Canto e A Teoria Da Complexidade
Canto e A Teoria Da Complexidade
Canto e A Teoria Da Complexidade
resumo Este trabalho traz uma reflexão teórica sobre o aprendizado do canto à luz da
reforma paradigmática proposta por Edgar Morin. Por meio de uma revisão
de cunho bibliográfico, objetiva-se identificar as contribuições da Teoria da
complexidade no processo de aprendizado do canto. Apoiado nas concepções do
pensamento complexo, busca-se estabelecer interfaces teóricas entre os conceitos
de pensamento sistêmico e os princípios dialógico e hologramático ao contexto
das aulas de canto, com o intuito de propor uma reflexão acerca das práticas
pedagógicas de tais professores. Tendo em vista a complexidade inerente ao termo
voz, as narrativas evidenciaram a necessidade de uma mudança de percepção
de uma reforma paradigmática, saindo de um modo de pensar cartesiano e indo
em direção a um pensamento da complexidade. Tal reforma de pensamento, por
estar diretamente relacionada a nossa aptidão de organizar o conhecimento, pode
propiciar aos referidos professores melhor compreensão do fenômeno cantar.
abstract This paper brings a theoretical reflection on the singing learning process under
the paradigmatic rebuilding proposed by Edgar Morin. Through a bibliographical
revision, it aims to identify the contributions of the complexity theory to the singing
learning process. Supported by the complexity thought conceptions, it seeks to
establish theoretical interfaces between concepts of systematic thought and the
dialogic and hologrammatic principles to the singing class context, with the intention
of proposing a reflection about the pedagogical practice of the teachers. In view of
the complexity of the term voice, the narratives have shown the need of a change of
perception under a paradigmatic rebuilding, leaving a Cartesian thought way toward
a complexity thought. This rebuilding of thought, being directly related to our aptitude
to organize knowledge, can provide these teachers a better comprehension about
the singing phenomena.
A
Introdução pesquisa sobre as bases teóricas que fundamentam as práticas educativas constitui um
dos principais objetos de estudo relacionados à reflexão acerca dos processos de ensino
e aprendizagem. No caso específico da educação musical, a investigação a respeito do
aprendizado do canto demanda tempo, esforço, boa vontade, humildade e rigorosidade por
parte do professor. Dentre os diversos assuntos que merecem especial atenção, o estudo da
voz como um fenômeno complexo representa um horizonte a ser explorado ou, ainda, um
desafio a ser enfrentado. Nesse sentido, analisar a compreensão do fenômeno cantar sob o
prisma de um novo paradigma do conhecimento é um desafio de extrema importância para os
profissionais da área.
Por muito tempo, o estudo do canto esteve compartimentado em diversas áreas do
conhecimento. Segundo os estudiosos da área, cabia ao otorrinolaringologista o “papel de
intervencionista, operador, frio e organicista e do fonoaudiólogo como psicologista, filósofo
e adaptador funcional” (Pinho, 1998, p. 44); e, aos professores de canto, a função de decidir
“o que será prioridade na sequência das ações ligadas ao programa curricular, definir as
questões técnicas e musicais, bem como orientar o repertório – conjunto de peças musicais
– a ser desenvolvido” (Braga, 2009, p. 13). Em síntese, as diversas áreas do conhecimento
pouco dialogavam entre si a respeito do referido objeto de estudo. Todavia, Gilman, Nix e
Hapner (2010), ao discutirem os limites de atuação entre fonoaudiólogos, professores de canto
e o especialista em voz cantada, afirmam que o caminho mais efetivo exigirá uma abordagem
integrada e ressaltam a importância de uma conduta interdisciplinar para falantes e cantores
com problemas de voz.
Estudos recentes revelam que o paradigma cartesiano de separação e compartimentação
dos conhecimentos é incapaz de prover respostas aos fenômenos complexos. Diante da
complexidade, “quando a simplicidade não funciona mais é preciso passar ao elo à espiral, a
outros princípios de pensamento” (Pena-Vega; Nascimento, 1999, p. 31).
No presente artigo, serão levantadas algumas considerações acerca do pensamento
complexo relacionadas ao aprendizado do canto. Vale ressaltar que o objetivo do mesmo,
no que se refere aos processos de ensino e aprendizagem, se fundamenta também nas
concepções sobre didática trazidas por Libâneo (1990, p. 26):
As discussões aqui propostas não perpassam pelo viés metodológico, ou seja, os meios
próprios de ensino, ou os passos a serem seguidos no processo de aprendizado de cada
corrente teórica dos mais variados estilos de canto, mas, sim, pelo viés que compreende a
didática como teoria geral de ensino.
Método, para Libâneo (1990, p. 150), é “o caminho para se atingir um objetivo”. Está
diretamente relacionado à organização de uma sequência de ações para se atingir um objetivo
específico; portanto, se refere a meios adequados para se realizar determinados objetivos. Cada
ramo do conhecimento desenvolve métodos que lhes são característicos; o professor, por sua
vez, é aquele que definirá o conjunto de ações, passos, condições externas e procedimentos,
os quais Libâneo (1990) denominou método de ensino. Sendo assim, no presente artigo, não
entraremos em questões que perpassam o caráter metodológico de ensino do canto.
Cabe dizer que não se pretende analisar especificidades das metodologias de ensino
do canto, tampouco dar todas as informações sobre cada estilo de canto em si, visto que “a
complexidade não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar
suas diversas dimensões” (Morin, 2005, p. 177). Objetiva-se, principalmente, levantar a questão
da complexidade do ensino do canto.
Sistema - que exprime a unidade complexa e o caráter fenomenal do todo, assim como o
complexo das relações entre o todo e as partes
Interação - que exprime o conjunto das relações, ações e retroações que se efetuam e se
tecem num sistema;
Organização - que exprime o caráter constitutivo dessas interações, aquilo que forma,
mantém, protege, regula, rege, regenera-se e que dá a ideia de sistema a sua coluna
vertebral. (Morin, 2005, p. 265)
Os termos supracitados formam um macroconceito, de modo que cada conceito não pode
ser dissociado dos demais, remetendo sempre uns aos outros. O Sistema, portanto, se constitui
numa ambiguidade, instável, em que todo e parte se associam e dissociam constantemente em
função das imprevisibilidades, instabilidades e polidependências que o constituem (Sá, 2013).
O pensamento sistêmico leva em conta a complexidade das relações existentes entre os
mais variados fenômenos, comportando incertezas e antagonismos. Em oposição ao paradigma
reducionista do conhecimento, que só reconhecia a ordem como princípio de explicação, o
pensamento sistêmico é constituído a partir das inter-relações associativas entre as noções de
sistema-interação-organização.
Complexus é o que está junto: é o tecido formado por diferentes fios que se transformaram
numa só coisa. Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade da
complexidade; porém, a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade
das complexidades que a teceram. (Morin, 2005, p. 188)
Em outras palavras, a compreensão das partes somente é possível a partir das suas
inter-relações com a dinâmica do todo devido à multiplicidade de elementos que interagem
simultaneamente. Na medida da sua integração, revelam a existência de diversos níveis de
realidade, o que possibilita novas visões sobre uma mesma realidade, já que “no nível do todo
organizado há emergências e qualidades que não existem no nível das partes isoladas” (Pena-
Vega; Nascimento, 1999, p. 28). Dando continuidade à reflexão, os autores afirmam:
Não apenas o todo é mais que a soma das partes (...) o todo é menos que a soma das
partes, porque tudo que é organizado tem obrigações, e tudo que é obrigação inibe
ou proíbe possibilidades que não podem ser exprimidas. Além do mais, percebemos
que tudo o que tem uma realidade para nós é, de certa maneira sistema. (Pena-Vega;
Nascimento, 1999, p. 28)
Assim, o princípio hologramático propõe uma explicação dos fenômenos de uma maneira
não linear, não dicotômica, e num movimento circular, no qual ora se vai das partes ao todo,
ora do todo às partes.
2. Voz: um A voz é o som mais complexo e sofisticado produzido pelo nosso corpo,
de tal modo voluntário que podemos modificá-lo e
fenômeno
exercer sobre ele controle. (Behlau; Rehder, 1997, p. 2)
complexo
A voz é uma expressão sonora absolutamente individual, podendo ser comparada a uma
impressão digital. Cada voz é única e possui peculiaridades, de modo que as características
vocais de uma pessoa se devem, em parte, às suas características anatômicas, como
tamanho do trato vocal, dimensão das pregas, formação da estrutura da face etc. No entanto,
a identidade vocal não se limita apenas às configurações anatômicas, já que a história pessoal,
os relacionamentos interpessoais, a idade, as condições ambientais, a saúde física, a situação
e o contexto de comunicação são fatores determinantes na constituição da identidade vocal
de cada um.
A voz é também um meio de comunicação capaz de promover a inter-relação entre os
seres humanos; “cantar, emitir sons ou palavras que se sucedem através de modulações
musicais da voz é, para o homem, utilizar-se do seu primeiro instrumento de comunicação
como expressão artística sonora” (Behlau et al., 2010, p. 334).
Pinho (2001, p. 2), ao refletir sobre a constituição da voz, afirma que “os aspectos
envolvidos na fonação são: anátomo-fisiológicos, psicossociais e ambientais”. De acordo com
essa mesma perspectiva, Behlau e Pontes (1999, p. 15) ressaltam que “a voz conta com uma
3. Ensino do Os primeiros professores de canto dos quais se tem registro foram os castrati. “Na
canto: breve Itália [...] os castrati dominaram o cenário vocal. Como professores e intérpretes”. De acordo
panorama com Sanford (1979 apud Pacheco, 2006, p. 47), “eles foram largamente responsáveis pelo
histórico desenvolvimento dos métodos vocais italianos dos séculos XVII e XVIII”. Foram eles os pioneiros
responsáveis pelas primeiras tentativas de sistematização de uma didática vocal. Sua didática
se baseava em um conhecimento técnico vindo da sua experiência como cantores, ou seja,
A arte de cantar durante os séculos XVII e XVIII era aprendida principalmente através
da imitação (...) o mestre de canto não tinha vastos conhecimentos sobre fisiologia do
mecanismo vocal; suas convicções eram baseadas primeiramente em suas observações
empíricas. (Pacheco, 2006, p. 47)
No século XIX, o cenário vocal muda completamente os últimos castrati dão adeus à
cena lírica e já não são mais os principais professores, nem são os responsáveis pelas
inovações técnicas que marcaram o começo desse século. Começa a se desenvolver
uma didática vocal baseada em princípios da fisiologia vocal. (Pacheco, 2006, p. 47)
Em 1854, Manuel Garcia, por meio de uma autolaringoscopia, que consistia na utilização
da luz solar e da colocação sequencial de dois espelhos de dentistas sobre uma haste, se
torna a primeira pessoa a visualizar a laringe e a porção superior da traqueia de um sujeito vivo
(Urbina; Trullén, 2006). Após essas observações, Garcia começa a descrever os elementos
da fisiologia vocal e os mecanismos vocais. Segundo suas observações, quatro aparelhos
distintos combinavam suas ações e eram responsáveis pela produção vocal; todavia, apesar
de trabalharem combinados, cada um desses aparelhos seria totalmente independente do
restante; são eles: o fole (os pulmões), o vibrador (a glote), o refletor (a faringe) e o articulador
(órgãos da boca) (Garcia, 1894, p. 1).
No final do século XX, o avanço da informática e a criação de aparelhos de medição
vocal propiciaram a realização de exames videolaringoscópicos, promovendo um boom nas
descobertas científicas relacionadas ao funcionamento da prega vocal (Vidal, 2000). Surge,
então, “uma nova tendência de pedagogia vocal, profundamente engajada com as pesquisas
científicas sobre voz cantada” (Sousa; Andrada e Silva; Ferreira, 2010, p. 318).
O legado dos castrati, somado aos avanços da ciência na área da fisiologia vocal, da
acústica e da fonética da voz cantada, possibilitou o desenvolvimento sem precedentes dos
estudos em canto nos últimos séculos.
(Behlau et al., 2010, p. 35). Piccolo (2006, p. 4) acrescenta que “o cantor popular na maioria
das vezes, aprende seu ofício ouvindo e imitando”. Sousa (2013, p. 136) ressalta o fato de
que “não pode haver padronização da voz, mas a busca de uma marca vocal pessoal bem
definida”, coadunando com as afirmações de Elme (2015) acerca das características do canto
popular: recursos vocais desenvolvidos a partir do canto falado, a genealogia da voz, que
consiste em processos imitativos feitos por um cantor iniciante e a posterior transformação
desses elementos estilísticos, o gesto interpretativo, que consiste na impressão de traços
da personalidade do artista nas obras, os gestos vocais, que se tornam como que marcas
registradas daquele timbre do cantor, entre outros.
O canto erudito, por sua vez, “pressupõe necessariamente a existência de um treinamento
vocal prévio” (Behlau et al., 2010, p. 337), sendo caracterizado, resumidamente, por “um
controle respiratório desenvolvido, presença de formante do cantor e valorização do vibrato”
(Behlau et al., 2010, p. 337). Piccolo (2006, p.68) afirma que o canto lírico inclui “domínio do
legato, um tipo específico de vibrato, a grande projeção, o equilíbrio ressonantal, a ‘neutralidade’
de vogais”. Miller (1996), ao discorrer sobre canto erudito, ressalta a importância do manejo
respiratório, da dicção e do legato. Outro fator envolvido na técnica do canto erudito é “a
importância da técnica de abertura faríngea, ou gola aperta (garganta aberta), este é um dos
raros aspectos sobre o qual todos os pedagogos estão de acordo” (Sacramento, 2009, p. 129).
O belting, incluso na categoria CCCA, tem como características: “voz metálica, com
emissão frontal, estridente com alto nível de nasalidade” (Popeil, 2007; Miles; Hollein, 1990
apud Cardoso; Fernandez, 2015, p. 52), e “posição de laringe alta e atraso de passagem de
‘voz de peito’ para ‘voz de cabeça’ em relação às notas usualmente referenciadas para cada
naipe” (Cardoso; Fernandez, 2015, p. 52). Estilisticamente, o belting prima pela clareza do texto
teatral, “consiste numa expressão vocal da ‘fala-cantada’. Estamos falando o texto, mas uma
fala que se expressa em frequências sonoras específicas, as notas musicais” (Borém, 2010,
p. 236).
Tanto a afinação quanto a desafinação devem ser analisadas a partir não apenas do ponto
de vista acústico, mas também do cultural, sendo esse último o fator o mais influente na
definição de ambos os termos.
Nessa perspectiva, dois conceitos são importantes para a compreensão dos fenômenos
psicoacústicos: o loudness, que é “a avaliação que um indivíduo faz de um som de acordo
com a intensidade do mesmo” e o pitch, “que nos permite distinguir e classificar as sensações
auditivas, de acordo com a frequência dos mesmos” (Nepomuceno, 1994, p. 82). Vale ressaltar
que loudness não é sinônimo de intensidade, assim como pitch não é de frequência. Ambos
se referem às respostas discriminatórias de frequência e intensidade feitas por um observador
humano de audição normal. A compreensão desses conceitos é importante, pois a frequência
independe da intensidade, mas o pitch depende.
Em uma experiência feita com cantores treinados foi solicitado que estes reproduzissem
o tom de um diapasão. À medida que o diapasão era colocado mais próximo da orelha dos
cantores, aumentando, assim, a intensidade, o pitch da voz dos cantores baixava ligeiramente,
demonstrando que o tom era “percebido” por eles como mais grave (Nepomuceno, 1994).
Em outras palavras, quanto maior for a sensação de intensidade percebida pelo cantor, mais
grave o pitch tende a ser, assim como, quanto menor for a sensação de intensidade, mais
agudo o pitch tende a ser. “Não há, portanto, uma discriminação absoluta de frequências,
mas um julgamento relativo de pitch” (Nepomuceno, 1994, p. 90).
Um termo comum utilizado entre os músicos é o de semitonado. Segundo Sobreira
(2001, p. 87), ele é usado para “caracterizar desvios leves com relação à afinação esperada,
sejam eles para baixo ou para cima”. Elencando tal afirmação com os conceitos acima
apresentados de percepção de pitch, podemos levantar a questão de que nem sempre aquilo
que o professor de canto considera como semitonação realmente possa sê-lo.
Uma vez que não há uma discriminação absoluta de frequências, mas, sim, julgamentos
relativos de pitchs, e, tendo em vista que o pitch é diretamente influenciado pelo loudness,
as oscilações de frequência percebidas pelo professor como semitonação podem, em
algumas situações, ser apenas variações de pitch, e não de frequência. A sensação auditiva
do professor pode ser de que a afinação (frequência) esteja abaixo ou acima da esperada, no
entanto, muitas vezes, o que pode estar variando é o pitch e não a frequência propriamente
dita.
Morin (2003, p. 74) afirma que o princípio dialógico “une dois princípios ou noções em
face de se excluírem um ao outro, mas que são indissociáveis em uma mesma realidade”.
Nas afirmações anteriores pode parecer contraditório a frequência em dado momento estar
correta e a percepção auditiva do professor (pitch) divergir desta. No entanto, “a dialógica
nos permite aceitar racionalmente a associação de noções contraditórias para conceber um
fenômeno complexo” (Morin, 2003, p. 74).
A voz, como fenômeno complexo, não pode ser explicada por meio de estratégias
reducionistas; reduzir a afinação vocal apenas à percepção auditiva do professor, ou às
análises acústicas, ou mesmo a fatores culturais, certamente, comprometerá a compreensão
da mesma. Ao se utilizar do paradigma cartesiano, fragmentado, dualista, dicotômico, nesse
caso, afinado ou semitonado, o professor de canto pode negligenciar o todo da emissão
vocal e, a partir da análise de um fragmento do que é cantar, muitas vezes, conclui que todo
o ato se torna impossível.
Muitos outros fatores aqui não mencionados estão imbricados no fenômeno da
frequência vocal. Só para citar outro exemplo, Sunberg (2015, p. 84) afirma que “a frequência
de fonação é determinada principalmente pela tensão e pela espessura das pregas vocais,
ou seja, por sua elasticidade e massa vibrante”. Assim, a fisiologia e a anatomia também
influenciarão diretamente a emissão correta da frequência, um mau funcionamento muscular
afetará o controle da frequência e, consequentemente, a afinação.
É preciso que haja, por parte do professor, uma atitude tanto dialógica, ao levar em conta
as contradições presentes na emissão vocal, como hologramática, sempre contextualizando
os fenômenos através de uma interligação dinâmica entre o todo e as partes.
Sob o ponto de vista da complexidade, “as partes são ao mesmo tempo mais que as
partes, e as partes são eventualmente mais que o todo e o todo e menos que o todo” (Pena-
Vega; Nascimento, 1999, p. 262). Assim, o professor, ao observar um determinado problema de
afinação, deve levar em conta não apenas a frequência emitida em si, mas contextualizar o todo
da emissão vocal na procura de uma solução ante essa dificuldade do aluno. Ao interligar as
partes e analisar as interações existentes no processo, novas possibilidades de compreensão
e novas estratégias de ação podem ser tomadas no sentido de propiciar o aprendizado.
Outro exemplo está relacionado à dimensão técnica e estilística da voz. Seja qual for o
“tipo” de canto, todos eles pressupõem um desenvolvimento técnico específico característico
daquele estilo. Consequentemente, a forma de treinamento vocal será diferente para cada
estilo. Sob essa ótica, o treinamento de canto popular certamente divergirá do treinamento
de canto erudito ou do belting, visto que “a técnica vocal ao ser desenvolvida, vai definindo
características tímbricas que conduzem a uma estética específica” (Piccolo, 2006, p. 69).
Portanto, ao se deparar com um aluno de canto popular, por exemplo, o professor deverá
estar ciente de que os estilos são diferentes e o treinamento a ser empregado também deverá
ser diferenciado. Deverá compreender, também, as articulações e interações desse canto em
cada contexto histórico e com cada aluno em específico. Ensinar um aluno de gospel, por
exemplo, não será a mesma coisa que ensinar um aluno que canta sertanejo, mesmo que
ambos se enquadrem na categoria de canto popular brasileiro (Piccolo, 2006; Sousa, 2013),
uma vez que “o canto popular brasileiro possui padrões bem diversos até de outros cantos
populares como o gospel e o sertanejo, por exemplo” (Elme, 2015, p. 214).
O conceito de pensamento sistêmico pode enriquecer a percepção do professor sobre
a forma de ensinar diferentes estilos. Ao compreender que “a ideia sistêmica se opõe a ideia
reducionista” (Morin, 2003, p. 72), em que o ensino é estruturado segundo uma visão racionalista
e “o homem é reduzido a apenas uma dimensão, a apenas uma disciplina” (Santos, 2010, p.
19), o professor de canto passa a se abrir a novos estilos, a outras formas de ensinar, a outras
questões que podem estar além de sua formação técnica.
Sá (2013, p. 132) afirma que “o sistema não pode ser uma totalidade fechada em relação
ao seu entorno ou a outros sistemas”. O professor de canto não pode se fechar à diversidade de
estilos de canto presentes no contexto brasileiro, não pode ignorar as particularidades de cada
um deles, e, ainda que opte por um lócus de produção específico, deve estar ciente de que as
abordagens por ele utilizadas nesse lócus não são universais e podem não funcionar em outros
estilos. Ainda que alguns recursos técnicos utilizados em um estilo sejam semelhantes aos de
outro estilo, não significa que as práticas empregadas sejam iguais (Piccolo, 2006). Ao levar
em conta o complexus, os diferentes fios que se entrecruzam e que formam aquela voz, aquele
estilo, e abarcar os mais diversos saberes dialogando com a diversidade das complexidades,
o professor poderá propiciar um desenvolvimento técnico satisfatório a seus alunos.
Estabelecer diálogos entre nossas mentes, nossas ideias, nosso corpo, nossa cultura,
nossa sociedade é algo indispensável para enfrentar os problemas, sejam em sala de aula,
sejam na vida. Para isso, se faz necessário um pensamento que caminhe na direção da
complexidade.
Considerações Por muito tempo, o aprendizado de música, de forma geral, esteve atrelado a um
finais paradigma cartesiano dicotômico de pensamento. No caso específico do canto, as implicações
dessa concepção são ainda mais sérias, pois o ato de cantar envolve processos complexos
(funções cognitivas, físicas, emocionais e acústicas, internas e externas). Ao cantar, o sujeito
se defronta com uma série de sensações e percepções que irão influenciar diretamente a sua
execução vocal.
No canto o corpo é o próprio instrumento e, como cada indivíduo é único, não há como
apresentar soluções por meio de receitas ou fórmulas prontas. Nesse sentido, a Teoria da
complexidade abre perspectivas para uma nova maneira de olhar, ensinar e pesquisar. Ao
propor uma mudança de percepção e uma reforma do pensamento, a complexidade, ao
mesmo tempo em que valoriza as certezas, leva em conta também as incertezas. Por meio
de uma visão sistêmica de como o conhecimento se constrói, a complexidade considera os
opostos, as contradições, as interações que permeiam a vida.
Segundo Morin (1998, p. 273):
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Wanderson Moura Costa é graduado em Música Licenciatura com habilitação em ensino do Canto
pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG), pós-graduado
em Formação Integrada em Voz (FIV) pelo Centro de Estudos em Voz (CEV) e mestrando em Música na
Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG).
Claudia Regina de Oliveira Zanini é Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Goiás (UFG), Mestre em Música, Especialista em Musicoterapia em Educação
Especial e em Saúde Mental e graduada em Piano pela Escola de Música e Artes Cênicas da UFG (EMAC/
UFG). Pesquisadora e professora do Curso de Musicoterapia e do Programa de Pós-Graduação em
Música da EMAC/UFG. Presidente da Comissão de Pesquisa e Ética da World Federation of Music Therapy
(WFMT). Coordenadora do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Envelhecimento (NEPEV-UFG).