Gays Também Vão para o Céu.
Gays Também Vão para o Céu.
Gays Também Vão para o Céu.
Há quem pense que ser cristão e ser gay são duas coisas opostas; rivais
de uma antiga guerra bíblica. Cristãos empunhando trechos da Palavra de
Deus para atacar os homossexuais, que se defendem levantando os escudos
dos Direitos Humanos e Liberdade. Supostamente, um não deveria adentrar o
território do outro, a não ser para pedir clemência e perdão, e se juntar ao time
adversário.
Contudo, Gays e Cristãos não são grupos tão segregados como
pensam. Um está inserido no outro. Indivíduos ocultos, grupos mesclados em
ambos os lados, incitando um cessar-fogo imediato a uma guerra que já dura
tempo demais. Cristão e Gays coexistem, e encarnam o apocalipse de uma
rivalidade que nem deveria existir.
A maioria dos Cristãos parecem cegos aos ensinamentos da mesma
Bíblia que usam para condenar os Gays (ainda que o termo “gay” seja muito
usado e recorrido neste texto, me refiro à comunidade LGBT em geral). As
mesmas escrituras que “condenam” os homossexuais, pregam o amor ao
próximo, o perdão, a afirmam que Deus não faz acepção de pessoas.
Lembrai que Deus perdoa todas as iniquidades, os pecados. Além disso,
Ele te julgará da mesma forma que você julgar o próximo. Está tudo na Bíblia,
tanto as poucas passagens que “abominam” os gays, quanto as muitas
passagens que pregam o amor, perdão e humildade.
Os Gays, por sua vez, se distanciam do Cristianismo para não serem
condenados, julgados. Acabam criando preconceito religioso, intolerância e se
“afastando” de Deus. Lembrem-se que não é Deus que vos condena por serem
gays, mas os próprios homens em si, falhos e hipócritas. Tenham em mente
que Deus ama, perdoa e acolhe todos que O procuram.
Este livro foi escrito com a intenção de ajudar a dar um fim nessas
contendas, pregando a paz, a tolerância e principalmente o amor. Oito
gays-cristãos foram entrevistados, e suas vidas narradas em forma de Perfil
Jornalístico, para ilustrar que gays que creem em Deus são uma realidade mais
complexa do que se imagina.
Os oito foram entrevistados ao longo de um semestre, entre 2014 e
2015. Os perfis ressuscitam seus passados, analisando especialmente seus
vínculos com a religião e com a sexualidade. São seis homens e duas
mulheres, gays e lésbicas respectiva e obviamente, que me receberam e
concordaram em ter suas histórias narradas neste livro.
A construção dos perfis me levou a perceber que o vínculo
religioso-afetivo não só existe de fato, mas também é dividido em várias
“escalas”. Vários níveis de Cristianismo, vários níveis de Homossexualidade.
Alguns não frequentam missas ou cultos, mas louvam em Deus da própria
maneira. Outros se consideram homossexuais, mas já se envolveram
heterossexualmente. Alguns nunca tiveram problema com a dualidade
gay-cristã, e outros ainda a enfrentam. Cada um com sua história de vida, rica
em memórias; lembranças boas e/ou traumáticas.
Seguindo os ensinamentos de Sergio Vilas Boas e Cremilda Medina, as
entrevistas não se estendiam por muito mais que uma hora. Entrevistas não; na
verdade, foram Diálogos. Olho no olho, uma conversa… o celular que
registrava a conversação era apenas um objeto alheio ao fluxo de histórias que
eram narradas.
“Vou fazer perfis, que são 'biografias menores', que focam em
determinado aspecto da sua vida”, eu explicava quando questionado sobre o
gênero textual. Escrevi os perfis na ordem em que fiz as entrevistas, e nesta
mesma ordem estão aqui dispostos.
Por questões éticas, e para proteger a identidade dos que solicitaram,
todos os nomes dos perfilados foram alterados. Propositalmente, substitui seus
nomes por nomes Bíblicos, que tem a ver minimamente com cada entrevistado.
Adão foi o primeiro gay que entrevistei; goianesiense, praticante de
vôlei, conterrâneo, me custou uma viagem à minha cidade natal.
Israel (cujo nome significa “homem que luta com Deus”), é promoter de
uma balada gay, que resiste em ir à igreja, e louva a Deus de sua própria
maneira.
Ele jogava vôlei de areia sob o Sol do meio-dia daquele sábado, que
passava com vontade por entre as poucas nuvens no céu. Estava sem camisa,
vestindo apenas shorts pretos. Não notou minha presença de início; continuou
focado no jogo. A bola ia de um lado para o outro da quadra, por vezes
batendo na areia ainda úmida da chuva do dia anterior. Os eucaliptos que
cercavam uma parte do clube balançavam com o vento, e perfumavam
levemente o local.
— Que dificuldades?
A avó materna faleceu quando Adão tinha oito anos. Era como se fosse
mãe. A casa onde moravam (e ainda moram) fica um terreno grande, assim
como a maioria das casas da cidade. Com árvores frutíferas no quintal, cajás,
mangas, acerolas, abacates e maracujás substituíram os alimentos que
faltavam, como carne ou doces.
— Eu, minha mãe, mais três irmãos, e meu pai. Essa é minha família.
Mas tem dois tios de parte de mãe, e... deixa eu ver quantos primos... seis
primos por parte de mãe. Tenho quatro tios por parte de pai e cinco primos, por
parte de pai... só cinco, gente?... Não, seis! Seis! Por parte de pai são seis
também. — enumerava, contando nos dedos enquanto visualizava
mentalmente os familiares.
— A gente não dá muito certo. As ideias dele não batem com as minhas.
E as atitudes dele também não... — disse ele, descrevendo o pai. — Às vezes
ele quer me cobrar muita educação, mas ele não é muito educado,
principalmente comigo. Não que ele me trate diferente, mas desde mais novo a
gente tem essa situação, sabe? Eu trato as pessoas do jeito que elas me
tratam. Se ela me tratou com falta de educação, ela me dá a liberdade de
tratá-la assim também. Entende?
— Não lembro muito, acho que São Pedro. E... como é o nome daquela
que tem o olho no prato...? — ele me perguntou, tentando copiar com as mãos
a posição mais representada artisticamente da Santa. Posicionou as mãos
próximo ao seu peito nu salpicado de grãos de areia, no qual pendia um
pequeno crucifixo de ouro, amarrado ao pescoço por uma fina corrente
dourada. A areia se destacava na pele morena de Adão, e havia areia até nos
seus cabelos pretos lisos, que ele cortara há dois dias. Ele sustentava um
profundo ar de dúvida nos olhos castanho-escuro, vasculhando a mente em
busca do nome que lhe fugira a cabeça.
— Santa Luzia! Ela era muito devota de Santa Luzia, que é a da visão,
né? Ela tinha até um quadro lá em casa que tinha essa imagem, e eu sempre
gostei muito desse quadro.
Assim como sua avó, ele não era um católico praticante. Adora ir à
missa, mas acredita que sua grande fé em Deus é mais importante do que
comparecer semanalmente a igreja. Coleciona alguns episódios memoráveis
de encontros com O Criador.
— Eu já fui numa vigília de igreja, e senti uma presença muito forte lá,
me emocionei muito. — lembrou. — A gente ficou a noite toda na vigília. Muitas
pessoas repousaram do meu lado, e eu não repousei. E teve uma outra vez
também, que eu estava há muito tempo sem ir a uma igreja, e eu me emocionei
muito só de ter ido à missa, só de ver o padre evangelizar. Não consegui
conter, eu chorei mesmo.
— Eu chorei muito, muito, muito mesmo. Pedi perdão, agradeci, pedi
muitas coisas... E lá eu me emocionei muito. Antes disso, eu não queria ir lá,
minha irmã que ficou me pressionando. No momento que eu cheguei, comecei
a me emocionar, me ajoelhei, e desabei, desabei mesmo! Chorei muito, chorei
muito mesmo. Agradeci por tudo na minha vida.
Adão encontra seu porto seguro igualmente em locais protestantes.
Frequentou uma igreja evangélica algumas vezes. Na primeira vez, ficou um
pouco assustado, devido ao modo empolgado que aqueles fiéis costumam
pregar. Ainda assim, elogiou o pastor que pregava na ocasião. E tudo que o
pastor falava, parecia ser diretamente para Adão, de uma forma que ele não
soube bem explicar. Era como se o pastor estivesse decifrando o que estava
acontecendo com ele no momento.
O curioso é que Adão estava com quatro amigos que, assim como ele,
também são gays. Na verdade, quase todos os amigos gays de Adão são
cristãos, a maioria evangélicos, que vez ou outra o levam para as celebrações.
— Mas eu não fico lá porque tem umas coisas neles que eu não
concordo, sabe? Algumas coisas que eles pregam para as pessoas, impedindo
elas de fazer certas coisas... — explicou ele.
Adão não consegue dormir sem rezar. Mesmo nas raras vezes em que
dorme despercebido no sofá da sala, acorda no meio da noite, vai pra cama e
reza. Sem rezar, tem a impressão de que falta alguma coisa no seu dia. Como
se algo fosse tirado dele. Tem fé de sobra, conversa com Deus todos os dias, e
é isso que considera como ser cristão.
Para ele, Deus é uma força, maior que todas. Uma força que nem ele
nem ninguém nunca viu, mas que todos sabem que existe. “Ele existe!”. Já
recebeu provas da existência de Deus, na maioria, pedidos atendidos, mesmo
quando está “afastado”. Adão não se considera uma pessoa muito
determinada, então quando ele procura Deus e tem seus pedidos atendidos,
sua fé cresce.
Toda vez que reza, se sente mais livre e mais leve. Jamais largaria sua
fé, ainda que em outra vertente do cristianismo.
Além disso, afirma também que nem todo homem que tem relações
sexuais com outro homem pode ser definido como homossexual.
— Ser gay não é só você fazer sexo com outro homem, e sim o
sentimento. O que conta mesmo é o que você tem por dentro. Então não é por
causa de um sexo momentâneo que você vai virar gay ou lésbica. Só ficou, não
amou... se ele fica e começa a gostar, se apaixonar, aí sim ele é homossexual.
Assim como na religião, Adão acredita que não são os atos que definem
as pessoas, mas o que elas são por dentro. Cristão pela fé, não pela prática
religiosa. Gay pelo sentimento, não pela prática sexual.
— Não. Eles se beijariam pelo fato de ser mais “normal” do que dois
homens se beijando. — explicou, fazendo aspas com os dedos para enfatizar a
relatividade do termo. — A comunidade gay aceita mais essas coisas do que a
comunidade hétero... Os gays são bem mais tolerantes que os héteros.
— Não é por causa deles, nem de ninguém, que eu vou deixar de ser
gay. Cabe à outra pessoa respeitar, e eles sendo meus pais deveriam respeitar
mais ainda do que o resto do mundo. Não que eles sejam obrigados a aceitar,
ou gostar disso, mas pelo menos respeitar.
— Ele aceita a todos! E Ele defende mais aos fracos e oprimidos, então
Ele acolheria os gays, se voltasse hoje... — predisse.
Em seguida, Israel me levou por um pequeno tour pelo seu novo lar.
Invejavelmente branco e asseado, o apartamento era dividido com a irmã mais
nova, que estava trancada no quarto, estudando. O próprio Israel estudava
antes da minha chegada. Cursava duas faculdades (Publicidade e Propaganda,
na UFG, e de Direito, na Universo), que exigiam dele uma dedicação integral.
Israel é ligado aos estudos desde a infância. Costumava ler muito, não
só porque sua mãe o incentivava, mas porque ele gostava. Sentia saudades de
ler livros de ficção tanto quanto antes.
— Os caras tinham, sei lá, três metros de altura. Jogavam até fora do
Brasil. E eles ainda ficaram em terceiro, porque de Rio e Minas ninguém
ganha, no vôlei masculino.
— Eu tenho certeza que eu vou para o Céu. Óbvio que eu ainda tenho
muita coisa pra viver, mas até hoje nunca fiz mal pra ninguém. — afirmou.
Cinco anos depois, virou Chefe dos Coroinhas, depois Acólito. Adorava
quando havia Missa Campal, ao ar livre, que lotava de fiéis. Tinha muita coisa
para fazer, e participava de tudo. Vez ou outra se empolgava com a
oportunidade de conhecer o Bispo ou o Arcebispo de perto.
— Mudou como?
Israel nunca foi uma pessoa que rezava muito. Não reza terços, nem
reza todos os dias antes de dormir. Reza quando quer. Nesses momentos ele
para, faz suas orações, lê um pouco da bíblia. É uma questão de vontade.
Independente disso, acredita ter uma conexão íntima com o Criador.
— “Problema”?
No outro dia, um conflito interno. Israel não sabia o que fazer. Ficou um
mês sem conversar com o amigo. Não entendia muito bem o que estava
acontecendo, mas logo voltou a se relacionar com ele. Enquanto namorava
uma menina, ficava com o amigo secretamente.
— Uai, não sabia que você estava aqui. — disse o progenitor.
Era um domingo.
O pai ficou abismado. Não era uma coisa que ele queria para o filho;
aliás, sequer imaginava. Ficou mal por uma semana. Não entendia direito o
fato de o filho ser gay. Uma amiga da família teve que intervir, explicar que a
opção sexual do filho não muda a pessoa que este é. O pai acabou aceitando
melhor.
A situação foi bem diferente com a mãe, que ficou quatro meses sem
falar com Israel.
— Não concordo que uma pessoa vai ser condenada por ser gay. —
argumentou. — Eu acho isso tão antiquado. Pra mim, isso é uma regra da
instituição religiosa. Não tem nada a ver com fé, com acreditar ou não, nada a
ver com salvação. Isso foi algo que as igrejas fizeram. Não acho que os gays
vão para o inferno. Se fosse assim, tem muito hétero que ia pro inferno... não é
por causa da opção sexual que Deus vai te julgar.
Apesar de ter uma posição firme sobre o assunto, Israel não pensa em
Céu ou o Inferno com frequência. Ideias de vida após a morte não costumam
percorrer sua mente. Ele apenas vai vivendo. Vivendo até alcançar suas metas
atuais: fazer mestrado, “se Deus quiser”, e financiar um apartamento.
Se você olhar para ele, vai ver um rapaz bonito de 25 anos, altura
mediana, pele clara, grandes olhos castanhos, cabelo liso e preto,
impecavelmente penteado, e sempre com uma barba perfeitamente aparada.
Magro, músculos definidos devido à prática do vôlei e academia. Usa sempre
roupas simples, mas de marca; incrivelmente estiloso. Mas se você o conhecer,
vai ver um ser humano bondoso e lotado de uma calma imensa.
Ele desligou o fogo do fogão e pegou os pratos para a janta: arroz, feijão
e carne.
— Está pronto, Mariana! — gritou em direção ao quarto trancado da
irmã.
3 - Isaque
Isaque iniciou sua própria família anos depois, aos 23. Foi morar com o
primeiro namorado. Ficaram juntos sob o mesmo teto por oito meses. Contudo,
uma intensa crise existencial do companheiro forçou Isaque a terminar o
relacionamento e voltar para a casa do pai, onde mora até hoje, aos 26 anos.
— Como gay?
— Sim.
Todavia, Isaque não foca no sexo. Detesta ficar sozinho. Tem intrínseca
necessidade de um parceiro, alguém para a vida inteira, um amor. Verificava
constantemente o celular, aguardando mensagens do namorado que tinha na
época. Mensagens que não chegaram, e o faziam trovejar dramaticamente.
— QUE INFERNO!!!
Aquele era seu segundo namorado. Namoros dão a ele uma segurança
e uma base estrutural. A relação com o primeiro, que conhecera na faculdade,
foi tão intensa que o fez tomar coragem para se assumir para família e os
amigos.O segundo o deixava feliz, uma zona de conforto e fonte de carinho. Os
parceiros só tinham uma incompatibilidade...
Acredita em Deus, mas não crê que Ele seja como a maioria das
pessoas prega, que menospreza e condena os homossexuais.
— Deus não se importa se você está envolvido com um homem ou uma
mulher. — afirmou. — Desde que você respeite aquela pessoa, o lado humano
dela, você não tem que se preocupar com condenação. Deus olha o seu
respeito e amor para com o próximo.
— Não vou dizer que eu chego a ajoelhar todos os dias, que eu acredito
que seja a maneira correta de se conectar com um Ser Supremo. Mas é o jeito
que eu me conecto na maioria dos dias. Mesmo quando eu deito na minha
cama, penso em Deus antes de dormir.
— Os gays acham que, por você ser gay, você não pode ter uma
posição cristã. Não tão diretamente. Se você vai à igreja a pessoa começa a
pensar “nossa mas você é gay, como você vai na igreja? O que você está
fazendo na sua vida?”. As pessoas interpretam como uma coisa muito distinta.
— Quando eu contei para a minha mãe, ela chorou bastante. Ela reagiu
assim: “não sei se aceito ou não aceito...”. Foi um pouco estranho, porque ela
tinha aquela condição religiosa, de não aceitar, mas tinha a condição humana,
“ele é meu filho, nunca vou deixar de defender”. Quando eu contei pra ela, ela
ficou de boa. Passaram uns 10 minutos ela começou a chorar. Chorou, chorou,
chorou, chorou... Ai eu fui explicar pra ela que nem tudo que está na Bíblia a
gente segue à risca. Tem coisas lá que a gente busca consolo de Deus
apenas...
— Sou gay? Sou. Sou Cristão? Sou. Acredito em Deus? Acredito. Gosto
de homens? Gosto. Uma coisa não interfere na outra, apesar do preconceito
das pessoas. Vou continuar seguindo a Deus, a Jesus, e nunca desprezando a
presença de Deus na minha vida... Não seria legítimo virar as costas para Deus
para viver o mundo gay.
“Mundo gay” que Isaque tem um contato regular. Mais caseiro, prefere
ficar rodeado pela família e pelos amigos. Porém, não dispensa uma balada.
Adora músicas pop.
— Nunca parei para pensar nessa questão... mas eu acho que pra tentar
ser um ser humano melhor, levar paz para as pessoas. Sou uma pessoa muito
positiva, em relação à tudo. Sou muito otimista, e eu tento levar as pessoas pra
cima, alto astral. E falando sobre Deus, e como ele é bom na vida da gente.
Já era quase manhã quando Isaque foi para cama. Dormiu apenas de
cueca, sem medo de exibir o torso definido, resultado de meses de academia.
4 - Eva
— O quê?
Ela acredita que sua personalidade ainda não foi totalmente formada.
Mesmo assim, reconhece algumas características fixas, como sua bondade e
seu ato de tratar o próximo como ela gostaria de ser tratada.
— Lembro que eu fiquei com essa amiga que me avisou, só pra passar
ciúmes na que eu gostava. — confessou, em meio a risos. — E acabou que eu
consegui ficar com essa menina que eu gostava. Aí eu comecei a seguir meus
instintos mesmo, sabe?
Deus esteve muito presente na vida de Eva. Ele até a ajudava a dormir
melhor, quando criança. Sua avó lia o oitavo e último versículo do Salmo 4
(“Em paz me deito e logo pego no sono, porque só tu, Senhor, me fazes
repousar seguro”), e a garota adormecia pacificamente. Ouvir tanto os salmos
eventualmente incentivou a leitura da bíblia e as orações.
Eva já bateu o carro cinco vezes. Depois disso, criou o hábito de fazer o
sinal da cruz ao entrar no automóvel, e nunca sofreu outro acidente. Também
rezou muitos terços na vida, como pagamento de promessas e livramento do
mal.
— Eu escolhia a menina mais bonita, aquela que era a mais difícil, mais
patricinha, mais chata e falava “vou ficar”. E eu sempre consegui. Espera aí…
— interrompeu, ouvindo cautelosamente os sons vindos do corredor,
verificando se ninguém estava por perto para ouvir suas confissões. Depois de
vários segundos em silêncio analisando os ruídos, Eva continuou, em voz
baixa: — Com minha primeira namorada, Maria, foi amor à primeira vista. Meio
coisa de filme, sabe? Na escola, a gente se olhava às vezes. E eu achava ela
maravilhosa, e acho que ela também gostou de mim. Na época eu lembro que
ela nem tinha redes sociais, mas fez um Facebook para vir falar comigo. Foi
uma coisa muito recíproca. Só que quando a gente começou...
— PODE VIR!
— TÁ BOM, ESTOU INDO… — mentiu; ainda ficaríamos conversando
por muito tempo. E retomou a história: — Quando a gente começou, eu nem
imaginava que ela tinha uma família psicopata...
O ápice foi quando Eva viu a própria mãe tendo uma crise de pânico.
Encontrou-a no banheiro, encolhida e agachada, se recusando a sair. “Não,
eles estão lá fora, os bichos, eles vão me pegar”. Já não podiam sair na rua
sem sentir medo. Era uma constante inquietação, um eterno temor, um terror
infinito. Eva decidiu que, por mais que amasse Maria, não dava pra fazer a
família passar por aquela situação.
— Eu não acho que seja assim. Eu vejo de outra forma. Porque ela
entrou lá sabendo que não era aceitável ter relacionamento com outra mulher.
Lá dentro, o que vale é a doutrina da religião. Então eu não acho que ela tenha
sofrido preconceito. Eles simplesmente aplicaram as regras do lugar,
entendeu?
Pelas redes sociais, Eva não tem medo de ser livre. Não só em relação
à sua vida sentimental, mas também em relação ao seu corpo. Suas fotos
exibem suas belas feições e momentos, e também as muitas tatuagens que
vieram ao longo dos anos. Transcreveu as paixões na própria pele...
Foi uma criança muito responsável, o irmão mais velho. Primogênito. Por
ser calado e sério, a mãe muitas vezes pensou em levá-lo ao psicólogo.
Contudo, o jeito calmo, sensível, cordial e disciplinado do garoto foi
acalmando-a sutilmente.
— Por quê?
— Acho que foi a época mais religiosa da minha vida. Eu sentia aquela
presença de Deus. É uma coisa indescritível, quando a gente recebe o Espírito
Santo… Até lembro a primeira vez que eu literalmente caí no chão. A gente
estava numa oração, no meu primeiro retiro de crisma, e do nada eu
desmoronei, e só me dava vontade de chorar.
Foi a sensação mais linda da sua vida. Sentiu como se um peso fosse
tirado dele. Sempre que ia a encontros do tipo, voltava mais leve e em paz.
Com isso, se apoiou ainda mais na fé. O terceiro ano do ensino médio
foi uma ascensão religiosa. Entrou na faculdade muito apegado a Deus. Os
novos horários já não o permitiam frequentar o grupo de jovens, mas não
deixou de ir às missas. Era uma nova fase da sua vida acadêmica e religiosa.
— Tipo quem?
— Gente louca da vida, que usam drogas, mas que são um amor de
pessoa…— exemplificou.
“Ele está olhando estranho pra mim. Chegando mais perto. Cadê todo
mundo? Tem alguma coisa errada… Ele está chegando mais perto… Muito
mais perto…” E se beijaram. Foi a primeira vez que Daniel havia beijado um
homem. Ficou meio retraído e tímido, por causa da surpresa. O momento não
foi muito intenso, mas deixou-o aliviado e satisfeito.
Desde então, tem se relacionado exclusivamente com garotos.
Finalmente se descobriu. Estava livre para ser quem realmente era. Sexual e
afetivamente, pelo menos.
— Porque acho que Deus sempre foi muito bom comigo. — confessou
— As coisas na minha vida sempre deram certo, no momento certo, então
afastar assim do nada foi muito injusto da minha parte. Tem tanta coisa e
desafio na minha vida ainda, e não é sozinho que eu quero enfrentá-los.
Com essas missas, ele foi voltando para a igreja, e para uma rotina
religiosa.
Daniel não queria se afastar de Deus nunca mais. Agradeceu a Ele por
ter sido aprovado na OAB, antes mesmo de colar grau na faculdade.
Faz muitas coisas por Deus, sente-se bem em serví-Lo. Costuma ser
muito solidário com as pessoas. Se alguém cai, Daniel está lá para estender a
mão, muitas vezes literalmente. Gosta de pregar o Amor. Adora ajudar o
próximo. É prestativo.
Costuma até bater na própria boca quando fala o nome de Deus em vão.
Não tão vão quanto “Ah, meu Deus”, mas algo com um sentido mais blasfemo.
— Meus amigos têm mania de, quando está tocando Beyoncé, falar “ó
Jesus cantando; olha Deus cantando. Gente, é Deus cantando”! Uma vez eu
falei isso sem querer. Virei de costas na hora e bati na boca três vezes.
Quando Daniel era mais novo, não conciliava bem o fato de ser gay e
cristão. Cresceu ouvindo que ser gay é pecado, e isso ajudou a intensificar a
confusão conflituosa em sua mente.
— Não tem como Deus condenar uma forma de amor. Se a gente está
amando alguém, é porque a gente está fazendo o bem àquela pessoa. Então
não tem como Deus julgar uma forma de amor, condenando a gente ao inferno
pelo fato de amar uma pessoa do mesmo sexo.
— Aquele que faz acepções, esse sim está cometendo pecado, porque
não coloca em prática o ensinamento de Jesus, de amar ao próximo. Foi lendo
e vendo vídeos que eu descobri que ser gay não é pecaminoso, é algo natural.
Tanto homossexuais quanto héteros, acho que levar uma vida promíscua que é
o pecado.
— Por quê você não falou pra mim? Por quê você mandou seu primo
falar pra mim? Por quê você não falou pra mim que você é gay?
Daniel ficou sem reação. Se viu na cova dos leões. Não podia escapar,
e as feras o cercavam.
O pai ficou nervoso, distante. Passou duas semanas sem falar com o
filho. Hoje conversam normalmente. Contudo, Daniel sente falta dos carinhos
que recebia do pai. Um carinho na cabeça, nas costas ou na panturrilha. Nunca
mais recebeu esse contato físico, mas agradece por ter sido a única coisa que
perdeu.
Convidei Davi para vir a minha casa em um domingo. Ele veio de carona
com o pai, mas ambos nunca haviam andado pelas redondezas, e se
perderam. Tive que relatar por telefone as instruções de como chegar à minha
residência.
— Você vira à esquerda na Perimetral, no semáforo ao lado dos blocos
do Goiânia 2. Segue a avenida por umas duas quadras até chegar numa
rotatória. Depois siga pela avenida do meio até chegar a uma outra rotatória.
Vire à esquerda na rua do meio…
— Logo depois, meus pais, que sempre tiveram uma cabeça bem
empreendedora, montaram uma pastelaria. Minha mãe era cozinheira. E foi um
sucesso. Era numa barraca, então na época a gente viajava para várias festas,
tipo festas de peão, de cidades, etc., pra poder montar a barraca e vender os
pastéis.
A igreja que frequentava era muito rígida. A primeira coisa que fez foi
parar de fumar. Com o tempo, começou a se vestir mais rigorosamente, com
roupas sociais, sem usar calças jeans ou bermudas (nem mesmo para dormir).
Foi um período incrível. Durante três anos, viveu uma intimidade muito
forte com Deus, intimidade que tem até hoje. Vivia verdadeiramente aquele
momento, e teve experiências memoráveis.
— Quais experiências?
Foi uma época áurea para a vida religiosa de Davi. Mas ele logo entrou
num conflito.
Contou para a mãe sobre ser gay quando ainda estava envolvido nos
projetos da igreja. Chorava bastante, e a mãe o olhava assustada. Ela
acolheu-o naturalmente, e o confortou.
Já o pai, sofreu muito. “Entre tantas pessoas no mundo, tinha que ser o
meu filho?”. No início achou que era preconceito da parte do progenitor. Mas,
com o tempo, percebeu que o pai tinha medo. Medo do que a sociedade e as
pessoas podiam fazer.
— Não! Você não é assim. Deus vai mudar sua história… — respondeu
o patriarca.
Com isso, Davi decidiu correr atrás do sonho de se tornar Hair Stylist.
Adorava mexer no cabelo da mãe e das tias, desde pequeno. Tinha tato, um
talento nato. Aos 15 anos, parou de trabalhar com os pais e estudou para ser
aquilo que queria ser.
E realmente tinha.
Davi costuma agradecer e Deus pelas portas que foram abertas. “E porei
nos seus ombros a chave da casa de Davi, que abre e ninguém fecha, que
fecha e ninguém abre” (Isaías 22:22). É uma passagem que carrega consigo,
no interior do seu ser.
— Eu acredito cegamente que a porta que Deus abre pra mim nem o
homem, e nem o Cão, é capaz de fechar. E a porta que Ele fecha, ninguém
abre, e por ela eu não passo.
Davi já teve fases em que usava “franjas loiras horrorosas”, que era
magro, mas sempre gostou de se vestir bem. Procura sempre estar bem
consigo mesmo.
Já era madrugada quando fomos dormir. Ele voltou para casa no outro
dia, depois de se despedir com um abraço.
7 - Samuel
É quatro anos mais novo que o irmão, com o qual vem cultivando uma
relação de amor e ódio desde pequeno. Muito mimado na infância, Samuel foi
caçula da família por quase uma década. Ganhava todas as atenções e colos.
Acostumou-se com mimos.
— Cresci estudando no mesmo colégio que minha mãe dava aula. Todo
mundo acha que isso é bom, porque você tem privilégios, mas na verdade é
uma cobrança muito maior nas suas costas. Eu não podia conversar tanto nas
aulas, as minhas notas tinham que ser melhores que as dos outros. A minha
vida inteira, eu tive que servir de exemplo.
“Será que aquele menino faz isso comigo porque ele me vê com outros
olhos? Será que eu tenho mesmo essa intimidade com aquele meu amigo?
Será que outros também têm essa intimidade?”
Porém, tem uma relação muito íntima com Deus. Considera-O como o
melhor amigo. Conversam constantemente. Sabia o quanto Deus o amava, o
quanto Jesus lutava ao lado dele.
E não contou foi por vontade própria. Foi obrigado a contar. Como a mãe
fazia parte do corpo docente da escola, tudo chegava até ela.
— Uai, se você nunca beijou ninguém, como você sabe que você é
gay?
— Sim.
Justificou-se dizendo que foi obrigado a contar, e que não queria ter
contado pra ninguém até ter uma independência maior.
Ficou abalado também quando foi conversar com o pastor da igreja, que
disse que o aceitaria independente do que ele fosse.
— Foi muito ruim ver que o meu próprio pastor, que também era pastor
dos meus pais, me apoiava e me entendia, enquanto os meus pais me
tratavam da forma que me trataram.
Durante 17 anos, ele lutou para ser um bom exemplo. Notas altas,
filho/aluno exemplar, medalhas de handebol e natação, trabalhos voluntários,
etc. E tudo isso desabou apenas porque ele se assumiu gay.
Sentiu muita falta de receber carinho dos pais. Todos os dias, à noite,
depois da janta, Samuel costumava deitar na cama dos pais para receber
carinho ou massagem até pegar no sono. Foi devastador perder essa
intimidade.
Samuel beijou um garoto pela primeira vez alguns meses mais tarde,
ainda com 17. Os pais começaram a afrouxar um pouco as rédeas, deixando o
filho sair com amigos próximos.
Seu segundo beijo foi numa balada alternativa, com um garoto que fez
questão de conversar com Samuel durante a festa inteira. Esse episódio
chegou via fofoca aos ouvidos dos pais, que novamente o privaram das coisas
e puxaram as rédeas com força.
— Passei por todas aquelas dificuldades, mas não sorrindo. Cada dia, a
gente mata um leão. E quando a gente resolve se assumir e lutar por isso, a
gente acaba matando uma savana de leões, todos os dias.
Hoje, a relação de Samuel com os pais é quase como era antes. Há um
carinho imenso, mas não como antigamente. Apenas a comunhão com o irmão
permaneceu a mesma.
8 - Sara
— Acho que sempre fui o filho homem do meu pai. — brincou, com o
fato de ter apenas outra irmã, mais velha.
Sara veio para Goiás há 15 anos, com a mãe e a irmã. O pai, oficial de
justiça, permaneceu em Cuiabá, por ser inviável sua transferência para terras
goianas. Ele visita a esposa e as filhas mensalmente, mas Sara ainda assim
sente falta dele. Foi mais ligada ao pai, diferente da irmã, que se conectou mais
com a mãe.
Jogou futebol na escola durante muito tempo, como pivô e como goleira.
Participou de muitos campeonatos e ganhou vários deles.
A primeira vez que Sara beijou uma garota foi aos três meses desse
namoro heterossexual. O beijo não atrapalhou seus sentimentos pelo
namorado, na época. Só terminaram anos depois. E o término a fez emagrecer
sete quilos, já que ela começou a jogar futebol todos os dias para não
permanecer triste.
Uma simples conversa entre duas colegas foi o suficiente para expor sua
vida afetiva.
— Nossa, minha ex-namorada já está com outra menina… — desabafou
uma garota, com sua colega de estágio.
Acontece que a colega de estágio era a irmã de Sara. Viu fotos, escutou
a história, e ficou perplexa. Descobriu que irmã era lésbica, e dividiu a
descoberta com a mãe.
— Não, não vou. Vou ver minhas primas, pai. Por que eu ia mentir se
você pode ir lá na casa delas perguntar?
O pai ficou calado. No dia seguinte, pediu desculpas e nunca mais falou
sobre a sexualidade da filha. Inclusive, a presenteia com camisetas do
Corinthians frequentemente.
Sara costuma reunir as amigas e ir a jogos oficiais de futebol. Adora
estar com os amigos, e depende muito deles para não se sentir sozinha. Ela
gostaria muito de apresentar as amigas à família, ou quem sabe até levar uma
namorada para um churrasco de domingo, ou comemorar algum aniversário.
Mas ela sabe que isso não é possível...
— Ainda bem que não sou a única errada aqui… — argumentou Sara.
Sara continuou levando sua vida afetiva em segredo. Era cada dia mais
difícil ser lésbica secretamente. Sempre gostou de relacionamentos, namoros
sérios. Escondê-los era complicado.
— Sem Ele, não sei o que seria de mim... Sei que Deus me ama, porque
se Ele não me amasse, eu não teria superados as coisas que eu passei.
Ela sente falta da linha de frente da música na igreja, mas não voltaria.
Tem medo de as pessoas apontarem o dedo, a acusarem de hipocrisia.
Hoje, Sara se aceita por inteira. Não tem receio de falar com Deus sobre
sua sexualidade.
Ela tem muita vontade de ter filhos e se casar com uma mulher. Não
costuma ver as amigas lésbicas indo à igreja ou escutando músicas cristãs, e
isso a deixa mal de certa forma. Mas ela é verdadeiramente cristã.
E realmente chorou.