Guilherme Gontijo Flores - L'azur Blasé PDF
Guilherme Gontijo Flores - L'azur Blasé PDF
Guilherme Gontijo Flores - L'azur Blasé PDF
8, 5 cm 14, 3 cm 14, 3 cm 8, 5 cm
21 cm
espere destas páginas mais do que
poemas-piada, obscurantismo e o Leminski
nosso de todo dia.
Não sei quais serão as consequências desta
revelação à carreira do senhor Gontijo Flores.
guilherme gontijo flores (Brasília, 2014) Com sorte, estará morta com o autor ainda
é poeta, tradutor e leciona latim vivo. O Saramago ganhou o Nobel assim,
afinal, então sinto estar desejando só o
na UFPR. Estreou com os poemas
melhor ao autor.
de brasa enganosa em 2013, finalista
Por fim, devo dizer que da distância que
do Portugal Telecom. Em 2014 lançou
escrevo, acho graça sim no livro; um
o poema-site Troiades - remix para
fracasso em fracassar, se quiser. Rio dele e
o próximo milênio. Essas obras deram ou en não com ele, que fique claro. Mas, riamos,
início à tetralogia Todos os nomes saio d por ser poeta e morto o autor, talvez não
o fra
que talvez tivéssemos. Como tradutor, casso sejamos pegos na malha fina do
entre vários outros, publicou sobre
o hum politicamente correto.
A anatomia da melancolia, or
de Robert Burton (2011-2013,
premiado com APCA e Jabuti) Leandro Rafael Perez (mora quase em Diadema,
São Paulo, e é formado em linguística pela USP.
e Elegias de Sexto Propércio (2014). Autor de turnê a meio mastro, 2014).
l’azur Blasé
ou ensaio de fracasso sobre o humor
l’azur Blasé
ou ensaio de fracasso sobre o humor
Organização:
Rodrigo Tadeu Gonçalves & Adriano Scandolara
Notas:
Adriano Scandolara
Posfácio:
Rodrigo Tadeu Gonçalves
Copyright ©2016 – Kotter Editorial
Cristiane Nienkötter
Direitos reservados à
Impresso no Brasil
2016
1ª edição
Sumário
nota ao texto 7
11 parte da ética
35 cítrica
41 acadêmica
55 etílica
63 cataio
71 a vida e as opiniões
do barnabé guilherme gontijo
flores, servidor do estado
85 excurso
notas 93
prefácio interessantíssimo 141
nota ao texto
7
No caso de l’azur, ao contrário dos outros textos
encontrados no computador pessoal do poeta, os poemas
estavam todos agrupados numa pasta física ironicamente
cor-de-rosa, com o título do livro escrito à mão em caneta
azul. Dentro da pasta, uma folha com seu subtítulo,
sem qualquer explicação sobre a origem e a função dos
poemas, todos em folhas soltas sem numeração, porém
agrupados numa divisão aparentemente bem organizada
em subseções: todas as folhas eram impressas, sem indicar
quaisquer alterações posteriores, o que nos sugeriu um
estado avançado de acabamento. Tentamos, tanto quanto
possível, manter a ordem que nos parecia mais certa a partir
da pasta encontrada. Não sabemos, e não saberemos nunca,
se o poeta pretendia dar mesmo à luz estes poemas, se eram
anotações para um projeto futuro, ou meras garatujas.
Os organizadores
8
sacerdote em tolices sutilíssimas
e no gosto impreciso das palavras
(Naharim al-Qabir)
9
parte da ética
11
l’azur
fulguração abismal
do azul do infinito
a braçadas sem
destino — o poeta
diverte-se no
borbulhar repetido
das pernadas na
piscina
13
a bên
ção pai
enquan
to não
te co
mo pe
ço tu
do me
nos u
ma voz
14
cansós
nunca lancei
abraços nessa cruz
coisa de matronas
que beijam
marcas de chicotes
eu
mesmo sendo criada
só cavalgo cavaleiros
15
2
no peito tímido
meu mugido de cervo
enlouquecido em extravios
minha descara
e a donzelice (dentr’
outras cousas)
mui bem perdida
nas ondas do mar de vigo
16
monumento ao falecido poeta laureado
inscriptio funebris
17
o amor é do tamanho de uma pica
(ela gritou (enquanto ele por cima
chegava encabulado e assim fica
tímido com o tamanho dessa rima
(aqui convém sinceridade a pica
nunca tem o tamanho para a rima
(ou assim ele pensa) inda por cima
de encabulado o pau prostrado fica)
mas ela apalpa alegre
alegre o homem
se revigora e segue sem desgrude
até que os dois se fartam sem saber
(ou bem sabendo tanto faz
(o homem
fica e ela trabalha (o hollywood
ninguém mais fuma (agora é démodé))))
18
bruma aparecida
parede
barco
19
o roedor concreto
20
paralaxe pro meu instagram
21
back to the 80’s (ou “como era gostosa a nossa
poesia”)1
(Darcy Ribeiro)
horatiana
fogo de pirra
é o que espirra
sílex
silêncio?
nem quando
pencil
22
passante-trafficjam
cocota maravilha
atrapalhando
a trilha do trânsito
23
nippon-fawcett
sol vermelhaço
rompe o
cabaço da manhã
sem eira
na beira
da cadeira
parado pregado olhando
pra tv
24
mars pathetica
são-joão-harakiri
25
uma gertrude para bartleby
ele prefere a
ele prefere o
ele prefere que
ela prefere
ele prefere o que
ele prefere comer
ele prefere comer batata
ele prefere comer sentado
ele prefere comer poesia
ele prefere
ele prefere canseira
ele prefere pasto
ele prefere sozinho
ele prefere
claro
ele prefere não
ele prefere que
não
ele não
prefere
26
ainda para vinicius f. barth
liquefeito em aquarela
27
moeurs contemporains
Oh boy!
I usually only get this excited
when they say the title
of a movie in the movie.
(Peter Griffin)
28
e é ríspido esse púrpura violento
de fanta uva pousada sobre a mesa
ou recordar tua mão
num cigarro perdido
e ao fundo uma sirene de bombeiros
como inventar uns versos
e dizer que não são meus
l’infini du ciel
c’est l’azur
le plus
blasé
porque de fato
não
são
29
msgs
30
2 em 1
você me odiaria?
você
poderia me passar a cola?”
31
etnoplágio
Nhóóóóóóóóóóóóóin
Nhóóóóóóóóóóóóóin
Nh(friopracaralho*)in
Nhóóóóóóóóóóóóóin
Nhóóóóóóóóóóóóóin
*traduzido do scholovsky.
32
a voz
33
cítrica
35
avalio sucos de limão
por estalos de língua
recortes de azedo
no céu da boca
37
não critiquem minha rima
amor e
dor quem rima
é sempre a
vida
só canto dissabor
com sumo de laranja-
lima
38
poeta ao molho de laranja
na ceia do antropofágico aníbal
lecter – eis a verdadeira
fragmentação
a mais interessante fragment
ação
do sujeito contemporâneo
39
acadêmica
41
el mono-mimo
1.
1. projeto
43
2. escrita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
(respiraanotatraduzindicaanotaretraduzindicaapontaroda
pé)
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
citacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacitacita
(suspiro de vitória)
44
3. conclusão
(comment dire?)
tácita
45
é como aquela
palavra que escapa
e desliza sobre outra
palavra que
escapole
e teima em apontar
outra palavra e mais
outra
até que só nos resta
o silêncio ou o belo
dum
putamerda
e ali carinhosamente aninhar
o desencontro da língua
no desencontro do mundo
46
metáfora
é esta definição
da vida média de uma
macroestrela
ou a cadência
em que me
digo
que estou
vivo?
47
tese primeira — a vida sexual de f. pessoa
certa vez2
48
debaixo do chuveiro
(outras fontes afirmam
que dentro da banheira
de espumas e água quente3)
excessivamente acompanhado – uma
quase sauna solitária4 –
ele por fim
se bolinou5
3 a suposta banheira
(indiscutivelmente não poderia
se tratar de
hidromassagem)
não fazia parte da mobília
pessoana confirmada pelas escavações
bibliográficas mais
recentes
4 a proposta aventada pelos
biógrafos mais
“assanhadinhos”
implica a versão da sauna
de um homem só (cf.
pereira, 1996 passim; nogueira, 1983;
contra junqueira,
1999 – numa verdadeira selva
de citações e contra-
fações) como tópos
heteronímico de matiz
pagã
5 o mote literário da auto-
49
tese segunda — como contar a história
bolinagem é atestado ao
menos desde 1623
numa edição contestável (muitos
implicam um forja
quiçá mal feita
(v. kloptschock, 1942)
da carta
de caminha diante dos índios
roçando suas próprias
“vergonhas” por euforia
entre seus novos espelhos (pp. 521-4)
passando por poemas eróticos anônimos dos
séc. xvii e xviii e desaguando ao menos
em finais do xix
na multimasturbação parnaso-simbolista
entre verlaine e o jovem e ainda desconhecido
rimbaud (cf. putain, 2000, n. 3, p. 2) x
x a metanota – por desgastante
que seja –
não pode ser evitada
se considerarmos que a discussão
biográfica entre os maudits franceses
ainda é um
caso aberto
que põe em cheque toda a
argumentação biobibliográfica de putain
por mais que convincente
50
erfahrung
(c’est très chic!)
pra contar
se bombas sobre bombas são também
as metabombas
são milagres no ar
que
cataplof
explodem sem ninguém
que possa testem-unha-teste-mar
51
tese terceira — torção
Pegue uma palavra banal como grama, esta que a gente pisa e
você pesa no tédio do cotidiano ou na força incompreensível
dos dias de sol, e a faça retornar direto ao gramma grego
da letra, um μ a mais, um alfabeto alheio, a γράμμα, essa
causa arcaica da nossa gramática, gramatologique ou não,
ou grammar, mundo da regra gravitacional das tradições,
e veja que na escócia desandou em glamour, corruptela
popular com sentido de magic, enchantment, encantamento,
glámsýni ilusório, agarre-se a esse mesmo glamur, ou glamor
esbanjado pelas nossas divas, que tradutoriamente também
chamamos charme, do charme francês, carme do carmen
latino que assim te traz ao nosso canto, num quê de salvação.
52
tese quarta — ars longa de lévi-strauss
53
meu nome é legião
55
a dor da gente
como a dor do mundo
é sem nome
— um olho na réstia de sol
que ainda assola a mesa —
nem tem metáfora que aguente:
A Miséria do Mundo A Condição
Humana A Queda etc.
pensa
de mão no queixo
o novo intelectual
enquanto encara
melancólico a quente
inescrutável
garrafa de heineken
com seu verde indecente e insensato
que num quartil solar
reluz ainda cheia
57
inserção no mercado
o poeta
por mais que
poeta
sábio antena da raça
tá sem grana
pior
tá no bar
e logo saca
um livro
oferto imediato
na infinita troca
por um chopp :
58
microvers de guardanapo
“gar
çon
me
traz
por
fa
vor
mais
um
(eu
te
pe
ço)
chopp?”
59
Horácio não falava da ressaca
que nós contemporâneos tanto temos
a barca afunda e longe vão-se os remos
que lançamos ao mar — aquela vaca
hoje mesmo o poeta mais babaca
escreve algum soneto mais ou menos
feito um bukowski
entoando threnos
pelo poder do deus que o contra-ataca
60
ou o poema sonoro
61
cataio
63
na velha china um velho sábio:
“houve um fabricante
e ele fez
uma taça de vidro inquebrável
o próprio imperador o recebeu
com seu presentinho
e ele
após tomá-la às magras mãos do líder
jogou-a no chão
65
geração diet coke
p/ bernardo brandão
66
tanka oulipo
cincocincocin
cosetesetesete
cincocincosim
comsetesetesete
setesetesetese
67
videogame
68
pepitas de ouro
***
***
***
***
***
69
prefiro o brecht de raiz, quando era um preto velho e não
puxava o saco do partido.
***
***
***
***
***
70
a vida e as opiniões
do barnabé guilherme gontijo flores,
servidor do estado
71
1. Begin the beguine
73
envelhecida dentro de um museu
como aquela matriushka que nunca tive
porque estava em outra parte
falseando outra história
Eu não sorvi do sangue das vitórias
eu nem mesmo as contei
em nada fui desapontado
e creio não desapontei
na tarefa tão árdua de um abraço
eu recuava ao tempo da família
dos quadros apagados
dos nomes sem memória
e de um brasão talvez
perdido nas gavetas inventadas
de algum antepassado
que hoje sumiu sem deixar traço
e sem abrir no espaço
uma ferida falsa
à qual eu me apegasse
74
2. Quanto à canção de amor
75
(no desatento do banho)
do meu pau e assim presente
quanto inútil é que se fez
dentro de mim como eu mesmo
que só resta rejeitá-lo
e falsamente voltar
a mijá-lo talvez por
gozar talvez dessa dor
que por sair é que dói
nesta cena tão dolor
osamente repetida
76
3.
77
será que loira e sensual
atormentada porque bela
e mal reconhecida em seu talento
ofuscada coitada
pelos peitos descomunais
ou pelas ancas
(que palavra impensada
ou só pensada
ninguém ouviu)
No olho da mente
eu foco em suas ancas
assumo eu não me lembro
do nome eu não me lembro
do rosto eu não me lembro
de nada
mas como não pensar nas ancas
ainda que inventadas?
que triste história
alguém repete
eu bem consinto
não me restou
mais do que ela
78
4. Do fabulário geral
79
e que diabos é tapir?
você tenta falar franzido
para então devorá-lo ali
no centro do engarrafamento
enquanto pensa que não deve
ser crime ambiental comê-lo
80
5.
81
E nele fica a culpa
de tudo quanto eu erro
maldita mão
não obedece
esta coluna já não presta
língua que não se cala
língua de pedra e pó
penso o que não queria
a minha mente
faz o que bem quiser
a culpa não é minha
é meu estresse
talvez meu tédio
o meu cansaço
82
6. Finale glorioso
Só falamos ou quase
de mim você ficou
na sombra como os pais
da égua inominada
do clint eastwood naquele
banguebangue que você
gostava e agora já não lembra
qual era o nome mesmo?
então façamos só você e eu
mais um experimento
para encerrar o expediente
seria assim apenas
pro teu contentamento
de leitor pró-ativo
com nome jubiloso
algo como poética
do reconforto sim?
pois pegue um bom copo portátil
(de alumínio cria um
melhor efeito ao texto)
retire a tampa e monte
até ficar perfeito
encha seu copo até a boca
e meta a boca nele
tome uns 2 ou 3 goles
daquela mesma água
83
(pouco importa o sabor
eu prefiro pensar
que seja água da talha)
já chegamos ao ponto
desfaça o copo de uma vez
e veja como a água que
se espalha no carpete
(imagine um carpete)
seja agora a melhor
metáfora da tua vida
você sorriu? você
voltou a pensar se
cortaria os teus pulsos?
você não acha mesmo que a tua
vida não serve de metáfora?
84
excurso
85
Os melhores sonetos de guilherme
gontijo flores vulgo barnabé
ou servidor do estado homem de fé
de grana de bom gosto mero verme
porém ando contente em tanto ver-me
na capa da revista (mais chulé)
com pose de maldito baudelaire
nos traços reverentes de vermeer
mas ai o que mamãe diria agora
antes nascesse o meu poeta gauche
do que essa rala guache do deboche
papai não fale assim no online da ágora
eu sei são só sonetos & canhestra
me escreve a mão canhota que não presta
87
elogio do fracasso
sayonara sucesso
(can’t you see?)
badalação conta bancária — nadas
que tudo me dariam nas bancadas
da glória em cosmopolitan party
fico tranquilo
a fome é coisa pouca
tenho miojo e a tv aberta
não deixa que eu me perca
em zap a esmo
penhoro o notebook
corto a coca
dispenso a secretária
(é a coisa certa)
e fico de office-boy para mim mesmo
88
burocrática
89
saideira
90
nem num estrondo
nem num suspiro este mundo termina
mas num só grande gordo metafísico
com toda papelada do mundo
(ele a passa sem pressa
por toda extensão da sua imensa bunda)
com toda nossa papelada
inútil
e nela ele assinala o sentido possível
todo nosso horror sob
o signo do
vazio
91
notas
93
o título
95
se fossem sugestões pensadas após a impressão da página,
mas descartadas, acredita-se, por motivos desconhecidos),
lê-se ainda, não sem alguma dificuldade, índigo, anil
varonil, azoxo, purpurul, azúrpura e – talvez os mais
intrigantes, cujo sentido só pode ser esclarecido pela relação
fonética com essa sugestão anterior – l’azur Pure e l’azur
Puré. Apesar de bizarros, esses neologismos têm uma razão
de ser: é muito possível que Flores estivesse aludindo ao
termo purplue retirado de um momento da correspondência
de John Keats (1795–1821), que ilustra um episódio
candidamente ridículo da vida privada do grande poeta
romântico inglês e que parece harmonizar com o teor
geral do livro de Flores. Trata-se de um trecho da carta
à sua amada Fanny Brawne, datada aproximadamente de
fevereiro de 1820, que traduzo abaixo:
96
de Keats, a tintura era fabricada já na Inglaterra, num
processo bastante perigoso para os trabalhadores, como
comenta Wordsworth (1770–1850) em seu famoso poema
autobiográfico The Prelude (X, vv. 229-32), num trecho
sobre as condições de trabalho dos tintureiros em sua
cidade natal de Cockermouth. Que Keats desconhecesse
essas questões em torno do seu imaginário “azúrpura” é
algo que poderia ser explicado pela reclusão do próprio
poeta, causada pelos seus já bem-conhecidos problemas de
saúde (a saber, a tuberculose). É evidente que Flores, em
sua reputada erudição, deveria ter em mente, ao compor
este volume, essas questões que se entrecruzam como o teor
ridículo da vida íntima do poeta (dada a imagem de Keats
sujando desajeitadamente seus livros de geleia e lambendo-
os em seguida, que relata em tom jocoso à sua amada) e do
problema social subjacente a algo tão banal para o cotidiano
quanto a tintura das roupas.
97
epígrafes
98
enganosa, bem como diversos manuscritos (dentre os quais o
próprio l’azur Blasé, bem como também o poema narrativo
Naharia e as Tróiades) quando completou seus 30 anos.
Após sofrer de câncer de estômago, Stevens morreu no dia
2 de agosto de 1955, aos 75 anos de idade. O poema citado
nesta epígrafe se chama “Le Monocle de Mon Oncle” e está
presente no volume Harmonium.
99
parte da ética
L’AZUR
100
eternidade, a ironia, o francês, a metapoesia e as imagens de
liquidez.
(SEM TÍTULO)
CANSÓS
101
MONUMENTO AO FALECIDO POETA LAUREADO
102
(SEM TÍTULO)
O ROEDOR CONCRETO
103
com a revisitação concretista (outro pastiche?) presente na
estrofe que encerra aqui o poema.
104
Com torres, templos, altos e orgulhosos,
Em sete montes, bela de palácios,
Teatros, banhos, aquedutos, pórticos,
Troféus, estátuas, arcos do triunfo,
Jardins e bosques que ele pôde ver
Parado acima desses altos montes:
Que estranha paralaxe, ou truque ótico
Multiplicou-se pelo ar, que lente
De telescópio, é caso curioso:
Por fim, o Tentador rompe o silêncio:
No original:
105
A “estranha paralaxe”, no caso miltoniano, envolve a
possibilidade da visão de uma cena muito mais ampla
do que se poderia ver, de fato, elevado no ar, por conta
da curvatura da Terra no horizonte. No caso floresiano,
porém, o efeito da paralaxe ocorre não num plano macro
(tampouco ela é adjetivada como “estranha”, sendo, mais
do que qualquer coisa, uma paralaxe mundana), como em
Milton, mas micro, ocultando, como se pode ver, uma das
letras do nome do restaurante de nome desconhecido, de
modo a sugerir a palavra “puteiro”. Parte daí o humor do
duplo sentido (de muito baixo nível, podemos acrescentar,
algo anômalo dada a alta complexidade que é comum à obra
do poeta) do texto acrescentado: “a melhor carne da cidade”.
Aqui esse duplo sentido deriva dos sentidos possíveis
da palavra “carne”, que se referiria, a princípio, ao prato
(“carne vermelha”, como oposição, por exemplo, às opções
de “frango” ou “peixe”) que seria servida pelo restaurante
e que é ressignificada no novo contexto pós-paralaxe de
modo a assumir um sentido sexual, como na expressão
lugar-comum “prazeres da carne”. Um lugar que venda
a carne desse segundo tipo seria, como era de se esperar,
um prostíbulo – um “puteiro”, como a imagem sugere –, e
assim a inserção do texto “Copa 2014” passa a ser um triste
comentário social sobre o turismo sexual no Brasil.
106
fundindo “instant camera” (câmera instantânea) e “telegram”
(telegrama), o que explica a sua função: compartilhar fotos
pequenas, em formato pré-definido, de forma instantânea
e telegráfica. O site permite a aplicação de efeitos nas
fotos, tais como diversos tipos de filtros, muitos dos quais
são utilizados para conceder às imagens, como efeito
estilístico, uma atmosfera deliberadamente envelhecida.
Numa inversão curiosa de expectativas, no entanto, Gontijo
Flores, até a data de sua morte e até onde temos notícia, não
estava registrado nessa rede social, o que faria com que sua
referência a ela fosse estranhamente irônica.
107
representação fiel dele. Dado o estilo padrão comum da
tipografia da fachada, ela poderia muito bem ter sido forjada
por Flores para se obter os efeitos visuais desse poema-
fotografia. Seria necessário uma maior pesquisa biográfica
para se chegar a conclusões mais precisas a respeito.
108
leitor do poeta, tendo traduzido as suas Odes ao longo de seu
projeto de doutorado.
109
nippon-fawcett: “nippon” é uma referência ao Japão; Fawcett
é provável que se refira ao músico brasileiro Fausto Fawcett,
autor não só do clássico “Kátia Flávia”, mas também de
canções como “Gueixa Vadia”, uma narrativa burlesca sobre
um turista cientista marginal americano que se envolve
com uma prostituta aparentemente japonesa, presente
no primeiro álbum de Fawcett, Fausto Fawcett e os Robôs
Efêmeros (1987).
110
Bartleby: personagem homônimo de uma novela de autoria
de Herman Melville (1819–1891), mais conhecido por seu
colossal romance Moby Dick (1851). “I’d rather not” (algo
como “prefiro não”) é o célebre bordão do personagem.
MOEURS CONTEMPORAINS
MSGS
111
para a técnica do soneto, já explorado anteriormente
em brasa enganosa, consiste no que parece ser o mero
relato de uma conversa online entre dois rapazes típicos
(provavelmente entre 18 e 30 anos), mas, sob um olhar mais
detido, revela uma estrutura de métrica e rima.
ETNOPLÁGIO
112
Além disso, apesar de as folhas todas na pasta apresentarem
graus diversos de avarias (amassados, pequenos rasgos,
manchas provenientes de líquidos de toda natureza), as
da folha deste poema em muito superam todas as outras.
Ao que tudo indica, o “etnorroubo” aqui é muito menos
metafórico e muito mais literal, uma vez que o poema
em questão já havia sido publicado por Barth no blog
escamandro, na data de 16 de dezembro de 2011 (http://
escamandro.wordpress.com/2011/12/16/cano-polar-
dos-eremitas-dos-confins-das-terras-geladas-transcrita-
pelo-poeta-no-exato-momento-de-sua-execuo-em-meio-
tempestade-de-neve/), e está incluso no manuscrito do
seu primeiro e (infelizmente) ainda inédito livro, Molho
Vinagrete. Temos notícia, através do próprio e do poeta
Bernardo Lins Brandão, que Flores teve acesso a esse
manuscrito em questão antes de seu falecimento e que, nas
ocasiões em que pôde discuti-lo sem a presença de Barth,
aproveitou para criticá-lo ferozmente. É irônico, portanto,
que ele venha a aparecer roubado aqui e profundamente
revelador de uma faceta do caráter Flores que imagino que
a maioria de nós desconhecesse. Outra hipótese, porém,
considerando elementos como o fato de que os dois
poetas eram bastante próximos, como se pode averiguar,
e que esta é a primeira reprodução impressa do poema
(e que a internet, como se sabe, é uma fonte das menos
confiáveis), é a de que, na verdade, o poema teria sido
ditado inicialmente por Flores e que seria Vinicius que o
teria roubado – portanto, ao roubá-lo de volta, Flores o
estaria retornando ao seu lugar de direito (o que justificaria
suas críticas reservadas como mal-estar e ressentimento).
Apesar de plausível, esta hipótese não me parece das mais
sólidas, pelo simples fato de que, em matéria de humor, o
“Etnorroubo” é infinitamente superior a qualquer outro
poema em l’azur Blasé – mais plautino do que terenciano,
poderíamos dizer. Em vez da ironia sutil, da paródia que
114
mal se pode reconhecer como tal e das tentativas de um
wit refinado demais para ser legitimamente cômico que
caracterizam o que Flores parece chamar de “fracasso sobre
o humor”, temos o contraste simples do subtítulo longo
(“canção polar dos eremitas dos confins das terras geladas
transcrita pelo poeta no exato momento de sua execução em
meio à tempestade de neve”) com a singela palavra “nhóin”,
que significaria, segundo Barth/Flores, num floreio cômico
retórico genial, “frio pra caralho”. Não há como sabermos,
no entanto, qual dos dois ou se qualquer um deles, de fato,
viajou aos “confins das terras geladas” (seria território
dos inuit? ou talvez Oymyakon, na Sibéria?) e ouviu esta
canção aqui registrada, à moda do poeta norte-americano e
tradutor da chamada etnopoesia, Jerome Rothenberg. Neste
caso, creio, devemos confiar na boa fé do poeta.
cítrica
115
Assim, portanto, ao falar de frutas cítricas, Flores estaria, na
verdade, tratando indiretamente da crítica literária.
acadêmica
EL MONO-MIMO
116
É COMO AQUELA
METÁFORA
117
TESE PRIMEIRA – A VIDA SEXUAL DE F. PESSOA:
118
poema parece denunciar, do que no sentido mais amplo de
“experiência” propriamente.
119
interrogação. De fato, não sabemos qual a relação entre
essas coisas listadas pelo poema.
E Lucas 8:30:
120
E Mateus 8:29-31:
121
etílica
INSERÇÃO NO MERCADO
122
MICROVERS DE GUARDANAPO
123
carpe diem: literalmente “colha o dia”, um dos lugares-
comuns da lírica latina, popularizado pelo poema “A
Leocônoe”, no livro das Odes de Horácio.
OU O POEMA SONORO
124
proclamar a república no Rio Grande do Norte, tornando-se
o primeiro governador do estado.
cataio
125
gosto à cachaça; o que pode servir de amarração entre as
duas partes do livro.
126
carteira de motorista, nem de que ele tivesse um instrutor
chinês, que parece ser invenção sua com base no arquétipo
popular do mestre chinês, tal como se pode ver em diversos
filmes, de Karate Kid (1984) a Kill Bill (2003).
TANKA OULIPO
127
grupo literário do século XX da França. Ele foi fundado
por Raymound Queneau e François Le Lionnais, com o
propósito de reunir escritores e matemáticos interessados
em compor obras experimentais baseadas em restrições.
Alguns de seus membros mais célebres foram o poeta
Jacques Roubaud e o romancista Georges Perec. Seu
romance La Disparition (que poderia ser traduzido como
O sumiço), de 1969, se tornou famoso por ter sido inteiro
composto sem se utilizar a letra e, logo a vogal mais comum
da língua francesa.
VIDEOGAME
128
submeter trabalhadores a muitas e muitas horas jogos
online (chamados popularmente de MMORPGs, Massively
Multiplayer Online Role Playing Games) para acumularem
dinheiro virtual e depois convertê-lo em dinheiro real – no
geral, vendendo esse dinheiro virtual para jogadores de
países mais desenvolvidos dotados de dinheiro real, mas
indispostos a se dedicar à longa tarefa repetitiva e tediosa
de acumular dinheiro virtual. A essa prática se chama
gold-farming (“cultivo de ouro”) e teve início na Coreia do
Sul, mas rapidamente se alastrou pela China. É difícil dizer
qual a relação que Flores teve com essa mídia, se ele era
um jogador constante ou não (provavelmente não, dada
a qualidade precária da conexão de internet da zona rural
em que morava), mas é evidente que o assunto parece ter
estimulado a sua faceta neomarxista (como ele mesmo
se declara em “Song of Itself”), produzindo um dos seus
poucos poemas declaradamente políticos. Justamente por
isso, sua presença em l’azur não deixa de ser aberrante. Será
que ele estaria tentando dizer algo com a inclusão de um
poema tão sério no cerne de um livro cômico ou ao menos
pretensamente cômico? É difícil dizer, e essa dificuldade é
aumentada de forma exponencialmente, na medida em que
aqui as referências aos “ouros” que os trabalhadores chineses
ganham nesses jogos-trabalho de imediato se amarra
verbalmente com o próximo “poema” do livro, as “Pepitas
de ouro”.
PEPITAS DE OURO
129
1862) e Friedrich Nietzsche (1844–1900). No entanto,
essa sapiencialidade aqui se encontra deslocada, como se o
poeta procurasse buscá-la não no Ocidente ou no Oriente
Próximo, mas no Extremo-Oriente, conforme foi deixado
evidente aqui já nos poemas anteriores a relação entre essa
imagem de uma China antiga e a sabedoria que ela inspira
e pode ainda inspirar. É provável que o orientalismo em
Guilherme tenha suas raízes aqui num poema de Bernardo
Lins Brandão publicado em Rua Musas sobre Qin Shi
Huang, o que pode ser um motivo pelo qual um dos poemas
anteriores, “Geração Diet Coke”, seja dedicado a ele.
130
filiado de fato ao Partido Comunista, mas foi ganhador do
Prêmio Stalin da Paz em 1954.
a vida e as opiniões
131
Este título estranho para uma seção de 6 poemas que
agem como um poema só remete ao título do romance do
autor Laurence Sterne (1713–1768), The Life and Opinions
of Tristram Shandy, Gentleman (1759), em português A
Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Há uma
forte autoironia, no entanto: Guilherme Gontijo Flores
não é nenhum gentleman, mas um “barnabé”, o termo
pejorativo para funcionário público, “servidor do estado”,
tal como ele reafirma, de forma repetitiva e redundante,
logo na sequência. Como se sabe, Gontijo Flores de
fato foi funcionário público (professor de Universidade
Federal), o que faz com que esses poemas tenham algo
de autobiográfico. No entanto, o fato de o título ser em
terceira pessoa pode sugerir um afastamento entre a pessoa
real e o personagem que discorre pesada e longamente nas
páginas seguintes, numa voz discursiva e monótona de
longas estrofes em bloco de texto que em nada lembram
o Gontijo Flores leve e visualmente interessante do brasa
enganosa, como se estivesse de fato dando voz, portanto,
ao seu lado barnabé para quem “o tédio não foi bom / nem
mau nem meu nem médio”. Evidências textuais indicam
que este ciclo consistia a princípio de apenas 3 e não 6
poemas: “Begin the beguine” (à época sem título), “Quanto
à canção de amor” e “Finale glorioso”, tal como pode ser
visto numa postagem de 11 de abril de 2013 do blogue
da revista Modo de Usar & Co. (http://revistamododeusar.
blogspot.com.br/2013/04/guilherme-gontijo-flores.html).
É muito provável, portanto, que os poemas 3, 4 e 5 sejam
acréscimos posteriores, e é possível ainda que o 3 tenha
sido motivado por um evento verídico, ainda que não
tenha acontecido na UFPR de fato, até onde se tem notícia,
ao passo que o poema 4, “Do fabulário geral”, um tipo de
quase terça rima com versos octossilábicos, é mais um caso
de um poema inspirado por Lévi-Strauss, cuja influência
sobre este livro até agora, ainda que tardia, tem se revelado
132
tremenda. Apesar do tom psicodélico de (autointitulada)
fábula do poema, é importante apontar que ela tem raízes
num episódio real que ocorreu muito próximo do final
da vida do poeta. Temos rumores — cuja autenticidade é
sempre de difícil comprovação — que demonstram que,
nas semanas anteriores aos eventos misteriosos em torno
de sua morte, Flores havia sido processado pelo IBAMA
por crime ambiental. Segundo consta no processo, em
uma de suas várias viagens pelo Brasil em seu conhecido
Fusca, ele teria se flagrado num imenso engarrafamento
após dias de exaustão, consumo de cachaça e privação
de sono, quando de repente uma anta teria atravessado
a estrada, aproveitando a calmaria do engarrafamento.
Profundamente entediado e já alucinando, num delírio
alimentado pela leitura dos textos de antropologia, em
que a anta apareceria antropomorfizada conversando com
ele, o poeta teria saído do carro, matado o animal com as
próprias mãos e começado a comê-lo ali mesmo, na frente
dos outros motoristas, que assistiram horrorizados ao
espetáculo monstruoso. Segundo outros rumores póstumos,
esse não seria o único episódio estranho do final de sua
vida. Poucos dias após o incidente, ele ainda teria aparecido
nu em pelo para uma reunião docente na Universidade,
apenas pintado com pintura de guerra Tupinambá, feita de
urucum e jenipapo. Apesar da estranheza causada, a reunião
teria corrido normalmente, mas a polícia seria acionada na
sequência quando Flores tentava realizar uma circuncisão
forçada – sem dúvida como rito de iniciação – num aluno
orientado por ele, que não conseguimos identificar. Parece
claro que tudo isso – desde o tom autobiográfico, a temática
do tédio, do corpo e do mito – se encontra articulado de
forma subjacente neste ciclo de poemas; o que nos leva a
pensar se esses rumores não teriam sido criados a partir
da leitura dos poemas, tal como vemos que acontecia nas
biografias de poetas gregos, romanos e provençais.
133
rodrigo madeira: poeta paranaense nascido em 1979 em Foz
do Iguaçu, autor dos livros Sol sem pálpebras (2007) e Pássaro
ruim (2009).
excurso
134
que encerra o livro. Por isso parece mais sensato pensar
na origem etimológica de excurso, via latim, ex + cursus,
literalmente “correr para fora”, o que pode nos indicar para
uma concepção de “saideira”, como se diz popularmente.
Outra vez, porém, a possibilidade do duplo sentido –
dicionarizada e etimológica – parece enriquecer a leitura: a
saideira como uma digressão da qual não se retorna.
135
isso que aludam os versos “contente em tanto ver-me / na
capa da revista”.
ELOGIO DO FRACASSO
bye bye mecenas que eu nunca vi: este verso, num exemplo
clássico da poesia pós-moderna de fusão da cultura erudita
e popular, é uma clara referência à canção “Rua Augusta” de
Ronnie Cord (também gravada mais tarde por Raul Seixas
e Os Mutantes), cujo refrão declara: “Bye, bye Johnnie /
Bye, bye Alfredo / Quem é da nossa gangue não tem medo”,
que deixa evidente o contraste entre a soberba do eu-lírico
vanglorioso de Cord e o eu-lírico de Flores que confessa
– talvez também não sem algum grau de vanglória – o
próprio fracasso. Mecenas é uma referência a Caio Cílnio
136
Mecenas (70 a.C. – 8 a.C.), político romano e conselheiro de
confiança do imperador Augusto, responsável por oferecer
proteção política e patronato a poetas latinos importantes
como Virgílio, Horácio e Propércio. Com o tempo, seu
próprio nome passou a designar qualquer patrocinador de
escritores e artistas no geral.
BUROCRÁTICA
137
escritórios e da administração na atividade humana”. Como
se pode ver, há outros poemas em l’azur Blasé onde Gontijo
Flores ironiza a ineficácia burocrática, o suficiente para
podermos afirmar que a temática permeia uma boa parte do
livro, sobretudo a partir de sua segunda metade.
SAIDEIRA
138
inglês Thomas Stearns Eliot (1888–1965), na estrofe final de
seu “The Hollow Men” (1925), que diz:
139
prefácio interessantíssimo 6
143
entrever na forma críptica do futuro do indicativo da
primeira pessoa do singular em ortografia renascentista,
onde a semivogal já aparece grafada j no poema intitulado
“trafficjam”. Bem quisto por toda a comunidade do
Candonga, onde sempre foi recebido com cachaças e
cervejas baratas de presente gracioso, o referido então
poeta parece ter sentido algum embaraço relacionado ao
presente volume, não publicado em vida pelo simples fato
de não se tratar de boa poesia. O uma vez versejador deve
ter percebido que não valeria a pena dar a lume (num dos
sentidos literais do termo, o lume talvez seja o destino
mais benéfico deste livro, como veremos) os versos ora
apresentados aquele mesmo autor de brasa enganosa (livro de
pretensões sublimes), mas, como todo grande autor morto,
raspa-se o fundo do tacho em busca de alguns vinténs (dos
quais alguma parte caber-me-á, suponho, por este exercício
de crítica), que quiçá nunca cheguem a ser ganhos.
144
poeta. A questão toda se resume a um simples motivo
básico: com o subtítulo de ‹ensaio de fracasso sobre o
humor›, o próprio espirituoso – e agora espiritual – autor
escancara sua maior fragilidade, a saber: o humor, aqui,
inexiste. Inexiste no sentido puro da própria denotação do
termo escolhido: “fracasso”. Não há humor, mas fracasso.
Numa vã tentativa de operar através de fina ironia, o
agora defunto pensou ser capaz de fazer rir a um eventual
esforçado leitor. Com todo esforço a que pude aceder pelo
peso da memória afetiva que tenho pelo agora mero nome
de Flores — “somente sobram nomes” diria ele próprio
num momento mais feliz da sua produção —, o resultado
continua a ser um fracasso inconscientemente anunciado,
um metafracasso se preferirem. Como querer fazer rir a um
leitor com um volume cuja máxima nota de humor é uma
epígrafe do gênio da comédia Peter Griffin, sendo que todas
as outras tentativas de sua própria lavra falham? Trocadilhos
infames que repetiram a quinta série perpetuamente não são
a grande poesia. São má poesia. Não há poesia nos versos
rudes e toscos ora publicados a contragosto (entretanto
garantidos por mandato judicial impetrado pela agora
viúva). Dada a referida decisão judicial, que me obrigou a
escrever este prefácio, sob supervisão do oficial de justiça
que se senta a meu lado impressionado com a velocidade em
que escrevo usando apenas três dedos no teclado, mandato
em mãos, incapaz de entender literatura, é-me impossível
furtar-me à tarefa.
145
reprovável de caráter que, já se vê, parece ter inexistido.
Quanto à sequência, “Cansós”, que direi de tal barafunda
de vozes femininas, que, estivesse vivo o autor, teria feito
corar a mais pudica feminista no tribunal em que seria
condenado por discriminação de gênero? Em “Monumento
ao falecido poeta laureado”, o “autorreflexivo” poeta parece
não ter tido espelho em casa, fato certamente decorrente da
pobreza rural em que afundou-se em decorrência de infeliz
vício. Pobre poeta. Que dizer dos obscenos e pobres versos
sobre a pica aninhados em um sem-número de parênteses
– recurso possivelmente considerado sofisticado, dado o
esgotamento dos recursos técnicos de que dispunha o então
Flores, cérebro já diluído em cummings estereotipado?
Quem ele esperava enganar? E quem esperava enganar, se
todos sabiam e tacitamente aceitavam que Bruna Aparecida
era sua amante, e, dizem, nem mulher era? Palíndromos
não melhoram a situação, então ‹oroboro›, grafia mais feliz
em português do que em grego antigo, perde a chance de
ser usado em um belo soneto à moda antiga – forma, aliás,
que o outrora Flores parece não ser capaz de compor, dada
a evidente falta de perícia versejatória abundante e se-
espraiante evidente nos versos deste livro.
146
mau-gosto. Referências biográficas ao seu péssimo gosto
musical, de Fausto Fawcett a Mars Volta, não parecem
ajudar: continuamos na mesma, à espera da epifania da
poesia gostosa e matreira que lemos em seu début literário.
Gertrude Stein coraria de ver o que se fez com a sua
excelente boa poesia em “Uma Gertrude para Bartleby”.
Shame on you! Que dizer de MSGS, que tenta transformar
em material literário a sabida incapacidade intelectual e
discursiva dos jovens de hoje em dia, que preferem rsrs
a um bom Ah Ah Ah, forma sobejamente encontrada nos
excelentes autores de antanho, como Plauto e Terêncio?
E em 2 em 1 o malfadado agora-quiçá-anjo tenta fazer um
metapoema usando a palavra “metapoema”. Não haveria
ninguém ali para impedir tamanha desfaçatez?
147
um recalque poético-acadêmico, pois todos sabem que
o objetivo de Flores era igualar-se no campo acadêmico
a Edward Fraenkel, excelentíssimo filólogo, mas, assim
como se dá com sua recusa dor-de-cotovelística a Bilac,
deixa transparecer sua incapacidade técnica e a óbvia
impossibilidade de tornar-se um filólogo superstar
de primeiro escalão. Eu, ao menos, ainda vivo e galgo
os degraus do cursus honorum em busca do estatuto de
germânico filólogo. Antes ele do que eu. Merece destaque
o escárnio demonstrado pelo excelente poeta Fernando
Pessoa, que, todos sabem, teve intensa vida sexual. Mais
recalque, portanto.
148
A seção cataio: o que dizer sobre essa nem-sequer-palavra?
O que a China e os aforismos abundantes têm a ver com
o que quer que seja aqui? Desculpe, caro leitor, minha
paciência parece estar em vias de esgotar-se. Mas também
o está o libelo. O etéreo autor parece não ter conseguido
voltar de seu pulinho “no abismo do brega”, onde deve ter
estraçalhado os miolos e espargido as pobres escarpas com a
inânia de sua deteriorada massa cinzenta. (Não comentarei
o gosto escatológico do autor por chupar cus). Mas como
aceitar que sob o título de cataio haja poemas que sequer
façam referencia à China, mas sim a outros pontos do
Oriente? Se não estamos diante de pura ignorância, será sem
dúvida má fé.
149
Como talvez uma defesa ao livro, devemos considerar como
este livro pode nos ajudar a compreender os melhores
momentos de sua obra de estreia, muito embora eu mesmo
não consiga perceber como isso poderia acontecer. As notas
de Adriano Scandolara (jovem acadêmico com veleidades
de poeta), ainda que incompetentes em muitos pontos do
seu intuito laudatório, servem como um esforço de amostra
de como isso poderia ocorrer. Embora as falhas de seu
trabalho sejam claras — note-se como deixa de comentar
a morte de Roland Barthes atropelado por um caminhão,
ponto fundamental para o tremendo mau-gosto do poema
“Meu nome é Legião”, que se estende para o poema seguinte
“Saideira”, noutra piada infeliz com o suicídio — elas
esclarecem, porém de modo algum diminuem ou justificam
a ruindade geral da obra. Mais uma vez, nossa falta de
respeito com um escritor morto só vem a nos servir como
monturo que circula pelas livrarias sob a égide de novidade.
150
Agradecemos a Vinicius Ferreira Barth pela cessão do texto
que aparece no poema “Etnoplágio”, que, fora o título, é de
sua autoria.
151
Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Kotter
Editorial [www.kotter.com.br] em papel pólen Bignardi
off-withe, de 90 gr/m2, tipologia Source Sans Pro 10/13, no
inverno de 2016.