Gays Também Vão para o Céu.

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Cristãos e Gays

Há quem pense que ser cristão e ser gay são duas coisas opostas; rivais
de uma antiga guerra bíblica. Cristãos empunhando trechos da Palavra de
Deus para atacar os homossexuais, que se defendem levantando os escudos
dos Direitos Humanos e Liberdade. Supostamente, um não deveria adentrar o
território do outro, a não ser para pedir clemência e perdão, e se juntar ao time
adversário.
Contudo, Gays e Cristãos não são grupos tão segregados como
pensam. Um está inserido no outro. Indivíduos ocultos, grupos mesclados em
ambos os lados, incitando um cessar-fogo imediato a uma guerra que já dura
tempo demais. Cristão e Gays coexistem, e encarnam o apocalipse de uma
rivalidade que nem deveria existir.
A maioria dos Cristãos parecem cegos aos ensinamentos da mesma
Bíblia que usam para condenar os Gays (ainda que o termo “gay” seja muito
usado e recorrido neste texto, me refiro à comunidade LGBT em geral). As
mesmas escrituras que “condenam” os homossexuais, pregam o amor ao
próximo, o perdão, a afirmam que Deus não faz acepção de pessoas.
Lembrai que Deus perdoa todas as iniquidades, os pecados. Além disso,
Ele te julgará da mesma forma que você julgar o próximo. Está tudo na Bíblia,
tanto as poucas passagens que “abominam” os gays, quanto as muitas
passagens que pregam o amor, perdão e humildade.
Os Gays, por sua vez, se distanciam do Cristianismo para não serem
condenados, julgados. Acabam criando preconceito religioso, intolerância e se
“afastando” de Deus. Lembrem-se que não é Deus que vos condena por serem
gays, mas os próprios homens em si, falhos e hipócritas. Tenham em mente
que Deus ama, perdoa e acolhe todos que O procuram.
Este livro foi escrito com a intenção de ajudar a dar um fim nessas
contendas, pregando a paz, a tolerância e principalmente o amor. Oito
gays-cristãos foram entrevistados, e suas vidas narradas em forma de Perfil
Jornalístico, para ilustrar que gays que creem em Deus são uma realidade mais
complexa do que se imagina.
Os oito foram entrevistados ao longo de um semestre, entre 2014 e
2015. Os perfis ressuscitam seus passados, analisando especialmente seus
vínculos com a religião e com a sexualidade. São seis homens e duas
mulheres, gays e lésbicas respectiva e obviamente, que me receberam e
concordaram em ter suas histórias narradas neste livro.
A construção dos perfis me levou a perceber que o vínculo
religioso-afetivo não só existe de fato, mas também é dividido em várias
“escalas”. Vários níveis de Cristianismo, vários níveis de Homossexualidade.
Alguns não frequentam missas ou cultos, mas louvam em Deus da própria
maneira. Outros se consideram homossexuais, mas já se envolveram
heterossexualmente. Alguns nunca tiveram problema com a dualidade
gay-cristã, e outros ainda a enfrentam. Cada um com sua história de vida, rica
em memórias; lembranças boas e/ou traumáticas.
Seguindo os ensinamentos de Sergio Vilas Boas e Cremilda Medina, as
entrevistas não se estendiam por muito mais que uma hora. Entrevistas não; na
verdade, foram Diálogos. Olho no olho, uma conversa… o celular que
registrava a conversação era apenas um objeto alheio ao fluxo de histórias que
eram narradas.
“Vou fazer perfis, que são 'biografias menores', que focam em
determinado aspecto da sua vida”, eu explicava quando questionado sobre o
gênero textual. Escrevi os perfis na ordem em que fiz as entrevistas, e nesta
mesma ordem estão aqui dispostos.
Por questões éticas, e para proteger a identidade dos que solicitaram,
todos os nomes dos perfilados foram alterados. Propositalmente, substitui seus
nomes por nomes Bíblicos, que tem a ver minimamente com cada entrevistado.
Adão foi o primeiro gay que entrevistei; goianesiense, praticante de
vôlei, conterrâneo, me custou uma viagem à minha cidade natal.

Israel (cujo nome significa “homem que luta com Deus”), é ​promoter de
uma balada gay, que resiste em ir à igreja, e louva a Deus de sua própria
maneira.

Isaque (“filho da alegria”) é mais resolvido, formado em jornalismo, e tem


como missão pessoal levar a felicidade onde for.

Eva, a primeira lésbica que entrevistei; estava prestes a se formar, e


também provou de um fruto proibido no passado.

Daniel (“Deus é meu juiz”), é advogado, bondoso, e se viu numa cova de


leões no dia de sua formatura.
Davi (“querido”, “predileto”), cabeleireiro, o príncipe de sua casa, chegou
a ser líder religioso em sua comunidade.

Samuel (“nome de Deus”) cursava Relações Públicas, e tentou ser um


bom exemplo cristão e familiar durante a vida toda.
Sara (“princesa”, “senhora”), foi a última entrevistada, sonha em ser uma
filha pródiga acolhida em seu lar, e se emocionou muito ao falar de Deus.
Gays existem. Cristãos existem. Eu mesmo, batizado em ambas as
águas, renasci como cristão-gay e procurei espelhar meus próprios conflitos e
pensamentos nos perfis desses meus oito irmãos, a fim de atingir todos os
outros Filhos de Deus e despertá-los para o fim dessa guerra. Guerra que gera
conflito, preconceito, segregação, contendas, agressões, e em alguns casos,
morte. Já não podemos mais continuar calados, nem assistir passivamente.

Decidi não expor minhas opiniões e ideologias diretamente, e sim deixar


que as histórias de vida dessas pessoas possam abrir os olhos de todos. Você,
sendo gay e/ou cristão (ou talvez nenhum dos dois), vai se identificar muito
com esses perfis, e perceber que somos todos semelhantes. Irmãos, de certa
forma. Cada vida é preciosa, e cada um merece respeito e liberdade para ser o
que já é, ou o que quiser ser.
Portanto, tomai todos e comei. Este é o meu livro, que será entregue
para vos direcionar no caminho do amor, tolerância, respeito e fé em Deus. À
Ele, toda honra, Glória e Louvor, hoje e para sempre. A nós, todo direito de
poder amar quem queremos amar.
1 - Adão

Ele jogava vôlei de areia sob o Sol do meio-dia daquele sábado, que
passava com vontade por entre as poucas nuvens no céu. Estava sem camisa,
vestindo apenas shorts pretos. Não notou minha presença de início; continuou
focado no jogo. A bola ia de um lado para o outro da quadra, por vezes
batendo na areia ainda úmida da chuva do dia anterior. Os eucaliptos que
cercavam uma parte do clube balançavam com o vento, e perfumavam
levemente o local.

Adão joga vôlei desde os 12 anos. Começou jogando no colégio onde


estudava, durante seu ensino fundamental. Hoje, com 22 anos, continua
praticando semanalmente. Já ganhou vários campeonatos e, apesar de se
considerar bom no desporto, costuma dizer humildemente que nunca foi o
melhor.

Quando a partida terminou, Adão veio ao meu encontro. Vitorioso (2 sets


a 0), me cumprimentou com um abraço meio afastado, com medo de me
molhar com o suor que escorria pelo seu peito nu. Nos sentamos a poucos
metros da quadra de areia. Notei um machucado que sangrava em seu joelho
direito.

— ​Foi lá no ginásio, eu machuquei. Eco está nojento! Eu caí pra pegar


uma bola e ralou... ​— ​explicou ele. Fazia parte dos seus treinos semanais de
vôlei jogar no Ginásio de Esportes Jayme Fernandes, que ficava no centro da
cidade, bem afastado do Clube Campestre, onde estávamos. Os treinos
ocorriam junto aos muitos colegas de times independentes, que vez ou outra
organizavam times para competir em torneios.

O machucado, feito há cinco dias, reabriu durante a partida. Sentado


comigo numa arquibancada de concreto, ele não se preocupou muito com a
higienização do ferimento. Apenas cruzou as pernas à frente do corpo
enquanto se ajeitava. Tinha prática, não era seu primeiro machucado...

Nascido e criado em Goianésia, Adão teve uma infância “muito feliz e


alegre”. Costumava brincar e subir em árvores, o que inevitavelmente gera
alguns cortes e contusões. Ainda assim, sua infância teve certas dificuldades.

— ​Que dificuldades?

— ​Todo mundo enfrenta uma dificuldade financeira uma vez na vida ​—


respondeu ele, em meio gritos e apitos de outra partida que havia começado.
— ​Quando eu era pequeno e minha avó materna era viva, era ela quem
sustentava a casa, porque minha mãe teve que parar de trabalhar para ter
minha irmã, e depois eu. E todo mundo morava lá, meus tios, meus primos...
Nunca faltou comida, mas faltavam coisas que a gente queria comer e não
podia.

A avó materna faleceu quando Adão tinha oito anos. Era como se fosse
mãe. A casa onde moravam (e ainda moram) fica um terreno grande, assim
como a maioria das casas da cidade. Com árvores frutíferas no quintal, cajás,
mangas, acerolas, abacates e maracujás substituíram os alimentos que
faltavam, como carne ou doces.

Adão cresceu numa família tradicional goianesiense. Bases católicas,


parentes numerosos, casas com um ar meio rural.

— ​Eu, minha mãe, mais três irmãos, e meu pai. Essa é minha família.
Mas tem dois tios de parte de mãe, e... deixa eu ver quantos primos... seis
primos por parte de mãe. Tenho quatro tios por parte de pai e cinco primos, por
parte de pai... só cinco, gente?... Não, seis! Seis! Por parte de pai são seis
também. ​— ​enumerava, contando nos dedos enquanto visualizava
mentalmente os familiares.

A família humilde, contudo, hoje tem uma condição financeira melhor, de


classe média-alta. Uma evolução que acompanhou o crescimento da cidade,
referência em produção sucroalcooleira.

Adão trabalha com o pai numa empresa especializada em


ar-condicionados para carros. Quase cursou Direito, depois de concluir o
ensino médio, mas acabou não dando certo. Tentando ser o mais cordial
possível com o progenitor no ambiente de trabalho, evita chamá-lo de “pai” e
não discute muito. Porém, a relação dos dois é “difícil”, e algumas intrigas são
inevitáveis.

— ​A gente não dá muito certo. As ideias dele não batem com as minhas.
E as atitudes dele também não... ​— disse ele, descrevendo o pai. — ​Às vezes
ele quer me cobrar muita educação, mas ele não é muito educado,
principalmente comigo. Não que ele me trate diferente, mas desde mais novo a
gente tem essa situação, sabe? Eu trato as pessoas do jeito que elas me
tratam. Se ela me tratou com falta de educação, ela me dá a liberdade de
tratá-la assim também. Entende?

Mesmo assim, eles se gostam bastante, um amor familiar. Contudo, as


discussões geradas por atrito de opiniões deixam Adão irritado, porque ele
gosta de estar com a razão. E gosta mais ainda quando realmente a tem, o que
o deixa mais sanguinário no combate à ditadura patriarcal.
Com a mãe, no entendo, Adão é diferente. É muito ligado à progenitora,
“uma mulher muito jovial”, na casa dos 40, com cara de 30. É mais conectado
também à sua ascendência matriarcal. Todos católicos, nem todos praticantes.
Sua avó materna não ia muito à igreja, mas era devota de santos.

— ​Não lembro muito, acho que São Pedro. E... como é o nome daquela
que tem o olho no prato...? ​— ​ele me perguntou, tentando copiar com as mãos
a posição mais representada artisticamente da Santa. Posicionou as mãos
próximo ao seu peito nu salpicado de grãos de areia, no qual pendia um
pequeno crucifixo de ouro, amarrado ao pescoço por uma fina corrente
dourada. A areia se destacava na pele morena de Adão, e havia areia até nos
seus cabelos pretos lisos, que ele cortara há dois dias. Ele sustentava um
profundo ar de dúvida nos olhos castanho-escuro, vasculhando a mente em
busca do nome que lhe fugira a cabeça.

— ​Santa Luzia. ​— ​respondi.

— ​Santa Luzia! Ela era muito devota de Santa Luzia, que é a da visão,
né? Ela tinha até um quadro lá em casa que tinha essa imagem, e eu sempre
gostei muito desse quadro.

Assim como sua avó, ele não era um católico praticante. Adora ir à
missa, mas acredita que sua grande fé em Deus é mais importante do que
comparecer semanalmente a igreja. Coleciona alguns episódios memoráveis
de encontros com O Criador.

— ​Eu já fui numa vigília de igreja, e senti uma presença muito forte lá,
me emocionei muito. ​— ​lembrou. ​— ​A gente ficou a noite toda na vigília. Muitas
pessoas repousaram do meu lado, e eu não repousei. E teve uma outra vez
também, que eu estava há muito tempo sem ir a uma igreja, e eu me emocionei
muito só de ter ido à missa, só de ver o padre evangelizar. Não consegui
conter, eu chorei mesmo.

Adão se emociona não somente nas celebrações, mas no templo em si,


sem missa ou evento. Certa vez, pouco depois da quaresma, acompanhou a
irmã ao centro paroquial da cidade. Entrando lá, Adão sentiu uma presença
muito forte e orou bastante.

— ​Eu chorei muito, muito, muito mesmo. Pedi perdão, agradeci, pedi
muitas coisas... E lá eu me emocionei muito. Antes disso, eu não queria ir lá,
minha irmã que ficou me pressionando. No momento que eu cheguei, comecei
a me emocionar, me ajoelhei, e desabei, desabei mesmo! Chorei muito, chorei
muito mesmo. Agradeci por tudo na minha vida.
Adão encontra seu porto seguro igualmente em locais protestantes.
Frequentou uma igreja evangélica algumas vezes. Na primeira vez, ficou um
pouco assustado, devido ao modo empolgado que aqueles fiéis costumam
pregar. Ainda assim, elogiou o pastor que pregava na ocasião. E tudo que o
pastor falava, parecia ser diretamente para Adão, de uma forma que ele não
soube bem explicar. Era como se o pastor estivesse decifrando o que estava
acontecendo com ele no momento.

O sentimento foi mais forte ainda na segunda vez. Preenchido de uma


sensação ótima, como se eu tivesse se limpando, saiu com a impressão de
pesar 10 quilos a menos, de tão leve que se sentia. Chorou e se emocionou. A
cada coisa que o pastor falava, o choro se intensificava.

O curioso é que Adão estava com quatro amigos que, assim como ele,
também são gays. Na verdade, quase todos os amigos gays de Adão são
cristãos, a maioria evangélicos, que vez ou outra o levam para as celebrações.

— ​Mas eu não fico lá porque tem umas coisas neles que eu não
concordo, sabe? Algumas coisas que eles pregam para as pessoas, impedindo
elas de fazer certas coisas... ​— ​explicou ele.

— ​Que tipo de coisas?

— ​Querendo restringir sobre assistir televisão, mulher não usar calça,


certas coisas que eu não concordo. E eu acho que a igreja católica é mais
coerente... ​— ​disse ele. Adão gosta muito das celebrações litúrgicas que a
igreja católica comemora, como Quaresma, Corpus Christi, etc, que ele não vê
presente na maioria das igrejas protestantes.

“O Senhor é meu pastor, e nada me faltará” (Salmo 23:1) é a passagem


bíblica mais memorável para Adão, que é muito supersticioso. Acredita em
feitiçaria, bruxaria, macumba, alienígenas, espíritos malignos, etc, e usa a
citação para ganhar forças, especialmente quando assiste filmes de terror.
Adora o gênero, mas fica com muito medo depois. Confessa que Deus sempre
o conforta. Tira o seu medo.

Adão não consegue dormir sem rezar. Mesmo nas raras vezes em que
dorme despercebido no sofá da sala, acorda no meio da noite, vai pra cama e
reza. Sem rezar, tem a impressão de que falta alguma coisa no seu dia. Como
se algo fosse tirado dele. Tem fé de sobra, conversa com Deus todos os dias, e
é isso que considera como ser cristão.

Para ele, Deus é uma força, maior que todas. Uma força que nem ele
nem ninguém nunca viu, mas que todos sabem que existe. “Ele existe!”. Já
recebeu provas da existência de Deus, na maioria, pedidos atendidos, mesmo
quando está “afastado”. Adão não se considera uma pessoa muito
determinada, então quando ele procura Deus e tem seus pedidos atendidos,
sua fé cresce.

Toda vez que reza, se sente mais livre e mais leve. Jamais largaria sua
fé, ainda que em outra vertente do cristianismo.

— ​Disso eu tenho certeza: eu nunca seria um ateu. ​— ​confessou.

Adão não tem conflitos internos com religião e orientação sexual.


Acredita que o amor de Deus se dá pela fé, e não pela sexualidade. Todavia,
ele levanta um bloqueio pessoal contra o preconceito, especialmente em
Goianésia. Apesar de se considerar gay, ele se declara bissexual, quando
confrontado sobre o tema. Diz sentir-se atraído por homens e mulheres, um
discurso ensaiado e eficaz, replicado por medo de ser taxado com conotações
negativas por ser “apenas gay”.

— ​O universo gay te dá uma liberdade maior em tudo. Na forma de se


expressar, na forma de falar, na forma até de se comportar, em qualquer lugar
que você vá... ​— ​explicou, sorrindo.

Logo tomou um tom mais sério.

— ​O que me incomoda é o preconceito. Isso me irrita muito! Ninguém é


obrigado a aceitar, mas acho que tudo na vida tem respeito. Independente da
sua etnia, cor, sexualidade, acho que o respeito tem que ser levado em
primeiro lugar, deve ser levado em consideração primordialmente. O respeito
gera gentileza, o respeito gera amor, não gera conflito, entende?

Adão também percebe preconceito no próprio “universo gay”. Argumenta


que gays mais masculinos tendem a se afastar de gays “afeminados”. Além
disso, vê os travestis e transexuais como um grupo que sofre preconceito
extremo, talvez mais do que os outros.

Adão acredita que a comunidade heterossexual aceita mais a


homossexualidade entre as mulheres do que entre os homens. Isso porque as
lésbicas são vistas como objetos de desejo, “um fetiche”.

Além disso, afirma também que nem todo homem que tem relações
sexuais com outro homem pode ser definido como homossexual.

— ​Ser gay não é só você fazer sexo com outro homem, e sim o
sentimento. O que conta mesmo é o que você tem por dentro. Então não é por
causa de um sexo momentâneo que você vai virar gay ou lésbica. Só ficou, não
amou... se ele fica e começa a gostar, se apaixonar, aí sim ele é homossexual.
Assim como na religião, Adão acredita que não são os atos que definem
as pessoas, mas o que elas são por dentro. Cristão pela fé, não pela prática
religiosa. Gay pelo sentimento, não pela prática sexual.

E por falar em prática, Adão não gosta de “se soltar” em ambientes


“héteros”. Entre os amigos gays, brinca, comenta sobre os garotos bonitos ou
os escândalos que ocorrem dentro dos grupos de amizades, cita frases de
divas do pop ou memes de internet, geralmente de forma caricata, artístico
como ele gosta. Inserido num meio heterossexual, prefere não fazer ou dizer as
mesmas coisas, e evita beijar outro homem em local assim, como forma de
respeito aos heterossexuais.

— ​Mas, se tivesse um hetero com a namorada, num grupo gay, você


acha que ele se comportaria da mesma forma?

— ​Não. Eles se beijariam pelo fato de ser mais “normal” do que dois
homens se beijando. ​— ​explicou, fazendo aspas com os dedos para enfatizar a
relatividade do termo. ​— ​A comunidade gay aceita mais essas coisas do que a
comunidade hétero... Os gays são bem mais tolerantes que os héteros.

Para ele, essa intolerância se reflete também no meio religioso. Afirma


que o preconceito das igrejas para com os gays se dá mais pelo fato de a
religião achar que a maioria dos homossexuais peca contra a castidade, ou que
têm relacionamentos baseados apenas em sexo.

Contudo, Adão acredita que as igrejas já estão começando a aceitar,


percebendo que a homossexualidade não é só a prática sexual, mas também
sentimento, amor. Ele argumenta que, se sexo sem compromisso é pecado e
condenável, então não só os homossexuais pecam, como também qualquer
casal heterossexual que não tenha firmado um compromisso matrimonial, uma
gênesis familiar.

E sobre a própria família, Adão acredita que seus pais desconfiam de


sua sexualidade, e “meio que até aceitam”. Crê que deve um dia contar aos
progenitores, apesar destes não se interessarem muito na vida afetiva do filho.

— ​Não é por causa deles, nem de ninguém, que eu vou deixar de ser
gay. Cabe à outra pessoa respeitar, e eles sendo meus pais deveriam respeitar
mais ainda do que o resto do mundo. Não que eles sejam obrigados a aceitar,
ou gostar disso, mas pelo menos respeitar.

— ​Por que você ainda não falou para eles?

— ​O que me impede é o fato de eles não gostarem e não desejarem


isso pra minha vida. Existe muito tabu... “ah, é gay? Ele não vai poder me dar
um neto. Ele vai contrair AIDS, ele vai ter alguma doença”... e esse tabu faz
eles não desejarem isso pra mim.

Ainda que já tenha se sentido dividido algumas vezes, já que todas as


igrejas a que teve acesso condenam sua sexualidade como “pecado”, Adão
não se importa muito. Não vai deixar de ser fiel a Deus. Agradece por não ter
muitos conflitos em relação ao assunto, porque se tivesse já teria
enlouquecido.

O que realmente importa para Adão é sua própria felicidade e o amor de


Deus. Apesar do preconceito que percebe hoje em dia, acredita mais na
aceitação de Deus.

— ​Ele aceita a todos! E Ele defende mais aos fracos e oprimidos, então
Ele acolheria os gays, se voltasse hoje... ​— ​predisse.

Ficou em terceiro lugar naquela competição de vôlei de areia. O intenso


Sol das três da tarde fez com que Adão e eu resolvêssemos aproveitar o
restante do dia na piscina do clube. Fomos abençoados com água fresca e
vista muito privilegiada.

— ​Aquele menino ali é lindo, meu Deus! ​— comentou ele, me


cutucando com o cotovelo.
2 - Israel

No apartamento recém-comprado pelo pai em frente ao Parque Lago


das Rosas, em Goiânia, Israel me recebeu com um abraço. Convidou-me para
entrar, e sentou-se brevemente à mesa. Sobre esta, havia um notebook, um
manual de regras de ​promoter de balada e alguns livros. Na cozinha, panelas
chiavam levemente sobre o fogo, anunciando que o jantar logo seria servido.

Em seguida, Israel me levou por um pequeno ​tour pelo seu novo lar.
Invejavelmente branco e asseado, o apartamento era dividido com a irmã mais
nova, que estava trancada no quarto, estudando. O próprio Israel estudava
antes da minha chegada. Cursava duas faculdades (Publicidade e Propaganda,
na UFG, e de Direito, na Universo), que exigiam dele uma dedicação integral.

— ​Não gosto de estudar, mas gosto de me manter academicamente


ativo. Tenho muita vontade de seguir carreira acadêmica. ​— ​confessou.

Israel é ligado aos estudos desde a infância. Costumava ler muito, não
só porque sua mãe o incentivava, mas porque ele gostava. Sentia saudades de
ler livros de ficção tanto quanto antes.

—​ Como foi sua infância?

— ​Nossa! A melhor do mundo! Acho que pouquíssimas pessoas tiveram


uma infância tão boa como a minha. ​— ​indagou, lembrando de sua cidade
Natal, Goianésia, onde morou com os pais até seus 17 anos. ​— ​Eu morava em
frente à Praça do Trabalhador e eu tinha milhões de amigos lá. Brinquei de
tudo, desde pique esconde, até brincar de ser Digimon, Pokémon...

Dividindo seu tempo de menino entre fingir ser um Blastoise e estudar,


Israel se deu maravilhosamente bem no colégio. Tanto no Maria Imaculada,
onde cursou a maior parte do seu ensino fundamental, quanto no Jalles
Machado, no qual concluiu seu ensino médio. Foi um excelente aluno. “Talvez
o melhor que aquele Jalles já viu”.
— Eu tinha um grupo de uns dez amigos que eram bastante estudiosos.
Todo mundo estudava junto, e participava de tudo no colégio, até chapa
estudantil. Era incrível. Todo mundo conseguiu passar em mais de duas
universidades Federais. ​—​ lembrou.

Participava especialmente do time de vôlei do colégio, esporte que treina


desde os 11 anos. Ganhou dois campeonatos estaduais e disputou um
nacional, que foi uma das melhores experiências da vida dele.

Na competição nacional, venceram Tocantins, perderam do Rio Grande


do Norte. Contra Santa Catariana também perderam, “porque era impossível
ganhar deles”.

— Os caras tinham, sei lá, três metros de altura. Jogavam até fora do
Brasil. E eles ainda ficaram em terceiro, porque de Rio e Minas ninguém
ganha, no vôlei masculino.

Memorável o fato de Israel ter acertado a cara do líbero catarinense por


vingança. Relembrou que o ponteiro adversário sacou uma bola muito forte,
que acertou Israel. Ele pediu para o jogador adversário sacar novamente. A
vendeta foi concluída com um ataque que acertou em cheio cara do líbero, que
não tinha muito a ver com a rixa momentânea, mas era do time inimigo mesmo
assim.

—​ Mas pedi desculpa depois... ​—​ defendeu.

Contudo, é uma pessoa extremamente calma. “Mais parado que água de


represa”, ironiza a mãe, em relação à calmaria do filho. Se incomoda muito
com questões injustas, mas guarda para ele, não expõe. Ainda que esteja
estressado ou incomodado, faz de tudo para se apaziguar. Admite que o
melhor remédio para o stress é dormir.

Não acumula mágoas ou rancor por tempo demais. Muitas vezes é


tachado de “falso” por cumprimentar pessoas que o fizeram mal, ou com as
quais ele tem antipatia. Mas não é “falsidade”. Ele simplesmente ignora essas
coisas.

— Eu tenho certeza que eu vou para o Céu. Óbvio que eu ainda tenho
muita coisa pra viver, mas até hoje nunca fiz mal pra ninguém. ​—​ afirmou.

Israel acredita em Céu e em Deus, se considera um cristão. Um cristão


pouco praticante, mas que já teve seu auge. Durante muito tempo, foi Coroinha
na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Goianésia. Tinha 10 anos quando
entrou, incentivado pela mãe, e amou aquilo tudo. Sempre teve vontade de
estar na frente durante a missa, então se tornar coroinha foi como realizar um
sonho.

Cinco anos depois, virou Chefe dos Coroinhas, depois Acólito. Adorava
quando havia Missa Campal, ao ar livre, que lotava de fiéis. Tinha muita coisa
para fazer, e participava de tudo. Vez ou outra se empolgava com a
oportunidade de conhecer o Bispo ou o Arcebispo de perto.

Lembra especialmente da missa que participou quando virou turiferário.


Era uma Crisma, e ele estava lotado de emoções, com medo de errar. Foi a
primeira vez que carregou o turíbulo. Um episódio rápido, porém marcante.

Tem na memória, também, a missa de posse do bispo da diocese de


Uruaçu, Dom Messias, na qual estavam presentes muitos outros bispos,
incluindo o bispo anterior, Dom José.

Israel fez catequese, primeira comunhão, crisma, e dezenas de cursos.


Participou da Infância Missionária e de muitos congressos cristãos no Brasil.

— Eu era um menino muito católico... praticante. Continuo sendo


católico, porém não frequento mais. ​— confidenciou. Desde que mudou para
Goiânia, sua vida religiosa andava cada vez menos ativa. ​— Minha visão das
coisas mudou muito.

—​ Mudou como?

— Eu simplesmente aceitava tudo. O jeito que igreja impunha, o jeito de


ser e tal. Aceitava aquela rotina, etc. Hoje em dia eu tenho outro pensamento.
E tem a questão da mobilidade, porque é meio difícil pra mim ir à igreja. Não
tem nenhuma perto, e não tenho carro… Se eu tivesse, eu ainda iria alguns
domingos, mas nem sei onde tem igreja por aqui.

Israel nunca foi uma pessoa que rezava muito. Não reza terços, nem
reza todos os dias antes de dormir. Reza quando quer. Nesses momentos ele
para, faz suas orações, lê um pouco da bíblia. É uma questão de vontade.
Independente disso, acredita ter uma conexão íntima com o Criador.

Vê Deus como uma fonte espiritual de auxílio, que todos temos. É a


quem você recorre quando não tem mais nada carnal ou material para recorrer.
É quando você quer fugir de tudo. É quem estará sempre com você. Um amigo
imaterial.
— E é muito bom, porque é um Ser que você sabe que existe, mas que
é intocável. Sempre te ajuda, quando você recorre a Ele. É algo que funciona
pra mim. Acreditar em Deus funciona. ​—​ admite.

No começo, quando rezava, Israel basicamente pedia por notas boas em


provas ou cura rápida de enfermidades. Nada muito complexo. Foi só quando
contou para os pais sobre sua sexualidade que realmente se sentiu mais
próximo de Deus, e recorria muito a Ele. Sexualidade, aliás, que Israel
desconhecia.

Apesar de muitos companheiros do vôlei em Goianésia serem gays,


nunca teve experiências por lá. Ficava com meninas normalmente, em especial
as do vôlei. Namorou meninas, várias. Já percebia certa atração por homens,
mas nunca nunca havia levado o sentimento adiante.

—​ O problema foi o seguinte: no meu aniversário de 18 anos...

—​ “Problema”?

— Não, calma – interveio ele, em meio a risos. ​— Na verdade, esse foi o


estopim para eu tomar a decisão de me aceitar. No meu aniversário de 18
anos, eles fizeram uma festinha pra mim na casa de um amigo. Eles colocaram
tanta bebida em mim, mas tanta bebida, que eles tiveram que me dar banho...
eu não sei o que aconteceu comigo.

—​ Você não costumava beber?

— Eu não bebia. Hoje eu bebo milhões de vezes mais e não fico


daquele jeito. ​— continuou ele, pouco antes de ter que levantar e sair correndo
para fechar as janelas abertas. Uma chuva forte havia começado, e Israel
queria evitar que seu apartamento ficasse molhado. ​— Voltando... Eles me
deram banho, até porque eles me sujaram de tudo. Ovo, farinha, terra, essas
coisas... Depois me deitaram na cama. Um amigo meu deitou na cama comigo,
porque não tinha outro lugar pra dormir. E fizeram esse menino me beijar. Tipo,
eu estava morto, quase dormindo. E ele me beijou...

No outro dia, um conflito interno. Israel não sabia o que fazer. Ficou um
mês sem conversar com o amigo. Não entendia muito bem o que estava
acontecendo, mas logo voltou a se relacionar com ele. Enquanto namorava
uma menina, ficava com o amigo secretamente.

Pouco tempo depois, terminou com a garota e investiu no


relacionamento secreto, que durou um ano. Em um motel, perdeu sua
virgindade com o então namorado, em Janeiro de 2011, antes de mudar para
Goiânia.

Depois que mudou para Goiânia, Israel teve mais oportunidades de


explorar sua sexualidade. Começou indo em boates sertanejas, e logo
conheceu lugares LGBT. O primeiro foi o Athena, depois El Club, e por fim a
festa “Bapho”, no The Pub, onde conseguiu o emprego de promoter. Tem uma
vida social muito ativa, especialmente porque nada o impede de fazer algo que
ele tenha vontade.

Uma época muito marcante se iniciou quando começou a namorar um


guri do Rio Grande do Sul. Namorou-o por um ano. Ia muito ao Rio Grande do
Sul, e o namorado ia muito para Goiânia. Se viam, no mínimo, uma vez por
mês.

Certa vez, o namorado gaúcho foi visitá-lo em Goiânia. Eles decidiram


viajar para Goianésia de carona, “escondidos”, sem avisar os pais de Israel.
Visitaram o Clube Campestre, de manhã, já em solo goianesiense.

Apesar de associado, o pai de Israel nunca ia ao clube. Fora uma vez,


para um campeonato de truco... E também resolveu ir naquele infortunado dia.
Viu o filho com o namorado, conversando despercebidos dentro de um carro.
Israel nem percebeu a presença do pai, de início.

—​ Uai, não sabia que você estava aqui. ​—​ disse o progenitor.

— Pois é, vim ontem e tal... ​— surpreso e constrangido, foi a única


resposta que Israel conseguiu pensar na hora.

—​ Vai almoçar lá em casa… ​—​ pediu o pai.

Era um domingo.

Atendendo ao pedido, foi sozinho almoçar com o pai e a mãe. Chegando


lá, logo perguntaram quem era o menino que estava com ele no carro. Foi
quando Israel contou tudo, com sinceridade.

O pai ficou abismado. Não era uma coisa que ele queria para o filho;
aliás, sequer imaginava. Ficou mal por uma semana. Não entendia direito o
fato de o filho ser gay. Uma amiga da família teve que intervir, explicar que a
opção sexual do filho não muda a pessoa que este é. O pai acabou aceitando
melhor.
A situação foi bem diferente com a mãe, que ficou quatro meses sem
falar com Israel.

— Mas é porque minha mãe é muito religiosa. Ela lê a bíblia todos os


dias; reza o terço três vezes ao dia, todos os dias. Todos os dias, da vida dela.
Não fica nenhum dia sem. Foi um baque muito forte pra ela... Eu a entendia. Eu
não acho que eles são obrigados a aceitar assim de cara, porque eu não fui
criado desse jeito. Eu não fui criado em contato nenhum com nada que levasse
a esse tipo de coisa. Não tinha vontade, quando era criança. Mas fui me
descobrindo.

Depois dessa revelação, Israel teve um contato maior e mais intenso


com Deus. Recorria muito a Ele, ao procurar algum consolo não-físico e
não-material. E se sentiu bastante acolhido.

— Não concordo que uma pessoa vai ser condenada por ser gay. ​—
argumentou. ​— Eu acho isso tão antiquado. Pra mim, isso é uma regra da
instituição religiosa. Não tem nada a ver com fé, com acreditar ou não, nada a
ver com salvação. Isso foi algo que as igrejas fizeram. Não acho que os gays
vão para o inferno. Se fosse assim, tem muito hétero que ia pro inferno... não é
por causa da opção sexual que Deus vai te julgar.

Apesar de ter uma posição firme sobre o assunto, Israel não pensa em
Céu ou o Inferno com frequência. Ideias de vida após a morte não costumam
percorrer sua mente. Ele apenas vai vivendo. Vivendo até alcançar suas metas
atuais: fazer mestrado, “se Deus quiser”, e financiar um apartamento.

Israel não se preocupa nenhum pouco com o julgamento alheio. “Só


Deus vai decidir e me julgar”. É altruísta demais para se dar ao luxo de odiar
alguém, ou de perpetuar o ódio. Detesta decepcionar as pessoas, mas pensa
bastante em si mesmo antes de tudo. Lotado de segurança e auto-estima,
Israel se conhece por completo.

Se você ​olhar para ele, vai ver um rapaz bonito de 25 anos, altura
mediana, pele clara, grandes olhos castanhos, cabelo liso e preto,
impecavelmente penteado, e sempre com uma barba perfeitamente aparada.
Magro, músculos definidos devido à prática do vôlei e academia. Usa sempre
roupas simples, mas de marca; incrivelmente estiloso. Mas se você o ​conhecer​,
vai ver um ser humano bondoso e lotado de uma calma imensa.

Ele desligou o fogo do fogão e pegou os pratos para a janta: arroz, feijão
e carne.
— Está pronto, Mariana! ​— gritou em direção ao quarto trancado da
irmã.

3 - Isaque

Isaque estava fumando na varanda do apartamento de uma amiga. Em


uma mão, um copo de cerveja meio vazio; aliás, meio cheio, porque Isaque é
otimista. Na outra, o cigarro se consumindo em brasa. Era um pós-festa. Os
demais convidados já tinham ido dormir ou voltado para suas respectivas
casas. Só sobramos ele, eu e o ar frio daquela noite enluarada.

Ele costumava fumar e beber socialmente, e a festa foi uma ótima


oportunidade para praticar esses hábitos. Uma ocasião simples, um ​happy hour
estendido de uma sexta-feira, cheio de gente desconhecida. Mas Isaque é
altamente sociável, logo fez amizades. E talvez sua história o tenha ajudado a
ser aberto à novas pessoas.

Durante a infância, não morou com os pais. Estes haviam se separado


quando Isaque tinha dois anos de idade. Sem condições de criar ele e o irmão
mais velho, deixaram os filhos sob os cuidados de parentes próximos. Isaque
foi morar com uma tia, num setor afastado, em Goiânia. Morou com ela até os
cinco anos e meio. Foi uma luta. Chorava bastante com saudade dos pais, em
especial quando iam embora depois de visitá-lo...
Aos seis anos, se juntou ao irmão na fazenda de outra tia, em Carmo do
Rio Verde, Goiás.

— É o lugar que eu sinto mais paz nessa Terra. ​— confessou, expelindo


a fumaça dos pulmões ​— Acho que por questão de convivência e tudo, e
lembranças que eu tenho de lá. Não só da infância, mas do começo da minha
adolescência e crescimento como humano. A presença da minha família é
muito forte.

Ainda durante a adolescência, foi finalmente morar com o pai e a


madrasta, em Goiânia. Apesar de sentir falta da mãe, gostava da nova figura
matriarcal. Toda a família ficou abismada quando a nova companheira do pai
faleceu, alguns anos mais tarde.

— Foi de câncer. No estômago. Ela descobriu em 16 de março, e


morreu em 16 de abril, um mês depois. Foi quando eu tive uma queda. Eu não
acreditava que ela tinha morrido. Foi um baque pra toda a família... ​— contou,
em meio a pigarros. Isaque fumava desde os 11 anos. A pressão dos amigos o
ajudou a largar o vício por um tempo, mas pequenos danos aos pulmões já
haviam sido feitos.

Continuou morando com o pai, que se casou com uma nova


companheira anos depois. Construíram uma casa, mudaram-se. A família de
Pai, Filho e Madrasta continuou até o fim da adolescência do jovem.

— Tenho um irmão de sangue e mais três irmãos por parte de madrasta.


—​ enumerou seus parentes mais próximos.

Isaque iniciou sua própria família anos depois, aos 23. Foi morar com o
primeiro namorado. Ficaram juntos sob o mesmo teto por oito meses. Contudo,
uma intensa crise existencial do companheiro forçou Isaque a terminar o
relacionamento e voltar para a casa do pai, onde mora até hoje, aos 26 anos.

Morar com o namorado exigiu que Isaque se assumisse para a família, o


que não foi fácil.

— Como foi quando você ‘se descobriu’? ​— perguntei, procurando seu


Gênesis. Isaque já tinha pulado para o Apocalipse...

—​ Como gay?

—​ Sim.

— Eu sempre tive essa percepção. No começo era difícil de aceitar,


porque minha família sempre foi muito tradicional. Eu via isso nessa questão de
ver pai e mãe, e sempre elogiando mulheres, etc. Eu sabia que era um tabu a
se quebrar...

Isaque estava ciente de sua sexualidade desde a infância. Teve uma


criação católica, na qual aprendeu que homens deveriam se casar com
mulheres e ter filhos. Ainda assim, sabia que sentia atração por homens, e
sabia o que deveria ou não fazer. Já beijava outros meninos aos oito anos de
idade, inocentemente. Apesar de resolvido, era complicado tentar se assumir e
ter que lidar com as conseqüências posteriores. Preferiu se omitir.

Até se relacionou com mulheres, pressionado em satisfazer um ideal


familiar heteronormativo. Sob o efeito do álcool, aos 19, perdeu a virgindade
heterossexual com uma mulher, numa festa.

​—​ E com homens, como foi?

— Eu não lembro especificamente como foi minha primeira ​reação


sexual... ​Relação sexual com homem... ​— atrapalhou-se, levemente alterado
pelo álcool das cervejas que havia consumido horas antes. ​— Foi uma coisa
tranqüila, uma coisa natural pra mim, que eu tive vontade, senti prazer...

Todavia, Isaque não foca no sexo. Detesta ficar sozinho. Tem intrínseca
necessidade de um parceiro, alguém para a vida inteira, um amor. Verificava
constantemente o celular, aguardando mensagens do namorado que tinha na
época. Mensagens que não chegaram, e o faziam trovejar dramaticamente.

—​ QUE INFERNO!!!

Aquele era seu segundo namorado. Namoros dão a ele uma segurança
e uma base estrutural. A relação com o primeiro, que conhecera na faculdade,
foi tão intensa que o fez tomar coragem para se assumir para família e os
amigos.O segundo o deixava feliz, uma zona de conforto e fonte de carinho. Os
parceiros só tinham uma incompatibilidade...

— Meu primeiro namorado era ateu, e eu meu segundo também é ateu...


—​ lamentou.

Cristão, Isaque até chegou a conversar sobre religião com os parceiros.


Para ele, acreditar em Deus é o primeiro passo para a salvação. Reconhece
que o fato de a homossexualidade ser interpretada sob uma conotação
negativa, infernal, acaba afastando os gays da religião.

Acredita em Deus, mas não crê que Ele seja como a maioria das
pessoas prega, que menospreza e condena os homossexuais.
— Deus não se importa se você está envolvido com um homem ou uma
mulher. ​— afirmou. ​— Desde que você respeite aquela pessoa, o lado humano
dela, você não tem que se preocupar com condenação. Deus olha o seu
respeito e amor para com o próximo.

Isaque tem Deus como o Criador do Universo, das pessoas. Um Ser


Supremo, dono de tudo, que sabe o futuro, presente e passado de cada um.
Que sabe conduzir as vidas, e que ama incondicionalmente. Isaque se sente
muito confortável na presença de Deus, principalmente naquele momento em
que dobra os joelhos no chão e ora. Faz seus pedidos, agradece. Quando
desconecta, total ou parcialmente, o pensamento do mundo e eleva o
pensamento a Deus.

—​ E você faz isso todo dia? Essa conexão? ​—​ questionei.

— Não vou dizer que eu chego a ajoelhar todos os dias, que eu acredito
que seja a maneira correta de se conectar com um Ser Supremo. Mas é o jeito
que eu me conecto na maioria dos dias. Mesmo quando eu deito na minha
cama, penso em Deus antes de dormir.

Isaque também se sente bastante próximo do Criador quando frequenta


igrejas. Sente suas virtudes elevadas, uma paz interior, proximidade com Deus,
zelo, livramento, amor. Em especial durante a leitura da Palavra, na qual Deus
se revela, toca nos corações.

Durante algum tempo, frequentou a mesma igreja de seu pai e sua


madrasta. Normas rígidas, como o uso obrigatório de véus por mulheres, e, é
claro, condenação de gays. Contudo, Isaque prefere enfrentar o preconceito e
desconforto do que ficar longe de Deus e da família.

Preconceito que não se manifesta apenas dentro da igreja, como fora


dela, na própria comunidade LGBT. No meio cristão, marginalizado por ser gay;
no meio gay, marginalizado por ser cristão.

— Os gays acham que, por você ser gay, você não pode ter uma
posição cristã. Não tão diretamente. Se você vai à igreja a pessoa começa a
pensar “nossa mas você é gay, como você vai na igreja? O que você está
fazendo na sua vida?”. As pessoas interpretam como uma coisa muito distinta.

A opinião negativa que os religiosos geralmente tem em relação aos


gays deixam Isaque irritado. Para ele, o erro nasceu quando a promiscuidade
foi agregada à homossexualidade. Acredita que a sodomização dos gays foi
um erro interpretativo que, infelizmente, permanece até hoje.
Já discutiu religiosamente a questão da homossexualidade em diversas
ocasiões, inclusive quando contou para os pais sobre sua orientação sexual.

Durante o primeiro namoro, divisor de águas, contou aos poucos. Primos


mais próximos, no máximo. Quando finalmente contou para os demais
membros da família, todos disseram que não iam deixar de amá-lo. Não iam se
afastar, nem abandoná-lo.

Quando os parentes citavam a Bíblia em algum momento, ele dizia sua


opinião, sua visão do mundo. Que não buscava a promiscuidade, e sim o amor
e o respeito.

— Quando eu contei para a minha mãe, ela chorou bastante. Ela reagiu
assim: “não sei se aceito ou não aceito...”. Foi um pouco estranho, porque ela
tinha aquela condição religiosa, de não aceitar, mas tinha a condição humana,
“ele é meu filho, nunca vou deixar de defender”. Quando eu contei pra ela, ela
ficou de boa. Passaram uns 10 minutos ela começou a chorar. Chorou, chorou,
chorou, chorou... Ai eu fui explicar pra ela que nem tudo que está na Bíblia a
gente segue à risca. Tem coisas lá que a gente busca consolo de Deus
apenas...

Isaque se baseou nas passagens do Antigo Testamento da Bíblia para


dialogar com a mãe. Argumentou que, apesar de condenarem a
homossexualidade por ser uma “abominação”, e insistirem nessa condenação
até hoje, muitas ordens e leis bíblicas não são praticadas atualmente.

Como exemplos, usou o fato de a bíblia proibir o consumo de carne


suína (​Deuteronômio 14:8) e de frutos do mar (Levítico 11:12)​, ordenar a
execução de adúlteros (Levítico 20:10), ordenar o apedrejamento de filhos
desobedientes (Deuteronômio 21:20-21), proibir o corte de cabelo ou da barba
(Levítico 19:27), dentre outros.

Isaque acredita que nenhum dos membros familiares mais


conservadores realmente o “aceitaram”, mas que todos o respeitam. É uma
questão complexa. Muitos utilizam o “respeitar” como eufemismo, quando não
aceitam e querem guardar a opinião pra si. Uma decisão ética e prudente, que
deveria ser incentivada.

Eufemismos à parte, Isaque já é resolvido. Não considera ser gay como


um pecado.

— Sou gay? Sou. Sou Cristão? Sou. Acredito em Deus? Acredito. Gosto
de homens? Gosto. Uma coisa não interfere na outra, apesar do preconceito
das pessoas. Vou continuar seguindo a Deus, a Jesus, e nunca desprezando a
presença de Deus na minha vida... Não seria legítimo virar as costas para Deus
para viver o mundo gay.

“Mundo gay” que Isaque tem um contato regular. Mais caseiro, prefere
ficar rodeado pela família e pelos amigos. Porém, não dispensa uma balada.
Adora músicas pop.

As horas de estudo também tomam seu tempo. Recém formado em


Jornalismo, estudou duro para passar em concursos públicos. E compensou:
atualmente é Agente de Segurança Prisional.

Contudo, o principal objetivo de Isaque é ser uma pessoa feliz, continuar


levando a felicidade para as pessoas. Pretende apenas conciliar trabalho com
lazer e viagens. Para ele, o copo de cerveja vai estar sempre meio cheio.

—​ Você acha que você veio ao mundo para quê?

— Nunca parei para pensar nessa questão... mas eu acho que pra tentar
ser um ser humano melhor, levar paz para as pessoas. Sou uma pessoa muito
positiva, em relação à tudo. Sou muito otimista, e eu tento levar as pessoas pra
cima, alto astral. E falando sobre Deus, e como ele é bom na vida da gente.

Já era quase manhã quando Isaque foi para cama. Dormiu apenas de
cueca, sem medo de exibir o torso definido, resultado de meses de academia.

Na manhã seguinte, seus cabelos castanhos, alisados quimicamente,


acordaram bagunçados. Sua pele clara estava levemente escurecida em
olheiras em torno dos olhos castanhos. Não havia dormido o suficiente. Mesmo
assim, estava alegre, desejando “bom dia” e sorrindo de forma despreocupada.

4 - Eva

—​ É estranho... ​—​ disse Eva, rindo.

—​ O quê?

— Estou acostumada a ​eu fazer isso com as pessoas, entende? –


explicou. Habituada à rotina jornalística, ficou meio sem jeito com a inversão
dos papéis. Dessa vez, era ela quem seria entrevistada.

Estávamos no quarto de Eva, deitados sobre sua cama. O cômodo era


decorado com muitas coisas que remetem à própria personalidade da jovem:
instrumentos musicais diversos, textos de autoria própria escritos na parede,
enfeites que pendiam do portal, roupas de marca, uma máquina de escrever
antiga. Aguardávamos o almoço que ainda estava sendo preparado, no andar
de baixo.

Eva é uma garota calma, serena e intensa. Estatura mediana, cabelos


recentemente cortados na altura do ombro, olhos castanhos, pele clara.
Capricorniana (com ascendente em Áries e Lua em Libra), vê suas
características astrológicas refletidas na avó, que é do mesmo signo.

Filha única. Mora com os pais, a avó e a prima, em Goiânia, num


sobrado muito aconchegante. Desde pequena, teve alma de escritora; cresceu
gostando de mexer com papel, amando papelaria, colecionando cadernos.
Costumava digitar na máquina de escrever, no escritório do pai. Sua história
preferida é Pinóquio, que mantém materializada em um sensacional livro
ilustrado, um de seus tesouros favoritos.

Apesar de ser filha única, não se considera mimada. Mas a falta de


irmãos criou nela um vício peculiar.

— Tenho ​necessidade de solidão. ​— confessou, enfatizando a


dependência. ​— Eu preciso ter meu espaço. Tipo o meu quarto, você percebe
que é um espaço só meu. Eu preciso de um tempo comigo. Eu tenho
necessidade disso. A solidão é uma válvula de escape para mim. É um porto
seguro, onde eu me encontro. Por mais que ficar sozinha o tempo inteiro seja
uma ruína, eu preciso dos meus momentos, se não eu enlouqueço.

Enquanto sozinha, Eva gosta de ler, escrever, pensar na vida, analisar


as coisas, meditar, orar. Precisa olhar para si mesma, ver o que está fazendo.
Tentar se conhecer melhor.

—​ Somos um mistério para nós mesmos; uma constante mudança.

Ela acredita que sua personalidade ainda não foi totalmente formada.
Mesmo assim, reconhece algumas características fixas, como sua bondade e
seu ato de tratar o próximo como ela gostaria de ser tratada.

E sabe a origem dessas qualidades: estudou muitos anos em um colégio


adventista, o que ela considera algo muito bom e importante para a própria
vida.

— Lá eles ensinam não só conteúdo didático, mas é bom para formar o


caráter. Eu acho que o ensino religioso é importante. Eu não me tornei
adventista, mas tem muita coisa da escola que eu absorvi. O próprio estudo da
Bíblia é uma cultura que você tem que aprender.
Ingressou no ensino adventista porque a família passou a considerá-lo
exemplar, já que “corrigiu” o comportamento trabalhoso e desmotivado de uma
tia. Eva acabou gostando, e ficou no colégio até o nono ano do ensino
fundamental.

Foi quando ela começou a perceber sua sexualidade.

Andava com meninas mais velhas, populares, loiras. Lindos clichês


cinematográficos na vida real. Uma das meninas a atraía muito, mas Eva não
sabia que era atração. Era muito nova para discernir. Achava que era apenas
uma intensa amizade. Foi outra amiga do grupo quem esclareceu tais
sentimentos: “olha, isso que você sente por ela não é só amizade não... você
está apaixonada”.

Na época, Eva refletiu, imersa em sua solidão. Concluiu que realmente


tinha vontade de beijar aquela garota. Foi quando se deu conta de que era
lésbica.

— Lembro que eu fiquei com essa amiga que me avisou, só pra passar
ciúmes na que eu gostava. ​— confessou, em meio a risos. ​— E acabou que eu
consegui ficar com essa menina que eu gostava. Aí eu comecei a seguir meus
instintos mesmo, sabe?

Foi quando fez sua primeira tatuagem, na nuca: um código de barras


colorido, com um emblema que une o símbolo masculino e feminino. Abaixo do
desenho, os números 919111, que é a transcrição do nome de uma garota em
numerais.

— Eu era muito doida, muito passional, queria conquistá-la de qualquer


jeito, e fiz a tatuagem. Mas acabou que não adiantou nada, e até hoje ela não
acredita que foi pra ela.

Mesmo com a tentativa frustrada, Eva concluiu seu ensino fundamental,


nas mesmas bases adventistas. Gostava do contato com os fundamentos
cristãos. Pai e mãe católicos, avó evangélica. Tornou-se bem mista, quanto à
religião. Frequentou tanto o catolicismo quanto o protestantismo, sempre
aberta a qualquer celebração que falasse de Deus.

Procura pegar o que cada religião tem de melhor, tirando as falhas, e


fazendo disso a sua própria religião. Cristianismo purificado. Deus. O Ser
Superior, que Eva não sabe se é homem ou mulher, ou se tem gênero. Mas
sabe que existe, e é muito maior do que todos. Um Ser que controla as coisas,
que é mais sábio do que todo mundo, e que não tem dimensão.

Deus esteve muito presente na vida de Eva. Ele até a ajudava a dormir
melhor, quando criança. Sua avó lia o oitavo e último versículo do Salmo 4
(“Em paz me deito e logo pego no sono, porque só tu, Senhor, me fazes
repousar seguro”), e a garota adormecia pacificamente. Ouvir tanto os salmos
eventualmente incentivou a leitura da bíblia e as orações.

— Confesso que eu não oro todos os dias, mas quando eu sinto


necessidade eu oro. É uma vontade que me dá toda semana. Às vezes eu
sinto necessidade de orar por alguém, ou até por mim mesma. E eu sinto que
funciona, sabe? Eu sinto alguma coisa diferente.

Eva já bateu o carro cinco vezes. Depois disso, criou o hábito de fazer o
sinal da cruz ao entrar no automóvel, e nunca sofreu outro acidente. Também
rezou muitos terços na vida, como pagamento de promessas e livramento do
mal.

A fé em Deus é algo indispensável para Eva. Tão indispensável quanto


sua paixão pela capoeira e pelo Brasil. Agradece por ter sido criada em um
ambiente que a permitisse expressar sua crença. Crença que precisou em
muitos momentos da vida, em especial quanto teve que lidar mais abertamente
com sua sexualidade.

Já adolescente, decidiu migrar das bases adventistas e fazer o ensino


médio em um colégio mais conceituado. O Colégio Dinâmico tinha cacife e
renome suficientes para fazê-la ingressar numa universidade federal, algo que
ela queria muito.

Durante os primeiros anos no novo colégio, Eva se adequou bem. Notas


boas, amizades legais, e o florescer de sua vida sentimental. Ficou famosa por
conseguir beijar garotas heterossexuais.

— Eu escolhia a menina mais bonita, aquela que era a mais difícil, mais
patricinha, mais chata e falava “vou ficar”. E eu sempre consegui. Espera aí…
— interrompeu, ouvindo cautelosamente os sons vindos do corredor,
verificando se ninguém estava por perto para ouvir suas confissões. Depois de
vários segundos em silêncio analisando os ruídos, Eva continuou, em voz
baixa: ​— Com minha primeira namorada, Maria, foi amor à primeira vista. Meio
coisa de filme, sabe? Na escola, a gente se olhava às vezes. E eu achava ela
maravilhosa, e acho que ela também gostou de mim. Na época eu lembro que
ela nem tinha redes sociais, mas fez um Facebook para vir falar comigo. Foi
uma coisa muito recíproca. Só que quando a gente começou...

—​ EVA... ​—​ gritou a cozinheira, no andar de baixo.

—​ OI? ​—​ gritou, em resposta.

—​ PODE VIR!
— TÁ BOM, ESTOU INDO… ​— mentiu; ainda ficaríamos conversando
por muito tempo. E retomou a história: ​— Quando a gente começou, eu nem
imaginava que ela tinha uma família psicopata...

Eva acreditou ter encontrado em Maria o amor de sua vida. Trocavam


presentes, carinhos, amores; e todos no colégio sabiam das duas. Alguns
aprovavam, outros tinham inveja ou preconceito. Aquele romance não era
segredo, e um dia chegou aos ouvidos da mãe de Maria.

A matriarca colocou seguranças e detetives na cola da filha, para


conseguir fotos e provas de que Maria estava se encontrando com Eva. A mãe
de Maria fez escândalos, e tirou a filha do colégio. Mesmo assim, os encontros
entre as namoradas não cessaram.

Certa vez, a mãe de Maria apareceu na frente do colégio de Eva,


surpreendendo um encontro das duas. Forçou Eva a ligar para os próprios
pais, que foram tentar entender e resolver a situação.

— A mãe dela começou a fazer um escândalo lá. Bateu na cara dela.


Meu pai e minha mãe não falaram muita coisa, nem eu também. Não tinha o
que falar. Mas a mãe dela era muito doida, ela via as coisas de uma forma
muito suja, sabe? Tipo “nossa, ela sentou nesse banco, tem que limpar...”
sabe, era loucura mesmo.

Foi um período muito intenso para Eva. E essa intensidade se agravou


quando ligaram para a casa dela, ameaçando o pai de morte, por causa da
filha. Nunca descobriram quem foi, mas Eva até hoje suspeita que tenha sido a
mãe de Maria. A ameaça chocou a todos da casa, que ficaram extremamente
assustados.

O ápice foi quando Eva viu a própria mãe tendo uma crise de pânico.
Encontrou-a no banheiro, encolhida e agachada, se recusando a sair. “Não,
eles estão lá fora, os bichos, eles vão me pegar”. Já não podiam sair na rua
sem sentir medo. Era uma constante inquietação, um eterno temor, um terror
infinito. Eva decidiu que, por mais que amasse Maria​, ​não dava pra fazer a
família passar por aquela situação.

—​ Foi quando eu desisti e quis ir para o internato…

Escolheu ir para o Instituto Adventista Brasil Central, que fica entre


Anápolis e Pirenópolis, dentro dos limites do município de Planalmira. Lá, iria
concluir o terceiro ano do ensino médio.
Eva precisava de um tempo. Precisava remover aquele medo de dentro
de si mesma, se afastar completamente do horror que estava vivendo. E foi a
melhor coisa que fez na vida.

Apesar de ser um colégio interno, Eva não viu empecilhos. Não se


importava com as regras do lugar, nem com o estilo de vida.

Comida vegetariana, sem refrigerante, apenas suco. Não era permitido


sair do residencial feminino mostrando os ombros ou os joelhos. Os quartos
deveriam ser organizados e limpos semanalmente, sujeitos a avaliação. Havia
culto duas vezes ao dia, às 6h30min e 18h30min (exceto sexta e sábado, nos
quais o culto era contínuo). Sem ir aos cultos, perdia-se o direito de visitas
familiares ou de passeios quinzenais.

— É um conjunto de regras. Mas a partir do momento que você entra lá,


você está consciente disso. Tanto é que, antes de você entrar, você conversa
com o coordenador ou diretor, e a pessoa fala “olha, é assim e assim que
funciona...” ​—​ explicou.

Durante a permanência de Eva no local, em 2010, ocorreu um fato


curioso envolvendo o colégio. Foi manchete em alguns jornais, e a notícia se
espalhou pelo estado e pelo Brasil.

Duas alunas foram expulsas do Instituto Adventista Brasil Central, por


terem se envolvido amorosamente uma com a outra. O romance lésbico
acabou chegando à direção do colégio, que também analisou cartas de amor
trocadas entre elas. A direção optou pelo “desligamento imediato” das alunas,
alegando que ato sexual e contato íntimo dentro do recinto eram “faltas
graves”, bem como uso de drogas ou armas. Uma das alunas expulsas
processou o colégio, alegando ter sido vítima de homofobia, e que não havia
praticado o ato sexual com a então namorada.

— Eu não acho que seja assim. Eu vejo de outra forma. Porque ela
entrou lá sabendo que não era aceitável ter relacionamento com outra mulher.
Lá dentro, o que vale é a doutrina da religião. Então eu não acho que ela tenha
sofrido preconceito. Eles simplesmente aplicaram as regras do lugar,
entendeu?

Eva teve pensamentos conflituosos sobre a sexualidade enquanto


permaneceu no internato. Todos sabiam da sua orientação sexual. Uma das
responsáveis pelo residencial feminino costumava afirmar que Deus dá a
homossexualidade como uma missão, para sacrificar os desejos. Segundo ela,
por mais que Eva sentisse atração por mulheres, ela não deveria ceder, porque
era “errado”.
— Não acho que seja exatamente assim, mas na minha cabeça é uma
incógnita. Se é errado, por que é que a gente nasce assim? Eu realmente não
consigo compreender. Eu tento passar batido por isso, sabe? Porque se eu
parar pra pensar, eu vou enlouquecer. Eu acredito em Deus, continuo com a
minha crença, oro, leio a Bíblia. Mas eu não procuro entrar nesse conflito,
porque realmente é uma coisa que eu não consigo compreender.

O colégio interno funcionou como um retiro para Eva. Longe da


civilização moderna, da internet, e de redes sociais, ela conseguiu relaxar, se
purificar. Ela adorava correr na pista de corrida, que passava no meio de uma
floresta. Corria, sozinha, feliz com seus momentos de solidão.

Após concluir o ensino médio, foi aprovada em Jornalismo, na


Universidade Federal de Goiás. Despediu-se do colégio e daquela fase
turbulenta de sua vida.

Depois que voltou, os pais fingiram que ela estava “curada” da


homossexualidade. Nunca mais comentaram o assunto. Mas Eva sabe que
eles sabem. Nunca apareceu com um namorado, só com “amigas”. Porém,
ama muito a família. A relação deles é muito boa, e ela prefere não estragar
nada só para se assumir dentro de casa. Pelo menos, por enquanto.

Fora de casa, é praticamente assumida. Exceto para algumas pessoas


do trabalho.

— No trabalho eu não falo claramente, mas pelas redes sociais acho


que alguns sabem. Esses dias vieram me contar que um cara falou de mim.
“Nossa, ela é muito linda” e o outro cara falou “olha, cuidado que ela tem
namorada”. Eu nem sabia que eles sabiam de mim. Mas eles me respeitam
bastante.

Pelas redes sociais, Eva não tem medo de ser livre. Não só em relação
à sua vida sentimental, mas também em relação ao seu corpo. Suas fotos
exibem suas belas feições e momentos, e também as muitas tatuagens que
vieram ao longo dos anos. Transcreveu as paixões na própria pele...

Falcão. Silhueta de prédios. Coração aberto. Berimbau. Rádio. Mapa do


Brasil. Mapa da África. Dupla hélice. “​Só sente a paz do amor quem tem cacife
pra o desassossego​”. “​Und ich weiss noch nicht: bin ich ein falke, ein Sturm,
oder ein grosser Gesang“​ .

Quando finalmente fomos almoçar, só nossos pratos ainda estavam na


mesa. Os demais já haviam ceado. No fim da tarde, Eva teve a bondade de me
dar uma carona, antes de seguir para o trabalho. Entrou no carro, fez o sinal da
cruz, e deu partida.
5 - Daniel

Recebi Daniel em minha casa, na noite de uma terça-feira. Prestativo,


ele se dispôs a enfrentar os perigos noturnos goianienses e os infortúnios do
transporte coletivo para vir até mim. Eu havia me oferecido para visitá-lo em
sua própria residência, no setor Jardim Guanabara, mas ele preferiu vir. Sair
um pouco de casa.

Daniel já conhece bastante de Goiânia para saber se virar, mesmo em


noites enluaradas. Nasceu em Goiânia, e a cidade é seu lar há 26 anos.

Começou morando com a avó materna, porque os pais trabalhavam


muito e não tinham com quem deixá-lo. Aos cinco anos, teve que se mudar
para outra casa, à pedido da mãe. Isso gerou choros, escândalos e raiva por
parte da avó, que já considerava Daniel como um filho.

Foi uma criança muito responsável, o irmão mais velho. Primogênito. Por
ser calado e sério, a mãe muitas vezes pensou em levá-lo ao psicólogo.
Contudo, o jeito calmo, sensível, cordial e disciplinado do garoto foi
acalmando-a sutilmente.

Desde pequeno, guarda rancores. Prefere armazenar mágoas e choros


pra si mesmo, não gosta de desabafar. Coleciona memórias raivosas de sua
primeira escola, que foi um “inferno”. Colegas e professores grotescos, dos
quais ele não gostava. Era uma escola de bases espíritas, cujo método de
ensino tinha agradado a mãe, mas surtiu efeito contrário no filho.

Desde então, estudou em escolas religiosas. Espíritas, adventistas. Até


mesmo seu ensino superior foi na Pontifícia Universidade Católica, onde se
formou em Direito.

Sua pior experiência educacional foi em uma escola pública, a qual


frequentou brevemente para concluir seu ensino fundamental.

— Quando eu cheguei lá, parecia que eu estava entrando num sistema


penitenciário. ​—​ lembrou.

— Por quê?

— Porque eu sempre estudei em escola particular, então eu não estava


acostumado com o ambiente e tudo o mais. Cheguei para o meu primeiro dia
de aula e eu usava fichário. Primeira vez para nunca mais! Fui ao banheiro, e
quando eu voltei, meu fichário tinha sumido.

“Não é possível. No primeiro dia, já fui roubado”.​ E essa conclusão


mental foi o suficiente para instalar preconceito contra o recinto. Porém, foi
conhecendo as pessoas, fazendo amizades, principalmente com as pessoas
que frequentavam sua igreja. Fora os traumas, foi uma época boa.

Em um colégio adventista, onde cursou o ensino médio, fez amizades


muito fortes. Sua turma era muito unida. Amigos de verdade. Majoritariamente
católicos, apesar das vertentes do colégio. Uma zona de conforto. A própria
instituição dava liberdade para os alunos manifestarem suas crenças religiosas.
Daniel adorava organizar a divulgação dos eventos da sua igreja com os
amigos, o que fazia com frequência.

Católico desde pequeno, costumava acompanhar a mãe nas missas.


Começou a ir por vontade própria só durante o ensino médio. Catequese,
primeira eucaristia, crisma. Ligou-se à igreja devido a vínculos sociais, já que a
maioria dos seus amigos frequentavam o mesmo templo.

— Acho que foi a época mais religiosa da minha vida. Eu sentia aquela
presença de Deus. É uma coisa indescritível, quando a gente recebe o Espírito
Santo… Até lembro a primeira vez que eu literalmente caí no chão. A gente
estava numa oração, no meu primeiro retiro de crisma, e do nada eu
desmoronei, e só me dava vontade de chorar.

Foi a sensação mais linda da sua vida. Sentiu como se um peso fosse
tirado dele. Sempre que ia a encontros do tipo, voltava mais leve e em paz.

A paz era tanta que o ajudou a superar uma tragédia familiar.

Durante um desses retiros, sentiu uma coisa estranha, um incômodo.


Nem suspeitava que, longe dali, sua mãe pensava em ligar para ele, a fim de
avisá-lo do acontecimento. Ao retornar do retiro, foi direto para a missa, como
de costume. Sua família não estava lá, o que só agravou sua sensação
incômoda. Ao sair da celebração, viu a mãe do lado de fora. “​Eita, aconteceu
alguma coisa”,​ pensou. Sua mãe o abraçou, chorando.

— O Neto morreu. — revelou ela.

Daniel não conseguiu chorar pela morte do primo, que considerava


como um irmão mais velho. Foi um acidente de moto, traumatismo craniano.
Porém, havia voltado do retiro restaurado, bem de espírito, com uma enorme
paz. Apenas mentalizou que o parente estava em um lugar melhor.

O choro só veio no dia seguinte, durante a aula.

— O que foi, Daniel? — perguntou um dos seus amigos, percebendo o


ar pensativo do colega.

— Meu primo morreu. — respondeu, desabando. Sentiu o luto. Não


havia ido ao velório, nem ao enterro. Só conseguiu visitar o túmulo do primo
uma vez, porque mexe muito com seu emocional.

Com isso, se apoiou ainda mais na fé. O terceiro ano do ensino médio
foi uma ascensão religiosa. Entrou na faculdade muito apegado a Deus. Os
novos horários já não o permitiam frequentar o grupo de jovens, mas não
deixou de ir às missas. Era uma nova fase da sua vida acadêmica e religiosa.

Durante a faculdade, nunca foi um aluno “comum” do Direito. Enquanto


os colegas iam mais aprumados, de camisa terno e gravata, Daniel optava por
calças jeans surradas e All Star sujos. Preferia andar com os estudantes de
Publicidade, que ficavam no mesmo campus. Conheceu pessoas diferentes
das quais estava acostumado. Pessoas que nunca imaginaria conhecer na
vida.

— Tipo quem?

— Gente louca da vida, que usam drogas, mas que são um amor de
pessoa…— exemplificou.

Conhecer essas novas pessoas serviu para quebrar preconceitos que


ele mesmo tinha. Descobriu que o Verdadeiro Daniel não era aquilo que ele
imaginava ser: rígido, sem espaço para entretenimentos, fechado para o
mundo, e “heterossexual”.

Sempre sentiu atração por garotos, mas nunca cogitou a hipótese de


beijar algum. Começou a sair, a beber, e se divertir, conciliando lazer com
estudos. “​Não vou morrer se eu divertir um pouco”​. Conseguiu transmitir essa
ideia para a sua família, que percebeu que as notas de Daniel não caíram,
mesmo com as recentes festas e rolês.

Daniel permitiu-se experimentar o novo. Já havia se relacionado com


meninas antes, mas nunca namorou nenhuma. Sua verdadeira natureza falava
mais alto do que seu suposto dever heteronormativo para com a sociedade. E
seus amigos perceberam isso. “Gente, o Daniel nunca namorou? Tem alguma
coisa errada”.

Conheceu uma balada goianiense pela primeira vez em 2012. El Club,


na época, era um dos ambientes mais frequentados da cidade. Foi lá que
Daniel teve seu primeiro beijo gay.

— Você tem coragem de ficar com o Daniel? — perguntaram a um


amigo do grupo, arquitetando um plano.

— Uai, tenho. — respondeu o garoto, tranquilamente.

— Então você vai chegar nele pra gente descobrir…

Estavam todos dançando, descontraídos. Em dado momento, iniciaram


o plano. Todos sumiram, deixando Daniel sozinho com o amigo em questão.

“Ele está olhando estranho pra mim. Chegando mais perto. Cadê todo
mundo? Tem alguma coisa errada… Ele está chegando mais perto… Muito
mais perto…” E ​ se beijaram. Foi a primeira vez que Daniel havia beijado um
homem. Ficou meio retraído e tímido, por causa da surpresa. O momento não
foi muito intenso, mas deixou-o aliviado e satisfeito.
Desde então, tem se relacionado exclusivamente com garotos.
Finalmente se descobriu. Estava livre para ser quem realmente era. Sexual e
afetivamente, pelo menos.

Contudo, a ritmo frenético da faculdade, somado à vida de lazeres,


amizades, etc, o distanciaram um pouco da igreja. Mas não de Deus. ​Nunca
largou suas orações.

Daniel tentou se preservar mais, querer o momento certo para acontecer


certas coisas, e com a pessoa certa. Com isso, nunca namorou. Temia a
promiscuidade, mas sentia que estava praticando-a nas pequenas coisas. Ficar
com mais de dois garotos numa festa, dar um beijo triplo no Ano Novo. ​Isso o
incomodava, sua consciência pesava.

Apesar de sentir-se mais alegre, com as festas, amigos e faculdade,


sentia também a falta de um peso maior da religião na sua vida. “​Tanta
dificuldade na minha vida, tanta coisa que eu ainda tenho que enfrentar, eu não
vou conseguir isso sozinho”​.

Na época, pensava em TCC, OAB, final de curso, e sentia falta de um


amparo divino. Além disso, considerava seu distanciamento da igreja como
algo muito injusto para com Deus.

— Por quê injusto?

— Porque acho que Deus sempre foi muito bom comigo. — confessou
— As coisas na minha vida sempre deram certo, no momento certo, então
afastar assim do nada foi muito injusto da minha parte. Tem tanta coisa e
desafio na minha vida ainda, e não é sozinho que eu quero enfrentá-los.

Decidiu frequentar as missas de sexta-feira, no começo de cada mês.


Gostava mais dessas por não serem muito regradas. Tinham mais fervor, tanto
que nem contavam com o habitual folheto litúrgico. Todos orando da própria
maneira, o padre pregando da forma que queria.

Com essas missas, ele foi voltando para a igreja, e para uma rotina
religiosa.

— Deus pra mim é tudo. Tudo! Está presente na minha vida


constantemente, me orienta, me guia. Que olha pelos meus sonhos, que sabe
minhas angústias, que sabe a forma como eu posso superar meus problemas,
sabe tudo. É o Regente da minha vida.

Daniel não queria se afastar de Deus nunca mais. Agradeceu a Ele por
ter sido aprovado na OAB, antes mesmo de colar grau na faculdade.
Faz muitas coisas por Deus, sente-se bem em serví-Lo. Costuma ser
muito solidário com as pessoas. Se alguém cai, Daniel está lá para estender a
mão, muitas vezes literalmente. Gosta de pregar o Amor. Adora ajudar o
próximo. É prestativo.

Costuma até bater na própria boca quando fala o nome de Deus em vão.
Não tão vão quanto “Ah, meu Deus”, mas algo com um sentido mais blasfemo.

— Meus amigos têm mania de, quando está tocando Beyoncé, falar “ó
Jesus cantando; olha Deus cantando. Gente, é Deus cantando”! Uma vez eu
falei isso sem querer. Virei de costas na hora e bati na boca três vezes.

Apesar de não tem mais disposição para grupos e projetos da igreja,


Daniel pretende doar cestas básicas e ajudar as pessoas, assim que começar
a trabalhar. Tem muita vontade de participar de entregas de brinquedos e
doações em geral. Fica contente com o ato de ajudar o próximo. Gosta de ver a
felicidade nos outros.

É extremamente grato a Deus, tem com Ele uma relação muito


harmoniosa. Antes tinha alguns conflitos sobre a sua sexualidade e sua
religião, mas nada que estudos da bíblia e pesquisas não curassem.

Quando Daniel era mais novo, não conciliava bem o fato de ser gay e
cristão. Cresceu ouvindo que ser gay é pecado, e isso ajudou a intensificar a
confusão conflituosa em sua mente.

“Não é possível. Se é pecado, porque Deus deixaria eu viver com isso?


Será que é alguma espécie de teste que eu tenho que sobreviver nessa vida?
Porque não tem lógica. Por mais que eu tente, não consigo mudar”.

Reflexivo, passou a entender de outra forma. Percebeu que os


argumentos que as pessoas davam para condenar a homossexualidade como
um pecado vinha de interpretações errôneas da bíblia.

— Não tem como Deus condenar uma forma de amor. Se a gente está
amando alguém, é porque a gente está fazendo o bem àquela pessoa. Então
não tem como Deus julgar uma forma de amor, condenando a gente ao inferno
pelo fato de amar uma pessoa do mesmo sexo.

Analisou as passagens bíblicas que eram mais utilizadas para a


condenação dos gays.

Começou por Levítico. “Se um homem se deitar com outro homem,


como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação” (Levítico
20:13). Percebeu que as outras abominações foram esquecidas.
— Em Levítico tem mais abominações: usar roupas com tecidos
diferentes, comer frutos do mar, carne de porco, era tudo considerado pecado.
Mas era um contexto histórico diferente, que não se aplica hoje em dia.

Nas cartas de Paulo, pode-se ler “nem os devassos, nem os idólatras,


nem os adúlteros, nem os ​efeminados,​ nem os sodomitas, nem os ladrões,
nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores
herdarão o reino de Deus” (1 Coríntios 6:10). Mas, Daniel acredita que os
significados foram distorcidos.

— Tem gente que traduz efeminado como homossexual, mas efeminado


advém de ‘mole’, passivo, inativo. Deve ser uma forma pejorativa da época.
Hoje já traduzem como promíscuo. A homossexualidade era vista uma forma
de idolatria ao sexo…

Rebate as justificativas preconceituosas lembrando que, em outras


cartas de Paulo, afirma-se que “para com Deus, não há acepção de pessoas.”
(2 Romanos 2:11).

— Aquele que faz acepções, esse sim está cometendo pecado, porque
não coloca em prática o ensinamento de Jesus, de amar ao próximo. Foi lendo
e vendo vídeos que eu descobri que ser gay não é pecaminoso, é algo natural.
Tanto homossexuais quanto héteros, acho que levar uma vida promíscua que é
o pecado.

Todas essas conclusões e estudos serviram para dar forças a Daniel em


diversos momentos. Especialmente quando ele se assumiu para a família, em
2015. Foi durante seu baile de formatura. Ao fim da festa, um “acidente”
provocado por um primo gerou a discussão.

— Tia, se você soubesse que o Daniel é gay, o que você faria? —


perguntou o primo, para a mãe de Daniel.

— Uai, nunca criei o Daniel pra isso… — respondeu ela, séria.

Logo depois, foi em direção do filho, e puxou-o pelo braço.

— Por quê você não falou pra mim? Por quê você mandou seu primo
falar pra mim? Por quê você não falou pra mim que você é gay?

Daniel ficou sem reação. Se viu na cova dos leões. Não podia escapar,
e as feras o cercavam.

A mãe saiu da festa, brava. Ele foi atrás.


— Mãe, você sempre soube. Nunca namorei com menina, nunca tive
nada…

— Ah, eu sabia… — respondeu a mãe, e começou a chorar. A madrinha


de Daniel estava ao lado. Escutou tudo e espalhou para todos.

A mãe chorando. Pai nervoso e impaciente.

— Mãe, é normal, mãe… — disse, tentando acalmá-la.

— O Gabriel é uma pessoa de ouro. Não vai mudar nada… —


intervieram os amigos.

Por fim, a mãe se acalmou.

— Meu filho, eu sempre vou te amar de qualquer maneira…

Daniel ficou aliviou. Desabou. Começou a chorar. Chorou tanto que


preferiu sair de perto da família. Amparado pelos amigos, passou o restante da
noite se recuperando do episódio.

Em casa, Daniel explicou a situação um pouco mais.

— Vocês me criaram um homem, e sou homem! Isso não vai mudar…


Não vou me transformar e virar uma pessoa louca. Eu continuo com minha
moral, sendo o homem que vocês criaram. Nada vai mudar. Isso é só um
detalhe na minha vida, que não vai fazer a menor diferença em nada. A mesma
pessoa focada, a mesma pessoa com objetivos que eu sempre fui. É só um
detalhe. Eu nasci assim…

Os irmãos compreenderam melhor e aceitaram tranquilamente. A Mãe já


havia digerido a informação previamente. Já o pai…

O pai ficou nervoso, distante. Passou duas semanas sem falar com o
filho. Hoje conversam normalmente. Contudo, Daniel sente falta dos carinhos
que recebia do pai. Um carinho na cabeça, nas costas ou na panturrilha. Nunca
mais recebeu esse contato físico, mas agradece por ter sido a única coisa que
perdeu.

Já era madrugada quando Daniel chamou um táxi. Seus olhos


castanhos-escuros pesavam de sono. A pele clara parecia mais pálida, ou
talvez fosse o contraste com seus curtos cabelos pretos, recém cortados.
Acompanhei-o até a entrada, e agradeci pela visita e pela conversa. Minutos
mais tarde, ele me mandou uma mensagem. Havia chegado são e salvo em
casa, mas estava “morto de sono”.
6 - Davi

Convidei Davi para vir a minha casa em um domingo. Ele veio de carona
com o pai, mas ambos nunca haviam andado pelas redondezas, e se
perderam. Tive que relatar por telefone as instruções de como chegar à minha
residência.
— Você vira à esquerda na Perimetral, no semáforo ao lado dos blocos
do Goiânia 2. Segue a avenida por umas duas quadras até chegar numa
rotatória. Depois siga pela avenida do meio até chegar a uma outra rotatória.
Vire à esquerda na rua do meio…

Eles ligaram perdidos novamente, antes de finalmente chegarem.


Cumprimentei Davi com um aperto de mão, e o convidei para entrar. Foi
a primeira vez que eu o vi pessoalmente. Estatura mediana, olhos verdes, pele
clara, músculos definidos e cabelos castanhos alisados quimicamente. Cabelos
que, inclusive, eram parte fundamental do dia a dia e da história daquele jovem
de 23 anos.

Davi é filho único. Nasceu na cidade de Primavera do Leste, no interior


do Mato Grosso. Filho de um policial gaúcho e uma dona de casa goiana,
mudou-se com os pais para Iporá, em Goiás, por volta dos oito anos de idade.
Ele achou frustrante no começo. A mudança para terras goianas o
deixou triste. Gostava muito da cidade natal; cultivava amigos, família e
costumes. Porém, depois que mudou, a avó paterna e uma prima muito querida
vieram a falecer, e Davi perdeu a vontade de retornar à Primavera. Atualmente,
não gosta nem de visitar a cidade onde nasceu.

Teve que se acostumar com o sotaque, palavras e jeito de conversar


dos goianos. Adaptou-se rápido, ainda criança. Desde pequeno, já era maduro
e desenvolvido intelectualmente.

Com os pais ainda desempregados em solo goiano, Davi começou a


fazer artesanato com a mãe. Era a principal fonte de renda deles no momento.
Teve que se afastar dos estudos por um tempo, até a família conseguir se
reerguer. A mãe acabou sendo contratada para ensinar artesanato em postos
de saúde, e a situação melhorou consideravelmente.

— Logo depois, meus pais, que sempre tiveram uma cabeça bem
empreendedora, montaram uma pastelaria. Minha mãe era cozinheira. E foi um
sucesso. Era numa barraca, então na época a gente viajava para várias festas,
tipo festas de peão, de cidades, etc., pra poder montar a barraca e vender os
pastéis.

Foram viagens incríveis. Conheceu inúmeras cidades e incontáveis


pessoas. Explorou muito, vivendo muito, e amadurecendo muito rápido. Os
pastéis começaram a vir acompanhados de sanduíches, espetinhos e
cachorros-quentes, o que ajudou a família a se manter sem medo.
Os pais até hoje trabalham com as vendas e alimentos, que se tornou o
forte da família.

Agradeceram muito a Deus por terem conseguido uma estabilidade


financeira. Família de raízes católicas, se reuniam todos os anos em várias
datas importantes para celebrações, novenas, rezas, etc. Davi seguia o
catolicismo da família, mas preferiu explorar outros caminhos religiosos.
— Depois de um tempo, eu me tornei espírita. Conheci os dois lados do
espiritismo...

— Quais são os dois lados? — perguntei, curioso.

— O espiritismo é uma religião incrível! Eu super admiro as pessoas


espíritas pelo estilo de vida que elas levam, e por quem elas realmente são.
Mas eu conheci outra vertente, e passei a mexer com trabalhos, e magia, então
foram coisas meio desconfortáveis.

Nessa época, Davi já havia começado a fumar. Fumou dos 10 até os 13


anos. Foi quando uma tia, que sempre falava muito de Deus e sobre a Palavra,
o levou a um culto evangélico.

Davi adorou. Começou a freqüentar as celebrações, identificou-se muito.


Sentiu que Deus realmente havia falado em sua vida. Decidiu se dedicar e
fazer parte da comunidade evangélica.

A igreja que frequentava era muito rígida. A primeira coisa que fez foi
parar de fumar. Com o tempo, começou a se vestir mais rigorosamente, com
roupas sociais, sem usar calças jeans ou bermudas (nem mesmo para dormir).

Desceu às águas no batismo, foi consagrado diácono, e estudou para


ser capelão missionário. Queria entrar em presídios e hospitais para fazer
orações e levar o Evangelho.

Foi um período incrível. Durante três anos, viveu uma intimidade muito
forte com Deus, intimidade que tem até hoje. Vivia verdadeiramente aquele
momento, e teve experiências memoráveis.

— Quais experiências?

— Já preguei em presídios. Já vi pessoas se renderem aos pés do


Senhor, por inúmeras vezes. São coisas que não saem da minha memória.
Tive muitas experiências espirituais, muito fortes. Vi pessoas sendo libertas
muitas vezes, vi pessoas caindo endemoniadas, inúmeras vezes. Foram
experiências incríveis!

Davi ainda mantém viva a memória de um acontecimento especial, que


o marcou profundamente. Certa vez, foi convidado para orar por um idoso que
estava “entre a vida e a morte”. O velhinho tinha muitos problemas nos
pulmões, por ter fumado a vida inteira. Davi levou a própria mãe consigo, que
era fumante há 35 anos. Após consentimento do idoso, orou pela cura dele. A
mãe de Davi imediatamente decidiu parar de fumar, e o velho recebeu alta
alguns dias depois, curado.

Os momentos mais íntimos de Davi com Deus ocorrem durante as


orações. Costumava orar muito de madrugada, ao chegar das vendas com os
pais. Enquanto orava, dizia sentir o “cheiro da afronta”.

— Existe o mundo espiritual, e ele é tão real quando o mundo em que


nós vivemos. É uma luta incessante. Pessoas correm riscos o tempo todo. E às
vezes nós perdemos a noção das realidades, que nós achamos que não
existe...

Foi uma época áurea para a vida religiosa de Davi. Mas ele logo entrou
num conflito.

Ao mesmo tempo em que queria ser pastor e participar da igreja, sabia


que era gay. Ouvia outras pessoas condenando sua própria natureza, e aquilo
o afetava. Ao mesmo tempo em que estudava teologia, queria também estudar
para ser cabeleireiro, um sonho de infância. A situação o entristecia
profundamente.

Resolveu desistir de seus cargos na igreja.

— Há pessoas dentro da igreja que escondem o pecado atrás do terno.


Pecam o tempo todo, mas se escondem, e apontam o pecado do próximo. E
pra mim era insuportável. Eu não aguentava isso porque as pessoas que
precisam de Deus! Por inúmeras vezes, vi pastores e irmãos de dentro da
igreja que eu frequentava criticando travestis, criticando homossexuais. E isso
sempre me deixou muito nervoso, porque dentro da igreja existiam
homossexuais. A diferença é que eles se portavam como homens héteros, e
tinham família, mas existiam. E eu não aceitava isso.

A homossexualidade de Davi foi muito aflorada. Desde os quatro anos


de idade, já olhava para os garotos de outra forma. Com o tempo, percebeu
que era gay, assim como percebeu a presença divina na vida dele.

Questionava Deus. Em todas as orações. “​Se é pra eu gostar de um


rapaz, por que eu não nasci uma mulher? E se eu nasci um rapaz, por que é
que eu não gosto de mulheres?”.

Ele teve a resposta para esses questionamentos durante um culto que


ocorria em sua própria casa. Davi orava de olhos fechados, com a mão
estendida. A pastora que pregava na ocasião também orava de olhos
fechados. Nunca haviam se encontrado na vida. Em dado momento, ela
caminhou até onde Davi estava, tocou sua mão estendida e disse a mensagem
que Deus a mandou proferir.

— Chega de tantos “por quês”, porque eu sei de todas as coisas.

Davi nunca mais questionou Deus.

— Hoje eu tenho uma percepção muito forte, e eu acredito nisso. Deus


não erra na sua criação. Todos são perfeitos aos olhos de Deus, independente
do que sejam: brancos, negros, asiáticos, se é gay, hétero, bi, trans. Aos olhos
de Deus você vai ser sempre A Pessoa Que Deus Criou, e Deus não erra na
criação.

Entre Deus e Davi, tudo estava resolvido. Agora faltava resolver a


situação com os pais.

Contou para a mãe sobre ser gay quando ainda estava envolvido nos
projetos da igreja. Chorava bastante, e a mãe o olhava assustada. Ela
acolheu-o naturalmente, e o confortou.

Já o pai, sofreu muito. “Entre tantas pessoas no mundo, tinha que ser o
meu filho?”. No início achou que era preconceito da parte do progenitor. Mas,
com o tempo, percebeu que o pai tinha medo. Medo do que a sociedade e as
pessoas podiam fazer.

Davi teve que forçar um consenso.

— Pai, o senhor não vai me aceitar dessa forma? — perguntou.

— Não! Você não é assim. Deus vai mudar sua história… — respondeu
o patriarca.

— Pai, infelizmente eu sou assim. Eu sempre fui, eu sou, e eu vou ser


até o dia em que Deus permitir. Então a única coisa que eu peço é que o
senhor me respeite.
Desde então, as discussões sobre o assunto cessaram. Considerava os
pais como as melhores pessoas do mundo, os melhores amigos, as únicas
pessoas com as quais podia contar sempre. Então, fez de tudo para manter a
paz em seu lar.

Com isso, Davi decidiu correr atrás do sonho de se tornar Hair Stylist.
Adorava mexer no cabelo da mãe e das tias, desde pequeno. Tinha tato, um
talento nato. Aos 15 anos, parou de trabalhar com os pais e estudou para ser
aquilo que queria ser.

Fez cursos pelo Senac. Foi aluno destaque da instituição.

— Deus sempre me abriu muitas portas para lugares muito grandes. —


confessou. — Me tornei hair stylist, fui me especializando, me
profissionalizando, e fui me tornando uma pessoa boa no que faço. Logo
depois, eu fui descobrindo áreas da minha profissão. Foi quando eu me
especializei em penteado e design de corte, que é mais produção e tratamento
de clientes VIP.
Seu foco era a alta sociedade. Ele acreditava que tinha capacidade para
ser um profissional de alto padrão.

E realmente tinha.

O curso durou pouco mais de um ano. Antes mesmo de concluir, já tinha


propostas de trabalho. Seus cortes e penteados tinham uma ótima fama, e logo
muitos salões queriam contratá-lo. Aprendeu muito nessas idas e vindas, e
cresceu como profissional.

Davi morou em algumas outras cidades de Goiás antes de finalmente ir


para a capital, junto dos pais. Chegou em Goiânia há cinco anos.

— Um dia antes da Parada Gay de 2013… — lembrou.

Depois de algumas conturbações, foi contratado por uma empresa


renomada, onde ficou oito meses. Saiu de lá porque queria mais. Acreditava
que podia ter algo ainda melhor. Trabalhou a domicílio por um tempo, depois
em um salão com uma amiga.

Acabou mudando-se para Anápolis. Não só em busca de emprego, mas


para tentar uma união estável e um recomeço de vida. O casal não durou
muito. Em menos de três meses, já havia retornado para Goiânia, de volta à
casa dos pais.

Fez juz a sua fama e competência. Foi contratado por salões


conceituados da capital, satisfeito por ter alcançado o nível de renome que
almejava. Mesmo assim, ainda sonha em ser maior, um profissional muito mais
reconhecido, e de maior sucesso.

Davi costuma agradecer e Deus pelas portas que foram abertas. “E porei
nos seus ombros a chave da casa de Davi, que abre e ninguém fecha, que
fecha e ninguém abre” (Isaías 22:22). É uma passagem que carrega consigo,
no interior do seu ser.

— Eu acredito cegamente que a porta que Deus abre pra mim nem o
homem, e nem o Cão, é capaz de fechar. E a porta que Ele fecha, ninguém
abre, e por ela eu não passo.

Outra passagem que também carrega em seu íntimo o ajudou a passar


pelas horas difíceis da vida, em todos os aspectos. “(...) O choro pode durar
uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmos 30:5).

— Talvez a minha Noite seja minha vida financeira desestruturada, ou


minha vida sentimental, um término de relacionamento, ou problemas
familiares. Não interessa qual seja a minha Noite, ou a ​sua noite, ou a noite de
qualquer pessoa. Quando o Sol da Justiça, que é Deus, raiar na minha vida, a
alegria vai vir juntamente com Ele.

Davi frequenta a igreja normalmente, no geral acompanhado dos pais.


Tem vontade de reviver os tempos de vida religiosa ativa, mas por enquanto se
contenta com seus momentos reservados com Deus.

— Se você me perguntar as origens dEle, quando Ele surgiu, eu te


respondo que antes que houvesse dia, Ele era. Antes que existisse qualquer
coisa no universo, Ele era. Ele era, Ele é e Ele sempre vai ser Deus.

Davi já teve fases em que usava “franjas loiras horrorosas”, que era
magro, mas sempre gostou de se vestir bem. Procura sempre estar bem
consigo mesmo.

Treinou para participar de campeonatos de fisiculturismo, e teve um


ganho muscular de 16 kg em oito meses, o que hoje é refletido em seu corpo
musculoso. Davi frequenta ambientes héteros, gosta de música sertaneja, de
assistir filmes e come ​strogonoff com frequência. Atualmente é casado com um
homem maravilhoso, que conheceu durante seu último emprego. Moram juntos
e frequentam a mesma igreja.

Já era madrugada quando fomos dormir. Ele voltou para casa no outro
dia, depois de se despedir com um abraço.

7 - Samuel

Samuel e eu estávamos sentados numa sala vazia, na Faculdade de


Informação e Comunicação, da UFG. Era a tarde de uma sexta-feira. Apenas
uma mesa nos separava. Eu estava imediatamente à frente do quadro negro,
e ele em uma das cadeiras destinadas aos alunos. Uma posição curiosamente
invertida, já que eu aprenderia sobre ele, e não o contrário.

Samuel nasceu em Goiânia, prematuro de oito meses. Apesar de


prematuro, Samuel já nasceu forte, saudável e parrudinho, puxando a genética
portuguesa da família paterna. Hoje, mantém a mesma robustez lusíada, aliada
a cabelos pretos fortemente ondulados, barba constantemente por fazer,
pequenos olhos pretos e estatura mediana.

É quatro anos mais novo que o irmão, com o qual vem cultivando uma
relação de amor e ódio desde pequeno. Muito mimado na infância, Samuel foi
caçula da família por quase uma década. Ganhava todas as atenções e colos.
Acostumou-se com mimos.

Entrou na escola com quatro anos de idade. Começou no colégio onde a


própria mãe lecionava. Ele e o irmão estudaram lá durante todo o ensino
fundamental e médio, sob constante cuidado e vigília matriarcal.

— Cresci estudando no mesmo colégio que minha mãe dava aula. Todo
mundo acha que isso é bom, porque você tem privilégios, mas na verdade é
uma cobrança muito maior nas suas costas. Eu não podia conversar tanto nas
aulas, as minhas notas tinham que ser melhores que as dos outros. A minha
vida inteira, eu tive que servir de exemplo.

Samuel se esforçava para ser realmente exemplar. Sempre que saía de


casa, sua mãe lhe dava um beijo e dizia “seja um bom exemplo”, ou ainda
“lembre-se do que Jesus faria na sua situação”.

Cresceu em bases evangélicas. Leitura da bíblia, oração antes das


refeições. A Fé sempre teve um peso muito forte em sua família.

Começou a frequentar a igreja por vontade própria aos oito anos de


idade. Foi convidado para ir a um acampamento para jovens, e gostou muito do
que presenciou. Seu berço cristão o encaminhou e incentivou a querer
participar mais a fundo. Frequentava a igreja aos domingos e em datas
especiais.

Já o irmão não gostava muito de ir à igreja. Apesar de terem a mesma


criação, eram opostos em muitos aspectos da vida.

— Ele é extremamente exatas. Ele sempre tirou 10 em todas as


matérias de exatas, e eu em todas de humanas. Ele me ajudava na
recuperação de matemática, e eu fazia as redações dele. — confessou, em
meio a risos. — Sempre fui mais intenso, mais explosivo emocionalmente, e
meu irmão sempre foi mais calmo e mais sereno.

O irmão só se tornou membro da mesma igreja que Samuel frequentava


depois de se apaixonar pela filha do pastor. Ele se dispôs a conhecer o
ambiente e a religião, para se aproximar mais dos pais da menina. Acabou se
aproximando de Samuel e da própria igreja em si.
— Falamos que meu irmão foi para a igreja por causa de um amor, e
encontrou outro amor, porque ele aceitou Jesus.

As brigas com o irmão diminuíram, e uma forte união começou. Os dois


entraram para a equipe de louvor musical da igreja. O irmão tocava, e Samuel
cantava.

A mãe começou a frequentar a mesma igreja dos filhos, e o pai também


ia às celebrações casualmente. Passavam muito tempo juntos e unidos:
escola, casa e igreja.

E ao mesmo tempo, Samuel estava se descobrindo. Percebia que


olhava os garotos da turma de outra maneira. As brincadeiras inocentes e sem
malícia da pré-adolescência começaram a gerar questionamentos. Apertar o
mamilo dos colegas, dar petelecos, beliscar, bater na bunda, etc. Atos
aparentemente normais, que todos faziam uns com os outros, mas que o
deixavam pensativo.

“Será que aquele menino faz isso comigo porque ele me vê com outros
olhos? Será que eu tenho mesmo essa intimidade com aquele meu amigo?
Será que outros também têm essa intimidade?”

Todavia, prezava a castidade. Preferiu aguardar o momento e o homem


certos. Só deu seu primeiro beijo no fim da adolescência

— Falta de oportunidade não foi. — esclareceu ele. — Se eu quisesse,


teria acontecido. Mas é uma coisa minha, essa questão de me guardar...

Motivadas também por suas bases religiosas. Samuel cresceu na igreja,


ouvindo que ser homossexual é pecado. Isso gerava um choque muito grande
no garoto. um conflito de ideias, uma aflição. “​Minha religião me condena... e
agora?”

Porém, tem uma relação muito íntima com Deus. Considera-O como o
melhor amigo. Conversam constantemente. Sabia o quanto Deus o amava, o
quanto Jesus lutava ao lado dele.

Costumava ler o Salmo 4 (“Em paz me deito e logo pego no sono,


porque, Senhor, só tu me fazes repousar seguro”), e Efésios 6:13, sobre a
Armadura de Deus (“portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que
possais resistir no dia mau e, depois de terdes vencido tudo, permanecer
inabaláveis”). Gosta de se sentir amparado, e retribui todo o amparo divino com
fidelidade e amor.
— Minha religião nunca foi um dedo apontado na cara, me acusando.
Muito pelo contrário. Eu via o quanto o amor de Deus é importante, inclusive
mais importante do que as acusações.

A homossexualidade o aproximou de Deus, porque era o único ao qual


Samuel podia recorrer. Sentia-se correspondido, amado, acolhido.
Especialmente depois que contou para os pais que era gay.

E não contou foi por vontade própria. Foi ​obrigado a contar. Como a mãe
fazia parte do corpo docente da escola, tudo chegava até ela.

— Filho, você está gripado? — ela perguntava.

— Não, mãe. Por quê?

— Os professores falaram que você estava tossindo e espirrando na


sala...

Do mesmo modo, atormentada por comentários e fofocas, a mãe de


Samuel o acordou de madrugada certa vez. Ele tinha 17 anos na época.

— Meu filho, eu perdi o sono. Estava orando... e eu preciso te fazer uma


pergunta. Não vou te falar quem me contou, mas alguém lá da escola falou que
você se assumiu na sua sala. Que você chegou na sua sala de aula e contou
para os seus amigos que você é gay. Isso é verdade?

— Não, isso não é verdade. — respondeu Samuel. E ele realmente não


havia se assumido.

— Você não se assumiu. Mas como esse boato ia surgir do nada?

— Olha, mãe, acho que é melhor a gente sentar e conversar...

Era provavelmente um fim de semana, porque ambos os pais estavam


em casa e não foram trabalhar. A conversa continuou pela manhã, assim que o
pai acordou. Nunca mentiu para os pais, e não mentiria naquele momento.
Teve coragem, mesmo sem o amparo do irmão, que na época fazia um
intercâmbio nos Estados Unidos.

Sentou-se com eles na sala.

— Conta! — ordenou a mãe.

— Minha mãe andou escutando muitas coisas no colégio, e ela veio me


questionar sobre. E eu não vou negar pra vocês...

Ela começou a chorar, o pai ficou sem entender.


— O Samuel se assumiu para os amigos dele. Segundo o que eu ouvi
no colégio, ele se diz gay. — explicou a mãe.

— Eu não nego. — confessou Samuel.

O pai também começou a chorar.

— Misericórdia… onde foi que eu errei? — questionou o patriarca, em


meio à lágrimas e semblante tenso.

— Então é verdade? — perguntou a matriarca.

— É verdade… — respondeu Samuel.

— Então você já se relacionou com algum garoto?

— Não, eu nunca beijei ninguém...

— Uai, se você nunca beijou ninguém, como você sabe que você é
gay?

— Mamãe, eu tenho 17 anos de idade, e você me conhece. Eu conheço


todos os meus desejos, sei tudo o que eu quero na minha vida. Sei todos os
meus objetivos, o que eu quero alcançar. Eu me conheço.

— Você não beijou; mas você ​quer​ beijar um​ garoto?


— Sim.

Foram tempos difíceis, especialmente porque a discussão não parou por


ai. Mesmo proibido de contar para o irmão, a notícia chegou aos ouvidos dele
no exterior. Conversavam regularmente por Skype, e logo Samuel teve que
revelar a verdade para o irmão.

Justificou-se dizendo que foi obrigado a contar, e que não queria ter
contado pra ninguém até ter uma independência maior.

— Não que eu me arrependa de ter contado, mas se eu pudesse


esperar eu teria esperado. Ter um estágio, uma grana pra bancar pelo menos
as minhas saídas ou as minhas roupas, ou a minha comida...

Percebeu que errou em não ter contado ao irmão, que se dispôs a


ajudá-lo, a ser seu porto seguro, e manter segredo para com os pais. O amor
fraternal foi mais forte.

Depois disso, Samuel saiu do ministério de louvor da igreja. Por mais


que estivesse bem consigo mesmo, e que soubesse que sua relação com Deus
era magnífica, sabia também que as pessoas veriam com outros olhos. Mesmo
que ele continuasse orando de coração durante o louvor, as pessoas
apontariam o dedo, e ele temia isso.

Ficou abalado também quando foi conversar com o pastor da igreja, que
disse que o aceitaria independente do que ele fosse.

— Foi muito ruim ver que o meu próprio pastor, que também era pastor
dos meus pais, me apoiava e me entendia, enquanto os meus pais me
tratavam da forma que me trataram.

Os pais confiscaram computador, celular, o proibiram de sair e o


deixaram incomunicável. Acharam que privando Samuel do contato com o
mundo, ele voltaria a ser o garoto hétero que nunca foi.

Durante 17 anos, ele lutou para ser um bom exemplo. Notas altas,
filho/aluno exemplar, medalhas de handebol e natação, trabalhos voluntários,
etc. E tudo isso desabou apenas porque ele se assumiu gay.

Foi a pior época da vida dele.

Sentiu muita falta de receber carinho dos pais. Todos os dias, à noite,
depois da janta, Samuel costumava deitar na cama dos pais para receber
carinho ou massagem até pegar no sono. Foi devastador perder essa
intimidade.

— Vi tudo jogado no lixo, e isso porque eu nem tinha ficado com um


menino ainda.

Samuel beijou um garoto pela primeira vez alguns meses mais tarde,
ainda com 17. Os pais começaram a afrouxar um pouco as rédeas, deixando o
filho sair com amigos próximos.

Aquele primeiro beijo aconteceu durante uma festa de aniversário, numa


rua escura, com um garoto havia conhecido pelas redes sociais. Samuel é bem
romântico, estilo contos de fadas, esperando a pessoa certa, um príncipe
encantado. Por isso, seu primeiro beijo foi com um garoto que o respeitava e
que era carinhoso com ele.

Seu segundo beijo foi numa balada alternativa, com um garoto que fez
questão de conversar com Samuel durante a festa inteira. Esse episódio
chegou via fofoca aos ouvidos dos pais, que novamente o privaram das coisas
e puxaram as rédeas com força.

— Passei por todas aquelas dificuldades, mas não sorrindo. Cada dia, a
gente mata um leão. E quando a gente resolve se assumir e lutar por isso, a
gente acaba matando uma savana de leões, todos os dias.
Hoje, a relação de Samuel com os pais é quase como era antes. Há um
carinho imenso, mas não como antigamente. Apenas a comunhão com o irmão
permaneceu a mesma.

Samuel pretende se formar, ser um profissional de sucesso, e ter três


filhos. “Um rapazinho, e depois duas gêmeas”. Só vai se sentir completo
quando for pai, seja solteiro, ou com um marido.

Terminamos nossa conversa naquela tarde, por volta das quatro.

8 - Sara

Sara me ofereceu um copo d'água na sala de sua casa, no Setor


Universitário. Era um domingo, e o Sol castigava Goiânia, como sempre.
Sentamo-nos no sofá ao lado da janela aberta, que nos abençoava com uma
brisa fresca.

Sara tem 27 anos, cabelos castanho-escuros, um piercing na narina


esquerda, estatura mediana, e uma voz grave, bem musical, amansada pelos
anos à frente do louvor da igreja.

Cuiabana, passou a infância morando em um prédio. Costumava brincar


de Barbie com as amigas, mas preferia jogar futebol.

— Acho que sempre fui o filho homem do meu pai. — brincou, com o
fato de ter apenas outra irmã, mais velha.

Sara veio para Goiás há 15 anos, com a mãe e a irmã. O pai, oficial de
justiça, permaneceu em Cuiabá, por ser inviável sua transferência para terras
goianas. Ele visita a esposa e as filhas mensalmente, mas Sara ainda assim
sente falta dele. Foi mais ligada ao pai, diferente da irmã, que se conectou mais
com a mãe.

Sara mudou-se do Mato Grosso para Anápolis, Goiás. Estudava em um


colégio salesiano cuiabano, então não estranhou mudar para um colégio
salesiano anapolino, no qual estudou até concluir o ensino médio.

Jogou futebol na escola durante muito tempo, como pivô e como goleira.
Participou de muitos campeonatos e ganhou vários deles.

— Faltando uns dois meses pra eu terminar o Ensino Médio, eu


participei de um campeonato e eu defendi todos os pênaltis. A seleção goiana
me convidou para jogar no gol pra eles, mas por conta do preconceito da minha
mãe, ela não deixou. — lamentou, em meio a risos debochados.

Incentivada pelo pai, fez aulas de violão. Começou quando tinha 11


anos, e aos 13, já estava graduada no instrumento. A paixão foi tanta que ela
comprou dois violões e uma guitarra vermelha, que adornou com o adesivo da
imagem da Virgem Maria, envolta por um terço. Ela os guarda com carinho até
hoje.

Depois que aprendeu a tocar, Sara entrou para o ministério de louvor da


igreja católica que frequentava. Lá conheceu seu primeiro ​namorado.​ Ficaram
juntos por três anos.

A primeira vez que Sara beijou uma garota foi aos três meses desse
namoro heterossexual. O beijo não atrapalhou seus sentimentos pelo
namorado, na época. Só terminaram anos depois. E o término a fez emagrecer
sete quilos, já que ela começou a jogar futebol todos os dias para não
permanecer triste.

Ao fim do ensino médio, Sara decidiu cursar Administração na


faculdade. Romântica, sempre gostou de relacionamentos, e teve algumas
namoradas durante os anos acadêmicos. Ela só não sabia que seu segredo
não estava tão bem guardado como ela achava.

Uma simples conversa entre duas colegas foi o suficiente para expor sua
vida afetiva.
— Nossa, minha ex-namorada já está com outra menina… — desabafou
uma garota, com sua colega de estágio.

— Com quem? — perguntou a colega de estágio.

— Uma tal de Sara...

Acontece que a colega de estágio era a irmã de Sara. Viu fotos, escutou
a história, e ficou perplexa. Descobriu que irmã era lésbica, e dividiu a
descoberta com a mãe.

A mãe de Sara nunca aceitou.

— Quem é você? Você não tem temor a Deus? Você é coordenadora da


música... — argumentava a matriarca, questionando a filha homossexual,
assim que teve a oportunidade. — Se você continuar nesse mundo, eu vou
pegar minha mala e ir embora. Não aceito filha assim...

Com um família extremamente católica, Sara passou por um momento


muito difícil. Foi exposta e teve que lidar com as consequências.

Nem seu corpo aguentou o intenso trauma.

Um dia depois de a mãe tê-la confrontado, a gengiva de Sara inchou e


todos os seus dentes sangraram. Dentistas receitaram bicarbonato de sódio e
flúor, sem sucesso. Depois de dois meses sofrendo com os sangramentos, e
com um emocional abaladíssimo, ela decidiu fazer uma consulta com
profissionais mais capacitados.

— Descobri que eu estava com Depressão Dentária. É um nome em


inglês, mas no Brasil acho que é conhecido assim. É uma doença que aflora
um dia depois de uma tristeza profunda... Fui um dos raríssimos casos em
Anápolis, devido à minha idade, porque essa doença costuma dar só em
idosos.

O tratamento é um processo caro, que Sara faz anualmente. Hoje em


dia, não sangra tanto, mas dói de vez em quando.

Algum tempo depois, o pai de Sara chegou a Anápolis, para visitar a


família. Ele a confrontou enquanto a acompanhava a um ponto de ônibus, já
que ela ia visitar as primas.

— Espero que você não vá ver essas meninas... — disse ele, se


referindo às amigas lésbicas de Sara.

— Não, não vou. Vou ver minhas primas, pai. Por que eu ia mentir se
você pode ir lá na casa delas perguntar?

— Se eu descobri que você está andando com essas meninas, eu vou


tacar droga na mão de todo mundo e mandar prender!

— Taca mesmo. Porque no dia que eu quiser me vingar de alguma


coisa, vou fazer o mesmo e falar que aprendi com você...

O pai ficou calado. No dia seguinte, pediu desculpas e nunca mais falou
sobre a sexualidade da filha. Inclusive, a presenteia com camisetas do
Corinthians frequentemente.
Sara costuma reunir as amigas e ir a jogos oficiais de futebol. Adora
estar com os amigos, e depende muito deles para não se sentir sozinha. Ela
gostaria muito de apresentar as amigas à família, ou quem sabe até levar uma
namorada para um churrasco de domingo, ou comemorar algum aniversário.
Mas ela sabe que isso não é possível...

Há alguns anos, a irmã engravidou antes de se casar. A família ficou


horrorizada.

— Ainda bem que não sou a única errada aqui… — argumentou Sara.

— É, mas o pecado da sua irmã é muito menor que o seu. — defendeu a


mãe.

— Ah, então existe Pecadinho e Pecadão?

— Não... mas nessa situação sim. — a mãe se contradisse.

Sara continuou levando sua vida afetiva em segredo. Era cada dia mais
difícil ser lésbica secretamente. Sempre gostou de relacionamentos, namoros
sérios. Escondê-los era complicado.

Teve muitas namoradas. A mais desgastante foi Rute.

Assim que começaram um namoro mais sério, Sara planejou


meticulosamente fazer um curso para trabalhar em aeroporto. Caso passasse,
mudaria para Goiânia e, com isso, iria morar com Rute. O plano deu certo, e
ela se mudou para a capital goiana.

Sara tinha que esconder todas as coisas da namorada sempre que


recebia visitas da mãe, que suspeitava e vigiava a filha.

O relacionamento com Rute durou três anos. Durante oito meses,


porém, Rute foi morar com o pai, na Irlanda. Sara, apaixonada, aguardava
pacientemente o retorno da amada.
Porém, recebeu algumas fotos anônimas...

— Eu descobri que ela ficou duas semanas se prostituindo, por causa de


uma crise financeira. Ela saiu da casa do pai... E só eu que descobri. Meus
pais nem sonham. Fui buscar a Rute na Irlanda, de um dia pro outro.

Em solo irlandês, ela resgatou a companheira.

— Tem pessoas no Brasil que te amam de verdade, então eu vou cuidar


de você!

As duas voltaram para o Brasil onde continuaram morando juntas.


Usavam alianças douradas nas mãos esquerdas. Sara se sentia casada. Mas
foram tempos conturbados. As compras que os pais faziam, supostamente
para uma pessoa, alimentavam duas.

Depois de algum tempo, terminaram.

Sara entrou em depressão. Estudava, trabalhava e fazia estágio. Dormia


menos de quatro horas por dia. Depois de concluir a faculdade de
administração, a depressão a fez voltar para Anápolis. Procurou ajuda
psicológica, por conta própria.

Sentia-se perdida, sem saída. Confusa. Triste. Mas não desamparada.


Deus veio sempre em primeiro lugar na sua vida.

— Sem Ele, não sei o que seria de mim... Sei que Deus me ama, porque
se Ele não me amasse, eu não teria superados as coisas que eu passei.

Sempre que acorda, Sara agradece a Deus. Adora cantar músicas


gospel, especialmente pela manhã. Costumava ir para a faculdade à pé,
fazendo suas orações e escutando sua música preferida:

Estou clamando, estou pedindo


Só Deus sabe a dor que estou sentindo
Meu coração está ferido
Mas o meu clamor está subindo

Sara gosta muito da parábola do Filho Pródigo, relatada em Lucas 15. O


filho recebeu a herança do pai e foi para terras distantes, gastando os bens
dissolutamente. Arrependido, retornou para casa, para pedir perdão ao pai, que
o recebeu com extremo regozijo.

“O pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e


vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés; e trazei o bezerro
cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; porque este meu filho estava
morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se.”
(Lucas 15:22-24)
— Às vezes eu me sinto assim; não pra sair pra fazer farra, mas como
se eu tivesse saído de casa pelas minhas razões... — confessou Sara,
sonhando com uma festa de boas vindas da família, para ser acolhida pelas
pessoas que mais ama.

Antes, Sara tinha vergonha de ir à missa. Influenciada pelo pensamento


da família e da sociedade, acreditava que ela fosse algo errado, abominável, e
que ainda assim ia à Igreja.

— Eu tinha vergonha até de olhar no Santíssimo, mas eu ia. Eu


precisava daquilo, precisava de Deus!

Nunca deixou de ir às missas, mesmo que sua mãe a mandasse se


afastar da igreja, por ser “errada”, ser algo condenado pela Bíblia.

Ela sente falta da linha de frente da música na igreja, mas não voltaria.
Tem medo de as pessoas apontarem o dedo, a acusarem de hipocrisia.

Hoje, Sara se aceita por inteira. Não tem receio de falar com Deus sobre
sua sexualidade.

— Senhor, eu terminei meu namoro. Cuida do meu coração... Só você


pode me ajudar!

Ela tem muita vontade de ter filhos e se casar com uma mulher. Não
costuma ver as amigas lésbicas indo à igreja ou escutando músicas cristãs, e
isso a deixa mal de certa forma. Mas ela é verdadeiramente cristã.

— Quem é Deus pra você? — perguntei.

— Minha vida! Tanto que minhas senhas são “DeusMinhaVida”. Se não


fosse Deus eu não sei como teria sido... — disse ela, fazendo uma longa
pausa. — Eu vou chorar aqui...

E realmente chorou.

Toda a importância de Deus na vida de Sara foi convertida naquele


choro. A breve menção do Criador e sua importância na vida dela a fizeram
perder as bases. Muito boa de coração, ela acredita firmemente que vai para o
Céu. E eu não duvido.

Depois de se acalmar, Sara começou a se sentir meio febril. Conferi a


temperatura com um toque em sua fronte, e constatei que realmente estava
alta.

Ela ainda me mostrou fotos dos seus antigos cortes e colorações


capilares, e discutimos as origens dos nossos amigos em comum no Facebook.
Por fim, deixei-a livre para repousar.

Sara me levou à porta, tremendo ligeiramente sob o agasalho. Em seu


quarto, uma bíblia aberta e uma imagem da Virgem Maria.

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