LITTLE, Margaret I. Registro Pessoal de Uma Análise Com Winnicott
LITTLE, Margaret I. Registro Pessoal de Uma Análise Com Winnicott
LITTLE, Margaret I. Registro Pessoal de Uma Análise Com Winnicott
Este relato da análise de Margaret Little com Winnicott está publicada no livro
“Ansiedades Psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott”.(Ed.
Imago, 1992) A edição está, até o presente momento, esgotada (março de 2009), motivo
pelo qual reproduzo o texto integralmente, para que possamos utilizar o material nos
Seminários Winnicott de março de 2009. A tradução é de Maria Clara Fernandes. O texto
será retirado do site após os seminários. A expectativa é que a Editora Imago possa
lançar uma nova edição deste livro tão importante. A edição inglesa é de 1990.
Margaret I. Little
Capítulo 1
Introdução de James S. Grotstein
Nós estamos em débito para com a Dra. Little por ela ter partilhado conosco a história
das suas análises pessoais. Ela é muito importante para psicanalistas e psicoterapeutas
devido à sua experiência direta com profundidades emocionais que muitos de nós nunca
tivemos de transpor, ou então nunca tivemos orientação suficiente para podermos ser
conduzidos através desse Purgatório interior que imaginávamos apenas vagamente existir
dentro de nós. O registro das três experiências analíticas tem valor especial, já que ela
também é analista e divide conosco as suas experiências em três tipos diferentes de
análise: junguiana, freudiana clássica e de relações de objeto. Essa experiência
comparativa lembra uma de My Klenian Home, de Nini Hermann, na qual ela também
tivera três tipos diferentes de análise, mas diferiu em termos da terceira, uma análise
kleiniana.
A Dra. Little nos oferece uma nítida perspectiva indireta de uma psicose de
transferência, que difere de uma neurose de transferência em virtude da regressão
cataclísmica e desorganizadora que ocorre na primeira. Essa qualidade e intensidade de
experiência que dilacera o coração e a mente raramente tem sido relatada com tanta
pungência e clareza, especialmente por uma analista. Ela nos descreve claramente as
origens infantis dessa psicose e nos torna capazes de perceber as suas profundas
flutuações de transferência que o holding (“apoio”)1 “suficientemente bom”, e às vezes
“não-suficientemente-bom”, de Winnicott permitiu que se desenvolvessem. Ficamos com
a impressão, ao lermos tanto Winnicott e Little (nesta e em suas outras contribuições
notáveis sobre o assunto, especialmente Transference Neurosis and Transference
Psychosis), de que uma “posição” deve ser apontada, que acompanha ou antecipa o que
Klein chama de “posição” deve ser apontada, que acompanha ou antecipa o que Klein
chama de “posição esquizóide-paranóide” e exige “condição ambiental”. Winnicott
expandiu os conceitos de Freud, Abraham e Klein de existência infantil inicial
aparentemente tomando o narcisismo primário que os dois primeiros adotaram e a criança
inicialmente separada e necessitada de Klein, combinando-os numa díade da criança
“ser” passivo (o protótipo normal para o “falso self”), que precisava procurar e utilizar o
seio. Consequentemente, pareceria que o self “ser” da Dra. Little tinha de ser
1
* Este termo se refere ao ato de segurar fisicamente uma criança. Em inglês ele tem uma conotação dupla: refere-se ao
ato de ser segurado fisicamente e emocionalmente pela mãe. (N. da T.)
2
intuitivamente descoberto, reunido, considerado e fortalecido para que ela pudesse estar
preparada e “equipada” para os rigores e fantasias controversais, primeiro da relação
“paranóide” com o objeto, e depois, do “estágio de preocupação” (a posição depressiva de
Klein). Em outras palavras, há um estágio de fusão primária (narcisismo primário: “Não
existe algo assim como uma criança. Há apenas uma mãe e uma criança.”) lado a lado
com a criança necessitada e separada. A primeira precisa, ao mesmo tempo, ser
descoberta, num dos profundos paradoxos dialéticos que permeiam as obras de
Winnicott. Sendo descoberta, a criança sabe que é amada e importante para a mãe sem
ter sido de pedir! Pois dessa forma está afirmado! Na medida em que não são
descobertas, sua inocência, privacidade e condição de única são deixadas intactas. É
permitido tanto “ser” como criar objetos do mundo que lhe foram fornecidos a tempo de
ela acreditar que criou – e depois descobriu – o objeto. Assim, é seguro permitir-se
necessitar do seio criado/descoberto da mãe, a partir do qual a experiência lança o “gesto
espontâneo”, na definição do próprio Winnicott. Ele não só admitiu um caminho duplo
para o desenvolvimento da criança; admitiu também uma onipotência normal, que
frequentemente denominou-se de “ilusão”, e lidou com a patologia da sua ausência em
seu conceito de privação e carência. Winnicott lidou com a patologia da sua presença no
“fantasiar”, que considerava onipotência patológica, oposta às “fantasias” apropriadas
para o mundo interno, consideradas o correspondente normal para o mundo da realidade
externa e nitidamente diferentes de “fantasias”. Ele concebeu o espaço de interação entre
a criança e suas criações espontâneas – como “espaço potencial”, o qual então definiu o
espaço para a regressão analítica. Estendi-me um pouco no que diz respeito aos
conceitos de Winnicott porque a Dra. Little nos deus uma demonstração muito rica do seu
trabalho com ela, onde essas idéias parecem se destacar.
Também devemos à Dra. Little outro favor, o de nos fornecer uma descrição detalhada
de como o Dr. Winnicott conduziu o seu tratamento – como interpretou e não interpretou,
como lhe ofereceu um holding (“apoio”) ou “controle ambiental”, como a ajudou a criar um
“espaço potencial” para a ilusão criativa, como despertou e fez aumentar o seu interesse
por “objetos transicionais” – e o de nos fazer ter uma idéias de quem é o Winnicott ser
humano, que partilhou discretamente com ela informações sobre a sua própria vida e
saúde, as quais considerava que ela deveria conhecer. Fiquei particularmente interessado
pelo fato de que Winnicott escolhia apenas um paciente de cada vez para um tratamento
regressivo profundo. Isso é tudo de que ele era capaz. Os outros pacientes tinham de
esperar a sua vez. Como ele conseguia protelar isso junto aos pacientes é algo
incompreensível. Também fiquei intrigado com a implicação de que Winnicott, como Little
o descreve, parecia acreditar que uma das conseqüências inevitáveis dessa regressão
cataclísmica profunda no paciente era uma regressão correspondente no analista, que
também devia rigorosamente manter o seu ego observador sadio. Esse pode ter sido o
motivo de Winnicott ter preferido lidar apenas com uma regressão profunda de cada vez.
Graças à Dra. Little, agora temos uma idéia de quem é o Winnicott analista, o
Winnicott que cura e o Winnicott pessoa. Em raras ocasiões ele revelou a sua técnica
atual com adultos, exceto em segmentos curtos e divertidos. Holding and Interpretation:
Fragmento of a Analysis (1972) é uma exceção notável. O relato da Dra. Little é único,
porque revela a técnica de Winnicott da perspectiva de uma psicanalista profissional
experiente e de uma paciente. Ao lermos Little e Winnicott temos facilmente a impressão
de que o último é verdadeiramente o criador de conceito da “aliança terapêutica”. Ele
parece ter se conduzido com a Dra. Little de modo semelhante às suas descrições das
interações mãe-filho – muito mais uma parceria do que a hierarquia seio-criança-
alimentação, como foi (e é) o caso com o pensamento kleiniano.
A obra de Winnicott e seus seguidores (ele teria detestado esse termo, porque evitava
ser “seguido” ou idealizado) está agora se tornando aceita em uma escala maior do que
jamais foi. Há muito conhecido por seu conceito de objetos transicionais, o holding e a
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preocupação maternal primária, o mundo analítico despertou lenta mas seguramente para
o fato de que, apesar de sua linguagem enganosamente prática e de que tantas das suas
contribuições foram dadas a um público leigo, ele não foi um “Dr. Spock britânico”, mas
um metapsicólogo sofisticado e sensível. Suas contribuições exploraram as profundezas
ontológicas da nossa existência, “mudaram” a perspectiva psicanalítica do objeto único
para a indivisibilidade da díade, introduziram a “terceira dimensão da dialética”, da ironia e
do paradoxo numa estrutura teórica psicanalítica que desconhecia seu aprisionamento na
“primeira dimensão” de “um dos dois/ou” e ajudaram a legitimar os aspectos terapêuticos
(e portanto positivos) da contratransferência. Seus conceitos de privação, carência e
invasão deram precisão e clareza às consequências introjetivas dos cuidados parentais
patológicos e lançaram a base para a teoria da ausência de relações de objeto. Winnicott
(1965) afirmou: “A psicose é uma doença por carência ambiental” (págs. 135-136). Seu
conceito da “tendência anti-social” antecipou a posterior obsessão da psicologia do self
com questões de denominação e, junto com as contribuições de Fairbairn, lançou as
bases para o conceito de desordens de personalidade narcisista e borderline, inclusive a
divisão vertical (“verdadeiro self”/”falso self”) e a horizontal (consciente/inconsciente).
Há outros motivos para ele não ter sido mais valorizado até hoje, pelo menos na
Inglaterra e nos Estados Unidos, embora seu trabalho tenha sido constantemente
desenvolvido na França, na Austrália, na América do Sul e em outras áreas. Suas idéias
surgiram em parte como consequência do seu relacionamento com Melanie Klein.
Inicialmente pediatra e, depois, analista clássico dedicado, ele ficou muito impressionado
e envolvido com as idéias revolucionárias de Klein. Nesse meio tempo, Klein envolvera-se
em discussões “eclesiásticas” muito ásperas com a Escola de Viena em geral e Anna
Freud especificamente, discussões essas que continuaram após a morte das duas – em
um dos capítulos mais terríveis, vergonhosos e lamentáveis da história da psicanálise. A
“guerra” causou tal polarização que Klein, assim como Freud, que, há muito tempo,
exigira sinais de lealdade de seus seguidores, exigiu também uma aceitação rígida das
suas idéias como um privilégio dos membros do seu grupo. Klein e Rivière negaram que a
obra de Winnicott tivesse qualquer valor. Disseram que era o resultado da doença dele
(Rodman 1987, carta 25). Além disso, havia um contraste entre os pontos de vista de
Klein e Winnicott no que diz respeito ao grau de desenvolvimento do ego no neonato
(Winnicott 1962e, cap. 16). Winnicott, que apreciava a obra de Klein e estava
profundamente envolvido com ela, não gostou da necessidade de adaptar as suas
próprias idéias com às dela. Os dois também tinham opiniões muito diferentes não só no
que diz respeito à questão da realidade per se, mas também à sua inclusão na teoria
psicanalítica.
Portanto, Winnicott fora surpreendido por uma guerra polarizadora, não podia tomar
partido e, junto a vários analistas ingleses – como Fairbairn, Balint, Bowlby, Khan, Little e
outros, favoráveis a Klein –, não podia afirmar antecipadamente a importância técnica da
realidade. Winnicott tornou-se parte da chamada escola de relações de objeto, hoje
denominada Grupo Independente. Quando recentemente reli todas as suas obras
publicadas, fiquei impressionado ao constatar quão kleiniana era a base da sua
orientação, e também de que maneira ele foi um inovador de Klein. O que parece
distinguir o seu trabalho (e o trabalho de outros membros do Grupo Independente) é a
importância primária do relacionamento da realidade com a fantasia, a última tendo um
papel decididamente importante na teoria kleiniana e a primeira sendo uma contraparte e
elemento instigador de fantasia para o Grupo Independente.
Por qualquer razão, parece que Winnicott aceitou que as práticas parentais deficientes
e de invasão tinham um efeito desintegrador no desenvolvimento da criança além do
conceito de Klein da mera liberação parental a destrutividade infantil inata. Esse é um
assunto dedicado porém importante para os psicanalistas. Por isso, gostaria de falar um
pouco sobre ele. Um dos legados da segunda teoria da psicanálise de Freud (sua
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primeira for a repressão de uma memória sexual traumática) foi o sentimento inerente de
culpa que o ser humano adquire desde o nascimento por causa das suas fantasias
inevitáveis e inexoráveis de apropriação excessiva de um dos pais, e de agressão
assassina em relação ao outro, isto é, o complexo de Édipo. A consequência dessa
segunda teoria para a técnica psicanalítica foi a de desviar a ênfase da realidade para a
fantasia, e também a de desviar o sentimento de responsabilidade pela doença emocional
da pessoa do exterior para o interior – isto é, o paciente tinha de aceitar que, não importa
o quanto alguém havia sido maltratado na infância, suas reações ao abandono ou à
invasão eram os únicos elementos importantes para a psicanálise. O fundamento lógico
para essa perspectiva aparentemente unilateral e ascética era a suposta necessidade do
paciente de “ser” as sua próprias reações aos traumas do abandono e da invasão em vez
de culpar, e por conseguinte absolver a si próprio, antes de aceitar o seu self ontológico
(existencial). Em outras palavras, quando toda a metapsicologia complexa era
desprezada, o paciente-criança precisava “ter” a sua responsabilidade por seu dilema
para “conhecer” o seu self. O que foi o tempo todo presumido, mas não suficientemente
explicado, foi que a segunda teoria da psicanálise de Freud resultava da suposta
perspectiva hermenêutica da criança, cuja tendência narcisista a faz achar que todos os
acontecimentos na realidade externa são causados por impulsos que vêm do seu interior,
não tendo ainda a maturidade para explicar um mundo separado do self que tem um
agente causador diferente.
Winnicott tinha muita consciência da sua perspectiva freudiana clássica, mais
enfatizada na técnica kleiniana, porém também tinha a experiência de ser o Diretor
Médico de Paddington Green, um hospital e clínica infantil, tendo observado diretamente
a interação entre mães e filhos. Portanto, seu desenvolvimento da técnica kleiniana visava
aperfeiçoá-la do seu ponto de vista e não rejeitá-la. Ele enfatizou a natureza do
relacionamento entre o casal que cria e a importância da aceitação por parte da mãe da
fusão primária com o seu filho, sua capacidade de agradar, ter afeição e dedicar-se à sua
sobrevivência e desenvolvimento. O que ele parece ter tido em mente era a importância
desse novo ser humano, a “condição ambiental”, holding etc.
Winnicott parecer ter enfatizado que a criança não era uma criança sem a sua mãe.
Por isso, ele ajudou a dar início a uma mudança importante no enfoque psicanalítico do
self unitário para o relacionamento indivisível entre dois (mãe e filho), o qual se tornou a
fonte inesgotável para a psicologia do self. Além disso, seus conceitos têm se relacionado
com os de Bowlby e Stern. Talvez pudéssemos resumir corretamente o modo de Winnicott
encarar esse assunto da seguinte maneira (constituindo uma reafirmação do que eu disse
acima): o self “ser” do paciente-criança deve estar preparado por um background
ambiental propício (“ambiente de apoio”) para tornar-se um self criador, capaz de uma
neurose de transferência com conflitos edipianos. Na falta disso, o analista deve tornar-se
o substituto real para o holding ausente do passado e preparar o paciente para uma
“análise neurótica” através do seu próprio holding.
Em certo sentido, Winnicott estava defendendo o que Searles havia chamado de
“relação simbólica”. Acredito que a essência desse ponto de vista torne próxima a “cura” e
possa transcender a “terapia”. Só nos resta confirmar as posições de Winnicott e Searles
e traçar as diretrizes para partilhar, comover, conversar, ajudar – para ser um amigo!
Ao que tudo indica, Margaret Little foi vítima de pais assustados e da falta de harmonia
entre eles, mas beneficiou-se com um dos grandes “homens que curam”, para não dizer
“terapeutas”, da psicanálise. Somos gratos a ela por revelar uma parte do seu método.
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Capítulo 2
O risco de um relato da minha própria análise
A psicanálise não é nada se não for dinâmica, preocupada com os instintos e impulsos
humanos e as ansiedades relacionadas a eles; uma atividade humana, revolucionária em
suas origens e nem sempre agradável em sua evolução.
Mudanças, novas idéias de teoria ou técnica, têm gerado grande ansiedade e
frequentemente provocado discórdia como em tempos passados, quando Jung, Adler,
Stekel e outros romperam com Freud. Posteriormente, em nossa British Psycho-Analytical
Society, a obra de Melanie Klein provocou controvérsia, ansiedade e a tendência a
defender-se negando-a e aumentando a oposição a ela, como antes.
Freud descobriu que quando as ansiedades estavam relacionadas com a situação
edipiana – castração, perda de parte do corpo, perda de um objeto ou do amor próprio –
uma neurose de transferência era desenvolvida na análise, e elas podiam ser resolvidas.
Mas quando predominavam ansiedades relacionadas com a vida, a sobrivivência ou a
identidade (neuroses narcisistas e psicoses), a neurose de transferência não se
desenvolvia e a psicanálise (em sua forma clássica) era ineficaz (Freud 1913).
Com o correr do tempo, um número menor de pessoas têm procurado para a doença
neurótica, e um número maior para as ansiedades do tipo psicótico, muito mais difíceis de
serem tratadas, apesar de não serem sempre totalmente incapacitantes, ou exigirem
hospitalização. Isso provocou mudanças na reflexão e na técnica psicanalítica. Winnicott,
continuando o seu trabalho com Melanie Klein e aplicando o conhecimento adquirido em
seu longo estudo de bebês, crianças e seus pais. Tem realizado o tratamento de muitos
pacientes com ansiedade e polêmica, porque mostra um lado mais humano da
psicanálise que normalmente visto antes. Há muito interesse real pelo seu trabalho e um
desejo de conhecê-lo e compreendê-lo. No entanto, também há críticas – tanto amigáveis
como hostis e frequentemente geradas por má informação – bem como uma curiosidade
sincera e voyeurismo.
Atualmente, o trabalho de Winnicott com crianças é bastante conhecido. Ele escreveu e
falou sobre ele sistemática e livremente. Muitas pessoas conseguiram vê-lo em ação em
Paddignton Green, ou em uma das suas outras clínicas. Ao tratar a psiconeurose em
adultos ele usou a “técnica clássica” (Winnicott 1962d), analisando a neurose de
transferência e preocupando-se com o complexo de Édipo e o desenvolvimento do
superego.
Mas ao tratar adultos era necessário um grau muito elevado e discrição. Alguns dos
seus pacientes eram colegas ou estudantes em treinamento; outros, pessoas importantes
ou famosas. Por isso, ele nos deixou relativamente poucas informações. Grande parte
desse material clínico, como ele o escreveu, parece-me confuso e difícil, porque ele usou
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Capítulo 3
Psicoterapia com Dr. X., 1936-1938
Em 1936, uma amiga que morava comigo foi persuadida a provocar psicoterapia. Ela
havia tido um esgotamento nervoso, em 1933, depois do que julgou serem propostas
lésbicas feitas por uma colega.
Durante três anos eu havia suportado longos ataques de choro e mau humor,
acusações e ameaças de suicídio que acreditava serem sérias. Ela saía indignada, dirigia
como louca na pista de velocidade e se escondia durante horas, voltando apenas tarde da
noite, quando já havia desistido de tentar encontrá-la. E eu tinha ao mesmo tempo uma
clínica geral movimentada para dirigir.
Logo que ela começou o tratamento, soube que precisava dele também, e me dispus a
procurá-lo.
Apesar do fato de durante todas as três primeiras semanas ficar tão paralisada de
medo, que não era capaz de falar ou me mover no divã, o Dr. X. nunca me considerou
mais que um tanto neurótica. Ele reconheceu a tensão esmagadora sem pretender
entendê-la, e eventualmente, a aliviava massageando delicadamente a minha barriga. Ele
me tratou como um ser humano racional e sugeriu que eu podia ser atraente como mulher
– o que nunca acreditara ser possível, apesar de qualquer modo saber que era
heterossexual. Ele me incentivou a treinar como psicoterapeuta na Clínica Tavistock, e me
levou como sua convidada a reuniões da Divisão Médica da British Psychological Society.
Nem tudo que o Dr. X. fez foi útil, mas ele tornou possível eu me libertar da minha
amiga excessivamente agarrada a mim e dominadora, e estabelecer um relacionamento
diferente com ela, em grande parte salientando seu direito a se matar se quisesse, que
aquilo seria definitivo e, na verdade, eu não podia evitá-lo. Vários sintomas menos
importantes, quase todos somáticos, desapareceram durante o tratamento com ele.
Lembro de poucas coisas dos dois anos com o Dr. X (três sessões por semana). Um
dia ele disse: “Você parece estar sempre pensando nas outras pessoas e se desculpando
pela sua existência, como se achasse que não tem direito a ela”. Eu realmente pensava
isso, mas ele explicou que eu tinha o direito, porque não fora responsável por ela. Contei-
lhe que minhas lembranças mais antigas (de quando tinha dois anos) eram de estar
obviamente “atrapalhando” e de ser um “transtorno” quando minha irmã Ruth, minha mãe
e eu tivemos coqueluche. Eu estava em um berço, no canto do quarto, onde elas estavam
na cama juntas. Eu tossi e vomitei, minha mãe se levantou para me segurar e as duas
começaram a tossir, “como se eu tivesse provocado aquilo”. Posteriormente, um dia meu
pai entrou apressadamente para a refeição do meio-dia. Encontrando a sala cheia de
fraldas, penicos e brinquedos e eu tossindo e vomitando no meio, disse irritadamente:
“Você não pode fazer essa criança parar de vomitar?”
Na última sessão antes de um intervalo para o Natal, o Dr. X. me desejou felicidade,
mas acrescentou: “pelo amor de Deus, seja você mesma”. (“Não seja aquela criança que
vomitava”.) Eu respondi: “Eu não sei como, não sei quem sou”. Dr. X. conheceu os meus
pais socialmente. Ele e o meu pai se deram bem. Minha mãe pediu uma consulta, e ele
disse depois que “não conseguia suportá-la”, mas não falou muito sobre isso. O
tratamento terminou gradualmente, sem dificuldade, ele me garantindo que eu não
precisava mais de análise, mas apenas de “síntese”, que presumivelmente podia realizar
sozinha. Seguiu-se uma doce amizade, porque eu não era mais uma paciente, mas uma
colega.
Ele conhecia pessoalmente Ella Freeman Sharpe e me apresentou a ela. Eu fui visitá-
la em sua casa, em 1938. O próprio Dr. X. fizera análise durante um período muito curto
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com um membro da British Psycho-Analytical Society, “para saber qual era a sensação de
ser um analisando”.
Capítulo 4
Psicoterapia com Ella Freeman Sharpe, 1940-1947
Quando fui visitá-la, depois de termos sido apresentadas, tive uma experiência que me
aterrorizou , por causa das suas implicações. Eu a “vi” envolta em uma espécie de névoa
cinzenta, como uma aranha em uma teia formada por seus cabelos. Na época soube que
aquilo era ilusório – uma aranha “da mente” (Macbeth, II ii). Contei-lhe que o Dr. X. havia
dito que eu “não precisava mais de análise”, apenas de síntese, e saí literalmente
correndo da casa, em pânico. E, no entanto, senti ao mesmo tempo uma estranha atração
por ela, que teria de vê-la novamente em alguma oportunidade.
Posteriormente, em 1940, me envolvi emocionalmente com um paciente e cheguei à
conclusão de que não poderia continuar a tratar dele. O Dr. X. não estava disponível. Com
grande ansiedade, procurei a Sra. Sharpe, como a única psicanalista que eu encontrara.
Minha perturbação era profunda; psicanálise para mim significava total aniquilação, e o
meu medo estava em conflito com uma profunda ânsia. Ela tirara férias, e começou
imediatamente. Logo o medo se tornou insuportável.
Na primeira sessão fiquei deitada rígida no divã, novamente incapaz de falar ou me
mover. Como a Srta. Sharpe permaneceu calada, eu comecei a gritar: “Isto não pode ser
real”, lembrando-me da minha antiga visão quase alucinatória dela e da minha fuga. Tinha
a impressão de estar tendo um pesadelo. No final do horário ela disse: “Levante-se e
sente aqui, vamos conversar”. Ela interpretou o meu medo como “ansiedade de
castração” e o relacionou com o fato de eu tê-la conhecido através do Dr. X., o que era, é
claro, a coisa óbvia, porque o problema que eu levara para ela era claramente edipiano.
Mas aquilo não justificava a intensidade do meu pânico, que era muito mais que qualquer
terror mortal ou medo da morte. Para ela, o terror mortal significava medo do superego
(clássico), para o qual o “bom” é equiparado a não-sexual, e o “ruim” ao sexual.
Ao meu medo – “um pavor que só as crianças podem sentir” (Jane Eyre, Cap. 3) – era
de uma total destruição, de ser fisicamente mutilada, ficar irremediavelmente louca, ser
morta, abandonada e esquecida por todo o mundo como alguém que nunca existira –
“lançada nas trevas exteriores” (Mateus 22:13).
Os seus escritos sobre a técnica da psicanálise (Sharpe 1930) revelam claramente o
seu modo de trabalhar, baseado na idéia de que a psicanálise interessa-se totalmente
pela sexualidade infantil em todas as suas formas, isto é, relacionadas com o complexo
de Édipo e as fantasias reprimidas sobre os pais, que só podem ser recuperadas via
neurose de transferência. Não se deve permitir que os pacientes usem a realidade como
uma defesa contra elas; a integridade do analista consiste em exigir de si mesmo tudo o
que exige do seu paciente; a existência é justificada reconhecendo esse direito dos
outros.
Meu pavor naquela primeira sessão (veja Sharpe 1943), sendo uma expectativa de
total destruição, não foi parte de uma neurose de transferência e sim, como percebi muito
tempo depois, de uma psicose de transferência, baseada em experiências reais na
infância e primeira infância.
O quadro global da minha análise com a Srta. Sharpe é o de luta constante entre nós,
ela insistindo em achar que o que eu dizia era devido a um conflito intrapsíquico
relacionado com a sexualidade infantil, e eu tentando dizer-lhe que os meus problemas
reais eram questões de existência e identidade: eu não sabia “quem era”; a sexualidade
(mesmo conhecida) era totalmente irrelevante e sem sentido, a menos que a existência e
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a sobrevivência pudesse, ser tidas como certas, e a identidade pessoal pudesse ser
estabelecida.
Freud (1913), escrevendo sobre neuroses narcisistas (melancolia) e psicoses
(esquizofrenia e paranóia) tornou clara a diferença entre elas e as neuroses sexuais
(psiconeuroses) porque, nas duas primeiras, só estão envolvidos instintos do ego,
sobrevivência e identidade, e essa neurose de transferência não é desenvolvida. (A
psicose de transferência não era reconhecida naquela época). Freud (1917) também não
encontrou nelas ambivalência, mas apenas uma hostilidade permanente que tornava a
análise impossível.
Uma transferência de algum tipo para Ella Sharpe fora claramente formada e
considerada uma neurose de transferência, como em parte era. Minha hostilidade a ela
tornou-se permanente, como um resultado de sua incapacidade de perceber a verdadeira
natureza das minhas ansiedades. Mas havia ambivalência, os elementos positivos sendo
liberados por seu padrão de comportamento em relação a mim alterado fora do divã,
como ela descreve (Sharpe 1930), tratando-me como se eu fosse uma “visita” em sua
casa. Então ela era muito gentil e solícita, amigável e generosa, provocando, dessa
forma, a situação separada descrita por Freud (Freud 1913). Para mim isso trouxe de
volta a mesma confusão e ambivalência que eu experimentara com a minha mãe, de
modo que em minhas áreas psicóticas a Srta. Sharpe tornou-se idêntica à minha mãe
(Little 1959), que não havia sido capaz de fornecer um ambiente onde fosse seguro estar;
o objetivo da Srta. Sharpe era fornecer um em que fosse seguro ser sexual ou hostil. Eu
fui hostil e rebelde, mas o ambiente não era seguro; me tornei submissa e dependente
dela, como havia sido da minha mãe desde a infância. Os meus sonhos naquela época de
luta, confusão e fragmentação foram interpretados como fantasias de coito violento e
desejos reprimidos de ter relações sexuais com o meu pai e de destruir a minha mãe.
Umas seis semanas depois de termos começado eu disse à Srta. Sharpe que gostaria
de treinar como analista. Ela me incentivou a pôr isso em prática. Depois de entrevistas
com o Dr. Edward Glover (na época presidente da British Psycho-Analytical Society) e
como a Dra. Payne (a secretária de treinamento), fui aceita. Ela continuou a me incentivar,
elogiando o meu trabalho e as minhas outras atividades.
Mas a nossa luta ainda continuou. Certa vez falei sobre como queria “ser alguém”,
referindo-me a ser uma verdadeira pessoa, não ninguém, ou uma “não-pessoa”, como
achava que era. Isso foi interpretado como um desejo meu de tomar o lugar da minha
mãe, de ser a minha mãe fisicamente, em seu relacionamento sexual e capacidade
reprodutora. O que eu realmente temia era a possibilidade de descobrir que era uma
“cópia vulgar” da minha mãe ou da Srta. Sharpe (o que dava no mesmo), mas não
conseguia fazê-la entender isso, ou que o risco era real. Sempre que eu falava sobre um
dos meus pais ela considerava o que eu dizia fantasia, e qualquer referência às
realidades era buscar refúgio. Então eu estava duplamente presa à “teia de aranha”; eu
era a louca, não a minha mãe; ela era a que “sabia”, como a minha mãe, não eu, sempre
soubera; enquanto o meu reconhecimento da minha psicose e da psicose da minha mãe
era desprezado como fantasia. Eu estava novamente no confuso “País das Maravilhas”
ou no mundo dos “Espelhos” da minha infância, onde simultaneamente eu “imaginava
coisas” e “não tinha imaginação”, onde só podia saber o que via e sabia, e “não sabia
nada”.
No divã a realidade tinha de ser posta de lado, inclusive as reflexões sobre a sua idade
e saúde e especificamente a condição do seu coração. Não só era meu “privilégio” dizer
qualquer coisa, como também tinha de me submeter à “regra analítica”, por isso falei
sobre o que não poderia ter deixado de reconhecer como sinais de uma doença cardíaca
duradoura, por isso eu deduzi que aquilo devia ser secreto e proibido. Ao fazer um
“comentário pessoal”, estivera automaticamente sendo “rude”.
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Eu, muito mais jovem e gozando de boa saúde, não podia ajudar. Tinha de ficar sem
fazer nada, enquanto ela, que corria o risco de um colapso cardíaco, arrastava um
pesadelo no divã de um lado para o outro de uma sala comprida, em todas as sessões.
(Minha mãe costumava dizer que eu era “covarde”, sempre seguindo a norma da mínima
resistência). “Para que você serviria numa expedição ao Ártico? E citava Milton em On his
Blindness.
Em novembro de 1945, subitamente os meus pais ficaram doentes; o meu pai ficou
desvairado e intratável. Sua condição foi diagnosticada como “acidente vascular cerebral”,
precisando de tratamento em hospital; como aquela época era difícil conseguir uma vaga,
teve de ser internado em um hospital para doenças mentais. Ele morreu lá cinco dias
depois, de broncopneumonia; a autópsia revelou que o seu cérebro estava intacto.
Sua doença e morte tornaram-se o centro de uma grande perturbação familiar. Ruth,
tendo primeiro se recusado a dividir o quarto comigo, pediu que eu fosse embora. Minha
mãe determinou que não haveria flores no funeral, ao qual não poderia ir. Foi uma
cerimônia triste, assistida apenas por um dos meus irmãos e por mim. (Mais tarde, ela
revelou a sua possessividade e hostilidade inconsciente a ela não permitindo que fosse
publicado nada além da simples notícia de sua morte na revista da escola em que ele
lecionara durante trinta anos).
Eu devia ter um ensaio para todo o quadro de membros da British Psycho-Analytical
Society uma semana depois do seu funeral. Quis adiar aquilo, mas a Srta. Sharpe insistiu
em que deveria lê-lo. Entre o meu sofrimento imediato e a minha transferência psicótica,
não consegui enfrentá-la, mas considerei o fato uma grande intromissão no meu luto;
Li o ensaio e gostei do debate. Ela ficou satisfeita com o meu sucesso. Além de uma
simples e obviamente sincera manifestação de comiseração pela minha perda, nada mais
foi dito sobre o meu luto ou a consternação familiar. A análise continuou como se nada
tivesse acontecido, exceto o fato de eu ter lido o ensaio.
Na época, a minha má vontade em lê-lo foi atribuída a um sentimento de culpa pela
minha inveja da sua capacidade de escrever e apresentar ensaios, transferida de meus
pais em seu relacionamento sexual e criatividade, e ao medo de punição se eu ousasse
me afirmar ou desafiá-la de qualquer modo. Não podia negar a inveja, mas a considerava
relativamente sem importância naquele ponto. (Fiz uma narrativa disfarçada disso em
meu ensaio intitulado “Countertransference and the Patient’s Response to it” [Little 1953]).
Em abril de 1947, nós concordamos em terminar depois do verão: “Não faz sentido
continuar a analisar por analisar”, disse ela; mas em maio, no feriado de Pentecostes, ela
morrei subitamente.
Eu tinha assistido à primeira Conferência de Psicanalistas Europeus dos pós-guerra,
em Amsterdam, e gostara. Havia feito novos contatos e novas amizades e, pela primeira
vez, tive consciência do interesse de um homem por mim. Me despedira da Srta Sharpe
no dia do meu aniversário (que também era o do meu pai), alguns dias antes. Ela me
desejou que aquela data feliz se repetisse por muitos anos. Eu voltei ao saber da sua
morte.
Então, lá estava uma repetição do trauma anterior da morte do meu pai, que nunca
fora superado, a realidade tendo sido quase negada na época; e aquilo repetira um
trauma ainda mais antigo, quando de modo parecido com a Srta. Sharpe evitara que eu
chorasse a perda de uma tia querida e, em vez disso, me fornecera uma interpretação de
transferência sobre as suas próximas férias, que me pareceu tão ilógica quanto a maioria
das “explicações” da minha mãe.
Procurei a Dra. Payne, em cujo divã falei e chorei sem parar durante uma hora. No
final, ela disse em um tom de surpresa: “Mas você está muito doente!”. Eu respondi: “É
isso que tenho dito a Srta. Sharpe durante os últimos seis anos”. Sabia que os meus
verdadeiros problemas nunca haviam sido tratados; em vez de empatia houvera
“confusão de idiomas” (Ferenczi). Sentindo-me mais do que nunca uma não-pessoa, e
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sabendo não mais do que antes quem “eu” era, eu estava mais uma vez totalmente
exposta à minha ansiedade psicótica, com raiva, culpa, desamparo e desespero
esmagadores.
A Dra. Payne falou sobre mim com Marion Milner, que me ajudou em linhas analíticas
gerais e me apoiou muito durante o ano seguinte; mas a situação era difícil, porque
havíamos sido estudantes na mesma época. Depois D. W. teve uma vaga e cuidou de
mim.
Naquele período, a minha velha amiga e governanta teve de ir embora. Fiz uma
importante mudança na casa, separando-a do consultório e vivendo sozinha pela primeira
vez. Também tive (pela primeira vez) um relacionamento sexual com um homem, para
mim até então impossível.
Capítulo 5
Psicoterapia com D. W. W., 1949-1955, 1957
Então, treze anos depois de ter procurado pela primeira vez ajuda psiquiátrica, e com
48 anos, fui até D. W. Não posso fazer narrativa tão clara, coerente ou detalhada como
gostaria do período com ele. Posso apenas relatar minuciosamente algumas das coisas
que aconteceram.
O meu relacionamento anterior com D. W. havia sido superficial. O primeiro encontro
científico na British Psycho-Analytical Society a que comparecera foi uma noite
barulhenta, com bombas caindo a cada minuto e as pessoas se abaixando sempre que
havia um estrondo. No meio da discussão, alguém que mais tarde eu soube tratar de D.
W., levantou-se e disse: “Gostaria de salientar que está havendo um bombardeio aéreo”,
e sentou-se. Ninguém ligou para aquilo e o encontro continuou como antes!
Eu o ouvi falar em outros encontros e ler ensaios. Então, em 1945, no final de uma
tarde, quando lia meu ensaio de membro daquela sociedade, “The Wanderer: Some
Notes on a Paranoid Patient”, que ele não discutira, D. W. veio até mim e perguntou se eu
aceitaria uma criança como paciente. Gostei muito de ele ter me perguntado, mas
respondi pesarosamente que não. Há pouco tempo eu havia concluído uma análise com
uma criança, para treinamento (em análise infantil) que nunca completei. Aquilo havia me
provocado uma enorme ansiedade, e não gostei do modo como terminara. Estava
confusa com esse fato, com a morte do meu pai e as circunstâncias que a cercaram. Não
podia pensar em lidar com outra criança naquele momento, mas não descartei essa
possibilidade para o futuro.
Ouvi a leitura de seus ensaios “Reparation in Respect of Mother’s Organized Defence
against Depression” (Winnicott 1948b) e “Birth Memories, Birth Trauma, and Anxiety”
(Winnicott 1949b) e achei que ele era alguém que podia realmente me ajudar.
A entrevista preliminar com o Dr. Winnicott foi curta, talvez quinze minutos. Em
nenhum momento ele elaborou uma história formal de qualquer tipo, mas, agindo com
cuidado, desenvolveu gradualmente a sua compreensão do que estava me perturbando e
da minha “necessidade interior” (George Eliot, Mill on the Floss). Tornei a minha aventura
sexual uma desculpa para não continuar a análise; ele aceitou isso, mas disse que
manteria a vaga por enquanto e que eu podia recomeçar depois, se quisesse. Não
demorou muito para eu voltar para ele, quando achei o relacionamento sexual difícil.
A primeira sessão trouxe uma repetição do pavor. Fiquei enroscada, rígida,
completamente escondida sob o cobertor, incapaz de me mover ou falar. D. W. ficou
calado até o final do horário, quando disse apenas: “Eu não sei, mas tenho a impressão
de que, por alguma razão, você está me excluindo”. Aquilo trouxe alívio, porque ele podia
admitir não saber e permitir a contradição, se ela ocorresse. Muito tempo depois eu
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percebi que estivera me fechando, ocupando o menor espaço possível e sendo o máximo
possível reservada, me escondendo no útero, mas sem estar segura nem mesmo lá.
Em uma das primeiras sessões com o D. W., me senti totalmente desesperançada de
fazê-lo um dia entender qualquer coisa. Eu caminhei ao redor da sua sala, tentando
encontrar um caminho. Pensei em me atirar pela janela, mas achei que ele me impediria.
Depois pensei em jogar fora todos os seus livros, mas finalmente investi contra um grande
vaso cheio de lilases brancos, quebrando-o e pisando nele. D. W. precipitou-se para fora
da sala, mas voltou um momento antes do final do horário. Ao me encontrar limpando a
sujeira ele disse: “Eu poderia ter esperado que você fizesse isso (limpar, ou sujar?), mas
mais tarde”. No dia seguinte, uma réplica exata havia substituído o vaso e os lilases.
Alguns dias depois, ele explicou que eu havia destruído uma coisa que ele gostava.
Nenhum de nós jamais se referiu de novo ao incidente, que hoje me parece estranho,
mas acho que se ele tivesse ocorrido depois D. W. provavelmente teria reagido de outro
modo. Da forma como reagiu, eu achei aquilo tão inútil quanto as minhas lutas com a
Srta. Sharpe ou com a minha mãe, e esqueço do ocorrido até recentemente. Vários anos
depois, muito depois do final da análise, quando pedi um conselho sobre um paciente
muito perturbado que me magoava intencional e repetidamente, falei sobre tê-lo
magoado. Ele concordou em que eu o magoara, mas acrescentou que aquilo havia sido
“útil”.
Algumas semanas depois disso, durante toda uma sessão, fui novamente dominada
por acessos de pânico. Repetidamente seria uma tensão começar a surgir em todo o meu
corpo, alcançar o clímax e diminuir, apenas para surgir novamente alguns segundos
depois. Eu segurava as suas mãos e as apertava com força até os acessos passarem.
No final, D. W. disse que achava que eu estava revivendo a experiência de ter nascido;
ele segurou minha cabeça durante alguns minutos, dizendo que imediatamente depois do
nascimento a cabeça de uma criança podia doer e parecer pesada durante algum tempo.
Tudo aquilo se encaixava, porque tratava-se de um nascimento para um relacionamento,
via o meu movimento espontâneo, que era aceito por ele (Little e Flarsheim 1964).
Aqueles acessos nunca voltaram a ocorrer e apenas em raras ocasiões senti aquele grau
de medo.
Logo ele descobriu que durante a primeira metade de todas as sessões não acontecia
coisa alguma. Eu não conseguia falar até atingir um estado “inalterado”, não perturbado
por qualquer invasão, como me pedirem para dizer o que estava pensando etc. Era como
se eu tivesse de assimilar o silêncio e a calma que ele proporcionava. Aquilo era muito
diferente das perturbações da infância, do estado de ansiedade da minha mãe e da
hostilidade geral da qual eu sempre senti necessidade de fugir para encontrar a paz. A
partir de então ele aumentou a duração das sessões para uma hora e meia, sem cobrar a
mais, até quase o final da análise.
Aqui, acho oportuno falar sobre as duas coisas em torno das quais tem havido mais
equívocos - holding e regressão para a dependência D. W. usava a palavra holding
metafórica e literalmente. Metaforicamente ele estava controlando (holding) a situação,
dando apoio, mantendo contato em todos os níveis com qualquer coisa que estivesse
acontecendo, dentro e ao redor do paciente e no relacionamento com ele.
Literalmente, durante intermináveis horas ele segurou as minhas duas mãos apertadas
entre as dele, quase como um cordão umbilical, enquanto eu ficava deitada,
frequentemente escondida debaixo do cobertor, calada, inerte, retraída, apavorada, com
raiva ou em lágrimas, dormindo e às vezes sonhando. Em algumas ocasiões, ele ficava
sonolento, adormecia e despertava com um movimento abrupto, ao que eu reagia com
raiva, apavorada e com uma sensação de ter sido golpeada. Ele próprio descreveu essas
sessões (Winnicott 1970b). D. W. deve ter sentido muito tédio e exaustão nessas horas,
às vezes até mesmo dor em suas mãos. Nós pudemos falar sobre isso depois.
O holding do qual o “controle” era sempre uma parte, significava assumir total
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responsabilidade, fornecer toda a força do ego que o paciente não podia encontrar em si
mesmo, e retirá-la, gradualmente, quando o paciente fosse capaz de cuidar de si mesmo.
Em outras palavras, fornecendo o “ambiente propício” (Winnicott 1965), onde era seguro
estar.
Apenas em raras ocasiões holding significava literalmente limitar ou controlar. Ele era
compassivo, mas sempre firme, às vezes ao ponto de ser cruel, quando achava que isso
era necessário para a segurança do seu paciente. Impossibilitado de intervir fisicamente,
ele podia “proibir” a ação. Isso era muito eficaz, porque apesar de poder ser transgredido
não podia deixar de ser notado, porque fora dito e também porque, no contexto de uma
transferência ilusória (Little 1975b), tornava-se automaticamente a proibição do próprio
paciente, e depois se associava a algum elemento de sanidade (Little 1959). Funcionava
tanto no nível consciente como no inconsciente.
Às vezes o holding tinha de ser delegado, entregando temporariamente um paciente
dependente a outra pessoa para que ele pudesse descansar, ou tirar férias, mas sempre
mantendo-se em contato com o paciente.
Durante uma de suas férias, ele entrou em entendimento com uma amiga minha, sem
que eu soubesse, para que ela me convidasse para ir me encontrar com ela e duas outras
amigas na Suíça: mais tarde, quando ele teve medo que eu me matasse enquanto estava
fora, tomou providências para hospitalização. (Falarei nisso novamente).
Em certa época eu era capaz de sair correndo furiosa da sua sala e ir embora dirigindo
perigosamente. Ele guardava as chaves do meu carro até o final da sessão e depois
deixava eu deitar sozinha e tranquila em outra sala, até poder estar livre de perigo. Ele
enfatizava a necessidade de “voltar” (Winnicott 1954a) da regressão profunda para a vida
comum, porque “regressão para a dependência” significa regressão para a dependência
para a própria vida – ao nível da infância, e às vezes até mesmo da vida pré-natal.
É claro que tudo isso se baseava em seu grande conhecimento e em sua
compreensão das crianças de todas as idades e dos pais, reconhecendo a necessidade
de apoio e de alguém presente, para assumir responsabilidades. Sua sempre crescente
capacidade de empatia, de estar em contato com o id, o ego e o superego, em pessoas
de todos os tipos e de todas as idades, inclusive ele próprio, compreendendo a linguagem
do corpo em todas as suas formas, era uma parte essencial dele. D. W. não se defendia
dos seus próprios sentimentos, mas podia admitir todos eles e, de vez em quando, a sua
manifestação. Sem sentimentalismo ele era capaz de sentir por, com e para o seu
paciente, participando de uma experiência de tal modo, que a emoção que tivera de ser
reprimida podia ser manifestada.
Eu falei com D. W. sobre uma perda antiga de que me lembrava. Havia encontrado
uma amiga, “A.”, na escola, alguém que me escolhera para ser sua amiga. Ela me tornou
uma pessoa da sua casa, fazendo eu me sentir à vontade em seu quarto, com a sua babá
e os seus brinquedos. Um dia, depois de um feriado, ela não estava mais lá. Depois,
durante muitos dias, estava “doente”; e, em seguida estava “morta”!. Eu havia sido
“indelicada” e “egoísta” não escrevendo para ela. “Não poderia ter me importado”, ou
“teria escrito”. Ele se viu chorando por mim – e eu pude chorar por causa disso como
nunca fizera antes e lamentar a minha perda.
“Por que você sempre chora silenciosamente?” perguntou ele. Respondi que
aprendera aquilo cedo. Certa vez, chorando com dor de dente no final de um longo dia,
que tinha sido exaustivo para todo mundo, me disseram: “Pare de chorar, querida, você
faz todos se sentirem péssimos”, e na manhã seguinte, quando o abscesso havia
estourado à noite e a dor terminara: “Está vendo, foi tudo uma confusão por nada.” E
frequentemente: “Anime-se, querida! Breve você estará morta.”
Aquilo o fez ficar muito zangado. “Eu realmente odeio a sua mãe”, disse. Ele ficou
“chocado” quando lhe contei que depois dos dez anos eu tinha de “descansar”, todas as
tardes, em um quarto escurecido, sem nenhum brinquedo ou livro, e tive vergonha
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quando roí a vela ao lado da minha cama até ela ficar fina no meio e eu poder pegar
pequenos pedaços de cera para mastigar, amassar e moldar.
Eu achava D. W. uma pessoa basicamente sincera, para quem os “bons modos” eram
importantes: ele tinha respeito pelo indivíduo, paciente ou colega, apesar de poder ser
direto nas críticas. Exigir “associações” e insistir numa “interpretação” teriam sido “maus
modos”, bem como inúteis. Ele era tão honesto quanto alguém podia ser, respondendo
com franqueza a comentários e perguntas, a não ser quando havia uma necessidade de
proteger outra pessoa. Mas era essencial saber quando a sua resposta não era
totalmente sincera e por quê.
Ele respondia às perguntas diretamente, percebendo o seu significado visível e só
depois indagando (sempre a si mesmo, frequentemente ao paciente) por que ela havia
sido feita. Por que naquela ocasião? E qual era a ansiedade inconsciente por trás dela?
D. W. me deixou seguir meu próprio ritmo, adaptando-se a ele. Somente usava
pressão quando algumas circunstâncias – geralmente imprevistas e externas – a
tornavam necessária. Isso foi muito importante pra mim. Permitiu que eu fosse eu mesma,
vivesse um ritmo próprio, enquanto anteriormente havia sido alternadamente
impulsionada e contida, de modo que nem o ritmo nem as contradições eram meus.
A escolha do momento da regressão total não podia ser só minha: ele dependia em
grande parte de se D. W. estava sobrecarregado. Ele falava que às vezes os pacientes
tinham de “ficar na fila” para entrar nesse estado, um esperando até o outro ter superado
os obstáculos e não precisar mais dele para isso. Mas a escolha do momento era minha,
na medida em que não podia haver regressão antes de eu estar pronta.
D. W. fazia muito poucas interpretações, e apenas quando eu havia chegado ao ponto
e que a questão podia tornar-se consciente. Então, é claro, a interpretação soaria bem.
Ele não era “infalível”, mas muitas vezes falhava experimentalmente, ou especulava: “Eu
acho que talvez...”, “Será que...”, ou “Parece que...” Aquilo me deixava apreciar ou
perceber o que ele dizia, e livre para aceitá-lo ou rejeitá-lo. As interpretações não eram
feitas como se eu tivesse acesso à função simbólica, quando eu não tinha.
Um dia a sua secretária me disse que ele não estava bem e se atrasaria para a minha
sessão. Ele chegou, parecendo cinzento e muito doente, dizendo que tinha laringite. Eu
disse: “Você não tem laringite, tem trombose coronariana. Vá para casa”. Ele insistiu que
era laringite, mas não conseguiu continuar; telefonou para mim naquela tarde e disse:
“Você estava certa, é trombose coronariana”. Aquilo significava uma longa interrupção na
análise, que foi muito dolorosa, mas finalmente me foi permitido saber a verdade: eu
podia estar certa e confiar nas minhas próprias percepções. Era uma mudança que
assinalava um momento decisivo, e D. W. sabia disso.
Ele dissera sobre mim um pouco antes: “Sim, você está doente, mas também há muita
saúde mental aí”. Comecei a reagir com ansiedade, e ele acrescentou: “Mas isso fica para
depois, o importante agora é a doença”, tendo percebido o meu medo de que ele a
negasse ou esquecesse. Posteriormente D. W. me descreveu como sendo “alguém que
sofre de esclerose múltipla que atingiu o cérebro”.
Essa era uma descrição muito real do meu estado “borderline” e da minha
transferência para ele (Little 1964a), porque na esclerose múltipla as lesões são
espalhadas e envolvimento cerebral provoca uma perturbação mental irregular; e havia,
como eu sabia, “partes” doentes e saudáveis. Elas também refletiam o estado da minha
mãe, quando D. W. falava nela. “Sua mãe é imprevisível, caótica, e estabelece o caos ao
seu redor” (ver Winnicott 1961). “Ela é como um daqueles brinquedos que saltam para
fora da caixa quando a tampa é aberta, sempre presente por toda a parte”. Aquele havia
sido realmente o meu primeiro ambiente, do qual eu não conseguia me desligar, apesar
da estabilidade e segurança do meu pai, porque o caos dela o afetava também. Mais
tarde, D. W. comentou que provavelmente eu teria ficado bem, se tivesse sido entregue,
desde cedo, aos cuidados de uma mãe de criação estável. (Talvez eu devesse enfatizar
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que, apesar das minhas dificuldades, eu não dava uma impressão de “anormalidade”.
Havia frenquentado a escola, passado nos exames e até mesmo obtido bolsas de estudo;
eu me formara em medicina, tivera êxito na clínica geral, treinara e me qualificara para ser
psicanalista. Além disso, exceto por três períodos de cerca de oito meses cada,
acrescidos das férias, eu trabalhei ininterruptamente como analista, durante toda a minha
análise com D.W.).
É preciso fazer uma observação sobre a minha família; caso contrário seria difícil
acreditar em muitas coisas que digo, ou mesmo entendê-las. Fico surpresa ao constatar
que, apesar de na verdade ter dito muito pouco sobre isso verbalmente ao D. W., seu
comentário sobre minha mãe foi como uma revelação (não uma “interpretação” analítica).
Ele tornou possível e lícito para eu compreender muitas coisas que já sabia, havia
observado ou que me disseram.
A infância da minha mãe, na Austrália, foi horrível, com um pai alcoólatra e instável e
uma mãe amorosa, mas dominadora, intrometida e imprevisível, a quem o meu avô era
infiel. Dois irmãos mais velhos, um dos quais minha mãe adorava, a provocavam e
mimavam, assustavam e maltratavam. Um irmão mais novo nasceu cego. Com cinco
anos, minha mãe assumiu a responsabilidade de cuidar dele, quando nasceu outra
criança. Muito próximo estavam o mundo assustador da colônia penitenciária, do qual
meu avô tirava sua força de trabalho, os aborígines canibais e o Matagal, onde as
crianças frequentemente se perdiam, e raramente eram encontradas.
Minha mãe tinha de ser corajosa, divertida e inteligente. Seu pai também a provocava,
mimava e maltratava. Finalmente, ele a renegou e ao seu irmão cego. Minha mãe
aprendeu a dançar para ele e a chutar, “acidentalmente”, a garrafa de conhaque, também
para defender a sua mãe nas brigas com o meu avô. Esse não é absolutamente o
momento mais oportuno para eu contar todos os detalhes que conheço, mas ela me
disse, pouco antes de morrer, que “só conseguiu sobreviver transformando tudo em uma
brincadeira” (veja Searles 1959). O espantoso é que ela realmente sobreviveu, para
casar-se com o meu pai, que era tão dedicado a ela quanto ela a ele. Isso nunca foi posto
em dúvida, apesar de eles também provocarem um ao outro e aos seus filhos,
frequentemente com bastante sadismo. A idéia que a minha mãe tinha do sexo era a de
“um dever desagradável que uma mulher tem para com o seu marido”; o parto era algo
simplesmente horrível que ela mantinha a distância, apertando o corpo para que a sua
gravidez não pudesse ser notada, e evitando as dores (que seriam inevitáveis) “não
pensando nelas”, até isso se tornar impossível. Ter medo era “covardia” e “desprezível”.
Meu pai não era de forma alguma um joão-ninguém. Ele era um matemático, que
renunciou à carreira universitária e tornou-se um professor para pagar os seus estudos
(não pagos devido à falência do seu pai). Ele era equilibrado, afetuoso e afável, mas
todos os seus relacionamentos e atividades sociais (iatismo, golfe, etc.) foram
sistematicamente destruídos pela minha mãe; só eram toleradas atividades solidárias ou
que envolviam a sua família, e ele tornou-se irritável e impaciente. Meu pai era muito
escrupuloso, inibido, tímido com as mulheres e pouco expansivo com os filhos. A única
mulher com quem se teve notícia de que ele conversou foi a minha mãe; aquilo foi amor à
primeira vista e por toda a vida, e ele raramente sentia vontade de enfrentá-la.
Não é de admirar que todos os seus filhos fossem perturbados em algum grau. Minha
mãe manifestava o seu medo de que nós “nos déssemos mal”. Minha irmã mais velha,
Ruth, intelectualmente brilhante, desenvolveu um superego selvagem, muita coragem
moral e capacidade de resignação. Ela tornou-se um mito durante toda sua vida, e uma
santa; lamentavelmente; para ela, “Esta vida não valeria a pena se não houvesse uma
vida melhor do outro mundo”. Minha irmã mais nova, Cecily, ficou doente logo que os
meus pais emigraram para a Austrália (sempre a Terra Prometida), em 1934, e morreu
(com 28 anos) pouco antes de eles chegarem lá. (Eles ficaram na Austrália durante
apenas quatro anos). Meus dois irmãos – gêmeos univitelinos dez anos mais novos do
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que eu, nascidos prematuramente depois de uma gravidez quase fatal de uma mãe de 42
anos que já tivera três filhos – estão vivos e têm tido as suas dificuldades.
Para Ruth eu era “irritante”. Devo ter sido uma ameaça à sua supremacia, porque
estava sempre doente quando era bebê e, depois disso, precisando de muita atenção e
obtendo-a, provavelmente devido a uma hérnia do hiato congênita e a uma condição
celíaca (ambas congênitas), que me incomodaram durante toda a minha vida e só foram
diagnosticadas quando tinha quase dezessete anos. (Antes disso, é claro, as minhas
queixas eram “exagero”, “imaginação” e mais tarde “psicogênicas”, mas sempre algo que
“devia controlar”).
Minha mãe fez todo o possível para ser uma boa esposa e mãe, às vezes tendo êxito,
mas a ansiedade a tornava uma intrometida compulsiva, possessiva e sempre interferindo
na vida e nos relacionamentos dos outros. Era uma pessoa muito inteligente e talentosa,
dedicada e terna, mas de um modo totalmente descontrolado, sendo tragicamente
prejudicada. A única coisa previsível era que ela seria imprevisível; tinha-se de encontrar
modos de lidar com isso. As únicas brincadeiras possíveis – com brinquedos, bolas ou
palavras, etc. – tinham de ser sugeridas por ela; frequentemente isso era bom, mas
qualquer brincadeira iniciada por mim era interrompida, ou ela assumia o seu comando. A
espontaneidade, “ideia, impulso, ação... igual... junto, sabendo o que fazer” (Sacks 1985)
era fracassada. Sua própria mãe, a tirana benevolente, estava sempre por perto, nem
sempre era tão benevolente.
O meu tio cego era praticamente a única pessoa com quem eu podia conversar. Ela
era um homem de estudos, muito culto, entendido em música e muito independente.
Quando o meu tio se casou eu perdi o contato com ele. Fiquei profundamente deprimida e
doente fisicamente.
Durante a minha análise com D. W., passei por três períodos de séria depressão,
durante os quais não conseguia trabalhar. Há muito tempo tinha consciência de períodos
de depressão que duravam cerca de dez duas, a intervalos de cerca de três meses, bem
distantes de qualquer perda conhecida, os quais considerava ininteligíveis. E houvera
duas depressões incapacitantes conseguintes às perdas das quais estava ciente.
No começo da análise, depois de uma crise aguda de gastroenterite (posteriormente
identificada como uma crise da doença celíaca), continuei a me sentir muito doente,
exausta fisicamente e profundamente deprimida. Não conseguia ir me encontrar com D.
W. para as minhas sessões. Ele foi à minha casa – cinco, seis e às vezes sete dias por
semana, durante cerca de três meses. Cada sessão durava noventa minutos. Em quase
todas, eu simplesmente ficava deitada chorando, amparada por ele. D. W. não me
pressionou, ouviu minhas queixas, demonstrou que reconhecia o meu sofrimento e podia
suportá-lo. Quando me recuperei fisicamente, a depressão desapareceu pouco a pouco e
pude voltar a trabalhar.
Para D. W., a psique e o soma eram inseparáveis, “corpo e alma, que no fundo são
aspectos interdependentes da mesma realidade” (van der Post 1982). Ele estava sempre
preocupado com o meu estado físico; sempre tinha à mão o estetoscópio, o
esfigmomanômetro e o termômetro clínico, e os usava. Ele me aconselharia a procurar o
meu clínico ou um especialista se necessário, mas também levaria a sério minha opinião
sobre minha própria saúde. Certa vez, quando tive uma bronquite branda, ele perguntou
se não seria bom procurar meu clínico, mas eu lhe disse: “Não estou doente. Estou
infeliz”. E isso foi suficiente.
O período do outono de 1950 à primavera de 1952 foi particularmente difícil pra mim.
Eu havia voltado das minhas férias de verão com uma hora marcada para falar
novamente com D. W., mas descobri que ele tinha tido uma segunda, mas menos grave,
trombose coronariana, o que significava uma longa interrupção da análise.
Em seguida, fui convidada para ser assistente na Secretaria de Comércio da British
Psycho-Analytical Society e no Institute of Psycho-Analysis, precisando de dois anos de
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possível antes. Apesar de só ter voltado a vê-la quando ela estava morrendo, dois anos
depois, nunca me arrependi do que fiz.
As minhas férias e as dele chegaram. Fui para o extremo norte da Escócia, para o
campo, onde passeava sozinha. Minha mãe escreveu, fazendo uma exigência
extravagante; minha “explosão” foi ignorada e tornada inútil, seu domínio sobre mim
reafirmado. Eu subi por uma trilha na montanha batendo os pés de raiva. A trilha era
afastada, íngreme e escorregadia, e a percorri em meio a um denso nevoeiro. No dia
seguinte, ainda furiosa, escorreguei na grama molhada do lado de fora do hotel, caí e
quebrei o tornozelo. (Se isso tivesse acontecido no dia anterior, poderia ter ficado no chão
a noite toda até ser encontrada). Fui levada ao hospital e medicada; minha perna foi
colocada em um gesso leve, sobre uma tala. Recebi um telegrama e uma carta de D. W.,
em resposta ao cartão-postal que lhe enviara contando sobre o acidente.
O Superintendente Médico do hospital foi muito útil. Ele falou na depressão que se
segue a uma perda subida da mobilidade, tendo ele próprio passado por isso na
juventude, quando teve pólio.
No final de duas semanas eu estava começando a andar e fui liberada. Mas então
surgiu a dificuldade de chegar à casa. Meu carro e outras coisas estavam a cem
quilômetros em uma direção, minha casa a novecentos quilômetros em outra! Felizmente,
duas amigas que conheci no hotel vieram em meu socorro. Uma despachou o carro pra
mim, e a outra me convidou para ficar na sua casa, que ficava no meu caminho, até eu
conseguir fazer os preparativos para a minha viagem e o transporte de carro.
Quando cheguei à casa, o gesso estava folgado e teve de ser substituído. O novo
aparelho era pesado e incômodo, com um mecanismo oscilatório debaixo do calcanhar,
por isso, uma vez mais, a minha mobilidade estava muito restrita, e o andar, precário.
Quando voltei a ver D. W., seis semanas depois, tinham acontecido tantas coisas que
eu estava confusa e havia perdido todo o contato com o que havia provocado o acidente,
por isso nunca toquei nesse assunto com ele. D. W.. Presumi que o acidente estava
totalmente relacionado com a transferência, com as suas férias (cf. a reação da Srta.
Sharpe ao meu luto), e que também foi uma séria tentativa de suicídio. Poderia ter
protestado, mas a perda recente da mobilidade fizera voltar a depressão. Acho que havia
uma culpa inconsciente pela minha agressão verbal à minha mãe, pela não aceitação da
sua exigência e pela vontade que eu certamente tivera de agredi-la fisicamente, mas que
havia se voltado para mim.
Percebo que não me lembro do conteúdo do trabalho do ano seguinte na análise, por
isso acho que projetei a confusão etc., e D. W. deve ter assumido o seu controle (Searles
1959), caso contrário, seria difícil entender o que se seguiu, em particular por que a
hospitalização e a regressão, já ocorridas em conseqüência do acidente, aparentemente
não foram usadas tão plenamente como poderiam ter sido.
Como eu interpreto isso agora, algo tinha de ser quebrado – para me libertar do
domínio da minha mãe e destruir finalmente o padrão de repetição. Duas lembranças de
infância se encaixam aqui. Uma é a dela apertando os meus dois pulsos e dizendo
energeticamente: “Você tem de se controlar!”. Mas na verdade era ela que estava me
controlando.
A segunda é a de estar doente com pneumonia – parte de um antigo “colapso” (com a
idade de cinco anos), causado por muitas e súbitas mudanças, incluindo uma
transferência para uma nova casa, onde meu pai era responsável pelos alunos internos;
durante a noite havia dezenove garotos, com nenhum dos quais eu tinha permissão para
falar. Na mesma época houve uma troca de jardim de infância. Na havia gostado do
primeiro, mas detestei o segundo, onde um garoto mais velho e maior do que eu
implicava comigo. (Um ano antes Cecily havia aparecido durante a noite e fui colocada
em um quarto junto com Ruth, que implicava comigo e me assustava).
No novo jardim de infância minha identidade sexual era confusa. Em uma brincadeira
19
com o jantar, a luminária para leitura e tudo o que pude encontrar no quarto, numa orgia
de destruição. Fui imediatamente colocada no isolamento para passar a noite. Durante
todo o tempo fiquei paranóica, vendo as enfermeiras como “demônios”. Mas eu havia me
agarrado a duas coisas que mais tarde provaram ser “objetos transicionais” (Little 1950),
um lenço que D. W. havia me dado e um cachecol de lã azul de que eu gostava, e que
comprara. Pela manhã, fui levada para um quarto aberto em uma ala trancada, e a Irmã
da ala veio me ver. Mais tarde, banhada, alimentada e tratada como uma criança, fui
colocada em um quarto onde fiquei durante o resto do tempo.
Em minhas sessões com D. W., fora tratada “de modo especial”, como uma criança;
ele próprio sempre abria a porta para mim, todas as sessões terminavam com café e
biscoitos, ele fazia com que eu me sentisse quente e confortável, fornecia lenços de
papel, etc. Mas lá estava a total “regressão para a dependência”, uma extensão do que D.
W. havia me proporcionado; e ele se mantinha constantemente em contato com o
hospital, e me enviava cartões-postais, dizendo onde se encontrava.
No hospital, os cuidados eram totais e interferência mínima; tudo era fornecido e nada
era exigido. Eu passava o tempo dormindo, lendo, escrevendo e pintando, às vezes nas
paredes do meu quarto; na verdade, brincando. Perambulava pelo jardim e pelas ruas;
quando chovia, uma enfermeira ia me buscar com guarda-chuva e capa impermeável.
Quando os meus pés estavam empolados a Irmã tratava deles e me dizia: “Você devia ter
telefonado pedindo que fossem buscá-la de carro”.
Podia haver sofrimento ou agitação ao meu redor, mas o lugar continuava a existir, me
amparando e protegendo, calmo e aparentemente sem perturbações. (Nesse sentido,
nada poderia ter sido mais diferente do meu antigo ambiente. Lembrei-me de um dia, em
1944, em que Ruth e eu estávamos visitando os nossos pais; nós quatro não
conseguíamos nos sentar juntos mais que cinco minutos, porque sempre havia alguma
coisa a ser apanhada ou feita. Não poderia ter sido tão ruim antes, mas naquele tempo eu
teria sido menos capaz de aguentar isso do que era nesse momento).
Mais uma vez algo havia sido quebrado (pratos, luminária, etc.), mas não eu. Agora eu
estava no que havia se tornado o meu verdadeiro “quarto de criança”, em que era seguro
não me controlar. Os limites eram amplos e flexíveis. Aquilo era fisicamente uma extensão
do consultório de D. W., onde, anteriormente, havia quebrado o seu vaso. Agora podia
tornar clara para mim mesma a minha escolha entre a vida e a morte (“Ser... ou... não ser”
– Hamlet, III. i, ver Winnicott 1971b). O fato de D. W. me internar era uma repetição de
sua reação quando quebrei o vaso, mas dessa vez o contato não foi interrompido como
naquela época, quando ele me deixou sozinha com a destruição que eu havia causado.
Somente muito tempo depois percebi que a própria destruição era uma criação, porque
a destruição e a criação são inseparáveis – não se pode pintar um quadro sem destruir
uma tela branca e tubos de tinta (e tudo tem ambivalência), “porque não pode existir vida
sem morte” (Thompson 1924), e “o amor envolve a destruição” (Winnicott 1963b).
Apesar de não gostar de muitas coisas no hospital, em geral ele era agradável e
acolhedor, às vezes até mesmo divertido. Um dia pintei um mar e acrescentei subitamente
a enorme cabeça de um monstro surgindo, com os olhos flamejantes e mandíbulas
ameaçadoras. A tela foi pendurada, e o terapeuta ocupacional ficou em pé olhando-a, de
costas para mim. Eu disse: “Uma bela obra de arte esquizofrênica, hein?” Ele precipitou-
se para fora do quarto e atravessou o corredor. A Irmã entrou reprimindo o riso e me
perguntou: “O que você fez com o pobre Sr. Y? Parecia que o diabo estava atrás dele!”. E
nós rimos juntas, não dele, mas da minha pintura. A espontaneidade foi restabelecida, até
mesmo bem vinda.
Mas não podia ter aceitado viver durante tanto tempo. O fato de ter de estar lá me
deprimia ainda mais. Um dia, vendo um pedaço de corda no jardim, pensei novamente em
suicídio. De repente percebi que aquilo não seria uma verdadeira solução, apenas uma
vitória para o mundo louco contra o qual lutar durante toda minha vida e ao qual, com
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tanta freqüência, cedera (Winnicott 1963b), e realmente um ato de loucura. Nunca pensei
nisso de novo e retornei da regressão para a vida comum (Winnicott 1954a).
Voltei a trabalhar uns quinze dias depois de ir para casa. Minha análise começara a
chegar ao fim. Havia muito o que contar a D. W. sobre o período no hospital, a
experiência, o tema das minhas pinturas e poemas, a minha brincadeira e as minhas
fantasias, como uma criança falaria sobre essas coisas com a sua mãe. Eu ainda ficava
acordada até tarde da noite pintando quadros fantásticos e escrevendo poemas
melancólicos D. W. os examinava e fazia comentários sobre eles.
Não era crítico, apesar de dizer o que sentia. Demorei um pouco para perceber que o
fato de ele não gostar de um quadro não significava que eu deveria destruí-lo. Ele tinha
um valor simplesmente como uma criação, tanto para D. W. como para mim.
Em algum ponto dessa fase terminal, D. W. me deu uma interpretação particularmente
importante, que tinha o mesmo caráter de “revelação” da sua observação anterior, obre o
“caos” da minha mãe. Ele me disse que o medo de aniquilação que eu sentia estava
relacionado com a “aniquilação” que já ocorrera: eu havia sido aniquilada fisicamente,
mas de fato sobrevivera, e estava agora revivendo emocionalmente a experiência
passada. Custei um pouco a assimilar as suas palavras e a tirar proveito delas (Winnicott
1968). Mesmo agora, tendo a esquecê-las em momentos de tensão, mas logo que
relembro aquela interpretação a ansiedade é aliviada (“O medo é apenas lembrança no
futuro” – Elizabeth Ayrton, Day Eight; e “A sobrevivência é a irmã gêmea da aniquilação” –
Churchill, Discurso em 1941).
Era verdade que eu fora aniquilada antes mesmo de haver existido. Não fui uma
pessoa por mim mesma, apenas um complemento de outras pessoas: apresentada “Esta
é a minha filha”; conhecida como “A irmã de Ruth”; uma das três Margarets em minha
classe e das duas M. Littles na escola. O meu segundo nome, Isabel, também foi inútil: “É
sempre I, I, I”, diziam. Ao tentar livrar-me do egocentrismo, coloquei de lado a inicial. Só
usei mais tarde, para me diferenciar de outra psiquiatra com o mesmo nome!
A essa altura, o caráter das sessões havia mudado muito, porque tanta dor, sofrimento
e raiva tinham sido superados através dessa brincadeira, a base da criatividade (Winnicott
1971a) pôde substituí-los e o relacionamento surgido anos antes pode se desenvolver.
Alguns analistas parecem achar que todas as sessões devem ser dolorosas, mas ao
mesmo tempo que D. W. tinha total consciência de que análise só podia dar certo para
alguém que realmente sofria, ele acreditava no valor de um relacionamento capaz
também de ser estimulante e agradável. Muitas das brincadeiras através das quais me
fortaleci fisicamente podiam ter sido como as da minha mãe: piadas, histórias e disparates
(certa vez perguntei a D. W. porque ele havia preferido se alistar na Marinha, em vez do
Exército ou na Aeronáutica: “O uniforme combinava mais com os seus olhos azuis!”), um
pouco de conversa fiada, informação e discussão séria sobre análise. Mas essas coisas
não foram usadas como defesa contra a ansiedade, para repelir a raiva ou a excitação, ou
evitar o sofrimento e a infidelidade fazendo-me rir. Elas não me foram impostas, podia tê-
las ou não, se eu quisesse. O importante era ser humano, e a brincadeira era uma parte
essencial da vida humana em qualquer idade.
D. W. conseguiu me fazer entender algumas das exigências que uma análise como a
minha impunham a ele, exigências que desejava cumprir, não só se a análise fosse bem
sucedida: suportando a ansiedade, a culpa, o sofrimento, a aflição, a insegurança e a
sensação de impotência, suportando o que não podia ser suportado. Não havia qualquer
defesa contra o paradoxo ou a ambivalência, no paciente ou nele próprio D. W. me falou
sobre um paciente que, durante muitos meses, ameaçava suicidar-se de modo
suficientemente sério para que ele providenciasse uma hospitalização. O suicídio ocorreu,
em sua opinião desnecessariamente e pelo motivo errado, porque as suas instruções
foram ignoradas. Depois disso ele havia passado por um longo período de ansiedade e
culpa, porque odiou o paciente por tê-lo feito sofrer (Winnicott 1947). Ele desejou gritar:
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“Pelo amor de Deus, vá em frente e faça isso”. Quando o suicídio realmente ocorreu,
houve mais culpa e sensação de impotência (ele deveria ter sido capaz de evitá-lo); raiva
contra os que não tinham seguido as suas instruções, e finalmente uma grande sensação
de perda de uma pessoa por quem ele se interessava muito e em quem investira tanto o
sentimento. Ainda assim, ele deixou claro que a total abnegação não tinha sentido. Se ele
não cuidasse de si mesmo, satisfazendo as suas próprias necessidades físicas e
emocionais, não seria útil para ninguém, inclusive para si mesmo. Daí a importância do
seu casamento, das suas férias, da música, dos amigos, etc. Passei a perceber
mudanças nele, crescimento e desenvolvimento, alterações no seu modo de trabalhar:
coisas intangíveis, percebidas apenas depois que ocorreram. Certa vez ele disse que não
poderia ter feito a minha análise antes.
O fato de ele me deixar participar um pouco disse tornava-o seguro para mim;
aumentava minha própria sensação de ser valorizada e, por isso, ser importante, e dessa
forma minha capacidade de me valorizar aumentou. Tornei-me consciente de que o D. W.
que eu conhecia era diferente do que todos conheciam, apesar de que as outras pessoas
podiam conhecer alguns dos mesmos aspectos dele. Eu o “criei” para mim mesma na
minha imaginação, porque essas pessoas e eu éramos diferentes, apesar de que
podíamos parecer iguais; isso dava a elas o seu valor e realidade. Acima de tudo, ele
tornou-se uma pessoa viva e real com quem eu tinha um relacionamento que começara
anos antes, e que não era mais baseado apenas na transferência.
Seguiram-se outros relacionamentos, com colegas e amigos. No início de 1954 a
minha mãe morreu; não havia me encontrado com ela ou com Ruth desde a minha
“explosão”. Então, pela primeira vez, um relacionamento com Ruth tornou-se possível. Eu
estava encontrando prazer e satisfação em meu trabalho e em tudo mais, principalmente
na pintura e em meu jardim, que parecia ser o único elo positivo com minha mãe.
Nós começamos a diminuir a duração e a freqüência das sessões, e a aumentar, por
insistência minha, os honorários dele. No verão de 1855, eu concordei em terminar. Mais
uma vez, me envolvi sexualmente e fui mal sucedida, porque era novamente uma
situação edipiana. Voltei para D. W. procurando ajuda. Ele me atendeu uma vez por
semana durante dezoito meses, no final dos quais me disse claramente que era hora de
eu assumir as minhas próprias responsabilidades e continuar com a minha vida – “seja
você mesma”, mas agora por mim, não por ele.
Capítulo 6
Resultados, 1957-1984
Terminar não foi muito difícil: meu relacionamento com D. W. continuou a ser cordial e
satisfatório, apesar de eu nunca ter podido fazer parte do seu círculo mais íntimo de
amizades. Aquilo era explícito e compreensível. Podia vê-lo ou telefonar-lhe de vez em
quando, em caso de necessidade, e ele me convidou para participar de uma pequena
reunião de grupo para discutir alguns dos seus trabalhos mais recentes.
Eu não era mais uma “não-pessoa”, minha identidade foi reconhecida por D. W. e por
outras pessoas; havia me firmado como uma analista em treinamentos e D.W.
encaminhava para mim pacientes, tanto adultos como adolescentes (sobre os quais nem
sempre concordávamos) para consulta ou análise, inclusive alguns de quem ele gostava
especialmente. Minha posição como pintora também foi reconhecida: meus quadros eram
expostos regularmente e vendidos ocasionalmente. Eu podia ser e fazer, me afirmar sem
culpa indevida, ansiedade ou reação paranóica. Nas palavras de um velho amigo de
antes da análise eu “não era reconhecível para a mesma pessoa”. (“Parecia que ser
conhecido é ter vida e continuação no conceito de outros homens” – Power 1969).
Desde então tenho continuado com a autoanálise (Little 1964b), até mesmo
recentemente, explorando novamente muitas das minhas experiências, reconsiderando o
23
Capítulo 7
Winnicott como Mestre
Esta parte seria incompleta sem uma referência a D. W. como mestre. Nunca o
conheci “oficialmente” nesse papel, apesar de ter aprendido muito com ele durante a
análise (também lhe devo isso); e qualquer reivindicação da minha parte de que realizei
algo remotamente parecido deve-se a esta análise, e não é uma questão de imitação ou
de ter sido “ensinada”.
Não creio que um analista possa sempre estar consciente do que está fazendo, e por
que, no momento (“Como posso saber o que penso até compreender o que digo?” –
Graham Wallas, The Art of Thought), e acho que D. W. não estava – ele não tinha medo
de reagir, ou de ser espontâneo, mas, frequentemente explicava o que estava dizendo ou
fazendo, à vezes no momento, em outras ocasiões em uma sessão posterior. Criticava
constantemente o próprio trabalho, na autoanálise, e estava disposto a reconhecer e
corrigir um erro ou omissão quando o material do paciente revelava ansiedade.
O que se segue, eu soube através de outras pessoas. Seus seminários e sessões de
supervisão eram eventos alegres e agradáveis, mesmo quando ele discordava das idéias
e métodos dos outros; eram informais, com frequência animados por canecas de café
quente e biscoitos de gengibre, “Ele ensinava você a fazer livres associações como
analista como todo material do seu paciente. Quando você falava sobre isso ele se
recostava na cadeira, fechava os olhos e começava a falar consigo mesmo, associando
livremente em relação ao paciente, ao que você teria dito, a qualquer coisa que tivesse
acontecido. Não criticando, ou perguntando: ‘Por que disse isso?’, mas partilhando com
você as associações dele” (Ralph Layland, informação pessoal) D. W. exemplificava o que
dizia com seu próprio trabalho, a discussão era livre; ele não “discursava” (isso teria sido
“falta de educação”), e incentivava os estudantes ou colegas a encontrar seus próprios
modos de trabalhar; a não seguir os dele, porque estes diziam respeito essencial e
inseparavelmente à sua personalidade.
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O caçador e os animais que ele procura parecem unir-se e tornar-se parte um do outro e
de toda a vida que existe.
James Houston, “Spirit Wrestler”
Capítulo 8
O valor de regressão
Exceto pelo trecho final sobre Winnicott como mestre, a Parte II foi escrita do ponto de
vista de uma paciente, uma psicótica borderline.
Do ponto de vista do analista, o valor da regressão para a dependência pode ser
afirmado de um modo muito simples – ela não é um meio pelo qual se podem explorar as
áreas onde predominam as ansiedades psicóticas, revelar experiências antigas, e
reconhecer e resolver idéias ilusórias ocultas, através da associação
transferência/contratransferência de analista e analisando, em fases positivas e
negativas. Na prática, é claro, isso não é tão simples.
O ensaio de Winnicott “The Metapsychological and clinical aspects of regression within
the psychoanalytic set-up” (Winnicott 1945b) trata em detalhes de consderações teóricas
e práticas. Ele se refere à transferência e à contratransferência, especialmente à última,
como sendo de suprema importância, mas muito pouco na forma de dados sobre
pacientes está disponível para nós em qualquer um dos seus escritos. Meu objetivo ao
25
escrever este capítulo é, em primeiro lugar, ilustrar clinicamente o que ele escreveu; mas
também acrescentar algo meu que, como mostrarei depois, ele reconheceu.
Devo deixar claro aqui que estou usando o termo contratransferência no sentido de
exato em que eu o defini em meu ensaio “Counter transference and the patient’s response
to it” (Little 1950):
Mas além do que é reprimido, pode haver muitas coisas não analisadas, que jamais
foram nem mesmo pré-conscientes, relacionadas com os níveis mais antigos da
experiência do analista, formando desta forma parte da sua contratransferência – uma
parte intuitiva e muito importante no tratamento da psicose.
A regressão para o nível da ansiedade predominante ocorre em todos os pacientes em
análise, logo que o controle consciente é diminuído. Também ocorre durante o sono, em
momentos de ociosidade, de ausência de exigências externas ou internas; e quando a
ansiedade não é intensa a regressão pode ser gratificante e agradável, tornando possível
o sonho, a fantasia e a criatividade.
Gavin Maxwell (1968), em seu livro Raven Seek Thy Brother; descreve particularmente
bem o que aconteceu em uma regressão durante a convalescença, depois de um
acidente sério onde sofrera lesões múltiplas:
1960b), que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no
analista uma adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um
“tratamento” em vez de uma “técnica”; e um comportamento intuitivo, não interpretação
verbal. Mas isso não é fácil, porque envolve o analisando em uma volta assustadora ao
primeiro estágio não-integrado. Há o risco de aniquilação repetida pelos estímulos aos
quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque), e com uma integração forçada,
contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de deixarem-no cair
quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle.
O analista tem de ser capaz de renunciar às defesas contra a mesma ansiedade, o
medo de aniquilação, da perda da identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao
mesmo tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta e seu sentido de
realidade inalterado, mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o
da ilusão. Ele está na posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o
paciente estão de fato nessa situação. Isso exige as mesmas qualidades de uma “mãe
suficientemente boa” (Winnicott 1952b), empatia com a criança (Winnicott 1960a) e
capacidade de considerá-la uma pessoa separada. Não contar com a “atitude profissional”
para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente como distinto da imagem do
espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer sentido aqui; unir-se
fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente sem revidar
quando os traumas originais são revividos (Winnicott 1947, 1960c) e suportar as suas
próprias emoções quando elas são despertadas.
A “atenção interrompida uniformemente” do analista (Freud 1913) parece-me, aqui,
semelhante à “preocupação maternal primária” descrita por Winnicott (1956a): talvez seja
basicamente a mesma coisa, apesar de em menor grau, porque a preocupação primária
aparentemente significa um elemento de doença regressiva temporária, até mesmo
esquizóide, na mãe.
Há muitas dificuldades no caminho para ambos os parceiros. O tempo é essencial; e a
ausência de perturbações causadas por doenças físicas, exigências do mundo externo,
trabalho etc.; mas acima de tudo, há em cada um deles a resistência interna, causada
pela própria ansiedade. O controle é necessário. O ambiente analítico proporciona
confornto físico, calor humano, silêncio e ausência de interrupções em geral. O conforto
emocional também é encontrado na atitude do analista de aceitação, encorajamento e
reação, que às vezes pode ser ativa, ou, com mais frequência, neutra. Em um paciente
gravemente perturbado essas são necessidades absolutas (Winnicott 1949ª, b, 1954ª, b),
não desejos; e, quando supridas, têm um efeito interpretativo, como as “sugestões” que
uma mãe dá ao seu filho.
Como o paciente não é uma criança, reage aos fracassos de um modo adulto, com um
corpo adulto, e aí reside o perigo. Para o analisando, há risco de fracasso se as suas
necessidades não foram supridas, de reconstruir defesas, passar rapidamente para a
doença ou a sanidade; ou de suicídio, o que deve ter liberdade para escolher, se desejar,
destruindo assim a análise. Para o analista, há um sério risco de ser atacado, quando a
raiva despertada pelo trauma original é libertada, ou quando a tensão diminui e ele
comete um erro do qual não pode tirar partido. É uma questão de vida ou morte, somática
ou psíquica. Se o analista não sobreviver à doença, acidente ou ataque (ou desenvolver
uma psicose de contratransferência), pode não haver uma cura para o analisando;
apenas, na melhor das hipóteses, um retorno ao status quo ante.
Quando ambos sobrevivem aos pontos perigosos e as defesas não são reconstruídas,
o analista pode tirar gradualmente a sua adaptação; o analisando pode tornar-se uma
pessoa, um self que é diferente do self anterior (apesar de estar relacionado com ele). A
experiência de ser “adotado” é realmente mutante, porque resolve a ansiedade
relacionada com a sobrevivência e com a identidade, renovando a confiança e
proporcionando a continuidade da existência. A consciência de ser real, o reconhecimento
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Capítulo 9
Explorando as ansiedades psicóticas
verso, bobagens, ópera, etc. Isso, com seu senso de humor e amor pela jardinagem, são
elos positivos e duradouros. Esses elos, bem como a estabilidade do meu pai,
provavelmente evitaram que eu me tornasse totalmente louca. Mas outros
desenvolvimentos do nosso relacionamento fracassaram.
Suas interferências eram alternadas com descaso, e a atenção excessiva com a
“omissão”, porque ela estava sempre se distraindo. O que era importante em um minuto
perdia totalmente a importância no minuto seguinte, e o que era importante para mim
tinha de ser posto de lado. Isso permanece como um elo negativo, porque ainda sinto
qualquer perturbação quando estou preocupada como se a minha mãe estivesse. Mais
uma vez, tomando posse de mim. Recupero-me, mas leva tempo!
A comunicação com D. W. tornou-se possível através dos longos silêncios. Mais tarde,
essa corrente bidirecional inconsciente me levou a escrever meus ensaios e possibilitou
algum desenvolvimento no trabalho dele. Mas mesmo nas horas de análise havia
perturbações. Nos momentos de silêncio, D. W. tornava-se sonolento e “despertava
sobressalto”. Eu reagia demonstrando raiva, como com tanta frequência havia me
enfurecido intimamente contra a minha mãe. De modo mais sério, houve ameaça de caos
com as suas duas tromboses coronarianas, sua depressão, seu divórcio e novo
casamento e sua mudança de casa.
Anteriormente, durante toda a sucessão de terapias, o caos sempre esteve perto. Meu
primeiro terapeuta (Dr. X.) frequentemente atendia o telefone durante as minhas sessões;
a condição cardíaca da Srta. Sharpe representava uma constante ameaça, e o caos
realmente sobreveio quando ela morreu. Marion Milner, a quem procurei naquela época,
ajudou a fazer voltar um pouco da estabilidade, e reconstruí defesas. Mas a nova
mudança, dela para D. W., representou outra ameaça. Minha defesa, a fuga, foi logo
destruída.
O caos surgiu novamente depois da minha “explosão” com minha mãe, em 1952, por
causa de uma coisa totalmente trivial. Ela revidou com um exigência que, mais uma vez,
deixou claro que eu e tudo o que eu tinha – meu corpo, minhas roupas, dinheiro, etc. –
pertenciam a ela, para fazer o que quisesse, não para ajudar, o que eu teria dado de bom
grado.
Minha reação foi raiva, descarregada sobre o meu próprio corpo, como se fosse o
dela. Sofri um acidente que resultou em um longo período de imobilidade, seguido por um
permanente estado de confusão – virtualmente uma doença regressiva – que culminou
em uma hospitalização durante as férias de verão de D. W., em 1953. Minha única
alternativa para isso teria sido para com a análise, mas naquela época estava muito
consciente da minha necessidade de ajuda para poder fazer isso. Depois de um violento
protesto, acabei concordando com a hospitalização.
Mais uma vez, minha tentativa de permanecer não-integrada durante um período foi
malograda no hospital; uma série de interrupções (todas bem intencionadas) repetiram
para mim os traumas originais pré-natais. Fui dominada por emoções caóticas, que
manifestei em uma orgia de destruição. Mas aquele era lugar onde podia reagir
violentamente sem de fato destruir ou ser destruída por ele. Na ala trancada para onde fui
levada, pude estar não integrada, e depois descobrir continuidade em mim mesma e no
mundo externo. Finalmente, decidi viver. Não dependia mais ilusoriamente da
continuidade física ou da identidade com D. W.; afinal, pude me separar de minha mãe, e
concluir que minha saúde era boa e que eu havia me identificado com o perfil doentio dela
(Little 1957b).
Muitas vezes, desejei saber (e não fui a única) se a minha hospitalização poderia ter
sido evitada de algum modo, e agora sei que não. Mas isso só pode ser compreendido
quando são consideradas todas as circunstâncias e o tipo de cuidados que recebi no
hospital e do próprio D. W.
31
Já estava com 52 anos, e minha vida como psicanalista ainda não fora bem
estabelecida. No estado mental em que me encontrava, regredia profundamente em todas
as sessões e só me restabelecia lentamente, Anotações daquele tempo, que conservo em
meu poder, revelam a intensidade da minha ansiedade e a reação exagerada e qualquer
perturbação. Precisava ser isolada durante os feriados, e, em particular, protegida de
qualquer possível interrupção por parte da minha mãe, a qual ainda era uma fonte real de
possível risco para sua própria vida e para a minha. (Lamentavelmente, ela morreu seis
meses depois; subitamente desceu correndo para o andar de baixo, minha irmã não
conseguiu alcança-la e ela caiu, fraturando o fêmur. O osso foi fixado com um pino, mas
seguiu-se a isso uma paralisação renal).
D. W. estava quase com 60 anos; sofrera duas tromboses coronarianas e corria risco
de outras doenças. Suas férias eram merecidas. A análise com que estava profundamente
“envolvido” (Fordham 1960) representava, em todos os sentidos, um grande esforço para
ele – tempo, energia, ansiedade, emoção; ela já durava quatro anos, e ao que tudo
indicava podia continuar indefinidamente.
A análise era um ponto crítico, literalmente uma questão de vida ou morte, tanto para
mim como para D. W. Naquela época, se ele não sobrevivesse eu também não
sobreviveria, pelo menos fisicamente. Nesse sentido éramos tão inseparáveis quanto um
bebê e a sua mãe (Winnicott 1952b).
D. W. escolheu cuidadosamente o hospital; antes, aconselhou-se com o médico
supervisor, que conhecia, e ficou muito desapontado ao encontrá-lo de férias, quando
chegou a hora. O próprio D. W. me levou ao hospital e deixou muitas recomendações por
escrito ao supervisor substituto. Durante as cinco semanas em que fiquei lá, ele telefonou
para o hospital e me escreveu quase diariamente. Foram tomadas providências para que
as cartas de minha mãe não chegasse às minhas mãos. Finalmente, ele me levou para
casa.
Escrevi longamente sobre o hospital na Parte I. Era um lugar em que as pressões
internas podiam ser liberadas com segurança, e mais livremente que no consultório,
durante as horas de análise. O ambiente e as pessoas diferentes deram-me uma
oportunidade de formar relacionamentos “transicionais” (Winnicott 1951), enquanto o
contato constante com D. W. forneceu a necessária continuidade do relacionamento de
transferência com ele.
Pude viver uma fase inicial e uma infância próprias, o que era diferente de viver ou
reviver as da minha mãe para ela. Atingindo os níveis mais primitivos do que às vezes é
chamado de “posição esquizóide-paranóide” em um ambiente controlado, seguro, não-
retaliativo e razoavelmente estável, cheguei a um novo ponto de partida, do qual pude
seguir para o “estágio de preocupação” e, mais tarde, para a situação edipiana –
eventualmente para minha maturidade cronológica. Minhas áreas psicóticas e não-
psicóticas foram firmemente unidas.
Os estágios posteriores da análise, que ainda durou mais quatro anos, foram
certamente muito menores do que teriam sido em outras circunstâncias. As ansiedades
relacionadas com sobrevivência e identidade deixaram de ser importantes; o caráter das
sessões tornou-se diferentes; elas passaram a tratar verbalmente da ansiedade
depressiva e, posteriormente, da edipiana.
Tendo tido essa experiência, agora eu podia conhecer interiormente lado da doença
mental. O efeito fortalecedor disso foi enorme. Consegui encontrar meu próprio meio de
satisfazer algumas das necessidades dos meus pacientes. Pude enfrentar fracassos sem
ser destruída por eles, e sucesso sem me tornar onipotente. Isso foi o mais importante pra
mim.
Para Winnicott, o importante foi o conhecimento de si mesmo que aumentou com a
auto análise contínua; e o conhecimento que ele já tinha da psicose foi ampliado e
confirmado. Ele descobriu material para testar idéias existentes e basear novas
32
(aprendendo comigo [Winnicott 1971b, Dedicatória]), que mais tarde usou amplamente ao
escrever e falar, tanto na Inglaterra como em outros lugares, para muitos públicos
diferentes, para quem isso também foi muito útil.
Capítulo 10
Roubado da bolsa da mãe
Mas o que é “a bolsa da mãe”, além de um símbolo ou metáfora do útero (Oscar Wilde,
The Importance of Being Earnest)? E poderia haver um exemplo mais bonito da minha
afirmação inicial sobre a importância da transferência e da contratransferência, no
tratamento psicanalítico de um paciente psicótico ou borderline através da regressão para
a dependência? Sou de fato grata por isso!
Epílogo
Um comentário sobre Donald Winnicott
um artigo sobre arquitetura, em um dos nossos jornais nacionais de domingo). Ele tinha
facilidade para se fazer compreender por todos os tipos de pessoas, dizer coisas que não
podiam ser expressas em palavras, e entrar em contato com os elementos criativos nas
pessoas; isto é, com a parte realmente boa de uma personalidade, abaixo da superfície.
Mas algumas coisas que ele disse não “encaixaram” (com frequência porque ainda
não estavam plenamente desenvolvidas, ou porque fossem realmente confusas, ou
porque ele presumiu que as pessoas entendiam, quando elas não entendiam). Isso,
logicamente, é considerado complicado e frustrante.
Sou grata a um colega pelo relato de um exemplo particular disso, ocorrido em 1968,
em Nova York, quando Winnicott leu o ensaio “On the use of na object and relating
through identification”. Nele D.W. fala da “destruição do objeto”, pretendendo que fosse
considerada imaginativa, não real.
A incapacidade de compreender isso levou a uma violenta explosão de hostilidade
entre o seu público, e à rejeição das suas idéias e da sua obra em geral. Foi
particularmente lamentável o fato de que nessa época o Dr. Winnicott estava muito doente
e não pôde explicar-se, mas posteriormente o ensaio foi concluído em O Brincar e a
Realidade (1971b).
O efeito foi extremamente nocivo, e persiste em certas áreas até hoje. A hostilidade
ainda continuará durante muito tempo, até que um número maior de pessoas compreenda
a sua intenção, e se dê conta de que ele não afirmou ter dado a última palavra sobre esse
assunto, ou sobre qualquer outro!
Tentar assinalar o seu trabalho, as suas descobertas ou suas idiossincrasias, ou fazer
comparações com outros colegas – Freud, Klein, Sechehaye, Hartmann etc. – seria inútil
neste ponto, mas quero levar em conta alguns temas que considero importantes, além de
alguns dos mais óbvios, como a “preocupação maternal primária”, os “objetos
transicionais”, a “técnica do rabisco”, etc.
Em primeiro lugar está a sua capacidade de suportar o paradoxo e a ambivalência,
sabendo que são inerentes à própria vida, sem procurar meios de evitá-los ou defender-
se deles. Essa capacidade aumentou e desenvolveu no Dr. Winnicott um processo
contínuo durante toda a sua vida profissional e pessoal, não que fosse contínuo de modo
estável, mas sim variando em esfera de ação e velocidade (“Os seres humanos são
instáveis”), e as pessoas têm especulado sobre como alguém podia viver com tão poucas
defesas.
Disso surgiram coisas como o seu reconhecimento da importância de ser capaz de
recusar; a necessidade (da criança ou do adulto) de “não” como de “sim” e de frustração
no momento certo para promover o crescimento, enquanto no momento errado o inibe; a
importância da “confrontação” ocasional; o valor da destrutividade e da capacidade de um
dos pais ou do terapeuta de sobreviver a ela; e muitas outras verdades sobre homens,
mulheres, crianças e adolescentes como pessoas reais.
Não muito antes da sua morte, ele começou a desenvolver plenamente novas idéias
sobre a origem da atividade criativa no estágio de desenvolvimento primário, bidirecional,
indiferenciado, pré-ambivalente, pré-relacionado-com-o-objeto no qual, paradoxalmente, a
destruição cria tanto o self como o objeto. Esse é o estágio de “vida” e nada mais, que
depende de a sobrevivência estar garantida pelo ambiente, para que a ansiedade de
aniquilação possa ser ignorada sem risco e o self surja como “realmente isolado”.
Houve muitos postulados anteriores, como por exemplo: “Eu sou psique-soma”, de
Tomás de Aquino, e “cogito ergo sum”, de Descartes. Mas esses são suplantados pela
importância de “Eu sou” (há muito tempo conhecido como o nome santo do Criador
Onipotente) e finalmente a declaração ainda mais simples “eu”, que postula e inclui, mas
não afirma, “eu não”.
Nem mesmo isso é novo; é “Deus”, o “Espírito pairando sobre a superfície das águas”
– “Um é uno e totalmente exclusivo e sempre será assim”. O que é novo é o
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reconhecimento e o uso que Winnicott faz disso, não só novo como individual e pessoal
para ele, como é revelado em sua interpretação de “ser... ou...” (pausa) “não ser? Eis a
questão”, de Hamlet.
Em algum ponto aqui ele morreu, de certa forma, apesar de que ainda estava
explorando, escrevendo, proferindo conferências, atendendo a pacientes etc. Mas para
ele a morte era uma parte essencial da sua vida, que teria sido sem sentido e incompleta
sem ela, algo com que ele tinha de entrar em contato no momento certo.
Ele nos desapontou, é claro, não sabendo tudo, ou não comunicando tudo que sabia;
mas como teria sido formidável se ele tivesse feito isso!
Muitas pessoas diferentes têm descrito Winnicott como “um gênio”, e, em minha
opinião, o que elas querem dizer como isso é tão diferente quanto as próprias pessoas.
Ralph Vaughan Williams definiu um gênio como “a pessoa certa no lugar certo no
momento certo”, e acho que isso corresponde exatamente a Winnicott. Mas neste ponto
cabe a outros, especialmente os muitos que virão depois, descobri-lo e ao seu trabalho,
por si mesmos (veja a sua afirmação no sentido de que outros antes dele haviam
descoberto as mesmas coisas, inclusive Freud, mas o importante era que ele as
descobrira sozinho).
Sou grata à Dra. Virginia Suttenfield, cujo único contato direto com Winnicott havia sido
em uma conferência em Paris. Ela falou sobre o seu modo informal de conduzi-la – com
simplicidade, conversando um pouco, recostando-se e fazendo movimentos de “gangorra”
com a sua cadeira, todo mundo conversando e ele finalmente resumindo todas as
contribuições, comentando e expressando agradecimentos pessoais. Mais tarde, em uma
aula, um dos alunos da Dra. Virginia Suttenfield disse-lhe de modo desajeitado o quanto
ela o havia ajudado. Para a Dra. Suttenfield isso foi a consequência direta da sua
compreensão da natureza ativa e constante de Winnicott. “Ele era uma pessoa agitada”,
disse ela.
PÓS-ESCRITO
Sim, ele foi um gênio – não da mesma ordem de magnitude de Newton, Einstein,
Shakespeare, Beethoven, etc., mas fez a mesma coisa que cada um deles fez – trouxe à
luz a importância do ambiente primitivo em particular, do tratamento da psicose, das
origens da criatividade, do valor da destrutividade etc. e preparou o caminho para que
outros desenvolvessem mais esses temas.
Mas a luz não tem sentido sem a escuridão, como a criatividade não tem sentido sem
a destruição. E não podemos ignorar as coisas ocultas na vida e na obra de D.W.W. – em
sua tristeza por não poder cuidar paternalmente (ou maternalmente) de filhos. Seus erros,
fracassos, até mesmo tragédias. Erros de julgamento; onipotência, talvez; e no final de
sua vida decepcionando pacientes de quem ele gosta muito, simplesmente morrendo.
(Para um deles, D.W.W. foi o seu terceiro analista a morrer). D.W.W. escrevera (1954)
sobre a necessidade de o analista sobreviver para que pacientes psicóticos ou borderline
se recuperasse, Nós tendemos a fechar os olhos à natureza dos pacientes com quem ele
estava trabalhando, e ao fato de que não sabemos nada sobre o conteúdo das suas
análises.
Em 1950, escrevi, “Cada um de nós tem o seu cemitério particular, e nem todas as
sepulturas têm lápide”. Isso ainda é verdadeiro. O registro de D.W.W. ainda não pode ser
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Em meu próprio trabalho eu sei alguma coisa, sou especialista e tenho acumulado
experiências. Em outras áreas da matemática e do ensino sou um principiante...
Meu trabalho é definitivamente ser eu mesmo. Que parte de mim mesmo posso dar
a vocês, e como posso fazer isso sem dar a impressão de que me falta totalidade?
(Winnicott, 1968a).
Lullaby*2
2
“Lullaby”, de Richard Rowlands (1565-1630?). De The Oxford Book of English Verse.
A tradução instrumental que se segue foi feita por Maria Clara de Biase Fernandes.
39
3
“The Salutation”, de Thomas Thaherne (1937?-1974). De The Penguin Book
of English Verse. Em música, “Dies Natalis”, de Gerard Finzi (1901-1956). A
tradução instrumental que se segue foi feita por Maria Clara De Biase
Fernandes.
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