernidade, em suas formas esgotadas, em trânsito para outros estilos de pensamento.
Warat, Luis Alberto. Introdução geral ao direito – o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. v. III.
Porto Alegre: Safe, 1997, p. 138.
7. André-Jean Arnaud. O Direito Traído pela Filosofia. Trad. port. de Wanda de Lemos Capeller e Luciano
Oliveira. Porto Alegre: Safe, 1991, p. 245-247.
8. Edmundo Lima de Arruda Jr. Direito e Século XXI: conflito e ordem na onda neoliberal pós-moderna:
(ensaios de sociologia do direito). Rio de Janeiro: Luam, 1998, p. 29.
9. Boaventura de Souza Santos. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
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10. Boaventura de Souza Santos. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
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Brasília, 1988, p. 26.
13. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 03.
14. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.03.
15. Antonio Carlos Wolkmer. Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 33.
16. Marilena Chauí. Direito & Avesso. n. 2. Brasília: Ed. Nair, 1983, p. 22.
17. Há quem afirme não haver uma teoria crítica do Direito, mas uma teoria crítica no Direito, uma vez que
ela pode ser aplicada, nos diversos ramos das ciências, que têm, como objeto, o estudo do fenômeno humano.
Contudo, neste trabalho, ambas as locuções serão utilizadas indistintamente.
18. Max Horkheimer. Teoria Tradicional e Teoria Crítica in Textos Escolhidos. Col. Os Pensadores. Trad. de
José Lino Grünnewald. et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 140.
19. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 16.
20. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 16.
21. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 16-17.
22. Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 149.
23. Carlos Cárcova. Teorías jurídicas alternativas. Los Estudios jurídicos teóricos en América Latina. No hay
derecho 3. Buenos Aires, 1991 apud Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 149.
24. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 18.
25. Luiz Fernando Coelho. Teoria Crítica do Direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13.
26. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22.
27. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22.
28. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22.
33
ENTRE ASPAS
29. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 22.
30. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 40.
31. Joaquim Falcão. Uma Proposta para a Sociologia do Direito in Carlos A. Plastino (org.). Crítica do Direito
e do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 60.
32. Ricardo Entelman. Nuevas Perspectivas de la Filosofia del Derecho. Culturas, Paris: Unesco, 1982, p. 155 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 23.
33. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 24.
34. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 24.
35. Ricardo Entelman. “Discurso normativo e organização do poder: a distribuição do poder através da
distribuição da palavra”, texto apresentado no encontro da Clacso, Buenos Aires, 1985 apud Wanda Capelle.
O Discurso Jurídico e o Homem. A Leitura do Verso pelo Reverso in Desordem e Processo: estudos sobre o
Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do seu 60º aniversário/org. [por] Doreodó Araújo
Lyra. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 163.
36. Ricardo Entelman. El discurso jurídico como discurso del poder. La ubicación de la función judicial. Intento
de análisis en el contexto teórico de la “teoria critica del derecho”. Comunicação ao I Congresso Internaci-
onal de Filosofia del Derecho. Compilación de Comunicaciones, La Plata, 1982, v II, p. 113 apud Luiz
Fernando Coelho. Teoria Crítica do Direito. 3. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 324.
37. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 109.
38. Antoine Jeammaud. Algumas questões a abordar em comum para fazer avançar o conhecimento crítico do
Direito. In: Carlos A. Plastino (org.). Crítica do Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 73-94.
39. Horácio Wanderley Rodrigues. Ensino Jurídico e Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica,
1993, p. 136.
40. Roberto Lyra Filho. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999.
41. Horácio Wanderley Rodrigues. Ensino Jurídico e Direito Alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica,
1993, p. 136.
42. Leonel Severo Rocha. Crítica da Teoria Crítica do Direito. Seqüência. Florianópolis: Ed. UFSC, n.º 6, dez.
1982, p. 132.
43. Leonel Severo Rocha. Crítica da Teoria Crítica do Direito. Seqüência. Florianópolis: Ed. UFSC, n.º 6, dez.
1982, p. 134.
44. Leonel Severo Rocha. Crítica da Teoria Crítica do Direito. Seqüência. Florianópolis: Ed. UFSC, n.º 6, dez.
1982, p. 133-135.
45. Luis Alberto Warat. El Jardim de los Senderos que se Bifurcam: A Teoria Crítica do Direito e as Condições
de Possibilidade da Ciência Jurídica. Contradogmáticas, Santa Cruz do Sul: Almed/Fisc, 4-5: 60, 1985 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 73.
46. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 27.
47. Luis Alberto Warat. El Jardim de los Senderos que se Bifurcam: A Teoria Crítica do Direito e as Condições de
Possibilidade da Ciência Jurídica. Contradogmáticas, Santa Cruz do Sul: Almed/Fisc, 4-5: 60, 1985 apud Antonio
Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 27- 28.
48. Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002, p. 148.
49. Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002,
p. 148-149.
50. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 21.
51. O enfoque é, apenas, sobre a existência ou não de uma teoria do Direito em Marx e não de uma teoria crítica.
52. Carlos Ayres de Britto. Teoria da Constituição – Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 01.
53. Tarso Fernando Genro. Fontes Materiais e Igualdade Jurídica. Uma Reflexão sobre Socialismo e Direito
in Desordem e Processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do seu 60º
34
A REVISTA DA UNICORP
aniversário/org. [por] Doreodó Araújo Lra. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 91.
54. Edmundo Lima de Arruda Júnior. Direito e Século XXI: conflito e ordem na onda neoliberal pós-
moderna: (ensaios de sociologia do direito). Rio de Janeiro: Luam, 1998, p. 16.
55. George Politzer [et alli]. Princípios Fundamentais de Filosofia. Trad. de João Cunha Andrade. São Paulo:
Hemus Editora Limitada., 1995, p. 324.
56. George Politzer [et alli]. Princípios Fundamentais de Filosofia. Trad. de João Cunha Andrade. São Paulo:
Hemus Editora Limitada., 1995, p. 329.
57. Martônio Mon't Alverne Barreto Lima e Enzo Bello (coord.). Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p.XIX-XV.
58. Boaventura de Souza Santos. Justiça popular, dualidade de poderes e estratégia socialista in Direito e
Justiça: a função social do Judiciário. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Átila, 1989, p. 185-186.
59. Michel Miaille. Introdução Crítica ao Direito. 3.ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2005, p. 67
60. Jon Elster. Marx, Hoje. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 26
61. Jon Elster. Marx, Hoje. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 196.
62. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 151.
63. Roberto Lyra Filho. Humanismo Dialético in Direito & Avesso, Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 151.
64. Roberto Lyra Filho. Humanismo Dialético in Direito & Avesso, Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 151.
65. Roberto Lyra Filho. Humanismo Dialético in Direito & Avesso, Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 151.
66. Roberto Lyra Filho. Humanismo Dialético in Direito & Avesso, Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
67. Roberto Lyra Filho. Karl, meu Amigo. Diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris
Editor, 1983; Humanismo Dialético. Direito & Avesso. Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud Antonio Carlos
Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
68. Roberto Lyra Filho. Karl, meu Amigo. Diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris
Editor, 1983; Humanismo Dialético. Direito & Avesso. Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud Antonio Carlos
Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
69. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
70. Roberto Lyra Filho. Humanismo Dialético in Direito & Avesso, Brasília: Nair, 3:69, Jan. 1983 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
71. Elías Díaz. De la Maldad Estatal y la Soberanía Popular. Madrid: Editorial Debate, 1984, p. 166 e 170-2 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 155.
72. Elías Díaz. De la Maldad Estatal y la Soberanía Popular. Madrid: Editorial Debate, 1984, p. 166 e 170-2 apud
Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 155.
73. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 154.
74. Jean Paul Sartre. Questions de méthode: marxisme et existencialisme – Critique de la raison dialethique.
Paris: Gallimard, 1972, p. 29 apud Martônio Mon't Alverne Barreto Lima e Enzo Bello (coord.). Direito e
Marxismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. XIV.
75. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 156.
76. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 156.
77. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 156.
78. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 156-157.
79. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157.
80. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157.
35
ENTRE ASPAS
81. Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 134.
82. Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 134.
83. Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 134.
84. Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157.
85. Pashukanis, Teoria Geral do Direito e Marxismo. Trad. port. do prof. Sílvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, p. 19 e 34 apud Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3.
ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 159.
86. Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 133.
87. Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p.
133-134.
88. A. Vyschinski. apud Iring Fetscher. Direito e justiça no marxismo soviético in Karl Marx e os marxistas.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970, p. 241 apud Antonio Carlos Wolkmer. Ideologia, Estado e Direito. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 135.
89. Orlando Gomes. Marx e Kelsen. Salvador: Progresso, 1959, p. 29-30.
90. Eros Roberto Grau. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 4. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002,
p. 59. Nesse sentido, também, Luis Díez Picazo. Experiencias jurídicas y teoría del Derecho. Madrid: Editorial
Ariel, 1973, p. 24.
91. Roberto Lyra Filho. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 80.
92. No original: “cosas que éste no escribió”. Ariel Germán Petruccelli. Enrique Dussel y el tercer criterio
epistemológico de demarcación: contrarréplica In Cuadernos de Herramienta. Debate Marxismo y Epistemologia.
Setiembre de 2001. nº 1. Reedición Junio 2007. Buenos Aires: Herramienta, 2007, p. 39-45. Veja-se, ainda, sobre
a matéria Enrique Dussel. Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los manuscritos del 61-63. Biblioteca
del pensamiento socialista. Serie estudios críticos. Iztapalapa: siglo veintiuno editores, 1988.
93. Roberto Lyra Filho. Desordem e Processo: Um Posfácio Explicativo in Desordem e Processo: estudos
sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho, na ocasião do seu 60º aniversário/org. [por] Doreodó
Araújo Lyra. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 302.
36
“DER TOTE ERBT DEN LEBENDEN” E O ESTRANGEIRISMO INDESEJÁVEL
1. Reflexão Inicial
Este artigo não tem uma maior pretensão linguística, afigurando-se como um mero
desabafo e um apelo à pesquisa consciente.
37
ENTRE ASPAS
Aliás, analisando a doutrina civilista brasileira, sobretudo a produzida nas últimas déca-
das, é forçoso constatar, cada vez mais, a presença de institutos, expressões e palavras
recepcionadas e utilizadas em língua estrangeira: duty to mitigate (teoria interessantíssima,
baseada no princípio da boa-fé, segundo a qual, mesmo o titular de um direito tem o dever de
atuar para mitigar o prejuízo experimentado pelo devedor), substantial performance (ou doutri-
na do adimplemento substancial, amplamente estudada no âmbito do contrato de seguro, por
meio da qual defende-se a impossibilidade de se considerar resolvido o contrato quando a
prestação desempenhada pelo devedor, posto não haja sido perfeita, aproxima-se substancial-
mente do seu resultado final), disregard of legal entity (desconsideração da pessoa jurídica),
Treu und Glauben (expressão alemã que traduz a ideia de boa-fé objetiva), enfim, sem mencio-
narmos ainda frases e locuções outras, largamente repetidas, nas academias, fóruns e univer-
sidades do país, provenientes do latim – língua que, posto importante, não é mais falada
(venire contra factum proprium, supressio, surrectio, tu quoque2).
Impossível, para mim, em um simples e despretensioso artigo, esgotar as dezenas, se-
não centenas, de expressões estrangeiras amplamente recepcionadas – e até reverenciadas –
pelos profissionais do Direito no Brasil.
E não sou contra esta prática.
Embora cultive um inegável amor pela língua portuguesa – a mais bela das línguas –
tenho consciência de que, por conta da própria interpenetração dos sistemas normativos
mundiais e da interdisciplinaridade crescente – ninguém está imune a adoção de expressões
estrangeiras.
O que não posso aceitar, e aqui vai um desabafo, é a postura daqueles que, como meros
repetidores autômatos, reverberam expressões estrangeiras sem se preocupar em buscar o seu
real sentido.
Com isso, não quero dizer que todos nós devamos conhecer todas as línguas do mundo.
Isso seria impossível.
Pretendo apenas conclamar, você, amigo leitor, a não aceitar uma expressão estrangeira,
sem antes buscar a sua fonte e o seu sentido.
Não me conformo com a impensada reverência ao estrangeirismo jurídico.
Certa feita, quando aluno, ouvi uma pessoa, em um debate jurídico, utilizar uma expres-
são estrangeira, o que fez com que o seu interlocutor – com quem contendia – corar e calar-se,
por não saber rebater aquela assertiva.
Fui, em seguida, por curiosidade acadêmica, pesquisar aquela expressão, e vi que ne-
nhum sentido fazia.
Aquele sujeito – “estelionatário intelectual”, se me permitem – apenas lançou mão de
uma frase estrangeira de efeito, como recurso de retórica, para “ganhar a discussão”, o que
38
A REVISTA DA UNICORP
O fato de alguém citar uma expressão estrangeira, especialmente por não derivar da
nossa língua mãe, exige, do receptor da informação, a necessidade de estudo e de pesquisa
daquela assertiva, para que não seja vítima de uma falsa percepção do conhecimento, indese-
javelmente amplificada pela repetição mecânica de um conteúdo incompreendido.
E graças a este hábito de pesquisa que sempre nutri, deparei-me com uma situação
muito interessante.
Como é cediço, o art. 1.784 do Código Civil consagrou o denominado princípio da saisine:
De acordo com este princípio, oriundo do Direito Feudal, e amplamente aceito no mun-
do, quando um sujeito morre, a sua herança é imediatamente transmitida aos seus herdeiros
legítimos e testamentários.
Trata-se, pois, de uma ficção jurídica, para evitar que, durante o tempo em que tramita o
inventário ou o arrolamento, a referida herança remanesça sem titular.
Assim, se JOÃO morre, deixando três filhos, PEDRO, MATHEUS e ALISSON, cada um
deles, no mesmo instante do óbito, passa a ser titular da fração ideal de 1/3 da herança, por
força do princípio mencionado. Somente ao final do inventário (ou arrolamento), após deduzidas
as dívidas do falecido, serão individualizados os bens que tocarão a cada herdeiro.
É como se o vivente (o herdeiro) continuasse o direito do falecido, sem interrupção.
Pois bem.
Ao aprofundar a pesquisa sobre o tema, deparei-me com a referência feita pela doutrina
a uma expressão alemã que caracterizaria o citado princípio da saisine:
“Der Tote erbt den Lebenden”.4
Não há erro algum na referência que a doutrina faz, quando menciona a frase para
caracterizar a saisine.
O problema é que, ao buscar o sentido exato da expressão, fui colhido de espanto.
Por mais que me esforçasse em compreender o sentido da expressão traduzida do
alemão para o português, a frase não apresentava sentido algum.
39
ENTRE ASPAS
Sei que uma boa tradução não se apega ao sentido isolado de cada palavra, mormente
na língua alemã, com as suas complexas declinações e o constante uso do passivo na palavra
escrita erudita.
Todavia, mesmo assim, a frase, citada e repetida, não faria sentido algum se convertida
para o português, pois afirmaria que o “morto herda do vivo”.
Der Tote (o morto) erbt (herda) den Lebenden (do vivo).
Ora, o vivo é quem herda do morto! E não o contrário!
Não me conformei, e consultei outros estudiosos da língua alemã.5
O grande professor Arruda Alvim, dileto amigo, um dos maiores juristas brasileiros, com
domínio inclusive do alemão gótico, também externou espanto, pois, tal como a frase é conhe-
cida e difundida, não teria, em uma tradução fiel ao verbo utilizado, sentido algum.
Destaco trecho de correspondência que me fora enviada pelo culto professor da PUC-SP:
4. Conclusão
Ora, certamente, deve haver alguma explicação, talvez histórica, perdida ao longo dos
séculos.
Não pretendo, aqui, como disse no início deste modesto artigo, tecer considerações
meramente gramaticais.
A minha intenção é menos arrojada.
Quero, apenas, conduzir o leitor, especialmente os meus alunos, a um raciocínio que
valorize o amor pela pesquisa, e não incentive a mera repetição de fórmulas.
40
A REVISTA DA UNICORP
Como visto, ao aprofundar o estudo da referida frase, abriu-se para mim um portal de
indagações pertinentes e de alta profundidade jurídica.
Tudo a reforçar mais uma vez a velha lição de que o Direito se reconstrói sempre.
E de que, ainda que estudemos a mesma matéria diversas vezes, um novo horizonte
sempre se descortina.
Notas ______________________________________________________________________________
1. O Novo Divórcio, publicado pela Editora Saraiva e escrito em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho
(pág. 62), 2010.
2. Discorri sobre esses institutos na obra Novo Curso de Direito Civil – Teoria Geral dos Contratos – vol. 4,
tomo 2, no capítulo V, item 6, dedicado ao estudo dos desdobramentos da boa-fé objetiva (Ed. Saraiva), escrito
em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho.
3. SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão em 38 Estratagemas (Dialética
Erística). Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, pág. 97.
4. Ver o grande PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. VI (Sucessões), 17ª ed., Rio de
Janeiro: Forense, 2009, p.15. E, na mesma linha, refere o mesmo autor, com propriedade, o talentoso
Cristiano Imhof: “23/11/2010 STJ. Art. 1.784 do CC/2002. Instituto da saisine. Evolução histórica. Sobre o
tema, destaca-se a lição de Caio Mário da Silva Pereira: Droit de saisine. Na Idade Média, institui-se a praxe
de ser devolvida a posse de bens, por morte do servo, ao seu senhor, que exigia dos herdeiros dele um
pagamento, para autorizar a sua imissão. No propósito de defendê-lo dessa imposição, a jurisprudência no
velho direito constumeiro francês, especialmente no Costume de Paris, veio a consagrar a transferência
imediata dos haveres do servo aos seus herdeiros, assentada a fórmula: Le serf mort saisit le vif, son hoir de plus
proche. Daí ter a doutrina fixado por volta do século XIII, diversamente do sistema romano, o chamado droit
de saisine, que traduz precisamente este imediatismo da transmissão dos bens, cuja propriedade e posse passam
diretamente da pessoa do morto aos seus herdeiros: le mort saisit le vif. Com efeito, no século XIII a saisine
era referida num Aviso do Parlement de Paris como instituição vigente os établissements de St. Louis lhe
apontam a origem nos Costumes de Orleans. Não foi, porém, uma peculiaridade do antigo direito francês. Sua
origem germânica é proclamada, ou ao menos admitida, pois que fórmula idêntica era ali enunciada com a
mesma finalidade: Der Tote erbt den Lebenden. [...] sistema atual. Com a promulgação do Código Civil de
1916, ficou assentada a doutrina da transmissão imediata da posse e propriedade: "Aberta a sucessão, o
domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários" (Código
Civil, art. 1.572). O mesmo princípio predominou no Projeto do Código Civil de 1965 e no Projeto de 1975,
e se viu conservado no novo Código Civil, conquanto neste eliminada a referência a "domínio e posse" (art.
1.784). É o conceito de droit de saisine que ainda vigora na sua essência, e do qual podem ser extraídos os
necessários efeitos: [...] 2. Não é o fato de ser conhecido, ou de estar próximo que atribui ao herdeiro a posse
e a propriedade dos bens. É a sucessão. Não há mister um ato do herdeiro. Não precisa requerer ao juiz o imita
na posse. Esta lhe advém do fato mesmo do óbito e é reconhecida aos herdeiros que por direito devem suceder,
tal como em o direito anterior se proclamava, adquirindo eles a posse civil com todos os efeitos da natural, e
sem que seja necessário que esta se tome (Alvará de 1954 citado). 3. O herdeiro que tem a legitimatio ad
causam para intentar ou continuar as ações contra quem quer traga moléstia à posse, ou pretenda impedir que
os herdeiros nela se invistam. Esta legitimação envolve a faculdade de defender a herança contra as investidas
de terceiros, não valendo ao esbulhador ou qualquer possuidor ilegítimo a alegação de que o herdeiro somente
cabe uma fração do monte e não a totalidade do acervo. Quer dizer: ao herdeiro, embora somente tenha direito
41
ENTRE ASPAS
a uma fração da herança, é reconhecido o poder defensivo de todo o acervo. No Código Civil de 2002,
semelhante legitimação deflui do parágrafo único do art. 1.791, segundo o qual o direito dos co-herdeiros,
durante a fase de indivisão, ‘regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio’". (PEREIRA, Caio Mário da
Silva Instituições de direito civil: Direito das sucessões. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. VI, pág. 19
a 22). Fonte: http://www.cc2002.com.br/imprimir.php?id=1279&ergo=print_noticia acessado em 14 de ju-
nho de 2012 (Grifei).
5. Fica aqui o meu registro de agradecimento pelas agradáveis discussões acerca da linguística alemã com os
diletos Cássio Frederico Pereira, mestrando pela USP, e Oliveiros Guanais de Aguiar Filho, Procurador da
República.
6. Correspondência datada de 24 de abril de 2012.
7. Também na doutrina germânica, a dita frase, verdadeiro princípio, é citada, ainda que o autor, talvez pela
sua redação confusa, cuide de tentar emprestar-lhe sentido: “Damit wurde mit der alten germanischen Regelung
gebrochen, nach der es keiner Annahme der Erbschaft bedurfte, da der Grundsatz galt: der Tote erbt den
Lebenden, was bedeutet, daß der Tote den Lebendigen im Sinne einer Übereignung zum Erben macht” (Steffen
Breßler: Gesetzliche Erbfolge, Testament und Pflichtteil im Freiburger Stadtrecht, fonte: http://fhi.rg.mpg.de/
seminar/0001bressler.htm, acessado em 14 de junho de 2012) (grifei).
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A REVISTA DA UNICORP
AUTORES SELECIONADOS
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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA COMO PROBLEMÁTICA DE PESQUISA
Introdução
Com a criação dos Tribunais Constitucionais após a Segunda Guerra Mundial o fenô-
meno da judicialização da política foi gradativamente ganhando espaço nas pesquisas cientí-
ficas, principalmente no campo da ciência política.
No Brasil a ciência política também foi responsável pelas primeiras análises e mais
recentemente a pesquisa jurídica tem se aproximado do tema. A proposta do presente artigo é
demonstrar este percurso teórico de aproximação da teoria jurídica da judicialização da política
e propor possibilidades de análise da problemática.
Nosso pressuposto é de que o fenômeno da judicialização da política implica em um
novo “paradigma”. Isto porque este novo paradigma questiona a separação dos poderes
clássica e inclui novos papéis para o exercício do Direito, o que, entretanto, problematiza a
questão e permite inúmeras possibilidades de pesquisa. A nossa proposta é justamente “orga-
nizar” estas possibilidades, e proporcionar uma visão geral do tema.
A abordagem é de caráter sociojurídico, pois a problemática de pesquisa está inserida
na realidade, no cotidiano, e a partir disto deverá ser analisada.
Para tanto, iniciaremos com uma diferenciação na análise – a da ciência política e a jurídica.
Em seguida problematizaremos o tema a partir de duas grandes questões: ativismo judicial e
efetivação dos direitos, tratando especificamente do papel do Poder Judiciário. Encerraremos o
presente artigo apresentando possíveis problemas de pesquisa e sua aproximação de uma variá-
vel externa – o processo de “cidadanização”, ou seja, de efetiva inclusão social.
O problema de pesquisa que conduzirá este artigo é: como a pesquisa jurídica pode
trabalhar com o paradigma da judicialização da política no atual arranjo democrático brasileiro?
O conceito de Direito Positivo por muito tempo o isolou de outros campos do saber.
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ENTRE ASPAS
Isto porque a questão residia na normatividade emanada do Estado, sem nenhum tipo de
questionamento valorativo sobre o seu conteúdo. Assim, após a Segunda Guerra Mundial e as
atrocidades cometidas com amparo legal, já que o Estado as “legitimava”, esta visão foi ques-
tionada. A pergunta passou a ser: só porque positivado pelo Estado, o Direito não pode ser
questionado?
Esta foi a grande problemática que conduziu a criação de Tribunais Constitucionais na
Europa no pós-guerra. A intenção era permitir que um órgão neutro, não político, analisasse o
Direito Positivo, à luz de valores constitucionais, de princípios. Assim surge uma nova arena
de discussão sobre questões políticas – os Tribunais Constitucionais.
A demanda nestes novos tribunais passou a ser conhecida como “judicialização da
política”. Judicialização significa que o Poder Judiciário passa a decidir sobre temas anterior-
mente restritos a esferas políticas, tipicamente deliberativas, Poder Executivo e Poder Legislativo.
Obviamente que é nesta questão que reside a maior crítica ao fenômeno – a crítica ao caráter
contra-majoritário das cortes constitucionais.
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A REVISTA DA UNICORP
Não apenas as causas mas os impactos da judicialização da política variam de país para
país. São inúmeras variáveis envolvidas – cultura jurídica do Poder Judiciário e da sociedade
(quanto aos motivos que conduzem à litigância e quem litiga), nível de conhecimento dos
direitos, estratégias envolvidas na litigância, processo histórico e político, etc...
No caso brasileiro, podemos trazer algumas considerações típicas do momento históri-
co, político e jurídico.
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ENTRE ASPAS
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efetivação de direitos sociais pode ser enquadrada como ativista. É neste sentido que propo-
mos problematizar a judicialização e o próprio ativismo no campo da pesquisa jurídica.
Outra explicação para a necessária diferenciação entre judicialização da política e ativismo
judicial é a efetivação dos direitos fundamentais. Após o primeiro momento de inércia do Poder
Judiciário diante do caráter programático de alguns direitos fundamentais, principalmente os
sociais, passou-se a defender a necessidade de intervenção, de concretização destes direitos.
A grande questão parece residir nos limites da atuação do Poder Judiciário quando no
contexto da judicialização da política. Em que medida o Poder Judiciário é ativista ou apenas
efetiva os direitos previstos na Constituição? Esta é a principal pergunta. Nossa proposta de
resposta perpassa uma terceira variável – a convergência para a cidadania e inclusão social.
Conforme a tabela abaixo, percebemos como principais categorias teóricas na análise
sociopolítica a juridicização das relações sociais, e na análise jurídica a teoria da separação dos
poderes. Contudo, ambas conduzirão a controvérsia entre ativismo judicial e efetivação dos
direitos, que por sua vez pode conduzir a uma outra problemática – a da inclusão social ou
“cidadanização”.
O processo de “cidadanização” decorre da necessidade de possibilitar a articulação entre
leis e práticas sociais, em face de um contexto de cultura excludente. A inclusão social passa a ser
um importante traço a acompanhar tanto a efetivação dos direitos sociais mediante políticas
públicas eficazes quanto ao concreto exercício da cidadania, no sentido de todos se verem como
“sujeitos de direitos”, independentemente das inúmeras variáveis frequentemente determinantes
para a exclusão no Brasil, como cor, raça, opção sexual, e distribuição de renda.
A proposta é ver a problemática inserida na ideia de “direito a ter direitos”. Isto porque
até a Constituição de 1988 o status de cidadão estava atrelado a determinadas características
como ter carteira assinada (trabalhador formal) no que Wanderley Guilherme dos Santos (1979)
chama de cidadania regulada. O novo modelo de proteção social brasileiro rompeu com esta
tradição “reguladora” se preocupando com a efetiva inclusão social. Esta nova percepção do
conceito de cidadania no âmbito da proteção social pode ser também observada nos direitos
sociais em geral, os “direitos sociais como direitos”, inclusive como passíveis de judicialização.
(COURTIS, 2009).
Assim, a inclusão social e o processo de “cidadanização” ampliam as possibilidades de
análise sociojurídica do fenômeno da judicialização da política, aproximando as pesquisas da
realidade, permitindo categorizações sobre o exercício dos diferentes atores envolvidos.
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Portanto, a reivindicação pode ser uma estratégia dos diferentes atores e neste
sentido contribuir para o adensamento da democracia via “cidadanização”. Se retomarmos
o comunitarismo político como filosofia da Constituição de 1988, a “fragmentação políti-
ca” é um dos grandes receios para a democracia. Por fragmentação política TAYLOR (2000)
explica que:
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ENTRE ASPAS
Conclusão
Referências ________________________________________________________________________
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ATIVISMO JUDICIAL: UMA QUESTÃO DE PODER
OU REFLEXO DE MUDANÇAS INSTITUCIONAIS?
1. Introdução
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ENTRE ASPAS
exemplo, o controle de constitucionalidade das leis, de modo que questões de cunho políti-
co foram aos poucos sendo transferidas para o Poder Judiciário, especialmente diante da
necessidade de garantir-se a supremacia da ordem constitucional e, por suposto, do proces-
so e do conteúdo democrático em que foi engendrada.
Com efeito, a história do Judiciário e das instituições políticas revelou a necessidade de
implementação do controle de constitucionalidade como medida de coibir formal e material-
mente a elaboração de leis que não estejam em consonância com a Constituição. Nessa tarefa,
o Judiciário atua contra a maioria que o elegeu, por meio de sufrágio universal e secreto, seus
representantes. Logo, diz-se que os juízes desempenham uma função contramajoritária, já que,
além de zelar pela observância do texto constitucional, é responsável por tutelar os interesses
das minorias. Assim, a dita função contramajoritária do Poder Judiciário visa a resguardar a
democracia em sua acepção material1 que, pelo viés garantista, abarca, necessariamente, a
tutela dos direitos fundamentais em benefício das minorias, sob pena de transformar o regime
democrático em uma temida tirania da maioria.
Naturalmente, essa gama de funções atribuídas ao Poder Judiciário – entendido, então,
como garante, em última instância, da democracia e dos direitos fundamentais – fez surgir
novos fenômenos no universo jurídico, como é o caso da judicialização da política, problemá-
tica que tem sido palco de fundadas discussões a respeito da legitimidade da interferência do
Judiciário em esferas essencialmente políticas.
As discussões, no entanto, devem-se não apenas a uma conjuntura de ordem teórica,
mas ao mundo dos fatos, já que, não raro, decisões judiciais têm deflagrado a interferência
do Poder Judiciário na esfera política, leia-se, no âmbito da Administração Pública, quando
está em jogo a efetivação dos direitos fundamentais. Operam-se verdadeiras determinações
ao Poder Executivo, principalmente no que se refere à implementação de políticas públicas
voltadas aos direitos sociais, tema que, inclusive, foi submetido ao crivo do Supremo Tribu-
nal Federal2.
Essa situação denota a tensão que se coloca entre a ingerência do Judiciário na
esfera política e, por outro lado, a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais.
Surgem, assim, os debates a respeito da (in)suficiência da clássica teoria montesquiana da
separação dos poderes para explicar esse fenômeno que passou a ser uma das questões
mais latente na agenda política. Nesse âmbito, analisa-se, principalmente, o controle de
atos administrativos e de políticas públicas pelo Poder Judiciário, numa tentativa de re-
pensar os atuais fundamentos, bem como a própria estrutura do princípio da separação
dos poderes.
Ainda que essa seja uma problemática relevante do ponto de vista da teoria do direito
e, mesmo da teoria política, o presente trabalho limita-se à análise de dois fatores relaciona-
dos ao ativismo judicial. O primeiro fator a ser analisado é o ativismo judicial enquanto
processo necessário à efetivação dos direitos fundamentais. Em contrapartida, o segundo
fator diz respeito ao ativismo judicial enquanto manifestação de poder e afirmação do Judi-
ciário como tábua de salvação para a solução de conflitos de ordem política e como pater de
uma sociedade órfã (Ingebord Maus). É justamente com base nessa problemática que o
presente trabalho será desenvolvido, buscando contrapor as reais necessidades de atuação
do Judiciário em relação às irrefutáveis matizes que permeiam o ativismo judicial.
Nesse contexto, verifica-se imprescindível estudar as duas principais vertentes
relacionadas ao assunto em tela, uma se condiciona a afastar a hipótese de intervenção
judicial na esfera política, com fundamento, sobretudo, na ordem democrática –
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A REVISTA DA UNICORP
57
ENTRE ASPAS
Legislativo e Executivo. Por outro lado, identifica o ativismo judicial como um fenômeno no
qual os juízes passam a se interessar por uma atuação política.
Dada essa distinção, a tendência é que a judicialização da política conduza ao ativismo
judicial, que se situa num âmbito mais restrito, em que o magistrado toma para si a função de
tomar decisões políticas. Ambos os fenômenos, em que pesem as diferenças são típicos do
Estado Contemporâneo, já que sua origem não é outra senão as cartas constitucionais do
pós-guerra, que objetivando compensar o tempo perdido incluíram em seus textos uma série
de direitos fundamentais e instrumentos para fazê-los valer na prática. No entanto, ainda que
estejam assegurados os direitos primários, bem como os secundários (instrumentais)7, há
uma inegável carência de efetividade dos direitos sociais, isto é, aqueles que exigem uma
prestação positiva do Estado.
A falta cometida pelo Estado em relação aos direitos sociais é atribuída ao Poder
Executivo, já que ele detém a competência para implementar políticas públicas voltadas à
concretização desses direitos, e a irresignação da sociedade em relação a esse conflito,
gerado frente ao organismo estatal migra para a esfera jurisdicional, ensejando a tomada
de decisões judiciais que assumem um conteúdo político e imperativo no sentido de deter-
minar que a medida necessária seja operacionalizada, de alguma maneira, pela Administra-
ção Pública.
Neste contexto é que surge a questão da tomada de decisões políticas pelo Poder
Judiciário e, com isso, a problemática inerente ao ativismo judicial, cuja legitimidade será
discutida por duas correntes doutrinárias: a corrente procedimentalista e a corrente
substancialista.
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A REVISTA DA UNICORP
que interfira em esfera alheia à jurisdicional. Ademais, não é de bom grado, segundo essa
corrente, que o Judiciário assuma caráter prestacional, pois não lhe compete atuar positiva-
mente no sentido de atender às carências da sociedade; o contrário, no pensar
procedimentalista, contribuiria para a transformação de cidadãos em indivíduos-clientes,
dependentes de um Estado providencial11, dado o descrédito da população com as institui-
ções políticas.
Na concepção procedimentalista, o Estado que pretende a tudo atender, ou melhor,
comprometido com a realização das necessidades sociais, ao inspirar confiança nos cida-
dãos, gera, por outro lado, cobranças da própria população que quer ver cumpridas as
promessas. Logo, um Estado providencial deve ter, além de comprometimento, estrutura
para assegurar o cumprimento das promessas e essa função compete às instituições polí-
ticas, representantes da vontade majoritária, consideradas o principal mecanismo de exer-
cício da democracia.
Com base nessa situação de descontentamento da população em relação às promes-
sas não cumpridas pelas instituições políticas, o Judiciário surge como órgão apto a
concretizá-las, tanto pelas competências constitucionais que lhe foram outorgadas, quanto
pela concepção contemporânea de Estado de Direito, que exige a realização dos direitos
fundamentais previstos na Constituição. Nesse contexto, o Judiciário não só cria novos
argumentos, mas aplica-os na prática como fundamento de decisões políticas.
Diante desses fatores, a corrente procedimentalista observa, nas sociedades atuais,
um movimento de migração do lugar simbólico da democracia para o da justiça, o que leva ao
enfraquecimento das instituições políticas e, via de consequência, ao fortalecimento do
Judiciário como instância de salvação das promessas não cumpridas pelos demais Poderes
(VIANNA [et al.], 1999, p. 25).
No mesmo sentido, observa Antoine Garapon: “O sucesso da Justiça é inversamente
proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, em razão do desinte-
resse existente sobre elas e a perda do espírito político” (GARAPON, 1996, p. 44).
Percebe-se que Garapon, ao mesmo tempo em que critica o “sucesso da justiça”,
afirma o problema da falta de interesse dos cidadãos pelo desenvolvimento e aprimoramento
da política, ou seja, a “perda do espírito político”. Este é o ponto de partida do posicionamento
procedimentalista, busca-se a conscientização da sociedade, a participação dos diversos
grupos econômicos e sociais no processo de formação da vontade majoritária; se isso ocor-
resse, na visão procedimental, as instituições políticas estariam legitimadas por uma demo-
cracia eficiente e cada função estatal – Executivo, Legislativo e Judiciário – exerceria seu
papel em harmonia com as demais.
Nesta corrente, portanto, a Justiça não pode ser vista como instância de salvação,
mas, sim, como um órgão que detém a competência de oferecer as melhores soluções para os
conflitos surgidos no seio da sociedade. Desta forma, a sociedade deve ser encarada como
um amálgama de diferentes ideologias, que se encontram no processo de formação da von-
tade da maioria e, quando bem estruturadas, levam à uma democracia consistente, em que
cada função estatal pode atuar com autonomia, sem ensejar um controle externo, senão
aquele que provém do próprio exercício da cidadania.
Destarte, no que interessa a esse trabalho, o procedimentalismo pode ser compreendi-
do como um paradigma contrário ao ativismo judicial. Nessa concepção, a prestação jurisdicional
com qualquer teor político configura fere o processo democrático, ao mesmo tempo em que
corrobora o definhamento das instituições políticas e a “perda do espírito político”.
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ENTRE ASPAS
Por outro lado, a corrente substancialista, defendida por Ronald Dworkin, Mauro
Cappelletti12 e, no Brasil, inserida por Lênio Luiz Streck13, tem sido aplicada principalmente nos
países de cultura ocidental. Oposto ao procedimentalismo, que propõe um paradigma de demo-
cracia formal, o substancialismo propõe uma concepção material da ordem democrática.
O substancialismo é fruto da positivação, na Constituição, de valores e princípios
ligados a um ideal de justiça e da visualização do Poder Judiciário como garante, em última
instância, da efetivação dessas normas que passaram a compor o ordenamento jurídico.
Além disso, o substancialismo deve ser compreendido como uma crítica construtiva
à democracia representativa (democracia formal), que, apesar de expressar a vontade da
maioria, acaba, muitas vezes, suprimindo o interesse das parcelas da sociedade que não
estão inseridas no processo democrático. Essa exclusão decorre, naturalmente, da democra-
cia representativa e é agravada pela hegemonia de certos grupos, principalmente grupos
econômicos, que buscam obter vantagens através das instituições políticas.
Assim, para Lênio STRECK, “os procedimentos democráticos constituem, por certo,
uma parte importante, mas só uma parte, de um regime democrático e têm de ser verdadeiramen-
te democráticos no seu espírito” (STRECK, 2007, p. 25).
Considerando essas falhas da democracia representativa, no que diz respeito às desi-
gualdades promovidas pela exclusão de certos grupos do processo de formação da vontade, o
substancialismo sugere uma postura ativista do Judiciário durante o processo de produção e
aplicação da norma jurídica.
Nesse contexto, a garantia de acesso à justiça revela um importante papel no que
tange às minorias, que se encontram excluídas do processo de formação da vontade majo-
ritária. O acesso à justiça aparece como um mecanismo de inserção dos grupos excluídos,
permitindo-lhes reivindicar seus direitos e, de alguma forma, participar da agenda política
e social.
Neste contexto, o substancialismo afirma uma nova postura do Judiciário em relação às
demais funções estatais, deixando de lado a independência dos poderes para permitir o equilí-
brio e a harmonia.
Esse ponto é crucial para distinguir o procedimentalismo do substancialismo. Ao
passo que, no paradigma procedimental nenhum dos Poderes deve ser colocado em posição
distinta dos outros, no sentido de exercer controle sobre as demais atividades estatais; para
a corrente substancialista, o Judiciário, pode, quando provocado, intervir nas demais esfe-
ras do Poder Estatal para fazer valer os direitos fundamentais.14 Deste modo, a corrente
substancialista propõe o ativismo judicial, ponderado e não discricionário, porquanto trans-
cender os checks and balances significa controlar as demais funções estatais, principalmen-
te em casos de omissão quanto à implementação dos postulados fundamentais.
O procedimentalismo e o substancialismo, sem dúvida, são os eixos centrais da dis-
cussão travada em torno do ativismo judicial. Com razão a corrente substancialista quando
postula uma solução concreta para os casos de inefetividade dos direitos sociais. Ora, a
garantia dos direitos sociais está na base do regime democrático e, portanto, é uma questão
afeta ao Estado como um todo, ou seja, há uma espécie de responsabilidade solidária das
instituições estatais no sentido de assegurar, sobretudo, a supremacia e a concretização da
Constituição.
Ocorre que o eixo substancialista, ao defender o ativismo judicial, parece querer reme-
diar uma situação cujo diagnóstico é bem mais complexo e merece ser tratado desde a sua
origem. Nesse norte, o procedimentalismo entra em cena para colocar em debate a ordem
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A REVISTA DA UNICORP
democrática e a autonomia dos cidadãos, identificando-os não como destinatários, mas como
próprios autores de seus direitos (CITTADINO, 1999, p. 209). Logo a corrente procedimentalista
pressupõe vetores de comunicação estabelecidos no seio da sociedade e, a partir da autono-
mia gerada pela interação, atribui aos próprios sujeitos de direitos a responsabilidade pelas
suas decisões.
Portanto, tem-se, de um lado, uma perspectiva imediatista e, de outro, uma que propõe
uma remodelação do sistema político, pois a comunicação como vetor da democracia, ao me-
nos no Brasil, somente será eficiente após um processo de realocação das decisões políticas
implementado na e pela própria sociedade. Todavia, será que a efetividade dos direitos funda-
mentais e, sobretudo, da Constituição, pode esperar (mais um pouco...)? Além disso, em que
implica considerar que são os magistrados os atores mais adequados para fazê-lo?
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ENTRE ASPAS
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A REVISTA DA UNICORP
A racionalidade jurídica em que são formados os paterjudex é inapta a lidar com toda
complexidade humana, pois, “ignora suas faltas políticas e existenciais, oferecendo-nos o
espetáculo de uma luta sem ardores e muitas culpas. Como mortos que falam da vida, o saber
tradicional do Direito mostra suas fantasias perfeitas na cumplicidade cega de uma lingua-
gem sem ousadia, enganosamente cristalina, que escamoteia a presença subterrânea de uma
‘tecnologia da alienação”(WARAT,2004, p.374).
Ora, o jurista requerido pela sociedade órfã, dificilmente, será encontrado, porque
foram ensinados a dialogar a partir de uma pedagogia da indiferença que “conduz a um
gregarismo alienado que desestimula quase absolutamente o florescimento autônomo do
desejo” isso porque “é conhecido o modo de operar da concepção juridicista (das crenças
que sustentam a ideologia do ‘Estado de Direito’) dissolvendo todas as dimensões do poder
do Estado na lei, mostrando as práticas do Direito como um dique de contenção do arbítrio,
proclamando a lei como um instrumento da razão que preserva tanto a liberdade como a
igualdade. Constroem-se, assim, saberes externos à sociedade que negam todas as suas
insuficiências e perdas, mostrando-as realizadas pelas palavras. O discurso jurídico29 inverte
os despojos e as exclusões sociais , apresentando-os como direitos do homem.” (WARAT,
2004, p.376).
Com isso, ratifica-se a perda do lugar da política como locus privilegiado do homem
enquanto “animal simbólico” e deposita-se no Poder Judiciário a esperança das decisões
relacionadas à cidadania, imunizando-se, pois, a atuação política por outras vias. Com efeito,
alerta novamente Warat, “Somos fascinados por esse discurso brilhante que nos deixa moles
como um gato adormecido e sem condições de reagir contra forma de sociedades cada vez
mais despolitizadas e desumanizadas” (WARAT, 2004, p.374).
Outrossim, complementa o mestre argentino: “Uma sociedade para ser democrática
precisa, em primeiro lugar, que seja garantido o espaço de emergência de conflitos. O espaço
onde se organizam as reivindicações políticas, econômicas e sociais. Aqui é preciso enten-
der que existe uma grande diferença entre garantias para a organização de um espaço de
reivindicações e as garantias que o Direito tradicionalmente apresenta para a solução jurídi-
co-instituída dos conflitos. A tendência dominante no segundo caso é a dissolução do
poder organizativo, das formas de solidariedade, resistência e luta (contra as estruturas e as
instituições, as formas de dominação instituídas: a microfísica da dominação), deslocando o
conflito” (WARAT, 2004, p.339).
Todavia, outra questão se coloca como pano de fundo a partir da crítica waratiana. É
o fato de enxergar o outro como condição de possibilidade para uma ética da alteridade, de
modo que as decisões do Judiciário se colocariam como necessárias a elevação do outro (os
jurisdicionados carentes de direitos sociais) a sujeitos de direitos não apenas no papel, mas
na prática social.
Com efeito, aqui se discute além da legitimidade do Direito30 na realização desta
atividade provedora uma mudança institucional relacionada não só ao lócus da política
enquanto espaço de decisão inerente ao poder, mas àqueles que a implementam. Se a cultura
política brasileira (quiçá latina) relaciona-se previamente com o paternalismo31, diante da
alteração dos atores (e do local do fazer política) da transformação social, não foi outra figura
senão a de um pai a esperada pelos cidadãos-órfãos.
63
ENTRE ASPAS
Nesse sentido, nem tudo está perdido. Como os magistrados estão sendo chamados
para dar respostas a questões políticas, o ativismo judicial pode ser relevante, desde que a
alfabetização no Direito se faça permitindo a reimplantação de um espaço de autonomia da
sociedade, especialmente porque, como nos diz Warat, “estamos necessitando retroagir as
práticas de ensino jurídico a uma instância inaugural da política, que permita a reimplantação
de um espaço de autonomia da sociedade. [Isso porque,] a representação linguística da reali-
dade é uma forma inicial de política [ de modo que] as práticas do ensino do Direito não podem
deixar de intervir nessa inscrição inicial da política da linguagem, se quiserem contribuir para
que o homem possa preservar o devir de seus sonhos”(WARAT,2004,p. 375).
No contexto da judicialização da política, em que cidadãos-órfãos constituintes de
uma sociedade órfã projetam suas expectativas na alteridade do Estado-juiz, cuja racionalidade
é engendrada pela linguagem (jurídica)32, ganha relevo a compreensão de Warat acerca da
formação no Direito deste outro que, embora confundido com a figura paterna, poderia promo-
ver uma humanização do direito e uma cidadanização do Judiciário.
Nesse sentido, importa compreender que por pertencerem à mesma sociedade órfã – o
que nos afasta da relação com agentes impessoais determinados pelo domínio tecnocrático da
burocracia estatal (MAUS, 2000, p. 185) e por estarem em franco contato com a angústia de ter
que resolver um problema relacionado a um direito social não cumprido pelo Estado, estes
magistrados devem ser compreendidos como sujeitos “que permitam aos excluídos construir o
espaço político de sua identidade, de suas emoções e de seus afetos. E, por outro lado, que
ajude a um judiciário perdido em sua identidade institucional a reencontrar-se, tornando suas
práticas cidadãs, buscando um novo perfil institucional e pessoal, baseado na figura de um
‘juiz cidadão’. Em outras palavras, a humanização do Judiciário passando pela descoberta de
uma nova identidade para a magistratura: a identidade do magistrado como cidadão, como
homem sensível e comum, não mais como um semi-Deus”33.
Nesse caminhar, WARAT ensina que “os diferentes sujeitos do ofício jurídico (...)
podem ajudar o despertar da hipnose, impedir que desabemos nesse imenso buraco negro do
imaginário pós-alienado. Penso nas possibilidades de mutação, nas viradas de situações ines-
peradas e nas condições de insuspeitas de conservação do espaço político. Ora, certamente as
possibilidades de contar com ‘sujeitos mutantes’ do ofício jurídico dependem de uma substan-
cial alteração das condições do ensino jurídico. A política, colocada na origem, tem um valor de
método, dela parte o caminho inicial como fulgor instituinte, como oportunidade para que o
homem possa reencontrar seus vínculos perdidos com a vida” (WARAT, 2004, p. 375).
Além disso, aduz o mestre que “não se pode implementar a democracia com um Direito
que juridifique a Política. A situação oposta é que permite a realização da sociedade democrá-
tica. A democracia se implementa através de uma prática política que possibilita ao Direito que
outorgue aos centros produtores de significações jurídicas a capacidade de criação permanen-
te de novos hábitos e rotinas.” (WARAT, 2004, p.295).
Compreende-se, pois, que o espaço privilegiado para o projeto waratiano de emancipação
do outro pela cidadania, vincula-se necessariamente com a mediação preventiva. Trata-se da pre-
servação do Estado de Direito por meio da “politização do Direito [que deve] passa[r] por uma
profanização dos conflitos convertidos em litígios, que por sua vez permita aos autores de um
conflito escutarem-se a si mesmos. Quem pode escutar a si mesmo começa a sentir-se cidadão
(nesse ponto se radica a dimensão política do afeto)”, além disso a proposta de hominização do
Judiciário pressupõe “convidar os integrantes da magistratura a pensar-se, a produzir pensamen-
tos arraigados sobre si mesmos, entender o Direito fora das margens que hoje resulta entendido”34.
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A REVISTA DA UNICORP
6. Considerações finais
Referências ________________________________________________________________________
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ENTRE ASPAS
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A atualidade dos direitos sociais e a sua realização estatal em um contexto
complexo e em transformação. IN: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: anuário do programa de
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STRECK, Lenio Luis. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: Unisinos, 2010
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993.
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LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações Coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.
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WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. III O direito não estudado pela teoria moderna
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66
A REVISTA DA UNICORP
______. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou; coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri
Júnior, Aires José Rover, Claudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
______. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstru-
ção da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Claudia Servilha
Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004
______. Educação, direitos humanos, cidadania e exclusão social: fundamentos preliminares para uma tentativa
de refundação. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/educar/textos/warat_edh_educacao_direitos_humanos.pdf>.
Acesso em: 01 setembro de 2011.
Notas ______________________________________________________________________________
1. Em Kelsen, a democracia era concebida essencialmente em sua dimensão formal, sendo, pois, democrá-
tica toda a decisão tomada pelos representantes eleitos pelo povo, tendo por base os direitos de liberdade
e igualdade política. Mais tarde, também no âmbito da Teoria do Direito, Luigi Ferrajoli traz à tona a
dimensão substancial de democracia, cujo elemento central reside na limitação da vontade da maioria, em
virtude de um núcleo de direitos fundamentais considerados fundantes do Estado e que não podem sofrer
qualquer tipo de alteração ou subtração ainda que por deliberação da maioria. Ferrajoli concebe o Estado de
Direito como um sistema de limites substanciais em relação ao poder, seja ele manifestado em um regime
autocrático ou, mesmo, democrático.
2. A respeito da educação, ver o voto proferido na ADPF n. 45.
3. Os estudos realizados na década de 90 por Marcus Faro de Castro em Política e Economia no Judiciário;
por Aritosto Teixeira, A judicialização da política no Brasil (1990-1996); e em 1999 por Luiz Werneck
Vianna, Marcelo Baumann Burgos, Maria Alice Resende de Carvalho e Manuel Palácios Cunha Melo, além
de outros pesquisadores da UERJ, são memoráveis para compreender o tema. Este último analisou das 1935
ADI ajuizadas até o ano de 1998. Em alusão à pesquisa realizada por Ariosto Teixeira em 1990-1996,
observam os autores a respeito da atuação do STF: “(...) o presente estudo compartilha a percepção de que
o STF tem sido muito cuidadoso ao administrar as suas relações com os demais Poderes, evitando o
comportamento que a bibliografia qualifica como ativismo judicial. No entanto, é de se frisar que, na
investigação ora apresentada, indica-se a tendência, dada a pressão das ações interpostas por intérpretes da
sociedade civil, a uma adesão maior daquela Corte ao novo papel de guardiã dos direitos fundamentais que
lhe foi destinado pelo legislador constituinte”. (VIANNA, 1999, p. 48). Ocorre que já se passaram quase 12
anos e a “política” do STF alterou-se substancialmente. A Corte tem constantemente inovado ao interferir
com veemência na esfera administrativa e, inclusive, legislativa, dando ensejo a outros fenômenos, como
é o caso da mutação constitucional. (Sobre mutação constitucional, consultar: STRECK, Lenio Luiz (et.
al). A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e
limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Jus Navigandi, ano 11, n. 1498, 8 ago. 2007. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10253>. Acesso em: 15 de setembro de 2011).
4. O Grupo do Ativismo Judicial é integrado pelo professor Alexandre Garrido da Silva, Universidade
Federal de Uberlândia, Anna Federici Araujo, Bacharel em Direito pela PUC-Rio, Bernardo Medeiros,
Mestre em Direito pela PUC-Rio, Daniella Peçanha, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Eduardo Pereira
Vals, graduando em Direito do Ibmec-RJ, Fernando Gama, Universidade Federal Fluminense, Havine [...],
Bacharel em Direito pelo Ibmec-Rio, Jorge Chalub, Mestre em Direito pela PUC-Rio, José Ribas Vieira,
67
ENTRE ASPAS
Ibmec, PUC-Rio, Julliano Castro, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Karine Souza, graduanda de Direito
do Ibmec-RJ.
5. O artigo intitulado “Os fundamentos teóricos e práticos do garantismo no STF” encontra-se disponível
em: http://www.anpr.org.br/portal/components/com_anpronline/media/Artigo_Ribasgarantismo.pdf . Ob-
serva-se que o texto não está paginado, por isso, a citação não se deu pelo método autor-data utilizado
neste trabalho.
6. TATE, C., VALLINDER, T. The Global Expansion of Judicial Power. Apud GRUPO DO ATIVISMO
JUDICIAL. Os fundamentos teóricos e práticos do garantismo no STF. Disponível em: http://
www.anpr.org.br/portal/components/com_anpronline/media/Artigo_Ribasgarantismo.pdf. Acesso em
16.9.2011.
7. Uma das classificações modernas de direitos fundamentais é fornecida por Luigi Ferrajoli, que irá
distinguir os direitos fundamentais em primários e secundários. Os primários seriam os direitos em si, tanto
as prestações positivas como as abstenções impostas ao Estado. Os secundários possuem natureza instru-
mental, ou seja, são os mecanismos previstos constitucionalmente para fazer valer os direitos fundamentais
primários, no Brasil, os remédios constitucionais: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança,
mandado de injunção e ação popular.
8. Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a factilidade e a validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997.
9. Cf. GARAPON, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris: Odile Jacob, 1996.
10. Neste sentido, elucidam Luiz Werneck VIANNA et. al.: “Desse eixo viria a compreensão de que a invasão
da política pelo direito, mesmo que reclamada em nome da igualdade, levaria à perda da liberdade, ‘ao gozo
passivo de direitos’, ‘à privatização da cidadania’, ao paternalismo estatal, na caracterização de Habermas, e,
na de Garapon, ‘à clericalização da burocracia’, ‘a uma justiça de salvação’, com a redução dos cidadãos ao
estatuto de indivíduos-clientes de um Estado providencial”. (VIANNA [et al.], 1999, pp. 23-24).
11. Estado providencial é aquele que assume o dever de prestar auxílio à população no âmbito social,
econômico e cultural a fim de reduzir as desigualdades sociais – típica idéia do Estado Social, surgido no segundo
pós-guerra, como já mencionado no primeiro capítulo deste trabalho. Como anota Garapon: “[...] em um
sistema providencial, o Estado é todo-poderoso, podendo a tudo satisfazer, remediar, atender” (GARAPON,
1996, p. 44).
12. Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993.
13. “Alinho-me, pois, aos defensores das teorias materiais-substanciais da Constituição, porque trabalham
com a perspectiva de que a implementação dos direitos fundamentais-sociais (substantivados no texto
democrático da Constituição) afigura-se como condição de possibilidade da validade da própria Constitui-
ção, naquilo que ela representa de elo conteudístico que une política e direito.”(STRECK, 2007, p. 25).
14. Nesse sentido, aduz Lênio Luiz STRECK: “(...) entendo que, o órgão encarregado de realizar a jurisdição
constitucional deve ter uma nova inserção no âmbito das relações dos poderes do Estado, levando-o a
transcender as funções de checks and balances, mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva de que
os direitos fundamentais-sociais, estabelecidos em regras e princípios exsurgentes do processo democrático
que foi a Assembléia Constituinte de 1986-88, têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos
por maiorias parlamentares (que, a toda evidência, também devem obediência à Constituição).” (STRECK,
2007, p. 31).
15. Conforme lecionam Gilberto Berconcivi e Luís Fernando Massonetto: “A partir das últimas décadas do
século XX, o padrão de financiamento público da economia do segundo pós-guerra passou a ser contestado,
dando início à reação neoliberal e ao desmonte institucional do Sistema de Bretton Woods. Desde então, o
paradigma constitucional que sustentara o Estado Social passou a ser frontalmente atacado, trazendo à tona
questões que já pareciam superadas – a cisão entre a economia e finanças públicas, a abstenção do Estado no
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A REVISTA DA UNICORP
domínio econômico e a pretensa neutralidade financeira propugnada pelos liberais. Como consequência, a
integração estruturante do paradigma dirigente foi substituída por um novo fenômeno, apto a organizar o
processo sistêmico de acumulação na fase atual do capitalismo. O que se viu foi o recrudescimento dos
aspectos instrumentais da constituição financeira e o acaso da constituição econômica, invertendo o
corolário programático do constitucionalismo dirigente” (BERCOVICI, 2007, p. 123).
16. Conforme aduz Marcelo Neves, a constituição simbólica “é um mecanismo com amplos efeitos políti-
cos-ideológicos (...), decarrega o sistema político de pressões sociais concretas, constitui respaldo eleitoral
para os respectivos políticos-legisladores, ou serve à exposição simbólica das instituições estatais como
merecedoras da confiança pública. O efeito básico da legislação simbólica como forma de compromisso
dilatório é o de adiar conflitos políticos sem resolver realmente os problemas sociais subjacentes. A
‘conciliação’ implica a manutenção do status quo e, perante o público-espectador, uma ‘representação/
encenação’ coerente dos grupos políticos divergentes (...) implica, nessas condições, uma representação
ilusória à realidade constitucional, servindo antes para imunizar o sistema político contra outras alternati-
vas. Através dele, não apenas podem permanecer inalterados os problemas e relações que seriam normatizados
com base nos respectivas disposições constitucionais, mas também ser obstruído o caminho das mudanças
sociais em direção ao proclamado Estado Constitucional (...) Daí decorre uma deturpação pragmática da
linguagem constitucional, que, se, por um lado, diminui a tensão social e obstrui os caminhos para a
transformação da sociedade, imunizando o sistema contra outras alternativas, pode, por outro lado, condu-
zir, nos casos extremos, à desconfiança pública no sistema político e nos agentes estatais. Nesse sentido, a
própria função ideológica da constitucionalização simbólica tem seus limites, podendo inverter-se, contra-
ditoriamente, a situação, no sentido de uma tomada de consciência da discrepância entre ação política e
discurso constitucionalista” (NEVES, 2007, pp. 54 e 99).
17. Cf. HABERMAS, Jürgen. A Nova Intransparência: A crise do Estado de Bem-Estar Social e o Esgotamento
das Energias Utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, Setembro de 1987, pp. 103-114.
18. A desarticulação das ordens financeiras e econômicas nas constituições cuja causa se relaciona com a
hegemonia das tendências neoliberais reflete o fenômeno da constituição dirigente invertida. Na compre-
ensão de Berconcivi e Masonetto, este fenômeno impôs que “o direito financeiro, antes voltado à organi-
zação do financiamento público da economia capitalista e à promoção de políticas de bem-estar social, teve
seu conteúdo profundamente modificado. Mais especificamente, o direito financeiro, antes voltado à
ordenação da expansão material do sistema mundial a partir do paradigma keynesiano, deu lugar a um
complexo normativo voltado à organização da expansão financeira do processo sistêmico de acumulação
(...) [de modo que] diferentemente do que ocorrera na ordem do segundo pós-guerra, a camada capitalista do
mundo dos negócios, localizada no entrelaçamento das redes de poder e capital do sistema mundial, passou
a comandar a expansão do capital (...), impondo uma adaptação dos ordenamentos jurídicos nacionais, a
partir das expectativas dos detentores da riqueza mundial” (BERCOVICI, 2007, pp. 135-136).
19. Como afirma José Luis Bolzan de Morais: “A institucionalização dos direitos sociais próprios ao Estado
do Bem-Estar Social, oriunda de meados do século XIX e agigantada durante o século XX (...) significou a
incorporação pelo Direito de conteúdos novos e, com isto, regras constituídas para expressá-las incorpo-
rando pretensões diversas daquelas tradicionalmente identificadas com a ordem jurídica liberal-individualis-
ta, sob formato inédito e com estratégias e metodologias para realização diferenciadas. Neste período,
passou-se dos tradicionais interesses individuais – sem abandoná-los, por óbvio – individuais homogêneos,
coletivos, difusos e outras formas distintas que com estes dialogam, e.g., o interesse público – assumidas ao
longo dos anos” (MORAIS, 2010, pp.101-102).
20. O Estado Constitucional reflete a fase contemporânea do Estado de Direito. É fruto da superação do
Estado Legislativo (ou Liberal) e, por conseguinte, do Estado Social. Quanto à função da sociedade a ser
desempenhada neste Estado, Peter Häberle, compreende acertadamente que o Estado Constitucional foi
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ENTRE ASPAS
idealizado a partir de uma “sociedade aberta”, em que o sistema jurídico e seus postulados reclamam do
intérprete da Constituição uma atitude que substitua o monopólio metódico pelo pluralismo metódico.
Sobre o assunto, Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição: contribuição para a concepção pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997.
21. Sobre o assunto: “Este ultimo momento se agiganta com a crise das estruturas político-jurídicas da
modernidade, ganhando cada vez maior espaço e centralidade a ação jurisdicional como ambiente propício
para o tratamento das suas promessas incumpridas, sobretudo em países em defasagem no tratamento da
questão social e onde uma percepção liberal-individualista-egoísta dos direitos sociais ainda parece predomi-
nar, muitas vezes em ‘perfeita’ harmonia com estratégias políticas de ‘clientelização fidelizada’ da cidadania,
oriundos de uma tradição patrimonialista e autoritária, onde a ‘concessão’ de direitos vai de encontro a um
projeto de construção de cidadania muito em voga na história política latino-americana, na qual um ‘falso’
Estado Social – na prática um Estado Assistencial – foram ‘doados’ pelos ‘donos’ do poder político-econômi-
co a indivíduos ‘bestializados’, acostumados a ‘assistirem’ transições conservadoras’. A história político-
institucional brasileira parece ilustrar bem esta assertiva. Da independência à república, da velha à nova
república, do Estado Novo à ditadura militar de 1964 e desta à transição ‘negociada’ à (re)democratização
presenciou-se uma sucessão de ‘mudanças para ficar tudo como está(ava)’, onde o cidadão foi sempre coadju-
vante” (MORAIS, 2010, p.103).
22. Contextualizando o surgimento deste fenômeno, afirma Ingeborg MAUS que “Na família, assim como
na sociedade, a figura do pai perde importância na definição do ego. A construção de uma consciência
individual passa a ser determinada muito mais pelas diretrizes sociais do que pela indeterminação da figura
dominante do pai, e a sociedade se vê cada vez menos integrada por meio de um âmbito pessoal, no qual se
pudesse aplicar a seus atores o modelo clássico de superego. Ambas as tendências levaram a relações em que
tanto o poder perde em visibilidade e acessibilidade como a sociabilidade individual perde a capacidade de
submeter as normas sociais à crítica autônoma.” (MAUS, 2000, p.184)
23. Nas palavras de José Murilo de Carvalho: “De modo geral, indica um tipo de relação entre atores políticos
que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de
apoio político, sobretudo na forma de voto.” Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52581997000200003&script=sci_arttext>. Aces-
so em 29 de maio de 2011.
24. A compreensão de microjustiça vincula-se tão somente à resolução dos problemas que chegam à
jurisdição – já que pautado na inércia – e está relacionada à angustia que (podem) sente(ir) o magistrado,
diante da carência do outro que postula individualmente requerendo uma prestação prevista na Constitui-
ção, o que (pode) significa(r) uma predisposição favorável para atender às súplicas por direitos sociais. São
exemplares às decisões relacionadas à saúde. Em contraposição, à microjustiça, compreende-se por
macrojustiça aquela relacionada aos aspectos de justiça distributiva, enquanto distribuição de riquezas que
visam atender às necessidades públicas de forma coletiva por meio de políticas públicas através dos demais
poderes/funções de Estado cuja competência fora atribuída pela CF 88.
25. A idéia de cidadania-órfã decorre da interpretação, no contexto brasileiro, do que a politóloga alemã
Ingeborg Maus caracterizou como fenômeno da sociedade órfã.
26. Cf. Norberto BOBBIO. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.06
27. O professor Márcio LEAL assina que “a ascensão de novos movimentos sociais a partir dos anos 60
produziu a positivação de um novo catálogo de direitos, alçados à categoria ao menos material de direitos
constitucionais. Com isso, saturou-se ainda mais a já enorme carga e as possibilidades de o Estado-providên-
cia lograr a implementação desses direitos, que exigem a criação de programas e políticas específicos” de
modo que, para além da esfera política, “os novos direitos difusos e transindividuais, em situações de
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A REVISTA DA UNICORP
conflito ou violação pelo Estado ou por entidades particulares, encontram na ação coletiva um instrumento
de concretização, permitindo sua judicialização e possibilitando a proteção do dirito sem a necessidade de
despesa pública extraordinária. Ou seja, o Judiciário concretiza políticas publicas em situações de conflito
concreto, e que está em jogo a manutenção de um mínimo de normatividade de tais políticas, expressas na
Constituição ou em Lei”. (LEAL, 1988, p. 115-116) (grifo nosso).
28. Vide nota 19.
29. Neste sentido, corrobora Marcelo Neves ao afirmar que “O problema ‘ideológico’ consiste no fato de
que se transmite um modelo cuja realização só seria possível sob condições sociais totalmente diversas.
Dessa maneira, perde-se transparência em relação ao fato de que a situação social correspondente ao
modelo constitucional simbólico só poderia tornar-se realidade mediante uma profunda transformação da
sociedade. Ou o figurino constitucional atua como ideal, que através dos ‘donos’ do poder e sem prejuízo
para os grupos privilegiados deverá ser realizado, desenvolvendo-se, então, a fórmula retórica da boa
intenção do legislador constituinte e dos governantes em geral.” (NEVES, 2007,p.98).
30. Streck afirma que “Qualquer problematização que se pretenda elaborar acerca da democracia e do agir
dos agentes sociais se dará neste espaço, onde ocorre o sentido do Direito e da democracia. O Estado
Democrático de Direito é, assim, um ‘desde-já-sempre’ condicionando nosso agir-no-mundo, porque faz
parte de nosso modo de ser-no-mundo. O Estado Democrático de Direito não é algo separado de nós. Como
ente disponível, é alcançado pré-ontologicamente. Ele se dá como um acontecer. Nesse sentido, é possível
dizer que o agir jurídico-político dos atores sociais encarregados institucionalmente de efetivar políticas
públicas (lato sensu) acontece nessa manifestação prévia, onde já existe um processo de compreensão. É
nesse contexto que se assenta a legitimidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, não
somente na especificidade própria dos tribunais ad hoc, mas na existencialidade dos pilares que fundamen-
tam essa mesma noção. Enquanto existencial, o Estado Democrático de Direito fundamenta, antecipada-
mente (círculo hermenêutico), a legitimidade de um órgão estatal que tem a função de resguardar os
fundamentos (direitos sociais-fundamentais e democracia) desse modelo de Estado de Direito. O caráter
existencial do Estado Democrático de Direito passa a ser, nessa espiral hermenêutica, a condição de
possibilidade do agir legítimo de uma instância encarregada até mesmo – no limite – para viabilizar políticas
públicas decorrentes de inconstitucionalidades por omissão e repetidamente, constituir-se tal instância – a
justiça constitucional – como remédio (por vezes amargo, mas necessário) contra as maiorias.”(STRECK,
2002, p.90-91).
31. Como aduz Guillermo O’DONNELL sobre o tema, “se espera que los votantes elijan, independientemente
de sus identidades y afiliaciones, al individuo más apropiado para hacerse responsable del destino del país.
En las DDs [Democracias Delegativas] las elecciones constituyen un acontecimiento muy emocional y en
donde hay mucho en juego: los candidatos compiten por la posibilidad de gobernar prácticamente sin
ninguna restricción salvo las que imponen las propias relaciones de poder no institucionalizadas. Después de
la elección, los votantes (quienes delegan) deben convertirse en una audiencia pasiva, pero que vistoree lo
que el presidente haga” (O’DONNELL, 2009, p.12). Cf. também as lições de Bobbio em Estado, Governo
e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 28-31; bem como, Futuro da Democracia. São Paulo: Paz
e Terra, 2009, p. 41-43.
32. “A Dogmática com seu discurso persuasivo e retórico consegue apresentar os problemas axiológicos como
problemas semânticos e assim cumprir a importante função de reformular o Direito Positivo sem provocar
uma inquietude suspeita de que esteja realizando esta tarefa” (WARAT, 2004, p. 25).
33. Cf. WARAT, Luis Alberto. Educação, direitos humanos, cidadania e exclusão social: Fundamentos
preliminares para uma tentativa de refundação. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/educar/textos/
Warat_edh_educacao_direitos_humanos.pdf>. Acesso em: 01 setembro de 2011. p. 17.
34. Cf. WARAT, Luis Alberto. Educação, direitos humanos, cidadania e exclusão social: Fundamentos
71
ENTRE ASPAS
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PRAZO PRESCRICIONAL DAS PRETENSÕES DE REPARAÇÃO CIVIL
EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA ANTE A SUPERVENIÊNCIA
DO PRAZO TRIENAL DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
1. Considerações introdutórias
73
ENTRE ASPAS
cia do regime jurídico público, que indubitavelmente impede a Fazenda Pública de reunir as
mesmas condições que um particular tem para defender seus interesses na Justiça.
Neste diapasão, a incidência do princípio da igualdade impõe um tratamento diferenci-
ado à Fazenda Pública, já que propugna por um tratamento “igual aos iguais e desigual aos
desiguais, na medida de suas desigualdades”.
Assim, não há que se falar em “privilégios” conferidos à Fazenda Pública, já que este
vocábulo denota benefício concedido em violação ao princípio da igualdade, o que, conforme
demonstrado, não é o caso. Tratam-se, em verdade, de prerrogativas conferidas à Fazenda
Pública para satisfazer o interesse público e o princípio da igualdade.
Conforme veremos a seguir, a par do regramento processual diferenciado, a prescrição,
instituto de direito material que corporifica a segurança jurídica nas relações humanas, também
recebeu tratamento legislativo diferenciado no que atine aos entes públicos.
Inicialmente, cumpre destacar que, contrariando aqueles que ainda afirmavam que a
prescrição consubstancia a perda ou extinção do direito de ação, o Código Civil de 2002 dispôs
em seu art. 189 que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela
prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206” (grifo nosso). A prescrição, portanto,
atinge a pretensão daquele que teve seu direito violado e não propriamente a ação.
Convém ressaltar, entretanto, que desde o momento em que o direito de ação alcançou
sua autonomia em relação ao direito material, sendo reconhecido como direito autônomo e
imprescritível garantido pela Constituição de provocar o Judiciário para obter a prestação
jurisdicional, não é tecnicamente correto afirmar que a prescrição atinge a ação, não tendo o
Código Civil de 2002, portanto, inaugurado esta percepção.
Pretensão, por seu turno, consoante ensina o professor Pablo Stolze em suas explana-
ções em sala de aula, “é o poder jurídico conferido ao credor, de coercitivamente, exigir o
cumprimento da prestação inadimplida”. Consubstancia, portanto, a exigibilidade de um
direito, de modo que a prescrição é o instituto que fulmina esta exigibilidade em razão do
decurso do tempo, muito embora remanesça incólume o direito material.
Sobre o tema, esclarecedora é a doutrina de Leonardo José Carneiro da Cunha (2010, p. 72):
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A REVISTA DA UNICORP
Sob a égide do Código Civil de 1916, os prazos de prescrição eram disciplinados nos
seguintes termos:
Em 1932, através do Decreto nº. 20.910, a matéria passou a ter disciplina legal específica
para a Fazenda Pública, restando, todavia, mantido o prazo prescricional de 5 anos previsto no
Código Civil, verbis:
75
ENTRE ASPAS
Entretanto, este posicionamento não mais vigora na Corte Especial, que, conforme
julgado a seguir colacionado, passou a entender que mesmo em ações indenizatórias a prescri-
ção contra a Fazenda Pública rege-se pelo Decreto nº 20.910/1932. Vejamos.
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A REVISTA DA UNICORP
Veja-se que o simples argumento de que norma especial prevalece sobre norma geral não
tem o condão de suplantar a teleologia perseguida pela legislação brasileira de favorecer os entes
públicos, mormente – repise-se – havendo previsão expressa na norma especial de que prazo
inferior deve prevalecer, como ocorre no caso em tela. Não podemos olvidar que a lei especial em
comento foi criada exatamente para beneficiar a Fazenda Pública e com a superveniência do
novo Código Civil estaria prejudicando-a, já que neste diploma o prazo é menor.
Um exemplo que demonstra como seria esdrúxulo admitir prazo maior para a Fazenda
Pública é o caso dos particulares que prestam serviço público. Com efeito, tendo em vista o
interesse da coletividade na prestação do serviço público, a legislação e a jurisprudência
conferem a esses particulares algumas proteções próprias dos entes públicos. É o que ocorre,
inclusive, no que tange ao prazo prescricional, conforme demonstra o art. 1º - C da Lei nº. 9.494,
de 10 de setembro de 1997. Vejamos.
Ou seja, durante a vigência do Código Civil de 1916, quando vigia o prazo vintenário
para os particulares, a Lei especial nº 9.494/1997, pretendendo atribuir tratamento diferenciado
de Fazenda Pública aos particulares prestadores de serviço público, em razão do indubitável
77
ENTRE ASPAS
interesse público nesses serviços, estabeleceu para estes particulares o prazo quinquenal.
O Código Civil de 2002, entretanto, trouxe um prejuízo àquele particular, que por prestar
um serviço público, atividade de interesse da sociedade, fica impedido de ser beneficiado com
o prazo trienal do Código Civil, que é aplicado a todos os demais particulares, mas não àqueles
que prestam serviço público. Registre-se, contudo, que este raciocínio se aplica apenas àque-
les que, ao argumento de que deve prevalecer a norma especial, não admitem a aplicação do
prazo trienal à Fazenda Pública, permitindo esta anomalia no nosso ordenamento jurídico.
Sobre o tema, a Procuradora do Município de Porto Alegre Dra. Cláudia Padaratz con-
clui nos seguintes termos:
Com efeito, admitir que o particular tenha prazo inferior ao da Fazenda Pública é abso-
lutamente incoerente e discrepante da lógica consagrada na legislação pátria, razão pela qual
perfilhamos o entendimento de que em relação às pretensões de reparação civil contra a Fazen-
da Pública aplica-se o prazo trienal do Código Civil.
4. Conclusão
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A REVISTA DA UNICORP
Referências ________________________________________________________________________
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Acesso em: 04 de maio de 2012.
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APONTAMENTOS PARA UMA ANÁLISE RETÓRICA
DA RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITADOR
DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
1. Introdução
A reserva do possível é uma criação jurisprudencial alemã, segundo nos informa Krell
(2002), tomada em face um pleito estudantil perante a Corte Constitucional, tendo em vista a
insuficiência de vagas em universidades do sul deste país, o que tolheria o direito social de
liberdade de acesso profissional.
Na ocasião, no julgamento popularmente conhecido naquele país como numerus clausus,
ter-se-ia decidido que o direito à prestação do Estado estaria sujeita à reserva do possível, ou
seja, ficariam elas sujeitas àquilo que a sociedade pode exigir de forma razoável, levando em
conta fatores econômicos e disponibilidade de verbas.
A partir desse locus argumentativo, a reserva do possível ingressou de vez no mundo
do direito, ainda que, dado o fenômeno ser recente, ainda serem pontuais os estudos a respeito
do tema, que estão longe de reunir, sob tal denominador, uma série homogênea de doutrina e
jurisprudência.
Por tal razão, buscaremos neste texto dar a nossa contribuição a respeito do tema,
percebendo-o por uma via que nos parece importante, e que não vem sendo explorada com a
devida percuciência pela doutrina nacional. Trata-se de encarar o assunto pelo viés retórico,
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buscando perceber em que medida a reserva do possível não se constitui num objeto de
conhecimento em si mesmo mas num fator de argumentação jurídica onde se encontram, de
maneira pragmática, direito, economia e ideologia, num frutuoso trabalho dialético cuja síntese
ainda não se obteve.
O trabalho se desenvolve, em princípio, com uma breve análise histórica que nos permi-
ta, em primeiro lugar, estabelecer a posição topológica dos direitos fundamentais na ciência
jurídica. Por outro lado, abordaremos alguns aspectos relevantes que constituem uma mudan-
ça paradigmática na transformação do Estado e, no seu interior, da repartição de funções, que
são importantes para que se compreenda a nova postura do juiz como auxiliar na efetividade
desses direitos.
Em seguida, apresentaremos uma discussão a respeito das conclusões a que chegaram
os trabalhos até hoje publicados sobre o tema da reserva do possível, bem como a jurisprudên-
cia sobre ele, demonstrando as suas inconsistências e fragilidades.
Ao final, explanaremos a respeito do pragmatismo jurídico e buscaremos apontar algu-
mas das vantagens de se discutir o tema sob o seu prisma conceitual.
Para que se possa entender com clareza o papel retórico da reserva do possível, en-
quanto lugar argumentativo acerca da eficácia dos direitos fundamentais, é importante que
tracemos um brevíssimo histórico do pensamento jurídico.
Faremos um corte epistemológico para situar a discussão, em seu estágio inicial, no
positivismo jurídico.
Como sabemos, com o alçamento da burguesia ao papel de protagonista social tratou-
se de estabelecer um núcleo de direitos fundamentais dos cidadãos que consistia na criação de
esfera de não interferência de sua liberdade e autonomia privada.
É então que nasce o Estado de Direito, que se vê limitado em sua ação por meio da
edição de leis, elaboradas pelos representantes do povo, que deliberam pelo voto da maioria.
Esse sistema passou para o mundo das ideias políticas como expressão cabal ou núcleo da
moderna teoria da democracia.
Um dos primeiros teóricos a respeito dessa nova forma de Estado foi Montesquieu, que
em seu conhecido Espírito das Leis, partindo de estudos empíricos a respeito do governo
inglês, buscou tomar-lhe como modelo ideal tendo em vista que, sob essa organização política
tripartida em Executivo, Legislativo e Judiciário, o poder limitar-se-ia a si mesmo, evitando-se
com isso o retorno do absolutismo.
O prestígio desses poderes, considerados reciprocamente, não era igual. Na teoria do
Barão De La Brède a primazia caberia ao Legislativo visto que ele estaria afinado com a vonta-
de popular, representativa da nova classe hegemônica.
A lei, supostamente clara e perfeita, reflexo da inspiração racionalista que dominava não
apenas as ciências sociais e políticas, mas também as ciências da natureza, era a peça chave do
pensamento juspositivista e, não curiosamente, o direito viu-se reduzido à análise dos seus
termos, afastando com isso, definitivamente, que o jurista pudesse se converter num crítico do
direito posto, cabendo-lhe um esvaziamento subjetivo total, de modo que se tornasse uma
“caixa de ressonância” para que pudesse cumprir devidamente o seu dever de “boca que
repete as palavras da lei”.
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Esses fatores acabaram por trazer resultados na esfera política. Se ela podia ser vista
como uma disputa por determinadas alternativas que, compondo uma agenda, elegia alternati-
vas que seriam permitidas e sancionadas pela legislação, hoje a política não pode ser mais
situada no restrito campo governamental. A sua importância está fragmentada entre o antigo
modelo estatal e os múltiplos atores transnacionais e organizações civis de todo tipo que
também exploram politicamente os seus propósitos e lutam entre si pela hegemonia.
É com base nesses ensinamentos que podemos afirmar que em tempos de pós-modernidade
não existe um centro organizador nem do sujeito e nem do direito. Se a ideia de ordenamento
jurídico é tributária do capitalismo liberal do século XIX, como sustenta Ferraz Júnior (1996), a
falência do modelo liberal implicou, a partir do início do século XX, na incorporação nas Cartas
Constitucionais de direitos sociais que impõem ao Estado um fazer e ao operador do direito a
adoção de uma postura hermenêutica progressista, de modo a não deixar que tais garantias,
como diz Lassalle, não passasse de escritos numa folha de papel.
Se na era positivista o estudo do direito se volta especialmente para as questões da
norma e da validade, no atual estágio do pensamento jurídico pós-moderno ou pós-positivista,
o mote está voltado para a discussão da legitimidade e, com ela, da eficácia dos direitos
fundamentais como elemento justificador mesmo da própria existência do direito.
Dentro do panorama moderno vigia a tese racionalista, que concebia o real como algo
estático e passivo, apto a ser dominado pelo intelecto. O conhecimento, assim, se respalda no
modelo cartesiano da correspondência, ou seja, conhecer algo significa enunciar conteúdos
linguísticos que expressem um “estado de coisas no mundo”. Existe aí uma confiança em que
as palavras possuem núcleos estáveis e que eles podem representar a essência das coisas. A
verdade, dentro desse paradigma epistemológico, pressupõe que uma asserção reflete o mun-
do tal qual ele é o que, no campo jurídico, indicaria demonstrar, sob a forma de uma linguagem
formal, aquilo que expressa o texto normativo.
Na pós-modernidade, no entanto, dá-se ênfase a uma concepção de linguagem que
demonstra que a ligação entre as palavras e as coisas é meramente convencional, como postula
Saussure (2004), ou seja, não existe qualquer possibilidade daquelas incorporarem a essência
das coisas. A linguagem, portanto, não pode fornecer parâmetros para um estatuto da verdade
como correspondência tendo em vista que esse conceito é meramente comunicativo, ou seja,
verdadeiro, por esse prisma, seria aquilo que os homens de uma dada coletividade, que comun-
gam de uma certa visão de mundo, estão aptos a admitir como certo. E é claro que para que se
possa chegar nesse consenso, argumentos referíveis à mera lógica não são adequados.
Essa linha de raciocínio se afina com o pensamento de Patterson (1996, p. 151), que
aponta, de maneira lapidar, a diferença entre uma teoria da verdade moderna e outra, pós-moder-
na, salientando que:
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Como sustenta Capra (1995), estamos passando por tempos de complexidade, onde o
saber é holístico, ou seja, não pode ser reduzido a apenas um campo do saber. A sociedade não
se fragmenta mais em poucas classes estáveis, e nem as aspirações individuais são reduzidas.
Os papéis sociais, como observa Bauman (2000) são cada vez mais pulverizados, o que nos
impele cada vez mais a acordos temporários de convivência coerentes com cada um deles.
O direito, hoje, no paradigma pós-moderno exige ser colocado de maneira pragmá-
tica, ou seja, como meio para um fim maior. Ele não se reduz em si mesmo, na norma ou na
lógica deôntica: ele busca transformar a realidade, e não tornar-se o seu espelho, ou o seu
dublê inerte.
É exatamente por conta disso que hoje muito da discussão sobre a dogmática e a
hermenêutica estão passando por um período de crise, já assinalado por Streck (2007 ), em
que o vetusto perfil juspositivo, ainda predominante em larga escala tendo em vista, especi-
almente, a resistência à mudança pelo ensino jurídico, vem perdendo espaço para uma con-
cepção mais progressista, que tem como característica principal o caráter técnico ou instru-
mental da ciência jurídica.
Passamos, portanto, de um momento do pensamento jurídico que via a lei como seu
objeto mais relevante, tendo em vista que se glutinaram, em derredor desse conceito, uma série
de conquistas históricas – igualdade, generalidade, limitação ao poder executivo, entre outras
– e chegamos hoje num novo estágio, em que a Constituição não é vista apenas como a lei
suprema, a fonte das fontes, mas como repositório axiológico do direito posto que se busca
como instrumento de transformação social.
Sob o impacto da pós-modernidade, o Estado não deve ser tomado como um objeto
acabado e autorreferenciado. Ele é, por um lado, um artifício, uma criação humana (vide Rousseau)
e, por outro, uma meta para a obtenção de imperativos de justiça e legitimidade. Por tal razão, “os
Estados devem ser justificados em função de como beneficiam o povo; idealmente, portanto, eles
se destinam a ser aventuras cooperativas para vantagem mútua” (MORRIS, 2005, p. 25).
O Estado não é uma entidade autônoma e nem um organismo com vida própria, desta-
cada, em absoluto, das necessidades de seus membros. Corriqueiramente, os livros de ciência
política costumam definir o Estado tendo em vista noções de soberania, organização política e
continuidade no espaço e tempo. No entanto, segundo o autor referido, hoje se exigiria, além
desses requisito, outro, o “compromisso de fidelidade”, consistente na lealdade recíproca que
deve haver entre as promessas estatais propaladas e o direito de seus cidadãos que exigem o
seu cumprimento. Por essa via, um Estado só se torna justificado se ele respeita a justiça, em
especial os direitos humanos fundamentais.
Outra obra que segue a mesma linha é a Teoria do Estado de Martin Kriele (2009) em que
a discussão sobre a sua legitimidade predomina desde o primeiro capítulo, onde se destaca a
necessidade do Direito não ser reduzido à forma ou à lei, mas como elemento articulado com a
moral e, sendo assim, comprometido com a substância, ou seja, em produzir considerações
racionais que se reflitam em determinadas condições materiais que revelem a instrumentalização
de uma pauta mínima de existência digna.1
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Por esse viés, o Estado não é; ele não é o final da experiência política humana, mas um
vir-a-ser mutável no decorrer da história, ideia essa que se afina com a lição de Streck (2007),
que separa a evolução da ideia de Estado em três fases distintas.
Em primeiro lugar, o Estado Liberal de Direito, nascido com a ascensão hegemônica
da burguesia capitalista ao poder, era pautado pelo absoluto individualismo e a doutrina
absenteísta, que busca provocar a menor intervenção possível no campo econômico. Com o
passar do tempo, e encontrando-se o sistema de produção capitalista em sua fase madura,
reconhecida a sua incapacidade de promover o bem comum, instaura-se, desde então, a
partir do pós-guerra, o Estado Social de Direito, que já admite a intervenção como mecanis-
mo de disciplina e extirpação dos excessos da liberdade contratual e econômica, além de
reconhecer princípios comuns e intrínsecos à dignidade humana. Por fim, diz ele, estamos
vivendo o modelo do Estado Democrático de Direito que “pretende precisamente a transfor-
mação em profundidade do modo de produção capitalista e sua substituição progressiva por
uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias
pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade onde se possam implantar níveis reais
de igualdade e liberdade” (STRECK, 2007, p. 38).
Essa fase do Estado Democrático implica, como constata García-Pelayo (2009), uma
tentativa de “refundação” desse termo, de modo a suprimir o hiato antes existente entre
Estado e Sociedade, de modo a reconhecer a importância dos partidos políticos, grupos de
interesse e iniciativas individuais como elementos importantes na formulação das leis e nos
acordos de governabilidade.
A transição do Estado de Direito ao Estado de Bem Estar Social fez com que houvesse
uma modificação na concepção de lei, de modo que a atividade legislativa tem sido cada vez
mais outorgada aos magistrados, por meio da inclusão nos textos de princípios e palavras de
significação polissêmica. De outra parte, a maior instância produtora de legislação passou a
ser o Executivo que, por meio de expedientes como, v.g. a Medida Provisória, no Brasil,
decretos de necessidade e urgência, na Argentina, decretos, no Peru etc., vem conseguindo
implementar a sua política com retardo menor do que o naturalmente imposto pelo longo
procedimento legislativo. Por fim, temos um Legislativo que hoje exerce as suas funções de
maneira menos livre, condicionado pela pauta do Executivo e pela forte influência dos gru-
pos de pressão na defesa de seus interesses (para um apanhado mais completo desse fenô-
meno, vide GOMES, M., 2005).
A partir daí, rompeu-se o “paradigma legalista” de modo a abranger a área de atuação do
Estado a searas que lhe eram antes interditadas, exigências essas que paulatinamente foram
sendo agregadas em Constituições ou em Tratados Internacionais de Direitos Fundamentais
cuja adesão foi se tornando mais abrangente.
Esse rompimento com o legalismo aconteceu, de acordo com Hespanha (apud TAVARES,
2003, p. 53) por três fatores especiais: “(i) desobediência generalizada à lei; (ii) não-aplicação
ou aplicação seletiva das leis pelos órgãos oficiais; (iii) ineficiência da aplicação coercitiva da
lei entre os particulares.”
A crise da legalidade deixou patente que não adiantava apenas criarem-se leis. Era
necessário que houvesse coragem e disposição para fazê-las cumprir, daí o avantajamento do
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Executivo. Por outro lado, também fazia-se necessário que, para enfrentar o gestor, fosse
ampliada a esfera de autoridade da magistratura para que pudesse não apenas adotar uma
postura de limitação do excesso estatal mas, também, pudesse conferir efetivadade às leis
nacionais e, em especial, concretizar as promessas constitucionais.
Cappelletti (1999), confirmando a nossa assertiva, salienta que concomitante com o
alargamento do espaço de atribuição do Executivo e com a explosão do garantismo social e o
crescente aumento da interferência privada por meio da legislação, também o Judiciário teve a
sua dimensão tornada mais complexa, em especial pela expansão da criatividade judicial na
interpretação da lei e, ainda, pela teoria da superioridade normativa da Constituição, que põe o
juiz em lugar de supremacia em relação às demais funções.
É essa perspectiva crítica que encontramos na obra de Cornejo (2002) que, ao estudar a
divisão de funções antes e hoje, destaca os eixos hermenêuticos e ideológicos que animam a
sua instrumentalização em cada período histórico, de modo a demonstrar que o fenômeno da
tripartição de funções estatais deve levar em conta, hoje, os pressupostos sociológicos, jurídi-
cos, políticos que a fazem ser o que é.
No plano sociológico, o Estado atual não consegue fazer uma separação rigorosa com
a sociedade civil de modo que segue sendo influenciado por uma multiplicidade de organismos
nacionais e internacionais que lutam por interesses diversos e muitas vezes conflitantes. Ele
não consegue, por isso, seguir perenemente uma linha liberal ou garantista, movimentando-se
em tantas searas quanto sejam a articulação de forças que o impelem.
Um maneira sociológica de tentar explicar essa complexidade está na crise pós-mo-
derna que gera a dissolução das identidades que são múltiplas e refratárias, obrigando os
sujeitos, a todo instante, a escolher e transitar de maneira plural por tais meandros, retirando-
lhe a serenidade.2
Nessa “crise de sentido” em que vive o homem moderno, o Judiciário surge como uma
espécie de último recurso ou trincheira, por meio do qual ele pode, ainda, depositar as esperan-
ças de dispor de um terreno que lhe inspire segurança.3
No plano jurídico, a crise da lei e da legislação faz com que a aplicação desta deixe de ser
matematicamente certa posto abranger em seu interior princípios e valores de grande amplitude
semântica. Isso faz com que os magistrados sejam forçados a adquirir uma postura criativa na
solução dos conflitos, que leve em conta os meandros do caso concreto. Isso, por outro lado,
faz com que a tarefa hermenêutica não seja uma atividade certa ou previsível o que indica que
o princípio da segurança jurídica, típico do Estado Liberal, esteja sendo mitigado por valores
de confiança no Judiciário na concretização das metas constitucionais ainda que, para tanto,
tenha-se de, pontualmente, tornar menos homogênea a prática jurídica para dar-se primazia à
melhor solução de acordo com o contexto, enriquecendo a atividade interpretativa por meio do
pensamento tópico.4
Por fim, no plano político, estamos diante da crise da teoria da representação uma vez
que, com o engrandecimento dos grupos intermediários entre Estado e indivíduo (fato esse
que não constava da pauta liberal originária), hoje não se pode negar que vivemos uma demo-
cracia “neocorporativa” onde os partidos políticos, os sindicatos, as organizações não-gover-
namentais chamam para si o protagonismo das lutas hegemônicas. Outro fator importante para
a derrocada do modelo liberal deu-se com a introdução de uma “democracia midiática” que
apela para a personalização do poder por meio do recurso à imagem e a técnicas publicitárias
para a “marketização” da política, que se transforma em mais uma commodity da sociedade de
consumo tão bem delineada por Baudrillard (1995).
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c) A politização do judiciário
O papel do juiz é político pois dele exige que crie o direito, outorgando-lhe a tarefa de
determinar a melhor solução para o caso concreto, que se baseia numa legislação onde, cada vez
mais, se multiplicam os termos semanticamente vagos.6 Pode-se falar que esse labor também é
político posto que o Judiciário, ao invés de lidar apenas com a apuração de casos passados tem
sido instado, por meio dos conflitos de massa e das ações coletivas, a tomar decisões que são
cada vez mais prospectivas, o que faz com que o limite entre o julgar e o legislar torne-se absolu-
tamente impreciso (e, para alguns, inexistente). De outra parte, ele é incitado a cumprir as pro-
messas do constitucionalismo social ou nova ordem constitucional (TUSHNET, 2003), de
modo a transformar a realidade em prol da implementação dos princípios constitucionais, o que
impõe mudanças na hermenêutica jurídica em relação à clássica tese da subsunção.
A fase do juiz “escravo da lei”, mero aplicador silogístico do direito chegou ao fim. Ele
também cria o direito (CAPELLETTI, 1999) e, para tanto, faz uso de certa dose de criatividade
e, ainda, de inteligência teleológica da norma de modo que busca a melhor solução para o caso
concreto. Por tal razão,
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ENTRE ASPAS
Quando falamos em direitos fundamentais, queremos nos referir, com Sarlet (2010), aos
direitos do ser humano positivados na Carta Constitucional de determinado Estado.
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Em nosso país o rol desses direitos previstos na Lei Fundamental é extenso, dado o
caráter analítico que permeou a sua elaboração, abrangendo os direitos da primeira, segunda
e terceira geração, na terminologia já clássica de Bonavides (1997). Aqui será dada atenção
especial àqueles da segunda geração que, segundo o autor, impõem um facere por parte da
Administração para o seu gozo pleno.
O primeiro problema que se apresenta a respeito desse tema é trazido pelo art. 5º, §1º
do Texto Constitucional, que ressalva que todos os direitos fundamentais têm aplicação
imediata, ou seja, dispensam qualquer tipo de diferimento legislativo. A esse respeito, a
doutrina pátria entende o termo eficácia como sendo “a realização do Direito, o desempenho
concreto de sua função social. Ele representa a materialização, no mundo dos fatos, dos
preceitos legais e simboliza a aproximação [...] entre o dever ser normativo e o ser da realida-
de social” (BARROSO, 2001, p. 83).
Como vimos anteriormente, a morosidade e a pulverização dos vetores hegemônicos no
Estado Pós-Moderno levou o legislativo, de poder supremo, sergundo a teoria de Montesquieu,
ao desprestígio. Hoje assistimos a uma crise do conceito de legalidade, especialmente no
campo do Direito Administrativo (vide BRANDÃO, CAVALCANTI e ADEODATO, 2011). A
vetusta regra que asseria que “ao Executivo só é possível fazer o que está previsto em lei” é
hoje, em grande parte, um mito ultrapassado. O campo de ação estatal está ele especialmente
voltado para o cumprimento de metas, para a adequação dos princípios constitucionais, para o
atingimento de valores positivados, o que faz com que a ação administrativa seja muito mais
dinâmica e, segundo Raquel Carvalho (1999) deixe de lado a legalidade em prol de um novo
princípio, que abrange não apenas a lei mas, ainda, os demais elementos antes referidos, por ela
denominado princípio da juridicidade.
Hoje o prestígio da lei é tão questionável que Binenbojm (2008) cunhou o termo
deslegalização para se referir à cada vez maior automia normativa do executivo e seus
decretos. Além do mais, a edição de leis, especialmente as voltadas para a execução de
políticas públicas e regulação por meio de agências cujos vocábulos, estão tão carregadas
de termos semanticamente vagos ou polissêmicos que, dada a sua “porosidade”, vem ser-
vindo para a edição de regulamentos executivos que se constituem em verdadeiras normas
primárias.
Como se vê, passamos hoje por um momento em que o fenômeno jurídico parece
tolerar ou flexibilizar a legalidade estrita em prol de um espaço de manobra, mais condizente
com uma Administração Pública de feições policêntricas.
Assim como a atuação do executivo tem se transformado ao longo do tempo, sendo-
lhe cada vez mais exigido que esta esteja voltada para o cumprimento das promessas
constitucionais, de modo que ela não se torne apenas folha de papel, também o judiciário é
co-autor desse trabalho, e não mais coadjuvante. A partir do momento que se cunha a teoria
da inconstitucionalidade por omissão e admite-se o controle dos atos legislativos e executi-
vos pelo judiciário, esse último toma força como garante da efetividade da Carta Política.
Isso fica claro quando o STF aponta que:
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Com base em tais lições, há autores que entendem que nenhum óbice de ordem orça-
mentária pode ser oposto contra a eficácia dos direitos fundamentais sociais, muito menos
sobre a tese da reserva do possível.
Essa é a posição do juiz federal Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 313), para quem “nem a
reserva do possível nem a reserva da competência orçamentária do legislador podem ser invoca-
dos como óbices, no direito brasileiro, ao reconhecimento de direitos originários a prestações.
[...] a efetividade dos direitos sociais [...] não pode depender da viabilidade orçamentária”.
Krell (2002) é outro exemplo desse entendimento. Para ele a transposição de doutrina
estrangeira para o direito brasileiro, sem a necessária crítica, poderia gerar situações de
enfraquecimento da efetividade dos direitos sociais já que aqui, ao contrário da Alemanha,
estes fazem parte do núcleo de direitos fundamentais da Carta Política. Assim sendo, conclui
o autor, a reserva do possível, num país periférico, como o nosso, se significar a necessidade
de “caixa cheio” para a implementação de políticas públicas para a sua execução, seria o
mesmo que reduzir a sua eficácia a zero.
Piovesan (2003, p. 110) nos parece apontar no mesmo sentido, ao asserir que “há que se
propagar a ideia de que os direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadei-
ros direitos fundamentais e, por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como
caridade ou generosidade”.
Na posição diametralmente oposta teríamos Holmes e Sunstein (1999) que verificam,
de maneira empírica, o custo do sistema penal, a fiscalização de padrões de segurança, entre
outros, demonstrando que todos eles tem um custo e tudo que exija despesa pública não
pode ser exigido livremente, mas apenas dentro de parâmetros previstos na lei orçamentária.
O procurador do estado do Rio de Janeiro, Gustavo Amaral (2001), de igual modo, a
partir de decisões judiciais concretas versando sobre o custo de determinados tratamentos de
saúde, traça considerações a respeito da aplicação aos casos individuais (microjustiça) do
princípio da isonomia, de modo que esses casos devam ser alçados a um patamar global,
relativo ao direito que todos os enfermos, na mesma situação, teriam de obter o mesmo trata-
mento jurisdicional (macrojustiça). Dessa forma, ao decidir, os magistrados não podem ficar
apegados apenas ao caso concreto, mas devem levar em conta que a hipótese pode ser exigida
de outros na mesma situação, de modo que a escassez de recursos públicos deve ser pondera-
da na operação de densificação judicial dos direitos sociais.
Bigolin (2006) concorda com uma interpretação ponderada a respeito da eficácia dos
direitos fundamentais sociais:
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Por fim, destacaríamos que a reserva do possível guarda em seu conteúdo retórico
uma dimensão dialética que só pode ser verdadeiramente compreendida se temos em conta
a mudança do pensamento moderno e pós-moderno, a crescente politização do juiz assim
como e a sua posição atualmente assumida por ele como garante da legitimidade do próprio
Estado, com os riscos e vantagens que disso tudo pode advir.
Falar de reserva do possível é situar-se argumentativamente nesse embate entre pro-
gresso e preservação de status quo, em validade contra eficácia, em lei contra direitos funda-
mentais, e tantas outras díades que envolvem o confronto entre esses dois domínios signi-
ficativos que, longe de demonstrarem uma supremacia de qualquer deles, continuam a peleja
pela hegemonia, senão material, ao menos no campo da interpretação.
7. Conclusão
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Notas ______________________________________________________________________________
1. Isso fica claro quando o autor afirma na obra citada que “[...] um poder público é legítimo quando vale como
completamente justificado aos olhos de seus subjugados. Na atualidade, um poder público só vale como justifica-
do, quando puder ser fundamentado através de considerações materiaisracionais” (KRIELE, 2009, p. 54).
2. Para um tratamento mais aprofundado do tema das identidades na pós-modernidade veja-se, em especial,
Woodward, K. (2003), Hall (2003).
3. Segundo Antoine Garapon (apud CORNEJO, 2002, p. 232), “o sujeito, privado das referências que lhe dão uma
identidade e estruturam a sua personalidade, busca no contato com a justiça um remédio contra o desabamento
interior. Ante à decomposição do político, é ao juiz a quem se pede salvação. Os juízes são os últimos ocupantes
de uma função de autoridade – clerical ou paternal – de quem hão desertado os seus antigos titulares.”
4. Para um maior aprofundamento do tema, que abrange a discussão sobre a teoria tópica da argumentação no
direito vide Viehweg (1997).
5. Para uma análise mais completa das diferentes metáforas que circundam a mitologia da identidade do juiz
vide a nossa dissertação de mestrado cujo título é A identidade da magistratura na narrativa jurídica: uma
perspectiva da análise de discurso crítica (GOMES, 2009).
6. Sobre o tema e ainda noções mais precisas sobre os dilemas que a ambigüidade e vagueza da linguagem geram
no direito vide a obra de Carrió (1994).
7. Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.
98
JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA ALTERNATIVA EFICAZ
Resumo: O presente trabalho visa demonstrar como a Justiça Restaurativa pode ser aplicada
no ordenamento jurídico brasileiro, sendo utilizada de forma alternativa e complementar ao
modelo penal posto, tendo em vista o êxito de suas experiências em diversos países do mundo,
mesmo com dessemelhanças culturais e históricas entre eles. São países pioneiros na execução
de práticas da Justiça Restaurativa a Nova Zelândia, o Canadá, e outros que se seguiram na
Europa e Américas. A aplicação e implementação dos procedimentos restaurativos no âmbito
penal, em especial nos sistemas dos Juizados Especiais Criminais, como política pública de
combate à violência e criminalidade é um dos pontos importantes abordados no trabalho, que
apresenta ainda como pontos relevantes o chamamento da pessoa da vítima à discussão da
justiça penal, incluindo-se também a sociedade. O Brasil já conta com experiências de sucesso
em matéria de Justiça Restaurativa que, apesar da não existência de legislação específica, a sua
aplicação promove uma justiça criminal participativa, permitindo a promoção e consolidação
dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e pacificação social.
1. Introdução
O sistema tradicional de justiça penal apresenta uma grave crise, cuja origem se verifica
nas profundas transformações existentes na sociedade. A dureza dos textos legais, principal-
mente processuais penais, justificando-se na rigidez necessária para assegurar direitos e ga-
rantias dos acusados, e até mesmo para que não se cometam abusos na condução do devido
processo, não tem sido suficiente para garantir sua efetividade, eficiência e eficácia.
Há, portanto, a necessidade de que se encontre um novo modelo de projeto que seja
adaptado ao sistema moderno a fim de que se possam sentir os efeitos esperados de um
modelo de justiça que aponte para a solução dos problemas verificados atualmente, quais
sejam, a superlotação dos equipamentos penitenciários e delegacias, a dessocialização de
apenados, e até mesmo daqueles que aguardam reclusos por uma sentença, a inserção de um
preso de pequeno potencial criminoso no mundo do crime, à medida que se ajunta com presos
de alta periculosidade, a reincidência, o desrespeito aos direitos humanos, dentre muitos ou-
tros que podem ser citados. Há que se ressaltar que, além das falhas citadas decorrentes de um
sistema penal que urge por mudanças, às vezes paradigmáticas, que dois novos pontos devem
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ENTRE ASPAS
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A REVISTA DA UNICORP
afastado o sistema punitivo do interesse social, para servir aos interesses da classe privilegi-
ada, passando a ser identificado como um sistema estigmatizante, repressivo, excludente,
desproporcional, segregador e desumano. Um sistema, que ao decorrer do tempo, adquire
essas características, definitivamente, não se mostra eficaz. É patente a falência do atual mode-
lo de política criminal que estigmatiza e exclui socialmente o infrator, com penas, às vezes
“perpétuas”, não pelo tempo de prisão, mas pelos efeitos colaterais que também, por vezes,
são maiores de que a própria pena stricto sensu.
A estigmatização e o desrespeito aos direitos humanos, especialmente nos crimes puni-
dos com privação da liberdade, obstam a ressocialização do infrator, havendo, na maioria das
vezes, a consolidação de uma identidade criminosa no apenado, introduzindo-o em uma carrei-
ra criminosa que, na maioria dos casos, não tem retorno. Uma reflexão sobre esses fatos já
justificaria a necessidade urgente de uma reforma no atual sistema punitivo, visto que, nesse
modelo, na prática, não se vislumbra os fins pedagógicos ou (re)educativos da pena, muito
menos a reinserção do desviante na sociedade.
Saliba (2009, p. 65) analisa que:
O direito penal é, acima de tudo, uma garantia e a justiça penal organiza-se a partir de
101
ENTRE ASPAS
uma exigência: garantir uma coexistência pacífica entre os membros da sociedade. Entretan-
to, é dentro desse sistema de justiça que são observadas as maiores atrocidades e
insurgências contra os princípios fundamentais constitucionais, notadamente a liberdade e
a dignidade da pessoa humana, atuando a pena de prisão como fator criminógeno. O
castigo e a violência punitiva como respostas à criminalidade apenas intensificam a própria
violência que vitima os cidadãos.
É voz corrente que o Direito Penal (ciência penal) nasce com a anulação
da vítima e a concomitante tomada de posição do Estado como
monopolizador solucionante dos conflitos sociais mais graves. Junto
com esse processo de ‘publicação’ do ordenamento jurídico penal deu-se
ao mesmo tempo o processo de ‘desvitimização’, que colocou o sujeito
diretamente lesionado no nível de dispensável.
O mestre Marcelo Saliba (2009, p. 110) acrescenta que “ao delinquente é apresentado
um aparato judicial ao seu favor, com garantias penais, constitucionais, processuais etc., res-
tando ao ofendido a limitada condição de narrador dos fatos”. Diante dos procedimentos
tradicionais do sistema penal, ao ser “deixada de lado”, a vítima é novamente vitimizada, uma
vez que sofre “danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em consequência da
reação formal e informal derivada do fato” (CALHAU, 2000 apud SALIBA, 2009, p. 110-111).
Nesse sentido, Hulsman escreve que:
102
A REVISTA DA UNICORP
ser aplicada ao autor; e ignorará tudo o que acontecerá a ela depois disso,
apesar de que talvez não lhe desejasse tanto mal. Para o delinquente se
configura a mesma situação de destituição: tudo o que acontecerá será
friamente abstrato, não se lhe permitirá refletir sobre as consequências de
seu ato para a vítima e, o que é mais importante, quando for liberado
sentirá que já pagou pelo que fez, e que portanto nada aconteceu. (2004
apud SALIBA, 2009, p. 112)
103
ENTRE ASPAS
Conceituando a Justiça Restaurativa, Ramirez (2005 apud SALIBA, 2009, p. 145, grifo
do autor) diz que:
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A REVISTA DA UNICORP
Tais princípios não são exaustivos, haja vista que a justiça restaurativa baseia-se na
mobilidade enquadrando-se nos interesses envolvidos. Entretanto, tem sua delimitação míni-
ma a fim de que suas características e fundamentos originais sejam preservados, de modo a não
permitir que haja desvio das ideias que sedimentam o modelo.
A resposta de uma tutela efetiva e eficaz almejada tantas vezes no modelo tradicional de
jurisdição do Estado, por conta do insucesso verificado na maioria das vezes, passa a ser
buscada não apenas de forma vertical, mas horizontalmente, no momento em que as partes,
consensualmente, buscam entre si solucionar o conflito com o auxílio de agentes do Estado
(mediador, psicólogos, assistentes sociais etc.), a fim de conseguir a solução do conflito no
caso concreto e, ainda, a paz social, à medida em que esse modelo torna-se integrado aos
costumes e à cultura da sociedade.
A justiça restaurativa não se propõe ao fim retributivo-punitivo, mas em (r)estabelecer
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A REVISTA DA UNICORP
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ENTRE ASPAS
2007/Porto Alegre – Em três anos de implementação do Projeto Justiça para o Século 21,
registra-se 2.583 participantes em 380 procedimentos restaurativos realizados no Juizado
da Infância e da Juventude. Outras 5.906 participaram de atividades de formação pro-
movidas pelo Projeto.
5. Justiça Restaurativa
O emprego de atos típicos da justiça restaurativa não é novo, bem como não é isolado,
como se verá a seguir.
5.1. No mundo
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A REVISTA DA UNICORP
Sica (2007, p. 22) aborda que as origens dos recentes movimentos de justiça restaurativa
na Nova Zelândia e no Canadá, estão ligadas à valorização dos modelos de justiça dos povos
indígenas, que habitam aqueles territórios, desde tempos remotos (o povo maori primeiro e os
aborígenes e as First Nations no segundo), razão pela qual, pode se dizer que a hipótese de
que o declínio das práticas restaurativas coincidiu com a consolidação dos conceitos de crime
e castigo.
As práticas restaurativas passaram a ser adotadas com mais ênfase no final do século
XX, sendo a Nova Zelândia um dos pioneiros da aplicação dos métodos restaurativos para
solução das controvérsias judiciais. Sica (2008, p. 82) aponta que tal fato se deu em decorrência
da “reivindicação da população maori, em vista da desproporcional taxa de encarceramento de
membros dessa comunidade em relação à população de origem branca na aplicação de méto-
dos menos invasivos no tratamento de menores infratores”.
O programa implementado na Nova Zelândia obteve enorme êxito quanto à prevenção,
reincidência e reparação dos danos, inspirando países como a Argentina, Canadá e Reino
Unido a também copiar esse sistema.
São também países que adotam a justiça restaurativa: África do Sul, Alemanha, Austrá-
lia, Áustria, Bélgica, Escócia, Estados Unidos, Finlândia, França, Noruega.
5.2. No Brasil
O Código Penal Brasileiro instituído em 1940, e alterado por diversas leis posteriores,
sofreu profunda alteração em 1984, na Parte Geral. Destacou-se a criação das penas restritivas de
direitos (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fim
de semana). Em 1998, por meio da Lei n. 9.714, ampliou-se consideravelmente o sistema das penas
alternativas, não só admitindo sua aplicação a um número maior de infrações penais (crimes
culposos e dolosos, cuja pena não ultrapasse 4 anos, cometidos sem violência ou grave ameaça
à pessoa), mas também aumentando a quantidade de penas restritivas de direitos: prestação
pecuniária, prestação inominada, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade
ou entidades públicas, interdições temporárias de direitos (com acréscimo, dentre essas, da
proibição de frequentar determinados lugares), e limitação de fim de semana (arts. 45 a 48 do CP).
A mera tipificação ou imposição das sanções penais pelos dispositivos mencionados
não foram suficientes para alcançar o êxito desejado na solução dos litígios criminais. Pelo
contrário, a distância da norma ao fato social e aos sujeitos do crime culminou na falência de um
sistema que não resolve o problema da reincidência criminal, não repara o dano sofrido e tem
servido de porta de entrada para a vida no crime.
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ENTRE ASPAS
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5.3. Na Bahia
111
ENTRE ASPAS
O professor Renato Sócrates Gomes Pinto (2005, p. 24-27) sintetiza em formato tabular
os valores, procedimentos, resultados e efeitos dos dois modelos de justiça criminal em relação
à vítima e ao infrator:
A justiça restaurativa tem sido praticada com base em princípios e valores com caracte-
rísticas próprias diferindo do modelo retributivo, como visto a seguir:
Quadro 1 – Valores
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Dissuasão Persuasão
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A REVISTA DA UNICORP
Quadro 2 – Procedimentos
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Quadro 3 – Resultados
JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Pedido de desculpas,
Penalização, penas reparação, restituição,
privativas de liberdade, prestação de serviços comunitários,
restritivas de direitos, multa reparação do trauma moral
– Estigmatização e discriminação e dos prejuízos emocionais
– Restauração e inclusão
Tutela Penal de
Bens e Interesses, Resulta responsabilização
com a punição do infrator espontânea por parte do infrator
e proteção da sociedade
113
ENTRE ASPAS
Um breve retrato visualizado por meio desse quadro demonstra quão opostos são os
efeitos provocados à vítima por cada um dos sistemas penais.
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A REVISTA DA UNICORP
7. Conclusão
115
ENTRE ASPAS
do infrator, seja na pessoa da vítima, uma vez que o primeiro assume a responsabilidade pelo
fato e o repara, e o último tem o seu bem reconstituído e verifica a resposta que espera do
Estado. Os reflexos dessa composição bem sucedida são sentidos amplamente pela sociedade.
Diante de todo o exposto, imprescindível se faz a implementação de modelos alternati-
vos e descarcerizantes que possam atuar alternativa e complementarmente ao modelo tradici-
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A FUNÇÃO DO AMICUS CURIAE NA REFORMA DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: DA LEGITIMIDADE AO LOBBY
Palavras-Chave: Amicus Curiae. Reforma do Código de Processo Civil Brasileiro. Poder Judi-
ciário. Legitimidade da Jurisdição. Lobby Político.
1. Introdução
117
ENTRE ASPAS
tante) crise mundial do Estado de Bem-Estar Social – tornou o Poder Judiciário o muro das
lamentações3 dos brasileiros. Reflexo disso, a Emenda Constitucional n. 45/04 veio a estender4
ainda mais a competência do Poder Judiciário no sentido de abarcar, por exemplo, o controle de
constitucionalidade das leis, de modo que questões de feição notadamente política foram aos
poucos sendo transferidas para o Terceiro Poder5.
Em apertadíssima síntese6, é desta conjuntura que emerge o fenômeno da Judicialização
da Política7, legatário da necessidade de garantir o projeto constitucional por meio de provi-
mentos jurídicos, em detrimento da esfera política reservada ao Executivo e ao Legislativo.
Contudo, se de um lado reputa-se inquestionável a legitimação das lideranças dos
poderes Executivo e Legislativo por ser obtida democraticamente nas urnas; de outro, pai-
ram dúvidas acerca da legitimidade (das decisões) dos atores do Poder Judiciário, tendo em
vista o deslocamento da esfera de decisão do espaço político para o espaço jurídico. Pois
bem, é no contexto da manutenção/renovação da confiança na Jurisdição que os legislado-
res brasileiros pretendem expandir a presença do amicus curiae importado do judicial review
norte-americano.
Com efeito, o “amigo da corte” já angaria notabilidade8 nas instâncias superiores do
judiciário brasileiro ao permitir, sob o crivo do Ministro Relator, a manifestação de entidades da
sociedade civil. Notadamente, no processo objetivo de controle de constitucionalidade de
competência do Supremo Tribunal Federal, a presença dos amici tem sido uma constante,
sobretudo, em função da necessidade de (justificar e) democratizar (os julgamentos políticos
d)a jurisdição constitucional à luz da teoria político-filosófica procedimental-pluralista9.
O PLS 497/09, Anteprojeto do Código de Processo Civil (NCPC), apresentado pela
comissão de juristas instituída pelo Senado Federal não foge deste contexto. Pretendem os
parlamentares, por meio desta reforma, estender a aplicação do amicus curiae para além dos
espaços da Colenda Corte Cidadã e do Sodalício Tribunal Supremo, delineando com maior
precisão o programa normativo10 deste instituto.
Ou seja, para legitimar a atividade jurisdicional, o projeto visa permitir aos órgãos
julgadores de todas as competências dentro da jurisdição brasileira compartilhar com outros
intérpretes da constituição a base de vivências valorativas11 intrínsecas ao complexo ato de
julgar.
Com vistas a compreender este fenômeno e o (con)texto em que se insere a referida
Reforma, o presente estudo propõe-se a desvelar12 a função exercida pelo amicus curiae na
jurisdição brasileira, respondendo às questões que seguem abaixo:
I) Qual a origem do amicus curiae?
II) Quando se deu a sua recepção pela legislação e pela jurisprudência pátria?
III) Qual a relação entre os “amicus curiae” e a legitimidade da jurisdição?
IV) A extensão da participação do amicus curiae pelo artigo 322 do NCPC nos proces-
sos judiciais de competência ordinária do poder judiciário brasileiro representa um avanço ou
um retrocesso?
118
A REVISTA DA UNICORP
Cognitio14. Enquanto outros afirmam tratar-se tradição consolidada entre os séculos XIV e
XVI pelo direito inglês15, cujo amadurecimento verificou-se na jurisprudência das “13 Colôni-
as” a partir do século XVII.
Em que pese as diferenças apontadas pelos autores e as filigranas decorrentes das
pesquisas históricas16, cumpre ressaltar que a função17 e a composição18 dos amici curiae
eram muito semelhantes em ambos os casos, qual seja, prestação à magistratura de auxílio
técnico-jurídico por sujeitos estranhos à lide e sem interesse na causa.
Importa destacar, por outro lado, que ambos se diferenciaram da evolução ocorrida
nos Estados Unidos da América – paradigma relevante para a compreensão do NCPC. Na
tradição norte-americana, conforme aponta Del Prá, o “friend of the court” significou a
democratização do processo judicial, porquanto a regra dos stare decisis implicava que as
consequências das decisões ultrapassavam a esfera de direito dos litigantes e o Adversary
System fundado no trial by duel19 implicava na impossibilidade de que sujeitos possivel-
mente afetados com a consolidação de um precedente pela corte não tivessem a chance de se
manifestar sobre a matéria20.
Como inexistia a intervenção de terceiro no sistema jurídico processual norte-ameri-
cano (trial by duel), o amicus curiae surgiu como resposta ao dilema da sujeição jurídica de
interessados que não poderiam figurar no processo, constituindo-se como verdadeira inter-
venção apta a evitar, outrossim, práticas de natureza fraudulentas ou colusivas21.
Destarte, a natureza de desenvolvimento dos amici curiae nas terras americanas do
norte constituiu-se como intervenção notadamente parcial, sobretudo, tendo em vista os
efeitos prospectivos representados pelos precedentes judiciais.
Ou seja, a atuação do amicus curiae evoluiu “da mera e desinteressada prestação de
informações sobre, v. g., a morte de uma das partes, até a profícua e combativa participação
na defesa de interesses de toda a coletividade”.(DEL PRÁ, 2008, p. 29).
Outrossim, nos dizeres de Claudia Paiva:
Ora, se o amicus curiae ao surgir no direito romano e evoluir com o direito inglês
atuava sem interesse na causa, caracterizando-se pela função informativa ao apontar prece-
dentes, argumentos de direito ou questões de fato que auxiliassem o juízo por desconheci-
mento das partes ou da própria corte; a sua incorporação pelas 13 Colônias significou a
consolidação de natureza diversa, notadamente assumindo feição de lobby em favor de uma
das partes e transformando o amicus curiae “em verdadeiro instrumento de estratégia judi-
cial em defesa de um dos lados específicos envolvidos na disputa”23.
Destarte, a presente arqueologia (resumida) das funções do friend of the court pode
esclarecer algumas das diversas (in)compreensões acerca da natureza jurídica deste instituto.
Trata-se de questão relevante, posto que, no Brasil, há doutrinadores que afirmam se tratar de
uma “espécie de perito”, outros compreendem constituir-se como custus legis24, havendo
também quem defenda se tratar de terceiro interessado25 ou fale em auxiliar do juízo26.
Conquanto o desdobramento de tais questões constitua preocupação pertinente, estas
119
ENTRE ASPAS
linhas não vislumbram compreender a natureza jurídica do amicus curiae, nem questões
procedimentais atinentes ao prazo de manifestação, à possibilidade de dilação probatória ou à
legitimidade recursal dos amici, sob pena de repetirmos a bibliografia já publicada sobre o tema27.
Com isto quer-se dizer que o presente estudo se presta, em maior grau, a outro objeto:
questionar a função exercida pelo “amicus curiae” na jurisdição pátria, sobretudo no senti-
do de compreender o movimento da reforma legislativa que pretende estender sua aplicação.
Nesse caminho, importa situar o paradigma legislativo e jurisprudencial em que se insere tal
instituto no Brasil, para, em seguida, desvelar a referida função no contexto brasileiro.
posto que as regras mais relevantes para o presente estudo são as que constam nas Leis nos
9.868/99 e 9.882/1999, sobretudo por abarcarem disposições sobre a atuação dos amici
curiae no processo objetivo de descumprimento de preceito fundamental e de controle
abstrato de constitucionalidade.
Esses dois últimos diplomas normativos criaram requisitos para a admissão do amicus
curiae no judicial review brasileiro, quais sejam: “pessoas com experiência na matéria e a
representatividade do postulante”. Outrossim, consolidaram-se como relevante abertura do
processo de controle de constitucionalidade das normas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Isso porque a natureza objetiva dos processos de controle de constitucionalidade –
à semelhança do trial by duel norte-americano – não admitia a intervenção de terceiros,
conforme vedação dos artigos. 7º e 18 da Lei nº 8.686/99 – ora mitigado –, além de permitir um
rol extremamente limitado de entidades legitimadas para propositura de tais ações.
Com a promulgação das referidas leis, o legislador ordinário admitiu no curso do pro-
cesso objetivo, “considerada a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes”
(§2º, do art. 6º, da Lei nº 9.868/99), a possibilidade de manifestações de pessoas e entidades que
não figuravam no rol taxativo dos legitimados para a propositura das ADIN’s, ADC’s e ADPF’s.
No âmbito jurisprudencial, a decisão que pela primeira vez reconheceu a participação
do amicus curiae em um processo abstrato é da lavra do ministro Celso de Mello.
120
A REVISTA DA UNICORP
121
ENTRE ASPAS
Essa necessidade crescente de legitimação, segundo aponta a doutrina, fez com que
o STF encontrasse vias de abertura procedimental, por meio de diversos instrumentos,
dentre os quais o amicus curiae e as audiências públicas assumem papel de destaque, com
vistas a aproximar da sociedade civil o exercício de sua função precípua de guardião da
Constituição.
Corroborando tal entendimento, no que toca às cortes constitucionais, leciona o
professor alemão Peter Häberle, pugnando por uma sociedade aberta dos intérpretes da
constituição 43. Tratar-se-ia do locus de realização e de concretização permanente do
projeto constitucional em processo contínuo no qual a opinião pública exerce a influên-
cia central.
Segundo ele, a assunção de um Estado Democrático de Direito cuja Hermenêutica
Constitucional vise à compreensão da Constituição levanta a exigência de uma sociedade
aberta de intérpretes, na qual cada sujeito é destinatário da norma constitucional e igualmente
o seu intérprete, em um processo contínuo de (re)construção do seu sentido em detrimento de
uma sociedade fechada de intérpretes, preocupada e direcionada a aceitar a interpretação
decorrente das virtudes dos magistrados – principalmente dos membros dos Tribunais e Cor-
tes Constitucionais. Ou seja,
Desta forma, compreende-se que das funções exercidas pelo amicus curiae, a prepon-
derante se vincula à legitimação das decisões do Supremo Tribunal Federal, sob o manto da
ampliação dos intérpretes da constituição. Ou seja, a função informativa – supostamente
imparcial para boa parte da doutrina – subjaz à função legitimadora.
Resta saber se se trata de legitimação pelo procedimento ou da procedimentalização da
legitimidade45. Isso porque se de um lado a abertura da jurisdição constitucional ao amicus
curiae representa a ampliação do coeficiente de legitimidade das decisões – notadamente do
Supremo46 –, de outro, o histórico norte-americano aponta para um uso estratégico de suas
intervenções. Conforme aponta Cláudia Paiva:
122
A REVISTA DA UNICORP
Desta forma, se de um lado pode-se compreender a expansão dos amici curiae como
uma forma de legitimação vindicada pelos mais diversos atores sociais em favor de um proce-
dimento que amplie o acesso à jurisdição, com abertura dialógica para emissão, recepção plural
de opiniões em questões que os ultrapassam interesses dos demandantes; de outro se pode
associá-la à burocratização da expressão do poder político, notadamente caracterizando a
procedimentalização da legitimidade decorrente da atuação política tradicional.
Resta compreender em que sentido segue a reforma do Anteprojeto do Código de
Processo Civil.
De logo, deve-se mencionar que a questão atinente aos (des)méritos da reforma que ora
se compreende não é inédita na doutrina. Com efeito, o processualista Carlos Del Prá apresen-
tou críticas pertinentes quanto à redação deste artigo, no tocante aos critérios para admissão
do amicus curiae no processo pelo magistrado, sendo mais angustiantes e relevantes as que
se referem à “representatividade adequada” e ao dever de publicidade inerente aos processos
cuja repercussão social enseje a participação do amicus curiae47.
Segundo este doutrinador, não caberia falar em representatividade adequada, por su-
posto que não há interesse a ser defendido pelo amicus curiae. Contudo, tal crítica nos parece
equivocada, posto que o auxílio hermenêutico prestado pelos amici curiae é imbuído de
sentido, orientação determinada, e, por óbvio, assume um posicionamento que se traduz, ao
menos mediatamente, em interesse próprio.
Quanto à necessidade de publicizar a demanda, no sentido de que os interessados se
manifestem, compreende-se adequada tal crítica, porém, desde que se assuma que a função
dos amici curiae, em todos os graus de jurisdição se insere na esfera da disputa de interesses
e não sob o manto da neutralidade legitimadora da sociedade aberta aos intérpretes da consti-
123
ENTRE ASPAS
6. Conclusão: retrocesso
124
A REVISTA DA UNICORP
Referências ________________________________________________________________________
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çoamento da prestação jurisdicional.Curtiba: Juruá, 2008
______. Primeiras Impressões Sobre a Participação do Amicus Curiae Segundo o Projeto do Novo Código de
Processo Civil (art. 322). Revista de Processo. vol. 194. p. 307-315. São Paulo: Ed. RT, 2011.
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GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999
125
ENTRE ASPAS
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Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contri-
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LARENZ, Karl. Metodologia Da Ciência Do Direito. Trad. José Lamego. 3ª ed., Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
MEDINA, Damares. Amicus curiae: amigo da corte ou amigo da parte? São Paulo: Saraiva, 2010.
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VIANNA, Luís Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
Notas ______________________________________________________________________________
126
A REVISTA DA UNICORP
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 47-70;
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In Revista Atualidades
Jurídicas, nº 4, jan-fev/2009, OAB. Disponível em http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/
1235066670174218181901.pdf.. Acesso em 15/01/12
8. A expressão deste instituto é de tal força que o ministro Gilmar Mendes ao fazer a abertura da sessão de
julgamento do aborto de fetos anencefálicos aventou a possibilidade de adiar a decisão mesmo após 08 anos de
tramitação do processo no Supremo Tribunal Federal. Notícia disponível em << http://agenciabrasil.ebc.com.br/
noticia/2012-04-11/anencefalia-gilmar-mendes-diz-que-julgamento-e-um-dos-mais-importantes-dos-ultimos-
anos >>. Acesso em 04.07.2012.
9. Dentre os teóricos do procedimentalismo que atribuem um papel essencial à Jurisdição Constitucional, cf
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contri-
buições para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1997; e NONET, Phillippe, SELZINICK, Philip. Direito e Socieda-
de: a transição ao sistema jurídico responsivo. Rio de Janeiro: Revan, 2010; Para um olhar crítico sobre tais
teorias, cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997; e GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o
guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
10. MULLER, Friedrich. Apud CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constitui-
ção, 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 2011, p. 1078.
11. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Goubaarasuiohu: 3ª ed., 1997, p. 173
12. Trata-se aqui de desvelamento ínsito à hermenêutica filosófica, matriz teórica que fundamenta os
pensamentos do autor. Para melhor compreensão: STEIN, Ernildo. Seis ensaios sobre ser e tempo. Petrópolis:
Vozes, 1990, p. 10-11. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 5.ed. Petrópolis:Vozes, 2011 p. 202-214.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Petrópolis: Vozes. 2002, p. 231 e ss.
13. Cf. CABRAL, Antônio do Passo. Pelas asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, um terceiro
especial: uma análise dos institutos similares – o amicus e o vertrer des offentlichen interesses. In. Revista de
Processo. São Paulo: RT, a. 29, n. 117, set-out 2004.
14. Conforme leciona o romanista João Batista, no império romano, figurava como amicus curiae um
conselho “permanente, formado de pessoas especializadas no conhecimento jurídico e que recebiam dos
magistrados remuneração para exercer sua função”. (SILVA, João Baptista. Processo romano: instrumento
de eficácia jurisdicional. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2004, p. 42-43).
15. No direito inglês, tinha natureza tradicional caracterizando-se como tradição não institucionalizada.
Nesse sentido, DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus Curiae: instrumento de participação democrá-
tica e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.Curtiba: Juruá, 2008, p. 26-27.
16. Conforme aduz René David “As diferenças existentes entre o direito românico e o direito inglês foram,
durante muito tempo, negligenciadas”. (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo.Tradução
de Hermínio A. Carvalho. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 381).
17. O doutrinador americano Samuel Krislov afirma que o amicus curiae, no direito inglês, “participava do
processo apontando precedentes jurisprudenciais não mencionados pelas partes ou ignorados pelo julgador,
atuando em benefício de menores, chamando a atenção do juízo para certos fatos como o erro manifesto,
a morte de uma das partes, o descumprimento do procedimento correto ou a existência de norma específica
regulando a matéria”. Livre Tradução. (KRISLOV, Samuel. The Amicus Curiae Brief: from friendship to
advocacy. Yale Law Journal. Yale University Press, n.72, 1963, p. 695).
18. O romanista João Batista afirma que “Era comum serem elevados à magistratura pessoas sem conheci-
mento suficiente do direito. Os critérios para o alcance das magistraturas em geral consagravam o prestígio da
família, a riqueza e, sobretudo, as posições político-sociais; os conhecimentos não pesavam nem mesmo
127
ENTRE ASPAS
128
A REVISTA DA UNICORP
do processo e processo de conhecimento. 11. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2009.
37. Decisão na ADIn-AgR 748/RS, j. 14. 08.1999, DJ 18.11.1994.
38. Decisão na ADIn-MC 2321/DF. j.25.10.2000, DJ 10.06.2005.
39. Decisão no AgRg-Resp 7754461/DF – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJ 1º.02.2008.
40. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de Direito Constitucional. 4 ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.1174.
41. Decisão na ADIn 2548/PR, j. 18.10.2005, DJU, 24.10.2005.
42. Por todos, cf. AGRA, Wálber, op. cit., 2005; AGUIAR, Mirella op. cit., 2005; BUENO, Cassío op. cit.,
2008; CARNEIRO, Athos, op. cit.,, 2008; DIDIER JR., Fredie, op. cit., 2009; DEL PRÁ, Carlos, op. cit.,,
2008; MEDINA, Damares op. cit.,, 2010;
43. Segundo Häberle, seriam legitimados a interpretar a Constituição: os legitimados a propor a ação consti-
tucional; participantes do processo, ou que são convocados, eventualmente, pela própria Corte; os órgãos e
entidades estatais, os funcionários públicos, agentes políticos; os pareceristas ou expertes; os peritos e
representantes de interesses; os partidos políticos e frações parlamentares; os grupos de pressão organizados;
os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo; a mídia, em geral,
imprensa, rádio e televisão; a opinião pública democrática e pluralista, e o processo político; os partidos
políticos fora do seu âmbito de atuação organizada; as escolas das comunidades e as associações de pais; as
igrejas e as organizações religiosas; os jornalistas, professores, cientistas e artistas; a doutrina constitucional.
44. Cf. HÄBERLE, Peter. op. cit., p. 30 e 31.
45. O espaço limitado do presente estudo impede uma análise mais profunda da questão ora tangenciada. Sobre esta
querela, Häberle diferencia seu posicionamento da tese de Nicklas Luhmman. (HÄBERLE, Op. cit.. p.31-32).
46. Cf. AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação
da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
47. Cf. DEL PRÁ, Carlos Gonçalves. Primeiras Impressões Sobre a Participação do Amicus Curiae Segundo
o Projeto do Novo Código de Processo Civil (art. 322). Revista de Processo. vol. 194. p. 307-315. São
Paulo: Ed. RT, 2011, p. 310.
48. Paráfrase da XI tese de Marx sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo; o que
importa é transformá-lo”.
49. Aqui, resta claro que nos afastamos da tese de Klaus Güther acerca da diferença ontológica entre discurso
de fundamentação e discurso de justificação, malgrado concordemos com as teorias que a justifique, notadamente
as lições procedimentalistas de Jürgen Habermas.
50. Na ADPF 54, referente ao aborto de fetos anencefálicos, foram ouvidos representantes de 25 diferentes
instituições, ministros de Estado e cientistas, somando quatro dias de argumentos, opiniões, palestras e
dados científicos. Por este motivo a ministra Carmem Lúcia, no julgamento da ADPF 101, criou um
procedimento ad hoc para que os amici curiae se manifestassem na audiência pública realizada, valendo-se
de requerimento por mensagem eletrônica, tentativa de consenso entre os amici curiae para definir aquele
que fará exposição dos argumentos, bem como sorteio em caso de dissenso (ADPF 101, Rel. Min. Cármen
Lúcia, decisão de 9-6-2008, DJ de 19-06-2008).
129
A IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS
NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: É PRECISO MUDAR?
Resumo: O presente artigo tem o intuito de discutir a proposta do Novo Código de Processo
Civil para o sistema de impugnação das decisões interlocutórias, notadamente feita por meio
do recurso de agravo. Partindo de uma análise histórica das modificações empreendidas no
recurso de agravo, a partir da primeira metade da década de 90, que apenas terminaram em 2006,
busca-se uma reflexão sobre a intenção dessas reformas e se estas tiveram êxito com as altera-
ções no Código de Processo Civil. As reflexões e discussões propostas são enriquecidas com
a apresentação de diversos dados coletados no ano de 2010 no próprio Tribunal de Justiça da
Bahia, e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tais dados foram obtidos a partir da execução
do Projeto de Pesquisa intitulado “Avaliação do Impacto das Modificações no Regime do
Recurso de Agravo e Proposta de Simplificação do Sistema Recursal do CPC”, selecionado
pelo Ministério da Justiça (SRJ) por meio do Edital n. 01/2009. Assim, partindo-se da análise de
dados concretos, parte-se para uma discussão doutrinária acerca da conveniência das altera-
ções legislativas e da proposta de modificação do recurso de agravo no Novo Código de
Processo Civil, atualmente em discussão no Congresso Nacional.
1. Introdução
Conquanto a existência de uma tutela jurisdicional efetiva, eficiente e justa seja uma
demanda da sociedade brasileira, é notória a deficiência estatal na administração da justiça. A
causa do problema é plúrima. Qualquer manifestação que aponte um único motivo para a
lastimável situação do Poder Judiciário brasileiro deve ser encarada com pouca seriedade.
Dentro das diversas críticas feitas pelos especialistas no ramo do processo, é muito
comum trazer o sistema recursal brasileiro como um dos principais fatores da demora na pres-
tação da tutela jurisdicional. Não por outro motivo, o Ministro Luiz Fux, na exposição de
motivos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), esclareceu que uma das intenções que
motivaram a elaboração da norma foi a de “simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a
complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal”. (BRASIL, 2010, p. 14).
Nesse contexto, o anteprojeto do NCPC buscou consagrar a regra da irrecorribilidade
das decisões interlocutórias, com a criação de hipóteses taxativas para o manejo do recurso do
130
A REVISTA DA UNICORP
agravo de instrumento. Nesse contexto, o agravo retido será abolido, deixando-se o reexame
das decisões não elencadas no rol do art. 969 do NCPC para o recurso de apelação, que
possibilitará ao jurisdicionado devolver ao tribunal não apenas o exame da sentença, mas
também das interlocutórias irrecorríveis.
O intuito deste trabalho é tentar verificar se o procedimento de impugnação das deci-
sões interlocutórias do NCPC dará maior efetividade e eficiência ao subsistema recursal.1
131
ENTRE ASPAS
O intuito dessas normas foi o de reordenar esse fluxo de processos, dando maior
prevalência ao agravo retido (que agora tinha hipóteses de cabimento melhor delineadas, não
cabendo à parte escolher entre o agravo retido ou de instrumento) e ampliando os poderes dos
relatores, a fim de inibir a inclusão de processos em pauta de julgamento. Após a publicação
dessas leis, os agravos passaram a ter o seguinte contorno7:
Como se pode observar, as intenções das mudanças eram claras: tornar excepcionais as
hipóteses de interposição do agravo de instrumento, com a tentativa de generalização do
agravo retido, e, por outro lado, ampliar o poder dos relatores (com a criação de decisões
irrecorríveis), de modo que as partes não pudessem acessar os órgãos colegiados dos tribunais.
Ou seja, enquanto a Lei Federal 9.139/95, além de dar mais eficiência à marcha processu-
al no juízo de piso, ampliou o acesso dos jurisdicionados aos tribunais e desestimulou o uso
indiscriminado do mandado de segurança, as Leis 10.352/01 e 11.187/05 tiveram quase que um
intuito oposto: se não cabia impedir que as partes acessassem o segundo grau, que ao menos
fosse dificultado o acesso aos órgãos colegiados dos tribunais.9 Todavia, ao menos quanto a
este fim, as investidas legislativas fracassaram.
Ainda que seja inegável que as modificações legislativas, trazidas pelas três leis acima
comentadas, deram um contorno mais lógico e sistêmico ao procedimento de impugnação das
interlocutórias, o seu intento político-legislativo de coibir o uso do agravo de instrumento não
foi alcançado.
Dados coletados por ESTEVES no TJ-ES e pelo Grupo executor do Projeto de Pesquisa
do qual o autor fez parte, no TJ-BA e no TJ-MG, demonstram com relativa clareza que, de 1995
para cá, a curva gráfica dos agravos de instrumento foi sempre ascendente. Vejamos a evolu-
ção do número dos agravos de instrumento nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e da
Bahia entre os anos de 2001 e 2009.
132
A REVISTA DA UNICORP
Do gráfico acima, observa-se que a edição das Leis 10.352/2001 e 11.187/2005 não foi
capaz de alterar a curva ascendente do número de agravos de instrumento. Curiosamente,
nota-se apenas uma leve redução na interposição do recurso entre os anos de 2005 e 2006,
período imediatamente posterior à publicação da Lei 11.187/2005, o que parece denotar que a
vigência de regras restritivas ao uso do agravo de instrumento chegou a “constranger” as
partes a usarem o agravo retido.
Todavia, passado o momento de perplexidade diante da nova Lei, os jurisdicionados
parecem ter percebido que era mais vantagem continuar tentando “emplacar” um agravo de
instrumento, com base nos conceitos indeterminados de “lesão grave” ou de “difícil repara-
ção”, do que esperar até o julgamento da apelação para uma apreciação do agravo retido.
Essa realidade também foi notada no Estado da Bahia, consoante gráfico colacionado a seguir.
133
ENTRE ASPAS
Também aqui nota-se uma curva quase sempre ascendente (verificando-se a mesma
retração existente no TJ-MG no período 2005-2006), com dados apontando um crescimento
significativo dos agravos de instrumento, que praticamente triplicaram em oito anos.
Para que tenhamos uma ideia do quão significativo foi esse crescimento, podemos
comparar o número de agravos de instrumento interpostos com o número de apelações inter-
postas no mesmo período no Tribunal de Justiça da Bahia:
Ainda em atenção ao atual regime dos agravos, há um último dado a ser comentado, que
faz referência a uma discussão que ocupou boa parte dos textos doutrinários sobre a reforma
do agravo após a Lei 11.187/2005: o provável aumento do número dos mandados de segurança
contra a decisão do relator.
No particular, parece-nos que a irrecorribilidade da decisão do relator, ao menos no
Estado da Bahia, não causou um aumento significativo dos mandados de segurança.
Vejamos a tabela que aponta o número de impetrações do writ entre os anos de 2001-2009,
comparando-as com as apelações:10
134
A REVISTA DA UNICORP
Não é a primeira vez que um Anteprojeto de Código de Processo Civil propõe a supres-
são de um recurso com funções semelhantes às do agravo retido; basta lembrarmos a proposta
135
ENTRE ASPAS
136
A REVISTA DA UNICORP
Cogita-se, inclusive, que a nova regra ampliará a carga de trabalho dos tribunais. Perma-
necendo em termos semelhantes o quantitativo de agravos de instrumento – o que deverá ser
137
ENTRE ASPAS
a tendência mesmo com o novo código –, nascerá para os tribunais um novo problema: o
surgimento de apelações infladas, pois, além das questões decididas na sentença, as partes
revisitarão todo o procedimento, buscando cada uma das interlocutórias proferidas na instân-
cia inferior, na esperança de que alguma questão seja capaz de reformar ou invalidar a decisão.
É possível, aliás, que adaptemos a nossa realidade àquela vivida no processo trabalhis-
ta, em que foi criado o expediente do “protesto” para garantir a possibilidade de rediscutir a
matéria no recurso ordinário. Com isso, evitar-se-ia, ao menos, a chicana processual, pois a
parte não ficaria analisando o processo após a sentença com o intuito de inventariar todas as
interlocutórias e rediscuti-las pura e simplesmente.15
Ou seja, mantido o texto do Anteprojeto nesses termos, é possível que os jurisdicionados
“ressuscitem” o agravo retido, valendo-se do princípio da adaptabilidade do procedimento.
Em conclusão, é preciso manter o agravo retido, ou então, elaborar um procedimento
concentrado, homenageando-se a oralidade. Solução diferente destas provavelmente trará
mais prejuízos do que benefícios.
Deve-se perceber que uma coisa é enfraquecer a preclusão para permitir decisões mais
justas e favorecer a economia processual, tornando o procedimento mais flexível, como propõe
o NCPC, que tornará mais maleável as regras de estabilização da demanda. Trata-se de tornar o
caminho mais adaptável às peculiaridades do caso concreto. Isto, porém, nada tem a ver com
relativizar a preclusão das decisões: a decisão não é caminho, é chegada, ainda que seja
interlocutória (em relação àquela questão, chegou-se a uma solução). Se a solução de uma
questão ficar em permanente situação de instabilidade, uma das funções do processo se frus-
tra: tornar certo aquilo que é controvertido.
Ademais, o agravo retido não torna o processo moroso. Ele até poderia tornar, caso
se transformasse em um incidente no primeiro grau, como TALAMINI (1995) chegou a temer
após a Reforma de 1995. Entretanto, passada a perplexidade da mudança, a praxe forense
demonstrou que o máximo que este recurso pode atrasar o feito é pelo prazo dez dias –
estipulado para a oitiva do agravado – acrescido do tempo de apreciação do juiz.16 Como, no
mais das vezes, as partes apenas se valem do agravo retido em audiência, momento em que
é imediatamente dada a palavra à contraparte e o juiz decide a questão em mesa, não conse-
guimos vislumbrar até que ponto o agravo retido poderia ser tão danoso à celeridade do
processo17. É dizer, na imensa maioria dos casos, o agravo retido poderá, no máximo, prolon-
gar a audiência por alguns minutos.
E, ressalte-se, não será pela “perda” desses poucos minutos, que o processo deixará de
atender os ditames do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.18
Como salientado, a nova versão do agravo de instrumento somente poderá ser maneja-
da contra alguns tipos de decisões interlocutórias, enumerados nos incisos do art. 969 do
NCPC. Entrando em vigor o NCPC, as partes não poderão mais se valer do recurso naquelas
hipóteses de cabimento historicamente suscitadas pela doutrina – e, de um modo geral, aceitas
pela jurisprudência. Essas interlocutórias, que se tornarão irrecorríveis, dizem respeito às situ-
ações em que, a despeito da existência de urgência, somente deve ser interposto agravo de
instrumento em razão da incompatibilidade do agravo retido com a situação concreta.19
138
A REVISTA DA UNICORP
Tais decisões, ante o fim do agravo retido, restarão irrecorríveis de imediato, conforme
considerações feitas no tópico precedente.
Conquanto não haja nenhuma justificativa específica na Exposição de Motivos do
Anteprojeto, é intuitivo que as novas regras têm a intenção de tentar diminuir o número de
agravos de instrumento interpostos nos tribunais.
Sucede que isso provavelmente não ocorrerá.
Faz-se tal afirmação a partir dos dados levantados junto ao Tribunal de Justiça da Bahia,
relativos aos agravos de instrumento interpostos entre janeiro de 2008 e janeiro de 2010.20
Antes de apresentarmos os resultados, contudo, é necessário que façamos algumas
considerações sobre a metodologia empregada na obtenção e na análise desses dados.
Esta etapa da pesquisa tinha o escopo de analisar o conteúdo de uma amostra dos
agravos de instrumento no biênio 2008-2010, de modo a avaliar quais as causas que mais geram
a interposição do recurso, verificando, assim, se a proposta de reforma do NCPC poderá surtir
efeitos substanciais na diminuição dos agravos de instrumento.21
Após a análise amostral dos recursos interpostos, que pôde dar uma ideia de quais
matérias e causas mais geravam a interposição do agravo de instrumento, foram criadas cinco
categorias para a apresentação deste trabalho:
É salutar observar-se que as categorias não foram criadas exatamente a partir das
hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, a exemplo dos casos em que se alega a
urgência ou daqueles relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, execução civil, etc.
139
ENTRE ASPAS
Tendo em vista que parte dos agravos de instrumento agrupados entre as “Causas
que envolvem o Estado” refere-se aos casos em que as partes alegaram a ocorrência de
“dano irreparável ou de difícil reparação”, e considerando que todos os recursos pesquisados
140
A REVISTA DA UNICORP
na amostra das categorias “Causas Cíveis” e “Tutela do Consumidor” foram aviados com
base nesta mesma hipótese de cabimento22, infere-se que as decisões que versam sobre a
tutela de urgência são responsáveis por mais de 60% dos agravos interpostos no TJ-BA.
Além desta conclusão, observa-se, com relativa clareza, que as causas tornadas
irrecorríveis pelo Anteprojeto do NCPC representam pouco menos de 12% dos agravos de
instrumento ingressos no tribunal baiano. Ou seja, como serão mantidas as hipóteses de
cabimento relativas à urgência, à execução civil, dentre outras previstas em lei, a modificação
da norma processual deve alterar muito pouco a quantidade de recursos de agravo existen-
tes no TJ-BA.
Paralelo a isso, duas outras observações são bastante interessantes:
141
ENTRE ASPAS
6. Conclusão
Referências ________________________________________________________________________
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A REVISTA DA UNICORP
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2009.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: RT. 2006.
Notas ______________________________________________________________________________
1. Parte das investigações a seguir empreendidas será feita a partir de dados quantitativos obtidos nos Tribunais
de Justiça da Bahia e Minas Gerais. Tais dados foram obtidos a partir das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
de Pesquisa do qual o autor fez parte, grupo este que executa o projeto intitulado “Avaliação do Impacto das
Modificações no Regime do Recurso de Agravo e Proposta de Simplificação do Sistema Recursal do CPC”,
selecionado pelo Ministério da Justiça (SRJ) por meio do Edital n. 01/2009. A Coordenação Geral do Grupo,
143
ENTRE ASPAS
nos estados da Bahia e Minas Gerais, coube à professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. A coordenação da
equipe de trabalho na Bahia coube ao professor Fredie Didier Jr.
2. Cabe destacar o arcaísmo que esta previsão representava. O procedimento de formação dos instrumentos
de agravo (então chamados de “estormentos” ou “cartas testemunháveis”) foi criado no Estado Absolutista
Português, no século XV, já que, ante a inexistência de máquinas fotocopiadoras e da necessidade de garantir
que os funcionários da realeza executassem o serviço, as partes não podiam dar cabo de tal atividade. Sobre
a história do recurso de agravo: (WAMBIER, 2006); (COSTA, 1974).
3. Para uma análise mais ampla sobre o contexto das alterações no agravo introduzidas pela lei 9.139/95:
(TALAMINI, 1995).
4. É intuitivo concluir que o “boom” do recurso de agravo (e de outros recursos) não está ligado apenas à
estruturação da tutela de urgência no país. Outros fatores parecem ter contribuído para o aumento do
número de processos nos tribunais, tais como a ampliação do acesso à justiça (com o aparelhamento das
Defensorias Públicas, do Ministério Público e com o crescimento do número de vagas nos cursos de Direito,
ampliando a oferta de advogados no mercado), bem como com a própria ascensão social das classes “c” e
“d”, que ingressaram fortemente no mercado de consumo de bens duráveis. Além disso, os investimentos na
ampliação e capacitação de pessoal para lidar com o fenômeno da litigância de massa do nosso século foram
muito discretos, como aponta o Relatório Anual de 2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), p. 48/49.
5. Em suas pesquisas no doutorado da USP, a jurista coletou dados quantitativos do Tribunal de Justiça do
Espírito Santo, relativos às apelações, agravos de instrumento e mandados de segurança de 1993 a 2004.
6. Nos anos de 2003-2004, último biênio da pesquisa da autora no TJ-ES, a lógica manteve-se a mesma com
uma gradual queda dos mandados de segurança e um aumento considerável dos agravos de instrumento (em
2003, foram 62 impetrações e 2119 recursos de agravo; em 2004 foram 56 impetrações e 2602 agravos
interpostos). No mesmo biênio (2003-2004), foram interpostas 2752 e 3161 apelações, respectivamente.
7. Para uma abordagem mais ampla, com indicação de cada uma das mudanças realizadas no agravo a partir
dessas leis: (ESTEVES, 2010); (CUNHA, 2006); (SICA, 2006).
8. A doutrina entende, majoritariamente, que esta regra é aplicável às decisões proferidas em qualquer
audiência, desde que a hipótese de cabimento seja a do agravo retido. Nesse sentido: (CUNHA, 2006).
Contra o mencionado entendimento: (NEVES, 2010).
9. Por conta deste aspecto, SICA (2006) classificou tais leis de “contra-reformistas”.
10. Aqui é importante notar que os setores de catalogação de dados do TJ-BA, até a finalização da pesquisa,
em 2010, não faziam uma diferenciação das “classes” ou da matéria dos mandados de segurança impetrados
no tribunal. Com efeito, os dados apresentados na tabela acima referem-se a todos os mandamus impetrados
no tribunal, sejam eles de competência originária da Corte ou contra ato judicial.
11. Art. 963. Da sentença cabe apelação.
Parágrafo único. As questões resolvidas na fase cognitiva, se a decisão a seu respeito não comportar agravo
de instrumento, não ficam cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação,
eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões.
Art. 969. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: I – tutelas de
urgência ou da evidência; II – o mérito da causa; III – rejeição da alegação de convenção de arbitragem;
IV – o incidente de resolução de desconsideração da personalidade jurídica; V – a gratuidade de justiça;
VI – a exibição ou posse de documento ou coisa; VII – exclusão de litisconsorte por ilegitimidade; VIII – a
limitação de litisconsórcio; IX – a admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; X – outros casos
expressamente referidos em lei.
Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase
de liquidação de sentença, cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.
12. Também em 1939, a legislação brasileira enumerou taxativamente as decisões impugnáveis por agravo
144
A REVISTA DA UNICORP
de instrumento. A medida, além de conter pouco rigor técnico-científico, ao estabelecer o recurso cabível
não pela espécie da decisão, mas sim pelo seu conteúdo, causava diversos transtornos práticos, como
noticia WAMBIER(2006).
13. Lembremos que Alfredo Buzaid, em 1972, propôs o fim do agravo no auto do processo – vez que contra
todas as interlocutórias caberia agravo de instrumento. A reintrodução do recurso no sistema, com o nomen
juris de agravo retido, somente foi possível por força das discussões do projeto de lei no Congresso. Conf.:
(CARNEIRO, 2006).
14. O NCPC, mitigando o princípio da estabilização da demanda, possibilitará alterações objetivas e
subjetivas no processo, em contraposição às atuais regras dos arts. 294 e 303, III do atual CPC.
15. Tal situação, que provavelmente ocorrerá com a manutenção do texto, atentará contra a boa-fé
processual, como anotaram, em momentos distintos, DIDIER Jr. (2010) e ESTEVES (2006) ao comenta-
rem a relação entre irrecorribilidade e preclusão.
16. Lembremos, aliás, que a esmagadora maioria da doutrina entende que, caso o juiz não se retrate, não faz
qualquer sentido dar a palavra à outra parte, ante a absoluta ausência de prejuízo.
17. Contra este entendimento, ESTEVES (2006) entende que é desnecessário ter-se um recurso apenas para
evitar a preclusão. Para ela, a previsão de um prazo de resposta do agravo, por si somente, já ofenderia a
celeridade do processo. Sugere que se adote o “protesto” do regime processual trabalhista.
18. Art. 5º, LXXVIII: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
19. O NCPC contemplou algumas dessas hipóteses e excluiu outras tantas. Podemos citar como exemplos
de decisões interlocutórias que não mais comportarão agravo de instrumento: que apliquem multa equiva-
lente àquela prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC-73 a um terceiro; decisões que fixem os
honorários periciais; que versem sobre a substituição do perito por negligência, aplicando-lhe sanção; que
condenem a testemunha a responder pelo adiamento da audiência, decisão que resolve o incidente de
impugnação do perito (art. 423, do CPC-73); que tratem da prestação de contas do administrador judicial
(art. 919 , do CPC-73) Conf.: (DIDIER Jr., 2003); (DIDIER Jr., CUNHA, 2009).
20. Os dados foram coletados pela equipe de pesquisa da qual o autor fez parte, entre os meses de agosto e
setembro de 2010. Os dados a seguir representam uma amostra de cerca de 5% (cinco por cento) dos agravos
de instrumento interpostos no biênio 2008-2010.
21. A análise foi desenvolvida da seguinte forma: acessando o link “jurisprudência” do site do TJ-BA
(www.tjba.jus.br), os pesquisadores utilizaram o termo indexador “agravo de instrumento” no campo
destinado à “pesquisa livre”, preenchendo, também, o período analisado (jan. 2008 a jan. 2010). Para a
obtenção de uma amostra de todo o biênio analisado, bem como para evitar a coleta de dados de uma mesma
matéria, já que os relatores costumam julgar “em bloco” os recursos interpostos, subdividiu-se o biênio
investigado em seis quadrimestres, buscando extrair 5% do número global dos agravos interpostos em cada
período e disponibilizados na base de dados do SECOMGE–TJ-BA (segundo informações do mesmo sítio
virtual, o número total de agravos no período foi de 17.941 agravos de instrumento). Todavia, consideran-
do que o site não estava alimentado com todos os 17.941 recursos registrados no SECOMGE, somente foi
possível extrair o percentual de 4,7% dos agravos existentes – totalizando 833 recursos analisados.
22. Cabe lembrar que no grupo de causas envolvendo o Estado apenas duas hipóteses de cabimento foram
utilizadas pelos jurisdicionados: a necessidade de interposição do agravo de instrumento na execução (fiscal)
e a urgência.
23. Art. 54, do Código de Defesa do Consumidor: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido
aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou
serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.”
24. Art. 7º da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85): “Se, no exercício de suas funções, os juízes e
145
ENTRE ASPAS
tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças
ao Ministério Público para as providências cabíveis.”
25. A Lei Federal n. 12.153/2009 criou os Juizados Especiais da Fazenda Pública para as causas que
envolvem Estados e Municípios e que tenham valor inferior a 60 salários mínimos. Muitos estados ainda
não implementaram a medida, muito embora a vacatio legis de 06 (seis) meses já tenha se esgotado. A Bahia
é um desses Estados.
146
A (IN) FUNCIONALIDADE DO SISTEMA TORRENS
NO REGISTRO DE IMÓVEIS BRASILEIRO
A história da propriedade rural no Brasil inicia-se com um paradoxo, pois, antes mesmo
de serem descobertas, já pertenciam ao Rei de Portugal e eram alvo de cobiças e partilhas entre
Espanha e Portugal.
Segundo Novoa (2000, p. 21), essas duas nações realizaram diversos tratados diplomá-
ticos, dentre eles, o de Tordesilhas, em 1494, criando uma linha imaginária no continente sul-
americano, determinando que todas as terras descobertas ou que viessem a ser descobertas
pertenceriam ou a Espanha ou a Portugal.
As terras brasileiras formavam um imenso território e eram habitadas por indígenas.
147
ENTRE ASPAS
Aparentava não haver, aqui, qualquer riqueza que atraísse o comércio europeu1.
Para estimular esse comércio e aumentar o poder da Coroa Portuguesa sobre estas
terras, criou-se uma nova forma de exploração: as terras brasileiras foram divididas em grandes
parcelas, denominadas de “capitanias”, que foram doadas aos capitães donatários, através da
Carta de Doação e do Foral2, com a condição da indivisibilidade e da inalienabilidade3.
Por volta do ano de 1530, assegura Novoa (2000, p. 33), a Coroa Portuguesa iniciou o
processo de ocupação das terras “descobertas”4, utilizando o regime denominado “Sesmarias”5,
que consistia na obrigatoriedade de os colonos cultivarem as glebas de terras – que eram
recebidas pelo sistema de concessão dentro de um período de seis anos. Caso não o fizessem,
eram obrigados a devolvê-las para a Coroa.
As terras sem exploração e devolvidas para a Coroa eram denominadas terras devolutas6;
e o domínio pleno e perpétuo da propriedade era outorgado àqueles que cumprissem as obri-
gações estabelecidas, no prazo determinado.
O sistema que a princípio parecia harmonioso, com expectativa de grande êxito para sua
aplicação, não veio a frutificar, pois, cumprir as obrigações estabelecidas era difícil, devido às
dificuldades de locomoção, cultivo e povoamento (NOVOA, 2000, p. 27).
Algumas famílias desmotivadas e com dificuldades para iniciarem a exploração das
terras devolveram à Coroa suas glebas recebidas, outras, as abandonaram, e as famílias que
conseguiram permanecer não tiveram recursos financeiros para legitimar as posses.
Surgiu uma nova situação, não permitida pelo Rei, na qual terceiros, de forma clandes-
tina, vieram a ocupar glebas de terras menores, inclusive formando pequenos povoados. Por
esta razão, segundo Novoa (200, p. 44), no Governo de José Bonifácio de Andrade e Silva, em
17 de julho de 1822, pela Resolução 76, resolveu-se suspender a concessão de Sesmarias.
Durante quase trinta anos, a propriedade de terra ficou sem qualquer regulamento,
havendo, nesse período, quase uma ausência do Estado. Isto estimulou posses clandestinas
e contribuiu para o aumento dos conflitos. Esse vácuo normativo ficou conhecido, segundo
Marques (2007, p. 24), como “Regime das Posses”, ainda em suas palavras, um “período
anárquico”.
Nas palavras de Erpen e Paiva (2004), o sistema imobiliário estava confuso e deficien-
te. Havia um vácuo normativo que só veio a ser regulado, em 18 de setembro de 1850, com a
promulgação da Lei nº 601, denominada Lei de Terras do Império, esta, regulamentada pelo
Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854.
Essa lei, segundo Marques, teve como objetivo:
A Lei de Terras se propunha a trazer uma nova perspectiva quanto à legitimação das
148
A REVISTA DA UNICORP
posses, principalmente porque direcionou para o ordenamento jurídico aquele período anár-
quico, impondo direitos e obrigações7.
Entretanto, os resultados não foram satisfatórios devido a vários fatores, entre eles:
escassez de pessoal habilitado para realizar o serviço burocrático; elevadíssima quantidade de
áreas de posse para delimitar as terras devolutas; falta de infraestrutura e longa distância para
realizar os trabalhos. Além do que, a lei dispunha que a única forma legal de aquisição do
imóvel seria através da compra e, em face do preço elevado, os menos favorecidos financeira-
mente, apesar de terem as suas posses cultivadas, não tiveram condições de adquirí-las.
Mas, e como o Estado deveria agir no tocante a normas que garantissem o registro e a
transmissão de imóveis com a maior seguridade?
No final do século XIX, apresentaram-se os Decretos 169-A de 19 de janeiro de 1890,
que substituiu a lei e o regulamento hipotecário, e 451-B de 31 de maio de 1890, regulamentado
em 05 de novembro do mesmo ano pelo Decreto 955-A. Esse último institui o Sistema Torrens
no Brasil, adjetivado hoje como vetusto, esdrúxulo, inapropriado, anacrônico.
Desta forma existem no Brasil dois sistemas de registro de imóveis: o primeiro, obriga-
tório, elencado no artigo 1245, parágrafo 2º do Código Civil de 2003, onde a presunção é
relativa e o outro, facultativo, o Registro Torrens de presunção absoluta.
Ato contínuo é de conhecimento público que os proprietários das terras quando efeti-
vam suas aquisições através do registro imobiliário acreditam que estas estejam livres de ações
que possam discutir esses direitos. Mas não é essa a realidade, a exemplo da Amazônia Legal,
a qual tem sido objeto de discussões acerca da indefinição dos direitos sobre as terras, perpas-
sando processos fraudatórios, grilagens8 e posses ilegais, títulos sem registro e, contribuindo
consequentemente para os conflitos de terra?
Afirmando com Novoa (2000) que, a ocupação das terras no Brasil ocorreu de forma
desestruturada e, seus reflexos históricos se fazem visíveis até a atualidade, o presente traba-
lho intitulado a (in)funcionalidade do Sistema Torrens no registro de imóveis brasileiros se
justifica, haja vista as inúmeras ações reivindicatórias que discutem o direito de propriedade
no judiciário brasileiro.
Boa parte desses reclames reivindicam fraudes em áreas ocupadas indevidamente,
grilagens, posses ilegais, emissão de títulos não registrados, o que coloca em questão a
seguridade dominial9.
Lato sensu, estudar o Registro Torrens implica, por um lado, buscar a promoção da
regularização fundiária no Brasil, haja vista, sua força probante absoluta não admitindo prova
em sentido contrário, tornando o imóvel insuscetível de reivindicação e garantido pelo Estado
e, por outro lado, o desenvolvimento socioeconômico do país, mediado pela segurança dos
direitos, a certeza, a previsibilidade, dada a inatacabilidade do título de domínio, viabilizando
sua utilização como instrumento de crédito.
Neste sentido, importa também destacar a validade de estudos como o presente, pois,
ao discutir o sistema registral brasileiro, latu sensu, também se problematizam as questões da
reforma agrária, a ação de grileiros, busca-se fornecer dados precisos para a tributação das
terras, possibilita-se planejamentos estratégicos de infraestrutura no país, a saber, a eletrifica-
ção, a construção de barragens hidrelétricas e estradas. Sem esquecer-se de que, tudo isso,
num país em que, segundo Décio Antônio Arpen e João Pedro Lamana, em seu “Panorama
Histórico do Registro de Imóveis no Brasil”, “cerca de 40% das propriedades ocupadas, com
situação jurídica consolidada, não são tituladas”10.
Para tanto, neste estudo, inicialmente se fará um histórico abordando o registro de
149
ENTRE ASPAS
imóveis no Brasil até a atualidade. O segundo capítulo versará sobre o registro de imóveis
tradicional, ressaltando sua aplicabilidade e sistemática. Em seguida, apresentar-se-á a Lei de
Registro Torrens, abordando sua sistemática, aplicabilidade e procedimentos. Em capítulo
final, discute-se a (in)funcionalidade do Sistema Torrens, problematizando o seu desuso no
Brasil. Por fim, será ressaltada a importância desse sistema e sua adequação para o que se tem
chamado de “o futuro do Sistema Torrens”.
No Brasil, até a promulgação do Código Civil de 1916 o domínio do imóvel era adquirido
por tradição. Passava-se a ser dono logo que se efetivava a vontade de transferir o bem. Era a
justiça natural que prevalecia. Este princípio de aquisição pela tradição era consubstanciado
no livro 4º, Título 7º das Ordenações do Reino e no Alvará de 4 de setembro de 1810 que dispõe:
“(...) por meio da tradição passa o domínio para o comprador” (PEREIRA, 1924, p.39).
Da mesma forma no Parágrafo 1º do Título 5º do Código Filipino: “(...) o comprador for
entregue da coisa comprada e pagar o preço, ao vendedor, ou oferecer, logo é feito dela
senhor” (PEREIRA, 1924, p.94).
Conforme previa Teixeira de Freitas criador da Consolidação das Leis Civis de 1858, no
seu Artigo 908: “Para aquisição do domínio não basta simplesmente o título, mas, deve aceder
a tradição; e, sem esta, só se tem direito a ações pessoais” e no Artigo 909, “A tradição consiste
na efetiva entrega da coisa, a que se segue ao ato da posse [...]”.
Com a aceleração do comércio, houve necessidade de facilitar as relações da vida civil,
para a qual criou-se o Constituto Possessório, em que a real entrega da coisa passou a ser
realizada pela tradição simbólica, ou seja, apesar da sua prática ser conhecida desde tempos
remotos, não havia previsão legalmente expressa. Ao adquirir o imóvel o comprador mesmo
sem receber a coisa, adquire a posse sobre ela. Ele a tem de forma ficta (PEREIRA, 1924, p.118).
Ambas não traziam qualquer publicidade na transmissão do domínio (BORGES, 1960, p.13).
Essa falta de garantia do credor hipotecário trazia total insegurança nas transações
imobiliárias bancárias. Segundo Borges (2007, p.20), já se sentia necessidade de criar um con-
trole de registro permanente para o imóvel, pois da forma como estava, além da insegurança
que trazia àqueles que emprestavam sob hipoteca, os próprios adquirentes de imóveis estavam
sujeitos a fraudes.
Em 21 de outubro de 1843, já no período do Império, foi promulgada a Lei nº 317,
denominada Lei Orçamentária – regulamentada pelo Decreto nº 482, de 14 de novembro de 1846
–; e pelo seu artigo 35, criou-se o Registro da Hipoteca, nascendo, assim, a primeira forma de
registro no Brasil. Porém, esta forma de registro se limitava apenas ao registro das hipotecas.
A Lei recém-promulgada não disciplinou quanto às transações imobiliárias. As terras
eram registradas pelos Tabeliães, apenas para garantir o crédito dos empréstimos bancários.
Assim “o registro geral de hipotecas foi criado com a finalidade exclusiva de tornar a terra a
base para o crédito”11 (MELO, 2009).
Em 24 de setembro de 1864, pela Lei nº 1237, ampliam-se as funções do Cartório de
Registro da Hipoteca, passando a admitir-se, de forma facultativa, o registro da transcrição dos
títulos de transmissão dos imóveis por atos inter vivos e a constituição de ônus reais. Essa lei
foi regulamentada pelo Decreto nº 3.453, de 23 de abril de 1865, e modificada pelos Decretos nos
169-A, de 19 de janeiro de 1890, e 370, de maio de 1890.
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A REVISTA DA UNICORP
[...] entre outras coisas, instituiu o registro de imóveis por ato inter vivos
e a constituição dos ônus reais (art. 7°); declarou que a transmissão não se
operava em favor de terceiros, a não ser pela transcrição, [...]; exigiu a
escritura pública como da substância do contrato e sua inscrição no regis-
tro, para valer contra terceiros; instituiu a prenotação e enumerou,
taxativamente, os ônus reais, sujeitando-os à transcrição (ARRUDA,
2002, p. 42).
Em 26 de abril de 1865, pelo Decreto nº 3453, conforme relata Santos (2006), foi criado o
cargo de oficial do registro de imóveis, tendo Eulalio da Costa Carvalho como o primeiro Oficial
de Registros do Brasil12.
Em 18 de setembro de 1850, com a Lei de Terras (Lei 601), regulamentada pelo Decreto nº
1318, de 30 de janeiro de 1954, criou-se o Registro Paroquial, conhecido como “o Registro do
Vigário”, cuja finalidade era legitimar a aquisição pela posse.
Esses registros eram realizados, de forma unilateral pelas declarações dos posseiros, e
recebidas pelos vigários de cada uma das freguesias do império, que as numerava em livros
posteriormente remetidos para o Delegado Diretor Geral das Terras Públicas da Província
respectiva, para formar o registro geral das terras fornecidas.
Destaque-se que esses títulos concedidos pelos vigários das paróquias, ficaram com-
pletamente dispersos, sem qualquer vínculo com o título anterior, resumindo-se apenas a uma
simples transmissão de posse, dando origem a alienações sem qualquer princípio basilar. Daí a
proposição de Diniz (2007, p. 79), segundo a qual, esse sistema era extremamente inseguro,
pelo fato de não haver uma continuidade da transmissão.
Desta mesma forma, “o Registro do Vigário não pode ser considerado como registro de
imóveis, pois esse tipo de registro tem características exclusivamente de atividade notarial13 e
não registral14” (JACOMINO, 2009).
Resumidamente, portanto, segundo Erpen e Paiva (2004) as propriedades estavam
desprotegidas, pois o sistema imobiliário além de confuso era deficiente, tendo suas raízes no
sistema registral no Decreto nº 482, de 14 de novembro de 1846.
Visando por fim a estas incertezas, o governo adotou novas medidas, dentre elas desta-
cam-se o Decreto nº 169-A de 19 de janeiro de 1890 que substituiu a lei e o regulamento hipotecá-
rio, e o Decreto nº 451-B de 31 de maio de 1890, que estabelece o registro e transmissão de imóveis
pelo sistema Torrens, regulamentado em 05 de novembro do mesmo ano pelo Decreto nº 955-A.
Em relação ao sistema de registro hipotecário, Decreto nº 169-A de 19 de janeiro de 1890,
segundo instrui Carvalho (1976, p. 14), “também, não deu os resultados esperados por lhe
faltarem os requisitos de especialidade e publicidade”.
Também, segundo Diniz (2007, p. 36), esse sistema era extremamente inseguro, pois não
havia um critério para garantir o princípio da continuidade. Na descrição do imóvel, não se
identificava a origem do título aquisitivo de forma a dar continuidade às transmissões através
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ENTRE ASPAS
da sequência dos números de registro de aquisição, o que dava origem a sucessivas aliena-
ções clandestinas. Esta Lei vigorou até a chegada do Código Civil de 1916.
Com o advento da Lei nº. 3.017, de 01 de janeiro de 1916 (Código Civil de 1916) pelos
artigos 859 e 860, operou-se uma novidade para o registro imobiliário, referente à tradição da
propriedade rural. Passou a ser obrigatório o registro das transcrições, das transmissões e dos
direitos reais sobre coisa alheia para validade contra terceiros.
Segundo Borges (2007, p. 31), aquele que recebia o bem e o registrava no Cartório de
Registro de Imóveis tornava-se legítimo proprietário. Com isso, ocorreu uma melhoria no sistema.
Entretanto, esse registro trazia uma forma relativa de direito, presumia-se pertencer o
direito real ao nome daquele que se inscreveu até prova em contrário. Assim prescrevia a Lei:
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ENTRE ASPAS
tório e as regras a que estão sujeitos os registradores imobiliários quanto ao uso de documen-
tos eletrônicos em suas atividades. Com esse dispositivo legal, é possível assinar contratos,
procurações, relatórios diversos, códigos fontes, scripts, fotografias, reportagens, projetos
arquitetônicos, petições, mandados judiciais, balanços, declarações de impostos, prontuários
médicos, entre outros documentos, sendo indispensável para conferir validade jurídica ao
documento eletrônico.
Mais recentemente, a Lei nº 11.977 de 7 de julho de 2009, comumente conhecida como
Minha Casa Minha Vida, no seu capítulo III, dispõe sobre a “regularização fundiária e assenta-
mentos urbanos” visando à “regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus
ocupantes”.
Novas perspectivas aparecem no cenário nacional com a edição de evoluídas normas
legislativas, aperfeiçoadas de modo a adequarem-se à realidade tecnológica de levantamento e
gerenciamento de dados, capazes de revolucionar os sistemas de registros e controle de dados
imobiliários do País. Desta forma, o sistema brasileiro de registro de imóveis tem acompanhado
os anseios sociais e as evoluções das tendências mundiais.
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A REVISTA DA UNICORP
Dentre as exigências desta Norma Técnica está a obrigatoriedade da medição para deter-
minação dos limites das propriedades rurais a serem realizadas pelo método de Georreferenciamento
do Sistema Geodésico Brasileiro numa precisão de até 50 centímetros. Precisão esta considera-
da pelos técnicos como sendo uma técnica de alta perfeição. Para cumpri-la devem ser utiliza-
dos equipamentos ultra modernos e profissionais altamente capacitados.
A certificação do imóvel rural é o documento final expedido pelo INCRA que trás a
declaração de que determinado perímetro do imóvel não se sobrepõe a nenhum outro existente
no seu cadastro fundiário.
Para chegar a esta conclusão é necessário um processo administrativo requerido pelo
proprietário do imóvel ao INCRA, o qual deve vir acompanhado, além de todos os documentos
que comprovam a legitimidade da área através do registro no Cartório de Registro de Imóveis
competente, ainda do relatório técnico que demonstra o tipo de serviço executado, as preci-
sões obtidas, tipos de marcos utilizados para delimitar o perímetro em campo, modelo e relação
dos equipamentos, planilhas de cálculo, cadernetas de campo, declaração das propriedades
vizinhas com os respectivos proprietários, arquivo digital dos arquivos de campo gerados pelo
instrumento de medição, plantas, memoriais descritivos assinados por profissional habilitado
e a respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), com as coordenadas dos vérti-
ces definidores dos limites do imóvel, georreferenciadas pelo Sistema.
Uma vez que toda esta documentação seja entregue ao INCRA, será apreciada pelo
Comitê Regional de Certificação, o qual, obrigatoriamente é composto por técnicos das áreas
de cartografia e cadastro rural, conforme Portaria INCRA/P 514, de 01/12/2005. Depois de
sanadas todas as possíveis irregularidades encontradas nas peças técnicas e não ocorrendo
sobreposição de área, o arquivo digital do perímetro do imóvel deverá ser inserido no banco
de dados Cartográficos do INCRA. Ao final, será expedida a certificação do imóvel, na qual
constará o número de todas as matrículas ou transcrições que compõem a área total do
imóvel objeto da Certificação, bem como um único código no Serviço Nacional de Cadastro
Rural (SNCR).
Mesmo assim, só entrará no assento registral após proceder a processo de retificação
da matrícula, pois, em regra as informações constantes devem estar desatualizadas. Tal altera-
ção torna-se exequível através de processo especial, sendo neste sentido, observada a Lei nº
10.931 de 02 de agosto de 2004 que permite a retificação pela via administrativa. De todo modo,
pontue-se que, anteriormente a esta Lei só se era permitida a retificação da matrícula através de
procedimento judicial.
Contudo, crê-se importante atentar para o que ensina Paiva (2005) acerca do Sistema de
Registro Comum, ou seja, que mesmo após extrema precisão e total burocracia, este sistema
não reconhece limite de propriedade, uma vez que seu escopo busca auferir apenas, a localiza-
ção, a medida perimetral, as confrontações, e a sobreposição de áreas de acordo com o cadas-
tro do órgão.
Além do que, a atividade registral é atividade administrativa-judiciária, constitutiva
apenas, não purgando quaisquer vícios acaso existentes no processo de transmissão. Deste
modo, é factível que um detentor de um imóvel com registro comum possa ser demandado com
eventual ação de evicção, reivindicação, reclamação ou protesto.
Em outras palavras, haja vista que o Sistema de Registro Comum, regido pela Lei de
Registros Públicos, em seus artigos 167 a 276, concebe presunção juris tantum de dominío, ou
seja, presunção relativa, sendo cabível prova em contrário, é possível retificação ou cancela-
mento de registro ao se comprovar erro ou vício no negócio empreendido.
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Segundo ensina Borges (1957, pg 24-39), tem o Sistema Torrens as seguintes características:
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Assim, o Registro Torrens veio trazer uma novidade no direito brasileiro, qual seja, depois
de registrado, outorga à propriedade força formal em prova absoluta, juris et de jure, estendendo
à propriedade territorial vantagens da riqueza imobiliária, facilitando “a circulação da proprie-
dade estável por meios simples, expeditos e baratos, dando ao ato de aquisição dos imóveis o
caráter de verdadeiro título de crédito, transferível por endosso” (BARBOSA, 1891, p. 295).
Apoiando-nos ainda nas palavras do ilustre Rui Barbosa:
Fica claro que, o Sistema Torrens, resultado de um contencioso especial, ou seja, de inter-
venção judicial, confere ao portador um título de matrícula expurgado de impugnações anteriores.
Em outros termos, ao mesmo tempo em que a posse é constitutiva, é também legitimadora, e,
por essa razão, concede maior valor ao imóvel do que o sistema comum que tem presunção relativa.
Sendo absoluto no caso de perda da propriedade, o Estado é obrigado a indenizar o proprietário
do bem. Para corroborar, destaque-se a legislação: “nenhuma ação de reivindicação será cabível
contra o proprietário de imóvel matriculado” (Art. 75 do Dec. 451B e Art. 128 do Dec. 995A).
Fica-nos evidente que o interesse de Rui Barbosa era promover um sistema que estives-
se mais em consonância com a sua época, ou seja, com a evolução e demandas do capital, do
comércio e da democracia. Não obstante, defendia o ministro:
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ENTRE ASPAS
Desta forma, pontue-se que o Sistema Torrens se encontra totalmente aplicável, poden-
do ser utilizado pelo proprietário de forma facultativa, já que existe a obrigatoriedade pelo
Sistema Comum. Em outros termos, o proprietário pode optar quando da aquisição do seu
imóvel após fazê-lo pelo sistema comum, também, requerer o Torrens.
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– o INCRA que após análise dos serviços técnicos e do cadastro fundiário expediu a certificação
da não sobreposição das linhas de divisa com nenhum outro imóvel de terceiros;
– pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis que após criteriosa qualificação registral
efetuou o registro.
Tornou-se, portanto, muito mais difícil para o proprietário efetivar o registro do seu
imóvel por meio do registro comum, ainda sem a segurança necessária.
Comparando-se os dois sistemas, apresenta-se o seguinte quadro:
Isto posto, faz-se coro com Erpen e Lamana (2004) ao observar que “uma transação
imobiliária se constitui numa aventura jurídica pelos riscos que contém”, de modo que, não é
de interesse deste trabalho questionar o Sistema de Registros Comum e encontrar um lugar a
salvo para o Registro Torrens.
Todos os sistemas de registros apresentam falhas, equívocos e apresentam problemas
dada a referência de análise. Contudo, é no mínimo exótica, a convivência com dois sistemas de
registro imobiliários em um dado país. Para além se deve vencer a questão do tempo. A moro-
sidade imposta gera desconfianças e certa instabilidade no sistema.
Ato contínuo, por que o desinteresse pelo Registro Torrens? Salienta-se que apesar da
segurança que o Torrens outorga ao proprietário do imóvel, ainda há desconhecimento sobre
seu instituto, sobre seus benefícios, há um mito em torno de altas custas para sua efetivação,
além dos trâmites necessários à sua formalização.
Questione-se, no entanto, se não ocorre aproximadamente o mesmo com o Sistema de
Registro Comum. Com uma diferença fundamental, este sistema não outorga garantia absoluta,
sendo passível de ação judicial. Apenas o Sistema Torrens gera presunção absoluta, pondo
término à instabilidade dos direitos dominiais.
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Considerações finais
Neste mesmo contexto, “a questão da Segurança oferecida pelo Sistema Registral Bra-
sileiro é de suma importância e gera reflexos em todas as áreas de atuação do Estado, seja ela
política, econômica ou social” (SANTOS; PIRES, 2006).
A segurança trazida pelo Registro de Imóveis é extremamente importante para garantia
da propriedade. Entretanto, o sistema atual utilizado no Brasil, por mais evoluído que esteja
não tem o condão da eficácia absoluta como ocorre com o Registro Torrens. Um passo à frente
deverá ser dado. É o que se poderá chamar de “o futuro do Sistema Torrens”.
Referências ________________________________________________________________________
BARBOSA. Rui. Lei Torrens. In Obras Completas de Rui Barbosa. Relatório do Ministro da Fazenda. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Vol. XVIII, T. II, 1891.
163
ENTRE ASPAS
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em 04 fev. 2012.
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dores: comentada. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
BRASIL. Decreto nº. 4449, de 30 de outubro de 2002. Disponível em: 2012 < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/2002/d4449.htm> Acesso em 04 fev.
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A REVISTA DA UNICORP
CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e dos registradores: comentada. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Sistemas de Registros de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1992.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol 2.Saraiva. São Paulo, 1998.
ERPEN ,DÉCIO ANTÔNIO, JOÃO ; PAIVA, PEDRO LAMANA. Registro Torrens Brasileiro e o Sistema
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República Dominicana - de 22 à 26 de março de 2004. Disponível em: http://www.lamanapaiva.com.br/
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Notas de aula.
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Imobiliário do Brasil, n. 318, set-out 2004.
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, nova abordagem. 5. ed. Rio Branco: Editor
Carlos Alberto Alves de Souza, 2007, p. 24-25.
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto Consolidação das Leis Civis. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876.
Notas ______________________________________________________________________________
1. Para Imparato (2001, p. 278), “Nossos nativos viviam principalmente da caça e da pesca e eram,
essencialmente, nômades. Assim, exceto as pequenas culturas de mandioca e milho, as terras eram virgens”.
Ampliando um pouco a questão, encontra-se em Souza (2007, p.24-25): “Existem dados de que a Amazônia
foi povoada por índios desde 31.500 antes de Cristo. Os grandes troncos-linguísticos que habitavam a Amazô-
nia até a chegada dos portugueses em 1616 eram: Aruak, Karib, Tukano, Pano e Jê. Segundo os estudos
realizados por linguístas, na Amazônia existiam cerca de 718 línguas entre 6 grandes troncos-linguísticos
indígenas. (…) Com a invasão dos portugueses à Amazônia, houve uma migração muito grande de grupos
indígenas que, fugindo da escravidão, procuravam as cabeceiras dos rios afluentes do Rio Amazonas”.
2. “Carta de lei pela qual o monarca regulava a administração de terras conquistadas, lançava tributos e
concedia privilégios a indivíduos ou corporações” (DINIZ, 1998, v. 2, p. 576).
3. Capitanias porque o seu titular era denominado “capitão” e hereditárias porque poderiam ser transferidas
por sucessão.
4. A palavra descoberta é usada neste texto apenas para mostrar o paradoxo que existe na história do Brasil,
pois, antes de ser “descoberto”, o Brasil já pertencia ao Rei de Portugal.
5. O regime das Sesmarias, no Brasil, quando da sua implementação, já era utilizado em Portugal, pela criação
da Lei de Sesmaria, de 26 de junho de 1365, baixada por D. Fernando I, rei de Portugal à época (NOVOA,
2000, p. 22).
6. A Lei Imperial n. 601, de 1850 determinou: Artigo 3º - São terras devolutas: § 1º – As que não se aharem
aplicadas a algum uso público, nacional, provincial ou municipal. § 2º – As que não se acharem no domínio
particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do governo
geral ou provincial não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de mediação, confir-
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A REVISTA DA UNICORP
mação e cultura. § 3º – As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões de governo, que,
apesar de incursas em comisso forem revalidadas por esta lei. § 4º – As que não se acharem ocupadas por
posses que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por lei.
7. Dentre outras disposições, essa Lei estabelece mecanismos e processos discriminatórios para separar as
denominadas “terras devolutas” das terras dos particulares. O Artigo 3º da Lei de Terras conceitua como terras
devolutas: § 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal; § 2º As
que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras
concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições
de medição, confirmação e cultura; § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apesar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei; § 4º As que não se acharem
ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
8. Grilagem significa “aquele que procura apropriar-se de terras que pertencem a outrem fazendo uso de
escrituras falsas” (DINIZ, 1998, p.683).
9. É preciso levar em conta as palavras do Procurador do Estado de São Paulo, Ary Eduardo Porto, em texto
intitulado “Aspectos de Dominialidade”, segundo as quais, haveria uma série de fraudes demandando a atenção
judicial, tais como: “a descrição de imóveis alheios em inventário e sua consequente partilha e lançamento no
mundo dos negócios; a execução graciosa, por conluio entre o exequente e executado, de imóvel não perten-
cente a este e a resultante arrematação em hasta pública; a divisão de imóvel alheio e a venda ulterior dos seus
quinhões; a venda da totalidade de um imóvel pelo condômino, como marido, que, fazendo-se passar por
solteiro, burlava a legítima dos filhos, obrigados depois a promover a nulidade parcial da venda, enquanto o
imóvel era passado adiante ou submetido a inscrição no registro Torrens; a usurpação de imóveis alheios na
delimitação periférica do imóvel submetido a inscrição no Registro Torrens. Cf. http://www.pge.sp.gov.br/
centrodeestudos/bibliotecavirtual/regulariza2/doutrina1.html
10. http://www.lamanapaiva.com.br/mostra_novidades.php?id_novidades=85&id_noticias_area=1.
11. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina /texto.asp?id=5669>. Acesso em: 11 out. 2011.
12. Eulálio da Costa Carvalho foi o primeiro oficial do 1º Cartório de Registro de Hypothecas e Geraes da
Comarca de São Paulo. Nasceu na Bahia, em 12 de fevereiro de 1833, e faleceu em São Paulo, em 14 de janeiro
de 1912. Recebeu o cartório de seu tio, José da Costa Carvalho que por sua vez era presidente da Província.
13. Notarial é a atividade de “agente público, autorizado por lei, de redigir, formalizar e autenticar, com fé
pública, instrumentos que consubstanciam atos jurídicos extrajudiciais do interesse dos solicitantes [...]”
(CENEVIVA, 2006. p.22).
14. Registral são atividades, via de regra, dedicadas ao “assentamento de títulos de interesse privado ou público,
para garantir a oponibilidade a todos os terceiros, com a publicidade que lhes é inerente [...]. Tem como finalidade
constituir ou declarar o direito real, através do assentamento do título respectivo, produzindo efeitos dotados
de segurança jurídica, gerando efeitos erga omnes até prova em contrário” (CENEVIVA, 2006. p. 22).
15. Como referência acerca de estudos sobre “matrícula” vale reportar-se à contribuição de Sérgio Jacomino,
“Registro e cadastro - Uma Interconexão Necessária”, disponível em http://www.quinto.com.br/artigos_31.htm.
Neste texto, nos ensina o doutrinador que: “O conceito de matrícula no registro imobiliário entre nós foi sendo
joeirado pela contribuição sistemática de inúmeros estudiosos ao longo do tempo, desde o advento da Lei 6015/
73, até os dias de hoje. A comunidade de estudiosos do direito registral permitiu fixar, com razoável precisão, o
conceito jurídico de matrícula”. Neste sentido, acompanha-se neste trabalho, a reflexão de que matrícula é “”um
ato de registro, no sentido lato, que dá origem à individualidade do imóvel na sistemática registral brasileira,
possuindo um atributo dominial derivado da transcrição da qual se originou”. Também destaque-se que a ocorrên-
cia primeira da expressão se dá no Decreto 451-B de 31 de maio de 1890 , que em seu artigo 10º rezava: “Terá
o official um registro, em livros de talão, denominado – matriz –, no qual fará as matriculas, com declaração de
todas as clausulas dos actos, que gravarem os immoveis, lavrando assento especial para cada imóvel.”
167
ENTRE ASPAS
16. Encontra-se em trabalho intitulado “A questão de terras no início da República: o Registro Torrens e sua
(in)aplicação” de Almir Sanches (2008, p. 162), elucidativo trecho que ora recortamos: “É nesse contexto
que surge a tentativa de reforma liberal de Rui Barbosa. Critico contumaz da política de Auxílio à Lavoura.
Rui Barbosa vê na consolidação e no alargamento do crédito hipotecário uma peça-chave de sua reforma.
Inspirado na transição para o capitalismo pela via farmer, modelo de desenvolvimento agrário desenvol-
vido pelos países novos, de fronteiras abertas, em especial pelos Estados Unidos, Rui Barbosa pretendia
inserir definitivamente a propriedade de terras na esfera de circulação de capitais, com a consequente
valorização do mercado de terras e a decorrente idoneidade da propriedade imóvel como garantia hipote-
cária. Rui Barbosa não ignorava que, para tanto, se fazia necessária uma profunda reforma no sistema de
registro imobiliário brasileiro. E é exatamente aqui que o sistema de Registro Torrens entra como impor-
tante elemento de sua tentativa de reforma”.
17. Decreto disponível em http://arisp.files.wordpress.com/2009/06/decreto-451-b-de-31-de-maio-de-1890.pdf.
18. Exposição de motivos (1890, p. 01).
19. Exposição de Motivos (1890, p. 03).
20. Questionamentos dessa monta se reportam à vigência da Constituição de 1891. Já naquele momento,
alguns juristas entendiam a inconstitucionalidade do sistema e acolhiam a tese de omissão no Código Civil
Brasileiro de 1916, ato contínuo, que estaria revogado. Porém, em 1917, com a Lei nº 3.446 de 31 de
dezembro de 1917 (Lei Orçamentária) no seu artigo 90, parágrafo 1º, ficou declarado o Registro Torrens para
por fim à dúvida. Já o Código Civil de 1939 veio limitar o Registro Torrens, determinando seu escopo apenas
sobre os imóveis rurais. O Código de Processo Civil de 1973 no seu artigo 1218, inciso IV e a Lei 6015 de 31
de dezembro de 1973 (Lei de Registros Púbicos) nos artigos 277 a 288 o acolheram, mas limitando-o ao
Registros de Imóveis rurais, não mais existindo para os imóveis urbanos.
21. Cf. http://www.jusbrasil.com.br/topicos/1947906/acao-de-demarcacao-de-imovel-rural.
22. http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18718429/embargos-de-declaracao-no-agravo-regimental-no-
agravo-de-instrumento-edcl-no-agrg-no-ag-848856-go-2007-0003318-0-stj/relatorio-e-voto.
23. Cf. http://www.irib.org.br/beta/html/boletim/revista.php?pubcod=36
24. Cf. http://www.irib.org.br/beta/html/boletim/boletim-detalhe.php?be=590
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A NÃO-OBRIGATORIEDADE DA ADAPTAÇÃO FÍSICA DO TRANSEXUAL
PARA A PROMOÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE DE GÊNERO
1. Introdução
O Direito foi criado com o múnus de regular as ações dos indivíduos de uma mesma
sociedade, possibilitando a estes o exercício de suas liberdades sem que isso signifique,
contudo, a mitigação desarrazoada das prerrogativas de outrem. Em contrapartida, é a socieda-
de que confere legitimidade para o Direito, porquanto a sua força emane do quanto haja
integrado em seu texto do pensamento social, sobremaneira das convicções dos atores sociais
majoritários.
Não se pode, porém, subverter a utilidade primeira do Direito, transformando-o em
169
ENTRE ASPAS
instrumento de opressão e sofrimento aos grupos minoritários que não se encaixam em concei-
tos universalizados de conduta, reguladas segundo padrões pré-definidos de normalidade.
Neste contexto, os princípios jurídicos servem de catalisadores de valores humanitári-
os no ordenamento, e, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana tem chamado a
atenção a novos (ou não tão novos, mas antes desprestigiados) pensamentos, ganhando
relevo a necessidade de respeito à pluralidade de opiniões, crenças, sexos, desejos, estimas,
havidas no seio da sociedade.
Daí surge o fortalecimento das minorias e de suas reivindicações pela satisfação de
anseios primários: reconhecimento jurídico e equalização de oportunidades sociais. Com os
transexuais não é diferente. Erguendo como estandarte o direito de ser quem entendem ser, e
não o que seus corpos externalizam, militam pela possibilidade de assumirem juridicamente
suas identidades psicológicas, rompendo com os padrões naturais heterocentrados.
Moroso na discussão sobre a situação jurídica desta minoria, o Poder Legislativo dele-
ga, tacitamente, ao Judiciário a solução casuística dos problemas que cotidianamente se apre-
sentam, o qual, embora hesitante e sob pressão, vem gradualmente posicionando-se de modo
favorável ao respeito às particularidades da condição transexual. No entanto, carece o Direito
de uma teoria da transexualidade, que demonstre para a efetivação dos direitos dos indivíduos
transexuais.
Propõe este trabalho, justamente, fomentar uma construção doutrinária, demonstrando
que a patologização do transgênero não responde aos questionamentos desta minoria – mas
sim da maioria ideologicamente centrada no dimorfismo biológico de gêneros – e, por fim,
asseverando a impossibilidade de condicionarmos direitos personalíssimos como o nome e a
identidade à abdicação de outros direitos, como o da integridade física e psicológica.
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“desde que o gênero passou a ser uma categoria diagnóstica, no início dos
anos 1980 (4ª. versão do DSM), é a primeira vez que ocorre um movimento
globalizado pela retirada da transexualidade do rol das doenças identificáveis
como transtornos mentais” (BENTO, 2006, p. 89).
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pleito recursal foi dado provimento parcial, por maioria de votos, vencido o relator, um
transhomem de nome civil “Sara”, vitoriosos em seu pedido de correção do prenome para
“Sandro”, pugnava em sede recursal também a troca do gênero constante na certidão de
nascimento para “masculino”.
Em seu voto, no sentido da inteira procedência do pedido do apelante, o presidente e
relator Rui Portanova apresentou sua argumentação em duas etapas. Na primeira, de ordem
lógico-jurídica, assevera que, após transitado em julgado em primeira instância o deferimento
do pedido de troca do nome feminino para o masculino, só restaria ao Tribunal efetuar a
correspondência entre o novo prenome e o gênero nos assentos de registro civil, porquanto
seja inadmissível o registro de um prenome evidentemente masculino para uma pessoa do
gênero feminino. Isto porque a lei sugere a congruência entre nome e gênero, de forma a evitar
que o registro seja fonte de constrangimentos e situações vexatórias à pessoa.
Numa segunda etapa, o douto desembargador tece críticas à imposição da chamada
terapia de adequação cirúrgica como requisito à aquisição do direito de ter o nome e o gênero
retificados no registro civil, sugerindo que a cirurgia não serve à confirmação do próprio
transexual sobre o seu sexo, servindo antes de método de convencimento do juiz para que este
lhe conceda o direito de o transexual ser quem já entende ser e como já se apresenta em
sociedade. Para o relator desembargador Rui Portanova, o critério mais adequado de identifica-
ção do gênero do indivíduo e a colheita das provas de identificação social, e, somada a estas,
a utilização do recurso da perícia psicológica.
No entanto, não foi este o voto vencedor, mas o do desembargador revisor e redator do
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acórdão Luiz Felipe Brasil Santos, o qual deu procedência parcial ao apelo, para retificação
do gênero no registro civil de “Sandro” com a indicação de que se trata de indivíduo transexual.
Em seus fundamentos, atem-se o julgador às bases biológicas de distinção do gênero, indi-
cando como perplexidade a ser evitada pelos operadores do direito conceder à condição de
“masculino” quem ainda possua estrutura genital e orgânica para a “maternidade”. Segue,
ainda, em seu discurso, asseverando que a averbação da condição transexual na certidão de
nascimento não acarretaria qualquer reflexo deletério à pessoa, pois os documentos oficiais
de identificação (célula de identidade, carteiras de trabalho e de motorista, passaporte) não
fazem menção ao gênero.
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de alteração do nome para permitir uma melhor correspondência entre o nome do indivíduo e a
forma como é conhecido em suas relações interpessoais, dispostas aos arts. 57 e 58.
No que concerne a alteração do gênero, ao se fazer a extração dos princípios sedimentados
nos dispositivos supracitados, conclui-se que do ponto de vista lógico-jurídico não é admissível
que se mantenha no registro o gênero feminino para alguém de prenome masculino, e vice-
versa, sob pena de tornar sem efeito a proteção do indivíduo contra situações vexatórias
decorrentes de sua identificação cotidiana.
Conquanto a análise sistêmica e valorativa do Direito Civil permita o exercício da auto-
nomia privada na troca do nome e sexo jurídico do transexual, não há legislação específica
sobre o tema, continuando a luta por tais direitos a ser travada judicialmente, e neste particular
a jurisprudência tem desempenhado um importante papel contra-majoritário. No entanto, há –
conforme demonstrado em julgado analisado anteriormente – uma enorme discrepância entre
as decisões prolatadas nos tribunais de justiça dos estados.
Em 3º grau de jurisdição, o STJ demonstrou seu papel de “tribunal da cidadania” em
2009, quando, em sede do Recurso Especial nº 1.008.398, originado de São Paulo, reconheceu
o direito do transexual operado de ter alterado o designativo de sexo e nome. Em seu voto, a
relatora Ministra Nancy Andrighi, demonstrou temer que a negação de tais direitos sinalizasse
o estímulo de uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética e do Direito.
Sob a perspectiva dos princípios da Bioética (DINIZ, 2009, p. 280-181), verbi gratia, os
de beneficência, autonomia e justiça, a dignidade humana deve ser resguardada, em um âmbito
de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de deci-
sões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e finalidade mesma do Direito: o ser
humano em sua integralidade.
Adentrando ao direito comparado, é expressiva a corrente favorável à releitura dos
direitos fundamentais sob a ótica da transexualidade. A legislação alemã, canadense, espanho-
la, holandesa, italiana, mexicana, sueca e alguns estados norte-americanos consagram o direito
geral da personalidade dos transexuais em sua plenitude. A Argentina, nação sul-americana
amplamente católica, desde 2010 vem adequando sua legislação para melhor contemplar os
mesmos direitos.
Entrementes, tanto a doutrina jurídica havida no Brasil quanto a internacional ainda
sucumbem ao referencial de normalidade fundado na chamada “ordem heterocentrada”,
condicionando o exercício dos direitos da personalidade envolvidos na questão transexual à
cirurgia de redesignação sexual.
Na Alemanha, por exemplo, a lei conhecida como “transsexuellengesetz” (TSG), em
vigor desde 1981, regula o registro dos transexuais, e permite tanto a alteração do prenome do
transexual, quanto a modificação do gênero sexual em seu assento de nascimento, contanto
que tenha sido submetido à cirurgia de transgenitalização. Assim, a TSG rotula a alteração do
registro dos transexuais de “kleine Lösung” – pequena solução; já o procedimento cirúrgico é
denominado “groâe Lösung” – a grande solução (STJ, REsp 1008398, 2007, SP).
Acerca do panorama do direito dos transexuais à identidade, o codiretor da Ação Global
pela Igualdade de Gênero (GATE), Mauro Cabral, explicou recentemente em entrevista conce-
dida em jornal de grande circulação que 37 dos 47 países do Conselho da Europa permitem a
mudança do sexo nos registros públicos, mas também são exigidas condições prévias, dentre
as quais a esterilização, exames médicos, outros tipos de cirurgias e até mesmo o divórcio,
condicionando o reconhecimento da identidade de gênero a renuncia a outros direitos, como
o de manter sua integridade física (FIGUEIREDO, 2012).
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5. Conclusão
Percebe-se que existem poucos estudos jurídicos no Brasil dedicados à questão dos
direitos da personalidade dos transexuais – seja porque foram desestimulados pelo atraso do
Poder Legislativo em regular a questão, seja porque o meio jurídico, dado o pouco contato com
as chamadas ciências “psi”, foram atraídos pelas teorias médicas heterocêntricas que apontam
o método cirúrgico como resposta para os conflitos existenciais dos transgêneros.
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Existe, porém, uma efervescente doutrina em outras áreas do conhecimento, como psi-
cologia, antropologia e sociologia, produzindo novas teses aptas a arejar o pensamento dos
jurisconsultos. A análise da condição do transexual sob a ótica da desnaturalização dos gêne-
ros condiz com a necessidade de respeito à dignidade humana daqueles, mediante a garantia
da efetividade do direito geral de personalidade destes indivíduos. No caminho para a inclusão
social dos transexuais, o combate ao antigos conceitos e à descriminação é o pontapé inicial,
e o Direito, enquanto reflexo ideológico de um Estado Democrático, precisa renovar-se e
humanizar-se.
Neste contexto, enquanto o ordenamento jurídico brasileiro se mostra insuficiente às
pretensões dos transexuais e o Poder Legislativo silencia e procrastina as discussões acerca
do tema, as expectativas de mudança do status quo se encontram depositadas nas mãos dos
tribunais brasileiros, atualmente responsáveis por adequar as normas às demandas sociais.
Assim, serve a filosofia jurídica aos doutrinadores pátrios na integração do Direito às
demais áreas do conhecimento, emoldurando uma teoria da transexualidade plenamente aplicá-
vel aos casos concretos que reclamam por solução todos os dias, seja silenciosamente, seja às
portas do Poder Judiciário.
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182
A (IN) APLICABILIDADE DO CDC ÀS RELAÇÕES JURÍDICAS
EM QUE MICROEMPRESAS ADQUIREM PRODUTOS
OU SERVIÇOS PARA ATIVIDADE PROFISSIONAL
Resumo: Este trabalho pretende trazer à baila a discussão acerca da aplicabilidade do Código
de Defesa do Consumidor às micro e pequenas empresas, avaliando a sua participação ou não
como destinatária final de produtos e serviços quando adquirem para desenvolvimento de
atividade profissional que visa gerar lucro. De início, é feita uma pequena digressão acerca do
espírito do CDC e, ato contínuo, essas pessoas jurídicas são inseridas no contexto jurídico de
consumo. O enquadramento destas como consumidoras é debatido por doutrina e jurispru-
dência, pelo que são expostos os argumentos das correntes divergentes. Conclui-se pela
aplicabilidade das normas consumeristas a essas modalidades de empresas ainda que enquan-
to desenvolvem o ato de consumo para fins profissionais, desde que a vulnerabilidade seja
comprovada no caso concreto, traçando-se um paralelo que liga inexoravelmente a
vulnerabilidade do consumidor à fragilidade da microempresa. Ao final, avalia-se o impacto da
confirmação desse entendimento perante a vida prática do Judiciário atualmente abarrotado.
Vislumbram-se consequências significativamente positivas a médio prazo em que pese, inicial-
mente, a ideia faça parecer inviável tal realidade.
Introdução
Na presente sociedade civil se observa, cada vez mais, relações jurídicas entre empre-
sas. Sejam elas de grande ou pequeno porte, sempre estão diante de satisfazer suas necessi-
dades profissionais alimentando seus anseios. Produtos e serviços são consumidos diaria-
mente numa rapidez jamais vista em meio às novas oportunidades e interligações entre
diversos meios e setores.
Como em qualquer sociedade desigual e complexa, as referidas relações, inevitavel-
mente, por muitas vezes acabam gerando danos às partes ou até mesmo à terceiros.
O Judiciário, principalmente com o advento da Lei dos Juizados Especiais, encontra-
se abarrotado de causas versando sobre querelas entre empresas, independente de seus
portes. Essas ações normalmente versam sobre problemas decorrentes de aquisição de ser-
viços e produtos.
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Essas inovações acabaram por resultar na redução das oportunidades de empregos nas
grandes empresas. Via de consequência, houve uma necessária motivação das pessoas que
estão fora do mercado de trabalho a criar seu próprio negócio, estimulando-se assim o cresci-
mento das micro e pequenas empresas.
Nesse diapasão, o interesse pelas microempresas foi ganhando força, traduzindo-se
num tipo negocial que se amolda rapidamente às normas de mercado, podendo suprir suas
demandas num prazo curto. Vale dizer, ainda, que elas contribuem para diminuição da clandes-
tinidade, informalidade e subemprego tão presentes no nosso país.
Dada a relevância da presente modalidade, o mundo do direito certamente seria seria-
mente atingido para sua regulamentação. Assim sendo, após muito tempo, o Presidente da
República em exercício alhures, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou o Estatuto da microempresa
e da empresa de pequeno porte (Lei nº 123/2006) estabelecendo normas gerais relativas ao
tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de peque-
no porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
É de se notar que microempresa e empresa de pequeno porte não se confundem. São
espécies distintas, muito embora possuam um regime jurídico semelhante. A empresa de pe-
queno porte possui condições a nível de receita bruta superiores às microempresas. Digamos
que na escala de grande, média, pequena e microempresa, a pequena está um degrau acima da
micro. Todavia, a distinção é desimportante para análise do tema de fundo.
Em virtude dessa lei, a categoria, doravante tratada como uma só (microempresa), goza
de algumas prerrogativas e benefícios que vão desde aspectos tributários até modo diferenci-
ado de acesso à justiça. Com relação a este último, diga-se de passagem, a classe é equiparada
à pessoa física e passa a poder propor ações nos Juizados Especiais. Percebe-se, pois que o
acesso à justiça foi uma clara preocupação do legislador que inclui um capítulo para tratar
expressamente do tema.
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A REVISTA DA UNICORP
órgãos campo extremamente fértil na busca pelo direito, antes tão distante e custoso.
Vale dizer, ainda, que não mais se faz necessário a presença de advogado nos presentes
casos. O próprio empresário pode prestar a queixa pertinente e aguardar uma prestação
jurisdicional nos termos formulados, desde que respeitado o valor da causa.
Destarte, mostra-se muito mais frequente a necessidade de uma aplicação uniforme do
direito para dinamizar e regulamentar as relações em que envolvem as pequenas empresas,
principalmente, quando já se está diante de uma demanda judicial.
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Assim, na busca da melhor resposta, ao passar dos anos, foram se delineando as duas
correntes diametralmente opostas. A primeira delas denominada corrente Objetivista ou
Maximalista e a segunda conhecida como Subjetivista ou Finalista. Desde já, como da termino-
logia se depreende, a primeira corrente tem uma visão mais ampla do conceito de consumidor,
ou seja, visa abarcar uma proteção a um número maior de agentes. Por seu turno, a corrente
finalista possui entendimento bem mais restrito quanto ao enquadramento de consumidor, com
fulcro em proteger apenas aqueles que o espírito do sistema pretende blindar.
Vale dizer, não obstante, que as duas visões são extremamente pertinentes e dispõem de
adeptos consagrados e elogiosos. Aqui não se está diante de uma posição esdrúxula em
detrimento de um posicionamento óbvio. Ao revés, os argumentos de qualquer das partes
podem ser aplicados e fundamentados, inclusive por força de lei.
No Brasil, como se verá adiante, já existe uma posição majoritária. Todavia, o entendimen-
to não é tão pacífico, muitas das vezes variando de acordo com o caso concreto. Entrementes, o
que se pretende esclarecer é que o entendimento hoje adotado pelo país não é imutável, devendo
os juristas estar sempre atentos às tendências do próprio direito e da sociedade.
Especificamente no campo abordado, a melhor definição do conceito de consumidor
encara outra dificuldade, qual seja, a identificação do melhor regime e definição aplicável às
microempresas.
3.1.1. Maximalistas
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fático do produto ou serviço. É dizer, aquele que de fato praticou o ato de consumo e recebeu
o bem ou serviço utilizando do mesmo com vistas a exaurí-lo ou depreciá-lo de modo a quando
adquirido não mais ser reutilizado ou revendido.
A aquisição ou uso de bem ou serviço na condição de destinatário final fático caracte-
riza a relação de consumo, por força do elemento objetivo, qual seja, o ato de consumo.
É importante que o adquirente seja o último elo da cadeia do ponto de vista fático-objetivo.
É um conceito jurídico direto que atenta tão somente à destinação dada à fruição do bem ou
serviço adquirido ou utilizado. Essa destinação deve ser final no sentido de consumir ou
utilizar de forma a depreciar, invariavelmente, o seu valor como meio de uso ou troca.
Nesse conceito, pouco importa se o que será suprido com a utilização do bem ou
serviço será de natureza pessoal ou profissional. Nesse campo um tanto minado, as pessoas
jurídicas expressamente protegidas no CDC poderão utilizar o bem profissionalmente, de modo,
inclusive, a desenvolver sua atividade negocial, como mecanismo ou insumo necessário a um
melhor aprimoramento da atividade lucrativa da empresa.
Nessa linha, aponta Arruda Alvim, em crítica à corrente finalista:
Em essencial, destinatário final fático do produto seria aquele que o retira do mercado e
o utiliza, o consome. Evidentemente, aquele que adquire o produto com intenção de revenda
jamais poderá ser considerado destinatário final, uma vez que é mero intermediário da relação
jurídica entre fornecedor e consumidor.
Apenas para que não paire qualquer dúvida, no concernente a revenda a doutrina e
jurisprudência são pacíficas no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor jamais
poderá ser aplicado.
Retornando ao ponto, importa exemplificar que, segundo a corrente maximalista, será
consumidora a fábrica de toalhas que compra algodão para transformar, a fábrica de celulose
que compra carros para o transporte dos visitantes, o hotel que compra um grande televisor
para propiciar aos seus hóspedes assistir aos jogos da Copa do Mundo, a lan-house que
compra computadores para que seus clientes tenham horas de uso, o advogado que compra
um computador para o seu escritório, o Estado quando adquire canetas para uso em reparti-
ções, a dona de casa que adquire produtos alimentícios para sua família.
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ENTRE ASPAS
Como pode ser visto, a doutrina maximalista pressupõe uma ampliação, uma extensão do
conceito de consumidor. Ela pretende alcançar o maior número possível de pessoas. O ato de
consumo é muitas vezes mais importante do que a própria pessoa que está praticando esse ato.
Em favor desse posicionamento, é preciso salientar que do ponto de vista positivista, a
transcrição literal do dispositivo legal realmente não pretende trazer qualquer restrição, muito
por isso, é que críticas são tecidas à doutrina finalista uma vez que não está expressa a vontade
do legislador em tecer qualquer limitação.
Em precedente do STJ, no Conflito de Competência 41.056 – SP (2003/0227418-6), a
Ministra Nancy Andrighi proferiu voto maximalista, em suma, por entender que o intuito de
lucro não descaracteriza, por si, a relação de consumo, concluindo que o conceito jurídico
(objetivo) de consumidor resulta de uma exegese mais aderente ao comando legal positivado
no artigo 2º do CDC.
No caso concreto, foi considerada consumidora uma Farmácia que contratou os servi-
ços VISANET de cartão de crédito para incrementar a sua atividade negocial e propiciar esta
forma de pagamento aos seus clientes.
Em resumo, um dos fortes argumentos da corrente maximalista diz respeito ao fato de
não restringir aquilo que o legislador de forma expressa optou por não fazê-lo. Com isso, se tem
uma ampliação do Código de Defesa do Consumidor, também sob o argumento da evolução,
avanço e excelência dessa lei.
Não obstante, conforme já mencionado, a segunda corrente virá com argumentos tão
fortes quanto os acima norteados.
3.1.2. Finalistas
Ora, como o tema não é pacífico, evidentemente, existe a outra corrente, aquela que
defende a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em outros termos, qual seja a corren-
te subjetiva ou finalista.
Em primeiro plano, é essencial ter em mente que essa é a corrente mais robusta, possu-
indo inclusive mais adeptos, razão pela qual pode ser chamada de majoritária. A posição finalista
tem lastreado o entendimento do STJ, numa de suas derivações, como será exposto no tópico
imediatamente posterior.
Diversamente do quanto aduzido pela corrente maximalista, para os finalistas não basta
a destinação final fática do produto ou serviço para caracterização do consumidor. Mais que
isso, essa doutrina pressupõe a destinação final econômica. Explique-se, o bem adquirido não
poderá ser utilizado de modo a dinamizar o processo produtivo, ainda que de forma indireta. Ou
seja, não é possível adquirir um bem para utilização profissional, pois o produto seria
reconduzido para a obtenção de novos benefícios econômicos e que, cujo custo estaria sendo
indexado no preço final do profissional.
A Ministra Nancy Andrighi, hoje componente não só do STJ, mas também do TSE, por
sua vez, em que pese filiar-se à doutrina maximalista, no mesmo voto acima mencionado, elenca
com propriedade os requisitos da destinação fática e econômica: (i) não detenha a pessoa
jurídica adquirente ou utente intuito de lucro, isto é, não exerça atividade econômica, o que
ocorre com as associações, fundações, entidades religiosas e partidos políticos; (ii) caso
detenha a pessoa jurídica adquirente ou utente intuito de lucro, duas circunstâncias,
cumuladamente, devem estar presentes: (a) o produto ou serviço adquirido ou utilizado não
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A REVISTA DA UNICORP
possua qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica desenvolvida, e (b)
esteja demonstrada a sua vulnerabilidade ou hipossuficiência (fática, jurídica ou técnica) pe-
rante o fornecedor.
Desse conceito, se verifica que a maioria dos exemplos citados acima na orientação
maximalista como configuração do consumidor não merece acolhida pelos finalistas. O mero ato
de consumo não seria isoladamente hábil para caracterização de uma relação jurídica de consu-
mo. Essa corrente traz um realce muito grande para o agente, a pessoa, aquele que pratica o ato.
Traço típico do entendimento finalista é o caráter restritivo de consumidor. Aqui se
pretende delimitar rigidamente quais pessoas serão beneficiadas pelos procedimentos protetivos
do CDC. Não é qualquer ato de consumo que caracteriza o consumidor do artigo 2º. Como forte
argumento, está o essencial espírito do Código de Defesa do Consumidor, o qual, vem para
proteger o vulnerável, aquele que é desprovido de conhecimentos técnicos e jurídicos.
No pensamento finalista, mesmo entre aqueles que entendem ser possível a inclusão de
empresas profissionais como “consumidoras” prevalece sempre ressalva de que assim são
entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não
como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa.
No mesmo sentido, ainda, a lição de Antônio Herman V Benjamin:
“Que a pequena e média empresa, com seus fins lucrativos, também neces-
sitam de tutela especial, tal não se contesta aqui. Entretanto, reconhecer
que a microempresa, quando adquire bens e serviços fora de sua
especialidade e conhecimento técnicos, o faz em condições de fra-
gilidade assemelhadas às do consumidor individual ou familiar
não implica dizer que aquela se confunde com este. O fim lucrativo
os divide. Do mesmo modo a atividade de transformação que é própria do
consumidor (no sentido econômico) intermediário. Além disso, os meios
existentes à disposição da pessoa jurídica lucrativa para defender-se mais
acentuam a diferença entre esta e o consumidor final, individual ou familiar.
Por outro lado, pessoas jurídicas há que podem e devem ser denominadas
consumidor, para fins de tutela especial, como, p. ex., as fundações sem fins
lucrativos, as associações de interesse público, os hospitais e partidos políti-
cos.” (HERMAN V BENJAMIN, ANTONIO, 2009, 77).
191
ENTRE ASPAS
Enfim, uma vez trazidos todos os aspectos fundamentais ao deslinde da questão, che-
ga-se ao tempo de buscar a melhor resposta e a solução para a problemática tão controvertida
ora em exame.
O Superior Tribunal de Justiça, diante das inúmeras causas girando em torno do tema
vem consolidando uma nova posição, uma maneira diferente de enfrentar essas questões.
Não obstante, as críticas contra essa nova postura são duríssimas, o que nos leva
também a discutir sob diversos ângulos o posicionamento adotado pelo Tribunal Superior.
Posicionamento esse que não tem unanimidade sequer na própria Corte, o que indica que as
vias ordinárias ainda não têm uma orientação firme para aplicação nos casos recebidos.
Partindo desse ponto, chegar-se-á à conclusão se o CDC deve ou não ser aplicado às
microempresas que adquirem produtos ou serviços para desenvolvimento de atividade lucra-
tiva, negocial, profissional.
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A REVISTA DA UNICORP
possuem aparato técnico que as diferenciam claramente dos consumidores, principalmente pes-
soas físicas. Com efeito, a resposta somente poderia se encontrar nas microempresas, alvos do
presente estudo. Ora, deveras, as microempresas em certas situações podem tranquilamente ser
assemelhadas a consumidores em questão de vulnerabilidade, principalmente, quando estabele-
cem relações com grandes fornecedores de porte absurdamente desproporcional.
Não obstante, antes de mais nada, com vistas a evitar a precipitação, é preciso trazer
duas observações sobre o finalismo mitigado. Primeiro, tal entendimento não implica no fato de
que todas as microempresas são equiparadas a consumidores e em qualquer relação se reves-
tirão desse papel. Como dito acima, o Magistrado exercitará seu livre convencimento e sua
sensibilidade para avaliar cada caso concreto antes de tomar sua decisão. Em segundo lugar,
necessário deixar evidente que tal conceituação não se aplica aos casos de revenda, uma vez
que ali o adquirente sequer é destinatário final fático do produto, não passando de mero
intermediário.
Retornando ao cerne da questão da teoria finalista mitigada, o STJ ainda foi mais além
e preconizou que cabe ao Juiz estabelecer a presunção de vulnerabilidade ou não
vulnerabilidade. É dizer, em certos casos, caberá ao fornecedor comprovar que aquele adquirente
não é vulnerável, não merecendo a guarida do CDC.
Nos casos das microempresas certamente, no mais das vezes, poderia se aplicar esta
presunção em razão de aparentemente parecerem vulneráveis.
Enfim, a nova postura do STJ, malgrado muito elogiada, também não é livre de críticas,
mormente pela insegurança jurídica trazida e pela grande flexibilidade do conceito de consumi-
dor que doravante além de sua destinação final estará condicionada a situação fática ou
jurídica do agente, o que não está expressamente previsto na lei.
Bom, feitas essas considerações, a matéria parece madura para uma conclusão acerca
do tema principal desse trabalho, a (in) aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às
relações jurídicas em que microempresas adquirem produtos para o desenvolvimento de ativi-
dades negociais.
Nesse momento é suscitada a questão: como melhor se enquadraria a microempresa
diante do conceito de consumidor? É sabido que o código protege pessoas físicas e jurídicas,
todavia, se chegou à conclusão também que as pessoas físicas são muito mais facilmente
caracterizadas (como consumidoras) que as pessoas jurídicas, as quais, segundo a corrente
predominantemente finalista, não poderão utilizar os bens adquiridos como insumo para de-
senvolvimento da sua atividade negocial, o que reduz bastante o campo de aplicação do CDC.
Ao meu sentir, não obstante se trate de uma pessoa jurídica, poderíamos colocar a
microempresa, do ponto de vista fático, bastante alinhada à pessoa física. Daí então, de cara, se
contemplaria a proximidade com a presunção de vulnerabilidade.
Com efeito, se do ponto de vista fático a microempresa tende a se aproximar da pessoa física,
no aspecto econômico a mesma guarda relações mais íntimas com as demais pessoas jurídicas.
Nessa dupla linha traçada, a microempresa, a priori, não seria considerada consumidora
quando adquirisse produtos ou serviços para desenvolvimento da atividade negocial, mormen-
te, pela doutrina finalista adotada pelo STJ, a qual, puramente, não distinguiria a microempresa
das demais empresas, uma vez que estaria em jogo a destinação final econômica do bem.
193
ENTRE ASPAS
Entretanto, como já exposto, a teoria finalista evoluiu e passou a ser atenuada justa-
mente com lastro na vulnerabilidade, podendo-se aplicar o conceito de consumidor em casos
concretos desde que comprovada essa posição desfavorável. Certamente com essa mudança
de entendimento a microempresa vislumbrou um campo extremamente fértil para cada vez mais
ser considerada consumidora.
A jurisprudência deu sua resposta ao tema discutido nesse trabalho, ou seja, o
questionamento feito na introdução foi gabaritado da seguinte forma: o CDC será aplicado às
microempresas que adquirem produtos ou serviços para atividade profissional, desde que,
seja comprovada a sua vulnerabilidade técnica, econômica ou jurídica no caso concreto.
Em que pese tal decisão, a sua fundamentação resta ainda um tanto nebulosa e compor-
ta críticas, uma vez que, primeiramente, no direito positivo o legislador não expressa a vontade
dessa forma. Vale dizer que, do ponto de vista da letra fria da lei, o critério seria inclusive
maximalista, considerando que não houve qualquer restrição ao conceito de consumidor. Em
seguida, a doutrina se incumbiu de elencar um caráter econômico finalista ao destinatário final,
ou seja, foi além do que está na lei, restringindo tal conceito. Por fim, essa corrente finalista foi
se amoldando e sendo mitigada para contemplar exceções à destinação econômica do bem,
quando houver patente vulnerabilidade da parte adquirente na relação jurídica estabelecida.
A priori, o meu receio é quanto ao fato de que a norma já está bastante modificada na
sua essência. Tudo bem que o conceito do artigo 2º é vago e permite inúmeras interpreta-
ções, mas, é um tanto contraditório dois agentes praticarem o mesmo ato na exata identicidade,
no entanto, acontecer de apenas um deles ser considerado consumidor uma vez que depen-
derá da comprovação da sua vulnerabilidade no caso concreto. Certamente a insegurança
jurídica é iminente.
Feita essa ressalva, em que pese tal crítica não só da minha parte, mas de boa parte da
doutrina, confesso que a posição adotada pelo STJ parece-me a mais apropriada e consentânea
com o direito consumerista pátrio atualmente vivido.
A vulnerabilidade é o carro chefe do Código de Defesa do Consumidor e, além da
destinação final do bem, sem sombra de dúvidas o conceito de consumidor deve estar intima-
mente ligado com o agente da relação jurídica, com aquela pessoa que está praticando o ato.
Não é à toa que temos um sistema de normas denominado Código de Defesa do CONSUMI-
DOR e não código de consumo. É preciso dar extremo relevo ao partícipe da relação, as vezes,
mais importante até do que a essência material daquela relação. O que se pretende dizer é que
em algumas situações deve-se ficar mais atento a quem está praticando o ato de consumo do
que a qual será a destinação dada a aquele bem ou serviço adquirido.
Nesse sentido, deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor às microempresas
que adquirem produtos ou serviços mesmo que com finalidade profissional, desde que com-
provada a vulnerabilidade desta no caso concreto daquela relação jurídica.
Tal conclusão se depreende do espírito expresso na Constituição cidadã de 1988 e do
próprio CDC. As normas programáticas ali expressas deixam claro que a lei veio para proteger
os mais fracos. O Estado deve intervir para equilibrar relações. A negativa desse sentido seria
um retrocesso.
Com efeito, em termos práticos, sem medo de errar, é possível falar que a maioria das
microempresas não dispõe de qualquer aparato técnico, fático ou jurídico para competir em
condições de igualdade contra grandes fornecedores, ainda mais, perante o regime do Códi-
go Civil. É bem verdade que o novo C.C. de 2002 repisou diversos princípios já consagrados
no CDC, inclusive de ordem de boa fé e cláusulas abusivas. Outrossim, esse mesmo diploma
194
A REVISTA DA UNICORP
É mister acrescentar, ainda nesse passo, que a pedra de toque para que se
considere que uma dada relação jurídica é ou não de consumo é a destinação
final (de caráter prevalecente) e a vulnerabilidade (de caráter secundário).
Sim, pois se não fosse isso, sobretudo diante da vigência do citado Códi-
go Civil de 2002, não haveria necessidade de um Código de Defesa do
Consumidor, já que a maioria dos princípios por ele elencados pioneira-
mente em 1990 ali foram oportunamente embutidos. (2007, p.p. 41).
195
ENTRE ASPAS
5. Conclusão
No início do presente estudo, é inegável que se tinha em mente uma visão tendente à
inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas em que
microempresas adquirem produtos ou serviços para desenvolvimento de atividade profissio-
nal. Não obstante, a conclusão foi reversa.
Em que pese o alinhamento mais estrito com a doutrina essencialmente finalista, restritiva
à conceituação de consumidor, a qual inadmite a utilização do bem como insumo para desen-
volvimento da atividade lucrativa, tenho que rogar vênia a quem dissente e concordar com o
atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.
O estudo aprofundado dos princípios fundamentais e do espírito do Código de Defesa
do Consumidor em consonância com a Constituição Federal de 1988 me permite afirmar com
convicção que nos casos concretos, quando comprovada a vulnerabilidade seja fática, técnica
ou jurídica, as microempresas devem ser protegidas pelo CDC, mesmo que na prática de ato de
consumo visando desenvolver atividade profissional.
Essa é uma visão mais social, de espírito aberto que vai de encontro justamente a um
entendimento mais técnico e jurídico positivista. Uma vez mais os princípios devem ter força
cogente para nortear todas as demais normas de um ordenamento. Este me parece uma caso
clássico dessa incidência.
196
A REVISTA DA UNICORP
197
ENTRE ASPAS
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Notas ______________________________________________________________________________
1. Analogia realizada pelo Professor Francisco Bertino de Carvalho em aula do Curso de Pós-Graduação em
Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia – UFBA
199
UMA VISÃO FAMILIARISTA DO ART. 1.240-A DO CÓDIGO CIVIL:
A VOLTA DA CULPA NAS DISSOLUÇÕES DE VÍNCULOS CONJUGAIS
Resumo: Através da evolução legislativa no ramo do Direito das Famílias, que culminou na
aprovação da Emenda Constitucional n° 66/10, foi possível excluir a análise da culpa como
requisito para a dissolução do vínculo conjugal. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei n°
12.424/11, que inaugurou uma nova forma de usucapião, por abandono do lar, houve o ressur-
gimento da averiguação do elemento subjetivo, quando da decretação do divórcio. O legisla-
dor retrocede e faz renascer a culpa no divórcio, apresentando, ainda, incompatibilidade com o
texto constitucional, posto que inclui como requisito essencial à nova modalidade de usucapião
o abandono do lar conjugal. Assim, torna-se imprescindível a modificação do texto legislativo,
para que haja compatibilidade com o sentido da Carta Magna, bem como se exclua o elemento
subjetivo da culpa, que serve, apenas, para postergar o sofrimento do término da relação
conjugal, sustentando um conflito desnecessário e desarrazoado.
1. Introdução
200
A REVISTA DA UNICORP
A mudança realizada no texto do Código Civil, fazendo incluir o art. 1.240-A em seu
corpo, tinha originariamente o condão de abordar uma temática de cunho particularmente
possessório, incluindo, deste modo, uma nova forma de usucapião de bem imóvel urbano no
ordenamento jurídico nacional. Entretanto, a inoportuna imersão do legislador atingiu “por
ricochete” o aspecto familiarista que abarca o seu conteúdo, trazendo à lume, novamente, a
discussão do elemento culpa, para que se caracterize o abandono do lar.
Considerando, portanto, que a redação atual do art. 226, § 6°, da Constituição Federal
verbera que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo Divórcio”, entende-se por suficiente
a simples comprovação da vontade de ambas ou de uma das partes de uma determinada relação
de afeto para que se dissolva o vínculo conjugal.
Deste modo, atualmente (nada obstante a existência de entendimento em sentido diver-
so) não mais se perquire acerca da existência de culpa de um dos consortes para a extinção do
vínculo que outrora os unia, remanescendo como suficiente a simples vontade de não mais se
encontrar casado para que seja desfeito este laço de união.
Esta medida legislativa, oportunizada pela aprovação da supramencionada Emenda
Constitucional, tornou o procedimento de dissolução do casamento mais célere, laborando
para a efetividade da dignidade da pessoa humana na família, pautada nas realizações pesso-
ais dos seus membros. Independente de quem tenha contribuído mais, ou menos, não se
obstaculiza a extinção do vínculo conjugal pela necessidade de análise da culpa, retirando,
assim, o subjetivismo que decorre desta apreciação, partindo para uma averiguação objetiva
do fim do casamento.
Porém, a partir do momento em que o legislador civilista insere no art. 1.240-A a necessi-
dade de saber se houve o “abandono do lar” por uma das partes para que possa ser caracterizada
a usucapião, retorna-se a discutir a culpa, uma vez que tem que ser esta caracterizada para
(des)constituir o abandono da residência por aquele que perderá o bem imóvel em favor do
usucapiente (ou mesmo para determinar a manutenção da propriedade em favor daquele que se
retirou do lar o casal), desde que o imóvel preencha os demais requisitos daquele dispositivo.
Assim sendo, é necessário esclarecer a inadequação do legislador ao buscar reviver a
discussão da culpa, que teria sido extinta desde a aprovação da Emenda Constitucional n° 66/
10, e agora renasce com a promulgação da Lei n° 12.424/2011, seguindo a orientação de retirar
a indevida novidade do ordenamento jurídico, ante a sua incompatibilidade, ou indicar a ativi-
dade hermenêutica a ser empreendida para impedir o reaparecimento da discussão da culpa nas
dissoluções de vínculos conjugais.
201
ENTRE ASPAS
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A REVISTA DA UNICORP
iniciativa de possibilitar o término do vínculo conjugal por outros meios, que não apenas a
morte ou a anulação2.
Entretanto, o vanguardismo freou esta nova possibilidade, perdendo o legislador a
oportunidade de consagrar por completa a possibilidade de desarranjo de uma relação compro-
metida pela infelicidade dos seus cônjuges, perpetuando o sofrimento dos mesmos através
dos pré-requisitos alternativos para o término do matrimônio: a separação de fato pelo período
de 02 (dois) anos ou a separação judicial pelo período de 01 (ano).
Além do pressuposto temporal que carregava o formato anterior do instituto ora em
apreço, era necessário demonstrar a existência de uma fundamentação, a presença da culpa de
um dos cônjuges para a decretação do Divórcio. Alguns tribunais chegaram a impossibilitar a
dissolução do vínculo conjugal pela inexistência ou insuficiência de provas, aptas a configurar
a culpa de um dos consortes, como se vê nos julgados a seguir transcritos:
203
ENTRE ASPAS
a separação judicial (procedimento prévio ao Divórcio) “imputando ao outro qualquer ato que
importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”4.
Continuou o legislador, assim, a adotar o sistema dualista para a dissolução matrimonial5.
Nada obstante o infortúnio suportado pela sociedade brasileira por pouco mais de três
décadas, em decorrência da inadequação legislativa (tanto do constituinte originário, como do
legislador civilista), o labor doutrinário e o esforço empreendido, também, pelo trabalho dos
tribunais pátrios, sob o evidente clamor social pela supremacia do afeto, contribuíram para a
edição da Emenda Constitucional n° 66, no ano de 2010, que eliminou do ordenamento jurídico
brasileiro o instituto da separação6, e, por consequência, a desnecessidade de investigar a
culpa de um dos cônjuges para a chancela do fim do amor entre o casal.
O texto atualmente apresentado pela Carta Constitucional denota que se torna essenci-
al, apenas, a vontade de uma das partes em não mais se manter unido com aquele (a) a quem
jurou amor eterno, justificando a desvinculação dos consortes sem a imputação a uma das
partes do motivo determinante para a separação.
Com a exclusão da verificação da culpa para a decretação do Divórcio, o que se busca –
ao contrário do pensamento primitivo de algumas sociedades, que imaginam se tratar de incenti-
vo à destruição de famílias visivelmente consolidadas pelo afeto – em verdade, é possibilitar a
consecução da felicidade daqueles que se encontram infelizes em seus atuais relacionamentos,
necessitando se libertar com a maior brevidade desta clausura que os aprisiona7. Isto não era
alcançado com o antigo procedimento, haja vista o longo período de tempo que sofria o casal,
até que pudessem ambos definir o novo rumo a ser seguido, na busca pela sua felicidade.
O novo comando constitucional atendeu, indiscutivelmente, à nova feição assumida
pelo Direito de Família, que rejeita a excessiva ingerência do Estado em suas relações sociais,
devendo conferir maior valia à autonomia da vontade, em detrimento às restrições desarrazoadas
outrora impostas pelo poder estatal. Confirmando a nova roupagem assumida por este ramo do
Direito, assevera Pablo Stolze (2011, p. 48):
Verifica-se, portanto, que não mais subsiste o instituto da separação no sistema jurídico
nacional8, imperando, assim, o divórcio como única forma de dissolução de uma relação, sendo
que o fim da mesma não mais se caracteriza em provisório e definitivo, mas, apenas como
término do vínculo conjugal.
Sob esta nova formatação do divórcio, a sua decretação depende, única e exclusiva-
mente, de fundamentação pautada na insuportabilidade da vida em comum, para que o Estado
possa reconhecer em determinada relação o fim do afeto, determinando, diante deste simples
motivo, o fim da conjugalidade experimentada por ambos. Trata-se, pois, de processo com
caráter meramente “administrativo”, conferindo-se às partes um passaporte para seguir em
busca da sua felicidade, o que permite (ao contrário do sistema antigo, o dualista) a efetivação
do princípio da dignidade da pessoa humana, através da realização pessoal dos integrantes
daquela família9.
204
A REVISTA DA UNICORP
Em que pese a novidade aventada pelo texto legislativo que introduziu o art. 1.240 – A
no Código Civil, trazendo uma nova espécie de usucapião urbano para o nosso ordenamento
jurídico, a locução objeto central de apreciação deste estudo (“abandono do lar conjugal”)
encontrava expressa previsão no Código Beviláqua, fora retirada da legislação civil (formal e
materialmente10), e agora retorna à realidade das relações sociais com a entrada em vigor da Lei
n° 12.424/11.
Cunhada no século passado, em um Código Civil que se encontrava formado através do
princípio da indissolubilidade do casamento, o “abandono voluntário do lar conjugal”, previsto
no art. 317, IV11, se caracterizava como um dos fundamentos para motivar a Ação de Desquite.
Com efeito, o hercúleo esforço legislativo, doutrinário e jurisprudencial, permitiu à
sociedade alcançar elevado patamar evolutivo, que culminou com a desnecessidade de análise
da culpa para a dissolução dos vínculos conjugais. Mas, como se não fosse suficiente reviver
uma motivação legalmente prevista há quase um século, no Código Civil de 1916, o legislador
põe em conflito o atual sentido do §6°, do art. 226 da CF/88, e reacende a discussão da culpa
para o Divórcio12.
Os anseios e o contexto nos quais se inseriam a sociedade do início do século XX
jamais poderão ser comparados à realidade que se descortina neste princípio de século XXI,
devendo ser perpetrada uma evolução constante – em desalinho ao entendimento do legisla-
dor do denominado “usucapião familiar”13 –, sem entender razoável a opção por motivações
pretéritas para justificar o fim do amor entre o casal.
Num período em que inexistia igualdade entre os sexos, cabendo à mulher, apenas,
seguir o homem para o local onde o mesmo optasse por fixar residência, momento histórico no
qual não se permitia a vinculação familiar através dos laços de afeto, sendo reconhecida a
família somente em sua formatação tradicionalista, patrimonializada e biologizada, com a
sacralização da família matrimonial, percebe-se que era compreensível o imperativo estatal em
manter incólume o “lar conjugal”, requisitando uma motivação para o afastamento dos cônju-
ges (que poderia, ainda, ser preenchida pelas outras hipóteses: adultério, tentativa de morte e
sevicia ou injúria grave), penalizando com o fim da sociedade conjugal – que demandava a
impossibilidade de novo casamento – aquele que abandonasse o lar conjugal pelo período de
02 (dois) anos.
Além disso, posteriormente, a partir do momento em que fora possível a dissolução dos
vínculos conjugais (com a Lei do Divórcio), perquiria-se a justificação para o fim do relaciona-
mento, pautando-se, necessariamente, na demonstração da culpa de uma das partes, ante o
reflexo que esta comprovação ocasionaria nas questões correlatas ao término desta vinculação
(como, por exemplo, a fixação de alimentos em favor de uma das partes).
De outra banda, como justificar a utilização de um conceito baseado na análise da culpa
em tempos hodiernos, no qual o fim do casamento, da união estável, ou de qualquer formato de
família, coincide, exclusivamente, com a inexistência de afeto entre os integrantes de uma
determinada relação?
A perplexidade com a qual se observa a orientação seguida pelo legislador se coaduna
com a necessidade de retorno ao século passado para compreender um instituto que deve ser
aplicado no novo século, inaugurado por uma nova ordem jurídica civilista, e agora tem que se
socorrer ao seu antecessor, derivado de um Projeto de Lei elaborado antes mesmo da Proclama-
ção da República, no período oitocentista.
205
ENTRE ASPAS
Salientando o equívoco cometido pela Lei n° 12.424/2011, Maria Aglaé Tedesco (2012,
p. 50) pontifica:
Através da “Emenda do Divórcio”14, como visto no tópico anterior, não mais se entende
necessário perquirir quem foi o culpado pela separação do casal, sendo suficiente a manifesta-
ção da vontade em não mais permanecer vinculado a outrem por uma das partes para que seja
decretado o fim do enlace.
Portanto, confere-se caráter mais objetivo à concretização da extinção deste vínculo
conjugal, tornando irrelevante a discussão da culpa, que somente era utilizada para postergar
o sofrimento do casal, ao ter que apontar um culpado e um inocente durante todo o procedi-
mento de separação (bipartido em duas fases: a prévia de separação – judicial ou de fato – e o
divórcio propriamente dito), desferindo ofensas diuturnas em relação à outra parte, no intuito
de configurar a culpa pelo fim do amor.
Ameniza-se, assim, o sofrimento das partes no procedimento de separação a retirada da
análise da culpa para determinar o fim do vínculo conjugal, entendendo como suficiente a
autonomia da vontade em declarar para o Estado a insuportabilidade da vida em comum, para
ver decretado o término do matrimônio, libertando-se das amarras da infelicidade que aprisio-
nava o ser em um relacionamento em que não mais existia o afeto.
Visualiza-se, deste modo, a não ingerência estatal na vida privada dos consortes, sem
perquirir os fundamentos que motivaram a impossibilidade da vida em comum de ambos, sendo
desnecessário existir um culpado para tanto, que pode ser um dos dois, ou até mesmo ambos,
mas se trata de informação irrelevante para a chancela judicial do fim do amor.
O valor sobrelevado pela Emenda Constitucional n°66/10, relativo à supremacia da
autonomia da vontade, em detrimento à interferência do Estado nas relações privadas, encon-
tra-se relativizado pelo critério utilizado pelo legislador para autorizar a usucapião de imóvel do
casal, por um dos cônjuges ou companheiros, desde que preenchidos alguns requisitos, den-
tre eles, o abandono do lar conjugal por aquele que perderá o direito ao patrimônio que ajudara
a construir.
A partir da entrada em vigor desta Lei, no ano de 2011, passou a ser possível a discus-
são da culpa, ora extinta, para caracterizar o abandono do lar conjugal e autorizar àquele que
corrobore esta alegação a aquisição da propriedade através da usucapião.
Exemplifique-se que, decretado o divórcio do casal, de forma isolada e prévia, as ques-
tões acessórias, dentre elas a relativa ao patrimônio do casal, terão que sustentar a discussão
da culpa, que denota a motivação que culminou na extinção do afeto em determinado lar.
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ENTRE ASPAS
O que se pretende evidenciar com esta tentativa de legitimar o texto aprovado pelo
Congresso Nacional é laborar no sentido de não ter que proceder uma nova modificação
legislativa, compatibilizando-a com o ordenamento jurídico vigente, através da fixação de bali-
zas para a atividade interpretativa do aplicador do Direito.
Essencial, portanto, que seja conduzido o labor hermenêutico a critérios que não permi-
tam rediscutir à culpa, visualizando o referido “abandono do lar” como uma verdadeira ausên-
cia do lar conjugal, sem a cautela de permanecer exercendo os deveres correlatos à esta relação,
com relação aos cônjuges e aos filhos (se porventura existentes), cumulados este requisitos
aos demais determinados pelo art. 1.240-A para a caracterização desta usucapião especial.
À guisa de exemplificação, podem ser enunciadas as hipóteses em que aquele (a) que
saiu do lar do casal deixa de prestar alimentos para os filhos, não consegue ser encontrado para
ser citado em eventual processo de divórcio, ou em eventual processo de alimentos, subsequente
à separação do casal, não consegue ser, também, citado, entre outras situações que configu-
rem esta ausência e desídia, desde que possam, como estas apresentadas, ser constatadas
objetivamente, em razão de circunstâncias fáticas trazidas ao Juízo.
A celeuma não se subsume, apenas, à inadequação da expressão utilizada pelo legisla-
dor, mas, também, ao sentido que confere à norma, que se denota incompatível com a exclusão
da culpa na dissolução dos vínculos conjugais. Cabível, assim, optar por dois caminhos a
serem trilhados: a modificação do comando legislativo do art. 1.240-A do Código Civil, que
apresenta mais segurança à consecução destas relações sociais, para manter afastada a discus-
são do elemento culpa, sendo, portanto preferível; ou manter o texto trazido pela Lei n° 12.424/11,
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A REVISTA DA UNICORP
4. Conclusão
209
ENTRE ASPAS
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Notas ______________________________________________________________________________
1. Neste ponto, verificando-se a inexistência de um Estado laico, como veementemente sustentado, atual-
mente, pela Carta Constitucional de 1988, os casamentos realizados entre os não-libertos, no período
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escravagista, que em sua grande maioria não se vinculavam à Igreja Católica, deveriam ser confirmados
perante a instituição cristã, sob pena de não gozarem de validade jurídica, não se aplicando os efeitos
legalmente previstos entre os casados civilmente. Atualmente, correspondendo à previsão constitucional que
considera o Brasil como Estado laico, já se confere efeito civil aos casamentos realizados em cerimônias de
religiões diversas da Católica, como se consagra pelo exemplo corriqueiro do Candomblé.
2. Neste sentido, cabe observar a previsão normativa inserida no art. 2°, caput e parágrafo único, da Lei n°
6.515/77: Art 2º - A Sociedade Conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; Il - pela nulidade ou
anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. Parágrafo único - O casamento válido
somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio.
3. O texto que constava da redação originária da Carta Magna de 88, sendo modificado com a EC n° 66/10
possuía a seguinte redação: “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separa-
ção judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais
de dois anos.”.
4. Diante da incompreensão contra a qual se buscava justificativa para explicar a necessidade de um procedi-
mento prévio ao Divórcio, verbera Paulo Lôbo (2009, p. 127) acerca da inexistência de razoabilidade para
tanto: “É evidente a dificuldade conceitual existente em compreender, com precisão, o caráter dualista do
sistema de dissolução matrimonial. Não há justificativa lógica em terminar e não dissolver um casamento.
Escapa à razoabilidade e viola a própria operabilidade do sistema jurídico.”.
5. Realizando um esforço hermenêutico para buscar motivos para a utilização do sistema dualista pelo
legislador brasileiro, Pablo Stolze (2011, p. 41) enuncia: “A ideia de exigência do decurso de um lapso
temporal entre a separação judicial – extinguindo o consórcio entre os cônjuges – e o efetivo divórcio –
extinguindo, definitivamente, o casamento – tinha a suposta finalidade de permitir e instar separados a uma
reconciliação antes que dessem o passo definitivo para fim do vínculo matrimonial”.
6. Apesar de alguns autores defenderem, ainda, a existência da separação judicial no ordenamento jurídico
brasileiro, em corrente doutrinária capitaneada pela Professora Regina Beatriz Tavares da Silva (de acordo
com o posicionamento exposto em todo o texto da sua obra A Emenda Constitucional do Divórcio, publicada
em 2011), o entendimento majoritário se direciona para o fim deste instituto prévio ao Divórcio, bem como
para a retirada da análise da culpa para a decretação do término conjugal do casal. Neste sentido, a própria
Exposição de Motivos da Emenda Constitucional do Divórcio traduz o sentido que deve ser seguido após a
modificação perpetrada no §6°, do art. 226 da Carta Constitucional: “[...] Como corolário do sistema jurídico
vigente, constata-se que o instituto da separação judicial perdeu muito da sua relevância, pois deixou de ser a
antecâmara e o prelúdio necessário para a sua conversão em divórcio; a opção pelo divórcio direto possível
revela-se natural para os cônjuges desavindos, inclusive sob o aspecto econômico, na medida em que lhes
resolve em definitivo a sociedade e o vínculo conjugal. [...] Com efeito, se é verdade que não se sustenta a
diferenciação, quanto aos prazos, entre a separação judicial e a separação de fato, tendo em vista a obtenção
do divórcio, é verdade ainda mais cristalina que o próprio instituto da separação não se sustenta mais no
ordenamento jurídico pátrio.”.
7. Em que pese tratar de ordenamento jurídico diverso, Luís Duarte Manso e Nuno Teodósio Oliveira (2010, p.
97), em obra do Direito português, que não mais necessita da análise da culpa para a decretação do divórcio,
prelecionam: “[...] é a importância do casamento e não a sua desvalorização que se destaca quando se aceita o
divórcio, já de si emocionalmente doloroso, pelo que representa de quebra das expectativas iniciais, se transfor-
me num litígio persistente e destrutivo com medição de culpas sempre difícil senão impossível de efectivar.”.
8. Assim, salienta Paulo Lôbo (2009, p. 8) acerca da impossibilidade de sustentação de um instituto que vai de
encontro às normas constitucionais: “[...] Portanto, não sobrevive qualquer norma infraconstitucional que
trate da dissolução da sociedade conjugal isoladamente, por absoluta incompatibilidade com a Constituição, de
acordo com a redação atribuída pela PEC do Divórcio.”
211
ENTRE ASPAS
9 Conforme salientado por Maria Aglaé Tedesco (2012, p. 50): “A culpa da separação não é mais perquirida
em juízo. O divórcio pode ser decretado sem qualquer outro questionamento além da vontade de ao menos uma
das partes. O procedimento judicial do divórcio adquiriu um caráter meramente administrativo, no qual o
outro cônjuge, quando é citado, na verdade está sendo notificado de que será decretado seu divórcio. As razões
do fim do casamento, graves ou não, em nada alteram a decisão de não se conviver mais sob o mesmo teto ou
podem ter força para interferir nos demais direitos e deveres correlatos ao casamento ou união.”.
10. A extinção formal da locução se deve à inexistência de previsão legislativa em qualquer texto, enquanto a
retirada material se coaduna com a extirpação da culpa para a dissolução do vínculo conjugal, alcançada com
a Emenda Constitucional n° 66/10.
11. Art. 317. A ação de desquite só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: (Revogado pela Lei nº
6.515, de 1977). I.[...]; IV. Abandono voluntário do lar conjugal, durante dois anos contínuos.
12. Saliente-se que é sabido que o comando legislativo que se faz referência neste texto não faz referência,
apenas, às relações matrimoniais, mas, também, a todas as formas de família, que atualmente se conformam
em razão dos vínculos de afeto, não possuindo formatos previamente determinados, posto que já se reconhe-
cem inúmeros tipos de família como a anaparental, monoparental, homoafetiva e etc.
13. Acerca da nomenclatura conferida a esta nova hipótese de usucapião, cabe trazer à baila a crítica enunciada
por Flávio Tartuce (2011, p.1): “[...]Apesar da utilização do termo usucapião familiar por alguns juristas,
entende-se ser melhor a adoção da expressão destacada, para manter a unidade didática, visando diferenciar a
categoria da usucapião especial rural ou agrária - que também tem uma conotação familiar -, da usucapião
ordinária, da usucapião extraordinária, da usucapião especial indígena e da usucapião especial urbana coletiva.”.
14. Apesar de ter sido o projeto de lei, que originou a EC n° 66/10, publicamente reconhecido como “PEC do
Divórcio”, inicialmente fora o mesmo denominado como “PEC do Amor”, pois a intenção do legislador era
conferir a possibilidade de encontrar a felicidade àqueles que não podiam se desvincular dos frustrados relaci-
onamentos, haja vista a demora para o fim do vínculo conjugal, e passaram a poder seguir imediatamente em
busca das suas realizações pessoais afetivas com o novo comando legislativo.
15. Elucidando o que se compreende por interpretação sistemática do Direito, esclarece Juarez Freitas (2010,
p. 73): “[...] convém assinalar que todas as frações dos sistema guardam conexão entre si. Daí resulta que
qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras e de valores
componentes da totalidade do Direito. Retido esse aspecto, registre-se que cada preceito deve ser visto como
parte viva do todo, eis que apenas no exame de conjunto tende a ser melhor equacionado qualquer caso
problemático [...]”.
16. Optou-se por não incluir o tratamento da hipótese nas uniões estáveis por centrar-se o presente estudo no
contraponto entre a Lei n° 12.424/11 e a Emenda Constitucional n° 66/10, que pôs fim à discussão da culpa
no Divórcio, retirando do ordenamento a ideia de dissolução da sociedade conjugal, não atingindo, portanto,
as formas de família identificadas pelo art. 1.723 e segs. do Diploma Civil, nada obstante terem sido estas
tratadas pelo dispositivo em discussão.
212
A (IN) COMPATIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA
COM A MORATÓRIA LEGAL TRAZIDA PELO ART. 745-A
DO ESTATUTO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO
Resumo: Desde o início dos anos 90 do século XX, vêm ocorrendo mudanças na legislação
processual civil brasileira, na tentativa de aprimorar a prestação jurisdicional, conferindo-lhe
maior celeridade e efetividade. Entre essas mudanças, costuma-se apontar a promovida pela Lei
nº 11.232/2005 como a mais importante. Não por acaso, pois ela foi responsável por trazer para os
processos em que se busca uma condenação ao pagamento de quantia certa, contra devedor
solvente, a configuração procedimental denominada sincrética. A partir de então, ficava para trás
o entrave burocrático causado pela necessidade de se instaurar um processo de execução autô-
nomo, para fazer valer a decisão judicial que reconhecia a obrigação de pagar quantia certa. Tudo
agora se dá numa mesma base procedimental, passando a execução do julgado a ocorrer numa
fase de cumprimento de sentença. O processo de execução ficaria relegado, doravante, aos
títulos executivos extrajudiciais. No mesmo sentido, a Lei nº 11.382/2006 representou um avanço
para o ordenamento processual civil pátrio, especialmente por criar mecanismos de estímulo ao
cumprimento voluntário de obrigações pecuniárias estampadas em títulos executivos extrajudiciais.
Dentre eles está a moratória legal prevista no art. 745-A do CPC, que permite ao devedor parcelar
o débito, preenchidos os requisitos legais. O propósito, aqui, é verificar, à luz dos princípios
constitucionais, do permissivo constante do art. 475-R do CPC e da diretiva axiológica que
orienta se sacrifique o mínimo possível o devedor (art. 620 do mesmo diploma legal), se esse
instituto é compatível com o cumprimento de sentença, que tem regramento próprio.
1. Introdução
213
ENTRE ASPAS
Essa tarefa, contudo, nem sempre é exitosa, mesmo o Judiciário valendo-se de todas as
ferramentas disponibilizadas pelo ordenamento jurídico processual.
É aí que entra o importantíssimo papel das partes. Muitas vezes, sem a efetiva colabo-
ração delas, notadamente a do devedor, não se consegue fazer valer a vontade da lei substan-
tiva, abalando-se a credibilidade do poder estatal e frustrando as legítimas expectativas daque-
le que teve seu direito violado.
Daí a importância que tiveram as reformas processuais civis ao longo desses anos: ao
mesmo tempo em que procuraram sintetizar ao máximo possível o arquétipo procedimental,
visando, com isso, reduzir o tempo do processo e minimizar esforços, encarregaram-se de
estimular o cumprimento voluntário das obrigações.
É nesse campo fértil, portanto, que surgem, dentre outras, as Leis nos 11.232/05 e 11.382/
06. Aquela, dando nova roupagem à execução de sentença que condena devedor solvente ao
pagamento de quantia certa. Esta, dentre outras virtudes, prevendo mecanismos que estimu-
lam o devedor a cumprir, sponte sua, a obrigação pecuniária que lhe é imputada através de
título executivo extrajudicial.
A dificuldade, no entanto, é saber até que ponto os dois sistemas (cumprimento de
sentença e execução autônoma) podem dialogar, sem perderem suas identidades.
Assim, a questão nodal a ser enfrentada neste ensaio é saber se a moratória do art. 745-A
do CPC, prevista, em tese, apenas para a execução de título executivo extrajudicial, compatibiliza-
se com o cumprimento de sentença, que se aperfeiçoa não mais nos moldes de um processo
autônomo, mas numa fase.
As últimas duas décadas brasileiras foram marcadas por sensíveis mudanças na confi-
guração do processo civil brasileiro. Isso se deve não apenas à necessidade prática de adequa-
ção dos tradicionais institutos jurídico-processuais às vicissitudes sociais, mas especialmente
ao dirigismo constitucional que tanto marcou o Texto Magno de 1988.
Por outras palavras, o constituinte de 1988 não se contentou apenas em arquitetar, num
documento solene, “a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos funda-
mentais”, extraindo-se, daí, a noção de constituição material em sentido estrito (SILVA, 1998, p.
42, b). Foi ele mais audacioso, ao traçar “projetos” (programas) constitucionais que oxigenari-
am a sociedade brasileira (e suas instituições de um modo geral), a ponto de ser possível
acreditar na promessa de um estado de bem-estar social (welfare state).
As conquistas obtidas a partir das balizas constitucionais de 1988 foram sentidas em
diversos aspectos, dentre eles, e é o que realmente interessa nesse estudo, no campo processual.
Mais especificamente no âmbito do processo civil, os ganhos foram incomensuráveis,
ainda que gradativos, conforme foram se implementando as reformas constitucionais e legais.
Nesse particular, a emenda constitucional nº 45, que desenhou a chamada Reforma do Judici-
ário, inaugurou mais uma etapa do aperfeiçoamento das instituições estatais e reforçou o
seleto e generoso rol de direitos e garantias fundamentais.
Nesse diapasão, o constituinte reformador não poderia deixar de escapar a oportunida-
de de dirimir dois dos maiores problemas que, de longa data, são enfrentados pelo Poder
Judiciário brasileiro: a inefetividade e a morosidade.
214
A REVISTA DA UNICORP
O primeiro passo para superar tais enfermidades foi reconhecê-las. Assim, constatan-
do que, embora relevantíssima, a garantia (ou direito, dada a conotação híbrida de uma série
de prescrições constitucionais) da inafastabilidade jurisdicional (art. 5º, XXXV, CRFB) não
foi suficiente, por si só, para propiciar a celeridade na tramitação dos processos, tanto em
âmbito judicial quanto no âmbito administrativo (SILVA, 2007, p. 176), desincumbiu-se o
constituinte da tarefa de promover a nível constitucional o postulado da celeridade proces-
sual, consagrado, nesse panorama, como princípio da razoável duração do processo (art.
5º, LXXXVIII, CRFB).
Pontua Alexandre de Moraes (2006, p. 94), com acerto, que o sobredito princípio não é
uma novidade no cenário constitucional brasileiro, de modo que já estaria ele contemplado na
cláusula pétrea do devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB) e no princípio da eficiência
administrativa (art. 37, caput, CRFB).
Na mesma linha de raciocínio, Alexandre Freitas Câmara (2008a, p. 57) pondera que o
princípio da razoável duração do processo já se encontrava positivado no ordenamento jurídi-
co nacional, com a ratificação, em 1992, do Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, 1).
Percebe-se, portanto, que o comando constitucional de que ora se ocupa foi, e continu-
ará sendo, uma tentativa primorosa de apagar as cicatrizes deixadas pela inefetividade e pela
morosidade que tanto marcaram a prestação jurisdicional no Brasil.
Dessa concepção, aliás, exsurgiu a necessidade de cunhar mecanismos que dessem ao
processo civil brasileiro uma maior dinâmica, superando as amarras burocráticas que só
maculavam a imagem do Judiciário brasileiro.
Começa a ganhar força, então, a ideia de sincretismo processual.
Por sincretismo processual entenda-se a possibilidade de satisfação, dentro do mesmo
processo, do comando judicial, dispensando-se, pois, a instauração de uma nova “base
procedimental” (MOUTA, 2009, p. 112), com o consequente desdobramento de novos atos
processuais característicos da fase de cognição, como citação, embargos do executado etc.
A proposta, a partir da institucionalização desse sistema de satisfação das obrigações
constantes de títulos executivos judiciais, foi relegar o chamado processo de execução aos
títulos executivos extrajudiciais.
A adoção de um modelo sincrético de processo nada mais representa, em boa medida,
do que o atendimento ao que, a partir da EC nº 45, a Constituição Federal de 1988 chamaria de
“meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXXVIII).
Hoje, certamente, falar em instauração de um processo de execução ex intervallo (CÂ-
MARA, 2008a, p. 430), para fazer valer uma determinação judicial, pode soar aberrante. Mas até
pouco tempo não o era. Isso porque, antes de 1990, a regra era, tanto para a execução de título
executivo extrajudicial, quanto para o judicial, a instauração de um processo autônomo para
garantir a satisfação do direito. Embora, frise-se, já se noticiasse a existência de demandas com
caráter sincrético, como a ação de despejo e as ações possessórias, sem falar na própria
execução da decisão que antecipava os efeitos da tutela (art. 273, CPC).
Como resultado dessa configuração burocrática do processo civil brasileiro, que exigia
a instauração de duas demandas sucessivas, para realizar, concretamente, aquilo que já havia
sido certificado na decisão judicial, tinha-se uma verdadeira síndrome de inefetividade da
tutela jurisdicional. Não porque deixava-se de dar ao credor (ou exequente) aquilo e exatamente
aquilo que pleiteou com o ajuizamento da demanda (o que também não era raro, dada a inten-
ção, na maioria dos casos deliberada, do devedor – executado – em frustrar a satisfação do
crédito, e as dificuldades de se encontrar bens do executado passíveis de penhora e expropri-
215
ENTRE ASPAS
ação), mas, sobretudo, em virtude do desgaste propiciado pelo tempo despendido até que a
pretensão executiva fosse satisfeita.
Ninguém ousa discordar que tutela jurisdicional tardia é tutela inefetiva, ou, como
chega a afirmar a doutrina (GRINOVER, 2007, p 93), “não é verdadeira justiça”.
Foi nesse cenário em que começaram a surgir, paulatinamente, as reformas processuais,
tendentes a aperfeiçoar a prestação jurisdicional e a viabilizar, em sua máxima extensão, os
direitos episodicamente fragilizados.
A bem da verdade, o chamado processo sincrético já existia, notabilizando-se, especial-
mente, para aqueles que as admitem, através das sentenças mandamentais e executivas latu
sensu. Por elas, a atividade executiva é um braço da etapa cognitiva, de sorte que o comando
decisório dispõe de força suficiente para entregar a prestação ao credor, com a colaboração
direta do devedor (execução indireta, mediante coerção pecuniária - multa), ou independente
dela (execução direta ou por sub-rogação).
Eis o verdadeiro sentido das chamadas sentenças de força (GRECO FILHO, 2009, p. 9).
É imperioso registrar que art. 84 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), já em
1990, tornou sincréticas todas as ações que tivessem por objeto obrigação de fazer ou não
fazer, no âmbito da tutela coletiva. Em 1994 (com a Lei nº 8.952), o art. 461 do CPC sofreu os
influxos do mencionado dispositivo, passando as tutelas individuais, referentes às obriga-
ções de fazer e não fazer, também serem sincréticas. Mesmo ano, diga-se de passagem, do
surgimento expresso da figura da tutela antecipada no ordenamento jurídico pátrio (art. 273
CPC), sendo esta, como visto, satisfeita no bojo do mesmo arquétipo procedimental.
Em 1995, a Lei nº 9.079 acrescenta ao CPC a ação monitória, importante mecanismo de
que pode se valer aquele que, pretendendo o pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa
fungível ou de determinado bem móvel, não dispõe de prova escrita com eficácia de título
executivo (art. 1.102.a, CPC).
Ainda em 1995, com o advento da Lei nº 9.099/95 (diploma que rege os Juizados Espe-
ciais Estaduais), sacramentou-se, no âmbito do microssistema, a dispensabilidade de ação
autônoma de execução de título judicial, a qual continuaria valendo para os títulos executivos
extrajudiciais.
Em 2002, através da Lei nº 10.444, o sincretismo processual alcança, em definitivo, as
obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa diversa de dinheiro (art. 461-A, CPC) (CÂ-
MARA, 2008a, p. 430). O mesmo ocorreria mais tarde (em 2005), com a edição da Lei nº 11.232
(conhecida como a lei do cumprimento de sentença), que transformaria o processo de execu-
ção de título executivo judicial para pagamento de quantia certa em fase de cumprimento de
sentença, que tem no artigo 475-J, ao lado do art. 475-N, a sua coluna vertebral (COSTA
MACHADO, 2008, p. 540).
As mencionadas reformas processuais não se contentaram em, apenas, sintetizar a
nível procedimental o caminho percorrido em busca da satisfação do crédito. Tiveram elas a
felicidade de criar mecanismos que estimulassem o devedor a, voluntariamente, cumprir a
prestação perseguida.
Essa cartada, indiscutivelmente, não foi à toa, na medida em que, mais uma vez, só fez o
legislador atender ao quanto prescrito pelo Texto Magno (mesmo antes da EC 45), ao dispor que
a todos devem ser assegurados os meios que garantam a celeridade da tramitação processual.
Dentre tais meios tem-se as chamadas sanções premiais, ou favor debitoris, de que são
exemplos: a isenção de custas e honorários para o devedor que cumprir o mandado monitório
(art. 1102-C, § 1º, CPC); a previsão de redução em 50% dos honorários, para o devedor que
216
A REVISTA DA UNICORP
efetuar o pagamento do crédito exequendo nos 03 (três) dias que se seguem à sua citação
(art. 652-A, par. único CPC); e a chamada moratória legal (art. 745-A CPC), instituída pela Lei
nº 11.382/06, instituto, aliás, que será mais detidamente analisado no presente ensaio.
Muito mais do que compreender a exata noção acerca do instituto da moratória legal do
art. 745-A, o presente estudo tem por meta primária verificar se há condições práticas para a sua
aplicação na fase de cumprimento de sentença, já que, como se verá, ela foi, inicialmente,
pensada para a execução de títulos executivos extrajudiciais.
Mas somente de longe a questão é pacífica, já que se vislumbram posicionamentos
completamente destoantes no âmbito da doutrina e dos tribunais brasileiros, o que só foi
reafirmado após a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), consoante se verá (3.6 infra).
217
ENTRE ASPAS
Assim, qualquer limitação aos direitos fundamentais deve ser medida excepcional, e
sempre orientada pela razoabilidade e pela proporcionalidade.
Vale consignar, por oportuno, que preferiu-se utilizar aqui a designação dignidade da
pessoa, embora o texto constitucional refira-se apenas ao ser humano (SILVA, 2007, p. 38a),
pois, como já consagrado pela lei (art. 52, Código Civil Brasileiro) e pelos Tribunais (enunciado
227 da súmula do STJ), alguns atributos personalíssimos são reconhecidos à pessoa jurídica
(como o nome empresarial, a honra objetiva etc.).
Desta forma, conquanto não se esgotem nos direitos da personalidade1, os direitos
fundamentais (gênero) os têm como espécie, de modo que a proteção (seja através da imuniza-
ção do patrimônio mínimo, seja pela previsão de mecanismos que viabilizem a satisfação da
obrigação da maneira menos onerosa) conferida ao devedor pessoa física também alcança, no
que couber, a pessoa jurídica.
Não por outra razão o Ministro Luiz Fux (AgRg no Ag 963225 / RJ, 1ª T., Rel. Min. Luiz
Fux, DJe 20/10/2008) fez questão de deixar claro que:
218
A REVISTA DA UNICORP
prejudicada a habitação adequada (Inf. 387 – REsp 968.907-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 19/3/2009). É preciso considerar, contudo, recente decisão da Corte, que afastou a
alegação de impenhorabilidade de bem imóvel, uma vez demonstrada a má-fé do devedor, ao
esvaziar seu patrimônio, no intuito de frustrar a execução (REsp 1.299.580, 3ª. T., Rel. Min.
Nancy Andrighi, julgamento em 20/03/2012); b) bens móveis que guarnecem a residência do
devedor, tais como “televisores, máquinas de lavar, micro-ondas, aparelhos de som e de ar-
condicionado, computadores e impressoras” (Reclamação 4.374, Rel. Min. SIDNEI BENETI -
SEGUNDA SEÇÃO; Inf. 319 - REsp 161.262-RS, DJ 5/2/2001. REsp 831.157-SP, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, julgado em 3/5/2007. REsp 875.687, 4. T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE
19/08/2011); c) o fato de ter indicado à penhora bem considerado de família não impede a
oposição dessa condição, não implicando renúncia, nem caracteriza má-fé, “... máxime por
tratar-se de norma cogente que contém princípio de ordem pública...”(AgRg no REsp 813546 /
DF, Rel. Do acórdão Ministro LUIZ FUX, julgamento 10/04/2007), assim como “a regra proces-
sual de prestação de caução real ou fidejussória (art. 804 do CPC) não implica em renúncia à
proteção legal da impenhorabilidade do bem de família” (3ª Turma, REsp 660868 / SP, Rel. Min.
NANCY ANDRIGHI, unânime, Data do Julgamento 28/06/2005, DJ de 01/08/2005); d) dinheiro
depositado em conta vinculada à sistema de financiamento habitacional (Inf. 390 – REsp
707.623-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 16/4/2009).
Ora, por essas e outras razões, são sempre bem-vindas as inovações legislativas que permi-
tem ao devedor (executado) o cumprimento da obrigação de uma maneira menos drástica, onerosa.
Pode-se ir além nesse raciocínio: esses métodos de estímulo, de que é exemplo a mora-
tória do art. 745-A do CPC (objeto desta investigação), acabam sendo os únicos caminhos para
se viabilizar a satisfação do crédito. Assim, como a execução se pauta pelo princípio da
utilidade (art. 659, § 2º CPC), nada mais razoável que evitar esforços desnecessários, consis-
tentes no emprego das técnicas executivas tradicionais (penhora, expropriação etc.), e prestigiar
o princípio do resultado, permitindo-se que a obrigação seja adimplida em consonância com
as forças do devedor, mas de acordo com os limites legais (como se verá).
Afinal, como se diz na gíria do futebol, “às vezes é melhor com jeito do que na força”.
É possível conceituar a benesse trazida pelo art. 745-A do CPC como uma medida de
política legislativa cunhada para dirimir a crise de inefetividade da tutela jurisdicional, permitin-
do, dentro de certo lapso temporal, e atendidos certos requisitos, que o credor recupere seu
crédito, sem que se faça necessário impingir ao devedor o pesado ônus da atividade executiva
(perspectiva teleológica do instituto).
Vicente Greco Filho (2009, p. 136) concebe a moratória legal como uma espécie de favor
debitoris (art. 620 CPC), já que, dentro dessa concepção, é permitido ao devedor cumprir a
obrigação circunscrita no título executivo, de forma menos onerosa.
O mesmo autor pondera tratar-se a moratória legal de hipótese interessante, “porque
pode ser meio de viabilizar o pagamento, com a satisfação do credor suavizando a situação do
devedor” (2009, p. 137).
Humberto Theodoro Junior (2007a, p. 464) esclarece que o referido artigo criou “uma
espécie de moratória legal, como incidente da execução do título executivo extrajudicial por
quantia certa, por meio do qual se pode obter o parcelamento da dívida”.
219
ENTRE ASPAS
3.2. Requisitos
Os requisitos para a obtenção do parcelamento de que trata o art. 745-A são alinhava-
dos pelo próprio dispositivo:
II) Comprovação do depósito de, no mínimo, 30% (trinta por cento) do valor em execu-
ção, inclusive custas e honorários de advogado: impõe-se ao devedor, além do reco-
220
A REVISTA DA UNICORP
III) Prazo de 15 (quinze) dias para pedir o parcelamento: o dispositivo legal exige que o
pedido de parcelamento seja feito no prazo para oferecimento dos embargos, que é de
15 (quinze) dias, contados da data da juntada aos autos do mandado de citação (art. 738
do CPC). Tem-se entendido que tal prazo é peremptório, não admitindo flexibilização,
mormente por se tratar de um benefício, cuja fruição, conforme se verá, fica ao talante do
devedor (JTJ 334/140: AI 7.293.184-1; cf. THEOTÔNIO NEGRÃO, 2011, p. 893). Logo,
assim como os negócios jurídicos benéficos (art. 114 do Código Civil), é preciso que,
enquanto faculdade que é (assim entende-se majoritariamente), seja interpretada literal
ou estritamente. Apesar da pertinência da advertência feita por Elpidio Donizetti (apud
ASSIS, 2010, p. 554), no sentido de que, mesmo transcorrido o prazo legal para o pedido
de parcelamento, seria admissível (por se tratar de prazo dilatório) servir-se o devedor
da moratória, quando houver conveniência para a execução, respeitando-se, e tendo em
conta a anuência do credor, tal circunstância não se resolve pela aplicação deste dispo-
sitivo. Entenda-se: sendo certo que o CPC admite a celebração, pelas partes, de negó-
cios processuais (art. 158, caput), produzindo-se, a partir deles, a imediata constituição,
modificação ou extinção dos direitos instrumentais a que se referirem, a hipótese venti-
lada pelo ilustre processualista se resolve à luz do que dispõe o art. 792, caput, do CPC,
que permite ao juiz “suspender a execução durante o prazo concedido pelo credor, para
que o devedor cumpra voluntariamente a obrigação”. A vantagem deste dispositivo, em
comparação ao art. 265, II do CPC (que também prevê uma paralisação convencional do
feito, a fim de tentarem as partes chegar a um acordo), é que este só permite a suspensão
por até 06 (seis) meses (art. 265, § 3º, CPC), enquanto aquele não fala em limite temporal,
sendo este, apenas, o necessário para o cumprimento do acordo celebrado pelas partes
(CÂMARA, 2008b, p. 394). De mais a mais, ao prever essa quantidade de meses para
parcelar o restante do débito, o legislador somente procurou traçar limites mínimos, de
sorte que nada impede que o devedor lance mão de um número inferior de parcelas,
mesmo porque pode ser ele tão interessado quanto o credor na satisfação do crédito;
221
ENTRE ASPAS
tária e juros de 1% (um por cento) ao mês (TJPR 16ª Câm., Ag. nº 0414077-8, Rel. Hélio
Henrique Lopes Fernandes Lima, j. 08.05.2007; cf. MARCATO, 2008, p. 2371).
O que até aqui se viu foram as condições legais para que o favor seja deferido. Aliás,
neste caso, o credor poderá, de imediato, levantar a quantia depositada, suspendendo-se os
atos executivos. Caso contrário, indeferido, determinará o magistrado o prosseguimento dos
atos executivos, ficando mantido o depósito (art. 745-A, § 1º, in fine, CPC).
A propósito, se já houve penhora, a mesma será mantida até que se aperfeiçoe o total
adimplemento das parcelas. Se não, a mesma não poderá se verificar, tendo em vista a determi-
nação de suspensão dos atos executivos (THEODORO JR., 2007, p. 465).
Do outro lado da moeda, há as consequências para aquele que obteve o parcelamento,
mas deixou de adimplir alguma prestação (ou todas elas): a) vencimento antecipado, de pleno
direito, das parcelas restantes (no caso de adimplemento parcial), as quais sofrerão acréscimo
de 10% (dez por cento), à semelhança do que ocorre no cumprimento de sentença, para aquele
que satisfaz apenas parcialmente o crédito (art. 475-J, § 4º, CPC); b) início dos atos executivos
que ficaram suspensos (art. 745-A, § 1º, CPC); c) impossibilidade de manejo de embargos, na
medida em que, como visto, operou-se a preclusão lógica.
Dessa última consequência (c), é possível concluir que o executado ficou de mãos
atadas, não podendo mais agitar qualquer tipo de defesa ou insurgir-se contra eventuais
ilegalidades que detectar?
Ora, qualquer pessoa que tenha sua esfera patrimonial ou moral atingida, ou na iminência
de sê-lo, tem o direito (e também a garantia) constitucional de requer, judicialmente, a devida
reparação ou compensação (quando já houve a violação do direito), ou, ainda, a inibição da
conduta ultrajante (art. 5º, XXXV, CRFB). Esse comando que exsurge do texto constitucional
encerra o princípio do acesso à justiça ou da inafastabilidade jurisdicional.
Portanto, seria incoerente se o sistema vedasse ao devedor, que não conseguiu hon-
rar o parcelamento obtido nos moldes do art. 745-A do CPC, o direito de se insurgir dentro do
processo. O que se veda ao devedor é a oposição de sua defesa típica, apta a tocar o mérito
da causa. Por isso mesmo que lhe é assegurado, conforme leciona Araken de Assis (2010, p.
559), valer-se de objeção de não-executividade (medida processual utilizada para arguir ma-
téria de ordem pública, a qualquer tempo e grau de jurisdição) e, se houver tempo hábil, das
exceções processuais previstas no art. 746 do CPC (cf. THEODORO JR., 2007, p. 466;
MARCATO, 2008, p. 2370).
222
A REVISTA DA UNICORP
Tais direitos, quando sujeitos a prazo para exercício, podem decair, mas nunca prescrever.
Reside aí, justamente, a distinção que se faz entre direitos a uma prestação e direitos potestativos.
Aqueles dependem da cooperação de outrem (sujeito passivo) para serem satisfeitos. Estes
(potestativos), como se viu, não. Os direitos a uma prestação podem ser fulminados pela prescri-
ção e sua satisfação é implementada através de ação condenatória. Mas veja-se, com o mesmo
Humberto Theodoro Junior (2007b, p. 230), que apenas a pretensão (direito de exigir de outrem
uma ação ou omissão, conforme BGB alemão - § 194) é atingida pela prescrição, já que o direito
permanece intacto, ficando sua satisfação, doravante, ao puro alvedrio do sujeito passivo (é a
ideia de obrigação natural). Os direitos potestativos, por sua vez, se não exercidos dentro do
prazo (quando este existir, eis que existe uma categoria destes que é marcada pela perpetuidade
e, portanto, dependem do manejo de ação constitutiva), padecerão em virtude da decadência.
Não se perca de vista que, ao falar em direito potestativo, está-se a falar, igualmente, em
faculdade, ou seja, um direito cujo exercício, ou não, depende, única e exclusivamente, da
vontade do seu titular. Faculdade que pode ser legal ou convencional, e se não exercida no
prazo (caso haja) enseja a decadência, que, na primeira hipótese, conforme dicção do Código
Civil de 2002 (CC/02), deve ser reconhecida de ofício pelo juiz (art. 210), e no segundo, depende
de manifestação da parte a quem aproveita, que pode fazê-lo em qualquer grau de jurisdição,
não podendo o juiz suprir a alegação (art. 211).
Traçada essa sinopse acerca da distinção entre direitos potestativos e direitos a uma
prestação, habilitados estamos a ponderar se o parcelamento do débito pelo devedor (executa-
do) é ou não uma potestade.
Antonio Cláudio da Costa Machado (2008, p. 1096) preleciona que o deferimento da pro-
posta de parcelamento não é automático, já que, havendo a necessidade de perquirir se o deve-
dor preenche os requisitos legais, defere-se certa margem de discricionariedade ao magistrado.
No mesmo sentido, Vicente Greco Filho (2009, p. 137) assinala que não se pode tomar a
presente moratória como um direito potestativo do devedor, sob pena de penalizar o credor que “já
pode estar esperando por meses ou anos a satisfação de seu crédito reconhecido e incontestável”.
Tem-se, por outro lado, aqueles que, como Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade
Nery (2010, p. 1137), entendem que o favor legal do art. 745-A do CPC prevê um “direito
subjetivo do executado de pagar parceladamente a dívida”, nada obstante deva preencher os
requisitos legais. Direito, aliás, ao qual não poderá se opor o exequente.
Apesar da designação “direito subjetivo” do executado, utilizada pelos autores citados
no parágrafo anterior, o próprio contexto em que ela foi utilizada, a partir de um diagnóstico
segundo o qual a oposição do credor seria irrelevante, uma vez satisfeitos os requisitos pelo
devedor, evidenciam que eles consideram tratar-se de um direito potestativo, conforme distin-
ção aqui já realizada.
A mesma orientação é compartilhada por Humberto Theodoro Junior (2007a, p. 464),
que considera a moratória ora tratada como “uma faculdade que a lei cria pra o executado, a
quem cabe decidir sobre a conveniência ou não de exercitá-la”.
Araken de Assis (2010, p. 553) salienta que a opção do devedor pela moratória, preen-
chidos os pressupostos legais, “subordina o órgão judiciário e o exequente”.
Embora se reconheça ao executado a faculdade de valer-se ou não da moratória legal,
sem que a isso possa o juiz ou o exequente se opor (MARCATO, 2008, p. 2369), Fredie Didier
Junior e outros, no editorial 145 (2012), alertam que “o juiz tem o dever-poder de indeferir o
parcelamento e, o exequente, o direito de impugnar tal pedido, sempre que o executado não
atender às exigências contidas”.
223
ENTRE ASPAS
As entrelinhas das questões até aqui esboçadas talvez tenham deixado no ar uma per-
gunta: o parcelamento do débito, nos termos do art. 745-A do CPC, exige anuência do credor?
O dispositivo legal sob análise só traz uma diretiva comissiva voltada para o credor
(exequente): a possibilidade de o mesmo levantar os 30% (trinta por cento) do crédito reconhe-
cido, depositados pelo devedor, ao pedir o parcelamento, caso seja o mesmo admitido (§ 1º).
Induvidosamente, não fala o texto legal em aceitação do credor como condição para que
o crédito possa ser parcelado a pedido do devedor. E realmente não poderia haver tal condici-
onamento, sob pena de, conforme Pinto (apud ALVES, 2011, p. 2), promover-se um desequilíbrio
224
A REVISTA DA UNICORP
na relação entre credor e devedor, mormente porque, conquanto tenha aquele o direito de ver
satisfeito seu crédito, no menor espaço de tempo possível, tem este o direito de fazê-lo da
maneira menos onerosa para si (art. 620, CPC).
Veja-se que, embora não se vislumbre a necessidade de anuência do credor (TJ-RS 7ª
Cam., Ag. nº 70020408167, rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 10.08.2007; cf. MARCATO, 2008, p.
2370), a sua oitiva é obrigatória, como corolário do princípio constitucional do contraditório (art.
5º, LV, CRFB). Mas como não há qualquer prazo específico para tal manifestação, e não tendo o
juiz fixado, cai-se na regra geral do art. 185 CPC, pela qual a parte terá 05 (cinco) dias para fazê-lo.
Segundo Alexandre Freitas Câmara (2008a, p. 49b), o referido princípio revela-se a partir
de dois enfoques: o político e o jurídico. No primeiro, por ser o universo normativo indissociável
do real, na medida em que, por exemplo, quanto mais se aproxima de um modelo estatal assen-
tado em balizas democráticas, maior a importância que se dá a este princípio. No segundo
enfoque, tem-se que o princípio em comento exige que não apenas se dê a outra parte o
conhecimento acerca dos atos e fatos desencadeados no curso do processo, mas lhe seja
oportunizada a manifestação efetiva sobre eles.
Nesse diapasão, o contraditório é mais do que uma diretiva principiológica carregada
de densidade política, é a verdadeira essência daquilo que se entende por processo (CÂMA-
RA, 2008a, p. 50).
Por isso mesmo, não se pode furtar ao credor o direito de ser ouvido acerca do pedido
de parcelamento do seu crédito imputado ao devedor (THEOTÔNIO NEGRÃO, 2011, p. 893).
Até porque ele pode trazer informações importantíssimas, que podem passar despercebidas
pelo magistrado, como a intempestividade do pedido, ou mesmo a incompletude do depósito,
levando-se em conta a totalidade do crédito reconhecido, entre outras questões relevantes
que podem ser arguídas (ASSIS, 2010, p. 558).
A propósito, uma indagação parece ter lugar quando se fala em incompletude do depó-
sito prévio ao pedido de parcelamento: há possibilidade de apresentação de impugnação
(embargos) quanto ao que o devedor entende por indevido ou como excesso, fazendo o
depósito de pelo menos 30% (trinta por cento) daquilo que entende pertinente? Ou seja, a regra
se aplica caso não haja o reconhecimento da totalidade do crédito pretendido?
É o que se pretende investigar no próximo tópico.
225
ENTRE ASPAS
Até aqui já foi possível, acredita-se, fazer um raio-x da espécie de moratória legal insti-
tuída pelo art. 745-A do CPC, apontando algumas polêmicas e soluções.
Procurou-se, também, fazer um relato abreviado das modificações que vêm sendo
introduzidas na configuração original do processo civil brasileiro, todas com o nítido propósi-
to de obter o máximo resultado, num mínimo espaço de tempo e com o menor esforço possível.
Pois bem. A generalização do modelo procedimental batizado de sincrético foi bastante
comemorada pelos processualistas brasileiros e prestigiada pelos tribunais pátrios. Não por
acaso, na medida em que o ritual do processo civil brasileiro ganhou contornos muito mais
abreviados a partir desse modelo procedimental, de sorte que a estrutura processual, para
entregar o bem da vida ao credor, hoje já não precisa ser cindida (e sensivelmente alongada),
com a instauração de um processo (novo) de execução.
Com isso, o título executivo judicial que emerge do procedimento cognitivo (mais ou
menos abreviado) passa a ser, por si só, suficiente para fazer valer seu comando (fazer, não
fazer, entregar e pagar dinheiro). O que se dá, como visto, no bojo de uma mesma base
procedimental (que é igual a uma fase de conhecimento mais uma fase de execução).
Nesse contexto, pois, não se fala mais em processo de execução, mas em fase de cumpri-
mento de sentença (arts. 475-I a 475-R do CPC), na qual os atos executivos se desenrolam num
mesmo curso causal, cuja razão de ser é a satisfação do quanto reconhecido no comando decisório.
O processo (autônomo) de execução, não se olvide, subsiste no sistema para os títulos
executivos extrajudiciais, aqueles que, diferentemente dos judiciais, são formados sem a inter-
226
A REVISTA DA UNICORP
venção do Judiciário (não precisa ser uma decisão judicial – como a sentença arbitral, art. 475-
N, IV CPC), mas que justificam, igualmente, a instauração de execução forçada, posto equipa-
rados em eficácia pelo CPC de 1973 (CÂMARA, 2008b, p. 177).
Observe-se que essas considerações se fazem necessárias, a partir do momento em que
se pretende, neste ensaio, verificar se há compatibilidade entre o instituto da moratória legal de
que cuida o art. 745-A do CPC e a fase de cumprimento de sentença, mais especificamente
quando se tem uma condenação de pagar quantia.
Aparentemente essa pode ser uma discussão vã, já que o mencionado instituto, literal
e topologicamente, refere-se à execução de título extrajudicial.
Literalmente, porque o dispositivo fala em embargos e em exequente (figuras típicas do
processo de execução). Topologicamente, porquanto está localizado fora do capítulo que trata
do cumprimento de sentença (Livro I, Título VIII, Capítulo X do CPC), no qual se tem como
meio típico de defesa o incidente da impugnação (art. 475-J CPC), e dentro do capítulo da ação
de embargos à execução (Livro II, Título III, Capítulo III), meio ordinário de defesa na execução
de título executivo extrajudicial.
Tais critérios, contudo, não são suficientes para enclausurar os procedimentos da
fase do cumprimento de sentença e do processo de execução, impedindo que os mesmos
dialoguem entre si.
Tal premissa decorre da unidade do ordenamento jurídico (FERRAZ JUNIOR, 2003, p.
288), cujas partes precisam manter-se em sincronia, para não se desfigurar a ideia de sistema, de
organismo pulsante, que daí decorre.
Pensando nisso, o legislador se encarregou de dispor, assim como o fez no art. 598 do
CPC 2, que as regras do processo de execução de título extrajudicial aplicam-se,
subsidiariamente, ao cumprimento de sentença, no que couber (art. 475-R do CPC).
A subsidiariedade estampada no texto recomenda, não há como negar, que apenas
quando faltar (aparentemente), ou for insuficiente, um regramento específico para determinada
situação, deve-se lançar mão dos mecanismos previstos para a outra arquitetura procedimental.
Em verdade, o CPC brasileiro não descuidou ao tratar do cumprimento de sentença que
reconhece a obrigação de pagar quantia certa. Pelo contrário, fê-lo ao longo do Capítulo X do
seu Título VIII do Livro I, delimitando, por exemplo, que se o devedor não pagar aquilo que lhe
é imputado pelo título executivo judicial, no prazo de 15 dias3, o débito será acrescido de 10%
(dez por cento), nos termos do art. 475-J, caput; e se a inadimplência for apenas parcial, o
acréscimo daquela percentagem recai apenas sobre o saldo (art. 475-J, § 4º).
Da mesma forma, trouxe a previsão do incidente de impugnação ao cumprimento de
sentença (art. 475-J, § 1º), que é o meio de defesa típico daquele que é condenado a pagar
quantia certa, podendo fazê-lo no prazo de 15 (quinze) dias após a juntada aos autos do
mandado de intimação da penhora. As matérias que podem ser arguidas por meio desse ins-
trumento defensivo encontram-se elencadas no art. 475-L do CPC.
Nota-se, portanto, em breve síntese, que a estrutura procedimental apta a fazer valer o
comando decisório, que reconhece a obrigação (do devedor solvente) de pagar quantia certa,
esta demarcada nos dispositivos indicados.
Mas será, então, que há espaço para aplicar-se a moratória legal de que ora se trata na
fase de cumprimento de sentença?
O STJ, em recente julgado (REsp 1.264.272-RJ, 4T, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de
22/06/2012), entendeu que sim! Do acórdão referido pode-se extrair dois vetores axiológicos
(explícitos) que orientaram a conclusão (unânime): a) o princípio da efetividade processual,
227
ENTRE ASPAS
228
A REVISTA DA UNICORP
Com a devida vênia, quem garante que os atos executivos, que vão desde a (pré)
penhora até a expropriação dos bens do devedor, conseguirão desdobrar-se num espaço de
tempo inferior a 06 (seis) meses (prazo máximo do favor legal)? O que se tem visto, pelo
contrário, são os processos judiciais ganharem contornos dramáticos, especialmente ao in-
gressarem na fase executiva.
Fredie Didier Junior (Editorial 145, 2012) também se insurge quanto à possibilidade
aventada, sob a alegação de que tal proceder iria de encontro à coisa julgada formada em
proveito do exequente, dado que não seria franqueado ao devedor reconhecer aquilo que já o
foi pelo título executivo judicial, e a cujo respeito operou-se a preclusão. Além disso, sustenta,
o cumprimento de sentença possui regramento próprio (art. 475-I a 475-R, CPC), de sorte que,
inexistindo lacuna nele, não há que se falar em aplicação da moratória legal (art. 745-A. CPC).
Por isso mesmo, justifica, a falta de pagamento integral do débito, no prazo de 15 (quinze) dias,
implica, por expressa disposição legal, a incidência de multa sobre o restante (art. 475-J, § 4º,
CPC). Posicionamento igualmente perfilhado por parte dos Tribunais brasileiros, como se
nota dos seguintes excertos: RMDAU 20/152: TJRS, AI 70026252734, dec. mon.; JTJ 330/112
(AI 797.334-5/0-00), 349/48 (AI 990.09.297896-9) (cf. THEOTÔNIO NEGRÃO, 2011, p. 893). No
mesmo sentido: TJRJ - 2007.002.21576 – AI - 1ª Ementa – 13ª T., Rel. Des. Sergio Cavalieri Filho
– Julgamento: 22/08/2007.
Com todo o respeito àqueles que se alinham a esse pensamento, a proposta de
parcelamento da obrigação pecuniária, certificada através de uma decisão (título executivo)
judicial, em nada compromete a higidez do conteúdo decisório. Pelo contrário, só o reforça, na
medida em que, ao abster-se, por exemplo, da faculdade de recorrer e eventualmente
desconstituir a prescrição normativa individual que exsurge do decuisum, o devedor, inclusive
o que inicialmente tenha resistido à pretensão adversária, potencializa e acelera a eficácia
decisória, a qual, em muitos casos, ficaria suspensa (efeito suspensivo).
Se feito o pedido de parcelamento pelo devedor, por outro lado, no prazo para pagamen-
to (nos 15 dias a que se refere o caput do art. 475-J do CPC), posto ter deixado escoar o prazo
para recurso, evita-se os dissabores de eventual impugnação, que também poderá ter efeito
suspensivo (art. 475-M, caput, CPC).
Assim, diante das peculiaridades que cercam o processo sincrético, parece razoável
admitir-se dois momentos para se pedir o parcelamento do débito: i) no prazo para recurso,
que pode variar conforme o rito a que submetido o processo; ii) ou no prazo de 15 (quinze)
dias de que dispõe o devedor para pagar, a fim de evitar o acréscimo de 10% (dez por cento)
sobre a condenação.
Tal conclusão se deve ao fato de que, assim como os embargos à execução figuram
como poderosa ferramenta à disposição do executado, para desconstituir a presunção favorá-
vel ao credor, que decorre do título executivo extrajudicial, o mesmo se pode dizer dos recursos
(e por que não da impugnação?) de que dispõe o devedor condenado ao pagamento de quantia
certa. Em ambos os casos, a opção tempestiva pelo parcelamento implica, como decorrência da
preclusão lógica, no reconhecimento do débito e na abstenção da faculdade de insurgir-se
contra o título executivo.
Além disso, frise-se, as consequências do descumprimento do parcelamento são seme-
lhantes às do cumprimento parcial da obrigação de pagar quantia na fase de cumprimento de
sentença: incidência da multa de 10% (dez por cento) sobre o saldo devedor e a deflagração
dos atos executivos (art. 475-J, § 4º cc art. 745-A, § 2º, CPC).
Inegavelmente, a adoção da moratória legal (art. 745-A, CPC) na fase de cumprimento de
229
ENTRE ASPAS
5. Conclusão
Referências ________________________________________________________________________
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231
ENTRE ASPAS
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DIDIER JUNIOR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do Novo Código Civil no Direito Processual.
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WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. V. 2: Execução. 11.ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
Notas ______________________________________________________________________________
1. É oportuno lembrar o teor do enunciado 274, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, do Conselho da
Justiça Federal: Art. 11: Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil,
são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição
(princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os
demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação.
2. Art. 598, CPC: Aplicam-se subsidiariamente à execução as disposições que regem o processo de conhecimento.
3. Em razão da finalidade deste ensaio, procura-se evitar maiores delongas em torno da discussão acerca do
termo inicial da contagem dos 15 (quinze) dias para a incidência da multa. Mas a título de informação,
costuma-se apontar a existência de 03 (três) correntes: para a primeira, da qual é adepto, entre outros,
Humberto Theodoro Junior, o prazo começa a ser contado a partir do instante em que a decisão torna-se
eficaz, ou seja, (i) com o trânsito em julgado, (ii) quando sujeita a recurso sem efeito suspensivo (o que foi
rechaçado pelo STJ - REsp 1.152.606, 4T, Min. Rel. Aldir Passarinho Junior, DJE de 02/06/2010), ou (iii)
quando ocorre, na liquidação, a fixação do quantum debeatur; para a segunda, da qual é adepto, entre outros,
Cassio Scarpinella Bueno, tem-se como termo a quo o momento em que o advogado do devedor é intimado
(STJ, REsp 940.274, 3T, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJE de 31/05/2010); para a terceira, que
conta com o apoio de Alexandre Freitas Câmara, o início da contagem do prazo se dá a partir da intimação
pessoal do devedor (Cf. RODRIGUES, 2008, p. 196-197).
4. O mesmo dilema se extrai de orientações como a do ENUNCIADO 71 do FORÚM NACIONAL DE
JUIZADOS ESPECIAIS (FONAJE), que admite a “designação de audiência de conciliação em execução de
título judicial”. Quem ousa discordar que tal orientação visa, em última análise, a propiciar condições para a
celebração de acordo entre as partes, evitando-se os dispendiosos atos executivos?
5. Julgamentos extraídos do seguinte endereço eletrônico: http://www.direitointegral.com/2008/12/titulo-
judicial-parcelamento-745.
232
O IMPOSTO DE TRANSMISSÃO POR MORTE NO INVENTÁRIO
Summary: The verification of the tax on the attached table of aliquot to Decree n º 2,487/98 of
the State of the Bahia, suffers great distortions in the value also calculated, being white of
impugnations of the lesser values that the had one, as well as, the occurrence of errors that
burden the contributor that finishes paying more than the due. It can be attributed as many
mistakes to the nonobservance in pertinent and effective the legislation, that influence directly
in the final verification. Expenditures p.ex., are deduced, while passive improperly deductible
many times are ignored. Everything this can intervene with the final value of the tax.
Words-key: Verification of tax, transmission mortis cause, Probate suit. State of the Bahia.
1. Introdução
233
ENTRE ASPAS
rito a apuração do ITCMD. A linguagem utilizada foi a mais clara e objetiva a fim de que
ficassem evidenciados os motivos de recusa pela Procuradoria da Fazenda Pública Estadual,
órgão responsável pela arrecadação deste imposto.
O tema se relaciona diretamente com os seguintes ramos do direito: Direito Civil (Direito
de Família, Direito de Sucessão e Direitos Reais), Direito Administrativo, Direito Processual
Civil e principalmente Direito Tributário, além dos demais ramos que contribuem subsidiariamente.
Integra o rito processual do Inventário a apuração e recolhimento do imposto causa
mortis, – tributo de competência estadual, também recolhido na esfera municipal quando tratar
de transmissão entre vivos como ocorre nas doações ou compra e venda de imóvel.
Este artigo terá como base a interpretação do regulamento específico do referido tributo no
Estado da Bahia com a finalidade de facilitar o seu entendimento, aplicando-o para a elaboração do
cálculo do valor do imposto a ser recolhido pelo contribuinte. Será demonstrado o levantamento da
base de cálculo, as formas de isenção, o passivo dedutível, entre outros aspectos relevantes para
sua feitura, inclusive sugerindo uma forma de elaboração do cálculo do aludido imposto.
Também serão demonstrados os motivos geradores de maior incidência de impugnação,
bem como, o prejuízo do contribuinte no pagamento de importância além da devida, em razão
das falhas cometidas na apuração do valor.
2. Noções gerais
No Brasil, o imposto de transmissão foi criado pelo Alvará régio de 17.06.1809 com o
nome de “décima de herança e legados”. Com a proclamação da República coube a competên-
cia do imposto privativamente ao Estado. Sua competência foi delineada a partir da Constitui-
ção de 1891, ressaltando-se que em determinado período só abarcava determinados bens e em
outros a sua totalidade. Com a Constituição de 1988 o imposto de transmissão de bens imóveis
e de direitos a eles relativos, sofreu um desmembramento, inserindo o recolhimento sobre a
transmissão inter vivos a título oneroso, no âmbito de competência do município e, o recolhi-
mento sobre a transmissão inter vivos a título gracioso – a doação e, a transmissão causa
mortis sob a competência estadual.
Também o seu campo de incidência foi modificado retornando à previsão do art. 19 e §§
1º e 2º da CF de 1946, quando quaisquer bens corpóreos ou incorpóreos eram tributados pelo
Estado, tanto nas doações quanto nas transmissões causa mortis. Assim, portanto, os valores
mobiliários passam a compor a base de cálculo do referido tributo.
Contudo, se fazia necessário neste novo momento constitucional, conforme previu o
seu artigo 146, inciso III, alínea “a” a necessidade da edição de uma lei complementar para a
prévia definição do fato gerador, da base de cálculo, e do contribuinte.
Ocorre com o óbito ou através da doação de quaisquer bens, ou ainda, com a transmis-
são onerosa de bens imóveis – compra e venda p.ex.. Com a morte, a transmissão da proprieda-
de se dá automaticamente, seja por força de lei, seja por manifestação da última vontade do
autor da herança. No tema em questão, ocorre o fato gerador, conforme prevê o art. 35 do CTN,
na transmissão por morte, tantas vezes quantos sejam os herdeiros ou legatários, uma vez que
234
A REVISTA DA UNICORP
a herança será transmitida a cada um nos seus respectivos quinhões. Através do processo de
Inventário, se dá a formalização dessa transmissão, e no curso deste, o levantamento, lança-
mento e recolhimento do referido imposto.
Já existe previsão no CTN em seu artigo 38, do uso do valor venal do imóvel - previsto no
IPTU, como base de cálculo, ou mesmo, tratar-se de bem localizado em zona rural, o valor do ITR.
Isso, quando se tratar de bens imóveis. Aqui, abro um parêntese para uma breve discussão ao
que diz respeito à vinculação do valor venal do IPTU poder influenciar ou não à base de cálculo
do ITCMD: grande é a divergência entre o fisco e contribuintes, pois aquele se diz prejudicado
em razão do valor venal do IPTU encontrar-se sempre desatualizado quando da apuração do
valor do ITCMD, alegando que o contribuinte acaba sempre pagando um valor inferior se com-
parado com o efetivo valor de mercado do imóvel. Doutrinadores renomados partem em correntes
divergentes quando para alguns o valor venal deve acompanhar o valor atualizado do bem
enquanto para outros o CTN respaldado pelo texto constitucional deve prevalecer. Com esta
corrente se alia este pesquisador, pois além da previsão constitucional, há de ser respeitada a
data de ocorrência do fato gerador, e do valor venal do bem à época da ocorrência, vinculando,
portanto, a base de cálculo do ITCMD ao valor venal do IPTU da época. O que, efetivamente
já não acontece, pois não deixa de haver correção no valor ao longo do tempo.
Jurisprudência
“O Imposto de transmissão causa mortis. Base de Cálculo. I – Embora a
súmula 113 do STF estabeleça que o referido imposto seja calculado
sobre o valor dos bens na data da avaliação, a jurisprudência posterior
daquela Corte assentou ser possível a fixação de tal momento na data da
transmissão dos bens. Procedentes desta Corte e do STF. II – Recurso
não conhecido” (STJ – 2ª. Turma – Resp 15.071/RJ – rel.min. José Jesus
Filho – j. 05.09.1994 – v.u. – DJ 10.10.1994).
Para os demais bens transmitidos, em princípio, deve ser o valor de mercado, podendo
ser menor, nunca maior, posto que desta forma, se estaria adquirindo outra riqueza, que não, o
próprio bem transmitido.
A transmissão de qualquer bem ou direito havido como: títulos, direitos societários,
debêntures, dividendos, e créditos de qualquer natureza; também dinheiro em moeda nacional
ou estrangeira, saldo em conta corrente, conta poupança, quotas de participação em fundo de
ações, outras aplicações financeiras; bens incorpóreos em geral, direitos autorais etc. São
exemplos de bens que uma vez transferidos integram a base de cálculo para o imposto de
transmissão. A base de cálculo é, ainda, o valor do bem expresso em moeda nacional ou,
transformada na unidade fiscal vigente e atualizada à data do recolhimento.
2.3. Contribuinte
Tratando-se de herança, ou seja, bens transmitidos pelo de cujus aos seus herdeiros
235
ENTRE ASPAS
2.4. Alíquota
Ao Senado Federal coube a fixação máxima das alíquotas aplicadas. Salvo esta limita-
ção, prevalece a liberdade dos Estados ou Distrito Federal para o estabelecimento de tais
alíquotas (art.153, § 1º, inc. IV). Não fixando o Senado a limitação prevista na constituição, nada
obsta que Estados ou DF o faça. (art. 155, §1º, IV, da CF).
3. Desenvolvimento
Segundo o art. 1.007 do CPC, sendo capazes as partes no processo de inventário, será
dispensada a avaliação judicial quando, intimada a Fazenda Pública na forma do art. 237, I, a
mesma concordar com os valores atribuídos aos bens do espólio nas primeiras declarações. Na
hipótese de haver impugnação, sendo essa dirimida através dos meios legais suscitados à luz
do ordenamento citado, apreende-se dos artigos. 1.011 e 1.012, que, aceitos os laudos ou
resolvidas as impugnações suscitadas será lavrado termo de declarações finais, podendo
nestas, serem realizadas emendas ou complementações às primeiras, e, decorrido o prazo para
manifestação das partes sobre as mesmas será determinado pelo juiz a elaboração do cálculo
do imposto de transmissão causa mortis e doação, se houver.
Realizado o cálculo, será este disponibilizado às partes e à Fazenda Pública no prazo
legal, a fim de que se manifestem pela aceitação ou impugnação dos valores levantados. Nesta
última hipótese, julgando procedente, o juiz ordenará nova remessa dos autos ao Contador,
para que realize as alterações pertinentes. (artigo 1.013, § 1º do CPC).
Acordes as partes e a Fazenda Pública acerca do valor do imposto, procederá ao juiz a
homologação dos cálculos, que uma vez publicados, desta data correrá o prazo de trinta dias
para pagamento do referido tributo, prazo esse que excedido sujeitará a Fazenda Pública a
correção do valor calculado.
Dito isso, aqui, abre-se um parêntese para ressaltar que o Código de Processo Civil
(Lei nº 5.869/01/1973), atribui competência ao Contador para a elaboração dos cálculos. Enfatiza-
se neste momento, que este ordenamento processual é hierarquicamente superior a leis esparsas
e decretos regulamentadores.
A despeito disso, o levantamento do valor do referido imposto tem sido calculado aleatori-
amente, sem a exigência de habilitação profissional capaz de responder pelos prejuízos que possam
sofrer as partes, haja vista que o Estado possui seus órgãos próprios e profissionais especializados
para aferir a fidedignidade dos valores apresentados nas planilhas de cálculos levadas à Procu-
radoria da Fazenda do Estado, nos processos de Inventário, que o tema delimitado desta pesqui-
sa, sem prejuízo dos demais processos onde o recolhimento deste imposto também é obrigatório
como p.ex. nas Ações de Arrolamentos, Alvará e, Separações e Divórcios com partilha desigual e
não onerosa, pois nestas últimas, as diferenças verificadas nas partilhas em função de um dos
cônjuges são consideradas como doações, e portanto, fato gerador do ITCMD.
236
A REVISTA DA UNICORP
Feitas estas considerações, passa o autor desta pesquisa a direcionar o foco do traba-
lho ao entendimento à luz da legislação vigente, de como elaborar os cálculos do imposto de
transmissão, tentando demonstrar de forma mais clara os passos que devem ser seguidos para
se chegar ao valor real a ser recolhido pelo contribuinte.
A herança líquida dos herdeiros, prima face, é aquela deduzida dos direitos alheios
encontrados em poder do inventariado na data do seu óbito – de ducto aere alieno. Em
seguida, serão deduzidas da herança apurada todas as dívidas, anteriores ou posteriores à
abertura da sucessão, uma vez que a responsabilidade dos herdeiros é limitada, ou seja, res-
pondem até o limite dos seus quinhões.
Neste entendimento leciona Caio Mário quando assim se manifesta:
237
ENTRE ASPAS
ao monte, mas de direito ainda o compõe. Assim, para que haja a adjudicação deste bem
em nome do comprador, a importância relativa ao imposto causa mortis deverá ser
reservada. E mais, a tributação do mesmo imóvel no ato da transferência de titularidade
em Cartório de Registro de Imóvel não ensejará uma bitributação, pois o fato gerador
será distinto. Neste caso o fato gerador será a transmissão entre vivos onde de um lado
estará o comprador e do outro estarão os herdeiros do referido bem. Dito isso, o valor
do referido bem integra a planilha de cálculo em estudo.
Art. 16
“Nas transações “CAUSA MORTIS” serão deduzidas do valor
tributável as dívidas incidentes sobre os bens e direitos a cargo
do falecido, cuja existência no dia da abertura da sucessão, possa
ser plenamente comprovada” (art.16 do Decreto nº 2.487/89).
Esta, porém, não se levanta apenas deduzindo o ativo do passivo, ou seja, subtraindo
o valor do acervo pelas dívidas deixadas pelo falecido, haja vista, estar mencionado tanto na
Lei nº 4.826/89 quanto no seu Decreto regulamentador de nº. 2.487/89 que a base de cálculo do
imposto de transmissão por morte é o valor do quinhão unitário de cada herdeiro, esclarecendo
que cada herdeiro é contribuinte deste imposto, assim, o valor do levantado será multiplicado
por tantos quanto forem o número de herdeiros.
É importante lembrar que para o valor tributável ser encontrado, deve ser retirado do
acervo hereditário a parcela referente à meação, quando esta existir, pois corresponde a metade
do patrimônio, por isso chamado de meação, pertencente ao cônjuge sobrevivente, ou compa-
nheiro (a) reconhecido (a), não sendo, portanto transferido aos herdeiros, salvo quando esta
meação seja alvo de doação aos herdeiros ou legatários, o que terá aplicação de alíquota
própria para transmissão entre vivos, não onerosa, prevista na legislação vigente como 2% do
valor transferido a título de doação, e contabilizado ao final juntamente com o valor final do
imposto por morte.
Deduzida a meação se for o caso encontra-se então a herança tributável, que, dividida
pela quantidade de herdeiros, habilitados ou não, obtém-se o valor do quinhão hereditário, ou
seja, o valor a que tem direito cada herdeiro. Sobre este valor então será aplicada a alíquota, que
terá sua escolha feita com base na tabela anexa da legislação vigente, obedecida a limitação
imposta pelo Senado que hoje é de 8%.
Tabela a que se refere o art. 17, II, do Decreto nº 2487, de 16/06/1989, atualizada nos
termos do art. 1º do Decreto nº 1342/92.
238
A REVISTA DA UNICORP
Além do 5º grau
e não parentes 15% 20% 25%
Por fim, escolhida a alíquota e, aplicada sobre o valor do quinhão, obtém-se o valor do
imposto por quinhão. Multiplicado pelo número de herdeiros teremos o valor do imposto calculado.
Integra também o valor do imposto, na hipótese de a abertura do inventário ocorrer
após trinta dias da data do óbito conforme prevê o art.13, I da Lei nº. 4.826/89, uma multa de 5%
sobre o valor calculado do imposto se o óbito ocorreu a partir 04 de março de 1989. Sendo de
10 % se antes desta data como já mencionado anteriormente.
Integra ainda o somatório final, conforme já mencionado anteriormente, o valor levanta-
do sobre as doações realizadas no curso do inventário, que tanto podem ser feitas do cônjuge
sobrevivente aos seus herdeiros ou legatários quanto pelos próprios herdeiros entre si ou ao
cônjuge sobrevivente.
Como dito, 2% será aplicado sobre o valor doado - renunciado em favor de alguém. A
mera renúncia em função do monte não será alvo de tributação.
O somatório do valor levantado pela transmissão por morte com o valor do imposto
sobre as doações e o valor da multa, estes últimos se houver, integraliza o valor total do
imposto a ser recolhido para fins de atender a obrigação tributária em questão.
Resta atentar para os casos de isenção que devem ser pleiteados à Procuradoria da
Fazenda Estadual, pois a esta compete a concessão do pleito de isenção, mediante as formas
previstas na legislação.
Os casos de isenção estão previstos no artigo 4º do Decreto nº 2.487 de 16 de junho de
1989, e incisos, onde, inicialmente, isenta o único imóvel em que resida a família do inventariado,
servidor público estadual, na ocasião do óbito.
Também deve ser pleiteada a isenção nas hipóteses em que o valor do quinhão for
inferior ao mínimo tributável conforme previsão da legislação. Neste caso necessário se faz a
divisão no valor da herança, ou seja, o monte deduzido da meação (se houver), pela quantidade
de herdeiros. Sendo a solução desta equação inferior a 3065 UFIRs, cabe o pleito da isenção.
239
ENTRE ASPAS
4. Considerações finais
Com base no exposto, acrescenta-se ainda, que o objeto da apuração do imposto não é
apenas a determinação do seu valor. O cálculo constitui-se em um conjunto matemático neces-
sário a apurar as despesas judiciais: custas de processo de Inventário, e dos impostos a serem
deduzidos pelo monte-mor; os limites da legítima; o valor dos bens trazidos à colação, e a
determinação da meação do cônjuge sobrevivente, que não faz base de cálculo do imposto,
portanto, deve ser deduzida no momento da aplicação da alíquota. Assim, no processo de
Inventário, uma vez apresentadas as declarações finais, o juiz determinará a elaboração dos
cálculos do imposto. Inteligência do art. 1.012 do CPC.
Fator importante que não deve ser esquecido é que onde se lê na tabela de alíquotas,
percentuais acima de 8%, estas devem ser desconsideradas, pois o Senado Federal, até posterior
deliberação, delimitou a alíquota aplicável sobre o valor dos bens transmitidos ao máximo de 8%.
Atente-se também que a unidade indexadora deixou de ser a BTN como anteriormente
utilizada, sendo a mesma substituída pela UFIR, também extinta, mas que permanece sendo
utilizada para fins de desindexação dos referidos valores tendo com último valor o divulgado
em janeiro de 2000, a saber: 1.0641.
Importante ainda ressaltar que na existência de renúncia de qualquer dos herdeiros,
estaremos diante de novo fato gerador do aludido imposto, só que agora pela transmissão
inter vivos, isso se a renúncia for direcionada a algum outro herdeiro, pois se acontecer em
favor do monte-mor não estará ocorrendo nenhuma transmissão, logo nenhum novo fato
gerador terá ocorrido.
Em caso de nova transmissão, poderá ser inclusa na mesma planilha o cálculo do
imposto incidente sobre a doação realizada, cuja alíquota prevista na legislação é de 2% sobre
o quinhão renunciado, ou melhor, dizendo, – quinhão doado. O valor resultante de tal operação
será adicionado ao valor apurado para a transmissão causa mortis, e o resultado então será o
valor devido para o devido pagamento.
240
A REVISTA DA UNICORP
Referências ________________________________________________________________________
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2006;
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro, Forense, 2006;
AMORIM, Sebastião Luiz. Inventários e Partilhas. Direito das Sucessões: Teoria e Prática / Sebastião Amorim,
Euclides Benedito de Oliveira. 13 ed. São Paulo. Ed. Universitário do Direito.2000;
FERNANDES, Regina Celi Pedrotti Vespeiro. Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD.
2 ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2005;
MELO, Omar Augusto Leite. Identidade obrigatória entre as bases de cálculo do IPTU e do ITBI. Jus
Navegandi, Teresina, ª 9, n. 642,11 abr. 2005.
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Disponível em: http: //www.tributarista.org.br. Acesso em 24 mar 2005; ATALIBA. Geraldo. Hipótese de
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BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
241
ENTRE ASPAS
242
CONDIÇÕES DESUMANAS NOS ESTABELECIMENTOS PENAIS:
TRANSFERÊNCIA DO PRESO PARA REGIME MENOS GRAVOSO,
APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES OU COLOCAÇÃO EM
PRISÃO DOMICILIAR À LUZ DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1. Introdução
243
ENTRE ASPAS
2. A pena de prisão
A pena de prisão teve sua origem nos mosteiros da Idade Média, como
punição aos monges ou clérigos faltosos, fazendo com que recolhessem
às suas celas para se dedicarem, em silêncio, à meditação e se arrepende-
rem da falta cometida, reconciliando-se assim com Deus (MIRABETE,
2010, p. 235).
Para o autor acima citado, a pena de prisão tem sido muito combatida, pois se trata de
instrumento de “degradação, destruidora da personalidade humana e incremento à criminalidade
por imitação e contágio moral” (MIRABETE, 2010, p. 234).
No que se refere à execução das penas de prisão, são apontados pela doutrina três
sistemas penitenciários: o sistema de Filadélfia (pensilvânico, belga ou celular), o de Auburn e
o sistema Progressivo (inglês ou irlandês).
No sistema da Filadélfia impõe-se o isolamento absoluto, sem trabalho ou visitas, reco-
mendando a leitura da Bíblia. As prisões de Walnut Street Jail e a Eastern Penitenciary foram as
primeiras a adotarem este sistema. Existiram muitas críticas no sentido de tal sistema não
cumprir o papel de readaptação social do apenado através do isolamento face o seu rigor,
consoante Mirabete (2010, p. 236).
No sistema auburniano, prepondera o isolamento noturno, entretanto, criaram traba-
lhos para os presos, primeiramente em suas celas e, depois, em comum. A principal caracterís-
tica deste sistema é a imposição de silêncio absoluto entre os presos, mesmo quando em
grupos, sendo conhecido como silent system. Tal sistema foi denominado auburniano, pois foi
244
A REVISTA DA UNICORP
construído na cidade de Auburn, New York, em 1818. Segundo Pimentel apud Mirabete (2010, p.
236), este sistema possui como ponto negativo a “regra desumana do silêncio”, originando-se “o
costume dos presos se comunicarem com as mãos, formando uma espécie de alfabeto, prática
que até hoje se observa nas prisões de segurança máxima, onde a disciplina é mais rígida”.
Por último, o sistema progressivo (inglês ou irlandês) originado na Inglaterra, século
XIX, pelo capitão da Marinha Real, Alexander Maconochie. Nesse sistema são considerados a
conduta e o trabalho do preso por meio de seu comportamento e aproveitamento (Mark sistem),
sendo estabelecidos três períodos no cumprimento da pena. O primeiro, denominado de perí-
odo de prova, com isolamento celular absoluto; o segundo, a permissão para o trabalho em
comum, em silêncio, podendo surgir outros benefícios; e o último, o livramento condicional.
A prisão, para Foucault (2009, p. 218), possui inconvenientes “e sabe-se que é perigosa,
quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução,
de que não se pode abrir mão”.
Nas palavras de Eugênio Raúl Zaffaroni e Edmundo Oliveira, “a prisão é velha como a
memória do homem e, mesmo com o seu caráter aflitivo, ela continua a ser a panacéia penal a
que se recorre em todo o mundo” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 437).
O aparecimento da prisão, segundo os autores supra, é algo que provêm da criação de
casas de correção que tinham como finalidade a custódia de um grande número de bêbados,
prostitutas, desocupados, dentre outros excluídos, que cresciam no Continente Europeu no
século XVI (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2008, p. 53). Noticia a História que a primeira instituição
prisional foi a “House of correction”, na Inglaterra, em Bridewell, Londres, em 1552 (Guimarães
apud Geder Luiz Rocha Gomes, 2008, p. 54).
Ainda para os autores acima citados, a pena privativa de liberdade se justificava em
virtude das penas capitais e as corporais não serem mais utilizadas uma vez que não consegui-
am refletir o senso de justiça que era aclamado pela sociedade da época, já que não eram
capazes de garantir o controle do crime, além do aspecto religioso, que pretendia a redenção do
criminoso. Havia, também, o aspecto econômico, pois a prisão surgiu em uma época de crise
econômica no mundo ocidental no qual existiam desemprego e escassez de bens, consistindo
a mão de obra dos presos em força-trabalho barata e a prisão um meio de controle social
contrário aos movimentos reivindicatórios de direitos e políticas públicas (Guimarães apud
Geder Luiz Rocha Gomes, 2008, p. 54).
A pena de prisão tem sua origem de forma remota, tanto que se considera mais antiga
que a História da Humanidade. Sendo assim, segundo Cezar Roberto Bitencourt, deve-se
separar cronologicamente para não cometer erros (BITENCOURT, 2008, p. 439).
Assim como Cesare Beccaria, Cezar Roberto Bitencourt aduz que a pena de prisão tanto
na Antiguidade quanto nos fins do século XVIII, servia apenas para preservar fisicamente os
delinquentes para serem julgados. Naquela época, tinham-se as penas de morte, mutilações e
infamantes, ou seja, a prisão era considerada uma “antessala” de suplícios, onde se utilizava as
torturas para se obter a verdade (BECCARIA, 2005, p. 104) (BITENCOURT, 2008, p. 440). Diz
ainda Bitencourt que “durante vários séculos, a prisão serviu de depósito – contenção e
custódia – da pessoa física do réu, que esperava, geralmente em condições subumanas, a
celebração de sua execução” (BITENCOURT, 2008, p. 441).
245
ENTRE ASPAS
Ainda na Antiguidade, aduz Geder Luiz Rocha Gomes, que a pena possuía fundamenta-
ção divina, buscando, portanto, a satisfação da divindade, ou seja, a pena possuía um sentido
diferente daquele da vingança privada, pois sendo o sacrifício era a forma de punir atribuída à
divindade que estava acima de todos, operando a purgação dos pecados dos criminosos
(GOMES, 2008, p. 34).
Impende frisar que, as mais antigas prisões de que se tem notícia histórica, segundo
Américo Ribeiro Araújo citado por Romeu Falconi são as seguintes (ARAÚJO apud FALCONI,
1998, p. 54):
d) A Marmetina, segundo o acima citado autor, a mais antiga das prisões romanas,
seguida pela Tuliana construída por Túlio Hostílio, terceiro rei de Roma. Todavia, para
Bernaldo de Quiros apud Romeu Falconi, a mais antiga prisão romana foi a Tuliana e
não a Marmetina tendo em seguida sido a Claudina edificada por Ápio Cláudio, fican-
do, no entanto, aquela, Marmetina, em terceiro lugar;
g) Por fim, cita ainda o mencionado autor, Oubliettes, de origem francesa; o Castelo de
Chilon, na Suíça; o Castelo de Spielberg, na Áustria; as Setes Torres de Constantinopla
e a Torre de São Julião, em Lisboa.
246
A REVISTA DA UNICORP
como um meio de satisfazer a divindade, pois os suplícios, que permitiam a salvação da alma do
delinquente, confundindo as ideias de crime com pecado e de pecador com criminoso, ainda
eram impostos (GOMES, 2008, p. 36). A Igreja e o Estado, inclusive, se misturaram de tal forma
que o cristianismo se ampliou entre os períodos dos séculos XIII e XV, permitindo a inquisição³.
Ainda segundo o referido autor, Santo Agostinho (354-430) citado por Geder Luiz Ro-
cha Gomes traz a noção de que a pena é um meio para o arrependimento que precede o juízo
final, bem como a proporcionalidade entre a pena e a infração (GOMES apud AGOSTINHO,
2008, p. 36). Já Geder Luiz Rocha Gomes citando Santo Tomaz de Aquino defendia o pensamen-
to da representatividade da autoridade divina na Terra por meio da autoridade civil, o qual era
o responsável pela imposição do castigo (GOMES apud AQUINO, 2008, p. 36). E, ainda, a pena
teria um caráter intimidador, pois traria a ideia de que o temor imposto aos homens os tornariam
imunes à ação danosa do crime. Assim sendo, Santo Tomaz de Aquino tinha uma visão
retributiva da pena, tendo este e Santo Agostinho o foco de que a justiça divina era represen-
tada pela autoridade civil.
Na Idade Moderna, para Cezar Roberto Bitencourt, a pobreza se espalha em toda a
Europa propiciando a marginalização daqueles que não tinham condições mínimas de subsis-
tência, bem como um aumento da criminalidade nos fins do século XVII e início do século XVIII
(BITENCOURT, 2008, p. 443).
Nos fins do século XVI inicia-se uma enorme transformação no desenvolvimento das
penas privativas de liberdade, ou seja, “criação e construção de prisões organizadas para
correção dos apenados” (BITENCOURT, 2008, p. 444).
Ainda na Idade Moderna, para Geder Luiz Rocha Gomes, Thomas More (1478 – 1535)
defendia a ideia de penas alternativas como prestação de serviço à comunidade para aqueles
crimes considerados não violentos, bem como a benesse da liberdade no caso de bom compor-
tamento e defendia, também, que o Estado criasse estímulos ao criminoso para que este tivesse
interesse em cumprir a pena que lhe foi imposta (GOMES, 2008, p. 37).
Aduz ainda o autor acima citado que a partir da obra de Cesare Beccaria (1764), Dos
delitos e das penas, com base nas ideias de Russeau, surge uma nova concepção sobre o
destino da pena (GOMES, 2008, p. 37).
Para Beccaria, filósofo italiano, citado por Geder Gomes, a pena de morte deveria ser
abolida, pois a considerava ineficaz e cruel, e, ainda, aduzia que “o abrandamento das penas
era atitude indispensável à sua noção de justiça” (GOMES apud BECCARIA, 2008, p. 39).
Tendo, também, defendido um direito penal separado da tortura, livre de paixão, aplicado de
forma proporcional no que se refere à punição e ao crime praticado, bem como firmado na
responsabilidade subjetiva e individual. Nesse período, foram estabelecidos os princípios da
legalidade, anterioridade da lei penal, proporcionalidade, pessoalidade, entre outros.
A partir da obra de Cesare Beccaria (1764), Dos delitos e das penas, surge uma nova
concepção no que se refere ao destino da pena. Assim sendo, defendeu-se por um direito penal
separado da tortura, livre da paixão, devendo ser analisado, proporcionalmente, sob o prisma
da punição e o crime praticado, responsabilizando-o subjetivamente e individualmente, conso-
ante o autor acima citado (BECCARIA, 2008, p. 39).
Ademais, foi na época contemporânea que surge a formatação principiológica da lega-
lidade, anterioridade da lei penal, proporcionalidade e pessoalidade, dentre outros.
Tendo, inclusive, após as ideias iluministas, aparecido um movimento denominado
Escolas Penais que teve como primeira escola a Escola Clássica, liderada por Francesco Carrara
(1805 – 1888), a qual pregava uma punição humanizada. E depois no final do século XIX o
247
ENTRE ASPAS
Nas palavras do doutrinador Fernando Capez, o conceito de pena deve ser entendido
como uma sanção que possui caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em razão da execução de
uma sentença ao condenado pela prática de uma infração penal, que tem fundamento na
restrição ou privação de um bem jurídico devidamente tutelado, cuja “finalidade é aplicar a
retribuição punitiva ao delinquente, promover a sua readaptação social e prevenir novas trans-
gressões pela intimidação dirigida à coletividade” (CAPEZ, 2007, p. 358).
Hoje, há duas principais vertentes de orientação político-criminal que se propõe anali-
sar os fundamentos e as finalidades da pena, são as chamadas teorias legitimadoras e teorias
deslegitimadoras, (GOMES, 2008, p. 44).
As teorias deslegitimadoras da pena fundamentam-se nas correntes político-criminais
através do abolicionismo penal liderado por Louk Hulsman, Nils Christie, Sebastian Scheerer e
outros, os quais buscam defender a ideia da substituição pura e simples do direito penal por
outros modelos de controle que solucionem os conflitos sociais de forma menos gravosa e
traumática e mais econômica e eficiente, segundo o autor supra (GOMES, 2008, p. 44).
Já as teorias legitimadoras ou justificadoras, segundo o autor acima citado, são aquelas
que buscam uma intervenção penal legítima e adequada. São, portanto, as teorias absolutas ou
retributivas, as teorias prevencionistas ou relativas e as teorias mistas ou ecléticas, as quais
defendem não ser possível rejeitar a aplicação do direito penal para a solução dos conflitos
sociais (GOMES, 2008, p. 45).
A teoria absoluta ou da retribuição da pena, segundo Marcelo André de Azevedo, é
entendida como uma retribuição justa pela prática de um delito. Entende-se que o delinquente
deve receber um castigo como forma de retribuição pelo mal causado, realizando, assim, a
justiça (AZEVEDO, 2010, p. 216 – 218). Para esta teoria, a pena não tem o fim socialmente útil,
como a prevenção de delitos, mas apenas de castigar o criminoso.
As teorias relativas ou prevencionistas entendem que a pena tem a finalidade de preve-
nir delitos através da proteção do bem juridicamente tutelado, dividindo-se em prevenção geral
(negativa e positiva) e prevenção especial (negativa e positiva). A prevenção geral tem como
finalidade intimidar a sociedade, buscando evitar o aparecimento de criminosos a qual se
subdivide em prevenção geral negativa, que no entendimento de Feuerbach o Direito Penal
248
A REVISTA DA UNICORP
tem o condão de dar uma solução à criminalidade, tratando-se, portanto, em uma coação
psicológica para evitar o crime e em prevenção geral positiva (integradora ou estabilizadora),
esta está relacionada à afirmação positiva do Direito Penal. Esta versão eticizante (Wezel) alega
que a lei penal ressalta alguns valores ético-sociais e a atitude de respeito à vigência da norma,
fazendo, portanto, uma integração com a sociedade. Já na versão sistêmica (Jakobs), a pena
teria um aspecto de reforçar a confiança da sociedade na legislação penal vigente. Percebe-se
que esta versão sistêmica possui uma linha tênue com a teoria retribucionista de Hegel, confor-
me Marcelo André de Azevedo (AZEVEDO, 2010, p. 217).
No que se refere à prevenção especial, ainda o autor acima citado (2010, p. 217), esta se
dirige ao criminoso com o fim último de ressocializá-lo e reeducá-lo. A pena tem por finalidade,
neste sentido, de impedir que o agente infrator volte a delinquir, se subdividindo, também, em
duas vertentes: prevenção especial positiva e negativa. Na prevenção especial positiva, a
pena só é importante por ser um meio de ressocialização do condenado. Já na prevenção
especial negativa, a carcerização será aplicada quando outros meios menos lesivos não forem
eficazes para a ressocialização do apenado.
No tocante à teoria mista ou eclética, unificadora ou unitária, é, segundo Marcelo André
Azevedo, a tentativa de conciliar as teorias absolutas com as teorias relativas (AZEVEDO,
2010, p. 218).
A pena de prisão no Brasil possui base principiológica na Carta Política e nas legisla-
ções infraconstitucionais, iniciando-se a partir do princípio da legalidade estrita ou da reserva
legal insculpido no art. 5°, XXXIX da CF e art. 1° do CP: “não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal” (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege).
Já o princípio da aplicação da lei mais favorável é a previsão legal da extra-atividade da
lei penal mais benéfica (CF, art. 5°, XL, e CP, art. 2°), possibilitando, assim, a retroatividade
(aplicação da lei penal a fato ocorrido antes de sua vigência) ou a ultra-atividade (aplicação da
lei penal após a sua revogação), salvo a hipótese de não terem sido esgotadas as consequências
jurídicas do fato.
Há, também, o princípio da individualização da pena (CF, art. 5°, XLVI, 1ª parte, e art. 59
do CP). Com base nos ensinamentos de Marcelo André Azevedo (2010, p. 219), há três momen-
tos da individualização da pena: a) cominação legal (pena abstrata). Nesse momento, o legisla-
dor define a pena mínima e a máxima utilizando-se de critérios de necessidade e adequação; b)
aplicação judicial (pena concreta). Já neste caso, o Estado-Juiz fixará a pena de acordo com as
circunstâncias referentes ao fato, ao agente e à vítima; c) execução penal, a qual tem como fim
efetivar as disposições da sentença ou da decisão criminal e oferecer condições para a harmô-
nica integração social do condenado e do internado (LEP, art. 1°)4.
O princípio da humanidade está consubstanciado no princípio da dignidade da pessoa
humana, ou seja, nenhuma pena poderá atentar contra a dignidade humana independentemen-
te, por óbvio, quem seja o delinquente e que crime tenha cometido.
Sendo assim, a pena privativa de liberdade que contribuiu para eliminar as penas aflitivas,
os castigos corporais, as mutilações, etc. em nada contribui com a sua finalidade de recupera-
ção do deliquente. Não obstante, ter a legislação constitucional vedado penas de morte, cará-
ter perpétuo, trabalhos forçados, de banimentos e cruéis.
249
ENTRE ASPAS
A pena privativa de liberdade é uma das espécies de sanção penal, assim como a medida
de segurança. Para Marcelo André Azevedo, há penas corporais as quais “atingem a integrida-
de corporal do criminoso, podendo ser supressivas (pena de morte) ou aflitivas (tortura,
lapidação, açoites, mutilações)” (AZEVEDO, 2010, p. 220).
Não obstante, atualmente, conforme previsão do texto constitucional, art. 5°, XLVII,
não haverá penas: a) de morte; salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.
Há, ainda, segundo o autor acima mencionado (2010, p. 220), penas restritivas de liberda-
de que “suprimem a liberdade temporariamente ou de forma perpétua. Penas privativas e restriti-
vas de direitos nas quais há exclusão ou limitação de determinados direitos”. E, por último, penas
pecuniárias que são “restrições ou absorções patrimoniais, como a multa e o confisco”.
Segundo a Constituição Federal em seu art. 5°, XLVI: a lei regulará a individualização da
pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de
bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.
O Código Penal, art. 32 prevê: “As penas são: I – privativas de liberdade; II – restritivas
de direitos; III – de multa”.
A Lei das Contravenções Penais (DL n° 3.688/1941) tem como penas principais: I –
prisão simples; II – multa (art. 5°).
O Código Penal em seu art. 33 caput dispõe as duas espécies de penas privativas de
liberdade, como sendo a de reclusão e de detenção. Impende frisar que, segundo Marcelo
André Azevedo, “não há diferença ontológica entre reclusão e detenção, de sorte que a dou-
trina critica a postura legislativa de diferenciar as penas privativas de liberdade”5 (AZEVEDO,
2010, p. 221).
250
A REVISTA DA UNICORP
O juiz fixará, de acordo com o critério trifásico previsto no art. 68 do CP, a pena-base, nos
moldes do art. 59 deste mesmo diploma legal, bem como considerará as circunstâncias atenu-
antes e agravantes (arts. 61 a 67 do CP) e por fim, as causas de diminuição e de aumento,
previstas na parte geral e na parte especial do Código Penal e nas legislações especiais.
Neste sentido, vale destacar o art. 59 do Código Penal, por sua indispensabilidade para
que possa ser encontrada a pena-base, e, por conseguinte, os demais cálculos relativos às
duas fases seguintes:
Verifica-se, pois, que o juiz deverá ao aplicar a pena ao condenado, determinar o regime
inicial a ser cumprido, fechado, semiaberto ou aberto, conforme inciso III do art. 59 do CP.
O art. 33, §1° do Código Penal dispõe três espécies de regimes: a) regime fechado (§1°,
alínea a): “a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média”; b) regime
semiaberto (§1°, alínea b): “a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabeleci-
mento similar”; c) regime aberto (§1° alínea c): “a execução da pena em casa de albergado ou
estabelecimento adequado”.
No entanto, deve-se distinguir os estabelecimentos penais, no que se refere a cada
espécie de regime, que a Lei de Execução Penal dispõe que a penitenciária destina-se ao
condenado à pena de reclusão, em regime fechado (art. 87, LEP6). Já a Colônia Agrícola, Indus-
trial ou Similar, destina-se ao cumprimento da pena em regime semiaberto (art. 91, LEP7). Quanto
à Casa do Albergado, destina-se ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime
aberto, e da pena de limitação de fim de semana (art. 93, LEP8).
Por outro lado, a própria legislação prevê a possibilidade de prisão domiciliar. Esta,
segundo Fernando Capez, é “relativa ao cumprimento de pena imposta por decisão transitada
em julgado. (...) hipóteses em que o condenado em regime aberto pode recolher-se em sua
própria residência, em vez da Casa do Albergado” (CAPEZ, 2007, p. 382). Ademais, a Lei de
Execução Penal prevê tal hipótese em seu art. 117 referindo-se ao preso condenado. No entan-
to, a Lei 12.403/11 deu nova redação aos arts. 317 e 318 e parágrafo único do Código de
Processo Penal, dispondo quando será cabível a prisão domiciliar para presos provisórios,
senão vejamos:
251
ENTRE ASPAS
O §2° do art. 33 do Código Penal prevê que as penas privativas de liberdade deverão ser
executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado. Para Rogério Greco (2008,
p. 511), “a progressão é um misto de tempo mínimo de cumprimento de pena (critério objetivo)
com o mérito do condenado (critério subjetivo)”. O art. 112 da LEP9, critério objetivo, dispõe
que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência
para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao
menos um sexto da pena no regime anterior.
Será concedido o benefício da progressão de regime para crimes comuns, após iniciado o
cumprimento da pena no regime estabelecido na sentença, desde que tenha cumprido ao menos
um sexto da pena no regime anterior e o mérito do condenado recomendar tal progressão. E
para crimes hediondos não cabia a progressão, ao passo que deveria ser cumprida integral-
mente em regime fechado, nos termos do art. 2º, §1º da Lei nº 8.072/90, em sua redação original.
Contudo, com o advento da Lei nº 11.464/07, o STJ editou a Súmula 471:
Desta forma, nos crimes hediondos praticados antes da Lei n. 11.464/07 a progressão
ocorrerá com o cumprimento de um sexto da pena aplicada, ao passo que se o crime for
praticado após a Lei n. 11.464/07, o condenado terá direito à progressão com dois quintos, se
primário, ou três quintos se for reincidente.
Neste mesmo sentido, deve-se observar para efeitos de progressão de regime a Súmula
Vinculante 26 do STF e a Súmula 439 do STJ:
252
A REVISTA DA UNICORP
A dignidade possui tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que
ambas encontram-se conectadas, de tal sorte que é no valor intrínseco (na
santidade e inviolabilidade) da vida humana (de todo e qualquer ser huma-
no) que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que
perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade)
considerada e respeitada . (DWORKIN apud SARLET, 2011, p. 571)
253
ENTRE ASPAS
En rigor, casi todo el derecho pena del siglo XX, en la medida en que teorizó
admitiendo que algunos seres humanos son peligrosos y sólo por eso
deben ser segregados o eliminados, los cosificó sin decirlo, y con ello los
dejó de considerar personas, lo que oculto con racionalizaciones, (...).”
“Es inevitable que, en cuanto el estado procede de esa manera, porque
detrás de la máscara cree encontrar a su enemigo, le arrebata la máscara
y con ello, automáticamente lo elimina de su teatro (o de su carnaval,
según los casos).
Para Maria Lúcia Karam, a pena privativa de liberdade se revela como: danosa, enganosa,
violenta, dolorosa e inútil sofrimento e em suas palavras nos ensina (KARAM, 2009, p. 15 – 16):
254
A REVISTA DA UNICORP
Impende frisar que, para o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto11:
255
ENTRE ASPAS
Processo Penal que, por outro lado, não significa dizer que a intervenção penal não esteja
sendo considerada no ambiente garantista.
Desta feita, a Constituição Federal, essencialmente garantista, determina a proteção penal
dos direitos fundamentais, não havendo, portanto, nenhuma incompatibilidade entre interven-
ção penal e garantismo, quando houver justificação da condenação criminal em observância do
devido processo penal constitucional e do dever de fundamentação das decisões judiciais.
Assim sendo, o princípio da intervenção penal mínima, ou ultima ratio, é, segundo
Rogério Greco, “o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a
especial atenção do Direito Penal”, (...) bem como “a fazer com que ocorra a chamada
descriminalização” (GRECO, 2008, p. 49).
Deve-se, portanto, observar que ao encarcerar pessoas em condições desumanas vio-
la, também, o princípio constitucional da mínima intervenção penal, pois se deve atentar quan-
to à adequada sanção para sua reintegração social, deve-se, de igual modo, ser observado
quando os presos, condenados ou provisórios, estiverem em prisões com condições tão odi-
osas, que se revelam, por sua vez, uma sanção cruel e desumana, no que tange à necessária
proteção dos bens juridicamente tutelados, tendo em vista que estes não são devidamente
respeitados quando aqueles se encontram em prisões com condições mínimas ou nenhuma de
higiene, alimentação e sanitária.
Neste caso, caberá ao Poder Judiciário, órgão capaz de aplicar as normas jurídicas, com
a devida ponderação, elaboradas pelo Poder Legislativo, bem como os demais órgãos do
Estado garantir a não violação das normas e princípios constitucionais, pois o Poder Judiciário
é a garantia da lei, e se assim não o for ninguém mais o será no Estado Democrático de Direito.
Vale registrar algumas experiências sobre o cumprimento da pena privativa de liberdade
que se revelam relativamente satisfatórias como é o caso do projeto Novos Rumos na Execu-
ção Penal12 desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, utilizando o
método da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).
A APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, é uma alternativa
para humanizar o sistema prisional, tendo sido incentivada sua criação e expansão pelo Tribu-
nal de Justiça do Estado de Minas Gerais, objetivando a recuperação do condenado e sua
reinserção ao convívio social, sem perder a finalidade punitiva da pena.
Segundo o Desembargador Joaquim Alves de Andrade, Coordenador do Projeto No-
vos Rumos na Execução Penal, “recuperado o infrator, protegida está a sociedade, prevenindo-
se o surgimento de novas vítimas”13.
Vale mencionar que, o método APAC é implantado no regime fechado, no regime
semiaberto e no regime aberto, bem como acompanhamento para aqueles que se encontrem em
livramento condicional, caso necessite.
Assim sendo, a humanização da pena é algo que deve ser buscado para que a pena
tenha a função precípua de ressocialização. E projetos como este, demonstra ser possível a
humanização na execução penal no qual atinge 90% de recuperação do condenado14.
256
A REVISTA DA UNICORP
A não observância nos princípios constitucionais gera grave violação, devendo ser a
justiça aplicada de forma plena e não apenas formal.
Para Luigi Ferrajoli, a legitimidade do Estado se funda:
Quando o Estado permite que seres humanos sejam encarcerados ou que permaneçam em
prisões com condições desumanas, perde sua legitimidade de punir, negando no momento da execu-
ção penal os direitos do preso (condições prisionais), “algo intolerável, beirando a hipocrisia”15.
257
ENTRE ASPAS
Para Ricardo Maurício Freire Soares, “o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser
compreendido em sua dimensão histórico-cultural”. A cultura entendida como algo construído pelo
o homem por força de um sistema de valores com o fim de atentar para seus interesses e finalidades
o qual pertence à cultura humana, ou seja, verificando-se, assim, que o princípio da dignidade da
pessoa humana é constituído de “um sentido de conteúdo valorativo” (SOARES, 2010, p. 129).
Assim sendo, Miguel Reale citado por Ricardo Maurício Freire Soares ao desenvolver
a sua teoria tridimensional do Direito, concebe a ideia do “valor da dignidade como fundamen-
to concreto do direito justo” (REALE apud SOARES, 2010, p. 129) .
Para Reale, “o fundamento último que o Direito tem em comum com a Moral e com todas
as ciências normativas deve ser procurado na dignidade intrínseca da própria vida humana”
(REALE, 1972, p. 275). Sendo, portanto, o homem um ser racional com o fim natural de viver em
sociedade e realizar seus objetivos.
Por conseguinte, vale destacar que o homem representa um valor o qual é entendido
segundo Reale:
Neste diapasão, o Direito se expande tendo em vista que os homens são desiguais e
almejam a igualdade, buscando a felicidade, ou seja, próprio da dignidade da pessoa humana
como ser racional e social. Sendo assim, “a ideia de Justiça liga-se, de maneira imediata e
necessária, à ideia de pessoa humana, pelo que o Direito, da mesma forma que a Moral, figura
como uma ordem social de relações entre pessoas” (SOARES, 2010, p. 130 e 131).
Aduz, ainda o autor, que a definição de justiça não é o mais importante – “dependente
sempre da cosmovisão dominante em cada época histórica –, mas sim o seu processo experiencial
através do tempo, visando a realizar cada vez mais o valor dignidade da pessoa humana, valor-
fonte de todos os demais valores jurídicos”. Deve, portanto, a justiça ser entendida como
valor-meio, servindo aos demais valores em virtude da dignidade da pessoa humana que é o
valor-fim do ordenamento jurídico.
O conceito do que venha ser dignidade da pessoa humana ainda está em construção,
entrementes, entende a doutrina nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:
Para Gilmar Ferreira Mendes citando Peter Häberle, a cláusula da dignidade da pessoa
258
A REVISTA DA UNICORP
humana prevista no art. 1°, 1, da Lei Fundamental da Alemanha, não se trata de uma peculiari-
dade desta Constituição, mas sim um “tema típico” e atual em muitos Estados Constitucionais
e fazem parte da “Família das Nações” (HÄBERLE apud MENDES, 2008, p. 152).
Afirma, ainda, Peter Häberle citado por Gilmar Ferreira Mendes que no direito internaci-
onal encontra-se em vários documentos referência à dignidade humana, como na Carta das
Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos e no Estatuto da Unesco, valor este que traduz manifestação de
desagravo às violações ocorridas na Segunda Guerra Mundial (HÄBERLE apud MENDES,
2008, p. 152 e 153).
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet citando Carlos Ayres Brito:
Assim sendo, a ideia de dignidade humana a qual deve ser entendida como algo que
transcende a dignidade da pessoa em relação à sua individualidade. Ademais, a dignidade da
pessoa humana deve ser compreendida como a dignidade que lhe é atribuída, “cada ser huma-
no é único e como tal titular de direitos próprios e indisponíveis”, (SARLET, 2011, p. 569).
Por outro lado, assevera o autor acima citado que ao se falar em dignidade, logo em
direitos e deveres humanos e fundamentais, fala-se num contexto intersubjetivo o qual implica
numa obrigação de respeito pela pessoa.
Ademais, observa-se que o Supremo Tribunal Federal tem especialmente recorrido ao
princípio da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento essencial para solucionar dis-
cussões que lhe são direcionadas, demonstrando sua consagração no direito brasileiro, pois
na dúvida deverá o intérprete, seja em relação aos interesses, direitos e valores, preferir in
dubio pro dignitate.
A Jurisprudência pátria tem entendido que o Estado não pode se omitir de sua respon-
sabilidade no que se refere ao cumprimento da Lei de Execução Penal e à obediência aos
princípios do Estado Democrático de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
Desta feita, faz-se necessário trazer à baila decisões favoráveis à concessão de benefícios
a presos, condenados ou provisórios, independentemente do delito que cometera, em condições
desumanas (sem condições mínimas de higiene, superlotação, por exemplo), ou seja, transferên-
cia para regime menos gravoso ou prisão domiciliar, quando se tratar de presos condenados, e
prisão domiciliar ou aplicação de medidas cautelares quando se tratar de presos provisórios.
E é neste sentido que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, através do
julgado n° 70044760734, Rel. Des. Ícaro Carvalho do Bem Osório16, decide quando se depara
259
ENTRE ASPAS
Não se pode entender de outra forma senão aplicar efetivamente o princípio da Dignida-
de da Pessoa Humana e do Estado Democrático de Direito.
Completa ainda o citado Julgador17:
260
A REVISTA DA UNICORP
Para o Ministro acima citado, trata-se de constrangimento ilegal permitir que apenado
cumpra pena em estabelecimento prisional inadequado.
É ilegal e ilegítimo o cumprimento da pena de prisão em condições desumanas, pois é
assim entendido pelo o Ministro Nilson Naves no julgado HC n° 142.513-ES20, o qual foi
impetrado contra prisão preventiva que era cumprida em um contêiner, tendo sido concedido
benefício de prisão domiciliar, afirmando: “É despreziva e chocante! Não é que a prisão ou as
prisões desse tipo sejam ilegais, são manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas.”
Da mesma forma, o Ministro Og Fernandes ao se referir à prisão preventiva acima menci-
onada no Estado do Espírito Santo21: “Essa é a decisão mais constrangida que dou na minha
história, porque é absurdo que isso possa existir como solução ao problema penitenciário”.
O Supremo Tribunal Federal, em Repercussão Geral22 no Recurso Extraordinário
641.320 Rio Grande do Sul, tendo como Ministro Relator Gilmar Mendes, reconheceu a
possibilidade do cumprimento de pena em regime menos gravoso, em face da impossibili-
dade de o Estado fornecer vagas para o cumprimento no regime originalmente estabeleci-
do na condenação penal.
No Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, contra o qual o
Órgão Ministerial interpôs o acima mencionado Recurso Extraordinário, foi determinado ao
condenado o cumprimento da pena privativa de liberdade em prisão domiciliar enquanto não
houver vaga em estabelecimento prisional que atenda aos requisitos da Lei de Execuções
Penais, demonstrando-se grande “relevância social e jurídica, que ultrapassa os interesses
subjetivos da causa”23.
Assim sendo, pode-se observar que há vasta jurisprudência no sentido de conceder
transferência ao preso, condenado ou provisório, de prisões com condições desumanas,
não observância dos requisitos dispostos na LEP24, para regime menos gravoso ou prisão
domiciliar, no caso dos primeiros, e prisão domiciliar no caso dos segundos à luz dos princí-
pios constitucionais do Estado Democrático de Direito, da Dignidade da Pessoa Humana, da
Legalidade e da Humanização da Pena.
5. Considerações finais
A pena de prisão é considerada por vários doutrinadores como a mais dura e violenta de
todas as intervenções do Estado, quando este não aplica a pena de morte, sobre o indivíduo.
De outra banda, a pena é uma ferramenta essencial e característica da legislação penal,
concretizando o direito de punir do Estado.
Todavia, não poderá o Estado sob o manto do ius puniendi encarcerar o agente infrator
a qualquer custo, pois cabe também a esse cumprir determinações legais imprescindíveis e
indispensáveis para limitar seu poder punitivo.
A República Federativa do Brasil se constitui como Estado Democrático de Direito e
tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CRFB). Sendo assim, é
261
ENTRE ASPAS
imperiosa a necessidade de respeitar a sua Constituição Federal para que não haja violações.
O Estado ao aprisionar aquele que cometera conduta tipificada no Código Penal deverá,
efetivamente, cumprir as disposições contidas na Carta Política e nas legislações infraconstitucionais,
tratados e convenções internacionais, sob pena de violá-los.
As condições subumanas em que se encontram as penitenciárias brasileiras é conside-
rada um ultraje ao Estado Democrático de Direito, pois é a omissão do Poder Executivo que
provoca a situação caótica e desumana que estas se encontram.
O fato de ter o apenado cometido conduta reprovável pela sociedade e pelo Estado não
o transforma em monstro e não poderá ser submetido a tratamento tão desonroso, odioso e
desumano.
Fato é que prisões com condições tão repugnantes demonstram a desídia do Estado em
solucionar o problema carcerário, bem como tem se mostrado pela jurisprudência pátria ser um
constrangimento ilegal25.
Ademais, a concessão de benefícios a presos, condenados ou provisórios, em condi-
ções desumanas, transferindo-os para regime menos gravoso ou prisão domiciliar, quando se
referir a presos condenados, e prisão domiciliar ou medidas cautelares, quando se referir a
presos provisórios, tem se mostrado a possibilidade de materializar o princípio constitucional
da Dignidade da Pessoa Humana com o fim último de ressocializar o condenado.
No estudo em epígrafe, buscando compreender as possibilidades de concessão de
benefícios a presos, condenados ou provisórios, a legislação não vislumbra hipóteses de
transferência para regime menos gravoso ou prisão domiciliar, ou, ainda, aplicação de medidas
cautelares quando se tratar de condições precárias de encarceramento.
Entrementes, não pode o Magistrado, no caso concreto, agir de forma legalista, pois,
por outro lado, estará sendo omisso quanto à aplicabilidade de princípios constitucionais
norteadores do Estado Democrático de Direito.
Vale ressaltar como bem diz Maria Berenice Dias (2007, p. 37): “que a ausência de lei não
quer dizer ausência de direito”.
Cabe, também, ao Estado-Juiz zelar pela a aplicação da Carta Maior e das legislações
infraconstitucionais, bem como a observância das condições mínimas da carceragem, confor-
me requisitos dispostos na Lei de Execução Penal.
Ademais, considera-se a citada concessão de prisão domiciliar um certo risco, porque
esta não é fiscalizada. Porém, deve ser observado que não caberá ao infrator pagar um preço
tão caro pela negligência do Estado.
Vale mencionar, o que diz Maria Lucia Karam para compreender a privação de liberdade:
“É preciso conduzir nosso olhar, nossa imaginação, nossos sentimentos, para dentro dos
muros das prisões” (KARAM, 2009, p. 15 – 16). Assim sendo, ao tentar imaginarmos o que é
uma pena de prisão, veremos, se possível for, que se trata de uma monstruosa pena que em
nada transforma o ser humano que ali se encontra.
Por estas razões, é legal e legítima a concessão de benefícios a presos, condenados ou
provisórios, em condições desumanas, transferindo-os para regime menos gravoso ou prisão
domiciliar, no caso dos primeiros, e colocação em prisão domiciliar ou aplicação de medidas
cautelares, no caso dos segundos, à luz dos princípios constitucionais da Dignidade da Pes-
soa Humana e do Estado Democrático de Direito, pois numa nação justa e solidária não se pode
compreender e aceitar que haja prisões com condições tão repugnantes, que haja uma verda-
deira autofagia.
262
A REVISTA DA UNICORP
Referências ________________________________________________________________________
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Notas ______________________________________________________________________________
1. Apelação Crime n° 70029175668, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em
15.04.2009.
2. Cnossos é o maior sítio arqueológico da Idade do Bronze da ilha grega de Creta, provável centro cerimonial
e político da cultura e civilização minóica. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em:<http://
pt.wikipedia.org/wiki/Cnossos> Acesso em 21 ago. 2011.
3. Inquisição era um tribunal eclesiástico destinado a defender a fé católica: vigiava, perseguia e condenava
aqueles que fossem suspeitos de praticar outras religiões. Exercia também uma severa vigilância sobre o
comportamento moral dos fiéis e censurava toda a produção cultural bem como resistia fortemente a todas as
inovações científicas. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/galileu/
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A SOCIEDADE ABERTA DE INTÉRPRETES DO DIREITO PENAL:
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO O CAMINHO PARA ADEQUAR
O DIREITO PENAL AO CONTEXTO DE UMA SOCIEDADE PLURALISTA
1. Introdução
A justiça restaurativa é, antes de tudo, uma realidade. Vários países ao redor do globo,
inclusive o Brasil, já adotaram algumas de suas práticas e o desenvolvimento destas tem
demonstrado alguns resultados positivos. Por ser um movimento relativamente novo (ganhou
expressão apenas na década de 90), padece de inúmeras deficiências, entre as quais, a
inexistência de uma base teórica sólida. E, como naturalmente sói ocorrer com uma teoria ainda
em construção, existem profundas divergências quanto às origens, conceitos, objeto e finali-
dades da justiça restaurativa.
Entretanto, há um inegável ponto de aproximação entre os seus adeptos: acreditam
estar diante de um novo modelo que se contrapõe ao atual paradigma punitivo (o sistema de
justiça criminal tradicional). E é este o ponto central que desperta o nosso interesse no estudo
de tema tão atual, pois a busca por alternativas que superem um modelo (punitivo) que histo-
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ENTRE ASPAS
para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta”.2 A tônica recairia,
sobretudo, no reconhecimento da necessidade de ampliação do círculo de intérpretes, de
modo que também as potências públicas, os cidadãos e os grupos passariam a ser considera-
dos legítimos intérpretes da Constituição.3
Sob essa nova perspectiva, o destinatário da norma é participante ativo do processo
hermenêutico. É necessário reconhecer, portanto, a existência de dois diferentes tipos de intér-
pretes da Constituição: os intérpretes em sentido estrito (a exemplo dos juízes) e os intérpretes
em sentido amplo (ou seja, todo aquele que vivencia a norma constitucional, sejam as potênci-
as públicas, os cidadãos e/ou os grupos). Desse modo, é possível construir um processo de
interpretação constitucional eminentemente pluralista e democrático, bem como proporcionar
a “mediação específica entre Estado e sociedade”.4
No entanto, se por um lado, em relação aos intérpretes em sentido estrito a questão da
legitimação não traz nenhuma celeuma doutrinária, pois decorre expressamente do texto Cons-
titucional, situação mais problemática se refere à questão da legitimação dos intérpretes em
sentido amplo. De fato, estes últimos não estão formalmente ou oficialmente nomeados para
exercer a função de intérpretes constitucionais.
Contudo, Peter Häberle analisa essa problemática sob duas perspectivas distintas: (i) a
legitimação sob o ponto de vista da teoria do direito, da teoria da norma e da teoria da interpre-
tação e (ii) a legitimação sob o ponto de vista da Teoria da Democracia.
Sob o primeiro ponto de vista, o autor assinala que, se por um lado é verdade que
“competências formais têm apenas aqueles órgãos que estão vinculados à Constituição e que
atuam de acordo com um procedimento pré-estabelecido”, por outro lado, essa estrita corres-
pondência entre vinculação à Constituição e legitimação para interpretar perde um pouco de
sua expressão dentro do contexto da hermenêutica contemporânea. A interpretação é um pro-
cesso aberto, que reconhece possibilidades e alternativas diversas e a referida “vinculação se
converte em liberdade na medida em que se reconhece que a nova orientação hermenêutica
consegue contrariar a ideologia da subsunção”.5
Assim, a ampliação do círculo de intérpretes é apenas a consequência da necessidade
de integração da realidade no processo de interpretação e os intérpretes em sentido amplo
compõem, justamente, essa realidade pluralista. Em outros termos, se as disposições Constitu-
cionais interferem sobremaneira na organização da Sociedade, então esta última também deve
ser considerada como um intérprete ativo de referidas normas:
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Pois bem, das características delineadas até então, percebe-se que, na justiça restaurativa,
as atenções são direcionadas para a reparação das consequências do delito. Saliente-se, con-
tudo, que essa reparação não se confunde com aquela noção de recomposição patrimonial
própria do Direito Civil. No âmbito penal, tem um sentido muito mais profundo: extrapola a ideia
de reparação material, compreendendo a restauração dos laços sociais entre a vítima e o ofensor,
entre a vítima e a comunidade, e entre o ofensor e a comunidade.15 Persegue-se, enfim, como
finalidade última, a reparação do conflito nascido da infração.
Conforme assinalado alhures, não existe uma uniformidade na adoção dessas práticas,
dependendo do contexto cultural e social de cada país. No entanto, foi elaborada, pelas Na-
ções Unidas, a Resolução 2002/12, estabelecendo os princípios básicos norteadores da justiça
restaurativa e de suas práticas. Estes princípios se tratam de regras flexíveis, a fim de possibi-
litar a adaptação do novo modelo aos diferentes contextos nacionais.16
Importante orientação é trazida no artigo 7º da referida Resolução, o qual estabelece a
necessidade de existência de indícios suficientes de autoria e materialidade para que se envie
o caso aos núcleos restaurativos. Estabelece, ainda, a necessidade do consentimento voluntá-
rio tanto da vítima quanto do ofensor.
Necessário ressaltar, ainda e por oportuno, que a justiça restaurativa não pretende
substituir o sistema de justiça tradicional. Em verdade, eles não se tratam de modelos inconci-
liáveis. Ambos devem coexistir e complementar-se, “pois que não há condições de prescindir
do direito punitivo como instrumento repressor em determinadas situações-limite”. 17
E é justamente em razão da existência dessa relação de complementaridade que as práticas
restaurativas impõem a todos os seus intervenientes a confidencialidade sobre o conteúdo dos
contatos estabelecidos,18 pois, se o processo restaurativo não for exitoso, o caso deverá retornar
ao procedimento convencional da justiça criminal. Desse modo, a participação do ofensor não
deverá ser usada como prova de admissão de culpa, bem como as discussões travadas entre as
partes não poderão constituir meios de prova, pois o insucesso da mediação não poderá influir
no processo judicial ulterior (arts. 8º, 14 e 16 da Resolução 2002/12 das Nações Unidas).19
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Essa constatação afeta, por óbvio, a distinção entre as noções de interesses públicos
e interesses privados, pois estes também não se tratam de esferas estanques e incomunicá-
veis. Se o Direito é uno, naturalmente vão existir pontos de contato, de sobreposição e até
interdependência entre esses conceitos. Em outras palavras: embora determinado fato ou
relação social represente um interesse preponderantemente privado, inegavelmente poderão
produzir reflexos na esfera do interesse público (e vice-versa).
No campo do Direito Penal, inegavelmente lidamos com interesses preponderante-
mente públicos. Isso não se questiona. No entanto, também é inquestionável que o delito
atinge, de forma imediata, interesses particulares representados na figura da vítima. Ocorre
que, a partir de uma construção histórica adotada até o presente momento, a vítima foi
retirada do cenário penal e processual penal, sob o argumento de que o delito afeta interes-
ses públicos, bem como para expungir da seara penal os desejos de “vingança privada”.
Contudo, essa concepção dominante tem seus fundamentos questionados por alguns auto-
res, a exemplo de Zaffaroni:
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partir de então, os indivíduos passaram a não ter mais o direito de resolver os seus litígios, pois
deveriam se submeter “a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e políti-
co”; (2) e, além disso, houve uma mudança emblemática, qual seja, ocorreu a criação de uma
noção absolutamente nova: a infração.31 Segundo Foucault:
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críticos, substituir o processo penal tradicional por um modelo consensual seria violar os
direitos fundamentais decorrentes de princípios constitucionais como o devido processo le-
gal, ampla defesa e contraditório, princípio da inocência, etc.
A superação dessa crítica exige uma breve análise das características gerais dos
direitos fundamentais. Pois bem, atualmente é corrente a ideia de que os direitos fundamen-
tais não são absolutos, há naturalmente a possibilidade de restrição do seu alcance, segun-
do a balizada doutrina que trata do tema.36 Em verdade, há uma restrição recíproca entre os
princípios constitucionais e a análise da prevalência de um sempre depende da análise do
caso concreto. Isso porque, os princípios não são mandamentos definitivos, mas sim prima
facie, ou seja, devem ser aplicados na medida do possível.
Diante dessas características peculiares, existindo uma colisão entre princípios, a
solução será buscada por meio da técnica de ponderação. A ponderação se dirige à análise
do caso concreto, pois é este que vai determinar qual princípio prevalecerá em relação ao
outro, ou seja, qual o princípio tem maior peso na situação concreta analisada (dimensão de
peso dos princípios).37 Justamente por isso, não se pode dizer que um direito fundamental
tem caráter absoluto, pois, a depender do caso concreto, ora prevalecerá sobre um direito
fundamental contraposto, ora irá ceder em favor deste.
Dito isto, cabe assinalar que os direitos fundamentais pautados em princípios cons-
titucionais como o devido processo legal, ampla defesa, princípio da inocência etc., não têm
caráter absoluto. A prevalência desses princípios depende de uma ponderação entre valores
contrapostos e, a partir da ponderação, constata-se quais dos grupos de princípios contra-
postos prevalece.
Pois bem, esses valores têm prevalecido no âmbito do direito penal e processual
penal tradicionais porque lidamos com a mais drástica intervenção estatal: a pena. Em outros
termos, até então a ponderação que está sendo levada a cabo no direito penal e processo
penal tradicionais é no seguinte sentido: permitir que a vítima e o infrator decidam livremente
qual a pena que será aplicada a este último versus atribuir ao Estado o monopólio do direito
de aplicar uma pena limitada por rígidas garantias constitucionais?
Sem dúvida, dentro desse quadro exposto, a segunda opção é a melhor. E é a que vem
sendo adotada pela doutrina dominante: ou seja, a aplicação de uma pena necessariamente
deve ser antecedida da comprovação da culpa do infrator, desde que essa comprovação
tenha sido realizada por meio de um processo legal devido, no qual foi respeitado o princípio
da inocência, bem como que tenha sido garantida a ampla defesa ao acusado etc.
No entanto, questão completamente distinta se põe com o advento da justiça
restaurativa, pois agora nos perguntamos: E se a pena não fosse uma realidade necessária
afinal? Enfim, e se pudéssemos abrir mão da pena? Poderíamos falar então numa relativização
dessas garantias constitucionais penais ou, em outros termos, poderíamos considerar que
elas passariam a ter uma menor dimensão de peso no contexto da solução de determinados
conflitos penais? Acreditamos que sim.
Em certa medida, é isso que a justiça restaurativa propõe. Estamos diante de uma
nova ponderação: Garantir a prevalência das garantias penais constitucionais e assumir o
risco da imposição de uma pena versus afastar a possibilidade da imposição de uma pena,
relativizando a dimensão de peso de tais garantias e fazendo com que a autonomia das partes
para solucionar o conflito prevaleça sobre aquelas? Esta última, como parece óbvio, é a
opção dos adeptos da justiça restaurativa. Aliás, uma opção tributária de uma razoável
ponderação entre direitos fundamentais contrapostos.
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277
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Notas ______________________________________________________________________________
279
ENTRE ASPAS
potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos,
não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da
constituição.” (Idem, p. 13)
4. Idem, p. 14-18.
5. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional... Op. Cit., p. 30.
6. Idem., p. 33.
7. Idem., p. 37.
8. Essa aproximação da vítima com o ofensor pode favorecer, ainda, a desconstrução do estereótipo de
criminoso enquanto um ser “não-humano” pois o diálogo horizontal é capaz de fazer com que a vítima visualize
no outro (ofensor) semelhanças com ela mesma e, enfim, possa arrefecer mentalmente a lógica maniqueísta de
bem (vítima) e mal (ofensor). Porque, segundo Vera Andrade a construção desse estereótipo também é um
processo mental: “os estereótipos (...) são construções mentais, parcialmente inconscientes que, nas represen-
tações coletivas ou individuais, ligam determinados fenômenos entre si e orientam as pessoas na sua atividade
quotidiana (...)”. (ANDRADE, Vera Regina Pereira. A Ilusão da Segurança Jurídica. p. 269.)
9. PALLAMOLLA, Op. Cit., p. 94.
10. O processo de empoderamento significa que vítima e ofensor assumem um papel ativo (ganham poder) na
resolução do conflito, diferente do que ocorre na justiça tradicional em que a posição de ambos é de passividade.
(OXHORN, Philip. SLAKMON, Catherine. Micro-justiça, Desigualdade e Cidadania Democrática A Construção
da Sociedade Civil através da Justiça Restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, C., R. DE VITTO, R. GOMES
PINTO (org.). Justiça Restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e PNUD, 2005, pp. 203-204.
11. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática.1.ed. São Paulo:
IBCCRIM, 2009, p. 118.
12. SHEARING, Clifford, FROESTAD, Jean. Prática da Justiça - O Modelo Zwelethemba de Resolução de
Conflitos... Op. Cit., p. 84
13. SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão
do crime. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.29-30.
14. SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão
do crime. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 30.
15. SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 152.
16. SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, pp. 148-151.
17. SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do
crime. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 34.
18. AMADO FERREIRA, Francisco. Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Coimbra Editora, 2006, p. 37.
19. LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adulto: Um novo paradigma de justiça?. Análise crítica da
Lei nº 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 120-121.
20. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. ZOMER, Ana P., CHOUKR, Fauzi
H.,TAVARES, Juarez, GOMES, Luiz F. (trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 267-271.
21. SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: a reparação como consequência jurídico-penal autô-
noma do delito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p.182.
22. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática.1.ed. São Paulo:
IBCCRIM, 2009, pp. 166-167.
23. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias, 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 122.
24. “o processo penal, revestido de instrumentalidade garantista, direciona-se à defesa do imputado/réu contra
os poderes públicos desregulados, e não da vítima” (CARVALHO, Salo de. Teoria Agnóstica da pena: entre os
supérfluos fins e a limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de. (coord.). Crítica à Execução Penal.
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UMA (RE) LEITURA DO GARANTISMO PENAL À LUZ DA PROTEÇÃO PENAL
DOS BENS JURÍDICOS SUPRAINDIVIDUAIS
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo compreender o novo papel dos bens jurídicos
supraindividuais no Estado Democrático de Direito e, neste novo contexto, qual o papel do
Direito Penal. Para esta tarefa, analisa-se o conteúdo do princípio da igualdade e sua relação
com a seletividade do sistema penal. Identificando este problema, parte-se para a definição da
criminalidade dos poderes, normalmente isentada dos processos de criminalização, e, conside-
rando que este perfil criminoso tende a afetar mais diretamente os bens jurídicos
supraindividuais, defende-se uma política criminal mais voltada para estas condutas. Esta
política criminal, por sua vez, sofre com uma acentuada resistência da doutrina, pautada na
apropriação indevida do garantismo penal de Luigi Ferrajoli. Este artigo, neste debate, trabalha
com uma leitura mais ampla do garantismo, no que vem se convencionando chamar de garantismo
penal integral ou garantismo positivo.
1. Introdução
282
A REVISTA DA UNICORP
Na esfera penal, porém, ainda existe um hiato muito grande na regulamentação e tutela
de tais direitos. Ademais, mesmo quando a lei penal lhes dispensa alguma atenção o faz de
forma deficiente ou mesmo insatisfatória, de um lado, ante a exiguidade das penas e a injustificada
quantidade de benesses penais e processuais, e de outro, pela má técnica legislativa e por um
sem número de antinomias e aporias.
Feito isto, forçosa a constatação, de que o Direito Penal ainda intervém de forma mais
enérgica para proteger bens jurídicos de cunho liberal iluminista, conforme apregoa um movi-
mento doutrinário de resistência a esta tendência. Este movimento, denominado de discurso
de resistência, busca seu referencial teórico, em grande medida, no garantismo penal, apontan-
do-o como fundamento impeditivo para a proteção penal dos bens jurídicos supraindividuais.
Contudo, este trabalho pretende demonstrar que há um grande equívoco em colocar o
garantismo, enquanto teoria, como fundamento de um discurso de resistência à modernização
do Direito Penal. Para esta tarefa será realizada uma nova leitura do garantismo penal, investi-
gado sob o pressuposto da necessidade de uma mudança paradigmática, a fim de que se
ampare de forma mais séria, sistemática e efetiva os bens jurídicos supraindividuais.
Também se verificará que esta necessidade de reavaliação do paradigma penal e da
interpretação corrente do garantismo penal conta com apoio nos dizeres do próprio Luigi
Ferrajoli, principal teórico do garantismo, para quem “a questão penal, que a mudança da
questão da criminalidade deveria fazer ser hoje repensada radicalmente, seja do ponto de vista
da efetividade seja da técnica de tutela e garantia” (tradução livre)1.
Assim, na tarefa de adequar o direito penal à proteção dos bens jurídicos do Estado
Democrático de Direito, este trabalho buscará desenvolver uma nova leitura que fará do
garantismo penal um importante aliado do processo de modernização, superando a sua indevida
apropriação pelo discurso de resistência.
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ENTRE ASPAS
A teoria do bem jurídico, a esta altura, vinha se desenvolvendo com expressiva intensi-
dade em terras europeias. Como não poderia deixar de ser, sofreu grandes influxos do período
fascista e nazista, que culminou com a Segunda Guerra Mundial.
Em determinados países, como na Alemanha e na Itália, esta perspectiva intervencionista
atingiu um patamar que extrapolou as perspectivas do Estado do bem estar social, especial-
mente porque tinha fundamento político-ideológico numa concepção eugênica e autoritária.
Dentro desta perspectiva, servia mais aos interesses políticos uma teoria do Direito de
diminuta concepção crítica, que tivesse em maior conta a forma do que o conteúdo das normas
jurídicas e que, de forma reducionista, deixasse a escolha do que era importante ao total arbítrio
do legislador.
Assim, no que tange ao bem jurídico, pontuava-se que o delito seria uma mera violação
ao dever de obediência. Concepção que por ser ao mesmo tempo abstrata e autoritária, estava
plenamente adequada aos interesses estatais dominantes à época. Assim pondera Muñoz
Conde3, em obra sobre Mezger e os discípulos da Escola de Kiel:
284
A REVISTA DA UNICORP
de bem jurídico, que resiste a despeito das críticas4 e da ausência de uma definição conceitual
pacífica na doutrina. No entanto, trazendo à baila alguns posicionamentos abalizados, permite-
se uma compreensão mais ampla do instituto, tarefa investigativa que foi bem realizada por Luiz
Regis Prado. Destacam-se os comentários feitos às posições de Welzel e Roxin5.
Vislumbra-se, sob esta conceituação, que o bem jurídico tem como pressuposto um
conteúdo social anterior, que é elevado pelo legislador, com a proteção jurídica, à condição de
bem jurídico. Dá-se aí uma relação interessante, posto que o bem jurídico é importante social-
mente e por isso é tutelado penalmente; mas, ao mesmo tempo, é importante socialmente
justamente por ser juridicamente tutelado6.
O bem jurídico, em outras palavras, é um fato, como interesse socialmente relevante,
que recebe a valoração do legislador penal, o que leva à produção da norma penal que tutela
exatamente aquele bem considerado valioso para aquela dada comunidade em dado momen-
to histórico.
Feito este panorama geral, deve a abordagem adentrar naquelas que são as principais
funções do bem jurídico, campo onde seguramente se tem controvérsia um pouco menor. Regis
Prado7 afirma que serve o bem jurídico para limitar o poder punitivo do Estado, como critério
informador na atividade legislativa penal. Claus Roxin8 afirma ainda que o conceito por ele
defendido é “um conceito de bem jurídico crítico com a legislação, na medida em que pretende
mostrar ao legislador fronteiras de uma punição legítima”
Tem ainda função teleológica ou interpretativa, na medida em que condiciona o sentido
da norma à proteção de um determinado bem jurídico. Também relevante a função
individualizadora, servindo como parâmetro para a fixação da pena a gravidade e intensidade
da lesão ao bem jurídico, bem como a sua importância social. Destaca-se ademais a função
sistemática, auxiliando na organização, estruturação e classificação temática dos tipos no
Código Penal.
Todas estas funções são, ora em maior, ora em menor medida, limitadoras da atuação do
Estado e em especial de seu poder legislativo. Sendo, sob o prisma liberal-iluminista, a regula-
mentação e limitação do Poder a preocupação central no âmbito da teoria do Estado e do
Direito Penal, o bem jurídico assume papel de destaque como parâmetro limitador do poder
coercitivo. Nas palavras de Luciano Feldens9:
285
ENTRE ASPAS
Pode se observar que, à medida que a teoria do bem jurídico impõe os limites para o
legislador, ao afirmar que a intervenção penal deve respeitar a necessidade de proteção subsi-
diária de bens jurídicos lesionados ou em perigo de lesão em razão da conduta criminosa,
também considera que a criminalização que se efetiva dentro destes parâmetros será legítima.
São duas faces da mesma moeda.
Não há como se falar em legitimação do Direito Penal, na atual fase de evolução dos
direitos fundamentais, sem que a Constituição seja o ponto central e superior, de onde emanam
(ou deveriam emanar) as diretrizes de Política Criminal. Isto se justifica precisamente porque o
conceito de bem jurídico depende fundamentalmente de um substrato fático-social e do respei-
to aos princípios reitores que limitam formal e materialmente a produção legislativa, ambos
contidos na Constituição.
A Constituição, afinal, é o instrumento normativo no qual são positivados os valores
fundamentais de determinada sociedade, num pacto social e político produzido em determina-
do contexto histórico, regulando as estruturas do poder estatal e regendo a vida social. Neste
instrumento, segundo Canotilho10, “entende-se a ordenação sistemática e racional da comuni-
dade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos
e se fixam os limites do poder político.”
Na Constituição, portanto, figuram os bens, aí compreendidos os interesses, direitos e
valores, fundamentais de determinada sociedade em dado momento histórico. São, portanto,
os bens jurídicos primordiais daquela comunidade. Dentre estes bens jurídicos constitucio-
nais, haverá uma gradação de maior ou menor relevância, e apenas aos bens jurídicos consti-
tucionais de maior relevância deverá se destinar a proteção penal.
Em suma, viu-se, nesta breve investigação preliminar, o papel central que ostenta a
teoria do bem jurídico no campo penal, bem como a sua íntima relação com os valores primor-
diais insertos no pacto fundamental que é a Constituição. Destarte, necessário tratar de forma
mais detida este importante aspecto, compreendendo quais os reflexos impostos, na teoria do
bem jurídico, pelas diversas concepções de Estado.
286
A REVISTA DA UNICORP
rente da Constituição americana, mas, com maior relevância, dos preceitos da Revolução Fran-
cesa, surgiu uma gama enorme de novos direitos e garantias, de nítido caráter individual.
As primeiras Constituições ou Cartas de Direito se destinavam a estabelecer os direitos
humanos fundamentais, com o fim de privilegiar o Império da Lei e do Direito, a separação de
poderes e o respeito às liberdades individuais do cidadão. Assim sintetiza José Afonso da Silva11:
Ao Estado, assim, era permitida apenas uma atuação não invasiva (negativa) à esfera
jurídica pessoal dos indivíduos. Só que o conteúdo deste “não atuar” estatal é muito mais
amplo do que se percebe à primeira vista. Isto porque o Estado Liberal de Direito é expressão
dos interesses da classe burguesa e a imposição de abstenção do Estado se estende tanto ao
campo econômico quanto ao campo político, expressando, durante longo período, o liberalis-
mo econômico e o liberalismo político.
São consagrados, neste período, portanto, aquilo que a doutrina convencionou deno-
minar de direitos fundamentais de Primeira Geração, ou direitos de Liberdade. Porém, estes
Direitos de Liberdade não tinham um alcance universal como a ideologia burguesa pretendia a
priori indicar. Ao contrário, foi o fundamento ideológico para perpetuar o poder político da
burguesia, na medida em que as classes proletárias não tinham condições materiais para se
inserir no contexto político e nos espaços formais de deliberação política.
Com a imposição jurídico-constitucional (e ideológica) de um Estado inerte, não se
transpôs (e nem era essa a pretensão da burguesia) as perspectivas de uma liberdade formal, de
uma igualdade formal, de uma fraternidade formal. Nas palavras de Marx e Engels, tinha-se uma
mera liberdade filosófica, não uma liberdade real12.
Essas críticas provenientes do referencial socialista, ainda no Século XIX, levaram
certos países à Revolução Proletária. Em outros, especialmente no mundo burguês ocidental,
o Estado Liberal não sucumbiu, mas cedeu em certa medida às pressões sociais e políticas. A
Primeira Guerra Mundial e a crise econômica de 1929 foram também estopins importantes que
estabeleceram definitivamente a necessidade de o Estado abarcar as necessidades sociais de
modo concreto, para além da mera abstração que imperava até ali.
Primeiro com a Constituição mexicana de 1917, mas principalmente com a política do
Welfare State, a intensa demanda por direitos de cunho social finalmente logrou a ampliação
de sua relevância constitucional. O Estado Liberal, assim, foi forçado pelas circunstâncias a
modificar alguns de seus parâmetros centrais, abarcando novos direitos, de índole essenci-
almente coletiva.
287
ENTRE ASPAS
Essa nova concepção constitucional busca a realização concreta dos chamados Direi-
tos de Segunda Geração, ou dos Direitos de Igualdade, em grande medida já positivados
constitucionalmente. Contudo, não é difícil notar que esta realização da igualdade no plano
material não logrou efetiva concretização, o que, sem temor, deve ser atribuído à incompatibi-
lidade do sistema capitalista com os progressos sociais, em razão do desvirtuamento liberal
que sofreu a concepção preliminar de Estado Social, especialmente nos países do “Terceiro
Mundo”. Paulo Bonavides14 afirma, com propriedade, que:
Ademais, o Estado Social de Direito servia, em certa medida, a qualquer das represen-
tações ideológicas vigentes no período. Citando Bonavides, José Afonso da Silva15 alerta
sobre a ausência de critérios sólidos de adequação ideológica e política na definição de
Estado Social:
288
A REVISTA DA UNICORP
De outro lado, tarefa complexa é a definição conceitual dos chamados bens jurídicos da
generalidade, ou bens jurídicos supraindividuais. O primeiro ponto de conceituação é a verifi-
cação de que os bens supraindividuais são de titularidade não individualizada, ora pertencen-
do ao Estado e à sociedade como um todo, ora a grupos de pessoas determinadas ou
determináveis. Esta distinção é feita por Luiz Flávio Gomes18, nos seguintes termos:
Os bens jurídicos, segundo o sujeito titular, são individuais (os que perten-
cem às pessoas singulares: vida, saúde, pessoal, liberdade, propriedade,
honra, etc.) ou supra-individuais, que se subdividem em bens públicos ou
gerais ou institucionais (os que pertencem ao Estado ou órgãos ou entida-
289
ENTRE ASPAS
Outros autores, porém, trabalham com definição diferente e aparentemente mais clara e
precisa. Neste sentido, tendo como base a classificação popularizada por Luiz Regis Prado,
Sheilla Coutinho das Neves19:
Estes bens jurídicos, por sua vez, estão relacionados aos preceitos do Estado Social e
Democrático de Direito, concepção que pretende tutelar e incrementar os direitos de cunho
social e coletivo. A doutrina tradicional do bem jurídico, assim, passa a compreender a neces-
sidade de amparar novos direitos fundamentais, direitos insertos na esfera constitucional com
igual ou até mesmo maior relevância do que os direitos individuais ditos “clássicos”. Esta
tarefa, como já indicado, deve ter como parâmetro primordial aquilo que a Constituição indica
a guisa de direitos fundamentais. Neste sentido, Regis Prado20
A Constituição, assim, deve servir inexoravelmente como guia para a definição dos
bens jurídicos mais relevantes e para a concretização de uma política criminal do Estado
Democrático de Direito. Esse novo paradigma de política criminal conduz a uma necessidade
premente de modernização do direito penal, com a inclusão e estruturação de uma estrutura
punitiva que volte os instrumentos de persecução penal à proteção dos bens jurídicos
supraindividuais.
290
A REVISTA DA UNICORP
Há autores que, com razão de ser, creditam uma maior relevância qualitativa ao resguar-
do da classe de direitos supraindividuais, enquanto parte do instrumental realizador do Estado
democrático de Direito. Neste sentido, Luciano Feldens e Lenio Streck23:
291
ENTRE ASPAS
Para a consecução deste objetivo é preciso superar a atual incongruência entre a legis-
lação penal e as demandas da criminalidade moderna. Afinal, é inevitável ponderar que existe
atualmente uma confortável e desequilibrada relação de custo e benefício para a criminalidade
organizada. É possível, de um lado, tentar a conduta criminosa e, tendo êxito, atingir um pata-
mar de lucro considerável; ou, na remota hipótese de ser descoberto, o agente criminoso ainda
contará com uma série de benesses legais e procedimentais que o afastam do sistema penal,
como representante que é da classe dominante.
Aí, portanto, assenta-se a necessidade de modificação da perspectiva de política crimi-
nal, para que se conduza a uma redefinição da escala de valores dos bens jurídicos, pautada
efetivamente na Constituição. Deste modo, deve se elevar a proteção penal dos bens jurídicos
supraindividuais ao papel de elemento central na atuação do Estado punitivo, destacando-se
à sua proteção todo o limitado aparato persecutório estatal.
Para tanto se fazem exigíveis novas incursões hermenêuticas e um processo organizado
de reformulação da (complexa) legislação penal que toque a matéria, como no caso da legisla-
ção dos crimes contra a ordem tributária, ordem econômica, ou ainda na lei de crimes ambientais.26
Parte significativa da doutrina, contudo, ainda crê que o Direito Penal deve intervir de
forma mais enérgica para proteger bens jurídicos de cunho liberal iluminista, a fim de que, e isto
não se afirma explicitamente, permaneça como paradigma penal a função de neutralização das
condutas criminosas das massas.
É o que afirma, por todos, Raúl Arana27, ao apontar que “La configuración del derecho
penal contemporaneo em las sociedades occidentales se caracteriza por uma ampliación
del âmbito de intervención penal. Esta política criminal lejos de encontrar aceptación en la
comunidad jurídica ha sido objeto de criticas.”
292
A REVISTA DA UNICORP
Esta posição, que vem sendo denominada de discurso de resistência28, termina relegan-
do a um segundo plano a tutela de bens jurídicos supraindividuais, aos quais se relaciona, por
seu turno, a criminalidade organizada. Esta concepção acerca da atual conjuntura penal, funda-
da quase exclusivamente no ideal liberal-burguês, representa uma tentativa de resistência à
evolução das novas perspectivas de criminalização, que avançam justamente sobre as condu-
tas desviantes das classes dominantes.
Esta organizada trincheira doutrinária compreende o Direito Penal apenas como um
Direito Penal Liberal, produtor e reprodutor das desigualdades de classe, instrumento da ges-
tão diferencial da criminalidade e fundado em uma seleção dos bens jurídicos orientada ideolo-
gicamente sob um prisma individualista.
Nesta perspectiva, a modernização do direito penal sofre um processo constante de
deslegitimação. O discurso de resistência, como já dito, brada ferozmente contra esta nova
perspectiva, entitulando-a, pejorativamente, de processo de expansão do Direito Penal, consi-
derando que aqueles que sustentam a proteção penal dos bens jurídicos supraindividuais
estariam em busca de um direito penal máximo, próprio dos regimes autoritários.
Obviamente, esta crítica não procede. Mesmo para aqueles que podem insistentemente
preferir o termo expansão, é possível concordar que se trata de uma expansão do Direito Penal
apenas na medida em que ele irá atingir grupos sociais (e suas respectivas ações criminosas)
nunca antes inseridos no sistema penal, quais sejam as classes hegemônicas tradicionalmente
isentadas da criminalização, seja primária seja secundária.
Contudo, reforçando o que já foi dito, trata-se em verdade de um processo de moderni-
zação do Direito Penal, fundado em uma nova orientação de política criminal que finalmente
pretende adequar este subsistema tão importante às diretrizes políticas e jurídicas do Estado
Democrático de Direito.
O discurso de resistência também insiste em outras estratégias para manter o status
quo. Por exemplo, periodicamente surgem propostas no sentido de “administrativização” do
Direito Penal, denominado ainda Direito Penal Secundário ou Direito Penal de duas/três velo-
cidades. São teses que buscam, no caso das condutas que atentem contra os bens jurídicos
supraindividuais, a redução da carga punitiva e a retirada de seus agentes violadores da esfera
de ação do direito penal e, por consequência, das penas privativas de liberdade.
Alessandra Rapassi29 refuta elegantemente estas propostas, considerando, correta-
mente, que não são aptas à efetiva proteção dos bens jurídicos supraindividuais, pois estes
são, numa revisão da escala de valores constitucionais, aqueles a quem se deve destacar a
maior proteção e o foco do aparato estatal de persecução.
293
ENTRE ASPAS
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A REVISTA DA UNICORP
Luigi Ferrajoli, principal teórico do garantismo, era parte do grupo Magistratura Demo-
crática, sustentando, entre outras posições, a necessidade de afirmação dos direitos básicos
dos acusados, não mais objetos da investigação penal e sim verdadeiros sujeitos de direitos.
Era um discurso que pregava o resgate, ainda que tardio, dos princípios do Estado de Direito,
em uma época em que os conceitos de Estado Democrático de Direito e neoconstitucionalismo
ainda estavam sendo melhor desenvolvidos.
Portanto, naquela conjuntura era natural que o garantismo se dedicasse com maior
destaque à explicitação dos direitos individuais dos acusados, voltados, por sua natureza, a
uma abstenção do Estado. Porém, uma leitura mais detida dos axiomas e principais premissas
do garantismo revelam que ele não se foca apenas na promoção dos direitos individuais dos
acusados ou na proteção de bens jurídicos de origem liberal.
O garantismo se destaca pela definição de dez axiomas principais, logicamente encade-
ados e que são relativos à pena, ao delito e ao processo penal. Estes dez axiomas traduzem os
princípios basilares do direito penal: 1) retributividade; 2) legalidade; 3) necessidade; 4)
lesividade; 5) materialidade; 6) culpabilidade; 7) jurisdicionariedade; 8) acusatório; 9) ônus da
prova; 10) contraditório ou ampla defesa32.
A definição de tais axiomas, por sua vez, cumpre uma função também política, definindo
o direito penal como uma técnica de tutela que deve conferir à pena objetivos utilitários e
parâmetros adequados para defini-los. Enquanto no passado o único objetivo utilitário da
pena era a máxima felicidade dividida pelo maior número possível de pessoas, Ferrajoli propõe
um segundo parâmetro utilitário: além do máximo bem-estar dos não-desviantes, o mínimo mal-
estar necessário dos desviantes33.
Deve-se atentar que os parâmetros não são excludentes, mas devem coexistir de
modo harmônico e equilibrado. Com as desculpas pelo uso de alguns clichês, os objetivos,
apesar de distintos, são como os dois lados de uma moeda, ou ainda como os pratos em
equilíbrio de uma balança.
Destarte, nenhum desses objetivos deve ser esquecido na gestação de um modelo
garantista de direito penal. Isto porque, de um lado, caso se busque apenas o máximo bem-estar
de todos, ao pesado custo do mal-estar indefinido dos delinquentes, o direito penal se aproxi-
mará do arbítrio, de um Estado autoritário e policialesco, afastando-se da Constituição.
Por outro lado, mantendo-se apenas o parâmetro utilitário que visa à obtenção do
mínimo mal-estar dos desviantes, haveria uma aproximação indevida do abolicionismo penal.
Justamente neste ponto figura uma das maiores distorções provocadas, ao garantismo, pelo
discurso de resistência. Mesmo não sendo uma doutrina que se proclame abolicionista, o
discurso de resistência assume, ainda que inconscientemente, um objetivo utilitário que ape-
nas cuida de rechaçar e deslegitimar o direito penal, sem cuidar do outro lado da moeda, que é
a promoção do bem-estar dos não-criminosos.
Fica evidente, neste ponto, a distorção interpretativa a que o garantismo penal é sub-
metido, posto que o próprio Ferrajoli cuida de se distanciar, de modo consistente e explícito,
das alternativas abolicionistas. Nas palavras do autor34:
295
ENTRE ASPAS
O direito penal então tem uma dupla função preventiva e protetiva. Da vítima, contra o
ofensor; do ofensor contra a vingança e reações privadas severas e sem parâmetros mínimos
de humanidade. O direito penal protege o fraco do mais forte, os direitos fundamentais do mais
fraco contra a violência do mais forte. Em suma:
O garantismo, então, é antes de qualquer coisa uma ampla teoria dos direitos fundamen-
tais. Não apenas dos direitos individuais e sim de todos os direitos fundamentais. Não apenas
uma teoria de fomento da liberdade do acusado, focada somente na limitação do poder estatal.
Também possui esse viés, é óbvio, contudo fica claro que possui atribuições maiores e mais
amplas do que a de somente controlar o poder institucionalizado, num cariz estritamente liberal.
O que Ferrajoli desvela e desenvolve é uma teoria que explora a tensão equilibrada entre
a defesa dos direitos fundamentais da sociedade e os do ofensor. Qualquer leitor mais atento
percebe que o garantismo pensado pelo autor italiano representa uma síntese ao conflito
dialético entre duas teses radicais: de um lado, o abolicionismo; de outro, um Estado totalitário.
Portanto, o garantismo, por mais surpreendente que essas palavras possam parecer a
princípio, também se presta à justificação/legitimação do direito penal. Todavia, este aspecto
em particular é omitido sistematicamente por parcela da doutrina brasileira que se afirma
garantista e que, não por coincidência, utiliza-se equivocadamente desta teoria para se posicionar
de modo contrário ao processo de modernização do direito penal.
296
A REVISTA DA UNICORP
297
ENTRE ASPAS
vio, mas o direito penal não pode se furtar a cumprir todos os seus objetivos, sem exceção. E
estes objetivos, não é demais lembrar, abrangem tanto a prevenção geral quanto a prevenção
da sanção desproporcional.
Isto não significa, ressalte-se, perder de vista o fato de que se deve evitar uma inflação
legislativa que extrapole o que aconselham a base principiológica do próprio Estado Democrá-
tico e mesmo as garantias liberais e individuais consagradas historicamente, tendo que se
buscar a conciliação entre a proteção penal de interesses relevantes e um exercício racional do
jus puniendi.
Flávio Pereira42 lembra que “adverte com claridade Mir Puig, aduzindo que o Estado
‘social’ e ‘democrático’, deve ser uma síntese que complemente e aperfeiçoe o Estado ‘clássi-
co’ e ‘liberal’, e não uma alternativa a esse”.
Seguindo esta lógica, o direito penal que pode ser considerado verdadeiramente
garantista é aquele que, de fato e com base nas palavras de seu principal teórico e interlocutor,
está adequado ao Estado Democrático de Direito, porque pautado na proteção de todos os
principais direitos fundamentais expressos na Constituição Federal.
Esta compreensão desmistifica a doutrina que distorceu e se apropriou do termo
garantismo penal, demonstrando que o direito penal garantista deve, em verdade, proteger
tanto os bens jurídicos individuais quanto os bens jurídicos supraindividuais, com equilíbrio.
É, em realidade, uma teoria dos direitos fundamentais, de proteção do mais fraco face ao mais
forte. Em determinados casos, mais fraco é o criminoso. Em outros, especialmente no que tange
aos grandes poderes políticos e econômicos, a sociedade é o mais fraco pólo da relação.
Portanto, em síntese conclusiva, o garantismo penal é, em verdade, um importante
aliado do processo de modernização do direito penal, pois busca exatamente um ponto de
equilíbrio entre a sanção excessiva e a sanção deficiente; entre o Abolicionismo e o Estado
autoritário; entre liberdade e igualdade, buscando, sempre, a real concretização dos direitos
fundamentais ínsitos ao Estado Democrático de Direito.
O modelo garantista, enfim, nada mais é do que a própria representação do paradigma
do Estado Democrático de Direito43, com tudo que isto representa para o direito penal no
Século XXI. É nisto, em suma, que consiste a proposta de realizar uma (re)leitura do garantismo
penal à luz da proteção penal dos bens jurídicos supraindividuais.
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radicalmente, dal punto di vista sai dell´effetività delle tecniche di tutela e di garanzia”. (FERRAJOLI, 2003,
pp. 81).
2. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 07.
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26. Aqui, porém, não é ainda o momento para trazer à tona propostas mais incisivas e polêmicas, como, por
exemplo: a) a necessidade de codificação dos crimes contra a ordem tributária e econômica, para maior
organização, racionalidade e melhor aplicação da legislação; b) a redução das hipóteses de extinção de
punibilidade nos crimes tributários, por violação ao princípio da intervenção mínima; c) Ou, ainda no campo
dos exemplos, a necessidade de se recorrer aos crimes de perigo abstrato, o que implicaria em um debate mais
amplo sobre o princípio da lesividade.
27. ARANA, Raúl Pariona. El derecho penal “moderno”: sobre la necesaria legitimidad de las intervenciones
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Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral. Salvador: JusPodivm, 2010.
29. PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de Poluição – uma resposta do Direito Penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p. 30.
30. FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)?. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas;
PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 27.
31. Ainda hoje, os reflexos do período fascista podem ser encontrados até mesmo na legislação penal
brasileira, como nos Códigos Penal e de Processo Penal, além da Lei de Contravenções, apenas para citar os
exemplos mais corriqueiros.
32. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 74-78.
33. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 268.
34. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 275.
35. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 269.
36. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 270.
37. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discusión sobre derecho y democracia. Madrid: Trotta, 2006, p.
113, In: FISCHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER,
Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 35.
301
ENTRE ASPAS
38. Qui mi limiteró a distinguire tre forme di criminalità del potere, accomunate dal loro carattere di
criminalità organizzata: quella dei poteri apertamente criminali; quella dei crimini dei grandi poteri economici;
quella infine dei crimini dei publici potere. Da um lato, dunque, i poteri criminali, dall´altro lato e crimini
del potere, sia econômico che politico. Non si tratta di fenomeni criminali nettamente distinti e separati, ma
di mondi tra loro intrencciati, per Le collusioni, fatte di complicità e di reciproca strumentalizzazione, tra
poteri criminali, poteri economici e poteri istituzionali. (FERRAJOLI, 2003, pp. 81-83.)
39. “y que respuesta puede ofrecer el constitucionalismo al doble desafio del mercado global y de los
particularismos?” (FERRAJOLI, 2006, p. 114).
40. FERRAJOLI, Luigi. Sobre los derechos fundamentales. Cuestiones constitucionales – Revista Mexicana de
Derecho Constitucional. Ciudad de México: Universid Nacional Autónoma de México, n. 15, jul/dez, 2006, p. 134.
41. FERRAJOLI, Luigi. Sobre los derechos fundamentales. Cuestiones constitucionales - Revista Mexicana de
Derecho Constitucional. Ciudad de México: Universid Nacional Autónoma de México, n. 15, jul/dez, 2006, p.
134-135.
42. PEREIRA, Flávio Cardoso. O Direito Penal como Ultima Ratio: Repercussão junto à lavagem de capitais
e à delinqüência organizada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister, n.
13, ago/set, 2006, p. 15.
43. FERRAJOLI, Luigi. Derechos e garantias – La ley del más débil. 4 ed. Madrid: Trotta, 2004, p 22.
302
A INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA CO-CULPABILIDADE
QUANDO DEMONSTRADA CONCRETAMENTE
A RESERVA DO POSSÍVEL PELO ESTADO
1. Introdução
303
ENTRE ASPAS
304
A REVISTA DA UNICORP
Com efeito, vê-se, com clareza meridiana, que se não há como se exigir do Estado
uma obrigação impossível (efetivação de direitos sociais sem recursos financeiros), por
corolário lógico não haverá por que a ele se imputar parcela da culpabilidade pela prática
de crimes cometidos por pessoas afetadas pela não efetivação de direitos fundamentais,
sobretudo, sociais, ainda que demonstrado o nexo de causalidade entre a pobreza e a
infração penal.
A problemática do presente artigo cinge-se em averiguar a (im)possibilidade de se
reconhecer a co-culpabilidade do Estado pela prática de crimes por pessoas afetadas pela
não efetivação dos direitos sociais, de modo a se perquirir se o delinquente, por consequência,
merece ter atenuada, ou mesmo extinta (perdão judicial), sua punibilidade.
Justifica-se o presente estudo pela relevância jurídica e social do tema, sem olvidar da
importância econômica, já que, caso haja uma mudança na jurisprudência em benefício de
acusados e já condenados, poderá retroagir (e ser aplicada doravante), a teor de uma analogia
do art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal, e, via de efeito, desabastecer os superlotados
estabelecimentos penais brasileiros.
O principal objetivo do presente artigo, como já se antevê do título da linha de
raciocínio desenvolvida neste introito e no título do presente trabalho, é demonstrar a
inaplicabilidade da teoria da co-culpabilidade por força da teoria da reserva do possível
pelo Estado.
A metodologia empregada fundamentou-se em pesquisa bibliográfica,
jurisprudencial e comparada. O presente artigo emergiu de fecundas discussões e estudos
realizados no I Laboratório de Pesquisa Científico-Jurídica da Faculdade São Francisco
de Barreiras – eixo Direito Penal, na exploração da linha de pesquisa (Des)acertos da
teoria da co-culpabilidade, realizado no mês de março de 2011.
305
ENTRE ASPAS
306
A REVISTA DA UNICORP
307
ENTRE ASPAS
poder de disposição por parte do destinatário da norma, significando que a prestação reclamada
deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que,
não se pode falar em obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.
Dentro desta perspectiva o poder público se reserva à prerrogativa de prestar somente o
direito social que for materialmente possível de ser prestado, o que é bastante defensável, mormente
se comprovado efetivamente que não havia uma maneira lícita de realizar a respectiva prestação.
Conquanto o penalista argentino ZAFFARONI, preconiza na esfera penal, que haven-
do omissão do Estado na efetivação dos direitos sociais prestacionais, deverá o Judiciário, ao
ser invocado pela prática delituosa do agente, atenuar ou até extinguir a pena do criminoso em
face à responsabilidade do poder estatal na aplicação dos direitos fundamentais.
No entanto, como se percebe é impossível o Estado ser penalizado e/ou cobrado por condu-
tas reprovadoras, cuja competência, como já elucidada alhures, fica no patamar da razoabilidade.
Com intuito de se entender o que venha a ser co-culpabilidade, necessário se faz uma
breve elucidação da própria culpabilidade. Esta nada mais seria um juízo de censura à conduta
do agente, podendo considerá-la como elemento de determinação ou medição da pena, deven-
do recair exclusivamente sobre este indivíduo a responsabilidade penal, conforme artigo 29 do
Código Penal Brasileiro.
A co-culpabilidade seria então a punição do Estado e sociedade juntamente com o
agente infrator das normas penais, vez que esta teoria defende que, se o Estado for omisso ao
suprir os direitos fundamentais sociais, então deverá ser co-responsável pela conduta delituosa.
Dessa maneira a co-culpabilidade (co-responsabilidade) seria aplicada aos agentes que
não tiveram sua autodeterminação respaldada na moralidade e sim na possível falta da aplica-
ção dos direitos sociais.
E ainda que, se o Estado que possui legitimidade para suprir os direitos sociais for
omisso, então será o causador pelo o agente optar à marginalidade, logo o poder estatal deverá
ser “caridoso” e compensá-lo, diminuindo a sanção penal ou quiçá excluindo-a. Dessa forma o
Estado entraria num papel patriarca inconsequente, que ao invés de reeducar aplicando-lhe a
punição por ir contra as regras, passaria a mão à cabeça do meliante tornando-o cada vez mais
impetuoso, destemido às normas sociais.
Posta esta questão, a aceitação e aplicação da co-culpabilidade traria consequências sérias
como a deslegitimação do direito penal brasileiro que já é muito falho, quanto à aplicação das penas.
Sobretudo, a sociedade e o Estado já estão sendo punidos pela própria conduta delitiva,
cuja aplicação da co-culpabilidade converteria na punição ao conjunto social por duas vezes.
Já que é um grande equívoco por parte desta teoria elencar a pobreza, a miserabilidade, como
motivos para sua aceitação e aplicação pelo Poder Judiciário.
Acertadamente se faz o raciocínio do jurista brasileiro, GUILHERME DE SOUZA NUCCI6,
que elucida quão grande se é equivocado ao afirmar que a criminalidade está genuinamente
ligada à pobreza.
Ademais o Poder Judiciário, em especial os tribunais brasileiros são resistentes à apli-
cação e aceitação desta teoria como atenuante às praticas delituosas, conforme alguns julga-
308
A REVISTA DA UNICORP
mentos do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cujo seus julgados expõem a
inaplicabilidade da co-culpabilidade:
Observa-se que a sentença é clara ao afirmar que a culpabilidade não é uma consequência
da pobreza, não devendo assim ser utilizada como atenuante para diminuição da sanção penal.
Dentro deste raciocínio se faz outros julgados, como:
Por ora, o e. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ainda relata no julgado subsequente
que não há que se invocar o baixo grau de escolaridade como justificativa, vez que o delito
permeia todos os segmentos sociais, sejam cidadãos mais ou menos instruídos. E que se assim
fosse reconhecida a co-culpabilidade, estaria gerando um direito penal a duas velocidades.
309
ENTRE ASPAS
Vale ressaltar, que não só aduziu que o art. 66, do Código Penal, como uma atenuante
genérica, porquanto sua aplicação teria uma total discricionariedade por parte do aplicador,
310
A REVISTA DA UNICORP
como também, elencou novamente que a criminalidade não é produto apenas da pobreza.
Entretanto, o artigo 59, expressa diversos fatores a serem analisados, e não somente a
pobreza, percebe-se que há controvérsias, desta forma, a culpabilidade deveria ser analisada
na instância cuja vulnerabilidade seja maior ou menor, ou seja, o quanto o agente da conduta
delituosa está vulnerável ao sistema social.
Para tanto, a teoria da coculpabilidade sofre uma releitura acerca de suas justificativas
e do prisma de análise, como defendida por Zaffaroni – a culpabilidade como (juízo de reprova-
ção), está atrelada ao grau de vulnerabilidade do acusado em relação ao sistema penal – seria
então a culpabilidade pela vulnerabilidade. Deixando de ser a pobreza o motivo ímpar para
marginalização do indivíduo, abordando vários outros fatores.
3. Considerações finais
Referências ________________________________________________________________________
BEZERRA, Paulo César Santos. Lições de Teoria Constitucional e de Direito Constitucional. Editora Reno-
var-2ª Edição/2009. Rio de Janeiro.
311
ENTRE ASPAS
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo existencial e Direito à Saúde: Algumas
Aproximações. Direitos Fundamentais e Justiça n.º Out e Dez/2007. Acessado no site www.dfj.inf.br em 20 de
abril de 2011.
MATTE, Natalia Allet. O princípio da co-culpabilidade e sua (in)aplicabilidade no direito penal brasileiro.
Biguaçú, 2008.
OLIVEIRA NETTO, Sérgio de. O Princípio da Reserva do Possível e a Eficácia das Decisões Judiciais.
Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 17 de abril de 2011.
Notas ______________________________________________________________________________
1. MARAT foi um médico, filósofo, teorista político e cientista mais conhecido como jornalista radical e
político da Revolução Francesa. Seu trabalho era conhecido e respeitado por seu caráter impetuoso e sua
postura descompromissada diante do novo governo, Inimigos do Povo e reformas básicas para os mais pobres
membros da sociedade.
2. Zaffaroni é ministro da Suprema Corte Argentina. Ainda, é professor titular e diretor do Departamento de
Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, doutor honoris causa da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal.Suas teorias são amplamente
difundidas no Brasil, tendo publicado livros em co-autoria com Pierangeli e com Nilo Batista em português.
3. Prof. Ingo Wolfgang Sarlet, Juiz de Direito no RS. Doutor em Direito pela Universidade de Munique,
Alemanha. Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e na PUC/RS, na
qual também leciona a disciplina “Direitos Fundamentais” no Mestrado em Direito.
4. José Joaquim Gomes Canotilho é um jurista portugês, licenciado e doutor em Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra. É considerado por muitos como um dos nomes mais relevantes do direito
constitucional da atualidade.
5. Conceito jurídico, ligado à ideia de bom senso e proporcionalidade. Segundo a maioria dos doutrinadores
jurídicos, baseia-se na construção jurisprudencial desenvolvida nos Estados Unidos, onde os juízes possuiriam
uma maior liberdade para interpretar a lei de acordo com os princípios da Constituição.Tal conceito inspirou
o chamado Princípio da Razoabilidade, presente na Constituição brasileira de 1988.
6. No meio jurídico, é atualmente um dos mais conceituados doutrinadores na área do Direito Penal brasileiro.Tem
em seu currículo diversas obras publicadas nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal e respectivas
leis extravagantes.
312
A QUEBRA POSITIVA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO PROCESSO PENAL
Marcos Bandeira
Juiz de Direito. Professor da UESC. Coordenador Estadual da Associa-
ção Brasileira dos Magistrados da Infância e Juventude (ABRAMINJ).
Membro da Associação Internacional de Magistrados da Juventude e da
Família. Membro da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude do
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Membro do Grupo de
Monitoramento e Fiscalização de Presídios e Unidades Socioeducativas
do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Bacharel em Direito pela
UESC. Especialista em Direito Processual Civil pela UESC. Especialista
em Ciências Criminais pela Universidade do Amazonas. Doutorando em
Direito pela Universidad Nacional Lomas de Zamorra, Argentina.
1. Introdução
313
ENTRE ASPAS
ES por ello, que entiende que “La coerción personal Del imputado ES
legítima cuando tiende a hacer posible Y a asegurar el ejercicio regular de
La función judicial que La norma constitucional prevê, así como será
ilícita La conducta de aquél toda vez que impida o ponga em peligro tal
ejercicio” y conluye: “La libertad personal Del imputado solo puede ser
restringida a titulo preventivo, cautelar y provisional, em la medida
indispensable paa hacer posible El ejercicio regular de la función judicial
Del Estado”. Por lo tanto, según esta postura, la prisión preventiva,
cuando não persigue fines procesales, vulnera El principio de inocência.
314
A REVISTA DA UNICORP
315
ENTRE ASPAS
Como se depreende, esse era o cenário brasileiro quando entrou em vigor a Lei nº
12.403, de 04 de maio de 2011, denominada Lei da Prisão e das Medidas Cautelares. Na verdade,
como se pode observar, a realidade forense entoava o Hino da Lei e da Ordem, inspirada na
tolerância zero e sustentada na ressuscitação do princípio da presunção da culpabilidade do
Código de Processo Penal de 1941, de triste memória. Destarte, a consequência dessa prática
cotidiana brasileira nos fóruns criminais não poderia ser outra senão a banalização da prisão
preventiva com o aumento extraordinário e assustador dos presos provisórios e o “inchaço”
dos presídios no Brasil, com a violação sistemática do princípio da presunção de inocência e
outros direitos fundamentais do cidadão. O legado deixado por essa prática é estarrecedor:
rebeliões sucessivas deflagradas em vários presídios brasileiros, mistura de presos provisóri-
os e aqueles definitivamente condenados, tratamento cruel e desumano, inexistência de qual-
quer projeto educativo ou de ressocialização dos presos, violação sistemática dos direitos dos
presos previstos na Lei de Execução Penal, na Constituição Federal e nas Convenções Interna-
cionais, enfim a prática autoritária concretizada por alguns juízes criminais brasileiros transfor-
maram os cárceres brasileiros em “depósito de seres humanos” ou “fábrica de bandidos”, já
que no seu interior predomina a lei do mais forte ou do código penal não escrito, pelo qual as
facções criminosas estabelecem e executam as próprias regras, arregimentando verdadeiros
exércitos para engrossar as suas fileiras, principalmente entre os presos provisórios. O preso
provisório, segregado por força de uma prisão preventiva, ainda não foi julgado, podendo,
inclusive, como já ocorreu em várias situações10, ser considerado inocente e absolvido da
imputação que lhe irrogaram. Todavia, o preso condenado definitivamente pela prática de
crimes hediondos, eventual integrante de alguma facção criminosa e já familiarizado com a
criminalidade há algum tempo, acaba cooptando o preso provisório para suas fileiras, aprovei-
tando do exercício de poder que exerce no interior do presídio e da fragilidade e vulnerabilidade
do preso provisório. Essa situação anômala com relação ao tratamento dos presos provisórios
já chamou a atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, conforme nos informa
o jurista Geraldo Prado, aduzindo que o informe 35/07 da referida comissão estipulou regras
para os Estados signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, incluindo o
Brasil, estabelecendo regras acerca dos critérios desenvolvidos para a validade jurídica das
prisões preventivas. Prado finalmente argumenta:11 “São sinais expressivos, que não se pode
ignorar: a angústia penalista, os números de presos provisórios em expansão permanente e
geométrica e a decisão no contexto da Corte Interamericana de Direitos Humanos”. Destarte,
esse cenário sombrio verificado em todo o Brasil, com a expansão geométrica da prisão preven-
tiva e a superlotação dos presídios brasileiros, pavimentou o terreno para a modificação desse
cenário normativo, com o advento da Lei nº 12.403/2011, também conhecida como a nova lei
das prisões e medidas cautelares.
3. A Lei nº 12.403/2011
316
A REVISTA DA UNICORP
5º, LVII da CF, que é o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, ajustando-
se assim a legislação infraconstitucional aos cânones constitucionais. O jurista Geraldo Prado,
de forma engenhosa e didática, discorre sobre a simetria da Lei nº 12.403/2011 e o princípio da
presunção da inocência estabelecido em nossa Constituição Federal, como se pode observar:
317
ENTRE ASPAS
cujos ramos diversos – penal e não penal – não infirmam à sua origem e essência, ensejando
assim que se elabore cientificamente uma teoria geral do processo, já que vários princípios e
institutos são comuns ao direito processual cível e penal, com algumas variáveis que não
chegam a infirmar o seu caráter unitário. Nesse sentido, é lapidar a lição de Ada Pelegrini
Grinover16, senão vejamos:
Assim, embora concebendo como ponto de partida uma teoria unitária do processo,
entendemos que o processo cautelar nos moldes preconizados pelo direito processual cível não
se aplica ao direito processual penal. Nesse ponto, concordamos com o jurista Aury Lopes17,
quando assevera que, no processo penal, em razão da forma e do princípio da legalidade, não
existem medidas cautelares inominadas e o juiz criminal não possui o poder geral de cautela. Na
verdade, não existe processo penal cautelar deflagrado com uma petição inicial, seguida de
uma contestação e instrução, finalizando-se com uma sentença cautelar, conforme ocorre no
âmbito do processo cível. O jurista José Frederico Marques18 preleciona categoricamente:
Desta forma, podemos afirmar que existe, no processo penal, uma tutela de natureza
318
A REVISTA DA UNICORP
cautelar que não se confunde com processo cautelar, e que se consubstancia nas medidas
cautelares, que devem ser aplicadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento do interessado,
com estrita observância do princípio da legalidade e da necessidade de efetividade instru-
mental do processo. Segundo a classificação doutrinária bem aceita20, as medidas cautelares
no processo penal podem ser divididas em: a) edidas cautelares pessoais (relacionadas com
o suspeito, acusado); b) medidas cautelares de natureza civil ou reais (relacionadas a repa-
ração do dano); c) medidas cautelares relativas à provas. Como é cediço, já existia o aresto,
sequestro e especialização do registro da hipoteca legal como medidas cautelares de nature-
za patrimonial, bem como a prisão preventiva e outras medidas relacionadas à prova, como a
antecipação da inquirição da prova testemunhas e as intercepções telefônicas, todavia,
agora com o advento da nova lei, foram criadas medidas cautelares pessoais diversas da
prisão carcerária, oferecendo assim um leque de opções ao juiz criminal. Vejamos o que
estabelece o art. 319 do CPP, “in verbis”:
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violên-
cia ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável
(art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do
processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada
à ordem judicial;
IX – monitoração eletrônica
§ 1º revogado
§ 2º revogado
319
ENTRE ASPAS
§ 3º revogado
§ 4º A fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI deste Título,
podendo ser cumulada com outras medidas cautelares.
320
A REVISTA DA UNICORP
321
ENTRE ASPAS
Brasil, a prisão em flagrante ficou consagrada como espécie de prisão cautelar, já que uma vez
verificada à sua regularidade e acomodação aos imperativos legais do art. 302 do CPP, o sujeito
permanecia custodiado provisoriamente até o final do processo. O juiz criminal normalmente ao
ser comunicado da prisão em flagrante de alguém despachava simplesmente dando ciente do ato e
mandando aguardar a denúncia para que se procedesse a juntada posterior do auto de prisão em
flagrante ao respectivo processo. Nada mais, nenhuma linha de fundamentação. Na verdade, a
prisão em flagrante valia por si mesmo, e o sujeito permanecia detido por ser provavelmente culpa-
do. Como se infere nada havia de cautelar, e a prisão em flagrante foi tolerada muito tempo no
Brasil como antecipação de pena e com base no princípio da presunção da culpabilidade de 1941.
O jurista itialiano Francesco Carnelutti, citado por Aury Lopes,28 explicita que con-
cepção de Flagrância está diretamente relacionada a “la llama, que denota con certeza la
combustión; cuando se vê la llama es indudable que alguna cosa arde”. Com efeito, essa
certeza visual do delito – “fumus comissi delicti” obriga a administração pública a agir para
evitar a consumação do fato delituoso ou atenuar as suas consequências podendo inclusive
fazer a detenção do autor do fato. O que é obrigação para os órgãos do Estado, principalmen-
te para a polícia, é faculdade para o particular. Logo, a prisão em flagrante, sem embargo da
“visibilidade do delito” de que nos fala Francescso Carnelutti29, é um ato precário e que não
dirigida a assegurar a eficacidade do processo, razão pela qual, necessitada da chancela
judicial para ser transformado em prisão preventiva (caráter cautelar) ou liberdade provisó-
ria. Trata-se, na verdade, de uma mera medida pré-cautelar e que não sobrevive por si só,
pois destina-se precipuamente a deixar o flagranteado à disposição da autoridade judicial
para que o mesmo converta em prisão preventiva ou conceda ao indiciado liberdade provisó-
ria. Nesse sentido, é lapidar a lição de Aury Lopes:
Nesse mesmo sentido, Ferraioli e Dalia citados por Aury,30 na mesma obra, explicitam catego-
ricamente: “l`arresto in flagranza é una misure pre-cautelari personali”. Por isso, a nova lei das
prisões e cautelares – Lei nº 12.403/2011 – veio colocar a prisão em flagrante em seu devido lugar,
como medida de caráter pré-cautelar e que deve passar pelo crivo do judiciário para sua conver-
são em prisão cautelar, ou substituição por alguma das medidas cautelares diversa de prisão.
Nessa mesma perspectiva, no âmbito do sistema acusatório, indaga-se: pode o juiz ao
receber o auto de prisão em flagrante conceder liberdade provisória sem a ouvida do Ministério
Público? A resposta positiva se impõe, pois o indiciado ou acusado por ser a parte mais
vulnerável na relação processual e na esteira dos princípios da presunção da inocência e do
favor rei, justifica-se a quebra do princípio da igualdade simbolizado na “par conditio’ – parida-
de de armas – para tutelar o jus libertatis, que é a regra em nosso ordenamento jurídico. Nesse
mesmo sentido, posiciona-se Geraldo Prado31, prelecionando que “a exceção é pertinente à
tutela da liberdade, mediante determinação, de ofício, da liberdade provisória, em consideração
ao princípio do favor rei, à presunção da inocência e ao papel garantista do princípio acusatório
na sua harmonia com os demais princípios”. Reforçando essa assertiva, Aury Lopes, discor-
rendo sobre o apenado, mas cujas fundamentações teóricas têm plena atividade em todo o
processo penal, assim preleciona:
322
A REVISTA DA UNICORP
Mas quando se afirma que as duas partes devem ter tratamento igualitá-
rio, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações, dar-se
a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualda-
des, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente,
resguardar a paridade de armas.
Sem embargo da igualdade formal de todos perante a lei, o sistema engendra pela profundi-
dade da igualdade material como forma de realização de justiça humana, na medida que procura
igualar ou diminuir as diferenças dos desiguais na medida de suas desigualdades. O jurista José
Afonso da Silva assim se posiciona: “porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade
real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais”33. Essa desigualdade se
manifesta no processo penal, no qual o órgão acusador, com base nas provas produzidas em regra
pela polícia judiciária, sustenta uma tese acusatória. O acusado, na maior parte dos processos
penais, não dispõe de condições suficientes para constituir um advogado particular, ensejando
assim que a defesa técnica seja patrocinada pela defensoria pública, cuja estrutura se mostra
deficiente em vários estados da federação. O juiz, como sujeito equidistante às partes, deve condu-
zir o processo com imparcialidade, assegurando-se ao acusado a ampla defesa e o contraditório,
objetivando alcançar-se a verdade processualmente possível. Na seara das medidas cautelares
previstas no art. 319 do CPP, o juiz deve procurar a medida menos gravosa para o acusado e que seja
adequada para atingir os escopos do processo penal. Essa é a regra da quebra positiva do princípio
323
ENTRE ASPAS
da igualdade jurídica, pela qual o juiz, em determinado caso concreto, poderá aplicar quaisquer das
medidas cautelares, de ofício, desde que seja a mais adequada para resguardar a eficacidade do
processo penal. Em outras palavras, o juiz, valendo-se do princípio da proporcionalidade,
deve, em cada caso, aplicar a medida menos gravosa ao indiciado ou acusado, desde que seja
suficiente para resguardar os escopos instrumentais e acautelatórios do processo.
Desta forma, no âmbito do processo penal brasileiro, a quebra do princípio da igualdade
é justificada para compensar a condição de hipossuficiente ou de fragilidade do acusado
diante da acusação que lhe é imputada pelo aparato do Estado-acusação, e também como
forma de assegurar direitos fundamentais, principalmente, a liberdade de ir e vir, que é o mais
valioso bem que desfrutamos depois do direito à vida e que deve ser a regra a imperar num
verdadeiro Estado Democrático de Direito. Assim, podemos afirmar que o juiz não só pode
como deve quebrar a regra da igualdade para conceder liberdade provisória ao acusado, de
ofício, toda vez que se convencer de que inexistem os motivos para a decretação da prisão
preventiva e que o acusado reúne, portanto, os requisitos para responder o processo em
liberdade, aplicando-se no que couber, e de conformidade com o princípio da proporcionalidade,
outras medidas cautelares diversas da prisão. O discrimen se justifica pela proteção dos direi-
tos fundamentais da parte mais frágil da relação processual e também pela própria reafirmação
do princípio constitucional da presunção da inocência.
5. Considerações finais
Como restou claro, a nova Lei – 12.403/2011 – veio para concretizar o princípio constitucio-
nal da presunção de inocência estabelecido no art. 5º, LVII da CF, oferecendo ao juiz um leque de
variadas medidas cautelares voltadas para a efetividade do processo e para assegurar a máxima
tutela dos direitos fundamentais, principalmente, da liberdade individual do indiciado ou acusado,
considerando que a prisão preventiva só deve ser decretada como “ultima ratio”. É natural que a
nova lei atinja em cheio a cultura consolidada da banalização da prisão preventiva, fazendo
exsurgir o discurso falacioso da impunidade, todavia, o que se infere, na verdade, é que o princí-
pio basilar do processo penal, isto é, o princípio da presunção de inocência está não somente
preservado, mas fortalecido, pois o constituinte de 1988 elegeu o Estado Democrático de Direito
como modelo de Estado, no qual o normal é a liberdade do ser humano nas suas várias manifes-
tações, inclusive no direito de ir e vir, que só deve ser cerceada em situações excepcionalíssimas,
devidamente comprovadas e justificadas por motivos de ordem instrumental/processual.
A rigor, ninguém deve cumprir pena, antes do devido processo legal, através do qual o
Estado eticamente possa submeter um acusado a cumprir uma sentença condenatória transita-
do em julgado. A liberdade de ir e vir deve não apenas ser preservada, mas prestigiada, de sorte
que o princípio da igualdade só deve ser quebrado para beneficiar o lado mais fraco da relação
processual, que é o indiciado ou acusado, assegurando-lhe direitos fundamentais.
O juiz criminal, como garantidor das promessas do constituinte, deve conceder liberda-
de provisória, de ofício, assim que receber o auto de prisão em flagrante encaminhado pela
autoridade policial, toda vez que se convencer que é a medida mais adequada. Deve também
assim proceder com as demais medidas cautelares. O juiz criminal, assim procedendo, estará
concretizando o princípio da presunção de inocência e quebrando positivamente o princípio
da igualdade jurídica para beneficiar a parte mais fraca da relação processual e assim home-
nagear a liberdade humana, que é, de fato, um dos mais caros direitos do ser humano.
324
A REVISTA DA UNICORP
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325
ENTRE ASPAS
Notas ______________________________________________________________________________
1. BIANCHINI, Alice et al. Prisão e Medidas Cautelares: comentários a Lei nº 12.403, de 04 de maio de 2011;
Coordenação Luiz Flávio Gomes, Ivan Luís Marques. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 28.
2. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O paradoxo do risco e a Política contemporânea. p. 127/128: “É deste
sentimento de impotência diante de expectativas frustradas que surge – consciente ou inconscientemente
– a estratégia de alguns magistrados de antecipar os efeitos das decisões judiciais definitivas pela aplicação
de medidas cautelares. Na ânsia de responder às demandas por efeitos concretos da prestação jurisdicional,
e diante da incapacidade de torná-la efetiva em curto espaço de tempo, passam alguns magistrados a usar de
expedientes tipicamente processuais para satisfazer tais expectativas, como prisões temporárias, preven-
tivas e medidas de execução provisória...”
3. Idem. p. 127: “A caracterização do Judiciário como agente de política criminal faz que as expectativas
sociais de promoção e efetivação da segurança pública se voltem para a atuação jurisdicional”.
4. VEGEZI, Santiago. Los Fines Processales de la prisón Preventiva. p. 528.
5. TOURINHO FILHO, Fernando Costa. Código de Processo Penal Comentado: v. I. 13. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 843.
6. Segundo Nestor Távora e Rosmar Antonini, “Não mais existe hipótese de segregação preventiva obriga-
tória, onde o criminoso, por imposição legal, desmerecendo-se a aferição da necessidade, responderia a
persecução penal preso, em razão da gravidade do delito, quando a pena de reclusão cominada fosse igual ou
superior a dez anos (era a antiga previsão do art. 312, CPP)”. In: Curso de Direito Processual Penal. 3. ed.
Salvador: Ed. Jus Podvm, 2009. p. 479.
7. BIANCHINI, Alice et al Coordenação Luiz Flávio Gomes, Ivan Luís Marques. Prisão e Medidas Cautelares:
comentários à Lei nº 12.403, de 04 de maio de 2011. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 15.
8. Segundo Tourinho Filho, Op. Cit. p. 847 “Comoção Social”, “perigosidade do réu”, “Crime perverso”,
“insensibilidade moral”, “os espalhafatos da mídia”, “reiteradas divulgações pelo rádio ou televisão”,
“credibilidade da Justiça”, “idiossincrasia do Juiz por este ou aquele crime”, tudo, absolutamente, se ajusta
àquela expressão genérica “ordem pública”. E como sabe o Juiz que a ordem pública está perturbada, a não
ser pelo noticiário? Os jornais, sempre que ocorre um crime, o noticiam... Na maior parte das vezes, é o
próprio Juiz ou o órgão do Ministério Público que, como verdadeiros “sismógrafos”, mensuram e valoram
a conduta criminosa proclamando a necessidade de “garantir a ordem pública” sem nenhum, absolutamente
nenhum elemento de fato, tudo ao sabor de preconceitos e da maior ou menor sensibilidade daqueles
operadores da Justiça. E a prisão preventiva, nesses casos, não passará de uma execução sumária”.
9. Op. cit. p. 849/850.
10. Pernambucano foi preso duas vezes sem ser julgado e morreu pouco tempo depois de receber a notícia
de que receberia o restante da indenização no valor de R$2 milhões. O pernambucano Marcus Mariano da
Silva, 63 anos, que passou 19 anos preso injustamente, morreu nessa terça-feira, logo após ser dada a notícia
de que receberia do governo de Pernambuco o restante da indenização de R$ 2 milhões, referente a ação que
movia contra o Estado (CABRAL, 2011).
11. PRADO, Geraldo. Excepcionalidade da prisão provisória. p. 102/103.
12. Disponível em: http://espacodefensor.blogspot.com.br/2011/10/texto-do-desembargador-geraldo-
prado.html
13. Luiz Flávio Gomes e outros. Prisão e Medidas Cautelares. 2. ed. São Paulo: Ed. Tribunais, 2011. p. 27.
326
A REVISTA DA UNICORP
327
REDUÇÃO DA MENORIDADE PENAL:
UM PROBLEMA MAIOR DE SEGURANÇA PÚBLICA
Resumo: O presente trabalho tem por escopo a análise da imputabilidade penal, através de
estudo histórico e comparado das diversas legislações mundiais, bem como acerca das
propostas legislativas para sua redução no novo Código Penal, com incursões dogmáticas
da sua (in)aplicabilidade no sistema constitucional brasileiro e sua inadequação como medi-
da de segurança pública.
1. Introdução
Não se pode olvidar que o Brasil já adotara em suas legislações outros parâmetros de
menoridade penal. Assim, o Código Criminal do Império, seguindo o modelo de um critério de
discernimento apregoado pela Escola Clássica, estabelecia o limite de 14 anos para a respon-
sabilidade penal.
Atribuía-se, entretanto, ao magistrado, a aferição do discernimento do menor, critério
este impreciso. Segundo Cury e outros (2002, p.55):
328
A REVISTA DA UNICORP
329
ENTRE ASPAS
O estudo comparado demonstra que não existe um traço uniforme adotado por todos
os países, apesar da recomendação das Nações Unidas para idade de 18 anos como marco
inicial para responsabilidade penal.
Outrossim, a idade é um conceito jurídico em elaboração, passível, portanto, de alte-
rações no tempo e no espaço. No Brasil, atualmente, há limites etários diversos, acerca da
idade mínima que é uma para o Direito Penal, outra para ser testemunha, assim como para
votar (16 anos) ou para o alistamento voluntário no serviço militar (17 anos), para aquisição
de arma de fogo (25 anos), e, ainda, para ocupar certos cargos políticos (vereador 18 anos,
deputado 21, governador 30, senador e presidente 35 anos).
4. Um olhar constitucional
A doutrina, inicialmente, não atribuiu o devido destaque àquilo que parecia apenas uma
simples reprodução desapercebida do quanto já previsto no art. 27 do Código Penal. Pode-se
ressaltar que houve, em 1988, a constitucionalização de uma regra que pontifica verdadeira
garantia para aquele que tem menos de 18 anos, em não se ver processado criminalmente.
A questão que se discute, atualmente, no âmbito das Comissões de Constituição e Justiça
e de Redação é se o aludido art. 228 da CF constitui garantia fundamental e, consequentemente,
seria ou não cláusula pétrea (art. 60, § 4º, CF), para fins de redução da maioridade penal no Brasil.
Nesse ponto, há intenso debate doutrinário, a evidenciar a marcante complexidade do
tema que implica inclusive no reconhecimento da impossibilidade jurídica de redução da
maioridade penal no atual modelo constitucional rígido vigente no Brasil. Ou seja, existe um
núcleo imodificável na Constituição, reservado pelo próprio poder constituinte originário
que impede qualquer proposta restritiva, a teor do § 4º, do art. 60, CF que estabelece as
denominadas “cláusulas pétreas”. Para outros juristas, o óbice estaria na parte final do
parágrafo segundo do art. 5º da Constituição Federal que estabelece:
330
A REVISTA DA UNICORP
Na esteira dessas reflexões, torna-se inaplicável qualquer proposta tendente a reduzir a maio-
ridade penal no Brasil, por se tratar de garantia fundamental desgarrada do elenco do art. 5º, da CF.
Por fim, há quem sustente que a maioridade penal começa, aparentemente, aos 18
anos. Na prática, entretanto, por serem as medidas socioeducativas aplicadas aos menores
(adolescentes de 12 a 18 anos de idade) verdadeiras penas, iguais as que são aplicadas aos
adultos, seria possível se concluir que a maioridade penal, no Brasil, já começa aos 12 anos
de idade (SANTOS, 2012).
5. Conclusão
O presente estudo demonstra que o Código Penal mais moderno da Europa, o espanhol,
em vigor a partir de 1996, tornou a elevar a idade de imputabilidade para 18 anos, sinalizando que
331
ENTRE ASPAS
Referências ________________________________________________________________________
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332
A EVOLUÇÃO E LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NO PODER INVESTIGATIVO DO BRASIL
1. Introdução
Com o advento da Constituição Federal (CF) de 1988, o Ministério Público (MP) passou
a desempenhar função de grande relevância para a efetiva implementação do Estado Democrá-
tico de Direito.
Essa Instituição ficou responsável, não só pelo exercício da acusação no processo
criminal, como também pela tutela de interesses difusos e coletivos na defesa dos interesses da
sociedade brasileira.
Obviamente, todas as funções atribuídas ao Ministério Público pela Constituição de
333
ENTRE ASPAS
1988 se relacionam e não restam dúvidas de que é de interesse social que o Ministério Público
possua o poder investigatório criminal, justamente para que a classe economicamente domi-
nante também seja atingida pelo interesse social de punir os criminosos.
Assim, o MP tem se revelado um dos agentes mais importantes na defesa de direitos
coletivos pela via judicial, possibilitando que situações que não eram defendidas anteriormen-
te pudessem ser vistas sobre uma nova ótica, ofertando oportunidades para os cidadãos.
Nesse diapasão, pode-se relatar que o MP impulsionou um processo mais amplo de
judicialização de conflitos políticos e na contramão na politização do sistema judicial.
Vislumbra-se que a partir dos anos de 1980, foi permitido ao MP ter uma participação
mais efetiva aos conflitos de natureza difusa e coletiva. No campo do patrimônio histórico, meio
ambiente, cultural e consumerista, prestando relevantes serviços à comunidade brasileira.
Acredita-se que com o processo de redemocratização do país, o Poder Judiciário teve
uma parcela valiosa para a expansão da Instituição Ministério Público. Atualmente, há quem
diga que o MP, inclusive, trata-se de um quarto poder, pois não integra o Poder Judiciário,
cabendo a ele, MP, inclusive, a questão de fiscal da aplicação da lei e, como tal, fiscalizar a
atuação dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo.
Mas o MP não atua tão-somente como “Fiscal da lei”, o que já lhe seria de grande
importância e destaque. Ao MP cabe defender o cidadão e o acesso à cidadania ingressando
com ações contra quem quer que seja que fira o direito do cidadão, seja através de Ação Civil
Pública, por exemplo, onde o respeito à liberdade, à igualdade e à fraternidade tão preconizados
saiam da teoria e se faça na prática.
Isto posto, refletir-se-á sobre a atuação do MP na condição de fiscal da lei, mostrando
que ele pode também promover a investigação preliminar, coletando todas as provas necessá-
rias para deflagrar a ação penal, sem ferir o preceito constitucional do devido processo legal,
bem como, mantendo in totum a imparcialidade na fase pré-processual e processual, buscando
inserir na sistematização da doutrina existente a necessidade de interferência do MP no siste-
ma investigativo brasileiro, conferindo maior presteza, transparência, aplicação dos direitos e
deveres individuais dos cidadãos, como também propiciando ao Estado-juiz uma melhor pres-
tação jurisdicional.
334
A REVISTA DA UNICORP
335
ENTRE ASPAS
cês. De qualquer modo, porém, o certo é que os membros dessa Instituição na França, na dupla
função de representante do rei e de acusadores públicos, só começam a ser referidos em texto
legal a partir da Constituição Francesa de 1791.
A Constituição Federal de 1824 não fazia qualquer alusão ao Ministério Público, contu-
do, em seu artigo 48 inseria taxativamente que no Juízo dos crimes cuja acusação não perten-
cesse a Câmara dos Deputados, seria acusado pelo Procurador da Coroa e Soberania Nacional,
indicando a possibilidade de interpretação de que na Constituição do Império, dois órgãos
possuíam atribuição para persecução criminal: de um lado o Procurador da Coroa e do outro
lado a Câmara de Deputados.
Nesta Constituição foi editado o Código de Processo Criminal do Império, em 1832,
onde existia uma seção reservada aos promotores, indicando os requisitos para nomeação
destes e suas respectivas atribuições.
Em seguida, foi editada em 1841, a Lei nº 261, regulada pelo Decreto nº 120, de 31 de
janeiro de 1842, estabelecendo que os Promotores seriam nomeados pelo Imperador do Muni-
cípio, devendo servir por tempo indeterminado, enquanto conviesse ao serviço público, livre-
mente demissível pelas autoridades que o nomearam. Torna-se de bom alvitre ressaltar que
nesse período a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871), outorgou aos
Promotores de Justiça a função de “protetor dos fracos e indefesos”, que hodiernamente são
considerados de “hipossuficientes”.
Proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, foi instituído o Governo Provisó-
rio de Campos Sales, onde foram editados os Decretos de nº 848 e 1.030 no mês de novembro
de 1890, deliberando sobre a Justiça Federal e Justiça do Distrito Federal, reservando capítulos
próprios para o Ministério Público.
A exposição de motivos continha o seguinte:
Por outro lado, o artigo 164 do Decreto nº 1.030 assim dispunha: “O Ministério Público
perante as justiças constituídas o advogado da lei, o fiscal de sua execução, o procurador dos
interesses gerais do Distrito Federal e o promotor da ação pública contra as violações do direito”.
Isto posto, os decretos citados reconheciam o MP como instituição democrática e lhe
davam acentuada importância na organização do Estado, sendo a primeira feição institucional
do MP na legislação infraconstitucional.
Apesar da Constituição Federal de 1891 não ter mencionado no seu texto legal a insti-
tuição MP, entendemos que sua promulgação começou a dar um enfoque maior a instituição
336
A REVISTA DA UNICORP
MP, visto que fez nascer à figura do Procurador Geral da República, que seria nomeado pelo
Presidente da República entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com atribui-
ções a serem definidas em lei.
Já a Constituição da República de 16 de julho de 1934 foi a primeira a constitucionalizar
o Ministério Público, inovando o tratamento institucional, reservando ao Parquet capítulo
próprio, absolutamente independente dos demais poderes do Estado, situando-o entre os
órgãos de Cooperação nas atividades governamentais.
O artigo 95 da Constituição supracitada estabeleceu as garantias e prerrogativas aos
membros do Parquet, entre as quais a estabilidade funcional e a investidura, mediante concur-
so público, cabendo a perda do cargo por intermédio de sentença criminal ou processo admi-
nistrativo, ficando assegurada a ampla defesa.
O artigo 98 dispõe sobre a criação do MP frente às Justiças Militar e Eleitoral, como
ainda legitimando-o para revisão criminal. Nota-se que a Constituição de 1934 foi inspirada na
Constituição Alem de Weimar (1919), que instituiu o Welfare State, fortalecendo de sobrema-
neira a importância do Ministério Público junto a um Estado preocupado com a questão social.
Quanto a Constituição Federal de 1937 é cediço que a mesma foi editada sob a ditadura
do Presidente Getúlio Vargas, criando um retrocesso na Instituição Ministério Público, visto
que foram inseridos alguns artigos esparsos, entre eles o artigo 99 que dispunha sobra à figura
do Procurador Geral da República, que era nomeado e demitido pelo Presidente da República.
Algumas atribuições foram declinadas ao MP, como a de oficiar junto ao STF. O artigo 105 da
Constituição mencionada permitiu ao MP fazer parte do “Quinto constitucional”, ou seja,
poder ingressar na magistratura.
Apesar da inexistência de grandes inovações ou melhorias quanto à Instituição Minis-
tério Público na era Vargas, conhecida como “Estado Novo”, verifica-se que nesse período foi
editado o Código de Processo Penal de 1941, até hoje em vigência, e, que teve uma influência
italiana conferindo ao Ministério Público o poder de requisitar a instauração de inquérito
policial e diligências, bem como a titularidade da ação penal pública.
No campo processual civil, foi editado o Código de 1939, estabelecendo uma série de
normas quanto a participação do MP, ou seja, na qualidade de custos legis, a participação do
MP se tornava imperiosa, distinta de outras épocas. Torna-se transparente e límpido que as
demandas que não tinham uma participação efetiva do MP passaram a ter uma participação
mais diligente e criteriosa, assegurando os direitos dos cidadãos hipossuficientes.
Com a promulgação da Constituição de 1946, o Ministério Público retornou ao texto
constitucional em título próprio, após a organização das Justiças dos Estados (arts. 125 e 128),
prevendo a Instituição tanto na esfera federal como estadual, como ainda atuação nas Justiças
comum, militar, eleitoral e do trabalho.
Assegurou-se aos seus membros a estabilidade e inamovibilidade, além de ser entregue
a representação da União aos Procuradores da República. As funções dos Procuradores da
República poderiam ser delegadas aos Promotores de Justiça das Comarcas do Interior, com o
escopo de descentralização, como ainda, em razão da extensão territorial do Brasil.
Entre as inúmeras funções estabelecidas para o MP na CF de 1946 foi a de atuação
fazendária que somente foi extirpada com a Constituição de 1988.
A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dispôs sobre o Ministério Público na seção IX
do Capítulo VIII do Título I, inserido dentro do âmbito desse poder.
Denota-se que neste momento foi dado um grande passo para Instituição Ministério
Público, pois obteve sua independência e autonomia, desgarrando-se do Poder Executivo e
337
ENTRE ASPAS
vindo a integrar o Poder Judiciário, conquistando garantias e prerrogativas para o pleno exer-
cício de suas funções institucionais.
Com a Constituição de 1967, foi assegurada a estabilidade e inamovibilidade, bem como
a existência de dois ramos da Instituição, o MP da União e o MP dos Estados.
Ato contínuo, a Emenda Constitucional nº 1/69 não foi bem vista pelo MP, visto que o
fez retornar ao âmbito do Poder Executivo, contudo manteve a autonomia de organização e
carreira conforme estabelecido na Constituição de 1967.
Foi implantado no país um regime de exceção, com cunho autoritário e de forma alguma
poderia permitir o MP próximo ao Poder Judiciário e distante do Poder Executivo.
Nesse período foi editado o Código de Processo Civil de 1973, que consolidou a posi-
ção institucional do MP no Processo Civil, como autor e como fiscal da lei.
Com o advento da Emenda Constitucional de nº 07/77, que aditou o parágrafo único ao
artigo 96, preconizou previsão de lei complementar de iniciativa do Presidente da República
estabelecendo normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público Estadual,
o que terminou ocorrendo com a edição da Lei Complementar nº 40, de 14 de dezembro de 1981,
primeira legislação que organizou em nível nacional os Ministérios Públicos Estaduais.
Com a Lei Complementar citada foi fixado o Ministério Público em todo o país, criando
órgãos colegiados dentro da instituição e estabelecendo tratamento orgânico para todo o
Ministério Público Estadual. Foi traçado um novo perfil à Instituição, que foi delineada como
“permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, e responsável, perante o Judiciário
pela defesa da ordem jurídica e dos interessados indisponíveis da sociedade, pela observância
da Constituição e das Leis”.
Outro ponto de suma importância foi à promulgação em 1985, da Lei nº 7.347, que
disciplina sobre a ação civil pública, outorgando ao MP a legitimidade para tutela de interesses
transindividuais.
Cinge-se que esse diploma abriu a oportunidade de maiores discussões judiciais sobre
as grandes questões de direito de massas, dos conflitos sociais coletivos de caráter urbano,
possibilitando ao Ministério Público investigar e instaurar procedimentos com escopo de
resguardar danos ambientais, paisagísticos e consumerista, ou seja, transformou o Ministério
Público em um advogado que visa a proteção dos interesses transindividuais.
Por último, a Constituição de 1988 mudou a fisionomia do Ministério Público, conferin-
do-lhe uma avançada definição institucional; estabelecendo critérios formais para a escolha e
destituição dos Procuradores Gerais; assegurando autonomia funcional e administrativa à
Instituição; outorgando garantias aos seus membros; e impondo-lhes vedações, com o fito do
bom desempenho da vocação social.
Com efeito, reza o art. 127 da atual CF ser o Parquet: “Instituição permanente, essenci-
al função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais” (BRASIL, 1988) [destaque nosso].
No tocante ao artigo 127 da Constituição de 1988, verifica-se que o legislador ao inserir
o texto acima se reportou que o Ministério Público é uma instituição, pois, tem uma estrutura
organizada para realização de fins sociais do Estado, tornando-se permanente, pois suas atri-
buições revelam valores intrínsecos à manutenção do modelo social pactuado e sem sombra de
dúvidas é essencial à função jurisdicional do Estado, pois sua atuação é voltada aos valores
fundamentais da sociedade.
No Brasil, a instituição de um modelo essencialmente acusatório somente veio a lume
com a Constituição da República de 1988, com uma completa redefinição do papel do Ministério
338
A REVISTA DA UNICORP
Público na ordem jurídica, contemplando, além da titularidade privativa da ação penal pública,
com inúmeras e relevantes funções na defesa jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, previstos nos artigos 127 e 129, CF, como se verá a seguir.
Reza o art. 129 da atual CF que são funções do MP, dentre outras:
Isto posto, está sobejamente demonstrado que a Constituição de 1988 elegeu princípi-
os e valores fundamentais para que o Estado Democrático de Direito fosse consolidado.
É nesse sentido a lição de Garrido de Paula:
339
ENTRE ASPAS
O Ministério Público, cuja origem, ao menos em sua configuração mais atual, remonta
ao século XVIII, na França, cumpre papel relevantíssimo no modelo processual acusatório,
podendo-se visualizar, em suas raízes, quase a mesma base teórica da construção da jurisdição.
Segundo Eugênio Pacelli de Oliveira:
340
A REVISTA DA UNICORP
É nesse momento que surge a figura do Ministério Público, como órgão do Estado
responsável pela promoção da persecução penal, retirando do juiz quaisquer funções de
natureza pré-processual (ou investigatórias), desde que atinentes à apuração dos fatos e à
formulação da acusação, como a depurar e preservar o quanto possível a sua imparcialidade.
Assim sendo, o Ministério Público é um órgão constitucional com previsão legal na
Constituição Federal, que lhe destina o Capítulo IV, do Título IV. O artigo 127 da Carta Magna
traduz que o MP é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incum-
bindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indivi-
duais indisponíveis.
Atualmente a instituição MP está estruturada através da Lei nº 8.625, de 12 de feverei-
ro de 1993, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LONMP), que estabelece normas
gerais relativas à sua organização nos Estados. A Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de
1993, dispõe sobre a organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da
União. Outorga-se aos Estados-Membros elaborarem as Leis Orgânicas dos Ministérios
Públicos locais.
Segundo o texto legal, as funções do MP só podem ser exercidas por integrantes de
carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, sendo vedada qualquer possi-
bilidade de nomeação de Promotor ad hoc.
O MP está estruturado em órgãos, sendo inerentes a estes os princípios institucionais
da unidade, indivisibilidade e independência.
O Órgão do Ministério Público é uno e indivisível, ou seja, um Procurador ou Promotor
ausente a determinado ato não irá trazer óbice às suas funções, podendo ser substituído por
outro, visto que não representa um contexto pessoal, mas institucional, podendo um substituir
o outro, reservando-se o princípio do promotor natural.
Como ensina Eugênio Pacelli de Oliveira:
341
ENTRE ASPAS
Ato contínuo, dispõe o Código de Processo Penal (BRASIL, 2001) que cabe ao MP
promover privativamente a ação penal pública, cumprindo o desiderato de pretensão puni-
tiva estatal.
São funções institucionais do MP, previstos no artigo 129 da CF:
342
A REVISTA DA UNICORP
No momento em que ocorre uma infração penal surge para o Estado o jus puniendi. O
rutilante Beccaria (2001, p. 28) preleciona que: “Eis, então, sobre o que se funda o direito do
soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública
das usurpações particulares”. Com efeito, o Estado somente poder punir com o due processo
of law, consecutado em Juízo, ou seja, com o devido processo legal, representado pela
deflagração da ação penal.
Na lição de Aury Lopes Jr:
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ENTRE ASPAS
Isto posto, sabendo-se que a Constituição Federal não prevê nenhuma privatividade
da polícia para as investigações criminais e que prevê poder para o Ministério Público requisi-
tar informações e documentos para instruir procedimentos administrativos de sua competên-
cia, conforme previsto em lei complementar (art. 129, VI, CF), ela está autorizando o exercício
direto da função investigatória a quem é o verdadeiro legitimado à persecução penal. Por que
aquele a quem se atribui o fim não poderia se valer dos meios adequados? A quem interessa o
afastamento do Ministério Público da direção das investigações?
Assim, sendo, segundo o autor, compete à Polícia Federal, em caráter exclusivo, atuar
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A REVISTA DA UNICORP
como Polícia Judiciária da União; à Polícia Militar, tão-somente, investigar os crimes militares
de competência estadual e, à Polícia Civil, confere-se atribuição investigatória residual. Em
momento algum pretendeu o constituinte excluir a possibilidade de que outros órgãos investi-
gassem infrações penais.
345
ENTRE ASPAS
E continua:
Durante vários anos, embates jurídicos foram criados em torno do tema, de um lado
Polícia Judiciária e do outro o MP, resultando em inúmeras ações, porém não existe até a
presente data uma uniformidade ou um posicionamento pacífico sobre a questão. Vários pretórios
já se manifestaram sobre a possibilidade ou não do MP em realizar investigações criminais,
tendo o assunto sido levado a Corte Suprema para um posicionamento final.
Conforme noticiado pelo STF foi impetrado um Habeas Corpus nº 91.661-STF, onde
consta no bojo do remédio jurídico que policiais ingressaram com o remédio constitucional,
com escopo de obter o trancamento da ação penal, uma vez que os depoimentos foram colhi-
dos exclusivamente pelo MP (NOTÍCIAS, 2009).
Segundo a relatora do Habeas Corpus, ministra Ellen Gracie, é perfeitamente possível
que o órgão do MP promova a coleta de determinados elementos de prova que demonstrem
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Ato contínuo, embora já haja posicionamentos neste sentido, é cediço que existem
divergências no campo doutrinário, jurisprudencial e legislativo sobre a possibilidade do Ór-
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A REVISTA DA UNICORP
gão acusador poder promover atos de investigação sem a necessidade do auxílio por parte da
polícia judiciária. Nesta esteira de pensamento, juristas de notório saber se inclinam para
possibilidade do MP poder promover atos de investigação para deflagração da ação penal,
entre eles: como Paulo Rangel (2005), Hugo Mazzill (1997), Lênio Luiz Streck (2003), Ren Ariel
Dotti (1986), Julio Fabbrini Mirabete (1997), José Frederico Marques (1961).
Em contrapartida, a participação do MP é rechaçada por alguns renomados juristas,
como Antônio Evaristo de Moraes (1997), Aury Lopes Jr (2006), Luigi Ferrajoli (1997), José
Afonso da Silva (1998), Francesco Carrara (1994).
Temos o objetivo, assim, de evidenciar que a investigação promovida pelo MP se
tornará salutar e imperativa, na medida em que irá propiciar uma investigação mais célere. Serão
observados os direitos individuais daqueles supostos infratores, preceitos constitucionais,
bem como fornecendo suporte aos juízes para uma melhor prestação jurisdicional.
Assim, o poder de investigação dado ao MP para promover a investigação é fruto da
“interpretação lógica” do art. 129, VI, da CF/88 e do art. 80 da Lei nº 8.625/93, bem como da
análise do § 4º, do art. 144 da Carta Maior, que segundo atesta “[...] não confere a polícia o
monopólio da investigação [...]”. Portanto, soa absurdo o Ministério Público poder requisitar
diligências a autoridade policial e não poder fazê-lo por conta própria.
Afinal, qual o impeditivo para o MP poder promover investigação preliminar, sem a
necessidade de acompanhamento da polícia judiciária? Por que a polícia judiciária busca impe-
dir a atuação do MP, seja conjuntamente ou sozinho? Qual o interesse em se manter o atual
sistema investigativo, já em plena falência? Haver otimização nos procedimentos investigativos?
Haver uma maior transparência e eficácia na consecução da investigação preliminar?
Vislumbra-se, desta forma, a possibilidade sim do MP, no exercício de fiscalizador da
Lei, em promover coletânea de elementos para deflagração da ação penal, se tornando pres-
cindível a atuação da polícia judiciária. Ocorre que, devem existir limites para que o MP cumpra
seu mister constitucional, com o fito de que não haja abusos, exageros, como em alguns casos
têm-se verificado.
Ao se fazer uma interpretação meramente literal do artigo 129, inciso VIII, da Consti-
tuição Federal, verifica-se que este dispositivo legal apenas garante, de forma expressa, ao
Ministério Público o poder de requisitar diligências investigatórias e instauração de inqué-
rito policial.
Contudo, já se encontra consolidada a tese de que a Constituição deve ser interpretada
de maneira sistemática, levando-se em conta os propósitos e os princípios constitucionais,
além de outros diplomas legais. Desse modo, podemos afirmar que ao Ministério Público é
garantido o poder de investigação criminal de maneira indireta e direta.
Merece registro, nesse ponto, a lição emanada do Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, em decisão da relatoria do Desembargador Federal Fábio Rosa: “[...] A Constituição da
República não pode ser interpretada às tiras, completamente descontextualizada do seu con-
junto. Como se pode observar dos fundamentos exarados no parecer do MPF, a Carta Magna
não alijou o Parquet da atividade investigativa; ao contrário, conferiu-lhe amplos poderes para
realização de diligências (art. 129, incisos VI e VIII) que poderão auxiliá-lo na formação da opinio
delicti [...]” (TRF 4ª Região, 7ª Turma. Recurso em Sentido Estrito 2002.04.01.052347-6/RS).
Os membros do Ministério Público podem buscar provas para o embasamento de uma
possível denúncia criminal, tanto através da polícia, como por meios próprios, conforme indica
o artigo 7º, incisos II e III, “in fine”, da Lei Complementar nº 75/93 e outros dispositivos legais.
De todo modo, em recente decisão publicada em novembro de 2008, a Segunda Turma
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Com efeito, reza o art. 129 da atual CF que são funções do MP, dentre outras:
Como se nota pelo inciso I acima transcrito, a Carta Magna deu ao MP, com exclusivida-
de, a titularidade da ação penal pública e, como lembra Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho com muita propriedade:
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Além das competências trazidas no texto constitucional, as Leis nº 75/93 (Lei Comple-
mentar nº 75/93) e 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público), legitimam ao MP à realização
de um amplo conjunto de medidas de natureza investigatória, a exemplo da inquirição de
testemunhas e a requisição de informações e documentos públicos ou privados.
Por outro lado, deve-se ter em mente que a Lei nº 8.429/1992, em consonância com o art.
129, III, da CF, autorizou o MP a conduzir inquéritos civis para apurar atos de improbidade
administrativa. Como apregoa o ditado popular “Quem pode o mais, pode o menos”.
Essa tese veio a ser finalmente ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que
adotou, em 13 de dezembro de 1999, a Súmula nº 234: A participação de membro do Ministério
Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o
oferecimento da denúncia. Nada mais fez a Corte do que aplicar entendimento pacífico na
doutrina, de que o MP parte no processo penal. É o juiz quem deve ocupar o ponto equidistante
entre a acusação e a defesa, entre o acusado e o MP. A imparcialidade que se exige do membro
do MP é aquela de cunho pessoal (impessoalidade), proibindo que o acusador seja parente do
juiz ou das partes, seu amigo íntimo ou inimigo capital etc, do ponto de vista funcional, a
imparcialidade é incompatível com a função do acusador público.
É nesse sentido a lição de José Frederico Marques:
354
A REVISTA DA UNICORP
Frederico Marques (1961) entendem que o MP é apenas parte processual, formal ou instrumen-
tal no processo. Quando inicia a ação, produz prova, debate a causa ou recorre, é parte, no
sentido técnico e processual. Sua imparcialidade somente poderia ser compreendida no senti-
do atécnico, no sentido moral, portanto (de objetividade, serenidade e fiscalização da Lei, pois
não tem um interesse material fora do processo, contraposto ao interesse do réu).
No sentido das idéias aqui sustentadas, colhe-se a lição de Afrânio Silva Jardim:
Como titular da ação penal pública tem o MP o direito de melhor informar-se quanto a
ação que pretende intentar. Como referido anteriormente, é ele, acima de tudo, um fiscal da lei
e, analisado como parte, o é apenas formalmente, sendo óbvio que, apesar de “autor” da ação
penal, utiliza de suas atribuições para benefício da sociedade. O Parquet é uma Instituição que
atua em nome da sociedade e serve a um Estado Democrático de Direito.
Conforme afirma o Eugênio Pacelli de Oliveira:
Por fim, corroborando com o posicionamento acima esposado Hugo Nigro Mazzilli
afirma que:
Ademais, a Lei nº 8.625/93, no seu art. 26, dispõe caber ao Ministério Público:
355
ENTRE ASPAS
Está claro pelo diploma que rege o Ministério Público nacionalmente que
possível serem instaurados procedimentos administrativos diversos dos
inquéritos civis, que são exatamente aqueles destinados à apuração das
infrações penais, no bojo dos quais se podem expedir notificações pela
colheita de depoimentos, sob pena de condução coercitiva, bem como se
requisitarem documentos a entidades públicas ou privadas etc. Não se
pode olvidar, aliás, que desses procedimentos já cuidava o art. 28 do
Código de Processo Penal, ao estabelecer o mecanismo de arquivamento
do inquérito policial e ‘quaisquer peças de informação’. Como se v, o
procedimento ministerial destinado investigação criminal uma ‘peça de
informação lato sensu, da mesma forma que o o inquérito policial, estan-
do sujeito, por conseguinte, quando da hipótese de arquivamento, ao
mesmo mecanismo estabelecido no citado art. 28 do Código de Processo
Penal (BASTOS, 2004, p. 174).
Desta forma, por tudo o quanto exposto, concluo o presente trabalho apresentando as
principais vantagens da investigação preliminar a cargo do Ministério Público, segundo a
ótica de Aury Lopes Jr (2006), a qual coaduno em todos os seus termos:
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6. Conclusão
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ENTRE ASPAS
Com isto, pode-se perceber que o Ministério Público é uma instituição estatal que se
encontra, cada vez mais, na esfera da sociedade civil, lutando pela implementação dos direi-
tos fundamentais.
Na busca da defesa dos interesses sociais que nas sociedades capitalistas chocam-
se, frequentemente, com os interesses do poder político e do poder econômico, deve-se
garantir ao Ministério Público amplos poderes de investigação, justamente para que essa
Instituição se fortaleça e, ao lado das forças democráticas da sociedade civil lute pela
efetivação do Estado Democrático de Direito.
Referências ________________________________________________________________________
ANDRADE, Mauro Fonseca. Ministério Público e sua investigação criminal. Curitiba: Juru, 2006.
BASTOS, Marcelo Lessa. A investigação nos crimes de ação penal de iniciativa pública. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1998.
______. Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871. Altera diferentes disposições da Legislação Judiciária. Dispo-
nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ LIM/ LIM2033.htm>. Acesso em: 13 abr. 2011.
______. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 234. A participação de membro do Ministério Público na fase
investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia. Dispo-
nível em: <http://www81.dataprev .gov.br/sislex/paginas/75/9999/STJ234.htm>. Acesso em: 10 out. 2008.
Notas ______________________________________________________________________________
358
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O
CASO DE VIOLAÇÃO AO DEFICIENTE MENTAL DAMIÃO XIMENES LOPES
“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve
ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Nin-
guém pode ser privado da vida arbitrariamente”. (art. 4º, §1º da Con-
venção Americana de 1969).
Resumo: Trata-se de breve análise em derredor dos direitos humanos, tendo como ponto de
partida o caso Damião Ximenes Lopes, vítima de tortura e maus tratos, que culminaram com
o seu falecimento, na Casa de Repouso Guararapes, no município de Sobral, Estado do
Ceará, Brasil. Após a identificação dos direitos inerentes à condição humana, passou-se a
tratar da submissão do Estado Brasileiro às Instâncias Interamericanas de Proteção aos
Direitos Humanos até a responsabilização pela violação de direitos e garantias universais da
vítima falecida e de seus familiares, impondo-se uma atitude positiva do Estado para
implementação de novos paradigmas no tratamento da saúde mental.
1. Introdução
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Diante das flagrantes atrocidades do caso, com suspeita de morte por tortura, a família
inicia uma busca incessante por justiça, denunciando o caso à Polícia Civil, Ministério Público
Federal, à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e
também à Comissão Americana de Direitos Humanos, cuja análise aqui denotou maior interes-
se, dado o objeto de estudo do presente artigo.
Cumpre apontar que, em 01 de outubro de 2004, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos resolveu submeter à Corte uma demanda contra o Estado Brasileiro, iniciada através
da denúncia nº 12.237, recebida na Secretaria da Comissão em 22 de novembro de 1999. Após
análise preliminar, a Comissão houvera decidido levar à Corte o caso de supostas violações de
direitos humanos “consagrados nos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pesso-
al), 8º (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana, com relação à
obrigação estabelecida no art. 1.1. (obrigação de respeitar os direitos) do mesmo instrumento,
em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes”2.
A relevância deste caso não se restringe à gravidade das violações de direitos ou à
proteção humanitária internacional, mas significou o início de uma mudança de paradigma no
tratamento da saúde mental no Brasil.
361
ENTRE ASPAS
...mediante o qual concluiu ‘inter alia’ que o Estado era responsável pela
violação dos direitos consagrados nos arts. 5º (direito à integridade pes-
soal), 4º (direito à vida), 25 (proteção judicial) e 8º (garantias judiciais) da
Convenção Americana, em conexão com o art. 11 do mesmo instrumento
no que se refere à hospitalização do senhor Damião Ximenes Lopes em
condições desumanas e degradantes, às violações de sua integridade pes-
soal e ao seu assassinato, bem como às violações da obrigação de investi-
gar, do direito a um recurso efetivo e das garantias judiciais relacionadas
com a investigação dos fatos4.
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A REVISTA DA UNICORP
Nesse passo, a análise do caso erige de importância, não só por se tratar da primeira vez que a
Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) decide
uma demanda envolvendo o Brasil, mas também pela relevância histórica de ser o primeiro pronun-
ciamento da Corte sobre violações de direitos humanos de portadores de transtornos mentais.
O procedimento perante à Corte tem início em 01 de outubro de 2004, com a apresenta-
ção da demanda pela Comissão Americana de Direitos Humanos, anexando documentos e
oferecendo provas testemunhais e documentais.
Assim, após análise preliminar da demanda pelo Presidente da Corte, em 03/11/04,
determinou-se a notificação do Estado, com a indicação do prazo para contestação e designa-
ção de sua representação no processo77
Durante o curso do processo, tanto os peticionários quanto o Estado Brasileiro realiza-
ram modificações em sua representação perante à Corte Americana. Como tais informações não
se apresentam como relevantes para a análise que ora se pretende, a discriminação dos manda-
tários e as datas de suas designações serão omitidas.
363
ENTRE ASPAS
No dia designado para a audiência pública, a Corte proferiu sentença sobre a exceção
preliminar, resolvendo por desconsiderar a preliminar de não esgotamento dos recursos inter-
nos oposta pelo Estado, dando prosseguimento à instrução. Nesse sentido,
Após o oferecimento de razões finais escritas por parte da Comissão, dos representan-
tes e do Estado, em 13/06/06, a Secretaria da Corte solicitou-lhes, nos termos do artigo 45 do
Regulamento, “diversos documentos como prova para melhor resolver”, o que foi atendido em
22, 26 e 28 de junho, respectivamente.
No final da noite do dia 17 de agosto de 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
o tribunal máximo da Organização dos Estados Americanos (OEA), por unanimidade, condenou
o Estado Brasileiro pela morte violenta de Damião Ximenes Lopes, ocorrida no dia 4 de outubro
de 1999, na Clínica de Repouso Guararapes, localizada no município de Sobral, interior do Ceará.
Ao entendimento da Corte, o Brasil violou sua obrigação geral de respeitar e garantir os
direitos humanos, especialmente o direito à integridade pessoal de Damião e de sua família,
bem como as garantias judiciais e o direito à proteção judicial a que têm direito seus familiares,
concluindo pela imposição de indenização à família como medida de reparação.
Em sua sentença, a Corte reconhece que o Brasil “tem responsabilidade internacional
por descumprir, neste caso, seu dever de cuidar e de prevenir a vulneração da vida e da
integridade pessoal, bem como seu dever de regulamentar e fiscalizar o atendimento médico de
saúde”, concluindo também “que o Estado não proporcionou aos familiares de Ximenes Lopes
um recurso efetivo para garantir acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a
investigação, identificação, o processo e, (...), a punição dos responsáveis pela violação dos
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial”.
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A REVISTA DA UNICORP
O ideal de igualdade entre os homens inicia-se com o surgimento dos grupos sociais e
vai evoluindo de modo a abarcar toda classe de pessoas independente de cor, credo, raça,
religião, etc, chegando até a proteção conferida à pessoa humana e ao seu direito a uma vida
digna. Nesse sentido, escreve Comparato:
Por tudo quanto exposto, é de se reconhecer que os direitos humanos surgem como
decorrência lógica da existência do ser humano, mas, na esteira do entendimento doutrinário,
remanesce a necessidade de distinção entre os direitos humanos e os direitos fundamentais.
Em derredor da questão terminológica apontada, convém trazer a nota distintiva extraída do
livro “A eficácia dos direitos fundamentais” de Ingo Wolfgang Sarlet:
Assim também, Fábio Konder Comparato, in “Afirmação Histórica dos Direitos Humanos13:
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ENTRE ASPAS
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A REVISTA DA UNICORP
proteção dos direitos humanos, a partir da Declaração de 1948, valendo mencionar ainda a
existência de relevantes tratados e convenções de proteção aos direitos das pessoas portado-
ras de deficiência, iniciando com a Declaração dos Direitos do Impedido, de 1975, incluindo
Cartas e Programas de proteção e inclusão, até a assinatura da Convenção Interamericana de
eliminação de todas as formas de discriminação, cognominada Convenção da Guatemala, do
ano de 1999.16
Atualmente, o tratado internacional dos direitos das pessoas portadoras de deficiência
se encontra no patamar de aprovação por quorum qualificado, podendo ser o primeiro tratado
internacional de direitos humanos a ser incorporado pelo ordenamento brasileiro, com força de
emenda constitucional17.
Nos termos do artigo 1º da Convenção Interamericana para eliminação de todas as
formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência18, entende-se que:
Identificada a raiz de proteção dos direitos humanos, no âmbito do direito material, cabe
agora, à vista do caso de violação de direitos do Sr. Damião Ximenes Lopes, narrado alhures,
tecer algumas considerações sobre o processo de universalização dos direitos humanos, cul-
minando com a instituição de uma sistemática internacional protetiva, através da qual as viola-
ções de tais direitos são analisadas e julgadas.
Nesse sentido, como pondera Norberto Bobbio, a problemática em derredor dos direi-
tos humanos “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”20. Nesse contexto, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos exsurge como sustentáculo da dignidade humana,
fundamento primordial dos direitos do Homem.
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Na esteira das lições de Flávia Piovesan, “o Direito Humanitário, a Liga das Nações e
a Organização Internacional do Trabalho situam-se como os primeiros marcos do processo
de internacionalização dos direitos humanos”21, a partir da redefinição de extensão do con-
ceito de soberania estatal e a inserção dos direitos do Homem como “questão de legítimo
interesse internacional”.
No âmbito das Américas, o instrumento de maior relevância é a Convenção Americana
de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica – assinada em 1969, com vigência a
partir de 1978. Nesse sentido, Thomas Buergenthal:
Contudo, no âmbito dos Estados Signatários, para além do dever negativo em não
violar os direitos humanos dos indivíduos, Piovesan esclarece a obrigação do Estado
quanto à “adoção de medidas afirmativas necessárias e razoáveis, em determinadas cir-
cunstâncias, para assegurar o pleno exercício dos direitos garantidos pela Convenção
Americana”.25
Na busca de uma sistematização do conteúdo da Convenção Americana, Hector Gross
Espiell esclarece que:
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7. Considerações finais
Passados mais de dez anos do falecimento do Sr. Damião Ximenes Lopes, pode-se
afirmar que houve uma modificação substancial no paradigma do tratamento médico-clínico
das deficiências no Brasil.
A Casa de Repouso Guararapes, palco de inúmeras violações de direitos humanos,
foi descredenciada da rede do Sistema Único de Saúde em 10 de julho de 2000. Aliás,
conforme depoimento do Dr. Luís Fernando Farah de Tófoli, médico psiquiatra da Secreta-
ria de Desenvolvimento Social de Saúde de Sobral, o caso Damião Ximenes Lopes repre-
sentou, inegavelmente, forte influência na reorganização da atenção da saúde mental na-
quele município, com o início de funcionamento da Rede de Atenção Integral à Saúde
Mental de Sobral. Segundo ele,
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A REVISTA DA UNICORP
Referências ________________________________________________________________________
ARAÚJO, Luiz Alberto David (coord.) “Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência”. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
BOBBIO, Norberto. “Era dos Direitos”. São Paulo: Editora Campus, 2004.
CANZIANI, Maria de Lourdes. “Direitos Humanos e novos paradigmas das pessoas com deficiência”, in.
ARAÚJO, Luiz Alberto David (coord.) “Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência”. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
COMPARATO, Fábio Konder, in “Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”, 3ª Ed. rev e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2003.
PIOVESAN, Flávia. “Direitos Humanos e o direito constitucional internacional”, 10ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2009.
Convencion Americana Sobre Derechos Humanos “Pacto De San Jose De Costa Rica, disponível em http://
www.oas.org/juridico/spanish/firmas/b-32.html Acesso em 29 de abril de 2009.
Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras
de deficiência, disponível em www.oas.treathies.org Acesso em 07 de maio de 2009.
Notas ______________________________________________________________________________
1. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 13.
2. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009.
3. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 02.
4. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009.
5. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 03.
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6. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 03.
7. Durante o curso do processo, tanto os peticionários quanto o Estado Brasileiro realizaram modificações em
sua representação perante a Corte Americana. Como tais informações não se apresentam como relevantes para
a análise que ora se pretende, a discriminação dos mandatários e as datas de suas designações serão omitidas.
8. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 05.
9. Trecho extraído da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível em
http://www.global.org.br/portuguese/damiaoximenes.html, Acesso em 19 de abril de 2009, p. 7.
10. Livro do Gênesis, 1, 26-27.
11. COMPARATO, Fábio Konder, in “Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”, 3ª Ed. rev e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 04.
12. COMPARATO, ob. Cit, p. 21.
13. Ob cit, p. 224:
14. SARLET, Ingo Wolfgang. “A Reforma do Judiciário e os tratados internacionais de Direitos Humanos:
observações sobre o §3º do art. 5º da Constituição”, in CAMARGO, Marcelo NOvelino (org) “Direito
Constitucional: Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos fundamentais”. Salvador: Jus
Podium, 2006.
15. LEARY, Virgínia. “International labor conventions and national law: the effectiveness of the automatic
incorporation of treaties in national legal systems”, apud PIOVESAN, ob cit, p. 04.
16. Segundo Maria de Lourdes Canziani, tratando especificamente da proteção às pessoas portadoras de
deficiência, “todos esses documentos e normas internacionais mencionadas têm sua base filosófica inspirada
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Declaração dos Direitos das Pessoas com Retarda-
mento Mental (1971), nas Resoluções da Organização Mundial de Saúde para prevenção de deficiências e
reabilitação (1976), na Declaração dos direitos da criança (1979), na Declaração dos Direitos da Pessoa Surda
e Cega (1971), na Carta dos Anos 80, nas Recomendações dos Congressos e Seminários sobre retardamento
mental organizado pelo Instituto Americano del Niño (1965-1975 e 1986), na Declaração Mundial Sobre
Educação para todos, no Programa de Ação Mundial de Saúde, no Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) e outras organizações que lutam pela proteção e defesa das pessoas”, ob. Cit., p. 252-253.
17. A inserção dos novos paradigmas constitucionais a partir dos tratados internacionais, no entanto, está
longe de ser considerada pacífica pela doutrina e jurisprudência, havendo entendimento no sentido de que, pelo
§3º do art. 5º CF, haveria restrição ao próprio regime da fundamentalidade dos direitos oriundos de tratados
internacionais. A este respeito, colham-se as lições de SARLET, ob. Cit., p. 244.
18. Convenção da Guatemala, datada de 28 de maio de 1999, e já ratificada por 51 países até abril de 2009,
dentre eles o Brasil.
19. Art. II.
20. BOBBIO, Norberto. “Era dos Direitos”, p. 25
21. PIOVESAN, Flávia. “Direitos Humanos e o direito constitucional internacional”, 10ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 113.
22. BUERGENTHAL, Thomas. “The inter-american system for the protection of human rights”, apud
PIOVESAN, ob. Cit., p. 248.
23. CONVENCION AMERICANA SOBRE DERECHOS HUMANOS "PACTO DE SAN JOSE DE COSTA
RICA, disponível em http://www.oas.org/juridico/spanish/firmas/b-32.html Acesso em 29 de abril de 2009
24. PIOVESAN, Flávia, ob. Cit., p. 248.
25. Idem, p. 250.
26. ESPIELL, Hector Gross. “The organization of American States (OAS), p. 557, apud PIOVESAN, ob.cit. p. 250
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A REVISTA DA UNICORP
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