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CRÔNICAS

LIÇÕES QUE
A VIDA ENSINA

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

NÃO É PRECISO MOSTRAR


O QUE SE É, BASTA SÊ-LO

O rapaz chegou à pequena cidade do mentira tudo o que ele contava e que, na lugar.
interior como um passarinho solto da verdade, ele nem sequer sabia nadar. Quando chegamos ao local a
gaiola. Tudo lhe parecia sorrir e não foi Quando um grupo ia para o rio, o fisionomia do mateiro mudou. Ele olhava
difícil entender a razão. Há muito tempo convidavam mais veementemente por todos os lados com um sorriso de
morava na cidade grande, onde dizendo que hoje podia ir tranquilo, pois garoto matreiro que acabara de
constituiu família e acabou por se havia muitos para salvar-lhe a vida e descobrir o modo de aprontar mais
prender. Na verdade era de ascendência tirá-lo da água. alguma. Por outro lado trazia no
indígena e nunca se acostumara à vida Toda essa surriada acabava sempre semblante o nítido contentamento de
citadina. Agora estava muito feliz de, se com o sorriso calmo e discreto do quem reencontrou a própria vida.
não voltar às origens, pelo menos humilde rapaz, o que muito me irritava. Desceu até a margem, encheu várias
usufruir um pouco de paz naquele lugar Nunca fui dado a muita zombaria. vezes as mãos em concha e deixou a
tranquilo. Ficou especialmente Sempre disse que há uma diferença água deslizar suavemente entre os
maravilhado com o grande rio que muito grande entre rir com os outros e dedos, admirando-a. Molhou a cabeça e
cortava o povoado, ainda de águas rir dos outros. Ainda mais que eu entrou calmamente no rio. Nadou até a
claras e limpas, abrigo de muitas acreditava ser um ato desarrazoado ilha, voltou e saiu da água. Olhou em
espécies de peixes. naquele caso, sabendo muito bem o que volta por instantes e comentou que
Sendo de origem simples não teve o mateiro era capaz de fazer. Mais ainda achava que dava para brincar um pouco.
dificuldades em fazer amizade com o me irritava o fato de um dos garotos ser Nadou novamente até a ilha e dessa vez
povo do lugar. Embora fosse de natureza tremendamente petulante e a adentrou. Segui-o, curioso. Ele foi até
humilde, hora ou outra contava suas convencido, sempre contando com o outro lado, onde tinha o maior volume
peripécias do passado e falava das exagero o que achava serem grandes de água, subiu numa árvore e deu um
grandes aventuras vividas na natureza. façanhas. Era exatamente ele o maior dos mais espetaculares saltos que eu já
Tinha sempre bons ouvintes, pois, o zombeirão, o que me deixava a pensar vira até então. Daí para frente foi um
povo local era, na maioria, pessoas do porque o índio não lhe ensinava uma boa show de agilidade e força,
interior, consequentemente amantes do lição, porque não lhe calava a boca demonstrando que a amizade com a
belo e natural. mostrando tudo de que era capaz. ``Há, natureza ainda estava forte.
Entre os que o ouviam com prazer se fosse eu...``, sempre amargava. Quando saíamos do rio, chegaram os
estavam alguns rapazolas de uma Mas toda história tem um ponto final. zombadores, ávidos por uma boa troça,
família oriunda do lugar. Tanto eles Num certo dia de verão, daqueles que mas que decepção, o espetáculo já havia
como o pai eram dados a boas não dá vontade de olhar para fora, fui à acabado. Por mais que insistissem, o
brincadeiras. Não tardaram a começar a casa dos brincalhões tratar algum nativo se desculpou dizendo que fora
zombar do nativo pelo fato de o assunto, mas eles não estavam. A mãe apenas dar uma molhada no corpo.
convidarem para um mergulho no rio e estava sozinha e me informou que o pai Diante dos desafios provocativos,
ele sempre negar. Primeiro que estava e os garotos haviam ido à cidade vizinha quando passei por eles sussurrei que
sempre ocupado, uma vez que a comprar peças para o carro. No exato era bem melhor que não o desafiassem.
mudança lhe dificultara a vida. Ali, sem momento dessa explicação, passou por Não sei se por desconfiarem ou se por
sombra de dúvida era muito difícil ali o índio e me convidou a ir com ele até confiarem muito em mim, mas a
manter três crianças na escola e toda a a ilha. Era uma expressão conhecida, galhofada teve fim. Parece que
família nas condições que estava todos sabíamos que se tratava de uma entenderam ser melhor não zombar de
acostumada. Depois, discreta e bela ilha um pouco acima no rio. Num dia quem não conhecem. Não sei se por
humildemente, ele explicava que como aquele não precisava convidar acaso ou se aprenderam alguma coisa,
passara muitos anos sem os bons duas vezes, mas estranhei o fato de ser mas eu aprendi a não ter que provar
exercícios naturais e precisava se convidado por quem negara tantas nada para ninguém. Aprendi que não
readaptar aos poucos. Era exatamente o vezes ir até lá. O assombro não foi só preciso mostrar o que sou, mas preciso
que os zombeteiros aproveitavam. meu, até a senhora no portão sorriu e ser o que mostro.
Faziam a maior galhofa dizendo ser perguntou se ele resolvera conhecer o
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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

MÁS ASSOCIAÇÕES
ESTRAGAM HÁBITOS ÚTEIS
Embora muitas pessoas discordem
dessa afirmação, o dia a dia tem
provado a sabedoria da sua veracidade.
Usada em palavras e formas diferentes
é uma expressão conhecida em todo o
mundo. Minha mãe nunca se cansou de
repeti-la aos ouvidos dos filhos, mas na
minha pouca idade não conseguia
entender só uma coisa: como eu poderia
sempre escolher por companheiro
alguém melhor do que eu? Se o outro companheiro alguém pior do que eu. pintinhos atolado no chão. Ali, bem
fosse melhor do que eu e aplicasse o Certo dia, logo após o almoço, lá próximo da represa, a terra era fofa e
mesmo princípio, não me aceitaria por estávamos a revirar o matagal úmida, o que possibilitou prender o
companheiro. Mas como por natureza procurando armas contra o tédio pobre infeliz que, ainda vivo, tentava
sempre fui bom ouvinte, meditava naquela época quente do ano. Entre os debalde se soltar da prisão em que fora
sempre naquele alerta. tantos ruídos da natureza, discernimos metido.
Aprendi a lição quando morava o som de uma galinha chamando seus Sacando a faca, o frio garoto passou a
naquela fazenda, numa colônia de pintinhos que, por sua vez, piavam esquartejar a presa sobre uma pedra.
agricultores. Vários quilômetros abaixo estridentemente, revelando serem Foi quando ouvi o grito de minha mãe
foi construída uma usina hidrelétrica e a muitos e bem novinhos. Logo apareceu me chamando. Ela lavava roupa na
represa formada chegava até o fundo na mente malévola a ideia macabra e represa e ouvira a fuzarca produzida
dos nossos quintais, num dos braços não tardou o convite por parte do amigo: pela galinha e, naturalmente, já
formados pelo vale em que se situava a "Vamos matar os pintinhos?" Pego de desconfiou de alguma traquinice. Ao
fazenda. Era ali, à beira da represa, que surpresa não fiz outra coisa a não ser ouvir o chamado desaparecemos
passava grande parte do tempo à cata acompanhá-lo mato adentro em busca incontinenti. Agora cada um para o seu
de aventuras e descobertas. O da presa. Tão logo, porém, me recobrei, lado, procurando um meio de escapar do
companheiro inseparável era o vizinho passei à costumeira bateria de que viria. Da minha parte apliquei um
da mesma idade, talvez pouco mais argumentos que sempre tinha de usar velho truque. Corri para o lado oposto,
velho, para grande preocupação da com aquele coração insensível. E mais numa grande volta, e respondi
minha mãe. O garoto tinha mais do que uma vez recebi tremenda carga de respeitosamente à minha mãe. Esforço
apenas a fama, era de fato peralta ao adjetivos destacando minha "fraqueza e vão, pois ela já havia encontrado os
extremo. Mas como não havia outros covardia". restos mortais da pequena ave.
para brincar, acabávamos sempre juntos Era um tremendo disparate. Daquela vez não adiantou meu amigo
desbravando as redondezas. O pai do Justamente eu que já era zombado em sumir até tarde da noite, pois, a julgar
meu amigo era um senhor já idoso todo casa por não gostar de caçar nem matar pelo alarido na madrugada, o castigo foi
grisalho, muito bonzinho, porém, animais domésticos para alimento, às dos piores (ou melhores, sei lá). Mas
austero. O último adjetivo era o terror voltas com uma chacina de pintinhos. tenho certeza que ele sofreu bem
do garoto, pois, não era incomum ouvir, à Ante o olhar reprovador e provocativo menos do que eu, pois, até hoje ainda
tarde, quando o pai chegava do trabalho, do amigo, seguido da sua arrancada sinto arrepios quando me lembro da
os castigos a que era submetido. mato adentro, acabei por segui-lo, triste cena. A lição, porém, passou a me
Algumas vezes ficava desaparecido até mesmo que a contragosto. Logo proteger pela vida afora. Aprendi a
bem tarde da noite, esperando os divisamos a ninhada e o experimentado escolher muito bem com quem me
ânimos se acalmarem. garoto lançou mão de uma grande pedra associar e, cada vez que certas ações ou
Naturalmente eu percebia essas e jogou sobre os depenados filhotes. A mesmo ideias de amigos pareciam fugir
várias más qualidades e sempre tentava galinha ficou muito irritada e levou ao controle, aquelas imagens me faziam
não me envolver, procurando dissuadir o rapidamente seus protegidos embora, pensar duas vezes. A pedra toda
companheiro de traquinices maiores. provocando grande barulho. O malvado vermelha e as mãos embebidas em
Volta e meia, porém, acabava caindo em garoto ficou desalentado, para minha sangue ainda povoam minha mente.
alguma enrascadela e sofrendo as alegria, ao perceber que errara o alvo. Realmente, os bons costumes
consequências; quando não um castigo Durou pouco, porém, meu alívio, pois, fui desaparecem sob a pressão das más
mais pesado, pelo menos a ladainha da justamente eu que percebi um dos companhias.
minha mãe sobre não ter por

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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DA ADAPTAÇÃO
DEPENDE A VIDA

Naquela vida maravilhosa de esforço. Por um lado ele estranhou, pois Caminhei lentamente de volta para
liberdade total, correndo pelos o remédio que me prescrevera, segundo casa naquela tarde, mergulhado em
cerrados, montanhas e florestas, brincou, era para levantar até defunto. profundos pensamentos. Percebi que
enfrentando os desafios das loucas Por outro lado, porém, já esperava por estava vivendo o sonho e sonhando a
aventuras, eu acreditava ter adquirido a isso e havia me reservado algum tempo realidade. Era normal subir até o
habilidade da adaptação. Fui treinado extra. apartamento do meu irmão, dois
para isso, sendo sempre lembrado de Embora não o fosse, se transformou andares acima do meu, todos os dias, e
aprender com o camaleão. Eu me num psicólogo e perguntou pelos quedar-me na janela vislumbrando, além
acreditava autossuficiente. O que eu mínimos detalhes da minha vida. Ainda da fumaça que cobria o subúrbio, os
não sabia é que não conhecia situações posso lembrar-me da atenção que picos das montanhas ao longe. Gastava
e lugares deveras diferentes. prestava às minhas palavras e do seu todo meu tempo de conversa narrando
Por força das circunstâncias tive de olhar de assombro diante de certas as peripécias da vida livre e mateira e
deixar a pequena cidade do interior e narrativas. Quando se deu por contente falando das maravilhas de onde viera.
rumar para uma das maiores cidades do tinha um braço apoiado na mesa, Todos os meus planos se concentravam
mundo. O espírito aventureiro ainda servindo de coluna para sustentar o em voltar à vida que deixara. Sim, eu
permanecia, de modo que cada queixo. Mudou de posição, num gesto vivia o sonho e sonhava a realidade.
novidade era um novo desafio. que denotou cansaço de tanto ouvir e Naquela noite após o jantar minha
Esforçava-me em encarar com concluiu: "Não é difícil entender o que esposa veio mostrar-me as novas
naturalidade as situações e coisas está acontecendo." E voltou a perguntar: roupas compradas para o bebê.
nunca dantes imaginadas. Tinha um bom "Você sabe qual o lugar correto para Orgulhosamente desdobrando aquela
salário e morava próximo ao trabalho, plantar arroz?" Respondi que sim, num roupa, eu senti que desdobrava o meu
situação privilegiada. Casara-me no ano lugar úmido. Ele continuou no mesmo futuro. A vida havia mudado... logo eu
anterior e um dos maiores sonhos da tom: "O que acontece se plantarmos seria um pai, com um futuro imenso a
vida estava para se realizar: minha arroz na areia quente?" "Não vai ser construído.
primeira filha estava para nascer. produzir", respondi. O médico apoiou os Anos depois, num exame de rotina,
Tudo parecia muito bem. Eu apenas cotovelos em cima da mesa, me olhou aquele bom médico me parabenizou por
sentia dificuldade para me levantar de firme nos olhos e falou de modo solene: ter conseguido vencer tão grande
manhã e estava sempre cansado. A vista "Você é um pé de arroz arrancado do barreira. Confessou que não acreditava
se escurecia e me sentia zonzo. Não brejo e plantado na areia. Está secando." que eu conseguisse e comentou que até
entendia, pois me alimentava bem e E depois de certo silêncio, explicou que minha fisionomia havia mudado. Mas eu
descansava o suficiente. A fraqueza as mudanças na minha vida foram muito vencera. Ainda não sabia, mas daquele
aumentou gradativamente até o ponto drásticas, para as quais eu não estava tempo em diante a única coisa
de ficar difícil trabalhar, o que me levou preparado. Agora estava permanente na minha vida seria a
a procurar um médico. Os exames de profundamente afetado. mudança. Aprendi que as mudanças
rotina tiveram resultados negativos, de Em conclusão, o atencioso médico serão sempre ganho se aprendermos a
modo que fui encaminhado a clínicas aconselhou-me a voltar para o interior. tirar proveito delas. A Terra tem forma
especializadas. Dias depois meu médico Ao explicar-lhe a impossibilidade, ele circular para que não haja fim. Podemos
me chamou e demonstrou seu assombro concluiu: "Então, você não tem opções. chegar ao mesmo lugar sem nunca
diante de tão boa saúde. Não Terá de se adaptar. Aprenda com o voltar. Não existe lugar totalmente ruim
entendendo o que se passava comigo, camaleão que chega a transformar-se nem totalmente bom. Existe falta de
pediu-me para tomar alguns remédios para se adaptar ao lugar em que está controle do que dá prazer e carência na
para me reanimar um pouco. Quando para escapar com vida. No seu caso capacidade de adaptação. O camaleão
voltei alguns dias depois, estava ainda também, da adaptação depende a vida." continua vivendo porque se transforma.
pior. As mãos suavam e os lábios Interessante, mas esta lição eu já Da adaptação depende a vida.
tremiam. Trabalhar exigia colossal conhecia, precisava aprender.
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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

IMITE O BURRO E
ATINJA O OBJETIVO

Parece que o que mais povoa a mente povo esquisito, que falava uma da pouca idade, comecei a entender que
de uma criança são as expectativas. Por linguagem que eu não entendia muito a razão precisa superar o gosto.
isso mesmo eu estranhei o fato de bem, e não esquecia o mau cheiro Quando terminei a minha narrativa
estarmos nos preparando para mudar e dominante em cada canto. Mas, a percebi que a filha menor não entendera
não perceber grande expectativa nas expectativa do desconhecido me atraía.
nada, pois, ainda me perguntou:
crianças. Prestei atenção e logo Meu irmão sempre criticava a fazenda
apareceu o motivo. A filha mais velha, ―Então o lugar pra onde vamos é
que fôramos ver. Dizia que era um buraco gostoso?
então com uns dez anos, não concordava danado, de onde só se via o céu, cercado
com a mudança, e vivia falando dela de ―Sim― emendei. ―Tenho certeza
de tal modo pelos montes que mal dava
modo negativo para a irmã menor: “O que você vai gostar.
para respirar. Minha mãe sempre
lugar para onde vamos não tem isso, não E, fixando os olhos firmemente na mais
animada dizia que aquele sim, era um
tem aquilo, tem esse problema e aquela velha, perguntei:
desvantagem”... e assim por diante. bom lugar para criar galinhas e porcos, e
para gozar da tranquilidade que só ali ―E você, entendeu a lição?
Aguentei isso por alguns dias até que a
filha mais jovem veio questionar: “se o parecia existir. Ela abaixou a cabeça, se esforçando em
lugar é tão ruim assim, por que nos O tempo passou rápido e, para alegria de esconder um sorriso.
mudaremos para lá?” uns e tristeza de outros, logo estávamos Depois de uns três meses de morada
Entendi que já era hora de acabar com tentando nos ajeitar naquela pequena nova, perguntei a ela:
esse impasse. Sentei-a na minha perna e, casa na cidade. Fomos morar num ―E, então, gostou da mudança?
chamando a outra, expliquei-lhes que loteamento novo, com muitos terrenos Ela respondeu, no seu orgulho de menina
não podemos avaliar as coisas pelo ainda vazios. O loteamento ficava entre que já pensa ser moça:
nosso gosto, mas, pela razão. Teremos os montes e nossa casa ocupava uma
ainda de fazer muitas mudanças na vida ―É..., não é tão ruim assim.
das partes mais baixas. Todos os dias
e, olhando do ponto de vista correto, elas E para o meu espanto, mostrou seu
ouvia minha mãe reclamar daquele
serão sempre para melhor. Um novo entendimento completando, enquanto
buraco danado, de onde só se via o céu,
lugar para morar será ruim, se fixarmos a saía de fininho:
cercado por tantos montes que mal dava
mente no que estamos deixando, ao ―E afinal, a razão tem de superar o
invés de atentar para a razão da nossa para respirar. Também ouvia o assobio
gosto,
mudança. Nesse ponto, viajei no tempo e feliz do meu irmão, até trabalhando
lhes contei como aprendi essa valiosa agora, coisa que ele não era muito dado
lição. a fazer. Estava construindo um cercado e
Eu tinha por volta de seis anos de idade e, sempre comentava que, aquele sim, é
como tal, estava em grande expectativa que era um lugar tranquilo, excelente
da mudança. Já havíamos visitado outra para criar galinhas e porcos.
fazenda, para onde minha mãe queria ir. Na minha mente infantil eu não podia
Porém, meu irmão mais velho, de uns compreender como as pessoas podem
quatorze anos, queria se mudar para a
ver as mesmas coisas de modo tão
cidade. Eu estava dividido, pois, na
floresta ou na fazenda me sentia em diferente. Mas, prestava muita atenção
a tudo que acontecia, e logo percebi que
casa, vivendo a vida de bem com a as mudanças chegam com as mudanças,
natureza. Da cidade eu só tinha a vaga
e que o que há pouco nos era tão
lembrança das poucas vezes que passara
abominável, agora já pode ser pelo
por lá. A imagem que eu tinha era de um
menos aceitável. Foi assim que, apesar

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Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

IMITE O RIO:
VENÇA OS OBSTÁCULOS

Naquele dia eu estava fazendo o meu locomoção e higiene. Depois, logo que a de água brotando da rocha. Ao contrário
trabalho normal, visitando os minha família veio para a cidade, meu do ser humano que perde o ânimo e a
escritórios dos grandes supermercados. pai foi trabalhar na construção de usina força na caminhada, ele vai se
Mas, estava mais preocupado do que o hidrelétrica e eu cresci como fortalecendo à medida que avança. Vai
normal. Estava chegando o dia em que barrageiro. De forma que conhecia bem aumentando o volume e a força e, cada
deveria fazer uma palestra com o a luta do homem com o rio. Primeiro é vez que vence um obstáculo, ganha
objetivo de encorajar pessoas que preciso desviar o seu curso, para então maior poder e desliza, ora sereno, ora
estavam passando por sérios construir a barragem. O homem pode estrondoso, rumo ao seu objetivo final.
problemas. desviar o seu curso, mas, não pode pará- Ninguém pode detê-lo.
E o meu problema era que ainda não lo. Depois de a barragem pronta, o rio Quando voltei ao carro, o sol já
conseguira criar um raciocínio que volta ao seu curso original, mas, despencava no poente, e já me enchia
fizesse com que os ouvintes se encontra aquele imenso paredão; com aquele sentimento triste do
sentissem realmente reanimados. toneladas e toneladas de concreto. crepúsculo, misturado à admiração que
Foi então que, ao entrar no carro, notei o Assim se forma uma imensa represa, sempre me causa o pôr-do-sol.
muro pichado à minha direita: algumas tendo mais de seis vezes o Voltando para casa já não tinha a
"Todas as nascentes correm para o mar volume de água da baía da Guanabara. preocupação com a falta de argumento
e não há quem possa mudar o seu Essa enorme pressão da água, entrando para a palestra. Naquela noite trabalhei
destino final". por caracóis gigantes, faz girar os até tarde e a matéria ficou pronta.
As visitas terminaram cedo naquela enormes rotores das turbinas, gerando Muito tempo depois, pessoas que
tarde e já viajava de volta para casa, energia elétrica. Interessante é que o assistiram àquela conferência, me
mas, com aquela frase fervilhando na homem trabalha consciente que não agradeciam pelo raciocínio encorajador.
minha cabeça. Entre as cidades, numa pode parar o rio. O objetivo da grande E eu sempre agradeço o rio por mais
região plana, passava um rio de porte barragem não é, em si mesmo, prender uma lição de força e perseverança.
médio, de águas claras naquela época do a água, mas, criar um volume suficiente Deveras, não existe obstáculo quando
ano. Como tinha algum tempo, desviei o para, na sua fúria incontrolável, fazer temos objetivo. Na verdade, ninguém
carro para uma pequena estrada de girar aqueles enormes rotores de supera a força de um motivo ― muito
chão batido à esquerda de uma ponte e dezenas de toneladas cada um. Depois menos de uma razão. E o rio tem tudo
estacionei um pouco abaixo, debaixo de de prestar esse valioso préstimo, lá vai o isso. Ele nasce para chegar ao mar.
grande árvore. rio, livre, rumo ao seu destino final.
Saí do carro e caminhei por ali, Ninguém pode prendê-lo.
embevecido com a beleza do lugar. Olhando as águas mansas no seu avanço
Sentei-me sobre uma grande pedra e contínuo, minha mente vagueou
fiquei a perscrutar as mansas águas, também por aqueles lugares curiosos,
como se esperasse ver alguma coisa. A onde rios atravessam rochas. Em alguns
frase do muro continuava na minha casos cavam montanhas que se
cabeça e, como sempre foi normal para interpõem no seu caminho. Em outros
mim, me fez perder em reflexões. lugares as fortes chuvas movem
Olhando o rio percebi como minha vida toneladas de terra que barram as águas.
sempre dependera dele. Primeiro, lá na Mas, o rio limpa o caminho e continua
selva ele me era fonte de alimento, correndo para o mar. E curioso é que, na
sua nascente, não passa de um filete

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Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DESAFORO SE LEVA
PRA CASA

Lá pelos treze anos, no auge do Os dois garotos talvez tivessem a presentes se voltou agora para o
orgulho de ter vencido a infância, eu me mesma idade, mas um era mais grandalhão, que acabou com o quadro
dava bem em quase todas as coisas que avantajado, de ombros largos, enquanto da própria bicicleta enfiado no pescoço.
fazia. De criação mateira, possuía a o outro era mais franzino e de menor A julgar pelos gemidos e a cara que
agilidade dos felinos e a resistência dos estatura. O primeiro, ainda sem se fazia, devia ter alguns ossos quebrados.
touros. Embora de estatura pequena e levantar, deixou escapar sua indignação: Nesse ponto, eu já não ria mais. Achei
sem nenhuma musculatura que - Ô seu vagabundo, será que não vê que a coisa ficou muito séria. Fiquei
aparecesse, conseguia vencer num por onde anda? mais sério ainda quando ouvi o franzino
confronto até mesmo garotos mais O outro retrucou imediatamente, dizer, enquanto empurrava sua bicicleta
velhos e mais fortes. Não gostava de pondo-se de pé com maior destreza: calmamente pelo canto da rua:
brigas e sempre procurava me dar bem ― Eu é que sou culpado, é? Você é que ― Quem não leva desaforo pra casa,
com todos, mas não tolerava desaforos. vem se enfiando onde não lhe cabe, seu aguenta na rua mesmo. Só fica um
Havia crescido ouvindo a frase tão paspalhão! pouco mais feio.
conhecida: “Eu não levo desaforo para ― Paspalhão, eu?! ― gritou o Pedalei minha bicicleta de volta para
casa.” Apesar de ser pacato por grandalhão, já pulando por cima da casa tão calado quanto um túmulo e
natureza, sempre me escurecia a vista bicicleta ainda caída. mais concentrado do que um monge em
quando alguém me lançava invectivas, e Sem dar tempo para nada, meteu uma meditação. Parece que não encontrei
então, eu não me responsabilizava mais mão na nuca e a outra no lado da cintura ninguém pelo caminho, pelo menos não
pelo que pudesse acontecer. do menor e empurrou tão violentamente percebi.
Geralmente, o resultado era alguém que o pobre coitado deu várias Depois daquele dia, não demorou muito
meio quebrado e o meu coração partido, cambalhotas e acabou com o rosto alguém notar alguma mudança em mim.
porque, na verdade, eu não era violento enfiado na areia. Cultivava autodomínio e já não quebrava
e nem gostava de violência. Mas... afinal O agressor, de peito estufado, bradou: as pessoas por nada. Inquirido sobre a
eu não podia levar desaforo para casa. ― Isso é pra você aprender que eu não razão, a explicação era simples, embora,
Naquela tarde bonita, de um verão levo desaforo pra casa. talvez, não entendida por todos:
escaldante, minha mãe pediu-me para ir Nesse ponto eu já estava chorando de ― Apenas aprendi que é melhor levar
à mercearia do centro da vila comprar tanto rir. A cena foi muito engraçada. desaforos pra casa. É mais seguro… e
ovos. Lá estava eu, depois de sair da Chorava mais ainda olhando o franzino menos feio.
mercearia, virando a esquina da lá no chão, mais parecendo um frango
pracinha quando tudo começou. Os dois destroncado. Ele tanto balançava a
garotos pedalavam suas bicicletas em cabeça como esticava e encolhia o
direção oposta, cada um querendo pescoço, na tentativa de livrar-se da
passar primeiro numa faixa estreita areia. Por fim, sentou-se, cuspindo a
onde a rua estava sendo consertada. areia da boca e removendo a que podia
Nenhum deles conseguiu atingir o alvo e, do rosto. Caminhou com uma calma
em grande velocidade, acabaram por se inacreditável para o agressor, que agora
chocar com violência. O resultado foi estava montado na roda dianteira da
uma bela queda; uma bicicleta com a sua bicicleta, tentando endireitar o 
roda dianteira meio quadrada e a outra guidom. Sem tempo para defesa, o
com o guidom virado para trás. franzino desferiu tantos golpes de mãos
e pés ao mesmo tempo, que a pena dos

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Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DESAFORO SE LEVA
PRA CASA
O motivo da conversa naquele dia, no
intervalo do trabalho, foi problemas no
casamento. O meu colega se casara uns
dois anos antes e comentava como
entendia agora porque tantos casais se
separam. Logo colocamos o “seu Pele”
na conversa. Nunca perguntei a razão
desse apelido, mas era um senhor de
raça negra, cuja cabeça grisalha
mostrava a vivência e sempre gostava
pensando em trocar de carro e queria passar a me zombar por estar, naquele
de passar suas boas experiências. Ao
antes trocar algumas ideias com quem dia, no mundo da lua. Expliquei apenas
incluí-lo na conversa esperávamos
entende melhor do assunto. Queria que havia aprendido uma lição e estava
aprender uma boa lição. Em tom de
comprar o carro do Sérgio, o meu pensando nela.
narrador o experiente senhor contou a
vizinho. Veículo bem cuidado, de bela
história:
aparência. “Ao entrar em casa, minha esposa
estava a um canto do sofá, terminando
“Naquela tarde um tanto cinzenta, o
“Na oficina, depois de inteirar-se das de pintar as unhas. Parei, por instantes,
que era comum naquela cidade grande,
intenções do meu amigo, o seu Paulo olhando-a fixamente. Incomodando-se,
eu caminhava pela calçada de mãos
ponderou por alguns instantes e ela perguntou:
enfiadas nos bolsos, chutando as
raciocinou com o Beto:
pedrinhas que se atreviam a fazer frente
“- O que foi?
aos meus pés. Acabara de sair de casa
“‘- Hum, é verdade que o carro do
chateado com minha esposa.
Sérgio está muito bonito, mas pense um “E eu convidei:
pouco, Beto. Muitas vezes só não
“Mergulhado em pensamentos eu
estamos contentes com o que temos “- Vamos sair essa noite?
rememorava os quase cinco anos do
porque temos opções. Seu carro é tão
nosso casamento. Definitivamente, o
bom quanto o do Sérgio. É verdade que “- Com amigos? Ela inquiriu.
nosso relacionamento não ia bem. Eu
ele tem alguns defeitos, mas você está
pensava seriamente em me separar
cônscio deles e isso é uma grande “- Não! Respondi.
dela. Afinal não havia motivos para me
vantagem. Você vê em outro carro
prender a um casamento que não
apenas seus atrativos, mas sendo “- Hoje quero olhar pra você, sem
funcionava bem, cheio de defeitos e
apenas uma máquina produzida pelo ser opções.
problemas. Eu era jovem e boa pinta.
humano imperfeito, também tem
Havia muitas garotas jovens e bonitas
defeitos. E tais você não conhece, o que “Quando passei por ela percebi a
no meu círculo social. Muitas delas com
pode lhe resultar em prejuízo pela troca.’ expressão de quem nada entendera,
atrativos e qualidades que minha
mas fomos para um lugar diferente e
esposa sequer sonhava em possuir. E
“Nesse ponto da conversa passei a não solitário.
sem aqueles defeitos irritantes dos
ouvir mais nada. Novamente me perdera
quais eu já me cansara. É verdade que
em pensamentos, sentindo nas palavras “No dia seguinte à tarde, quando saía
muitos foram ajustados com o tempo,
do bom homem a sabedoria que me para ir ao supermercado, o meu vizinho
mas... não, não estava dando mais para
faltava para enfrentar e resolver meus Sérgio estava chegando de carona com
aguentar.
problemas, em vez de apenas fugir o seu Paulo mecânico. Seu carro havia
deles. De novo de mãos nos bolsos, a um fundido o motor.
“De repente, um carro parou ao meu
canto da oficina, permitia que meu olhar
lado e a voz alegre do meu amigo Beto
envergonhado se perdesse no vazio, “Hoje, uns vinte e cinco anos depois, e
me acordou daquele turbilhão de
enquanto me sentia martirizado pela a ventura de criar um lindo casal de
pensamentos negativos.
covardia da fuga. filhos, ainda sou por demais apegado à
Instintivamente entrei no carro para
minha esposa. Ah, e o Beto já não tem
acompanhá-lo a algum lugar por perto,
“Quando saímos da oficina foi fácil aquele carrinho. Afinal, um carro não
como sempre fazíamos. Logo ele
para o meu amigo notar o meu estado de dura para sempre. Mas um casamento
explicou que estava indo à oficina do seu
perplexidade e, galhofeiro como era, pode durar.”
Paulo, o nosso mecânico. Estava
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

PODE SER FRIO,


MAS É BONITO

Quando me preparava para ir para o desses, ele me explicava que eu não muito interessante: eu não estava
Japão realizar certo trabalho, uma das gostava porque não conhecia, mas que, sentindo tanto frio. Então, refleti
principais preocupações dos amigos e no inverno seguinte, eu também já profundamente na capacidade de
parentes era com o rigor do inverno estaria nessa expectativa. adaptação do ser humano. E como
naquela parte da Terra. Todos sabiam muitas vezes antecipamos o sofrimento
muito bem que eu detestava o frio e Foi justamente em companhia desse pelo exercício de uma mente negativa.
louvava os dias ensolarados e as noites rapaz que eu saí de casa certa manhã. Como foi fácil perceber agora que nada
quentes do meu rincão. Confesso que a Ele parecia mais uma criança que que existe, especialmente na natureza, é
lembrança do que viria pela frente não chegara ao dia de receber um muito dotado de um todo negativo! Mas tudo
me agradava muito. Sempre que via esperado presente. Com um sorriso tem o seu lado bonito, saudável, ou, de
aqueles quadros lindos de montanhas zombeteiro me deixou saber que a alguma forma, benéfico. Precisamos
nevadas e lagos congelados comentava previsão do tempo apontava para uma apenas ver, sentir esse lado bom nas
que podia até ser bonito, mas era muito forte nevasca. Não tardou muito ela coisas ruins.
frio para o meu gosto. chegou.
À tardinha, do terraço do meu
A viagem estava marcada para a Confesso que até hoje não esqueci apartamento, no quarto andar,
primavera naquele país, mas mesmo nosso primeiro encontro. Olhando para contemplávamos as montanhas em
assim telefonei várias vezes antes de baixo na rua vi uma cena ímpar. O vento volta da cidade. Não é possível
partir para saber como estava o tempo. soprava manso e parecia mais que tufos descrever a beleza nem o sentimento.
Felicidade tremenda foi sair do de algodão caíam aos montes sobre a
aeroporto suando, ouvindo as pessoas terra. Ao se aproximarem eram O meu amigo se aproximou e
reclamando do calor que já estava soprados pelo vento e desenhavam perguntou:
fazendo. Costumavam falar-me de como todos uma curva idêntica, flutuando por
seria insuportável o calor dos meses à vários metros acima do solo até - E então, gostou?
frente, com temperatura elevada e tocarem suavemente o chão,
grande umidade. Isso me deixava mais derretendo-se imediatamente. Logo a Apenas respondi:
animado e esperançoso. Passou muito atmosfera foi tomada por um branco só,
rápido, porém, o que chamam de verão completo, total. Simplesmente não há - Muito! É muito, muito bonito!
naquela região. Não demorou e as folhas possibilidade de descrever o misto de
já estavam se pintando e soltando-se admiração e assombro que me tomou Ele questionou:
dos galhos. Um vento frio já começava a conta naquele dia. Era beleza demais
soprar e o medo do que viria pela frente para se contemplar. - Não o ouvi reclamar do frio hoje.
era agora mais ameaçador. Não tardou
muito e eu já começava a duvidar se À medida que o carro passava pelas Então eu completei, sorrindo:
suportaria. E ainda nem havia chegado a plantações de chá, já cobertas pela
neve. neve, a beleza crescia ainda mais. Era - Não sei se todos poderão entender
impressionante a ondulação perfeita, tantas lições contidas em apenas uma
Nesse ponto conheci um rapaz nativo mais parecendo o trabalho de um perito frase:
muito empolgado com a época. A artesão. Ficamos longo tempo sem
expectativa das nevascas parecia ser a pronunciar uma palavra sequer, É melhor aprender a admirar a beleza da
própria razão da sua existência. Contava extasiados pela grandeza daquele show neve do que reclamar do frio que ela
os dias e seguia com atenção e profundo gratuito e magnífico. traz.
interesse todos os noticiários que
mostravam a previsão do tempo. Como Quando chegamos a casa, notei algo
eu não podia entender um sentimento
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

A MODÉSTIA É LOUVÁVEL
QUANDO NÃO COÍBE VALORES

Já fazia algum tempo que eu me dos sentidos, o que para mim era sentimento ainda estava ferido e agora
afiliara ao escotismo, mas era a primeira natural, criado nas selvas como fora. estava decidido a provar que as
vez que participava de um Quando terminaram os jogos eu havia aparências enganam, de fato. De forma
acampamento de todo o grupo, numa somado uma quantidade espantosa de que arrumei minha cama como se lá
região bastante selvagem. Acampamos pontos, o que me levou a ganhar uma estivesse e deslizei por baixo do pano
no Pontal do Sucuriú, no que é hoje o chacota elogiosa do chefe: da barraca, me ocultando nas macegas
Mato Grosso do Sul, não muito distante ― “É... as aparências enganam, hem? numa posição estratégica.
do grande rio Paraná. Quando vi esse guri hoje pensei que Após alguns minutos de silêncio
Na inspeção de sábado à tarde o chefe fosse mais um pó-de-arroz que iria dar profundo, quebrado apenas pelo
do grupo me notou e meu monitor trabalho no acampamento. Mas nunca vi crepitar do fogo que os vigias
explicou que eu já estava na patrulha há um novato tão esperto!” Isso não mantinham aceso, senti a aproximação
algum tempo e estava me saindo bem. O diminuiu a minha cisma pelas do ladrão. Prendi a respiração quando
chefe usou de certo sarcasmo, autoridades. ele passou bem perto de mim,
comentando: Durante o fogo de conselho, mais uma deslizando como uma serpente. Quando
― Pode ser, mas acho difícil um vez apareci sem querer. Ocorre que enfiou o braço para dentro da minha
cabeludinho desse se sair bem no havia participado em teatro na escola e barraca, falei ao seu lado:
movimento escoteiro. Tem mais cara é me dera mais ou menos bem; gostava ― É melhor não mexer nessa barraca.
de bandeirante. muito de representar. Como meu Ele virou a cabeça rapidamente e
Aquilo mexeu comigo, pois, nunca monitor e eu havíamos ensaiado muito sentou-se com destreza me estendendo
cortara o cabelo curto, desde que viera bem algumas esquetes, quando foram a mão esquerda, num cumprimento
para a cidade. Naquele tempo a onda de apresentadas o sucesso foi geral. Todos escoteiro.
cabelos longos tomava conta de tudo, e se contorciam de tanto rir das nossas Após a inspeção daquela manhã o
a maioria das instituições não via tal apresentações. O chefe usava o lenço de chefe anunciou a contagem dos pontos.
onda com bons olhos. Eu já havia tido pescoço tentando enxugar o rosto Os meus ultrapassaram o que era de se
problemas na escola e agora ouvia banhado de lágrimas, enquanto a banha esperar que um escoteiro somasse
aquele comentário ofensivo. Senti-me balançava gostosamente. Isso, durante todo o acampamento. Senti
um tanto intimidado, pois, não era dado naturalmente, me valeu mais alguns vontade de sumir quando todo o grupo
a autoridades. Elas sempre me metiam pontos. irrompeu em fortes aplausos. Mas a
medo, dando a impressão de que No fim do fogo de conselho o chefe lição ficou marcada para sempre em
existiam para punir e, na minha anunciou que naquela noite haveria minha vida: ser modesto e humilde, sim;
modéstia natural, não gostava de "ladrão" no acampamento. Esse é um mas nunca permitir que essas
chamar a atenção. Preferia ficar no meu jogo em que um escoteiro é designado qualidades coíbam os valores.
canto, sem aparecer. Isso me como ladrão e tenta roubar as barracas
entristecia, pois, já entendera que essa durante a noite. Os que tiverem
modéstia excessiva, às vezes, atrofiava pertences roubados perdem pontos e o
meu progresso. ladrão ganha. Quem conseguir pegar o
À noite, enquanto todos se ladrão ganha uma boa soma de pontos.
preparavam para o fogo de conselho, o O ladrão designado naquela noite era
chefe convidou os que já estavam um pioneiro bem experiente e bom
prontos para participar de alguns jogos. rastejador, conseguindo roubar todas as
Avisou que valeria pontos. Como eu já barracas, menos a minha, pois sempre
me aprontara me reuni aos que ele se aproximava, minha cabeça se
participantes, não imaginando que erguia. Mas eu queria mais do que evitar
chamaria tanto a atenção. Todos os ser roubado; queria pegar o ladrão. Meu
jogos envolviam rastejamento e o uso
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

RESPEITO SIM, MEDO NUNCA

Naquele mesmo acampamento, naquela fui da maneira como estava vestido, estava de pé. Segui-o novamente e não
mesma manhã, foi lembrada a atividade assim como os outros, embora o tardamos a alcançar o volumoso rio.
incomum daquele dia. O grupo iria para a comissário envergasse um impecável Alguns ainda se vingaram, tendo
cidade, visto que o time de futebol dos uniforme. coragem para dar um mergulho e
escoteiros deveria disputar a semifinal deslizar um pouco rio abaixo numa
do campeonato municipal naquela Após uns vinte minutos de caminhada câmara de ar de pneu de caminhão que
manhã. Ficaria no acampamento apenas demos num pantanal sem saída, alguém havia levado.
uma patrulha de serviço, da qual, mesclado de grandes árvores e capim
naturalmente eu não fazia parte. Pedi ao navalha em abundância. Cipós Logo partimos e a decisão foi
meu monitor para ficar, visto que ele entrelaçados e espinheiros de toda contornar o pântano, o que parecia mais
também ficaria. Ele, por sua vez, pediu espécie impediam a penetração. O guia rápido e suave. Agora corríamos alegres
ao chefe do grupo e a permissão foi da patrulha era um jovem robusto, pelas trilhas de animais, quando o
concedida. escoteiro sênior, bem experimentado e comissário deu com o pé num toco e
decidido. Logo ele avançou contra a rolou violentamente pelo chão. A julgar
Não gostei, porém, do que fiquei inóspita floresta, abrindo caminho a pela rapidez que inchou e escureceu,
sabendo logo a seguir. Deveríamos facão. Eu o segui logo atrás, não devia ter quebrado algum osso. O pobre
receber logo mais a pessoa do imaginando que dali nasceria uma homem andava mancando com grande
comissário distrital, que faria uma visita grande e duradoura amizade, e dificuldade, variando entre caretas e
ao acampamento. Era uma grande imaginando menos ainda o que gemidos. Foi aí que chegamos ao que
autoridade e parece que não haveria enfrentaríamos juntos. parecia ser uma estrada de água
modo de não nos cruzarmos de alguma serpenteando entre as árvores, agora
forma. Quando eu preparava alguns Entre picadas de insetos, cortes de mais escassas. Decidimos atravessar
cabides para o uniforme, ele chegou. capim navalha, arranhões de galhos e por ali. Então, tive uma ideia. Amarrei
Vestido à vontade como estava, apenas espinhos, e os pés dilacerados sabe-se uma corda naquela câmara de ar e
de short, fiz questão de continuar o meu lá pelo que, lutamos por duas horas ofereci ao comissário deitar-se nela
trabalho a um lado da barraca. Meu contra aquele fim de mundo. A altura da para que eu o puxasse através da água.
monitor e outros graduados receberam água variava dos meus joelhos até o Ele relutou um pouco no seu orgulho,
o comissário e passaram a mostrar-lhe o peito, mas era impossível nadar. Quando mas foi vencido pela dor e cansaço.
acampamento. De ouvidos afinados ouvi a água foi diminuindo e surgiu um Quando a profundidade aumentava, eu
quando a autoridade se referiu a mim. gramado seco fomos simplesmente nos mordia a corda e nadava.
Meu monitor me chamou e eu corri a me jogando ao chão. O sangue marcava
apresentar, naturalmente com o corpo todas as faces e a parte superior do Quando conseguimos chegar ao
saltando por dentro. corpo onde a água não lavou. O inchaço acampamento um toque de corneta
nos rostos já aparecia, resultado de reuniu as patrulhas que nos procuravam.
Outra vez tive de suportar a mesma tantas picadas. Diante dessa cena Fomos cuidados e alimentados, mas não
referência à minha aparência delicada e comovente tive de conter a custo a sem muita zombaria dos amigos.
aos cabelos longos. Fiquei aliviado gargalhada quando divisei o comissário Descansava ao lado do comissário
quando todos se reuniram e o saindo da floresta. O pobre coitado mais quando ele me agradeceu. Ele já não me
comissário expressou o desejo de fazer parecia um pão amanhecido que fora era uma temível autoridade, mas um
uma jornada até a barranca do rio jogado na lama. Todo inchado e amigo de jornada, dono da mesma
Paraná que, pelos seus cálculos, ficava arranhado, as meias caídas, a camisa fragilidade de qualquer ser humano.
bem próximo. Preferia ficar de vigia no toda suja pra fora da calça. O chapéu, Hoje já não sinto as dores daquela
acampamento a ter de partilhar a pouco antes impecável, já não tinha jornada, mas ainda sinto a força do que
companhia daquela autoridade, mas a forma. A aba mais parecia um tobogã. aprendi com ela: respeito sim, medo
minha sede de aventura me deixou feliz nunca.
quando o chefe escalado para chefiar a Muito firme, porém, o comissário
patrulha me escalou para ir junto. Visto lembrou que o objetivo era chegar ao rio
que se tratava de atividade extraoficial Paraná e, não acabara de falar e o guia já

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

É A EXPRESSÃO
QUE DOMINA
A REAÇÃO

Para quem sempre gostou de prestar bem colocadas, mas a sinceridade do tranquilamente.
atenção para aprender dos outros, que transmitimos é expressa pela nossa
aquela palestra foi deveras instrutiva. face e nossos gestos. Precisamos tocar a campainha, pois o
Aquele orador tinha mesmo a habilidade vigia não dera sinal de vida. Quando sua
de penetrar na mente e fazer raciocinar. ― Imagine ― continuou ele ― dona nos atendeu não foi difícil notar
Viera da matriz à nossa filial justamente como não seria convincente, numa noite seu espanto pelo silêncio do cachorro,
para algumas palestras e treinamento enluarada, um gorila nervoso, de cara pois ela disse, parecendo que consigo
do quadro de vendedores. Fiquei muito fechada, batendo um punho cerrado na mesma: ''ué... nem ouvi o cachorro latir".
interessado em aprender com ele, pois outra mão aberta e dizendo para sua
sempre me esforcei em fazer com que amada: "eu te amo, meu amor, eu te Ao sairmos daquela casa o supervisor
qualquer pessoa com quem fale, amo". Da mesma forma, é fácil notar a me pediu para ter paciência até
entenda com clareza o que desejo falsidade na demagogia de tantos encontrarmos outro cachorro, o que não
transmitir, quer seja um conselho, uma políticos, porque não conseguem tardou a acontecer. A primeira parte da
sugestão ou uma venda. De forma que demonstrar sinceridade nas suas cena se repetiu, mas o tom agora era
me senti muito feliz ao saber que iria promessas absurdas. Até em líderes outro. Áspero, com voz dura, expressão
trabalhar com ele no dia seguinte, religiosos é fácil notar a apenas facial fechada, olhar acusador e gestos
conversando com as pessoas em suas aparente santimônia ao expressarem bruscos. Novamente, o contraste eram
casas naquela redondeza. crenças que eles mesmos não têm. as palavras:

No dia seguinte lá estava eu, entre Ouvi tudo muito atento (e ―Venha cá seu cachorrinho
nervoso e curioso, na reunião matinal. naturalmente, às vezes, rindo), mas o bonitinho, valente, cheiroso. Venha cá,
Após alguns lembretes nos dirigimos ao supervisor parece que não se convenceu amigão...
trabalho, e logo se dissipou aquele de que havia me convencido. De modo
receio da autoridade quando notamos o que me pediu para prestar atenção. E tanto mais ele usava adjetivos, mais
supervisor brincando com os cachorros o cachorro latia e pulava. E, ao destacar
nas casas. Ele tinha uma tremenda Ao nos aproximarmos da próxima as qualidades mais desejáveis, ele batia
habilidade de "conversar" com eles e porta, um cachorro correu para as o pé no chão, e o cachorro mais pulava e
parecia que os animais realmente o grades com cara de bravo e já latia. Naturalmente nem foi necessário
entendiam, até parecendo responder- começando a rosnar. O supervisor tocar a campainha e logo a dona da casa
lhe. começou a falar com ele num tom apareceu, tentando acalmar o seu feroz
amigável, com voz macia, expressão vigia. Depois de falarmos com ela
Depois de algumas demonstrações facial dócil, olhar lânguido e gestos descemos pela rua até uma pracinha
perguntei-lhe sobre o que achava ser suaves. Interessante, porém, eram as próxima, local de encontro com os
mais importante na arte da palavras: demais. Eu estava admirado com a
conversação. Ele me explicou que há um veracidade da ilustração. Naturalmente,
conjunto de fatores muito importantes, ―Sai seu cachorro nojento, seu não era necessário me dizer nada, mas o
porém, no seu entendimento, um fator fedorento, feioso. Sai seu sarnento... supervisor me olhou com um olhar
que se destaca é a expressão facial convencido e perguntou:
correta acompanhada de gestos E continuou nessa ofensiva toda até
condizentes. Podemos até empolgar que o cachorro lambeu seus dedos por ― E então, viu como é a expressão
uma assistência com palavras bonitas e entre as grades, balançando o rabo que domina a reação?

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

É MELHOR APRENDER
POR OBSERVAR DO QUE POR SENTIR

Lições fazem parte da nossa vida, do sérios erros podem até ser aceitáveis, e sua força, atirando-me longe nas águas
dia a dia, de toda hora. Basta outras, de aparente menor importância, escuras. O susto foi tão grande que não
prestarmos atenção às coisas que nunca são admitidas. Uma destas é a consegui pensar, nem me lembrar de
acontecem à nossa volta. Mas eu tive de mentira. Ela é simplesmente inaceitável, nada, nem mesmo que "aprendera" a
aprender isso por sentir na pele. Uma inadmissível, imperdoável. A ideia é que nadar mais cedo naquele dia com o meu
das lembranças mais antigas da minha não existe razão para mentir e que, atrás primo. Eu apenas me debatia de modo
infância ainda faz doer. Depois desse da mentira existe o engano, a traição, a frenético, afundando e voltando à
aprendizado percebi que é melhor destruição. superfície em grande desespero. Cada
aprender por observar do que por sentir. vez que vinha à tona via a imagem calma
Naquela tardinha meu pai convidou- da canoa flutuando com meu pai
Aconteceu por volta dos quatro anos me para a pescaria, o que estranhei tranquilamente fazendo o seu trabalho e
de idade, ainda vivendo numa região muito, pois, ele nunca me levava naquele o meu irmão imóvel, assistindo meu
selvagem e primitiva. Meu pai sempre horário, dado o perigo devido aos martírio. Quando ele percebeu que eu
me perturbava pelo fato de já ter essa jacarés e grandes cobras. Certificou-se, não suportava mais, atirou-se na água e
idade e ainda não saber nadar. Aliás, porém, que meu irmão fosse junto. O sol levou-me para a canoa. Quando subiu,
todos sempre me perturbavam por desmaiava numa tarde amarela e olhou apreensivo para o pai que, por sua
alguma moleza ― como eles realçava a beleza do lugar, criando vez, fitou-o com um olhar duro e
chamavam ― como não gostar de sombras na baixada e dando aos montes corretivo, mas apenas dizendo:
caçar ou andar sozinho na mata. Todos uma agradável palidez. Quando
os dias quando nos banhávamos no entramos na canoa a noitinha já ― Por que você o tirou? Ele disse
grande rio, me esforçava para aprender ameaçava chegar. que já sabia nadar...
a nadar, mas sem grandes resultados.
Certo dia, quando já íamos embora, vi Desde aquele tempo, ainda tão Deitado no fundo da canoa eu sentia o
um dos meus primos chegar correndo, criança, abrigo o mesmo sentimento mundo inteiro balançar. Não sabia se
saltar no rio e nadar com grande leveza. com respeito a essa hora do dia. O morria a tarde ou se era eu. Apenas
Pareceu-me, naquela hora, que nunca crepúsculo vespertino não me é muito sentia que qualquer raio de luz que
prestara muita atenção a como se faz agradável; deprime, entristece. E restasse, sumia rapidamente. Não sabia
para nadar. Agora, de repente, pareceu- naquela tarde, de um modo especial, se doía mais o meu tão lavado canal
me muito fácil e eu fiquei muito feliz, já pois eu sentia que alguma coisa não respiratório, se o meu peito perdido em
imaginando a volta ao rio no dia seguinte estava bem naquele "passeio" e meu tanta tosse, ou se era o meu orgulho
para demonstrar minha descoberta. irmão parecia sentir a mesma coisa, ferido. Meu pai nunca mais tocou no
Cheguei à casa todo eufórico e logo pois, ninguém dissera ainda uma só assunto. Não era necessário, eu havia
contei a novidade ao meu pai, mas tão palavra. aprendido a lição. Ao abrir a boca, nunca,
animado estava que afirmei já saber nem sequer dar a ideia de mentira. Mas
nadar. Ele pareceu não se empolgar, A canoa deslizou suave cortando a eu aprendera mais, muito mais do que
apenas comentando que já estava na corrente até um grande remanso onde o isso.
hora. rio se alargava ainda mais, reduto de É melhor aprender por observar do que
grandes jacarés que descansavam nas por sentir.
Alguns costumes são interessantes na ilhas flutuantes de taboa. De repente,
cultura do meu povo. Algumas coisas senti as mãos fortes do meu pai
que normalmente são consideradas erguendo-me pelos braços e, com toda

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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

OLHANDO O LAGO

Não é nada fácil viver quando a restaram do trabalho do outono uns, é o motivo da paz de outros.
maioria das coisas à nossa volta parece precipitaram-se para dentro do lago,
estar trabalhando contra o nosso cobrindo-o por inteiro, maculando sua Bem, era hora de ir embora e,
propósito. Para mim, uma das maiores beleza. Isso me irritou e eu saí andando contornando o lago, voltei ao
dificuldades enfrentadas é quando dou novamente, remoendo a ideia de que estacionamento. Mas não sem admirar
meu melhor a favor das pessoas e sou nem o lago fica livre da podridão alheia. mais uma vez aquela maravilha. E mais
mal interpretado. E aquela fase estava Sim, as folhas secas, podres, que já não uma vez fiquei surpreso ao ver o lago
difícil, parecia que não ia passar. Eu servem para as árvores, estas as tranquilo e sereno. Os patos apenas
procurava entender. Sabia que as descartam para dentro do lago. flutuavam a um canto, à sombra de
pessoas estavam tremendamente grandes árvores. Alguns mergulhavam
estressadas, numa vida difícil, naquele Caminhei por uma trilha no parque, de vez em quando, buscando algum
país estrangeiro. Mas, às vezes, os tiritando, pois, fazia muito frio, mas petisco. Isso aumentava a beleza da
agravos acabavam me afetando. tentando me refazer com aquela superfície das águas, formando
sensação de liberdade que só a natureza pequenas ondas.
Naquela manhã de inverno eu estava pode dar. Logo depois de uma curva
especialmente triste. Fora dormir na cheguei a um ponto em que o lago A serenidade do lago era outra vez
noite anterior com a cabeça aparecia novamente, e... que surpresa! O contagiante. Parecia adormecido,
transbordando de problemas e acordara vento se transformara numa brisa descansando num berço de sonhos,
com os mesmos pensamentos. Agora eu mansa, quase imperceptível, e todo alheio aos males do mundo. Nem sequer
estacionava o carro no Parque Sul e aquele monturo de folhas estava bem parecia sentir a intempérie e os ataques
descia para caminhar um pouco, amontoado a um canto, como que que lhe eram desferidos como parte do
enquanto meditava nas dificuldades. ordenadamente arrumado para algum pagamento pela beleza e calma que ele
"Por que as pessoas precisam ser tão tipo de uso. E o lago voltara àquela tão bondosamente espalhava à sua
ingratas como são hoje em dia? Por que calma e serenidade contagiantes de volta.
ferem justamente a quem lhes estende alguns minutos atrás.
a mão ou os pacíficos que nada lhes Sorri tranquilo e satisfeito, sabendo
fazem de mal? Ah...! É muito difícil Quedei-me imóvel por algum tempo, que encontrara a paz e serenidade que
manter a paz e serenidade tão como que sugando tudo aquilo que o precisava para enfrentar o dia a dia.
necessárias". lago podia me transmitir. Foi quando o Voltaria ali muitas vezes, não sei se
furioso grasnar de uma centena de apenas para relaxar ou, quem sabe, para
Neste ponto dos pensamentos patos tomou conta do ar. Parece que, aprender um pouco mais, olhando o lago.
cheguei à beira do lago e parei, assustado com alguma coisa, o bando
admirando sua beleza. Quanta paz e saiu de entre as árvores e voou para o
serenidade tomavam conta do lago! lago. Eu quase pude sentir aquelas
Quisera ser como ele... Tamanha a sua tantas garras rasgando a superfície do
placidez que transportava o céu para o lago numa tamanha ingratidão. E outra
chão numa pintura que, certamente, vez foi maculada aquela tão grande
nenhum artista jamais conseguiu beleza. E outra vez voltei a caminhar, um
retratar tão perfeitamente. Azul... tanto mais calmo agora. Parece que a
calmo... sereno... caminhada me fizera bem. Agora
pensava em como aqueles patos podiam
De repente, um forte vento gelado me gostar tanto do inverno. Eram aves
fez estremecer e uma enorme migratórias, só vistas ali naquela época
quantidade de folhas secas que do ano. É... parece que o que incomoda

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

OS ESPINHOS
SÃO NECESSÁRIOS

Eu estava numa daquelas fases do que fui fazer por ali, mas acabei com para continuar o seu bordado, enquanto
difíceis quando todo vento sopra o braço arranhado profundamente por completava o raciocínio com meu pai:
contrário e a tempestade parece não um espinho bem afiado. Olhando o
acabar nunca. Naquela noite acho que sangue minando no braço cerrei os “― Assim como ele, será que você
pensei um pouco alto, deixando escapar dentes furioso, pois não gostava de ser não está se arranhando nos espinhos?
uma aparente reclamação e minha ferido. Empunhei a faca de modo mais Não será o caso de aprender a lidar com
esposa me contestou: firme e, num golpe, decepei um espinho. eles?
Aí descobri algo muito interessante
― Não é você que sempre diz que os para uma criança. Bati a faca em outro “Eu continuava lá fora, um tanto
espinhos são necessários? espinho e confirmei o fato. Era gostoso envergonhado e pensativo, preocupado
golpear o espinho e senti-lo saltar com o que fizera. Depois disso, via todos
― Sim. ― Concordei. ― Mas, às secamente da haste. E assim foi: top, os dias aquela haste murchando até que
vezes, eles arranham tanto, e tanto top, top, desde o botão até próximo do se secou por completo.”
sentimos que nos esquecemos da chão.
beleza da rosa. Minha esposa ouviu atentamente e
“Quando já estava terminando o achou a história muito interessante,
E pela primeira vez ela teve a "serviço", minha mãe desconfiou de logo me perguntando:
curiosidade de me perguntar de onde eu alguma coisa errada e chegou à porta.
havia tirado essa ideia, de sempre Ainda posso ver sua testa franzida e os ― Agora você está sendo arranhado
ilustrar, de modo otimista, com os olhos arregalados, me dizendo: por espinhos ou está se arranhando
espinhos da roseira. E eu contei: neles?
“― Mas o que é que você está
“A cena ainda era viva na minha mente. fazendo?! Está matando a roseira? Olhei para ela de modo profundo e
Meu pai estava sentado num banco respondi:
tosco, com o olhar vagando pelo vale “Diante da ideia de matar fiquei logo
verdejante do início da primavera, assustado. Não tinha a menor intenção ― Olha, no momento não tenho
parecendo um quadro emoldurado pelos de matar a planta, de forma que logo me certeza, mas sabe de uma coisa? Nossa
batentes da pequena janela. Minha mãe, defendi: vida é uma linda roseira. Vamos
ali perto, bordava uns panos de prato. aprender a lidar com os espinhos e fazer
Ele reclamava das dificuldades pelas “― Não estou matando, só tirando os com que se revertam em proteção.
quais estava passando, aparentemente espinhos. ― E apontando para o braço
muito grandes, dado o seu tom de voz sangrando: ― Olha o que ele me fez. Fui dormir mais tranquilo naquela
carregado de preocupação, quase noite. Nos dias à frente parece que a
melancolia. Minha mãe tentava ser “Aí veio a explicação: tempestade começou a se acalmar e os
otimista e o animava com a ideia de que ventos contrários já não sopravam tão
na vida nem tudo são flores, às vezes os “― O espinho não lhe arranhou. Você fortes.
espinhos machucam. se arranhou nele. Além disso, os
espinhos são necessários para a vida da Assim como no passado eu ia todos os
“Eu estava do lado de fora brincando roseira. Sem eles ela não sobrevive e dias ver aquela haste que secava, passei
com minha faca, instrumento com o qual nem dá uma linda rosa. Essa haste vai a procurar todos os dias olhar para uma
sempre me dei muito bem, desde a morrer. Não corte mais os espinhos, roseira e me embevecer com a beleza da
infância. A roseira estava vistosa está bem? Apenas tenha consciência rosa, mas também olhar para os
naquela época, carregada de botões que eles existem e podem arranhar, mas espinhos e me lembrar de que eles
prestes a desabrochar. Não me lembro são necessários. E voltou a sentar-se também são necessários.

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

O ÚLTIMO CATETO

Acredito ter de agradecer muito pelo que marcáramos um acampamento do árvore, aguardando a chegada do bando.
fato que sempre que precisei, tive um jeito que eu mais gostava: informal e em Não demorou muito e meus ouvidos
incentivo no momento certo. Aquela apenas três pessoas. Seria afiados captaram o ruído crescente das
fase de desânimo estava um pouco acompanhado apenas pelo Perigoso e batidas atemorizantes das fortes
difícil de me deixar. Sempre me mais um amigo bem experiente na vida mandíbulas. Tratamos de subir na árvore
destacara entre os primeiros alunos da mateira. Iríamos numa picape até onde e nos camuflamos bem.
escola, praticamente em todas as fosse possível na selva, até as margens
matérias. Mas agora nada me parecia do rio Sucuriú, e dali subiríamos o rio O bando aproximou-se e o Perigoso
valer a pena o esforço. Nas aulas de num barco de alumínio de nove metros, esperou pacientemente que todos
educação física sempre fora ajudado equipado com um motor de 20 cv. fossem passando bem embaixo da sua
pelo meu corpo elástico, mas agora, nem inseparável espingarda. Quando todos
na natação, que era o que eu mais Não tardou a chegar o dia e logo me vi passaram, ele mirou no último do bando
gostava, estava me saindo bem. subindo o rio, respirando aquela brisa e o abateu com apenas um tiro. Os
que parecia me renovar a vida. Aquela demais deram um pulinho para frente e
Aquele sempre amigo professor de região era selvagem e praticamente continuaram na sua caminhada trilha
português não tardou a notar minha intacta, um verdadeiro paraíso natural. afora. Logo, o Perigoso, com ares de
visível indiferença e sentou-se comigo Bandos de araras de todas as cores orgulho, explicava:
num dos intervalos das aulas para coloriam o ar em grande alarido. Na
considerar o assunto. Visto que ele verdade, aves de incontáveis espécies ― Essa é a única maneira de caçar
mencionou o fato de eu ser um dos criavam a sinfonia que eu mais gostava um cateto com segurança. Ocorre que
primeiros, expliquei-lhe que não estava de ouvir. Enormes jacarés descansavam eles não têm vértebras no pescoço, de
nem um pouco preocupado de ficar para ao sol, dividindo as margens do rio com forma que não olham para os lados nem
trás. Ele aceitou o meu argumento, mas grande variedade de outros animais. para trás. Assim, atirando no último, os
raciocinou comigo: demais continuam caminhando sem
Acampamos numa clareira à beira do atacar.
― Não estou lhe dizendo que tem de rio, quando a tarde já vinha caindo,
ser o primeiro, mas ficar para trás pode trazendo aquela paz que só a natureza Não era preciso muita explicação, eu já
ser perigoso. Imagine um grupo numa pode dar. Nenhum animal serviria de mergulhara numa profunda reflexão. Ao
tempestade de areia no deserto e sinta caça para o Perigoso naquele descermos da árvore e preparar o
o perigo maior que corre o último da fila, acampamento a não ser um cateto. Ele transporte da opulenta caça, eu
quase desgarrado dos outros. Ou um estava decidido a saborear um assado rememorava as palavras do bom
grupo perdido numa nevasca e você no dia seguinte. Normalmente eu professor.
separado dos demais, alguns metros sempre ficava preparando o
atrás. Sem dúvida, ao passo que não acampamento, mas naquela tarde, por Foram três dias de grande gozo e
precisamos ser exatamente o primeiro, algum motivo, eu o acompanhei. Embora alegria naquele magnífico santuário da
ficar para trás pode ser perigoso. fosse muito experiente na vida mateira, vida silvestre. Mas para vencer a minha
eu não era bom nas estratégias de caça fase de desânimo, bastou o primeiro
Prometi me esforçar mais, agradeci com armas de fogo, visto que as acontecimento marcante. O último
pela grande preocupação, mas não detestava. Mas isso não era problema cateto me impressionara. Realmente,
consegui cobrar ânimo. Estava para o meu amigo. Logo, ele detectou ficar para trás pode ser perigoso.
esperançoso com respeito a alguns dias uma trilha do esperado animal.
de folga que teríamos pela frente, visto Acomodamo-nos debaixo de grande
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

NUNCA CRITIQUE O QUE NÃO CONHECE

Mais uma vez eu ficara chateado com interior do veículo que o vidro suava. de chuva. Como sempre, o motorista
minha filha. Garota esperta, inteligente, Concordei e aproveitei a oportunidade manobrou o carro com agilidade e o
cheia de boas qualidades nos seus dez que tanto esperava. deixou na direção de saída. Enquanto
anos de vida, porém, aquele problema aguardava os patrões passava um pano
estava difícil de ser resolvido. Às vezes ― Imagine ― propus ― se uma no lado de dentro do para-brisa. Foi aí
criticava sem razão algo que não pessoa que não soubesse disso a visse que alguém, naturalmente na sua grande
conhecia bem. E mais uma vez chamei limpando o vidro por dentro e a simplicidade e falta de conhecimento,
atenção para o fato, explicando que criticasse por querer limpá-lo por fora, observou, como que pensando alto:
agimos de modo desarrazoado quando mas passando o pano por dentro só pelo
falamos sobre um assunto sem fato de o vidro ser transparente, não ― É, Negão, você pode ser muito
conhecê-lo, especialmente quando o seria essa pessoa desarrazoada e bom motorista, mas é meio burrinho.
fazemos de modo negativo. No entanto, estúpida? Será que você pensa que vai enxugar
não falei muito como de outras vezes. esse vidro limpando por dentro?
Sabia que precisava algo mais profundo Ela respondeu com um sorriso
do que apenas explicações para marcar desdenhoso: Os outros riram e fizeram seus
sua mente e tocar seu coração, comentários em tom zombeteiro,
ensinando de uma vez por todas, uma ― Ah, mas todo mundo sabe disso. concordando com o observador. Eu fixei
simples, mas grande lição. os olhos naquela cena como que
Então lhe expliquei que não é verdade tentando gravá-la na mente, sem sequer
Logo depois daquela conversa saímos e contei-lhe a história: imaginar que aprenderia com ela.
de casa. Era uma manhã de outono e a
cerração estava densa. Era difícil “Lá naquela fazenda em que Muitos anos depois, já me
enxergar dois metros à frente. Quando morávamos quando eu era criança, o acostumando com os carros na cidade,
entramos no carro que estava na rua não motorista do fazendeiro chamava a vi alguém limpando o para-brisa por
era possível ver nada pelo para-brisa. atenção pela sua perícia ao volante. A dentro e recordei o fato passado. Notei
Logo ela pegou uma flanela no porta- colônia de lavradores ficava à beira de que realmente o vidro fica úmido por
luvas e começou a limpar o vidro por uma linda represa, na parte mais baixa, e dentro e, consequentemente,
dentro. Expliquei-lhe que não adiantava; a sede da fazenda ficava na colina, a embaçado. Lembrei-me daquela crítica
o embaçamento era devido ao acúmulo certa distância. Sempre que o e notei que fora totalmente infundada. E
de neblina pelo lado de fora. O limpador fazendeiro vinha à fazenda, creio que como sempre, nas minhas reflexões,
de para-brisa resolveria o problema. nos finais de semana, as pessoas concluí que não há sabedoria na crítica
simples daquele tempo ficavam a do desconhecido.”
Enquanto ligava o carro alguma coisa admirar as manobras daquele carrão. O
me veio à mente. Olhei para a menina motorista era um negro de bom porte, e A menina ouviu a história toda em
que ainda passava a flanela no vidro e muitas vezes ouvi adultos comentarem, silêncio. Eu também não acrescentei
uma cena da infância me reportou ao no seu típico linguajar interiorano: mais nada. Acreditava não ser
passado. Perguntei por que ela ainda necessário. De fato, daquele ponto em
limpava o vidro. Ela respondeu que o ― Êh, Negão!... Esse Negão parece o diante foi sensível a sua melhora. A
vidro estava suado por dentro também. capeta! história provara a estupidez de criticar o
Perguntei por que isso acontecia. No seu que não se conhece.
entendimento ainda limitado ela Mas a cena que marcou a minha mente
explicou que era devido ao calor no infantil foi a que ocorreu num certo dia
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

O PEDREIRO
CONSTRÓI
O CASAMENTO

Houve certa época na minha vida que eu eles, o que foi suficiente para iniciar a tom de concordância:
mais parecia um conselheiro conversa. ― É...
matrimonial, tantos eram os casais mais De modo animado, mas com uma clara E o rapaz completou:
jovens com problemas à minha volta. tristeza no tom da voz, explicaram que
Mas certo casal tinha algo de especial, não conseguiam mais ver outra saída. E ― Acho que entendi o ponto.
estranho. Casados há pouco, diziam se outra vez desfiaram um longo cordão de E como já se esgotara o tempo livre
amar demais, tinham objetivos comuns desacertos e desacordos. Durante longo que tínhamos, as despedidas concluíram
e, apesar de tudo, a palavra "separação" tempo explicaram, ora um, ora o outro, a conversa daquela tarde. O jovem casal
já era constante na sua vida. como pequenas coisas do cotidiano os agradeceu mais uma vez pela atenção e
Já gastara muito tempo com eles na irritavam e afastavam cada vez mais um hospitalidade. E apertando a mão do
tentativa de encontrar as causas dos do outro. pedreiro, expressaram gratidão pela
seus problemas que, na verdade, nem E mais uma vez eu me pus a recapitular simples, mas contundente ilustração.
sequer existiam. A complicação era que com eles tanta coisa que já havíamos Acabaram por não definir exatamente o
suas ações do dia a dia os afastavam um considerado, tentando encontrar o que que fariam.
do outro, em vez de unirem. Ora um não não fora aplicado e o que poderia ser de Já não me lembro se as coisas
suportava o fato de ter sido ofendido ajuda. Quando, no fim da conversa eles mudaram depressa ou se fui eu que,
sem um pedido de desculpas, ora o agradeceram pelo meu esforço em como sempre, logo depois mudei-me
outro calado por dois dias inteiros, ajudar e já faziam menção de ir embora, dali, mas nunca mais falei com aquele
ofendido sabe-se lá pelo quê. o meu amigo, até então calado, pediu casal sobre os seus problemas. Apenas
Agora parece que haviam mesmo licença e explicou o seguinte: nos encontrávamos, de vez em quando,
chegado à ruptura e queriam conversar ― Olhem, para quem está de fora só em algum evento em comum. Tanto
comigo mais uma vez. Marcamos um escutando como eu, é fácil ver onde está tempo depois, recentemente nos
horário numa tardinha de domingo na a raiz do problema de vocês. É o mau uso encontramos numa dessas ocasiões. E
minha casa. Quando eles chegaram das pequenas ações do cotidiano. São como sempre, me cumprimentaram
ainda estava lá um amigo meu, nossos pequenos atos, pequenos sorridentes. Eles aprenderam a
construtor, que era um ministro gestos, simples expressões, que atraem construir uma casa que abriga.
religioso muito experiente, acostumado ou repelem as pessoas. Vejam bem,
a lidar com problemas alheios. Logo, ele vocês sabem que eu sou pedreiro. Há
quis sair discretamente, se despedindo, anos que todos os dias junto pequenos
mas o casal que conhecia o bom tijolos para construir grandes edifícios.
conceito de que ele gozava na Sempre que vou começar uma nova obra
comunidade local, pediu para que ele tem um monte de tijolos a um canto do
ficasse e também participasse da terreno vazio. Assim como as ações do
conversa. Ele concordou e voltou a se dia a dia, com esse mesmo monte de
ajeitar na poltrona. tijolos eu posso construir uma casa que
Enquanto tomávamos um chá, abriga ou um muro que separa.
perguntei àquele meu amigo se Todos os olhares estavam fixos no
acreditava que aquele casal tão bonito e proferidor de tão sábias palavras e
sorridente estava para se separar. Ele pareciam perguntar pela sequência.
ficou surpreso e comentou que os dois Mas, por instantes, o silêncio foi total.
mais pareciam a própria estampa da Ele havia falado tudo. Algum tempo
felicidade. Comentei o que ocorria com depois a moça quebrou o silêncio, num
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DO SIMPLES É QUE VEM O MAIOR PRAZER

Eu ainda não me acostumara com companhia, minha amizade, meu amor? irritação. Já não sabia o que fazer para
aquela enorme fábrica no ABC paulista Eu tinha certeza que não estava errado, colocar algumas coisas na cabeça do
onde fora parar. Era ainda um jovem mas, às vezes, a pressão da maioria me seu filho. Conversamos mais no
assustado com o poderio da grande incomodava. Logo vieram, porém, as intervalo do almoço e ele explicou
metalúrgica que, na década de 70, ajudas para me tranquilizar. Bastou melhor. Sempre que comprava um
estava em plena expansão. As pessoas prestar atenção. brinquedo novo para o garoto, só durava
mais me pareciam dentes de uma Um dos meus colegas chegou ao um dia. No dia seguinte ele o encontrava
grande engrenagem que rodava sem trabalho um tanto triste, certo dia. No todo desmontado pela casa e o menino
parar. Eu não queria me transformar intervalo do almoço eu quis saber o que brincando com caixas vazias de papelão.
naquilo, de forma que não trabalhava estava acontecendo. Ele contou que No dia anterior ele o encontrara dentro
mais do que as horas normais dos cinco havia ocorrido um problema de queda de uma grande caixa, com um pano preto
dias da semana. Acreditava em valores de energia elétrica na fábrica na noite de guarda-chuva velho amarrado no
espirituais e queria aumentá-los na anterior, de modo que ele foi embora pescoço, cobrindo as costas.
minha vida. Queria acompanhar de perto mais cedo. O que o chateou foi que seu Falamos muito sobre a criatividade
o desenvolvimento da pequena filha que filhinho de menos de dois anos de idade das crianças e sua capacidade de
já tinha, bem como da de outras que o estranhou e ficou muito nervoso com a imaginação. Um carrinho eletrônico do
viesse a ter, provendo-lhes a melhor presença do pai. Ele nunca antes vira o último tipo será sempre um carrinho,
educação parental possível. pai em casa à noite, nem com o uniforme mas uma caixa de papelão vazia será um
Entendia que, na minha inexperiência, da fábrica. carrinho agora, um navio daqui a pouco,
eu precisava aprender para ensinar. O que mais me ensinou, porém, foi o um avião amanhã e assim por diante.
Incomodava-me um pouco, porém, o ocorrido com aquele meu colega Lembramos-nos de como brincávamos
conceito diferente de todos à minha maçariqueiro. Era um homem de meia felizes quando crianças, no interior, com
volta. Meus colegas de trabalho idade, firme, retratando bem o típico as coisas mais simples, mas sempre
moravam na fábrica e passeavam em interiorano meio seco, meio bruto. A era cheios de grandes ideias.
casa. Criticavam-me pela vida que da eletrônica havia chegado e lucrava Depois da conversa o colega ficou
levava, gastando tempo com pessoas lá muito com ele. Comprava para o filhinho mais calmo e conformado. Ao voltar ao
fora, sem ganhar nada, enquanto deveria de uns quatro anos de idade todo novo trabalho, eu lhe agradeci, sem que ele
estar, na opinião deles, ganhando mais lançamento que aparecia. Quando me entendesse por quê. Acabara de firmar
dinheiro para dar uma melhor condição falava com orgulho da última novidade mais ainda a minha convicção de que as
de vida para minha família. adquirida, eu não podia deixar de pensar coisas complexas nascem de grande
Peguei-me várias vezes preocupado, um pouco. Minha filha, naturalmente, criatividade, mas a grande criatividade
pensando se afinal eles não tinham tinha muitos brinquedos, porém, mais nasce das coisas simples, assim como
alguma razão. Eles eram, na maioria, simples. Gastávamos muito tempo os grandes prazeres da vida.
pessoas de vida difícil do interior assim passeando nos parques, ou em boa
como eu. O conceito geral era: "eu nunca associação com amigos, quando ela se
tive nada, por isso vou dar tudo que deleitava em brincar com outras
puder para meus filhos." crianças. Será que precisava mais do
Mas era exatamente isso o que eu que isso? A resposta não tardou.
queria para minha filha ― dar-lhe tudo O meu colega maçariqueiro estava
o que pudesse ―, mas num sentido muito irritado naquela segunda-feira de
pleno. De que adiantaria dar-lhe tudo, manhã e, quando veio cortar uma chapa
mas lhe negasse meu tempo, minha para mim, falou do motivo da sua
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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DESEJO DOS OLHOS,


CANSAÇO DO CORPO

A situação econômica do país não carro e até casa. Uma grande loja Apenas respondia as minhas perguntas
estava boa. Os juros andavam chegou ao extremo de promover a troca com poucas palavras. Só esticou um
novamente em alta e os crediários outra de todos os móveis da casa numa pouco a conversa para reclamar do
vez em voga. A propaganda comercial facilidade aparentemente incrível. O cansaço e da tolice que cometera ao
tomava conta de todo veículo de pagamento? Ah, poderia ser em 24, 36 e assumir tão grande dívida. Quando
comunicação, sempre com a mesma até em 60 meses, às vezes. O valor da tentei animá-lo dizendo que afinal
tônica: usufrua desde já e pague em prestação mensal era muito pequeno. alcançara um objetivo e tinha agora uma
muitos meses. Com um pouco mais de esforço a pessoa casa renovada, ele levantou-se num
Certa noite admirávamos a beleza e poderia pagar. Foi nessa armadilha que gesto desalentado, olhou-me nos olhos
conforto de um novo carro num jornal caiu certo amigo meu. pela primeira vez e reclamou:
quando minha esposa arriscou a ideia de “O Chico trabalhava numa firma em “― Que objetivo eu alcancei? Não sou
que, à prestação, poderíamos comprá- que nunca faltava serviço. De modo que, dono de nada do que tenho. Aquilo que
lo. Ela já esperava o rápido movimento se trabalhasse algumas horas a mais, possuo é que é dono de mim. É assim,
da minha cabeça, lançando sobre ela um poderia renovar toda a sua casa. Foi à moço... o desejo dos olhos é o cansaço
terrível olhar de desaprovação que, loja com a esposa e logo notou que não do corpo. Se você quer saber, ainda não
embora sem nenhum som, gritava alto. era tão fácil pagar as prestações se me sentei naquela poltrona para
Ela conhecia bem meu conceito sobre comprasse os móveis que queria. Os que descansar. Ainda não tive tempo.
compras à prestação, mas nunca quisera apareciam nos comerciais, “Saí dali chateado por não conseguir
saber a fundo como eu o estabelecera. naturalmente eram muito simples. Mas animar o meu amigo, mas com a certeza
Naquela oportunidade, com um sorriso agora, lá na loja, ante aquela maravilha de mais uma base estabelecida para
disfarçado, se desculpou, mas quis toda era difícil não comprar. conduzir a minha vida.”
saber por que eu era tão avesso a “O que ficou mais caro no orçamento Ao terminar a narrativa, minha esposa
crediário. do meu amigo foi um magnífico jogo de concordou:
Minha ideia era que quando eu devia estofado, todo em couro, muito prezado ― Realmente, é melhor não ter tudo,
alguma coisa a alguém me tornava na época. A casa do Chico ficou mas não dever nada.
escravo de tal. Acreditava ser melhor a realmente nova, muito bonita e bem E brincou:
economia para conseguir adquirir algo montada. Mas depois do dia em que ele ― A propósito, você está me
que, no momento, eu não podia. Não me mostrou a reforma, não mais o vi por devendo aquela viagem às montanhas
acreditava ser proprietário de alguma vários meses à frente, embora passasse do sul. Quando é que vai pagar?
coisa se esta não tivesse sido pela sua casa em direção à minha. Respondi que poderia programar para
completamente paga. Gostava de falar, Quando perguntava por ele à sua o próximo feriado.
cheio de orgulho: "Não tenho tudo, mas esposa, ela dizia que ele estava Quando ela indagou se seria mesmo
não devo nada". E agora, diante à trabalhando muito, até tarde da noite e possível, respondi cheio de orgulho e
pergunta da minha esposa, contei-lhe na maioria dos domingos. muito satisfeito:
como estabelecera essa base em minha “Uns três meses depois de vê-lo pela ― Claro, não devemos nada pra
vida. última vez passei por ali certo dia de ninguém.
“A época era de ascensão do crediário. manhã e o vi, sentado na mureta da
O comércio teimava em fazer com que varanda. Parei para conversar um pouco
todos acreditassem na facilidade de e o notei um tanto desolado. Estava tão
adquirir qualquer coisa que antes a cansado que não conseguira ir trabalhar
pessoa nunca pudera. A propaganda naquele dia. E nem mostrou um pouco
mostrava a facilidade de trocar móveis, mais de ânimo com a minha chegada.
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LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

A QUEDA DE UM REINADO NÃO SIGNIFICA O FIM DE UM REI

Entre tantas mudanças na vida, brincavam livres e nem sequer diferente. Em vez de um acampamento,
algumas parecem mais difíceis de imaginavam o tipo de mundo que as estava sendo construída uma cidade,
serem aceitas. Numa dessas enfrentei esperava. A região ainda era selvagem, mas ainda não havia quase nada, apenas
grande dificuldade com uma das minhas do jeito que eu gostava. E foi aí que eu abundante terra vermelha por todos os
filhas. Passamos vários anos naquele construí meu mundo, meu reinado. lados. No fim de semana eu não tinha
lugar que ela aprendeu a gostar. Foi ali Dominava o tempo e o espaço. Naquela nada para fazer a não ser andar de
que passou boa parte do período tranquilidade e simplicidade de vida, bicicleta entre as construções com um
escolar, entrou na adolescência e fazia as minhas próprias leis, vivendo ao único velho amigo que encontrei por lá.
planejou seu futuro. Agora, bem no meio ar livre, usufruindo a natureza que eu Numa certa tarde nos sentamos numa
de um curso, via seus planos serem tinha por mãe. Foi nesse ambiente que grande pedra para observar o pôr do sol
frustrados. Por mais que argumentasse eu cresci, fui à escola, cheguei à refletido nas águas do grande rio
com ela sobre as vantagens e os novos adolescência e me afiliei ao movimento Paraná, tendo do outro lado as matas
desafios da mudança, bem como a escoteiro, vivendo as aventuras que verdejantes do Mato Grosso do Sul. Foi
necessidade, permanecia triste e ainda fazem parte das minhas doces aí que ele me disse: "Você precisa
descontente. Certa noitinha, numa recordações. reconstruir sua vida. A queda de um
dessas baterias de argumentação, Infelizmente chegou o tempo das reinado não significa o fim de um rei." Eu
lembrei a ela que pior foi para mim... E aí mudanças. A construção da usina estava ainda contra-argumentei: "No meu caso
me calei por instantes, sentindo todo chegando ao fim e parte dos não foi uma queda, foi a destruição."
um passado passar pela mente como um funcionários seria enviada para outra Mas sua mente esperta já estava
raio em apenas alguns segundos. Ela construção, porém, muitos seriam preparada, de forma que acrescentou:
nem perguntou o que, tão dispensados. Aquela vila seria "Um bom rei não perde a coroa quando
desinteressada estava, mas depois que desmontada e o lugar completamente perde o reino. Ele aceita o desafio da
lhe contei a história passou a se abandonado. Quando meu pai trouxe a reconquista." Não dissemos nenhuma
esforçar mais em aceitar melhor a amarga notícia que fora dispensado eu palavra a mais, a não ser quando nos
mudança. já estava trabalhando na cooperativa despedimos mais tarde.
Quando eu tinha a mesma idade que local e não acompanhei a família na No próximo feriado após isso aquele
ela tinha na época, tive que aceitar a mudança. Fui morar numa sala onde fiel amigo me levou para acampar num
destruição literal do meu mundo. Por ficava a sede dos escoteiros, num pantanal selvagem do outro lado do rio.
vários anos morei naquele lugar ímpar, complexo hospitalar construído na Foram três dias de retorno ao paraíso.
diferente de qualquer outro que floresta, mas que nunca fora usado. Não Ao regressar cruzamos o rio numa balsa
pudesse haver no mundo. Era uma tardou e eu comecei a sentir a dor da e, quando subimos o ancoradouro, o
pequena vila, acampamento dos perda da família. Não sabia que era bom amigo comentou que eu estava
construtores da usina hidrelétrica de apenas um arranhão em tudo que ainda melhor ultimamente. Parei e, depois de
Jupiá. A vila fora construída num lugar tinha para perder. Com o término das fitá-lo nos olhos em silêncio, deixei o
muito bonito, às margens do grande rio obras cada vez mais pessoas eram olhar vagar pelas águas avermelhadas
Paraná e próximo ao rio Sucuriú, no transferidas ou dispensadas. Conforme pelo reflexo da luz do entardecer. O pôr
Mato Grosso do Sul. Era toda construída os conjuntos de casas eram do sol estava magnífico. Os raios do
em madeira e em forma circular. A desocupados passavam a ser astro rei já não feriam os olhos. Era
avenida central era um grande círculo, desmontados. Eu passava horas possível olhar diretamente para ele.
dentro do qual ficava o centro sentado à distância, observando a Enorme bola cor de sangue deslizando
comercial, administrativo e de lazer, em destruição. E me destruía com cada suavemente atrás da curvatura da Terra.
volta de uma linda praça gramada e altas telha que caía, com cada tábua Procurei os olhos do leal amigo e vi,
palmeiras. Em volta da avenida central arrancada. Vi a casa em que morava se refletido na alegria do seu rosto, o meu
nasciam as ruas em círculos crescentes desfazer, os amigos partirem e meu sorriso. E fiz minhas as suas palavras:
até a avenida perimetral que, por sua mundo ruir completamente. "Um bom rei não perde a coroa quando
vez, era cercada por matas primitivas. Foi nesse desespero que me perde o reino. Aceita o desafio da
Não havia brigas, mendigos e nem transferiram para a Ilha Solteira, na reconquista."
movimento de carros. As crianças construção da nova usina. Ali seria
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