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EM PAUTA P OR UMA CRÍTICA DA ECONOMIA LIBIDINAL

Por uma crítica da economia libidinal*


Vladimir Pinheiro Safatle**

Eu não posso imaginar uma cultura que socializa sua juventude damento dos processos de racionalização social a partir de
de tal maneira que a faça duvidar continuamente problemas ligados à socialização do desejo. É tendo tal sub-
de seu próprio processo de socialização. missão em vista que Freud pode fazer afirmações arrisca-
Richard Rorty, 1989, p. 87. das como: “mesmo a sociologia, que trata do comporta-
mento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais
D a n e c e s s i d a d e d e u m a ec on om i a l i b i d i n a l que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas
ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natu-
No lugar da questão sociológica a respeito dos modos de reza” (Freud, 1999d, p. 194).
integração social e de conflito social, aparece a questão referen- De fato, uma afirmação desta natureza é temerária
te à influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução por parecer tributária de alguma forma de psicologicismo
econômica – ou seja, a aproximação possível entre psicanálise e selvagem que nos levaria a um certo imperialismo psicana-
análise do sistema econômico (Honneth, 1991, p. 101). lítico que sempre interpreta a multiplicidade dos fatos cul-
turais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo
Esta frase é, na verdade, o núcleo de uma certa crítica e das teorias sobre a sexualidade infantil. Psicologicismo
de Axel Honneth a Theodor Adorno. Ela consiste em afir- ainda mais temerário por parecer nos induzir a tratar o
mar que o projeto adorniano seria acometido por algo co- campo social de maneira atomizada através da hipóstase de
mo um déficit sociológico visível na pretensa impossibili- funções intencionais particularistas (o desejo) como chave
dade do filosofo de Frankfurt fornecer uma verdadeira compreensiva de processos sociais complexos.
reflexão sobre o sentido e a dinâmica propriamente social Entretanto, devemos procurar melhor o que está em
dos processos de racionalização. Impossibilidade que cres- jogo nesta tendência psicanalítica, presente desde Freud, de
ceria de maneira proporcionalmente inversa a uma espécie operar no ponto exato de contato entre estruturas da sub-
de superávit psicanalítico. Como se a psicanálise tivesse im- jetividade e modos de interação social. Exigência resultan-
pedido Adorno de levar em conta a autonomia sistêmica te da certeza de que um campo é sempre exposição sinto-
das múltiplas esferas de valores que compõem a vida social mática do outro e de que, se a cura sempre obedece à
com suas expectativas próprias. particularidade do caso, ela não pode, porém, deixar de le-
No entanto, a decisão adorniana em sustentar a rele- var o sujeito a reconfigurar seus vínculos com a ordem só-
vância desta “influência recíproca entre pulsões individuais cio-simbólica. Pois, a seu modo, a psicanálise acaba por rea-
e reprodução econômica” talvez nos indique algo mais do lizar a intuição weberiana a respeito da necessidade de
que um mero déficit sociológico. Talvez este seja o resulta- explicar como a racionalidade dos vínculos sociais em ge-
do natural da fidelidade a uma intuição já presente em mo- ral e dos papéis econômicos em particular depende funda-
mentos centrais dos ditos “textos sociológicos” de Freud, a mentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos
saber, a compreensão de que a análise dos processos de ra- tipos de conduta. Não se trata de incorrer em alguma es-
cionalização social deve, necessariamente, submeter-se a pécie de déficit sociológico, mas de insistir que nenhuma
considerações mais amplas sobre a ontogênese das capaci- perspectiva sociológica pode abrir mão de uma análise das
dades prático-cognitivas dos sujeitos. Ontogênese esta que disposições subjetivas que implica a compreensão da ma-
é, por sua vez, indissociável da análise da dinâmica confli- neira com que os sujeitos investem libidinalmente os vín-
tual dos processos de socialização do desejo no interior de culos sociais mobilizando, com isto, representações imagi-
esferas de interação como a família, as instituições sociais, nárias e expectativas de satisfação que muitas vezes acabam
os aparatos midiáticos de massa e o Estado. Ou seja, em úl- por inverter o sentido de determinações normativas que vi-
tima instância, trata-se de propor a compreensão do fun- sam racionalizar tais vínculos.

* Uma versão preliminar e bastante reduzida deste artigo apareceu inicialmente sob o título de “Depois da culpabilidade” em Dunker C. e Aidar, J. (org.)
(2005). Zizek crítico: Política e psicanálise na era do multiculturalismo, São Paulo: Hacker.
** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006) e Lacan (Publifolha, 2007).

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Pode parecer que fazer afirmações desta natureza im- são sistemas causais irredutivelmente individuais e que
plica tentar submeter o quadro compreensivo das estrutu- através da socialização de tais pulsões e desejos internaliza-
ras de interação social, com suas exigências de legitimidade mos processos gerais de orientação do julgamento e da
e aspirações de validade, a um cálculo de interesses baseado ação. Ou seja, através de tais processos de socialização in-
na lógica utilitarista da maximização do prazer e do afasta- ternalizamos padrões gerais de racionalidade que tendem a
mento do desprazer. De fato, todo leitor de Freud sabe co- guiar o comportamento social. Neste sentido, é incorreto
mo ele procura constituir os protocolos de uma verdadeira afirmar que pulsões e emoções não explicam nada.
econômica. Desde o momento em que procura derivar a di- É fato que Lévi-Strauss e vários outros gostariam de
nâmica geral dos processos de julgamento de exigências ge- simplesmente dizer, por exemplo, que o desejo é um efeito
rais de maximização de prazer e de afastamento do despra- do universo simbólico social, uma disposição produzida in-
zer, Freud parece mostrar como está disposto a submeter tegralmente por ele, e não sua causa. Assim, eles podem se
expectativas prático-cognitivas a um cálculo econômico de contentar com explicações sistêmicas e estruturais que não
interesses no interior do qual um raciocínio meramente uti- precisam levar em conta a maneira com que os sujeitos for-
litarista desempenharia o papel de fundamento. necem uma perspectiva distinta da perspectiva meramente
Mas há algumas precisões importantes a serem feitas a estrutural de significação de fenômenos sociais. Neste sen-
respeito desta econômica. A primeira é que a psicanálise tido, podemos afirmar que o encaminhamento freudiano é
trouxe uma noção absolutamente particular de cálculo de de fato radicalmente “psicologicista”, mas, por isso, ele é
interesse, uma noção profundamente não-utilitarista. É ten- mais “materialista” do que o de seus críticos. Pois ao colo-
do isto em vista que psicanalistas como Jacques Lacan insis- car como tarefa fundamental a possibilidade de considera-
tiram que a inteligibilidade da dinâmica pulsional dos sujei- ções sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas
tos não está vinculada à lógica polar do prazer/desprazer. Tal dos sujeitos, ao afirmar que há uma ontogênese social de
inteligibilidade exige a introdução de um outro campo con- tais capacidades que se revela na compreensão das dinâmi-
ceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula as cas de socialização, ela afirma o caráter empírico (no sen-
distinções estritas entre prazer e desprazer. Este campo or- tido de absolutamente não-transcendental) das estruturas
ganiza-se através de uma noção bastante peculiar de “gozo”. gerais daquilo que estamos dispostos a contar como racio-
Neste contexto, “gozo” não significa o usufruto dos bens dos nal. Há uma gênese empírica das estruturas de orientação
quais sou proprietário, mas algo totalmente contrário, uma do que aspira ser visto como ação racional. A questão freu-
perspectiva de satisfação que não leva mais em conta os sis- diana consiste em saber quais são os protocolos funda-
temas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta con- mentais de determinação de tal gênese.
tinuamente com experiências disruptivas, ou ao menos com A natureza desta empiricidade fica mais evidente se
a “retórica” da transgressão (o que não deve nos estranhar, já lembrarmos que, para Freud e para grande parte da poste-
que uma das fontes desta teoria do gozo vem exatamente da ridade psicanalítica, os dispositivos de formação e de indi-
teoria da festa com fato social total em Bataille, Roger Cail- viduação presentes nas dinâmicas de socialização são legí-
lois e na Escola de Sociologia)1. Como veremos, isso talvez veis a partir daquilo que compreendemos como sendo
nos explique uma certa tendência contemporânea em utili- processos de identificação e de investimento libidinal. Até
zar o gozo como conceito chave para compreender a econo- porque socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar
mia libidinal própria à sociedade de consumo. a partir de tipos ideais que servem de modelos de identifi-
Mas há um problema de fundo que subsiste. Através cação e de pólo de orientação para os modos de desejar, jul-
da transformação de estruturas pulsionais e funções inten- gar e agir. No entanto, essa identificação a tipos ideais não
cionais como o desejo em solo privilegiado de inteligibili- pode ser descrita simplesmente a partir de considerações
dade de processos sociais, continuamos assumindo o risco sobre as pressões de conformação presente em núcleos ele-
de construir uma visão atomizada das estruturas de intera- mentares de interação social (família, instituições sociais,
ção social. Perspectiva de transformação de uma teoria pul- medias). Freud compreendeu que as estruturas elementa-
sional em campo de inteligibilidade de processos sociais res que orientam o que está em jogo nesses núcleos de in-
que causava repulsa a pensadores como, por exemplo, teração são figuras privilegiadas da razão. As exigências de
Claude Lévi-Strauss, para quem: “Na verdade, as pulsões e racionalidade presentes nestes núcleos são, necessariamen-
as emoções não explicam nada; elas sempre resultam, seja te, manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a
da potência do corpo, seja da impotência do espírito. Con- contar como racional. Contudo, Freud nunca deixará de
seqüências, nos dois casos; elas nunca são causas” (Lévi- colocar a questão “O que é necessário perder para se con-
Strauss, 1962/2002, p. 105). Mas uma afirmação como essa formar a exigências de racionalidade presentes em proces-
de Lévi-Strauss não leva em conta que podemos aceitar sem sos hegemônicos de socialização e de individuação?”, ou
problemas e, ao mesmo tempo, que pulsões e desejos não ainda, “Qual o preço a pagar, qual o cálculo econômico ne-

1 Ver, por exemplo, Caillois, 1950.

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cessário para viabilizar tais exigências?”. Pois devemos nos mite a Freud insistir que aquele que suporta a função pa-
perguntar o que deve acontecer ao sujeito para que ele pos- terna não é apenas representante da lei da família, mas de
sa se pautar por um regime de racionalidade que impõe pa- uma Lei que determina o princípio geral de estruturação
drões de ordenamento, modos de organização e estruturas do universo simbólico. Não se trata de tentar derivar as or-
institucionais de legitimidade. Neste ponto, vale a pena vol- dens simbólicas a partir do núcleo familiar, mas de insistir
tarmos a algumas elaborações fundamentais presentes no no fato de que problemas de socialização do desejo no in-
texto freudiano a fim de encaminhar melhor qual pode ser terior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou se-
uma economia libidinal à altura dos problemas da socie- ja, o núcleo familiar, trazem necessariamente tensões de so-
dade contemporânea. cialização em esferas mais amplas. Isto abre o caminho para
Freud afirmar que o sentimento de culpa: “seria o mais im-
P r e s s u p o s t o s s o c i a i s d o s up e r eu f r eu d i a n o portante problema no desenvolvimento da civilização”
Um dos principais conceitos criados por Freud para a (Freud, 1999c, p. 97), e não simplesmente no desenvolvi-
análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, mento da família burguesa. Por outro lado, note-se que
através do mesmo dispositivo, a gênese da consciência mo- Freud não ignora a dependência das configurações fami-
ral, do sentimento de culpa, dos ideais sociais do eu e da in- liares a estruturas sociais mais amplas. Porém, quem diz de-
ternalização da lei simbólica, Freud deparou-se com um pendência não diz subsunção simples.
processo no qual socialização e repressão convergiam em De fato, tudo isso é praticamente um lugar-comum
larga medida. Hoje, as páginas do Mal-estar na civilização atualmente. Mas algumas modificações substanciais ocor-
que tratam de tal imbricação são arquiconhecidas. “Toda reram em certos processos de socialização e elas fazem com
cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão que o problema do supereu ganhe hoje novas configura-
e a renúncia pulsional” é uma frase que ressoou como pro- ções. Este ponto não deve nos estranhar, pois, se o supereu
grama crítico durante todo o século XX. tem sua gênese exatamente a partir dos processos de socia-
Grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados lização, se ele é: “uma manifestação individual ligada às
sociais de uma relação ambivalente que se dá inicialmente condições sociais do edipismo” (Lacan, 1966, p. 136),3 en-
no interior da família burguesa; relação marcada pela so- tão ele necessariamente se modificará à medida que tais
breposição entre rivalidade e identificação que aparece de processos se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jac-
maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que ques Lacan e a Escola de Frankfurt perceberam claramen-
sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e te ao pensar as incidências clínicas de uma modificação his-
como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se tórica maior bem definida por críticos conservadores da
necessário que o sujeito se identifique exatamente com modernidade: o advento de uma espécie de “sociedade não
aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exi- repressiva” vinculada à universalização das práticas de con-
gências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica sumo. Isso terá implicações na configuração dos modos de
de uma “instância moral de observação”, no caso, o supe- identificação social com suas conseqüências. Para entender
reu resultante desta identificação parental. Isso faria com o significado e alcance de tais elaborações, valeria a pena
que toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional darmos um passo para trás.
provocasse, necessariamente, um sentimento de culpa ad- Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de
vindo da pressão sádica do supereu sobre o eu. Sentimen- certas articulações possíveis entre Freud e Max Weber co-
to de culpa que não deixa de provocar, como benefício se- mo teóricos da modernização, dos processos de racionali-
cundário, um modo neurótico de gozo. zação e de suas conseqüências. Não deixa de ser tentador
Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente lembrar como esse supereu que articula uma consciência
opera com uma perspectiva unívoca na compreensão da moral fundada na repressão de moções pulsionais teve, por
multiplicidade das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a exemplo, uma função social preciosa no desenvolvimento
pressuposição de uma espécie de princípio de articulação do capitalismo como sociedade de produção. Isto nos per-
estrutural entre a autoridade familiar e a autoridade que mite afirmar que a economia libidinal da sociedade de pro-
suporta outros vínculos sociais, como os vínculos religio- dução teria alimentado uma instância psíquica como o su-
sos ou políticos.2 Tal articulação entre esferas aparente- pereu repressor, o que pode nos explicar certos motores de
mente autônomas de valores (família, religião, Estado) per- sua permanência.

2 Isto levará Freud, por exemplo, a afirmar que “A exploração psicanalítica do indivíduo ensina com uma insistência particular que o deus de cada homem é
à imagem do pai, que a relação pessoal a Deus depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última, e que Deus não é outra
coisa que um pai elevado ao nível superior” (Freud, 1999a, p. 177). Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas: “Há nas massas humanas uma
forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar... A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas. Trata-se da nos-
talgia do pai” (Freud, 1999 e, p. 217). Daí a fórmula canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indivíduos que in-
troduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base desta comunhão, identificaram-se uns aos outros no eu” (Freud, 1999d, p. 74).
3 O que fica muito claro quando Freud afirma que “o supereu adota também as influências de pessoas que tomaram o lugar dos pais, como educadores, mes-
tres, modelos ideais. Ele normalmente se distancia cada vez mais dos indivíduos paternos originários e advém mais impessoal” (Freud, 1999d, p. 70).

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Weber, ao insistir que a racionalidade econômica de- róticos, mas que os ideais socioculturais responsáveis por
pendia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em processos de socialização baseados em identificações ten-
adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca ha- dem a produzir estruturas libidinais neuróticas.
veria capitalismo sem a internalização psíquica de uma Tais considerações demonstram a função do recurso à
ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao psicanálise no interior de uma teoria dos processos de mo-
cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no dernização e racionalização. Costumamos aceitar tacita-
calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no éthos pro- mente que agir e julgar racionalmente significa, entre outras
testante da acumulação de capital e do afastamento de to- coisas, determinar a conduta a partir de práticas e institui-
do gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o ca- ções que aspiram validade universal. A ação racional pres-
pitalismo como sociedade de produção era um trabalho supõe, mesmo que como horizonte regulador, a possibili-
que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, dade de institucionalização de critérios de justificação
mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram legitimados pelo assentimento não coercivo. Entretanto, tal
nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação possibilidade já deve estar atualmente em operação, mesmo
irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua tarefa” que de maneira imperfeita (ou ainda ambivalente), através
(Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma “sanção de instituições e práticas que socializam sujeitos cujas ações
psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satis- e julgamentos aspiram racionalidade.
feita através da realização de um trabalho como fim em si, As colaborações maiores de Freud consistiriam, neste
ascético e marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a caso, em insistir que tais processos de socialização se dão ini-
insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção cialmente no interior da família e, por isto, são marcados pe-
de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afasta- los conflitos e representações imaginárias próprias ao uni-
mento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, verso familiar; um universo em que a demanda de amor e
completamente destituída de qualquer caráter eudemo- as exigências de submissão estão absolutamente imbricadas.
nista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade des- Por isso, eles são, ao mesmo tempo, realização de aspirações
te processo de racionalização do trabalho, ao menos a par- racionais e produção de instâncias repressivas que agem in-
tir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode nos dividualmente nos sujeitos através da culpabilização de exi-
indicar seu caráter superegóico. gências pulsionais. Toda socialização é normativa, ela é nor-
Weber nos indica claramente vários traços superegói- matividade que se impõe à vida com suas exigências de
cos desta Lei da ética protestante do trabalho: a transfor- satisfação pulsional. Max Weber não havia mostrado outra
mação do Pai Celestial que suportava a Lei no Novo Testa- coisa ao insistir que a gênese da ética protestante do traba-
mento em um Pai Severo superegóico: “Ser transcendental, lho na constituição da racionalidade do capitalismo era so-
além do alcance do entendimento humano” (Weber, 2001, lidária do ascetismo e da restrição ao gozo.
p. 83), um trabalho feito como vocação que é resposta à voz Contudo, conhecemos várias críticas à plausibilidade
do Outro (no caso, o chamado de Deus),4 a culpabilização desta “hipótese repressiva”, sendo que uma das principais
de todo prazer sensível (rebaixamento do sensível que Freud vem de Michel Foucault. Em História da sexualidade, Fou-
compreendeu como figura maior da renúncia pulsional) e a cault não deixa de criticar o vínculo entre ascetismo e con-
entificação obsessiva de um “autocontrole sereno” como solidação da sociedade capitalista de produção. Ele insiste
ideal de conduta (p. 95). que as tecnologias de si próprias ao mundo burguês mo-
Sendo assim, se a lei moral que sustenta a disposição derno não podem ser compreendidas como simples dispo-
dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta econômica sitivos repressivos montados contra um corpo libidinal me-
é uma figura do supereu,5 então a economia libidinal do ca- tafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria
pitalismo como sociedade de produção seria impensável como base para as operações do poder. Ao contrário, deve-
sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica que ríamos: “abandonar o energitismo difuso que sustenta o te-
só poderia pensar seus processos de socialização através da ma de uma sexualidade reprimida por razões econômicas”
instrumentalização repressiva do sentimento de culpa. E (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender
Freud não teme em falar neste caso de “patologias das co- que a modernidade foi um longo processo de constituição
munidades culturais” (Freud, 1999c, p. 505) (Pathologie (e não de repressão) da sexualidade, implementação de um
der kulturellen Gemeinschaften). O que não significa que poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de inci-
todos os sujeito de uma determinada sociedade serão neu- tação a modos de investimento libidinal reconhecidos so-

4 Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais que indicam a redução da Lei à dimensão do supereu. Este caráter superegóico da
vocação fica claro em afirmações como: “Contra as dúvidas religiosas e a inescrupulosa tortura moral, e contra todas as tentações da carne, ao lado de uma
dieta vegetariana e de banhos frios, prescreve-se: ‘trabalha em tua vocação’” (Weber, 2001, p. 126)
5 Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da consciência moral (Gewissen) era necessariamente derivada do fato empí-
rico da ameaça de castração vida do pai e do medo da perda do amor paterno. De onde se segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto do sen-
timento de rivalidade em relação ao pai. Neste ponto, remeto ao meu Safatle, 2003.

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cialmente como figuras de resistência; já que o verdadeiro D a p ro d u ç ã o a o co n s u m o


poder não se funda apenas em operações de gestão coerci- De qualquer forma, não há como esquecer como es-
tiva de padrões normativos de conformação, mas, princi- se diagnóstico social de bloqueio dos processos de mo-
palmente, na produção dos próprios modos de resistência à dernização devido a uma socialização construída a partir
“dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de da repressão pulsional superegóica foi paulatinamente re-
temáticas vinculadas à opressão, isto a fim de permitir a me- visto pela posteridade dos leitores de Freud. Muito já se
lhor compreensão do caráter criador de um poder que en- falou, por exemplo, a respeito das incidências do declínio
gendra, um biopoder que incita modos de investimento li- da imago paterna na reconfiguração dos processos de so-
bidinal, assim como modos de conflito. cialização e sua posterior conseqüência na formação de
Tendo isso em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, ideais sociais repressivos. Mas vale a pena insistir aqui em
que os processos de entificação do ascetismo e da desqualifi- um outro ponto. Se é fato que a incidência social da figu-
cação da carne analisados por Max Weber eram inicialmente, ra do supereu estaria vinculada (embora não se trate ne-
na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de proble- cessariamente de uma relação de causalidade simples) a
matização da saúde e das suas condições de funcionamento” uma certa “dinâmica libidinal” da sociedade de produção
(2001, p. 162). Maneira de assegurar a longevidade e a não- através da entificação da ética do trabalho, então devemos
corrupção da descendência. Contra essas práticas disciplina- pensar as conseqüências advindas do esgotamento da so-
res que constituem a sexualidade não se trataria de consolidar ciedade de produção, ao menos tal como ela aparecia no
críticas aos processos de interversão das expectativas de ra- início do século para Freud e Weber. Podemos seguir aqui
cionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crí- aqueles que insistem na temática do declínio da socieda-
tica consistiria em, de uma forma ou de outra, “desativar” os de do trabalho e da obsolescência do paradigma da pro-
dispositivos de sexualidade, cortando o vínculo tacitamente dução.7Assim, no lugar da sociedade da produção, deve-
aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo a economia mos compreender a contemporaneidade e seus traços a
libidinal alimentada por processos disciplinares. partir da temática da sociedade do consumo, no sentido
Há, porém, duas considerações a fazer a respeito desta de que problemas vinculados ao consumo acabam por di-
perspectiva de Foucault. Primeiro, uma análise psicanalitica- recionar todas as formas de interação social e de desen-
mente orientada não teria maiores dificuldades em aceitar a volvimento subjetivo, assim como é o incentivo ao con-
temática de um biopoder que engendra dispositivos de se- sumo que aparece como problema econômico central. Ou
xualidade. Lembremos que o problema maior levantado por seja, podemos nos perguntar se a obsolescência do para-
Freud a respeito dos modos de internalização da Lei através digma da produção não implica a queda do trabalho co-
do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmi- mo processo fundamental de socialização e de constitui-
cas de repressão se transformam em modo neurótico de sa- ção de padrões de racionalidade social.
tisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de go- Lembremos que, devido ao desenvolvimento tecnoló-
zo. Neste sentido, a hipótese repressiva é apenas a descrição gico exponencial e ao aumento da produtividade, cada vez
de um modo de internalização de práticas disciplinares. menos sujeitos precisam estar envolvidos diretamente nos
Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva à processos de produção.8 Mesmo na esfera do trabalho, mo-
pressuposição de um corpo libidinal “naturalizado”, isso no dificações estruturais ocorreram. Clauss Offe nos lembra
sentido de não ser totalmente redutível à condição de efei- que “desde os anos 40 é recorrente a hipótese genérica de
to da ordem do discurso. Não há porque negar esse ponto, que, a partir de um certo grau de industrialização, a ten-
assim como não há porque negar sua importância em te- dência de desenvolvimento da sociedade industrial se alte-
máticas, como a adorniana, de interversão da razão em raria no sentido da expansão do setor terciário, e não mais
procedimento de dominação da “natureza interna”. Melhor do industrial” (1991, p. 12). Tal crescimento do setor ter-
seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes ob- ciário indica, entre outras coisas, que boa parte dos novos
rigado a retomar um substrato corporal para além da esfe- empregos estão fundamentalmente envolvidos em proces-
ra da ordem do discurso, isto a fim de sustentar procedi- sos de ampliação do consumo, de manuseio da retórica do
mentos de crítica ao poder.6 Ou seja, melhor seria mostrar consumo (vendas, publicidade, marketing, design, admi-
como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”. nistração), de “manipulação de símbolos” (Reich, 1993) ou

6 Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine
Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo feliz da não-identidade” (ver Butler, 1999).
7 Ver, por exemplo, o clássico Matthes, 1983, ou ainda os trabalhos de André Gorz como Gorz, 2004.
8 Isso gera, entre outras coisas, uma realidade social da flexibilização do trabalho com o conseqüente aumento das horas de trabalho em empregos múltiplos
e precários. Fenômeno bem conhecido por “toyotismo”. No entanto, esta nova realidade do trabalho produz uma situação extremamente relevante para
nossa hipótese: uma sociedade do trabalho sem ética do trabalho. Ou seja, uma sociedade que exige cada vez mais a disponibilização desesperada dos sujei-
tos para o trabalho, mas que, por outro lado, não procura mais legitimar tais exigências através de uma ética do trabalho. O que não impede que os traba-
lhadores empregados pelas grandes empresas possam ter uma percepção de si como de uma elite: “Não porque tenham aptidões superiores, mas porque
foram selecionados dentre uma massa de indivíduos tão aptos quanto eles de modo a perpetuar a ética do trabalho em um contexto econômico em que o
trabalho perde objetivamente sua ‘centralidade’” (Gorz, 2004, p. 57).

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ainda de manutenção da produção em sua forma social D e s s u b li ma ç ã o r e p r e s s i v a e a f u n ç ã o s o c i a l d o s u p e r e u


(saúde, educação, segurança). Se pensarmos principalmen- O que nos interessa aqui são certas conseqüências psí-
te no primeiro e no segundo grupo, veremos que, no inte- quicas desta passagem da sociedade da produção à socie-
rior mesmo da esfera de trabalho, os sujeitos deparam-se dade do consumo. Jacques Lacan identificou talvez a maior
com imperativos conflitantes, pois seu trabalho visa à dis- delas ao insistir que a figura social dominante do supereu
ponibilização de serviços que não se submetem à reprodu- na contemporaneidade não estava mais vinculada à repres-
ção da ética do trabalho. são das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção
Compreenderemos melhor este ponto se lembrarmos dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo
que a mudança de paradigma, da sociedade industrial da como imperativo. Daí porque ele nos lembra que o verda-
produção para a sociedade pós-industrial do consumo, traz deiro imperativo do supereu na contemporaneidade é:
uma série de conseqüências fundamentais, a começar pelo “Goza!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação
fato de que os modos de alienação necessários para entrar- (Lacan, 1975 a, p. 10).
mos no mundo do trabalho não são totalmente simétricos Já há muito, não vemos mais a hegemonia de discur-
aos modos de alienação que fazem parte do mundo do con- sos sociais que pregam a repressão. Hoje, o verdadeiro dis-
sumo. De maneira esquemática, podemos afirmar que o curso que sustenta os vínculos socioculturais da contem-
mundo capitalista do trabalho está vinculado à ética do as- poraneidade é, digamos, mais maternal. Trata-se, por
cetismo e da acumulação. O mundo do consumo pede, por exemplo, do: “cada um tem direito a sua forma de gozo” (ou
sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o discur- ainda “cada um deve encontrar sua forma de gozo”) que
so do capitalismo contemporâneo precisa é da procura ao podemos encontrar na liberação multicultural da multipli-
gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção cidade das formas possíveis de sexualidade.10 Devemos pen-
das possibilidades de escolha no universo do consumo. Ele sar aqui na tese de que a incitação e a administração do go-
precisa da regulação do gozo no interior de um universo zo transformaram-se na verdadeira mola propulsora da
mercantil estruturado. Isso tende a implicar a secundariza- economia libidinal da sociedade de consumo, isso em vez
ção dos processos de socialização do desejo baseados na da repressão própria à sociedade da produção.
produção do sentimento de culpa em prol de outro pro- De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato
cesso no qual socialização e implementação de expectativas para pensar tal situação através do conceito de “dessublima-
de gozo se articulam conjuntamente. ção repressiva”, utilizado inicialmente para a compreensão de
A consciência dessa passagem da ética protestante do certas características das sociedades totalitárias. Sabemos co-
trabalho ascético para a ética do direito ao gozo aparece, por mo a noção de dessublimação repressiva aparece no edifício
exemplo, na crítica conservadora de Daniel Bell contra a dis- frankfurtiano, entre outras coisas, como possibilidade de
sociação entre os imperativos tecnoeconômicos de produção instrumentalização social direta das moções pulsionais sem
e os imperativos culturais na modernidade ligados ao desen- recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria
volvimento do eu e ao princípio do prazer: “O novo capitalis- mais capaz de se impor como instância de mediação entre as
mo (o uso desta palavra data dos anos 20) continua exigindo exigências pulsionais do isso e o princípio de realidade.
as regras da moral protestante no domínio da produção – ou Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do in-
seja, no domínio do trabalho – mas ele estimula ao mesmo consciente pelo controle social” (Adorno, 1990, p. 431) que
tempo o direito ao prazer e ao entretenimento” (Bell, 1978, p. se imporia devido à fraqueza do eu. Em paragens distintas,
85).9 A contradição de imperativos marca a tensão que en- Lacan, ao falar da “assimilação social do indivíduo levada ao
contramos na passagem de uma sociedade da produção para extremo” (Lacan, 1966, p. 146)11 não pensava em outra coi-
a sociedade do consumo. Tensão que o próprio Bell reconhe- sa; à exceção de que, para o psicanalista parisiense, o eu não
ce muito bem ao lembrar que: “O maior instrumento de des- é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde
truição da ética protestante foi a invenção do crédito. Antes, sempre construção reificada de imagens socialmente ideais.
para comprar era necessário primeiramente economizar. Mas Daí a falta de sentido em procurar evitar a expropriação so-
com um cartão de crédito nós podemos satisfazer imediata- cial do inconsciente através de alguma espécie de “fortaleci-
mente nossos desejos” (1978, p. 31). mento” do eu (que Adorno tão pouco estava à procura).

9 Ou, como nos lembra Tom Frank: “Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados
à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à restrição e à repressão da tradição puritana” (Frank, 2003, p. 43). Max Weber já havia perce-
bido essa mudança inexorável na moralidade econômica do capitalismo ao afirmar: “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a pro-
cura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o
caráter de esporte” (Weber, 2001, p. 143).
10 O adjetivo “maternal” não funciona aqui como uma simples metáfora. Ele faz alusão à noção psicanalítica da existência de um supereu materno resultante
da introjeção do investimento libidinal da figura materna, processo anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação paterna
como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema referente ao princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no
interior de uma sociedade marcada pelo “declínio da imago paterna”, para falar com Lacan.
11 Ou ainda, quando ele escreve sobre “o desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o psiquismo, um manejo concertado das ima-
gens e paixões do qual já se fez uso com sucesso” (Lacan, 2001, p. 120).

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EM PAUTA P OR UMA CRÍTICA DA ECONOMIA LIBIDINAL

Mas no interior deste debate, devemos lembrar como terior da família, do desenvolvimento impessoal da grande
Marcuse configura corretamente tal expropriação do in- corporação burocrática. Impacto que faz com que a figura
consciente como neutralização social do conflito entre paterna (o que não quer dizer a função paterna, tal distin-
princípio de prazer e princípio de realidade através de uma ção será utilizada a exaustão por Lacan) seja cada vez mais:
satisfação administrada, ou seja: “uma liberalização con- “ausente, humilhada, carente ou postiça” (p. 61).
trolada que realça a satisfação obtida com aquilo que a so- Entretanto, o declínio da figura ideal paterna não sig-
ciedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da se- nifica em absoluto decréscimo da pressão do supereu e de
xualidade ao campo dos negócios e dos divertimentos, a suas conseqüências. Lacan irá trabalhar por trinta anos até
própria repressão é recalcada” (Marcuse, 1996, p. 106). Ou chegar à explicação de que o declínio da imago paterna
seja, abre-se a todos esses autores a consciência de uma mo- abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de au-
dificação substancial nos processos de socialização. Eles toridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito
compreendem a tendência das imagens sociais ideais não freudiano de Totem e tabu; ou seja, ao pai-senhor do gozo
estarem mais vinculadas a representações do “autocontro- que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação
le sereno” da renúncia pulsional como princípio de condu- imediata. Figura perversa, feroz e obscena, como dizia La-
ta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo can, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um
dos negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como ele- pai que converge imperativos de repressão e de sublimação.
mento central na lógica de reprodução mercantil do capi- Isso fará Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira ver-
talismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que são do pai é uma père-version.
instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua con- A questão de Lacan torna-se então: o que significa
duta pela exigência irredutível de gozo. pensar processos de socialização a partir de “tipos ideais”
Para compreender melhor esse aspecto, devemos lem- que pautam suas ações pela procura incessante de satisfa-
brar que falta à construção frankfurtiana a compreensão de ção imediata? Fundamentalmente, significa dizer que a
que tal expropriação do inconsciente se dá, na contempo- identificação do sujeito com tais tipos será introjetada atra-
raneidade, através de novas figuras sociais do supereu.12 vés de um supereu não mais vinculado à repressão, mas ao
Não se trata de uma correção sem maiores conseqüências. imperativo do gozo. Daí porque Lacan pode afirmar que “o
Suas implicações ficam visíveis se seguirmos o problema do supereu se origina deste pai original mais do que mítico,
supereu na experiência intelectual lacaniana. deste apelo como tal ao gozo puro, ou seja, apelo também
a não-castração: Goza!” (Lacan, 1971, sessão de 16/06/71).
A i nv e r s ã o l a c a n i a n a d o s u p e r e u Porém, poderíamos perguntar: qual o problema com
A longa elaboração lacaniana a respeito do supereu tal supereu? A princípio nada melhor do que uma instân-
terminou na definição do “Goza!” como o verdadeiro im- cia psíquica capaz de impulsionar exigências de gratifica-
perativo superegóico. Vale sempre a pena salientar como es- ção do gozo e que marcaria todos os discursos repressivos
sa é inversa àquilo que normalmente encontramos em com o selo da obsolescência. Ela seria a realização perfeita
Freud. Sabemos que em Freud o supereu é o resultado de desta moralidade libidinal necessária à multiplicidade plás-
um processo no qual socialização e repressão convergem tica da sociedade de consumo. Mas, “tal ordem [Goza] é
devido à exigência cada vez mais inconsistente de renúncia impossível de ser satisfeita”, e devemos nos perguntar de
pulsional. Como vemos na reflexão freudiana sobre a neu- onde vem tal impossibilidade estrutural.
rose obsessiva, é a culpabilização do gozo que aparece co- Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma
mo resultado da ação do supereu. “lei insensata” (Lacan, 1975b, p. 119), que funciona como
Lacan, no entanto, tem clara consciência da modifi- um significante desprovido de significado. Tal caráter in-
cação dos processos de socialização na contemporaneidade sensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem
e do seu impacto na configuração da figura do supereu. Em nenhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como go-
um diagnóstico de época simétrico àquele fornecido por zar ou qual o objeto adequado ao gozo. Ele diz apenas um
Horkheimer em 1936, ele insiste no “grande número de “Goza!” sem predicações, um puro “não ceda em seu dese-
efeitos psicológicos derivados do declínio social da imago jo”. O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se
paterna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indi- pensarmos que toda escolha empírica de objeto é inade-
víduo de efeitos extremos do progresso social” como a quada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de
“concentração econômica e as catástrofes políticas” (Lacan, determinações, em sua independência em relação a toda e
2001, p. 60) Podemos pensar que Lacan tem em mente, en- qualquer fixação privilegiada de objetos. Ele só pode se rea-
tre outras coisas, o problema horkheimeano do enfraque- lizar no “infinito ruim” do consumo e da destruição inces-
cimento da autoridade paterna devido ao impacto, no in- sante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um

12 O que Slavoj Zizek já havia indicado ao afirmar que “a dessublimação repressiva é apenas uma maneira, a única maneira possível, no contexto teórico da
Teoria crítica da Sociedade, de dizer que, no totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do supereu”
(Zizek, 1992, p. 31).

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excedente de gozo.13 Ou seja, estamos diante de um supe- can afirmasse que o modo de satisfação próprio às socie-
reu perfeito para uma sociedade marcada exatamente pela dades de consumo não está vinculado a simples repetição
obsolescência programada de mercadorias. Sociedade que normatizada de padrões e estereótipos. Ao contrário, o
deve alimentar o fluxo contínuo de equivalências em cam- modo de satisfação das sociedades de consumo só pode ser
pos sociais cada vez mais alargados. compreendido se aceitarmos a existência de um processo
Neste sentido, o supereu lacaniano representa um no qual posição de padrões e transgressão estão absoluta-
passo além de idéias como, por exemplo, as que animam a mente imbricados.
compreensão de Michel Foucault a respeito da mudança
nas táticas dos processos disciplinares a partir, sobretudo, A s o ci e d a d e d a i n s a t i s f a ç ã o a d m i n i s t r a d a
dos anos 60. Mudança retratada em afirmações do tipo: e s e u s d i s p o s i t i v o s d i s ci p l i n a re s
“Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo Vale a pena insistirmos mais neste ponto. Como, em
investimento que não tem mais a forma de controle-re- última instância, toda determinação se mostrará provisória
pressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas, se- e inadequada diante de um imperativo superegóico que
ja magro, bonito, bronzeado!’” (Foucault, 1996, p. 147). Ou exige o puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mer-
seja, apresente sua sexualidade, mas no interior de formas cadorias disponibilize determinações de maneira cada vez
socialmente fornecidas e codificadas pelo mercado. Contu- mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, im-
do, o que o conceito lacaniano de supereu nos indica é a portando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de
desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos tais determinações. Em última instância, isto nos faz passar
normativos privilegiados. Volto a insistir, a lei do supereu é de uma sociedade da satisfação administrada para uma so-
vazia, sem determinações privilegiadas. Desta forma, ela ciedade da insatisfação administrada na qual ninguém real-
pode nos ajudar a compreender porque, na sociedade con- mente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sis-
temporânea de consumo: “Magro, bonito e bronzeado” po- tema de mercadorias (já que elas são postas para serem
de facilmente ser trocado, por exemplo, por “doente, ano- descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apre-
réxico e mortífero” sem prejuízos para sua capacidade senta de maneira cada vez mais auto-irônica e “crítica”.14 Ou
momentânea de mobilização de desejos. seja, estamos diante de uma sociedade em que os vínculos
O próprio uso de “gozo” como conceito privilegiado com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem
para a compreensão da economia libidinal da sociedade de do corpo próprio) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo,
consumo nos diz muito. Como foi dito anteriormente, o é capaz de se alimentar dessa fragilidade. Até porque, não
conceito de gozo permite a Lacan desenvolver explicações se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determi-
de orientação da conduta baseadas na procura de satisfa- nados de representações sociais através do mercado. Trata-
ção pulsional, mas sem, com isso, apelar aos cálculos utili- se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração inces-
taristas de maximização do prazer-afastamento do despra- sante que passa por e anula todo conteúdo determinado.
zer. Apelo que acabaria por levar a crítica da sociedade de O segredo desta sociedade em que os vínculos com os
consumo ao campo da denúncia de um certo hedonismo objetos são frágeis, mas que é capaz de alimentar-se desta fra-
como padrão geral de racionalidade. Não é sem interesse gilidade mesma, está naquilo que chamamos de “ironização
neste contexto lembrar que o conceito de gozo, ao menos absoluta dos modos de vida”. Em uma sociedade da insatis-
tal como Lacan inicialmente o utiliza, vem de uma certa fação administrada, os sujeitos não são mais chamados a se
teoria social que procura explicar fenômenos como o sa- identificar com tipos ideais construídos a partir de identida-
crifício, a festa, o sagrado, e práticas de consumo de obje- des fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e uma
tos (como o potlatch) que não se submetem à lógica utili- certa ética da convicção, o que é impossível em uma situa-
tária dos bens. Fenômenos sociais em que a suspensão ção de crise de legitimidade como a nossa. Na verdade, eles
transgressora da norma e a conservação da norma ordena- são cada vez mais chamados a sustentar identificações irôni-
dora se confundiriam. cas, ou seja, identificações em que, a todo momento, o sujei-
Ao ser utilizado para a compreensão das dinâmicas to afirma sua distância em relação àquilo que ele está repre-
próprias aos processos de socialização e à economia libidi- sentando ou ainda, em relação a suas próprias ações. Uma
nal da sociedade de consumo, tudo se passa como se La- exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se através da

13 Lacan compreendeu o caráter “puro” da Lei superegóica ao analisar a função da Lei no interior do universo fantasmático do Marques de Sade. A Lei sadia-
na, que ordena a todos os sujeitos o “direito de gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação privilegiada de objeto. Este princípio de equivalência
geral entre objetos leva à negação destrutiva de todo objeto. Neste ponto, ao menos para Lacan, o caráter puro da Lei sadiana seria equivalente ao caráter
puro e a priori do imperativo moral kantiano.
14 O que já havia sido claramente compreendido por Debord. Lembremo-nos de sua afirmação: “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta pura-
mente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de esten-
der sua produção até o tratamento desta matéria-prima” (Debord, 2002, p. 40). Ou seja, nada impede que a frustração com o universo fetichizado da forma-
mercadoria e de suas imagens ideais possa se transformar também em uma mercadoria.

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anulação de toda determinidade “restritiva” encontra sua no cinismo como sintoma de “um mundo sem culpa”
forma perfeita na ironia absoluta que reenvia todo vínculo (Arantes, 2004). “Cinismo” é o nome correto dessa posição
com a determinidade ao campo do inefetivo. Assim, a ironi- subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmen-
zação absoluta dos modos de vida com sua lógica de auto- te disponibilizadas ao mesmo tempo que ironiza, de forma
nomização da aparência nada mais é do que posição subje- absoluta, toda e qualquer determinidade (por reconhecer
tiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo seu caráter descartável). Ela nega reflexivamente aquilo ao
de gozo e conteúdos normativos privilegiados própria a es- qual se vincula, criando assim um universo social “carnava-
sa nova figura social do supereu.. Ela ganha relevância em lesco” de “aparências reflexivas”, ou seja, “aparências postas
uma situação histórica, como a nossa, na qual a ideologia no como aparências”. Essa contradição posta que consegue, ao
capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer vínculo privi- mesmo tempo, ordenar-se como contradição resolvida não
legiado a conteúdos substantivos. Pois: é outra coisa do que uma definição perfeitamente adequa-
da da lógica do cinismo. Legitimação que significa: trans-
Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar formar a contradição em uma forma de síntese.
qualquer discurso ou persona, o capitalismo pode colocar no Mas, mais importante do que isso, vemos como o ci-
mercado qualquer discurso ou valor... Ironia representa, ao nismo pode ser compreendido como a posição subjetiva
mesmo tempo, uma tendência e um problema do capitalismo. possível para um sujeito que internalizou a Lei sob a figu-
Ela sempre pôs algum ponto para além de todo conteúdo ou ra de um supereu que exige que as condutas sejam pauta-
valor particular. Neste sentido, ela antecipou a tendência do das a partir da lógica do gozo puro. A procura incessante
capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto uni- de satisfação imediata não pode simplesmente passar por
versal a partir do qual todos os valores podem ser intercam- cima dos critérios normativos de racionalização da dimen-
biados (Colebrook, 2004, p. 150). são prática que, no estágio atual de esclarecimento, seriam
intersubjetivamente partilhados e consensuais. Para tanto,
O q ue v e m d ep o i s d o o c a s o d a c ul p a b i l i d a d e ? será necessário aprender a gozar através das normas parti-
Tal configuração sociocultural talvez nos ajude a com- lhadas, ou seja, respeitando o formalismo das normas com
preender por que os grandes sintomas da contemporaneida- suas expectativas de modernização das condutas sociais. O
de não são mais o sentimento obsessivo de culpa ou a “con- que fazer, pois, quando, por exemplo, o particularismo do
versão” histérica, que pressupunham, cada um à sua gozo se choca de frente com as aspirações universalizantes
maneira, a crença em desejos recalcados em sua própria dos critérios normativos? A resposta na era do supereu re-
enunciação por instâncias repressoras. Desejos que habita- pressor era clara: abrir mão do gozo através do apelo à cul-
riam a Outra cena de um corpo erógeno que nunca pode to- pabilidade, ou seja, como dizia Max Weber, “tomar banhos
mar diretamente a palavra e que seriam liberados através de frios e trabalhar na sua vocação”. Mas, em um momento
procedimentos hermenêuticos de interpretação de resistên- histórico no qual o supereu se funda no imperativo de go-
cias. Se alguns dos sintomas mais correntes na atualidade são zo, somos incitados a operar um “modo de ser muito pe-
“a ansiedade e a depressão”, eles talvez nos indiquem resul- culiar de suspensão de conflitos”. Basta que as normas pos-
tados da pressão deste supereu vinculado ao puro imperati- sam ser “flexibilizadas” em seus regimes de indexação da
vo de gozo. Tanto a ansiedade como a depressão pressupõem efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras pa-
a consciência tácita da incapacidade em sustentar escolhas de lavras, basta que elas sejam seguidas “de maneira cínica” fa-
objeto. Enquanto a ansiedade é exigência do desejo em atra- zendo com que elas justifiquem o contrário do que pare-
vessar de maneira cada vez mais rápida escolhas de objeto, a ciam indexar.
depressão é exatamente a impossibilidade de vincular-se a Essa relação cínica com critérios normativos é um fe-
uma relação de objeto. Os dois casos podem ser vistos com nômeno que merece nossa atenção. Ela tende a tornar-se
sintomas diretamente resultantes da introjeção de um supe- hegemônica em situações históricas nas quais imperativos
reu que ordena uma injunção de gozo tão forte e incondi- de satisfação irrestrita precisam conviver com expectativas
cional que toda tentativa de realização efetiva será necessa- normativas que aspiram validade universal e também a
riamente um fracasso. No caso da depressão, lembremos da constituir estruturas normativas duais nas quais, como
idéia central de Pierre Fedida: “A depressão é uma doença da bem demonstra Zizek, a lei sócio-simbólica é sempre com-
forma – o psíquico sendo aquilo que dá forma ao vivente. plementada por uma espécie de duplo, uma segunda lei su-
‘Sinto-me desfeita em minha aparência humana’, diz uma peregóica que só pode ser enunciada cinicamente.
mulher no momento em que começa a se descrever” (Fédi- Aqui, vale a pena colocar uma questão final. Que a
da, 2002, p. 12). Lá onde uma escolha de objeto não pode se economia libidinal do capitalismo tendia a se organizar a
estruturar, é a própria imagem de si que se desfaz. partir de uma racionalidade cínica, eis uma proposição que
No entanto, devemos acrescentar aqui outro sintoma não teremos dificuldade em encontrar naquele que primei-
dos processos contemporâneos de socialização. Ao lado da ro forjou o próprio termo “economia libidinal”, ou seja,
ansiedade e da depressão, devemos pensar principalmente Jean-François Lyotard. Com precisão, Lyotard insiste que o

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capitalismo tardio havia chegado à situação de ser: “uma fu- imagens de harmonia social e completude. Claude Lefort,
ga violenta, uma viagem aleatória de libido, uma errância companheiro de rota de Lyotard no grupo Socialismo ou
que se marca no ‘não importa o que’ do Kapital” (Lyotard, barbárie, insistia em um ensaio maior de teoria política psi-
1994, p. 19). Maneira de insistir que seu fluxo contínuo de canaliticamente orientada, que todo sistema totalitário fa-
trocas, metamorfoses e equivalência que tudo abarca tende- zia apelo à fantasia de um corpo social orgânico (Lefort,
ria a se constituir como característica maior de um sistema 1983). Um corpo harmônico, unificado e egocrata, no qual
que “impõe a predominância do ponto de vista da circula- um órgão é, ao mesmo tempo, o todo e a parte destacada
ção sobre este da produção” (p. 20), que tem no seu próprio que faz o todo. Dissolver a corporiedade fantasmática do
interior a força de desarticulação de seus limites e de sub- social, afirmar a perda da substância do corpo político se-
versão de seus modelos. O único axioma intocável seria o ria a condição para a verdadeira invenção democrática. E o
valor de troca, Axioma, e não código que permite a deter- que seriam esses fluxos libidinais polimórficos e sem télos
minação de sentido dos fluxos que os processos de equiva- do capital a não ser a maneira que encontrou Lyotard de
lência produzem. Axioma que permite a disponibilização atravessar a fantasia social do corpo uno? Maneira de com-
desta pura forma da reconfiguração incessante que passa preender que a fantasia é, no fundo, uma defesa contra a
por e anula todo conteúdo determinado. impossibilidade de uma imagem adequada do povo.
Levando tal característica a sério, Lyotard lembra que Mas, fica aqui uma questão: e se a fantasmagoria do
é da lógica interna do capitalismo a obsolescência de pa- capitalismo não precisasse mais fazer apelo a imagens de
drões de socialização baseados na regulagem de identida- completude e unidade? É bem provável que estejamos em
des próprias ao complexo de Édipo com seus esquemas de uma época na qual somos assombrados por outra fantasia
constituição de unidades identitárias através da culpabili- ideológica: a fantasia do corpo inconsistente do capital, que
zação de exigências pulsionais polimórficas. A verdade do nos leva a uma forma ainda mais astuta de totalitarismo, já
capitalismo consistiria em ser uma economia libidinal que que nos cega para o que permanece idêntico no interior
tende a se aproximar do caráter polimórfico dos processos dessa disseminação de multiplicidade. Pois a inconsistência
pulsionais primários descritos por Freud. Longe de ser uma pode servir para sustentar uma Ordem que vigora através
mera metáfora que visa dar conta do caráter de desterrito- da sua própria descrença.
rialização e de flexibilização contínua dos processos de cir-
culação do capital, essa aproximação com a dinâmica pul- Referências
sional freudiana pretendia instaurar um horizonte de Adorno, T. (1990). Freudian theory and the patterns of fascist propa-
“reconciliação” entre estrutura social e aspirações subjeti- ganda. In T. Adorno, Soziologische Schriften I (pp. 410-489).
vas patrocinado pelas promessas de gozo do último estágio Frankfurt: Suhrkamp.
do capitalismo avançado. Daí porque Lyotard não temia em Arantes, P. (2004). Zero à esquerda. São Paulo: Conrad.
dizer: “A dissolução das formas e dos indivíduos na socie- Bell, D. (1978). The cultural contradiction of the capitalism .
dade dita ‘de consumo’ deve ser afirmada” (1994, p. 315). New York: Basic Books.
Um pouco como se estivéssemos diante de uma versão pós- Butler, J. (1999). Gender trouble. New York: Routledge.
moderna da celebração marxista do revolucionário poder Caillois, R. (1950). L’´homme et le sacré. Paris: Gallimard.
de desterritorialização do capitalismo. Colebrook, C. (2004). Irony. Londres: Routledge.
Assim, tudo se passa como se a crítica da economia po- Debord, G. (2002). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
lítica saísse de cena em prol de uma afirmação da economia Contraponto.
libidinal. Uma afirmação que nos levaria à posição de quem Fédida, P. (2002). Dos benefícios da depressão. São Paulo: Escuta.
diz que, de certa forma, todas as condições de liberação já Foucault, M. (1976). Histoire de la sexualité I. Paris: Gallimard.
estão dadas no capitalismo avançado, sua racionalidade cí- Foucault, M. (1996). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
nica já nos livrou das amarras de um pensamento da repre- Frank, T. (2003). O marketing da libertação do capital. Cadernos
sentação, basta apenas uma espécie de afirmação de poten- Le monde diplomatique, 5, 50-53.
cialidades que, no final das contas, são a própria mola de Freud, S. (1999a). Totem und Tabu. In S. Freud, Gesammelte Werke
desenvolvimento socioeconômico do capitalismo. (Vol. 9). Frankfurt: Fischer.
Das muitas perguntas que teríamos o direito de le- Freud, S. (1999b). Massenpsychcologie und Ich-Analyse. In S. Freud,
vantar, talvez valha a pena ficar apenas com uma; pergun- Gesammelte Werke (Vol. 13, pp. 71-162). Frankfurt: Fischer.
ta esta que talvez justifique a necessidade de uma certa crí- Freud, S. (1999c). Die Zukunft einer Illusion. In S. Freud,
tica desta versão lyotardiana da economia libidinal; uma Gesammelte Werke (Vol. 14,, pp. 323-380). Frankfurt: Fischer.
pergunta simples e quase ingênua: por que, 35 anos após a Freud, S. (1999d). Neue Folge der Vorlesung zur Einführung in
redação dessas análises, tal liberação não ocorreu? Não se- der Psychoanalyse. In S. Freud, Gesammelte Werke (Vol. 15).
ria porque Lyotard é, de alguma maneira, demasiado con- Frankfurt: Fischer.
servador? Ele parece aceitar de forma tácita a idéia clássica Freud, S. (1999e). Der Mann Moses und die monoteistische Religion. In
de que o totalitarismo está necessariamente vinculado às S. Freud, Gesammelte Werke (Vol. 16, pp. 101-248). Frankfurt: Fischer.

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EM PAUTA P OR UMA CRÍTICA DA ECONOMIA LIBIDINAL

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Resumo
Este texto visa discutir o impacto de algumas modificações maio-
res nos modos de internalização da lei social e de socialização diagnosti-
cados por Jacques Lacan e pela Escola de Frankfurt. Tal diagnóstico nos
permitirá compreender o advento do que se convencionou chamar de
“sociedades não repressivas” a partir de suas patologias específicas. Por
outro lado, ele permitirá também desenvolver uma crítica ao horizonte
utópico, posto no conceito de “economia libidinal”.
Palavras-chave
Dessublimação repressiva. Economia libidinal. Flexibilização.
Sociedade de consumo. Supereu.

Summary
Fo r a cr it ique o f l ibid in a l econ omy
This article aims to discuss some majors modifications concerning
process of socialization and internalization of social law. Modifications
pointed both by Jacques Lacan and the Frankfurt School. This process
could lead us to understand the pathologies proper to the development of
what we call “non-repressive societies”. It could also to sustain a critique
of the utopical horizon present in the concept of “libidinal economy”.
Key words
Repressive desublimation. Libidinal economy. Flexibilisation. Vladimir Pinheiro Safatle
Consummer society. Superego. Rua Dr. Homem de Melo, 629/2021 – Perdizes
05007-001 – São Paulo – SP
Recebido: 23/08/2007 Tel.: 11 3637-9828
Aceito: 30/08/2007 [email protected]

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