A Gaiola - José Revueltas

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 64

200131_a gaiola_miolo_graf.

indd 1 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 2 30/01/20 16:24
josé revueltas

a gaiola
tradução de
samuel titan jr.

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 3 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 4 30/01/20 16:24
 Para Pablo Neruda

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 5 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 6 30/01/20 16:24
E
les também, os macacos, estavam pre-
sos ali, macaco e macaca; ou melhor,
macaco e macaco, os dois na jaula, ain-
da sem desespero, ainda sem cair no
desespero total, com suas passadas de
um lado para o outro, detidos, mas em movimento,
aprisionados ali pela escala zoológica, como se al-
guém, como se os outros, como se a humanidade
impiedosamente já não quisesse saber daquela his-
tória, dessa história de serem macacos, da qual
nem eles queriam saber, macacos que eram, ou tal-
vez não soubessem nem quisessem, presos de qual-
quer ângulo que se olhasse, enjaulados dentro do
caixote de altas grades, altas como dois andares,
metidos no uniforme azul de pano com insígnia
brilhante na cabeça, metidos naquele vaivém bruto,
natural e contudo fixo, sem nunca chegarem a dar
o passo que poderia libertá-los da espécie interme-
diária em que se moviam, caminhavam, copulavam,
cruéis e desmemoriados, macaco e macaca no Pa-
raíso, idênticos, da mesma pelagem e do mesmo
sexo, mas sempre macaco e macaca, encarcerados,
fodidos. Com a cabeça hábil e cuidadosamente re-
costada sobre a orelha esquerda por cima da pran-
cha horizontal que servia para fechar o estreito
postigo, Polonio observava-os de cima, o olho direi-
to cravado na direção do nariz, em rasante linha

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 7 30/01/20 16:24


oblíqua, observava como iam de um lado para o ou-
tro dentro do caixote, com o molho de chaves que
saía por baixo da jaqueta de pano azul e batia con-
tra a coxa ao sabor de cada passo. Primeiro um, o
outro depois, os dois macacos eram vistos, eram
seguidos de cima do segundo andar por aquela ca-
beça que só dispunha de um olho para observá-los,
a cabeça na bandeja de Salomé, para fora do posti-
go, a cabeça falante do circo, desprendida do tron-
co — como num circo, a cabeça que prevê o futuro
e declama versos, a cabeça de São João Batista —, só
que aqui na horizontal, recostada sobre a orelha.
O olho esquerdo não via nada lá embaixo, exceto a
superfície da prancha com que se fecha o postigo,
enquanto eles, os macacos, no caixote, entrecruza-
vam-se ao ir de um lado para o outro, enquanto ela,
a cabeça falante, insultante, com uma entonação
lenta e arrastada, chorosa e cínica, espichando as
vogais numa ondulação melódica de acentos alter-
nados, contrastados, mandava-os à puta que os pa-
riu sempre que um ou outro incidia no campo
visual do olho livre. “Esses merdas de macacos fi-
lhos da puta.” Estavam presos. Mais presos que Po-
lonio, mais presos que Albino, mais presos que o
Caralho. Durante alguns segundos, ao sabor das
idas e vindas, o caixote retangular ficava vazio,
como se não houvesse macacos ali dentro, por obra

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 8 30/01/20 16:24


dos passos que os haviam levado, em sentido oposto,
aos extremos da jaula, trinta metros, mais ou me-
nos, sessenta de ida e volta, e então aquele espaço
virgem, adimensional, convertia-se no território
soberano, inalienável, do olho direito, tenaz, que
vigiava milímetro por milímetro tudo quanto podia
acontecer naquela parte do Pavilhão. Macacos,
arquimacacos, estúpidos, vis e inocentes, com a
inocência de uma puta de dez anos de idade. Estú-
pidos a ponto de não notarem que os presos eram
eles e ninguém mais, eles e as mães e os filhos e os
pais de seus pais. Sabiam que estavam ali para vi-
giar, espiar e olhar ao redor, para que ninguém pu-
desse escapar, nem de suas mãos, nem daquela
cidade, daquelas ruas gradeadas, daquelas barras
multiplicadas por todas as partes e todos os rincões,
e suas caras estúpidas não eram nada mais que a
forma de uma certa nostalgia imprecisa por outras
faculdades, impraticáveis para eles, um certo bal-
bucio da alma naquelas caras de mico, no fundo
tristes por conta da perda irreparável e ignorada, o
corpo todo coberto de olhos, da cabeça aos pés, uma
malha de olhos cobrindo tudo, um rio de pupilas
percorrendo-lhes cada parte, a nuca, o pescoço, os
braços, o tórax, os bagos, cada um dos macacos di-
zendo e pensando consigo que estavam ali só para
que pudessem comer e para que comessem todos

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 9 30/01/20 16:24


em casa, na casa onde a família de macacos dança-
va e guinchava, os meninos e as meninas e a mu-
lher, peludos por dentro, na casa onde o macaco
passava vinte e quatro longas horas depois das vin-
te e quatro de turno na Preventiva, estirado na
cama, sujo e pegajoso, as notas dos ínfimos subor-
nos, cobertas de sebo, em cima do criado-mudo,
notas que nunca saíam da prisão, infames, presas
numa circulação sem fim, notas de macaco, que a
mulher esticava e achatava na palma da mão, lon-
gamente, terrivelmente, sem se dar conta. Tudo
era um não se dar conta de nada. Da vida. Sem se
dar conta, estavam ali, dentro de seu caixote, mari-
do e mulher, marido e marido, mulher e filhos, pai
e pai, filhos e pais, macacos aterrorizados e univer-
sais. O Caralho suplicava para vê-los pelo postigo
também. Polonio pensou como era odioso estar
trancado ali com o Caralho, engaiolado na mesma
cela. “Mas se você nem enxerga, porra…!” A mesma
voz de cadências largas, indolentes, com a qual in-
sultava os vigias no caixote, uma voz apesar disso
impessoal, que todos usavam como um símbolo dis-
tintivo, por meio da qual não haveria como, às cegas
ou às escuras, distinguir um de outro, mas ainda as-
sim a forma de voz com que expressavam o gosto, o
regozijo, a honra hierárquica de pertencer à casta
orgulhosa, inconsciente e gratuita dos bandidos.

10

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 10 30/01/20 16:24


Claro que não ia enxergar nada. Não por causa do
meticuloso trabalho de introduzir a cabeça pelo
postigo, apesar do estorvo das orelhas, e pousá-la
sobre a prancha, sobre a bandeja de Salomé, mas
sim porque o Caralho não tinha precisamente o
olho direito, e só com o esquerdo não veria nada,
exceto a superfície de ferro, próxima, áspera, rugo-
sa, e por isso mesmo tinham posto nele o apelido de
Caralho, porque não valia nem um reverendo cara-
lho para nada, não servia para caralho nenhum,
com o olho cego, a perna aleijada e os tremores com
que se arrastava de lá para cá, sem dignidade, fa-
moso em toda a Preventiva pelo costume que tinha
de cortar as veias cada vez que o punham na gaiola,
os antebraços cobertos de cicatrizes escalonadas,
uma depois da outra, feito o braço de um violão,
como se estivesse absolutamente desesperado —
mas não, pois nunca se matava —, abandonado até
onde é possível estar, no fundo, sempre no limite,
sem se importar com a própria pessoa, com esse cor-
po que parecia não lhe pertencer, mas do qual des-
frutava, um corpo que ele resguardava, no qual se
escondia, do qual se apropriava, encarniçadamente,
com o mais urgente e ansioso dos fervores, quando
conseguia possuí-lo, meter-se em seu íntimo, dei-
tar-se em seu abismo, bem no fundo, inundado por
uma felicidade viscosa e morna, quando conseguia

11

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 11 30/01/20 16:24


meter-se dentro de sua própria caixa corporal, com
a droga feito um anjo branco e sem rosto que o con-
duzisse pela mão através dos rios do sangue, como
se percorresse um vasto palácio sem aposentos
nem ecos. Maldita e desgraçada mãe que o tinha
parido. “Tô dizendo que você não vai enxergar pi-
cas, vê se não fode, porra!” E apesar disso a mãe ia
visitá-lo, a mãe existia, por mais inconcebível que
fosse sua mera existência. Durante as visitas na
sala da Defensoria — um cômodo estreito, de super-
fície irregular, com bancos, cheio de gente, presos
e familiares, onde era fácil distinguir os advogados
e os rábulas (sobretudo estes) pelo aprumo e pelo
ar de desnecessária astúcia com que se referiam a
determinado documento, num sussurro cheio de
afetação, solene e imbecil, com palavras que se in-
sinuavam nos ouvidos dos clientes, enquanto diri-
giam rápidos olhares de falsa suspeita na direção
da porta (recurso mediante o qual conseguiam pro-
duzir no espírito dos réus, a um só golpe, acrescida
perplexidade e renovada fé, tudo de uma vez só) —,
durante essas entrevistas, a mãe do Caralho, as-
sombrosamente tão feia quanto o filho, com a marca
de uma navalhada que lhe ia da sobrancelha à ponta
do queixo, permanecia cabisbaixa e obstinada, sem
olhar nem para ele nem para nada que não fosse o
chão, a atitude carregada de rancor, repreensão e

12

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 12 30/01/20 16:24


remorso, sabe Deus em que circunstâncias sórdi-
das e abjetas ela teria ido para a cama, e com quem,
para engendrar aquele filho, e talvez a recordação
daquele feito distante e tétrico atormentasse-a de
novo a cada vez. Fato é que, de tanto em tanto, sol-
tava um suspiro espesso e rouco. “A culpa não é de
ninguéns, é toda minha, por ter tido você.” Na me-
mória de Polonio, a palavra ninguéns cravara-se,
insólita, singular, como se fosse a suma de um nú-
mero infinito de significações. Ninguéns, esse plu-
ral triste. De ninguém era a culpa, nem do destino,
da vida, da porra da sorte, de ninguéns. Por ter tido
você. E então a raiva de estar aqui, preso na mesma
cela com o Caralho entre ele e Albino, e o desejo
agudo, imperioso, suplicante, de que ele morresse
e deixasse enfim de rodar pelo mundo com aquele
corpo vil. A mãe desejava a mesma coisa com a
mesma força, com a mesma ansiedade, dava para
ver. Morre, porra, morre, porra, morre, porra. O
Caralho suscitava uma misericórdia cheia de re-
pugnância e de cólera. O lance das veias não dava
em nada, pura gritaria, muito embora, a cada nova
ocasião, todos tivessem esperança, sinceramente,
honradamente, que ele rebentasse de uma vez. De
caso pensado, ele se encostava à porta da cela — po-
dia ser num ou noutro dos dias em que devia ficar
engaiolado —, ali junto às dobradiças, para que o

13

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 13 30/01/20 16:24


arroio de sangue que lhe brotava da veia cruzasse o
quanto antes o corredor estreito no piso superior
do Pavilhão e dali escorresse para o pátio, onde se
formava uma poça sobre a superfície de cimento, e
então, calculando o tempo que tudo isso levaria,
confiando que já teriam notado a tentativa de sui-
cídio, o Caralho lançava seu uivo de cachorro, seus
arquejos de fole rasgado, sem nunca morrer, ape-
nas para causar escândalo e para que o levassem
da gaiola para a Enfermaria, onde sempre dava
um jeito de conseguir a droga e recomeçar tudo
mais uma vez, cem vezes, mil vezes, sem chegar
ao fim, até a gaiola seguinte. Foi numa dessas que
Polonio o conheceu, quando o Caralho, no meio de
um dos caminhos do jardim da Enfermaria, dan-
çava uma espécie de dança semiortopédica e reci-
tava de modo atropelado e febril uns versículos da
Bíblia. Levava ao pescoço, feito gravata, uma corda
sebenta, e, por obra dos trejeitos da dança, viam-
-se através dos fiapos da jaqueta azul o peito, o tor-
so nu, cheio de bárbaras cicatrizes, a pele cheia de
distantes e desbotadas tatuagens. O olho bom e
aquela flor davam náusea e calafrios. Era uma flor
fresca, nova e natural, um gladíolo mutilado ao
qual faltavam pétalas, preso aos farrapos da ja­que­
ta com um pedaço de arame enferrujado, e o olhar
remelento do olho bom tinha um ar malicioso,

14

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 14 30/01/20 16:24


calculista, zombeteiro, autocomplacente e terno,
sob a pálpebra meio caída, rígida e sem cílios. O Ca-
ralho flexionava a perna sadia, com a outra, a alei-
jada, na posição de sentido, as mãos na cintura e a
ponta dos pés para fora, na pose dos guerreiros de
certas danças exóticas numa velha revista ilustra-
da, para em seguida ensaiar uns saltinhos para a
frente, perder o equilíbrio e cair no chão, de onde
só se levantava à força de grandes trabalhos, de fu-
riosas patadas que o faziam girar em círculo no
mesmo lugar, sem que ninguém cogitasse vir aju-
dá-lo. Então o olho parecia morrer, quieto e artifi-
cial como o de um pássaro. Era com esse olho
morto que fitava a mãe durante as visitas, longa-
mente, sem pronunciar uma palavra. Ela com cer-
teza queria que ele morresse, talvez por causa
desse olho em que ela mesma estava morta, mas
mesmo assim lhe conseguia o dinheiro para a dro-
ga, os vinte, os cinquenta pesos, e ficava ali, depois
de entregá-los — as notas convertidas em uma boli-
nha parecida a um caramelo suado e pegajoso no
oco da mão —, sentada no banco da sala da Defen-
soria, com a barriga lombriguenta descaindo como
um fardo por cima das pernas curtas que não che-
gavam até o chão, hermética e sobrenatural, por
conta da dor de não terminar de parir este filho
que se agarrava a suas entranhas, olhando-a com o

15

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 15 30/01/20 16:24


olho criminoso, sem querer sair do claustro mater-
no, enfurnado na bolsa placentária, na cela, rodea-
do de grades, de macacos, ele também mais um
macaco, girando em falso e dando patadas, sem po-
der levantar-se do chão, como um pássaro com
uma asa a menos, com um olho só, sem poder sair
do ventre da mãe, engaiolado dentro da própria
mãe. Como o plano ia mais ou menos por aí e como
era ele o autor do plano, Polonio tratou de conven-
cê-la, e por fim, sem grandes esforços, ela disse que
sim. “A senhora é uma pessoa adulta, de idade, de
muito respeito; com a senhora as macacas não se
metem.” A coisa, assim por dentro, era meio mater-
nal. Tratava-se — dizia Polonio — de uns tampões de
gaze com um fio de um palmo e pouco, mais ou me-
nos, cuja extremidade ficava para fora, uma ponti-
nha para puxar e tirar depois que tudo estivesse
terminado, muito em uso agora pelas mulhe-
res — bastava que Meche e a Chata ensinassem e
ajudassem — que não queriam engravidar para de-
pois ter de se livrar do filho por aí de um jeito qual-
quer, era um dos recursos mais modernos de hoje
em dia, Meche ou a Chata podiam confirmar e aju-
dá-la para que ficasse bem posto. E aí morria tudo,
aí ficavam detidos os espermatozoides condenados
à morte, loucos furiosos diante do tampão, batendo
na porta como os guardas da prisão, também eles

16

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 16 30/01/20 16:24


convertidos em macacos, como todo mundo, multi-
dão infinita de macacos batendo nas portas fecha-
das. Polonio riu, e as duas mulheres, Meche e a
Chata, também, contentes pela velha, que era rija,
que era macha de ter aceitado. Mas calma: é claro
que ninguém pensava que a mãe quisesse se utilizar
do assunto para coisa distinta daquilo que se propu-
nham levar a cabo, era só uma explicação. A gaze
levaria, dentro de um nó bem sólido, uns vinte ou
trinta gramas de droga, que as duas mulheres en-
tregariam à mãe do Caralho. “Com a senhora as
macacas não se atrevem, não é? Porque a senhora é
uma pessoa de idade e de respeito, mas com a gente,
na hora da revista, elas sempre metem o dedo na
gente, aquelas infelizes.” A recordação e a ideia e a
imagem cegavam de ciúmes a mente de Polonio,
mas de um jeito estranho, total, como se ele não es-
tivesse mais no espaço, não encontrasse mais os
próprios limites, ambíguo, despojado, com uns ciú-
mes na garganta e na boca do estômago, com uma
sensação coceguenta, frouxa e atroz, involuntária,
logo atrás do pênis, como de uma ejaculação prévia,
não de verdade, uma espécie de contato sem sê-
men, que esvoaçava, vibrava em diminutos círcu-
los microscópicos, tangíveis, mais além do corpo,
fora de todo organismo, e então a Chata aparecia
diante de seus olhos, jucunda, bestial, com as coxas

17

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 17 30/01/20 16:24


cujas linhas, em vez de se juntar para incidir na
cunha do sexo quando ela aproximava as pernas,
deixavam ainda, pelo contrário, um buraquinho va-
zado entre as duas paredes de pele sólida, tensa, jo-
vem, estremecedora. Tudo visto através do vestido,
à contraluz — e aqui sobrevinha uma nostalgia con-
creta de quando Polonio andava livre: os quartos de
hotel cheirando a desinfetante, os lençóis limpos,
mas não muito brancos, dos hotéis de segunda, a
Chata e ele de um lado a outro do país e também
fora, San Antonio, no Texas, Guatemala e aquela
outra vez em Tampico, ao cair da tarde sobre o rio
Pánuco, a Chata encostada no parapeito, de costas,
o corpo nu sob uma bata ligeira e as pernas leve-
mente entreabertas, o monte de Vênus parecendo
um capitel de penugem sobre as duas colunas das
coxas, não havia meio de resistir àquilo, e Polonio,
com a mesma sensação de estar possuído por um
transe religioso, ajoelhava-se, estremecido, para
beijá-lo e afundar seus lábios entre aqueles lábios.
“Metem o dedo na gente.” Ma-ca-cas fi-lhas de u-ma
pu-tís-si-ma, sapatonas sem vergonha. A mãe do
Caralho levaria ali dentro o pacotinho de droga —
muito embora tivessem sido frustrados inesperada-
mente por culpa dessa história de gaiola, os planos
continuavam os mesmos no que dizia respeito ao
papel que a mãe desempenharia —, o pacotinho

18

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 18 30/01/20 16:24


para alimentar o vício do filho, como antes, no ven-
tre, também ali dentro, ela o tinha nutrido de vida,
do horrível vício de viver, de se arrastar, de se esfa-
celar como o Caralho se esfacelava, gozando até as
raias do indizível cada pedaço de vida que lhe toca-
va. Agora mesmo ele enlaçava com o braço o pesco-
ço de Polonio, suplicando-lhe que o deixasse olhar
pelo postigo, e de um lado da nuca, um pouco para
trás e para baixo da orelha, Polonio sentia na pele
o beijo úmido da chaga purulenta em que se con-
vertera uma das feridas não cicatrizadas do Cara-
lho, os lábios de um beijo de ostra molhando-o com
alguma coisa semelhante a um fiozinho de saliva
que lhe corria até as costas, tudo por culpa do des-
cuido, do descaso mais infeliz e do abandono sem
esperança a que o Caralho se entregava. Polonio
deu-lhe um murro no estômago, com a mão esquer­
da, um murro troncho por causa da incômoda posi-
ção em que estava, com a cabeça metida no postigo,
e mais um pontapé, esse sim muito melhor, que fez
o Caralho rodar até dar com a parede de ferro da
cela, com um grito surdo e surpreso. “Porra, cuzão”,
ele se queixou sem cólera e sem agravo, “eu só que-
ro ver a hora que a mamãe chegar.” Falava feito
criança, “mamãe”, quando devia dizer “a puta que
me pariu”. A verdade era essa. O fato é que foi pre-
ciso improvisar novos planos, e a encarregada de

19

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 19 30/01/20 16:24


levá-los a cabo era a Meche, mulher de Albino. Não
viriam visitá-los, dariam o nome de outros presos,
pois agora não tinham direito a visita, já que esta-
vam engaiolados. Quem mais se desesperava no
castigo da gaiola era Albino, talvez por ser o mais
forte, quase chorava com a falta que a droga fazia,
mas sem chegar a cortar as veias, se bem que todos
os viciados acabassem fazendo isso quando a an-
gústia se tornava insuportável. Tinha sido soldado,
marinheiro e cafetão, mas com Meche não, ela não
se deixava levar, era mulher honrada — safada, cla-
ro, mas, quando ia para a cama com outros homens,
não fazia isso por dinheiro, só por gosto, sem que
Albino soubesse, claro. Foi assim que tinha dormido
várias vezes com Polonio. Tinha fogo, tinha fogo no
rabo, mas era honrada, e cada um com seu cada
qual. Nos primeiros dias da gaiola, Albino divertiu
e distraiu todo mundo com sua dança do ven-
tre — todo mundo, quer dizer, só Polonio, porque o
Caralho continuava hostil, sem entusiasmo e sem
entender porra nenhuma —, uma dança formidável,
emocionante, de grande prestígio na Penitenciária,
capaz de produzir tão viva excitação que alguns,
com uma dissimulação desnecessária, que logo de-
latava suas intenções, patentes no tosco e apressa-
do pudor que pretendia encobri-las, chegavam até
a se masturbar com violento e notório afã, a mão

20

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 20 30/01/20 16:24


por baixo das roupas. Era um verdadeiro privilégio
para Polonio poder contemplá-la ali, à vontade, na
cela, pois em outros lugares Albino era sempre de
um enorme zelo quanto à composição de seu públi-
co, como artista que se dá ao respeito, e descartava
os espectadores que lhe pareciam inconvenientes,
frívolos, pouco sérios, incapazes de apreciar as
virtudes de um autêntico virtuose. Tinha tatuada
no baixo ventre uma figura hindu — que lhe dese-
nhara, no bordel de um porto indostânico, o eunu-
co da casa, membro de uma seita esotérica de
nome impronunciável, enquanto Albino, segundo
contava, dormia um profundo e letal sono de ópio,
mais além de toda lembrança — que representava
um gracioso casal, rapaz e moça no ato de fazer
amor, seus corpos rodeados, entrelaçados por
uma incrível ramagem de coxas, pernas, braços,
seios e órgãos maravilhosos — a árvore bramânica
do Bem e do Mal —, dispostos de tal modo e com
tanta sabedoria cinética que bastava lhes dar im-
pulso com as devidas contrações e espasmos dos
músculos, com rítmica oscilação, em espaçado
incremento, da epiderme, e ainda com um sutil,
inapreensível vaivém das cadeiras, para que aque-
les membros dispersos e de caprichosa aparência,
torsos e axilas e pés e púbis e mãos e asas e ventres
e penugens, adquirissem uma unidade mágica em

21

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 21 30/01/20 16:24


que se repetia o milagre da Criação, e então a cópu-
la humana se dava por inteiro, em todo o seu mag-
nífico e portentoso esplendor. No cubículo que
servia para a revista das visitas, as mãos da guarda
de plantão apalpavam-na por cima do vestido — de-
pois viria o resto, o dedo de Deus —, mas Meche não
conseguia tirar da cabeça, justamente, a dança de
Albino, uma semana antes, na sala da Defensoria,
logo depois de acabarem de tramar os detalhes do
primeiro plano, do plano que tinha fracassado por
causa da gaiola, quando a mãe do Caralho contem-
plara as contorções da tatuagem com cara de quem
não estava entendendo nada, mas com um difuso
sorriso nos lábios, era bem capaz que ainda fizesse
amor, a mula velha, apesar dos setenta e tantos
anos. Num canto da sala, a salvo dos outros olhares
graças ao muro das cinco pessoas — as três mulhe-
res, o Caralho e Polonio —, Albino abrira a bragui-
lha das calças, levantara a camiseta feito uma
cortina de teatro que subisse para revelar o palco e
agora animava, com os fascinantes tremores de seu
ventre, aquele coito que emergia das linhas azuis e
ia tomando forma passo a passo, em cada ruptura
ou reencontro ou reestruturação de suas distâncias
e contrastes, enquanto todos — menos o Caralho e
a mãe, que evidentemente lutavam para ocultar
suas reações — sentiam o corpo percorrido por

22

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 22 30/01/20 16:24


uma sufocante massa de desejo, e um risinho breve
e equívoco dançava logo atrás do palato das duas,
Meche e Chata. Já despida de sua roupa de baixo,
Meche pressentia os próximos movimentos da mão
da vigilante e agitava-se, coisa que não acontecera
antes, com umas estranhas e indiscerníveis disposi-
ções de ânimo, uma imprecisa apreensão, nas quais
se fazia sentir a própria presença de Albino (com a
lembrança inédita de curiosos detalhes da primei-
ra vez em que se tinham possuído, nos quais nunca
pensou que tivesse reparado e que agora apare-
ciam em sua memória como absolutas novidades,
quase por inteiro pertencentes a outra pessoa),
umas disposições que não a deixavam assumir a or-
gulhosa indiferença e o desenfado agressivo com
que deveria suportar, paciente, colérica e fria, o
manuseio da fulana entre suas pernas. Por exemplo,
a respiração agitada e contudo reprimida, contida,
ou, melhor dizendo, aquele resfolegar intermediá-
rio, nem muito suave nem muito violento — apenas
pelo nariz, ela agora se dava conta — de Albino so-
bre seu monte de Vênus, justo ali onde estavam,
inexoráveis, diligentes, o polegar e o indicador da
vigilante que lhe entreabria os lábios e, de repente,
com o dedo médio, começava uma estranha explo-
ração interior, amável e delicada, num pausado ir
e vir, os olhos completamente quietos, quietos até

23

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 23 30/01/20 16:24


a morte. O plano consistia em entrar no Pavilhão
junto com a visita geral, dispersas, confundidas aos
familiares dos demais presos, para então se planta-
rem, as mulheres, de surpresa, diante da cela,
diante da gaiola, dispostas a tudo enquanto não
suspendessem o castigo de seus homens, imóveis e
fixadas ali por toda a eternidade, como fiéis cadelas
raivosas. A vigilante, pois, e seus manuseios eram a
fonte da dupla, da tripla, da quádrupla lembrança
que a assediava e que se imiscuía, sem que Meche
pudesse conter, remediar, reprimir uma atitude de
aquiescência estúpida, mas completamente inevi-
tável, a tal ponto que a macaca já se ia tomando de
um tremor ansioso e uma respiração descompas-
sada — quase feroz e apenas pelo nariz, feito Albi-
no —, com o que o próprio ventre de Meche parecia
se transformar — ou se transformava em virtude
de uma sediciosa transposição — no ventre dele, de
Albino (ela então se dispondo, meu Deus, a fazer as
vezes de macho em relação à vigilante), tão logo se
infiltrava para dentro dessas sensações a imagem
dele, de Albino, durante aquelas cenas da primeira
vez em que, montando nela à altura dos olhos, in-
fundira aquela vida eriçada e prodigiosa às figuras
da tatuagem bramânica, e agora Meche imaginava
ser ela mesma que fazia dançar seu ventre — idên-
ticas, mas secretas, invisíveis oscilações — como

24

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 24 30/01/20 16:24


instrumento de sedução dirigido à macaca e a seus
olhos próximos, na medida em que esta, a vigilante,
não só não oferecia resistência como ainda, sem sa-
ber, dispunha-se — impulsionada pelo sopro miste-
rioso que fazia transcorrer assim (subtraindo-as ao
acaso e ao fato fortuito de não se conhecerem) as
relações internas que prontamente se estabele-
ciam entre ela, Albino, Meche —, dispunha-se pou-
co menos que metaforicamente — pois lhe bastaria
uma palavra para fazê-lo de verdade — na própria
posição de Meche sob o corpo de Albino, absoluta-
mente envenenada pelo amor dos adolescentes in-
dostânicos. Meche não tinha como formular de
modo coerente e lógico, nem com palavras nem
com pensamentos, o que estava acontecendo, a na-
tureza desse acontecimento cada vez mais estra-
nho e a linguagem nova, secreta, de peculiaridades
únicas, exclusivas, de que se serviam as coisas a
fim de se expressar, muito embora não se tratasse
ali das coisas em geral ou em conjunto, e sim de
cada uma delas, à parte, cada coisa singular, espe-
cífica, com suas palavras, sua emoção e a rede sub-
terrânea de comunicações e significações que, à
margem do tempo e do espaço, ligava-as umas às
outras, por mais distantes que estivessem entre si,
e as convertia em símbolos e chaves impossíveis de
serem compreendidas por quem não pertencesse,

25

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 25 30/01/20 16:24


e do modo mais concreto, a essa conjuração bio-
gráfica em que as próprias coisas se convertiam em
seu próprio e hermético disfarce. Arqueologia das
paixões, dos sentimentos e do pecado, em que as
armas, as ferramentas, os órgãos abstratos do de-
sejo — a tendência de cada fato imperfeito a buscar
sua consanguinidade e sua realização, por mais in-
cestuoso que pareça, em seu próprio gêmeo — apro-
ximam-se de seu objeto por meio de uma longa,
insistente e incansável aventura de superposições,
que são, a cada nova vez, a imagem mais seme-
lhante a isso cuja forma é um anseio que nunca
chega a se consumar, e que restam como subjacên-
cias sem nome de uma proximidade sempre in-
completa, feita de inquietos e incitantes signos que
aguardam, febris, o instante em que possam ir ao
encontro dessa outra parte de sua intenção, entrar
em contato com essa presença que, só ela, poderá
decifrá-los. É assim que um rosto, um olhar, uma
atitude, que constituem o traçado próprio do objeto,
depuram-se, complementam-se numa outra pessoa,
num outro amor, em outras situações, como hori-
zontes arqueológicos em que os dados de cada or-
dem, um friso, uma gárgula, uma abside, um friso
não são outra coisa senão a parte móvel de certa
desesperançada eternidade, com a qual se con-
densa o tempo e na qual as mãos, os pés, os joelhos,

26

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 26 30/01/20 16:24


a forma de olhar, ou ainda um beijo, uma pedra,
uma paisagem, ao se repetirem, são percebidos por
outros sentidos que já não são os mesmos de outro-
ra, por mais que o passado mal diga respeito ao mi-
nuto anterior. Quando Meche ia transpondo a
primeira grade rumo ao pátio que comunicava com
os diferentes pavilhões, dispostos radialmente ao
redor de um perímetro circular em que se erguia a
torre de guarda — um elevado polígono de ferro,
construído para dominar do alto cada ângulo da
prisão —, seguiam fixados em sua mente, quietos,
imperturbáveis e atrozes, os olhos da vigilante, ne-
gros e de uma eloquência mortal, como que pron-
tos a fitá-la para sempre. Polonio já não aguentava
mais com a cabeça incrustada no postigo e decidiu
ceder o posto de vigia para que Albino o ocupasse,
mas ao espiar de soslaio e com muito esforço para
o interior da cela, entreviu uma espécie de movi-
mento estranho, ao mesmo tempo que notava que
o Caralho tinha parado de gemer desde que levara
o murro no estômago. Com muito cuidado e lenti-
dão, atento, precavido, dobrou a orelha que ficava
para fora da moldura do postigo e foi recuando a
cabeça, ao mesmo tempo que se perguntava se, nes-
se meio tempo, Albino já não teria terminado de
estrangular o aleijado. Na verdade — pensou —, não
lhe faltavam razões para tanto, mas que esperasse

27

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 27 30/01/20 16:24


um pouco, depois eles o matariam, a dois, em cir-
cunstâncias mais propícias e quando a droga já es-
tivesse segura em suas mãos, não antes nem aqui,
dentro da cela, pois o plano podia cair por terra e,
quisessem ou não, a mãe do Caralho era a chave de
tudo. Era só questão de pensar bem onde e quando
matá-lo, depois (ou depoiszinho, dizia Albino), mas
cada coisa na sua hora. O Caralho tinha desatado a
gemer sem parar desde que Polonio lhe assestara
o murro e o pontapé, de um jeito irritante, repeti-
tivo, monótono, artificial, com o qual expressava
sem nenhum rebuço, nos mínimos detalhes, a
monstruosa condição de sua alma perversa, ruim,
infame, abjeta. Os golpes não tinham sido assim
para tanto, seu corpo miserável estava acostuma-
do a mais e maiores e mais brutais, de modo que
aquela impostura de dor, assumida apenas para
apiedar e para se rebaixar, obtinha resultados
opostos, uma espécie de asco e de ódio crescentes,
uma cólera cega que desencadeava, nas profunde-
zas do coração, os mais vivos desejos de que seus
sofrimentos fossem a extremos inacreditáveis e
lhe infligissem alguma dor mais real, mais autênti-
ca, capaz de fazê-lo em pedaços — e aqui sobrevinha
uma lembrança da infância —, feito uma tarântula
maligna, com a mesma sensação que invade os
sentidos quando a aranha, sob efeito de um ácido,

28

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 28 30/01/20 16:24


encrespa-se, encolhe-se em si mesma — enquanto
produz, por outro lado, um ruído furioso e impo-
tente —, enreda-se em suas próprias patas, enlou-
quecida, e contudo não morre, não morre, e quem
olha tem vontade de esmagá-la, mas tampouco tem
forças para tanto, não se atreve, sente-se tão inca-
paz que quase larga a chorar. Gemia num tom rou-
co, frouxo, gargarejante, com o qual simulava, volta
e meia, um estertor lastimoso e desavergonhado,
enquanto, no olho sujo e marejado, conseguia sus-
tentar, quieto, comovedor, transido de piedade, um
implorante olhar de profunda autocompaixão, hi-
pócrita, falsa, repleta de malévolas reentrâncias.
Se Polonio e Albino tinham selado uma aliança com
o Caralho, era só porque a mãe dele estava disposta
a servi-los, mas, liquidado o negócio, o aleijado que
fosse às favas, que fosse à puta que o pariu, matá-lo
seria a única saída, a única forma de voltarem a se
sentir tranquilos e em paz. “Largue dele!”, ordenou
Polonio, dando um vigoroso empurrão em Albino,
com todo o peso do corpo. Livre das garras, o Cara-
lho ficou feito um saco inerte no canto onde estava.
Por pouco Albino não o estrangulara, e ele já não se
atrevia a gemer nem a expressar o menor protesto.
Com uma das mãos, que ascendeu desajeitada e
trêmula pelo peito, acariciava a própria garganta e
mexia com o pomo de Adão entre os dedos, como se

29

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 29 30/01/20 16:24


quisesse reacomodá-lo em seu lugar. O olho brilha-
va agora com um horror silencioso, cheio de uma
estupefação que, de repente, já não lhe permitia
entender nada no mundo. Assim que levassem o
plano a cabo e a situação tomasse outro rumo, o Ca-
ralho queria contar tudo para a mãe, falar das afli-
ções espantosas que padecia, de como já não queria
saber de nadica de nada, de nada mais que não fosse
o pequeno e efêmero gozo, a tranquilidade que lhe
dava a droga, de como tinha que travar um combate
sem escapatória, minuto a minuto e segundo a se-
gundo, para obter esse descanso, de como aquela
era a última coisa que ele amava nesta vida, essa
evasão dos tormentos sem nome a que estava sub-
metido, e de como, literalmente, tinha que pagar
com a dor de seu corpo, com pedaço após pedaço de
sua pele, por um lapso indefinido e sem contornos
dessa liberdade em que ele naufragava, a cada novo
suplício, mais feliz. Introduzir — ou tirar — a cabeça
desse retângulo de ferro, dessa guilhotina, trans-
portar-se, transportar o crânio com todas as suas
partes, a nuca, a testa, o nariz, as orelhas, para o
mundo exterior à cela, pôr o crânio ali como se fos-
se a cabeça de um justiçado, irreal à força de ser
viva, requeria um empenho cuidadoso, minucioso,
do mesmo modo como se extrai um feto das entra-
nhas maternas, um tenaz e deliberado autoparir-se

30

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 30 30/01/20 16:24


com fórceps que terminava arrancando mechas de
cabelo e arranhando a pele. Ajudado por Polonio,
Albino terminou de pousar a cabeça virada em cima
da prancha. Lá embaixo estavam os macacos, no
caixote, com sua antiga presença inexplicável de
macacos prisioneiros. Tão logo descansou as costas
contra a porta, junto ao corpo guilhotinado de Albi-
no, Polonio acendeu um cigarro e aspirou longa e
profundamente a plenos pulmões. O sol batia no
meio da cela num corte oblíquo e quadrangular —
uma coluna maciça, corpórea, em cuja radiante
massa moviam-se e entrechocavam-se, com so-
nâmbula inconstância, erráticas, distraídas, con-
fusas, as partículas de poeira — e traçava sobre o
piso, a curta distância de Polonio, a moldura de luz
da janela com suas grades verticais. Do outro lado
da pilastra solar, a figura do Caralho, rancorosa e
muda, se dissolvia na sombra. Os impetuosos vultos
da baforada de fumaça que soltou Polonio invadi-
ram a zona de luz com a desordem arrebatadora
das garupas, os beiços, as patas, as nuvens, os ar-
reios e o tumulto de sua cavalgada, erguendo-se e
revolvendo-se na luta corpo a corpo de seus próprios
volumes cambiantes e pausados, para em seguida,
pouco a pouco, à mercê do ar imóvel, integrar-se
com leve e sutil cadência a uma quietude horizon-
tal, à semelhança do desfile vitorioso de diversas

31

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 31 30/01/20 16:24


formações militares depois de uma batalha. Aqui,
o movimento transferia suas formas à ondulada es-
crita de outros ritmos, e as lentíssimas espirais
mantinham-se longamente em sua instantânea
condição de ídolos ébrios e estátuas pilhadas em
flagrante. A voz de Albino chegou-lhe do outro
lado da porta de ferro, mansa, confidencial, com
ternura. “Está começando a entrar a visita.” A visi-
ta. A droga. Os corpos de fumaça desfaziam seus
contornos, se abraçavam, construíam relevos e es-
truturas e estelas, sujeitos a sua própria ordem — a
mesma que rege o sistema celeste —, já puramente
divinos, livres do humano, parte de uma natureza
nova e recém-inventada, da qual o sol era o demiur-
go e onde as nebulosas, mal tocadas por um sopro
de geometria, anteriores à Criação, ocupavam a li-
berdade de um espaço que se formara a sua própria
imagem e semelhança, como um imenso desejo in-
terminável que nunca deixa de se realizar e que, à
maneira de Deus, jamais se deixa cingir em seus
limites por seja lá o que queira contê-lo. Mas ali es-
tava o Caralho, anti-Deus malparado, carcomido,
que começou a se sacudir ao sabor das bruscas con-
vulsões de uma tosse frenética, galopante, batendo
com o corpo contra o canto de parede em que se
apoiava, de um jeito estranho, intermitente e autô-
nomo, com o ruído surdo e fugidio de um bongô

32

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 32 30/01/20 16:24


de couro frouxo. Mais parecia um possuído, com o
olho de um abutre colérico, tomado pela asfixia.
As linhas, as espirais, os caracóis, as estátuas e os
deuses fugiram em desvario, dispersos e fendidos
pelas trepidações da tosse. O Caralho não tinha um
dos pulmões, e Albino devia ter apoiado o joelho
contra seu peito com força demais quando, mo-
mentos antes, tratava de estrangulá-lo. O aleijado
era um estorvo dos grandes. Com muito esforço, Al-
bino passou a mão pelo postigo, rente ao rosto e por
cima do nariz, a fim de estar pronto para receber a
droga no momento em que as mulheres se aproxi-
massem da porta da cela. De repente, uma espan-
tosa raiva cegou-lhe a vista: uma pequena crosta
úmida, ainda não endurecida, do pus, do pus da fe-
rida aberta do Caralho que se colara a sua mão du-
rante a peleja e que Albino por pouco não espalhava
pelos próprios lábios. Fechou os olhos enquanto tre-
mia com um tilintar da cabeça sobre a prancha de
ferro, os dentes apertados com uma violência bes-
tial. Estava decidido a matá-lo, decidido com todas
as forças da alma. Abriu as pálpebras para olhar de
novo. Não tardaria a começar o desfile dos familia-
res, pois as duas portas do caixote (uma em cada
lado das grades) já estavam sem cadeado, para per-
mitir a passagem. Elas não chegariam juntas, mas
separadas, misturadas às visitas. Albino conjeturava

33

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 33 30/01/20 16:24


sobre qual seria a primeira a aparecer, se a Chata,
a mãe ou Mercedes, Meche, com seu belo corpo,
com seus ombros, com suas pernas, alada, incitan-
te. (Mas a evocação de Meche, naquelas circunstân-
cias, como que se distorcia sob o influxo de novos
fatores, imprecisos e repletos de contradições, que
acrescentavam à recordação uma atmosfera diver-
sa, um toque original e estranho: Meche teria aca-
bado de passar por uma experiência cujos detalhes
Albino ignorava, mas que, desde que ouvira falar a
respeito, uma semana antes — quando planejavam a
forma de fazer entrar a droga na Penitenciária e
quando Polonio pensara em usar a mãe do Cara-
lho —, permanecia fixada em sua mente, de uma
forma ou de outra, mas sempre aludindo a imagens
físicas concretas. Em primeiro lugar, a guarda de
plantão, e em seguida o estranho e inquietante
conteúdo de duas palavras escutadas sabe-se lá
onde e como — entre enfermeiras ou médicos, en-
quanto esperava para ser atendido para tratar de
alguma coisa, em algum lugar, como em um sonho,
se é que não era mesmo um sonho —, palavras que,
mercê de seu caráter de perífrase técnica, conden-
savam uma série de situações e movimentos muito
vastos e sugestivos: posição ginecológica. A guarda
de plantão e sua maneira de revistar certo número
de visitantes, não todas, mas especialmente as que

34

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 34 30/01/20 16:24


vinham ver os viciados e, dentre estes, os que se
destacavam como os agentes mais ativos do tráfico
na Preventiva: Albino e Polonio. Ela as revistaria
na tal posição ginecológica? A situação e as duas
palavras absurdas faziam de Meche alguma coisa
de ligeiramente diferente da Meche habitual: vio-
lentada e prostituída, sem que a coisa constituísse
um elemento de repulsa, mas, pelo contrário, de
aproximação, como se aquilo lhe acrescentasse um
atrativo de natureza indefinida, que Albino não se
sentia capaz de formular. Pouco lhe importava que
Meche pudesse ter passado por uma situação equívo-
ca — e é claro que a interrogaria em todo detalhe —,
no caso de uma exploração mais ou menos excessiva
por parte da guarda, durante a revista: a coisa toda
excitava Albino com um desejo renovado, de apa-
rência desconhecida, e um relato minucioso e verí-
dico de Meche faria com que ele antecipasse, na
sequência, uma nova forma de enlace entre os dois,
mais intensa e completa, à qual não faltaria, sem
dúvida, algum toque de alegre e desenvolta depra-
vação, na qual aqueles dois termos médicos certa-
mente desempenhariam um papel.) Muito embora
o caixote fizesse parte do Pavilhão, separado deste
unicamente pelas grades que serviam de limite en-
tre um e outro, a presença dos vigias, encerrados ali
dentro, dava-lhe o aspecto de um cárcere à parte,

35

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 35 30/01/20 16:24


um cárcere para carcereiros, um cárcere dentro do
cárcere, por onde a visita teria forçosamente de
passar antes de entrar no pátio do Pavilhão pro-
priamente dito. Era esse o campo visual que Albino
dominava a partir do postigo, uma verdadeira tor-
tura. Mais alto que a janelinha — que ficava à altura
do peito de um sujeito médio —, Albino tinha que se
manter encurvado, em posição muito forçada, para
manter a cabeça metida ali, o que lhe causara, ao
cabo de alguns minutos, uma dor muscular aguda
no pescoço e nas costas, sem falar nas pernas, que
tremiam de modo ridículo e mortificante, dando a
impressão de que estava com medo. Tão logo uma
das mulheres — Meche, a Chata ou a mãe — transpu-
sesse a primeira e a segunda grade do caixote, seria
a hora de fazer alguma coisa — um barulho, uns
chutes na porta — para que reparassem no ponto
preciso em que se achava a gaiola do castigo. É cla-
ro que o mais correto, pensou, seria soltar um in-
sulto, mandar à merda a mãe dos macacos, que
para isso estavam ali. O importante era vê-las che-
gar, vê-las entrar no caixote e depois no pátio, para
que pudessem estar seguros de que tudo correra
bem na revista com as macacas. Não havia proble-
ma quanto a Meche e à Chata: seriam apalpadas e
pronto, não encontrariam nada dentro. O que im-
portava era a mãe, era que a velha da porra passasse

36

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 36 30/01/20 16:24


com os trinta gramas metidos nas partes. À falta de
outra palavra, chamavam de greve ao que estava
para acontecer: uma greve de mulheres. Mas antes
que Meche, a Chata e a mãe subissem até ali, até a
porta da cela, para desatar a gritar e berrar e esper-
near, antes que a bronca começasse para valer, a
mãe tinha de entregar o pacotinho de droga a quem
estivesse com a cabeça no postigo. No caso, Albino,
o São João Batista de turno em cima da bandeja.
Depois, já encorpado pela droga, cuidaria da morte
do Caralho. Era fácil liquidar o assunto, durante al-
guma sessão no cinema, em meio às sombras. Me-
ter-lhe um ferro entre as costelas, enquanto Polonio
lhe tapava a boca, pois o Caralho ia querer gritar
feito um bezerro. Não tinham se associado a ele
exatamente por conta da boniteza. Albino riu consi-
go: só por conta da mãe. Ter mãe era tudo que o ca-
bra tinha, e parava nisso. As visitas formavam fila no
acesso circular, a pouca distância — mas ainda fora
do campo visual de Albino —, para entrar por tur-
nos nos respectivos pavilhões. Mães, esposas, filhas,
crianças, pouquíssimos homens feitos, dois ou três
em cada grupo, o ar receoso, a vista baixa. As con-
versas, curiosamente, nunca giravam em torno
das causas que haviam levado os parentes à prisão.
Ninguém punha em questão a culpa ou a inocência
do filho, do marido, do irmão: estavam ali, e só. Não

37

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 37 30/01/20 16:24


acontecia a mesma coisa com outro tipo de visita.
Quando alguma senhora de classe alta chegava pe-
las primeiras vezes àquele lugar, sua preocupação
única, obsessiva, manifesta — que terminava por
carecer de toda lógica e excluir a mais simples ila-
ção —, era a de estabelecer um limite social preciso
entre o seu preso — as causas que o mantinham de-
tido, o caráter passageiro e puramente incidental
de seu trânsito pela prisão — e os presos dos demais.
O seu era “acusado de”, sem ter cometido nenhum
delito — por mais que as aparências fossem, afinal,
suspeitas —, as altas esferas já estavam a par, e dois
ou três ministros já cuidavam do assunto. Seus ou-
vintes assentiam invariavelmente, sem discussão
nem surpresa, com indulgência e incredulidade,
sem que a grã-fina reparasse nessa piedosa cortesia,
que julgava ser deslumbramento — ainda mais
quando se leva em conta certo luxo reforçado com
que se vestia. Mas à medida que sua presença se fa-
zia mais constante na fila das visitas, a senhora de
estirpe ia pouco a pouco alterando a atitude e fazen-
do concessões à realidade. Cada vez falava menos de
personagens influentes, a inocência ou a culpa do
“seu” preso decaía notavelmente como assunto de
conversa e os vestidos eram mais simples, até que
por fim se integrava à categoria das visitantes nor-
mais e passava despercebida. A Chata distinguiu

38

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 38 30/01/20 16:24


a figura de Meche, atrás, entre outras mulheres em
fila. Suspirou. Tinha inveja dela, inveja das boas.
Gostava do homem dela, Albino, e desde que ele
mostrara a dança do ventre na Defensoria, a Chata
ficava tonta só de pensar. Pediria a Meche que, sem
perder a amizade, deixasse-a ir para a cama com
Albino. Uma ou duas vezes, no máximo, para a coisa
não pegar, quer dizer, para não gamar nele. Um
pouco mais longe de Meche, a mãe do Caralho se
aproximava, trôpega, desconfiada. Tinha deixado
que Meche e a Chata introduzissem o tampão anti-
concepcional como se não fosse nada, com a indife-
rença de uma vaca na ordenha. Aqui, as tetas; ali, a
vagina. Como tinham calculado, não houve revista
nela, respeitaram-na em nome da idade, a vaca or-
denhada passou tão insuspeita como uma virgem.
Mas agora tinham chegado à jaula dos macacos, ao
caixote. O Caralho porfiava para que o deixassem
mostrar a cabeça pelo postigo, porque, dizia ele, a
mãe não entregaria a droga a ninguém senão a ele.
Mas porfiava sem força, sem esperança. A cabeça de
Albino respondia, do lado de fora da cela, com ira.
Por fim apareceram, lá embaixo, Meche e a Chata.
“Macacos de merda, filhos da puta que os pariu!”
Os olhos das duas mulheres voltaram-se para a voz:
era o homem delas. Mas faltava a mula velha da mãe,
a infeliz tardava. A cabeça na guilhotina negou-se,

39

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 39 30/01/20 16:24


cortante, a ceder o posto de vigia. A mamãe não era
tão besta que fosse entregar a droga para um outro,
teimava o Caralho. Mentira deslavada. Queria era
ver a mãe agora mesmo, aqui mesmo, desesperado
por ela. Contaria tudo, sem ficar calado como das
outras vezes. Tudo. As imensas noites de vigília na
enfermaria, submetido à camisa de força, os ba-
nhos de água gelada, a história das veias: é claro
que não queria morrer, ao mesmo tempo que sim,
afinal de contas queria morrer; a forma de se aban-
donar, de abandonar seu corpo feito um farrapo, à
deriva, a infinita impiedade dos seres humanos, a
infinita impiedade dele mesmo, as maldições de
que estava feita sua alma. Tudo. Teimava. “Estou fa-
lando para não me encher o saco!” Nessa altura, a
mãe do Caralho cruzou as duas grades do caixote e
entrou no pátio do Pavilhão. Estavam salvos. Orien-
tadas pelo grito de Albino, as mulheres encaminha-
ram-se para a cela dos engaiolados, numa espécie
de translação mágica, invisível e premente, unidas
aos movimentos, ao ir e vir e tatear das demais pes-
soas, de modo tão natural, seguro e desenvolto que
não pareciam nem distintas, nem especiais nem
movidas por um propósito certo e determinado,
com o que de repente já estavam ali, e Meche se lan-
çava sobre a cabeça de Albino e a cobria de beijos
por todos os lados, nas orelhas, nos olhos, no nariz,

40

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 40 30/01/20 16:24


num canto dos lábios, sem que a cabeça de Holofer-
nes encontrasse jeito de se mexer, mal respirando,
como um corpo de peixe monstruoso, dotado de ca-
beça humana, que o mar tivesse atirado ali. “Filho!
Cadê o meu filho?”, exclamava a mãe do Caralho
com uma voz cavernosa e atônita, como se esperas-
se dar de cara com o filho desde o primeiro momen-
to, e agora, ao não ser assim, mostrava-se perdida e
confusa, com uma expressão cheia de medo e des-
confiança diante das duas outras mulheres. “Cadê,
cadê?”, repetia sem tirar os olhos da cabeça e da
mão expostas sobre a pranchinha do postigo e
cambaleando desajeitada, como se estivesse bêba-
da. A visão da cabeça separada do tronco, guilhoti-
nada e viva, com seu único olho que orbitava,
desesperado, idêntico aos olhos dos bezerros quan-
do são derrubados por terra e sabem que vão mor-
rer, desatou desde o começo em Meche e na Chata
um furor enlouquecido, mas de alguma forma tam-
bém jovial e, a despeito do destrambelho da situa-
ção, alegre. Pareciam até mais jovens do que
eram — pois não teriam sequer chegado aos vinte e
cinco —, moças de menos de vinte anos, esportivas,
elásticas, ágeis e garbosas, ao mesmo tempo que
bestiais. Tinham montado no parapeito do corre-
dor, com as pernas cruzadas, enlaçando os pés às
traves verticais, e nessa posição, as saias levantadas

41

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 41 30/01/20 16:24


e as coxas à mostra, lançavam os gritos e uivos mais
inverossímeis, agitando as mãos no ar, sem descan-
so, ora crispadas, ora cerradas, os braços, pareci-
dos a robustas e torneadas raízes de aço, sacudidos
por curtas e violentas descargas elétricas, enquan-
to os olhos, abertos muito além do imaginável, ru-
bros e descompostos, largavam centelhas de uma
raiva sem limites. “Solta, porra, solta, porra”, o gri-
to dividido em duas coléricas emissões, sólta-pôrra,
sólta-pôrra. A mãe permanecia imóvel no meio das
duas mulheres, aferrada com as duas mãos ao cor-
rimão como à amurada de um navio, virada para o
pátio e olhando de esguelha, uma e outra vez, para
o postigo, à espera de ver ali a cabeça do filho, e não
a desse outro homem ao qual não a unia nenhum
afeto ou ternura. A cabeça, às costas da velha, re-
clamava, agoniada, nervosa, com assomos de histe-
ria: “Passa o bagulho, velha!”, primeiro conciliadora,
depois agressiva, sufocada pela entonação cautelo-
sa. “Passa a farinha, velha da porra! Passa o bagu-
lho, velha filha da puta!” Era bem possível que a
velha não estivesse ouvindo nada. Mais parecia um
vulto de pedra, mal e mal esculpido por um formão
de sílex do Neolítico, vasta, pesada, espantosa e so-
lene. Seu silêncio tinha alguma coisa de zoológico e
rupestre, como se a ausência do órgão adequado a
impedisse de emitir todo e qualquer som, falar ou

42

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 42 30/01/20 16:24


gritar, uma besta muda de nascimento. Apenas cho-
rava, e mesmo suas lágrimas suscitavam o horror de
ver pela primeira vez um animal absolutamente des-
conhecido e diante do qual fosse impossível sentir
misericórdia ou amor, como acontecia com seu fi-
lho. As lágrimas grossas e lentas que deslizavam
pela face correspondente à velha navalhada da so-
brancelha ao queixo seguiam não uma linha verti-
cal, mas o percurso da cicatriz, e gotejavam da
ponta da barbicha, alheias aos olhos, alheias a todo
pranto humano. No pátio do Pavilhão, os internos
e seus familiares, dando-se ares de discreta dis-
tração e como que necessitados de alguma coisa
que não fosse sua e à qual não pudessem resistir,
agrupavam-se pouco a pouco abaixo das mulhe-
res trepadas no corrimão. Ninguém ousava lançar
um grito ou alçar a voz, mas daquela massa toda
provinha um sussurro surdo, mascado, um zum-
bido unânime de solidariedade e de contenta-
mento, pelo qual os macacos não poderiam culpar
ninguém. Durante a visita dos familiares, o pátio
do Pavilhão se transformava num extravagante
acampamento, com as mantas estendidas no chão
ou presas às paredes entre as portas das celas, à
guisa de teto, onde cada clã se reunia, ombro a om-
bro, mulheres, crianças, internos, numa espécie de
agregação primitiva e desamparada de náufragos

43

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 43 30/01/20 16:24


estranhos uns aos outros ou de gente que nunca
tivera lar e agora ensaiava, por puro instinto, uma
espécie de convivência contrafeita e desnuda. Abai-
xo das duas mulheres, a maré crescia em pequenas
ondas sucessivas, vagarosas, que se aproximavam
como a passeio, os homens sem desviar o olhar
aberto e cínico das calcinhas pretas de Meche e da
Chata, expectantes, zombeteiros, temerosos. “Apa-
rece, Caralho, aparece, porra!” Ele não entendia.
“Anda, anda, mostra a cara!” A cabeça de Albino su-
miu-se trabalhosamente para dentro da cela, e a
mãe pôde ver, quase imediatamente, como diante
de um espelho, como se parisse de novo o filho, pri-
meiro a cabeleira úmida e desgrenhada, e então,
osso por osso, a testa, os pômulos, o maxilar, carne
de sua carne e sangue de seu sangue, uma e outro
macilentos, amargos e vencidos. Pousou a mão
trêmula e tosca sobre a testa do filho, como se qui-
sesse proteger o olho cego dos raios vivos do sol.
“O pacotinho, mãezinha do meu coração, o pacoti-
nho que a senhora trouxe”, pedia o homem num
tom lamurioso e desolado. Aterrorizada, aturdida,
sonâmbula de sofrimento, com aquela mão que
pousava, sem consciência nenhuma, sobre a testa
do filho, a velha de repente adquiria alguma coisa
do aspecto alucinante e comovedor de uma Mater
Dolorosa bárbara, ainda por desbastar, feita de

44

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 44 30/01/20 16:24


barro e pedra e adobe, um ídolo velho e gasto. Mais
abaixo, no meio do repicar de tambores em surdina,
ouvia-se cada vez mais, com maior frequência, dis-
tinta e isolada, uma voz ou outra que fazia coro ao
grito das mulheres. Sólta-êles, sólta-êles. Prove-
niente do Comando, uma patrulha de dez guardas
transpôs o caixote. A multidão, sem mostrar o ros-
to, abriu passagem para aquela marcha disparata-
da e temerosa de macacos postos em liberdade,
penando para aprender a correr, atentos sobretudo
a não se afastar do grupo, da tribo, para não fica-
rem sozinhos no meio daquela gente procelosa, im-
pessoal, impune, que fingia não os ver passar nem,
rancorosamente, conceder-lhes existência física,
aquela gente que olhava através deles como se fos-
sem feitos de corpos transparentes. A luta contra
Meche, a Chata e a velha parecia não terminar nun-
ca, com um aspecto de ação incruenta, sem dor,
muito distante. Já seminuas, as roupas em farrapos,
encontravam sempre um ponto, uma saliência,
uma trave, uma fenda em que pudessem se engatar,
enquanto três ou quatro macacos faziam grotescos
esforços para arrastar cada uma delas rumo à esca-
da. Da voz rouca da multidão, lá embaixo, brotava
toda espécie de exclamações, gritos, injúrias, garga-
lhadas, ora de protesto e compaixão, ora de um
gozo selvagem que exigia ainda mais descaramento,

45

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 45 30/01/20 16:24


brutalidade e sem-vergonhice daquele espetáculo
fabuloso e único de seios, traseiros, ventres à mos-
tra. A mãe, os braços curtos erguidos acima da cabe-
ça, interpunha-se entre as mulheres e os macacos,
sem fazer nada, com um pesado e trabalhoso salti-
tar de pássaro que tivesse esquecido como voar, um
elo pré-histórico entre os répteis e as aves. Num
desses saltos, caiu no chão, deslizando pela superfí-
cie de ferro do corredor, até ficar enganchada, com
uma das traves do parapeito no meio das pernas
abertas, coisa que a impedia, por ora, de se despe-
nhar do alto, mas que não evitaria que caísse no pá-
tio, mais cedo ou mais tarde, assim com a metade do
corpo suspensa no vazio. Houve um rugido de pavor
lançado simultaneamente por todos os espectado-
res, e se produziu então um silêncio asfixiante, estra-
nho, como se não houvesse mais ninguém na
superfície da terra. Até os engaiolados emudeceram
na cela, mesmo sem ver, unicamente adivinhando
que alguma coisa de desmesurado estava a ponto de
acontecer. A mulher sacudia os braços num esvoa-
çar irracional e desesperado. “Não mexe, velha
idiota!”, rompeu o silêncio um dos macacos e arras-
tou a velha para fora de perigo, puxando-a por bai-
xo dos sovacos. Voltou a reinar o mesmo silêncio de
antes, mas agora não apenas por causa da ausên-
cia de ruído e de vozes, mas também por conta dos

46

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 46 30/01/20 16:24


movimentos, movimentos em absoluto carentes de
rumor, que não se escutavam, como numa lenta e
imaginária ação subaquática, de mergulhadores
atuando em estado de hipnose, em que todos, ato-
res e espectadores, estivessem metidos no escafan-
dro do próprio corpo, presente e distante, uma
ação imóvel, mas que avançasse fase a fase, aos so-
lavancos, em fragmentos autônomos e independen-
tes, em que a unidade exterior, visível, não fosse
harmonizada pelo nexo de uma coerência lógica e
causal, mas sim, precisamente, pelo fio frio e rígido
da loucura. Algo ia mal nesse filme anterior ao cine-
ma falado. Sabe-se lá o que disse o Comandante aos
macacos e às mulheres: fez-se uma calma insólita e
tensa, dois macacos inclinaram-se sobre o cadeado
da cela e desengaiolaram os três reclusos, e todo o
grupo — as três mulheres, seus homens e os guar-
das —, tranquilamente, apesar dos olhares de louco
de Polonio, Albino e mesmo do Caralho, começou a
descer as escadas. Na porta do caixote, o Coman-
dante fez passar os guardas e então se virou para as
mulheres. Estava muito seguro da eficácia da arma-
dilha. “Aqui dentro poderão falar tudo que quiserem
com seus presos, à vista de todos”, disse, “entrem
primeiro as senhoras e depois os machos.” As mulhe-
res obedeceram, dóceis, com um ar de vitória cansa-
da. Mas tão logo elas entraram, os dois primeiros

47

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 47 30/01/20 16:24


macacos, com uma rapidez relampejante, empur-
raram-nas num piscar de olhos para fora do caixote,
pela porta que dava para o acesso circular, imedia-
tamente fechando o cadeado atrás delas. Elas se
viram, de repente e sem se dar conta, do outro lado
do Pavilhão, do outro lado do mundo. O Coman-
dante nem teve tempo de rir da armadilha. Albino
e Polonio, com o Caralho entre eles, irromperam
com cega e desenfreada violência para dentro, se-
guidos inconscientemente pelo Comandante e por
mais um guarda. Com um só e brusco movimento,
Albino fechou o cadeado da porta que se comunica-
va com o Pavilhão. Agora estavam sós com o Co-
mandante e os três guardas, encerrados na mesma
jaula de macacos. Quatro contra três; não, dois
contra quatro, contabilizando-se a nulidade abso-
luta do Caralho. “Agora vamos ver que tal, seus
macacos filhos de uma puta”, bramiu Albino, tiran-
do o cinto de couro para brandi-lo na luta. Uma ca-
cetada em pleno rosto, no pômulo e no nariz, fez
brotar uma repentina flor de sangue, surpreenden-
te, como que saída do nada. Polonio e Albino ti-
nham-se convertido em dois antigos gladiadores,
homicidas até a raiz dos cabelos. A luta era calada,
estudada, precisa, sem um grito, sem uma queixa.
Batiam para matar e para ferir a fundo, com os pés,
com os cacetetes, com os dentes, com os punhos,

48

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 48 30/01/20 16:24


para arrancar os olhos e arrebentar os testículos.
Os olhares, as atitudes, a respiração, o calculado
movimento de um braço, o avançar ou o retroceder
de um pé, consagrados por inteiro à retesada von-
tade de um único e unívoco fim implacável, exala-
vam a morte em sua presença mais cabal, mais
incrível. As mulheres, impotentes do outro lado da
grade, gritavam como demônios, chutavam o guar-
da que se aproximava e puxavam pelos cabelos
aqueles que por um momento caíam perto, para
lhes arrancar mechas de cabelos cujas raízes san-
gravam com pedaços esbranquiçados de couro ca-
beludo. A mãe, de joelhos, batia a testa contra o
chão, repetidas vezes, numa espécie de oração de-
sorbitada e estrambótica, enquanto o Caralho, re-
traindo-se entre os barrotes, encolhido no intento
feroz de reduzir ao máximo o volume de seu corpo,
uivava longamente, não fazia outra coisa senão ui-
var. Chegaram do Comando outros macacos, vinte
ou mais, providos de longos tubos de ferro. A ques-
tão era introduzi-los, tubo por tubo, entre os barro-
tes, de uma grade à outra da jaula, e, com a ajuda
dos guardas que tinham ficado no pátio do Pavilhão,
mantê-los firmes, com dois ou três homens segu-
rando em cada extremo, a fim de ir levantando bar-
reiras sucessivas de um lado a outro, de cima a
baixo do retângulo, nos mais diversos e imprevistos

49

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 49 30/01/20 16:24


planos e níveis, conforme as necessidades da luta
contra as duas feras, e ao mesmo tempo cuidando
para não atrapalhar ou anular a ação do Coman-
dante e dos três macacos, numa diabólica sucessão
de mutilações do espaço, triângulos, trapézios, pa-
ralelas, segmentos oblíquos ou perpendiculares, li-
nhas e mais linhas, grades e mais grades, até
impedir todo movimento dos gladiadores e deixá-
-los crucificados sobre o esquema monstruoso des-
sa gigantesca derrota da liberdade às mãos da
geometria. As três primeiras das cinco barras hori-
zontais, na perpendicular dos barrotes de cada gra-
de do caixote, primeiro como ponto de apoio para
os tubos que iam de um lado a outro, e depois como
estruturação vertical do espaço, bastavam aos pro-
pósitos da operação, pois a inferior, à altura dos
joelhos, e as do meio e do alto, à altura do baixo
ventre e do pescoço de um homem de proporções
regulares — Albino, não obstante, ultrapassava a li-
nha superior com a cabeça —, permitiriam esten-
der as hastes invasoras com as quais aferrolhar, até
a imobilidade mais completa, o par de rebeldes en-
louquecidos. Eles, os gladiadores, eram invencíveis,
mesmo diante de Deus, mas contra isso não podiam
nada. Empurravam os tubos para cima, pulavam,
forcejavam de mil maneiras, mas ao fim não pude-
ram mais. Os guardas entraram na jaula para retirar

50

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 50 30/01/20 16:24


o Comandante e os três companheiros, convertidos
em farrapos. As mulheres foram retiradas pelos
pés, tão enrouquecidas que seus gritos já não se
ouviam mais. Ao mesmo tempo, o Caralho conse-
guiu deslizar até os pés do oficial que viera com os
guardas. “Ela”, murmurou, enquanto assinalava a
mãe com um trejeito do olho opaco e lacrimejante,
“é ela que está com a droga dentro, metida nas par-
tes. É só revistar que está lá.” Fora o oficial, ninguém
o escutou. Sorriu com uma careta triste. Pendurados
nos tubos, mais presos que qualquer outro preso, Po-
lonio e Albino pareciam farrapos sanguinolentos,
macacos esquartejados e postos para secar ao sol.
A única coisa clara para eles era que a mãe não ti-
nha podido entregar a droga para o filho nem para
ninguéns, como ela dizia. Pensavam, ao mesmo
tempo, que não era mais o caso de matar o aleijado.
Para quê?

prisão preventiva da cidade do méxico,


fevereiro-março de 1969

51

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 51 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 52 30/01/20 16:24
Fábula: do verbo latino fari, “falar”, como a sugerir que a fabu-
lação é extensão natural da fala e, assim, tão elementar, diversa
e escapadiça quanto esta; donde também falatório, rumor, diz
que diz, mas também enredo, trama completa do que se tem
para contar (acta est fabula, diziam mais uma vez os latinos,
para pôr fim a uma encenação teatral); “narração inventada
e composta de sucessos que nem são verdadeiros, nem veros-
símeis, mas com curiosa novidade admiráveis”, define o padre
Bluteau em seu Vocabulário português e latino; história para
a infância, fora da medida da verdade, mas também história de
deuses, heróis, gigantes, grei desmedida por definição; história
sobre animais, para boi dormir, mas mesmo então todo cuida-
do é pouco, pois há sempre um lobo escondido (lupus in fabula)
e, na verdade, “é de ti que trata a fábula”, como adverte Ho-
rácio; patranha, prodígio, patrimônio; conto de intenção mo-
ral, mentira deslavada ou quem sabe apenas “mentirada gentil
do que me falta”, suspira Mário de Andrade em “Louvação da
tarde”; início, como quer Valéry ao dizer, em diapasão bíblico,
que “no início era a fábula”; ou destino, como quer Cortázar ao
insinuar, no Jogo da amarelinha, que “tudo é escritura, quer
dizer, fábula”; fábula dos poetas, das crianças, dos antigos, mas
também dos filósofos, como sabe o Descartes do Discurso do
método (“uma fábula”) ou o Descartes do retrato que lhe pinta
J. B. Weenix em 1647, segurando um calhamaço onde se entre-
lê um espantoso Mundus est fabula; ficção, não ficção e assim
infinitamente; prosa, poesia, pensamento.

projeto editorial Samuel Titan Jr./projeto gráfico Raul Loureiro

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 53 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 54 30/01/20 16:24
sobre o autor

José Revueltas nasceu em Santiago Papasquiaro, no estado


de Durango, México, em 20 de novembro de 1914. Filho de um
comerciante e de uma dona de casa, Revueltas cresceu num
ambiente de devoção às artes: entre seus irmãos, Fermín foi
um dos pintores importantes da geração estridentista; Ro-
saura teve uma longa carreira como atriz de teatro e cinema,
estrelou o filme The Salt of the Earth em Hollywood e veio
a ser perseguida pelo macartismo; e Silvestre dedicou seus
talentos de compositor a uma fusão de música sinfônica e
tradição mexicana. Aos seis anos, José Revueltas mudou-se
com a família para a Cidade do México, onde começou a es-
tudar no Colégio Alemão; contudo, a morte precoce do pai e
a falência do negócio familiar levaram-no à escola pública
e à convivência com os pobres e os marginalizados, expe-
riência decisiva para o menino, que abandonou os estudos
formais antes mesmo de terminar o primeiro ano do liceu.
Autodidata daí em diante, o jovem Revueltas passou a fre-
quentar assiduamente a Biblioteca Nacional e a perambular
pela capital mexicana, ao mesmo tempo que se iniciava na
militância política, na órbita do Partido Comunista Mexica-
no. Em 1929, participou de um comício na praça central da
cidade, o Zócalo, içou uma bandeira vermelha no mastro da
bandeira nacional e foi levado à prisão, onde comemorou seu
aniversário de quinze anos. Seis meses depois, libertado sob
fiança, ingressou formalmente no Partido Comunista. Sua
militância valeu-lhe uma segunda temporada de cárcere, na
prisão de segurança máxima das Islas Marías, entre julho e
novembro de 1932; em 1934, detido ao organizar uma gre-
ve de peões de fazenda no estado de Nuevo León, voltou à

55

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 55 30/01/20 16:24


mesma prisão, de onde sairia em fevereiro de 1935. As duas
passagens pelas ilhas penais serviriam de ponto de partida
para seu primeiro romance, Los muros de agua, publicado
em 1941 e seguido, em 1943, de El luto humano, que lhe va-
leu o Prêmio Nacional de Literatura. Dedicando-se a um só
tempo ao jornalismo militante e à literatura, publicou nos
anos seguintes mais dois volumes — os contos de Dios en la
tierra, de 1944, e o romance Los días terrenales, de 1949 —,
que lhe valeram renome literário, mas também críticas cada
vez mais ácidas de seus companheiros de luta, para quem
suas obras não pareciam seguir a linha oficial do partido.
Quando os ataques a Los dias terrenales se fizeram mais vio-
lentos, Revueltas optou por retirar suas obras de circulação
e manter um longo silêncio: “não abdiquei”, mas “me propus
estudar a mim mesmo, o que afinal foi muito bom, pois me
tornei ainda mais antistalinista e ainda mais antidogmáti-
co”. Em seus anos de reclusão literária, foi amadurecendo
uma atitude de recusa tanto do establishment governante,
que repousava na quase identidade entre o Estado mexicano
e o Partido Revolucionário Institucional, como da ortodoxia
soviética que reinava no Partido Comunista Mexicano. Re-
vueltas só voltou à cena editorial em 1956, coincidindo com
o “degelo” na União Soviética e a revolta popular na Hungria.
Nesse ano, publicou o romance En algún valle de lágrimas,
seguido em 1957 pela novela Los motivos de Caín. Em 1958,
ao mesmo tempo que se engajava nas grandes greves ferro-
viárias, publicou o ensaio político México: una democracia
bárbara. Em 1960, foi a vez dos contos de Dormir en tierra.
Nesse mesmo ano de 1960, rompeu com o partido ao partici-
par da criação da Liga Leninista Espártaco, o que lhe valeu,
dos antigos camaradas, a pecha de “extremista de esquerda” —

56

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 56 30/01/20 16:24


logo complementada pela pecha de “direitista”, cortesia dos
novos camaradas de Liga, que o expulsaram em 1963. Em sua
época de Liga, escreveu e publicou um de seus grandes textos
políticos, Ensayo sobre un proletariado sin cabeza, de 1962,
em que explicitou sua índole libertária e humanista, ao ar-
repio de todo oficialismo. Nos anos seguintes, aproximou-se
do movimento de contestação estudantil, tornando-se figura
de referência para várias de suas correntes e participando
de marchas, assembleias e ocupações. Quando da violenta
repressão policial ao movimento, culminando no Massacre
de Tlatelolco, em 2 de outubro de 1968, a cabeça de Revuel-
tas foi posta a prêmio. Detido em novembro, foi condenado
a 16 anos de pena na prisão de Lecumberri — conhecido pela
alcunha de “Palácio Negro” —, nos arrabaldes da Cidade do
México. Encarcerado inicialmente na ala dos assassinos, só
conseguiu ser transferido para a ala dos prisioneiros políti-
cos depois de uma greve de fome. Nos primeiros anos de 1969,
escreveu ali a novela que o leitor tem em mãos, El apando,
dedicada a Pablo Neruda — poeta que criticara o “existen-
cialismo” exacerbado do primeiro romance do autor mexi-
cano —, publicada no mesmo ano e adaptada para o cinema
em 1975, sob a direção de Felipe Cazals. Revueltas foi liber-
tado após dois anos de encarceramento e, em 1974, publicou
sua última obra literária, os contos de Material de los sueños.
Casou-se três vezes: em 1937, com Olivia Peralta, mãe de sua
filha Andréa; em 1947 com María Teresa Retes, com quem
teve dois filhos, Olívia e Román; e por fim com Ema Barrón
Licona, em 1973. José Revueltas faleceu na Cidade do México,
em 14 de abril de 1976.

57

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 57 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 58 30/01/20 16:24
sobre o tradutor

Samuel Titan Jr. nasceu em Belém, em 1970. Estudou filoso-


fia na Universidade de Sao Paulo, onde leciona Teoria Lite-
rária e Literatura Comparada desde 2005. Editor e tradutor,
organizou com Davi Arrigucci Jr. uma antologia de Erich
Auerbach (Ensaios de literatura ocidental) e assinou ver-
sões para o português de autores como Adolfo Bioy Casares
(A invenção de Morel), Gustave Flaubert (Três contos, em
colaboração com Milton Hatoum), Jean Giono (O homem
que plantava árvores, em colaboração com Cecília Ciscato),
Voltaire (Cândido ou o otimismo), Prosper Mérimée (Car­
men) e Eliot Weinberger (As estrelas).

59

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 59 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 60 30/01/20 16:24
sobre este livro

A gaiola, São Paulo, Editora 34, 2020 título original El


apando, 1969 © José Revueltas, 1969. Fez-se a tradução a
partir do texto de José Revueltas, El apando (México: Era,
2016) tradução © Samuel Titan Jr., 2020 preparação Juliana
Bitelli revisão Andressa Veronesi, Flávio Cintra do Amaral
projeto gráfico Raul Loureiro imagem de capa Nacho
López, porta de uma cela de castigo na prisão de Lecumberri,
publicada originalmente em “Prisión de sueños” (revista
Mañana, Cidade do México, 10 de março de 1951, página 31),
com reportagem de Carlos Argüelles e fotografias de Nacho
López esta edição © Editora 34 Ltda., São Paulo; 1a edição,
2020. A reprodução de qualquer folha deste livro é ilegal e
configura apropriação indevida dos direitos intelectuais
e patrimoniais do autor. A grafia foi atualizada segundo
o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que
entrou em vigor no Brasil em 2009.

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 61 30/01/20 16:24


200131_a gaiola_miolo_graf.indd 62 30/01/20 16:24
cip — Brasil. Catalogação-na-Fonte
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj, Brasil)

Revueltas, José, 1914-1976


A gaiola / José Revueltas; tradução de Samuel Titan Jr.
— São Paulo: Editora 34, 2020 (1a Edição).
64 p. (Coleção Fábula)

Tradução de: El apando

isbn 978-85-7326-754-9

1. Ficção mexicana. i. Titan Jr., Samuel.


ii. Título. iii. Série.

cdd – 860m

tipologia Walbaum papel Pólen bold 90 g/m2


impressão Loyola tiragem 2.000 Fevereiro 2020

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 63 30/01/20 16:24


editora 34
Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592
Jardim Europa cep 01455-000
São Paulo — sp Brasil
tel/fax (11) 3811-6777
www.editora34.com.br

200131_a gaiola_miolo_graf.indd 64 30/01/20 16:24

Você também pode gostar