Prefácio Carpeaux

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Otto Maria Carpeaux: Dante e a Divina Comédia

postado em A Divina Comédia, Dante Alighieri, Editora 34 por


julianabrina
(Texto de Otto Maria Carpeaux. Fonte ao final.)
 

Epopéias são leitura difícil. O gênero morreu há muito, deixando


inúmeras falhas e uns poucos monumentos grandiosos que
representam épocas passadas da humanidade; por isso, é
indispensável conhecer Homero e Virgílio, Ariosto e Spencer,
Camões, Tasso e Milton. Mas é mais fácil admirá-los do que gostar
deles. Se desaparecessem todas as imposições da escola e da
convenção de uma “cultura geral”, teríamos de confessar que as
grandes epopéias são hoje pouco legíveis. É preciso estudá-las;
teremos de admirar inúmeros pormenores geniais e o plano
grandioso; mas é impossível lê-las assim como se lê uma obra de
literatura viva. Dante é a única exceção.

É possível ler a Divina Comédia assim como se fosse uma obra de


hoje, apesar das mil dificuldades criadas pelas alusões eruditas e
políticas. É uma obra viva, capaz de despertar paixão e entusiasmo;
porque não é uma epopéia. Entre as grandes obras da literatura
universal às quais a convenção chama “epopéia”, a Divina Comédiaé a
única que não tem nada que ver com os modelos antigos. Nem
sequer com a Eneida, apesar de o autor desta ser um dos personagens
principais da obra de Dante. A Itália, herdeira imediata da civilização
latina, nunca foi “primitiva”; por isso, não produziu “epopéia
nacional” à maneira de La Chanson de Roland (A canção de Rolando),
do Poema de mio Cid ou do Nibelungenlied (A canção dos Nibelungos); e a
Itália burguesa do Trecento já não pôde criar uma epopéia heróica. O
primeiro herói da Divina Comédia é Virgílio, que aparece como
encarnação da Razão; o último herói da Comédia é “La Somma
Sapienza” (O Supremo Saber), inspirada pelo “primo amoré” (primeiro
amor). São antes, ambos, os pólos – homem e Deus – entre os quais a
ação se desenvolve. Mas aDivina Comédia não tem ação; não tem
enredo. O único elemento que liga os versos, reúne os cantos, junta
as três partes, é a pessoa do próprio poeta, constantemente presente.
Do começo do inferno até o fim do Paraíso, é Dante que fala. É uma
obra de expressão pessoal, uma obra lírica, no sentido da estética
crociana: o lirismo é o centro vital da obra de arte. Por isso, a Divina
Comédia vive.

O título, algo estranho, corresponde a uma estética desaparecida: a


“comédia”, segundo Dante, seria um poema que começa por coisas
penosas para terminar em felicidade, assim como a história sacra da
humanidade começa com o pecado original e termina com a redenção.
Neste sentido, Dante pode chamar “comédia” à sua obra cósmica,

“[...] l’poema sacro

Al quale há posto mano e cielo e terra.”

(“[...] este sacro poema / no qual têm posto a mão o Céu e a Terra.”)

Dante é o construtor de um Cosmos. O julgamento unânime dos


leitores de todos os séculos concorda em um ponto: que a parte mais
“interessante”, mais humana, do Cosmos dantesco, é o “Inferno”; e
nesta afirmação se esconde um dos julgamentos mais graves que já se
pronunciaram contra a humanidade. A viagem de Dante pelo Inferno
é o seu “cammin di nostra vita” (caminhar de nossa vida); da porta pela
qual todos entramos – “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” (Deixai
toda esperança, ó vós que entrais) – através do pré-Inferno dos
covardes e indecisos, que são os marginais da sociedade cósmica.
“Non ragioniam di lor, ma guarda e passa” (Deles não cuides mais, mas
olha e passa) – através das tempestades vertiginosas da sensualidade,
através das florestas dos avarentos, irascíveis, traidores, suicidas,
sodomitas, prostitutas, até àquelas paisagens terríveis que nunca
existiram e que, desde Dante, passaram a existir para sempre: “Luogo
è in Inferno detto Malebolge” (O lugar que no Inferno se nomeia
Malebolge). E até ao círculo mais profundo, em que os diabos
parodiam o cântico celeste: “Vexilla Regis prodeunt…”, a Giudecca de
Dante, o lugar da punição de Judas, é o último abismo possível da
perversidade humana. Mas não é menos real a paisagem úmida do
Purgatório, úmida de lágrimas de arrependimento. E as vozes da
emoção humana tampouco silenciam no Paraíso, nos discursos
apaixonados dos santos contra a corrupção na Igreja e na confissão
humilde do poeta perante o último mistério. O “Paraíso”, em que
Dante conseguiu tornar visível o invisível e dizível o inefável, é o mais
alto cume que a expressão humana jamais atingiu: talvez seja o cume
da literatura universal.

No mais, a arquitetura do poema, com a sua simetria total nas partes


e no todo, não permite qualquer decomposição analítica. Tudo está,
nessa obra implacável, implacavelmente ligado. Ligado também pela
arquitetura do verso, pelo metro incomparável da terza rima que
Dante inventou: em que a primeira linha rima com a terceira e a
segunda com as linhas 1 e 3 do terceto seguinte, e assim por diante,
de modo que – era esta a vontade expressa de Dante – nenhum verso
pode ser tirado ou interpolado sem que as rimas revelem o crime:
a Comédia é um todo, um mundo só.

A crítica anglo-americana moderna tem, por isso mesmo, considerado


Dante o maior “arquiteto” poético de todos os tempos, o autor em
quem melhor se pode estudar a “estrutura” poética. Mas nem sempre
tem sido esta a opinião da crítica italiana. E, sobretudo, não
concordariam os leitores leigos, menos sensíveis aos valores
estruturais e mais abertos à beleza lírica dos episódios.

Pois são os episódios que antes de tudo se gravaram na memória da


humanidade: episódios que são poemas completos, como o romance
de amor entre Paolo e Francesca da Rimini; como a história terrível
de Ugolino; como o relato misterioso e quase profético de Ulisses
que, impulsionado por indomável curiosidade de conquistar novos
horizontes, submergiu no mar além das colunas de Hércules. Estes
episódios são a leitura dantesca preferida dos séculos. Ainda um
crítico tão grande como De Sanctis, embora reconhecendo a
imponente unidade da construção do poema, preferiu este ou aquele
episódio para interpretá-lo em profundidade. Opuseram-se a esse
processo crítico os eruditos. Durante cinco séculos, já a partir do XIV,
realizaram trabalho imenso para explicar as inúmeras alusões
históricas e políticas de que o poema está cheio e que, com o tempo,
ficaram cada vez menos compreensíveis ao leitor comum. Sobretudo
no século XIX, reinado do positivismo, extraíram da Divina
Comédia um panorama completo da Itália do século XIII, panorama
que começou, enfim, a ter existência própria ao lado do poema.
A Divina Comédia foi propriamente substituída por um imenso
“romance histórico-científico” em prosa, obra dos eruditos, coroada
pela exposição completa da teologia, filosofia e política dantescas,
fundamentada por verdadeira astronomia e geografia do Outro
Mundo de Dante, no qual chegaram a determinar as datas do
itinerário do poeta e medir a altura das montanhas e abismos do
Inferno.

Contra essa erudição dantesca lançou Benedetto Croce seu grito de


batalha. Habituado a distinguir, até nos maiores poetas, entre os
elementos poéticos e os não poéticos, rejeitou energicamente, como
“não-poesia”, toda a “máquina” alegórica, todo o “romance teológico-
filosófico”, para guardar, como poesia verdadeira, só os episódios.

Mas não é possível separar os elementos; nem é justo rejeitar o


grandioso esforço arquitetônico de Dante. ADivina Comédia é um
edifício colossal, cuja unidade está garantida justamente pelas
convicções religiosas, filosóficas e políticas do poeta; e pela terza
rima. Mas a campanha crítica de Croce teve efeito de tempestade
purificadora. Relegou para limites mais razoáveis a crítica erudita,
restabelecendo os direitos da crítica estética. Depois de havermos
devidamente admirado a arquitetura do poema, podemos voltar a
sentir com a beleza lírica dos episódios.

Há mil episódios: Paolo e Francesca da Rimini, Farinata, Brunetto


Latini; Ulisses, Ugolino, Cato, Manfredo, Sordello, os Santos – mas
só uma pessoa está sempre presente em todo o poema: o próprio
Dante, fazendo a sua confissão pessoal, lírica, identificando-se com a
humanidade inteira: a sua viagem pelo outro mundo é “Il cammin di
nostra vita” de todos nós. Mas como poderemos nós outros identificar-
nos com esse homem medieval e com o seu mundo alegórico e
abstrato? Logo se admite que não é abstrato um mundo em que as
metáforas e comparações de realismo intenso nos apresentam
paisagens imaginárias e no entanto inesquecíveis – o próprio Goethe
chamou a atenção para a “veracidade” impressionante das
montanhas, florestas e desfiladeiros do Inferno. A alegoria só serve
para esconder mais um sentido secreto que Dante julgava da maior
importância:

“O voi ch’avete li ‘ntelletti sani,

Mirate La dottrina Che s’asconde

Sotto ‘l velame de li versi strani.”

(Inferno, IX, 61-3: “Ó intelectos sadios e judiciosos, / entendei a


doutrina disfarçada / sob o velame dos versos curiosos”)

Mas, justamente por isso, os versos são “strani”, e aquela pergunta


subsiste. Pergunta de importância transcendental: a vida de quase
toda a literatura do passado – a própria continuidade da nossa
civilização – depende da nossa capacidade de realizar a “suspension of
disbelief”, a “suspensão temporária de incredulidade”, que Coleridge
exigiu para que a Divina Comédia seja compreensível a outros
homens além dos católicos florentinos do século XIV.

O caminho para esse fim abre-se na poesia lírica de Dante. A Vita


Nuova, o romance do seu amor místico, é, para tanto, o caminho de
preparação: canto da dona “tanto gentile e tanto onesta”, profundamente
sentido, apesar das formas convencionais, a Vita Nuova pretende
ensinar-nos a compreender as fases da purificação lírica do poeta,
através dos três reinos, até o Paraíso, “luce intellettual, piena
d’amore” (luz intelectual, cheia de amor).

Há uma atmosfera fria, quase irrespirável, em torno de Dante, do


homem que se purificou aproximando-se da perfeição celeste.
Nenhuma outra criatura humana sugere de tal modo a impressão do
gênio e da sua solidão imensa. Mas essa solidão não é a do artista,
afastado do mundo. É a do homem político, do homem de partido,
derrotado pelos adversários e exilado da pátria. Dante pôs tudo
na Comédia: seu amor, sua religião, sua erudição, e sua paixão
política. No fundo, a Comédia é um panfleto político como nenhum
outro foi escrito, antes ou depois, uma tentativa de aprisionar nas
“flamas cantantes das suas terzinas” os inimigos vitoriosos, o Papa e
os seus aliados, os “republicanos” dos “comuni”. Enfim, o exilado já
não quis pertencer a partido nenhum; em isolamento glorioso, tinha
“fatta parte per se stesso” (tomado o seu próprio partido). Continuava
fiel ao seu imutável credo político, a unidade do Império cristão sob o
condomínio do Imperador e do Papa; e quando viu derrotado esse
ideal, apelou para a posteridade: seu libelo de apelação é a Comédia.

Discutiu-se a ortodoxia do poeta ortodoxíssimo, porque o seu ideal,


profundamente católico, fora abandonado pelo próprio Papa. Como
universalista medieval, Dante é reacionário, mesmo em relação à sua
própria época; o seu tratado De Monarchia é o erudito discurso
fúnebre da monarquia universal da Idade Média. Deste modo, Dante
não tem, politicamente, nada que dizer-nos, como já não tinha que
dizer, politicamente, aos seus contemporâneos. O recurso não chegou
ao endereço. Mas chegou à posteridade como obra de arte, porque – o
caminho da História é paradoxal – empregou o instrumento soberano
da poética medieval: a alegoria. Pela alegoria, Dante incluiu, na visão
do outro mundo, todas as coisas deste mundo: Beatrice e as ruas de
Florença, os muros de Siena e as basílicas de Roma, o Papa, os
partidos políticos, o Imperador, a filosofia tomista, o arsenal de
Veneza, os Apeninos e os Alpes, trovadores e ladrões, gregos e latinos
– tudo está na Divina Comédia, a cujo autor nada de humano ou infra-
humano está alheio, nem o humor terrivelmente grotesco dos diabos
(“Inferno”, XXI, XXII). De modo que hoje pode haver nas esquinas
das ruas de Florença inscrições que lembram os trechos
da Comédia nos quais o respectivo lugar está citado. Especialmente
para os italianos, o panfleto político transformou-se em enciclopédia
do seu passado. Dante, poeta essencialmente lírico, transfigurou
tudo, inclusive o mais profano, em poesia: os grandes e pequenos
criminosos da sua época, em habitantes imortais do Inferno; a moça
florentina, Beatrice Portinari, em filha filosófica do Céu; e o programa
de um partido político desaparecido, em ideal político dos séculos. O
programa político de Dante não tem importância para nós; mas o seu
ideal político tem muita. Quando Dante pretendeu julgar os seus
adversários, instituiu um sistema de penas infernais, fielmente
conforme a ética aristotélico-tomista, que forneceu as linhas mestras
da composição do seu poema, e conforme a astronomia ptolemaica,
que lhe forneceu os andaimes “científicos” do imenso edifício do seu
Universo. O que Dante desejava era o estabelecimento do primado da
ética sobre a política; por isso, Bonifácio VIII, o Papa político de
Dante, fica colocado no Inferno. Para compreender o idealismo
político de Dante, não se precisa de nenhuma “suspension of disbelief”:
o seu programa está morto e pode seduzir-nos tão pouco quanto nos
aterrorizam as penas do seu Inferno: mas a sua reivindicação de uma
política ética, se bem que utópica, continua como aspiração para
todos os tempos futuros. Neste sentido, aquela parte da Comédia na
qual essa aspiração aparece na forma mais pura, o “Paraíso”, é a parte
mais moderna do poema.

Esta última apreciação não está de acordo com o consenso geral. A


grande maioria dos leitores da Divina Comédia só conhece o
“Inferno”; vence as dificuldades das alusões políticas e históricas, que
tornam indispensável o comentário, para compreender os grandes
episódios que criaram a glória do poema através dos séculos. Uma
compreensão tão fragmentária do “Inferno” não sente escrúpulos,
fragmentando o poema inteiro: o “Inferno”, sim, seria um reflexo
satírico – sátira trágica – do mundo real e por isso acessível à nossa
sensibilidade: o “Purgatório” seria, apenas, repetição mais fraca do
“Inferno”, e o “Paraíso”, enfim, uma abstração, teologia escolástica
em versos; para a grande maioria dos leitores o “Paraíso” não existe.

Ler assim a Divina Comédia significa trair o poeta. Dante é um dos


artistas mais conscientes de todos os tempos; devia saber o que disse
quando atribuiu ao poema, além do sentido literal, vários sentidos
alegóricos: um ético, um religioso, um político. Ao leitor moderno
repugna a interpretação alegórica, levando a artifícios antiartísticos e
às vezes absurdos; e ficamos perplexos quando vemos colocado pelo
poeta medieval o sentido político acima do sentido religioso. Num
poeta medieval, teríamos esperado o contrário. Mas, pensando assim,
estaríamos laborando num anacronismo; a nós, que nascemos depois
de Maquiavel, a política parece negócio moralmente inferior. Dante
pensava de maneira diferente. Para ele, a política era irmã da religião,
e ambas, unidas, guiavam o homem para a paz terrestre e a beatitude
celeste; daí a inseparabilidade, no pensamento político de Dante, do
poder imperial e do poder papal. O que no Céu é religião, na Terra é
política; e o Purgatório é a ponte entre a imperfeição humana e a
perfeição divina. Visto assim, o sentido literal da Comédia – o libelo
contra os vícios do tempo – é a base moral, e portanto indispensável,
do poema; os famosos episódios só tem, para o poeta, valor de
exemplos, e só a imaginação realista do poeta os transformou em
novelas poéticas. Dante é realista, antes de tudo. Todos os críticos
salientaram o realismo das comparações e descrições de paisagens
imaginárias no “Inferno”; mas não são, de modo algum, imaginárias.
O “Inferno” é a paisagem real dos pecados humanos; e porque a força
da imaginação humana tem limites, essa paisagem de montanhas,
desfiladeiros, rios e florestas subterrâneas é o espelho da paisagem
italiana, dos Apeninos e dos Alpes, do Pó e do Arno, iluminada pelo
bem observado “era bruno” (ar dourado), quando “lo giorno se
n’andava” (o dia findava). E a grande cidade infernal não é outra senão
a cidade de Florença, porque -

“Godi, Fiorenza, poi Che se’ si grande

Che per maré e per terra batti l’ali,

E per lo ‘nferno tuo nome si spande!”

(Inferno, XXVI, 1-3: “Alegra-te, Florença, que és tão grande / que as


asas bates por terra e por mar, / e pelo Inferno o teu nome se
expande!”)
O leitor não mude de continente quando “uscimmo a riveder le
stelle” (saímos por ali, a rever estrelas).

Mas aquela limitação da imaginação não existe com respeito ao


“Paraíso”; lá o poeta podia construir livremente o seu mundo de
religião política e política religiosa; o Céu de Dante não é a fantasia
arbitrária de um sonhador, mas um edifício construído segundo as
normas sólidas da lógica escolástica, com os elementos de uma
doutrina religiosa coerente e de uma doutrina política bem elaborada.
Para aceitar esses elementos, nem é preciso a “suspension of disbelief”;
porque, de acordo com as regras da lógica moderna, um sistema de
idéias não precisa corresponder a qualquer realidade exterior; só
precisa não ter contradições interiores. No caso do “Paraíso”, essa
coerência é dada pela poesia, que transforma em realidade dentro da
alma uma utopia irrealizável neste mundo:

“E ‘n la sua volontade è nostra pace”.

(Paraíso, III, 85: “E está na Sua vontade a nossa paz”.)

Do ponto de vista literário – que é, para nós, o quinto sentido da


obra, essa realidade é de natureza musical, conforme as finas
observações de Francesco Flora. O Paraíso de Dante é construído
como uma das grandes fugas, como a própria Arte da Fuga, de Bach. E
quem poderia duvidar da “realidade” dessas abstrações supremas?

O “outro mundo” de Dante é um mundo real, tão real como o seu


criador, que vive ainda, embora saibamos que morreu há seis séculos.
Dante foi vencido na política atual da Itália do século XIV; na política
ideal de todos os tempos, o derrotado realizou a sua visão ético-
política, construindo outro mundo no qual os valores, perturbados
neste mundo, estão restabelecidos. Para esse fim, nobre e utópico,
empregou todos os meios então conhecidos de expressão: as visões
dos monges e os apocalipses dos místicos; a poesia dos trovadores e o
hino dos franciscanos; o dolce stil novo e o humorismo dos diabos,
nos Mistérios; as superstições infernais dos seus antepassados
etruscos e o intelectualismo aristotélico do seu mestre Tomás de
Aquino; e, para exprimir tudo isso, criou, do dialeto florentino, uma
nova língua, a língua italiana, e uma nova literatura, a primeira
literatura moderna do Ocidente. Falando assim, em língua “vulgar”,
Dante foi entendido e permanece entendido até hoje; a cidade na qual
o poeta, no quadro de Domenico di Michelino, aponta com o dedo o
reino da ética e do idealismo religioso, é a Florença de 1300, mas a
advertência convém à nossa cidade também, a todas as cidades.
Dante, grande espírito religioso, é o maior poeta político naquele seu
alto sentido de política, graças à força inédita com que criou a maior e
mais coerente estrutura poética de todos os tempos.

Fonte:  CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental,


parte III (“A Transição”), capítulo I (“O Trecento”). Leya, 2011 (4
volumes).

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