PEREIRA, T.S.a.contribuição À Crítica Do Projeto Ético-Político Da Psicologia Da Libertação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –

PUC-SP

Thiago Sant’ Anna Pereira

Contribuição à crítica do projeto ético-político da Psicologia da Libertação

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo

2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Thiago Sant’ Anna Pereira

Contribuição à crítica do projeto ético-político da Psicologia da Libertação

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia
Social sob a orientação da Profª. Drª. Mitsuko
Aparecida Makino Antunes.

São Paulo

2018
BANCA EXAMINADORA:

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_________________________________________
Aos mártires que com suor e sangue proclamaram a possibilidade
histórica de um novo humano.
Esta pesquisa contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
Reconhecimentos (ou da importância gratidão)

Caso minha retribuição aos que me possibilitaram concluir esta pesquisa for
escrever sobre isso, resta-me o embaraço. Porém, se escrevemos para vencer o tempo,
talvez essas linhas tenham serventia; que tremenda responsabilidade e que sublime
privilégio é o de fruímos da gratidão.
Ontem mesmo, na dissertação, alardeei aos ventos os nomes de minhas musas,
seria absurdo que uma vírgula fosse arrancada dali. Mas, os últimos quatro anos
sacudiram muita coisa. Talvez em função especial (uma pela presença e outra pela
ausência) de duas mulheres. Aqui me refiro àquela que dividiu o coração comigo
(Stéfanie) e a que não pôde ler estas palavras (Eunice).
Descobri que é educado pedir permissão antes de citar nomes nos
“agradecimentos”; perdoem-nos a indelicadeza quem não recebeu nenhuma notificação.
Recebam, todavia, essas menções como aqueles desenhos mal pintados que crianças
entregam, sabe?
Dona Denise acredito que você já deve ter se acostumado com meus “desenhos”.
Tê-la por perto é dádiva divina. Sua força, prudência e amor são meus faróis. “Seu
Marcos” obrigado por ter me ensinado que a tal da vida não é do jeito que a gente
gostaria que ela fosse; que lição mais difícil e ao mesmo tempo tão essencial.
O que dizer a alguém como você tio Lú, que desde criança me traficou livros,
levou-me a museus e contou histórias fantásticas sobre a vida? Gratidão é pouco. Ainda
sobre o círculo mais próximo, registro a honra que foi ter como avó alguém como a
Eunice. Os valores que me foram apresentados e que ganharam cor na sua própria vida
são mais preciosos que qualquer capital. Já o senhor, “vô Sant‘Anna”, sou grato por
você compartilhar um pouco do seu senso prático, queria muito mais disso em mim.
Débora e Elizangela, tias queridas, outra vez recebam meu reconhecimento.
Vitão e Bart, pela companhia e pela lealdade, agasalhem um grato abraço. Tio Paulinho,
tê-lo como referência de bom pai faz diferença em tempos como o nosso, valeu!
Aos camaradas Juba, Yuri, Kenji, Arnaldo, Betão, Fê e Moisés obrigado pela
viagem! Marília, Julia, Isa, Camila e Fialho vocês deixaram a Psicologia muito mais
divertida. Mari (loira) obrigado pelas conversas e Vicente (rapozão), “é noiz que voa!”.
É estranho admitir, mas a verdade é que no mestrado estreitei muito mais
vínculos do que no doutorado. Contudo, é gratificante ver que gente como vocês: Edu
(parceiro de longos debates sobre qualquer coisa), Bruno (com quem aprendi muito),
Diana e Vanessa (pela hospitalidade) persistiram ao meu lado.
Dílson, você tornou a caminhada mais agradável, ainda que mais desafiadora.
Tenho certeza que tu reconhecerás muitas de nossas conversas por aqui... Bia Brambilla,
temos muito que prosear, em todo caso, sua companhia foi um presente. Marcus, de
escrever seu nome eu abri um sorriso... Sério, quais as chances estatísticas desta
afinação? Bem que o Emanuel disse que a gente teria muita coisa em comum quando
ele nos apresentou (aliás, ele é outro que nem sei por onde começar a agradecer,
tamanha a graça com que me acolhe). Agradeço também a vocês: Roberta, por
compartilhar comigo os paranauês das filosofias da práxis; Aline Matheus, por tantos
debates que provocaram faíscas e que faz aprender até o que a gente não quer; Aline
Pereira (pelo espirituoso humor e pela força no “resumo”) e a Juliana “Berê” (pela
companhia).
Lí (acho que já te disse), mas se tivesse que pedir para alguém terminar um texto
que por alguma razão eu não pudesse, tu serias minha primeira recomendação. Nosso
diálogo inacabável sobre a poesia da ciência e o rigor da vida foi/é fundamental. Que
tudo isso frutifique! Márcio, camarada, o momento em que nos conhecemos foi
extremamente delicado pra mim, sua companhia é um presente maior do que eu mereço.
Sou muito mais grato a ti do que jamais seria capaz de demonstrar. Irmã, por tudo o que
vivemos, fico feliz em saber que é desnecessário dizer muito. Você mora em mim.
Stéfanie Rigamonti, companheira, obrigado por me suportar! Os últimos anos
foram intensos, não? Você me ensinou coisas que doutorado nenhum seria capaz. Pelos
detalhes e pelo conjunto muito obrigado. Cléo e Braga, vocês me fazem querer ser
alguém melhor, valeu!
Acerca dos professores que nos foram (e são) importantes, não descobri até qual
deles seria correto retroceder. Seja como foi: Nadir, Renato, Geraldo, Carmem e Carol
saibam que vocês fizeram a diferença na minha graduação. Especialmente quero
destacar a presença do Prof. Dr. Tiago Lopes de Oliveira na minha formação. Mano,
seus incentivos e sua generosidade contrariam a lógica do individualismo, você será
sempre o “sênior”. Netto, você também foi importante nesta caminhada, obrigado por
insistir em mim. Espero que vocês dois tenham gostado do resultado.
Quanto aos mais recentes, agradeço imensamente a Profª. Drª. Bader Sawaia, ao
Odair Furtado e a Profª. Drª. Fúlvia Rosemberg (in memorian), aqui do Programa de
Psicologia Social. As aulas que tive com vocês transformaram meu modo de
compreender a ciência, obrigado por serem tão diferentes dos lugares comuns da
“academia”. Sendo tão maiores, em nenhum momento, vocês se utilizaram disso para
oprimir ou me lembrar do quanto ainda sei pouco. Nessa direção, a Profª. Drª. “Bia”
Abramides e o Prof. Dr. José Paulo Netto, ambos do Serviço Social, também merecem
distinção. A primeira, porque transborda força revolucionária (nunca vi nada parecido);
a senhora é do tipo de gente que chega a envaidecer de conhecer pessoalmente! O
segundo dispensa comentários – sua aula foi um divisor de águas. (Marlene, muito
obrigado!). Acrescento, por fim, os nomes dos meus mestres na arte suave (e que nossos
companheiros no Budô sintam-se lembrados), Prof. Ms. Carlos Andreucci e Prof.
Alexandre (Magrinho): oss!
Corre na boca pequena que não existe “ex-orientando”, pura verdade. Por isso,
Profª. Drª. Maria do Carmo Guedes, e também pela senhora ter comprado minha briga
no programa, além de gratidão tens em mim um escudeiro. Obrigado por ter me
ensinado a ler pela segunda vez. Agora, não fosse a senhora (duvido que ela goste do
pronome) Mitsuko Aparecida Makino Antunes ter me aceitado como desorientando, de
nada teria adiantado. Mimi, você tem um talento raro para a educação, sua sensibilidade
é vivaz e transbordante. Você é uma mulher solar. Receba um afetuoso e grato abraço!
A tudo que é Maria e João deste Brasil só tenho a agradecer; esta tese contou
com financiamento do suor de vocês, tive bolsa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al alto
cielo. A la vuelta, contó. Dijo que había contemplado, desde allá arriba, la vida
humana. Y dijo que somos un mar de fueguitos. El mundo es eso -reveló- Un montón de
gente, un mar de fueguitos. Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás.
No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los
colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco,
que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman;
pero otros arden la vida con tantas ganas que no se puede mirarlos sin parpadear, y
quien se acerca, se enciende.

(EDUARDO GALEANO)
RESUMO

Defendemos a tese de que é possível depreender da obra textual de Martín-Baró o


esboço de um projeto ético-político para a Psicologia. O objetivo geral foi apreender
criticamente – por meio de pesquisa histórica – o processo e o desenvolvimento das
proposições desse autor acerca da temática. Nossas fontes primárias foram seus escritos:
artigos científicos e publicados em jornais, livros, poemas etc., estabelecendo diálogo
com a obra de alguns de seus proeminentes interlocutores na contemporaneidade. Com
relação ao método, amparamo-nos no materialismo histórico-dialético para a apreensão
das unidades de análise e exposição dos dados. A primeira dobra da pesquisa contém
um ensaio sobre as relações entre método e historicidade, nos termos de uma Psicologia
Concreta. Apresentamos também as categorias centrais deste estudo, a práxis e a
historicidade. A segunda expõe um painel das condições sócio-históricas e político-
econômicas da América-Latina entre as décadas de 1960 e 1990, especificamente a
situação da luta de classes e da guerra civil em El Salvador. Ponderamos ainda acerca da
acepção de ética e de política de que nos valemos ao longo da tese. No terceiro e quarto
capítulos, discorremos sobre como os debatedores da obra de Ignacio Martín-Baró o
retratam desde o posto de um teórico revolucionário a um submisso e irreconhecível
pós-construcionista social. Encerramos com uma incursão crítica mais detida dos
aspectos centrais que constituem traços originais de como ele relacionava ciência
psicológica e práxis política, quais sejam: a assunção do partido dos explorados pelas
relações sociais capitalistas, a centralidade da historicidade para o método das ciências
humanas, a apreensão da luta de classes como parte do quefazer da Psicologia e a
articulação entre ideologia, ciência e ética. A investigação conclui que, já no início do
século 21, não existe consenso entre pesquisadores que se acampam ao redor do
proposto pelo jesuíta – uma Psicologia que primava pela práxis revolucionária. Pendula-
se entre divergências que vão desde o emprego de determinados conceitos/categorias à
discussão que evidencia se o conjunto de orientações ético-políticas e profissionais deve
ter como horizonte a emancipação humana ou a política.

PALAVRAS-CHAVE: Ignacio Martín-Baró, Psicologia Social, América-Latina,


História da Psicologia.
RESUMEN

Defendemos la tesis de que es posible deducir de la obra textual de Martín-Baró el


esbozo de un proyecto ético-político para la Psicología. El objetivo general fue
aprehender críticamente-por medio de investigación histórica- el proceso y el desarrollo
de las proposiciones de aquel autor acerca de la temática. Nuestras fuentes primarias
fueron sus escritos: artículos científicos y publicados en periódicos, libros, poemas etc.,
estableciendo diálogo con la obra de algunos de sus prominentes interlocutores en la
contemporaneidad. Con respecto al método, nos amparamos en el materialismo
histórico-dialéctico para la aprehensión de las unidades de análisis y exposición de los
datos. La primera dobla de la investigación contiene un ensayo sobre las relaciones
entre método e historicidad, en términos de una Psicología Concreta. Presentamos
también las categorías centrales de este estudio, la praxis y la historicidad. La segunda
expone un panel de las condiciones socio-históricas y político-económicas de América
Latina entre las décadas de 1960 y 1990, específicamente la situación de la lucha de
clases y de la guerra civil en El Salvador. Ponderamos aún acerca de la acepción de
ética y de política de que nos valemos a lo largo de la tesis. En el tercero y cuarto
capítulos, discordamos sobre cómo los detractores de la obra de Ignacio Martín-Baró lo
retratan desde el puesto de un sumiso e irreconocible post-construccionista social a un
teórico revolucionario. Concluimos con una incursión crítica más detenida de los
aspectos centrales que constituyen rasgos originales de cómo relacionaba la ciencia
psicológica y la praxis política, que son: la asunción del partido de los explotados por el
capitalismo, la centralidad de la historicidad para el método de las ciencias humanas, la
consideración de la lucha de clases como parte del quehacer de la Psicología y la
articulación entre ideología, ciencia y ética. La investigación concluye que, ya a
principios del siglo 21, no existe consenso entre investigadores que se acampan
alrededor de lo propuesto por el jesuita - una Psicología que primaba por la praxis
revolucionaria. Se colma entre divergencias que van desde el empleo de determinados
conceptos / categorías a la discusión que evidencia si el conjunto de orientaciones ético-
políticas y profesionales debe tener como horizonte la emancipación humana o la
política.

PALABRAS-CLAVE: Ignacio Martín-Baró, América Latina, Psicología Social,


Historia de la Psicología.
ABSTRACT

We are defending the thesis that it is possible to deduce from Martin-Baró´s textual
work an outline of an ethic-political project for Psychology. The general goal was to
critically learn - through historical research - the process and development of the
author's propositions about the theme. Our primary sources were his writings (scientific
articles published in newspapers, books, poems, etc.) and some of his prominent
interlocutors in contemporaneity. Regarding the method, we relied on historical-
dialectical materialism to gather units of analysis and data exposure. The first part of the
research contains an essay on the relations between method and its historicity, in terms
of Concrete Psychology. We have also presented the central categories of this study,
praxis and historicity. The second presents a panel of socio-historical and political-
economic conditions in Latin America between the 1960s and 1990s, specifically the
class struggle and the civil war in El Salvador. We have also considered the ethical and
political meanings that we have used throughout this thesis. In the third and fourth
chapters, we are discussing how the debaters of Ignacio Martín-Baró's work portray him
from the standpoint of a revolutionary theorist to a submissive and unrecognizable post-
social constructionist. We are finishing with a more critical incursion of the central
aspects that are the original traits of how he had related psychological science and
political praxis, namely: the rise of the party that has been exploited by capitalism, the
centrality of historicity to scientific method in the human sciences; the apprehension of
class struggle as part of the “what makes of” Psychology and the articulation between
ideology, science and ethics. The research concludes that, at the beginning of the 21st
century, there were no consensus amongst researchers who had touch around what had
been proposed by the Jesuit - a psychology that prevailed for revolutionary praxis. It
hangs between divergences ranging from the use of certain concepts / categories to the
discussion that shows if the set of ethical-political and professional orientations should
have been as a horizon to the human emancipation or politics.

KEY-WORDS: Ignacio Martín-Baró, Latin American, Social Psychology, History


of Psychology.
SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................................... 14

1. MÉTODO E HISTORICIDADE: UM ENSAIO NOS TERMOS DA PSICOLOGIA


CONCRETA OU AINDA DA PSICOLOGIA. .................................................... 24

1.1 Psicologia, método e historicidade............................................................... 27

1.2 Procedimentos de Pesquisa ...................................................................... 44

2. PROLEGÔMENOS À CRÍTICA ONTOLÓGICA DO PROJETO ÉTICO-


POLÍTICO DE MARTÍN-BARÓ PARA A PSICOLOGIA OU COMO NÃO
CONSTRUIR UM LEITO DE PROCUSTO ........................................................ 65

2.1 América Latina no século 20: notas sobre sua insurreição ........................ 65

2.1.1 Cristianismo da libertação: considerações preambulares...................... 75

2.1.2 El Salvador: uma história de lutas pela terra......................................... 82

2.1.3 Guerra civil salvadorenha: desdobramentos sócio-políticos e econômicos


........................................................................................................................ 92

2.2 Lições elementares sobre ética e política: quando um passo para trás significa dar
dois para frente. ........................................................................................... 107

2.2.1 Elementos básicos da Ética ................................................................. 108

2.2.2 Elementos básicos da Política ............................................................. 131

3. “PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO”: CONVERGINDO À SUA GÊNESE


HISTÓRICA ....................................................................................................... 140

3.1 Para uma crítica da produção de alguns interlocutores da “psicologia da


libertação” ................................................................................................... 141

4. PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DA “PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO” DE


MARTÍN-BARÓ: UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA DESDE O MATERIALISMO
HISTÓRICO-DIALÉTICO. ................................................................................ 204

4.1 Antecedentes teóricos e da práxis............................................................... 205

4.1.2 O encontro de Martín-Baró com a Psicologia: matrizes epistemológicas214

4.2 Psicologia e práxis ético-política: o batismo de sangue. ........................... 237


4.2.1 Martín-Baró: o início da guerra e o começo de uma militância ético-político
...................................................................................................................... 238

4.2.2 Uma orientação à práxis da Psicologia: que se denunciem as atrocidades das


guerras .......................................................................................................... 248

4.2.3 Caracterização de sua proposta para a psicologia social: elementos teóricos


...................................................................................................................... 254

4.2.4 As preocupações da práxis de Martín-Baró: fenômenos sociais estudados


...................................................................................................................... 268

4.2.5 1986: o ano da nomeação oficial da proposta para a ciência psicológica de


Martín- Baró ................................................................................................. 281

4.3 Um projeto ético-político que ruma para a complexificação das relações entre
Práxis, Política e a Psicologia..................................................................... 292

4.3.1 Objetos de estudos e fenômenos sociais: uma síntese mediada pela utilização
de Martín-Baró da categoria processos grupais ........................................... 293

4.3.2 Caracterízação do projeto ético polítco de Martín-Baró: relações entre práxis


revolucionária, política e Psicologia. ........................................................... 305

Conclusões preliminares para outros recomeços ............................................... 324

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................373

13
Apresentação

A considerável ausência de pesquisadores das teorias psicossociais latino-americanas


durante nosso bacharelado em Psicologia nos fez questionar: por que eles não são ensinados?
Será que não existem? As perguntas conduziram-nos à confecção tanto de uma Iniciação
Científica quanto de um Trabalho de Conclusão de Curso em que adotamos a proposta de
Martín-Baró, notabilizada por “psicologia da libertação”, como referencial teórico e
bibliográfico. A fecundidade do tema e a relevância de uma teoria que almeja responder às
condições concretas da América Latina incitaram-nos a dissertar, no mestrado, sobre
elementos centrais do aqui como projeto ético-político para a Psicologia de Martín-Baró.

Quem são nossas referências bibliográficas dentro da jovem psicologia social que
aflora em terras brasileiras, e por que saber disso faria alguma diferença para a compreensão
desta tese? A primeira parte da resposta é curta e direta: as produções da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Nossa formação foi profundamente crivada pelo alcance
e pelos interesses investigativos da Escola de São Paulo de psicologia social e, no momento
em que escrevemos estas palavras, temos mais clareza disso do que antes. O segundo ponto é
o que nos leva a campos mais difusos.

É fácil encontrar quem tenha lido, nas graduações em Psicologia Brasil afora, alguma
publicação que direta ou indiretamente esteja relacionada à PUC-SP. Ora, as condições
históricas do Brasil e a posição política dessa universidade nos anos de chumbo explicam
muito mais do que apenas imaginar que sua notoriedade possa ter-se dado porque algum Papa
a tivesse em boa estima. No revés histórico da ditadura militar-burguesa, ela não só procurou
responder a demandas autênticas dos trabalhadores, e intelectuais perseguidos pela repressão,
como Florestan Fernandes e Octávio Ianni entre muitos outros, como também produziu
ciência de ponta. Acrescente-se a isso que nossa identificação com essa escola passa também
por afetos alegres.

Acontece que, compondo este programa de pesquisa, descobrimos que o futuro não é
mais como era antigamente. Não nos compete entrar em pormenores, apenas revelar que já
não encontramos muitas ofertas de disciplinas (referimo-nos aos últimos seis anos pelo
menos) que se pautam por discussões teóricas “mais densas” com/sobre autores latino-
americanos. É claro que eles aparecem, mas, em todo caso, não como protagonistas do

14
debate1. Isso não quer dizer que deveríamos sair em busca de psicólogos latino-americanos
apenas para suprir um gosto requintado de bairrismo.

Buscávamos (buscamos!) um projeto para a Psicologia que, sem negligenciar a ciência


geral, propõe que teoria e práxis profissional assuma responsabilidade ética e histórica ante as
populações que atende, ou seja, que contribua para a transformação das condições subjetivas
que mantêm desumanizadas a classe explorada pelo capitalismo, que as impede do evolver de
sua identidade histórica; ansiavamos em encontrar mais discussões, aqui na PUC-SP, sobre
outros pesquisadores dessa área que confluem nesse horizonte, amarga ilusão.

Não é de surpreender, todavia, que o NIEHPSI (Núcleo Interinstitucional de História


da Psicologia), vinculado a esse programa, fosse um dos pouquíssimos lugares no Brasil que
possuía, já nos idos de 2010, um Arquivo dedicado à obra de Martín-Baró. Agora sim,
finalmente, respondemos à pergunta inicial sobre o que a PUC-SP tem a ver conosco e com
esta tese. Há sete anos nem a internet acudia quem quisesse acesso aos textos de Ignacio
Martín-Baró. Fazendo curta uma longa história, graças à colaboração de pesquisadores do
NIEHPSI tivemos a boa ventura de concluir nossas pesquisas relacionadas à “psicologia da
libertação”.

No que compete a esta apresentação, cumpre reportar que nesses anos de estudo
desfrutamos da oportunidade de estar nas quatro últimas edições bienais do Congresso
Internacional da Psicologia da Libertação (Venezuela, Colômbia, Peru e México,
respectivamente). Somando a isso, a revisão bibliográfica acerca do tema, adiantamos que, já
no início do século 21, não existe consenso entre pesquisadores que se acampavam ao redor
do proposto por Martín-Baró. Há divergências que vão desde o emprego de determinados
conceitos/categorias até mesmo à discussão sobre se esse conjunto de orientações ético-
políticas e profissionais deve ter como horizonte a emancipação humana ou a política. Parece-
nos, e essa foi uma de nossas suspeitas iniciais, que alguns de seus partidários têm se guiado
por bússolas que, apesar de apontarem a libertação como norte, perderam de vista a
correspondência crítico-concreta-revolucionária que seu principal articulador lhe conferia.

1
Consideramos como exceções as disciplinas ministradas pela Profª. Drª. Maria do Carmo Guedes Profª. Drª.
Bader Sawaia, e do Prof. Dr. Odair Furtado. Outra ressalva – não tivemos oportunidade de assistir as disciplinas
das Profas. Dras. “recém” contratadas Maria da Graça Marchina Gonçalves e Carla Cristina Garcia, que nos
disseram retomar esse debate.
15
Dessa esteira, e antes de maiores detalhamentos, defendemos a tese de que é possível
depreender da obra textual de Martín-Baró o esboço de um projeto ético-político para a
Psicologia. Dito isto, lapidamos nosso objetivo geral: empreender – por meio de pesquisa
histórica – apontamentos introdutórios para uma crítica do processo e do desenvolvimento do
que se notabilizou na América-Latina com o nome psicologia da libertação. Nossas fontes
primárias foram seus escritos (artigos científicos e publicados em jornais, livros, poemas etc.)
e o de alguns de seus proeminentes interlocutores na contemporâneidade. Para tanto,
amparamo-nos no materialismo histórico-dialético, como método de apreensão das unidades
de análise estudadas e da exposição da pesquisa.

Da pretensão geral desdobraram-se os seguintes objetivos específicos: a) efetivar uma


introdução crítico-ontológica dos fundamentos éticos, filosóficos, políticos e em alguns
momentos, epistemológicos, do processo de construção do projeto do militante salvadorenho;
b) rastrear alguns conceitos/categorias chaves da “psicologia da libertação” até a produção de
seu 13° Encontro Internacional e que sejam avanços para a Psicologia Concreta e, por fim,
mas não por isso menos importante, (c) a partir do inventário analítico dos itens do Arquivo
Martín-Baró da PUC-SP sistematizamos textos, fotos, objetos etc., digitalizando-os quando
possível, facilitando, assim, o acesso à pesquisa e difundindo a obra daquele autor.

Ressaltamos a pertinência de arrastar esta pesquisa para o campo da História da


Psicologia, pois trabalhar com historiografia não é sinônimo de estudar o passado, antes,
vincula-se intrinsecamente com a apreensão do presente; e, nas palavras do catalão Josep
Fontana, condiciona até mesmo a elaboração de projetos sociais futuros. Para evitar
determinismos históricos, afiançamos que só por meio da análise das relações de forças sócio-
históricas, político-econômicas e culturais de uma determinada conjuntura (particularidade)
pode-se historiografar desde o ontológico do ser social (afinal, partimos do pressuposto que o
humano é ativo nesse processo de construção).

Valendo-se do método materialista histórico e dialético, não nos competiu escrutinar a


psicologia da libertação somente pelo que “ela dizia de si própria”, antes partimos dos nexos
entre as produções teóricas de seus autores e seus efeitos concretos na realidade, ou seja,
consideramo-la inserida na totalidade social. Daí, também, o porquê da centralidade das
categorias historicidade e práxis.

16
Em suma, o primeiro capítulo expõe os desdobramentos do debate iniciado em nossa
dissertação, mas que agora, com fôlego renovado, põe sob novos ângulos o que compete às
relações entre método, historicidade e Psicologia.

Nossa pretensão foi registrar uma síntese de algumas discussões feitas nas aulas que
assistimos ao longo do doutorado, principalmente as da Profa. Dra. Mitsuko Antunes, do Prof.
Dr. Odair Furtado e da Profa. Dra. Bader Sawaia. Menos do que apresentar um típico capítulo
(quase apêndice) sobre o método empregado nesta tese, objetivamos, ao debater a relação da
historicidade com o método da Psicologia, propor um “ensaio” que sirva de ponto de partida
para interlocuções mais orgânicas entre ontologia do ser social e Psicologia Concreta; em
outras palavras, procuramos aproximar interesses de alguns núcleos de pesquisa deste
Programa, especialmente o de História da Psicologia, o do Trabalho e Ação Social e o da
Dialética da Inclusão e Exclusão. Esperamos que isso configure o início do pagamento de
uma pequena parcela da dívida de gratidão que temos como os que nos acolheram como
pesquisador em condições tão adversas.

Na segunda parte, construímos um painel das condições sócio-históricas e político-


culturais da América-Latina entre as décadas de 1960 e 1990, detalhando especificamente a
situação da luta de classes em El Salvador, bem como seu momento de indefinição político-
econômica no período. Posteriomente, esboçamos de modo panorâmico elementos básicos
que circundam a problemática “ético-política”. Além disso, posicionamo-nos teoricamente em
relação a essas complexas esferas do ser social recorrendo ao longo e inacabado debate
iniciado pela tradição marxista. Na terceira e quarta dobras tentamos domar o touro pelos
chifres. Discorremos acerca de como os debatedores da obra de Ignacio Martín-Baró a
retratam desde uma proposta teórica revolucionária a uma irreconhecível e submissa
referência “pós-construcionista social”. Por fim, dedicamo-nos a uma exposição crítica dos
escritos do jesuíta, ressaltando aspectos centrais (elementos teóricos e políticos) do que
constituiu seu modo peculiar de articular ciência e práxis.

***

A crítica ao que analogamente chamaríamos de colonialismo intelectual feita por algumas


vertentes da psicologia social feita na America-latina não deve necessariamente negar o
conhecimento historicamente produzido no chamado primeiro mundo. Defendemos, contudo,
17
que essa apropriação seja “crítica”, na acepção hegeliana/marxiana do termo, tal como neste
estudo ela foi vertida.

Recuperar e fortalecer obras dos autores que produziram teorias psicossociais sobre o
continente é preciso. Nessa direção, a psicologia da libertação é relevante, ainda que a
compreendamos dentro de seus limites ideopolíticos e epistemológicos. Contundentemente,
ela ocupou-se, pois, principalmente com Martín-Baró e algumas poucas exceções, com
questões pertinentes aos interesses concretos das classes exploradas da América Latina, mas
não só dela. Afinal, uma ciência que se encarna não é a que trata o trivial como extraordinário
apenas por ele ter acontecido na geografia X e não na Y, mas é a que parte da dialética entre
teoria e práxis para conjeturar seus fazeres. Veremos como a preocupação (também ética) de
captar a historicidade dos processos e fenômenos psicossociais é condição sine qua non para
coerência entre a crítica teórica e a da práxis, e mais, como quando negligenciamos essa
categoria possibilitamos que diversas “psicologias” tornem-se reprodutoras e perpetuadoras
da ideologia burguesa. Daí o porquê da historicidade ser mediação transversal de toda esta
pequisa.

Compreender a função social (concreta) da Psicologia na vida cotidiana é tarefa


complexa. Em uma sociedade calcada no individualismo, e que, além disso, inviabiliza a
individualidade, confundindo-a com o primeiro, que surge como legítimo e útil (e, de fato,
nesse modo de produção tem serventia), termina por produzir uma ciência pouco combativa,
incônscia de suas próprias limitações históricas e principalmente desorientada eticamente
quanto às suas potências nas lutas pela emancipação humana.

Além de arrogar-se como saber científico autêntico (ou pelo menos na tentativa de se
legitimar como), sua utilização predominante tem servido à manutenção das posições, nas
estruturais sociais, dos que exercem poder econômico-político. É comum, por exemplo,
pesquisas divulgadas nos grandes meios de comunicação, suspostamente vínculas a ciência
psicológica, conterem descrições psicologizantes que enfaticamente reduzem problemas
pertinentes aos modos como se dão as relações sociais às formas de pensar e sentir do
indivíduo A ou B. Nessa direção, a psicologia hegemônica é componente privilegiado da
ideologia burguesa; camufla a exploração e sabota a luta de classes. Muitas dessas teorias
circulam muito além das faculdades e das clínicas de atendimento e por isso nosso combate a
elas deve ultrapassar o campo das “batalhas das ideias”.

18
Em contraposição, Martín-Baró defende uma construção científica cuja fonte nutritiva
(ou saber) seja a realidade; além disso, que tenha práxis intrinsecamente vinculada aos
interesses concretos das classes exploradas, caracterizando-se principalmente por um
chamamento ético aos profissionais da área.

Os psicólogos vinculados a ela são convocados a assumir responsabilidade de


transformar toda ordem social que beneficie uma minoria em troca da exploração da força de
trabalho da maioria. Não se trata, todavia, de presunçosamente superar conflitos que adoecem
a Psicologia, mas de, ao analisar temáticas relevantes à realidade latino-americana, negar
qualquer tipo de neutralidade.

É sentença recorrente nos interlocutores da “psicologia da libertação” lembrar que,


para o propositor desse horizonte libertador, se a ciência psicológica não é convidada a
intervir nos dispositivos socioeconômicos reais que promovem injustiça e desigualdade
sociais, por outro é incitada a intervir nos processos subjetivos de legitimação ideológica que
as sustentam. Mas, afinal, quais os principais traços desse projeto?

Seu principal autor2

José Ignacio Martin-Baró, nascido em Valladolid, estudou seu bachillerato general na


Espanha, concluiu o bacharelado em Filosofia e Letras na Colômbia e o de Teologia na
Bélgica. Licenciou-se em Filosofia e Letras na Universidade Javeriana de Bogotá e em
Psicologia na Universidade José Simeón Cañas (UCA), em El Salvador; obteve, também,
títulos de Master of Arts - em Ciências Sociais (1977) e o de Doctor of Philosophy (Ph. D) em
Psicologia Social e Organizacional (1979), ambos pela Universidade de Chicago.

Na UCA ocupou cargos de vice-reitor acadêmico de pesquisas e grados superiores, foi


membro da junta de diretores, diretor do Instituto Universitário de Opinião Pública, chefe do
departamento de Psicologia e Educação, professor titular da cátedra de psicologia social e
membro da Sociedade Salvadorenha de Psicologia e da American Psychological Association.
Ademais, foi vice-presidente da Sociedade Interamericana de Psicologia para México,
América Central e Caribe.

2
Elementos desta síntese também podem ser lidos em Pereira (2013).
19
Martín-Baró, ou “Nacho” como era conhecido, publicou onze livros, inúmeros artigos
e capítulos de caráter científico e cultural em diversas revistas latino-americanas e
estadunidenses. Na década de 1980, sua bibliografia versou predominantemente sobre El
Salvador desde os aportes da psicologia social. Mesmo sendo professor visitante em várias
universidades, dedicou a maior parte de suas pesquisas à situação sócio-política daquele país,
onde lutou abertamente pelo que chamava de libertação. No dia 16 de novembro de 1989 foi
assassinado pelas forças repressivas salvadorenhas dentro da Universidade José Simeon
Cañas, em San Salvador.

Esboço das linhas gerais de sua proposta

Suas definições para a Psicologia (psicologia social, psicologia da libertação e


psicologia política, principalmente) têm como marca distintiva a apreensão da historicidade
concreta do conhecimento humano. Desta maneira, qualquer tentativa de uma “produção
ideativa” universal não articulada à História seria equívoca. A realidade latino-americana, por
exemplo, demanda análises desde a particularidade de seu desenvolvimento sócio-histórico e
cultural, fugindo de esquemas formalistas e atemporais. Há forte teor crítico contra
psicologias sociais que compreendem os indivíduos abstraídos de sua realidade –
possibilitando interpretações pseudocientíficas, individualistas e a-históricas3. As ciências
humanas têm, para o autor, vocação emancipatória, tanto pelo compromisso com saúde e
bem-estar humanos quanto por sua intrínseca vinculação com a liberdade.

Sua proposta implica, portanto dialeticidade histórica. Para ele, definições genéricas
importadas de outras realidades são - frequentemente míopes. Em contraposição aos pontos de
vista clássicos da psicologia social hegemônica na América Latina daquele período,
propunha: a) apreensão da realidade como movimento dialético; b) enfoque conflitivo para
apreensão da ordem social e c) clareza sobre seu papel político na sociedade capitalista. Seu
intento, a certa altura, foi consonante ao conceito de ciência própria, do colombiano Orlando
Fals Borda, que também se contrapõe ao mimetismo intelectual que assolava o continente.

3
Seu projeto teórico é expressão em grande parte da posição política vivida por Martín-Baró, que era
abertamente contra a existência de uma ordem supostamente natural, que colocava cada indivíduo num
determinado lugar dentro da estrutura de classes sociais.
20
O objeto de estudo da psicologia social para Martín-Baró, que mudou ao longo de suas
pesquisas, mas que geralmente lhe é atribuído, é a ação como ideologia, tanto a das pessoas
como a dos processos grupais. A ação, para ele e para nós também, deve ser apreendida como
atividade constituída por significação e sentidos, como articulações das esferas singulares,
particulares e universais da vida humana; trata-se de apreender o momento em que o
individual se faz social e vice-versa.

Os que aderem à sua proposta devem mudar seu horizonte de atuação, o que não
significa uma mudança no campo de trabalho propriamente dito, mas em suas práxis. Os
limites dessa asserção serão explorados com mais detalhes no quarto capítulo. O que deve
definir esses profissionais são suas ações concretas realizadas COM os
indivíduos/comunidades, e não nas PARA eles.

A meta é apreender teoricamente determinações socioeconômicas e culturais,


intergrupais e interpessoais, de dada realidade objetiva. E além de assumir o partido da
maioria explorada e oprimida pelo capitalismo deve-se aprofundar os conhecimentos sobre a
própria realidade, envolvendo-se criticamente no processo de dar às gentes condições para
alterar o curso de sua história. Trata-se de fazer com que esta ciência assuma
responsabilidade histórica frente às sociedades que atende.

Para cumprir essa tarefa libertadora, impõe-se: a) estudo sistemático das formas de
“consciência popular”; b) resgate e potencialização das “virtudes populares”; e c) análise das
“organizações populares” como instrumento de libertação. E seus desafios: a) a definição de
problemas específicos; b) de esquemas teóricos coesos com a realidade; e c) da objetividade
científica de sua práxis.

Martín-Baró constatou que os psicólogos encaram reptos para os quais provavelmente


não foram preparados. No entanto, ele não apenas arrazoa justificativas para essas
deficiências, mas propõe que nos engajemos na produção de alternativas concretas. Para tanto,
destaca três pontos fundamentais: a) necessidade de reconstrução da “imagem” profissional;
b) imprescindível adoção dos interesses das maiorias exploradas; c) mudança do lugar
cômodo frente ao sistema social que particularmente nos beneficia.

A Psicologia pode ocupar destacado papel na apreensão dos conflitos entre os


interesses das diferentes classes sociais e tem condições de perceber que nem todos eles são
igualmente promotores de consciência e/ou visam promover o bem estar do gênero humano.
21
Sem embargo, descolada da historicidade concreta, seu valor (o da Psicologia) se resume à
ideologização aburguesada da vida cotidiana.

***

Interessou-nos, ao longo destas páginas, expor alguns nexos imprescindíveis entre


práxis profissional (psicólogo social, professor, pesquisador, conferencista, vice-reitor e
clérigo, por exemplo) e a construção de um projeto para a Psicologia que claramente se insere
em um determinado conjunto ético-político de atividades e que enfrentava os limites impostos
pelo capitalismo.

Fomos desafiados, ao estudar a vida e a obra de Martín-Baró, a depreendermos


princípios éticos que se concretizaram em sua práxis e a partir dela delinear seu horizonte
político, sem cindir produção escrita e suas atividades na vida cotidiana. Analisamos como,
naquele projeto, articularam-se decisões pessoais concretas, desenvolvimento intelectual e
militância político-religiosa na totalidade social. Cremos demolir, com estudos desta monta,
toda sorte de “purismos esquerdistas” que associam o adjetivo “revolucionário” a alguns
processos grupais ou indivíduos vinculados, única e exclusivamente, ao rótulo “marxista”.

Tal tarefa, até onde conhecemos, só pode ser realizada seguindo de perto o
materialismo histórico-dialético; ao mesmo tempo em que temos por claro que ele não é o
único instrumento de luta da classe trabalhadora; afora o fato de que para alcançar essa
conclusão foi preciso utilizá-lo4.

À guisa de síntese

Após o introito do ensaio sobre historicidade, em que apresentamos o fio condutor


desta análise, e do capítulo mais panorâmico sobre as condições concretas da América-Latina
entre as décadas de 1960-1990 e da exposição da acepção teórica em que vertemos “ético-

4
Estamos cientes que ao destronar o monopólio da ciência como instrumento de luta, alguns de nossos
camaradas podem nos condenar ao nono círculo do inferno, mas cremos que esse tipo de afirmação é necessária
em tempos como os nossos.
22
político” (sem os quais um estudo desde o materialismo histórico-dialético seria
impossibilitado), cremos que carpimos minimamente o terreno para articulá-los ao objetivo
central desta tese que é empreender apontamentos introdutórios para uma crítica do processo e
do desenvolvimento da chamada psicologia da libertação. A terceira divisória explicita, ao
mesmo tempo em que uma nova empreitada (uma síntese crítica acerca de como o projeto de
Martín-Baró é apresentado por alguns de seus debatedores), o que seria a sequência lógica da
tarefa que teve início em nossa dissertação de mestrado, e que contém uma “descrição
simplificada” dos elementos/categorias/conceitos básicos que compõe o que chamamos,
naquela ocasião, de projeto ético-político da psicologia da libertação. O último capítulo,
núcleo duro da tese, condensa indicações preliminares e críticas dos pressupostos teórico-
filosóficos da proposta de Ignacio Martín-Baró para a Psicologia. Retomamos vários trechos
da primeira e da segunda parte ao longo do trabalho, pois elas são veias teóricas que
bombearam crítica ao que julgamos modestas contribuições às discussões sobre a Psicológica
na América Latina, que ruma à Psicologia Concreta.

23
1. MÉTODO E HISTORICIDADE: UM ENSAIO NOS TERMOS DA
PSICOLOGIA CONCRETA OU AINDA DA PSICOLOGIA.

A necessidade meramente convencional de produzir um capítulo acerca do método


convida-nos à resistência. Não pela já clássica relevância do tema para as ciências humanas,
como pretendemos expor adiante, mas porque sabemos que essa primeira parte é mecanizada
e pouco avança cientificamente. O que se constata em diversos casos é uma releitura sobre a
“perspectiva”, o “olhar”, o “paradigma” etc., dos principais autores dos quais se pretende
cuidadosamente partir, para não dizerem que o que se chamou pesquisa propriamente
científica, como disse Sérgio Luna (1997), não passa, na verdade, de uma útil e honesta
prestação de serviço à sociedade, ou, na pior das hipóteses, ao próprio pesquisador.

Um dos desafios será não perder de vista o objetivo geral da tese. Não caminhamos ao
nosso objeto de estudo seguindo uma linha reta; antes, o fizemos por meio de um movimento
centrípeto. Isso significa que o primeiro trecho não dedica-se apenas a justificar o método do
presente texto, mas almeja ser um esboço, um convite ao diálogo entre interessados nas
questões do método da Psicologia; ao passo que simultaneamente se propõe a apresentar
nossa unidade analítica de fundo: a historicidade. Pela complexidade do tema e por sua
relevância não tivemos a pretensão de esgotá-lo, a despeito de que ele condensa o esforço de
nossos estudos nos últimos anos.

Para dar cabo à tarefa, iniciamos com um apanhado sobre os fundamentos e os


pressupostos teóricos que sustentam o método de nosso trabalho, qual seja, o materialismo
histórico-dialético. Expomos como a historicidade fundamenta categorias fundamentais do ser
social (trabalho, valor, cooperação, linguagem, divisão social trabalho, por exemplo) e, ao
fazer isso, demostramos nossas premissas, que em nada são arbitrárias, e que versam sobre a
continuação do projeto iniciado por Liev Vigotski no encalço da construção de uma
Psicologia Geral. Procuramos ainda mostrar concretamente como a mediação dessa categoria
é condição sine qua non para apreender o processo de surgimento e desenvolvimento do
projeto ético-político da chamada “psicologia da libertação5”.

5
Os que acompanham as produções deste Programa de Psicologia Social perceberá que subjaz ao propósito
explícito da confecção desse ensaio um interesse em reaproximar alguns núcleos de pesquisas que o compõe.
24
Em outra oportunidade6, dissertamos, desde o materialismo histórico-dialético, sobre
consequências teóricas e práticas de se tomar como referência um pressuposto idealista ou
materialista para a acepção de História que subjaz uma teoria social; outras, e não menos
sérias, foram agora escrutinadas quando a questão se relaciona à ciência psicológica.

Nenhum dos autores que foram martelo e cinzel da tese ora apresentada, prescindem
da compreensão do movimento histórico-dialético das categorias (e mesmo do fenômeno ou
do pensamento) para suas formulações. Isso redunda em não pressupormos categorias a
priori, postas na realidade de antemão, mas considerarmos seu processo teórico de apreensão
um continuum só devidamente aprimorado quando consideradas: a) as contradições que lhes
são imanentes; b) a totalidade em que se encontram e são por elas são constituídas; c) as
mediações condicionantes de uma dada particularidade histórico-social. Essas afirmações são
tão precisas quanto é difícil sua exposição didática.

***

A História é a nascente de uma apreensão científica das diversas formas de


organização social dos modos de produção e reprodução da vida humana e, em última análise,
do próprio psiquismo. Os estudos sobre as etapas transicionais entre a chamada Idade Média e
a Modernidade romperam com uma dominante (europeia) concepção historiográfica que
atenuava, por vezes suprimia, a participação ativa dos humanos na construção de sua história.
Sua própria institucionalização (da História) como ciência requereu (e requer) alicerces
distintos e novos sobre seu objeto de pesquisa e seu método.

Aos não iniciados em historiografia não é incomum confundir “formas de registros


históricos” com os acontecimentos históricos em si. Por outro lado, alguns dos chamados pós-
modernos questionam até mesmo se algo além dos discursos sobre “registros históricos” seja
passível de apreensão; indagam-nos, jocosamente, se a História existe ou não seria ela outra
invenção dos letrados. É do átrio da platônica caverna que aqueles convidam-nos a voltar, que
propomos bater pedras lascadas, quantas vezes forem necessárias, para rememorar aos idiots
savants que a colisão entre determinadas rochas quando em contato com a atmosfera terrestre
foi capaz de produzir fogo há milhares de anos, e justamente o domínio e manejo da energia

6
Dissertação de mestrado de Pereira (2013).
25
gerada por essa atividade foi um dos fatores que possibilitaram transformar radicalmente
nossas relações sociais, intrapessoais e com a própria natureza.

É locus communis às constelações de escolas sociais e filosóficas, das que se


proclamam críticas às mais conservadoras, concederem à História relevância em seus
pressupostos e premissas. A necessidade de exemplos é mínima, mas do neopositivismo ao
existencialismo heiddegeriano, da defesa da razão à moda frankfurtiana ao irracionalismo
nietzschiano, ela permanece uma plataforma operacional basilar ao encadeamento lógico-
racional dessas propostas. Curiosamente o mesmo vale para os defensores do relativismo.

Um sério arrazoamento entre historiadores não deixaria de apontar que o pensamento/


“lógica” /método de apreensão da realidade, e por consequência da História, que têm maior
influência nos séculos 19 e 20, foi a dialética, para a qual a contradição é motor da História. E
foi Hegel quem primeiro dissertou sobre suas implicações no ofício do historiador.

O extenso domínio do protocolo hegeliano só encontrou adversários de igual impacto,


no acervo do conhecimento científico, nas proposições de Karl Marx e Friedrich Engels
(MARX & ENGELS, 1846/2009).

Quando a sociedade burguesa centro-europeia, dos séculos 18 e 19, alteava seu voo de
galinha, impulsionada pela dinâmica do início do capitalismo, pela primeira vez os avanços da
indústria possibilitaram que sociedade e natureza se distinguissem como nunca antes, embora,
e evidentemente, permanecessem em uma inerente relação vital. A realidade histórico-social,
naquele cabimento, passou a ser percebida como algo coproduzido pela atividade humana e
não por forças sobrenaturais. Os desdobramentos político-econômicos dos ciclos
revolucionários europeus dos séculos 18 e 19 acirraram de modo definitivo as lutas entre
proletariado, burguesia e monarquia. Foi a partir da análise da inconciliável relação entre
classes (nesse caso burguesia e proletariado) que Marx e Engels cientificaram que aquela
última (o proletariado) é a que conteria (contém!), em si, o potencial de superação da
exploração do humano pelo humano.

Essa particularidade histórica foi ventre do que posteriormente adquiriria notoriedade


como materialismo histórico-dialético. Esse método de apreensão e exposição do real não
apenas desnaturalizou a forma tendenciosa e enviesada das produções científico-filosóficas
hegemônicas daquele período, mas também minou as artimanhas burguesas de fazer com que
seus interesses particulares (de classe) fossem assumidos como os da “universalidade
26
humana”. Raiou no horizonte histórico não apenas uma ferramenta crítica de luta para a classe
trabalhadora, mas também uma inovadora acepção do que faz, ou melhor, do que devemos
fazer como cientistas: transformar a realidade; não apenas contemplá-la ou interpretá-la.

1.1 Psicologia, método e historicidade

Este trecho pretende expor considerações críticas acerca das contribuições de Lukács
(1986/2013) para a teorização do método científico e de Vigotski sobre como apreender o
ontológico do/no ser social; ou seja, almeja-se estabelecer nexos entre eles.

A seguinte inscrição figura no pórtico deste ensaio:

Cabe-nos, pois, no âmbito do conhecimento, empreender tais relações [entre história


e psicologia]. Tal questão é complexa e envolve pelo menos dois polos: de um lado
a dimensão histórica dos fenômenos psicológicos e da própria Psicologia, e de outro
lado a dimensão psicológica do processo histórico. Ocupar-nos-emos apenas de um
polo dessa questão, qual seja, as determinações históricas sobre a ciência psicológica
e seu objeto de estudo (ANTUNES, 1988, p. 1).
Nossos desígnios, efetivamente, submetem-se aos interesses de uma ciência “bem
delimitada”: a psicológica. O propósito, portanto, foi fazer face ao “outro polo” na referida
citação de Antunes (1988).

Não é preciso grande destreza acadêmica para, em uma revisão bibliográfica sobre a
temática, encontrarmos a monumental obra de Vigotski, intitulada Sentido histórico da Crise
na Psicologia (1926/1996). Na síntese manuscrita por aquele autor, um problema desponta
como demanda urgente à construção de uma Psicologia Geral, ou seja, materialista histórico-
dialética: a questão do método.

O método de apreensão, tanto do movimento do psiquismo em si quanto da


subjetividade (e suas especificidades), é, quase um século depois do referido texto, senão
centro das atenções, certamente centro dos problemas para a Psicologia. Não à toa, desde o
introito do maduro escrito de Vigotski, A construção do pensamento e da palavra
(1934/2009), pode-se contemplar seu esforço intelectual por erigir argumentos que denotam a
importância de um método orgânico às necessidades e demandas específicas da ciência que
por excelência engendra conhecimento sobre o mais complexo organismo vivo do planeta.
Talvez, justamente essa fragilidade cobre o alto preço de tão rarefeitos (consideráveis)

27
avanços no desvelamento das estratégias ideo-políticas que asseguram historicamente às
classes dominantes sono tranquilo.

As citações sobre esse empenho na obra de Vigotski são tão abundantes que se torna
desnecessário enumerá-las. Mas, cabe mencionar dois textos: um de sua juventude, Psicologia
da Arte – no tocante às discussões que versam sobre “como” apreender o fenômeno artístico;
e outro de sua maturidade, o supracitado A construção do pensamento e da palavra, em que é
possível inferir sobre quanto o já mais robusto método histórico-crítico-psicológico permite-
lhe refinar com singular acuidade suas críticas às principais contribuições da ciência
psicológica sobre o desenvolvimento infantil, por exemplo.

Uma investigação sobre método e historicidade na Psicologia que desponte com


Vigotski não é de todo arbitrária, pois suas pesquisas, quando compreendidas desde uma
análise imanente, retemperam não só o campo da psicologia científica, mas, também, o da
ciência da História, e sem dúvida o da própria Filosofia. Logo, o motivo de Vigotski ser abre-
alas deste ensaio justifica-se não apenas por raras qualidades acumuladas em um só
pesquisador, mas, afora isso, ainda há a quadra histórica soviética e sua conjuntura intelectual,
que foram ímpares. Boas pesquisas dão conta de historiar aquelas condições objetivas e a da
ciência psicológica (ALMEIDA, 2008, LURIA, 1969/1992, SANTOS 2015, WRASSE, 2017,
por exemplo), bem como da amplitude e mesmo do caráter preditivo e fresco de alguns dos
temas outrora propostos.

Logo, na nascente desta pesquisa estão algumas conclusões depreendidas da teoria


vigotskiana. Ao longo do itinerário voltamos a elas, lapidando-as com contribuições de
teóricos-militantes do materialismo histórico-dialético que, por não necessariamente se
debruçarem sobre questões relacionadas às funções psicológicas, raspam-lhe falhas e, em
alguns momentos, por percursos distintos, elucidam e corroboram o proposto7.

7
Isso ocorre precisamente no que se refere aos “caminhos percorridos” pelo psiquismo, quando se dispõe a
apreender a ontologia do ser social, considerando a materialidade histórico-dialética da realidade.
28
Breve apologia da historicidade materialista-dialética8

A partir do século 20, minguaram os manuais de psicologia (com alguma credibilidade


acadêmico-científica) que versam sobre uma “tentativa de explicação” do psiquismo sem lhe
postular, direta ou indiretamente, atributos “dinâmicos”, o que significa, em outras palavras,
que ele (psiquismo) é sempre estudado em relação ao tempo (cronológico) e há de se revirar
muitas latrinas acadêmicas para encontrar uma que negue, explicitamente, a incidência de
afetação das condições sociais sobre ele9.

Que não transformamos arbitrariamente nem a História nem a realidade, talvez seja
um dos poucos consensos entre leitores de Marx. As profundas críticas efetuadas à noção de
progresso, encabeçada principalmente pelo caldo cultural do romantismo alemão do século 19
e pela “feijoada nietzschiana”, cravaram penosos sulcos nas costas das ciências humanas. O
nomeado giro-linguístico, a pós-modernidade, a evaporação das “grandes meta-narrativas” e,
por fim, a suposta inaptidão da razão para reger as sociedades humanas infundiram nos
corações intelectuais fundo questionamento sobre o quefazer dessas ciências no capitalismo10.

Os confundíveis arautos dessa mesma pós-modernidade anunciam aos ventos uma


certeza: tudo é relativo. Afinal de contas, uma história não mais conduzida pelas mãos
soberanas do Espírito (Deus ou mesmo a razão hegeliana), mas completamente ao sabor dos
caprichos da irracionalidade humana e da inconsciência, por contrapartida só poderia ser
conduzida, e mais ainda, historiografada, com justeza, sob a batuta do relativismo. E é sobre
isso que almejamos retrucar.

8
Longe dos significados que orbitam as esferas da teologia, aqui o vocábulo remete à acepção exposta no
clássico livro de Marc Bloch, Apologia da História. A partir de agora entrelaçaremos criticamente o exposto em
Para uma Ontologia do Ser Social, tomos I e II, de G. Lukács, e algumas obras de Vigotski, principalmente.
Cremos que a razão dessa escolha seja relativamente óbvia para frequentadores dos debates marxistas acerca do
tema, justamente pela extensão e amplitude da obra desses dois intelectuais; sem contar que eles, no instante em
que este texto nasceu, são as “principais referências europeias” (tirante Marx) dos professores vinculados à linha
“mais ortodoxa” da Escola de São Paulo de Psicologia Social, situada institucionalmente no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social da PUC-SP.
9
Ainda sobre isso, priorizamos a contrapelo de uma problematização sobre o papel designado à História nas
justificativas racional-tecnológicas de certas técnicas e/ou instrumentos de algumas das principais escolas de
psicologia ocidentais, por exemplo, ou ainda, em vez de manuscrever os pressupostos histórico-filosóficos que
sustentam essas técnicas, tal como figuram nos livros, trouxemos à luz a categoria (historicidade), que atravessa,
invariavelmente, a práxis dos indivíduos que se vinculam a essas escolas.
10
Uma vez mais insistimos que bons livros sobre o tema (História dos homens, de Josep Fontana, por exemplo)
discutem melhor do que teríamos condições de fazer aqui e facilitam a compreensão deste que foi e é o período
mais produtivo e perverso do gênero humano.
29
A preocupação do húngaro György Lukács na primeira parte do Para uma ontologia
do Ser Social I (atentem-se para a atualidade científica da discussão do texto que data de
1962) ilustra não apenas como a concepção de história oficial tivera seu telos e função
caducada, mas também como a própria noção de avanço temporal quando em relação com um
espaço determinado foi transformada nesse processo11. Não se encaixa no compasso, e nem
temos competência, para demonstrar a razão das teorias da(s) física(s) contemporânea(s);
entretanto, uma vez ferida de morte as certezas cartesianas-newtonianas, quando a dúvida
deixa de ser princípio para o método e passa a produto necessário de vários deles, os
empenhos científicos sobre como (mesmo a possibilidade de) conhecer a verdade/realidade
das coisas existentes foram abalados.

A História tem sido, por excelência, a guardiã memorial da verdade debatida pela
Filosofia. Lukács (1984/2012) provê meios cognitivos e argumentos ontologicamente
embasados à tripulação de cientistas que se dispõem à exploração das maneiras como
diferentes teorias condicionam a própria tarefa de apreender a realidade, sejam elas com o
intuito de transformá-la ou apenas de conhecê-la. Para sufocar qualquer dúvida quanto ao
nosso engajamento, ao discutirmos historicidade, almejamos defender que existem verdades
científicas passíveis de apreensão, e mais, notabilizar como tanto o desinteresse em seu debate
quanto seu descrédito estão totalmente alinhados aos interesses das classes dominantes12.

Um parênteses. Um arrazoado que se preze no tocante à historicidade não se furtaria a


alicerçar, antes de quaisquer premissas, quais os fundamentos ontológicos dessa categoria; ou
seja, e em nosso caso, acerca do que é a realidade sobre a qual/dentro da qual o psiquismo é
constituído, sobre a base concreta que possibilita a apreensão de sua gênese. Essa sinuosa rota
é a única que garante segurança, tão cara à produção científica rigorosa sobre o irromper
qualitativamente distinto das funções psicológicas humanas em relação a tudo o que figura na
consciência dos outros animais. Como almejamos elucidar, essas funções se dão em conexão
indissociável com o desenvolvimento fisiológico/anatômico do corpo humano e da cultura em
que este corpo se desenvolve.

11
Naquele período as ciências duras sofreram significativas mudanças; Heisenberg, Einstein e outros tantos não
tão famosos iniciaram o que posteriormente se tornaria febre nas ciências sociais, a relativização do binômio
espaço-tempo na historigrafia. Do relativismo pós-moderno ao princípio da incerteza, restou às ciências humanas
uma permanente desconfiança sobre sua credibilidade.
12
Trabalharemos essa questão no momento oportuno.
30
Entre ontologia do ser social e ciência psicológica: embates necessários

Quando asseveramos que “essência e aparência” (ou mesmo fenômeno social) são
historicamente condicionados, sustentamos que não nos referimos a qualquer História. De
igual modo, quanto à definição de realidade. Neste trabalho defendemos que está significa:
“[...] uma indissolúvel unidade entre essência e fenômeno, e que apenas post festum é possível
a delimitação precisa dessas duas esferas [...]” (LESSA, 2002, p. 55)13.

Em suma, a acepção de teoria, em termos marxianos14, pode sintetizar-se: apreensão


ideal (no psiquismo) do movimento do real por meio do pensamento – em Vigotski, também
mediados por afetos, emoções, motivações etc. Se, por um lado, esse enunciado teórico-
filosófico é veraz, por outro, não diz muito sobre “como isso ocorre”. As preocupações de
Vigotski ganham destaque justamente nessa cena. No capítulo 6 d’A Construção do
Pensamento e da Linguagem o autor propõe uma complexa (e criticável) análise de
experimentos sobre como o “pensamento” – da afirmação marxiana acima – sofre alterações
qualitativas ao longo da vida humana. A esse processo, Vigotski (1934/1982) nomeia
“formação de conceitos15”.

Não obstante, a relevância da análise sobre a formação dos conceitos no psiquismo,


nosso vigor se centrou em outro tópico: para darmos lastro científico à categoria historicidade,
devemos considerar que não só a História (e sua porção de materialidade) tem seu
desdobramento manifesto pela dimensão temporal, mas também as próprias funções
psicológicas. Se o imbróglio antes era afirmar a possibilidade objetiva (científica) de
apreensão teórica da realidade, ele tende a se centuplicar ao considerarmos a relação temporal
influente (mas não exclusivamente determinante) tanto para a apreensão teórica da História,
por meio do materialismo histórico-dialético, quanto para o desenvolvimento ontogenético do
psiquismo do pesquisador. Nas cartilhas vulgarizadoras da literatura marxista, os aspectos

13
Sobre essência e fenômeno vale dizer, também: “A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno
e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se
manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente
por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno”
(KOSIK, 1963/1976, p. 11).
14
“Marxiano” se referirá aos traços da pena de Marx (com ou sem colaboradores) e “marxistas” a todos os seus
comentadores.
15
Formação de conceitos não é o único componente do “pensamento”, mas quando nos referíamos ao “modo
científico de apreensão da realidade”, sem dúvida, passamos pela questão da formação de conceitos.
31
“objetivos”, exteriores, da discussão sobre ontologia do ser social, e mesmo sobre a História,
são hipertrofiados; e nesse seguimento, afiançamos que Lukács atingiu um alvo que poucos
acertaram, mas Vigotski um que ninguém sequer tinha visto.

O ajuste brusco, mas mínimo, dos parâmetros de nossa reflexão supõe que os pontos
elencados finalmente aram a terra para as dúvidas que pretendemos pôr aos leitores de Lukács
e Vigotski, no que se referem sumariamente a: 1º) à problemática da apreensão
(qualificada/científica) do movimento da realidade por meio dos nexos entre sistemas
psicológicos superiores (formação de conceitos, por exemplo) que se dão necessariamente na
consciência de um corpo singular (relação entre ontogênese e historicidade) e 2º) aos
processos da objetivação do conhecimento mediados na consciência pela palavra.

Uma das discussões mais proeminentes da Ontologia do ser social lukacsiana16 tenta
responder a questão: o que é a realidade social compreendida em sua historicidade imanente?
Em suma, o húngaro propõe a construção de um sistema teórico que garante que o
conhecimento adquirido por um indivíduo é proveniente de uma realidade exterior a ele
mesmo, e mais, que é possível garantir que esse conhecimento é passível de objetivação pela
consciência.

Essa complexa resposta é dada a partir da relação entre dois componentes


fundamentais à práxis humana: teleologia e causalidade (trabalho). Para chegarmos a isso,
todavia, é preciso considerar que é no/pelo trabalho que se dá a construção (formação) da
consciência, é na/pela atividade (práxis) que as funções psicológicas superiores se
desenvolvem e complexificam-se.

Uma breve explicação talvez ajude a fluidez da nossa exposição. A teleologia,


segundo Lukács (1984/2012), é a capacidade humana de idear o fim de uma atividade, de
projetar com finalidade uma determinada ação, antever - na consciência - a construção de uma
casa antes de mexer nos tijolos, por exemplo. Essa característica, nesses termos, não é
encontrada em nenhuma outra espécie animal. Já causalidade é a substancialidade presente na
natureza e nas relações sociais, matéria-prima de qualquer atividade transformadora dos
humanos.

16
Vale lembrar: para Lukács (1984/2012) o ser social é ontologicamente distinto de natureza.
32
No processo, necessariamente humano, do pôr teleologicamente orientado, a
causalidade torna-se causalidade posta, sem com isso deixar de ser causalidade. O surrado
exemplo do machado de pedra elucida esse ponto; a mesma pedra apoiada e presa a um
pedaço de madeira transforma-se num martelo, sem deixar de ser pedra.

Aqui temos a impressão que Lukács põe a atividade humana em um microscópio, o


que lhe permite perceber de maneira amplificada o processo de transformação da realidade no
“momento em-si” da ação humana. Ele encontra na relação entre teleologia e causalidade
posta momentos fundantes para a compreensão objetiva do trabalho (nesse sentido, atividade
humana) e afirma que é justamente quando consideramos essa indissociável articulação que o
conhecimento torna-se passível de objetivação; sua análise baseia-se no pressuposto de que a
teleologia é uma categoria objetiva, apesar de posta pela subjetividade. A cadeia lógica é
coesa; entretanto, vale a pena problematizarmos alguns pontos.

Como garantir a objetividade de uma categoria que é “posta” necessariamente pela


subjetividade humana? Lukács (1986/2013) explica que mesmo sendo imprescindível
considerarmos a “alternativa”, por exemplo, como mediação central da relação teleologia-
causalidade, em hipótese alguma o leque das possibilidades (legalidades atuantes) perdem os
nexos com a causalidade.

Sintetizando: a vitalidade e movimento da categoria trabalho em Lukács está na


articulação teleologia-causalidade. Toda essa processualidade teleologicamente orientada
requer uma consciência que a ponha (sem consciência não há teleologia); mas, consciência e
teleologia apenas existem no interior do ser social e, portanto, em relação com a
materialidade.

Para Lessa (2002), a capacidade humana de generalizar conhecimentos oriundos da


realidade não é a execução de uma “faculdade abstrata” do psiquismo humano sobre o real,
antes a própria realidade conteria traços generalizáveis (em si mesma). O procedimento de
apreensão desses “traços” constitui o engendramento inicial do conhecimento científico. A
objetivação dos objetos reais dá cabo a uma síntese, no psiquismo, desse processo (o
momento do trabalho em que a teleologia se transmuta em causalidade-posta); é o que funda o
ser social como causalidade-posta a si próprio17.

17
Não sem estranheza, esse parágrafo seria tolerado pela crítica psicológica contemporânea! Afinal, como pode
uma teoria social confessar que a substancialidade do real possui traços generalizáveis em si mesmas? Como se a
33
Pela precisão do embate e, no contexto em que Lessa (2002) arguiu sobre generalidade
e superação das alienações, ele declara:

(...) a universalidade das categorias científicas decorre, em última análise, não de


uma atividade generalizadora e abstrativante da consciência. Pelo contrário, a
consciência apenas pode generalizar, em categorias universais, seus conhecimentos
acerca do ser-precisamente-assim existente porque este, em seu em-si, desdobra
relações genéricas que são expressão, em última análise (repetimos), da unitariedade
originária do ser. (LESSA, 2002, p. 89)

A leitura desacompanhada da obra de Vigotski, sem mencionar outras que discutem o


tema, já seria suficiente para munir o entendimento, dos que se subordinam à ciência, de que o
processo de “generalização” na/para a consciência é mais complexo do que sua aparência
fenomênica. Lembremos que (e mesmo seguindo Lukács, 1986/2013) a palavra surge em uma
relação prática com a realidade. Categorias, conceitos, lógica etc. não são frutos de uma
relação imediata com ela, antes, também são componentes de uma atividade complexa do
psiquismo e que exige nexos distintos entre diferentes funções psicológicas superiores. Sem
embargo, o fato de sua ocorrência empírica ser verificada desde a tenra idade (o uso da
palavra), só com a maturação fisiológica e a apropriação histórica da cultura pelo psiquismo é
que nela se efetuam dramáticas mudanças. Esse único argumento já assombra a legitimidade
da alegação sobre a generalização, feitas por Sérgio Lessa, mas que se apoia em Lukács; mais
ainda, quando se referem aos processos que envolvem as categorias alienação e objetivação
do conhecimento.

Ainda no cerne da questão, Lukács (1986/2013) empregou uma categoria polissêmica


para tecer conexões objetivas entre mundo exterior e consciência: o reflexo. Parece-nos que o
significado corriqueiro do termo dificulta a apreensão do que ele pretendeu. Para o autor,
“reflexo” é categoria decisiva da consciência, pois seria por seu intermédio que a
objetividade, tanto da formação da consciência quanto do desenvolvimento do conhecimento
para-si, seria atestada. Lessa (2002) enfatizou que, a despeito dos significados que a palavra

própria competência à generalização não fosse prerrogativa de “operações” do psiquismo humano. Qualquer
réplica consequente ao questionamento que não mencione a função da palavra na/para consciência é ficção
científica.
34
evoca, reflexo não é passividade, antes, trata-se de um movimento ativo da consciência. Para
Lukács o máximo de apropriação do real pela consciência é o reflexo18. Em outras palavras:

[...] o fenômeno social do reflexo não apenas reproduz de forma aproximativa o real
na consciência, mas também realiza sujeito e objeto enquanto polos distintos da
relação gnosiológica. O conhecimento, portanto, não é a superação da distância entre
o subjetivo e o objetivo, mas justamente sua mais plena reprodução: apenas tendo
por mediação essa distância pode o conhecimento se realizar enquanto movimento
de constante aproximação da consciência ao ser. Em outros termos, a crescente
aproximação do reflexo ao real implica, também, o desenvolvimento da consciência
sobre a distinção entre sujeito e objeto e o desdobramento de formas crescentemente
evoluídas do para-si dessa relação. (LESSA, 2002, p. 98).
No decurso de “refletir ativamente a realidade”, o “reproduzido” se distingue da
realidade em si, coagula-se em uma “realidade” própria da consciência, sem deixar de ser
determinada por seu objeto. O reflexo, então, cria uma nova objetividade que, coadunada a
outros fatores objetivos e subjetivos, é determinante do ser-precisamente-assim de cada
atividade teleológica do psiquismo, de cada ato humano (LESSA, 2002).

O sequente excerto de Lessa (2002) não poderia ser mais adequado para introduzirmos
os apontamentos de Vigotski sobre o mote: “Teleologia e causalidade, de algum modo [grifo
nosso], alcançaram sinteticamente ‘algo que é em si homogêneo: o processo e o produto do
trabalho’, sem desprezarmos o fato de que esse ‘de algum modo’ não foi ainda plenamente
elucidado [...]”. (p. 105).

Vigotski (1934/1982) afirma que as funções psicológicas superiores são mediadas pela
linguagem, e mais, que para a compreendermos o complexo desenvolvimento do
conhecimento no psiquismo é preciso entender a função da palavra (e, também, as
modificações dessas funções ao longo do desenvolvimento de um indivíduo). Vale lembrar
que a palavra é uma das formas de expressão humanas – ainda que seja a mais desenvolvida e
a que possui a capacidade de síntese das possibilidades presentes nas diferentes linguagens,
como a matemática ou a artística19.

18
Não encontramos no texto do Lessa (2002) referências da origem ontogenética do reflexo; se ele é parte
integrante da consciência ou se é uma função que se desenvolve ou hipotrofia à medida que é condicionado
historicamente.
19
O que usualmente denominamos de consciência é fenomenicamente constituída pela linguagem. A consciência
“superior”, ou mais desenvolvida, é para Vigotski (1934/1982) resultado da estruturação que ela sofre com a
linguagem. A linguagem medeia, mas como qualquer elemento que cumpre essa função só o faz porque articula
elementos dos dois polos que se pretende servir de mediador. Assim, a palavra só pode ser “mediadora” da/na
consciência porque a própria consciência é formada pela linguagem, linguagem que antes era social e passa a ser
parte constituinte do psiquismo.
35
Cabe aqui uma definição mais precisa do que é a palavra; ela é signo, a representação
gráfica/sonora de uma parcela de substancialidade do real, ou ainda que formalmente novas,
de algo que antes fora social? É o significado dessas mesmas representações para o indivíduo?
Ou é a articulação entre significante-significado? Ou ainda, a relação entre sons vocálicos-
signo-significante? Isso sem falar que para entendê-la é preciso mencionar o sentido... Neste
texto, palavra será considerada o microcosmo da consciência20. (VIGOTSKI, 1934/1982).

Definimos, também, a palavra por suas funções; nesse caso, além de elo de
comunicação entre os humanos e do ser em-si e para-si do sujeito (parafraseando
poeticamente Engels, “falamos por que tínhamos algo a dizer”), ela faz mediação entre a
porção da realidade externa que afeta a totalidade dos indivíduos e a própria consciência que
esses indivíduos têm da realidade, o que lhes possibilita, em última instância, tanto a
capacidade de abstração caótica quanto, em outro momento, a de teorização.

Mesmo essa simplificação permite-nos afirmar que não há como garantir a


objetividade do conhecimento apenas por meio da relação, que nos referíamos anteriormente,
teleologia-causalidade posta mediada pelo reflexo, e mesmo que Lukács (1984/2013) acione a
categoria alternativa, ainda assim não toca os aspectos psicossociais singulares (ontogenéticos
e micro-genéticos) do processo. Antes, seria preciso considerar a própria mediação da
linguagem no processo de constituição da teleologia na consciência, ou seja:

Do mesmo modo que não podemos explicar satisfatoriamente o trabalho, como


atividade humana dirigida a um fim, dizendo que o que os impulsiona são as
necessidades e as tarefas próprias dos seres humanos, senão levando em
consideração o uso de instrumentos e meios apropriados sem os quais o trabalho não
poderia ocorrer; igualmente, o problema central na explicação das formas superiores
de comportamento é o dos meios, com cuja ajuda, o homem domina o processo do
próprio comportamento. (VIGOTSKI, 1934/1982, p. 125)

O “de algum modo” de Lessa (2002) evanesceria ante uma crítica vigotskiana, isso é,
sem a explicação do “como” ocorre o trabalho, qualquer tentativa de garantir objetividade do
conhecimento pelo “reflexo ativo” (por mais ativo que ele fosse) será vã gnosiologia. Nossas
considerações situam-se nesse entrave. Do pressuposto, nem arbitrário nem “empiricista”, de
que nenhum indivíduo “cria” (em uma acepção a-histórica) as linguagens que utiliza, antes,
elas são frutos do desenvolvimento cognitivo-afetivo-simbólico-social-político-histórico-
cultural-rs de uma sociedade concreta, pleiteamos a relevância da categoria historicidade para

20
Para um estudo aprofundado sobre a palavra consultar; LURIA, A. “A palavra e sua estrutura semântica". In:
Pensamento e Linguagem. São Paulo, Artes Médicas: 1987.
36
a ciência psicológica, pois por sua mediação desnaturaliza-se a suposta obviedade do
tratamento que a categoria História tem recebido e, junto, desvela-se o quanto ela integra
qualquer método de apreensão da realidade, aqui tanto faz se social ou natural21.

Nessa direção, quando Lukács (1984/2013) afirma que a teleologia é


cronologicamente posterior à causalidade, somos levados a considerar que essa “teleologia”
que ele se refere já é um processo mediado pela linguagem (ainda que no início do
desenvolvimento filogenético humano essa linguagem não fosse travestida pela palavra tal
como a conhecemos). Se por um lado pensamento não é imediatamente igual à palavra, só por
meio dela é que somos capazes de projetar “cientificamente” algo na consciência, o fim de
uma atividade pode ser estabelecida. Percebe-se que o próprio processo de objetivação
científica do conhecimento se dá à luz de um uso funcional e específico da palavra pela
consciência dos indivíduos. Seja qual for o conteúdo de uma categoria como teleologia, nesse
caso em Lukács, é impossível a compreendermos sem mediação da palavra quando versamos
sobre a apreensão científica da realidade.

Infere-se, a partir dos estudos de Vigotski, que a teleologia não será, portanto,
categoria objetiva ou subjetiva no sentido clássico dos termos, mas será a um só tempo,
simultaneamente, objetiva e subjetiva. Quaisquer atividades conscientemente teleológicas
(principalmente as de finalidades científicas) sempre serão mediadas pelas emoções e pelos
sentidos peculiares que as palavras adquirem em uma determinada cultura, para uma
determinada consciência.

Não interessa aos cientistas da Psicologia apenas a exposição de como a historicidade


se relaciona com a apreensão da realidade no ser humano genérico, mas como isso ocorre na
singularidade humana condicionada historicamente, considerando a totalidade do indivíduo

21
Ressalta-se que a abordagem de cunho biologicista (funcionalista) sobre a dimensão temporal na ontogênese já
foi alvo de outras tantas escolas psicológicas. A psicologia comparativa de Edward. L. Thorndike, já em 1898,
por exemplo, objetivava conhecer o desenvolvimento da vida mental na escala filogenética. Há forte influência
darwiniana nesses estudos. “A dimensão temporal da análise se manifesta tanto no projeto da psicologia
comparativa – filogeneticamente – como no estudo da ontogênese”. (FIGUEIREDO, 2012, p. 81-98). A proposta
é cientificamente pertinente, contudo, e seguindo o autor brasileiro, a finalidade da práxis (compromissos meta-
teóricos) e os pressupostos (funcionalistas e organicistas) comprometem as conclusões de seus interessantes
experimentos. Pode-se também mencionar a psicogenética de Jean Piaget; que ao lado de sua formação biológica
e interesse por epistemologia, conduziu-o à Psicologia que buscou respostas que unificassem, na forma de uma
teoria científica do conhecimento, fenômenos cognitivos à adaptação do organismo ao meio. Nossa meta, pois,
não é enfatizar que a claudicante história da Psicologia científica não se voltou à historicidade, mas que o
tratamento conferido a ela não foi apropriado às suas exigências imanentes.
37
(cognição, afetos, corpo, etc.). Ao desatarmos justamente esse nó, escapamos do relativismo
de modo ontologicamente coerente ao materialismo histórico-dialético.

O primeiro passo para a solução da questão seria produzir pesquisas capazes de


explicitar o processo de estabelecimento das relações lógico-afetivas entre palavra e realidade,
e vice-versa (um estudo sobre os diferentes tipos e as mudanças de nexos - qualitativos e
quantitativos - entre as funções psicológicas superiores também caminharia nessa direção).
Quando Vigotski percebe a mudança no uso da palavra com o passar do tempo e com
mediação da cultura (isso nos humanos significa maturação e desenvolvimento pleno de
órgãos, tecidos, esqueleto, etc., mas não só isso), ele não discute, sequer menciona, como do
ponto de vista filogenético ocorre o entrelaçamento inicial das palavras com a
substancialidade da realidade; muito menos sobre o que seria essa “substância em-si”.

Uma vez que o processo social de “utilização da palavra” não é arbitrário, mas
historicamente condicionado pela materialidade, como teorizar sobre “objetividade” na
relação palavra-realidade, sabendo que elas estão inevitavelmente sujeitas a conotações
sociais e singulares (sentidos distintos)? Em contrapartida, empiricamente percebemos que há
algo de objetivo no uso das palavras, caso contrário, a possibilidade de cooperação humana
em um trabalho coletivo seria negada por completo; nunca sairíamos da torre de Babel. Aqui
a contribuição de Lukács e Kosik dão pistas para a solução desse complexo.

Para dar essa resposta, é preciso retomar um trecho da discussão já feita. Sabemos que
os significados sociais das palavras não rompem totalmente as ligações com uma causalidade.
Pelo contrário, qualquer atribuição de sentido e significados por meio das palavras tende a ser
cronologicamente posterior à presença de determinado conteúdo no pensamento. Seriam
indispensáveis mais elementos para atestar a premissa anterior, mas para nossa finalidade, a
evidência empírica basta. Se cada palavra desatasse absolutamente esses nexos, não haveria
motivos para validarmos, citando ocorrência análoga, e abrindo a porta à simploriedade, o
sucedimento de um dicionário. A cilada aqui é incorrermos em uma interpretação
“objetivista/determinista” dos significados, como se meramente aos sentidos fossem relegadas
características subjetivas. Não é o caso.

Ao considerarmos a totalidade da palavra e não só suas apropriações singulares pelos


indivíduos, percebe-se que suas metamorfoses são processos historicamente determinados,
isso aponta e atesta o quantum e o tipo de objetividade que seu significado contém a despeito

38
de suas propriedades sonoras e gráficas. As conotações do significado das palavras estão em
necessária relação a uma realidade exterior tanto a elas mesmas quanto aos indivíduos.
Desvelar as mediações presentes na produção social do significado das palavras expõe as
relações sociais concretas que as constituem (segundo outra trilha, chega-se ao mesmo ponto
que Vigotski [1934/2009], quando ele atesta o significado como unidade de análise
científica).

Deve-se, segundo Vigotski (1934/2009), admitir a palavra como materialidade do


pensamento, síntese de múltiplas determinações; na definição já clássica, palavra pensada é
microcosmo da consciência. Essas multíplices determinações são inerentes às legalidades
atuantes na própria causalidade. Nessa esteira, o significado da palavra será sempre
causalidade-posta para o psiquismo, ou melhor, fruto dos desdobramentos da atividade
(psíquica) humana. A saber, batiza-se um conjunto organizado de madeiras que transmutados
pelo labor qualificado dos humanos, serve-lhes de apoio e sustentação para pernas e costas, de
diversas maneiras: chair, szék, stuhl, 椅子 etc. Mas, a substancialidade grafada/pronunciada
de inúmeras formas permanece “cadeira”, ainda que mude de configuração física, utilidade
etc. no vadear do tempo histórico não deixa de ser locus em que estão ancorados os possíveis
significados das palavras que a apelidam.

O processo de atribuição e formação de sentidos e significados, questão amplamente


discutida por Vigotski no livro Pensamento e Palavra, é fundamental para teorizarmos sobre
a plausibilidade de pensarmos a objetivação do conhecimento apreendido por meio do
materialismo histórico-dialético em seu devir histórico.

Não há nenhum traço de hesitação em nós ao exatificarmos que sentidos e significados


são processos mediados pelas emoções. Contudo, aqui, muitas escolas e teorias acreditam
defrontar-se com os olhos da Medusa. Pois, ao supor tal afirmação, como será possível ao
método captar as emoções que medeiam os processos (sempre singulares) de apreensão
objetiva do real? Se, como versa a poesia impessoal brasileira, “pau que bate em Chico bate
em Francisco”, “só” mencionar que as motivações-emoções-afetos são base do pensamento
humano, cientifica quase nada... A crítica administrada por matrizes anticientíficas, e/ou
românticas, de índole vitalista, para retomarmos Figueiredo (2009), encontram, por exemplo,
nesses pontos das teorias sociais (científicas, se nos permitem a redundância) subsídios para
desacreditá-las. São as emoções, afinal, que atestariam a incapacidade última de uma
apropriação ideal fidedigna e objetiva da dinâmica da realidade concreta? Cremos que não.
39
Da mesma forma que as palavras, as emoções não são produções humanas
independentes das relações histórico-sociais concretas. Isso significa que emoções não são
produções desconexas criadas pelas vivências íntimas, pelas experiências individuais, o que
não é o mesmo que afirmar que cada humano não se apropria (vivencia) idiossincraticamente
de cada uma delas, e nem que uma mesma situação concreta necessariamente evoca emoções
idênticas em indivíduos diferentes. É impraticável cogitar o estudo científico das atividades
psicológicas superiores isoladamente; antes, é obrigatório apreender quão imbricadas estão as
atividades científicas e as próprias emoções que as afetam e constituem; outrossim, deve-se
compreender determinada função psicológica superior em relação à totalidade humana. O
caráter dessa premissa, à similitude do que foi feito por Vigotski, resgata a relevância das
obras de Espinosa no que se refere à não divisão binária entre psiquismo (alma para aquele
autor) e corpo, razão e emoção.

Nosso escopo, até aqui, foi trazer à baila elementos não necessariamente novos, mas
que talvez tenham se camuflado no curso das controvérsias que tangem a problemática da
teleologia, causalidade-posta e apropriação ‘qualificada’ da realidade (conhecimento
científico - formação de conceitos). Como se não bastassem as dificuldades inerentes às
questões, outro problema impertinente, mas basilar, tanto para a constituição de uma
ontologia do ser social materialista histórico-dialética quanto para a compreensão dos
processos de transição entre a fase dos cúmulos desorganizados e da formação dos conceitos,
é a inculca de Kosik (1963/1976) sobre a categoria pseudoconcreticidade na investigação.
Segundo o tcheco:

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum


da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo, e evidência, penetram na
consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural,
constitui o mundo da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1963/1976, p. 11).

Uma leitura displicente tanto de Lukács (1986/2013) quanto de Kosik (1963/1976)


poderia ser a prova dos nove de que se, porventura, um conhecimento objetivo é passível de
apreensão intelectual, estaria, na melhor das hipóteses, relacionado à esfera da
pseudoconcreticidade. Kosik, apimentando, escreve:

A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um


abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade
especulativamente, porém é a de um ser que age praticamente, de um indivíduo
histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros
homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um
determinado conjunto de relações sociais (KOSIK, 1963/1976, p. 09-10).

40
Ou seja, a “realidade concreta” não é dada ao conhecimento humano imediatamente,
em sua vida cotidiana, a despeito da constatação de que as interações natureza-ser social
sejam ininterruptas. Disto isto, podemos afirmar que, do prisma da Psicologia, são as funções
psicológicas superiores articuladas com determinadas atividades especificamente constituídas
culturalmente (como a razão, a lógica e a generalização, por exemplo) que atuam na
destruição da pseudoconcreticidade que permite ao humano atingir a concreticidade; esse é ao
mesmo tempo um processo no curso do qual, sob o mundo da aparência, apreende-se o
próprio movimento da realidade.

Essa “destruição” da aparência, entretanto, não nega a existência ou a objetividade dos


fenômenos sociais, mas aniquila sua pretensa independência, demonstrado o seu caráter
mediato e apresentando, contra essa “independência”, a prova do seu caráter derivado.
(KOSIK, 1963/ 1976, p. 16).

Se não é a realidade em si que aparece imediatamente ao humano, daí pode-se inferir


que o pôr teleológico incide sobre uma causalidade que é pseudoconcreticidade para a
consciência; isso reluz cores mais vibrantes quanto mais se abordam atividades
primordialmente intelectuais.

Os processos incitados pelas práxis cotidianas baseiam-se na apreensão, por vezes


intuitiva, da pseudoconcreticidade e não da realidade-em-si dos objetos, ainda que seja
possível que esses mesmos objetos exerçam funções nada “pseudoconcretas”. Em outras
palavras, a relação entre causalidade e teleologia, originadora da causalidade-posta, é um
processo operativo-prático da interação humano-natureza que, por si mesmo, não desvela o
“real-em-si”, a apreensão concreta da realidade. É preciso outra operação do psiquismo,
qualitativamente distinta dessa primeira, para que haja a produção do conhecimento teórico. O
método materialista dialético-histórico aparece na História humana como a mais sofisticada
resposta para esse desafio.

A tarefa é não apenas apreender a realidade no correr histórico, mas perceber que o
primeiro contato do psiquismo com a realidade nunca é imediatamente com o concreto do
real. A relação consciência-realidade nunca será derivada diretamente das propriedades
exclusivas que cada componente do real possui (nem será possível justificar aí sua
objetividade). Além delas, condições objetivas da consciência do sujeito cognoscente (sua
capacidade de articular/combinar o uso específico das palavras com outras funções do

41
psiquismo, os significados, as emoções etc.) é determinante para o processo de apreensão da
realidade em sua concretude. Ainda que essa relação (consciência-realidade), em um passado
remoto da humanidade, não fosse mediada pela palavra, ou mesmo signos, a produção da
ciência é fatalmente derivada dessa associação.

O que podemos concluir, até agora, é que tanto os processos que conformam o
conhecimento cotidiano quanto os do conhecimento teórico são mediados por outros
complexos, além da relação entre teleologia e causalidade (ou, ampliando o debate
lukacsiano, sem determinações concretas, do prisma da ontogênese, as categorias
“objetivação” e “alienação” são incompletas). Os diferentes usos instrumentais da palavra, e
as diversas inter-relações entre as funções psicológicas superiores ao longo da vida humana e
as emoções são exemplos de complexos sem os quais não é possível entender a totalidade do
desenvolvimento e a objetivação histórica do conhecimento na consciência.

Ainda sobre o tema, Kosik (1963/1976) salienta que:

A teoria não é nem a verdade nem a eficácia de um ou de outro modo não teórico de
apropriação da realidade; ela representa a sua compreensão explicitamente
reproduzida, a qual, de retorno, exerce a sua influência sobre a intensidade, a
veracidade e análogas qualidades do modo de apropriação correspondente. (KOSIK,
1963/1976, p. 26)
Para compreender o que é conhecimento teórico ou o processo de apreensão ideal-
objetivo do movimento contraditório e dinâmico da realidade social e, nesse caso, até da
natureza, devemos considerar quais funções psicológicas atuam no processo das interações
cotidianas com a realidade e quais são as que ativamente destroem a pseudoconcreticidade da
vida prática; uma vez que, a partir da leitura de Kosik (1963/1976), infere-se que a esfera da
pseudoconcreticidade só é destruída mediante a ação cônscia de particulares operações
psicológicas. Aqui nos aproximamos, novamente, da importância de discutir historicidade
para a ciência psicológica.

É no uso específico da palavra pelo pensamento (que passa por mudanças


“estruturais” e funcionais no curso de seu desenvolvimento) que notamos, de modo factível, o
processo histórico de destruição da pseudoconcreticidade. Isso quer dizer, também, que a
própria relação entre o método materialista histórico-dialético e o psiquismo humano deve ser
apreendida em sua totalidade. Ou seja, a influência do tempo deve ser percebida tanto em sua
interação com a substancialidade da realidade quanto com a do psiquismo, uma vez que a

42
formação dos conceitos é um desenvolver-se que não está “pronto e acabado” quando
nascemos.

A relação entre categorias basilares da Psicologia precisa ser considerada quando


afirmamos que, só por meio da historicidade, os fenômenos humanos, e mesmo os naturais,
são passíveis de objetificação pela consciência. Atenção, memória e percepção são exemplos
de categorias que sem historicidade são vazias de concreticidade.

***

Constatando os limites deste ensaio, cremos que as dúvidas que levantamos podem
colocar tarefas objetivas para (nossas) próximas pesquisas. Por exemplo: como discutir, sem
tergiversar, sobre o “ontológico”, sabendo que o processo de formação da consciência é
mediado pela linguagem (cultura) e invariavelmente nos testemunha mais a respeito de uma
“interpretação” que de uma apreensão “imanente” dos objetos para nós? 22 Quais os perigos
em olhar para o fundo desse precipício? E mais, ao assumir que a ciência, quando realmente
apreende o movimento do real, assoma-se ao acúmulo de conhecimentos históricos do gênero
humano, como, então, no capitalismo, preservaremos nossas produções ético-politicamente
aliadas aos interesses dos trabalhadores do “olho gordo” da burguesia23. Não nos esqueçamos
de que na última grande crise financeira do capitalismo, em 2008, não foi Max Weber quem
voltou a circular nas livrarias da 5ª avenida, em Nova Iorque, mas foi O Capital, do insuspeito
comunista Karl Marx.

Acreditamos que os avanços de G. Lukács, K. Kosik e Vigotski nos ajudam a


aprofundar criticamente os fundamentos epistemológicos e as questões do método na
Psicologia Social brasileira e na latino-americana. Referimo-nos, aqui, principalmente à
Escola de São Paulo e à “psicologia da libertação”. As categorias: trabalho, subjetividade,
ideologia, processos grupais, sofrimento ético-político, por exemplo, seriam enriquecidas se
essa aproximação fosse sistematicamente efetivada. Há muitas tentativas esparsas, e cremos
ser preciso mais sínteses capazes de abarcar o que tem sido produzido.

22
Muito preconceito ainda precisa ser superado para considerarmos seriamente os avanços feitos pelas matrizes
psicológicas românticas sobre “interpretação”.
23
Esta já uma questão sobre a relação da função social da ciência com a ideologia.
43
Não pretendemos, ao passo que damos razão à existência de pontos por nós não
solucionados, inviabilizar conclusões dos resultados deste ensaio. Ao propormos a
historicidade como eixo crítico da produção científica e ao partir do que aqui
pretensiosamente chamamos “dúvidas razoáveis”, adensamos, por que não, a produção de
uma historiografia radicada no materialismo histórico-dialético, que colabora com a
construção de uma Psicologia Social latino-americana ciente de seu papel ético-político junto
à classe trabalhadora. Mais exatamente, em nosso caso, quando articulamos as origens ético-
políticas do projeto da psicologia “da libertação” à complexa relação entre a história
econômico-política-cultural da América-Latina (nesse caso, El Salvador) e as peculiaridades
da vida de José Ignacio Martín-Baró, inviabilizamos uma compreensão unilateral (de cunho
pragmatista) sobre o engajamento e o papel da ciência na luta pela emancipação humana.

Sobre a exequibilidade desse método de apreensão e exposição, esperamos que


encontre guarida na análise efetuada nos capítulos que seguem. Não pretendemos outra coisa
que não, por meio dele, apresentarmos como a produção latino-americana soma à construção
da renegada Psicologia Concreta; seja discutindo um projeto ético-político, seja cimentando
seus alicerces teóricos.

Em suma: o ensaio pretendeu aproximar dois autores que por vias teórico-filosóficas
distintas podem auxiliar os psicólogos que defendem e militam pela possiblidade histórica da
construção de uma Psicologia Geral. Neste trecho, Lukács (por sua notória competência em
teorizar sobre o ontológico no/do ser social) e Vigotski (por discorrer sobre como o psiquismo
humano, constituído socialmente, apreende a realidade) foram utilizados para aprofundarmo-
nos em um debate necessário e pertinente aos que se achegam ao materialismo histórico-
dialético. Tudo isto foi possibilitado porque mantivemos sob nossa mira a exposição do que
há de ontológico na categoria historicidade.

1.2 Procedimentos de Pesquisa

Expor esta tese de modo coerente ao método não foi tarefa simples, muito menos
arbitrária. Até certo ponto, nossa aproximação à temática advém de um acúmulo de
experiências e relatos de pesquisa de nosso envolvimento com nosso objeto de estudo (o

44
projeto ético-político da psicologia de Martín-Baró). Reexplicamo-nos: nos últimos sete anos,
de 2010 até 2016 mais exatamente, dispusemos de condições favoráveis para comparecermos
aos últimos quatro congressos intitulados “Internacionais da Psicologia da Libertação 24”, que
respectivamente se realizaram (bienalmente) em Caracas (Venezuela), em Bogotá
(Colômbia), em Cuzco (Peru) e em Cuernavaca (México).

Nosso crescente interesse em aprofundar nosso conhecimento em Psicologia levou-nos


à psicologia dita da libertação e não o contrário. Isso é relevante, pois, depois de alguns
vaivéns em nossa formação acadêmica essas linhas se entrecruzaram. Desta maneira, nossa
afinidade com alguns autores que a ela (psicologia “da libertação”) se filiam demanda
prenúncio bastante direto; se não, pelos supostos obstáculos que nossa proximidade afetivo-
intelectiva poderia causar em nossa empreitada, pelo fato de que poderíamos encaminhar
prematuramente nosso esforço a uma vala comum, faltando com o rigor científico cabível
nesses casos; justamente porque estamos demasiadamente próximos dela. No que se refere à
questão, e parafraseando Lênin, cremos que melhores condições têm de produzir críticas
pertinentes, justas e afiadas, por fim, “plenamente objetivas” os de dentro e não os de fora.

Essa assertiva é contragolpe nos que professam a neutralidade como altar do


conhecimento científico e, de quebra, permite-nos entrever que objetividade não tem relação
imediata com o afastamento de nossas emoções e afetos quando apreendemos cientificamente
um fenômeno social da realidade. Já tateamos esse argumento anteriormente, mas nas
próximas páginas cobriremos de terra o que falta do moribundo argumento positivista da
neutralidade.

A ventura editorial de Martín-Baró merece aclarações preambulares. O jesuíta sofreu


do que parece ser sina de todos os teóricos da esquerda do mundo “pré internet”: a falta de
ampla circulação de suas obras (as dificuldades persistem, mas convenhamos que os termos
mudaram; outras contradições, por exemplo, as de acesso à rede mundial de computadores, a
limitação para navegação ou censura a determinados conteúdos, não desfazem o lugar comum
de que as coisas estão diferentes).

24
O primeiro dos encontros internacionais ocorreu em Cuernavaca, em 1998, na Universidad Nacional Autónoma
del Estado de Morelos (UNAEM), organizado por Jorge Mario Flores Osorio e suas colaboradoras. Os
congressos iniciam oficialmente na Universidad Autónoma Metropolitana - Itztapala, em México. (sob
coordenação de Joel Vásquez e sua equipe), seguidos por eventos realizados em: San Salvador (El Salvador),
Cidade da Guatemala (Guatemala), Guadalajara (México), Campinas (Brasil), Liberia (Costa Rica), Santiago de
Chile (Chile), Caracas (Venezuela), Bogotá (Colômbia), Cusco (Peru); o último congresso realizado, até a
presente data, retornou para Cuernavaca.
45
As obras do jesuíta transitaram timidamente nos ambientes acadêmicos clássicos, ou
seja, nas universidades. Oropeza (2016), por exemplo, relata dificuldade no acesso aos textos
de Martín-Baró e partilhamos dela. Mencionamos há pouco que quando do nosso trabalho de
conclusão de curso, nos idos de 2010, o único lugar que conhecíamos no Brasil ter brochuras
de Martín-Baró (é provável que existissem outros) era o Arquivo que levava seu nome e que
ficava sob os cuidados do NIEHPSI (Núcleo Interinstitucional de História da Psicologia) da
PUC-SP. Do mestrado para a tese, contudo, o volume de textos disponíveis nos sítios virtuais
brasileiros e internacionais dedicados a psicologia social nomeada da libertação já não podem
mais ser contabilizados com facilidade. O próprio acervo coletado pela Universidade Centro-
americana José Simeon Cañas de El Salvador, e disponibilizado em seu sítio virtual, por
exemplo, já é capaz de apresentar, e muito bem, a obra.

Em suma, após a apresentação das condições concretas que acolheu seus escritos,
nosso foco primordial foi, a partir de uma revisão bibliográfica (artigos, livros, entrevistas
etc.) de interloucutores da psicologia da libertação e os do próprio Martín-Baró (considerados
por nós fontes primárias), sistematizar criticamente as principais características teórico-
políticas do legado de Martín-Baró, buscando dar concretude ao seu Projeto Ético-Político.

Especificamente no capítulo quatro (núcleo duro desta tese) iniciamos por publicações
do jesuíta de sua fase “pré-formação” em Psicologia (até 1970) e só posteriormente
convergirmos, das categorias centrais aos seus alicerces teóricos (bem como os da sua radical
orientação da práxis; que no jesuíta rumava para a emancipação humana), ao corpus de sua
proposta para a Psicologia.

Nossa exposição em nada se assemelhou à construção de uma “linha


cronologicamente orientada” de leituras, apesar de que reconhecemos a datação do conjunto
de uma obra, como informação importante para uma análise histórico-ontológica. Buscamos,
dessa maneira, referendarmo-nos nas categorias historicidade (concreta) e práxis tanto para
amparar nossa interpretação ontológica dos conteúdos quanto para a exposição deles. Ao
longo do percurso acreditamos que mais detalhes sobre os procedimentos serão iluminados.

Para facilitar a compreensão (pela quantidade de textos lidos), foram destacados


núcleos temáticos que facilitam a apreensão do conjunto de textos. Os quadros a seguir
destacam sumariamente as principais produções de seus interlocutores e de Martín-Baró por
nós trabalhados.

46
Quadro expositivo sobre os principais textos lidos de seus interlocutores

DATA TIPO TÍTULO AUTOR (ES)

Psychology of liberation:
2009 Livro Theory and applications Christopher C. Soon &
Martiza Montero

Praxis and Liberation in


2009 Capítulo de livro the Context of Latin Jorge Mario Flores Osorio
American Theory

Ignacio Martin-Baró’s
Social Psychology of
Liberation: Situated Bernardo Jiménez-
2009 Capítulo de livro Knowledge and Critical Domínguez
Commitment Against
Objectivism

Towards a Realy Social


Psychology: Liberation Mark Burton & Carolyn
2009 Capítulo de livro Psychology Beyond Latin Kagan
America

Perspectiva psicossocial,
aproximaciones histórica y
2012 Livro epistemógicas e José Joel Vázquez Ortega
intervención

Revista Peruana de
2015 Revista Científica Psicología Social de la Coletivo INTI-NÃÑ
liberación

Del discurso encantador a


la práxis liberadora.
2015 Psicología de la liberación
Livro . Aportes para la Edgar Barreto Cuellar
construcción de una
psicología desde el Sur

Ignacio Martín-Baró: una


2016 Livro lectura en tiempos de Ignacio Dobles Oropeza
quiebres y esperanzas

FONTE: QUADRO FEITO PELO AUTOR DESTA PESQUISA.

47
Sobre Ignacio Martín-Baró:

Quadro de fontes primárias de cunho científico-acadêmico do período pré-formação em Psicologia de Martín-


Baró.

DATA TIPO TÍTULO COMENTÁRIO

1963a Trabalho de disciplina. Debate de caracter


Faculdade de Ciências Qué es eso de ser? existencialista sobre o
Eclesiásticas. “ser”.

1963b Trabalho de disciplina. La teoría del Crítica desde textos da


Faculdade de Ciências conhecimiento del teologia sobre o
Eclesiásticas. materialismo dialéctico. materialismo histórico-
dialético.

Trabalho de disciplina. Apresentação de temas


1964a Faculdade de Ciências Filosofia existencialista pertinentes ao
Eclesiásticas. existencialismo.

1964b Seminário de Psicologia


Experimental para a Debate teológico sobre o
obtenção do título de Sufrir y Ser. sofrimento e a dor
Licenciatura em (condição humana).
Filosofia e Letras.

1964c Trabalho de disciplina. Comparação crítica sobre


Faculdade de Ciências Dignidad humana. a encíclica do Papa João
Eclesiásticas. XXIII e a Declaração dos
direitos humanos.

Trabalho de disciplina.
1964d Faculdade de Ciências Violencia. Trabajo de Debate filosófico sobre
Eclesiásticas. textos de Aristóteles os sentidos e os
significados da violência.

Trabalho de disciplina. Crítica aos fundamentos


1965a Faculdade de Ciências Dios y El materialismo epistemológicos do
Eclesiásticas. dialéctico. materialismo histórico-
dialético.

1965b Trabalho de disciplina. La muerte como Apresentação desde a


Faculdade de Ciências problema filosófico. filosofia e a teologia
Eclesiásticas. sobre a morte.

1966a Publicação na Revista Sucinto artigo sucinto


Estudios La forja de rebeldes. sobre cultura da década
Centroamericanos de 1960 e os dilemas da
(ECA). juventude.

48
Publicação na Revista Miguel A. Sholojov, Artigo sobre a
Estudios premio nobel de conjuntura político-
1966b Centroamericanos literatura. econômica a partir da
(ECA). obra premiada de M.
Sholojov.

Publicação na Revista Pablo Antonio Cuadra, Artigo de opinião sobre a


1966c Estudios tierra y luz poesia de Antonio
Centroamericanos nicaraguense. Cuadra.
(ECA).

Publicação na Revista Un extraño remedio Texto sobre a legalização


1966d Estudios para la da homossexualidade na
Centroamericanos homoxesualidad. Inglaterra.
(ECA).

Publicação na Revista Recensión a la obra de Um editorial de


Estudios Snell, Bruno. “Las apresentação do livro de
1966e Centroamericanos Fuentes del Snell, sobre a
(ECA). Pensamiento Europeo”. “filogênese” espiritual do
ocidente.

Publicação na Revista Duelo en las letras Nota sobre o falecimento


1967a Estudios castellanas. sobre o artista José
Centroamericanos Martínez Ruiz.
(ECA).

1967b Publicação na Revista Crítica à figura seção


Estudios La figura del año. “figura do ano” da
Centroamericanos revista Time.
(ECA).

Publicação na Revista Texto opinativo sobre a


1967c Estudios Rubén Darío entrevisto obra textual do hispânico
Centroamericanos Rubén Darío.
(ECA).

Estudo sobre a
Declaração Universal
1967d Trabalho publicado em Por una formación dos direitos humanos e a
Frankfurt, curso de humana. educação cristã a partir
teologia. do Concílio do Vaticano
II.

Artigo publicado na
1967e Revista Estudios ¿Quién le teme a James Texto opinativo sobre a
Centroamericanos Bond? indústria cultural.
(ECA).

49
Artigo publicado na Expoisção da posição do
1968a Revista Estudios El pulso del tempo: autor em relação às
Centroamericanos guerrilleros y hippies. manifestações culturais
(ECA). da juventude no final da
década de 1960.

1968b Ensaio publicado na Texto crítico sobre um


Revista Estudios El complejo de macho o fenômeno social
Centroamericanos el "machismo" recorrente na América
(ECA). Latina, o machismo.

Artigo publicado na Debate crítico sobre os


1968c Revista Estudios Propaganda: desdobramentos
Centroamericanos deseducación social concretos da propaganda.
(ECA).

Trabalho apresentado ao Debate problematizando


1968d Curso de Teologia. Los cristianos y la a relação
Eegenhoven (Bélgica). violência. “tradicionalista” dos
cristãos com a violência.

Debate sobre a condição


1969 Trabalho apresentado ao Vocación religiosa en dos religiosos ante os
Curso de Teologia. centroamérica. problemas sócio-
Eegenhoven (Bélgica). políticos da sociedade
burguesa.

FONTE: QUADRO FEITO PELO AUTOR DESTA PESQUISA.

Quadro de fontes primárias de cunho científico-acadêmico que datam do ingresso de Martín-Baró na faculdade
de Psicologia até a eclosão da guerra civil.

DATA TIPO TÍTULO COMENTÁRIO

Artigo publicado na Debate sobre os sentidos


1970 Revista Estudios Psicología de la caricia. e significados
Centroamericanos psicossociais da carícia.
(ECA).

Artigo publicado na Discussão sobre


Revista Estudios Formación cristiana del instruções pedagógicas
1971a Centroamericanos niño. para a educação de
(ECA). crianças.

Debate sobre a situação


Artigo publicado na Del pensamiento sócio-política e
1971b Revista Estudios alienado al econômica da América-
Centroamericanos pensamiento creativo. Latina desde os
(ECA). interesses da Psicologia e
da psicanálise.

50
Artigo publicado na Problemas actuales en Reflexão sobre o estado
1971c Revista Estudios psicopedagogía escolar. científico da
Centroamericanos psicopedagogia escolar.
(ECA).

Muerte y resurección, Reflexão sobre a semana


1971d Trabalho para disciplina. del símbolo a la santa desde os interesses
realidade. da teologia da libertação.

Colóquio publicado na Una nueva pedagogía Debate crítico sobre a


1972a Universidade para una universidad função sócio-política da
Centroamericana de nueva. Universidade na
Managua (Nicarágua). América-Latina.

Problematização da
Artigo publicado na Del alcohol a la gravidade dos efeitos
1972b Revista Estudios marihuana. sociais causados pelo
Centroamericanos abuso do álcool
(ECA). comparados aos da
maconha.

Artigo publicado na Debate sobre um “ritual


1972c Revista Estudios Peluqueros de passagem” da
Centroamericanos institucionales. juventude, o ingresso na
(ECA). faculdade.

Artigo publicado na Crítica cinematográfica e


1972d Revista Estudios Del futuro, la técnica y sociológica sobre a
Centroamericanos el planeta de los símios. sociedade latino-
(ECA). americana.

Artigo publicado na Presupuestos Debate “psicanalítico”


1972e Revista Estudios psicosociales de una sobre características das
Centroamericanos caracteriología para sociedades latino-
(ECA). nuestros países. americanas.

Artigo publicado na Munich 72 : El ocaso de Análise de conjuntura


1972f Revista Estudios una mitologia. partindo dos
Centroamericanos acontecimentos das
(ECA). olimpíadas de 1972.

Reflexão sobre a
aproximação da noção de
Palestra dada na Hacia una docencia “libertação” trabalhada
1972g Universidade X do liberadora pela teologia da
México. libertação “aplicada” ao
papel da educação nas
lutas sociais.

51
Artigo publicado na Algunas repercusiones Discussão sobre uma
1973a Revista Estudios psico-sociales de la importante questão
Centroamericanos densidad demográfica social, do ponto de vista
(ECA). en El Salvador psicossocial, da
sociedade salvadorenha.

1973b Artigo publicado na Antipsiquiatría y Crítica aos modelos


Revista Estudios psicoanálisis. tradicionais de
Centroamericanos tratamento psiquiátrico.
(ECA).

Artigo publicado na Cartas al presidente: Reflexão


Revista Estudios reflexiones psicosociales psicosociológica sobre
1973c Centroamericanos sobre un caso del como as questões
(ECA). personalismo político en políticas podem se tornar
El Salvador. alvo de
“psicologizações”
.

Debate sobre os aspectos


1973d Artigo publicado na Psicología del psicossociais de um dos
Revista Estudios campesino mais “importantes”
Centroamericanos salvadorenho. estratos socioeconômicos
(ECA). de El Salvador.

Artigo publicado na Quién es pueblo?: Debate teórico sobre um


1974a Revista Estudios reflexiones para una polissêmico conceito, o
Centroamericanos definición del concepto de povo.
(ECA). de pueblo.

Discussão que aborda a


1974b Artigo publicado na De la evasión a la temática da propaganda e
Revista ABRA. invasión. suas mensagens
subliminares.

Elementos de Debate sobre a relação


Artigo publicado na conscientización socio- entre a conscientização e
1974c Revista Estudios política en los curricula o papel da universidade.
Centroamericanos de las universidades.
(ECA).

Debater sobre aspectos


Teses de Licenciatura de Culpabilidad Religiosa da cultura religiosa desde
1975a Psicologia. en un barrio popular. contribuições da
Psicologia.

Artigo publicado na Cinco tesis sobre la Disucssção sobre a


1975b Revista Estudios paternidad aplicadas a categoria psicossocial da
Centroamericanos El Salvador paternidade desde a
(ECA). realidade salvadorenha.

52
Reprodução de uma
palestra apresentada na
Artigo publicado na III reunião de
Revista Estudios El estudiantado y la Administradores da
1975c Centroamericanos estructura universitária Federação de
(ECA). Universidades Privadas
da América Central e
Panamá (FUPAC) sobre
a questão universitária.

Artigo publicado na El valor psicológico de Reflexão sobre os meios


1975d Revista Estudios la represión política de comunicação, política
Centroamericanos mediante la violencia. e violência.
(ECA).

Apresentação do curso
1975e Ementa do Curso de Lecturas de Psicología de Psicologia Social
Psicologia Social Social. dado pelo autor em 1975.

Apresentação de um
La verdad de la espaço para o debate
1976a Revista Alternativa. mentira. (coluna) na revista
Alternativa sobre críticas
referentes à Psicologia.

Denuncia sobre a falta de


1976b Revista Alternativa. Los sin vivenda condições mínimas de
moradia e a relação dela
com a qualidade de vida.

Problematização de
1976c Revista Alternativa. Opio religioso. questões sociais
pertinentes a religião na
vida cotidiana

1976d Revista Alternativa. La vida en Long Play Crítica ao crescimento da


indústria cultural

Ementa do Curso de Apresentação de seu


1976e Psicologia Social Psicología Social. curso de Psicologia
Social na UCA.

Problemas de Apresentação e
1976f Compilação de texto psicología social en introdução a diversos
América Latina. capítulos do livro.

2ª. Ponencia: Docencia, Debate que abarca


Seminário apresentado investigacion y fundamentalmente o
1976g na Universidade José proyeccion social, papel social da
Simeon Cañas princípios y universidade desde os
orientaciones. interesses dos
explorados.

53
“Tese” de mestrado Social attitudes and Discussão a partir da
1977a apresentada ao programa group conflict in El Psicologia Social sobre a
de mestrado da Salvador. questão da terra em El
Universidade de Salvador.
Chicago.

Artigo publicado na Del cociente intellectual Critica ao conceito de


1977b Revista Estudios al cociente racial. inteligência a partir de
Centroamericanos pesquisas em Psicologia
(ECA). daquele período.

Debate diversificado
1977c Compilação de textos Psicología, ciencia y sobre temas importantes
consciência. para o desenvolvimento
científico da Psicologia.

Artigo publicado na Problematização das


1978a Revista Estudios Vivienda mínima: obra questões de moradia em
Centroamericanos máxima. El Salvador.
(ECA).

Artigo publicado na Ley y orden en la vida Debate sobre aspectos


1978b Revista Estudios del mesón. psicossociais das
Centroamericanos questões de habitação e
(ECA). moradia.

Artigo publicado na
1979a Revista Estudios Cien años de psicología. Reportagem da morte de
Centroamericanos Wilhelm Wundt.
(ECA).

El enfrentamiento
Artigo publicado na Bloque Popular Análise de conjuntura de
1979b Revista Estudios Revolucionario – El Salvador no final da
Centroamericanos Gobierno en el mes de década de 1970.
(ECA). mayo.

Cadernos Universitários Haciendo la Quatro ensaios sobre a


1979c – FUPAC. Universidad temática ensino e
pesquisa.

Debate sobre a questão


Dissertação de doutorado Household density and da moradia e da
1979d apresentada a crowding in lower-class densidade populacional
Universidade de Salvadorans. em El Salvador a partir
Chicago. de uma abordagem
psicossociológica..

FONTE: QUADRO FEITO PELO AUTOR DESTA PESQUISA.

54
Quadro de fontes primárias que vão do início da guerra civil até o assassinato de Martín-Baró
(publicações póstumas e textos sem data).

DATA TIPO TÍTULO COMENTÁRIO

Artigo publicado na Ocupación juvenil: Narrativa da experiência


1980a Revista Estudios reflexiones psicosociales do autor como refém de
Centroamericanos de un rehén por 24 horas. um grupo de militantes
(ECA). políticos.

Denuncia da situação
Artigo publicado na Monseñor – Una voz político-econômica
1980b Revista Estudios para un pueblo salvadorenha e como ela
Centroamericanos pisoteado. ocasionou a morte de
(ECA). Oscar Arnulfo Romero y
Galdámez.

Artigo publicado na Fantasmas sobre un Denúncia sobre a


1980c Revista Estudios gobierno popular en El agudização do conflito
Centroamericanos Salvador. em El Salvador no início
(ECA). de 1980.

Artigo publicado na Debate sobre a


Revista Estudios Desde Cuba sin amor conjuntura política
1980d Centroamericanos latino-americana a partir
(ECA). do caso de Cuba.

Artigo publicado na Análise psicossocial do


Revista Estudios La imagen de la mujer papel das mulheres em
1980e Centroamericanos en El Salvador El Salvador.
(ECA).

Artigo publicado na Memorial da trajetória


Revista Estudios A la muerte de Piaget. acadêmica de Jean
1980f Centroamericanos Piaget.
(ECA).

Esboço incabado sobre o


Texto não publicado El papel del psicólogo papel político dos
1980g oficial. Biblioteca José en un proceso psicólogos em uma
Simeón Cañas. revolucionário. situação de crise.

Texto não publicado Discussão sobre as


oficial. Biblioteca José Imágenes sociales en El imagens mentais das
1980h Simeón Cañas. Salvador. mulheres, da família e da
sociedade salvadorenha.

Texto não publicado La familia ante el Esboço inacabado sobre


1980i oficial. Biblioteca José proceso revolucionario sobre a situação da
Simeón Cañas. família ante conflitos
bélicos.

55
Texto não publicado La institucionalización Crítica ao modo como a
1980j oficialmente. Biblioteca de la calumnia. burguesia conduzia a
José Simeón Cañas. circulação de
informações em El
Salvador.

Debate epistemológico
sobre a ética bem como
Texto introdutório a um Ética en Psicologia. sua relação de
1980k livreto organizado pelo proximidade com o
autor horizonte de atuação do
psicólogo.

Artigo publicado na La guerra civil en El Análise de conjuntura


1981a Revista Estudios Salvador. sobre o início da guerra
Centroamericanos (ECA) civil em El Salvador.
.

Artigo publicado na El liderazgo de Denuncia da guerra civil


1981b Revista Estudios Monseñor Romero (Un ao mesmo tempo em que
Centroamericanos análisis psicosocial). análisa o papel do líder
(ECA). em um processo grupal.

Artigo publicado na Actitudes en El Análise da atividade


1981c Revista Estudios Salvador ante una sócio-polítca de diversos
Centroamericanos solución política a la processos grupais
(ECA). guerra civil. salvadorenhos.

Reflexão sobre a posição


Texto não publicado Genocidio en El da burguesia e do
1981d oficialmente. Biblioteca Salvador. exército salvadorenho na
José Simeón Cañas. condução dos conflitos
sociais do país.

Análise psicossocial de
Artigo publicado na Aspiraciones del um estrato
1981e Revista Estudios pequeño burgués socioeconômico
Centroamericanos salvadoreño. influente na continuação
(ECA). da guerra civil do início
da década de 1980.

Registro das memórias


Raíces psicosociales de do autor sobre a guerra e
Livro não publicado la guerra en El uma teorição sobre os
1981f oficialmente. Salvador. rudimentos de sua
proposta para a análise
dos processos grupais.

56
Conferência pronunciada Reflexão do prisma
no 2° Encontro de ético-político sobre a
Psicologia Social, na Un psicólogo social ante postura dos profissionais
1981g Universidade Autônoma la guerra civil en El da psicologia ante os
e Complutense de Salvador. dilemas práticos surgidos
Madrid. em um conflito armado.

Denuncia sobre
Artigo publicado na desmandos de um
1982a Revista Estudios El llamado de la partido político de direita
Centroamericanos extrema derecha. (ARENA) bem como a
(ECA). posição adotada pela
burguesia no conflito.

Discussão sobre os
1982b Boletim de Psicologia de Una Juventud sin processos grupais
El Salvador. liderazgo político. atrelada a uma análise
conjuntural da juventude.

Revista da Associação Un psicólogo social ante Discussão sobre os


1982c latino-americana de la guerra civil en El horizontes práticos do
Psicologia Social Salvador. quefazer dos psicólogos.

¿Escuela o prisión? La Publicação conjunta


Artigo publicado na organización social de sobre a questão da
1982d Revista Estudios un centro de educação dentro de
Centroamericanos orientación en El diferentes instituições.
(ECA). Salvador.

Apresentação de tópicos
1982e Livro Psicología Social I. básicos da Psicologia
Social.

Apresentação de tópicos
1982f Livro Psicología Social II. básicos da Psicologia
Social.

Apresentação de tópicos
1982g Livro Psicología Social III. básicos da Psicologia
Social.

Compilação de
1983a Livro Acción e ideología: publicações do autor
psicología social desde sobre estudos e críticas
Centroamérica I. em Psicologia Social.

Los rasgos femeninos O texto debate sobre a


1983b Boletim de Psicologia de según la cultura questão do papel da
El Salvador dominante en El mulher nas relações
Salvador. sociais em El Salvador.

57
Registro de um
Artigo publicado na Polarización social en fenômeno social que
1983c Revista Estudios El Salvador. decorreu dos
Centroamericanos desdobramentos sócio-
(ECA). políticos da guerra civil.

Artigo publicado na Los sectores medios Análise conjuntural da


Revista Estudios ante el plan Reagan situação de El salvador
1983d Centroamericanos una perspectiva em relação à influência
(ECA). sombría. político-econômica
estadunidense.

Denuncia sobre a
Artigo publicado na Estacazo imperial indigesta presença dos
1983e Revista Estudios abuso y mentira en escusos interesses
Centroamericanos Grenada. estadunidenses em
(ECA). Granada e na América
Central.

Reflexão desde os
Artigo publicado na interesses da teoria
1984a Revista Estudios Guerra y salud mental. psicossocial sobre os
Centroamericanos efeitos concretos da
(ECA). guerra sobre a saúde.

Denuncia das ações


Artigo publicado na violentas do governo
1984b Revista Estudios El terrorismo del estadunidense no que se
Centroamericanos estado norteamericano. referia a manutenção da
(ECA). guerra civil.

Apresentação de tópicos
1984c Livro Psicología Social V. elementares da
Psicologia Social.

La encuesta de opinión Apresentação sobre o


Cadernos de Psicologia. pública como que, na opinião do autor,
1985a Colômbia. instrumento era um instrumento de
desideologizador luta da classe
trabalhadora.

La desideologización Debate teórico sobre um


Boletim da Associação como aporte de la conceito que para o autor
1985b venezuelana de psicología social al poderia orientar os
Psicologia Social desarrollo de la esforços da psicologia
democracia en social.
Latinoamérica

Debate e proposição de
El papel del psicólogo plano de ação para o
1985c Boletim de Psicologia de en el contexto quefazer da psicologia
El Salvador centroamericano. nas condições sócio-
políticas e econômicas
da América Latina.

58
Debate a partir da
Revista de Psicología El hacinamiento Psicologia Social e de
1985d Social, Universidad residencial: suas categorias de
Autonoma de Madrid ideologización y verdad análise de um problema
de un problema real. social salvadorenho.

Palestra apresentado no Conflicto social e Análise conjuntural da


1985e 20° Congresso ideología científica: De situação da América
Interamericano de Chile a El Salvador. Latina.
Psicologia

Conferência pronunciada Reflexão sobre aspectos


em Midwest Association sócio-polítcos da religião
1985f for Latin American Iglesia y revolución en na América Latina
Studies, na Universidade El Salvador versando sobre seu
de Columbia. potencial contestador e
insurgente.

Palestra apresentada no Un camino hacia la paz Análise sócio-política do


1985g foro “alternativas para a en El Salvador. correr da guerra civil.
paz”.

Debate sobre o papel das


Artigo publicado na La ideología familiar en relações institucionais
1986a Revista Estudios El Salvador. familiares em El
Centroamericanos Salvador.
(ECA).

Expoisção desde uma


Artigo publicado na El pueblo salvadoreño perspectiva sociológica
1986b Revista Estudios ante el diálogo. dos entraves para a
Centroamericanos solução do conflito em
(ECA). El Salvador.

Discussão teórico-
Boletim de Psicologia de Socialización política: conceitual sobre duas
1986c El Salvador. dos temas críticos. categorias fundamentais
à psicologia social

Proposição de direções
1986d Palestra publicada no Hacia una psicología de teórico-políticas para a
Boletim de Psicologia de la liberación práxis da Psicologia na
Salvador América Latina.

Esboço sobre questões


1986e Texto não publicado El futuro del mercadeo econômicas de El
en El Salvador. Salvador naquele
período.

59
Livro pertencente ao Psicologia social de Conceituação e
1986f departamento de Grupos. apresentação crítica de
Psicologia e Educação. autores que debatem a
categorias analíticas dos
processos grupais.

Así piensan los Levantamento estatístico


1987a Publicação do IUDOP salvadoreños urbanos sobre diversas áreas da
1986-1987 sociedade salvadorenha
do período.

Apresentação de um
Artigo publicado na debate psicossocial sobre
1987b Revista Estudios Del opio religioso a la fe a função social da
Centroamericanos libertadora religião e suas
(ECA). potencialidades.

Artigo da Revista de El latino indolente: Debate sobre um


1987c Psicologia de El carácter ideológico del fenômeno social na/da
Salvador. fatalismo América Latina
latinoamericano.

Artigo publicado no ¿Es machista el Debate da categoria


1987d Boletim de Psicologia de salvadoreño? teórica machismo.
El Salvador

Conferência na 5º Los grupos con Análise das mediações


1987e Jornada Venezuelana de historia: un modelo teóricas da categoria que
Psicologia Social psicosocial. compõe os processos
grupais.

Reflexão crítica sobre


Conferência apresentada El reto popular a la algumas posições
1987f no 21° Congresso Psicología Social en políticas da ciência
Interamericano de América Latina. psicológica e proposição
Psicologia de rumos para sua
atuação profissional.

Conferência apresentada Debate sobre aspectos


no 21° Congresso De la guerra sucia a la psicossociais da guerra
1987g Interamericano de guerra psicológica: el atrelados a uma análise
Psicologia caso de El Salvador. da conjuntura
salvadorenha da década
de 1980.

Debate epistemológico e
1987h Manuscrito não Procesos psíquicos y filosófico sobre
publicado poder categorias centrais da
Psicologia.

60
Trabalho apresentado no Debate sobre as tarefas
Primeiro Congresso sócio-históricas e os
1987i Porto-riquenho de La investigación y el limites da práxis
Pesquisas em Educação, cambio social. científica.
Universidade de Porto
Rico

Conferência pronunciada La violência em Análise de conjuntura


1987j na Universidade da Centroamérica: una desde a categoria
Costa Rica visión psicosocial violência.

Reflexão sobre os limites


Artigo do Boletim da Votar en El Salvador: de uma atividade
1987k Associação Venezuelana Psicología Social del importante dentro das
de Psicologia Social desorden político democracias formais
representativas.

Reflexão sobre aspectos


Artigo publicado na Opinión preelectoral y psicossociais da
1988a Revista Estudios sentido del voto en El participação cívica na
Centroamericanos Salvador vida política
(ECA). institucionaliza de El
Salvador.

La violencia política y Debate que propõe


Artigo da Revista de la guerra como causas redimensionar
1988b Psicologia de El del trauma psicosocial criticamente o conceito
Salvador en El Salvador de trauma.

Conferência pronunciada Reflexão sobre as


no seminário “Mulher en La familia, puerta y condições reais da vida
1988c El Salvador: perspectivas cárcel para la mujer cotidiana das mulheres
para la acción” salvadoreña em El Salvador daquele
período histórico.

Reflexão que sumariza


diversas produções da
1988d Conferência pronunciada Psicología del trabajo Psicologia sobre a
no Encontro Brasileiro en America Latina. questão do trabalho
de Psicologia do apontando críticas e
Trabalho pontos positivos já
alcançados.

Artigo publicado na Guerra y trauma Análise psicossocial dos


1988e Revista Estudios psicosocial del niño efeitos colaterais da
Centroamericanos salvadoreño guerra nos primeiros
(ECA). anos de vida.

Conferência pronunciada Reflexão sobre os


no 13° Congresso Hacia una Psicologia aspectos teóricos e
1988f Colombiano de Latinoamericana. práticos da Psicologia
Psicologia, em comprometida com os
Barranquilla (Colômbia). interesses dos
explorados.
61
Denuncia sobre o modo
como as mulheres eram
La mujer salvadoreña y retratadas nos veículos
1988g Revista de Psicologia de los medios de midiáticos e como o
El Salvador. comunicación massiva. papel que lhes era
atribuído não favorecia
sua emancipação.

La opinión pública Levantamento estatístico


1989a Publicação do IUDOP. salvadoreña (1987- sobre as condições reais
1988) da vida na sociedade
salvadorenha.

Sistema, grupo y poder: Apresenta criticamente


1989b Livro psicología social desde tópicos elementares da
Centroamérica II Psicologia Social

1989c Texto inédito até a morte Consecuencias Análise psicossocial dos


do autor. Publicado em psicológicas de la desdobramentos da
livro repressión y el guerra na vida cotidiana.
terrorismo.

Reflexão e debate
Texto inédito até a morte El método de la teórico-epistemológico
1989d do autor Publicado em Psicología política. sobre a situação e o
livro desenvolvimento do
método científico na
Psicologia.

Crítica às condições
Artigo publicado na ¿Trabajador alegre o concretas de vida dos
1989e Revista de Psicologia de trabajador explotado? trabalhadores na
El Salvador América Latina.

Reflexão sobre as
relações entre método,
1989f Artigo publicado em Retos y perspectivas de procedimentos de
livro la psicología latino- pesquisa e objetos de
americana estudos da psicologia
política.

Reflexão sobre como a


guerra passou a ser um
Artigo da Revista de La institucionalización fenômeno sócio-político
1989g Psicologia de El de la guerra e econômico que afetava
Salvador ubicamente a sociedade
salvadorenha, de modos
distintos.

62
Trabalho preparado para Los medios de Análise conjuntural da
o Congresso comunicación masiva y guerra civil que começou
1989h Internacional da la opinión pública en El em 1981 abordando por
Associação de Estudos Salvador de 1979 a meio de pesquisas
Latino-americanos 1989. estatísticas o que os
salvadorenhos
verbalizam sobre ela.

Debate sobre a relação


entre a religiosidade
1990a Artigo de jornal Religión y guerra concreta e os efeitos
científico. psicológica. psicossociológicos da
guerra.

Reportagem que procura


responsabilizar
1990b Artigo da Revista Reparations: Attention devidamente os que se
Commonweal Must be Paid beneficiavam com
espólios da guerra civil
salvadorenha.

Coletânea de textos do
Psicología social de la autor sobre violência,
1990c Livro guerra: trauma y terapia guerra e os
desdobramentos
subjetivos dela.

Artigo da Revista Fundamentos teóricos y Revisão crítico-


2010 Salvadorenha de metodológicos de la epistemológica dos
Psicologia investigación latino- objetos de estudo e
americana modos de pesquisa nas
ciências sociais.

Cuerpo y alma Debate amparado na


s.d. 1 Trabalho de disciplina humanos ante la filosofia e na teologia
acadêmica muerte. cristã sobre a morte.

El alumno de Registro da experiência


s.d. 2 Trabalho de disciplina secundaria en un do autor como professor
acadêmica colegio católico de de um colégio em El
centro Salvador.

Ensaio crítico desde a


s.d. 3 Trabalho de disciplina Nietzsche y Freud (A teologia cristã das
acadêmica modo de ensayo). posições de Nietzsche e
Freud sobre a condição
humana.

63
Debate a partir de
s.d. 4 Trabalho de disciplina La teoría de la referências cristãs sobre
acadêmica evolución. a origem das espécies (da
vida orgânica).

Registra crítico e
antropológico (desde a
s.d.5 Trabalho de disciplina Complejo o cultura? B. Malinowski) sobre a
acadêmica obra Totem e Tabú de S.
Freud.

Reflexão sobre a
s.d. 6 Manuscrito inédito Psicología social en la conceituação da área
UCA Psicologia denominada
Social.

Análise conjuntural de El
s.d. 7 Manuscrito não Qué psicólogo necesita Salvador e proposição de
publicado. el país tarefas aos profissionais
da Psicologia.

FONTE: QUADRO FEITO PELO AUTOR DESTA PESQUISA.

64
2. PROLEGÔMENOS À CRÍTICA ONTOLÓGICA DO PROJETO
ÉTICO-POLÍTICO DE MARTÍN-BARÓ PARA A PSICOLOGIA OU
COMO NÃO CONSTRUIR UM LEITO DE PROCUSTO

Empenha-se neste capítulo a trazer à lume rudimentos para uma análise crítico-
ontológica do projeto ético-político para Psicologia que cremos ter sido engendrado por
Martín-Baró. Para tanto, forjamos uma sucinta exposição das condições concretas que o
jesuíta encontrou e teve que enfrentar na América Latina no período em que produziu seus
textos25. Um alerta: entendemos que há “intelectuais acadêmicos” que se resignam ao papel
institucionalmente dado, que não criticam as regras e as normas que lhes garantem, em vários
casos, posição confortável; quando isso ocorre, eles não ultrapassam os limites, por mais
“críticos” que sejam seus textos, postos pela classe exploradora aos seus fazeres. Sem mais
tergiversações e afirmando que Martín-Baró foi um intelectual-revolucionário e que seu
projeto para a Psicologia é expressão disso, adentramos nos subsídios concretos que foram as
munições teóricas de nossa críticai.

2.1 América Latina no século 20: notas sobre suas insurreições26

Martín-Baró fez parte de uma tradição de questionadores latino-americanos que


remontam (no que tange a uma crítica teórica ao modo de produção econômico capitalista) o
início do século 20. Pretendemos neste trecho enquadrar alguns momentos e movimentos
coletivos do continente que formaram a conjuntura histórico-política e cultural em que ele
viveu e praticou psicologia social.

25
Dividimos as notas desta tese, daqui para frente, em dois tipos. Os rodapés foram acionados quando supomos
que as informações contidas são de utilidade imediata e não comprometem a fluidez do texto. Contudo, para
evitar que a consulta às notas perturbassem a leitura, optamos por recorrer a notas ao final dos capítulos. Elas
contêm informações que acrescem elementos, mas não ferem o entendimento dos que porventura optarem por
uma leitura continua. Todas as vezes que o leitor se deparar com notas textuais postas em algarismo romanos,
estará diante da segunda opção.
26
Esse detour compreenderá principalmente três fontes: Michael Löwy, o marximo na América Latina, uma
antologia de 1909 aos dias atuais, Roberto Regalado, El marxismo y las luchas populares na América Latina e
nossa dissertação mestrado, que foi retomada sumariamente.
65
Ao discorremos sobre certas lutas sociais latino-americanas esbarramos no labor e na
tarefa de um grande grupo amorfo que frequentemente é generalizado como “marxistas”, mas
que sabemos, engloba militantes de diversos matizes políticos e filosóficos. Mesmo sem
necessidade de aproximar Martín-Baró do rótulo de marxista, acreditamos que expor alguns
pontos coincidentes entre sua obra, suas influências teóricas, e os interesses dos marxismos
latino-americanos complementem e consolidem nossa proposta.

Numerosas vulgarizações da teoria proposta por Marx e Engels deram margem a


interpretações que minoraram tanto o potencial do método científico empregue por eles
quanto o da direção do projeto político-societário que defendiam. Procede, não obstante, a
crítica de que a pretensão de “aplicar” a fórmula “classe trabalhadora industrial versus
burguesia” tornou ineficientes e míopes muitas tentativas políticas de mudanças, por parte dos
vinculados àquela tradição, ao longo da história da América-Latina27 (REGALADO, 2011).

De acordo com Regalado (2011), e veremos mais a seguir com Löwy (2012), a
insuficiência de formulações teórico-científicas compatíveis com a particularidade histórica
latino-americana cobrou alto preço28. O primeiro citado escreve:

"[...] se ignoró el hecho de que la dominación colonial, neocolonial e imperialista, la


dependencia, el subdesarrollo, la existencia de etnias indígenas, la presencia de
masas descendientes de esclavos traídos da África, de descendientes de braceros
chinos y inmigrantes de otros orígenes, conformaron estructuras sociales y estatales,
fundieron un mosaico étnico y cultural, y generaron contradicciones sociales
distintas a las estudiadas por Marx, Engels y Lenin".(REGALADO, 2011, p.3).
Ao mencionar o marxismo, aqui entendido como um das correntes políticas que
exprimiam os interesses dos explorados, Löwy (2012, p. 10-11) subsescreve:

Muito esquematicamente podemos distinguir três períodos na história do marxismo


latino-americano: 1) um período revolucionário, dos anos 1920 até meados dos anos
1930, cuja expressão teórica mais profunda é a obra de Mariátegui e cuja
manifestação prática mais importante foi a insurreição salvadorenha de 1932
[itálico nosso]. Nesse período, os marxistas tendiam a caracterizar a revolução
latino-americana como, simultaneamente, socialista, democrática e anti-imperialista;

27
Se entendermos a importância das proposições de Vladimir Lênin para a discussão sobre as condições reais da
luta de classe (não o estamos colocando ombro a ombro com Marx, apenas destacamos seu esforço por
“atualizar” o desenvolvimento da teoria social para as condições reais de seu tempo), veremos que, por meio da
dialética materialista e histórica, buscou compreender as possibilidades concretas da classe trabalhadora russa
em dar continuidade à revolução e o quanto ela (a teoria) careceria de identificar os camponeses pobres como
aliados estratégicos nas lutas pela consolidação do socialismo.
28
Não suprimimos presenças de peso como as do peruano, já citado, José Carlos Mariátegui (1984-1930), do
cubano Julio Antonio Mella, assassinado aos 26 anos (1903-1929), do argentino Ernesto Guevara de la Sierra
(1928-1967), do cubano Fidel Alejandro Castro Ruz (1926 – 2016) ou de Luiz Carlos Prestes (1898-1990), para
citar alguns nomes mais familiares, apenas concordamos que as viravoltas do século 20 mostram o tamanho dos
problemas ocasionados por ações coletivas orientadas por teorias sociais inadequadas às nossas condições.
66
2) o período stalinista, de meados da década de 1930 até 1959, durante o qual a
interpretação soviética de marxismo foi hegemônica, e por conseguinte a teoria de
revolução por etapas, de Stalin, definindo a etapa presente na América latina como
nacional-democrática; 3) o novo período revolucionário, após a revolução Cubana,
que vê a ascensão (ou consolidação) de correntes radicais, cujos pontos de referência
comuns são a natureza socialista da revolução e à legitimidade, em certas situações,
da luta armada, e cuja inspiração e símbolo, em grau elevado, foi Ernesto Guevara.
Michael Löwy (2012) preconiza uma distinção que tensionava o cenário intelectual na
América-latina para dois lados opostos: o excepcionalismo indo-americano e o
eurocentrismo29. O primeiro polo, o excepcionalismo, tendeu para absolutizar a especificidade
do continente; em última instância levantando a questão de se o método utilizado por Marx e
Engels possuiria validade, uma vez que ele foi produzido na Europaii. O segundo polo, o
eurocentrismo30, devastou a teoria latino-americana31. De acordo com Löwy (2012, p. 12), “a
estrutura agrária do continente foi classificada como feudal, a burguesia local considerada
como progressista, ou mesmo revolucionária, o campesinato definido como hostil ao
socialismo coletivista etc.”; ou seja, o continente foi convertido em uma Europa tropical com
desenvolvimento retardado e dominado pelos Estados Unidos. Ele prossegue, fundamentado
no materialismo histórico-dialético, e atesta que o caso latino-americano só se resolverá com
uma superação dessas tendências e do dilema entre particularismo hipostasiado e dogmatismo
universalista.

São tarefas históricas, por conseguinte, demonstrar os condicionantes de nosso


subdesenvolvimento a partir do caráter peculiar do avanço do capitalismo na América Latina
(formas coloniais, semicolônias ou dependentes) e também considerar a particularidade
histórica específica das questões dos povos originários e do campesinato latino-americano32.

29
De modo análogo vemos alguns pensadores latino-americanos contemporâneos que pendulam para esses
mesmos lados; a crítica de Enrique Dussel à dialética (ao propor a analéctica), por exemplo, é uma tentativa, a
nosso juízo, de exorcizar o eurocentrismo do método propugnado por Marx e Engels caindo fatalmente no que
chamaremos de excepcionalismo indo-americano.
30
“Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América
Latina os modelos de desenvolvimento socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo
do século XIX. Para cada aspecto da realidade europeia estudado por Marx e Engels – a contradição entre forças
produtivas capitalistas e relações feudais de produção, o papel historicamente progressista da burguesia, a
revolução democrático-burguesa contra o Estado feudal absolutista – procurou-se laboriosamente o equivalente
latino-americano” (LÖWY, 2012, p. 11).
31
Em um paralelo grosseiro, a crítica efetuada por Martín-Baró à tradição de psicologias europeias e
estadunidenses encontra paralelo em outras áreas do conhecimento e, mais, na própria organização política e
social das lutas emancipatórias na América latina.
32
Qual a origem dessa especificidade? “[...] de suas [do campesinato] tradições culturais e do caráter capitalista
de sua exploração, isso revela o potencial socialista, explosivo, revolucionário dos trabalhadores rurais (El
Salvador em 1932, Cuba em 1957-61, para citar apenas dois exemplos)” (LÖWY, 2012, p. 13). Em Martín-Baró
(1988d), veremos melhor essa questão.
67
Em El Salvador, por exemplo, em diversos artigos, vemos a ênfase de Martín-Baró ao papel
dos campesinos na guerra civil iniciada 1980, sem os quais a resistência teria sido
impossibilitada.

Em relação aos problemas econômicos, Marini (1969/1999) mostra como a questão da


dependência marcou indelevelmente os debates; a problemática da libertação da dominação
imperialista e da submissão ao poder econômico e político-militar reaparece em diversos
momentos do século 2033.

Ainda sobre a história da resistência político-social e cultural (anarquistas,


anarcosindicalistas e socialistas, principalmente) ao avanço do capitalismo na América-latina,
vemos que ela remonta, no caso específico da crítica socialista, aos imigrantes trabalhadores
europeus (principalmente alemães, italianos e espanhóis) vindos ao continente nas últimas
décadas do século 19iii. Havia uma corrente reformista, destinada a melhorar as condições de
vida dos trabalhadores (note-se, afora isso, que dentro delas existiam diferenças entre a
intensidade e o conteúdo das reformas), e outra revolucionária, que planejava a subversão
socialista da sociedade ainda que com estratégias e táticas distintas. O marxismo como
fundamento teórico-prático da corrente socialista chegou as Américas atrelado, mormente, ao
Partido Social Democrata alemão, que dominava o cenário socialista mundial naquele
momento histórico34 (REGALADO, 2011).

Para Löwy (2012), as primeiras empreitadas analíticas sobre as condições latino-


americanas, em termos concretos, surgiram com as correntes comunistas. Com datação da
década de 1920, os partidos comunistas tiveram duas fontes diferentes: os socialistas aliados à
Revolução de Outubro (Uruguai, 1920, e Chile, 1922), a ala à esquerda (Argentina, 1918) e a
evolução rumo ao bolchevismo de grupos anarquistas ou anarco-sindicalistas (México, 1919,

33
Concordamos com Löwy (2012) quando ele crava que a década de 1920 é a da originalidade do “comunismo”,
para nós, a dos pensadores críticos e criativos do continente. Veremos brevemente o quanto a dogmatização
burocrática encabeçada pelo stalinismo (dos anos 1930 até 1960, principalmente) foi emblemática para a
expressão teórica das lutas emancipatórias latino-americanas.
34
O cubano complementa: “Cuandos las corrientes socialistas y anarquistas procedentes de Europa se introducen
a América Latina, en nuestra región existían corrientes autóctonas de pensamiento emancipatorio de muy larga
data, herederas de la tradición de la rebeldía indígena, de los esclavos africanos y otros sectores oprimidos y
explotados en la etapa colonial, que siguieron oprimidos y explotados tras la independencia de España. Un
primer problema es que los portadores de las ideologías europeas, es decir, aquelos obreros emigrantes de finales
del siglo XIX, ignoraron o subestimaron a las ideologías y las luchas autóctonas y, por tanto, cometieron el error
de trasplantar, de manera mecánica, los análisis filosóficos y políticos, y los objetivos , estrategias y tácticas
formulados acorde con las condiciones existentes en Europa.” (REGALADO, 2011, p. 5).

68
e Brasil, 1922). A revolução Russa ecoou profundamente no movimento dos trabalhadores e
entre a intelligentsia do continente35.

Seguindo Regalado (2011), as principais correntes filosóficas e políticas de matriz


popular nascidas na América-latina entre os séculos 18 e 19 foram: o nacionalismo, fruto da
crescente tomada de consciência sobre as diferenças econômicas, sociais e culturais entre as
metrópoles, Portugal e Espanha, e suas colônias; o anti-imperialismo, combatendo as ações
espoliadoras dos monopólios estrangeiros e a dominação política das potências imperialistas,
ao passo que reafirmava a herança cultural pré-colonização (o precursor dessa vertente foi
José Martí); e o nacionalismo revolucionário, que da fusão do nacionalismo com o anti-
imperialismo opunha-se ao liberalismo e ao conservadorismo (mesmo que depois tenha se
associado aos interesses imperialistas, no momento de seu aparecimento histórico, constituiu-
se uma inegável crítica a ele).

Com a formação do proletariado e o nascimento dos sindicatos, resultado da


modernização da mineração, dos avanços da agroindústria e dos primeiros passos de uma
indústria orientada para o mercado interno desabrocham os primeiro ideários emancipadores
autóctones do continente.

Para Kohan (apud Regalado, 2011), a corrente político-filosófica mais sólida que se
desenvolveu na América Latina foi o anti-imperialismo atrelado fortemente ao marxismo
centro-europeu, depois ao marxismo-leninismo e, posteriormente, com fortes vieses do
stalinismo (veremos adiante como isso afetou a Psicologia, justamente por traços destes
influxos acompanharem a construção da obra de Ignacio Martín-Baró). A década 1920
vislumbrou fecundas sínteses entre marxismo (europeu) e anti-imperialismo, principalmente
com militantes como José Carlos Mariátegui, Julio Antonio Mella e Agustín Farabundo Martí.

Enquanto muitos partidos políticos de esquerda seguiam submissos às ordens do


Terceiro Período do Comintern (o termo que designa a Terceira Internacional ou Internacional
Comunista, 1919-1943), outros receberam rumo esquerdista, como estímulos para inclinações
35
Isso não quer dizer não existiram resistências à enxurrada de autores europeus tratados como autoridades.
Mariátegui, de acordo com Löwy (2012), não se entusiasmou muito com a vitória de Stalin sobre Trostki, e por
suas posições foi acusado de eurocentrismo por adversários apristas e de populismo nacionalista por alguns
soviéticos. Rotulado de heterodoxo, idealista ou romântico, o voluntarismo ético-social (p.18) de seus escritos,
no entanto devem ser compreendidos, para o brasileiro, como uma resistência ao materialismo vulgar e
economicista no marxismo. Ele completa dizendo que podemos encontrar no peruano traços tanto do jovem
Lukács quanto do “bergsonianismo” do jovem Gramsci, que seriam formas de revoltas antipositivistas contra o
marxismo “ortodoxo” da II Internacional. Para Mariátegui, a revolução latino-americana só poderia ser socialista
e, mais, teria que incluir objetivos agrários e anticapitalistas.
69
revolucionárias autônomas. “Foi o caso do Partido Comunista Salvadorenho – fundado em
1930 por quatro sindicalistas e um ex-estudante, Agustín Farabundo Martí (1983-1932)36 –
que, em 1932, organizou a primeira – e única – insurreição de massa na história da América
Latina a ser liderada por um partido comunista” (LÖWY, 2012, p. 21) iv.

Tanto Löwy (2012) quanto Kohan afirmam que, após a morte dos três militantes
salvadorenhos e a assunção do controle da III Internacional por parte de Stalin, o contrapeso
que era feito pelas propostas originais e teoricamente mais sólidas na América-Latina
sucumbiram diante da pressão advinda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(U.R.S.S). Anos mais tarde, com libertação de Cuba liderada por Fidel, abriram-se novamente
as janelas históricas teórico-criativas no continente; que nos fariam retomar uma direção
autônoma e novamente mais próxima ao marxismo-leninismo37.

Um parênteses. A política de frentes amplas (que veremos a seguir ter sido muito
presente em El Salvador nas décadas de 1970 e 1980) sofreu duros golpes, mas foi uma marca
importante das formas de lutas latino-americanas. Quando a U.R.S.S e a Alemanha firmaram
pacto de não agressão, por exemplo, isso causou profunda divergência entre os partidos
comunistas espalhados pelo mundo. Pouco depois, em junho de 1941 (e a invasão de Hitler na
U.R.S.S), a III Internacional retornou à posição anterior e rompeu definitivamente com os
alemães. Na prática, quando soviéticos se aliançaram aos E.U.A contra os nazistas, a peleja
contra o anti-imperialismo norte-americano na América Latina foi suspensa e, naquele
período, passou ainda a ser duramente criticada pelos partidos comunistas como manobras a
serviço do fascismo (LÖWY, 2012)v.

36
Farabundo Martí após ter frequentado a Universidade de El Salvador (ali teria aprendido sobre positivismo,
socialismo utópico e noções marxista-leninistas) foi expulso para México devido a suas atividades radicais. Só
em 1925 retornaria a seu país natal ajudando a fundar a Federação Regional dos Trabalhadores Salvadorenhos,
até novamente ser exiliado e tendo que regressar cladestinamente. Em 1927, juntou-se a Augusto Cesar Sandino,
em seu combate aos fuzileiros navais norte-americanos na Nicarágua. No ano de 1929 foi com seu colega
revolucionário exilado (Sandino) ao México, criticando-o, no entanto, por não acatar seu programa comunista,
satisfazendo-se com a bandeira da independência nacional e não com a da revolução social (MONTGOMERY &
WADE, 2006).
37
Um parênteses. Quando o IV Congresso da Internacional Comunista (1928), por exemplo, propôs uma
abertura política conhecida como classe contra classe, isso para os latino-americanos significou uma luta aberta
contra o anti-imperialismo e contra as correntes políticas burguesas. Em 1935, a III Internacional (no VII
Congresso do Comintern) substituiu essa política (classe contra classe) e, em virtude do avanço do fascismo no
mundo, passou para a de frentes amplas, que no primeiro momento aconteceu “desde baixo”, dos setores pobres,
mas, em um segundo, essas mesmas frentes se associaram a setores burgueses antifascistas e à pequena
burguesia (REGALADO, 2011).
70
Entre os anos de 1948 e 1954, a nomeada Guerra Fria irrompeu uma ofensiva
imperialista generalizada contra a U.R.S.S; a caça aos comunistas principiou-se em vários
países latino-americanos colocando-os na ilegalidade (por exemplo, no Brasil e no Chile),
além do fato de a polícia passar a ser instrumento de repressão a sindicalistas de esquerda.
Esse entre anos seria marcado por forte militarização da vida cotidiana. Contudo, a morte de
Stalin, em 1953, e os desdobramentos do capitalismo no mundo possibilitaram o despontar de
uma nova fase nas lutas latino-americanas38.

Para Regalado (2011), só partir do triunfo da Revolução Cubana (lembremos que foi
justamente essa a quadra histórica em que Martín-Baró atracou pela primeira vez em El
Salvador), a América Latina seria profundamente sacudida. O período em que o jesuíta
desembarcou na América Central foi atravessado por grande ofensiva do imperialismo norte-
americano que objetivou destruir o primeiro estado socialista do continente, tanto quanto as
forças revolucionárias surgidas sob a inspiração cubana. Não nos esqueçamos das ditaduras
militares burguesas, já extensamente documentadas e que eram patrocinadas pelos E.U.A.

No início dos anos 1990, logo após o assassinato de Martín-Baró, houve um


recrudescimento dessa política hostil (dos bloqueios e das censuras) perpetrado pelos ianques;
sem a U.R.S.S, a ameaça cubana diminuiria bastante. As lutas latino-americanas se
configuraram, a partir daquele período, basicamente como tensões contra o neoliberalismo e
pelos avanços de propostas esquerdistas dentro das democracias representativas burguesas.

A ilha vermelha, todavia, é marco fulguroso em nosso ultrajado continente. Foi ela que
oportunizou o reencontro entre correntes revolucionárias, anti-imperialistas e o marxismo,
que, outrora fundidas, dormiam desgastadas. As figuras de Fidel Alejandro Castro Ruz e
Ernesto Guevara de la Serna volvem-se, por exemplo, em emblema da luta socialista. Distante
de sustentarmos a irrepreensibilidade com que o governo cubano conduziu a transição para o
socialismo, nem mesmo a forma com que Fidel Castro conservou-se na direção da ilha,
sobrelevamos, todavia que tanto “El Caballo” quanto “El Che”, este último principalmente
por apontar o necessário internacionalismo das lutas sociais, foram figuras importantes para
os movimentos políticos de todo o continente.

38
O Cominform (sigla do Bureau de Informação dos Partidos Comunistas e Operários, criado em setembro de
1947), por exemplo, foi desfeito em 1956, o que não sinalizou um rompimento total de vínculos entre os partidos
comunistas e a liderança soviética, mas indicava mudanças. Após a Guerra Fria, a política de apoio aos governos
capitalistas progressistas/democráticos passaria a ser vista com bons olhos mesmo por amplos setores da
esquerda (LÖWY, 2012).
71
Para Regalado (2011), a revolução cubana despertou uma etapa histórica em que se
desenvolvem três processos inter-relacionados: a) o auge das formas violentas (militarizadas)
assumidas pelas lutas populares, que não necessariamente tinham por meta o socialismo, mas
reformas progressistas no capitalismo; b) a repressão bélica por parte do imperialismo norte-
americano e seus aliados na região, que não distinguiam militantes socialistas dos demais,
nem daqueles que eram a favor ou contra a luta armada (até onde sabemos, Martín-Baró era
um partícipe pacifista e do mesmo modo como Carlos Mariguella, por exemplo, foi trucidado
por sua rebeldia civil); c) enfrentamento ideológico entre movimentos político-militares e
partidos de esquerda opostos a ela. Tendo em consideração os processos de lutas populares e
progressistas, o autor destaca, nesse período, três elementos analíticos importantes: o fluxo e
refluxo das lutas armadas, o triunfo eleitoral da Unidade Popular no Chile, encabeçada por
Salvador Allende, e os governos militares progressistas.

Sobre o que nos interessa diretamente é importante frisar o mérito da Revolução


Cubana para o ânimo dos militantes de El Salvador, uma vez que a Frente Farabundo Martí
para la Liberación Nacional (FMLN), que teve papel marcante nas lutas sociais que
envolviam diretamente o psicólogo salvadorenho por nós estudado, foi largamente
“influenciada” pelos acontecimentos daquela ilhavi. A violência empregada pelos Estados-
Unidos para bloquear, isolar e estigmatizar Cuba também transbordou para outros países da
região39.

Ao passo que a Revolução Cubana crescia, ela estimulava as ciências sociais


marxistas; além do guevarismo, tanto o trotskismo quanto o maoísmo obtiveram
reconhecimento. Pela primeira vez houve uma ampla penetração dos estudos marxianos e
marxistas nas universidades de todo o continente, o que enriqueceu diversas áreas do
conhecimento; somado a isso, as ideias oriundas dos Estados Unidos e do stalinismo passaram
a ser duramente criticadas.

É desse momento crítico-intelectual que o jovem estudante de filosofia Martín-Baró


fez parte. O debate científico do período ultrapassaria a esfera acadêmica e atingiria vários
movimentos sociais de esquerda. São exemplos disso os autores da teoria da dependência; os

39
Deter-nos-emos, dentro em pouco, na conjuntura política de El Salvador, ainda que já tenhamos feito isso em
Pereira (2013), acrescentando outros elementos a análise. Para termos ideia, lemos em Bosi (2007, p. 100) que
em “El Salvador, os massacres estão ligados ao conflito entre a pastoral camponesa e os latifundiários do café,
poderosamente sustentados pelas autoridades civis e militares: em 1977, foram assassinados os padres Rutilio
Grande e Alfonso Navarro; em 1978, o padre Barrera Motto; em 1979, o sacerdote Octavio Ortiz. Até 1983,
registrou-se a morte de duzentos militantes cristãos das CEBs salvadorenhas”.
72
mais radicais Gunder Frank, Rui Mauro Marini, Aníbal Quijano, Luis Vitale (entre outros)
relacionavam intimamente pesquisa econômico-social com uma estratégia política. De acordo
com Löwy (2012, p. 49), a problemática situava-se nos eixos:

1. A rejeição da teoria do feudalismo latino-americano e a caracterização da


estrutura colonial histórica e da estrutura agrária presente como essencialmente
capitalistas.
2. A crítica do conceito de uma “burguesia nacional progressista” e da
perspectiva de um possível desenvolvimento capitalista independente nos países
latino-americanos.
3. Uma análise da derrota das experiências populistas como resultado da própria
natureza das formações sociais latino-americanas, sua dependência estrutural e a
natureza política e social das burguesias locais.
4. A descoberta da origem do atraso econômico não no feudalismo nem em
obstáculos pré-capitalistas ao desenvolvimento econômico, mas no caráter do
próprio desenvolvimento capitalista dependente.
5. Finalmente, a impossibilidade de uma caminhada “nacional-democrática”
para o desenvolvimento social na América Latina e a necessidade de uma revolução
socialista como única resposta realista e coerente ao subdesenvolvimento e à
dependência (LÖWY, 2012, p. 49).
Apesar da derrota dos inúmeros movimentos guerrilheiros nas décadas de 1960-1970,
o novo período encabeçado por Cuba gerou frutos importantes. A vitória da Revolução
Sandinista na Nicarágua40 e o desenvolvimento de frentes revolucionárias na América Central
tiveram, nos anos 1980, tiveram grande destaque. Como já apontamos, a Frente Farabundo
Martí para a Libertação Nacional (FMLN) teve nesse momento sua formalização. Não
obstante, Löwy (2012, p. 49) acrescenta informações preciosas para nossa análise:

“[...] com a fundação da Frente Farabundo Martí da Libertação Nacional (FMLN)


em 1980, que adotou a herança do comunismo salvadorenho inicial e da insurreição
de 1932. A FMLN chegou a controlar um terço do território do país e conseguiu
amplo apoio popular nas cidades e no campo. Sem ajuda militar e econômica maciça
dos Estados Unidos, o poder do Exército salvadorenho e da oligarquia já teria sido

40
Data de 1961, a inauguração da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que apesar da proximidade
intelectual e geográfica com Cuba teve suas particularidades. A lenda de Sandino permaneceu uma herança
transmitida aos guerrilheiros nicaraguenses e ela representava uma tenaz tradição dos oprimidos que se
converteria em pólvora para as lutas anti-imperialistas e para a rebelião social. Fundida com o marxismo, a
tradição popular se tornou sandinismo. O que nos chama a atenção na revolução da Nicarágua foi a extensa
participação dos cristãos no processo revolucionário (de forma similar a El Salvador), junto de revolucionários
pobres e jovens das cidades. Martín-Baró acompanhou de perto a situação desse país vizinho, e, em inúmeros
textos, mencionou a gravidade da situação denunciando a presença nociva dos Estados Unidos (com bloqueios
econômicos e guerras contrarrevolucionárias), que acabariam por derrotar o sandinismo nas urnas. Löwy (2012,
p. 56) complementa: “a revolução da Nicaraguense teve um profundo impacto em todo continente, mas
especialmente na América Central. Em El Salvador, ela ajudou a inspirar o desenvolvimento de organizações
populares e frentes guerrilheiras. Vindas de diversas origens – guevaristas, maoístas, cristãos de esquerda,
comunistas dissidentes –, essas frentes transcendem o foquismo e a atividade puramente militar graças a esforços
intensos de organização popular (entre operários, camponeses, estudantes e população pobre urbana e rural). O
movimento popular provocou a derrubada da ditadura militar do general Romero em 1979, e as organizações
populares formaram a Coordenadoria Revolucionária de Massas (CRM), mas as organizações guerrilheiras não
conseguiram enfrentar a repressão militar que exterminou praticamente todos os dirigentes da CRM”.
73
vencido. Como na Nicarágua, muitos militantes revolucionários em El Salvador
eram cristãos; durante muito tempo, a principal base de guerrilheiros rurais foi a
FECCAS, a Federação Cristã dos Camponeses Salvadorenhos, criado por jesuítas
progressistas...” [grifos nossos].

Exatamente nesse ponto nos deparamos com o papel dos jesuítas progressistas nas
lutas sociais salvadorenhas. E não temos dúvida que Ignacio Martín-Baró se alistou nessas
filas. Entreveremos adiante como presença dos teólogos e cristãos “da libertação” nos
auxiliam a compreender minimamente a conjuntura intelectual que o acolheu. Pois, tanto na
Nicarágua quanto em El Salvador e na Guatemala, cristãos radicais e as Comunidades
Eclesiais de Base desempenharam papel vital nas lutas sociais. Nessas três nações, a
vanguarda revolucionária foi composta pela fusão entre marxismo e as tradições populares de
lutas anti-imperialistas; principalmente, de acordo com Löwy (2012, p. 56), “a luta de
Sandino contra a intervenção norte-americana (1927-34), a insurreição de 1932 em El
Salvador e a luta centenária dos indígenas contra a colonização na Guatemala”.

A atração das ideias socialistas e marxistas, em parte inspiradas pelo guevarismo,


alcançou parte significativa dos cristãos e dos setores mais radicalizados do clero e esse é “um
dos aspectos mais característicos das insurreições centro-americanas, do qual não há
precedentes históricos em tal escala” (LÖWY, 2012, p. 57).

O Concílio do Vaticano II contribuiu bastante com esse processo, apesar de que suas
resoluções não transcenderam os limites de uma modernização, ou melhor, de uma abertura
liberal das discussões teológicas; mas, isso já foi suficiente para dirimir alguns dogmas e
tornar a cultura cristã permeável a influências seculares. Ao abrir-se para o mundo, a Igreja
encontrou-o imerso em conflitos sociais. É dessa conjuntura que cristãos (teólogos, jesuítas,
especialistas leigos, estudantes etc.) foram introduzidos ao marxismo, principalmente durante
as décadas de 1960 e 1970, período em que Martín-Baró cursava Teologia.

Estamos com Löwy (2012), e não supomos que teologia da libertação tenha criado a
mudança dentro do cristianismo, mas sem dúvida ela é uma expressão particular de um
movimento social cristão nos bairros, sindicatos, ligas camponesas, centros de educação
popular etc. O movimento do “cristianismo da libertação” (julgamos sofisticada a distinção
entre cristianismo da libertação e teologia da libertação, por não elitizar um movimento com
tamanho apelo popular) teve início em 1960. Acerca do tema, cabe um pequeno detour.

74
2.1.1 Cristianismo da libertação: considerações preambulares

De acordo com Osorio (2009), e apresentando dados que Catão (1996) não menciona, a
primeira “Conferência Episcopal Latino-Americana” (CELAM), que ocorreu no Rio de
Janeiro entre 25 de julho e 4 de Agosto de 1955, seria a origem histórica da “teologia da
libertação”41. A conferência teria abarcado temas como: protestantismo, laicismo, comunismo
e superstição. Do encontro, em 2 de novembro daquele mesmo ano, um projeto teria sido
encaminhado para o papa Pius XII e isso abriria caminho para a conscientização a respeito das
necessidades “específicas” da América Latina.

Mesmo ciente dessas informações, presumimos que seja indispensável retroceder um


pouco mais para apreendermos os embriões históricos da proposta teológica que cercou
Martín-Baró. De acordo com Catão (1996), poderíamos retroceder até Leão XIII, papa eleito
em 1878, pois ele dá a partida a uma “revisão” dentro do catolicismo42. Entre suas encíclicas43
há uma que especificamente nos interessa chamada Rerum Novarum de 15 de maio de 1891, e
que é considerada por muitos a raiz da teologia da libertação, uma vez que alertava os cristãos
sobre a posição que deveriam tomar frente às massas de trabalhadores oprimidas pelo
capitalismo44.

Alguns aspectos dessa encíclica, seguindo Catão (1996), são: a) a não distinção entre
clero e leigos, todos foram chamados a se atentar para questões sociais; b) a ênfase nos
comportamentos a serem adotados em vida e não naqueles que visavam “salvar a alma e
ganhar o céu”. No mesmo livro, o monge beneditino destaca aspectos que nos auxiliam a

41
É possível, também, associá-la a certa radicalização de tendências progressistas do catolicismo francês e do
protestantismo liberal europeu da primeira metade do século 20. Pode-se, inclusive, tomar como referência a
obra de Charles Péguy, polemista desafiador do antissemitismo francês do final do século 19 e vigoroso
socialista cristão, e de Emmanuel Mounier, criador do personalismo cristão, que retomou as ideias de Péguy que
propunham a supressão da propriedade capitalista e sua substituição pela comunitária, por exemplo; ele
(Mounier) também fundou a primeira revista cristã de centro-esquerda de que se tem notícia, Esprit; núcleo
aglutinador do pensamento socialista cristão da europa pré segunda guerra. Mounier foi leitura obrigatória de
católicos progressistas desde 1940 até o começo dos anos 1960 (BOSI, 2007).
42
Imbuído da missão de restabelecer o “prestígio” da Igreja sua tarefa teve por princípio renovar o clero e abrir
as portas da Igreja para o mundo. O projeto também almejava renovar estudos teológicos. Além da fundação de
diversas Universidades e Faculdades de Teologia, a encíclica Aeterni Patris (1879) se tornou carta magna na
restauração desses estudos. Criam-se assim diversas teologias e lançou-se luz sobre o fato de que todas elas eram
históricas.
43
Cartas dirigidas a todos aos humanos com o intuito de orientar suas vidas.
44
Isso ocorre 43 anos após a publicação do Manifesto do Partido Comunista redigidos por Marx e Engels. Leão
XIII foi, por alguns, chamado o “Papa vermelho”.
75
situar historicamente os dilemas da Igreja Católica latino-americana e o porquê do advento
dessa corrente subversiva:

a) A doutrina social da Igreja: para os católicos, a proposta social, sobretudo a partir


da década 1960, deveria migrar do ensino dogmático ou acadêmico para o da
promoção, por meio de convênios, reuniões, semanas e discussões entre padres,
leigos, sociólogos, teólogos, professores e missionários no meio popular,
reflexões coletivas para que juntos “repensassem” a sociedade. Todos os cristãos
foram convocados a assumir responsabilidades políticas sobre suas respectivas
posições de fé.

b) A ação católica ou participação efetiva dos leigos: ela brota precisamente no


meio operário, com a Juventude Operária Católica (JOC). A metodologia da ação
católica se afamou como: “ver, julgar e agir”. Todo o movimento incentivava a
participação leiga nos assuntos concernentes à Igreja católica e à sociedade

c) A crise no mundo moderno: a situação concreta das sociedades, como já


observamos, colocou em xeque a crença no progresso ininterrupto do capitalismo;
a Segunda Guerra mundial, a Guerra Fria e a do Vietnã, somados ao
desenvolvimento de armas nucleares, por exemplo, não deram margem a dúvidas
sobre o potencial destruidor desse modo de produção e do individualismo
burguês.

d) Concílio do Vaticano II: datado de 25 de dezembro de 1961 pela constituição


Apostólica Humanae Salutis, de João XXIII, versou, entre outras coisas, acerca da
soteriologia (da salvação humana). Foram realizados quatro encontros anuais. O
concílio abandonou uma eclesiologia45 do poder (fundada na hierarquia) e adotou
uma eclesiologia da comunidade. A igreja passaria/deveria ser composta por
pessoas que respeitam as diferenças culturais, conduzindo todos às mensagens do
Evangelho de Jesus Cristo, sem desconsiderar lutas e dificuldades peculiares de
cada grupo humano.

e) Concílio de Medellín (1968) e Concílio de Puebla (1979): na cidade colombiana


de Medellín começaram os primeiros esforços, recorrendo à ideia da eclesiologia

45
Ramo da doutrina Cristã que trata da doutrina da Igreja.
76
da comunidade do Vaticano II, para adoção de uma disposição cristã diferente em
relação às desigualdades sociais – que passariam a ser tradadas como
pecaminosas. Nessa direção, Medellín fundou a teologia da libertação. No
México, onze anos depois, na cidade de Puebla, a Igreja católica assumiria postura
de luta pela justiça e pelo amor. Passou a coexistir uma espécie de conjugação
entre posições de Igreja-para-o-mundo (que militava contra a injustiça, do lugar
de uma instituição que tem algo a oferecer para a humanidade) e de Igreja-no-
mundo (que se constitui como instituição a partir da luta contra a injustiça). Se
Medellín convocou cristãos ao engajamento nas lutas sociais, entendendo que isso
corresponderia efetivamente à chamada feita pelo Evangelho, Puebla se propôs a
construir uma comunidade organizada para realizar essas tarefas.

Ainda no final dos anos 1960, a teologia da libertação figurava como alternativa à
religiosidade institucionalizada, que se ocupava de propor formas de amenizar subjetivamente
a miséria dos mais pobres46. Não só aspectos metodológicos, mas a própria leitura da Bíblia
cristã mudaria. Toda a religidade cristã que pregasse a aceitação passiva da injustiça era
considerada deformação. As próprias escrituras sacras serviram para embasar tais conjecturas.
Os teólogos católicos (e alguns protestantes como Rubem Alves) colheram nas ciências
modernas, na economia e nas ciências políticas, por exemplo, elementos para auxiliá-los na
apreensão dos fenômenos sociais. Em suma, a teologia da libertação, de acordo com Catão
(1996), pode ser considerada, numa paráfrase, uma resposta cristã madura à interpretação
marxista da sociedade47. De acordo com Löwy (1989, p. 51), podemos acrescentar ainda que:

a teologia da libertação, fruto da tradição católica, inova modernizando-a: a) ao


radicalizá-la e ao generalizá-la para todo o capitalismo; b) ao juntar à leitura moral
do capitalismo a uma análise econômica; c) ao passar do conceito de caridade ao de
justiça social; d) ao não valorizar um modelo passado, mas promover uma
caminhada para o futuro (utopia social).

46
Osorio (2009, p. 26) menciona que o caminho traçado pela teologia da libertação: “[...] does not imply an
instrumental act, but the construction of an ethical-political position, oriented to interpretation and denouncing of
the conditions of oppression. Praxis is carries out in structuring a dialogical-hermeneutic model referred to
concrete historical subjects with a particular conception of the world, in which poverty, oppression, dignity, and
liberation will be fundamental referents”.
47
A proposição da teologia da libertação está intrinsecamente articulada com a afirmação e crescimento dos
movimentos sociais e populares de libertação dos anos 1960 na América Latina, a maior parte de inspiração
socialista. Exemplo disso são: o trabalho de Educação Popular (vinculado aos estudos de Paulo Freire, no
Brasil); a experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); o Movimento de Educação de Base (MEB); e
a Ação Católica especializada - em particular a Juventude Universitária Católica (JUC), a Juventude Estudantil
Católica (JEC) e Juventude Operária Católica (JOC).
77
Reduzir a teologia da libertação a uma influência marxista na religião é superficial. Se
por um lado é verdade que a rejeição ao capitalismo engendrada por ela é primeiramente ética
(em alguns casos a tornou mais intransigente que muitas correntes marxistas latino-
americanas48), por outro essa inclinação remonta a tradições pré-modernas da cultura católica.
A crítica mordaz ao liberalismo econômico reposicionava a separação entre religião e política.
A privatização da fé (forma tipicamente burguesa deste fenômeno) passou a ser alvo de duros
ataques, pois isso aprisionava a discussão ao campo da consciência singular, em outras
palavras, a recusa por parte dos filiados à teologia da libertação caminhava pari passu a uma
crítica do individualismo moderno49 (LÖWY, 1989).

Para Gustavo Gutierrez (apud Löwy, 1989, p. 52), "o individualismo é a nota mais
importante da ideologia moderna e da sociedade burguesa [...]. A iniciativa e o interesse
individuais são o ponto de partida e o motor da atividade econômica". Notemos que é do
âmago da teologia da libertação que são reintegradas as noções de solidariedade, que já não
mais mantinham relações com ideais abstratos de tempos passados dos povos originários, mas
que ali se renovavam como ordem do dia para o combate ao individualismo. Veremos, por
exemplo, como Martín-Baró retratou, desde a Psicologia, essa questão em diversos
momentos.

O fulcro inovador daquela teologia foi “a autolibertação dos pobres como movimento
histórico rumo ao Reino de Deus” (LÖWY, 1989, p. 53). O vocábulo pobre abandonaria
significados que os aproximava dos de vítima inocente e digna de misericórdia, o que não é
comum nas tradições religiosas; seraim articulardos, ademais, com a noção já moderna de
classe social explorada e oprimida que necessita libertar-se. Com a ressalva de que:

Isso não quer dizer que a teologia da libertação reduza o pobre ao proletário: o
conceito mantém aqui um sentido muito mais amplo, a um tempo por suas
conotações morais e por sua extensão social. Trata-se, segundo Gutierrez, do
conjunto das classes exploradas, das raças desprezadas e das culturas

48
Löwy (1989) cita o exemplo de um documento criado pelos bispos da região Centro-Oeste do Brasil, em 1973,
intitulado O Grito das Igrejas, que afirma: "É preciso vencer o capitalismo. É ele o mal maior, o pecado
acumulado, a raiz estragada, a árvore que produz esses frutos que nós conhecemos: a pobreza, a fome, a doença,
a morte da grande maioria. Por isso é preciso que a propriedade dos meios de produção (das fábricas, da terra, do
comércio, dos bancos, fontes de crédito) seja ultrapassada" (p. 52).
49
Ela (teologia da libertação) incorporava valores modernos como liberdade, igualdade e fraternidade, bem
como a separação entre Igreja e Estado e a valorização das análises positivas da ciência (e mais, endossava até
uma tentativa de integração entre ciências sociais e teologia). Há um reconhecimento da independência da
pesquisa científica em relação aos dogmas e pressupostos religiosos, da perspectiva ético-política o engajamento
passa a ser visto como imperativo. Ainda sobre as afinidades eletivas entre socialismo e a tradição cristã, Löwy
(1989) aponta o universalismo, a valorização do pobre e a crítica da racionalidade comercial.
78
marginalizadas. Corresponde também à realidade social da América Latina, onde se
encontra, tanto nas cidades como nos campos, uma massa enorme de pobres —
desempregados, semidesempregados, marginais, bóias-frias, vendedores ambulantes,
etc (LÖWY, 1989, p. 53).
Não há dúvida que a libertação ativa dos pobres possui bastante afinidade com o
marxismo (a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores); ao
mesmo tempo em que isso abriu novo campo de ação para cristãos, converteu-se em um dos
elementos mais impactantes da “teologia da libertação”. Assim sendo, ela pode sintetizar-se
como um:

[...] sistema coerente de valores e ideias de todo um movimento social que atravessa
a Igreja e a sociedade, a que se poderia chamar Igreja dos pobres ou cristianismo da
libertação. Esse movimento apresenta-se como uma ampla rede informal, uma
corrente vasta e diversificada de renovação religiosa, cultural e política, presente
tanto "na base", nas comunidades, paróquias, associações de bairros, sindicatos,
ligas camponesas, como na "cúpula", nos bispados, nas comissões pastorais,
conferências episcopais nacionais ou regionais (LÖWY, 1989, p. 58).
Sobre os registros históricos que atestam a proximidade entre marxismo e teologia da
libertação50 (algo que nos interessa mais imediatamente pela condição da formação de Martín-
Baró), em abril de 1972, em Santiago, ocorreu o primeiro encontro continental do movimento
cristão pelo socialismo, organizado pelos jesuítas Pablo Richards (teólogo) e Gonzalo Arroyo
(economista), com o apoio do bispo mexicano Sergio Mendez Arceo. Unindo católicos e
protestantes, a “lógica” da teologia da libertação tentou sintetizar marxismo e cristianismo.
No mesmo ano, eles aderiram, como cristãos, à luta pelo socialismo; na resolução textual final
daquele encontro, pode-se ler:

O verdadeiro contexto para uma fé viva hoje é a história da opressão e da luta de


libertação diante da opressão. Para nos situarmos nesse contexto, porém, devemos
participar verdadeiramente do processo de libertação, unindo partidos e
organizações que sejam instrumentos autênticos da luta da classe trabalhadora
(LÖWY, 2012, p. 59).
Apesar da falta de pesquisas bem documentadas sobre aproximações entre essas áreas,
Löwy (apud Wanderley, 2007, p. 119) mostra pontos de diálogos interessantes: a) a relação
entre materialismo e idealismo na filosofia; questiona-se se não seria preferível o idealismo
revolucionário de um teólogo da libertação a um materialismo estúpido dos economistas
burgueses ou dos “marxismos stalinistas”; b) as perguntas sobre se as motivações morais e
espirituais de muitos clérigos não teriam feito os marxistas do período questionarem-se sobre
as tendências reducionistas do economicismo e do materialismo vulgar, suspeitando do culto
do progresso econômico, da modernização capitalista etc; c) a indagação de que se a cultura
50
Ernst Bloch e Lucien Goldmann são citados na condição de marxistas que versam sobre o processo de
compreensão do potencial utópico contestatório das tradições religiosas judaico-cristãs.
79
antiburocrática dos cristãos pela libertação não teria sugestionado novas formas de
organização dos sindicatos e partidos políticos, na direção de horizontalizar as relações,
superando o autoritarismo característico do stalinismo; d) a reflexão sobre a dimensão moral
do engajamento revolucionário, da luta contra a injustiça social; e e) o reexame, à luz do
concreto, do papel histórico da religião como ópio.

Com Gustavo Gutiérrez, Hugo Assmann (um dos pioneiros), Leonardo e Clodovis
Boff, Frei Betto, Ignacio Ellacuria, Jon Sobrino (estes dois últimos amigos de Martín-Baró) e
Pablo Richards na América Central, a teologia da libertação tornou-se muitíssimo influente
nas Comunidades Eclesiais de Base e em diversos setores da Igreja. A relação do cristianismo
mundial com a luta de classes nunca mais seria a mesma. Uma aliança entre “marxistas e
cristãos de esquerda” chegou a ser preocupação tática do movimento dos trabalhadores
marxistas na América Latina. O próprio Fidel Castro, em uma viagem ao Chile, em 1971,
teria falado da possibilidade de se passar de uma aliança tática para uma estratégica com os
cristãos51.

Em resumo, e do prisma sociológico, o surgimento na América Latina do movimento


social intitulado cristianismo da libertação (e de sua expressão teológica) deve ser entendido
como parte da articulação ou convergência entre mudanças internas e externas da Igreja em
fins dos anos 1950. Acerca sas mudanças internas, surgiram “novas correntes teológicas
(Bultmann, Metz, Rahner, Congar, Chenu, Duquoc), de novas formas de cristianismo social
(os padres operários, a economia humanista do Padre Lebret)” (LÖWY, p. 58) e uma abertura
progressiva à filosofia e às ciências sociais; que somada a presença do papa João XXIII e do
Concílio Vaticano II deram margem às possibilidades de legitimar e sistematizar essas novas
orientações. Quanto às questões externas, relembremo-nos do momento vivido pela América-
Latina: a industrialização do continente impulsionada pelo capital multinacional, o

51
Para Löwy (2012, p. 59), “a questão das alianças aparece como superada: os cristãos se tornaram um
componente dos movimentos populares socialistas, libertadores ou revolucionários. Eles trouxeram uma
sensibilidade moral, uma experiência do trabalho popular ‘na base’ e uma urgência utópica que contribuíram
para enriquecer o movimento. O que atrai os cristãos para o marxismo [...] a oposição ética [do marxismo] à
injustiça capitalista...”. Já afirmamos que mesmo considerando a presença do catolicismo progressista francês e
do protestantismo liberal europeu da primeira metade do século 20, para Bosi (2007), a especificidade da
particularidade histórica da década de 1960 na América latina não pode ser menosprezada. Não podemos,
segundo o autor, desconsiderar que esse movimento cultural religioso propunha: a) crítica ao individualismo
burguês, ou seja, sobreposição de valores comunitários aos que se apoiam no ethos competitivo e agressivo do
capitalismo, ao mesmo tempo em que destacava a militância e a força dos pobres; b) consideração de que as
diferenças conjunturais são condicionantes da diversidade de ênfases doutrinárias e políticas (os cristãos
europeus operavam dentro de uma formação capitalista diferente da latino-americana, que lidava com a fome, a
violência, as desigualdades sociais etc.); c) luta contra a centralização e a verticalização das relações de poder na
Cúria romana.
80
desenvolvimento histórico do subdesenvolvimento (expresso pela teoria marxista da
dependência econômica) e o agravamento das condições econômicas e das contradições
sociais que estimularam o êxodo rural e a expansão das cidades, concentrando nas periferias
das zonas urbanas inúmeros indivíduos sobrevivendo com extremas dificuldades52.

Mas, afinal, a teologia da libertação foi um movimento “desde baixo” ou é outra


“ideia” imposta pela alto? Nem um nem o outro. Löwy (1989) destaca que foi um movimento
que marcha da periferia da estratificação social para o centro. Irrompe nos grupos que se
encontravam na intersecção de um lado dos movimentos leigos (e certos membros do clero)
ativos na juventude estudantil, nos bairros periféricos, nos sindicatos urbanos e rurais, e de
outro das comunidades de base. Ou seja, “o processo de radicalização da cultura católica
latino-americana que vai culminar com a formação da teologia da libertação não parte do topo
para a base da Igreja, como parecem sugerir as análises funcionalistas sobre a busca de
influência pela hierarquia, nem da base para o topo, como propõem certas interpretações
populistas” (p. 59). Fugindo das dualidades clássicas entre modernidade e tradição, mesclou,
negando e conservando, elementos tanto de uma quanto da outravii.

***

Para reconstituir minimamente as bases sócio-históricas e político-culturais de nosso


objeto de estudo foi impreterível retratar, sumariamente, a situação econômica do continente
latino-americano. E, em especial, El Salvador, no período que nos interessa apreender (o
intervalo entre 1960-1990, marcado por uma alta complexidade de fatores; por exemplo, a
tensão ditaduras versus democracia representativas). Ainda sobre isso, enfatizamos que a
teoria da dependência econômica, datada dos entremeios das décadas de 1950 e 1960, e em
sua versão marxista, como relata Löwy (2012), foi uma expressão teórica de largo alcance
desse período, que desaguou em diversas áreas do conhecimento; o psicólogo social mexicano

52
Não há como desprezar o fato de que as comunidades eclesiais de base (que surgiram no final de 1960 e início
de 1970) e as primeiras obras teológicas dedicadas à teologia da libertação estão intimamente relacionadas a
esses fatores. Pelo exposto até aqui, percebe-se que ao rastrear a gênese histórica das obras teóricas sobre a
teologia da libertação não se chega a um denominador comum. Contudo, de acordo o Löwy (2012), o livro
Teologia da Libertação: perspectivas, de Gustavo Gutiérrez (padre peruano e ex-estudante da universidade
católica de Louvain e da de Lyon), marca o nascimento editorial da teologia da libertação. Fazendo referências a
Mariátegui, a Ernest Bloch e os teóricos da dependência, Guitiérrez propunha que se modificasse o lugar dos
pobres como recebedores de caridade e coloca-os como sujeitos de sua própria libertação. Rejeitando a
dominante “teologia do desenvolvimento”, ele (apud Löwy, 2012, p. 58) escreve algo mais radical do que muitas
propostas comunistas latino-americanas naquele período.
81
Osorio (2009), e nossa análise crítica, asseguram-na como afluente na gênese do projeto ético-
político de Martín-Baróviii. De agora em diante, nossa atenção centrar-se-a no país em que
Martín-Baró elaborou a maior parte de seus escritos: El Salvador.

2.1.2 El Salvador: uma história de lutas pela terra53.

República de El Salvador

FONTE: GOOGLES IMAGENS (ki/Archivo:El_Salvador_mapa.jpg).

A abertura do livro de Montgomery & Wade (2006) sobre El Salvador é emblemática.


Citando palavras de uma carta da missionária católica Jean Donovan (de dezembro de 1980),
pode-se ler: “El Salvador é um país lindo”; meses depois tanto ela quanto outras três freiras
seriam estupradas e assassinadas por integrantes da Guarda Nacional.

De pequenas proporções territoriais, o menor da América Central (21.000 km²), o país


teve sua independência formal da Espanha declarada em 1821, tornando-se parte da
Federação Centro-Americana, e dela obteve independência em 1839. El Salvador foi das mais
árduas “conquistas” na história colonial das Américas; em grande parte por ter como
adversário da metrópole espanhola uma tribo da região chamada Atlacatl que lutou

53
Este trecho sintetiza nossos apontamentos feitos no mestrado (PEREIRA, 2013), acrescidos principalmente
das contribuições de Tommie Sue-Montgomery (estudiosa que conhecia a Martín-Baró e a Psicologia da
Libertação) e Christine Wade, autoras de A revolução Salvadorenha, publicado pela editora UNESP.
82
intensamente, durante 15 anos, contra o massacre europeu. Localizado próximo a Honduras e
Guatemala, a região é formada por vulcões e planícies que, diferente da Nicarágua, por
exemplo, cheias de Montanha e densas matas, tornavam-se desvantagem em casos de guerras
(sabe-se que milhares de guerrilheiros sandinistas se escondiam nas montanhas durante sua
luta revolucionária).

Com população composta por 96% de mestiços, 3% de europeus e 1% de povos


originários, no início do século 21, El Salvador possuía a mais alta densidade populacional da
América Latina. De acordo com Montes (1986), e reforçado por Montgomery & Wade
(2006), a questão da terra foi o centro dos conflitos econômicos, sociais e políticos
salvadorenhos. Para o primeiro, é até mesmo possível registrar que a própria história do país
orbitou a questão da luta pela terra. À semelhança de vários outros países latino-americanos,
eles ainda sofriram com intensa migração rural-urbana, que subiu de 40% para 48% entre
1979 e 1988.

Para Marini (1969/1999), a América Latina majoritariamente teve uma economia


considerada subdesenvolvida e dependente dos países centrais do capitalismo. Isso se repete
cabalmente em El Salvador: os setores econômicos primários (agropecuário principalmente)
eram regidos pelo capital estrangeiro e por um desequilíbrio nessas relações de força.

Diferente de países como Peru, México e Bolívia, por exemplo, El Salvador


amargurava com a falta de mão-de-obra. Esse foi um dos motivos pelos quais recebeu ainda
menos investimentos em infraestrutura básica por parte dos interessados em explorá-lo. Os
produtos internos submetiam-se à regulação de cotas e preços que priorizavam interesses dos
consumidores e comerciantes, desfavorecendo os setores mais pobres (MONTES, 1986).

Os períodos de cultivo, marcos do desenvolvimento histórico do país, (MONTES,


1986), relacionam-se às seguintes crises socioeconômicas:

a) Primeiro período (por volta de 1492 a 1800) – a terra era farta e disponível para
subsistência dos povos originários e dos espanhóis. Isso se comprovou quando
houve falta no mercado europeu de produtos naturais (bálsamo e cacau),
abundantes na região. Pelo fato do pouco povoamento (nem os povos originários e
nem os espanhóis eram muitos) coexistiram com conflitos pequenos, a propriedade
comunal e o modelo de apropriação privada da terra pelos espanhóis. Apesar disso,
a exploração da mão de obra dos povos originários era regra;
83
b) O período do anil (por volta de 1800 a 1880) – caracterizou-se pelo fato de a terra
tornar-se objeto de disputa, pela intensa exploração do trabalho dos povos
originários e pelo crescente processo de industrialização de fábricas têxteis. A
constante filiação dos jovens ao exército e as guerras latino-americanas
fortaleceram uma etnia local chamada Nonualcos, que mesmo depois de derrotados
foram perseguidos pela repressão. Houve intensificação do movimento indigenista
para homogeneizá-los, uma vez que povos originários ainda eram associados à
rebeldia contra o sistema europeu;

c) O período do café (por volta de 1870 a 1901 de forma mais intensa) – ocorreu uma
supressão de boa parte das propriedades em posse dos povos originários e a
competição por terras aptas ao cultivo agravou a crise sociopolítica. A etnia dos
Izalcos, último reduto dos povos originários, assim como os Nonualcos, foram
submetidos à progressiva e violenta mestiçagem e indigenização;

d) O quarto período (início do século 20 até 1980) - foi marcado pelo alcance das
fronteiras internacionais; principalmente pela exportação de café, algodão e cana
de açúcar. A industrialização que passou a fazer parte do cotidiano da América
Central intensificou os processos de lutas pela terra. Isso teve como
desdobramentos: rápida pauperização, êxodo urbano e proletarização da população
rural - que era maioria. Do prisma social a crise conduziu à crescente desaparição
dos redutos que subsistiam por meio de economia camponesa; as que ainda
resistiram eram as zonas de maiores conflitos.

Apesar da pobreza herdada pela espoliação espanhola, as desigualdades se tornaram


mais pungentes pela terceira fonte agrícola de exportações: o café. Os oligarcas salvadorenhos
(conhecidos como Los catorze, literalmente compostos por 14 famílias) dominaram sozinhos
essa cultura ao longo do primeiro século após a independência; ulteriormente, abririam as
portas para a entrada do exército em seus negócios, o que lhes garantiu, em contrapartida,
segurança contra as revoltas das classes exploradas. A usurpação de terras era prática comum
por parte dessa elite, o que gerou, por exemplo, em 1932, violenta revolta campesina que já
preludiava o que estaria por vir 48 anos depoisix.

Montgomery & Wade (2006) subdividem em quatro o último período (item ‘d’)
descrito por Montes (1986); o primeiro (início do século 20), reiteram as pesquisadoras, cobre

84
a ocupação das terras pelos oligarcas para o plantio e exportação do café; o segundo coincide
com a crise de 1929 que aumentou a presença dos militares que protegiam os cafeeiros
elitizados (essa aliança perdurou por 60 anos); o terceiro (que corresponde a 1944 a 1979),
caracterizou-se por ciclos de repressão; o quarto e último foi o das disputas eleitorais e o da
guerra civil.

El Salvador passou por diferentes propostas de divisão de suas terras, ou seja,


“reformas” agrárias. Pode-se identificar duas mudanças estruturais: a primeira, comandada
pelos espanhóis, por meio da conquista e colonização - feita a favor de seus interesses; e a
segunda, coordenada por liberais da classe dominante, em 1981-198254, que também a
realizaram segundo seus interesses em detrimento aos dos povos originários, da classe
explorada. De acordo com Montes (1986), os espanhóis primeiro dominaram as terras que
antes eram dos povos originários e posteriormente limitaram suas propriedades comunais a
algumas áreas – isto é, introduziram a noção de propriedade privada.

Depois da independência de 1839, os liberais não obtiveram a totalidade das terras


porque muitas estavam em posse dos antigos habitantes da região; as classes dominantes
ambicionavam mais espaço para o cultivo do café, uma vez que os empregados no cultivo anil
se empobreciam. Os estratos dominantes forçaram então redistribuições de terras que
provocaram sérias mudanças; entre elas, destacam-se três: a) unificação do regime de posses
em forma de propriedade privada, acabando com as comunais. b) processo de proletarização
das populações rurais (povos originários e mestiços) que não puderam manter seus hábitos
culturais de sobrevivência e passaram a vender sua força de trabalho por salário; e c) processo
de homogeneização da população; antes desse período coexistiam juntas comunidades de
criolos, mestiços, latinos e dos povos originários; após as reformas, eles passaram a ser
reconhecidos como campesinos ou trabalhadores rurais. A consequência desse processo de
mudanças para os trabalhadores rurais foram drásticas, as condições concretas pioraram
acintosamente55 (MONTES, 1986).

54
A segunda reforma agrária, conhecida por “Reforma Agrária liberal de 1981 e 1982” suprimiu definitivamente
as terras comunais dos povos originários.
55
Ainda sobre essas reformas, Montgomery & Wade (2006), escrevem que sua motivação poderia ter duas
fontes essenciais: terra e trabalho. Contudo, seu efeito colateral foi o surgimento de forças policiais rurais e
municipais que asseguravam a estabilidade social, proibindo a organização dos trabalhadores camponeses. Ainda
assim, a mudança de século (do 19 para o 20) foi recheada de revoltas camponesas que se intensificaram após a
Reforma Agrária. Para termos ideia em números, o cultivo de café cresceu de 70 mil hectares para 106 mil,
entre 1919 e 1932, e ele representava 96% da exportação. Agora imaginemos a situação do país quando da
Grande Depressão (1929); muitos produtores falindo, a riqueza concentrando-se nas mãos de cada vez menos
85
Conflitos Intermitentes: da insurreição à guerra civil

Entre 1932 e 1948 vigorou uma coalizão entre militares e oligarquia que centralizou as
tomadas de decisões políticas. O período seguinte, o dos regimes militares institucionalizados,
segundo Montgomery & Wade (2006), foi tomado por uma sucessão de golpes reformistas
que visavam o liberalismo político (foram dezesseis mudanças de governo entre 1944-1979).
Existem, ademais, peculiaridades que definem esse momento: a) o tipo de regime imposto,
uma espécie de democracia processual em que os militares se revezaram (partidos legalizados
eram comandados por oficiais do exército e serviam para promover diferentes correntes
dentro da própria corporação); e b) o compromisso dos regimes com várias reformas
socioeconômicas sem, entretanto, enfrentarem as enormes desigualdades do país.

Quando a liberalização política avançou e passou a significar ameaça real aos


interesses dos exploradores aumentou a repressão para manter o status quo. Na década de
1960, período que acolheu Martín-Baró, El Salvador viveu mudanças político-econômicas
sem precedentes em sua história como nação colonizada. O decênio que começou com a
criação do alardeado Mercado Comum Centro-Americano (MECA) terminou com Guerra del
fútbol56, entre Honduras e El Salvador, ápice para o fim daquele mercado comum. O período
ainda contou com eleições relativamente competitivas e com o aparecimento de Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e dos sindicatos. Contudo, em 1970, essa abertura política daria
lugar a uma intensa repressão57.

pessoas e os pequenos produtores não conseguindo pagar os empréstimos bancários. Isso os levou a, em
inúmeros casos, serem obrigados a lotear suas terras para terceiros. Em suma, as condições do trabalho se
precarizaram.
56
Curiosidade: A guerra del fútbol ou de las Cien Horas foi um conflito armado entre El Salvador e Honduras
que durou quatro dias (de 14 a 18 de julho de 1969). Esses países que à época demonstravam relações políticas e
econômicas instáveis hostilizaram-se em junho de 1969; após série de três partidas de futebol entre as seleções
das duas nações que disputavam vaga para a Copa do Mundo de 1970. Durante as partidas (em especial a
segunda, realizada em San Salvador) jogadores, torcedores e imigrantes dos dois países foram expulsos,
perseguidos e assassinados; isso levou aquelas nações ao rompimento de relações diplomáticas no fim do mesmo
mês. Dentre outras coisas, a migração e a fragilidade econômica de ambos foi base material do conflito. O livro
do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (A guerra do Futebol, publicado no Brasil pela companhia das
Letras) traz várias reportagens sobre o conflito; ilustra, mas não teoriza sobre a guerra.
57
O Mercado Comum Centro-Americano, que surgiu como ideia na década 1950, teve adesão da Comissão
Econômica para América Latina (Cepal). De acordo com Montgomery & Wade (2006, p. 36), “No início, sofreu
oposição dos Estados Unidos, que desaprovaram a proposta da Cepal de um papel limitado e fortemente
regulado para os investimentos estrangeiros, com ênfase no desenvolvimento planejado e equilibrado, bem como
na eliminação da competição e da duplicação das indústrias. No fim, a Cepal teve de abandonar esses planos
antes que os Estados Unidos aceitassem endossar a criação de um mercado comum”. O impacto do Mercado
86
A crescente presença dos E.U.A também marcou a vida do país. Concretamente isso se
consolidou na criação do Partido Democrata-Cristão (PDC). O PDC incorporava três
correntes políticas distintas, todas oriundas do mesmo pensamento católico romano, “[...] uma
era reacionária, ao passo que as outras duas progressistas. A facção reacionária logo se
separou e fundou o Partido da Conciliação Nacional (PCN). Das outras duas, aquela inspirada
pela doutrina social mais progressista da Igreja tinha um programa com vários pontos em
comum com o movimento socialdemocrata internacional”. (MONTGOMERY & WADE,
2006, p. 34).

A oligarquia industrial visava acima de tudo suas margens de lucro e não o


desenvolvimento da nação58. Ao longo daquela década, a tolerância aos partidos de oposição
por parte dos militares diminuiu e o aumento das mobilizações operárias, das organizações
trabalhistas e das Comunidades Eclesiais de Base assustou a oligarquia. As fraudes nas
eleições e a repressão deterioraram o ambiente sociopolítico cindindo ainda mais a sociedade.

Em 1972, por exemplo, as eleições mostraram que a democratização por meio do


processo eleitoral era inatingível (em uma análise retrospectiva, Martín-Baró [1981c] diz que
algumas condições para a o surgimento de uma guerra civil já estavam postas desde aquele
ano). Em outras palavras, e no que diz respeito ao interesse desta tese, isso contraria posturas
como a de Montero (2009), que vê na obra do psicólogo social jesuíta traços de um
fortalecimento às ações democrático-reformistas-representativas, o que não se sustentaria ante
uma crítica imanente de sua obra, como veremos a seguir.

Se alegarmos que Martín-Baró partia de sua realidade social para propor uma
Psicologia engajada, deve-se reconher que os caminhos eleitorais estavam fechados e que,
portanto, era forçoso fortalecer alternativas revolucionárias; caso lhe neguemos essa
prerrogativa, e admitirmos que ele era um defensor de ações “políticas legalizadas”, ele deixa
de ser o teórico que apreende a realidade tal como ela estava. Acreditamos que com as

Comum Centro-Americano (MECA) foi evidente: o comércio intrarregional cresceu em média 32% entre 1962-
1972. A situação da indústria mudou da importação de itens de substituição para a exportação de componentes (o
que não foi acompanhado por mais ofertas de empregos porque as fábricas que importavam maquinário
“moderno” exigiam cada vez menos operários). As reformas atraíram tanto investimentos domésticos quanto
estrangeiros.
58
Nas palavras de Montgomery & Wade (2006, p. 38): “No setor agrícola, a lei do salário mínimo para os
trabalhadores do campo, aprovada pela Assembleia Legislativa em 1965, deveria promover um novo e melhor
padrão de vida para os campesinos salvadorenhos. No entanto, ela teve como efeito criar mais milhares de sem-
terra e desempregados ou subesempregados. Como dissemos, colonos e parceiros eram um componente integral
das fazendas havia geração”.
87
discussões que virão, não sobreviverão dúvidas sobre as posições políticas demonstradas por
sua práxis. Antes de abordarmos a guerra civil, que captorou muito da atenção do autor por
nós estudado, expendemos uma síntese crítica acerca da situação das classes sociais
salvadorenhas daquele período.

A particularidade histórica das classes sociais salvadorenhasx

A situação das classes sociais59 em El Salvador, entre os períodos de 1970 e 1990,


possibilitam-nos apreender uma dimensão fundamental da sociedade que foi base histórica da
Psicologia construída por Martín-Baró. Essa análise nos proporciona embasamento para
posteriores verificações entre a coerência das produções textuais de Martín-Baró e a própria
realidade que ele pretendeu teorizar e sobre ela agir.

O quadro de Montes (1989), – apresentado um ano antes de ele ser assassinado –


sintetiza a situação60:

59
As classes sociais aqui trabalhadas levaram em consideração, principalmente, a posição que concretamente os
indivíduos ocupavam em relação ao modo de produção e às relações sociais que dela são derivadas.
60
Utilizamos a terminologia conforme o uso dado pelo autor: dominantes e dominados, mesmo reconhecendo a
existência de outros mais precisos. Esta tabela também figura em Pereira (2013).
88
61
Quadro do esquema descritivo e quantitativo das classes e suas divisões .

Classe Dominante Frações Setores Subsetores

Agrário Grandes
Dominante: Rentista Financeiro proprietários
0.76% Burguesia Industrial Alta gerência
0,76% Serviços Proprietários
medianos

Camadas médias e pequena Intelectuais (3,4%) Agrário


burguesia: Empregados (10,7%) Industrial ____________
26,7% Pequenos proprietários (12,6%) Serviços

Semiproletários: (31,2%) Agrário


Proletariado: Industrial
(25,6%) Serviços ____________
Dominados: Subempreados e desempregados Serviço
77,5% (14,4%) doméstico
Desprezados-refugiados (6,3%)
Receptores de dólares de parentes nos
Estados Unidos

Camadas ínfimas: Lúmpen < 1% ____________ ____________

Fonte: Montes (1988, p. 306).

Conforme o criador desse quadro, era difícil averiguar corretamente dados da


população salvadorenha pela falta de registros fidedignosxi. A análise da população
economicamente ativa (PEA) em El Salvador nos daria outra perspectiva dessa questão. De
acordo com Montes (1988), e apesar de os critérios para determinação da PEA serem
questionáveis62, a comparação entre ela e outras porcentagens oficiais apontava que em 1980
havia 259.371 desempregados e 886.050 subempregados; em 1985, esse índice passou
respectivamente para aproximadamente 603.840 e 754.800; supondo que cada trabalhador
representasse famílias diferentes. Os desempregados compunham 14,4% das famílias em
1980, e 27,4% em 1985; os subempregados 49,2% em 1980, e 34,3% em 1985.

61
Outro fenômeno apresentado pelo autor, importante para a compreensão da composição econômica e social, é
que 35,5% das famílias reconheciam que possuíam parentes que moravam nos Estados Unidos; desse número,
24,18% dizia que receber dinheiro dos imigrados, o que dava por volta 188 dólares mensais para as famílias
beneficiadas. Outra coisa, a classe minoritária ou lúmpen formava menos de 1%.
62
O mesmo autor lembra ainda que guerra civil, repressão, mortes violentas e migrações forçadas provocaram
mudanças na composição social. Aproximadamente 1,8% da população refugiaram-se em países como
Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Guatemala e Belize nesse período.
89
Desses números foram considerados desempregados somente os que disponibilizavam
sua força de trabalho para a venda, mas que não encontravam postos de emprego; os
subempregados correspondiam à fração do semiproletariado, o que incluía alguns pequenos
proprietários que procuravam empregos temporários. A soma de todos os percentuais
apresentados mostra um total de 105,96%, o que evidencia que os números não
correspondiam com a realidade efetiva; no entanto, um cálculo baseado na população adulta,
considerada economicamente ativa (PEA), de acordo com Montes (1988a, p. 83-86), ficaria
assim:

Esquema descritivo e quantitativo das classes e suas divisões, para a população economicamente ativa.

Classe Dominante Frações e subsetores

Dominante: Grandes Proprietários: 0,11% PEA real


0.30% PEA real Alta gerência: 0,02% PEA real
Proprietários medianos: 0,17% PEA real

Camadas médias e pequena burguesia: “Intelligentsia”: 1,58% PEA real


10,84% PEA real Empregados: 3,67% PEA real
Pequenos proprietários: 5,59% PEA real

Classe dominada: Semiproletários: 12,25% PEA real


57,22% PEA real Proletariado: 9,22% PEA real
Desempregados: 21,75% PEA real
Serviços domésticos: 5.0% PEA real
Deslocados: 9,0% PEA real

Camadas ínfimas: Lúmpen: <1% PEA real


<1% PEA real

Fonte: Montes (1988, p. 314).

Os conflitos em El Salvador entre 1970-198963

No início da década de 1970 vigorou em El Salvador uma tentativa de Reforma


Agrária “reformista”; todavia, a relação de forças sociais era desfavorável a uma manobra

63
Essa parte associa à contribuição de Montgomery & Wade (2006), o trabalho de Juan Salvador Guzmán Tapia
(1939-) “La Transación en la América Latina. Los casos de Chile y El Salvador”, texto rico em fontes primárias.
A discussão que Martín-Baró realizou sobre violência, guerra e suas especificidades foram retomadas
posteriormente.
90
dessa magnitude. Dois anos depois, no mandato do presidente Arturo Molina, outros intentos
reformistas despontaram, mas igualmente fracassaram. Só com o golpe militar (financiado por
interesses empresariais-burgueses), do início da década de 1980, é que se “abriram veredas”
para mudanças nos regimes de posse das terras.

O período de reforma agrária do início dos anos 1980, de acordo com Montes (1986),
não era de cunho revolucionário, pois não introduzia nenhuma novidade e muito menos
alterava relações de posse da terra, nem as que derivavam delas. Tratou-se, basicamente, da
adoção de medidas contra insurgências, diante do aumento da pressão popular e do
crescimento numérico de forças guerrilheiras. A situação de instabilidade política complicou-
se mais após o triunfo da revolução sandinista na Nicarágua, em 1979. Lembremo-nos, que
segundo o censo de 1971, 60% dos salvadorenhos habitavam o campo, isso sem considerar os
que dependiam do cultivo da terra para subsistência64.

A partir de 1980, uma série de mudanças ocorreu no cenário sociopolítico, porém uma
das principais questões daquela década foi a guerra. As tentativas de solucioná-la provocaram
inúmeros conflitos, principalmente no que diz respeito à intromissão dos Estados Unidos da
América na vida política desse país.

Uma breve revisão sobre o que já vimos sobre a situação dos países da América
Central pode nos auxiliar a compreender o grande quadro em que se inserem as questões que
agora nos ocupam. El Salvador era mais um dos países convulsionados pelos intensos
conflitos sociais e econômicos suscitados pela extrema pobreza e pela desigualdade social
engendrada pelo capitalismo.

Retomemos: a ameaça de guerra civil na Guatemala era constante. A Nicarágua, que


desde 1930, sob a bandeira de Sandino se rebelava, finalmente, em 1979, derrubou o ditador
Anastacio Somoza Debayle. Muitos salvadorenhos participaram desses conflitos e com ele
adquiriram experiência e planos para seu próprio país. Não nos esqueçamos da ilha vermelha,
que ajudou tanto com treinamento militar, aconselhamento e atendimento de saúde aos
guerrilheiros feridos quanto com dinheiro, e do México, que muito fez pela
internacionalização da base de apoio às lutas salvadorenhas; ele serviu de exílio e local de

64
Martín-Baró colaborou ativamente para a produção de conhecimento sobre a calamitosa situação dos
camponeses salvadorenhos, como fundador e diretor do Instituto de Opinião Pública de El Salvador – o IUDOP.
91
descanso para os insurgentes, entrando em confronto direto com interesses ianques que
visavam dizimar militarmente os rebeldes.

As pressões externas (os militantes salvadorenhos mantiveram contanto com a União


Soviética e com o Vietnã, por exemplo) e a Igreja Católica (manifestamente sob influência
das diretrizes “libertadoras”) também exerceram papel significativo. As Comunidades
Eclesiais de Base encorajaram e serviram de referência para diversos setores populacionais na
luta contra a exploração capitalista.

A opção preferencial pelos pobres alimentou acalorados debates entre a Igreja e a


oligarquia salvadorenha. O arcebispo Oscar Arnulfo Romero considerado, antes de assumir tal
cargo, discreto e, por alguns, de posições políticas conservadoras, foi um dos que ergueram a
voz no combate às atrocidades perpetradas pelos capitalistas aos camponeses e aos mais
pobres, chegando até mesmo a afirmar que se defendê-los fosse uma atividade subversiva,
subversivos então era o que eles (católicos) seriam. Sua militância, que enfrentou abertamente
as posições do então presidente e coronel Arturo Molina e de seu sucessor, o general
Humberto Romero, sem contar a falta de apoio do próprio Vaticano, só foi silenciada com seu
assassinato (voltaremos a esse tópico com escritos de Martín-Baró). De acordo com Sue
Montgomery & Wade (2006, p. 48),

“A Igreja católica pagou um alto preço por seu comprometimento com a justiça
social. Em 1972, o frei Nicolás Rodríguez foi sequestrado pela Guarda Nacional; seu
corpo só apareceu vários dias depois, esquartejado. Entre março de 1977 e junho de
1981, dez outros sacerdotes e uma seminarista foram assassinados. Pelo menos
sessenta padres foram expulsos ou forçados a deixar o país. Alguns desses – e outros
– foram capturados, espancados e torturados antes de serem libertados. Freiras
também foram atacadas e, como já observamos, três delas foram mortas em
dezembro de 1980. Após o assassinato de Romero enquanto oficiava uma missa,
dezenas de padres e freiras foram exilados, enquanto um pequeno grupo continuava
com seus ministérios em áreas do país controladas pela guerrilha. A ignomínia final
armada da elite, treinada pelo governo dos Estados Unidos, entrou na Universidade
Centro-Americana José Simeon Cañas e matou seis professores jesuítas [e duas
mulheres]...”

2.1.3 Guerra civil salvadorenha: desdobramentos sócio-políticos e econômicos

A guerra dos anos 1980 provocou adversidades econômicas de amplas proporções em


El Salvadorxii; isso explicava, por exemplo, o volume de ajuda externa (principalmente
estadunidense) recebida, as migrações internas de milhares de famílias fugitivas das zonas de

92
guerra, a fuga de trabalhadores para os Estados Unidos e o volume de gastos com defesa e
reparação, que tentavam de alguma forma equilibrar as relações macroeconômicas. O impacto
da violência se fez sentir por pelo menos 11 anos. Deixou mais de 70 mil mortos, milhares de
órfãos, feridos e vários refugiados políticos. Todas as famílias salvadorenhas foram assoladas.
O clima de morte e insegurança revelou-se como norma. Vivia-se massiva violação dos
direitos humanos, corrupção crescente nos setores burocráticos do país e intensa intromissão
estrangeira em assuntos internos65.

Os conflitos civis eram expressão bélica do prolongamento dos conflitos políticos e


socioeconômicos. A ausência de democracia política e a abissal desigualdade social são
elementos imprescindíveis para apreendermos esses fenômenos sociais ontologicamente;
entendermos a situação só é possível quando apreendemos o colapso do governo oligárquico,
que não pôde consolidar uma dominação “consensual”. É infrutífero crer que o surgimento da
guerra deu-se por consequência da exportação da revolução sandinista, porém, como vimos, é
impossível compreendermos nuances sem reparar no impacto que a derrota do governo de
Somoza66 provocou em El Salvador e em outros países da região.

O volume da ajuda militar e econômica estadunidense, por exemplo, cresceu


vertiginosamente. As forças armadas aumentaram de um efetivo de 12 mil para 60 mil
soldados em poucos anos. Isso acarretou além de mudanças na participação ianque na vida
política uma submissão ainda maior às suas diretrizes estratégicas.

65
De acordo com Montes (1991), em El Salvador, naquele período, existia o contrário da democracia social. A
sociedade estava dividida em classes estatisticamente desproporcionais quando se observava a relação entre
concentração de capital x população (conforme já mostramos anteriormente). As classes exploradas
economicamente eram compostas, nesse momento principalmente, por camponeses e moradores das zonas
periféricas dos centros urbanos. Essa classe somada equivalia, em 1986, a 80% da população total. No extremo
oposto, o grupo privilegiado era 2% e as classes médias aproximadamente 15%. Essa distribuição desigual
sustentava o argumento da inexistência de uma democracia social. A economia salvadorenha orbitava,
fundamentalmente, a agricultura, tanto porque a maioria da população sobrevivia por meio dela quanto porque a
agroexportação era seu principal ramo. A tendência naqueles anos foi à concentração de renda na mão de poucos
e a proletarização dos camponeses. A falta de planejamento econômico, a coexistência de formas pré-
capitalistas, assim como de estrutura econômica faziam de El Salvador dependente direto de outros países. Outro
fator fundamental apontado pelo autor, na relação estratificação social e democracia, é o baixo nível educacional
das populações mais pobres. A sociedade era composta por 80% de analfabetos (incluindo os funcionais), e isso
dificultava o ingresso deles nas discussões sociopolíticas. O sistema educativo reproduzia contradições postas
pelo sistema econômico da época; quanto mais elevada a classe social, mais escolarizados eram seus membros.
66
Anastasio (Tacho) Somoza García (1896 –1956) foi “presidente” da Nicarágua, mas efetivamente comandou o
país como ditador desde 1936 até ser assassinado.
93
Os preparativos para a ofensiva geral que inauguraria o período de guerra se deu entre
o final de 1980 e o começo de 198167. Dias depois da fracassada ofensiva, a FDR (Frente
Democrática Revolucionária) e a FMLN (Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional)
convocaram uma coletiva de imprensa no México para anunciar a formação da Comissão
Político-Diplomática (CPD). O fiasco do levante popular serviu de argumento para oligarcas
proclamarem que aquelas reinvindicações não tinham o apoio popular. Isso só piorou após a
morte do arcebispo Oscar Romero (em março de 1980), quando as opções pacíficas de
manifestação minguaram concomitantemente ao crescente número de militantes
desaparecidos.

Em suma, a FMLN sofreu muito no início da década, mas já em meados de 1985, sob
a égide da unificação, o Comando Geral, sucessor do Diretório Revolucionário Unificado, fez
com que aquela frente novamente adquirisse consistência. Em uma análise retrospectiva,
concordamos com Montgomery & Wade (2006) que, pelas proporções de El Salvador, a
guerra ter perdurado onze anos é algo impressionante. Para as autoras:

Na realidade, a guerra em geral se confinou a cinco áreas relativamente bem


definidas de El Salvador, fora da capital. Embora no final da década de 1980 as
guerrilhas estivessem operando em Ahuachapán, no Oeste, e La unión, no Leste, em
San Salvador, onde residiam mais ou menos 30% da população [...]
(MONTGOMERY & WADE, 2006, p. 85).

Desdobramentos sócio-políticos

Por volta de cinquenta anos antes da intensificação do conflito, o país, que era
basicamente de economia agrícola, tinha conflitividade social menos complexa. Isso mudou,
como já vimos nos anos 1950, com o início do processo de industrialização e após a
intensificação de suas relações com Mercado Comum da América Central; com o setor
industrial iniciando seu processo de organização. Isso produziu uma crise econômica que
afetou diretamente a classe trabalhadora. A tensão provocada e o endurecimento da postura da

67
No dia 10 de janeiro de 1981, às 18h30, unidades da FMLN ocuparam estações de rádio em San Salvador. As
primeiras horas foram um sucesso, contudo ele não duraria. Em poucos dias os guerrilheiros anunciaram o
encerramento da primeira fase da ofensiva e recuaram. Em outras palavras, o plano tático não foi suficiente e a
falta de preparo dos guerrilheiros cobrou alto preço. O avesso da situação foi que ante tal desorganização se
tornou flagrante a deficiência do exército oficial salvadorenho que não conseguiu aniquilar um inimigo
supostamente fragilizado. (MONTGOMERY & WADE, 2006).
94
oligarquia pressionaram violentamente os mais pobres, dificultando o desenvolvimento até
mesmo da democracia política representativa. Uma estrutura social tão exploradora e desigual
quanto aquela só poderia sustentar-se sob coação violenta. A imposição de um Regime de
Segurança Nacional, a violação dos direitos humanos e a militarização do Estado foram
algumas das ferramentas utilizadas para a manutenção do status quo68 (MONTES, 1991).

De acordo Montes (1991), o subdesenvolvimento do país se dava por sua função


específica junto aos grandes capitalistas mundiais. Para Marini (1969/1999), países de tipo
subdesenvolvido tinham tarefa peculiar na divisão internacional do trabalho do modo de
produção capitalista. El Salvador, basicamente, produzia e exportava matérias primas (e
pequena parte de mercadorias de sua indústria básica) e consumia bens manufaturados,
capitais e tecnologias desenvolvidas nos centros hegemônicos. Para assegurar a dominação, o
desemprego massivo, a desarticulação das maiorias exploradas e a ideologia burguesa eram
imprescindíveis69.

Se até 1979 o interesse dos Estados Unidos em El Salvador era mínimo, considerando
seu empenho em injetar capital naquele país, após a vitória dos sandinistas na Nicarágua a
situação mudou. Quando a Doutrina Reagan entrou em ação, uma drástica mudança ocorreu
na América Central. A encenação das “ameaças comunistas” e a própria Doutrina, serviram
de ensejo para camuflar seus interesses econômicos e em perpetrar o imperialismo.

O que ficou conhecido como conflito de baixa intensidade na realidade tratou-se de


uma guerra bárbara como em geral elas são. As eleições democráticas de fachada tornaram-se
base da política de Reagan para justificar as doações de capital ao exército e as oligarquias no
combate aos que militavam por condições diferentes das que só interessavam aos ricos. As
alianças entre Democratas Cristãos, Forças Armadas e o governo dos Estados Unidos, são
exemplos disso. O plano, no entanto, ruiu quando a Aliança Republicana Nacionalista
(ARENA70), liderada por Roberto D’Aubuisson, um dos organizadores centrais dos

68
De acordo com Montes (1991), os meios de comunicação estavam nas mãos da classe dominante e serviram,
de forma eficaz, a disseminação de informações falsas e a naturalização do processo de exploração da mais-
valia. Martín-Baró explorou amplamente os nocivos aspectos psicossociais dos meios de comunicação de massa.
69
A questão da efetivação ou não da democracia social não se relacionava apenas com questões internas, mas
como desenvolvimento do capitalismo no mundo.
70
Para Martín-Baró, a ARENA era de extrema direita, com ares metade machista metade fascista, cujos objetivos
claros eram a defesa da propriedade privada e o apoio a uma vitória militar da Força Armada. Mais sobre isso
pode ser lido em Llamado de la extrema derecha – Publicado na Revista de Estudios CentroAmericanos, número
37, de 1982 (MARTÍN-BARÓ, 1982a).
95
esquadrões da morte naquele país, entrou em cena e venceu os pleitos. Mesmo com o claro
objetivo de unir oligarcas e militares anticomunistas, a situação era delicada, pois isso não
criava o governo “centrista” que o governo Reagan almejavaxiii.

José Napolen Duarte (o mesmo que teve vitória presidencial negada em 1972 e que
antes havia sido ignorado pelos Estados Unidos) agora receberia quatro milhões de dólares de
ajuda em sua campanha presidencial de 1984, fora o dinheiro que lhe foi entregue
sigilosamente sem declaração. Seu governo deu início a uma série de reformas defendidas
pelos Estados Unidos que neutralizariam o apoio popular a FMLN. Encorajando mudanças
econômicas liberais, os ianques eram a favor da desvalorização, da privatização e da
liberalização do comércio71. Mesmo com a resistência de Duarte a esses pontos, o então
presidente eleito pelo próprio interesse estadunidense não foi capaz de deter os devastadores
inconvenientes causados72.

Democratas Cristãos, aliados da esquerda até meados dos anos 1970, ao se


incorporarem oficialmente ao sistema eleitoral afastaram-se dela. Progressivamente se
alinharam aos interesses das oligarquias agroexportadoras. O que aumentou ainda mais a
impopularidade de Duarte, que a essa altura estava encurralado nas duas pontas, tanto pelas
pressões de fora (dos Estados Unidos) quanto pelas de dentro (dos oligarcas e da FMLN).

A fase que foi do início de 1987 até o triunfo do governo arenero, no ano seguinte, foi
marcada, de um lado, pelo aperfeiçoamento do exército (subsidiado pelos Estados Unidos) e,
por outro, pela reorganização estratégica dos guerrilheiros revolucionários. O ataque ao
quartel El Paraíso, em Chalatenango, no começo de 1987, por exemplo, fez com que a
ARENA adotasse postura triunfalista, que se provou infundada pela ofensiva de 1989; as
consequências disso podem subdividir-se em: a) uma imediata, feroz contraofensiva do
exército salvadorenho, com auxílio estadunidense e b) outra mediata, a abertura para o
diálogo e o início do processo de negociação entre FMLN e governo estabelecido, já com a
presença da Secretária Geral das Nações Unidas, culminando na assinatura dos acordos de paz
em 1992, no México (TAPIA, 1991).

71
A Associação Nacional das Empresas Privadas (ANEP) e a Câmara de Comércio e Indústria foram as que mais
se mobilizaram, e com o apoio da FUSADES (Fundação Salvadorenha de Desenvolvimento) colaboraram para a
disseminação dos ideais neoliberais, que se tornaram hegemônicos.
72
Entre 1980 e 1989, o montante da ajuda recebida por parte dos Estados Unidos foi de 3.200.100 bilhões de
dólares e a assistência militar chegou a 977.6 milhões; resultando, aproximadamente, 3.979.7 bilhões de dólares
em investimentos. Grande parte da "ajuda" destinou-se a conter a contra insurgência e não a reestruturar a
economia.
96
1989: o ano do assassinato de Martín-Baró

O governo que estreou em 1° de junho de 1989, com Alfredo Cristiani (da ARENA),
objetivava ao menos em seu discurso erradicar a extrema pobreza, dar atenção aos mais
necessitados entre os pobres, solucionar o conflito armado e alavancar a economia. Ficou bem
delineada sua política neoliberal73.

Aquele ano foi marcado por uma série de eventos que colaborariam para a agitação da
vida política e econômica de El Salvador. A queda do muro de Berlim, o início de colapso da
União Soviética e a eleição de George Bush nos E.U.A, que em si já impactou e modificou as
políticas sobre a região, não podem ser desconsideradas74.

Os conflitos civis que tumultuaram a proposta eleitoral em janeiro de 1989, entre a


FMLN, que queria unir oficialmente a Convergência Democrática ao Conselho Central da
Eleição, e a direita acirraram as disputas. Para a surpresa do governo vigente, a proposta da
Frente seria acolhida pelo governo dos Estados Unidos. Em uma reunião no México, em
73
Aliás, voltando ao ano de 1982, um dos desdobramentos colaterais dos processos eleitorais incentivados pelos
Estados Unidos foi o ressurgimento e as reorganizações das forças populares de resistência. Em 1986, por
exemplo, a FMLN e FDR, assinaram um pacto de aliança que pretendia alavancar os partidos democráticos de
esquerda. A fundação da então Convergência Democrática teve por objetivo envolver os militantes armados com
a política eleitoral. A tentativa fracassou e fez com que os guerrilheiros desistissem de vez de participar das
eleições pela ausência de condições para o exercício mínimo da democracia. É neste cenário que Martín-Baró
enfatizou em inúmeras oportunidades sua posição pró-revolução.
74
De acordo com Tapia (1991), alguns outros fatores internos e externos também precisam ser lembrados. Sobre
os internos cita: a) o não cumprimento dos planos de pacificação dos areneros e a certa “flexibilização” das
propostas dos insurgentes (era insustentável para um governo nominalmente democrático recusar diálogo com
sua oposição. O próprio Comando Geral da FMLN passara a defender o lema Revolução Democrática, no ano
seguinte, definida por eles como: fim do militarismo; reestruturação da ordem econômica e social,
democratização e resgate da soberania nacional e política externa independente); b) o giro político do Partido
Democrata Cristão (que tinha razoável apoio popular) assumindo oposição à ARENA. Sobre os fatores externos
comenta: a) a mudança de postura estadunidense, de uma política globalista e antissocialista adotada por Reagan
para a de George Bush que enfrentava outros problemas (a unificação europeia, a reunificação da Alemanha, os
inúmeros processos de reorganização política dos países da Europa Central, as vicissitudes da Perestroika, na
União Soviética, a crise no Oriente Médio somada à capacidade de desenvolvimento tecnológico e econômico do
Japão, fez com que os ianques focassem sua atenção no chamado primeiro mundo). Veremos a seguir que depois
da ofensiva de novembro de 1989 as expectativas estadunidenses não poderiam ser piores, uma vez que se
tornaria impossível acabar com o conflito na região por meio da intervenção militar. Afora isso, algumas
perspectivas de resolução baseadas na negociação também lhes eram favoráveis; b) as eleições nicaraguenses e a
derrota dos sandinistas, a verdade é que por vários anos a Nicarágua foi o centro do conflito da América Central
para os Estados Unidos, mas com a derrota nas urnas, o sandinismo enfraqueceu bastante e com a constituição de
governos eleitos na América Central, no Biênio 1989 e 1990, ocorreram várias mudanças políticas na América
Central. De modo geral, houve predomínio (de caráter pacífico) das forças de oposição aos respectivos governos
vigentes. Por fim, lembramos que a derrota nas urnas da Frente Sandinista de Libertação Nacional (com Daniel
Ortega), em fevereiro de 1990 (patrocinada pelo investimento estadunidense em propaganda contra sua
campanha eleitoral) levou, entre outras coisas, o exército popular sandinista a subordinar-se à administração
ianque.
97
fevereiro daquele ano, a FMLN anunciou que concordaria em abrir mão da luta armada,
participar das eleições e com a existência de um único exército.

A ARENA, antecipando o que presumiam ser uma vitória tranquila, não quis adiar por
mais seis meses os pleitos; e de fato seu candidato, Alfredo Cristiani, venceu com 54% dos
votos. Embora a FMLN estivesse mesmo planejando participar das eleições, nesse ínterim,
manteve-se viva uma estratégia para uma grande ofensiva militar. O dia das eleições, no final
de março, foi banhado a sangue. Rebeldes interromperam o fornecimento de luz elétrica em
80% do país e os meios de transporte pararam por quatro dias. O presidente eleito, sem
embargo, intentou apaziguar o conflito já no dia de sua posse. De acordo com Montgomery &
Wade (2006, p. 97),

Essa foi uma atitude [a do presidente] de imenso apoio popular. Um dia antes da
posse de Cristiani, o Instituto Universitário de Opinião Pública da UCA divulgou
um levantamento de âmbito nacional, mostrando que 76% dos entrevistados
acreditavam que o novo governo ‘deveria abrir um diálogo com a FMLN e negociar
com eles’.
Em setembro de 1989, a FMLN e o governo, novamente reunidos no México,
inauguraram negociações. Foi apresentada uma proposta de cessar fogo em 31 de janeiro de
1990. A extrema direita salvadorenha, percebendo que a situação caminhava depressa demais,
lançou uma série de bombas no entorno de San Salvador; granadas foram lançadas na
Universidade de El Salvador e, em 31 de outubro, uma bomba explodiu o quartel-general da
maior e mais militante organização sindical salvadorenha (Fenastras), matando a secretária-
geral, Febe Elizabeth Velásquez, e mais nove pessoas. O ataque mostrou à FMLN que a
conciliação não estava sendo conduzida com seriedade.

Em 12 de novembro de 1989, unidades especiais da Frente Farabundo Martí de


Libertação Nacional deram cabo de uma ofensiva militar em San Salvador. Durante vários
dias, insurgentes mantiveram sob seu domínio um perímetro antes defendido pelas forças
armadas governamentais. O objetivo da ação era promover uma insurreição generalizada
começando pela capital. A ação foi bem sucedida, desestabilizando dispositivos de defesa,
porém, não conseguiu plena adesão popular; o que não quer dizer que ela não tenha existido
(a enxurrada de armas e munições não teriam chegado com tanta facilidade sem a participação
de muitas mãos), mas eles mesmos reconheceram que ela não foi suficiente.

98
A resposta do Exército foi dada por meio do bombardeio às zonas ocupadas pelos
manifestantes. Não obstante, a contraofensiva também não foi – totalmente – bem venturada.
A população não aderiu à chamada governamental que pretendia criar milícias para contra-
atacar os insurgentes. Os impactos foram sentidos em diversas áreas. Em termos militares,
mostrou-se que os opositores não estavam tão debilitados quanto propagava o governo oficial
e ao mesmo tempo expôs sua regular capacidade ofensiva. Naquela ocasião, diferente de
outras incursões (em escalas menores e logo seguidas de retiradas), houve confronto direto.
Pela primeira vez o conflito tomou as zonas residenciais ricas, o que trouxe a concretude da
guerra (que já há alguns anos era atroz para os mais pobres) até as classes dominantes.

O combate demonstrou a ingovernabilidade de El Salvador. A FMLN reconheceu a


perda de 401 militantes (de um total de 10 mil), ao passo que o exército perdeu 476 (de um
total de 60 mil). Em relação aos danos econômicos, o prejuízo beira a cifra dos 600 milhões
de dólares. As consequências evidenciaram a urgência das mudanças sociais que só iniciaram
de fato a partir do segundo trimestre de 1990, com ampla e unitária mobilização popular (que
promoveu diálogo entre Democracia Cristã, Convergência Democrática e setores
insurrecionais), reiniciando-se, assim, o movimento de pacificação e instauração da
democrática formal.

Quatro dias depois do início dos conflitos narrados, a 16 de novembro de 1989,


Martín-Baró seria brutalmente assassinado pelo Batalhão da Atlacatl (sob o comando de René
Emilio Ponce, alcunhado de Satanás) dentro da Universidade Centro-Americana José Simeón
Cañas (UCA). Outros cinco companheiros e duas mulheres também morreram. Os
assassinados foram: Ignacio Ellacuría, reitor da UCA, Segundo Montes, diretor do Instituto de
Direitos Humanos daquela instituição, Joaquín López y López, diretor do departamento de Fe
y Alegria e do das Mulheres, Amando López, professor de filosofia, Juan Ramón Moreno,
diretor da biblioteca de Teologia, Elba Ramos, funcionaria da instituição e de sua filha, a
estudante Celina Ramos.

Só no dia 4 de abril de 1990, em Genebra, na Suíça, representantes do governo e da


FMLN promoveriam um diálogo que a posteriori solucionaria, no campo da legalidade, os
conflitos na região. Existiram várias tentativas de solução entre Democratas Cristãos,
Insurgentes e Exército, porém nenhum deles mostrava-se interessado em resolver o conflito
pacificamente. Para Tapia (1991), existiam os seguintes obstáculos políticos à consolidação
da paz: a) a inexistência de um sistema que permitisse a participação de todas as forças que
99
representavam os diferentes setores da sociedade salvadorenha; b) a falta de democracia real e
efetiva, bem como a ausência da subordinação do exército ao poder civil e das liberdades de
expressão de alguns setores; c) a postura do partido ARENA que se assumiu, nos veículos de
comunicação, como representante do interesse da maioria e tratou de criminalizar os
militantes insurgentes, taxando-os de terroristas, portanto merecedores de juízo criminal; d) a
divulgação enviesada (pela ideologia burguesa) do que seria uma política pautada no
marxismo-leninismo da FMLN, que gerava receio sobre o que seria a “ditadura do
proletariado” em vários setores sociais; e) a reinserção na vida social dos ex-integrantes das
forças armadas e dos insurgentes; afinal, sustentar um exército de 60 mil homens era oneroso
e uma vez que acabasse a guerra, não haveria necessidade de tantos soldados; a realocação
desse grande contingente não foi tarefa simples.

Quanto aos obstáculos econômico-sociais, Tapia (1991) destaca que: a) o conflito


armado afetou drasticamente a vida financeira do país, pois foi a principal fonte de renda
(advinda da ajuda estadunidense e a dos trabalhadores imigrantes, que enviavam dinheiro aos
seus familiares, como já vimos); e b) os problemas infraestruturais, que, com o conflito,
piorou acentuadamente as condições concretas da vida cotidiana. Antes de finalizarmos a
passagem sobre El Salvador, esmiuçamos um pouco mais o que significou a Universidad
Centro-Americana José Simeon Cañas (empregadora de Ignacio Martín-Baró) naquele país.

A companhia de Jesus e a educação superior em El Salvador: o caso UCA75

Não há como apreender concretamente as condições reais do surgimento do projeto


étic-político para a Psicologia de Martín-Baró sem minimamente problematizarmos a situação
da universidade que lhe empregou. Como veremos adiante, em 1965, logo após graduar-se em
Filosofia e Letras, Martín-Baró integrou-se ao novo projeto dos jesuítas em San Salvador: a
Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA), fundada nesse mesmo ano e
principal cenário de sua vida intelectual e política.

Diversos bispos católicos salvadorenhos conservadores manifestaram aos jesuítas


residentes no país a necessidade da construção de uma universidade para contrapor tendências

75
O sítio virtual oficial da Universidade foi nossa principal fonte de pesquisa neste trecho.
100
ateístas e comunistas da Universidade Nacional Salvadorenha. Mal sabiam eles o que
significaria a UCA nos anos que se seguiriam. Algumas associações católicas e o Partido
Democrata Cristão, por exemplo, apoiaram o projeto (CARRANZA apud IBÁÑEZ, 1998).

A tarefa proposta pelos bispos foi a de arquitetar um centro de formação para as novas
elites dirigentes do país, que colaborasse com o modelo de desenvolvimento social mais
favorável aos interesses das classes dominantes. As transições nas concepções teológicas da
América Latina, que há pouco elucidamos, alcançaram rapidamente a UCA, que as
incorporou. Dois pontos importantes marcaram essa empreitada: a) a necessidade declarada
de ser uma instituição com finalidade pública; e b) orientação para o desenvolvimento
econômico e social da região. Por isso a escolha do símbolo libertário José Simeón Cañas 76
para seu nome.

Um projeto de lei de 24 de março de 1965 foi determinante para o prosseguimento dos


trâmites jurídicos que vivificaram a universidade, mas somente em 13 de setembro daquele
ano foi formada a primeira junta de diretores para que dois dias depois ela fosse oficialmente
inaugurada. Passaram a funcionar os cursos de Economia, Administração de Empresas e
Engenharias (industrial, elétrica, mecânica e química). Os cursos de humanas estavam
previstos, mas não foram implantados; só em 1969, com a Faculdade de Ciencias del Hombre
y de la Natureza, desabrocharam cursos de Psicologia, Filosofia e Letras (no ano seguinte,
Martín-Baró ingressaria no curso de Psicologia).

De um início com 357 estudantes, dois anos depois, em 1967, as matrículas subiram
para 541, no seguinte para 719 e em 1969, já estavam com 1.031. O aumento gerou problemas
com os Salesianos, que naquele momento cediam o prédio utilizado pelos jesuítas. Sem
edifício e carentes de um terreno, os dirigentes da UCA pediram empréstimo ao Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), que se firmou em 197077.

Em 1972 houve uma reformulação das diretrizes universitárias, que até então focava
mais a docência e a administração do que a pesquisa e o que chamavam de proyección social.

76
José Simeón Cañas (1767- 1838) foi um intelectual e político salvadorenho. Nascido em Santa Lucía
Zacatecoluca, El Salvador. Cañas foi eduacado como padre na Guatemala, onde se doutorou em teologia.
Tornou-se reitor da Universidade de São Carlos em 1802. Junto com José Matías Delgado e Manuel José Arce
apoiou a independência formal da América Central em 1821. Como membro do congresso da América Central,
em 31 de dezembro de 1823, criou uma moção para a abolição da escravidão, decretada no ano seguinte. Ele
também militou pela unificação dos países da América Central.
77
Um segundo empréstimo foi pedido em 1978, que deu origem a uma etapa de reconstrução física dos
ambientes universitários.
101
Nesse momento, surgiram departamentos que coordenariam e acentuariam a articulação entre
diversos campos do conhecimento. Os problemas acadêmicos passaram a ser resolvidos
conjuntamente por meio da figura dos decanos das faculdades (função que Martín-Baró
exerceria mais tarde), dos chefes de departamento e da vice-reitoria.

A restruturação contemplou também a criação de um instituto de pesquisas78, um


centro de projeção social, um decanato de estudantes e uma secretaria de comunicações.
Ainda que o Instituto de pesquisas tenha desaparecido, muitos de seus resultados
permaneceram sendo publicados. Dada a conjuntura de 1973, o objetivo da universidade era:

“[...] orientado a poner los fundamentos lógicos, culturales, y la motivación de ética


de servicio al pueblo salvadoreño; todas las carreras debían tener un núcleo común
de materias propias, imprescindibles para la excelencia profesional, y un cierto
número de materias electivas, que permitiera a los estudiantes adaptar de forma
flexible el plan de estudios a sus intereses, pudiendo así conseguir un mayor grado
de especialización en su propia carrera, una competencia mayor en una segunda o
ampliar las bases de su cultura general” (UCA, SÍTIO OFICIAL.).
Ao completar 10 anos de vida, em 1975, a direção optou por replanificar sua estratégia
de ação. Parte desse esforço se dirigiu para uma reforma curricular. Alguns cursos foram
considerados demasiadamente profissionalizantes e as questões “éticas” aglutinaram-se como
elemento central da vida universitária. Estavam postas as bases para o surgimento da pós-
graduação.

Nessa conjuntura, o Centro de Reflexão Teológica, fundado pela Companhia de Jesus,


em 1974, deu início a suas atividades na UCA. Em 1975, abriram-se os cursos de sociologia e
ciências políticas. O golpe de estado, em 1979, afetou bastante a vida universitária,
impedindo-a de realizar algumas mudanças. Com o início da guerra, o reitor da Universidade,
Ignacio Ellacuría, foi forçado ao exílio político. Vários professores e funcionários também
saíram do país por questões de segurança.

Nos anos da guerra a universidade privilegiou o segmento da projeção social, ainda


que continuassem a ofertar novos cursos de graduação. Nasceu o mestrado em Teologia, em
1985, seguido do de Administração de empresas, em 1987xiv.

78
O sítio complementa: “Antes de su creación se habían iniciado dos investigaciones interdisciplinares: una
sobre los costos y beneficios sociales de la electrificación rural en el país, y otra del proceso político
comprendido entre julio de 1971 y julio de 1972. Fue un esfuerzo interdisciplinario por documentar
científicamente el fraude electoral. La primera investigación fue financiada por el Banco Mundial, duró casi dos
años y sus resultados están recogidos en cuatro gruesos volúmenes y en una base de datos. La segunda se publicó
en lo que fue el segundo libro de la UCA: El Salvador, año político 1971-1972.” (UCA, SÍTIO OFICIAL.
Disponível em http://uca.edu.sv/pagina-web.php?cat=9&pag=5. Último acesso em 25 de agosto de 2017).
102
O país imerso em grave crise financeira fez com que a pressão sobre as economias da
UCA se acirrassem. O irônico (para não dizer tragicômico) foi que após os assassinatos de
1989, a carga das dívidas diminuiu, até que em 1991, alguns centros de educação superiores
estadunidense conseguiram que seu congresso desonerasse definitivamente o compromisso da
UCA em pagar essa dívida. Ou seja, os ianques ajudaram a matar os jesuítas (patrocinando os
exércitos paramilitares) e eles mesmos cancelaram a dívida.

Consideramos que os assassinatos de novembro de 1989, que tanto enfatizamos,


deram-se em função direta da atividade mais importante daquela universidade: a projeção
social. Após publicações sobre a guerra entre Honduras e El Salvador e sobre análises da
situação política de El Salvador, nos anos 1971-1972, a UCA foi convidada a participar de
discussões sobre o projeto de Reforma Agrária, em 1970, o que na prática significou um
rompimento com as classes dominantes; pois quando a iniciativa privada abandonou os
debates, eles esperaram que ela fizesse o mesmo; mas os jesuítas desobedeceram.

Sobre a Reforma Agrária, ainda em 1976, o governo buscou achegar-se a UCA, mas
logo as negociações se paralisaram. Naquele ano, a instituição seria atacada por bombas seis
vezes, que destruiram as salas de publicação e o Edifício da Administração Central. À afronta
seguiram-se de diversas ameaças, algumas afirmavam que se os jesuítas não deixassem o país
em um mês todos morreriam.

Fato é que as classes dominantes consideravam a universidade traidora. O grupo de


jovens militares que planejou o golpe de 1979, por exemplo, aproximou-se da UCA para
conversar sobre a situação do país. A instituição, que não estava diretamente envolvida com o
golpe, apoiou esses oficiais e suas promessas reformistas. De qualquer forma, o golpe duraria
pouco. Em 1980, a polícia nacional invadiu o campus e assassinou a sangue frio uma
estudante.

A instituição também manteve bom contato com a Igreja arquidiocesana. Entre 1972 e
1977 esteve próxima da pastoral dirigida por Rutilio Grande, que seria assassinado. Segundo
o sítio oficial da UCA, eles começaram de forma discreta a se aproximar das mudanças
propostas pelo Concílio do Vaticano II e de Medellín. Ademais, Ibáñez (1998) registra que os
jesuítas salvadorenhos reuniram-se diversas vezes em Comillas, na Espanha, ainda no ano de
1969, para decidir se a UCA aderiria ou não às tendências propostas pela Teologia da
Libertação. Desde então, Ignacio Ellacuría, teólogo da libertação - que estudou com Karl e

103
Otto Rahner (importantes teólogos da Teologia da Libertação) em Insbruck (Áustria) - e
filósofo-discípulo de Xavier Zubiri79, transformou-se na principal voz da corrente
“libertadora” na UCA. Löwy (2009) registra que ele ocupou posição influente entre os
teólogos latino-americanos.

O plano de Ellacuría para a nova UCA objetivava, principalmente, convertê-la em


expressão da consciência crítica e criativa da realidade salvadorenha, tornando cada vez mais
explícita a opção preferencial pelos pobres. Daí a necessidade urgente de apreender a
conjuntura sócio-política e cultural por meio dos avanços das ciências humanas80. A mediação
prática proposta pela teologia da libertação realizou-se na UCA de diversas formas, sobretudo
por intermédio da divulgação81 das análises científicas e de seu respectivo juízo crítico. O
ensino enfatizou a aplicação dos conhecimentos transmitidos e a compreensão dos problemas
sociais enfrentados.

A UCA também se implicou profundamente no trabalho comunitário em San Salvador


e em suas imediações. Seu apoio aos movimentos populares e sua crítica aos excessos do
governo estabelecido foram firmes, mas não partidaristas (WHITFIELD, apud IBÁÑEZ,
1998).

Figuras como Ignacio Ellacuría, Segundo Montes e Ignacio Martín-Baró foram


importantes interlocutores nos processos de mediação política entre as necessidades populares
e as diversas personalidades e instituições de grande influência no país. Eles participavam de
congressos internacionais e dialogavam com diplomatas e representantes estrangeiros
denunciando injustiças e crimes. Nos anos de crise mais aguda, a UCA conseguiu, além das
publicações da revista Estudios Centroamericanos (ECA)82, uma coluna no jornal El mundo,

79
Xavier Zubiri (1898 - 1983) foi filósofo espanhol cuja pesquisa e reflexão se concentrou, fundamentalmente,
nos campos da Teoria do Conhecimento, da Ontologia e da Gnoseologia.
80
Ignacio Ellacuría escreveu diversos artigos sobre a função social da Universidade e mesmo sobre a UCA. Para
maior aprofundamento ver: “The challenge of the poor Majority”, “A different kind of University
Possible?” e “The University, Human Rights, and the Poor majority”; todos encontram-se no livro editado
por John Hasset e Hugh Lacey, em 1991, intitulado: Towards a society that serves its People: the Intellectual
contribution of El Salvador’s murdered Jesuits publicado pela Georgetown University Press.
81
A divulgação, no sentido mais amplo do termo, como já citamos, foi uma das vocações mais notáveis da UCA;
especialmente entre 1979 e 1981 proliferaram diversas publicações (IBÁÑEZ, 1998).
82
O sítio acrescenta: “ECA dio especial atención a la guerra, la intervención estadounidense, las elecciones, el
diálogo, la negociación, el debate nacional y los esfuerzos regionales, como Contadora y Esquipulas. La
proyección social de la UCA durante estos años, orientada a buscar la racionalidad frente a la irracionalidad de la
guerra, culminó en la masacre de noviembre de 1989.” (UCA, SÍTIO OFICIAL).
104
que logo lhe seria tirada pela burguesia. Em 1978, eles realizavam diariamente um programa
de rádio (na católica YSAX) com comentários sobre a realidade social.

No correr da década de 1970, a universidade empenhou-se ativamente em evitar a


guerra, contrariando a estratégia bélica da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional
(FMLN), ao propor o diálogo entre as partes interessadas. Junto ao Monsenhor Romero,
arcebispo de San Salvador no início da década, propôs amplo debate nacional, e caiu em
palpos de aranha por isso, sendo acusada de ambos os lados de desleadade. Em aparente
contradição, esse foi justamente o período que a vice-reitoria de projeção social mais se
desenvolveu.

Nessa direção, em 1980 foi criado o Centro de Informação, Documentação e Apoio a


Investigação (CIDAI). Em 1985, foi a vez do Instituto de Direitos Humanos (IDHUCA), que
tinha o propósito de documentar e difundir as violações aos direitos humanos; além disso,
teve importante papel nas negociações pelo fim da guerra e nos acordos de paz. No mesmo
ano, a Cátedra de Realidade Nacional ganhou vida; nesta, discutiam-se os problemas
nacionais, tendo sido importante na guerra, pois passaria a convidar membros das
organizações populares, sindicalistas, políticos, acadêmicos e eclesiásticos para discussão. No
ano de 1986, fundou-se o Instituto Universitário de Opinião Pública; por fim, em 1989, foi
criado o Centro Monseñor Romero, no qual se integravam atividades de caráter pastoral e
religiosa.

Na UCA, Martín-Baró desempenhou cargo de professor de Psicologia83, de editor de


sua mais importante revista, Estudios Centroamericanos (ECA); além disso, foi Decano para
estudantes, diretor do departamento de Psicologia, vice-reitor acadêmico e diretor do Instituto
de Opinião Pública (IUDOP), entre outras funções. A UCA foi, também, o principal ponto de
encontro entre Martín-Baró e a realidade salvadorenha. Seus estudos foram interpretados a
partir da posição que a UCA lhe conferiu.

Por fim, a UCA teve uma participação ativa na vida cotidiana salvadorenha. Isso se
exemplifica quando do sequestro da filha do então presidente José Napoleão Duarte, por
exemplo; na situação, foram os funcionários da universidade que intervieram como
“mediadores” entre o governo e a FMLN. Desde esse acontecimento, tanto Ignacio Ellacuría,

83
Martín-Baró também foi professor convidado da: Universidade Central da Venezuela; de Zulia (em Maracaibo
– na Venezuela); de Río Piedras (Porto Rico); da Javeriana de Bogotá (Colômbia); da Complutense de Madrid
(Espanha); e da Costa Rica.
105
Martín-Baró e outros jesuítas passaram a participar de programas televisivos opinando sobre a
realidade nacional. Antes de encerramos essa seção, um breve apanhado sobre o que foi o
IUDOP.

Instituto Universitário de Opinião Pública (IUDOP)

Interessou-nos especialmente a criação do Instituto Universitário de Opinião Pública,


pois ele teve como mentor ninguém menos que Ignacio Martín-Baró. Em maio de 1986, o
psicólogo social espanhol Amálio Blanco recebeu uma carta de Martín-Baró em que ele
confirmava a obtenção de financiamento alemão para colocar em marcha um instituto; na
missiva, o jesuíta pedia também que lhe fosse apresentado algum especialista no assunto. Seu
amigo lhe falou de José Ramón Torregrosa, catedrático de Psicologia Social na Universidade
Complutense de Madri.

O Instituto de Opinião Pública (IUDOP) de El Salvador, de acordo com Ibáñez (1998),


é apontado como o trabalho de Martín-Baró de maior transcendência social; de suas pesquisas
foram publicados dois livros e numerosos informes. O Instituto esteve estreitamente ligado à
vida de Martín Baró. Ignacio Ellacuría brincava que a ideia tinha sido sua, dizendo que, em
uma viagem de avião que fizeram juntos, ambos discutiam sobre a necessidade da criação de
um veículo de comunicação eficiente em El Salvador; não obstante, a ideia central e o
desenvolvimento do projeto, segundo o próprio Ellacuría, foram de seu amigo.

Para Martin-Baró (1985a), investigações sobre opinião pública deveriam ser o


contrapeso à exagerada ideologização (veremos mais sobre esse conceito com o próprio
autor) da vida nacional. Sob sua direção, de julho de 1986 até sua morte, foram publicadas
vinte e três investigações sobre a população metropolitana, urbana e rural. Os temas variavam
e iam desde diálogo e negociações até saúde e religião, passando pelas eleições (IBÁÑEZ,
1998).

Em pouco tempo o IUDOP converteu-se em um dos meios de comunicação de maior


projeção social de El Salvador. Sua eficácia foi demonstrada pelos ataques que recebeu, sendo
acusado de pertencer tanto à FMLN como à ARENA. O extremo rigor com que as pesquisas
do IUDOP eram conduzidas atestava as exigências de Martín-Baró quanto ao método
106
estatístico. Para ele, pesquisas poderiam devolver voz aos oprimidos e serviam como
instrumento para refletir com verdade e sentido novo a experiência popular, possibilitando a
tomada de consciência na direção da nova verdade histórica por construir.

As principais dificuldades encontradas pelo Instituto foram as eleições legislativas de


1988 e as presidenciais de 1989; contudo, por ter projetado com exatidão ambos os resultados,
teve sua credibilidade conservada84.

Os resultados das pesquisas nunca foram superestimados por Martín-Baró. Ele mesmo
editava os informes com resultados das investigações, sempre se preocupando em não colocar
os envolvidos nas pesquisas em perigo – nem investigadores nem entrevistados. Todos os
recrutados se identificavam com seus ideais e princípios; entretanto, o maior obstáculo que
enfrentava era o medo generalizado instaurado pela instabilidade política salvadorenha85.

2.2 Lições elementares sobre ética e política: quando um passo para trás
significa dar dois para frente.

A sentença que Lênin teria proferido não poderia ser mais justa para este momento.
Nossa dissertação legou-nos a tarefa de, por um lado, aprofundar-nos científico-
filosoficamente no significado e no sentido das categorias ética e política e, por outro, a de,
por meio dessa mesma incursão, promovermos uma revisão crítico-ontológica do conteúdo do
projeto ético-político de Martín-Baró; e de como ele colabora para a construção da Psicologia
Concreta86. Recapitulamos questões centrais outrora já alumiadas, mas que, agora, ao longo
de nova exposição, serão cortadas de modos diferentes.

84
As primeiras pesquisas apontavam como ganhadora a ARENA. O partido Democrata Cristão - então no poder
- e alguns meios de comunicação social atacaram fortemente o IUDOP tentando deslegitimá-lo por essa
divulgação. Por fim, a confirmação das projeções encerrou a questão.
85
O Instituto Universitário de Opinião Pública foi destruído, por bombas, em agosto de 1989.
86
Outra vez enfatizamos: nossa meta não foi verificar "o grau de marxismo” do jesuíta. Isso empobreceria em
muito o que propomos ser a tarefa crítica da Psicologia concreta. Nas páginas que encerram o Sentido Histórico
da Crise da Psicologia, de Vigotski, entrevemos com uma precisão singular o que o bielorusso propunha acerca
disso. Alinhados com ele, não almejamos a criação de uma ciência psicológica marxista! Porém, cremos que se
ela (Psicologia) for ciência do concreto, “marxistas” a chamarão dessa maneira.
107
O retorno ao debate da expressão “ético-político” privilegiou o uso rigoroso dessas
categorias; e só então, relacionamos seus significados ao projeto do jesuíta. Pelos limites dos
prazos de conclusão deste trabalho, impostos pelas agências de fomento à pesquisa no Brasil,
neste início de século, não há tempo hábil para apropriarmo-nos, minimamente, dos inúmeros
teóricos que, na história do conhecimento científico, contribuíram decisivamente com a
ampliação desse tema. Amparamo-nos, portanto, em livros-bases que abordam tanto a ética
quanto a política de modo didático, para, daí sim, elencar alguns elementos que possam nos
auxiliar a apreender nosso objeto de estudo. Logo, além de conscientemente adentramos
várias vezes nos campos da epistemologia87.

2.2.1 Elementos básicos da Ética

Não é incomum, na vida cotidiana, tropeçarmos na palavra ética. Todavia, há em


nosso século algum sentido prático para o que os grandes gregos definiram por ética? De
telejornais aos discursos políticos, passando pelos religiosos, pelos sindicalistas, pelos
científicos a palavra é reiteradamente utilizada. Ou seja, a problemática insiste em comparecer
em toda a malha social, sendo referência valorativa (seja positiva ou negativamente)
onipresente nos processos de socialização contemporâneos.

Caso a resposta anterior seja sim, em quais significados ela repousaria e mais, é
possível, ou mesmo faz sentido, investirmos em sua definição teórica? O individualismo não a
desmantelou completamente? O “caldo” cultural temperado pela chamada pós-modernidade
não a cozeu na panela do relativismo? Verdade e mentira, realidade e imaginação, ciência e
misticismo etc. agora se confundem. Arguem eles, com uma retórica pomposa, que uma
ontologia da ética, além de supérflua, enveredaria-se sempre para a indeterminação. Enquanto
isso, de sol a sol, no “cotidiano, fútil e tributável” da vida, como diria Fernando Pessoa, várias
atividades são rotuladas por padrões ditos éticos ou antiéticos, cada vez menos especialistas e
leigos dispõem de ciência sobre o que explicam.

87
Na seção final de nossa dissertação (PEREIRA, 2013) que expôs as posições de Martín-Baró a respeito da
política, da ciência e da ética; e mesmo no tratamento que demos à questão ético-política, nota-se que estamos
diante de uma espécie de maquete teórica, de um quadro minimalista. Isso implica que este trecho seja o “passo
para trás” ou, nesse caso, os dois passos para frente referidos em seu título. Ele consistiu, portanto, na análise
histórica desde os interesses da teoria psicossocial sobre o passado dos conceitos/categorias ética e política.
108
Ora, não é démodé discutir questões sobre o que é o bem e o mal? Ainda mais para
profissionais formatados por uma tecnoburocracia imersa em ideais e ideários firmemente
atrelados ao neoliberalismo e ao funcionalismo biologicista tosco do “adaptado ou não”,
“adequado ou não”? Ou, se não é piegas inquirirmos sobre o valor, não seria melhor resolver
isso à luz das mágico-acadêmicas pesquisas que relacionam a contagem e configuração dos
ácidos desoxirribonucleicos a determinados padrões de comportamentos éticos? E mais,
àquelas que mostram de forma resoluta e (im)precisa que a maldade, perversão, egoísmo etc.
são questões de “heranças genéticas”? Não deixemos de fora os camaradas que, ao ouvirem
essas mesmas palavras, compulsivamente bravejam: “- discussão de conservador,
obscurantista, maniqueísta...”, e, Deus nos livre, “Idealistas-conservadores-obscurantistas”.

Em vez de seriedade e rigor no trato de categorias prioritárias à vida do ser social,


como bem, mal, ética, moral, liberdade, felicidade, justa medida etc. não é vantajoso
pesquisar objetivamente (ou seja, da forma “academicamente bem estimada”): eficiência
produtiva, sucesso profissional, resiliência, competitividade ou, para os mais à esquerda,
equidade social? As páginas de Dostoievski são capazes, por si só, de desenterrar do subsolo
da ignorância a ciência de que qualquer anseio revolucionário que subestime uma delineada e
efetiva discussão ética, está fadado a ser tragédia anunciada ou, o que seria pior, uma versão
requentada do dito “socialismo real soviético”.

Até confabulações triviais acerca do tema apetecem (ou deveria apetecer88) a ciência
psicológica, por se tratar este de um nódulo crítico corriqueiro em suas práxis profissionais.
Seu próprio quefazer a incumbe de tomar posições, invariavelmente, políticas e, por
consequência, éticas, antiéticas ou aéticas. Tirante todo liberalismo bem intencionado que a
alínea “b” do Artigo 2° do Código (brasileiro) de Ética Profissional do Psicólogo, de 200589,
sabe-se que a realidade não é assim; por mais aprazível e francamente honesto que ele seja, é
difícil refutar seriamente que nossas convicções não afetam e se desdobram concretamente na
vida ético-político-filosófico-moral-etc das pessoas/comunidades por nós atendidas.

Quando se “ouve” ou “acolhe” indivíduos na tradicional “clínica”, ou ainda, prestam-


se serviços a ONG’S, aos setores públicos etc., cedo ou tarde, defrontamo-nos com
indagações sobre como proceder quando há conflito real e iminente entre valores culturais (já

88
Note-se, aqui se trata justamente do verbo “dever”.
89
A Alínea diz o seguinte: “induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de
orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”.
109
saturados de críticas pela literatura, ainda que por vezes sem “sustância” alguma) e a
singularidade do caso a que se impõe emitir juízo e, mais precisamente, agir.

No que se refere ao tema desta tese, cremos que é exequível deslindar da proposta de
práxis para a psicologia feita por Martín-Baró um projeto ético-político, mas não aplaudimos
a ideia que dele seja viável extrair, imediatamente, um “código de conduta progressista para a
Psicologia”; infelizmente para alguns, a questão não é tão simples. Não zelamos por depurar
princípios ou sistematizar modos de ação “normativos”, mas, a começar pela vida e obra
daquele jesuíta, pretendemos exteriorizar como a Psicologia se mostrou instrumento teórico-
prático capaz de potencializar ações político-contestatórias concretas e, por que não, em
alguns casos, revolucionárias.

Demonstrar que a criação de um “código de conduta” com o nome de “código de


ética” é perfeitamente compatível com pressupostos que pouco ou nada a contemplem90, tal
como aqui a estudamos, como valor universal da genericidade humana, é desnecessário. Basta
rememorar que ninguém age ou deixa de agir eticamente porque conhece determinado código
e, desde já, deixamos claro que, diferente de Platão, e de todo neoplatonismo pós-moderno,
não supomos que o simples conhecimento do Bem corresponda a um agir ético. Temos diante
nós uma das tarefas mais árduas e sincronicamente mais desafiadoras da Psicologia, que é não
apenas rastrear a gênese ontológica do valor na História (como pretendia Lukács), mas
apreender como a totalidade dos indivíduos (corpo, psiquismo, emoções, afetos etc.) se
relaciona na práxis com valores éticos ou antiéticos; é evidente que não é porque sabemos que
algo é bom ou ruim, que respondemos a eles racionalmente. Trabalhar a unidade consciência-
emoção, prescrita por Vigotski, faz-se um dos primeiros degraus para o aporte da ciência
psicológica ao tema. Contrapomo-nos, por fim, para não perder o fio da meada, a Platão,
postulando que o agir ético é práxis humana, e como tal, envolve a mediação, entre outras
coisas, da aprendizagem. Concluído o preambulo, adentremos no debate direto.

Sobre o passado da ética

No mais das vezes as dissertações científicas sobre ética preludiam-se com


ponderações e críticas ao que foi produzido pelos filósofos clássicos, na chamada

90
Drummond, na Rosa do Povo, eterniza o que queremos dizer: “o lírios não brotam da lei”.
110
Antiguidade, em uma faixa de terra dos Balcãs que, posteriormente, descobriríamos ter o
tamanho para arrebatar toda superfície terrestre: a Grécia. Não seguiremos outra rota, para
situar sua importância para esta pesquisa. Inauguramos, assim, nossa exposição por seu
primeiro grande difusor, Sócrates, ou, mais exatamente, Platão, que convencionalmente é
aceito como redator dos textos91.

Platão considera que o Bem é fundamento da ética. Ou seja, o conhecimento que o


indivíduo possui dele é condicionante de seu comportamento. Agir eticamente será fruto de
lento amadurecimento espiritual, de ascensão da alma. Só agem desta maneira os dotados de
autocontrole, de “governo de si mesmos”, como se pode observar no diálogo Górgias.
Entretanto, é n’A República que ele argumenta sobre o que é a conduta correta. Ali
consultamos grandes temas da filosofia platônica: natureza da realidade, as “formas” como a
verdadeira realidade, o problema do conhecimento e o Bem (agathós idéan) como forma
suprema e fundamento da ética e da justiça, duas dimensões complementares da conduta
correta. Há ainda: metafísica, epistemologia, política e pedagogia (MARCONDES, 2014) 92.

Em síntese, e a despeito de sua perspectiva inatista sobre a virtude, Platão, referindo-se


a Sócrates afirma que para se tornar “cada vez mais ético” é preciso passar por um processo
de transformação. À medida que o indivíduo conhecesse a Justiça (outro conceito importante)
verteria seu agir de modo proporcional e coerente a ela, ao filósofo (com a função de
pedagogo) cabe o papel de despertá-la (maiêutica) em nós. Por fim, conduta ética, para Platão,
também depende do medo da punição. Diferindo em muito de Espinosa93, por exemplo, que

91
Ça va sans dire que não se defenderá aqui que só os europeus agiram “eticamente” na Antiguidade, apenas
porque eles “conceituaram” a palavra ética! A história de povos como o Nazca ou, posteriormente, os Incas, no
Peru, os Hebreus, no Oriente Médio, ou os confucionistas, na China e Índia, não deixam dúvida que o que nós
definimos por ética estava presente como possibilidade concreta em suas respectivas culturas e sociedades, senão
como conceito formalizado, em suas práxis/atividades coletivas cotidianas. Entretanto, e, como lembra-nos
Châtelet (1994), há algo na singularidade dos gregos, eles inventaram o que o autor chama de logos, ou razão.
Uma forma específica de organizar, classificar, construir etc. o pensamento humano. Em suma, os gregos não
demonstram necessariamente valores hierarquicamente superiores, afora o fato de que, por motivos históricos, a
concepção nascida lá tenha sido decisiva para formação do pensamento científico e para a transformação da
humanidade.
92
Atribuindo voz a Sócrates, o homem de ombros largos, não desvinculava ética de uma ação coerente entre o
indivíduo e o Bem da pólis (sociedade); esse dado é importante, pois quando pensamos a ética desde o
materialismo-histórico dialético essa noção é fundamental para livrá-la do subjetivismo. Ainda sobre isso, no
Mênon, Platão formula questão digna de nota: é possível ensinar a virtude (areté)? A negativa platônica é
cristalina, ou já a trazemos conosco do nascimento ou nada será capaz de incuti-las em nós. Logo, a virtude deve
ser inata. (MARCONDES, 2014).
93
SPINOZA, B. Ética e compêndio de gramática da língua hebraica. J. Guinsburg, N. Cunha e Roberto
Romano (org.) – Obra Completa I. São Paulo: Perspectiva, 2014.
111
postulava que o medo é antinômico à própria ética; onde ele habita há servidão, não liberdade,
prerrogativa última dela mesma (ética).

As ideias de fundo do platonismo reverberam até nossos dias. Supor um código de


ética profissional para psicólogos, por exemplo, objetivamente pode servir para delimitar
margens de atuação, para ser objeto de reflexão. Sua própria existência testemunha,
entretanto, a premissa de que quem o conhece “agirá bem”, ou então, que se alguém agiu mal
foi devido à inexistência de uma referência normativa e prática para suas ações, ou ainda, se
não agirá porque conheceu o que é o correto, todavia agirá por medo de punição, nesse caso,
cassação da licença para atuar, entre outras coisas.

Do outro lado do rio está o estagirita. Cônscios da efígie torta que segue sobre sua
densa filosofia, poderíamos dizer que é ela quem muda definitivamente os termos do debate,
até mesmo para a Psicologia contemporânea. Aristóteles entreviu o saber sob três aspectos: a)
teórico, ou campo de conhecimento; b) prático, ou campo de ação; e c) criativo ou produtivo.
Nele, a ética, juntamente com a política, pertence ao domínio do saber prático que pode ser
contrastado ao teórico94. A tradição marxista contraiu débito histórico com Aristóteles, pois,
pelo pouco já ensaiado, é cabível discernir que vigas mestras de inúmeras categorias
fundamentais da ontologia do ser social figuram, ainda que como embrião, em suas asserções.
Marcondes, comentando Aristóteles, não titubeia:

“(...) No domínio do saber prático o intuito é estabelecer sob que condições podemos
agir da melhor forma possível tendo em vista o nosso objetivo primordial que é a
felicidade (eudaimonia), ou realização pessoal. Esse saber prático é por vezes
denominado phronesis (prudencial, ou razão prática, ou capacidade de
discernimento). No que consiste a felicidade e como é possível ao ser humano
alcançá-la são as questões centrais.” (MARCONDES, 2014, p. 37)95.
O Ethica Nicomachea, ou Ética a Nicômaco, tem importância áurea ao mundo
científico e filosófico; nela reside o germe dos escritos sobre ética na tradição filosófica
ocidental, suas páginas dão luz ao uso da noção “ética” no sentido que empregamos até hoje.
São retratados lá: o “estudo sistemático sobre as normas e os princípios que regem a ação
humana e com base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins” (MARCONDES,
2014, p. 38).

94
Ver mais sobre o tema na página 34 de Marcondes (2014).
95
Não poderíamos deixar de recomendar que se verifiquem estudos mais completos sobre a noção de Felicidade
em Aristóteles, fundamental para entender sua proposta para a ética. Em uma caricatura, “eudaimonia” pode ser
entendida como bem-estar em relação a algo que se realiza (ética eudaimônica).
112
A virtude96 foi ali ressabida como hábito. Contrariando o Mênon, de seu mestre Platão,
anunciava que ela (areté, traduzida também por excelência) é passível de aprendizagem,
sendo esta, aliás, um dos objetivos centrais da Filosofia. Uma vez que não é inata, mas resulta
do hábito, carecemos de praticá-la e exercê-la efetivamente para tornarmo-nos virtuosos. Os
dois autores (Platão e Aristóteles) narram acerca de um “processo de transformação e
consolidação” que não deixa de ser um aperfeiçoamento; a diferença está no ponto de partida
de ambos. Segundo Valls (2010, p. 33), “[...] esta autoeducação supõe um esforço voluntário,
de modo que a virtude provém mesma da liberdade, que delibera e elege inteligentemente.
Virtude é uma espécie de segunda natureza, adquirida pela razão livre”. Abrem-se, com
Aristóteles, as janelas à interpretação de que a ética é apolínea mais do que dionisíaca, mais
razoável que emotivo-afetiva. Os prejuízos deste racionalizante achegamento só teve seus
alicerces abalados, anos depois, com Baruch Espinosa97.

O objetivo de Aristóteles é eminentemente prático. Por isso critica (Ética a Nicômaco,


I, 6) a concepção platônica de forma ou ideia do Bem, por seu sentido genérico,
excessivamente abstrato e distante da experiência humana. Por essas diretrizes críticas propõe
a “Doutrina do meio-termo” (mesotes) – princípios fundamentais da sua ética, para a qual a
ação correta é a que evita extremos; nem excessos nem faltas, mas equilíbrio ou justa medida,
a phronesis (MARCONDES, 2014)98.

Por quais motivos fomos impelidos a começar por Platão e Aristóteles? Porque eles
deitam raízes para entendermos os motivos que levam Martín-Baró a afirmar que vetores
axiológicos (e éticos) devem dirigir o labor transformador do mundo. O jesuíta advoga que
onde não há entrelaçamento entre valor ético e práxis política não pode haver verdadeira
ciência. Por isso, impera assumir conscientemente uma postura frente à qualidade e ao tipo da
produção teórica de determinada práxis científica. Em nosso caso, a possibilidade e o dever

96
As virtudes, nos clássicos gregos, ocupam lugar de destaque, Valls (2013) enumera as principais: a) justiça
(dike) – virtude geral, que ordena e harmoniza, e assim nos assemelha ao invisível, divino; b) prudência ou
sabedoria (frônesis ou sofía) – própria da alma racional, a racionalidade como o divino homem: orientar-se para
bens divinos; c) fortaleza ou valor (andreia) é a que faz com que as paixões mais nobres predominem, e que o
prazer se subordine ao dever; d) temperança (sofrosine) – serenidade, equivalente ao autodomínio, à harmonia
individual.
97
Rouanet (1985) no capítulo sobre “a emoção na história das ideias” elencou primorosamente aspectos
estruturantes desse argumento.
98
A possibilidade (na acepção aristotélica) do exercício ético ganhou conotações singulares. Mas, assim como
em Platão, ainda guardava resquícios da ideia de um “autogoverno”, que se cristalizaria ao longo da vida é
verdade, sem obstante deixar de ser “governo de si”. Ou seja, “a questão platônica do Sumo Bem dá lugar, em
Aristóteles, à pesquisa sobre os bens em concreto para o homem” (VALLS, 2013, p. 29).
113
do psicólogo em corresponder eticamente aos interesses dos explorados pelo capitalismo não
é algo inato à consciência dos que decidem se graduar em Psicologia, antes deve ser fruto da
preocupação desse próprio processo de formação educacional, que envolve, também, o que
ele nomeia de conscientização.

Além disso, um estudo histórico sobre as teorias psicossociais não pode alijar-se de
rastrear suas matrizes filosóficas, por mais distantes que elas pareçam. Resgatar pontos
específicos da filosofia platônica e aristotélica afia o entendimento para encararmos com
maior facilidade dois gigantes da filosofia medieval, Agostinho de Hipona (354 – 430) e
Tomás de Aquino (1225 –1274); estes sim, os que mais nos auxiliam a mapear o núcleo ético-
teológico da proposta de Martín-Baró.

Agostinho engendra a primeira grande síntese entre filosofia grega (platonismo, mais
propriamente) e cristianismo. Temas como: o problema da natureza humana e do caráter inato
da virtude; a origem do mal; o conceito de felicidade; a liberdade e a possibilidade de agir de
forma ética são abordados (MARCONDES, 2014). Sua doutrina não se esquiva de dilemas
basilares da fé cristã. A origem da virtude na natureza humana? Deus; Falhas humanas? “A
queda” e o pecado original; Redenção e Felicidade? Graça de Deus; Livre-arbítrio ou
liberdade individual? Capacidade dos humanos de se responsabilizarem por seus atosxv.

Quase oitocentos anos depois (já a Igreja Católica experimentando contradições


institucionais e sociais distintas), São Tomás de Aquino, desta feita articulando aristotelismo e
cristianismo, escreveria, com a tinta usada por grandes mestres, seu nome na história da
Filosofia. A ética escolástica encontrou seguidores até o período da modernidade, mais
precisamente, para nós, entre os jesuítas.

Para Marcondes (2014), a contrarreforma sagrou o “Boi mudo” como representante


pleno da ortodoxia católica. Tomás de Aquino abonava a concepção aristotélica de virtude,
considerando a natureza humana apta ao aperfeiçoamento. A distinção é que as virtudes
seriam convertidas na acepção da tradição teológica cristã, principalmente a expressa pelo

114
apóstolo Paulo: fé, esperança e amor (caridade99); e no conceito de eudaimonia, que será
interpretado como beatitude100.

Na parte II de sua Suma Teológica encontramos o “Tratado dos hábitos e das


virtudes”, nele o autor relaciona virtudes aos hábitos, seguindo a dinâmica, como já vimos, da
filosofia aristotélica. Dela emanam inspirações para vivificar a lógica e a legitimidade da
escritura de um texto, por volta de 250 anos depois, da qualidade do Exercícios Espirituais de
Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Só quando se compreende a virtude como
um hábito, ou seja, algo que mereça e deva ser exercitado, é que se viabiliza uma “disciplina
para a alma” que tenha por finalidade a beatitude.

Neste estudo, cremos que não é novidade que Ignacio Martín-Baró recebeu generosa e
generalista formação educacional dos colégios da Companhia de Jesus (isso foi explorado
com mais detalhes por Ibáñez, [1998], e por Portillo, [2012]) e, mesmo sendo pensador
progressista, se considerarmos o conservadorismo histórico da Igreja Católica Apostólica
Romana, sua formação teológico-filosófica, e mais, a disciplina jesuítica imposta aos seus
ordenados, estaremos em melhores condições para apreendermos o objeto de central desta
pesquisa. Permitam-nos outro breve detour.

(Quem são os jesuítas 101?)

“Não se pode conhecer os jesuítas sem referência ao livro dos Exercícios.” (John.
W. O’ Malley).

Tão congruente quanto a Reforma Protestante do século 16, debruçar-se sobre


movimentos religiosos cristãos, que mantiveram vínculo com o Vaticano, esclarecem muitas
transformações infringidas pelas interpretações da ética na teologia cristã, e mesmo na
Filosofia; lembremo-nos que na Europa ambas andaram de mãos dadas por longo período.

99
A poesia e síntese da questão levantada por São Tomás de Aquino pode ser lida na primeira epístola de Paulo
aos Coríntios no capítulo treze versículo treze do Novo testament da Bíblia da Judaico-cristã.
100
No Tratado sobre o homem, de sua Suma Teológica, propriamente na questão 83, Aquino retoma Agostinho e
apregoa que o livre-arbítrio decorre da própria racionalidade humana e é pressuposto da ética como possibilidade
de escolha daquilo que é bom em detrimento do que é mau.
101
Nossas apreciações aqui são principalmente frutos do texto de Eisenberg (2000).
115
Precisamente quando conectamos os nexos entre o chamado noster modus procedendi (nosso
modo de proceder) dos jesuítas e os rumos do movimento tomista, conhecido como a seconda
scholastica, podemos traçar, em linhas gerais, a base teológica que acolheu/formou Ignacio
Martín-Baró.

A história da Companhia de Jesus está unida de modo íntimo à biografia de Inácio de


Loyola, seu líder e fundador. Em 1521, Iñigo de Oñez y Loyola, então cavaleiro, foi ferido em
batalha contra franceses em Pamplona, Espanha. Ao optar pelo castelo de Loyola (o de seu
pai) para se revigorar, e na ausência de seus livros de cavalaria, iniciou a leitura de dois textos
religiosos: Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia, e Flos Sanctorum, de Jacobus de Voragine102.
A experiência com essa literatura mudou concretamente sua práxis. Ainda no período de
recuperação, decidiu seguir os passos de São Domingos103 e São Francisco104 (EISENBERG,
2000).

Resoluto a peregrinar por Jerusalém, em 1522 fez parada em um mosteiro beneditino,


na cidade de Montserrat, na Espanha, e ali teria encontrado orientação e consolo na rotina de
confissões prescritas pelo abade Garcia de Cisneros. Teria lido ali, pela primeira vez, Imitatio
Christi, de Thomas a Kempis, crucial para sua interpretação do cristianismo, e Exercícios
Espirituais para a vida espiritual, do mesmo Cisneros. Cheio do espírito das referidas
leituras, escreveu seu famoso Exercícios Espirituais, livro devocional de índole religiosa
fortemente inspirado no método daquele abade e basilar para a história dos jesuítas de todo o
mundo (EISENBERG, 2000).

Em 1523, tendo já saudado Jerusalém, Loyola decide “estudar” para salvar as almas.
Essa ação é marca de toda sua empresa. A propensão aos estudos craveja toda sua produção,
desde a forma de se relacionar com a hierarquia eclesiástica até mesmo as tomadas de
decisões perante escolhas difíceis.

102
A polêmica não nos interessa, mas em pesquisa feita para confirmar as informações, encontramos que o livro
que o teria inspirado foi Legenda sanctorum, que consiste em uma coletânea de narrativas hagiográficas reunidas
por volta de 1260 pelo dominicano e futuro bispo de Gênova, Jacopo de Varazze.
103
São Domingos de Gusmão (1170 –1221) foi um frade católico, canonizado em 1234, fundador de movimento
institucional dentro do cristianismo conhecido como “Ordem dos Pregadores”; seus membros são conhecidos
como dominicanos.
104
Giovanni di Pietro di Bernardone ou São Francisco de Assis (1182 [?] — 1226) foi um frade católico italiano
que fundou a "ordem mendicante" e que inspirou inúmeras outras ao longo da história.
116
Depois de algumas experiências malventurosas nas universidades de Alcalá e
Salamanca, na Espanha, (em ambas foi processado e absolvido pela inquisição pela difusão de
seus Exercícios), tomou o rumo de Paris, a fim de prosseguir com sua formação; lá viveu por
sete anos. Frequentou o Collège de Montaigu, antigo centro humanista, onde Erasmo De
Rotherham e João Calvino, ilustres pensadores do cristianismo, estudaram no início do
século. Ainda na Cidade das Luzes não se livrou da Inquisição e, junto a Francisco Xavier,
um dos que com ele fundariam a Companhia de Jesus, inclinou-se a ir novamente à romaria
de Jerusalém. O curioso é que, para evitar problemas desnecessários, quando lhes
perguntavam sobre o nome da organização a que pertenciam, a resposta combinada era: da
“Companhia de Jesus”, sendo Cristo o único superior deles. Em 1536, antes da viagem,
Inácio viajou a Roma para apresentar ao Papa a Fórmula do Instituto, documento fundador da
ordem jesuítica.

A 27 de setembro de 1540, pela bula papal Regimini militantes ecclesiae, a


Companhia de Jesus foi oficializada como ordem católica com fins pastorais: para o
aperfeiçoamento das almas na doutrina cristã e propagação da fé (EISENBERG, 2000). Seu
propósito era agir pela caridade nos hospitais, nas prisões e nas escolas; os membros da nova
ordem estariam sempre em uma missão, difundindo a fé (a deles, obviamente), convertendo
infiéis e punindo hereges.

Após o Concílio de Trento (1545-1563), a organização alinhou-se aos interesses da


bandeira papal. Pela primeira vez expressa nos Exercícios Espirituais, de Inácio de Loyola, a
nova interpretação do cristianismo centrou-se no, já mencionado, noster modus procedendi.
Esse era o ethos institucional da ordem. Seus membros escudavam que sua adoção era o que
os fazia propriamente “jesuítas”. Ao passo que conceitos como caridade, obediência, pobreza
e liberdade do monasticismo eram presentes em outras ordens, na deles, a especificidade era
justamente essa interpretação moral e institucional da vocação de seus filiados (EISENBERG,
2000).

O prospecto institucional jesuítico almejava engajar-se em atividades apostólicas de


conversão orientadas pela soteriologia tomista, e que confessava o trabalho caridoso como
essencial para a salvação da alma. No Exercícios Espirituais manifestam-se instruções
práticas tanto para o exercitante quanto para aquele que dirige a prática dos exercícios. O
“diretor” (ou Superior) não deveria transmitir qualquer conhecimento substantivo para o
noviço, mas apenas guiá-lo por meio dos exercícios. Havia, de acordo com Loyola (apud
117
Eisenberg, 2000), um meio-termo (à moda aristotélica) que deveria ser o fiel daquela balança.
A propedêutica mística prescrevia que o diretor fosse “médico da alma” do exercitante,
monitorando e administrando exercícios com a finalidade de curar o devoto. Loyola105 não
poderia ser mais enfático:

“[...] que seja dotado de grande inteligência e juízo, para que não lhe falte este dom
nem nas questões especulativas, nem nas questões práticas que ocorrem. A ciência é,
de certo, bem necessária a quem tem tantos homens instruídos a seu cargo. Todavia,
ainda mais necessárias lhe são a prudência e a experiência nas coisas espirituais e
interiores, para discernir os diversos espíritos, para dar conselho e remédio a tantas
pessoas em seus problemas espirituais” (CONSTITUIÇÕES E NORMAS, 1997).
A transformação no conceito de obediência dentro da ordem também merece ressalvas.
No início, a interpretação dada aos Exercícios Espirituais e, principalmente, a expressa na
Fórmula, demandava “obediência militar”, mas a questão mudou de figura quando Loyola
percebeu as dificuldades de administração das atividades internacionais dos jesuítas, daí a
necessidade de que os irmãos “aceitassem ordens” como se fossem produtos de sua própria
deliberação consciente106.

O que lhes assegurava relativa liberdade de expressão era o voto de obediência


exclusiva ao Papa, tendo os “poderes temporais” menor peso em suas decisões, coisa rara
naquele período. Loyola não incitava seus irmãos a obedecerem cegamente aos ditames dos
superiores, antes munia lhes o espírito de incentivo para exigir justificativas racionais para seu
cumprimento. Isso incita os jesuítas à prática da obediência acompanhada pela prudência,
outro conceito que comparece de modo abundante nos Exercícios, e legatário da filosofia
aristotélica.

A importância que Loyola dava à penitência e à confissão teve consequências sérias,


entre elas a mais importante foi a criação de um curso de “estudos de casos de consciência”,
que integrava o currículo da educação jesuítica. A recomendação privilegiava a casuística

105
Essa é a terceira razão (das seis – listadas por ordem de importância aos que desejavam tornar-se Superior
Geral, por curiosidade, listemo-las: 1º) grande união e familiaridade com Deus; 2º) que fosse exemplo de todas
as virtudes da Companhia; 3º) é a supramencionada; 4º) que fosse vigilante e cuidadoso para empreender boas
obras; 5º) é de ordem física (idade e condições de saúde condizentes com as exigências do cargo; 6º) referia-se a
dons exteriores, bom nome, estima, nobreza, fortuna possuída outrora no mundo etc. Essa listagem pode ser
encontrada no capítulo segundo (Qualidades que deve ter o Superior Geral) das constituições e normas
jesuíticas. Mais detalhes podem ser lidos em CONSTITUIÇÕES da Companhia de Jesus e NORMAS
Complementares. São Paulo: Loyola, 1997.
106
Outra peculiaridade do voto feito pelos jesuítas era seu caráter de mobilidade ao invés do enclausuramento;
eles prometiam não criar laços duradouros em qualquer localidade e estar à disposição para levar adiante “a boa
obra” onde quer que seus superiores lhes ordenassem. O enlace entre Ignácio Martín-Baró e El Salvador seguiu
esse preceito até certo ponto, pois é notório em sua obra o afeto que ele nutria por aquele país.
118
(que incluía o estudo da retórica, da persuasão, do exercício da razão prática e do
desenvolvimento da capacidade de tomar decisões corretas) e, também, o ofício de
confessor107 (EISENBERG, 2000).

Ainda sobre isso, o método de “raciocínio prático” empregado pelos jesuítas compunha-
se de dois conceitos básicos: adaptação às normas e tolerância às violações que não fossem
extremamente ofensivas. A obra de Martín-Baró está embebida dessa concepção ética; não
queremos aqui afirmar que sua subjetividade mimetizou aquela proposta por sua filiação
religiosa; entretanto, seria ingenuidade considerar que ele fomentaria algo contrário ou alheio
a essa “manifestação normativa”, ou ainda que ele tivesse críticas incisivas, o que parece
provável, não cremos que elas fossem de todo avessas aos preceitos jesuítas, uma vez que até
o fim de seus dias se manteve pároco sob a insígnia dessa ordemxvi.

Anotações acerca da ética desde os interesses da Psicologia concreta

O primeiro que seriamente confrontou o prisma compreensivo das “éticas


subjetivistas” que teve Kant por zênite, foi Hegel. A partir de seu “rebuscado” idealismo
histórico-dialético ele possibilitou à filosofia e à discussão científica entrever as complexas
articulações entre o ser social e o Estado de Direito – que, por seu turno, é simultaneamente
“criação” e expressão ideal-coletiva de valores e interesses humanos de uma determinada
classe social. Para Hegel, o Estado era representante, na sociedade, apoteótico do
desenvolvimento da razão na História (MAYOS, 1990).

107
De acordo com o mesmo autor, para Inácio Loyola, havia três modos de escolher bem: a) quando Deus guia a
vontade do devoto, de modo que qualquer dúvida não subsistiria; b) quando a alma adquirisse luz e
conhecimento pela experiência, de consolações e desolações, e por meio do discernimento dos vários espíritos
(aqui Deus proveria a consciência por intermédio da razão; a dificuldade mora no fato de que não se poderia
confiar totalmente nela, pois esta poderia ser alvo da manipulação do Inimigo [diabo] ou do próprio pecado); c)
quando a alma se achasse em “tempo tranquilo”, aquele em que ela usufruiria suas potências naturais e livres
calmamente, não sendo atormentada por nenhum espírito “estranho”, o que permitiria ao exercitante liberdade e
plenitude em seu proceder. O terceiro modo acabou consolidando-se como núcleo ao redor do qual o conceito de
prudência jesuítica se desenvolveu nos primeiros vinte anos de existência. É notável que esse método de fazer
boas escolhas não se fiava completamente no uso da razão (livre-arbítrio) e na capacidade de escolher qualquer
coisa entre as opções, mas tinha por prerrogativa um distanciamento intelectivo (racional) do objeto da escolha,
esperando que desse lugar se pudesse distinguir as melhores opções. Esse “distanciamento” é um movimento
novo na compreensão da ética. (EISENBERG, 2000).
119
N’A Fenomenologia do Espírito (1807), Hegel desenvolve a tese de que o percurso do
“Espírito” na História culmina, até propriamente sua “conformação plena”, no Estado, que,
segundo ele, seria capaz de mediar as relações entre necessidades e deveres de todos os
cidadãos, provendo melhor vida possível a todos (MAYOS, 1990). A expectativa hegeliana
sobre a capacidade desse Estado de Direito (ou melhor, Estado da burguesia) gerir o “bem-
comum” não resistiu à posterior crítica do ainda jovem Marx, no Crítica à Filosofia do direito
de Hegel, de 1844; entretanto, foi em Hegel que vislumbramos o raiar de uma tentativa
racional de apreender a ética como algo próprio da genericidade humana, como valor
universal que se entronca à História da própria humanidade, desde sua gênese até seu
desenvolvimento.

Em Hegel a vida livre era a vida dentro de um Estado livre, um Estado de direito,
que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a
consciência moral e as leis do direito não estivessem nem separadas e nem em
contradição (VALLS, 2013, p. 45).
Em suma, o vértice ontológico da discussão começa a se aprumar, a ética migra da
“consciência individual” para as relações sociais. A audácia de Hegel foi pretender fundir
moral cristã à síntese (ao núcleo racional/racionalizante) da Política grega; em outras palavras,
a liberdade carece de organização social e, de acordo com ele, isso quer dizer que na História
ela assume a forma do Estado. Entretanto, não faltam críticas às concepções hegelianas.
Marxistas vociferam: “– O Estado de Direito é falacioso!”; os neokantianos: há em Hegel uma
moral heterônoma, que encrua o próprio termo “ético”, que ali não se aplica; os
existencialistas insistem: há esquecimento da dimensão propriamente humana e individual da
liberdade, menosprezo da singularidade. A celeuma, segundo estes últimos, é que qualquer
ética que prescinda de “dimensões individuais” esvazia-se de conteúdo108 (VALLS, 2013).

Não faz sentido repisar a discussão já iniciada sobre pressupostos ontológicos do


materialismo histórico-dialético e algumas de suas relações com a formação do psiquismo.
Contudo, com lanterna e mapa já utilizados em mãos, partiremos ao campo, não menos
controverso e polêmico, da discussão ontológica sobre a ética entre os marxismos, mas antes é
preciso trazer à baila algumas minúcias.

108
A crítica à ética hegeliana tem muito crédito, mas isto está fora do alcance de nossas competências e
duvidamos que seja fundamental para o que pretendemos. Aliás, quando expusemos pistas das posições teórico-
críticas de Lukács (1986/2013) no primeiro capítulo, acreditamos que, por contraposição, já saltarão aos olhos
algumas fissuras quando de uma crítica ontológica daquelas teses, ao passo que se poderá notar, também, o salto
qualitativo que o comunista húngaro foi capaz de empreender a partir do materialismo histórico-dialético.
120
O “hispano-mexicano” Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011) escavou vestígios
incontornáveis aos que procuram nos textos de Marx e Engels indícios, ou mesmo análises
preliminares, sobre como apreender a ética e a moral concretamente, ou ainda, sua função no
projeto emancipatório proposto pelos alemães109. Ele assinala que a relação materialismo
histórico-dialético e ética/moral é problemática, pois existem “marxistas” que nem mesmo
reconhecem a existência de ligação real entre ética e ciência. Em alguns, há negação de que
haja lugar no corpo teórico e, tampouco, na teoria política marxista para a ética. Trata-se tanto
de um problema de definição do que ela seja, quanto de sua função social. Os extremos
pendulam entre cair em um “moralismo”, ou seja, reducionismo que postula que todos os
comportamentos se diluam sempre em uma “moral”; e o outro, que ao propor a ética entende-
a como epifenômeno da economia ou do sistema social.

Em Vázquez (2010), a ética explicada por marxistas, ou de inspiração marxiana, não


se projeta com a mesma veemência em seus sentidos explicativos e normativos. Se o critério
de interpretação for “obras de Marx”, é improvável negar que, se por um lado, não se delineia
uma “ética” no sentido estrito (como um corpo categorial ideativo sistematicamente
articulado); por outro, ao largo dos escritos, há menções explícitas e implícitas (por exemplo,
sua natureza ideológica, seu caráter histórico e social, sua vinculação com relações de
produção e interesses de classe, sua função social etc.).

O coração do entrechoque não são tanto divergências no plano explicativo, mas no


normativo. Não na ética como objeto do conhecimento, senão naquele que impregna a crítica
da “imoralidade” do capitalismo, bem como a que inspira o projeto societário emancipatório
alternativo a ele. Postas estas balizas, as perguntas passam a ser: há lugar para a ética na
crítica ao capitalismo, na construção do comunismo ou, ainda, nas atividades de um
revolucionário? Se porventura a resposta for sim, seu alcance seria aleatório ou necessário?
Irrelevante e desnecessário ou determinante e decisivo?

As respostas de Vázquez (2010) são significativas e pertinentes, pois nos levam a


explorar um ponto cego, embora não original, entre os que se achegam ao materialismo
histórico-dialético. Explicamo-nos: quando um autor, pretensa ou supostamente marxista,
utiliza referências e citações marxianas não como auxílio em sua compreensão do método ou

109
Muito menos nos interessa a definição semântica precisa da categoria ética no autor marxista A ou B;
precisamos, antes de qualquer coisa, apreender as diferenças entre o campo temático do materialismo histórico-
dialético e aqueles feitos sobre pressupostos idealistas para a concepção da realidade e da história.
121
como alavanca para apreensão de seu objeto de estudo, mas dogmaticamente, acaba por
demonstrar, se não um desvio do mesmo método materialista histórico-dialético, um
testemunho sobre sua apropriação acrítica, para não dizer idólatra, do cânon marxista. Ou
seja, Marx vertido como “argumento de autoridade” desnutre-se de sua potência crítica e
torna-se “mais um”.

Se acudir nas façanhas do Mouro e de Engels são excelentes prenúncios, mas


satisfazer-se com respostas que eles deram, porque foram “eles” quem as derem é inútil para a
ciência. Em todo caso, uma análise histórico-ontológica é imprescindível. Desde escritos de
sua juventude como: Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, A ideologia Alemã, Crítica
a Filosofia de Direito de Hegel ou Teses sobre Feuerbach, até tardios, como Crítica ao
Programa de Gotha, passando pelos intermédios de sua maturidade, como Grundrisse e o
próprio O Capital, ou prévios a esses, como Manifesto do Partido Comunista; é possível
encontrar passagens que apoiam uma ou outra posição que podem parecer contraditórias
(VÁZQUEZ, 2010).

No que se refere à primeira – a que nega lugar no marxismo para a moral ou a ética110
– é possível encontrar n’A ideologia alemã (concluído em fins de 1846, publicado
oficialmente em 1932), em letras garrafais: “comunistas não predicam nenhuma moral111”.
Nesse mesmo texto que, lembremos, foi abandonado por Marx à crítica dos ratos, esboçam-se
argumentos que apoiam a tese: não a predicam porque, dada sua natureza ideológica, falseia a
realidade ao encobrir interesses da classe dominante a que serve (VÁZQUEZ 2010, p. 73).

Contrastando com essas passagens, em outro texto de sua juventude, Introdução a


Crítica da filosofia do Direito de Hegel (1843), encontra-se o imperativo de subverter o
mundo social em que o homem é humilhado. Humilhação esta que só pode ser pensada a
partir de uma concepção moral. Há, também, trechos sobre a alienação n’ Manuscritos de
Paris (1844) em que esse teor é indelével. Um intenso alento impregna um de seus últimos
textos, Crítica ao Programa de Gotha (início de 1875), no que se refere a uma “justa”
distribuição dos bens produzidos (VÁZQUEZ 2010).

110
Para uma diferenciação mais completa dos termos moral e ética, indicamos o próprio texto de Adolfo Sanchez
Vázquez. Como não nos interessou aqui um debate hermenêutico, cremos não haver prejuízos para a
compreensão do que pretendemos ao acompanharmos a explicação dada por ele.
111
Poderíamos citar também, pra enfatizar, o trecho do Manifesto do Partido Comunista: “[...] Mas o comunismo
abole as verdades eternas, abole a religião, a moral, em vez de as configurar de novo, contradiz portanto todos os
desenvolvimentos históricos até aqui.[...]”. ENGELS & MARX. Manifesto do Partido Comunista. Editorial
Avante, 1997, pág. 49.
122
Não é possível negar que na obra de Marx não haja posições contraditórias sobre a
moral. Certamente dogmáticos, os beatos que atribuem a Marx um pensamento
único, retilíneo, se negarão a admitir essas contradições, ainda que estejam tapando
o sol com o dedo. Mas porque não reconhecer a contradição em seus textos, se a
contradição é própria da realidade. (VÁZQUEZ 2010, p. 74)112.
A citação nos guia a um dilema. Se respondermos à questão de Vázquez (2010), “De
que marxismo falamos?”, tendo em vista as diversas interpretações possíveis do legado
marxiano, caímos em armadilha. Caso nos embolemos com ele e taxarmos que o marxismo
está sujeito às interpretações subjetivistas, violamos pressupostos fundantes da discussão
materialista dialético-histórica e mesmo os da ontologia do ser social sobre a possibilidade
concreta de “apreensão” da realidade (aqui nos referimos às grandes diferenças nas atividades
que estão representadas nos significados dos verbos “interpretar” e “apreender”). Se,
conquanto, professarmos que é unívoco o “modo adequado” de ler Marx, chamar-nos-ão, no
mínimo, de pretensiosos, considerando que o nosso modo seria o adequado, e em verdade,
seríamos ingênuos. Mais do que nunca, nestas regiões, a importância do método se faz
valer113...

Um parênteses. Para Vázquez (2010), Marx deve ser lido como o autor da tese 11, de
suas Teses sobre Feuerbach (1845); especialmente a parte do “[...] os filósofos têm se
limitado até agora a interpretar o mundo; do que se trata é de transformá-lo114”. Nesse trecho,
ele não subestima – como creem pragmáticos – o valor do “pensar” o mundo, mas está

112
Tradução nossa. Aliás, todas as citações diretas tiradas de Vázquez (2010) foram vertidas para o português.
113
A história do espólio marxiano, ou mesmo seu infortúnio editorial, dá margens à multiplicidade de vertentes
que atualmente conhecemos. E, para alguns, isso até mesmo justifica brigas inconciliáveis dentro desse campo
de estudos. O Marx mais “cientista” de Louis Althusser, não se bica com o mais “ideólogo” da Escola de
Frankfurt; ou ainda, poderíamos falar da já famosa divisão por “cortes epistemológicos”, em uma delas, ele
permanece “unitário, sem fissuras, compacto”, e em outra, irreconhecível. A consideração simultânea das duas
possibilidades de leitura é incompatível com o fato histórico de que ele teve um corpo só; há, ainda, uma terceira
possibilidade, em que se integram cientista e humanista. Marx, na pena desses autores, já foi tanto o teórico
objetivista-determinista, como o seu contrário, o libertário-subjetivista. Não há dúvida, afora isso, que o
revolucionário alemão, com a colaboração direta de Friedrich Engels, entre outras coisas, desbravou continentes
teóricos imensos (economia, história e filosofia, por exemplo). Ça va sans dire que consideramos decisivos o
impacto de sua teoria social ao método científico em geral e às discussões filosóficas das ciências da vida. Para
nós, seu legado não deve ser apreendido apenas por meio de “leituras conteudistas”, prescindindo de
historicidade e, portanto, abandonando o materialismo histórico dialético, mas por uma articulação delas com a
conjuntura histórico-política e econômica em que foram produzidas. É sabido que o Mouro não foi acadêmico,
no sentido em que se pensa alguém que viveu à custa da profissão de professor universitário. Então, e, sobretudo,
é preciso nos debruçar sobre sua práxis, para que de fato não coemos mosquitos e nos percamos em miudezas
que interessam apenas à crítica especializada, que vive de fazer críticas especializadas, e não está ocupada com a
transformação do mundo orientada à emancipação humana.
114
Para Vázquez (2010), marxismo é: a) crítica do existente e, particularmente, do capitalismo, dos males sociais
necessários ao funcionamento desse sistema econômico-político; como toda crítica, prescinde de valores desde
os quais ela é feita; b) projeto, ideia, para alguns, utopia de emancipação humana, de uma nova sociedade que
subsista a partir da não exploração do humano pelo humano.

123
criticando quando a finalidade do teórico, ou o seu limite, é a interpretção. Nas palavras de
Vázquez (2010, p. 77), “[...] Como pode advertir-se facilmente, esta Tese 11 consta de duas
partes claramente delimitadas, mas, [...] se bem que não contrapostas: o mundo como objeto
de interpretação e o mundo como objeto de transformação”. A centralidade da transformação
da realidade volta-se à práxis, entendida como atividade que é simultaneamente subjetiva e
objetiva, teórica e prática e que tem prioridade ontológica no método de apreensão do ser
social; pois se a tarefa é transformar o mundo, o “pensamento teoricamente correto” jamais
bastará, ainda que se necessite de teoria revolucionária, invariavelmente, para transformá-
loxvii.

Retomando a questão da ética, Lukács infelizmente não pariu a obra que tanto
prometera nas páginas do Para uma ontologia do Ser Social, e que levaria esse mesmo nome
(Ética). Mas, diversos de seus interlocutores brasileiros deram prosseguimento a seu tentame;
o professor Sérgio Lessa é um deles e foi ele a fonte de nossas definições, em termos
ontológicos, para a categoria ética.

Lessa (2007) aclarando as bases ontológicas fundamentais ao trato da ética, coerentes


com o método materialista histórico-dialético, afirma que a ética é uma “reprodução da
totalidade social e um complexo processo de ‘afastamento das barreiras naturais’, composto
por tendências histórico-universais sintetizadas a partir dos atos singulares dos indivíduos
sempre historicamente determinados” [grifo nosso] (p. 12). Retomemos brevemente alguns
pontos estudados por Lukács (1986/2013).

A apreensão feita pelo materialismo histórico-dialético da ética não está sujeita, caso
se pretenda realizar uma análise ontologicamente imanente das asserções do próprio Marx, e
mesmo de Engels (no Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, publicado pela
primeira vez em 1886), a nenhuma espécie de determinismo, seja de ordem econômica,
política, histórica, cultural etc. O que torna esse pressuposto fulcral é que o fundamento
ontológico último, em que se baseia a totalidade social é o processo de generalização
desencadeado pelo trabalho humano – necessariamente – mediado pela subjetividade no/do
psiquismo humano.

No “trabalho”, a produção de novos conhecimentos e novas habilidades tende não


apenas a se generalizar por todos os membros da sociedade, como também é de seus
desdobramentos imediatos que surgem diferentes empregos para ele mesmo se comparados às

124
necessidades sociais a que originalmente ele respondia. Em outras palavras: “(...) o ato de
trabalho, ao produzir generalizações, articula, pelo fluxo da práxis social, cada ato singular à
processualidade social global. Essa articulação, por sua vez, faz do ato singular uma
singularidade da totalidade social” (LESSA, 2007, p. 13).

A contradição (mediação categórica imprescindível ao método) entre a singularidade e


a universalidade sempre estará presente na vida social (particularidade). Isso significa que a
singularidade (indivíduos, seus atos tomados isoladamente uns dos outros, os momentos
históricos mais específicos etc.) não possui um quantum de existência maior que o da
universalidade, antes, rigorosamente, ambos possuem o mesmo. São componentes distintos,
porém igualmente reais (LESSA, 2007).

A universalidade, tão veementemente criticada pela pós-modernidade, segundo Lessa


(2007, p. 15), “concentra os elementos de continuidade” e o singular “momentos efêmeros,
apenas pontuais, dos processos históricos”. A questão é ressaltar que, a despeito da vontade
ou incapacidade de alguns teóricos em apreender a realidade concreta da genericidade
humana, não há como teorizar sobre a ética adequadamente sem considerá-la como premissa
incontornável, justamente pela íntima relação entre o desenvolvimento na História tanto dela
(genericidade humana) quanto da ética. O que ocorrerá, em alguns casos, é uma concepção
ora explícita ora implícita do que seja essa genericidade.

É preciso discernir o que é próprio da genericidade humana (que não é algo atemporal,
a-histórico, essencialista ou metafísico), e que contém as mais complexas interrelações dos
indivíduos entre si com a totalidade social. Só dessas prerrogativas torna-se possível
apreendermos que a totalidade da genericidade humana conterá nuances que podem não ser
encontradas em todos os indivíduos singulares.

O gênero humano comporta qualidades, processos e categorias ontológicas que não só


se distinguem das que estão presentes no processo de individuação, como, por vezes, sequer
são encontrados em determinados indivíduos considerando-os isoladamente. Ou seja, ele é
“portador de possibilidades e necessidades histórico-sociais que não estão necessariamente
presentes em cada um dos indivíduos que o compõe” (LESSA, 2007, p. 17). A dificuldade de
alguns está em compreender que tais “possibilidades e necessidades genéricas” são
objetiváveis. E mais, quer as consciências singulares tenham ou não “ciência”, em cada
particularidade histórica, elas (possibilidades e necessidades genéricas) interferirão

125
concretamente no desenvolvimento histórico-social. Em síntese, valores universais, ou seja,
do gênero humano, são relações sociais reais que atuam objetivamente sobre a produção e
reprodução da sociedade; não há estudo ontológico possível sobre valores humanos, em nosso
caso, da ética, sem considerá-las.

Retomando e lapidando a dimensão psicológica do nosso estudo, a consciência que se


tem de determinado valor condicionará a qualidade da resposta dada pelo indivíduo, em
determinada situação concreta, às contradições sociais. O que não é o mesmo que dizer que o
indivíduo age eticamente sempre que assim deseje. A árdua tarefa dos materialistas histórico-
dialéticos está em expor qual é a base concreta (subjetivo-objetiva) que serve de horizonte ou
sustentação para as alternativas humanas em cada momento de suas vidas (LESSA, 2007).
Deve-se considerar que transformações na qualidade e no tipo de respostas sejam recorrentes
ao longo da vida de um mesmo indivíduo, tanto quanto elas (qualidade e tipo de agir ético)
sofrem com mudanças oriundas dos valores específicos próprios das sociedades em que ele
vive, das que ocorrem frequentemente na vida cotidiana115. É a base concreta, referida
anteriormente, que possibilita a apreensão de valores como justiça, igualdade, liberdade etc.,
que, por sua vez, são sempre expressões reais, historicamente determinadas das necessidades
genérico-coletivas postas pelo desenvolvimento social.

Amolamos várias vezes argumento do “afastamento das barreiras naturais”, o verter-se


cada vez mais social, do processo de reprodução social, porque é desdobramento dessa
assertiva, à medida que se acentuam os conflitos decorrentes das contradições entre
necessidades das singularidades e da universalidade, que o mundo humano converte-se em
cada vez mais “puramente social”; demandando, a seu turno, cada vez mais a necessidade de
explicitação das mediações que tornam visíveis, em cada particularidade histórica, os valores
da genericidade humana de forma objetiva. Esse é o solo ontológico da gênese e
desenvolvimento de complexos sociais como: tradição, moral, costumes, direito e, finalmente,
ética.

Podemos agora ajustar alguns ponteiros corretamente, no que se refere à relação


psicologia e ética. O problema das escolhas éticas não está exclusivamente relacionado à
singularidade de uma subjetividade, considerando-a isoladamente, antes, refere-se, em cada
particularidade histórica, a optar, ora intencionado pela consciência ora não, por corresponder

115
Não omitamos o amplo e distinto papel das emoções no agir ético; quando trouxermos Martín-Baró à baila
pretendemos expor concretamente o que estamos afirmando.
126
ou não às necessidades da genericidade humana, dessas próprias particularidades históricas,
ou aos interesses das singularidades.

Postulamos, assim, que a escolha, vertida em termos lukacsianos, de qual necessidade


ou qual possibilidade corresponde melhor ao interesse do indivíduo ou da genericidade
humana, está longe de ser uma decisão rigorosamente autônoma, a despeito de ser feita pelos
indivíduos e dela aparecer na consciência daquele que escolhe como fenômeno do puro
subjetivismo, como uma escolha pessoal; pelo contrário, elas estão sempre atreladas às opções
dadas a uma determinada classe social ou individualidade, em comparação com as
possibilidades e necessidades reais em cada tempo. O fundamento da gênese dos valores está
na comparação entre essas necessidades, em última análise, como vimos em Lukács
(1986/2013), na relação entre valor de uso e valor de troca. Logo:

A moral e a ética, [...], possuem, portanto, o mesmo solo genético, emergem da


mesma necessidade da reprodução social: tanto do ponto de vista dos atos singulares
como do ponto de vista da reprodução da totalidade social, surgem e se desenvolvem
para atender à necessidade de explicitação consciente da contradição entre o
indivíduo e a sociedade (LESSA, 2007, p.22).
Ele insiste sobre a ética:

[...] no conjunto dos complexos valorativos [a ética] se diferencia porque atende à


necessidade social de explicitação do conflito entre o universal e o singular pela
superação da relação dicotômica entre indivíduo e sociedade. A ética é aquele
complexo valorativo objetivado em relações sociais que desdobram, cotidianamente,
uma relação não antinômica entre o indivíduo e o gênero (LESSA, 2007, p. 23).

A ética para a ontologia não será um conjunto de preceitos teóricos, mas uma
categoria da totalidade social, que se dá em meio às relações sociais e que possui uma
qualidade peculiar: a de superar a antinomia indivíduo/gênero. Tratá-la-emos como complexo
valorativo que expressa relações sociais objetivas, o que pode nos levar à aterradora
conclusão que nem sempre sua prática social é historicamente facilitada, principalmente,
quando todos os processos de socialização são mediados pelo modo de produção e reprodução
da vida no capitalismo “avançado”.

O desenvolvimento das forças produtivas provocou de tal forma o retraimento das


barreiras naturais que, pela primeira vez (depois da “Era das Revoluções” modernas), a tarefa
de construir a história foi posta em situação qualitativamente distinta. Esse reconhecimento de
senhorio (relativo a determinadas condições materiais, históricas e sociais) foi contraposto
pelo florescente processo de reificação e fetichização dessas mesmas relações sociais. Sob a
127
égide do capitalismo reina a mais atroz antinomia entre indivíduo e sociedade: o
individualismo burguês (LESSA, 2007). Ainda segundo o autor, “o individualismo é uma
“determinação da existência” da sociedade burguesa. Corresponde à qualidade predominante
nas relações sociais. A consciência pôde, ao “refletir” a realidade, elaborar os preceitos
teóricos do individualismo porque este corresponde à vida social objetivamente existente”
(LESSA, 2007, p. 26).

A própria apreensão da ética e da atividade ética na contemporaneidade está mediada e


condicionada por esse processo social de individuação (burguesa). Uma análise ontológica
dela não pode abnegar-se de apreendê-la no seio da forma em se que encontram as relações
sociais (antinomia indivíduo X sociedade) no capitalismo; stricto sensu, a classe burguesa
desfavorece a ética. Pois não há ética exequível quando a sociabilidade possui na mercadoria
“sua forma elementar116”.

Um dos principais dotes do capitalismo, fundamentalmente após a Revolução


Burguesa, na França de 1789, é a elevação das relações sócio-genéricas à condição de abarcar
a totalidade da humanidade; a partir dela, todo e qualquer indivíduo é incluso efetivamente na
categoria gênero humano; ainda que e, principalmente, a despeito da forma perversa com que
ele (capitalismo) efetiva essa inclusão (SAWAIA, 2001).

Deste arranjo teórico, taxa-se que ética, desde o materialismo histórico-dialético, é


inconcebível como conjunto de valores estáticos e a-históricos, mas só, e apenas, como
função social, como práxis, que em determinadas circunstâncias históricas, atenderá ou não
pelo conjunto de valores históricos reais que expressam uma já existente relação não-
antinômica do indivíduo com seu gênero (LESSA, 2007).

Oportunamente, averiguamos a sociedade burguesa como a primeira “socialmente


pura”, no sentido de ser desvencilhada dos entraves naturais limitantes do seu pleno
desenvolvimento (o surgimento da máquina exemplifica nosso argumento). Foi nela que a
humanidade se percebe fazedora de sua história, em vez de recebê-la como fatalidade ou

116
Um caso elucidativo exposto por Lessa (2007), tomado do tomo II da magna opus de Lukács, é o da diferença
entre a “possibilidade ética” na sociedade grega e no capitalismo. A riqueza dos gregos dependia,
consideravelmente, do esforço coletivo para a expansão militar. Havia uma relação ontológica (de necessidade)
entre poder e ética. Atenas só poderia defender a propriedade privada de seus cidadãos se, por outro lado, eles
fossem capazes de colocar os interesses genéricos da classe dominante acima dos particulares de cada indivíduo.
Por isso Aristóteles “não mentiu” quando afirmou que o gênero humano era composto apenas pela classe dos
senhores de escravos. Sua produção teórica é sintoma das condições objetivas de sua própria existência, pois só
os senhores de escravos eram livres para proteger a Pólis ou não, logo, dotados da possibilidade de ação ética.
128
imposição implacável de potências transcendentes. O que ainda não demarcamos é que do
processo de revoluções burguesas eclode outra importante e célebre acepção para uma velha
conhecida dos gregos: a democracia ou, precisamente, para a burguesia, a explicitação
racionalizante da justificativa sobre a ordenação da luta de todos contra todos (LESSA, 2007).
Pois, se o mercado é o ringue da concorrência econômica, a democracia é o da disputa
política, na concepção liberal burguesa. O próximo trecho desta tese glosou justamente sobre
a Política e alguma de suas formas históricas.

Para iniciarmos as considerações finais, Lessa fere outro ponto interessante:

Para a discussão acerca da relação entre ética e vida cotidiana, o importante é que,
na sociedade burguesa, mesmo ali onde a democracia liberal tenha se desenvolvido
plenamente, o desenvolvimento da individualidade se desdobra em duas esferas,
uma genérica, na qual o indivíduo se concebe enquanto cidadão e que corresponde
ao momento público da sua existência, e outra privada, na qual o indivíduo submete
as suas relações com o gênero aos interesses imediatos da acumulação privada que o
realiza enquanto indivíduo burguês (LESSA, 2007, p. 75).
As duas esferas demarcadas pelo autor atestam outra contradição: o burguês deseja (e
precisa) que as leis sociais (função do direito positivo, ou burguês) sejam obedecidas e
respeitadas por todos; sem essas leis seu “mundo” não existiria [mundo da política].
Entretanto, pari passu, ele age de forma a sempre procurar ocasião para transgredir essas
mesmas leis, cavando brechas nos códigos legislativos para obter vantagens pessoais.

As formas super-impostas de relacionamento interpessoal na sociabilidade capitalista


tornam-se tão inquestionáveis quanto a lei da gravidade, isto é, elas são retratadas
fenomenicamente como determinações não-humanas, ou pior, da essência última e inalterável
das capacidades e dos modos de sociabilidade do ser social (o egoísmo é elevado à condição
de essência humana, por exemplo). Contrariando isso, cremos que o novo humano,
autenticamente humano em-si e para-si, direciona-se à superação do capital também por
mediações da ética.

De discussão marginal, ela passa a ser um dos vórtices, e alcança protagonismo (mas
não exclusivo) na tarefa de superar “a lógica do capitalismo”, exatamente por ser crucial na
superação da atual dicotomia indivíduo-sociedade. Quando vai ao palco do debate, verte-se
em um dos elementos centrais da individualidade, disso resulta que ser indivíduo e membro
do gênero humano não devem compor dois polos antinômicos, mas momentos de um mesmo
ser: a individualidade como partícipe de um gênero elevado ao seu ser-para-si (LESSA,
2007).

129
Resumindo, valores e processos valorativos se dão no plano do ser social, desde que o
desenvolvimento social, no seu desdobramento real, crie a possibilidade objetiva de isto vir à
vida. Do elo entre necessidades e possibilidades objetivas é que se originam todos os
complexos valorativos. Só agora fincamos, sem receio, outra preciosa asserção: valores são,
portanto, objetivos e subjetivos. Não existem em-si, na causalidade externa à consciência;
todavia, não são, também, meras criações da subjetividade. Os complexos valorativos
desempenham função ontológica que os diferencia da ciência, da arte, do trabalho etc., eles
servem para dotar de valor possibilidades e necessidades existentes nas situações sociais
concretas e postas pelo desenvolvimento humano (LUKÁCS, 1986/2013). Ainda sobre isso:

A conexão do indivíduo com o gênero, possibilitada pelo capital, é aquela centrada


na propriedade privada, portanto uma relação que toma o indivíduo como medida de
todas as coisas, no indivíduo, não na totalidade do seu ser, mas apenas o seu caráter
de proprietário privado. A relação com o gênero tipicamente ética é aquela que
supera toda e qualquer antinomia com a elevação da particularidade do indivíduo à
sua dimensão genérica. O capital fixa a substância do indivíduo na particularidade
de proprietário privado; a ética eleva a substância do indivíduo à dimensão da
individualidade para-si, o que Lukács denominou de “autêntica individualidade”.
(COSTA apud LESSA, 2007, p. 107).
Para encerramos: se, para cientistas da Psicologia concreta, qualquer atividade
consciente envolve, necessariamente, um momento de escolha entre alternativas concretas e
necessidades postas pela relação do indivíduo consigo mesmo, com os processos grupais aos
quais pertence e com a natureza, cabe aqui uma definição mais detalhada “dessa tal liberdade”
como categoria social.

O exercício da liberdade – também compreendido como fenômeno social e momento


fundante na transformação da relação natureza-sociedade pelo trabalho - será para nós sempre
uma potência da consciência (mediada pela razão e pelas emoções) que só se efetiva na/pela
práxis. É forçoso ter claro que ela representa “um determinado campo de ação das decisões
alternativas no interior de um complexo social concreto no qual se fazem operantes,
simultaneamente a ele, objetividade e forças que sejam naturais ou sociais” (LUKÁCS, apud
LESSA, 2007, p. 86).

Nos termos próprios do filósofo húngaro, estabelecem-se nela relações entre posições
teleológicas primárias (aquelas que operam o processo “humano-natureza”) e as secundárias
(que têm por finalidade de sua ação a alteração das relações sociais, consciência-consciência).
A existência e mesmo a análise das mediações (escolhas) em cada pôr teleológico é um
campo de estudos psicológicos pouco explorado. Para Engels:

130
A liberdade não consiste em sonhar a independência das leis da natureza, mas no
conhecimento destas leis e na possibilidade, ligada a este conhecimento, de fazê-las
atuar segundo um fim determinado. Isto vale tanto para as leis da natureza externa,
como para as que regulam a existência física e espiritual do próprio homem [...].
Liberdade do querer não significa outra coisa, portanto, senão capacidade de poder
decidir com conhecimento de causa (ENGELS, apud LESSA, 2007, p. 85).
Essa citação nos é familiar, contudo, acompanhamos Lukács (1986/2013) quando ele
aponta a insuficiência da proposição de Engels. A liberdade como “ação com conhecimento
de causa” tem plena validade apenas na esfera do trabalho. O fenômeno social da liberdade,
como se pode imaginar, é multiforme, multifacetado, variado e instável do ser social. Quando
enfocamos esferas institucionalizadas da vida cotidiana (direito, política, arte etc.), lembramos
que elas, na condição de “setores singulares relativamente desenvolvidos”, produzem sua
própria liberdade. Há grandíssimas diferenças entre a liberdade jurídica e a econômica, a
política etc.

Sabedores de que não exaurirmos o tema117, avançamos para outra categoria altamente
complexa do ser social: a Política.

2.2.2 Elementos básicos da Política

Após explanarmos minimamente a problemática que encobre a parte “ética” da


expressão “projeto ético-político”, faz-se necessário enfrentarmos o outro lado do hífen, o
político. Com as dificuldades peculiares de um campo de estudo das ciências humanas, na
Política, consensos teóricos são raros; o de que ela está relacionada com poder, sem embargo,
não é um deles. As infindas relações possíveis, as direções que servem de norte para seu
exercício, mesmo o uso da violência ou a manutenção “democrática” dessas relações de poder
variam historicamente.

A política constitui-se não só das relações sociais que ocorrem no interior da


“instituição das Instituições”, o Estado moderno (acepção bastante comum e descuidada da
categoria). Vê-se, com Lukács (1986/2013), que essa esfera é componente da vida cotidiana,
dos movimentos populares, das Comunidades Eclesiais de Base, das questões étnicas, por
exemplo, e permeia até mesmo uma empresa ou uma família. Com muitas definições
possíveis para a categoria política, cientistas e leigos concordam que ela é onipresente nas

117
Nem se quer cotejamos as truncadas relações entre o “agir ético” e os afetos/emoções, por exemplo.
131
relações sociais, de forma tão acintosa que mesmo o uso despretensioso da palavra possui
acepções distintas, “seja mais político” é diferente de “seja mais politizado”.

Fora do campo das instituições legitimadas pelo Estado, a política engendra


significados qualitativamente mais complexos e, propriamente, nessa direção, mais humanos,
na mesma medida em que ainda imprecisos e vagos. A contradição que se vive em nossa
república federativa, neste início de século, serve de exemplo. Ao tempo em que a intervenção
do Estado no cotidiano dos brasileiros é nítida, ou seja, há interferência direta na organização
do trabalho e na socialidade dos indivíduos, há um ocultamento aos
eleitores/cidadãos/trabalhadores da potência de suas ações políticas. A nós é atribuído o
“poder de votar” em um representante político que decida sobre o futuro econômico do Brasil,
mas não nos é dado decidir entre a necessidade ou não do Estado burguês.

Sem perder, no mar de complexidades da Política, nosso objeto de estudo e, antes de


chegarmos à definição de projeto político, delimitaremos a acepção que daremos à categoria a
partir do materialismo histórico-dialético, uma vez que muitos e distintos estudos podem ser
feitos a partir dela. Enfatizamos, de início, quão importante é diferenciar que o Estado é uma
forma de organização política, e não a forma política. Voltaremos à questão adiante.

Quando patenteamos um “projeto político” para a Psicologia de Martín-Baró, o


concebemos dentro do modo de produção econômico-político hegemônico118 em que ele foi
concebido, o capitalista; dessa maneira, carecemos de apreensão panorâmica de sua gênese
histórica, de suas aspirações e de sua práxis dentro desses circunstanciais limites históricos,
caso contrário, confabularíamos uma ficção científica. Temos por certo que um projeto deste
tipo poderia dialogar com aspectos da política institucionalizada (construção de políticas
públicas, por exemplo), porém nosso afã, nesse primeiro momento, será o de situá-lo dentro
de uma acepção ampla do termo política, sentido que propriamente se refere aos modos
sociais de organização e mobilização que visam objetivos coletivos, no nosso caso, o de uma
classe, a dos trabalhadores.

Não nos precipitamos, também, em estabelecer vínculos entre esse projeto e um


determinado agente político, um partido, por exemplo, não obstante, a importância destes
últimos na existência das sociedades modernas; ansiamos, principalmente, desvinculá-lo (o

118
A categoria hegemonia foi especialmente elaborada pelo comunista Antônio Gramsci.

132
projeto de Martín-Baró) de uma disputa pelo governo, ainda que dentro do campo das “várias
psicologias”. Entrementes, aquele “projeto” será compreendido como um conjunto de
orientações ético-profissionais para atividades políticas dos envolvidos com a Psicologia.

Nosso foco convergiu, inevitavelmente, não apenas aos aspectos políticos por
excelência (transformações das condições objetivas), mas também aos subjetivos, aos de
como um indivíduo se engaja, por meio da práxis, ao processo de tomada de consciência e a
processos grupais que transformam as condições reais da vida de sua sociedade. Nessa
orientação, Martín-Baró confeccionou uma série de pesquisas que demonstram a pertinência
da ciência psicológica nesse entrave. Estudos sobre “fatalismo e a indulgência latina”
(MARTÍN-BARÓ, 1987c), religiosidade da ordem (MARTÍN-BARÓ, 1987b) e Machismo
(MARTÍN-BARÓ, 1987d) são exemplos de formas subjetivas, fenômenos sociais, não menos
reais ou eficientes para consolidar uma forma política particular que beneficia uma
determinada classe social.

Entendemos que a atividade política está sempre em movimento e ininterrupto


relacionamento com as práxis individuais e coletivas, está aberta a novas transformações. A
crise da “política oficial” gerou, principalmente no ocidente, por exemplo, uma
“desmoralização” das atividades políticas em geral; todavia, existem fora das arenas
institucionais atividades dessa estirpe que demonstram a vivacidade e efetividade das ações
políticas diretas (e indiretas)119.

Destoando do que orquestramos com a ética, esboçaremos uma breve digressão sobre
a gênese da política tal como a conhecemos (vimos isso indiretamente ao partirmos dos
desdobramentos e complexificações das relações dos seres sociais entre si e com a natureza, e
aqui desemaranharemos apenas alguns fios úteis ao restante do trabalho); a existência de um
sem número de autores “centrais” para essa discussão fez-nos escolher caminhos ainda mais
sucintos, diferente do que propomos para a ética.

119
Sem discutir méritos do que ficou conhecido como a “primavera árabe” (ou inverno), no ano de 2011, o
“mundo ocidental” foi sacudido por fortes solavancos, pela força e pela capacidade de mobilização de uma ação
política coletiva, ainda que aparentemente descoordenada, em proporções que analistas diziam ser improváveis
de revermos. A complexidade da atuação política no século 20 e início do 21 requer que qualquer análise da
conjuntura política, portanto não se apequene ao estudo da “política oficial”, vinculada ao Estado, ou mesmo a
partidos. Um dos estrados da exposição das determinações reais da categoria política no capitalismo é articular a
função dos chamados movimentos sociais e de “políticas de base” que se tornaram, nas últimas quadras
históricas, “agentes políticos” de peso, principalmente, em nosso caso, em relação aos movimentos populares
que foram tão significativos para a construção da Psicologia na América Latina.

133
O passado da Política

O lastro grego no mundo cultural ocidental é ineliminável, tirante que o descrevamos


como escravocrata e assumamos que Platão tenha “censurado” as belas artes em prol da pólis;
ainda assim e, contraditoriamente, deve-se considerá-la (Grécia) estandarte da democracia, o
berço onde a política pôde ser exercida de modo peculiar.

Correndo o risco de minorar injustamente a relevância das “nações” africanas,


asiáticas e americanas, concordamos com Maar (2013), que na Grécia, discrepando de outras
“grandes civilizações”, a atividade política era o próprio cimento da pólis, da própria vida
social, e foi lá que elementos como a Cidade, o coletivo dessa pólis, o discurso, a cidadania, a
soberania e a lei medraram e foram alvejados por inúmeras reflexões120.

Platão e Aristóteles, curiosamente contrários à forma democrática de governo,


esclarecem a questão. Platão apontava: o político não se diferencia dos demais indivíduos por
nenhuma qualidade, como o é a força, a não ser por conhecer melhor os fins da pólis,
oferecendo, assim, uma luz capaz de guiar os entrevados nas sombras da caverna. Já
Aristóteles (apud MAAR, 2013, p. 37), em Ética a Nicômaco, proclamou:

“...a política utiliza-se de todas as outras ciências e, todas elas perseguem um


determinado bem, o fim que ela persegue pode englobar todos os outros fins, a ponto
de este fim ser o bem supremo dos homens. [...] Essa forma de entender a atividade
política como uma experiência que se reflete na vida pessoal, harmonizando-a com o
coletivo, faz da política grega uma ética, um referencial para o comportamento
individual em face do coletivo social, da multiplicidade da pólis”.
Há que se considerar as particularidades do caso grego. Sendo ética, a atividade
política teria função pedagógica de transformação dos indivíduos em cidadãos: a Paideia.
Surgiria daí um espaço de participação coletiva que se amplia para a prática da soberania
exercida pelos cidadãos (MAAR, 2013).

Se ao dissertar sobre ética optamos por ocultar a relevância dos romanos (Sêneca e
outros), quanto à política isso é impossível. A diferença entre Grécia e Roma, para o

120
Sabemos que não é plenamente justificável começar pela Grécia, para falar das complexidades da Política,
sem sequer considerar o que ocorria em outros continentes; vale, nesse caso, recorrermos a Negri & Hardt (2009)
que, mesmo narrando sobre fatos ocorridos muitos anos depois do apogeu helênico, e já dissertando sobre os
refluxos dos processos colonizadores das Américas, ressaltam que a forma de organização social de alguns dos
povos originários norte-americanos configurou o “federalismo” do governo dos Estados Unidos da América, por
exemplo. Não temos informações precisas sobre estudos da gênese histórica daquelas organizações, mas cremos
não ser seguro eliminá-las como “inferiores”, antes de as conhecermos melhor.
134
historiador alemão Theodor Mommsen (1817-1903), era que os romanos usavam sobrenomes
(Gracos, Antoninos etc.) que eram de suas famílias ou clãs na Política. Lá, ao contrário dos
gregos, a política era voltada para objetivos manifestamente particulares. Em Roma, palavras
tão comuns aos nossos ouvidos ganham a conotação que lhes fazem conhecidas, por exemplo,
o vocábulo “pátria” que revela sua origem familiar, a partir (do latim) pater, famílias (MAAR,
2013). Segundo o mesmo autor:

O estado romano é o tutor dos interesses dos patrícios, impondo os objetivos desses
aos demais. A atividade política além desta dominação exercida pelo Estado, diria
respeito à relação entre tutor e pupilos, e seria efetuada mediante um instrumento: o
direito romano. Por essa garantia a não interferência do Estado na propriedade
privada, nos interesses patrícios, a não ingerência do público, coletivo, no particular
(MAAR, 2013, p. 39).
O estado moderno tem seu germe na Cidade das Sete Colinas. Há ali imposição de
interesses particulares e setoriais ao conjunto societário. Diferente da Atenas, ela não era uma
pólis, antes se constituía no jogo de poder entre tutores e pupilos – militares, burocratas e
burguesia –, e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. Atividade política, que
para os helênicos era gerência de interesses coletivos dos cidadãos, para os romanos centrava-
se na disputa pelo poder de tutela do Estado, visto como mediador entre interesses privados
(MAAR, 2013). A política institucionaliza-se com autonomia distinta da grega, de certa forma
paralela à atividade social, mas ainda correlata a seu modo de produção121.

Na Idade Média, a atividade política demandou novas concepções intelectivas acerca


da função do Estado, uma que fosse capaz de abrangê-lo tanto como dominador “natural”
quanto eficaz dirigente. Um novo agente político torna-se imprescindível, o príncipe,
protagonista do clássico de Maquiavel (1469-1527). Para o florentino, a política alcança
maturidade quando separa o Estado do Governo, este último seria agente da atividade política
de um Estado (MAAR, 2013).

121
O sardo Antônio Gramsci (1891-1937), ao analisar o declínio daquele grande império, mostra que sua ruina
se deu por forças “fora” de seu alcance, os “povos bárbaros” (a discussão historiográfica contemporânea tem
revisto esse tema, mas em todo caso não se inviabiliza a conclusão do italiano) responsáveis por sua queda, não
eram propriamente o que chamaríamos de “adeptos da via institucional”, do “debate parlamentar”. De acordo
com Maar (2013), o expansionismo do império baseado na subjugação dos vencidos, abria espaço ao
desenvolvimento de formas de participação fora do plano institucional do estado romano. Algumas dessas
brechas seriam cobertas pela difusão da atividade religiosa cristã (que também não tardaria em adquirir
significado político, aliando interesses cotidianos e objetivos públicos, institucionalizando-se ao lado do Estado,
na forma da Igreja Católica). Maar (2013, p. 42) crava: “[...] durante a Idade Média, a atividade política, se
apresentaria nesta duplicidade de “poder político” – exercido pela nobreza – e de “poder civil” exercido pelo
clero religioso. Configurar-se-iam duas funções específicas: a da dominação, pela força, e a da direção, pela
persuasão ou convencimento”.
135
Nicolau Maquiavel, em linhas gerais, faz da política a arte do possível, tornando-a
virtualmente acessível a qualquer um que possuísse “virtude” para tanto. Nessa trilha, um
príncipe precisaria ser virtuoso, e ela (virtude) se adquire; conquanto, isso não se relaciona
imediatamente a algo bom ou mau; o governante é virtuoso quando executa com eficiência
sua função política, seja por meio da corrupção, do crime ou da coerção militar. A proposta
maquiavélica é a representação conceitual dos anseios de aquisição de influência por parte da
burguesia mercantil, que então era desprivilegiada na/pela estrutura monárquica. Foi com o
arauto do liberalismo, o inglês John Locke, principal teórico da Revolução inglesa, que a
teoria política conseguiu conciliar interesses burgueses sem destituir a forma do Estado
Monárquico (MAAR, 2013).

Cerca de trezentos anos depois, lemos que, se em Maquiavel a questão migra do


governo para o Estado, com Marx passa-se do Estado para as classes, mais propriamente para
a peleja classista. A inovação marxiana foi atribuir às classes significado político sem
transformá-las em “classes políticas”, ou seja, classes que suportassem a atividade política
dentro do Estado; sua originalidade residiu em levar a atividade política ao plano social, à
sociedade (MAAR, 2013). Além disso, ele apreende teoricamente as classes como formas
sociais da realidade concreta.

Para Karl Marx, a política é também o “espaço” da luta de classes. Se a preocupação


de Maquiavel era como governados tornam-se príncipes, para o Mouro impera a de como a
classe dos explorados libertará todas as outras. A política considerava, portanto, basicamente
três elementos: lógica do capital, luta de classes e força de trabalho.

Há uma numerosa variedade de formações políticas “legalizadas” pelo direito burguês


nos países capitalistas; a democracia é uma delas, mas é só – com pesar – lembrarmo-nos das
ditaduras latino-americanas, do final do século passado, ou da fresca guerra na Síria, para
repararmos na coexistência harmônica entre capitalismo e formas de socializações
extremamente violentas, tanto subjetivas quanto objetivamente destruidoras (não excluamos,
nessa direção, por conveniência, as atrocidades cometidas em nome do socialismo stalinista).

Até mesmo entre os ditos “teóricos de esquerda”, há aqueles que amenizam os avanços
de Marx & Engles no campo da ciência política, se não os desprezando, anuindo que pouco
ou nada auxiliam a discussão contemporânea sobre a necessária superação do capitalismo no

136
século 21. Discordamos dessas sentenças, sem, com isso, julgar razoável apreendermos a
totalidade da dinâmica política do século 21 lendo exclusivamente textos marxianos clássicos.

Ao afirmar o método teórico-crítico do materialismo histórico-dialético como


instrumento de apreensão da realidade, não se quer dizer que, por meio dele, seja possível
resolver, por exemplo, um debate entre dois diplomatas representando nações que disputam
mercado consumidor. Dentro da esquerda sabemos que as divergências não são pequenas
quando o assunto é teoria ou modos de organização política para a luta, o que ninguém duvida
é que o capitalismo é incapaz de gerir uma sociedade que subsista sem exploração da força de
trabalho.

As elementares questões elencadas até agora, sobre a categoria política, serviram


apenas para situarmos em que aspecto, ou em quais aspectos, a Psicologia, como campo
científico e profissional, se insere como prática profissional e aparato tecnológico-intelectual
dentro de uma sociedade regida pelo estado burguês. Não perdemos por reiterar que sua
própria existência é expressão histórico-intelectual dos interesses do desenvolvimento desse
mesmo Estado.

À moda de síntese: a política é, sobretudo, atividade social transformadora da


realidade histórica dos seres humanos. O Estado e seu agente, o governo, são objetos
principais da disputa de todas as orientações políticas, de todos os partidos, incluindo as
oposições e a situação, sendo que esta última, por sua vez, tem como meta principal manter-se
onde está: governando. Sendo assim, o setor político é composto, principalmente, da
administração pública, do Judiciário (e o conjunto de suas leis), da censura, da polícia e das
forças armadas. Na sociedade civil encontramos: partidos políticos, meios de comunicação,
escolas, empresas, sindicatos, associações, movimentos sociais, igrejas etc. (MAAR, 2013).

É por meio da organização política que seus agentes constituem/configuram as


particularidades dos vários processos grupais espalhados pelo globo; sua mobilização
desenvolve interesses sociais específicos. Notemos, contudo, que a finalidade última da
política institucionaliza, da perspectiva do Estado, é a imposição de uma estrutura econômica.

Na política estamos no campo do “possível, mas não necessário”, no plano de


incertezas componentes e imanentes da passagem de interesses sociais às objetivações

137
políticas concretas. Logo, a necessidade (e dificuldade) da ciência política122 está na “não
existência de determinações materiais e sociais exclusivas [determinantes imediatas], do
mesmo jeito que uma guerra não se decide só pelo número de soldados e mísseis” (MAAR,
2013, p. 72).

Além dos partidos políticos, outras instituições na sociedade civil mostram força –
uma das mais importantes para o ocidente é a Igreja –, ao lado dos sindicatos, das associações,
dos organismos comunitários e dos movimentos sociais em geral; esses últimos não têm como
objetivo a gerência do Estado ou a ocupação do Governo (MAAR, 2013).

Vimos como o enlace da Igreja Católica com a vida de Martín-Baró foi vital para sua
práxis; ele só teve acesso a algumas comunidades insurgentes, por exemplo, por ser pároco
jesuíta. A religião foi (e ainda é) um complexo que mesmo as ditaduras latino-americanas
precisaram contornar com cuidado para manter seus desmandos, afinal o continente foi
assaltado ao som de balas e de missas.

Com Vigotski (1934/2009), acrescentamos outro fator relevante para apreender o


complexo social da Política: os nexos concretos entre ela e a cultura. Isso quer dizer (mesmo
etimologicamente, rememoremos, “cultura” deriva do latim “colere”, cultivar a terra) que a
opomos a algo “natural”. São truncadas as interrelações entre objetivos políticos concretos e
valores culturais hegemônicos123.

Para enfeixar as alusões sobre os “nós” da cultura com a política, cremos que
compartilhar uma emblemática vivência e algumas reflexões críticas ante a exposição Todo
poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras124, realizada no SESC (Serviço Social
do Comércio) Pinheiros, em São Paulo125 arremate nosso argumento.

122
Não passemos ao largo da posição famosa do jovem Marx que, já na Introdução à Crítica a Filosofia de
Direito do Hegel (1843-1844), versava sobre a “ontonegatividade da politicidade”; em linhas gerais, da
incapacidade da solução das contradições do Estado burguês exclusivamente pela via política.
123
Na Revolução Francesa do século 19, por exemplo, umas das primeiras reações da aristocracia, alijada de seu
poder, foi tachar a burguesia, classe ascendente, de “inculta”; nas Revoluções Socialistas do século 20, o
proletariado teria sido rotulado rude, desprovido de cultura, sem condições de assumir a responsabilidade da
direção política da “civilização ocidental”. Em certo sentido, política e cultura estão intimamente relacionadas,
pois toda concepção política tem enraizamento cultural. No dissertar de Maar (2013), “uma determinada cultura
se institucionaliza apoiada no poder político, e se apresenta como civilização”. Os valores específicos de uma
parcela da sociedade no capitalismo, reproduzidos culturalmente, apresentam-se como valores universais.
124
A exposição teve curadoria do La Silueta, coletivo colombiano responsável pela direção artística, design e
ilustração do The Black Panther, jornal do Partido dos Panteras Negras.
125
Entre oito de março e quatro de junho de 2017.
138
Ao percorrer os corredores da exibição, saltou-nos à vista a perspicácia e o sofisticado
modo com que os membros do Partido dos Panteras Negras se apropriaram e utilizaram
diversos elementos culturais (nos referimos à dimensão estética) para compor sua identidade
política. As diversas fotos do jornalista estadunidense Stephen Shames retrataram, por
distintos ângulos, como as vestimentas, a postura corporal e, por fim, o penteado, que dali
para frente se eternizaria com o nome “BLACK POWER”, foram estruturas reais,
componentes concretos, sem os quais um estudo daquele partido político, e mesmo a
consolidação daquele processo grupal, seriam incompletos. A primeira geração de Panteras,
intuitivamente ou não, empregaram com maestria as potências da dimensão cultural para a
difusão de seus ideários políticos. Mesmo em uma superficial análise, não há como negar que
suas reflexões sobre a estética foram vitais à redefinição de suas identidades coletivas; o
“uniforme” dos Panteras, composto por boinas, calças boca de sino, coletes coloridos etc., fez
com que o movimento rompesse diversas barreiras e se convertesse em referência estética da
multiforme beleza humana. Contraditoriamente, e ainda no que se refere à moda, vê-se aí,
com detalhes, como o capitalismo é eficiente em cooptar tudo o que se achega a ele; como
uma espécie de Midas, tudo o que ele toca se converte em mercadoria126.

Recapitulando e concluindo, a cultura cumpre função política delicada e é tanto mais


difícil teorizar sobre isso quanto mais ela apresenta interesses particulares como objetivos
políticos gerais. Do mesmo modo que se pode falar de um papel político para a cultura, cabe
mencionar uma função cultural da política127 (MAAR, 2013).

Com esta exposição procuramos dar concreticidade para a categoria ética e política
apresentando de modo breve as determinações sócio-históricas e político-econômicas que as
compõe. Quando do capítulo específico em a que proposta de Martín-Baró for criticada,
retomaremos esses apontamentos de modo mais orgânico aos objetivos desta tese.

126
Além da legitimação ideológica para propostas políticas, a cultura ainda tem função instrumental importante,
a de meio organizador. Essa dimensão foi perscrutada por Antonio Gramsci que depreendeu que, na Itália, país
com participação política limitada no cenário europeu e mundial, a organização era feita por meio de
organizações culturais, por jornais, pela Igreja etc. A escola, por exemplo, seria peça importante no jogo político,
pois ela não apenas teria função de reproduzir a cultura ideológica dominante, de legitimação institucional, mas,
também, a de organizar a participação estudantil na sociedade.
127
De Marx, guardamos duas coisas: 1º) a cultura, para realizar de fato os valores que constituem a experiência
humana, exige a elaboração de uma proposta política; 2º) a atividade política convoca um objetivo cultural, de
realização de valores éticos, de concretização de uma “visão de mundo” (MAAR, 2013, p. 115).
139
3. “PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO”: CONVERGINDO À SUA
GÊNESE HISTÓRICA

A partir deste momento o foco principal foi, a partir de pesquisas (artigos, livros,
entrevistas etc.) contemporâneas à feitura desta tese, concretizar uma espécie de revisão
crítico-expositiva das principais características do legado de Martín-Baró de acordo com seus
interlocutores; não julgamos interessante iniciar direto pela crítica à obra de Martín-Baró, pois
cremos que nossa dissertação (PEREIRA, 2013) já cumpriu o papel de “abre-alas”. Em outras
palavras, ao percorrer os textos, principalmente os de língua espanhola e inglesa, revisitamos
como efetivamente os desdobramentos de seu projeto para a Psicologia vingou nas atividades
práticas e acadêmicas dos profissionais que se mantiveram próximos ao seu projeto.

Como nossa meta foi, além de propor apontamentos critícos, difundir essa temática,
sempre que possível optamos por manter citações diretas nas línguas originais de publicação.
A intenção foi relatar como diversos pontos são tratados com unanimidade e outros, delicados
e fundamentais, estão cobertos por controvérsias.

Esclareceraçamos, antes de prosseguirmos, o critério utilizado para elencar os


interlocutores, sabendo que atualmente eles são muitos: terem relação direta ou indireta com a
organização dos Congressos Internacionais da Psicologia da Libertação. Após essa primeira
seleção, e partindo das respectivas obras, buscamos as referências intertexutuais desses
autores.

Desta feita, o capítulo detalha principalmente a produção dos seguintes autores:


Christopher C. Soon (australiano), Martiza Montero (venezuelana), Jorge Mario Flores Osorio
(mexicano), Bernardo Jiménez-Domínguez (argentino), Mark Burton e Carolyn Kagan
(ingleses), José Joel Vázquez Ortega (mexicano), O coletivo peruano Inti-nãn, Walter Cornejo
Báez (peruano), Edgar Barreto Cuellar (colombiano) e Ignacio Dobles Oropeza
(costarriquenho). Nossa empresa partiu dos debatores mais heterodoxos (em alguns
momentos, por questões de fluidez textual, isso não foi possível), e foi até os que mais
mantiveram vivos alguns aspectos emblemáticos daquela proposta para a Psicologia em seus
respectivos escritos.

140
3.1 Para uma crítica da produção de alguns interlocutores da “psicologia da
libertação”

Anunciamos antes das análises críticas, os títulos dos livros/capítulos artigos


trabalhados na intenção de facilitar a compreensão.

Psychology of Liberation, theory and applications – Montero & Sonn (2009)

Para não nos acusarem de atirarmos em mosquitos com bala de canhão, já alertamos
que exporemos progressivamente nossas divergências a esses interlocutores. E já na página de
abertura da obra em tela, pode-se encontrar um trecho precioso sobre o que os autores pensam
acerda de um dos horizontes de atuação proposto por Martín-Baró à Psicologia:

Liberation is a process entailing a social rupture in the sense of transforming both


conditions of inequality and oppression and the institutions and practices producing
them. It has a collective nature, but its effects also transform the individuals
participating, who, while carrying out material changes, are empowered and develop
new forms of social identity. It is also a political process in the sense that its point of
departure is the conscientization of participants, who become aware of their rights
and duties within their society, developing their citizenship and critical capacities,
while strengthening democracy and civil society (MONTERO & SONN, 2009, p. 1)
[grifos nossos].
Na citação anterior, sobrelevam-se algumas características peculiares da leitura de
Montero especialmente. O significado do vocábulo “libertação” dado acentua uma suposta
inclinação de Martín-Baró a um conceito que se tornaria comum anos depois de sua morte: o
de “empoderamento”, dos indivíduos e de comunidades. Mais uma vez, salientamos que o
presentismo na historiografia é um vício relativamente fácil de ser corrigido quando se
realizam leituras mais abrangentes e profundas sobre o tema que se pretende conhecer. Não
entraremos nos méritos da pertinência ou não do conceito de “empoderamento”
(manifestamos, contudo nossa distância dele, além de ratificarmos que esse vocábulo ganhou
significados polissêmicos e vagos nas ciências humanas; até mesmo os grandes veículos da
impressa já o tomaram por corriqueiro). Em outras palavras, Martín-Baró NÃO escrevia
apenas sobre empoderamento (notemos a forte acepção psicologista que o orna), nem sobre

141
direitos e deveres erigidos DENTRO das democracias e da esfera da “cidadania 128”, vimos
que se fosse essa a proposta dele, não poderíamos afirmar a coerência entre ela e o
enfrentamente da realidade política de El Salvador.

Acachapar o potencial crítico de Martín-Baró ao cercado de uma discussão neoliberal


e limitada por noções democrático-representativas, amputa, a nosso juízo, a ênfase dada por
ele às tarefas emblemáticas e que competem ao futuro do quefazer da Psicologia, a construção
de uma nova sociedade e de um novo humano. Não precisamos retomar extensivamente
textos marxianos para explicitar as diferenças teóricas entre emancipação política e
emancipação humana; no Sobre a Questão Judaíca (1843/2009), Marx cuidou de delimitar
tanto a importância quanto os limites das lutas por direitos dentro do Estado burguês; e, mais
ainda, a importância de criticarmos sua própria estrutura e governo129.

Ainda na introdução assinada por Montero & Sonn (2009, p. 1), e sobre o que significa
libertação, lemos:

[…] concept of liberation has been developed as a praxis that has its point depart in
the victims (the oppressed, those in need, or excluded), rescuing its potential and
resources for transformation, often invisible to them because of historical, cultural,
and social conditions. Liberation is an ethical-critical-empowering and
democratizing process of a collective and historical condition”.
Ou seja, denota-se ali o caráter de “fortalecimento da democracia”, de empoderamento
da sociedade civil que a libertação levaria consigo. Atestam, além disso, a
imprescindibilidade da práxis nesse processo. É preciso salientar, contudo que notamos
drásticas diferenças no manejo teórico desses autores e o feito por nós (apoiados em Marx,
Vigotski, Lukács e Kosik) da categoria práxis. Para eles, ela (a práxis) se transforma em:

“[...] practice that produces knowledge and knowledge that turns into action – theory
and practice informing each other. This idea is not new to sciences in general,
although sometimes it seems to be forgotten in some academic contexts. Kurt
Lewin’s famous phrase “there is nothing more practical than a good theory,” was the
very well received and put into praxis with addendum that nothing produces better
theory than a good practice” (MONTERO & SONN, 2009, p. 3)

128
Montero (2009, p. 1) prossegue, dando razão a forma com a interpretamos: “[...] so they (os oprimidos e
desprivilegiados) can understand that a just and democratic society is a better place to live and develop
(Montero, 2000a)”.
129
O sobreaviso parece cabível dado que vários participantes do livro ora escrutinado apresentam explicações
debilitadas e, em alguns casos, comprometidas pela falta de referências bibliográficas adequadas sobre algumas
categorias centrais trabalhadas em seus respectivos artigos (práxis, libertação, política e ética, por exemplo).
Retomaremos detidamente nossas críticas a cada um desses pontos.

142
São tantas as considerações críticas sobre a acepção dada por eles, que pensamos duas
vezes se valeria mesmo a pena investir nisso. Contentamo-nos com referendar Lukács
(1986/2013) e Vásquez (1977/2011) para uma melhor apreciação dessa categoria. Entenda-se
que sempre que práxis for vertida como sinônimo de “prática”, como se a similaridade
fonética entre elas justificasse tal aberração, esvaziaríamos a complexa composição dos
conteúdos que medeiam essa categoria, ou seja, ela perderia sua utilidade científica.

Para Montero & Sonn (2009), a proposição de Martín-Baró conceitualmente se


definiria como um paradigma para a Psicologia; orientado à prática e aos valores humanos.
Nessa direção, despontam nele raízes epistemológicas em Paulo Freire, Emmanuel Levinas e
Martin Buber (que fique claro, apenas o primeiro ao longo da extensa obra de Martín-Baró é
citado diretamente). Percebe-se também, para os autores, que o tal “paradigma” supostamente
proposto pelo jesuíta visaria um “enriquecimento” da qualidade de vida por meio das
transformações sociais; tornando os indivíduos “consctructors of their reality130”.

Não é pequena a lista de problemas acarretados por ideações pseudocientíficas que


atestam que o ser social constrói sua própria realidade, vimos com Lukács (1986/2013), que
se em alguma medida apreendemos cientificamente a realidade social, ela, em hipótese
nenhuma, é historicamente tratada sem a consideração ontológica do papel da natureza
(natura naturans) nesse processo, por exemplo. É pretensão excessiva dos nomeados
construcionistas sociais acreditarem que eles “inventaram a natureza” (o ar, a água, o fogo, a
terra etc.) logo após “descobrirem” as premissas em que se baseiam para difundirem as ideias
de que os humanos são demiurgos da realidade.

Uma coisa é reconhecermos que no momento do surgimento histórico das tendências


científicas pós-modernas, e seus derivados mais insossos, como o construcionismo social, elas
compuseram efetivamente uma crítica pertinente à ciência tradicional dita moderna
(alicerçada para a maior parte dos críticos em pressupostos positivas) que aprisionava a
“verdade histórica” entre os muros de seus castelos e métodos. Contudo, reconhecer o
construcionismo social como movimento coletivo que surge como “crítico” a algo passível de
críticas, não é o mesmo que atestar a validade científica de seus argumentos.

Contraditoriamente, na condição de “movimento crítico”, o construcionismo social de


Ibáñez (2011), por exemplo, um de seus notáveis representantes na Psicologia, converte-se,
130
Conferir mais sobre isso na página 5 de Montero & Sonn (2009).
143
quando considerado ontologicamente, em instrumento de mistificação da realidade,
produzindo suspeitas rasas das potências da razão humana, inviabilizando, em última
instância, o “diálogo” entre propostas diferentes. Uma vez que cada indivíduo construiria sua
realidade como bem entende, ou, como diria um chiste de psicanalistas, como “bem
consegue”.

A revisão bibliográfica feita pelos autores da introdução do livro que ora comentamos
sofre de pelo menos dois males: o da deficiência ou do descrédito. Eles afirmam que durante
os dez anos de latência após a morte do jesuíta, “the only paper published about this type of
psychology, which we have knowledge of, was written by Montero (1992)”. Ora, eles
recortaram a busca ao que chamam de “papers” ou teriam encontrado, para falarmos de um
só autor, textos de Ignacio Dobles Oropeza, 1990; 1900a; 1993; 1995, para citar quatro
contribuições, daquele que a nosso juízo, tem sido um dos mais qualificados intérpretes de
Martín-Baró na América Latina.

Prosseguindo na leitura do livro de Montero & Soon (2009), deparamo-nos, com os


escritos do mexicano Jorge Mario Flores Osorio (organizador do primeiro dos encontros
internacionais com a temática Psicologia da Libertação). Consideramos que a análise desse
autor é umas das que provavelmente mais se distanciam do modo como apreendemos a
proposta de Martín-Baró; afora isso, esperamos com nossa arguição demonstrar como em
certas passagens de seu texto ele se afasta até mesmo dos textos originais do próprio jesuíta.

Ele inicia seu texto com um panorama muito bem amarrado sobre a conjuntura
filosófico-científica e política que acolheu a proposta de Martín-Baró. Destaca, por exemplo,
a teoria da dependência, a teologia e a filosofia da libertação, somadas às propostas e os
desdobramentos das atividades de Paulo Freire e as da Psicologia social comunitária
desenvolvida na América Latina como orientações teóricas basilares na compreensão do que
ela foi e como se desenvolveu. E, nesse ponto, concordamos plenamente com ele.

Contudo, sua revisão de literatura sobre a América Latina é questionável. Definindo


em linhas gerais a “postura” da ciência latino-americana (exatamente isso, ele pretendeu
generalizar a postura de todo o continente), Osorio (2009) faz referência ao marxismo e à
teologia da libertação como hegemônicos, além da dialética, como elementos definidores de
tal postura. Essas sentenças são por demais abrangentes e demandam certo cuidado.

144
Ao criticar o “marxismo hegemônico”, escreve que a ciência latino-americana fez bem
ao desfocar a questão da “luta de classes”, apontando para outras, que na perspectiva dele,
enquadrar-se-iam melhor na realidade do continente (a questão dos povos originários, de
gênero etc.). Ao contrapor a categoria classe social e as manifestações sociais particulares que
cada classe social pode assumir, analisadas desde o concreto, ele já demonstra fortes indícios
de como apreende o método materialista histórico-dialético. Esse suposto avanço por
abandonar as classes sociais é completamente incoerente à luz dos textos de Martín-Baró, que
não as nega em nenhum momento, como mostraremos a seguir.

Afirmamos: não há contradição alguma em considerar as mediações e a incidência de


fatores peculiares em cada formação sócio-histórica das classes sociais no capitalismo. No
que tange à categoria dialética, até o presente instante, é enigmática a fonte bibliográfica que
lhe possa ter inspirado. Para não nos acusarem de deselegância, nas palavras do mexicano:

[...] dialectics is employed as a method and rational strategy, which advances the
notion of representation and moves it up from the notion of concept. Concept, in this
light, would be statement that contains as many categorical relations as possible and
which is reflected as a synthesis of multiple determinations. In spite of considering
laws as basic for explaining the world, dialectics poses that knowledge is not
generated unless it is mediated by social discourse131. So, in order to produce
knowledge it is necessary to consider mediations among individuals, nature and
society. Latin American scholars criticize dialects as employed by Marxism-
Leninism and they advocate a return to the Hegelian notion of reason, considering
that overcoming contradictions means to reach the concept that contains them
(OSORIO, 2009, p. 13).[grifos nossos]
Ainda sobre dialética, na mesma lauda, ele assinala uma diferença radical do método
de apreensão trabalhado por nós nesta tese e o dele: “This chapter follows the Latin American
social sciences tendency to use Hegelian dialectics” (p. 13). Para mostrar o “tamanho” da
coerência desse autor, após o ponto final no dialectics, ele continua: “Following Kosik
(1967), reality is analyzed at the same time as the development, as well as the expression, of
the being”.

O dia que Karel Kosik se tornou hegeliano foi o mesmo em que o saci cruzou as
pernas, como diria o poeta Bezerra da Silva. A percepção de Osorio (2009) sobre as ciências
sociais latino-americanas é, para dizer pouco, desonrosa. Obscurecer obras como a de:
Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Octavio Ianni e Demerval
Saviani, para mencionarmos apenas brasileiros, mas poderíamos trazer a lembrança de Adolfo
Sanchez Vázquez, é grave equívoco. Ou seja, para leitores brasileiros, sua revisão

131
Retomaremos as complicações do uso dos “discursos sociais” adiante.
145
bibliográfica é falha. No correr de seu curto escrito ele insiste em homogeneizar acriticamente
a ciência social latino-americana, deformando profundamente as riquezas e os contrastes que
nasceram entre os diversos de seus intelectuais no período analisado por ele, 1960-1980
principalmente.

Sua leitura da obra de Martín-Baró é quase uma caricatura do que para nós seria um
hegelianismo de esquerda consequente. Em conversas com nossa orientadora aventamos a
hipótese que de o próprio Martín-Baró (que em nenhum de seus textos assume o
“materialismo histórico-dialético”, apenas diz, em inúmeras oportunidades, sobre sua
“historicidade dialética”, “história e dialética” e da concreticidade) não seria também
expressão teórica de um sofisticado hegelianismo de esquerda. Não obstante, e considerando
suas condições concretas, sobrevivendo em meio a uma ditadura, publicar aos ventos um
posicionamento “materialista e de esquerda” vinculado como era à Companhia de Jesus não
nos pareceu fazer sentido.

Da mesma forma que não nos interessou martelar na dissertação (PEREIRA, 2013), se
ele era ou não “marxista”, não nos ocupamos aqui em taxá-lo de “hegeliano de esquerda”.
Não acreditamos no potencial dos rótulos desacompanhados de práxis. Afinal, existem muitos
marxistas confessionais que em nada se assemelham, na práxis, ao patrono histórico dos
comunistas.

Sobre a categoria práxis132, o estrago de Osorio (2009) é ainda maior. De acordo com
ele, as teorias latino-americanas derivam sua acepção de práxis de duas fontes: “first, it
derives from interpretations of the Latin American Episcopal Councils (Buga, 1967, Bogotá,
1968, and Puebla 1970) [...] which were in first moment contrary to Marxism, and later
theoretically linked to it. Second, it based in the conditions of oppression and exclusion
suffered by the majority of the population, as evidenced by the Marxist”. (p. 14).

Não nos foi possível apreciar com seriedade as “fontes” utilizadas por ele para
compreender como a categoria práxis foi entendida na América Latina, uma vez que
acreditamos que o Brasil não foi o único país que não bebeu exclusivamente das fontes
supracitadas. Admitir que a práxis fosse interação entre ação e reflexão apequena a

132
Nas conclusões de seu texto ele escreve: “[...] the notion of praxis as cause and consequence of the
conscientization process, a process built and developed by theoretical-conceptual traditions base on an ethical-
political perspective and on the critique of hegemonic frames or reference (positivism, pragmatism,
functionalism, instrumentalism, among other)” (OSORIO, 2009, p. 31-32). De fato, criticá-lo aqui não é
oportuno, só registramos as diferenças para que não nos acusem de leitura tendenciosa.
146
complexidade que a categoria adquire dentro da tradição marxista. Osorio (2009), no meio da
confusão, ainda cita Antônio Gramsci que, para alguém desatento poderia acabar por
confundir o que está sendo dito.

Afirmar que a práxis acelera o processo de transformação histórica é deturpar tanto a


concepção de História dentro materialismo histórico-dialético de origem marxiana quanto
fazer da própria práxis uma “varinha de condão”. Mais poderia ser dito das páginas que ele
dedica a “explicar” a práxis, mas achamos que não valeria a pena esmiuçarmos algumas
diferenças tão elementares; uma vez que acreditamos que se torna cada vez mais evidente os
motivos de termos nos prolongado no ensaio sobre pormenores do método.

Optamos, apesar das divergências, por trazê-lo ao corpo da tese, pois sua análise dos
afluentes teóricos que incidiram sobre o projeto de Martín-Baró é louvável, além do que
mostra a “variedade” de leitores que o jesuíta possui. Quando versa acerca das referências de
Martín-Baró, ele atinge o ápice de seu texto. De acordo com o autor, as duras experiências
com as ditaduras militares burguesas na América Latina (Para citar algumas: Nicarágua,
1933-1956, Guatemala, 1954, 1963, 1982, El Salvador, 1960, Brasil, 1964, Argentina, 1966,
1976, Uruguai, 1972, 1974, e Chile, 1973) mostram quão imbricados são os laços que
aproximam mutuamente as histórias dos países deste continente, por exemplo. Há ainda outro
ponto comum: a interferência nociva dos interesses econômicos dos Estados Unidos133.

Em relação à presença dos debates econômicos que aparecem na obra do jesuíta,


Osorio (2009) aponta, acertadamente, que tanto asserções da “teoria da dependência” (em sua
134
versão marxista) quanto da “Teoria da CEPAL” (Comissão Econômica para América
Latina) foram, além de duas grandes respostas dadas aos graves conflitos sociais que atingiam

133
As “academias” da/na América latina foram esmagadas pelo capitalismo por um lado e pelas desigualdades
sociais do outro. No entanto, a certa altura, além de se posicionarem contra uma leitura “stalinista” do marxismo,
a esquerda acadêmica passou a considerar a ciência como ativa no processo de transformação social da realidade.
O compromisso ético-crítico com os processos grupais se popularizou entre diversos países (lembremo-nos do
colombiano Orlando Fals-Borba e sua proposta de pesquisa ação participante, por exemplo). Diversos coletivos
espalhados pelo continente iniciam sistematicamente críticas às ditaduras, bem como abertamente denunciavam
os prejuízos das ações do governo estadunidense (principalmente as da Central Intelligence Agency, CIA) que
financiava ataques a universidades e aos intelectuais.
134
De acordo com o mexicano, a teoria da dependência se apoia na perspectiva crítica do marxismo “mixed with
funcionalist and Weberian formulations” (conferir na página 18 do mesmo capítulo). De acordo com Osorio
(2009, p. 18): “both theories also parted with the conceptual and practical positions of Communist parties of the
regions, heavily sustained by Stalinism (Núñez & Burbach, 1987)”. Não é objetivo desta tese, aprofundar-se em
teorias econômicas latino-americanas daquele período, mas podemos, sem dúvida, ressaltar o caráter superficial
e excessivamente generalista da definição supracitada.
147
o continente naquela ocasião, importantes para aquelas análises (Martín-Baró fez citações
diretas a alguns autores da teoria da depência, por exemplo, como veremos adiante).

No que se refere à educação (como área de conhecimento), Osorio (2009) sinaliza que
Paulo Freire encabeçou as empreitadas críticas latino-americanas; que por sua vez impactaram
a teoria de Martín-Baró. Com uma proposta que duramente criticava a “educação bancária”,
Freire vislumbrou na educação grande potencial no auxílio das lutas por uma sociedade mais
humana. Sua pedagogia continuamente salientava o educar para a liberdade135.

Ao perscrutar as referências “martinbaronianas” da/na sociologia, Osorio (2009),


resgata o trabalho de Orlando Fals-Borda, que era um crítico do modo “tradicionalmente”
asséptico de se fazer ciência (veremos a seguir, como citações diretas ao colombiano surgiram
tardiamente na obra do jesuíta). A postura militante da sociologia latino-americana mudou as
formas de inserção crítica dos intelectuais das ciências humanas na vida cotidiana dos
processos grupais com os quais trabalhavam. Já tivemos oportunidade de estudar o quanto a
noção de objetividade científica foi questionada e realocada nesse período. Além disso, a
tarefa dos intelectuais deveria ser a produção de uma ciência própria, ou seja, uma que
partisse da realidade latino-americana, seguindo de perto os interesses das classes
exploradas136.

Osorio (2009) indicou outra importante área para compreendermos o projeto de


Martín-Baró, a filosofia da Libertação; que se pensarmos cronologicamente, veio antes do
primeiro. Em suma, ela foi uma expressão ideativa desenvolvida sob a perspectiva crítica e
ético-política a partir de diversos desdobramentos da teologia da libertação. Para o mexicano
(2009, p. 27), “Mario Casalla (1973, 1975, 2003), Augusto Salazar-Bondy (1985), Leopoldo
Zea (1965, 1985), Enrique Dussel (1987,1988, 1990, 1998,2001), Franz Hinkelammert (1974,
1986, 2000, 2001) are eminentes representatives of this tendency”.

Para Cerruti (apud, Osorio, 2009, p. 27), “philosophy of liberation states that reality
can be thought from the particular history of peoples and from a critical and creative space

135
Foi ele um dos que aproximaram a questão da liberdade com a do próprio ato de ensinar. Ancorado na
premissa de que o verdadeiro diálogo é meio real capaz de comunicar não apenas conteúdos, mas orientações
eficazes para transformar tanto indivíduos quanto processos grupais, o conceito de conscientização, como vimos
em Pereira (2013), e retomaremos brevemente quando trouxermos Martín-Baró, consolidou-se como um dos
pilares tanto da proposta de Paulo Freire quanto do jesuíta para a Psicologia.
136
Criticar a noção de ciência própria pelo que conhecemos dela atualmente é um dos equívocos que devemos
evitar (ou seja, presentismo), pois no momento de seu surgimento ela foi efetivamente uma postura progressista
diante das importações “de baciada” feitas das teorias europeias e estadunidenses.
148
which can be useful to transform that history”. Osorio (2009), portanto identifica com acerto a
contribuição da filosofia da libertação nas proposições de Martín-Baró (lembremo-nos da
proximidade dele com Ignacio Ellacuría, renomado nome desse campo filosófico).

Existe também em Martín-Baró, para Osorio (2009), assimilação das diversas


propostas da chamada Psicologia Social Comunitária. Desde meados da década de 1960, de
acordo com Sawaia (2001), diversos profissionais da Psicologia (os mais à esquerda,
principalmente) migraram dos tradicionais consultórios para um trabalho junto das
associações de bairro, dos grupos de trabalhadoras, dos sindicatos etc. Esse movimento
marcou a história da Psicologia Social latino-americana, pois foi berço do que consideramos
avanços importantes tanto na consolidação da práxis emancipatória quanto dos limites
impostos à Psicologia (na condição de uma profissão) no modo de produção capitalista. Países
como Brasil, Venezuela, Colômbia e México produziram dezenas de artigos que evidenciam a
fertilidade dessa proposta.

Para concluir, Osorio (2009), sublinha “chavões” recorrentes entre os debatedores da


obra do jesuíta. Escreve que a proposta de Martín-Baró responde criticamente ao modo de
produção capitalista e as formas de organizações societárias que constrangem e espoliam as
classes exploradas. Na revisão bibliográfica e crítica do militante salvadorenho acentuam-se
dimensões éticas e políticas dos quefazeres da Psicologia. Houve abandono do lugar
tradicional da Psicologia, ou seja, ele criticou o neoliberalismo crescente e o capitalismo; em
suma, o “sujar as mãos com a realidade social” é marca definitiva desse projeto. Não há como
negar nele a apropriação de diversas categorias consagradas pelo marxismo, como a de práxis.
Nessa direção, concordando com Osorio (2009), a “psicologia da libertação”, que foi
nomeada assim em 1986, por Martín-Baró, encontra correspondência com uma proposta em
andamento em diversos países do globo terrestre. Com alguma tolerância, de acordo com ele,
podemos pensar também nos trabalhos de pesquisadores/cientistas como Franz Fanon, Albert
Memmi, Sthepen Biko e Chabani Manganyi, por exemplo.

O segundo capítulo do livro de Montero & Sonn (2009), expõe o escrito do argentino
Bernardo Jiménez-Domínguez; que produz desde uma crítica epistemológica um dos textos
mais delicados sobre a obra de Martín-Baró de todos os que compõem a brochura. Em outras
palavras, o modo como assimila os limites e os horizontes de atuação para a Psicologia
sugerida por Martín-Baró enfatizam um argumento que será detalhado melhor na sessão
dedicada exclusivamente à obra do jesuíta, mas que de certa forma repercute em diversos de
149
seus interpretes. Não nos esqueçamos: boa intenção não faz boa ciência! Ao retratar o
hispânico-salvadorenho como uma figura comprometida com sua realidade social e inclinada
ao rigor científico, Jiménez-Dominguez abre flancos bastante problemáticos no corpo teórico
da chamada Psicologia “da libertação”.

Ao propor que Martín-Baró almeja modificar a sociedade “toward a more socially just
arrengement”, ele omite partes significativas dos textos de Martín-Baró que não só não
retratam um viés “reformista”, mas uma clara manifestação revolucionária do que deveria ser
a práxis da Psicologia (nesse sentido, de crítica radical ao modo de produção capitalista e ao
modo de socialização burguesa).

Os problemas da leitura de Jiménez-Domínguez (2009), que podem ser lidos na página


37 do livro, solidificam-se tanto em sua compreensão da dinâmica de alguns conceitos
(desideologização muito utilizado por Martín-Baró, por exemplo) e atinge, até mesmo, os
significados do vocábulo “crítica”. Não queremos focar demasiadamente nossa ênfase no uso
de certas palavras em um texto científico, mas destacamos o quanto a expressão “opressão
social137”, nas laudas desse autor, em diversas passagens, não é acrescida de nenhuma
mediação concreta, desprezando, para citar exemplo, a das classes sociais. Opressão social,
tão popularizada nas “psicologias da libertação”, pode se tornar uma peneira em invés de um
“guarda-chuva” capaz de organizar a direção social que pretendemos atingir com a pesquisa.

Afora a disparidade entre a obra original e a interpretação do argentino, ele (e


praticamente todos os outros que comentam os textos de Martín-Baró) aponta que uma das
marcas do militante salvadorenho é um denso entrelaçamento entre ética e o
comprometimento social e político necessários aos cientistas da Psicologia. Todavia, a
confusão feita por Jiménez-Domínguez (2009) sobre os conceitos de imparcialidade,
neutralidade, objetividade e subjetividade, dificultam o entendimento de seu argumento.
Vimos com Lukács (1986/2013), que subjetividade não é o mesmo que subjetivismo. Frases
como: “one cannot be impartial in the face of injustice. However, in order for our efforts to be
effective and to fulfill their aims, we must not be collapse into a subjectivity” (JIMÉNEZ-
DOMÍNGUES, 2009, p. 39)138, exemplificam nosso apontamento.

137
Pode se ler mais sobre isso na página 38 do capítulo de Jiménez-Domíngues (2009).
138
Não acreditamos que seja necessário rebater profundamente cada elemento isolado dessa sentença.
Imparcialidade na análise corresponde efetivamente ao modo como são estudados os dados obtidos em uma
pesquisa, caso o cientista resolva omitir ou “desfigura-la”, utilizando só o que lhe convém, além de uma
150
A preocupação, tanto de Martín-Baró (quanto com alguma tolerância a de Jiménez-
Domínguez, 2009), enfatiza que o fazer da ciência implica tomarmos partido, se fossemos
parafrasear Gramsci uma vez mais. Não obstante, tenhamos por certo que imparcialidade na
análise dos dados não corresponde imediatamente a uma imparcialidade na exposição da
pesquisa; uma vez que são momentos diferentes da atividade científica. E vem daí o que pode
parecer implicância da nossa parte para alguns: diferenciar método de metodologia, método de
procedimentos de pesquisa, e ainda, método de apreensão do expositivo. Quando se
compreende efetivamente essas distinções, longe de parecerem detalhes, ao lermos texto em
que eles são tomados por sinônimos ou estão misturados, nota-se um enfraquecimento do
debate. Retomaremos pausadamente esse ponto com Martín-Baró.

Lembramos, nessa direção, que a proximidade entre a posição teórica, em relação à


pesquisa científica, de Orlando Fals-Borda e de Martín-Baró irmanam-se no ponto em que
enfatizam que engajar-se integralmente à ciência não é o mesmo que desprezar a objetividade
implicada nessa tarefa; pelo contrário, isso a torna eticamente necessária. Assumir
explicitamente os interesses dos explorados pelo capitalismo não deveria ser considerada
“opção” entre “opções”, dado que não assumi-la e utilizá-la (a ciência) para outros fins que
não em benefício da genericidade humana seria amputar seu potencial libertador. Questionar-
nos-iam sobre o porquê dessa necessidade, e a resposta remontaria nosso refrão: ao tomarmos
os interesses dos explorados como prioritários, e uma vez que consigamos por meio de uma
práxis revolucionária modificar nossas relações com os outros humanos e com a natureza
caminhamos na direção da emancipação plena da humanidade; só nos tornamos plenamente
humanos quanto menos tivermos a mercadoria como elemento central da mediação entre
nossas relações.

Em última instância, problemas ocasionados pelas “boas intenções” do argentino (que


ele atribui a Martín-Baró) pode subestimar a mediação da totalidade para apreensão dos
fenômenos sociais (não basta saber que o capitalismo explora, é preciso modificá-lo
combativamente para se tornar revolucionário!).

Ilustremos nosso ponto com um exemplo dado pelo próprio autor: “[…] this
alternative perspective shows that all reason is situated and that the locus of one’s knowledge

atividade que não corresponde com o que chamamos de ciência, ela denota também problemas de cunho ético.
No entanto, dizer que não podemos “cair na subjetividade” é absurdo, não há ciência que se desprenda das
necessárias relações entre subjetividade-objetividade no processo de objetivação do conhecimento.
151
determines not only how someone perceives things, but also which things are perceived”
(JIMÉNEZ-DOMÍNGUEZ, 2009, p. 40). O que ele nomeia de “reason” seria adequado se ele
estivesse se referindo às formas e às condições reais em que determinado conhecimento é
produzido; sem embargo, quando ele confunde a “razão” com um dos muitos de seus
desdobramentos (as pesquisas científicas, por exemplo) ele embola o debate mais do que
expõe algo que concordaríamos, caso fosse trabalhado da forma correta; ou seja, considerando
as mediações, a totalidade e as contradições tanto no método de apreensão quanto dos
próprios movimentos da realidade. Na mesma lauda, dando uma de ventrículo do militante
salvadorenho, taxa (reequilibrando seu texto, que, aliás, é uma gangorra):

“According to Martín-Baró (1985a,1985b,1985c,1990a), objectivity is different


from impartiality [lembremos que para ele imparcialidade é impossível] and the
conflict between Science and commitment is false dilemma, because objectivity is
simply to be faithful to reality in itself. In the social sciences, this means, clarifying
the interrelation between the researcher as a person and social being with a reality
that is also human and social.” (JIMÉNES-DOMÍNGUEZ, 2009, p. 41).
Se ele tivesse parado ali seria bom, mas ele quis ser ótimo, e interpretando mostrou (na
mesma página) mais complicações em sua leitura:

“In the words of Martín-Baró (1986), the natural science methodology is


methodological idealism. It is idealism because theory is giving priority over a
situated analysis of social reality, not going beyond the content of the hypothesis in
question. For him, practical truth has primacy over theoretical truth 139.”
Por fim, ele conclui, na mesma página: “social psychologists must abandon the notion
of objectivity or of neutral value objectivity, but rather explore subjectivity in a reflexive and
conscions manner.” (p. 41). A essa altura do texto, em invés de o criticarmos “de fora” (desde
o método até aqui discutido), basta-nos mencionar o contraditório (que não é o mesmo que
CONTRADIÇÃO) dentro do próprio artigo (a citação que fizemos dele no início, quando ele
resgata Martín-Baró falando da subjetividade140).

Quanto as matrizes referenciais da Psicologia da Libertação, à semelhança de outros


interpretes de Martín-Baró, Jiménez-Domínguez (2009), identifica a teologia e a filosofia da
libertação como importantíssimas. De acordo com ele: “his (do Martín-Baró) psychology of

139
Antes de prosseguirmos, Martín-Baró não está imune a críticas acerca de seu método de pesquisa, como
mostraremos nas páginas seguintes. O que é bastante problemático, na citação acima, é devolver a acusação de
que na realidade os idealistas são os newtonianos e não os psicológicos. Em todo caso, se a crítica for ao
realismo ingênuo de alguns cientistas das exatas podemos entendê-lo; agora, essa “versão deles do idealismo”
não pode ser deduzida do argumento levantado pelo argentino para criticar o próprio idealismo.
140
Toda essa página está amparada, segundo o autor, nas proposições da sociologia do conhecimento de Bruno
Latour, sobre o qual não temos competência para aprofundar-nos, mas pelo exposto por seu comentador, parece
se diferenciar do projeto do jesuíta.
152
liberation makes a preferential option for the poor like the theology of liberation” (p. 42). Essa
sentença abre espaço para importante aclaração. Se porventura se considera uma “opção” (no
sentido utilizado no texto) como uma “preferência” arbitrária ou subjetivista, corre-se o risco
de empobrecer os nexos necessários entre a ética e o fazer da ciência; que, como temos visto
até aqui, são complexos, mas caminham juntos.

Não se escolhe os pobres por que se gosta ou desgosta deles, assume-se a perspectiva
dos explorados, pois se sabe que os interesses emancipatórios dessa classe correspondem
efetivamente aos interesses da genericidade humana; em outras palavras, não optamos pelos
pobres “apenas” por “bondade”, alinhamo-nos aos seus interesses, pois cremos que ciência e
ética devem ser orientadas por um projeto societário e econômico diferente do que vivemos
atualmente, que expresse formas de sociabilidade mais coerentes com as potencialidades
humanas.

Jiménez-Domíngez (2009), diferente do que veremos com Oropeza (2016), destaca


alguns pontos de divergência entre a filosofia da libertação (principalmente a exposta na obra
de Enrique Dussel) e a psicologia da libertação. Em suma, a crítica do argentino a Dussel é a
de que ele, em contraposição à filosofia dos dominantes (europeus e estadunidenses) afirmava
que era preciso fundar uma filosofia latino-americana diferente das dos outros lugares, uma
que se baseasse na ética e na cultura popular dos oprimidos. Ora, no sentido arguido pelo
Jiménez-Domínguez (2009), a crítica é coerente. Que existam diferenças sociais, culturais,
históricas etc. entre o continente americano e os demais é ponto pacífico, no entanto, a
perspectiva “particularista” da ética (ou da filosofia) tal como supostamente atribuída a
Dussel, faz com que percamos justamente um de seus componentes mais determinantes: a
universalidade, caindo no que Löwy (2012), chamou de excepcionalismo indo-americano.

Não acreditamos que exista uma “ética dos latino-americanos”, outras dos africanos,
dos asiáticos etc. Afora isso, as manifestações histórico-concretas das atividades éticas e dos
valores sociais presentes em cada cultura evidentemente são distintas (em alguns casos,
podem figurar como aparentemente contraditórias mesmo se analisando um mesmo período
histórico), o que não inviabiliza a tratarmos (a ética), como um complexo pertencente aos
acúmulos referentes ao desenvolvimento do ser social na História. Em outros termos, uma
“ética latino-americana” é mais uma manifestação circunscrita de certos modos de
respondermos ou não os valores humanos historicamente constituídos; mais uma vez,
enfatizamos a importância da fluência no materialismo histórico-dialético para não perdermos
153
a totalidade, a contradição e a mediação de vista, sem as quais toda nossa argumentação seria
compreendida como preciosismo141.

Quanto ao reconhecimento da presença de Orlando Fals-Borda na obra do jesuíta, o


argentino faz coro aos demais e afirma que a pesquisa ação-participante, proposta pelo
colombiano142, marca a proposta de Martín-Baró. Pesquisa desde/com os pobres efetivamente
caracterizas as pesquisas do jesuíta.

O relato de Jiménez-Domínguez (2009), que conhecia e se correspondia com Martín-


Baró, nos idos de 1980, auxiliam a apreender outras dimensões do compromisso com a
ciência e com a sociedade salvadorenha do jesuíta. Em 22 de junho 1989, um ataque destruiu
muitos equipamentos de impressão da UCA143, os prejuízos foram enormes. Em uma carta
escrita por Martín-Baró ao seu colega argentino, ele escreve: “we have moved foward and
will continue to move foward. These attacks confirm that our activities at the university,
which we have conducted peacefully, are challenging our oppressors at their very core” (p.
46).

Outro bombardeio já havia atingido a livraria daquela universidade em 1976; em 1980,


a própria casa de Martín-Baró foi metralhada e nos anos posteriores invadida quatro vezes,
dinamitada duas e explodida novamente em 1983, até que tragicamente sua vida lhe foi
arrancada em 1989. Não queremos construir uma imagem beatificada (ou romanceada) de
Ignacio Martín-Baró, contudo desprezar as condições reais em que ele realizou seus trabalhos
científicos e sua militância é decepar parte importante dos componentes sociais e culturais (e

141
Ainda sobre as críticas feitas a Dussel, Jiménez-Domínguez (2009), enfatiza ainda que a substituição proposta
por ele (Dussel) a análise marxistas das classes sociais, contrapondo-a, a retórica análise filosófica “das
pessoas”, pode distorcer muito mais do auxiliar o desenvolvimento das teorias sociais latino-americanas.
142
Por não ser esse nosso objeto de estudo, não nos debruçamos sobre a riquíssima obra de Orlando Fals-Borda,
no entanto, seguindo a análise de Jiménez-Domínguez (2009), quando se compara o prólogo do Participación
Popular: retos del futuro, de 1998, como os textos da década 1970 daquele autor, pode-se perceber algumas
mudanças no que se refere a definição (teórica e prática) da Pesquisa Ação-Participante. De acordo com o
argentino, a “participatory research is defined by him as a method both of study and of action with an altruistic
philosophy of life aimed at improving collective situations. The participatory researcher must base his/her
conclusions on living and sharing the community’s experience when producing situated knowledge, while
keeping alive the existential commitment to social change. If PAR is looking not only to explain but also to
change situations, its holistic or extended epistemology refers to dialect where what is can only be defined in the
context of what should be”. Ou seja, não bandeiramos aqui que exista uma só interpretação para a expressão
“Pesquisa Ação-Participante” que de tantas maneiras é vinculada ao projeto ético-político para a Psicologia
proposta por Martín-Baró, queremos, apenas, fazer notar que existem inegavelmente similitudes entre as práxis
científicas de ambos os autores.
143
Uma curiosidade: o jesuíta era um entusiasta das tecnologias computacionais e procurava sempre manter-se
atualizado com as novidades que poderiam servir aos interesses de seus trabalhos.
154
afetivo-emotivos) que mediaram sua práxis e nos auxiliam a apreender as bases ético-políticas
de sua obra. Fazer jus a sua obra implica revermos algumas posturas quanto ao que
convencionalmente se nomina por “revolucionário”. Afinal, ultrapassamos, e muito, ao
estudá-lo, os limites da produção acadêmica alinhada ao método e ao rigor científico; quando
expomos sua valentia e coragem ao permanecer naquele país tendo condições objetivas de
pedir asilo político ou, por intermédio da forte instituição a que servia (Companhia de Jesus),
pedir transferência144.

Os ataques a sua vida são a prova dos nove de que seu trabalho incomodava as classes
dominantes de El Salvador. A representatividade do Instituto Universitário de Opinião
Pública e suas inúmeras participações na vida pública salvadorenha compuseram
concretamente uma resistência aos desmandos e atrocidades cometidas naquele país. Criticar
seus textos por quaisquer inconsistências teóricas não é o mesmo que desprezar seu legado.

Seguindo a ordem de aparição dos capítulos (os quatro primeiros são os dedicados
exclusivamente a comentar a obra de Martín-Baró), Burton & Kagan (2009), relatam-nos uma
experiência interessante: como se configura um desdobramento da psicologia da libertação
fora da América Latina, no que eles chamam de core capitalists countries (Europa ocidental,
Canadá, Estados Unidos da América, Austrália, Japão e Nova Zelândia).

De acordo com o artigo, três características da psicologia da libertação latino-


americana merecem destaque: a) sua crítica à psicologia tradicional (principalmente sobre sua
irrelevância social, falta de generalizações cientificamente rigorosas, imitação das
neutralidades científicas das ciências exatas, repertório de pesquisas limitados e os focos nos
“micro leveis” relacionados à ideologia individualista dominante); b) seu modelo para o
trabalho com oppressed groups145; e c) sua proposta global e abrangente, pois se pode afirmar
que ela é uma fonte de auxílio na resistência aos avanços da fase neoliberal globalizante da
expansão capitalista (BURTON & KAGAN, 2009).

144
Aliás, outro elemento seja acrescido à análise. Talvez, justamente pelo fato de sua filiação a Companhia de
Jesus (e não ser um costume dos filiados “escolher” onde pretendem trabalhar) ele pode ter sido encorajado a
ficar em El Salvador durante a guerra civil. Aos que poderiam inquerir, então ele ficou lá por obrigação? Em
hipótese alguma, cientes de que ele tinha condições materiais para viajar para inúmeros congressos científicos,
por exemplo, ele poderia estabelecer-se em qualquer outro país (como teria sido incentivado por diversos de seus
colegas, que continuamente demonstravam preocupação por vida e saúde).
145
Optamos por manter a tradução original para evitar confusões sobre o que cientificamos por processos
grupais, e mesmo com o que outros autores discutiram até aqui; dado que o texto em tela mostra muito mais
versatilidade e clareza teórica do que os até aqui expostos.
155
Para Burton & Kagan (2009), ela é parte de um movimento político e intelectual que
surgiu na América latina, nos anos 1960, e que afetou disciplinas particulares como a
educação, a teologia, a sociologia e a própria psicologia; as tarefas dessas áreas de
conhecimento se aliançaram aos pobres, excluídos, marginalizados ou oprimidos. Ao
analisarmos brevemente os elementos chave dessa proposta, elencadas por eles, destacamos o
modo como eles entendem:

a) Conscientização: eles taxam que ela está profundamente vinculada à proposta de Paulo
Freire. Afirmando que sua origem (a da conscientização) é a relação entre dois
agentes; um externo que catalisa (intelectuais orgânicos, ativistas, profissionais
comprometidos etc.) e os próprios grupos oprimidos. É interessante reparar que para
os ingleses se há algo que pode ser tratado como um princípio cross-cultural da
psicologia social é justamente a noção de conscientização.
b) Realismo crítico e desideologização: aqui pincelaremos, mas não nos aprofundaremos,
sobre a crítica que pretendemos realizar a noção de “realismo crítico” na proposta de
Martín-Baró, importa-nos somente mencionar a ênfase dada pelo jesuíta ao papel da
teoria no fazer científico. Para Martín-Baró, não deve ser a teoria a definidora dos
problemas ou de uma situação, antes os problemas é que deveriam demandar, dar voz
e selecionar sua própria teoria. A questão dessa definição que soa bonita, e até
aparentemente precisa, é que ela pode encobrir inúmeros equívocos. Afinal, o que
serve de referência para dizer o que são e o que não são problemas sociais? O
realismo-crítico proposto pelo jesuíta apesar do forte apelo às questões sociais
concretas (vemos isso claramente em seus próprios trabalhos) pode incorrer em
confusão. Contrabalanceando nossa crítica, os autores afirmam com acerto que:
“realismo-crítico is not a naive realism: the nature of the social reality can be
difficult to apprehend, not just for the people, but for the theory and the peel off the
layers of ideology (for Martín-Baró the disguised exercise of power) that
individualize and naturalize phenomena such as the fatalism of Latin American
societies (Martín-Baró, 1987, 1996a) or the individualism in the CCCs (Cromby et
al., Moloney & Kelly, 2004).”(BURTON & KAGAN, 2009, p. 57).
c) Orientação sócio-societal: constitui-se em uma crítica frontal ao individualismo tão
fortemente presente na Psicologia norte-americana e na britânica. Para Burton &
Kagan (2009), existem uma gama de abordagens na psicologia da libertação latino-
americana: a marxista, a psicoanalítica, a vygotskian theory (teoria vigotskiana), as
representações sociais e o construcionismo social, por exemplo. Entretanto, a
orientação crítica pela qual ela se envereda não é apenas uma “questão teórica”, mas

156
também a de um projeto ético, um compromisso com a libertação. Os autores, como
muitos outros comentadores, ressaltam a ampla presença de traços da teologia da
libertação. Dentro da apresentação desse subitem, nota-se, como não considerar
mediações sociais concretas podem acabar por levar-nos ao erro, além do que, também
nos serve de exemplo sobre como não se trata de diletantismo dominar o método
materialista histórico- dialético. A certa altura (p. 58) os autores escrevem:
“In the CCCs [países capitalistas centrais] the notion of the oppressed majority
requires some development and reinterpretation. On first sight it might be said that
there are oppressed minorities in the CCCs, but not majorities, but a more global
orientation would contest this boundary around the CCCs. […] it is also important to
recognize that those groups are diverse and fragmented. Disabled people in an urban
suburb, migrant workers in a country town, “surplus” people in a poor
neighborhood, victims of domestic violence, Indonesian textile workers producing
cheap clothing’s for a high street chain in the CCCs (and middle income countries),
Iraqis and Palestinians bombed by weapons from the CCCs, or traditional farmers
(for example Mexico and India) impoverished and displaced by cheap grain imports
from the US: all these are part of the oppressed majority that are the proper focus of
engagement for globally literate LP practiced from the CCCs (Sloan, 2005).
Se nos Manuscritos de Paris, de 1844, Marx ainda utiliza a expressão oprimidos, em
seus últimos textos (nos Grundrisse e no’ Capital, por exemplo) opta, na maior parte das
vezes, por explorados. A noção de opressão pode facilmente ser interpretada enviezadamente,
ou seja, por meio do psicologismo, como algo que se remete à esfera da singularidade dos
indivíduos. Em uma experiência imaginária, caso perguntássemos para inúmeros
trabalhadores se eles se “sentem” oprimidos, muitos, sem dúvida, diriam que não, o que não
quer dizer que, por causa dessa resposta, eles abandonem a condição de explorados, a
condição dos que precisam vender sua força de trabalho por um mínimo salário para
sobreviver146. À medida que nos aproximamos da crítica da obra de Martín-Baró,
pretendemos apresentar mais argumentos sobre nossa tarefa nesta tese.

d) Ecletismo metodológico: nesse ponto, já não sabemos mais se é por conta de nossas
últimas duas orientadoras serem também professoras de método científico, ou se de
fato, ninguém se ocupa mais em diferenciar método de metodologia. Todavia, a falta
de precisão pode dar brechas para críticas que fariam sentido em muitos casos.
Retomaremos essa problemática a seguir.

146
Quando os ingleses retrataram a aparência contida na expressão maiorias oprimidas, quando, por exemplo,
estão dizendo que na Europa, o termo correto seria o de minorias oprimidas, incorre-se justamente no engodo
que ora mencionamos. Aliar-se aos explorados pelo capitalismo é algo muito mais concreto dos juntarmo-nos as
maiorias ou as minorias oprimidas pelo mundo afora.
157
Dos artigos vinculados diretamente à temática da psicologia da libertação (no livro
comentado), o de Burton & Kagan (2009) é um dos poucos que enfrentam as questões
econômicas e sociais efetivamente. Somos partidários deles quando afirmam que a Psicologia
tem se esquivado o quanto pode de apreender as necessárias relações entre seus interesses
científicos e as condições concretas da vida dos seres humanos. Eles focalizam ainda a
dificuldade de alguns psicólogos em diferenciar o que significa social, que em nada se
assemelha com a mera interação entre indivíduos isolados.

Para concluir nossa análise do livro, apresentamos um capítulo da própria Montero


(2009) em que ficam registradas definitivamente algumas diferenças teóricas entre nós, ao
passo que reconhecemos que seu relato é proveitoso como fonte bibliográfica e demonstra a
competência e a sensibilidade da autora. Nas palavras dela:

Doing psychology for social transformation means that, whatever the object of
psychology as a Science is – be it the study of the psyque; of individual or collective
behavior; of ideology; of language or verbal behavior; of the so-called cognitive
mediating processes; of emotion and motivation; and so on – it will always be at
service of social transformation. Social transformation in this context refers to
changes in the dominant structural and cultural institutions of a society seeking more
equitable and sustainable social arrangements that satisfy the basic needs of all
people […] In this context, social transformation is understood as a result of process
initiated by those who are oppressed by the dominant social structures and cultural
narratives of a society. (MONTERO, 2009, p. 71).
Uma análise adequada da citação acima pode elucidar importantes diferenças entre a
obra de Martín-Baró e a interpretação de Montero. Se por um lado o objeto de estudo de fato
não determina, de antemão, a orientação ético-política de uma pesquisa, por outro a forma de
apreender e expor esse objeto é relevante e, mais, podem colaborar, a despeito das intenções
dos cientistas, com a manutenção do status quo.

O debate sobre método é um campo de batalha ideológico como postula Mézáros


(1989/2004), mas possui inúmeros desdobramentos práticos. Ora, ao produzir técnicas de
interrogatórios violentas (tortura), como as engendradas pelos psicólogos norte-americanos
citados por Oropeza (2016), mesmo que não se queira utilizá-las, torna mais simples entender
nossa objeção.

Novamente vemos os problemas que acompanham a expressão “opressão”. No caso


em tela, pode-se notar o quanto algo concreto como a exploração da força de trabalho pode
acabar se tornando uma “narrativa” produzida pelas “estruturas/dispositivos sócio-culturais
dominantes”; sem mais rodeios, ninguém morre por falta de narrativa sobre a comida, mas de
fome. Nada poderia ser mais nocivo do que minorar, ou tratar em pé de igualdade uma
158
categoria teórica da relevância da luta de classes com uma noção idealista e abstrata como a
de narrativa dominante. Não avançaríamos muito se fôssemos retomar ponto a ponto a
argumentação feita no ensaio, conquanto, lembramos que o método de apreensão ontológica
dos fenômenos sociais pode ser útil para elucidar as diferenças que lhes apresentamos.

Existem pontos positivos no texto de Montero (2009). Um deles é o cuidado em


rastrear as fontes bibliográficas de determinados conceitos, o que não é o mesmo que dizer
que ela foi capaz de compreendê-los adequadamente. Outra vez, deparamo-nos com
desdobramentos concretos de uma confusão conceitual, como é o caso do termo
desideoligização, tão utilizado por Martín-Baró147. Desta feita, o método aqui foi confundido
com táticas interventivas, procedimentos de pesquisa e ferramentas de trabalho.

A pesquisa ação-participante, defendida e bem executada por ela, enquadra-se melhor


como uma proposta para a atividade científica que busca superar a neutralidade científica, do
que um caminho cognitivo-afetivo até os fenômenos sociais da realidade. Afora a confusão, a
venezuelana registra algo com que concordamos plenamente: o uso de alguns procedimentos
e ferramentas interventivas que se relacionam diretamente com a problematização da vida
cotidiana (lembremo-nos do teatro do oprimido do brasileiro Augusto Boal, por exemplo);
programas e ações dessa estirpe, nas questões do dia-a-dia dos processos grupais foram ao
longo da história da Psicologia bastante utilizados pelas áreas chamadas “organizacionais e do
trabalho”. É preciso mudar esse quadro. Sabemos que nunca existirão direções e técnicas
grupais fixas e universais, que funcionarão igualmente em todos os lugares do mundo,
imersos em diferentes culturas; no entanto, a sistematização de trabalhos e propostas bem
sucedidas pode servir de guia e referência para outros trabalhos; o artigo de Montero (2009) é
um bom exemplo disso.

A autora explica muito bem como o procedimento nomeado por Paulo Freire de
“problematização”, que poderíamos dizer que aparece indiretamente na obra de Martín-Baró,

147
Prestemos atenção na definição dada: “Desideologization is, then, the conscious construction and
reconstruction of an understanding of the world one lives in, and of one’s living circumstances, as part of a
totality” (Montero, 1994, 2004). “Dealienation is understood as the process thought which the relation between
conscieousness and the historical and social living conditions of a person and her or his role in them are
established, so that person is aware of that relation” (MONTERO, 2009, p. 75). Retomaremos esse debate com o
próprio Martín-Baró.
159
auxilia a erodir certos hábitos e crenças enraizados por costumes e tradições que servem às
classes dominantes (nem todas as tradições e costumes servem a esses fins148).

A participação ativa dos envolvidos nas pesquisas deve ser parte integrante do próprio
ato de pesquisar. Quando a autora traz à baila Fals-Borda como propositor latino-americano
da pesquisa ação-participante, ela ressalva, ademais, que a ideia da pesquisa-ação é originária
de um artigo póstumo do gestaltista Kurt Lewin publicado no Journal of Social Issues, em
1946. O trecho seguinte, no entanto, mostra alguns vieses da leitura de Montero (2009) sobre
a obra de Fals-Borda que se diferenciam do como o jesuíta o lia,

“In the case of PAR (pesquisa ação-participante), its emancipative character is


evidenced in its capacity to empowered participants, strengthening their resources
and developing their ability to acquire new resources and redefine themselves as
able citizens with rights and duties, and the capacity to defend their achievements
and demand what is due to them” (MONTERO, 2009, p. 76).
Já expomos que a noção de “empoderamento” notabilizada com mais vigor na história
recente da Psicologia pode carregar conotações individualistas e abstratas que se
desassemelham consideravelmente tanto do modo como a categoria poder é tratada em
Martín-Baró (que concordamos com Oropeza [2016], possui certa carga de weberianismo,
como veremos adiante) quanto da perspectiva fortemente atrelada às capacidades individuais
potencializadas pelo empoderamento.

Salientamos que a participação dos envolvidos com a pesquisa é parte importante da


proposta de Martín-Baró, bem lembrada por Montero (2009), que ainda evidencia outra ação

148
Maritza Montero (2009) destaca esse conceito (o de problematização) como methodological tool, não
obstante diz que isso não é um estudo sobre uma ferramenta de um método específico, antes é ferramenta de
pesquisa. A distância pode parecer pequena, mas é significativa. Em oposição ao que Freire (apud Montero,
2009), chamava de “educação bancária”, a proposição visa produzir um processo dialógico dentro das relações,
dos processos grupais. O objetivo é gerar situações que forneçam aos envolvidos a possibilidade de rever suas
atividades cotidianas desde uma perspectiva não naturalizada, mas inovadora e reflexiva. O objeto da reflexão
sempre é uma circunstância concreta, um fato, um modo de conhecimento etc. E tudo começa com uma pergunta
capaz de provocar os envolvidos. A marca dessa atividade (cognitiva e afetivo-emotiva) é a orientação ética que
compõe necessária e integralmente todo o processo. Precisamos deixar claro, contudo que aqui não falamos de
uma “abordagem ética que inclui o “respeito [...] a civilidade e aos direitos políticos” (ver mais sobre isso na
página 81 do texto referido), já dissemos o que entendemos por ética. Em diversos momentos, lemos relatos de
Martín-Baró contrariando as regulamentações oficiais que o proibiam de se comunicar e ajudar os militantes que
resistiam a ditadura salvadorenha. Relembramos que é preciso ter clareza sobre diferenças entre emancipação
política (que sem dúvida é importante) e emancipação humana (que deve ser a meta da ciência).
Complementando o que Montero diz, de acordo com Ortega (2012, p. 34), “ el diccionario de la Real Academia
Española define el verbo problematizar como Presentar algo como uma cuestión y pone como ejemplo de uso el
Problematizar las ideas recibidas. Una problemática es el conjunto de problemas pertencientes a una ciencia o
actividade determinadas. En su sentido más positivo, la Problematización es el mejor procedimiento para iniciar
la solución de un problema, especialmente cuando no se tiene claro cuál es el auténtico problema. Problematizar
sirve para reconstruir, en otros para hacer prospectiva, y en otros para aumentar la seguridad hasta la certeza.
Toda Problematización está basada en el arte de preguntar más que en el arte de responder (véase E. León,
1991)".
160
importante e que adquire significados bastante distintos para diferentes autores, o diálogo. O
diálogo é o que produz crítica, para a autora:

“[…] in the context of liberation means the capacity to discuss, conscientiously


dissenting or agreeing, in such a way that a situation or piece of knowledge is
restructured according to the results of comparing, contrasting, and analyzing a
variety of viewpoints coming from the discussants.” (MONTERO, 2009, p. 77).

Ressalta-se, por fim, que as críticas feitas até aqui não querem denegrir pessoalmente a
nenhum dos pesquisadores mencionados. Estamos debatendo APENAS questões teóricas. O
caso de Montero é um exemplo disso. Quando ela se dispõe a discorrer sobre a teoria em
Martín-Baró encontramos pontos de divergência, ao passo que narrando uma de suas práxis
ficamos impressionados com sua habilidade.

Perspectiva psicossocial, aproximaciones histórica y epistemógicas e intervención –


José Ortega (2012)

Na sequência de debatedores da proposta de Martín-Baró, analisamos a introdução de


José Joel Vázquez Ortega que compõe o livro acima citado. Ela oportuniza aos leitores breve
panorama, sob outros ângulos, das condições do desenvolvimento das psicologias na América
Latina; ou melhor, começa com uma crítica aos modelos científico-tecnológicos importados
de outras conjunturas sociais, políticas e culturais mencionando diretamente a psicologia da
libertação como contraposição a isso.

A abertura do texto é justa, pois, com Martín-Baró, o autor afirma que buscar fazer da
Psicologia algo relevante socialmente, não é o mesmo que partir dos interesses dos explorados
pelo capitalismo. Em nenhum momento desta tese afirmamos que a Psicologia, em suas
vertentes anticientíficas, românticas ou pós-românticas são irrelevantes socialmente. Todas o
são, no sentido de que produzem desdobramentos ideopolíticos concretos. Temos, até o
momento, criticado o quanto eles melhor servem à burguesia do que aos trabalhadores.

Como Oropeza (2016), Montero (2009) e Fernández (2015), por exemplo, Ortega
(2012) aproxima a psicologia da libertação do que conhecemos por psicologia social
comunitária que, de modo semelhante ao da proposta de Martín-Baró, configura-se como
161
crítica aos modos hegemônicos de se fazer ciência psicológica (desde a saída dos consultórios
até a adoção de métodos capazes de apreender a realidade desde a totalidade, não como o
frequentemente ocorria nas “psicologizações da vida cotidiana” feitas por ela).

Tanto a psicologia social comunitária quanto a da libertação, de acordo com Ortega


(2012), visibilizaram tanto a violência política quanto o que o jesuíta chamava de guerra
psicológica; que acometiam (e ainda o fazem, mesmo que de modos distintos) os latino-
americanos. Ele é mais um dos que reforçam a presença da obra de Paulo Freire e de Orlando
Fals-Borda na obra textual de Martín-Baró.

Ortega (2012) confirma que a concretização da proposta de Martín-Baró só pode ser


plena caso se parta “desde baixo”, e não das elites ou das classes governantes. Salientamos,
contudo, que não nos alinhamos à sua leitura quando enfatiza que o jesuíta quer desenvolver
capacidades cidadãs, fomentando a democracia participativa pelos mesmos motivos já
explicitados anteriormente. Outro ponto de divergência é quando ele associa a proposta de
Martín-Baró ao conceito de paradigma149, como fez Montero (2009). Sintetizando, para
Ortega (2012), a psicologia da libertação:

Se trata de una psicología social que reconece el carácter histórico de los fenómenos
que estudia; que plantea uma apertura metodológica en el sentido de aceptar
métodos alternativos, asumiendo una relación entre quien investiga y su objeto de
investigación; que rechaza el dominio absoluto del modelo de producción de
conocimiento generado en el campo de las ciencias naturales, privilegiando la
investigación en el terreno sobre la de laboratorio; que reconece el carácter activo de
los sujeitos de investigación, produtores de conocimiento; que reconoce igualmente
el caráter dinâmico y dialéctico de la realidad social, por onde, de la condición
relativa, temporal, del conocimiento producido; que amplía su objeto de estúdio,
incluyendo el nível psicológico de fenómenos tales como la idelogía y la
alinenación; que admite el carácter simbólico de la realidad expresado a través del
linguaje y que asume explícitamente su compromiso ético, político y social
(Vázquez apud Ortega 2012, p. 27)150.

149
Resvalamos nesse ponto com as contribuições de Carone & Peixoto (2016) ao debate sobre os “paradigmas”.
Não nos parece razoável aproximar um conceito tão próprio das ciências exatas com o que fez Martín-Baró.
Aliás, isso só seria possível caso vulgarizássemos bastante, como foi o caso das ciências humanas no final do
século 20, as proposições de Thomas Kuhn.
150
Um último destaque a um trecho do capítulo de Ortega (2012), que é decisivo para marcar nossas diferenças:
“si bien se acerca de las formulaciones como las de la teoría de la acción comunicativa desarrollada por
Habermas, en tanto que incorpora el giro linguístico-pragmático, con este nuevo paradigma, estamos ante
sujeitos que dialogicamente, en virtude de la mediación del linguaje, desempeñan de manera competente la
coordinación en la acción social, problematizando y siendo problematizados (Montero 2004; Vázques, 1998)”
(p. 28). Subscrevamos que o mexicano diferencia o que chama de “ética comunicativa” da “ética da libertação”.
Não que nos pareça decisiva, mas é como se ele mesmo percebesse a existência de algumas distinções implícitas
entre o projeto de Martín-Baró e as ideia de Jürgen Habermas.
162
Revista Peruana de Psicología Social de la Liberación - INTI-ÑAN.

Exporemos agora as contribuições presentes na primeira edição da Revista Peruana de


Psicología Social de la Liberación intitulada INTI ÑAN (caminho do Sol em quechua –
produção totalmente dedicada à Psicologia proposta por Martín-Baró, de abril de 2015). De
pronto e para que não a leiam com outros olhos, desde sua introdução sente-se, nas
entrelinhas, uma ácida crítica ao coletivo genérico que frequentemente atende por “psicólogos
libertadores”.

A publicação, assinada pelo coletivo peruano de psicología social de la liberación


(composto por “psicólogos y estudiantes de psicología, educadores, profesionales dedicados a
las ciencias sociales, amigos vinculados a las artes y a las organizaciones de base
comunitária” (p. 7), ainda nos agradecimentos que antecedem aos artigos, faz notar que longe
de existir solidariedade e bom ânimo entre “filiados” à psicologia da libertação há
contradições internas dentro desse processo grupal tanto de cunho teórico quanto prático.

Os autores incitam os leitores a divisar certo mal-estar oriundo das condições em que
se realizaram o congresso internacional no Peru, em 2014. De fato, o evento foi
desorganizado, desde a inexistência de salas para os proponentes estrangeiros exporem seus
trabalhos até a falta de direção sobre o local de realização das atividades. Por outro lado, a
justificativa dada pela organização é bastante razoável. Sem apoio técnico e dinheiro
dificilmente um evento dessa monta se organiza minimamente bem. Não nos importa arbitrar
sobre qual a metade mais doce desta laranja, registramos apenas que desde a morte de Ignacio
Martín-Baró, ou melhor, do final da década de 1990, dos primeiros congressos internacionais,
algumas diferenças já são constatáveis entre “psicólogos libertadores151”.

Retomando a trilha iniciada, logo após os “agradecimientos” (que convenhamos estão


mais para notas condenatórias), acha-se rico arsenal de informações sobre as características

151
Supomos que o esvaziamento do congresso no Peru foi significativo, por isso retomaremos esse ponto
adiante. Não obstante, decidimos acolher pelas diferenças, como fonte bibliográfica, as produções do peruano
Raúl Fernández, articulista do evento e figura proeminente tanto dos acontecimentos no Peru quanto no último
congresso feito no México (2016).
163
teóricas definidoras do coletivo peruano que tem por objetivo difundir a Psicologia proposta
por Martín-Baró152.

O pronunciamiento daquela revista, além coroar os méritos do trabalho de Maritza


Montero no Peru, pelo seu constante auxílio desde 1980, alerta também sobre o cunho
vigilante dos peruanos contra estranhas vozes que têm surgido na psicologia latino-americana.
Da psicologia comunitária vaticinam:

“Ni es una rama de la psicología social ni su brazo aplicativo ni una subdivisión o


enfoque disciplinar al interior de la psicología. La psicología comunitária constituye
un movimiento reconceptualizador de la psicología vetusta, tradicional y rígida
emparentada a ultranza con el modelo médico-clínico-patológico”. (INTI-NÃN,
2015, p. 9).
O coletivo afirma que da perspectiva deles subsistem dois estilos de inserção
comunitária da Psicologia que são problemáticos: o primeiro é o que é feito de modo
institucionalizado e tem por intermediários as universidades públicas ou estatais que
financiariam os projetos; e o segundo, é o que eles denominam de “identidad popular”, que
implica uma aproximação “orgánica, humana y profesional con los sectores populares en
cuanto condición necessária para contribuir en el processo reconceptualizador de la psicología
desde una permanente práxis contextualizada” (p. 10).

Para compreender os problemas da psicologia comunitária, a quem eles atribuem


muitas semelhanças com a psicologia social da libertação, elencam alguns dos que chamam
defeitos básicos: a) um modelo de saúde mental que reduz o problema a “estruturas da mente”
dos indivíduos e de viés assistencialista; b) delimitação como objeto de estudo da Psicologia
algo que está dentro dos indivíduos; c) utilização de artifícios numéricos para convalidarem a
pseudo-existência de “fantasmas153” no interior das pessoas, o que a dotaria de aparente
cientificidade; d) concentrar-se na falsa ideia de a que psicologia serve a toda a humanidade
de forma igual, ou ainda, reiterando a neutralidade ideopolítica enraizada no compromisso da
psicologia com o status quo.

Para contrapor o panorama negativo rebatem que: a) o exercício profissional dessa


ciência deve ter caráter coletivo, não remediativo, nem preventivo, os quais corresponderiam

152
Um pormenor, em conversa com o próprio Raul Fernandéz nos foi dito que eles (componentes do coletivo)
não abririam mão de chamá-la: “Psicologia ‘SOCIAL’ da Libertação”, resguardando que seu caráter social
preveniria entraves oriundos de muitos afluentes teóricos poluídos que andavam, para o gosto do nosso
interlocutor, contaminando a área há algum tempo.
153
Conferir mais sobre o tema na página 10 da revista.
164
à lógica patologizante; b) é preciso redefinir o objeto de estudo, ou “desmentalizarlo y
desbiologizarlo” (p. 11), afirmando que o psicológico é algo que acontece “entre” indivíduos
ontologicamente compactos; c) é necessário assumir a investigación-acción participativa
como estratégia geral de pesquisa e de transformação da realidade, como por exemplo: a
educação popular e o teatro participativo, o que não se resume a uma conversa, mas na
utilização delas como movimentos transformadores; d) impõe-se tomar definitivamente um
posicionamento favorável às reinvindicações dos setores populacionais pobres na busca por
uma sociedade viável. Para finalizar:

“sólo cuando ya no sea necesario utilizar la psicología comunitaria o la psicología


social de la liberación como instrumentos de crítica y transformación de la
psicología anacrónica y antipopular, entonces emergerá una nueva psicología cuyo
nombre único y propio servirá para cumplir un papel emergente al lado de una
sociedad cada vez más humana...” (INTI ÑAN, 2015, p. 12).
Dois textos dessa publicação nos são fundamentais: o primeiro, consiste em uma
entrevista, de oito perguntas, com Maritza Montero sobre a origem e os rumos da psicologia
social da libertação e o segundo de Walter Cornejo Báez, intitulado Fundamentos teóricos y
metodológicos de la Psicología social de la Liberacíon.

Na entrevista, Montero (2015), inquirida sobre o passado da “Psicología de la


Liberación (eles mesmos, os entrevistadores, omitiram a palavra social na primeira pergunta)
atesta que a ideia de libertação já começava a se desenvolver nos idos 1960, mas que ainda
não contava com o aporte da Psicologia, que estava, segundo ela, nesse momento histórico,
voltada para os Estados Unidos e para a Europa (nomeadamente Inglaterra, França, Itália e
Espanha).

A venezuelana destaca o movimento La marcha hacia el mercado común


latinoamericano encabeçado por Raul Prebish como um dos que influenciaram os
movimentos de 1960. Desse momento restou, de acordo com ela, a impressão de que os
latinos continuavam a serem vistos como inferiores e sempre diferentes do chamado primeiro
mundo. Resgata também (coincidindo com praticamente todos os outros interlocutores de
Martín-Baró), o passado da psicologia da libertação, as presenças de Paulo Freire (pedagogia
da libertação), Orlando Fals Borda (pesquisa ação participante); acrescentou ainda as
influências indiretas de Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone (Filosofia da Libertação); e
mais, registra que a antropologia e a etnologia também aderiam às orientações “da libertação”.
Quanto à Psicologia, só em 1986, como já sabemos, no “Hacia uma Psicología de la
Liberacíon”, ela entraria inteiramente no fluxo iniciado por outros áreas.
165
Quando perguntada diretamente sobre o que é psicologia da libertação, responde que
ela não é um ramo da Psicologia, nem da psicologia social ou comunitária. Novamente,
seguindo a definição dada em 2009, admite-a como paradigma154, que tem origem histórica
nos anos 1980. Para ela, trata-se, de dar à ciência psicológica um sentido libertador. É preciso,
pois, libertar-se da opressão, da sujeição ao modo dominante de fazer as coisas, das opressões
que vão desde os trabalhadores até os pobres ou indivíduos que seguem um partido, uma
atividade profissional, sem raciocinar. Continua dizendo que por essas razões não se dão
aulas de psicologia da libertação, mas se faz psicologia libertadora.

A autora faz outra autoreferência, ao livro que há pouco examinamos e que é parte da
Encyclopedia of Peace Psychology155, no qual define “paradigma” como:

“práxis política, ética y crítica cuyo punto central son los oprimidos y excluídos. La
liberación es un proceso democrático que busca desarrollar los recursos y el
potencial de los oprimidos. Y añado que la idea de liberación se relaciona con ‘los
conceptos de autodeterminacíon y de libre albedrío y se refiere a la liberación social
y política, luchando por la autonomia, el bienestar, la inclusión, los derechos, la paz
y las condiciones de respecto mutuo, para liberarse de la opresión.” (INTI ÑAN
apud WILEY-BLACKWELL, EE.UU, Volume 2, 2001, p. 601).
Montero (2015) condena a existência de um papel pré-estabelecido para a psicologia
da libertação, pois cada caso particular deve demandar por si um papel específico. Chamando
de estratégias metodológicas, ela insiste que libertação não é um ramo, ou ciência, ou carreira,
nem ainda, um almanaque. Ele nega que Fals Borda, Freire, Dussel, Martín-Baró, Stiven Biko
entre outros, tenham estabelecido métodos; antes aponta que os problemas que tinham diante
de si eram os determinantes de suas tarefas libertadoras. Logo, comprometeram-se com a
realidade que os circundaram e só depois agiram.

A entrevista finda com um comentário dela sobre as dificuldades e desafios


enfrentados pela psicologia da libertação. Ela alfineta aqueles que julgam “fazer libertação”
quando na realidade reproduzem trabalhos sem princípios e com fins delimitados. Nesse
ponto, a autora, ao que nos parece, cutuca os organizadores do congresso realizado na
Colômbia em 2014, que teve uma proposta participativa bem diferente da de qualquer outro
154
Nas palavras dela: “La palabra paradigma se define como un ejemplo, que reúne a diversos elementos unidos
por una clase, en este caso se trata de áreas de conocimiento, y que e reúnen en función de un aspecto, que es la
liberación”. (INTI-NÃN, 2015, p.15).
155
Quando acessamos, pela última vez (22/07/2017), a enciclopédia citada pela venezuelana encontramos 15329
resultados para a entrada “liberation psychology”, dentre elas: 13766 em jornais, 1192 em livros, 357 trabalhos
de referência, 13 em bancos de dados e 1 protocolo de laboratório. No entanto, para termos acesso ao conteúdo
desses textos cobra-se o “simbólico” valor de 645,00 dólares americanos. Nossa pretensão de versar sobre o
estado da arte da psicologia da libertação se converteu em algo bem mais circunscrito justamente pela falta de
acesso à base de dados tão ricas quanto essas.
166
congresso acadêmico que tenhamos participado. Eles propuseram atividades que se deram nas
comunidades exploradas economicamente do território colombiano; para Montero (2015),
experiências desse tipo (trazer estrangeiros para visitar os “pobres”, como em um safari) são
prejudiciais.

Nossa experiência no congresso de Bogotá contrasta com a crítica de Montero (2015),


sem tirar o mérito de seu apontamento, pois quando essas atividades são executadas de modo
irresponsável e acrítico reificam-se os grupos atendidos invadindo seus territórios. Ela conclui
com severa crítica aos profissionais que tentam se “vender” como da libertação, mas não a
vinculam prioritariamente à ética.

Na sequência de textos da revista peruana lemos Fundamentos teóricos y


metodológicos de la Psicología Social de la Liberación escrito por Walter Cornero Báez, que
produz um dos textos mais objetivos que lemos até o momento. Define, por exemplo, que o
objeto de estudo da psicologia proposta por Martín-Baró (sem citar referência direta ao
próprio jesuíta, que já dissera isso em 1981, no Raíces psicosociales de la guerra en El
Salvador), é a ação como ideología; complementa ainda que:

“ideología expresa la nócion de influjo o relacíon interpersonal, de enlace de lo


personal y social, la acción es síntesis de objetividad y subjetividad, de
conocimiento y valoración que está signada por unos contenidos valorados y
referidos historicamente a una estrutura social.”(BÁEZ, 2015, p. 22).
Descreve, com toda razão, que a acepção de ideologia utilizada pelo psicólogo
hispano-salvadorenho é mais próxima ao marxismo do que do funcionalismo.

Báez (2015) comenta que a postura dos psicólogos deve ser perpassada pelos
interesses de classe, ou seja, devem tomar partido das lutas e aspirações do povo. Se trata de
“incorporcar el quehacer científico a una práxis social liberadora, que desmascare y destruya
la manipulación, promovendo uma sociedade basada em solidaridad y en la justicia” (p. 23-
24).

Sobre sua interpretação do horizonte da psicologia da libertação, afirma que ele “se
traduce en la despreocupación del status científico y social y propone un servicio eficaz a las
necesidades populares” (p. 25). Dessa forma, sua sentença pode conduzir a equívocos.
Primeiro por acreditar que haja contradição entre o que ele chama de status científico-social e
as “necessidades reais” das maiorias, e, segundo, porque desdobrando seu argumento, pode-se
chegar à conclusão que utilizar quaisquer métodos e meios para alcançar o que julgamos ser

167
útil e proveitoso é algo legítimo, quando na realidade defendemos que devem existir laços
éticos entre fins e meios, sem exceções.

Ao certificar o nascimento histórico do horizonte de atuação do jesuíta, em meados de


1970 (baseado provavelmente na entrada de Martín-Baró no curso de Psicologia), postula que
a orientação desse projeto se pautava pelo comprometimento com a igualdade social, com a
crítica ao liberalismo econômico e aos valores do individualismo ideológico (burguês, para
nós), em contraposição seus valores seriam: igualdade, solidariedade e justiça social.

Báez (2015) mapeia os três mesmos pilares da psicologia da libertação já apontados


por outros interlocutores, acrescentando alguns elementos:

a) Pedagogia do oprimido (Paulo Freire): afirma que o conceito de conscientização


foi o mais trabalhado na obra (há controvérsias, voltaremos a isso posteriormente),
contudo na acepção dele significaria,

“quitar los velos de la realidad”, descubrir las verdadeiras causas de la miséria y la


opresión, cambiar la percepción ingênua de la realidad por otra dialéctica, em que
las élites de poder ya no seguirán proclamando las virtudes humanas. Assume
posición revolucionaria...” (p. 27);

b) Investigação-ação participante (Orlando Fals-Borda): registra que ela marca o trato


com os “saberes populares” que por não residirem no edifício tradicional da
ciência, rompem com algumas de suas regras podendo ter até mesmo potencial
subversivo. Não esmerilharemos o argumento levantado, mas ele contém
problemas. O principal deles, é tratar, como tem sido comum nos últimos
congressos internacionais da Psicologia da Libertação, a “ciência” como sinônimo
de “produção burguesa”; posição obscurantista. Não aclarar nuances dentro de um
complexo do ser social tão multiforme como o da ciência, não contribuiu com a
emancipação, e pior, tempera o caldo dos que a criticam sem nunca sequer terem
dela se aproximado.
c) Filosofia da libertação (Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone): para o autor
teria sido ela quem formulou a expressão: práxis da libertação.

168
Psicología,¿ciência o no ciência? Uma mirada desde la psicología social de la
liberación – Juan Camilo Arias Castrillón (2010)

Ao investigarmos um pouco mais a fundo alguns autores da bibliografia de Báez


(2015), esse foi um procedimento recorrente neste trecho da tese, encontramo-nos com o
artigo de Castrillón (2010). Lendo-o, um fragmento nos chamou a atenção:

Psicología, ¿ciencia o no ciencia? Desde la psicología social de la liberación, ¡no


importa! Siempre y cuando sea práctica, pero sin olvidar la teoría; y esté encaminada
a liberar las minorías oprimidas, por eso la psicología debe liberarse primero de su
propia esclavitud para poder encaminarse en la liberación de los pueblos
(CASTRILLÓN, 2010, p. 3).
Não julgamos que seja demasiado rigor contrariar a citação de Castrillón (2010).
Primeiro porque no final do parágrafo ele ressalta ter lido “Martín-Baró, 1986”, ao
recorrermos à sua bibliografia para consultar o texto citado, notamos que o autor “deduz” sua
interpretação do artigo Hacia una Psicología de la Liberación; se formos minimamente fiel
ao próprio texto é improvável chegarmos a esse resultado. Segundo, porque a questão da
Psicologia ser ou não ciência não é escolástica, mas pedra angular. E terceiro, ao que nos
parece que ele quis dizer MAIORIAS oprimidas e não MINORIAS como a citação acima
afirma.

Castrillón (2010) e nossas experiências nos congressos (advindas de participarmos das


intervenções de inúmeros profissionais nas atividades realizadas156) nos deram a conhecer, e o
próprio Báez (2015) flerta com isso, que há uma estranha acepção de ciência circulando entre
os muros da psicologia “da libertação”.

No congresso de Cuernavaca (2016), no México, esse tema foi gatilho de uma


polêmica entre os integrantes do “campamento Paulo Freirexviii”; eixo que compomos naquele
evento. Em linhas gerais, e sabendo do risco de simplificação excessiva, a complexa atividade
social humana denominada ciência tem sido compreendida de forma vulgar e
contraditoriamente enviesada. Em outras palavras, há confusão entre o que “é” a atividade
científica, com alguns de seus desdobramentos reais cooptados pelo capitalismo. Registre-se

156
A impossibilidade de colhermos em um só feixe o que tem feito os psicólogos da libertação se esclarece ainda
mais quando percebemos como se organiza o corpo executivo responsável por realizar os congressos
internacionais da área. Os envolvidos optaram pela ausência de um corpo fixo, cada país ficaria responsável por
nomear alguns voluntários que cumpririam a tarefa de angariar recursos e efetivamente dar vida aos próximos
eventos, a decisão geralmente ocorre nas assembleias de encerramento desses congressos.
169
que sem discernimento teórico sobre as possibilidades reais (como sempre na acepção
aristotélica) das atividades humanas, corremos o risco de perseguirmos sombras, ao invés de
incisivamente encararmos os fenômenos sociais concretamente; o que necessariamente se dá
pela apreensão histórica deles.

É incoerente o modo como alguns congressistas da libertação maldizem a ciência,


como se ela fosse um símbolo da exploração europeia-estadunidense do capitalismo, porque
além de todo o já dito, esse argumento concentra um presentismo descomunal. Tratam-na (a
ciência) como se ela tivesse surgido com o europeu colonizador e não com o acúmulo de
experiências e práxis humanas originadas historicamente no/pelo trabalho que, mediado por
diversos complexos do ser social e do processo ascendente de incorporações intrassociais na
ontogênese (e na relação do psiquismo com a realidade), possibilitou uma atividade rica e
multifacetada como a científica.

Del discurso encantador a la práxis liberadora. Psicología de la liberación . Aportes


para la construcción de una psicología desde el Sur – Edgar Barrero Cuellar (2012/2015)

Contemplaremos criticamente a partir de agora a produção de uma figura de destaque


entre os que publicam sobre a psicologia da libertação, o colombiano Edgar Barrero Cuellar.
Prenunciamos, de largada, que este é o texto mais incisivo e acertado, no que diz respeito à
crítica as aproximações presentistas que unem Martín-Baró aos construcionistas sociais.

De acordo com Cuellar (2012/2015), não é possível definir a proposta do jesuíta sem
considerá-la como luta pelo direito a um pensamento próprio, no sentido latino-americano, e
que fomentam ações questionadoras. Citando Politzer, subscreve algo pertinente e até o
presente momento válido sobre a Psicologia que atende por científica: "la desgracia del
psicólogo es que nunca está seguro de hacer ciencia y cuando la hace nunca está seguro de
que ésta sea psicología" (p. 11).

Sua competência foi desmontar precipitadas análises que recortam trechos específicos
das obras de Martín-Baró e lhe vestem de trajes incoerentes ao conjunto dos textos. Não
temos dúvidas que a psicologia da libertação tem caráter anti-imperialista, anticolonialista e
de defesa das singularidades latino-americanas, contudo não podemos negar que sob essa

170
bandeira se escondam diferentes matrizes teóricas que por vezes, sem intenção explicita,
acabam por corroer os alicerces que a fazem justamente crítica e cientificamente relevante157.

Devemos reconhecer que Martín-Baró é desses que exemplificam nitidamente os que


começam a pesquisar por indignação com a miséria humana, e que, posteriormente,
descobrem sua origem socioeconômica. Não reputamos por justo desassociar daquele projeto
ético-político a noção de emancipação. Portanto, o que veremos a seguir é que a critica dos
construcionistas sociais aos elementos da chamada por eles “retórica da esquerda”, se feita à
moda que sugerem, deturpam os intentos de Martín-Baró.

Evidentemente, como nos alerta Cuellar (2012/2015), é preciso atenção para que não
acusem essa psicologia de simples ativismo comunitário ou academicista, uma vez que a
preocupação com pressupostos teóricos e as questões do método lhe foram primordiais158.
Não obstante, e sobre a temática, sabemos que o histórico afastamento entre ciência
psicológica e Filosofia, deixou marcas negativas. Na ânsia por ver-se reconhecida como
ciência, diversos cientistas levaram a Psicologia a becos sem saída, um dos mais graves foi o
esfacelamentos dos nexos entre práxis profissional e questões ético-políticas (e por que não
epistemológicas) tão caras e intrínsecas ao seu quefazer. Problema, diga-se de passagem, que
Martín-Baró enfrentou. Nos termos de Cuellar (2012/2015, p. 17).

No queda duda de que la Psicología nace a finales del siglo XIX como un
dispositivo de dominio, control y sometimiento de la subjetividad y como tal, desde
su nacimiento, sirve a intereses ideológicos de grupos minoritarios que utilizan su
saber cómo fuente de poder, sumisión, discriminación, estigmatización y
patologización. Todo ello como un apéndice más de la racionalidad positivista que
le impuso al psicólogo un rol de científico adaptador con pretensiones de
neutralidad.
De acordo com esse autor, e interpretando Martín-Baró, propor libertação é desafio
que não apenas supõe libertar-se dos “psicologismos”, como dizia Martín-Baró, mas também
romper radicalmente com as tradições positivistas e, recentemente, construcionistas na
Psicologia, que por vezes distorcem suas potências críticas (por meio de uma interpretação
subjetivista da História; por exemplo, negam-na como fonte de conhecimento e inspiração
para construção de projetos societários distintos do imposto pelo capitalismo).
157
Com Vigotski (2009), aprendemos que a base do pensamento é afetivo-volitiva, logo a motivação que nos
conduz à pesquisa científica não é (pensemos nas primeiras investigações realizadas por cada um de nós do
ponto de vista histórico) aquela que já está revestida de domínio pleno dos diferentes métodos de objetivação do
conhecimento. Desde esse ângulo, não é difícil reconhecer que no começo era a curiosidade, e não a fluência no
materialismo histórico-dialético que nos capacitou a aperfeiçoar nossos interesses nas ciências humanas.
158
No que se refere aos desvios e as confusões do próprio Martín-Baró elencamos sumariamente mais exemplos
na seção seguinte desta pesquisa.
171
Não raro, vemos que intelectuais e militantes que propuseram a revolução como
ordem do dia tiveram suas ideias e ideais distorcidos, manipulados e cooptados, por interesses
que não se assemelham aos originais. Se em alguns casos as distorções são frutos do
desconhecimento e da ingenuidade, há outras que, sob vieses políticos específicos, desfiguram
os núcleos centrais desses projetos, amenizando o caráter explosivo e revolucionário deles,
banalizando-os. Endossamos o que Cuellar (2012/2015, p. 23) escreve:

De hecho, una de las formas más sofisticadas de las guerras psicológicas actuales,
consiste en crear discursos que distorsionan los planteamientos potencialmente
peligrosos hasta el límite de llegar a vaciarlos completamente de su sentido
originario. De esta forma se termina justificando su desaparición física y/o
simbólica.
Citando a pesquisadora María Auxiliadora Banchs159, o autor comenta, por exemplo,
que ela propõe que Martín-Baró era construcionista (por que compartilharia a perspectiva de
que os humanos são construtores de suas realidades e que afirmava o papel de “legitimador do
sistema social” da Psicologia).

O colombiano prossegue dizendo que reconhecer as convergências não é o mesmo que


falar de identidades. Ou seja, Martín-Baró crítica concepções e narrativas dominantes sobre a
América Latina, mas se distancia profundamente da acepção que renuncia à História (e a
historicidade) como possibilidade de recuperar o passado e do conhecimento do que se nos foi
(e é) negado; caso isso seja apagado em sua obra, deformaríamos seus traços emancipadores.
Os construcionistas deixam evidente que discordam de nós, na citação de Cuellar (2012/2015,
p. 25):

El análisis [dos construcionistas] parte de este hecho: construimos activamente los


objetos que constituyen nuestra realidad. En consecuencia, la Psicología Social
como crítica, niega el valor intrínseco de la búsqueda del conocimiento como
emancipación. Lo que sí el conocimiento nos puede aportar, en este planteamiento
como operación concreta es la preocupación ética por construir la propia vida como
algo que valga la pena, como algo que sea valioso. Dado que a este objeto se oponen
las estructuras de dominación y el concepto positivista de ciencia y el conocimiento
de los expertos, se ha de enfrentar, todo ello, de forma comprometida con nuevas
prácticas, esto es, un querer que nuestra propia vida sea un objeto valioso. Atrás

159
A citação que faz de Banchs é a seguinte: “[…] lo singular es que ya en 1983 el texto que nos ofrece Martín-
Baró se ubica desde esta perspectiva que sigue el camino del hacer y deshacer para seguir adelante (ver Ibañez,
1989), y el camino de la Psicología Social crítica (Wexoer, 1983) de desenmascarar el papel legitimador del
sistema que han jugado los conocimientos de la Psicología Social. En este sentido, encontramos en Martín-Baró
a un psicólogo social construccionista (negrillas mías), es decir, que considera que los conocimientos sobre la
realidad social son eminentemente históricos y, por lo tanto, eminentemente provisorios, por lo cual hace falta
revisarlos permanentemente, desconstruirlos y reconstruirlos”. In: BANCHS, María A. La propuesta de
Ignacio Martín-Baró para una Psicología Social latinoamericana. En: Anthropos, revista de documentación
científica de la cultura. Mayo, 1994, no. 156, p. 53. (p. 23).
172
queda el ideal ilustrado y moderno de la liberación por el conocimiento; este no es
160
suficientemente eficaz para modificar las realidades sociales de dominación .
Ele persiste, na mesma página:

Mientras que la psicología de la liberación aboga por un conocimiento psicosocial


de carácter emancipatorio y liberador a través del cual tanto el psicólogo como las
comunidades logran acceder a los registros históricos de las estructuras de poder que
les han mantenido sometidas y dominadas; el construccionismo no encuentra
atractivas las categorías de emancipación y liberación por considerarlas como otros
mitos fundantes de la modernidad y se limita a la consideración ética sobre los
modos de vida como algo que vale la pena o que es valioso; y por tanto, le propone
al psicólogo buscar nuevas prácticas, pero no enuncia ninguna en aras de dar cabida
a lo que pueda venir.

Se, para a maioria dos construcionistas categorias como ideologia, classe social,
emancipação etc., são indigestas, a postura de criticidade que eles ostentam efetivamente
deixam lapsos nas questões da práxis. Se, como afirma Kenneth J. Gergen (um dos nomes
fortes dessa perspectiva na psicologia social) em inúmeras oportunidades, é preciso abster-se
de voluntariamente afirmar ou negar algo, (será que mesmo a violência, a miséria, as guerras
etc.?), temos entre essa perspectiva e a proposta de Martín-Baró sérias distinções. Em outras
palavras, a discussão sobre a transformação da realidade é suprimida por uma luta que
consiste em modificar o que se diz sobre ela. Cuellar (2012/2015, p. 27) complementa:

Si para el construccionismo no existe verdad, tampoco existe la realidad y mucho


menos, el andamiaje ideológico que la sostiene. Tan sólo existen construcciones
sociales que se sitúan en el plano de la intersubjetividad y por lo tanto, son relativas
a las personas que las construyen y a sus contextos. Todo se reduce a una especie de
nihilismo que niega la realidad y sólo acepta lo que se diga de esa realidad como
criterio de legitimidad.
Já trouxemos argumentos teórico-críticos que dedetizam pragas que frequentemente
crescem nesses campos de discussões. O debate sobre a existência ou não da verdade pode
direcionar a ciência a um silêncio embrutecedor quanto à realidade concreta vivida pela
maioria dos seres humanos. Se a entendemos como produção aleatória da vontade (humanos
como construtores sociais ou demiurgos), a exploração e a pobreza, por exemplo, perdem suas
dimensões objetivas e subjetivas, sua concretude, e corremos o risco de tratá-las como fruto
de deliberações discursivas sobre elas; como se fosse apenas uma questão de discursar
melhor. Não julgamos que seja demasiado rigor contrariar “teorias” que questionam a
realidade da pobreza, ou em uma versão mais sofisticada, que tenta promover diálogos entre

160
Anthropos revista de documentación científica de la cultura. Marzo-abril, 1998, no. 177, p. 6.
173
os exploradores e os explorados para que juntos cheguemos a um acordo pacífico e
democrático sobre a condução da vida na sociedade capitalista.

Tratando-se da Psicologia, os problemas são palpáveis. Se a historicidade e a História


perdem prioridade na apreensão teórica da categoria memória, por exemplo, entendida à moda
das psicologias idealistas e subjetivistas (construcionismos sociais), o foco passa a ser o que o
indivíduo se lembra, não os fenômenos sociais historicamente produzidos em si mesmos e em
seus processos históricos de desenvolvimento. O discurso ocupa, assim, a posição de objeto
analítico e não o fenômeno. Parafraseando José Paulo Netto, isso não passa de receita nova
para um pudim velho161.

Se analisarmos cuidadosamente, a falta de acuidade na concepção da História pode


produzir um efeito colateral que apesar de originariamente distinto daquele do positivismo,
acaba por negá-la, tratando-a como produção individual (do ponto de vista singular), e não
dos seres sociais. Em última instância, e por exemplo, uma tragédia como o rompimento das
barragens de Fundão (Mariana, em Minas gerais), no ano de 2015, perde a existência como
realidade em si, e torna-se apenas produto da memória individual que se tem desse
acontecimento. A postura dos construcionistas sociais (não todos) precisa ser diferenciada da
de Martín-Baró, ainda que alguém sugira que ele parte de uma concepção idealista de
História, estamos diante de alguém que não abria mão da razão. Em vários momentos
descambaríamos para um irracionalismo simplista seguindo os construcionistas sociais.

Em diversos escritos, como veremos a seguir, o jesuíta fala de uma memória histórica,
do resgate de virtudes populares, ou seja, faz referência à importância do estudo da História
para a apreensão científica das identidades dos processos grupais com os quais trabalha. Só
com muitas manobras retóricas o tiraríamos do campo dos que discutem a emancipação como
uma tarefa histórica da humanidade.

Acreditamos que esses argumentos pavimentem a via que tira Martín-Baró das zonas
construcionistas sociais e pós-modernas de forma geral, ainda que, como veremos com
Oropeza (2016), saibamos que o construcionismo tenha surgido como crítica ao modus
161
Ainda sobre o exemplo, o colombiano registra: “[...] la memoria sólo actúa como discurso que actualiza
constantemente el pasado, el cual también es asumido como discurso y no como realidad; con lo cual se puede
caer fácilmente en una concepción relativista y reduccionista de lo histórico, que al negar el pasado como
posibilidad de transformación del presente, puede terminar legitimando discursos y prácticas autoritarias que
parten justamente de la negación de la historia como realidad vivenciada y sufrida; para dar paso a una memoria
supuestamente autónoma en la que las personas “deciden libremente” lo que recuerdan y lo que olvidan”
(CUELLAR, 2012/2015, p. 29).
174
operandi da Psicologia hegemônica e, por isso, demande analise cautelosa, apreendendo suas
contradições internas. Note-se que mesmo a psicologia da libertação sendo relativamente
nova e plural, em seu autor principal, é possível divisar sutilezas e complexidades que sem
dúvida a catalogam como avanços científicos.

Seguindo com a análise, Cuellar (2012/2015) trazendo ao texto o apontamento de


González-Rey (2011)162, que registra que a psicologia da libertação se desintegrou pouco
depois da morte de Martín-Baró, entre outras coisas, “por efectos del eclecticismo, los
intereses personales y la irrupción seductora del construcionismo” (p. 31) nos alerta sobre a
“sedução” dos relativismos. Ele traz uma emblemática citação do sociólogo Boaventura de
Sousa Santos, e partindo dela, entrarmos em outro aspecto de nossa crítica:

Son múltiples las concepciones que se definen como posmodernas. Las


concepciones dominantes, que incluyen nombre de pensadores importantes como
Rorty (1979), Lyotard (1979), Baudrillard (1984), Vattimo (1987), Jameson (1991)
presentan las siguientes características: crítica del universalismo y de las principales
narrativas sobre la linealidad de la historia expresadas en conceptos como progreso,
desarrollo o modernización que funcionan como totalidades jerárquicas; renuncia a
proyectos colectivos de transformación social, siendo considerada la emancipación
social un mito sin consistencia; celebración a veces melancólica, del fin de la utopía,
del escepticismo en la política y de la parodia en la estética; concepción de la crítica
como deconstrucción; relativismo o sincretismo cultural; énfasis en la
fragmentación, en los márgenes y periferias, en la heterogeneidad y en la pluralidad
(de las diferencias, de los agentes, de las subjetividades); epistemología
constructivista, no fundacionalista y antiesencialista12. (CUELLAR, 2012/2015, p.
32-33).
Ainda que, até aqui, vimos que arrancar as profusas críticas que Martín-Baró
empreende ao modo de produção capitalista (ou seja, ao modo de produção que engendra
certa organização política específica) é incoerente. Afirmar que ele não objetiva colocar os
saberes da ciência psicológica a serviço do que ele chama de maiorias exploradas não
encontra respaldo nem seus textos, nem em sua práxis.
162
A citação do cubano é a seguinte: “¿Qué elementos contribuyeron en la desintegración de ese importante
movimento[da psicologia da libertação]? Considero hoy que la muerte de Martín Baró tuvo un fuerte impacto,
pues sin dudas él expresaba el liderazgo teórico y el alma realizadora principal de aquel esfuerzo orientado a una
psicología de la liberación. Creo que el eclecticismo que he referido antes fue llevando a la creación de múltiples
aproximaciones a cuestiones concretas que se fueron convirtiendo en fines particulares de grupos específicos de
trabajo, y que influyeron en el debilitamiento del trabajo colectivo orientado a cuestiones fundamentales que
pudieran sustentar el desarrollo ulterior de esta línea de trabajo. También tuvo un papel en ese proceso
desintegrador el impacto seductor del construccionismo social que, monopolizando la novedad y la crítica, se las
arregló para desestimar como obsoleto todo lo anterior, como resultado de lo cual el propio pensamiento de
Martín Baró sufrió, pues de hecho se le citaba más de lo que se le usaba. Ante el precario eclecticismo que
dominaba y la necesidad de una base teórica que estaba en desarrollo, la fuerza y capacidad de sugestión del
construccionismo social llevaron a una adhesión que “olvidó” los desafíos de una Psicología de la Liberación, y
vio en el construccionismo la herramienta que faltaba, lo que creo que hoy, ya es pensado de otra manera por los
propios autores que se orientaron en su momento por esa opción”. Psicolatina, ULAPSI En línea. Latinoamérica:
agosto 2009, no. 17 Citado 3 noviembre 2011. Disponivel em: http://www.psicolatina.org/17/america-
latina.html. (GONZÁLEZ-REY apud CUELLAR, 2012/2015, p. 32).
175
Em resumo, não são poucas as tentativas de desorientar o proposto por Martín-Baró.
Seja quando se analisa os intentos de arrastá-lo ao construcionismo social, seja quando de
modo mais consequente e sutil vemos deformações como as que sugerem Montero (2012)163,
principalmente na ênfase que ela dá aos aspectos “democráticos e civis” que supostamente
estão presentes no jesuíta. Ao mencioná-la nesse contexto, não queremos dizer que a
venezuelana não reforça o caráter emancipador da proposta da psicologia da Libertação e que
não saliente que a ética e a politica são componentes imprescindíveis para a entendermos. Em
outras palavras, advogamos que muito além do plano linguístico (da construção de discursos
descolonizadores, anti-imperialista, anticapitalistas etc.) é preciso considerar a práxis dessa
psicologia (na acepção por nós trabalhada no ensaio) para a entendermos.

No capítulo dois análisamos brevemente a situação concreta de El Salvador no período


em que Martín-Baró produziu seus trabalhos. Relembremos apenas que a guerra civil e a
situação de calamidade por si já convocaria desafios específicos a uma Psicologia que
pretendia partir da realidade. Já enfatizamos o quanto a situação de exploração imposta a El
Salvador pelo capitalismo (nomeadamente na figura dos Estados Unidos) e os chamados
“conflitos de baixa intensidade” são elementos importantes para entendermos as preocupações
de Martín-Baró. Como nos recorda Cuellar (2012/2015, p. 37):

Esta política de guerra sucia fue ampliamente denunciada por Martín-Baró en


diferentes escenarios. Uno de ellos fue la Universidad de Berkeley en la que
participó como invitado del simposio “Consecuencias psicológicas del terrorismo
político” en el año 1989. Allí sostuvo categóricamente la forma como los Estados
Unidos junto al gobierno salvadoreño, utilizan la guerra sucia como mecanismo de
obediencia a través del terror estatal: “No parece que la así llamada “guerra de
contrainsurgencia” que están llevando a cabo el gobierno de los Estados Unidos y el
gobierno salvadoreño, llamándolo -¡qué hermosas palabras!- “conflicto de baja
intensidad” pueda ser llevado a cabo sin incluir el terrorismo político, que es una
parte, un elemento esencial de este tipo de guerra”
Da perspectiva epistemológica, Cuellar (2012/2015) atesta que o projeto de Martín-
Baró pretendia alinhar saberes e técnicas da Psicologia aos problemas reais dos mais pobres

163
Nas palavras dela: “La psicología social de la liberación, complementa su carácter liberador con la
perspectiva crítica de sí misma en tanto que modo de producción de conocimiento y fuente de impulso para el
cambio social. El aspecto crítico se manifiesta en el carácter reflexivo (auto y heterorreflexivo), el cual incorpora
un continuo escrutinio de su quehacer, de su cómo hacer y de sus efectos; así como también en el rechazo
liberador de cualquier forma asimétrica del poder. Los objetivos más importantes por los cuales suele ser
reconocida esa corriente son: 1. Cambios sociales surgidos desde la base de la sociedad: desde los oprimidos,
excluidos y menesterosos. 2. Crear una psicología popular, recuperando el carácter histórico de nuestros pueblos
y el saber popular de los mismos. 3. Carácter democrático y participativo de las relaciones inter e intra grupales.
Búsqueda de democratización de la sociedad. Fortalecimiento de la democracia. 4. Concientización de la
población. 5. Fortalecimiento de la sociedad civil. Participación y responsabilidad crecientes de las comunidades
en las decisiones sobre su entorno, su bienestar y su calidad de vida. 6. Solidaridad social13”. (MONTERO
apud Cuellar 2012/2015, p. 33-34). Para mais informações verificar Montero (2014).
176
entre os latino-americanos (aliás, nenhum interlocutor que lemos negou essa informação). O
que é omitido por alguns é que o jesuíta chega mesmo a propor uma psicologia de classe, uma
que ajudasse a “desentrañar los dispositivos ideológicos que son incorporados por las
personas al punto de llegar a identificarse con los intereses de los grupos dominantes que les
someten a obediencia y servidumbre” (p. 38).

Uma profunda convicção de Martín-Baró era que a realidade deveria ter prioridade
sobre as construções epistemológicas e não o contrário, afirmamos anteriormente que o tema
será revisto criticamente, apenas ressaltamos que esses tipos de sentenças formam os
“chavões” entre os leitores do jesuíta, além do que enfatizam o fato de que os saberes devem
nutrir-se das comunidades e dos processos grupais, e não serem enxertados neles. Nas
palavras do colombiano a práxis naquela obra:

“tiene un valor y un significado muy elevado [...] para quien [Martín-Baró] la práxis
antes que ser un concepto es una vivencia ética que empieza con la denuncia y que
continúa con el andar haciendo junto a las clases menos favorecidas” (CUELLAR,
2012/2015, p.41).
Se quiséssemos não seria difícil discernirmos traços “marxistas” na práxis e nos textos
de Martín-Baró, conquanto, seu significado esteja embebido da proposta da teologia da
libertação. O chamado “princípio de realidade” (CUELLAR, 2012/2015, p. 43), que também
já resvalamos anteriormente, seria o motor da práxis. Já demos pistas de que facilmente se
poderia cair em um realismo ingênuo ao acreditar que a sociedade e os problemas sociais que
a constituem são “sensivelmente/empiricamente” percebidos pelo que “sentimos” sobre esses
problemas, a despeito da concretude deles.

Que a ética surge como mediação no psiquismo para a ciência e práxis revolucionária
não resta dúvida, apenas enfatizamos que a boa intenção dos profissionais da Psicologia não é
suficiente para atestar a “direção” e a “correção” de seus posicionamentos políticos; ainda que
esses se manifestem em sua aparência como efetivamente alinhados aos dos trabalhadores. Se
a tarefa histórica é passar da teoria à prática (e para o jesuíta o primeiro passo é prático e não
teórico), essa superação não se dará mediante a vontade de fazer certo, mas, da apreensão do
movimento dinâmico e contraditório da realidade em si das coisas.

A práxis posta como princípio libertador da Psicologia passa a ser entendida como
conjunto de atividades profissionais orientados a determinados fins, e não como vimos com

177
Lukács (1986/2013), como momento ontologicamente fundante do ser social164. Ainda sobre
o tema, para o militante salvadorenho a práxis exige um compromisso pessoal (profissional)
que necessariamente é político e que começa por indignar-se com a situação desumana que
aflige os mais pobres165.

Vimos com outros comentadores que a proximidade da Psicologia à Pedagogia,


justamente sobre questões que envolvem o que Martín-Baró chama de desideologização das
ciências sociais latino-americanas, é notória. Desde interpretes mais crítico-revolucionários,
como veremos Oropeza (2016), até mais reformistas, como Montero (2012) e Osorio (2009),
nota-se uma constante: a presença da educação popular de Paulo Freire e da sociologia crítica
militante de Orlando Fals-Borda. Se há quem constate alguma originalidade no projeto ético-
político de Martín-Baró certamente a impressão não pode se esquivar de passar antes por
esses dois autores. De acordo com Pizzinato (apud Cuellar, 2012/2015, p. 52):

[...] son varios los puntos de encuentro entre estas dos corrientes de pensamiento
crítico con la psicología de la liberación: la perspectiva generadora de práxis
liberadoras, la intención políticamente comprometida con la transformación de la
realidad, el cambio de roles y relaciones entre agentes externos e internos, el rescate
y valorización del saber popular, la vinculación de las comunidades a procesos
participativos de investigación y la desideologización, entre muchos otros. No puede
quedar duda sobre la identidad epistemológica, metodológica y ética entre estas tres
formas de praxis en las ciencias sociales latino-americanas.

Para concluir as colaborações de Edgar Cuellar ao nosso estudo, sintetizamos o que


aponta como quatro eixos fundantes, em sua leitura, da obra de Martín-Baró:

a) O marxismo e as noções de ideologia, emancipação, relações de poder,


historicidade e consciência de classe;

164
Os prejuízos da ausência de diferenciação foram tangenciados nas próximas páginas, queremos por agora,
denotar preliminarmente que há diferenças entre nossa acepção de práxis e a de Martín-Baró.
165
Cuelllar (2012/2015) salienta a importância dos textos de Ignacio Ellacuría no campo da filosofia da
Libertação, principalmente no que diz respeito ao “partir” da realidade latino-americano para produzir
conhecimento. Citando Dussel, outro importante filósofo do período, e já resvalado algumas vezes nesta tese, e
para endossar seu argumento, acrescenta com as palavras do argentino: “Regresar a Argentina en 1967, como
profesor universitario, en el momento del gobierno militar de Onganía, bajo el plan desarrollista de Drieger
Vasena, no era fácil, pero era al menos una situación propicia para la resistencia crítica de un filósofo que
retornaba y no sabía por cuánto tiempo. Al comienzo todo fue fenomenología: desde Max Sheler a Merleau
Ponty, Ricoeur, Husserl y Heidegger. En Argentina la tradición heideggeriana había crecido mucho. Nada de
pensamiento latinoamericano. La tarea era lenta, difícil, oscura. El europeísmo campeaba en el pensar nacional.
Sin embargo, ya en 1968, más en 1969, se comenzó a hablar de la doctrina de la dependencia. En reuniones
interdisciplinarias con sociólogos y economistas, comenzamos a descubrir la necesidad de independizar la
filosofía en América Latina. En 1969, discutiendo con sociólogos en Buenos Aires vi profundamente criticadas
mis opciones filosóficas básicas. Allí surgió la idea: ¿Por qué no una filosofía de la liberación? ¿Acaso un Fals
Borda no habla de “sociología de la liberación”? ¿Cuáles serían los supuestos de una tal filosofía?”( p. 45).

178
b) A escola de Frankfurt e os aspectos culturais da crítica ao modo de produção
capitalista;
c) A teologia da libertação e suas noções de comunidades eclesiais de base e
trabalho direto com os processos grupais dos mais pobres;
d) A pesquisa ação-participante de Orlando Fals-Borda, que reforça o
compromisso entre pesquisador e população envolvida com a pesquisa.

Ignacio Martín-Baró: una lectura en tiempos de quiebres y esperanzas – Ignacio Dobles


Oropeza

O último comentador da obra de Martín-Baró que discutimos foi o costarriquenho


Ignacio Dobles Oropeza; com a análise do seu recente livro (2016). Ele pôs-nos face a um
problema imediato de ordem prática. Muito da proposta inicial desta tese, que consistiria em
uma análise panorâmica das publicações contemporâneas de alguns autores e autoras que de
alguma maneira mantiveram vinculo com Martín-Baró foi desmantelada quando lemos seu
livro166.

A brochura é bastante didática e cobre boa parte do que pretendíamos fazer. É evidente
que nós mesmos poderíamos realizar “outra” revisão, para atestar se de fato são pertinentes os
apontamentos feitos por Oropeza, mas isso nos afastaria significativamente de nosso objetivo
final, que é aprofundar-nos criticamente na leitura de Martín-Baró para apreendermos suas
contribuições à Psicologia Concreta. Portanto, com Oropeza (2016) passaremos a um tipo de
exposição diferente da que vimos até.

***

166
Vem a tempo e a propósito retirar algumas etiquetas que por ventura se nos tenham colado até aqui. A
dessemelhança de Oropeza (2016), amigo de Martín-Baró, nesta tese não o chamaremos de “nuestro autor”.
Registramos que o trabalho do jesuíta nos foi e é fonte de inspiração, mas rejeitamos qualquer associação
superficial do que pretendemos com a criação de um “martinbaronianismo”. Nosso objetivo ao lermos sua
extensa e desafiadora obra nada teve canonização científica. A qualidade estilística e o conteúdo de seus textos
considerados ponderadamente já lhe garantem notabilidade científica por si só; portanto, não cremos que seja
necessário relembrar que reconhecer e admirar sua postura e sua práxis não indica que “aliviaremos” as críticas
que, por ventura, tivermos condições de realizar. É exatamente porque o respeitamos e cremos que seus textos
são ricos é que fomos estimulados a criticá-lo.
179
Apontamentos da leitura de Oropeza sobre a obra de Martín-Baró

Oropeza (2016) compôs extraordinária introdução para sua publicação narrando seu
primeiro encontro com Ignacio Martín-Baró167. Afora isso, ele começa seu texto justamente
pela questão da ética, e afirma que ser ético significa assumir valores e compromissos, sem
que a parcialidade tenha que contrariar o rigor ou a objetividade (veremos com o próprio
jesuíta as implicações de utilizarmos a expressão parcialidade), e em sua perspectiva era isso
que o jesuíta fazia. Qualquer análise que ampute o engajamento do militante salvadorenho,
para ele não deveria ser digna de apreço, e com isso concordamos. Ele defende que o melhor
sentido da palavra radical cai bem para definir Martín-Baró, pois sua audácia em se
comprometer com problemas acadêmico-científicos e seu posicionamento ético-político
buscava “raízes” sociais dos fenômenos que estudava.

Traremos, e essa será uma característica da exposição a partir de agora, diversos


elementos (conceitos e categorias) para saturar a sentença que taxa que Martín-Baró se
comprometeu com a realidade social latino-americana. Por sabemos dá polissemia que os
vocábulos compromisso e transformação social assumem na ciência latino-americana cremos
que nesse caso se faz valer a máxima do “matar a cobra e mostrar o pau”. Transformação
social pode ser tanta coisa que inclusive pode ter nada em comum com os conteúdos da
palavra revolução168. Cravamos que, no caso do militante salvadorenho, seu compromisso

167
Por acaso, e em um voo a caminho de Caracas, Venezuela – por ocasião do congresso da Sociedade
Interamericana de Psicologia, em 1985; aliás, foi nesse ajuntamento que o jesuíta apresentou aos psicólogos
latino-americanos “oficialmente” seu cartão de visitas, suas intervenções no evento foram dignas de notas
positivas tanto da parte de Maritza Montero quanto de Ignacio Dobles. Seguindo o fluxo proposto, julgamos que
também valha a pena mencionarmos como conhecemos o costarriquense debatido nesse momento; em uma de
suas intervenções orais em um congresso internacional. E isso explica a razão de abonarmos seu conhecimento, e
também explica porque seus escritos, dentre todos os outros lidos, julgamos serem os mais “abrangentes”.
Estávamos na Universidade Central da Venezuela, em Caracas, no ano de 2010, quando uma figura de barba e
cabelos brancos, com um espanhol acelerado pediu a palavra e fez intervenção que resumiríamos dessa maneira:
“– Esperar que a psicologia de libertação seja devidamente reconhecida nas ementas das disciplinas de
Psicologia nas Universidades latino-americanas só fará sentido quando o capitalismo não for mais o patrão do
continente Americano”. Aquela altura ele ainda era um ilustre desconhecido e só anos depois juntaríamos aquela
fala aos textos que lemos dele. A organização do congresso internacional da psicologia da libertação, em 2012,
na Colômbia, encarregou-se de nos colocar juntos no mesmo “grupo de trabalho”. Na ocasião debatemos a
educação brasileira e os desafios do ensino da Psicologia em universidade privadas, o teatro do oprimido, e com
Oropeza, a situação de alguns movimentos sociais na Costa Rica. Foi uma discussão interessante, e outra vez,
saímos convictos do tom áspero que ele assumia em relação a diversos rumos da “psicologia da libertação”. A
terceira e última oportunidade, em que pudemos ouvi-lo presencialmente, foi quando assistimos na Universidade
de São Paulo, em 2016, uma apresentação sobre o livro que agora lhes apresentamos.
168
Vale, entretanto lembrar que a ciência sempre é construção dentro de uma particularidade histórica específica.
Isso quer dizer que qualquer pesquisa rápida na internet sobre as ditaduras e a forte censura imposta a
180
com a transformação nem de longe foi algo abstrato, a despeito que as explicações sobre os
meios concretos para a alcançarmos tenham sido confusas, em diversos momentos de seus
textos.

Retomando o argumento que associa Martín-Baró aos significados da palavra radical,


em Pereira (2013), assim como em Oropeza (2016), ao que nos parece, não existiu pretensão
de rotulá-lo de “marxista”, mesmo reconhecendo que ele era um leitor dessa corrente teórica.
Sabendo disso exploramos, por outro ângulo, a crítica do costarriquenho, quando ele nos leva
a questionar a postura de Ibañez (2011) que vaticina que o importante em Martín-Baró era sua
“[...] voluntad de poner a la ciencia social al servicio de la defensa, la difusión y la aplicación
de los derechos humanos”169 (p. 217). Nessa direção, Oropeza (2016) prestou importante
serviço de revisão bibliográfica quando assinala a posição de alguns “críticos” da proposta de
Martín-Baró, nas palavras dele:

“[...] mientras que Iñiguez (1993), [...] opina que no es lo suficientemente crítico,
nuestro autor [Martín-Baró], ante el saber científico y ante las metodologías
existentes para crear saber en psicología, González (1999) señala, más bien, que no
le da el lugar debido al saber científico, al pretender sacarlo de su propia esfera para
valóralo”. (OROPEZA, 2016, p. 32)
Adiante exploramos com citações diretas dos textos de Martín-Baró, mas ainda sobre
os críticos acrescenta:

“[...] Jiménez (2007, p. 24) destaca que si bien no había, en su tempo, una conexión
metodológica (aunque sí política) del trabajo de Ignacio Martín-Baró, con lo que ya
se conocía como psicología social comunitaria en América Latina, apuntaban al
mismo “espacio”. Llama la atención, no obstante, como, nuestro autor resulta ser
duramente denostado en una publicación importante sobre la psicología comunitaria
latino-americana. El texto de Nelson Portillo. A juicio de este psicólogo
salvadoreño, Martín-Baró “obstaculizó el desarrollo de la psicología comunitaria en
el Salvador”, por sus concepciones cerradas ante la influencia
estadounidense.”(OROPEZA, 2016, p. 32).
Acerca da crítica aos críticos, Oropeza destaca que Portillo (2011) insiste que a
perspectiva de Martín-Baró era demasiadamente sociológica e minorava a dimensão e a força
das mudanças microssociais nas ações comunitárias. Em linhas gerais, o “preconceito

determinados países (Argentina, Chile, Brasil etc.) pode servir de pistas por que em alguns momentos inúmeros
intelectuais (como Silvia Lane, no Brasil, por exemplo) podem ter optado pela palavra transformação social ao
invés de “revolução”.
169
Um parênteses. A discussão sobre direitos humanos e sua relevância para emancipação política do ser social
situam-se acima de qualquer suspeita, mas resumir as críticas de Martín-Baró à esfera democrático-política-
representativa do ser social é apequená-lo demasiadamente, nossa principal suspeita para com a leitura dele
(Ibañéz) é de que a falta de clareza teórica lhe prejudicou. Mostraremos com exemplos extraídos dos próprios
textos de Martín-Baró (e retomando a análise da situação concreta de El Salvador), diversos momentos que
elucidam pormenorizadamente nossos apontamentos. Comecemos, por agora, com progressiva aproximação das
críticas as leituras mais pós-modernas de Ignacio Martín-Baró.
181
ideológico” de Martín-Baró (contra os ianques), para o segundo citado, teria sido o
responsável por atrasar o desenvolvimento da psicologia comunitária salvadorenha.

Um esclarecimento: o fato de Ignacio Dobles Oropeza ser um dos latino-americanos


mais experimentados nos assuntos que circundam a psicologia da libertação concede-lhe de
autoridade no assunto, por isso, e a despeito de uma ou outra rusga que temos com ele (a
postura dúbia que assume em uma passagem ou outra face ao nomeado construcionismo, por
exemplo), afiançamos que sua leitura se não é a mais ampla, mais do a que a de qualquer
outro que lemos pelo menos, é a que mais elenca fundamentos negligenciados por outros
autores. Seja porque cuida de rastrear nomes e perspectivas mais marcantes no
desenvolvimento histórico do pensamento do militante salvadorenho, ou porque, de certa
forma, suas produções são fortemente atreladas ao horizonte de trabalho alvidrado por Martín-
Baró170.

Sua análise da obra textual de Martín-Baró, começa pelo Psicodiagnóstico de América


Latina, texto de 1972, escrito, segundo ele, carregado de “inspirações” de Erich Fromm e
Hebert Marcuse e que enuncia alguns “pecados de juventud de un psicólogo joven”;
comentando que Martín-Baró tinha algo de idealista e romântico em suas críticas de
juventude, mas que posteriormente as desenvolveria com maior profundidade e, seguindo sua
linha argumentativa, talvez até uma maior “beatitude”. É estranho, no entanto, que ao
questionar a validade de algumas proposições de Hebert Marcuse, atesta, sem explicitar, que
“negar su vigecia [de Marcuse] de alguna manera sería negar la vigencia de nuestro autor
[Martín-Baró]” (OROPEZA, 2016, p. 51). Deve-se lembrar que ele abre essa seção de seu
texto com o título pecados da juventude.

Sejamos prudentes, a crítica de Oropeza (2016), é direcionada aparentemente bem


mais ao “pecado” Reich do que ao Marcuse. E, quanto ao prestígio dado a Reich, na obra de
Martín-Baró, ele de fato existe e é marcante, ainda que circunscrito. É preciso mencionar,
ademais, que além da filiação conceitual de algumas proposições (o nome do livro já
carregava o significado que mencionamos), Reich foi um intelectual assaz posicionado contra

170
Já sobre os autores que incidem e compõem a obra do salvadorenho 170, além dos já trabalhados por nós no
mestrado, Sartre, Freire, Freud, Marx e Lucien Séve, por exemplo, o costarriquenho complementa a lista citando
Herbert Marcuse (e as questões da escola de Frankfurt de modo geral) e Whilhelm Reich; ele chama de
inspirações sócio-históricas e psicossociais críticas a presença deles naquela obra. O constructo de Oropeza
(2016), inevitavelmente cria uma imagem de que o jesuíta “amadurece” com o passar do tempo, para o melhor e
mais complexo.
182
o fascismo e partidário da classe trabalhadora171. Nesse momento também se faz clara a
presença do psiquiatra francês de ascendência africana, Frantz Fanon; por nós também
comentada na dissertação (PEREIRA, 2013)172.

Assim como Marcuse, em Martín-Baró, desde cedo, notamos uma crítica à


naturalização dos saberes científicos, que quer dizer não outra coisa que uma generalização
indevida de conhecimentos, no mais das vezes que perde os nexos entre singularidade,
particularidade e universalidade. O contra-ataque a esse erro teórico é apreender a realidade
desde o movimento histórico que lhe é próprio, desde o materialismo histórico-dialético.
Outra característica que salta aos olhos é a relação que ele (Martín-Baró) estabelece ainda que
“intuitivamente”, da psicologia com a ideologia burguesa; o conceito de “desideologização”,
por exemplo, reforça nosso apontamento.

Outra coisa, o costarriquenho destaca a importância da apreensão da luta de classes no


capitalismo pela Psicologia, feita por Martín-Baró. Em tempos tão obscurantistas muito se
tem falado (vimos isso com os construcionistas sociais, por exemplo) que não há mais razões
para utilizarmos expressões tão esgarçadas e “genéricas” quanto essas, mas nada poderia ser
mais emblemático da parte de uma perspectiva míope face à realidade socioeconômica, do
que negar a existência de interesses contraditórios entre as classes sociais (o que não quer
dizer que em nossos dias, as mediações e a complexidade dessas classes sejam as mesmas que
atravessam a categoria no período histórico de Marx).

Apesar de, em algumas passagens, o modo como Martín-Baró retratar a luta de classes
não ser exatamente “preciso”, ele tende a uma simplificação excessivamente idealista de
alguns pontos, pode-se diagnosticar a “dialeticidade histórica” que, ainda que de modo
confuso, sem dúvida proporciona-lhe posição crítica em relação às “psicologias” de seu
tempo. Em suma, dizer que ele desconsiderava as lutas sociais em sua análise é equívoco. Um

171
Uma informação que não possuíamos sobre esse momento teórico da vida de Martín-Baró é o de sua
aproximação a Jesús Arroyo Lasa, “español de origen, antropólogo, professor de psicología em la UCA con
inclinación psicoanalítica, de posiciones conceptuales y políticas bien definidas, y que además evidenciaba um
estilo retórico punzante y agudo” (OROPEZA, 2016, p. 53), de acordo com o costarriquenho ele teria
influenciado bastante o livro. Ele também estava na banca de aprovação do trabalho final de curso de Martín-
Baró (1975a).
172
A crescente presença de Marcuse, no final da década de 1960 e início de 1970, no mundo acadêmico da
“esquerda” ocidental é indelével. Tanto o alemão quanto o jesuíta dão especial atenção ao papel da juventude
nos processos revolucionários daquele período. É curioso perceber a quantidade de vezes que Martín-Baró
retoma essas questões, seja falando de calouros universitários seja quando fala do potencial criativo e da força
juvenil (veremos com mais detalhes esses textos a seguir). Outro emblema patente desde meados dos anos 1970,
e que foi recorrente em todos os seus textos, à semelhança de Marcuse, é o anticapitalismo (OROPEZA, 2016).
183
subcapítulo de seu famoso livro Acción y Ideología, de 1983, se intitula: “Psicología de
Classes” (MARTÍN-BARÓ, 1983a, p. 100), por exemplo.

Para Ibañez (2011), como bem destacado por Oropeza (2016), existe um vício do
determinismo econômico nas teorias marxianas, que fazem sombra na proposta de Martín-
Baró (principalmente no conceito de ideologia e nas questões da luta de classes).
Discordamos de Ibañez (2011), duplamente. Primeiro porque só uma leitura negligente
associaria o fato de Martín-Baró utilizar a categoria classe social com alguma espécie de
determinismo econômico (não há razão para deduzir o determinismo nem da obra marxiana se
considerada desde uma análise imanente e coesa com seus pressupostos). E, segundo, porque
não acreditamos que a categoria ideologia, tenha sido bem trabalha nem pelo próprio jesuíta.
Retomaremos essa importante discussão sobre a ideologia, posteriormente, quando
trouxermos as contribuições de Lukács nas conclusões desta pesquisa.

O segundo elemento crítico apontado por Ibañez (2011) e exposto por Oropeza (2016),
é o manejo do jesuíta com a categoria práxis. A perspectiva de Ibañez (2011) “encaixa”
Martín-Baró na forma de um proto-construcionista. Ao longo dessa exposição acreditamos
que se distinga que apesar de Martín-Baró ter sido amigo de Thomas Ibañez (outro nome forte
e influente do construcionismo na Psicologia Social), muitas manobras seriam necessárias
para adequá-lo minimamente àquele constructo.

A utilização do critério “bibliométrico”, tentativa de outro espanhol e amigo de


Martín-Baró, Amalio Blanco, parece-nos tampouco suficiente para afastar Martín-Baró dos
“marxismos” e aproximá-lo dos pós-modernos. Diz Blanco (1998) que há progressiva
diminuição de citações diretas a Marx naquela obra (apontamos isso em Pereira, 2013); logo e
aparentemente, sua relação com o marxismo seria inversamente proporcional ao seu
amadurecimento teórico.

A própria armação do argumento se mostra frágil, pois é como se Blanco (1998)


tratasse como um fato inquestionável (e lógico) que exista relação imediata e direta entre letra
A e o algarismo 1, por eles serem os primeiros a figurarem em suas respectivas sequências.
Esse tipo de análise quantitativa só coloca mais lenha nas críticas tão duras feitas pelos pós-
modernos aos “cientistas” sociais que as utilizam, e nesse caso eles tem razão. Devemos dar o
braço a torcer, o mau uso das “quantidades” infelizmente não é algo tão incomum assim.

184
Trazendo mais interlocutores ao texto Oropeza convita Lacerda (2014), brasileiro que
tem se dedicado a estudos mais aprofundados da obra de Martín-Baró. Esse último, entra nos
campos da epistemologia e da ontológia para livrar a barra do jesuíta dos marxismos vulgares,
e nitidamente faz questão de espantar um “althusserianismo”; que, se por um lado, é legítimo
refutar, tamanha a presença de humanismos naqueles textos, por outro, é fato que no correr da
década de 1970 inúmeros deles são recheados de citações diretas “althusserianas”173 (a
própria definição do objeto da psicologia social, famoso entre seus leitores, ação como
ideologia, é tributária, mas não só, do estruturalista francês).

Ainda sobre a relação entre a obra de Martín-Baró e os marxismos, ao chamar Lacerda


(2014) e Adolfo Sanchez Vázquez (apud Kohan, 2013)174, Oropeza (2016) expõe o que pensa
sobre a questão, para ele:

La influencia del pensamiento de Marx en su obra [de Martín-Baró] pasa (el fácil
apreciarlo) por una de las tareas que Hayes (1996) considera fundamentales: la
articulación del método crítico marxista con lo que acontece en la vida cotidiana de
la gente. Ciertamente, como también relata Hayes (1996), el marxismo tiende a
ubicarse en la paradoja de mantener una visión del capitalismo como especie de
totalidad condicionante, a la vez que tiene el desafío de estar abierto a la
imposibilidad teórica de la totalidad social. [grifo nosso] (p. 69).
Oropeza (2016) apresenta aí, a nosso juízo, uma delicada (para não dizer errônea)
concepção do que seja totalidade social. Registre-se, no entanto que não sabemos se o
problema está em “Hayes (1996)”, não tivemos acesso a seu texto, ou no autor em tela. O que
nos inclina a supor que o equívoco se debite da conta do costarriquenho é que no parágrafo
seguinte, na outra página, ele escreve:

“la tendencia a la totalización teórica y societal, que há asomado en diversos


momentos históricos en el marxismo, debe ser considerada con precaución y
cuidado, y es algo de lo que considero se mantenía distante Martín-Baró en su
apropiacíon de dicha influencia teorética. (OROPEZA, 2016, p. 70).
A julgarmos pela confusão que o autor faz com a categoria totalidade social e a
expressão “totalização teórica e social”, não pensamos ser necessários maiores
esclarecimentos175. Retomando a questão da proximidade entre Martín-Baró e o marxismo,

173
Ver mais acerca do tema em Martín-Baró (1975e).
174
O costarriquenho faz uma citação confusa na pagina 70 de seu livro. Registra ter lido Kohan (2002), mas em
sua bibliografia, a obra mencionada não é descrita. Justiça seja feita ao brasileiro neste contexto. Não
entendemos bem qual a proximidade teórica de Kohan com Fernando Lacerda Jr. no texto em que Oropeza
(2016) cita, pois ao dizer que “hay que liberarla [a concepção marxista] de su ‘envoltura ontologizante’”
(OROPEZA, 2016, p. 70), ficamos sem entender o que isso significa e esse ponto não é retomado em sua obra,
mas pelas publicações de Lacerda Jr cremos que ele trilha outros caminhos.
175
Na página 70 de Oropeza (2016), vemos outra confusão entre marxismo teleológico com marxismo
determinista, ou com suas inúmeras vulgarizações de origem stalinista. Não convém explicarmos que teleológico
185
Oropeza (2016), relembra da categoria classe social como um dos principais sinais desse
entrelaçamento, e nisso estamos com ele, pois ela possibilita-nos a apreensão de fenômenos
sociais desde uma de suas mediações mais determinantes no capitalismo176. Contudo,
discordamos dele, e abordaremos detalhadamente essa problemática com os textos do próprio
Martín-Baró, pois, a nosso juízo, dos modos como são articuladas classe social, ideologia,
desideologização, conscientização e desalienação, não há como discernir com clareza,
utilizando apenas os textos de Martín-Baró (e não nossa boa vontade em alinhá-lo aos nossos
interesses), os nexos internos entre esses elementos (coerência teórica, em alguns casos).
Retomarmos a relação ideologia, psicologia e método na conclusão.

Um parênteses. Enalteçamos, por outro lado a habilidade com que Martín-Baró se


desvencilha de uma concepção subjetivista de classe social (coisa costumeira nas psicologias
mais à esquerda), definindo-as como realidades sociais, e não como um clube que
arbitrariamente alguém diz pertencer ou não. Isso por si só já seria um absurdo para alguns
colegas “girados pelo linguístico177”. Em outro momento, trabalharemos com mais calma a
expressão Psicología de classe, compreendida como mediação importante no processo de
desenvolvimento da personalidade dos indivíduos de uma determinada classe; por hora,
prenunciamos que taxar que os indivíduos de determinada classe se comportarão de
determinadas maneiras necessariamente, pode fazer ruir muito do que temos proposto até
aqui178.

não significa algo fatalmente determinado, quando no ensaio mencionamos que teleológico, em Marx, está
sempre atrelado à práxis humana, enterramos essa questão. Entretanto, e nisso estamos com o costarriquenho,
Martín-Baró não deve ser entendido como alguém que desprezava o que ele próprio chamava de práxis. E mais,
com Lacerda (2014), destacamos a radical historicidade com que o jesuíta trata a realidade social, o ser social
como produto da práxis, a individualidade como impossível sem sociabilidade (não o acompanhamos, contudo
no uso que ele faz da expressão determinação reflexiva, pelo comentário que fizemos sobre o conceito de reflexo
no ensaio), o exame da anatomia burguesa, o horizonte revolucionário de sua práxis e, por fim, a superação da
sociabilidade burguesa.
176
Ressalve-se, apenas, o pouco cuidado crítico-teórico dispendido pelo jesuíta na explicação de expressões
como “enraizamento classista”. O que em nada justifica desprezamos que a categoria classe social permanece
uma constante em sua obra ao longo dos anos.
177
Soa patético ter que lembrar que não é por que alguém anuncie ser o dono de um banco que um funcionário
desse banco, na boca do caixa, dará todo o dinheiro que esse “dono” pedir. Só mesmo dentro de um, por vezes,
estreito e mistificante, consultório tudo o que alguém diz é considerado como plenamente verdadeiro em todos
os sentidos possíveis.
178
No meio desse debate (sobre classes sociais) termos como “convencimentos ideológicos” usados por Oropeza
(2016), também merecem atenção dobrada. Se se compreende a ideologia como algo manipulado ou manipulável
por indivíduos isolados ou um grupo isolado, sem apreendermos a totalidade social que lhe constitui e os
interesses sociomateriais e econômicos que eles engendram, mesmo sem ter a intenção explícita, incorre-se em
uma acepção de ideologia como algo “criado” pelo subjetivismo.
186
Não temos dúvida de que a forma de socialização dos indivíduos seja condicionante de
sua identidade e de sua práxis, mas isso não é o mesmo que afirmar que ele está determinado
ontogeneticamente de modo fatalista a estratificação social (lembremos que, em casos
excepcionais, os indivíduos podem mudar de classe social). O problema detectado por “não
marxistas”, e pelos críticos pós-modernos em geral, está na “pobreza teórica” com que a
aproximação entre ser social singular e a categoria classe social é feita; e concordamos com
eles nisso. Qualquer psicologia de botequim faria estremecer a bases de qualquer “marxista”
que postulasse algum determinismo sociologizante no processo de desenvolvimento da
personalidade do ponto de vista ontogenético179. Aprendemos com Lukács (1986/2013) que
dizer que a classe social tem relevância ontológica como momento social constituinte da
ontogênese NÃO é o mesmo que escalonar juízos de valores sobre as categorias mais
importantes de uma análise. Não desprezamos “raça”, gênero, religião etc., em favor de classe
social, apenas insistimos que enquanto o capitalismo dividir as sociedades humanas em
classes, não considerá-las traz prejuízos ao próprio fazer da ciência.

Nisso direção estamos com Martín-Baró (1984c), por exemplo, quando aponta que as
classes existem como: determinação objetiva no complexo formativo da personalidade
humana, situada concretamente como possibilidades sociomateriais definidas, nas formações
históricas das necessidades sociais dos indivíduos, nas atividades que lhes são postas como
possibilidades reais estimuladas e exigidas pelas suas próprias relações sociais; pela
transmissão de valores e normas, que servem para legitimar as necessidades individuais e os
próprios interesses de classe180. Por fim, queremos dizer que tanto assinalar características
“inerentes” aos trabalhadores quanto “idealizar” suas “capacidades transformadoras” são erros
que devem evitados.

Prosseguindo na análise da obra de Martín-Baró, Oropeza (2016) afirma que ele


rompe com o individualismo, com o positivismo e com uma concepção homeostática que
descrevia a sociedade como isenta de contradições e conflitos. Nesse miolo (no da construção
epistemológica do jesuíta), o costarriquenho detecta a presença do texto Dialética negativa da
escola de Frankfurt, escrito por Theodor Adorno e Max Horkheimer, e afirma ainda que o

179
São inúmeras as determinações sociais da realidade, da cultura e da natureza que constituem a personalidade
de uma pessoa, qualquer reducionismo a uma “estrutura de classe” capaz de configurá-la do modo A ou B, não
se sustenta nem do ponto de vista empírico. Não com isso, atestamos que seja irrelevante o papel da ideologia ou
das classes social no processo formativo da personalidade, exporemos com mais detalhes essa temática adiante,
mas, desprezar as questões de gênero e etnia, por exemplo, são erros crassos.
180
Conferir mais sobre isso nas páginas 76-77 de Oropeza (2016).
187
militante salvadorenho propunha apreender a sociedade cientificamente não apenas naquilo
que ela mostrava como ser existe em uma dada ordem social, mas também no que ela poderia
ser, ou ainda, naquilo que lhe era negado ser.

Em uma das muitas definições que Oropeza (2016) da à psicologia da libertação ele
escreve:

“[...] más que remitir a un área particular de la psicología o a una especialización


más, apunta a un horizonte ético-político, que tiene que dirimirse en la articulación
de los y las profesionales con las aspiraciones y luchas populares en sus contextos
específicos” (OROPEZA, 2016, p. 87).
Para ele, o vocábulo “libertação” não tece nenhum laço com noção de “autoajuda”, das
capacidades dos indivíduos sozinhos libertarem-se dos entraves da vida. Antes, em Martín-
Baró, indicaria uma busca pela potencialização e autonomia dos processos grupais e dos
coletivos sociais, ou seja, implicaria responsabilidade social e ações coletivas (o jesuíta
concebe o indivíduo como agente ativo nesse processo de reconstrução e reconfiguração das
relações sociais imperantes). Por isso, outro conceito usualmente trabalhado por ele, o de
compromisso crítico, é tão relevante para apreendermos ontologicamente sua proposta.

Acercamo-nos agora de importante discussão para esta tese, sobre qual o significado
de ética em Martín-Baró. Nas palavras de Oropeza (2016, p. 89):

“Lo ético, como mencioné al inicio de este libro, no es simular “neutralidades” ni


establecer distancias ante los fenómenos, sino asumir posiciones ante los mismos.”
[...] desde el compromiso con las angustias, preocupaciones y esperanzas de las
mayorías populares.”
Essa sucinta definição já é suficiente para aclarar diferenças entre nós, na acepção da
categoria ética. Uma vez que assumir posição ante determinado evento social, a partir do
compromisso com “as angústias, preocupações e esperanças” pode ou não corresponder
concretamente com a ética tal como vimos tratando esse complexo do ser social até aqui. Sem
uma devida explanação, poderiam, com razão, acusar tanto Oropeza (2016) quanto Martín-
Baró, e é isso que de certa forma faz Ibánez (2000, p. 72), de confundirem a “ética” com o
agir em correspondência ao que se deve fazer, sendo que esse dever é que fica sem
explicação, no fundo é uma acusação justa de parcialidade e relativismo.

Vimos com Lukács (1986/2103), o perigo de taxarmos algo de ético ou aético


baseados apenas na aparência dos fenômenos sociais e das atividades humanas, também
mencionamos que ela não é abstração normativa de determinada particularidade, apesar de
que pode, em determinadas circunstâncias, servir de guia para atividades dos seres sociais. O
188
que queremos dizer é que fazer o que julgamos certo, por estarmos imediatamente alinhados a
interesses “coletivos” aparentemente aceitáveis e não a outros “individuais”, não tem
imediatamente relação com a ética em si. O atroz exemplo do Nazismo nos mostra
exatamente isso, eles deliberaram coletiva e democraticamente sobre a destruição de outros
grupos humanos.

A “simplificação” do trato com a ética pode conduzir inúmeros pesquisadores a jamais


apreenderem ontologicamente sua gênese histórico-social, como complexo oriundo das práxis
dos seres sociais. Mais uma vez, considerar a categoria que Oropeza (2016) desastradamente
negligenciou (a totalidade), é condição sine qua non para sustentarmos um debate ontológico
sobre a ética. Em outras palavras, a discussão do costarriquenho, apesar de muitíssimo bem
intencionada acaba às vezes por escoar pelo ralo dos relativismos181.

Não tiremos o bolo do forno antes da hora, nossa crítica a Oropeza (2016) não
desqualifica seu importante trabalho historiográfico. Ao discutir, por exemplo, a relação entre
ética e compromisso crítico em Martín-Baró, aponta que ele teria dito em uma entrevista
concedida a ele mesmo que:

“[...] el compromiso del cientista social en Centroamerica hoy tiene que ser con las
aspiraciones y luchas de las mayorías populares, y ellas tanto por un imperativo de
lógica científica – ellas tienen más rázon- cuanto por un imperativo ético – ellas
tienen mejor rázon”. (OROPEZA, 2016, p. 90).
Vemos, por essas e outras, que é bastante perspicaz o modo como Martín-Baró
entrelaça ética ao fazer científico, e de quebra contemplamos um dos aspectos mais potentes
de seu projeto ético-político. Mesmo que existam oscilações na forma como a trabalha, ao
conceber a atividade científica como necessariamente atravessada pela ética, podemos expõr
como concretamente alguns dos desdobramentos de suas práxis científicas tiveram
implicações crítico-revolucionárias na vida política de El Salvador.

181
Ainda sobre a exposição da ética presente em Martín-Baró, Oropeza (2016), expõe a presença da chamada
ética de la liberación, expressão cunhada por Enrique Dussel e bastante popular na América Latina. Sobre isso
escreve que: “la propuesta de ética de la liberacíon [...], postula tres valores fundamentáis: por un lado la
producción y reproducción de la vida (entendiéndola en una lógica integral, que incluya lo libidinal), la
participación democrática (antídoto a las “vanguardias ilustrada” o a los “expertos” que dictan “desde arriba”) y,
por otro lado, el principio de la factibilidad que claramente apunta al anclaje que deben tener las propuestas y
propósitos en realidad concretas, con sus características específicas” (OROPEZA, 2016, p. 97). Tomado de
liberdade interpretativa sobre a obra de Dussel, fala ainda de um principio liberación, que se consolidaria em:
“una manera, en nuestro ámbito de acción, de afirmar una ética de vida, una ética de la liberación que implica,
como principio fundamental, contribuir a producir y reproducir la vida humana, en su corporeidad, en lo
simbólico y pulsional, en sus características específicas y diversas, y en comunidad” (p. 98).
189
A maneira como o jesuíta distingue ética científica e objetividade é também muito
pertinente. Ele afirma, por exemplo, que agir sob determinados interesses concretos (os da
classe trabalhadora, neste caso) não é o mesmo que inviabilizar uma análise cientificamente
objetiva. Ou seja, assumir os interesses da classe trabalhadora não é o mesmo que ser
fundamentalista, dogmático ou parcial. O problema era muito mais uma crítica a militâncias
mecanicistas, do que a participação da ciência nos movimentos sociais em si182.

No que tangencia o posicionamento crítico de Martín-Baró sobre as psicologias sociais


hegemônicas que, de acordo com Sampson (apud Oropeza, 2016), não enfrentava questões
como desemprego, subemprego, precariedade laboral, a organização popular, a pobreza, a
falta de oportunidades, a justiça, por exemplo; continuando a citação, ele propõe maior
aprofundamento na situação das mobilizações populares, nos processos revolucionários, nos
estudos das lideranças políticas, da exploração do trabalho e dos processos ditatoriais
(OROPEZA, 2016).

Uma vez mais o livro do costarriquenho (isso é quase refrão para os leitores de
Martín-Baró, uma vez que ele próprio reescreve isso várias vezes) aponta o quanto o
individualismo metodológico adotado pela Psicologia hegemônica é problemático. Não
obstante, a defesa da “parcialidade” do conhecimento, que há pouco mencionávamos, feita
tanto por Oropeza (2016), quanto por Martín-Baró, precisa ser entendida em profundidade.

Temos observado com Lukács (1986/2013) e Vigotski (1934/2009) que se por um lado
o “processo” de apreensão da realidade é sempre parcial e limitado (pelas condições reais de
sua produção e da singularidade dos indivíduos), dizer que qualquer produção científica é
“parcial”, endossando a ausência da neutralidade científica (que de fato não existe) pode
produzir uma arapuca. Se não há neutralidade, e o que se conhece é sempre “parcial”, como
então saber se o que se faz é ciência ou ficção? Não adianta nada, neste momento, apelar para
os interesses dos explorados, como se eles fossem os juízes supremos que determinaria a
solução da questão; uma vez que o “processo de apreensão teórica” desses mesmos interesses
se perderia na “parcialidade” tomada como fim. Ou seja, querer corresponder aos interesses
do proletariado sem um método científico capaz de garantir ontologicamente que se trata dos
interesses deles e não dos do pesquisador, é crucial.

182
Ainda sobre a organização popular, veremos como analisou de sindicatos até mobilizações camponesas; como
pudemos observar no trecho dedicado a El Salvador, a história do país ficaria amputada se não se compreende
tanto suas lutas por terra quanto o papel dos camponeses nos enfretamentos a burguesia (MONTES, 1989).
190
A complexa relação de Oropeza (2016) com o construcionismo (fique claro que
estamos nos referindo a suas asserções epistemológicas da Psicologia, não da seriedade da
práxis de nosso camarada latino-americano) talvez seja a fonte desses desvios. Nossas
principais considerações críticas até aqui, sintetizam-se na tentativa de expor a pertinência da
proposta de Ignacio Martín-Baró, principalmente para o momento histórico de
recrudescimento antidemocrático vivido na América Latina de seu tempo. Não queremos com
isso desmerecer seus avanços, muitos menos mancharmos sua reputação de militante
aguerrido e intelectualmente potente e versátil. Queremos, em por outro lafo, a partir do já
alcançado, continuar o processo de fazer avançar a ciência latino-americana.

Não criticá-lo, desde o acúmulo de conhecimento do presente momento, é fazer


exatamente aquilo que jamais lemos em seus textos. Há muita confusão na academia sobre
esse tipo de coisa. Assim como Marx (não o estamos comparando, é só um exemplo) não
acreditamos que intelectuais tão comprometidos eticamente com as lutas emancipatórias da
humanidade acreditassem que seus textos são expressão inquestionável e inequívoca da
verdade da ciência. Queremos romper com a polarização da parte de alguns psicólogos que
acreditam que seja preciso canonizar para reconhecer; ou ainda, de forma parcial e
teoricamente rasa rejeitar seus avanços por não compreender a profundidade e amplitude
crítica de sua práxis.

Sem considerar a historicidade, nossa crítica jamais seria feita de modo coerente; por
isso, nossas principais contendas com Ibañez (2011) e Iñiguez (2003) residem precisamente
no descuido deles em apreender a teoria do jesuíta desconsiderando as condições
sóciopolíticas, econômicas e culturais daquele tempo, e não apenas formalmente anunciando
quais eram elas, pois isso eles fazem, mas incompreendendo-as como mediações cruciais das
condições da própria práxis e da produção daquele autor (aí reside uma grande diferença).
Essas e outras críticas equivocadas foram recorrentes, como a que propugna Luiz Armado
González183, publicada na revista ECA (Estudios Centroamericanos) da UCA (s.d.), muito
bem lembrada por Oropeza (2016), de que a teoria de Martín-Baró adoeceria de um
“freirianismo” e das influências da teoria da dependência.

183
Que segue bastante o fluxo de críticas às “macro” perspectivas, que para grande parte do pós-modernos não
fazem mais sentindo algum (libertação, exploração, classes sociais, revolução etc., por exemplo, não existem
para eles como realidades sociais; e são incapazes de explicar alguma coisa por serem demasiadamente
abrangentes e “sociológicas”).
191
González (s.d, apud Oropeza, 2016) distorce significativamente o que são os
fenômenos sociais do ponto de vista ontológico, por exemplo. A falta de nexos concretos
entre processos grupais e indivíduos, desde sua materialidade dialética e histórica, conduz
inevitavelmente a simplificações excessivas das relações reais e necessárias do surgimento e
desenvolvimento histórico dos seres sociais. Com Lukács (1986/2013), temos condições de
apreender por meio do método científico esses nexos, entre indivíduo e sociedade, sem com
isso reduzir o indivíduo a um aglomerado de determinações sociais e nem a sociedade ao que
“pensem, sentem e agem” os indivíduos entendidos singularmente. Em relação a Martín-Baró,
veja o paradoxo, se de um lado temos autores com González (s.d), apontando a falta de
cientificidade dele, do outro os construcionistas sociais acusam-no de não ter se distanciado o
suficiente dela.

Que a psicologia “da libertação” seja também uma resposta à crise dessa ciência,
vivida intensamente desde o final dos anos 1960, não temos dúvida. O individualismo, o
monopólio “cientificista” do experimentalismo e o positivismo apareciam por todos os lados,
como bem aponta o construcionista Gergen (apud Oropeza, 2016). E é por isso que, nessa
direção, não omitimos o fato de que tanto o construcionismo social quanto a psicologia
chamada da libertação inserem-se no quadro de respostas dadas para essa crise. Oropeza
(2016, p. 110) complementa que:

Pese la indudable influencia de la perspectiva construccionista, y a la importancia de


su aporte al pensamiento crítico, es discutible si al no verse condicionada por una
suerte de un relativismo epistemológico, que termina produciendo una seria de
paradojas (la discusión toma muchas aristas, como puede apreciarse en el debate
organizado por Parker,1998), la fuerte influencia crítica de la perspectiva socio
construccionista se ha ido desgastando o diluyendo( para la discusión sobre su
incidencia en el campo de la construcción de la memoria social de agravios, ver
Dobles, 2009), haciendo que lo que parece haber contribuido a producir sea más
bien una especie de backlash conservador, que ha implicado un fortalecimiento de
los intentos de encontrar explicaciones socio biológicas a la realidad social e
individual.
Ele dá continuidade:

Barrero (2012), De la Corte (2001), Blanco (2001) y Blanco y De la Corte (2013),


han abordado en sus escritos la relación que se puede establecer entre el
construccionismo social y la Psicología de la Liberación. El primer autor ha
reprochado los intentos de Banchs (1990), desde la Teoría de las Representaciones
sociales, de ubicar a Martín-Baró como pensador construccionista, y en la discusión
de todos los autores citados se tiende a destacar, más bien, el realismo crítico
presente en la perspectiva martinbaroniana (Blanco, 2001)184.

184
Oropeza (2016) é outro dos que reportam o intercâmbio intelectual do jesuíta com um dos mais conhecidos
autores do construcionismo social, Thomas Ibañez. Isso abre pelo menos dois flancos para questionamentos: a)
sobre o estatuto ontológico da verdade da ciência (o costarriquenho fala de epistemológico, mas acreditamos que
192
Progressivamente nos aproximamos dos problemas ontológicos que envolvem a
questão da verdade e da parcialidade do conhecimento científico na obra de Martín-Baró.
Mais uma vez, e nessa direção, Oropeza (2016) entra em uma zona cinza. Para defender,
honesta e razoavelmente, a sempre “incompletude” do conhecimento científico, confunde (ou
funde) a “parcialidade” das condições reais de apreensão da realidade com o próprio
“movimento dinâmico e contraditório” exposto pela teoria em uma pesquisa científica sobre a
realidade.

Isso é decisivo e fundamental para o materialismo histórico-dialético. Do contrário,


tratar-se-á, em última instância, não de bem e mal, de valor ou desvalor, mas de “verdades
subjetivistas” válidas para cada pessoa em cada conjuntura histórica diferente, retornando ao
ponto já debatido de um círculo vicioso e infinito de “subjetivismos” tão popularizados com
roupagens “democráticas” em nossos dias.

Nem de longe acreditamos que Martín-Baró dê corda para esse tipo de perspectiva. Se
como escrevemos há pouco, seus textos oscilam quanto à exposição teórica, sua práxis não dá
margem para o colocarmos no campo dos que tratam verdade e mentira, equívoco e acerto,
como meras posições circunstanciais. O que pode, e de fato faz com que alguns de seus
leitores se confundam, é que em diversas passagens ele se refere à “parcialidade” do
conhecimento que se obtém sobre a realidade (dando margem a confusões do ponto de vista
científico).

Em nossa dissertação (PEREIRA, 2013), e isso também foi enfatizado por Oropeza
(2016), mostramos o quanto ele critica o neopositivismo que sustém que a verdade estaria na
adequação de um juízo aos dados empíricos, como se ela (a verdade) fosse externa à atividade
do psiquismo e ao sujeito que a conhece. Sobre o tema, Oropeza (2016, p. 113), complementa
que a dialética e o realismo crítico de Martín-Baró o fez “resaltar la relatividad histórica del
conocimiento y el carácter social de la realidad”. Se mirarmos com atenção, outra vez
entramos em maus lençóis.

a discussão ultrapasse essa fronteira) e b) sobre a valoração ou não dos “procedimentos” (ele mais uma vez se
confunde e usa a palavra método, acreditamos que aqui correto seria procedimentos) e instrumentos empíricos da
Psicologia. Quanto à posição epistemológica, ele caracteriza a proposta de Martín-Baró de “realismo crítico”, já
iniciamos nossas críticas e esse ponto, mas nas palavras dele isso “no se trata de una posición ingenua que parta,
por ejemplo, de que se puede llegar directamente a la “verdad”, o un saber completo y exacto. No en vano insiste
una y otra vez nuestra autor en la parcialidad del saber, incluyendo el suyo” (OROPEZA, 2016, p. 112).
193
Não há dúvida de que a ciência é “relativa” ao acúmulo de conhecimentos já
alcançado pela humanidade em determinado período histórico e pelas condições reais de sua
produção (tanto as socioeconômicas e cultuais quanto as dos indivíduos singulares que
pesquisam a realidade), mas isso não quer dizer que ela seja incapaz de corresponder ao ser
em-si dos fenômenos sociais.

Oropeza (2016) enfatiza algo que não tivemos condições de perceber em nossa
dissertação, e que já resvalamos há pouco, o quanto Martín-Baró teria se apropriado da
dialéctica negativa (na acepção frankfurtiana), que atestaria que o “dado” tanto afirma uma
positividade como nega o que poderia ocorrer em outras condições. Acionando o próprio
jesuíta, o costarriquenho transcreve que: “el dato, por tanto, es inteligible solo en sus
esenciales relaciones, diacrónicas y sincrónicas, con todos sus concomitantes sociales y, en
particular, a la luz de la lucha y el ejercicio del poder social (MARTÍN-BARÓ, 1991, p. 52 [o
texto citado, nesta tese, refere-se a MARTÍN-BARÓ, 1989d]” (p. 114). Ele complementa na
mesma lauda: “no se trata entonces, dirá: ‘de negar el dado en su facticidad’, como haría el
construccionismo social, sino considerarlo como un momento, dialéctico, necesariamente
parcial”.

Outro ponto de tensão, mas que acreditamos, contraditoriamente, pode indicar uma das
maiores contribuições concretas da obra Martín-Baró para El Salvador foi o uso que fez da
noção de “opinião pública”.

Ao situar o que foi a UCA, entrevimos o debate sobre os saberes psicológicos e seus
instrumentos de captação e exposição de dados. De acordo com Oropeza (2016), alguns de
seus interlocutores enfatizam que Martín-Baró teria abordado a política desde a psicologia,
mas não atuou politicamente dentro dela, ou seja, não criticou suficientemente bem os
instrumentos e procedimentos de pesquisa psicológicos. Em outras palavras, mesmo que ele
tenha almejado a transformação social, não realizou uma crítica aos instrumentos utilizados
por aquela ciência para concretizar esses fins (essa posição, por exemplo, é a de Geraldine
Moane; que pode ser lida na página 114 do livro de Oropeza, 2016).

Confusões como essas poderiam referendar a afirmação Iñiguez (2003), que nega que
Martín-Baró tenha realizado uma psicologia “crítica”, apesar de caracterizá-la como “radical”.
Notemos alguns pontos elencados por esse autor sobre as mudanças ocorridas na “psicologia
social” nas últimas décadas: a) uma severa crítica ao individualismo, b) uma oposição radical

194
ao positivismo e c) a reafirmação de processos de mudanças sociais e políticos. As diferenças
entre os pontos levantados por Iñiguez (2003) para os de Martín-Baró (1989d), só podem ser
divisados corretamente quanto se tem clareza sobre a diferença teórica entre ambos, como
veremos a seguir.

Quando alguns construcionistas sentenciam sobre os malefícios da ciência psicológica,


na condição de produções hegemônicas, acabam por não diferenciar as contridações inerentes
à área. Nada poderia ser mais problemático. A ciência poderia, nesse viés, converter-se em
produção burguesa, despercebendo que o próprio construcionismo é, ao mesmo tempo, uma
crítica burguesa aos defeitos gnosiológicos de uma psicologia aburguesada.

Muito bem lapidada é a pergunta que faz Oropeza (2016): como alguém com a postura
de Martín-Baró poderia se acudir em instrumentos tão positivistas, quantitativos,
manipuláveis como as pesquisas de opinião pública? Este é um ponto em que os
construcionistas bravejam sobre sua insatisfação com a práxis do jesuíta, condenando-o por
sua falta de “crítica” às psicologias sociais hegemônicas. Entramos aqui em terreno movediço.

Não perceber quando o uso da estatística é tratado como fim em si mesmo e quando é
utilizado como meio de apreensão de determinado fenômeno social que encontra sentido
dentro de uma teoria que possibilite a interpretação desses dados é problemático; chega a
causar embaraço, e de fato é vergonhoso. É como se o erro de Martín-Baró fosse de ter usado
um martelo para pressionar um prego contra uma madeira, quando na realidade ele deveria
(para ser suficientemente crítico, segundo eles) ter inventado outra ferramenta para realizar tal
tarefa.

A resposta dada por Oropeza (2016) é consideravelmente simples: é só apreender o


período histórico vivido e a situação das lutas de classes em El Salvador no momento da
utilização dessas pesquisas (de opinião pública) por Ignacio Martín-Baró que fica mais fácil
compreendê-lo. Infelizmente, a questão não é tão rasa, e mostramos os problemas dela
oriundos logo adiante, com os escritos do próprio Martín-Baró185.

185
Apenas relembramos que o pequeno (em dimensões territoriais) país centro-americano estava sob a mira dos
Estados Unidos da América; sua proximidade geográfica com a Cuba “castrista” e com a Nicarágua “sandinista”
fizeram dele posto estratégico para as tropas militares ianques. Como a burguesia salvadorenha justificava a
presença invasiva e inoportuna de tanta militarização na vida cotidiana? Explorando fortemente o uso dos meios
de comunicação, e é por isso que Martín-Baró os denunciava (especialmente as redes televisivas em El Salvador
que pertenciam a 14 famílias abastadas).
195
Fazemos saber, todavia, que o Instituto de Opinião Pública (IUDOP) da UCA não foi
sacado da cartola mágica de Martín-Baró (que, aliás, era um apreciador de truques de
mágica); como se ele tivesse sido incapaz de resistir à sedução das psicologias hegemônicas
ou não tivesse tido criatividade teórica para construir alternativas. Antes, ele foi manifestação
concreta do combate aberto travado contra os meios de comunicação que perpetravam a
dominação burguesa e subjugava El Salvador. É incompetência teórica afirmar que “os
instrumentos” utilizados por ele, servem para “tirá-lo” do campo da psicologia crítica e acusá-
lo de parcimônia para com as “psicologias hegemônicas”. Um trecho arrancado por Oropeza
(2016, p. 124), de Thomás Ibañez, serviria de contraponto a nossa argumentação:

“[...] que poner los conocimientos de las ciencias sociales al servicio de causas
alternativas a lo hegemónico, o incluso argumentar que estos saberes son
transformados en el proceso, es aceptar implícitamente que son neutros en sí
mismos.”
Figuram-se, emblematicamente, nessa citação os limites da lógica formal quando
aplicada irrefletidamente às complexidades que envolvem os fenômenos sociais. Não perceber
que o instrumento é uma produção humana e, portanto que tratá-la como possuidora de valor
ou desvalor fora de uma relação social concreta descarrila para o erro. Perde-se a contradição
imanente tanto da práxis humana quanto de seus desdobramentos sociais e reduz-se a
capacidade de apreender o potencial real dos produtos do trabalho, nesse caso, o da ciência.
Oropeza (2016, p. 124), colocando vinho velho em odres novos, taxa:

“no son neutras en su materialidad y su articulación, inclinan, siempre, en alguna


dirección. Pero también pesan, en la ecuación, las intenciones de quienes hacen uso
de estos instrumentos culturales para articular con procesos sociales e intentar
transformar realidades”.
Não há como advogar a causa do respeitável Oropeza sem apontar-lhe alguns limites.
As “intenções” no momento em que utilizamos os instrumentos podem na “práxis” realizar o
oposto do que pretendemos. Portanto, afirmar que a diferença do uso de pesquisas de opinião
pública por Martín-Baró estava em suas intenções fere justamente o que mais impressiona
naquele autor: sua práxis. Vimos com Lukács (1986/2013), que as intenções não convertidas
pelo pôr teleologicamente orientado à realidade não possuem desdobramentos reais capazes
de “legitimar” ou dotar ou não de valor determinado objeto. Antes, isso depende
exclusivamente da complexa trama social em que este se insere e das inúmeras mediações que
podem compô-lo186.

186
O argumento pseudocrítico levantado por Ibañez (1993), se levado até suas últimas consequências (mesmo
que lógicas) também seria falacioso. Pensemos no trivial exemplo dos veículos automotores. Que eles são fruto
196
Se resgatarmos a primeira parte desta tese, vemos que ali residem muitos dos subsídios
para as críticas que lhes apresentamos, e isso nada tem de alinhar mecanicamente “nossa
crença” com a “crença de outros”, mas a partir do método avistar o quanto “boas intenções”
são prestativas, porém insuficientes quando entramos na esfera da ciência187.

***

Passaremos a partir de agora, e ainda retomando apontamentos de Oropeza (2016), a


posicionar alguns elementos categoriais/conceituais centrais à discussão sobre o projeto ético-
político encabeçado por Martín-Baró. Porém, só com o debate mais aprofundado desta
proposta, tal como ela figura na obra do próprio jesuíta, estaremos em condições de esmiuçar
melhor alguns de seus avanços, e o quanto algumas das críticas que ele sofre por certas
escolas de psicologias falam mais delas próprias do que dele.

Se Martín-Baró é criticado por pesquisadores construcionistas pelo excesso de ênfase


que dá ao conflito e as contradições sociais, não são necessários muitos argumentos para
desmontar essa confusão. Pois, ao conceber a realidade social como harmoniosa, alinhando-se
as diversas matrizes de um “funcionalismo cientificista”, o do outro lado dessa moeda,
afirmar como alguns neoliberais pós-modernos que impossibilitados de negar os graves

do desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade ninguém dúvida, e analisando o caso mais


detidamente, reconhecemos que a indústria automobilística exerceu papel importante no avanço do capitalismo
no globo terrestre e, mais, está nas mãos de uma classe social bem definida: a burguesa. Ora, sendo o
carro/ônibus veículos feitos por burgueses, o senhor Ibañez convidaria os intelectuais então a se “radicalizarem”
e “criticarem” (ambas as palavras crítica e radicalidade, em autores como Iñiguez, 2003, possuem significados
distintos) o “hegemonicamente imposto” e irem andando para exercer suas atividades cotidianas?
187
É oportuno relembrarmos que não almejamos criar inimizades, muito menos desvalorizar o trabalho da vida
de inúmeros pesquisadores dedicados e comprometidos com causas legitimamente vinculadas à emancipação
política e humana. Só damos a conhecer melhor nossa posição pelos complicados desdobramentos do
posicionamento padrão em uma ciência (a psicológica) empapada do blasé “veja bem”, “pode ser isso também”
etc. Cansamo-nos de congressos de psicologia social em que dois pesquisadores que defendem posições opostas,
e pelos vícios de “boa vizinhança” e “psicologuês”, empobrecem o debate franco e direto sobre objetos de estudo
que lhes interessam mutuamente. Sem dúvida, um diálogo acalorado pode mobilizar emoções e afetos de formas
inesperadas, mas ali (na mesa do congresso) as divergências científicas não deveriam ser tomadas como insultos
e muito menos como desqualificação profissional. Tamanho são os avanços do modo burguês, a fragmentação da
capacidade apreensiva do produto humano como algo fora dele, que ao criticar alguém teoricamente, ainda que
de modo cordial e responsável, isso por vezes é tomado como algo inaceitável e sem propósito, como uma
afronta a deusa vaidade que tem altar especial na vida dos “acadêmicos”.
197
conflitos e contradições da socialidade burguesa na entrada dos anos 2000, acreditam na
capacidade do “diálogo” para a solução da luta de classes não leva muito longe188.

A polêmica que afirma que os “marxismos” acentuam demasiadamente o conflito


entre os indivíduos e as classes não buscando assim construir “acordos” capazes de promover
mudanças sociais benéficas à sociedade é fruto, por um lado, da superficialidade analítica da
realidade e, por outro, da fatídica constatação que muitos trabalhos críticos não realizam os
momentos positivos dela (da crítica), e apenas denunciam as contradições de determinadas
processos grupais abandonando-os sem articular com esses mesmos grupos saídas concretas;
ou mesmo esboços de ações coletivas capazes de organizá-los para o enfrentamento no âmbito
das questões classistas.

Não nos atreveríamos a rebater a crítica de Sánchez Vidal (apud Oropeza, 2016),
quando ele contesta a existência de muitas pesquisas na tradição marxista capazes de trabalhar
com maestria estratégias e táticas de cooperação entre trabalhadores, o que não justifica a não
na apreensão da contradição imanente posta, pelo capitalismo, entre trabalhadores e
burgueses. As referências que Oropeza (2016) faz ao trabalho de Martín-Baró dentro da UCA,
em San Salvador, são exemplos do esforço militante do jesuíta em promover o diálogo entre
diversos setores daquela sociedade; o que não é o mesmo que “apagar” as contradições para
mascarar interesses econômicos e políticos (encabeçados, na ocasião, pelos Estados Unidos da
América) que sustentavam a guerra civil vivida por aquele país.

Outro debate eivado por tensões é questão da política na obra de Martín-Baró (


costarriquenho destaca também a categoria poder como importante para uma compreensão
mais ampla daquele textos189). Ele defende que o uso teórico dessa categoria por Martín-Baró
abre a possibilidade de entendermos as resistências ou os contrapoderes que a compõe, uma
vez que os envolvidos farão uso de determinados recursos para “exercer” influência e impor

188
O que esses últimos não consideram é que não existe acordo (ou jurisprudência qualquer) possível quando a
riqueza material de uns poucos, tomada como objetivo final, é oriunda da exploração da força de trabalho de
muitos. A potência desse argumento é tanta que existem dezenas de livros (“patrocinados” pela burguesia) feitos
para justificar exatamente o quanto a “exploração” e a “competição” de todos contra todos é “natural” à espécie,
e até aqui tem servido para fazer avançar o gênero humano. Aliás, esse é um dos argumentos principais do
prêmio Nobel de economia em 1974, F. A. Hayek, no The fatal conceit: the errors of socialism traduzido, em
2017, pela Faro Editorial como Erros fatais do socialismo, por que a teoria não funciona na prática.
189
As citações que seguem sobre Martín-Baró, também figuram em Pereira (2013), mas acreditamos que retomá-
las agora nos seja útil: “El poder no es una cosa que se posea, como se posee una casa o, incluso, como se tiene
(posee) unas cualidades humanas. En ese sentido es importante distinguirlo de los recursos, que, em una
determinada circunstancia y para determinados actividad y objeto, proporcionan poder”. (MARTÍN-BARO apud
OROPEZA, 2016, p. 129).
198
suas vontades, ou seja, resistir. A despeito de algumas divergências, que serão retratas a
seguir, estamos com Oropeza (2016), quando ele enfatiza que Martín-Baró (1987h)
deslegitima a verticalidade do poder e sua unidirecionalidade, que acaba por naturalizar as
relações de domínio que, por sua vez, são produtos históricos. Em outras palavras, essa
discussão quando tomada como “capacidades individuais” para resistir, perde mediações
centrais que a compõem do ponto de vista ontológico, ainda que em hipótese nenhuma os
fatores das individualidades (atividade e identidade grupal) possam ser desprezados para
apreendê-lo (o poder) adequadamente190.

Outra dimensão da crítica feita ao conjunto da obra de Martín-Baró, no tocante à


categoria poder, são as de seus leitores espanhóis, Luiz De la Corte Ibáñez e Amálio Blanco.
Eles atestam que é bem provável que a conjuntura histórica enfrentada pelo jesuíta seja a
responsável por dar contornos errôneos e de “dominação” à categoria. O problema da
interpretação feita por eles é fruto das deformações em seus respectivos métodos de apreensão
da realidade e não da premissa que partem.

Convencionar com Iñiguez (2003), que as concepções trabalhadas por Martín-Baró


sobre essa categoria estavam em contato direto com a realidade social vivida por ele, não é o
mesmo que afirmar que justamente essa articulação (realidade e teoria) foi a que lhe distorceu
o significado. A acusação perpetrada não se sustenta; taxar que Martín-Baró “racionalizava” o
poder ou depositou fé excessiva na razão para a solução de conflitos (por meio do diálogo ou
de negociações) não corresponde com as severas críticas desferidas pelo jesuíta às
democracias representativas formais vividas na América Latina, por exemplo.

O segundo elemento teórico analisado por Oropeza (2016) sobre o projeto de Martín-
Baró é como ele lida com a categoria política. Expusemos em Pereira (2013), que o militante
salvadorenho tateia o complexo da política por eixos distintos: tanto o da política da
Psicologia e quanto o da ‘psicologia’ da política. De acordo com Oropeza (2016), e julgamos
que sua posição precisa ser apreciada com atenção, a proposta de Martín-Baró sobre o tema
não apresenta nenhuma incoerência epistemológica, conceitual e ética com outros elementos
190
Não teríamos, neste momento, condições de aprofundarmo-nos nas questões que medeiam e compõe a
categoria poder. As implicações são gigantes por ela estar em íntima relação com outro complexo do ser social já
anteriormente exposto nesta tese, o da política. A relação entre ambos é necessária e indecomponível ainda que
não seja de identidade. Afora isso, reconhecemos que não encarar essas relações devidamente talvez seja um dos
maiores pontos fracos desse texo. Se por um lado negamos que o poder seja força fantasmagórica esmagadora e
total, exercida pelas classes possuidoras de recursos materiais, por outro nem sequer começamos a buscar a
gênese ontológica de como se dão suas manifestações concretas na vida cotidiana. O próprio Martín-Baró
(1987h) avança nessa direção, mas não é conclusivo.
199
de sua obra. Contudo, ao resgatar o livro de 1983 (Acción y Ideología) e compará-lo como
outro texto intitulado Método de la psicología política (1989d) vemos algumas diferenças. A
questão da “psicologia” do político dá margens em alguns trechos para enganos, mas
retomaremos essas questões com as devidas citações diretas.

Notemos, sem embargo, que Martín-Baró considerava as mediações históricas


envolvidas nesse complexo do ser social rechaçando toda fragmentação. Ou seja, questões
macro e micro sociais não podem ser desprezadas ou tratadas isoladamente. Ambos (Martín-
Baró e Oropeza) afirmam que os “problemas” da realidade devem ter prioridade sobre o
“método” e os “instrumentos” da pesquisa.

Partindo para a tentativa de definir o que é a política em Martín-Baró, Oropeza (2016)


critica a noção de “ação política” como se essa fosse algo sempre derivado de concepções
estreitas, verticalizantes e limitadas. Seguindo seus escritos, política para Martín-Baró não
pode ser compreendida pelas características das ações humanas, que a especificariam e
delimitariam, por exemplo, mas que ela (a política) se faz em espaços institucionais pré-
estabelecidos. Além disso, não se pode defini-la por todas as ações que envolvem algum tipo
de poder, uma vez que este se presentifica em todas as relações humanas. Não é porque algo
seja componente das relações humanas que ele terá necessariamente incidência política; ou
ainda, impacto sistêmico e/ou público. O comentador de Martín-Baró prossegue:

“estipula nuestro autor que si llega a la conclusión, en consecuencia, de que todo


comportamiento es político porque ocurre em situaciones de poder, se torna
irrelevante el tratar de discernir una especificidad que sería susceptible de ser
abordada por la psicología política” (OROPEZA, 2016, p. 147).
Ele conclui, no parágrafo seguinte, “para definir lo político a partir de las acciones
humanas, estriba en el sentido, la significación que estas adopten, estabelecendo que lo
político está en el orden de lo público” (p. 147).

Que é perfeitamente compatível com os interesses dos cientistas políticos o aporte da


Psicologia parece-nos óbvio. Quem atua na vida cotidiana são seres sociais (indivíduos e
processos grupais), logo a contribuição da Psicologia não apenas é relevante quanto também
pode ser substancial. Justamente os aspectos concretos que englobam a dimensão política
(indivíduos, grupos, sociedade, natureza etc.) por vezes são desprezados por essa ciência.
Aliás, essa relação é um ponto forte da proposta de Martín-Baró: as mediações psicossociais
da esfera política.

200
A discussão que faz sobre a ideologia mereceu dedicação especial, dada sua relevância
na proposta e na execução de inúmeras tarefas chaves para a execução do horizonte de
atuação profissional propugnado pelo jesuíta (o que ele chama de desideologização, também
entra como exemplo, pois ela é entendida como desnaturalização das relações de dominação
do sentido comum e da luta contra a mentira institucuionalizada [Sloan apud Oropeza, 2016,
p. 162]). Mas não há como entramos em tão polêmica questão sem antes apreendermos
minimamente o que significa ideologia191.

Em uma acepção próxima à discutida por Marx n’A ideologia Alemã, Martín-Baró
tratou a ideologia como algo que distorce a capacidade de compreensão da realidade social no
capitalismo. Nas palavras de Oropeza (2016, p. 155) é

“quando una determinada visión del mundo se tornará hegemónica no sólo porque
es “impuesta” desde arriba, sino porque, en un marco complejo y repleto de
contradicciones, da sentido a la vida cotidiana y se articula con las prácticas sociales
que se desarrollan en la misma”.
Nota-se aqui a importância que o jesuíta concede aos saberes cotidianos como
componentes da ideologia. O senso comum traduziria os interesses dominantes de duas
maneiras: a) assumindo que os princípios dos comportamentos cotidianos não apenas são
racionais, mas também auto-evidentes; b) tratando-os como comportamentos “comuns” a
todos, universais.

Apesar das semelhanças com o jovem Marx, ele afirma que todas as posições
assumidas pelos indivíduos são ideológicas; inclusive a dele mesmo. Não entraremos na
polêmica gramsciana sobre a ideologia (Lukács inicia seu capítulo sobre ideologia, na
segunda parte do Para uma ontologia do Ser Social, tratando de ajustar seus ponteiros com o
sardo), mas de acordo com Oropeza (2016), existem pontos coincidentes entre a
desideologização e a expressão “filosofia da práxis” em Antônio Gramsci.

É inegável e que Martín-Baró buscou captar por meio da ciência psicológica a


incidência da ideologia na vida cotidiana. Ignacio Oropeza teve o privilegio de entrevistá-lo
algumas vezes e, em uma delas, perguntou-lhe diretamente o que seria para ele ideologia, sua
resposta foi a que segue:

Soy consciente de que mi conceptualización de la ideología no es muy “ortodoxa” ni


para los funcionalistas ni para los marxistas, aunque tenga más de estos que de
aquellos. Ya decía antes que se trata de uma categoria que requiere una mejor

191
Todo este debate ocupou-nos em nossas conclusões.
201
elaboración, y con ello no pretendo curarme en salud. Para mí ideología es una
lectura de la realidad, una interpretación del mundo, que se da en la práctica
cotidiana, es decir, en la manera como los grupos y personas viven y actúan esa
lectura o interpretación es, por tanto, primero existencial, es decir, es vivida por las
personas, y sólo luego temática, es decir elaborada como visión del mundo
(OROPEZA, 2016, p. 160).
O relator da entrevista atesta que a concepção de Martín-Baró está fortemente
embebida do interacionismo simbólico e das contribuições de Berger e Luckmann presentes
no Construção Social da Realidade (mas, não esqueçamos de Althusser). O militante
salvadorenho ainda admite que são bem-vindas as críticas ao excesso de cognitivismo nessas
concepções (como se fossem apenas “ideias erradas”), pois sem apreensão das práxis (afetivo-
emotivo-cognitivas) tanto individuais quanto grupais não avançaríamos muitos em seu
debatexix.

Encerramos a parte que antecede a crítica efetiva ao projeto ético-político da


Psicologia chamada da libertação desde a obra de Martín-Baró, apontando questões e desafios
postos por Oropeza (2016, p. 217-218) aos que se aproximam dela em nossos dias:

a) “La tensión entre inclinaciones más academicistas y las que han estado más
interesadas en desarrollar articulaciones con movimientos sociales y populares que
buscan la transformación social profunda.
b) La tensión, muchas vezes forzadas para efectos retóricos, existente entre
ciência/política con la acusación recurrente de estar siendo “demasiado activista”
esgrimida ante quienes han buscado articular más con experiencias populares. Esto ha
incidido, también, en las dificuldades para ubicar de forma más productiva la dialécica
teoria/práctica (DOBLES, 2008), evidenciándose también el peligro de que un valioso
activismo no vaya acompañado de la reflexión, de la construcción de teoría, que
permita comparar experiencias e iluminar procesos.
c) Los muchos obstáculos (y resistencias) existentes para avanzar en una coordinación
regional. No obstante, son muchas las personas que en uno u otro momento han puesto
su energía y empeño en estos esfuerzos, eso sin duda es digno de admirar, y no puede
sino reconocerse. Las dificultades y contradicciones no hacen sino revelar lo enorme
que es la tarea”.

Em resumo, com este capítulo elencamos alguns dos debatedores da proposta de Martín-
Baró com o intuito de expor, por um lado, um pouco da versatilidade de seus escritos, mas,

202
por outro, o quanto eles podem orbitar regiões teóricas distintas. Sabemos que esse tipo de
capítulo é exigente, pois demanda atenção aos detalhes (as minúcias podem parecer
repetitivas), mas cremos que uma crítica não pode se dar ao luxo de extirpá-las. Parece-nos,
ademais, que a dimensão ética (ubíqua nos escritos do jesuíta) é algo que merece uma ressalva
positiva, não há quem se esqueça disso. Ao nos debruçarmos sobre a relação entre política-
poder e a questão da ideologia em Martín-Baró, também introduzimos parte importante do
que pretendemos nas páginas que seguem.

203
4. PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DA “PSICOLOGIA DA
LIBERTAÇÃO” DE MARTÍN-BARÓ: UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA
DESDE O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO.

Inauguramos este capítulo com uma apresentação sumária, mas não necessariamente
curta, dos fundamentos filosóficos e das questões do método na obra textual de Martín-Baró;
tanto em seus aspectos internos (categorias, conceitos, referencial teórico, procedimentos de
pesquisa etc) quando dos externos (relação entre Psicologia e a conjuntura sócio-política de El
Salador). Seguimos, tanto quanto possível, a ordem da confecção dos escritos. Quer dizer que
construímos uma linha do tempo? Não, nossa pretensão foi outraxx.

Quando com justeza se admite que a História não é sinônimo de movimento


progressivo e cumulativo, não significa que eventos e marcos datados não possam ser
identificados por uma cronologia para fins de uma pesquisa. A adoção desse modelo
expositivo teve a dupla função de afirmar a inteligibilidade de eventos sócio-históricos no
tempo, por um lado, e, por outro, negar que o autor tenha evoluído de modo linear e
harmonioso durante sua breve carreira profissional.

Com a pretensão de suavizar a leitura, sintetizamos alguns núcleos temáticos, ou


melhor, pontos de convergência entre períodos. Optamos por distinguir três: o da formação
intelectual até os primeiros passos do engajamento político de Martín-Baró (Antecedentes
teóricos e da Práxis), depois, o encontro dele com a ciência e a produção da Psicologia de seu
período (O encontro de Martín-Baró com a Psicologia: matrizes epistemológicas), e, por fim,
como sua proposta se consolidou em práxis ético-política contestatória (Psicologia e práxis
ético-política: o batismo de sangue). Não defenderemos que eles sejam os únicos possíveis (ou
os mais adequados) para uma análise desse tipo, apenas alertamos que eles nos foram balizas.
Optamos por retroceder aos textos do início de década de 1960 (o primeiro trabalho acessado
é de 29 de maio de 1963, período em que o autor ainda era um estudante de filosofia na
Faculdade Javeriana de Bogotá), como esforço para captar a gênese da formação intelectual
de Martín-Baró, bem como de sua práxis.

O desafio foi averiguar o projeto ético-político proposto por ele como expressão
teórica de determinados interesses sócio-políticos e culturais objetivos do momento concreto
da luta de classes latino-americana e não como criação exclusiva do ímpeto ou do gênio

204
daquele autor. Sem perdemos a peculiaridade da ciência psicológica, cuidamos de não
conceber “expressão teórica de determinados interesses” abstratamente, esquecendo-nos que
elas sempre são, em última instância, produzidas por humanos únicos e irrepetíveis.
Recapitulemos alguns elementos sociais concretos do caso em tela: lidamos com um filósofo-
teólogo-psicólogo, ativista político e pároco jesuíta na América Latina. Não há como
desprezar, portanto, características idiossincráticas de sua práxis, da constituição histórica de
sua identidade.

4.1 Antecedentes teóricos e da práxis

Da formação intelectual ao engajamento político: preocupações iniciais

Oropeza (2016), Ibáñez (2001) e Portillo (2012) concordam que a corrente filosófica
existencialista rondou os escritos de juventude de Martín-Baró e, deveras, no primeiro
quinquênio de 1960 nos deparamos com quatro textos em que até os títulos denotam essa
afinidade.

Em Que es eso de ser? (MARTÍN-BARÓ, 1963a) testemunhamos a apresentação de


um diálogo filosófico que se preocupa em dar a conhecer o que é o ser. Em linhas gerais,
define o ser em contraposição a um não-ser, “non-nihil”, bem à moda dos escolásticos. Tudo
o que não é “não-ser” é ser; nas palavras dele “ser es una actitud fundamental, que afirma al
menos, su no-nada” (p.5)192.

No mesmo ano, Martín-Baró (1963b) escreve “La teoria del conocimiento del
materialismo dialéctico”, escrito aos 20 anos de idade, e profundamente marcado por uma
incompreensão da complexidade da discussão marxista e marxiana sobre o tema que nas
décadas futuras apareceriam indiretamente em sua obra. Neste trabalho, ele sequer apresenta
citação direta a Karl Marx, dirigindo-se basicamente a excertos de Engels e de Lênin.

192
A questão do “como se conhece” na proposta de Martín-Baró foi exposta, sem muita profundidade, em
Pereira (2013), a partir de traços sobre sua concepção de realidade, de indivíduo e de sociedade em seu projeto
ético-político. Esses pressupostos, retomados nesse momento desde a ontologia, passam de secundários para
estruturantes. Outro sobreaviso merece atenção: o jesuíta pouco escreveu sobre o materialismo na ciência, sua
preocupação foi garantir a historicidade dialética das categorias que manejou.
205
Sobre esse texto, vale dizer que um dos principais problemas identificados foi o
tratamento acrítico do significado da palavra “matéria” no âmbito da teoria do materialismo
histórico-dialético, o que fez com que sua empresa recaísse mais em uma vulgarização do
materialismo que, por sua vez, se resumiu a taxar que todos os fenômenos sociais são
derivações das propriedades materiais (físicas) das coisas, do que das nuances da categoria tal
como ela figura em Marx193.

Com Lukács (1986/2013), aprendemos que nada passa mais distante da definição
ontológica de fenômeno social do que deduzir das propriedades físicas da matéria toda sua
complexidade. No exemplo do húngaro, não poderíamos deduzir de uma rocha qualquer a
capacidade dela se transformar em uma faca. Martín-Baró (1963b), sem embargo, perde
justamente a peculiaridade do modo como o ser social se relaciona com o mundo material; ele
ignora a complexidade da práxis (do trabalho) e consequentemente os nexos entre ela e o
“afastamento das barreiras naturais” postos na complexificação dos nexos sociais no escrito.

Algo, todavia, é digno de nota: a presença das noções do realismo tomista e das
proposições da escolástica foram nucleares aos argumentos ali expostosxxi. Pela complexidade
do tema (o realismo) no tomismo, contentamo-nos em apontar que a concepção de matéria
exemplificada na crítica de Martín-Baró (1963b) não pode confundir-se com a categoria
materialidade em Marx, sob pena de incorrer no equívoco de Martín-Baró (1965a) que, ao
criticar a ontologia geral do suposto materialismo dialético marxista, acaba por não perceber
que Marx, de acordo com Lukács (1986/2013), aborda a ontologia sim, mas a do ser social e
não a da natureza em geral, a despeito de que essas duas não possam jamais se afastar
completamente194.

Para a discussão que pretendemos é preciso afastar o realismo tomista do idealismo


neokantiano e do irracionalismo. Retomaremos essa problemática, mas cabe aqui uma
justificativa sobre o motivo de nos alongarmos nessa diferença: Martín-Baró (1987f) afirma
que a postura epistemológica da psicologia latino-americana deve ser a de um realismo

193
Lembremos que havia uma difusa presença do stalinismo na América-Latina daquele período (LÖWY, 2002);
é bem possível que as obras a que o jesuíta teve acesso endossavam a perspectiva mecanicista, mas isso é
especulação.
194
Desde a filosofia, e acreditamos que para nossos objetivos seja suficiente elucidar isso, o realismo
aristotélico-tomista se diferencia substancialmente do platonismo-agostiniano, tanto mais quando o lemos sob a
influência da interpretação dos neotomismos. O que não é o mesmo que dizer que o realismo teístico (tanto o
clássico, de Aristóteles, quanto o medieval) não se distancia do materialismo dialético tal como ele é apreendido
por Marx e Engels no século 19.
206
crítico195. A despeito da falta de referência direta à escolástica, cremos ser importante destacar
que, por sua formação acadêmica e mesmo por sua práxis, esse “realismo” pode ter raízes
históricas implícitas (ainda que difusas) na discussão escolástica sobre a realidade; os
desdobramentos dessa posição, no entanto serão analisados adiante196.

No texto Dios y el materialismo dialecto (MARTÍN-BARÓ, 1965a), lemos uma crítica


que tenta sistematicamente expor a nulidade científica do materialismo dialético197. Além
disso, ficam evidentes os limites e os equívocos presentistas do autor. Conceitos como o de
“matéria”, componente da expressão “materia-lismo” não pode ser entendido como o objeto
de estudo da física e/ou da química; se assim o fosse, em diversos momentos, o
acompanharíamos em sua crítica às explicações dadas por Engels para “justificar” as
desavenças entre a entropia (ou morte térmica da matéria) e a expansão do universo segundo o
materialismo vulgar198.

A apreensão dialético-histórica da relação concreta entre aparência-essência dos


fenômenos sociais dota a teoria marxiana de uma dinamicidade impossível à explicação
tomista (fundamentada amplamente nos princípios da identidade e da não-contradição). Para
Lukács (1983/2013), a lógica formal não é desprezível, mas é insuficiente para a apreensão
das contradições engendradas pelas práxis dos seres sociais. A inteligibilidade das coisas no
tomismo se sustentaria, em linhas gerais, na não-contradição, e vimos que a contradição,
entendida como categoria do método, é mediação central do processo de objetivação do
conhecimento da realidade199.

195
Enfatizado por inúmeros de seus comentadores como importante para entendermos sua proposta.
196
Em nenhum dos textos posteriores a sua formação em Psicologia encontramos qualquer referência direta à
escolástica.
197
Se no texto de 1963 (MARTÍN-BARÓ, 1963b) ele não menciona o próprio Marx, neste há referência indireta,
mas ainda assim, em sua bibliografia não consta da leitura de nenhum texto e Marx.

198
Resumindo: o tomismo admite a existência extramental da realidade, taxando que a filosofia é ciência do real,
do ser. Contudo, as diferenças entre o método por nós utilizado são inúmeras, nesse momento temos condições
apenas de afirmar com segurança que nossa acepção de “matéria” e “substância” são distinta das desses textos
(MARTÍN-BARÓ, 1963b, 19635a).
199
Quando se detalha, não distinguir essência e aparência dialeticamente pode logicamente conduzir a uma
interpretação de que a essência seria o próprio ser das coisas, o que do ponto de vista científico é equívoco. Que
a essência se manifesta na aparência, não temos dúvida, isso foi explicado com o auxílio de Kosik (1963/1976),
no entanto o ser do fenômeno é justamente a síntese de sua aparência e de sua essência. O realismo tomista zela
por reconhecer as coisas como existentes em si mesmas e constituiu um ponto importante para o
desenvolvimento das ciências de um modo geral, principalmente quando nos lembramos da força político-social
da Igreja Católica na chamada Idade Média. Todavia, registre-se que quando Aquino trata lógica – e não
dialeticamente – a realidade não faz jus à apreensão ontológica dessa mesma realidade sócio-histórica, e
207
A despeito dessas diferenças podemos contemplar no trabalho Teoria de la evolucion
(MARTÍN-BARÓ, s.d.4), a seriedade com que o jesuíta lida com a ciência e com
materialidade da espécie humana, desde jovemxxii.

Reafirmando a presença do existencialismo no início de sua formação (ou melhor,


segundo o próprio jesuíta, dos existencialistas) em Martín-Baró (1964a), examinamos um
seminário sobre o que ele julga serem pontos principais dessa corrente filosófica. Sua postura
em relação a Martin Heiddeger, Jean Paul Satre e Karl Jaspers denota uma característica
peculiar: ele não poupa críticas, mas o faz tendo o cuidado de retirar desses autores o que lhe
convém, em alguns casos, realiza uma autentica dupla negação.

Sem justificar seus argumentos, conclui que apesar do problema dos existencialistas de
não admitir que o humano foi criado por Deus, é preciso lê-los com atenção,
“incorporándolo[s] a un todo más conforme con la realidade” (MARTÍN-BARÓ, 1964a, p.
13). Passagens como as que encontramos aqui exemplificam a densidade das discussões
filosóficas que apareceram ao longo de seus textos.

Sobre seu estilo expositivo, Sufrir y Ser (MARTÍN-BARÓ, 1964b), de julho de 1964,
serve de exemplo. Observam-se tanto características estilísticas formais (procura por uma
narrativa que construísse um diálogo aberto com seus leitores) quanto seu aguçado senso para
a originalidade e sensibilidade na lida com as temáticas que envolvem a ciência psicológica
(nesse momento ele ainda escrevia para cumprir as exigências de sua licenciatura em Filosofia
e Letras).

Vislumbra-se nitidamente outra marca: a articulação entre diferentes áreas do


conhecimento, na ocasião, Filosofia e Psicologia, mencionando, até mesmo, como o
atomicismo na ciência psicológica era nocivo e incoerente com a própria tarefa dessa ciência.
Escrito à moda expositiva hegeliana, ele destaca o problema do sofrimento e da dor humana
(seu objeto de estudo) em uma tese (o freudismo), uma antítese (o existencialismo) e uma
síntese (a proposta de Victor Frankl), ele faz críticas afiadas no texto. Seu aproveitamento da
filosofia existencialista não fora feito à revelia. É notória a inclinação dele para alinhá-los ao
seu modo (profundamente marcado pela escolástica) de compreender o cristianismo.

consequentemente das esferas pertinentes ao ser social. Se por um lado ele mostra lucidez ao distinguir que os
fenômenos não são meros frutos de impressões orgânicas (caso assim o fosse, toda a realidade se limitaria a
impressões individuais, a tal ponto que nada seria comunicável; o próprio sentir algo, pressupõe a existência de
algo fora daquele sente) por outro, e como já expusemos, só se pode apreender fenômenos sociais, tal como eles
são concretamente, quando se compreende a contradição que lhes é imanente.
208
Por fim, mencionemos algo que retornaria na década de 1970 e em alguns textos da
década de 1980: sua crítica à psicanalise. Engenhosamente, em vez de atacar, como a maioria,
o pansexualismo freudiano, opta por ferir o pan-hedonismo que a psicanálise conteria,
explorando as implicações de se seguir, até as últimas consequências lógicas, as premissas de
Freud.

Ainda sobre a proximidade de Martín-Baró com a psicanálise, aclaremos alguns


pormenores. Ele a retomaria com contornos positivos no início década de 1970, período de
sua formação em Psicologia, mas seus textos de juventude são duros em relação aos
pressupostos teórico-filosóficos dela. Em Freud y Nietzsche (MARTÍN-BARÓ, s.d.3),
provavelmente do primeiro período formativo acadêmico do autor, são postos novamente em
confronto teórico esses pressupostos. Amparado no existencialismo, mostra afinidades entre
Freud e Nietzsche, mas também o quanto, a seu juízo, eles entendem mal a natureza humana,
que é essencialmente boa, pois teria sido criada por Deus. Lê-se uma crítica a ambos (ainda
que ele guarde maior solidariedade ao primeiro que ao segundo). Mas é no Complexo o
cultura? (MARTÍN-BARÓ, s.d., p. 5) que ele nos apresenta as raízes de sua crítica ao
vienense. Ali ele contrapôs pressupostos e premissas do intento de Freud (principalmente em
Totem e Tabu, livro de 1913) ao estudo do polaco Bronislaw Malinowski. Deparamo-nos
nesse escrito com um modelo de exposição argumentativa atravessado por profundo senso de
historicidade200.

Muito mais intuitiva do que cientificamente, em Martín-Baró (1964c) constatam-se


indícios importantes sobre como ele considerava o sentido das atividades humanas, bem como
a importância da compreensão de seus significados para o quefazer da ciência. Essa não é
uma aproximação apressada às clássicas asserções de Vigostski (1934/2009), apenas
mostramos a sensibilidade do militante salvadorenho na lida com a especificidade científica
das teorias psicossociais.

Para exemplificar o que o jovem autor versava sobre a política, fizemos questão de
comentar um pequeno artigo de 1966 (MARTÍN-BARÓ, 1966c), em que ele expõe de forma
direta, como em poucas ocasiões o veríamos fazer, o que julgava ser o comunismo
soviético.Ao reportar a entrega do Nobel de literatura para o russo Miguel A. Sholokhov,

200
Não estamos aqui afirmando que o jesuíta trabalhava a historicidade tal como a expomos no primeiro
capítulo, entretanto, esse é um dos poucos textos de sua juventude que o tema não se direciona exclusivamente à
teologia; vemos um arguto pensador, buscando por meio da ordem dos fatos na cronologia freudiana acerca da
origem da moral, da cultura e da culpa, por exemplo, sustentar suas críticas.
209
certifica que o prêmio foi dado para um “autor de um livro só” (O Don silencioso)201.
Entrelaçando o país de nascença do ganhador com uma superficial análise de conjuntura, o
artigo evidencia como Martín-Baró acreditava que a América-Latina precisava de uma
revolução, mas, nas palavras dele, “Si hace falta una revolución no es la comunista, sino
probablemente una revolución industrial, del tipo de la que comenzó entre nosotros a
principios del siglo passado” (MARTÍN-BARÓ, 1966b, p. 9). As diferenças entre essa
posição e a que defenderia mais tarde ficaram mais volumosas já no final de 1970. O que não
mudaria foi seu posicionamento crítico em relação ao stalinismo. Além do mais, ele já
mostrava interesse em compreender as implicações e os desdobramentos psicossociais das
relações socioeconômicas202.

Entrevimos que a temática juventude é recorrente em sua obra203, mas dentre os artigos
estudados, o que data de 1966 é o primeiro registro em que comprovamos o reconhecimento
dele de que os jovens latino-americanos precisam ser estudados a partir da particularidade
histórica da própria América latina, eivada por contrastes sociais e pelo subdesenvolvimento.
Para realizar isso, ele menciona a necessidade de uma “dialéctica histórica” (MARTÍN-
BARÓ, 1966a, p. 287). Constata-se, também, em Martín-Baró (1967e), uma ainda incipiente
e moralista refutação aos modos de socialização capitalista, quando acusa o personagem de
Ian Fleming, James Bond, de modelo degenerado, por exemplo.

Dentre seus textos, um dos que mais mostram sua singularidade ético-político é Por
una Formación humana (MARTÍN-BARÓ, 1967d), fortemente marcado por uma perspectiva
do humanismo na lida com a educação. Nele, o autor se dispõe a buscar não o meio termo
entre uma educação de inspiração rosseauniana e outra draconiana, mas almeja incorporar ao
seu intento as contribuições difundidas pelos existencialistas sobre a realidade social,
principalmente sobre a latino-americana204.

201
Sobre a relação entre política e poesia/literatura/música/cinema em Martín-Baró (ver MARTÍN-BARÓ,
1966a, 1966c, 1967b, 1967c, 1967d, 1968a, 1972d, 1974b,1976d).
202
Em um artigo intitulado “Un extraño remédio para la homosexualidad: su legalización”, (MARTÍN-BARÓ,
1966d), pode-se ler mais sobre isso. Apesar de o título conferir impressão progressista, o jesuíta engendra ali
severa crítica à aprovação da lei que legalizava a homossexualidade em Londres, no ano de 1966. Postura que
em nada se assemelharia com a defendida por ele em outras obras.
203
Conferir mais em Martín-Baró, 1966a, 1967e, 1968a, 1972c, 1974b, 1982a, s.d.2; para citar alguns em que ele
se refere ao tema com mais consistência.
204
Há um ensaio com temática muito semelhante a que nos referimos aqui em Martín-Baró (s.d.2). Ele relata sua
experiência docente com jovens de 13-18 anos de um colégio católico em San Salvador. Seja pela perspicácia ou
por sua notável habilidade como ensaísta, vemos como questões concretas (como o próprio clima do país) é
citado por ele como fator que pode contribuir ou dificultar o processo de educativo. Mesmo afirmando ser relato
210
Seus principais argumentos partiam de sua definição de humano. Mesmo sabendo da
falta de coerência epistemológica entre os autores que cita (Carl Rogers, Carl Gustav Jung e
Sartre, por exemplo), ele recomenda que apreendamos os indivíduos como seres sociais que
possuem desenvolvimento histórico, ou seja, que só se constituem em relação com outros
humanos. Para ele, a linguagem seria parte importantíssima do tornar-se humano, declarando
que entre o humano e a linguagem há relação dialética.

Uma análise geral indica que desde cedo Martín-Baró se opõe criticamente ao que
comumente se chama de cartesianismo que, segundo ele, ao enfatizar a dualidade do humano
perderia a unicidade fundamental entre corporalidade e espiritualidade. E é por isso que ele
desaprova a divisão nas escolas entre corpo e alma, em disciplinas que privilegiam os esportes
e outras o intelecto, pois isso reforçaria a tal dualidade e contribuiria negativamente para o
processo de formação educacional integral.

Para o jovem Martín-Baró (1967d), o humano é ser social moral que se desenvolve
historicamente, mas isso não o impede de defender que a consciência moral (sendo fruto de
processo histórico) fosse cravada por Deus no coração humano, tendo como referência última
e concreta Jesus Cristo.

A moral, para ele, era posta como ideal de ser, só cumprida quando o indivíduo se
autoconhecia, o que em nada comprova um caráter individualista, porquanto só por meio de
outro humano é que seria possível agir moralmente. A moral não “vinha” pronta (como
imperativo categórico a ser seguido), mas deveria se concretizar em cada situação particular.
A obra ainda acerca-se de: a) dialética indivíduo-sociedade e família-escola; e b) das relações
entre temperamento (somato-biológico humano) e caráter (o que se faz com a herança
biológica). Ele aponta também quão importantes são as emoções205 no processo educativo;
pode-se ver, além disso, uma crítica ao machismo e ao tratamento subalterno dado as
mulheres no ocidente206.

de cunho subjetivo, desde o início percebe-se a importância dada pelo autor às condições socioeconômicas e,
mais, o quanto elas compõem mediação fundamental a ser considerada na análise de um educador. Assim como
veremos em Martín-Baró (1968a), o existencialismo, além da psicanálise, dão o tom do texto.
205
Nas palavras dele: “una resposta espontânea de tipo afectivo, nacida de um estimulo representativo, y que
implica una serie de câmbios corporales peculiares” (MARTÍN-BARÓ, 1967d, p. 59).
206
Esse seria um tema recorrente na obra de Martín-Baró. Uma expressão que aparecerá outras vezes ao longo
dos anos é “novo homem”. O jesuíta salienta que a educação cristã seria a responsável por criá-lo, exatamente
como o proposto no evangelho cristão. É interessante notar que, já em 1967, o texto assinala o surgimento de
mudanças na Igreja Católica da América-Latina. O próprio autor reconhece que em alguns casos a religião era de
211
Dos textos apresentados até o momento, Los cristianos y la violência (MARTÍN-
BARÓ, 1968d), é o que demonstra melhor a precoce receptividade de Martín-Baró ao
movimento eclesiástico apresentado nesta tese pelo nome de teologia da libertação, que tem
relações explícitas (no nome de batismo de sua proposta para a Psicologia) e implíticas
(ambas as áreas tem orientações à práxis política semelhatantes). Além disso, vê-se o embrião
de uma das grandes categorias que seriam retomadas ao longo de sua carreira como
pesquisador-psicólogo social: a violência. Martín-Baró (1968d) não poupou críticas à Igreja
que se fazia ópio e “tumba de Dios” (p.12), denunciando-a como acomodada ao capitalismo,
questionando se o problema dela com o comunismo não seria justamente sua excessiva
identificação como o modo de produção hegemônico. De quebra, o trabalho questiona a
escolástica que, segundo ele, com sua argúcia, tentaria justificar as inegáveis mudanças
sociais na História, afirmando que a essência das coisas (sociais) permanece a mesma. São
consideráveis os passos dele na direção de afastar-se do que nomina de estatismo da
escolástica. Para citar o próprio autor:

Ahora bien, en el orden concreto no existe una substancia absolutamente


independiente de sus acidentes. Por lo tanto una modificación sustancial. Esto si nos
situamos en un plano escolástico, que nos parece totalmente inadecuado. En un
plano más realista, la experiência es evidente. Cientificamente nadie puede negar
hoy el fenómeno de la evolución de las espécies, como no se puede afirmar, por
ejemplo, que el passo de los homínidos al hombre no hay sido más que un cambio
acidental. El mundo es, pues, una realidad en continua evolución. (MARTÍN-
BARÓ, 1968d, p. 15).
Por qualquer ângulo que se análise, a ênfase dada à História como componente
essencial à compreensão dos fenômenos sociais é o que mais chama atenção. Sua linha
argumentativa aborda centralmente a posição do cristão em relação às injustiças sociais. Para
realizar tal tarefa, versa sobre as práxis de proeminentes cristãos daquele período: Helder
Câmara, Martin Luther King e Camilo Torres, por exemplo, destacando especialmente as
posições dos dois últimos que foram até às últimas consequências, tendo sido assassinados
por causa delas207.

fato “ópio do povo”, instituição aburguesada e exploradora. Suas críticas ao comunismo, porém, permaneciam
vigorosas, rechaçando, por exemplo, a legitimidade da existência de um “colégio confessional comunista”,
apesar de sua defesa aos confessionais católicos.
207
Contrariando a postura de Montero (2009), que pode aprisionar Martín-Baró no campo do reformismo
democrático, ele mesmo escreve que “el mundo actual exige una revolución urgente” (MARTÍN-BARÓ, 1968d,
p. 54). Antes que se nos acusem de maus intérpretes, revolução, para o autor, e no contexto em que comenta a
postura política do cristão, afirma “[...], hoy día, parece que tiene que ser [a revolução] de signo socialista (lo que
no quiere decir necessariamente que haya que integrarse a un determinado partido socialista ya constituído)”. (p.
41). Nas referências bibliográficas desse texto encontram-se menções a três publicações de Herbert Marcuse,
mas não há nenhuma citação direta; o que não invalida a inferência de Oropeza (2016) e Ibáñez (2001), sobre a
212
Retomando suas publicações na Revista Estudios Centroamericanos (que acolheu pelo
menos 51 publicações de Martín-Baró), em El pulso del tempo: guerrilleros y hippies,
(MARTÍN-BARÓ, 1968a) acha-se uma reflexão sobre o papel das guerrilhas no continente
latino-americano, que se configuravam como “el medio con que cuenta el hombre moderno
para rechazar un estado de cosas, más aún, una civilización cuyas aristas hieren muchos
hombres, cuyas estructuras ahogan a una gran parte de los individuos que la componen”
(p.25). Na sequência, escreve que não as aprova, mas também não as condenava radicalmente;
vê-se também discreta aproximação ao conceito de alienação, amplamente trabalhado
posteriormente.

Em um ensaio datado de 1968, Martín-Baró (1968b) envereda-se por um tema assaz


pertinente da cultura latino-americana: o machismo. Será a primeira de muitas vezes em que o
veremos discuti-lo (MARTÍN-BARÓ, 1975b, 1980e, 1983b, 1986a, 1987d, 1988c, 1988g,
para citar alguns). Mais do que expor o que pensa a respeito do machismo, para nós é
relevante iluminar o modo como problematiza suas origens históricas, tratando-o como
produção social.

Na sequência, deparamo-nos com mordaz crítica à propaganda vista como processo de


deseducação social (Martín-Baró, 1968c). Observa-se crescente aproximação aos interesses
mais imediatos da ciência psicológica. Aliás, não seria exagero abonar que, em praticamente
todos os seus trabalhos até aqui, anteriores ao seu ingresso no curso de Psicologia, encontram-
se citações diretas ou indiretas a autores dessa área. Isso possibilita que trabalhemos com a
hipótese que seus interesses sociais como educador e religioso, somados à busca de
aprofundamento teórico e técnico, levaram-no à formação acadêmica em Psicologia208.

Para concluir este trecho, analisamos um texto de 1969, publicado com Jávier Ibáñez e
Juan Jose Ramirez, feito em sua curta passagem por Eengenhoven-Louvain, intitulado
Vocación religiosa en centroamérica, (MARTÍN-BARÓ, 1969). Ali, empreende-se uma

presença do frankfurtiano na obra de juventude do autor. Para finalizarmos a análise, salientemos que ele adota
postura flexível em relação ao uso da violência como legítima defesa dos que sofrem injustiça social; contudo,
há expressa ênfase para que ela não seja tomada como regra, mas como medida provisória, sendo a melhor
alternativa sempre a “teologia y práxis cristiana” (p.53) da não-violência.
208
Um detalhe curioso: no texto ora comentado há acintosa crítica aos efeitos nocivos das propagandas,
afirmando que ela trata os humanos como consumidores, principalmente quando aliada aos interesses
imperialistas dos países mais poderosos. Contudo, as sete páginas que compõem o artigo dividem o espaço da
folha, da publicação da revista Estudios Centro-Americanos, com três propagandas; duas oferecendo roupas e a
outra, serviços para o engarrafamento de bebidas. A posição política de Martín-Baró provavelmente não
agradava os patrocinadores da revista. (MARTÍN-BARÓ, 1968c).
213
crítica à Igreja e à Companhia de Jesus que, na América Central, historicamente tinham se
alinhado ao capitalismo, à injustiça e à alienação.

A ideia de conscientização, que já figurava discretamente nos textos do ano anterior, é


novamente retomada e dali para a frente não seria abandonada. Acarca da práxis dos cristãos,
ele redige que mais do que um trabalho em um campo específico, eles deveriam se envolver
em um labor em prol do desenvolvimento integral da sociedade. Havia, para os autores, uma
necessidade de união dos religiosos com forças sociais progressistas, mesmo que elas não
fossem “cristãs”. Em linhas gerias, o pequeno texto propõe que se adote a perspectiva latino-
americana para a solução dos problemas endógenos ao continente. (isso pode soar óbvio em
2017, mas naquele período, como sabemos, não era).

Vimos até aqui que Ignacio Martín-Baró recebeu uma formação ampla e generalista.
No primeiro momento o conteúdo de suas reflexões orbitaram as temáticas próximas à
religião, o que não quer dizer que mesmo por elas influenciado ele não tenha se mostrado
preocupado em discorrer sobre os problemas sociais.

4.1.2 O encontro de Martín-Baró com a Psicologia: matrizes epistemológicas

O primeiro texto da década de 1970, que inaugura suas publicações na ciência


psicológica, intitula-se Psicologia de la caricia. São três páginas que dão conta de explicar
que “caricia es palavra, es lenguaje. Lenguaje revestida de carne y modulada por el
movimento” (MARTÍN-BARÓ, 1970, p. 496). Ao analisarmos o conteúdo, entrevemos de
modo embrionário como sua argumentação despontava para a compreensão de que as
atividades humanas ultrapassam o mero comportamento observável, dado o modo sensível e
até poético com que ele retrata a carícia, que deve ser apreendida a partir de seu sentido (que é
historicamente produzido). Ressalta-se, aqui, como o existencialismo forjou em Martín-Baró
peculiaridades em seu modo de abordar a Psicologia, como veremos a seguir.

No ano seguinte, em Formación cristiana del niño (MARTÍN-BARÓ, 1971a),


estamos diante de um trabalho feito para alguma disciplina de seu curso de Psicologia. É nele
que registramos, pela primeira vez entre os textos lidos, uma aproximação não crítica entre a
psicanálise e o cristianismo. Diferente do que fizera antes (em Martín-Baró, s.d.3, por

214
exemplo), o complexo de Édipo foi tratado como realidade dada; além disso, ele aceita o
inconsciente como parte do psiquismo humano209.

Em Martín-Baró (1971b), Del pensamiento alienado al pensamiento creativo, vê-se


que a origem de seu modo de pensar o quefazer da Psicologia (como necessariamente
engajada à realidade latino-americana) não começa com suas reflexões sobre ela, mas na
teologia, e isso seria evidenciado pelo próprio autor em seus últimos escritos. Para ele, os
modelos de teologia importados dos escritórios alemães eram insuficientes para explicar a
realidade de subdesenvolvimento e dependência do continente210. Aparece também outro
elemento que seria recorrente: suas denúncias à alienação como condição de impedimento da
produção autêntica e necessária aos povos latino-americanos. Nas palavras dele, “[...] De ahí
que no sólo debamos aspirar a liberar nuestros pueblos: debemos liberarnos nosotros mismos,
liberar nuestras mentes en el nudo gordiano de la creatividad, del pensamiento crítico y
creativo” (MARTÍN-BARÓ, 1973b, p. 163).

O jesuíta afirma que uma teoria latino-americana deve se fundamentar na crítica e na


originalidade, “[...] Un pensamiento crítico lo debe ser por una autenticidad dialéctica,
consciente de su inmersión en la historia y, por lo tanto, de la negatividad que con lleva en si
mismo” (MARTÍN-BARÓ, 1973b, p. 164). Desponta explicitamente a noção de libertação
como necessária e produto de nossa particularidade histórica. Completando, na mesma
página, ele anota:

“Un pensamiento creativo es, pues, necesariamente un pensamiento dialéctico:


dialéctico por su juego entre realidad vivida y reflexión, dialéctico por su negación
critica y su afirmación incitadora de soluciones originales, dialéctico por la tensión
que establece entre pasado, presente y futuro” (MARTÍN-BARÓ, 1973b, p. 164)211.
Encontramos, por fim, uma articulação entre alienação e linguagem. Resgatando os
trabalhos de Jean Piaget (que não identificava o pensamento com a linguagem, afirmando que
não se pode reduzir o pensamento, nem genética nem formalmente, a ela) e trazendo à baila
Herbert Marcuse, aponta como a publicidade atuava na produção e reprodução da alienação.

209
Aliás, uma aclaração: em diversos textos da década de 1960, constata-se que o jesuíta acata o conceito de
inconsciente, sua crítica é muito mais relacionada à explicação cosmogônica da psicanálise do que a seus
conceitos chaves.
210
Para realizar essa critica cita o trabalho de teólogo Hugo Assman.
211
Adiante, como seus textos da década de 1980, retomaremos criticamente o modo como o autor trabalha a
mediação da negação na dialética. Afora isso, o texto ora analisado foi importante porque nele vimos uma
espécie de prévia de muitos outros trabalhos; por exemplo, o estudo do que chamou de “mecanismos
psicológicos”, que estruturam a passividade alienada que predominava no continente, seriam sob diversos
ângulos retomados.
215
Suas observações, seguindo o frankfurtiano, sobre o “pensamento alienado” versaram sobre:
a) o presentismo intelectual contido nele; b) uma operatoriedade reativa causada pelo modo de
inserção cultural dos indivíduos na realidade sócio-política (diminuição da reflexão e presença
cada vez maior de massificação, ao invés da individuação); e c) o positivismo conceitual. O
“pensamento” daquele período, em suas palavras:

[...] está reducido a la simple afirmación; se ha cortado su negatividad, reduciéndolo


a puro positivismo, a pura acomodación a lo dado. Pero la negación de la
negatividad, la supresión de lo posible como contexto evaluativo de lo real, supone
un fenomenismo no-trascendente que, en su sentido más profundo, constituye la
ahistoricidad del pensamiento. Al reducir el pensamiento a esquemas perceptivos
interiorizados, se rompe la tensión entre el ser y el "poder ser" o el "deber ser", se
rompe la tensión que hace del presente el punto móvil entre el pasado y el futuro, es
decir, se saca al pensamiento de la historia. Suprimir la negatividad de la
inteligencia operatória implica, en última instancia, suprimir su historicidad. La
inteligencia se convierte en un reflejo presentista, en una repetición esclerotizada de
la realidade existente (MARTÍN-BARÓ, 1971b, p. 172).
Ele traz ainda, pela primeira vez explicitamente, Paulo Freire212 e a Pedagogia do
Oprimido para suas discussões sobre a alienação. Sobre as consequências psicossociais da
alienação destaca: a) o presentismo: “...El presentismo constituye un comportamento fijado a
la actualidad tanto espacial como temporalmente. El individuo es incapaz de mirar más allá
de los estímulos del aquí y ahora” (MARTÍN-BARÓ, 1971b, p. 174); b) a centração
perceptiva, recorrendo a Piaget213 mostra o quanto os indivíduos são incapazes de perceber o
todo, de perceber o quanto suas atividades do ponto de vista singular compõem a sociedade;
em outras palavras, descolar a parte do todo é uma característica própria da alienação; c) o
mimetismo, vertido na acepção de Marcuse214, que impediria o pensamento crítico e criativo,
optando pela importação de realidades sociais distintas; d) nominalismo mágico, ou seja, a
suposta capacidade das palavras de criar uma realidade, como se criar uma “comissão” para a
solução de um problema social fosse o mesmo que resolver esse problema 215. Sobre isso,
Martín-Baró (1971d, p. 175) afirma:

“Las palabras no son mágicas: por el hecho de pronunciar se no hacen realidad su


significado. Son los hechos los que hablan, los que preñan de sentido las palavras”
[...] ¡Cuántos ritos no han perdido toda su fuerza simbólica y - por ende - actuante,
confiados en que la magia de la palabra lo hacía todo! Repitamos: no es la palabra la

212
FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. Tierra Nueva, Montetevideo, 1970.
213
PIAGET, JEAN: Psicologáa de la inteligencia. Ed. Psique, Buenos Aires, 1967. págs. 100· 101.
214
MARCUSE, H: El hombre unidimcnsional. Ed. Seix Barral, S. A., Barcelona 1969.
215
As críticas que Cuellar (2012/2015) faz aos que pretendem empurrar Martín-Baró pela ladeira dos
construcionismos sociais encontram inúmeras correspondências com as posições descritas pelo próprio Martín-
Baró. O texto analisado nesse momento é um deles.
216
que actúa, como pretendían los primitivos; es la acción, el acto concreto, social e
histórico el que habla.
Ou ainda,

“Pero, entendámonos desde un principio: la palabra liberadora no puede ser


entendida como simples verbalización. Si la palabra opresora apunta a uma
experienecia, supone un tipo único ele imagen e de experiencia, la palavra liberadora
com ella necesariamente un experimentar distinto, un hacer diferente. Es decir, la
palabra liberadora ha de ser "praxis": acción-reflexiva. (MARTÍN-BARÓ, 1971b, p.
182).
A tese defendida por Martín-Baró (1971b) é a de que a alienação reduziria o
pensamento ao estágio operatório formal ou intuitivo, nos termos de Piaget. Pensamento e
linguagem que seriam responsáveis pela função simbólica ficariam incapacitados (devido aos
quatro itens do parágrafo anterior), e isso feriria o desenvolvimento do psiquismo impedindo-
o de tornar-se propriamente humano (uma vez mais recorre a Paulo Freire e a Erich
Fromm216).

Se por um lado o posicionamento ético-político dos argumentos de Martín-Baró sobre


o horizonte de atuação da Psicologia é digno de destaque positivo, por outro é mister apurar
que sem um critério aparente, mistura citações de Victor Frankl, Carl Rogers, Marcuse, Paulo
Freire, Erich Fromm, por exemplo para chegar às conclusões que chega. Essa sentença dá
pistas sobre como nossas críticas ao seu projeto teórico foram construídas. Muito menos por
discordar da orientação ética de sua práxis, e muito mais pela exposição das inconsistências
teóricas de sua proposta, que aparecem em diversos momentos.

Em Martín-Baró (1971c), Problemas actuales en psicopedagogía escolar,


identificamos um dos pontos que podem justificar uma suspeita de ecletismo, pois ali lemos
fragmentos que permaneceram constantes ao longo de sua obra, para ele: “problemas sociais”
convocam uma teoria e não o contrário; em outras palavras, o psicólogo não pode amparar sua
ciência no que ele chama de ideais teóricos, mas nos problemas sociais e individuais da
humanidade. O que não quer dizer, e com isso concordamos, que os profissionais dessa área
não precisam de conhecimentos de diversas fontes (como da pedagogia, por exemplo, uma
vez que o diálogo é importantíssimo para essa profissão. Mas, afinal, alguém poderia lhe
perguntar, como delimitar um “problema social” sem uma teoria que explique o que é a
sociedade e, depois, o que nela são problemas?

216
Nos livros: El corazón del hombre (Fondo de Cultura Económica, México, 1967) e El miedo de la liberdad
(Ed. Paidós, Buenos Aires, 1968).
217
Versando sobre a psicopedagogia, no mesmo texto (MARTÍN-BARÓ, 1971c), vemos
uma vez mais que ele retoma mediações importantes para o debate do processo de
escolarização. As condições socioeconômicas dos educandos, por exemplo, não incidem
diretamente sobre a escolarização em si, mas não considerá-las pode levar a uma
psicologização dos problemas escolares, ou seja, o que demandaria solução coletiva passa a
ser individualizado. Ainda sobre educação, assume que onde não há valores ela não poderá
existir verdadeiramente, pois são eles que constituem os vetores axiológicos dirigentes desse
labor. Vemos, sem embargo, também o emprego acrítico de pressupostos teóricos distintos
para defender seus argumentos: Maslow, Freire, Marcuse, Fromm, Freud e Skinner andam de
mãos dadas.

Em outro pequeno texto, em que discute o conceito de significado, ganha conotações


concretas sua explicação da Páscoa para os cristãos. Notamos em Martín-Baró (1971d),
Muerte y resurección, del símbolo a la realidade, o quanto pondera sobre questões complexas
nas ciências humanas. A primeira delas é a de que qualquer símbolo prescinde de uma
dimensão material (objetivável) e outra subjetiva (sua significação). São argumentos como os
levantados nesse escrito, que de pronto alertamos que é preciso atenção para não distorcer sua
obra. Uma mirada superficial poderia rotulá-lo precipitadamente de idealista, mas o modo
como ele articula a História em suas análises não pode ser desprezado, pois partindo dessa
radical proposição inovou muitos aspectos do debate da psicologia social no continente. Sua
análise sobre o significado da Semana Santa aponta o quanto ela, dentro do cristianismo,
versa sobre a libertação da humanidade. Para ele:

La liberación debe ser una realidad operante, ativa, dinámica. Liberar es algo tan
concreto, que al hombre, al cristiano que vive su fe no le es posible escabullir su
responsabilidad ante la circunstancia histórica concreta en la que le ha sido dado
vivir. Es imposible hablar de "libertad" cuando vivimos un presente de esclavitud,
no muy diferente, en el fondo, a la esclavitud que el pueblo judío experimentó en
Egipto" (MARTÍN-BARÓ, 1971d, p. 15).
Ao discuti-la, expõe sua concepção de realidade social, que não o abandonaria mais.
Para ele, a sociedade deve ser apreendida como conflitiva; em suas palavras,

Aceptar la conflictividad del mundo - visión antes cristiana que marxista, fuera de
que el marxismo apunta de hecho alodido que divide, mientras que el cristianismo
apunta al amor, que une-, supone el reconocimiento de lo que Medellín ha llamado
con palavra justa y precisa "la violencia institucionalizada", es decir, un estado
global de pecado público, una estructura de pecado objetivo (MARTÍN-BARÓ,
1971d, p. 17).
Ele continua, na mesma página, dando a conhecer o que, naquele momento, acreditava
ser a posição do marxismo sobre o tema:
218
No es la historia, como afirma el marxista, la que en su dialéctica predeterminada va
a salvar al hombre. Es el hombre el que, en su combate concreto, liberador, en su
lucha contra toda opresión real – por pequeña que sea-, salvará la historia
(MARTÍN-BARÓ, 1971d, p. 18).
Nosso objetivo ao trazermos considerações sobre a teologia da libertação na seção
anterior foi justamente situar como aquelas propostas para a práxis cristã modificaram muito
da interpretação dada até então da Bíblia. Em Martín-Baró (1971d), apreciamos uma
interpretação bastante heterodoxa da Páscoa; seria tolice não reparar nas drásticas diferenças
entre seu modo de abordá-la e do pensamente hegemônico da religião.

No ano seguinte, 1972, em uma conferência proferida em Manágua, na Nicarágua,


intitulada Una nueva pedagogía para una universidad nueva, repara-se o quanto Martín-Baró
(1972a) estava envolvido com a dinâmica dos países em crise sócio-política na América
Central. Ele assume que alguém até poderia considerá-lo idealista, mas só aceitaria o rótulo se
idealista quisesse dizer “os que acreditam em uma utopia”. À moda de Hebert Marcuse,
reforça uma utopia (ou proyectos de transformacion social, p. 131) embasada racionalmente e
que não contrariasse leis cientificamente provadas que nada tinham de conjecturas.

Nessa conferência, a tese de que a verdade se “faz”, e não se descobre, encharca seu
discurso sobre o papel das universidades latino-americanas. Discorrendo sobre o futuro dessas
instituições, aponta três objetivos centrais: a) tomar partido diante dos problemas de suas
sociedades, o que não quer dizer declará-las revolucionárias, porque para Martín-Baró
(1972a), a revolução deveria ser “feita”, não alardeada verbalmente, ou ainda, se a
universidade cumprisse seu papel ético isso já seria revolucionário; b) assumir posições
axiológicas, isto é, deveria optar entre valores humanos em contraposição aos do capitalismo,
pois os primeiros humanizam o ser social; c) fomentar uma cultura autônoma, isso significa
refletir criticamente sobre as pesquisas produzidas por meio de ações eficazes, fugindo de
retóricas vazias. Acrescenta ainda a necessidade de realismo político, que significava que não
se produz ciência nas nuvens, mas em uma sociedade que se desenvolve historicamente.

Optar por valores humanos (cooperação, amor, dignidade, por exemplo) é necessidade
histórica, ainda mais no caso da Psicologia, que precisa combater os estragos causados pela
grande difusão das pseudociências estadunidenses que enfatizavam a adaptação a uma
sociedade exploradora e repressiva.

Não queremos desqualificar teoricamente a produção de Martín-Baró, mas perscrutar


suas premissas e pressupostos desde o materialismo histórico-dialético, o que não significa
219
“verificar se Martín-Baró era marxista”. Considerar a materialidade histórica e dialética da
realidade é pressuposto para as ciências humanas, não exclusividade de quem foi ou é
marxista. No entanto, ao fazermos isso, ressaltamos algumas “contradições” sob o prisma
epistemológico. Devemos lembrar, todavia que no momento da escrita desses textos, é bem
provável que pouquíssimos pesquisadores estivessem realizando esse tipo de debate nos
meios universitários, logo, e a despeito das falhas teóricas, seu legado progressista precisa ser
resgatado.

Percebemos mais sobre a questão das relações entre valores e ciência em Martín-Baró
quando, em um texto como Del alcohol a la marihuana (MARTÍN-BARÓ, 1972b), debate-se
algo socialmente submerso em diversas camadas de moralismos e preconceitos. Em linhas
gerais, o autor atesta que o álcool é causador de muito mais problemas em El Salvador, e de
forma geral na América Latina, que a maconha. Seu consumo em larga escala promove do
ponto de vista da saúde pública muito mais estragos; em compensação, era o uso da marijuana
que levava à fama de vício pernicioso e causador de danos irreparáveis.

Até esse momento notamos ubíqua presença do existencialismo, principalmente no


período de sua formação em filosofia e letras. A psicanálise, de secundária na década de 1960,
passaria a ser incorporada como instrumento de crítica e de análise das condições reais da
sociedade de seu tempo; perderia um pouco do caráter negativo atribuído nos textos iniciais.
Contudo, quando Oropeza (2016) e Ibánez (1998), destacam sua presença na obra de Martín-
Baró é mister salientar que não se trata de uma vertente ortodoxa, mas de uma fortemente
marcada pela crítica frankfurtiana (diríamos que Reich, Marcuse, Fromm principalmente).

Nessa esteira, Presupuestos psicosociales de una caracterología para nuestros países


(MARTÍN-BARÓ, 1972e) é inaugurado com duas epígrafes, uma citando Marx e outra Reich,
mas o corpo do texto é composto por um emaranhado de premissas da Piscologia da Gestalt,
da Psicanálise, da Epistemologia Genética (Piaget), de Marcuse sobre o capitalismo e da
pedagogia de Paulo Freire. O artigo é emblemático dessa fase de Martín-Baró, ávido leitor de
diversas teorias psicológicas e que as unia, despreocupado com coerência teórica, mas com as
possibilidades que a Psicologia lhe oferecia para intervir na realidade, intencionando criticar o
modo de produção capitalista e a miséria latino-americana.

Sua descrição conceitual sobre o carácter é densa (ela praticamente seria abandonada
na década seguinte), mas o que nos interessa no escrito é sua dedicação à outra categoria

220
central para compreendermos o todo de sua obra: a ideologia. As críticas perpetradas em
trabalhos da década de 1960, sobre as premissas filosóficas da psicanálise (como em
Complexo y cultura, MARTÍN-BARÓ, s.d.5), parecem sucumbir à sedução de uma
explicação que nesse momento combinava com seus intentos científicos (ver mais sobre isso
em MARTÍN-BARÓ, 1972f).

Já no texto Hacia una docência liberadora (MARTÍN-BARÓ 1972g), encontramos


uma interpretação, que ele chama de marxista, para a alienação, pois ela seria um estado em
que o comportamento humano não é autônomo (“estado” concreto e consequência de um
desenvolvimento histórico), sendo ele mesmo (o comportamento) convertido em “coisa”. O
contraponto dela seria a libertação, uma superação pela práxis histórica.

Se não há como pensar em seu projeto ético-político para a Psicologia sem


lembrarmo-nos da noção de libertação, não há como debatê-lo criticamente sem fazer
referência à situação concreta de El Salvador. A primeira de muitas vezes em que
encontraremos o nome do país em um título de seus trabalhos se acha em Algunas
repercusiones psico-sociales de la densidad demográfica en El Salvador (MARTÍN-BARÓ
1973a). Aliás, o próprio tema do artigo, densidade demográfica e crescimento populacional,
foi retomado com maior profundidade em sua tese doutoral, em 1979. No texto, alguns
elementos ganham exposição mais objetiva; por exemplo, sua definição de ser humano como
ser histórico, possuidor de uma “natureza” que é também produção histórica, ainda que
persistam traços da definição escolástica217.

Nessa direção, ele prossegue admitindo que o humano torna-se humano em uma
relação dialética com o mundo; todavia, dialética ali é mais vertida à moda grega (dialética
como diálogo) do que na acepção materialista histórica e dialética. Mais uma vez percebemos
que a presença da escolástica não deveria por si só significar algo pejorativo, pois há em suas
conjecturas ênfase notável nas condições materiais e sociais condicionantes dos indivíduos,
chegando até mesmo a reconhecer a existência da mediação das classes sociais no
capitalismo218. Logo, mesmo que teoricamente o texto uma, sem diferenciar, Gestalt e
Psicanálise, o movimento do autor em debater a questão era completamente coerente com
uma práxis psicológica emancipadora. A tarefa que propõe à Psicologia, nesse texto, era a da

217
Conferir mais sobre esse tema na página 123 de Martín-Baró, 1973a.
218
Registre-se ainda que este tema era preocupante. El Salvador tinha densidade demográfica de 173 habitantes
por km², com projeção pra aumentar para 234, na década seguinte.
221
desalienação, que mesmo sem definição conceitual (veremos mais sobre isso nas conclusões)
era algo que não deveria ser realizado individualmente, pois era a alienação que tornaria
hegemônicos os valores mercantis.

Em Martín-Baró (1973b), Antipsiquiatría y psicoanálisis, artigo dedicado à anti-


psiquiatria e à anti-psicanálise, ele retoma críticas em relação aos pressupostos da psicanálise
freudiana. Pode-se também ler severo confronto com as “psicologias dos ajustes” feitas nos
Estados Unidos. No artigo indica com bastante nitidez qual partido a Psicologia deve tomar se
quiser servir à emancipação humana: o dos pobres.

Na sequência cronológica, deparamo-nos com Cartas al presidente: reflexiones


psicosociales sobre un caso del personalismo político en El Salvador (MARTÍN-BARÓ,
1973c). Sua originalidade, perspicácia e capacidade de síntese mostram-se como em poucos
artigos comentados até aqui. Muito menos pela solidez teórica do que pela capacidade
analítica, publicado no jornal salvadorenho La prensa Gráfica, ele aborda a relação entre as
cartas dos cidadãos ao presidente da ocasião, Arturo Molina, preludiando o que tornaria uma
de suas marcas, pois articula Psicologia e relações de poder; neste caso, de uma figura política
por excelência em uma suposta democracia: o presidente da república.

Alardeando o perigo das análises individualizantes sobre questões políticas complexas,


afirma que derivar da capacidade individual, do querer singular, a solução de problemas
sócio-políticos distorce completamente o que está em jogo: interesses econômico-políticos
classistas. São os primeiros passos das análises originais do autor sobre a contribuição da
psicologia social para as ciências políticas.

O artigo Psicología del campesino salvadorenho (MARTÍN-BARÓ, 1973d), é um


texto conceitualmente mais elaborado. Aparece nele uma palavra que seria utilizada em
diversas oportunidades ao longo dos anos, atitudes. Para Blanco (1998), elas foram um de
seus temas preferidos. Seja definindo o que são as atitudes219, o fatalismo220 ou pela constante

219
De acordo com Martín-Baró (1973d, p. 477): “[...] una actidud como una predisposición de un individuo para
actuar de una determínada manera ante un objeto”. Na página seguinte ele acrescenta: “Una actitud es por tanto
una relación de sentido entre un sujeto y un objeto, que se expresa en comportamientos, diversos en su forma, de
acuerdo con la circunstancia, pero idénticos en su significación”. [...]La actitud nos indica así cómo un
determinado individuo afronta su mundo: cómo lo percibe, cómo le impacta, qué significa esto o aquello para el.
Lo que la realidad, las diversas parcelas de realidad representan para un determinado sujeto, sólo podemos
entenderlo cuando captarnos la actitud, es decir, la significación que esa realidad tiene para ese sujeto, lo que ya
no es un dato puramente objetivo (en cuanto externamente observable), aunque tampoco puramente subjetivo.
Las conductas de un individuo sólo se comprenden cuando se las enmarca en un sistema de referencia, que no
viene dado ni por el medio ambiente ni por el individuo, sino por la unidad relacional de sujeto y objeto, es decir,
222
presença e importância dada aos sentidos e significados das atividades humanas; já podemos
dizer que ali residem linhas mestras de sua orientação crítica nos anos seguintes.

Acerca dos campesinos, Martín-Baró foge à regra quando os distingue teoricamente e


acentua a deles importância para a América Central. Em invés de voltar-se para definições
psicologizantes, busca nas relações econômicas reais, nas relações deles com a propriedade
privada e com a venda da força de trabalho uma definição. Antes de falarmos sobre erros e
acertos merece destaque a originalidade dessa empreitada na Psicologia, que dirá na
psicologia latino-americana da década de 1970.

Ao dissertar sobre traços psicossociais desses indivíduos aponta a sensação de falta de


acolhimento e de um mundo opressor (exploração econômica) vivido por eles, conquanto não
os beatifica nesse processo, pois registra o intenso individualismo de suas relações
macrossociais, fruto, de acordo com o autor, da situação concreta em que viviam.

Mesmo com problemas conceituais (sobre a prioridade do sentido e dos significados


em detrimento das atividades concretas como constituidoras do psiquismo humano, por
exemplo), fica evidente que não estamos mirando um vulgarizador da Psicologia. Ele não
acredita, por exemplo, que a “educação” por si mesma mudaria a condição de vida dos
campesinos; isso seria, segundo ele, incorrer em psicologismo. Somente uma transformação
que se efetivasse no modo de produção e reprodução da vida seria capaz disso. Sem embargo,
a conscientização,

“[...] es un proceso de acción y reflexión, es decir, un proceso histórico en el que una


comunidad humana se transforma a sí misma transformando su realidad ambiental.
En este proceso hay un cambio del mundo circundante como referencia esencial para
el cambio de las propias estructuras cognoscitivas y para la toma de conciencia. Esta
concientización ha de ser fundamentalmente operante y, por tanto, cabe preguntarse
en qué medida tiene que ser radicalmente política (MARTÍN-BARÓ, 1973d, p.
492).

por uma estructura de significación, que implica un conocimiento, una valoración afectiva y una inclinación a
actuar. La unidad de análisis no puede ser, pues, el simple proceder individual, por más expresivo o importante
que nos parezca. La unidad de análisis tiene que ser precisamente esa estructura de relación sujeto-objeto,
individuo-mundo. Nos interesan los comportamentos en cuanto representativos de esa relación de sentido, en
cuanto expresión concreta de los lazos que unen al hombre con la realidad y, por supuesto, en cuanto
posibilitadores de una permanencia o transformación de esas relaciones”.
220
Para ele: “Consiste el fatalismo en una actitud de aceptación pasiva de un presente y un futuro en los que todo
está ya predeterminado y que, por tanto, exigen también un determinado tipo de comportamiento, sin que nada ni
nadie pueda alterar los sucesos "prescritos". El fatalismo sólo cabe en una conciencia elaborada con
determinantes de un mundo intencionadamente cerrado e inmodificable. Podemos caracterizar el fatalismo con
tres rasgos psicológicos: una estrutura de pensamiento infantil-mágica; una conciencia estática, no histórica; y,
finalmente, um comportamiento conformista”. (MARTÍN-BARÓ, 1973d, p. 486).
223
Ele retomaria esse conceito em inúmeros textos de diversas formas. Vale destacar que
o ainda estudante de Psicologia não mergulhou no interior daqueles indivíduos para teorizar
sobre suas vidas, mas autenticamente fez pesquisa desde uma teoria psicossocial.

Sobre sua preocupação sociológica, no artigo Quién es el Pueblo (MARTÍN-BARÓ,


1974a), vê-se uma caracterização para o conceito de povo, que para ele era necessariamente
cortado por uma tridimensionalidade: sua concretude histórica, sua solidariedade política e
suas características socioeconômicas; não existiria definição cientificamente verdadeira sem
considerar esses elementos221.

Já em Martín-Baró (1974c), Elementos de conscientización socio-política en los


curricula de las universidades, lemos adjetivos que regularmente foram utilizados para
descrever a realidade latino-americana: trágica, conflitiva, alienada. Se é inegável a presença
da filosofia da libertação de Enrique Dussel no escrito, fica claro, no entanto, que ele nada
tem do excepcionalismo indo-americano, comentado por Löwy (2012).

Para o jesuíta, não se deve começar desde o zero em ciência e tecnologia, mas fazê-las
avançar com o que está disponível em cada particularidade, partindo dos recursos já
alcançados historicamente. Ele discorre ainda, nessa ocasião, sobre um horizonte para a tarefa
da educação, retomando principalmente a noção freiriana de conscientização, que para ele é
sempre dada em um processo grupal, ou seja, psicossocialmente222.

Pela posição política que assumia em relação à universidade latino-americana, por


exemplo, vemos o equívoco de caracterizar Martín-Baró (1974c) no campo da pós-
modernidade. Nesse texto, ele atesta que a universidade deve realizar opção “ideológica”,
deve optar pelos explorados223. Um “universalismo” apriorístico ensejaria uma falácia, uma
vez que é preciso reconhecer o núcleo conflitivo estruturante da sociedade capitalista e tomar
partido. O escrito também fornece uma evidência textual de que a omissão da palavra

221
Um parênteses. Nosso interesse ao sobrelevar em quais textos o autor fez uso de termos como dialética,
concreto, capitalismo, libertação, valor humano etc. foi uma das coisas que mais demandaram cuidado em nossas
análises, pois já dissemos que não estamos diante de um autor que usa boias no braço para entrar na piscina.
Suas publicações contêm elementos teoricamente inconsistentes sim, e caso fossemos expor caso a caso não nos
seria possível concluir essa tese em quatro anos. Conquanto, textos como o que ora analisamos, servem para
observar o movimento por vezes contraditório e desigual das posições teórico-políticas de Ignacio Martín-Baró.
222
Lemos nesse texto, uma primeira menção direta a Lucién Séve (não encontramos o título a que se refere), que
desde a dissertação insistimos que é presente na obra de Martín-Baró, principalmente na década de 1980. Diga-
se de passagem, a leitura que Séve faz de Marx é bem mais versátil que as das referências mecanicistas ao
marxismo citadas por Martín-Baró nos idos da década de 1960.
223
Posição retomada em El estudiantado y la estructura universitária (MARTÍN-BARÓ, 1975c).
224
materialismo, na junção com o histórico-dialético, não é fruto de seu desconhecimento desta
na ciência. Na página 773, da mesma obra, lemos que ele “contrapõe/emparelha” a doutrina
social da Igreja ao materialismo dialético, mas ao dizer de onde parte não menciona o
materialismo.

Sublinhamos que a subtração dessa parte (materialismo), mesmo não sendo fruto da
ignorância, em nada atenua a ênfase do autor na historicidade, na História, na dialética (até
esse momento, quase sempre vertida significando diálogo) e no concreto. Até onde consta, ele
não o define em nenhum texto; o que temos são deduções, mas aparentemente o que nós
nomearíamos materialiadade, em vários momentos ele chama de “concreto”. Afora essas
questões epistemológicas – por sua práxis – não temos dúvida que o concreto a que ele se
refere é o mesmo a que nos referimos no apêndice. Ou seja, se na teoria faltava-lhe coerência
interna estrita, na sua orientação à práxis não. Nas conclusões enfrentaremos melhor essa
temática.

A “tese” de licenciatura de Martín-Baró (1975a) em Psicologia (que teve na banca


Segundo Montes e Jesús Arroyo Lasá, o mesmo citado por Ignacio Dobles [2016], como
profundo conhecedor da psicanálise e inspirador desse momento acadêmico do autor),
intitulada Culpabilidad Religiosa en un barrio popular, debruça-se uma vez mais sobre o
conceito de atitude para explicar as relações entre culpa e religião.

Diferente de várias publicações até aqui, alguns autores são diferenciados desde suas
matrizes teóricas (a relação entre Freud e Marx, na escola de Frankfurt, por exemplo, não
aparece textualmente, a despeito da posição favorável do autor à crítica frankfurtiana). Este é
o primeiro trabalho que notamos utilização ampla e extensa da estatística, característica de
grande parte de sua obra na Psicologia; ele já as utilizava antes, mas é inegável que ela
assume nesse momento outra importância.

No mesmo ano publica sobre a paternidade, Cinco tesis sobre la paternidad aplicadas
a El Salvador, (MARTÍN-BARÓ, 1975b), trazendo outros e complexos elementos para sua
análise. Para teorizá-la, aponta mediações como: a classe social que a comporta, a cultura e as
condições materiais de existência224. Mesmo que saibamos de sua proximidade com a

224
Longe de descrever a paternidade como processo biológico ou só psicológico, esforça-se em expor
determinações concretas das categorias que analisa. Ao subscrever que ela envolve a dimensão ética, afasta a
“eticidade” de contornos a-históricos, subjetivistas e/ou idealistas (ele critica o idealismo filosófico).
225
religião, é pertinente destacar que ele mantém aberta a indagação sobre se a monogamia era
mesmo a melhor forma de estruturação familiar naquele momento histórico de El Salvador.

Teorizar acerca das dimensões psicossociais da violência e da repressão política são


provavelmente uma de suas grandes contribuições à Psicologia e os primeiros passos disso,
mas que já o acompanhavam desde antes de sua formação em Psicologia, adquirem nesse
momento maior sistematização. Em El valor psicológico de la represión política mediante la
violencia (MARTÍN-BARÓ, 1975d), estão as sementes do que frutificaria posteriormente
com mais amplitude em suas discussões sobre a guerra psicológica, a guerra suja e o
terrorismo.

Com indicações mais criteriosas sobre a psicanálise, sua relação com ela já não é de
todo “passiva”; em diversos momentos registra como a repressão política, por exemplo, não
pode ser psicologizada, e nessa direção mostra que não individualizava o problema.

As próximas obras análisadas são primordiais para comopreender seu projeto ético-
político. Pois, em Lecturas de Psicología Social (MARTÍN-BARÓ, 1975e), lemos um plano
de curso para a disciplina de Psicologia Social (que ocorrera entre março e julho daquele ano).
Nos objeticos gerais do texto, ele escreve:

“[...] Que el estudiante conozca mejor la realidade social de El Salvador; Que al


estudiante sepa analizar los problemas de El Salvador desde el punto de vista de la
teoria psicossocial; Que el estudiante conozca algunas investigaciones
representativas de cíertas áreas de psicología social”. (MARTÍN-BARÓ, 1975e,
p.1).
Seu trabalho nessa escrito é detalhado, aliás, desdobramento desse tipo de texto foram
os livros “Psicologia Social desde Centroamerica I e II”. Todo o empenho sistematizante e
organizativo de Martín-Baró se mostra plenamente; isso vai desde suas críticas sobre
temáticas relevantes para a realidade social salvadorenha até sua discussão sobre qual é (ou
deve ser) o objeto de estudo da Psicologia Social,

“Si, en principio, aceptamos definir la psicología como la ciencia de la conducta y


de la experiencia, parece evidente que la psicología social será aquella parte de la
psicología que enfoque los aspectos sociales de la conducta (y de la experiencia), en
otras palabras, que considere la conducta como actividad social”. (MARTÍN-BARÓ,
225
1975e, p. 9) .

225
Acessamos uma versão digitalizada do texto não paginada oficialmente, no programa que utilizamos (Adobe
reader) essa informação está na página 9.
226
Sobre o que seria um de seus grandes temas, a ideologia226, afirma que ela: “[...]
constituye, así, aquellos procesos psicologicos en los que lo social se hace individual y lo
individual deviene social.” (p.10). Ele complementa trazendo Althusser (apud Martín-Baró,
1975e, p. 10):

Una ideologia es un sistema (que posee su lógica y su rigor propios) de


representaciones (imagens, mitos, ideas o conceptos según los casos), dotados de
una existencia y de un papel históricos en el seno de una sociedad dada (en el que) la
función práctico-social es más importante que la función teórica". "La ideología es,
sin duda, un sistema de representaciones, pero estas representaciones, la mayor parte
del tiempo, no tienen nada que ver con la 'conciencia': son la mayor parte del tiempo
imágenes, a veces conceptos, pero, sobre todo, se imponen como estructuras a la
inmensa mayoría da los hombras, sin pasar por su 'conciencia'. “Les hombres viven
sus acciones, referidas comunmente por la tradición clásica a la libertad y a la
'conciencia', en la ideología, traves por la ideología; en una palabra que la relación
‘vivida’ de los hombres con el mundo, comprendida en ella la Historia (en la acción
o inacción política), pasa por la ideología, más bién, la ideología misma".
Ainda sobre a função da ideologia, na página seguinte, escreve:

La ideología surge, pues, de las formas sociales concretas, pero surge en los
individuos, en ellos adquiere realidad histórica. Se afirma que la ideología cumple
una serie de funciones: a) Interpretar la realidad; b) Ofrecer esquemas de acción;c)
Justificar la situación social;d) Legitimar esa situación como válida para todos:
naturalizar lo histórico; e) Ejercitar prácticamente la relación de dominio existente;
f) Reproducir el sistema establecido. (MARTÍN-BARÓ, 1975e, p. 11).
Retomaremos seu debate sobre a ideologia adiante, mas sobre o texto vale anotar que
Martín-Baró (1975e) reconheceu, já naquele período, uma falta de sistematização sobre os
temas na produção da psicologia social. Atribui essa dispersão teórica à carência de um marco
capaz unificar diversas pesquisas e dados disponíveis; para ele, a categoria ideologia teria essa
capacidade, proporcionando eixo norteador. A psicologia social deveria responder sobre qual
é a ideologia de uma determinada sociedade, quais os fatores que a explicam, como ela
operava sobre os indivíduos, quais suas implicações concretas e, por fim, como ela se
reproduz e se altera.

Apresentando várias escolas de Psicologia, ele destaca: a Psicologia da Gestalt


(Solomon Ash, Frietz Heider e Theodore Newcomb), a Teoria do Campo (Kurt Lewin e Leon

226
O próprio autor recomenda a leitura de Louis Althusser e Karl Marx para uma discussão mais aprofundada
sobre o que é a Ideologia (na página 12 de seu texto). De acordo com Santos Apud Martín-Baró: “el concepto de
ideología tomado en su forma pura inicial no supone necesariamente ningún falseamiento de lo real ni ninguna
racionalización. Ideologia es, en un primer momento de análisis, la expresión consciente de intereses reales de
clase y su operacionalización en formas concretas para lograr estos intereses. Sin embargo, en un segundo
momento, y solo en un segundo momento pues puede que sea o no necesario, se agrega el elemento falsedad.
Pues ni todas las ideologías son falsas, ni ninguna ideología es falsa, en cuanto as la representación de los
intereses que exprese. Por el contrario, en este sentido sólo hay ideologías cuando hay representación verdadera
de los intereses" (MARTÍN-BARÓ, 1975e, p. 31). Portanto, a ideologia naturalizaria o que é histórico e
absolutazaria o relativo em funções dos interesses da classe dominante.
227
Festinger); as Teorias Cognitivistas (Robert Zajonc, Charles Osgood e, na Europa, Jean
Piaget); as Teorias do Reforço (Neal E. Miller, John Dollard , Albert Bandura e B. F.
Skinner); a Teoria Psicanalítica (S. Freud, A. Adler, E. Fromm e H. Marcuse) e a Teoria do
Papel (G. Mead, K. Merton e E. Goffmann).

Na sequência, retrata com mais detalhes um tema de que já vinha se aproximando aos
poucos nos últimos anos e de suma importância para a psicologia social: as classes sociais. De
acordo com Martín-Baró (1975e), quando não se parte das dimensões mais especificamente
humanas e a da historicidade, as psicologias incorrem no que nós chamamos de presentismo
idealista, pois elas perdem o movimento próprio desse desenvolvimento. É vital apreender a
dialética humano-natureza para superar o a-historicismo e a abstração (ela retomaria
constantemente o concreto, afirmando que não há como apreendê-lo desconsiderando a classe
social dos indivíduos227 e, mais ainda, à própria luta de classes). As classes sociais
assumiriam o posto de mediadoras na análise dos significados dos comportamentos sociais,
sejam os dos indivíduos ou de um processo grupal. Toda ela perderia o foco se
consequentemente se perdesse de vista a luta de classes.

Logo, a Psicologia não pode abrir mão da apreensão da contradição imanente a essa
luta no capitalismo, o que por sua vez implica assumir um lado na disputa; se a neutralidade
política é falaciosa, escolher um lado (o da ética) não é opção, mas coerência. Citando Georg
Lukács, Martín-Baró (1975e) afirma que nem a classe social pode ser identificada com a
consciência de classe nem a consciência de classe com uma “psicología de classe” (p. 17).

O ponto alto do texto, a nosso juízo, é a justificação que ele dá para atestar que o
humano é necessariamente um ser social, passando por uma crítica à psicanálise (reavendo
posições de seus textos iniciais, mas agora com embasamento teórico “mais marxista”).
Citando a sexta tese de Marx contra Feuerbach, Martín-Baró (1975e) ressalta que a essência
humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado, mas o conjunto de suas relações
sociais. É a sociedade que produz as formas e os conteúdos concretos do psiquismo. Esse
trecho é repleto de citações diretas a Lucien Séve, que figura como uma de suas grandes

227
Sua definição de classe social é amplamente complementada por autores marxistas e pela leitura do próprio O
Capital de K. Marx. Na letra do próprio autor: “De acuerdo con el concepto de clases sociales, es evidente que el
análisis de estas en América Latina y en cada país en concreto tiene que partir de un análisis de los modos de
producción concretos. Aplicar dogmática y rigidamente a nuestra situación la letra da los análisis marxistas es
matar el sentido del método dialéctico” (MARTÍN-BARÓ, 1975e, p. 21).

228
referências nessa temática ao longo de sua obra (tal como Paulo Freire, sempre no contexto de
concordância). Ele próprio resume seu posicionamento:

a) El psiquismo es reflejo y reproducción de las contradicciones de las relaciones


sociales; b) Las relaciones sociales no son formas psíquicas, ni conductas, ni roles,
sino posiciones objetivas en los modos de producción da propiedad y da distribución
en una determinada sociedad; c) El psiquismo sólo existe individualmente, pero
como lndividualidad histórica y, por tanto, como "psicología de clase".Por
"psicología de clases" hay que entender las formas de pensar y sentir de las clases
sociales situadas históricamente. No hay que confundir la psicología de clase con la
conciencia de clase, que podemos definir provisionalmente como la expresión
sistemática de los intereses de las diversas clases sociales. (MARTÍN-BARÓ,
1975e, p. 27).
A “conscientização” deveria, para ele, centrar-se na passagem da consciência de classe
em si para a de classe para si; todavia “hay que evitar dos tendencias extremas, que oscurecen
la visión del cambio social en cuanto proceso histórico: el mecanicismo y el idealismo”
(MARTÍN-BARÓ, 1975e, p. 36). Mesmo que a definição dada por ele ao idealismo
filosófico seja simplista, ele anota um ponto importante, e por isso abrimos um parênteses.

Se por um lado é verdade que não encontramos a expressão “materialismo histórico-


dialético” em Martín-Baró até esse momento, é impossível não reconhecer a presença da
dialeticidade histórica; que já no meio da década de 1970 não mais se referiria à concepção
dialógica da dialética, mas nesse texto (MARTÍN-BARÓ, 1975e), quando analisamos seu
conjunto, aparece estreitamente fundamentada no marxismo.

Ainda que o materialismo não apareça explicitamente, a referência ao concreto é


ubíqua. Portanto, é necessário atenção para não taxarmos Martín-Baró de “hegeliano” (como
parece fazer Osorio, 2009). Em resumo, os temas abordados são: classes sociais, psicologia
de classe, desatenção seletiva, o ressentimento (mudanças sociais e psicológicas), meios de
comunicação, apatia social, agressão, anti-psiquiatria e a condição da mulher.

Entre o programa de curso que acabamos de analisar e o do ano seguinte (MARTÍN-


BARÓ, 1976e), um dos grandes acréscimos foi a ampliação da revisão bibliográfica. Nesse
intervalo, ele também publicou curtíssimas reportagens sobre temas como: a verdade e a
mentira (MARTÍN-BARÓ, 1976a), a falta de moradia (MARTÍN-BARÓ, 1976b) e a religião
como ópio (MARTÍN-BARÓ, 1976c). Seguindo o mesmo modelo do ano anterior, apresenta
o material didático dos cursos de Psicologia Social I e II que, como mecionamos, é mais
abrangente e versátil (em números de páginas, quase quadruplica). Para Martín-Baró (1976e,
p. 8), a psicologia social seria:

229
[...] una ciencia bisagra, cuyo objeto - es mostrar la conexión entre dos estructuras:
la estructura individual (la personalidad humana y su consiguiente quehacer) y la
estructura social (cada sociedad histórica), o, dicho con otras palabras, mostrar la
doble realidad del individuo en la sociedad y de la sociedad en el individuo. Por eso,
es absurdo pretender que la psicología social se quede en afirmaciones genéricas,
más referidas a ideas (abstractas) que a la inmediata concreción de individuo y
sociedad.
Sua especificidade seria o estudo da ideologia, pois:

“Precisamente la ideologia lo constituyen aquellos procesos psicologicos


determinantes de la manera concreta como viven (piensan, sienten, actuan) los
individuos, pero cuya explicacion - adecuada no se encuentra en los individuos, sino
en la realidad grupal y en la manera como el individuo se inserta en los grupos
sociales en una determinada situacion historica.” .(MARTÍN-BARÓ, 1976e, p. 8)
Essa estrutura psicológica pela qual e por meio da qual o indivíduo apreenderia a
realidade e interagiria com ela, uma vez mais, é referida bibliograficamente à obra de Louis
Althusser. Admitir que a ideologia é estrutura, exige explicação sobre o que ele entende por
estrutura; com auxílio de Muchielli (apud Martín-Baró, 1976e), escreve que da perspectiva
psicológica ela seria uma realidade operante, mesmo que não seja observável e cuja ação se
converteria em significados para os indivíduos.

O jesuíta não vê problema em afirmar a realidade de algo que não seja empírico,
imediatamente observável ou mensurável. Logo, a ideologia será componente real das formas
sociais concretas, ainda que só nos indivíduos e por meio deles ela adquira realidade histórica.
Sobre sua função, escreve que: a) interpreta a realidade; b) oferece esquemas de ação; c)
justifica situações sociais; d) legitima essa situação como válida para todos; e) é exercitada na
prática das relações de dominação; e f) reproduz o sistema estabelecido. (MARTÍN-BARÓ,
1976e, p. 10). Mas o que então haveria de psicológico nela? O modo como forças sociais se
converteriam em formas de viver, de pensar e de sentir; o modo como a “objetividade social”
se torna subjetiva.

Martín-Baró (1976e) ressalta que para apreendermos desde uma teoria psicossocial a
ideologia, as categorias percepção, compreensão e intelecção, na dimensão individual, bem
como a ação e o trabalho, na dimensão coletiva, são fundamentais. Ela precisaria ser
entendida desde a totalidade dos processos sociais.

Ao elencar os objetivos da Psicologia social destaca: a explicação, a predição e o


controle, mostrando quão pouco afastado está dos ideais experimentalistas de ciência. Ele
mesmo escreve: “[...] Es el objetivo de toda ciencia: adquirir un control sobre los procesos, en
este caso, sobre los procesos sociales” (p. 13). Isso é significativo para entendermos que

230
mesmo crítico do positivismo e do individualismo, nesse momento, deparamo-nos com um
cientista social que compreende o fazer da ciência de modo bastante próximo ao que diziam
os modelos hegemônicos estadunidenses e europeus. A grande diferença estava para ele no
“para quem se faz ciência” e não no “como se faz ciência”.

O que não quer dizer que ele não teve cuidado para não incorrer em generalizações
precipitadas, como muitos experimentos laboratoriais desse período. Seu reconhecimento da
radical historicidade dos seres sociais fez com que ele percebesse que cada caso particular
demandava mediações distintas. Nossa critica procurou demonstrar a centralidade da
categoria historicidade no processo de apreensão dos objetos de estudo da Psicologia, por
isso, em muitos momentos, convergimos aos mesmos pontos que Martín-Baró, destacando
sua significativa contribuição ao desenvolvimento da ciência no continente e, para além dele,
da Psicologia do Concreto228.

Sobre as características do método científico229 da psicologia social registra: a)


determinismo (todos os sucessos se encontram determinados pelo princípio de causa e efeito);
b) enfoque empírico (contraposto ao simplesmente teorético, especulativo ou racional); c)
busca pela máxima objetividade, mesmo sabendo que a neutralidade não existe. Ele destaca
ainda a importância de saber com clareza quais são as unidades de análise do estudo
(categoria ou categorias fundamentais para a descrição dos processos psicológicos); ele as
subdividia em dois tipos: a) empíricas, estímulo e resposta, por exemplo; b) hipotéticas, como
atitudes, motivações, traços da personalidade.

Sua exposição das escolas aqui começa pelas teorias da aprendizagem e os dados que
apresenta nos são interessantes, pois fornecem indícios de possíveis motivos que o levaram ao
estudo da densidade demográfica em El Salvador no mestrado (1977). Com população de
4.092.000 de habitantes (formada por quase 50% de jovens com menos de 14 anos) e taxa de
crescimento elevadíssima (3.5%) em 1971, esse era uma dos sérios problemas do país. Seu
escrito abarcou desde a quantidade de médicos por habitantes (9.25 para cada 10000 em San
Salvador) até a quantidade de calorias que os indivíduos das diversas classes consumiam

228
O detalhe que mais nos chamou atenção de um ano para outro foi o acréscimo, às explicações das diversas
escolas de psicologia, de um esboço analítico da situação dos explorados em El salvador; ou seja, todas foram
exemplificadas partindo de problemas sociais concretos.
229
Sobre os da psicologia social comenta acerca da: a) investigação de arquivos; b) pesquisa com entrevistas; c)
estudo de campo; d) experimento natural, mesmo que o de campo, mas com manipulação de variáveis; e)
experimento de campo; f) experimento de laboratório.
231
diariamente (a desnutrição era outro grave problema social daquele período). Sem contar que
mais da metade da população sofria com o analfabetismo (+51.%). O texto também denota a
proximidade teórica de Martín-Baró da Teoria da Dependência econômica, em contraposição
à da marginalização e do desenvolvimentismo.

Com citações diretas de Marx (18 brumário de Luis Bonaparte; volume III d’ O
Capital e Introdução à Crítica da economia política), Martín-Baró (1976e) reenfatiza que
desconsiderar a mediação concreta das classes sociais nas ciências sociais não era
arbitrariedade apriorística ou dogmática, mas fundamento de uma análise concreta sobre as
sociedades que subsistiam no modo de produção capitalista. O pertencimento de alguém a
uma classe não dependeria, portanto, do querer individual ou grupal, tampouco da
superestrutura e das formas de consciência social, “lo cual no quiere decir que estas
formaciones y formas sejan simples consecuencias de un proceso mecânico y no juegen
ningún papel en el desarrollo histórico de la sociedade” (p. 64).

Repetindo a citação a Theotonio dos Santos (economista brasileiro e outro expoente da


Teoria da dependência), aprofunda em quatro níveis possíveis sua análise das classes sociais,
considerando: a) o modo de produção (forças produtivas X relações de produção); b) a
estrutura social (em uma sociedade coexistem formas sociais distintas); c) a situação social
(sociedade concreta e suas peculiaridades); e d) a conjuntura (as classes são afetadas pelas
mudanças de conjuntura que a engendram e desenvolvem suas contradições).

Salientamos que o autor teve o cuidado de a todo o momento não psicologizá-las,


tratá-la de modo subjetivista, ou seja, reconhece que elas, as classes sociais, têm impactos (e
significações) psicológicas, sem jamais reduzi-las a meros fatores subjetivistas. Ainda hoje
essa distinção é preciosa, porque dela pode-se diferenciar com segurança consciência de
classe da pertença, da percepção do indivíduo quanto a sua classe social. Nas palavras dele:

Conciencia de clase no es sencillamente la conciencia que tiene el individuo de una


determinada clase social, sino solo aquella forma de consciência que explicita la
realidad e intereses de esa clase social. Una determinada clase social puede existir
como tal (clase en si) sin que los individuos que la forman tengan conciencia de lo
que realmente son, por que lo son y cuales son, por consiguiente, sus determinismos
e intereses. Solo cuando una classe tiene esa conciencia y trata de operacionalizarla,
la classe empieza a ser motora de sus propios propositos (clase para si). (MARTÍN-
BARÓ, 1976e, p. 84).
Para o autor, é necessário não confundir consciência de classe com psicologia de
classes. Quando um indivíduo compõe determinado modo de produção ele ocupa uma posição
social, posição de classe, mas só quando ele assume uma prática coerente com sua classe,
232
quando analisamos se sua práxis promove ou não os interesses dessa própria classe, estamos
no campo da consciência de classe. Esta útima será então conjunto de elementos que
exprimem interesses de uma determinada classe, independente de se os indivíduos concretos
dela os captem ou não. Já a psicologia de classe:

“[...] consiste en aquellas formas de pensar, sentir y querer de los individuos


pertenecientes a las diversas clases sociales históricas. Estas son formas empiricas,
que no necesariamente expresan los interesses de la propia clase, de la que puede no
existir conciencia. En otras palabras, la conciencia de un individuo de una clase no
es necesariamente consciência de esa clase, sino psicologia hecha posible en um
individuo de una clase por una determinada formacion social. Lo que piensa un
proletario no es necessariamente conciencia de clase proletaria, pero si es un factor
psicologico proprio de un proletario en un determinado momento y circunstancia
historicos. (MARTÍN-BARÓ, 1976e, p. 85).
Como o próprio autor assinalaria, a primeira expressa a realidade das classes sociais, a
segunda as formas possíveis de pensar, sentir e querer impostas pelos interesses da classe
dominante. Isso nos reconduz ao quanto um estudo desde a ontologia sobre a ideologia se faz
necessário para a construção de uma Psicologia concreta.

Outro grande tema de sua obra é a socialização230. Fugindo do dualismo, explica que
descolar o indivíduo da sociedade é pura abstração, dado que o processo histórico de
socialização é o que o faz. Em outras palavras, o social não estaria fora dele, mas é sua parte
mais essencial. A explicação sobre os “sub-processos” que a envolvem deriva bastante da
perspectiva de Berger e Luckmann, autores que persistiriam como referência bibliográfica ao
longo de seus escritos. Outro detalhe: ele aproxima bastante o desenvolvimento do psiquismo
com a linguagem, citando, entre outros, A. R. Luria.

Para concluir a análise desse programa de curso, ressaltemos o destaque que é dado ao
estudo dos processos grupais. Não entraremos, nesse momento, no debate mais detalhado
sobre o tema; há outros textos em ele se dedica exclusivamente a isso, mas adiantamos que ele
já diferenciava macrogrupos de microgrupo, dizendo que buscar explicações psicologizantes
ou sociologizantes para seus funcionamentos indistintamente era erro científico. Alguns
elementos são considerados para compreendê-los: quantidade de pessoas, influência
interpessoal e identidade.

Outros pontos destacáveis do texto são: a) menção à tríade “fazer, pensar e sentir”; b)
relação da violência (do ponto de vista social) com a organização social do capitalismo em

230
Nas palavras dele: “aquel proceso psicosocial por el que un individuo se desarrolla historicamente como
miembro de una sociedade” (MARTÍN-BARÓ, 1976e, p. 97).
233
classes, o que não é o mesmo que deduzir a violência individual do modo de produção
socioeconômico; c) menção aos elementos sociais que reforçariam a aprendizagem da
violência, como a propriedade privada, o individualismo, a competição e o machismo.
(MARTÍN-BARÓ, 1976e).

Mesmo citando muitos autores, Martín-Baró (1976e) demonstra diferenciar certos


pressupostos e premissas, o que proporciona aos seus leitores panorama bem amplo e muito
menos eclético se comparado a diversos textos seus até esse momento. O livro Problemas de
Psicologia Social en America Latina, do mesmo ano, 1976, cobre basicamente os mesmos
textos discutidos em suas aulas de Psicologia Social. O detalhe é o resgate de um escrito seu
de 1972, La desatencion Social del poder opressor231, que compõe o livro Psicodiagnostico
de América Latina232.

O primeiro texto perscrutado em 1977 foi sua dissertação de mestrado intitulada Social
attitudes and group conflict in El Salvador. Lemos nela uma pesquisa bibliográfica sobre
atitudes sociais de grupos em conflitos sobre a questão das transformações agrárias em El
Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1977a). Observamos sua posição favorável a uma interpretação
apoiada na teoria de dependência econômica latino-americana, além de que “the best model
for understanding the social structure of Latin American countries is the dialectic-historic
model” (p.13), esse mesmo parágrafo acaba com uma referência direta a Karl Marx.

Sem deixar dúvidas sobre a origem de sua inspiração para discutir psicologia de
classe, cita Lukács (História e consciência de classe). E por mais que seu escrito seja
discutido nos termos da “atitude social” (an attitude as a radial structure of cognitions and
affects toward an object or class of objects, [MARTÍN-BARÓ, 1977a, p. 15]), destacamos
que ele as vincula explicitamente à consciência de classe e às classes sociais. Sua concepção
de ideologia tenta traduzir em termos psicológicos a definição de Althusser para ideologia;
veremos mais sobre isso na conclusão. Em síntese, sua dissertação abordou conflitos
intraclasses (os da hegemônica), ideologia e consciência de classe.

231
Incorrendo no erro que o autor assinala que pretender evitar, “[...] tratar temas de gran transcendecia social,
pero sin ningún rigor metodológico, lo que puede convertir a la psicología social em um cúmulo de palavras
altisonantes o demagogia pseudorevolcionaria” (MARTÍN-BARÓ, 1976f, p. 13); entretanto, ele confunde
diversas teorias com pressupostos teórico-filosóficos distintos para realizar sua análise. O que já não acontece no
texto que também compõe o livro, mas data de 1975, El valor psicológico de la represión política mediante la
violência.
232
Que infelizmente não tivemos acesso.
234
Na sequência, Martín-Baró (1977b) discute especificamente o conceito de inteligência,
dando contornos mais nítidos sobre sua concepção de ciência. Poucas categorias na Psicologia
são tão discutidas e ao mesmo tempo atravessadas por interesses ideológicos tão distintos
quanto a inteligência. Saber se sua “causa” é hereditária ou ambiental provocou e provoca
intensos debates. Ao analisar uma pesquisa estadunidense “manipulada” por alguns para
justificar o racismo, Martín-Baró (1977b) elimina qualquer possibilidade por parte do
cientista da psicologia de se eximir de assumir posição política (e ética) em relação a suas
pesquisas; nas palavras dele “no es cuestíon de intenciones subjetivas o de honradez
metodológica, sino de condicionamentos y resultados objetivos” (p. 493). Em outras palavras,
sem atacar “pessoalmente” o autor daquela pesquisa, A. R. Jensen, expõe o quanto seus
resultados podem ser instrumentos de opressão.

No quinto volume da Colección Lecturas Universitárias, da UCA, que foi impresso


sob a direção de Eduardo Colindres, encontramos tanto a seleção dos textos quanto as
introduções assinadas por Martín-Baró (1977c). O livro Psicología, ciencia y consciência
versa sobre: objeto e método da psicologia, desenvolvimento humano, conhecimento e
configuração do mundo, aprendizagem, avaliação do mundo, dinâmicas pessoais e sociais e
personalidade233. Além de notável erudição, demonstrada pela competência com que realiza
as introduções, alguns pontos nos chamam atenção:

a) A presença de Lucien Séve em suas formulações desse período; tanto é que o


próprio objeto de estudo da Psicologia Social para o jesuíta: “no debe ser ni la
conducta ni la experiencia, sino el acto.”(p. 19). Para a definição do que é o ato,
cita diretamente Séve. Na mesma página ele continua:

“El acto es conducto, certamente y experiencia de un sujeto; pero es sobre todo y


fundamentalmente produto de una situación histórica así como produtor a su vez de
una nueva situación histórica. La acción de los sujetos tiene un efecto, en la medida
en que produce algo. Tomar el acto como objecto de la psicología implica, por tanto,
reintroducir a la psicología en la realidad social; se mantiene lo mejor de los
enfoques del pleno significado – individual y social – del comportamiento”

233
Perguntaram-nos uma vez se em nossas leituras Martín-Baró ele nunca havia mencionado o bielorrusso L. S.
Vigotski. Até 1977 não encontramos nenhuma referência direta. Em compensação Leontiev, Rubenstein,
Smirnov frequentavam esporadicamente suas bibliografias. O próprio Luria tem um texto no livro que estamos
comentando intitulado “El cerebro y el psiquismo”. Só encontramos uma referência sua a Vigotski em Martín-
Baró (1982e).
235
b) O cuidado filosófico no trato com conceitos polissêmicos; isso pode ser percebido
na discussão que faz sobre a importância da categoria percepção para a
Psicologia234.

c) O debate sobre as emoções; não tanto pelas escolhas dos textos (cita Willian James
e Walter Cannon, justamente os dois criticados por Vigotski no Teoría de las
emociones), mas porque escreve:

En realidad no existe el conocimiento ni la emoción. Lo que existe es el hombre que


conoce y es afectado por lo que conoce, reaccionando ante ello emotivamente. La
relación del hombre con el mundo no es mecânica ni mucho menos asséptica.
Reaccionamos no a simlpes estimulaciones, sino a significaciones, es decir, a lo que
los estímulos significan para nosotros, positiva o negativamente. Y la significación
implica un proceso de valoración, que em la emoción se vive psicosomáticamente.
(MARTÍN-BARÓ, 1977c, p. 291).
No artigo “Vivienda mínima” – obra máxima, Martín-Baró (1978a) exalta a
capacidade da iniciativa privada (Fundación Salvadoreña de Desarrollo y Vivienda Mínima -
FUNDASAL) aliada ao governo em colaborar com reconstruções e construções de moradias
para os mais pobres em El Salvador. Sem condições de nos aprofundarmos na relação entre
governo estabelecido e iniciativa privada, salientamos que o escrito mostra o modo como ele
articulava realidade e teoria. Entretanto, ainda nesse ano, em Ley y orden en la vida del mesón
(MARTÍN-BARÓ, 1978b), ele escreveria sobre o mesmo tema com uma histórica militante
da Frente Farabundo Martí para la liberacción nacional (FMNL), Aída Herra Morán,
temática que ele retomaria em seu doutorado.

Estamos nos aproximando do final da década de 1970, o jovem que aos 24 anos
chegara a El Salvador já gozava nesse momento de sólida reputação como psicólogo da UCA,
atestada pelos cargos que passaria a assumir. De sua tímida aproximação à psicanálise, no
início da década, restaria apenas em Martín-Baró (1979a) uma demanda à Psicologia que
abandonasse tentativas de investigar o inconsciente dos ricos ao passo que a consciência do
explorados seguia sem uma adequada atenção teórica. Entramos a partir daqui nos anos
truculentos da guerra civil salvadorenha235. Em Martín-Baró (1979b), lemos o prenúncio do
que assolaria a nação na década seguinte:

234
Conferir mais sobre isso na página 113.
235
Encontramos ainda no ano de 1979, uma compilação de textos do jesuíta sobre a relação entre: universidade,
estudantes e conjuntura sócio-política, além é claro de sua tese doutoral. A tese (MARTÍN-BARÓ, 1979d),
diga-se de passagem, teve financiamento da Latin American Scholarship Program of American Universities
(LASPAU), da Fulbright Foundation, e ainda contou com o apoio financeiro da FUNDASAL (Fundação
Salvadorenha de Desenvolvimento e Habitação Mínimas). A densidade populacional atingiria, naquele período,
236
“[...] dejar su solución [dos conflitos sociais e econômicos] a grupos paramilitares
terroristas es una repuesta inadmisible en un país civilizado y es una respuesta que
nos causaría grandes transtornos en las relaciones internacionais, políticas y
económicas; sería, además, una solución que rompe el ordenamento constitucional y
nos podría llevar a uma prolongada guerra civil...”(MARTÍN-BARÓ, 1979b, p.
442).

Nesta subseção mostramos mais detidamente os movimentos em nada lineares da


gênese das posições teóricas de Martín-Baró acerca doe seus objetos de estudo, do método e
das tarefas da psicologia social. Ao passo que os apresentamos criticamente, extraímos deles o
que há de central para que se apreenda interna e externamente como se deram essas
articulações.

4.2 Psicologia e práxis ético-política: o batismo de sangue.

A guerra civil compreende o período do maior volume de publicações de Martín-Baró.


Uma exposição texto a texto dos conteúdos (seguindo o que fizemos até aqui), mesmo que
sucinta, tornaria a leitura deste trecho demasiadamente truncada. Optamos por destacar
algumas categorias centrais trabalhadas pelo autor e que fornecem um panorama sobre
questões teóricas que compõem seu modo de propor a práxis da Psicologia. Dedicando-se a
fazer dessa ciência um instrumento de luta; ademais, o conflito civil-militar fez com que
diversos artigos ganhassem notoriamente um tom de denúncia muito mais que “produção
científica tradicional”.

A categoria que obteve destaque no conjunto de textos aqui analisados foi a de


processos grupais; buscamos, sempre que possível, expor como ela aparece em situações
distintas. Vemos, por exemplo, e sob diversos ângulos, que ela foi debatida tanto em seus
aspectos teóricos quanto utilizada para realizar análises conjunturais (de sindicatos,
camponeses, das Comunidades Eclesiais de Bases etc.).

***

a casa de 580.8 pessoas por metro quadrado; logo, a relevância social do tema da “dissertação” doutoral de
Martín-Baró é evidente.
237
4.2.1 Martín-Baró: o início da guerra e o começo de uma militância ético-político

Martín-Baró não se furtou a envolver-se diretamente com as questões da guerra. Neste


subitem, mostraremos como seus textos eram coerentes tanto com sua práxis política quanto
com as necessidades dos explorados em El Salvador.

No primeiro texto da década perdida, ao mesmo tempo em que há uma análise grupal,
vemos que a vida de Martín-Baró estava em perigo desde a abertura dos conflitos militares em
El Salvador. Esclarecemos: aos 15 de fevereiro de 1980, a UCA seria “ocupada” por um
grupo estudantil (vinculado ao movimento político Bloque Revolucionário Popular) com
reinvindicações político-universitárias pelo amplo acesso ao ensino superior. Com uma escrita
mais militante do que profundamente analítica, o que não é o mesmo que dizer que é um
artigo feito por um leigo, Ocupación juvenil: reflexiones psicosociales de un rehén por 24
horas (MARTÍN-BARÓ, 1980c), narra a experiência do jesuíta ter sido feito “refém” por
estudantes armados e, pelo texto, desorientados.

O ponto forte da exposição é o modo como a concreticidade da circunstância foi


descrita. No momento em que se dava o “sequestro dos funcionários da UCA”, a casa de
muitos deles foi metralhada; um grupo de extrema-direita insatisfeito com a atuação daquela
universidade em San Salvador revidou com violência. Ou seja, porque tiveram que dormir na
universidade como reféns tiveram suas vidas poupadas. Na sequência, em um texto
celebrativo à vida e memória de Oscar Arnulfo Romero y Galdánez236 (Monseñor – Una voz
para un pueblo pisoteado – MARTÍN-BARÓ, 1980b) arcebispo de San Salvador, vemos dura
crítica ao general-ditador (presidente eleito de modo ilegítimo e ilegal), Arturo Romero. Sua
delação retrata como a Igreja Católica desde o princípio da guerra se convertera em refúgio
para os divergentes, aos insatisfeitos como o status quo.

Mas por que dedicar um texto a Monseñor Romero? A direita política salvadorenha
acreditava que Oscar Romero, discreto e de hábitos conservadores, lhes seria favorável, mas
nos curtíssimos três anos de seu ministério houve uma reviravolta em sua práxis, que passa a
se solidarizar com a causa dos pobres, sofrendo por isso difamações sistemáticas até seu

236
Ele escreve no mesmo ano um em memória à vida de Jean Piaget (MARTÍN-BARÓ, 1980f).
238
assassinato. Martín-Baró sintetiza muito do que expõe o trabalho de Montgomery & Wade
(2006) e realiza uma análise rica psicossocial sobre um líder de um processo grupal; além
disso, discorre sobre o “lado” que a Companhia de Jesus assumiu na ocasião e também
registra a desaprovação aberta ao governo oficial salvadorenho. É interesse notar como ele
endossa a fala de Oscar Romero sobre a violência237 (principalmente a política), que ali fora
tratada do ponto de vista concreto. Abalizando a conjuntura político-econômica registra que o
ano de 1979 representava:

“[...] la agudización a niveles casi insoportables de la crisis económica, política e


institucional que aqueja al país. Se multiplican las huelgas y crece la fuerza de las
demandas reinvindicativas en todos los sectores obreros. Las acciones represivas ya
no son capaces de contener a los grupos opositores, especialmente a los grupos
político-militares, ni de ofrecer um mínimo de seguridad y garantías a las clases
dominantes. Primero personas aisladas y luego grupos enteros empiezan a
abandonar el país. Por supuesto, el dinero sale antes que los individuos. Los bancos
entran en un proceso de mal disimulada quiebra. Numerosas empresas empiezan a
cerrar sus puertas, aumentando la ya intolerable tasa de desempleo laboral. El país se
vacía de extranjeros: la colonia japonesa, por ejemplo, pasa en pocos días de 2.400 a
200 personas. Algunas embajadas cierran sus puertas y la mayoría disminuye al
mínimo su personal. Los asaltos, secuestros, ocupación de edificios y
enfrentamientos callejeros se empiezan a hacer normales. Las personas ricas que no
se van a Miami, convierten sus residencias particulares en verdadeiras fortalezas y
organizan auténticos ejércitos privados para su defensa personal. Empiezan a
proliferar las bandas de terroristas de ultraderecha que, amparados por la oscuridad y
la protección oficial, se edican en la noche a eliminar supuestos opositores políticos.
En resumen, El Salvador se desliza aceleradamente por la cuesta de la
desintegración social y poco a poco el tema de la "guerra civil" empieza a hacerse
más frecuente (Al borde, 1979)”. (MARTÍN-BARÓ, 1980a, p. 26).
Passados dez meses do já mencionado apoio da UCA ao golpe militar que tirou o
general Romero do poder, Martín-Baró (1980c) já denunciava a catástrofe que tinha sido o
“novo” governo. Sem poupar adjetivos negativos, adverte que a mudança nada fez por
combater a dura e massiva repressão estatal238 aos militantes progressistas. Reporta-se a morte
de mais de cinco mil pessoas pelas forças governistas. Contudo, sua postura é explicitamente

237
Martín-Baró (1980a) explicando uma carta de Monseñor Romero sobre a violência escreve que não devemos:
“incurrir en los simplismos de condenarla ‘venga de donde venga’ antes de haber analizado su carácter
específico, sus formas históricas concretas, sus raíces y sus consecuencias: ‘la Iglesia no puede afirmar, en forma
simplista, que condena todo tipo de violencia’” (p. 26).
238
Nas palavras do próprio autor: “la estrutura política del gobierno es de derecha y el de quefavorece tolera o
es impotente ante la represión, son prueba suficiente de que el actual gobierno no es de centro ni puede serlo, a
pesar de los intentos de algunos de sus membros” (MARTÍN-BARÓ, 1980c, p. 934). Além das reprovações ao
governo, ele afrontou diretamente a política estadunidense de acobertamento dos ataques da extrema direita,
responsabilizando-os por tentar evitar o ascenso da esquerda. Em contrapartida, frisou o apoio do México,
Panamá, Equador, Nicarágua, Cuba, e nominalmente a Internacional Socialista, às causas populares. Aventar que
nesse momento tenha defendido racionalmente uma revolução social não corresponde a reiterar um suposto
“marxismo”, não encontramos no texto nada explícito sobre a “socialização dos meios de produção”,
expropriação da propriedade privada etc.
239
favorável à esquerda239 revolucionária, e acreditamos que a seguinte citação aniquila as
tentativas de entendê-lo como reformista engajado e não como clérigo-revolucionário240. Ele,
no texto, explicita o “tipo” de revolução que defende:

Indudablemente, esta izquierda democrática-revolucionaria no significa una especie


de centro izquierda, como puede entenderse esta denominación en los países
desarrollados y democráticos de Europa. La izquierda salvadorenha pretende con
toda razón una verdadera revolución para el país, porque esta revolución es una
necesidad objetiva y una exigencia subjetiva que ha tomado carne en la conciencia
de una gran parte del pueblo salvadorenho. [grifos nossos] (MARTÍN-BARÓ,
1980c, p. 939).

Em Martín-Baró (1980d), Desde Cuba sin amor, podemos ler mais sobre sua reflexão
sobre aspectos macro grupais e, até mesmo, sobre o socialismo241. Abordando o caso da
imigração cubana arrola com impressionante lucidez os prós e contras do atual governo
castrista. E se é notório que assume o lado da esquerda, isso não o faz poupar críticas e não
perceber o díficil momento econômico da ilha vermelha. Quanto aos E.U.A, sua postura
mantém-se firme242.

239
Para que não reste dúvida: “Por todo ello seguimos sosteniendo, como lo hacíamos en nuestro editorial de
ECA (marzo-abril 1980), que la solución general no puede ser otra finalmente que la representada por el Frente
Democrático Revolucionario, respaldado por el Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional. Los
sucesos, tan rápidos y tan intensos, ocurridos en estos seis meses, confirman las razones y prognósticos que
entonces expusimos. Hoy podemos ver quizás mejor sus defectos y sus virtudes pero como éstas son mayores y
más prometedoras que aquéllos, seguimos afirmando que se le debe apoyar para que triunfe y para que ese
triunfo se racionalice y humanice al máximo. En vez de buscar otra solución que o no tiene bases reales de
sustentación no es sino una variante de la actual, tan tragicamente fracasada, hagamos que se imponga ésta que
es ra dicalmente nuevo y que cuenta con sólidos apoyos en el interior y en el exterior, apoyos que pueden ser
multiplicados con ventajas para lafacilitación y la racionalización de su triunfo y de su puesta en marcha.”
(MARTÍN-BARÓ, 1980c: 937-938).
240
Martín-Baró (1980c) comentando sua postura favorável à FDR e à FMLN escreve: “La plataforma del
gobierno democrático-revolucionario admite el pluralismo político dentro de unos límites amplios, defiende un
amplio margen de libertad económica para la pequeña y la mediana empresa y aun para las multinacionales,
propugna situarse entre los países no alineados con relaciones diplomáticas com todos los países, etc. Quiere
para el país -y así lo confiesa- una solución socialista, pero entende perfectamente que esta solución no puede
imponerse de un golpe, debe someterse a las condiciones objetivas de la situación económica y geo-política del
país y debe conquistar para sí la aceptación mayoritaria del Pueblo salvadoreño. La gran madurez política y la
gran humanidade que en conjunto -dejadas fuera algunas excepciones graves- ha mostrado la izquierda
revolucionaria, a pesar de estar siendo golpeada tan salvajemente, son argumento suficiente para confiar en su
moderación y en su razonabilidad, una vez tomado el poder” (p. 938).
241
No texto El papel del psicólogo en un processo revolucionario (MARTÍN-BARÓ, 1980g), diferente do que
lemos até aqui, comenta sobre uma incorporação de novas formas de propriedade social e organização do
trabalho. Dizemos isso, pois, se não há dúvida quanto a seu posicionamento de esquerda, não encontram detalhes
textuais que denotem, dentro das correntes políticas de esquerda, qual era seu posicionamento.
242
Ao passo que propagandeavam a acolhida de imigrados cubanos, os ianques expulsavam haitianos, mexicanos
e salvadorenhos sem misericórdia, demonstrando afinal de contas a falácia ideológica por trás desses gestos
“democráticos”. Parafraseando seu mordaz parágrafo conclusivo, para os Estudos Unidos é melhor morrer na
240
Um parênteses. Quando nos deparamos com um trabalho como La imagen de la mujer
em El Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1980e), corre-se o grande risco de dar razão a Iñiguez
(2003), quando este afirma que Martín-Baró não se desvinculou o suficiente de
“metodologías” da ciência dominante243. Por um lado, isso aparenta ser verdade; até aqui a
carreira de pesquisador-psicólogo de Martín-Baró se constitui de revisões teórico-
bibliográficas quando não de estudos “quantitativos” (seria injusto utilizar esse vocábulo sem
explicar peculiaridades de seus textos que, apesar da quantidade de pesquisas amparadas na
estatística, trabalham questões “qualitativas”; contudo, afirmar uma radical diferença entre os
procedimentos de pesquisa dele e de outras escolas hegemônicas é equívoco).

Questionários e pesquisas estatísticas são alvos de críticas por parte da psicologia


social latino-americana por distorcerem em inúmeros casos a realidade concreta das
sociedades a que se aplicam, mas também pela relativa “facilidade” com que podem ser
manipulados, dado seu alto grau de aparente neutralidade. Com isso não desprezamos seu
valor (o da estatística), e nem seria correto afirmar que Martín-Baró as emprega de forma
supostamente neutra; no entanto, cravar que ele também não incorre em deslizes seria tapar o
sol com a peneira.

Tenhamos em consideração que a formação em Psicologia na América Latina


tradicionalmente importou métodos; não é de surpreender que um jovem psicólogo fizesse,
ainda que com ressalvas, o que aprendeu. Veremos no correr daquela década diferenças nada
sutis entre sua proposta e as estadunidenses; detivemo-nos em diversas ocasiões, sobre
exemplos e citações diretas desses pormenores.

Guatemala e em El Salvador à sombra do capitalismo do que viver trabalhando em Cuba. Nessa linha,
encontramos em Martín-Baró (1980j), La institucionalización de la calumnia, um texto não publicado, mas em
compensação um dos mais audazes do jesuíta. É perfeitamente compreensível que não houvesse quem o
publicasse. Pois já nos primeiros momentos da guerra civil, ele se propõe a analisar as propagandas (chamou de
calunias institucionalizadas) do exército difundidas pelos meios de comunicação de massa salvadorenhos; não
nos esqueçamos de que mais de 20.000 morreriam nos primeiros anos da guerra, podemos apenas imaginar o
risco que o autor correu ao escrever coisas como “calumníar a la víctima es, en este sentido, algo mas que um
mecanismo mental o una triste practica" propagandística; se trata de una exigencia ideológica de la lucha de
clases que hoy ha alcanzado un punto crítico en El Savador y en la que la Fuerza Armada, al menos en su
dirección actual, ha optado por uno de los bandos contendientes” (MARTÍN-BARÓ, 1980j, p. 18).
243
Martín-Baró (1980h), também serviria de exemplo, pois nele observa-se um estudo sobre as “imagens
mentais” (“entendido como la idea de un determinado objeto tal como se refleja en la opinión expresada por las
personas al ser interrogadas”, p. 1) dos salvadorenhos sobre as mulheres, a família e a “ordem social”, tudo isso
por meio de um questionário sobre “opiniões”. Publicações desse estilo foram frequentes no correr dessa década,
principalmente depois de 1986 (com a criação do IUDOP), no entanto ele não mais chamaria seu objeto de
pesquisa de imagens mentais. A conclusão da modesta pesquisa é que quanto mais escolarizado o entrevistado,
mais liberais eram suas posições sobre os três temas; há também breves apontamentos sobre o papel da escola,
por um lado reprodutora da ideologia dominante e por outro, fomentadora da crítica.
241
O último artigo analisado de 1980 nesta tese, Ética en Psicología (MARTÍN-BARÓ,
1980k), merece aspas,244 pois é de grande importância para nossa tarefa.

No texto estamos ante uma das fontes mais diretas e oportunas para apreendermos em
termos teóricos como Martín-Baró concebia a ética e, mais do que isso, como ele a
relacionava concretamente ao campo das éticas-profissionais, que ele define sinteticamente no
começo do texto como “aquel conjunto de principios que permite distinguir lo bueno de lo
malo en ese quehacer de un saber teórico-práctico en una sociedad, es decir, cuándo ese
quehacer es bueno y cuándo es malo” (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 491).

A princípio distingue dois tipos de problemas nas concepções tradicionais, são eles: a)
uma noção de ética como aditamento postiço (algo que é “anexado” posteriormente ao
estabelecimento do conhecimento científico e técnico ou, ainda, que só apareceria nos
momentos de aplicação prática); e b) a concepção de que a ética é um conjunto de ideais
abstratos e universalmente válidos em qualquer ocasião.

A primeira concepção, a de ética postiça, é sintetizada em três aspectos básicos: “(1)


que cada rama científico-técnica del saber tiene su propia racionalidad; (2) que esa
racionalidad es a-moral; y (3) que la ética sólo entra en juego en las aplicaciones prácticas de
la ciencia” (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 492).

A reflexão proposta é instigante e conduz os leitores a verificarem se eles mesmos não


tomam a atividade científica “em si” por amoral (alheia aos valores) ou ainda pré-moral
(prévia a toda consideração axiológica); um desdobramento disso seria considerar se a ética só
passaria a ter sentido no momento de “aplicação” da ciência. Comentando os nós dessa
primeira concepção, Martín-Baró (1980k, p. 492) atesta:

Lo ético o no ético del quehacer profesional estaría en la manera como cada persona
utiliza la racionalidad de su ciencia-técnica y en los objetivos a los que orienta esa
utilización práctica. De ahí a la concepción de la ética profesional como un recetario
de comportamientos y finalidades más o menos subjetivas no hay más que un paso.
Pero de ahí, también, la inespecificidad de las normas éticas reclamadas a los
diversos profesionales, ya que la valoración comenzaría precisamente en el mismo
punto en que la diversificación racional de cada especialidad científica termina y
comienzan los principios formales de la convivencia social. Ser ético es lo mismo en
todas las profesiones: hay que ser bueno, hacer el bien, no aprovecharse de las
personas con las que se trata, no hacer daño, no perjudicar, etc. Lo cual no clarifica
en modo alguno qué significa “ser bueno” o “no hacer daño” en cada profesión, ni

244
É uma preciosidade para nosso objetivo, e agradecermos Fernando Lacerda Junior por disponibilizá-lo na
rede mundial de computadores.
242
especifica cuál es el bien concreto que hay que esperar y exigir de cada profesión en
concreto. (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 492).
O segundo enfoque criticado por Martín-Baró é o que nomeia de éticas idealistas, que
pressuporiam princípios universais que funcionariam sempre e em todas as condições
histórico-sociais possíveis da mesma forma, pois estariam vinculados à natureza humana
(seriam meta-históricos ou a-históricos, dependendo da escola filosófica). Sua conclusão
sobre ele é sucinta e direta: “la formulación de una ética genérica, ciega a la historia, no suele
significar más que la formulación ideologizada de unos intereses sociales bien específicos”
(MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 495).

Em contraposição a essas duas posições, o militante salvadorenho pondera que a ética


está imbricada em todas as atividades profissionais dos seres humanos. No que se refere à
Psicologia, ela é ali diferenciada das “atividades psíquicas245” éticas (do ponto de vista da
singularidade). Para o autor, o mais próprio do objeto da psicologia seria a apreensão do
sentido histórico dos quefazeres humanos. Algumas vertentes das chamadas psicologias
científicas, escreve ele, “pretenden mostrar racionalmente la irracionalidad de
comportamientos aparentemente racionales” (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 497), mesmo que
isso possa soar paradoxal. É engenhoso o modo como aproxima questões éticas à das práticas
da Psicologia; exemplificando a complexidade da questão:

Al examinar una actividad psicológica concreta, podemos considerar por un lado lo


que el psicólogo pretende realizar y conseguir, es decir, sus fines subjetivos. El
psicólogo puede perseguir, por ejemplo, ayudar a alguien y así ganar un dinero. Para
ayudar a la persona, tratará de aplicar lo medios más adecuados, según su
conocimiento. Ahora bien, los medios que en concreto aplique – una terapia u otra,
unos tests u otros– tienen también su propia intencionalidad: el proceso tiende por
sus propias características hacia un horizonte (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 498).
Sua concepção de ética segue a trilha de Ignacio Ellacuría que a postula como práxis
iluminada teoricamente que pretende a transformação do humano, da sociedade e da História.
Em linhas gerais, ela possui, para ambos, um momento teórico, mas seria fundamentalmente
atividade que se coloca na tensão dialética entre o que “é”, que existe no presente, e o que
“deve ser”, no futuro. Qualquer tentativa de arrastar sua concepção de ética ao campo do
irracionalismo é espúria, uma vez que podemos ler:

Racionalizar significa hacer conforme a la razón. En su momento teórico, la ética


estudia esa racionalización de toda actividad humana y los supuestos de esa

245
Quando ele menciona atividade psicológica, refere-se a: “todos aquellos procesos, comportamientos y
determinaciones que son objeto de la ciencia de la psicología, tanto en su vertiente teórica como en su vertiente
práctica. La actividad psicológica incluye, por tanto, dos aspectos: (a) la ciencia de la psicología, lo que
normalmente llamamos “la psicología”; y (b) el trabajo del psicólogo en cuanto tal, ya sea en a investigación, ya
sea en cualquier área de la profesión” (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 496).
243
racionalización. En lo que respecta a la psicología, es decir, como ética psicológica
en su momento teórico estudia la racionalización y humanización de la actividad
psicológica, es decir, que esa actividad sea conforme a razón, conforme al carácter
de lo humano (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 498).
Ética, sem embargo, não se restringiria à esfera individual, mas prioritariamente à
social. É evidente que a peculiaridade de cada ser humano influi em cada caso particular sobre
o modo como uma atividade ética se manifesta; o que o jesuíta reforça é que não é ela (uma
atividade humana isolada) que define o que é e o que não é ético246.

Não obstante, para Martín-Baró (1980k), a psicologia da ética não pode eliminar a
questão da ética em si, pois:

“una cosa es que los valores constituyan de hecho unos refuerzos conductuales (lo
que significa ya una interpretación muy particular del fenómeno analizado), y otra
cosa es que se pueda prescindir de esos valores como ficciones o ladearlos por “no
ser más que” refuerzos sociales.” (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 502).
A Psicologia em definitivo não está além do bem e do mal, antes parte de concepções
de valor historicamente produzidas. Há interdependência entre Psicologia e ética. Para que o
psicólogo aja eticamente precisaria, antes de tudo, ser primeiro bom psicólogo. A bondade
pessoal (intenção de agir eticamente) do profissional não seria determinante para a realização
de um trabalho competente, pelo contrário, sua capacidade e desenvoltura naquela ciência é
que o garantiria o bom e ao mesmo tempo ético. Em resumo, a própria tarefa da Psicologia é
vista como ética, pois sempre preconiza alguma espécie de transformação. Ele complementa:

El desconocimiento de esta esencial dimensión científica y técnica es la anulación de


la psicología y, por consiguiente, su negación ética. Así, pues, el primer principio de
la ética psicológica debe ser el que la psicología sea lo que debe ser como
psicología. Convertir la psicología en fisiología o en sociología o en política es
alterar en forma esencial su racionalidad y, en esa medida, su intrínseca exigencia
científica. (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 504).
A ética é ainda mais fundamental à práxis do psicólogo. Por seu intermédio evita-se
uma crítica ideológica a premissas filosóficas alheias a essa ciência; e ainda se produz uma
imanente à sua própria atividade. Sabendo dos embustes que existem nessa relação, e de como
a sociedade designa um papel específico para a Psicologia, ele escreve:

Es bien sabido que el psicoterapeuta ha tomado en nuestra sociedad parte del papel
antes encargado al sacerdote, al consejero espiritual o al pedagogo. Esto entraña un
doble peligro: (a) que la psicología pretenda convertirse en ética y que, por lo
mismo, se juzgue que aquello que puede ser técnicamente posible y aun
recomendable es también, y por lo mismo, éticamente lo mejor; (b) que se pretenda

246
Para chegar a essas conclusões, critica tanto posições de B. Skinner quanto a de C. Rogers, mas delas
depreende que ainda eles principiem de pontos divergentes, sobre a natureza humana, acabam corroborando com
a mesma ideia: a ética é necessariamente constituinte da atividade psicológica.

244
reducir los problemas de valores a problemas de integración y adaptación
psicológica (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 507).
É vital que a apreendamos em seus aspectos sócio-históricos247, sócio-políticos248 e
culturais. Por óbvio que pareça, não perdemos por lembrar que ele não está dizendo que essas
dimensões suprimem algo próprio do humano singular em uma dada atividade ética. O que se
pressupõe é que mesmo essa singularidade é historicamente constituída; existem elementos
biofísicos e bioquímicos inegavelmente postos, mas eles apenas condicionariam o
desenvolvimento ético, que será sempre mediado pela sociedade e pela cultura.

A postura radicalmente histórica de Martín-Baró (1980k) sem a mediação da


universalidade pode conduzir ao relativismo ético; esse não parece ser o caso do jesuíta, mas
sem considerá-la, sua concepção poderia ficar prisioneira de uma análise apenas da
particularidade histórica específica em que se estuda a ética. Nesse ponto, as contribuições
lukacsianas são importantes. Analisemos o seguinte parágrafo:

El cambio de marco social hace que una misma actividad tenga supuestos y
consecuencias diferentes. No es lo mismo, por ejemplo, aplicar un test de aptitudes o
de inteligencia en un medio socioeconómico relativamente homogéneo que aplicarlo
en uno heterogéneo, como sería una sociedad racista o una sociedad con profundas
diferencias de clase; un mecanismo diferenciador puede convertirse de hecho en un
mecanismo discriminador. (MARTÍN-BARÓ, 1980k, p. 510).
Estamos com ele ao afirmar que o desenvolvimento da ética nas sociedades humanas é
necessariamente histórico, mas os valores humanos não são meros “produtos culturais” que se
adaptam ao funcionamento de cada sociedade específica. A liberdade é valor humano e em
cada momento histórico podemos ver que as possibilidades de sua concretização são maiores
ou menores, mas em TODAS as sociedades a ética precisa ser entendida como um valor que

247
Martín-Baró (1980k) comentado sua concepção de história neste período, escreve: “Aunque la temporalidad
es un aspecto muy importante, la historicidad no se reduce a esa dimensión. Otro constitutivo esencial de la
historia es la naturaleza de aquello que se realiza en el tiempo. En otras palabras, la historia es concreción,
contenido; es desarrollo, sí, pero desarrollo de algo. Ese algo que surge como nuevo o ese desarrollo constituye
la continua materialización del ser humano frente a la naturaleza, el hacer y hacerse de las personas como sujetos
y objetos de la historia. De ahí la insistencia en definir la psicología no sólo como conducta, como exterioridad
de movimientos, como concatenación de respuestas frente a estímulos, sino como acción, es decir, en cuanto
obra que tiene un produto”. (p. 508).
248
Sobre eles: “[...] El aspecto socio-político de una situación incluye los determinantes estructurales y
espaciales de los hechos. Todo suceso, toda acción, se realiza en una sociedad concreta, al interior de una clase
social, de un grupo y de un ambiente humano particulares, en el marco de una cultura específica. Este conjunto
de determinantes estructurales es el resultado en un momento dado del balance en que se encuentra las fuerzas
sociales en una población humana. No es lo mismo, por ejemplo, un asesinato que se produce al abrigo de un
orden político opresor que el que se produce en un contexto de convivencia democrática. El policía que asesina
al amparo de una dictadura expoliadora o como miembro de un “escuadrón de la muerte” tiene que ser juzgado
de distinta manera que el policía que asesina en connivencia con una banda de narcotraficantes en un sistema
democrático donde funcionan las instituciones de justicia” (MARTIN-BARÓ, 1980k, p. 509).
245
corresponde ao desenvolvimento integral da genericidade humana vista como totalidade,
como acúmulo histórico do desenvolvimento das potencialidades mais plenamente sociais dos
seres sociais.

Para concluir nossa tarefa com essa categoria, relatemos que ali também se pode ler
um debate filosófico sobre o que significa o termo horizonte, que é um princípio de
totalização de sentidos (MARTÍN-BARÓ, 1980k). O jesuíta o diferencia, ademais, em objeto
formal de uma atividade (horizonte objetivo) e fim pretendido por uma pessoa (horizonte
subjetivo). O entrelaçamento que faz entre ética e horizonte de atuação da Psicologia
demanda necessariamente que ele seja crítico e reflexivo. Na práxis, isso engloba problemas
bastante sutis:

Hay que distinguir, por tanto, entre intencionalidad subjetiva (la intención del sujeto
de la actividad) y la intencionalidad objetiva (la intención propia de la actividad
misma). Esto no quiere decir que no haya un influjo mutuo: la subjetividad está
condicionada por la objetividad de la actividad misma, ante todo en su aparición, ya
que lo que el sujeto piense lograr con determinada actividad siempre dice una
relación al porqué haya elegido ésa y no otra actividad; pero, en cualquier caso, la
objetividad influye en la realización de la actividad modificando el sentido último y
profundo de la subjetividad. Este influjo es el que aparece en los procesos de
ideologización de cualquier actividad o proceso. (MARTIN-BARÓ, 1980k, p. 513-
514).
Ele prossegue:

Pero existe también un indudable influjo del querer de la persona en la objetividad.


Por un lado, en cuanto puede modificar con su conciencia y con su acción (o con su
acción consciente) la dirección de los procesos objetivos. Por otro, en cuanto que la
subjetividad es también una fuerza objetiva que influye en la determinación de lo
que los procesos mismos son y pueden ser. Esto lo olvidan algunos científicos
sociales; el hecho de que la subjetividad no sea visible y con frecuencia resulte de
difícil o cuestionable medición, no quita para que constituya una realidad objetiva,
conocida o no. (MARTIN-BARÓ, 1980k, p. 514).
Se concordamos que boa parte dos psicólogos não consegue identificar a subjetividade
como materialidade psicológica, incorrendo em subjetivismos, é preciso atenção, pois da
posição do jesuíta pode se enveredar por desvios como o que ele mesmo comente. No
exemplo a seguir isso se evidencia:

No es lo mismo, éticamente considerado, un test sobre nivel de aspiraciones


aplicado a una sección de una industria cuando se trata de conseguir un mayor
rendimiento de los trabajadores que cuando se orienta a lograr una comunidad de
trabajo más humana, más satisfactoria. En un caso, el fin último es la ganancia
económica –lograr una plusvalía todavía mayor–, en el otro se trata de subordinar las
condiciones laborales a las necesidades más reales de los trabajadores. (MARTIN-
BARÓ, 1980k, p. 515).
Alguém poderia opinar que a ética, na citação acima, está situada basicamente na
capacidade do profissional em aplicar o “test sobre nível de aspiraciones” no local correto;
246
quando sabemos que o correto seria considerar que, antes de aplicar um teste em uma
indústria ou em uma comunidade, deveríamos refletir sobre a “eticidade” do teste e das
implicações sociais de sua utilização, que em muito ultrapassam as boas intenções individuais
dos que o aplicam no lugar A ou B. Quantas “pesquisas comunitárias” já não foram
“desvirtuadas” para favorecer interesses burgueses na história recente da Psicologia? Existem
muitos profissionais que tentam “aplicar testes” para o “bem” coletivo, mas mesmo
inintencionalmente, acabam por naturalizar e estereotipar os sujeitos de sua pesquisa; em
outras palavras, fazem o oposto do que pretendiam.

Não negamos que há grande diferença entre o primeiro caso, aplicar testes em
indústria para aumentar o lucro do dono, para o segundo, mas a complexidade da
consideração sobre a ética não pode levar-nos a um “ativismo ético”. Caso pretendamos fazer
ciência enquanto agimos eticamente, como já dissemos, é preciso apreender que elas (ciência
e ética) são mutuamente condicionadas, mas não são idênticas. Daí que são íntimas suas
relações com a ideologia.

Não seria honesto com a posição de Martín-Baró (1980k) desconsiderar sua severa
crítica à uma “tecnocracia” na/da Psicologia que na prática negaria valores concretos da
humanidade podendo subordiná-los a interesses sociais específicos; no capitalismo, aos da
burguesia. Fora de dúvida, o jesuíta preza a técnica, mas, além disso, considera que ela
mesma deve ser teorizada à luz de um horizonte ético que, indiretamente pelo texto, pode ser
identificado com a libertação249. Sintetizando, horizonte constituirá:

“[...] el desarrollo integral de todos los grupos, de todos los hombres y de todo el
hombre. De ahí que lo que es un hecho – el condicionamiento y la configuración
psicosocial de la personalidad– debe convertirse en horizonte ético de la actividad
psicológica a fin de que el determinismo social no sea deshumanizador sino
humanizador, no subordine e instrumentalice, sino potencie y dinamice. Si toda
libertad tiene un “de” (se es libre de algo o de alguien), este “de” puede ser el
moldeamiento social de la personalidad, no como inhibición o barrera, sino como
trampolín.(MARTIN-BARÓ, 1980k, p. 515).

249
Conferir mais sobre o tema na página 529 de Martín-Baró (1980k).
247
4.2.2 Uma orientação à práxis da Psicologia: que se denunciem as atrocidades das
guerras

Tanto a forma quanto o conteúdo de seus escritos neste período (início de 1980)
apontam para a urgência e a seriedade com que o autor acreditava que os psicólogos deveriam
se engajar nas questões problemáticas de seus países. Analisaremos agora, entre outras coisas,
como seus textos são um combate frontal a esterilidade da “neutralidade” científica.

O primeiro texto de 1981 corrobora algo que já retratamos: inaugurava-se a guerra


civil em El Salvador. Testemunhando que “historia no es una cadena inevitable de
acontecimientos ligados mecanicamente el uno al outro” (MARTÍN-BARÓ, 1981a, p. 17), o
jesuíta conclui que todas as condições para uma insurreição de esquerda estavam postas.
Inúmeros decretos públicos visavam eliminar legalmente os direitos dos trabalhadores à
greve, reinvindicações e manifestações políticas. A brutalidade da resposta governista,
apoiada pelos E.U.A, tornou a situação insustentávelxxiii.

Sem abrir mão das denúncias, Martín-Baró (1981b), por exemplo, retoma o
assassinato de Monsenhor Romero para estudar como a psicologia social poderia contribuir
com uma discussão sobre liderança em um processo grupal. Observamos que sua postura
conciliadora entre cristianismo e revolução, na análise que faz sobre o arcebispo, poderia ser
aplicada a ele mesmo: contrariando o que chama abstrações puramente doutrinárias, conclui
que ser cristão autêntico, naquelas condições históricas, implicava assumir o partido da
revolução250.

Estudando as atitudes sociais em El Salvador conclui que, desde 1972, já estavam


postas algumas condições que levariam à adoção, como última medida, de uma postura
revolucionária (mudanças sociais pelas armas). Declara ainda que aquele confronto era uma
guerra de classes251; pode soar estranho, mas ele cita as obras de Berger & Luckmann para
corroborar essa ideia (comentaremos mais sobre isso a seguir).

250
Nesse texto lemos pela primeira vez a expressão desideologização, que seria retomada inúmeras vezes por
Martín-Baró; é possível que haja outros, destacamos apenas que do conjunto estudado esse foi o primeiro
registro.
251 Pode-se encontrar mais sobre isso na página 327 de Martín-Baró (1981c).
248
Novamente abarcando temas pertinentes aos grupos humanos, analisa: a relação destes
com o poder (“se entiende el poder para influir en los procesos de organización y
funcionamento del Estado y, en general, de la vida ciudadana, MARTÍN-BARÓ, 1981c, p.
331). Em resumo, Martín-Baró (1981c), analisa publicações de diversos grupos políticos
relevantes em El Salvador, concluindo que uma das principais dificuldades encontradas para o
fim da guerra era frear a presença estadunidense. Cremos que a criação do IUDOP seja
justamente uma resposta acadêmica à demanda por combater a forte presença da ideologia
ianque.

A ênfase dada por ele ao diálogo entre as partes não nos pareceu uma “capitulação” de
sua postura revolucionária, antes se referia às reflexões feitas pelos próprios envolvidos nas
Frentes Revolucionárias que, ao contabilizar suas perdas, passaram a esperar das negociações
uma alternativa mais racional. Veremos, contudo, que no correr da década isso mudaria; a
possibilidade concreta de diálogo só se tornaria viável depois de muito sangue derramado.

Ainda em 1981, lemos Genocidio en El Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1981d), texto em


que o protesto é claro: não havia violação de direitos humanos naquele país, mas extermínio
massivo da população pobre (camponeses, estudantes e trabalhadores); daí o porquê do termo
agressivo no título. Sem tergiversar aponta como responsáveis por ele: os E.U.A (na condição
de financiador e propagandeador), as Forças Armadas salvadorenhas, o exército paramilitar
direitista e o Partido Democrata Cristão, por ser cúmplice e justificador do projeto político
genocida.

Em outro trabalho, cujo procedimento de coleta de dados foi o uso de questionários,


Aspiraciones del pequeño burgués salvadoreño (MARTÍN-BARÓ, 1981e), discorre sobre
aspirações da pequena burguesia de seu país em guerra. Dividindo globalmente a sociedade
salvadorenha entre burgueses (oligarquia e alta burguesia) e proletariado (incluindo
camponeses e setores marginalizados) sua intenção foi entender o papel das camadas médias.

Sua reflexão final é engenhosa, porquanto indica que mesmo que El Salvador passasse
por uma revolução de corte socialista, as camadas médias precisariam passar por uma
pedagogia social, pois seu modo de agir carregava e era formado no/do individualismo,
aspirando um consumismo desenfreado, incoerente com as capacidades reais de produção
salvadorenhas; ou seja, ele os convida a adotar uma postura que chama de realista,
convocando-os, na ocasião, à conscientização política.

249
Chegamos a um dos escritos mais emblemáticos de Ignacio Martín-Baró: Raíces
psicosociales de la guerra em El Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1981f). Nele lemos perspicaz
análise conjuntural aliada a propostas teóricas para a psicologia social, que a nosso juízo são
uma de suas maiores contribuições para esta ciência.

Sua implicação ético-política na escrita é notável. Ele inicia o livro não publicado com
relatos sobre as explosões de sua casa, e o faz para clarificar que objetividade científica de
uma análise nada teria a ver com tomar partido em uma causa política; aliás, nomeia sua
pesquisa de participação reflexiva. O texto, que nomeadamente tem inspiração em Karl Marx,
Franz Fanon, Paulo Freire e Darci Ribeiro, também proporciona uma imersão psicossocial nos
horrores da guerra. Como se não bastante a contribuição científica, o relato é sensível. Com
lucidez epistemológica escreve:

En lugar de pretender eliminar los propios valores del quehacer científico, se


afirman esos valores en una opción que delimita lo que se pretende estudiar y el
cómo se va a estudiar, es decir, el objeto y la metodología de la psicología social. La
opción solidaria con las aspiraciones de libertad y justicia de los pueblos oprimidos
y, en nuestro caso, del pueblo salvadoreño, ubica al científico social en una
perspectiva que busca entender los acontecimientos al interior de una historia
conflictiva y, por tanto, como parte de un proceso que les da sentido. (MARTÍN-
BARÓ, 1981f, p. 13).
Confirma-se, portanto, outra vez a indissociabilidade entre ética e ciência. E é nesse
texto que pela primeira vez avistamos a definição do objeto de estudo da psicologia social,
que geralmente é atribuída ao autor:

[...] el estudio científico de la acción humana en cuanto ideológica (ver Martin-Baró,


1981b)252 Esta visión busca intencionadamente enraizarse con la tradición de la
psicologia social en uso, pero tamizada por el filtro de categorias históricas y
sometida al criterio de verdad de los procesos en los que pretende repercutir. De ahí
que se hable de acción humana, no simplemente de conducta, y que se la considere
en cuanto ideológica, no simplemente en cuanto interpersonal. (MARTÍN-BARÓ,
1981f, p. 14).
Se em algumas publicações da década de 1970 ele centrou-se em uma definição que
privilegiava o comportamento (conducta), passa agora a criticá-lo como insuficiente para
compreender a totalidade específica da psicologia social. Em outras palavras, a atividade
humana demanda apreensão de seus significados e sentidos dentro de determinada

252
Essa referência versa sobre um texto mimeografado intitulado indivíduo e sociedade, que é provavelmente o
primeiro capítulo do livro Acción y Ideología.
250
particularidade histórica253. Mas, como Martín-Baró define a ação (ainda nos referindo ao
objeto de estudo da Psicologia)?

[...] con el término acción se quiere subrayar que la actividad humana genera un
producto, tiene un efecto que es parte fundamental de la misma acción (Séve, 1973).
Producto no es lo mismo que "estimulas reforzantes, aunque éste pueda ser un
aspecto del producto. Toda actividad humana tende a producir algo y, en este
sentido, la acción humana es historicamente creativa. Para este enfoque, estudiar el
comportamiento desde una perspectiva meramente formal despoja a la actividad
humana de su carácter histórico y, por tanto, parcializa su comprensión. La práctica
de la tortura, por ejemplo, no sólo produce la lesión o muerte del torturado; produce,
sobre todo, el papel del torturador y toda uma estructura organizativa y aun legal que
materialice y justifique esa función. La tortura termina históricamente configurando
a las personas que torturan (el verdugo) y al sistema social que los necesita y
engendra (MARTÍN-BARÓ, 1981f, p. 16).
Não compreenderíamos a ação cientificamente sem apreendemos seu significado no
interior das relações sociais em que ela foi produzida, e aqui não apenas se menciona o estudo
que se interessa pela “influência” dos outros na ação, mas o que apreende as próprias relações
sociais como sua constituínte; doadora de sentidos e significados. Por isso, o interesse do
autor em apreendê-la como ideologia. Sobre isso ele acrescenta:

Al apuntar al aspecto ideológico de la acción humana se supone, por un lado, que la


actividad de los seres humanos está determinada por sus intereses de clase, que
quizá no aparezcan e incluso sean negados conscientemente, pero que se muestran
en el producto social de lo que hacen; por otro lado, se supone que ese influjo y ese
producto no pueden ser entendidos genéricamente, sino que hay que interpretarlos a
la luz de cada configuración social y de cada situación histórica (MARTÍN-BARÓ,
1981f, p. 17).
Quando enfatizamos que os avanços de Martín-Baró podem não apenas contribuir à
luta política por uma Psicologia mais engajada à emancipação humana, mas também a
produção científica de uma Psicologia concreta, referimo-nos, por exemplo, à fina relação que
estabelece entre a percepção (aqui como categoria do psiquismo humano) e as atividades
coletivas humanas (exploraremos melhor esse pormenor adiante254), mas em linhas gerais,
grupo é entendido como unidade de análise (MARTÍN-BARÓ, 1981f, p. 21). Ele parte de
uma crítica aos modelos teóricos estadunidenses dedicados à explicação de microgrupos para
alegar que a contribuição da psicologia social nessa discussão era privilegiada; seu texto
efetivamente mostra o porquê disso. Ao se propor a analisar as classes sociais salvadorenhas e

253
Qualquer semelhança com Vigotski aqui não é mera coincidência. Nossa insistência nas questões do método
aqui se justifica, pois quando a pesquisa se propõe à apreensão do movimento próprio dos fenômenos sociais
(desde o ontológico), ainda que ela comece por aspectos diferentes do objeto estudado, lemos exposições
teóricas que se semelham, na direção de que quando versam sobre o ser em si das coisas encontra-se pontos
comuns mesmo partindo da ontologia ou da psicologia, por exemplo.
254
Nesse texto lemos uma prévia de um excelente artigo, traduzido para o português por Fernando Lacerda
Júnior, intitulado Los grupos con história: un modelo psicosocial. (MARTÍN-BARÓ, 1987e).
251
seus principais grupos políticos, eleva exponencialmente o alcance dos aportes da Psicologia à
emancipação humana.

Ao perceber a dialética imanente da relação entre burguesia e proletariado apresenta


mediações concretas que compõem uma análise de processos grupais. Adiciona também que
eles precisariam ser apreciados sob três categorias estreitamente articuladas, mas distintas:
identidade, poder e atividade255; essa asserção constitui avanço teórico para além da produção
sobre grupos na América Latina; em outras palavras, trata-se de uma contribuição
fundamental para a Psicologia. Afinal, qual análise, desde o materialismo histórico-dialético
pode prescindir dessas três categorias imanentes às manifestações concretas dos processos
grupais humanos na História?

Além disso, seu esboço para uma contribuição à teoria sobre a mobilização coletiva
(ou grupal) é muito relevante, justamente por que retoma, desde a teoria psicossocial, a
importância da categoria percepção, não entendida como “dispositivo orgânico subjetivista”,
mas função psicológica superior mediada socialmente256. Outro aspecto que merece registro
imediato é a importância dada pelo jesuíta aos afetos257.

O segundo capítulo dos Raíces psicosociales... foi publicado avulso (El liderazgo de
monseñor Romero, MARTÍN-BARÓ, 1981b). O terceiro é primoroso, lá encontramos um
rascunho sobre uma teoria psicossocial da repressão política. Martín-Baró (1981f), longe de

255
No registro do autor: “En resumen, identidad, poder y actividad son tres características esenciales para definir
la naturaleza de cualquier grupo. Cualquier tipologia grupal será inadecuada" si no toma como parámetros
fundamentales estos tres aspectos. En principio, un grupo surge cuando un sector social adquiere determinado
grado de conciencia sobre su propia realidade y sus propios intereses, es decir, sobre su propia identidade social,
lo que le lleva a organizarse y a actuar en consecuencian, praxis organizada que revierte a su vez en una mayor
conciencia. El grupo es, en este sentido, la matérialización de una conciencia colectiva, reflejo a su vez de unas
condiciones sociales captadas con mayor o menor objetividade” (MARTÍN-BARÓ, 1981f, p. 42).
256
Nas palavras do próprio autor: “Para comprender la importancia de este proceso perceptivo conviene recordar
el papel central que la percepción desempenia en el comportamiento de las personas. Mediante la percepción las
personas captan la realidad, no simplementecomo una sucesión de estimulos energéticos, sino como realidad, es
decir, como objetos, hechos y fenómenos significativos. Percibir es construir significaciones que se imponen
como objetivas, es decir, como independientes y externas al sujeto. La percepción es el producto de un proceso
hecho posible por el desarrollo y aprendizaje sociales de la persona así como por los procesos y fuerzas que
condicionan su comportamiento en cada “circunstancia concreta”. Ele prossegue: “Ahora bien, si la acción de las
personas debe entenderse en buena medida como una consecuencia de las posibilidades que su historia le ha
permitido elaborar así como de las opciones que se le abren o cierran en cada situación, estas posibilidades y
opciones objetivas son vivenciadas subjetivamente a través de la percepción. En otras palabras, por la percepción
el sujeto capta las posibilidades y opciones que se le presentan en cada momento. Por ello su acción irá
vinculada a su percepción” (MARTÍN-BARÓ, 1981f, p. 48).
257
Outra ressalva: atribuímos essa inferência à análise concreta e integral de seu texto, mais do que daquilo que
efetivamente está presente nele (na condição de objetivamente discriminado) em forma de palavras; isso quer
dizer que a mediação dos afetos está implícita no texto, mas não e de modo correspondente manifesto nele.
252
tratá-la como abstração subjetivista, aponta suas bases concretas (violência do exército, meios
de comunicações que enviesavam e sistematicamente mentiam para a população etc), sem
perder com isso seus aspectos psicossociais, ou seja, a vivência emocional258, as emoções
(medo) e os sentimentos (raiva, percebida não como negativa, mas como resposta humana a
uma conjuntura social injusta). No último capítulo (o esteticamente mais elaborado 259) nos
deparamos com um relato de alguém que não apenas teorizava sobre a realidade social, mas o
de quem se submeteu a ser “traficado” para dentro das chamadas “zonas libertas”, que eram
ocupações comandadas pelos exércitos populares que militavam pela revolução em El
Salvador; não precisamos nem mencionar que essa visita foi clandestinaxxiv.

No início de 1982, com El llamado de la extrema derecha (MARTÍN-BARÓ, 1982a),


vislumbra-se com detalhes que mesmo ciente de que as expressões “direita” e “esquerda” no
espectro político eram polissêmicas e circunstanciais, em El Salvador o avanço e as
justificativas ideológicas da guerra civil não eram tarefas comandadas por uma “direita
moderada” (reformistas pró-capitalistas), mas pela direita da direita, que negava que o país
precisava mudanças sociais, dado que o problema era a falta de “punho firme” na política.

Em Una Juventud sin liderazgo político (MARTÍN-BARÓ, 1982b), temos outra


discussão sobre os processos grupais. Encontramos citações acríticas a Freud (sobre a figura e
a função do líder do grupo) e a Max Weber, que aparece como referência bibliográfica na
explicação da categoria poder e na da explanação da de liderança “carismática”, por exemplo.

Já o texto Un psicologo social ante la guerra civil en El Salvador, Martín-Baró


(1982c) faz uma espécie de síntese sobre o que teorizava sobre a violência260, a polarização
social e a mentira social. Aparece novamente a tríade pensar, sentir e agir. Em suma, pergunta
como a psicologia social pode colaborar ante uma guerra civil? “[...] contribuyendo al

258 Mais sobre esse tema pode ser lido na página 150 de Martín-Baró (1981f).
259
Não fomos insensíveis às denúncias feitas no texto; como, por exemplo, a de que soldados do exército
praticavam tiro ao alvo com bebês camponeses lançados ao ar. Apenas enfatizamos que o autor soube aproximar
seu leitor dessas atrocidades, que nem de longe são belas, mas a habilidade com que ele faz isso, e em se
tratando de um texto científico, é digna de nota.
260
Nas palavras dele: “Para comprender este complejo problema es necesario partir de tres supuestos y señalar
tres constitutivos básicos de la violencia. El primer supuesto es que hay múltiples formas de violência y que
entre ellas pueden darse diferencias muy importantes. El segundo supuesto es que la violencia tiene un carácter
histórico y que es imposible entenderla fuera del contexto social en que se produce. El último supuesto es que la
violencia tiene un peso autónomo que la dinamiza y que una vez puesta en marcha, no basta con conocer sus
raíces originales para detenerla”. (MARTÍN-BARÓ, 1982c, p. 97). Na mesma página ele prossegue: “Los tres
factores constitutivos de la violencía son: un fondo ideológico, un contexto posibilitador y la "ecuación
personal".
253
esclarecimiento de la conciencia colectiva (en el sentido durkheimiano del término) y
ayudando a la configuración de un nuevo ‘sentido común’" (MARTÍN-BARÓ, 1982c, p.
108).

4.2.3 Caracterização de sua proposta para a psicologia social: elementos teóricos

Martín-Baró fez estudos amplos sobre as diversas “psicologias sociais” existentes


naquele momento. Agora testemunharemos um pouco da sua capacidade de leitura, síntese e
críticas dessas produções.

Em 1982 encontramos uma publicação em três volumes intitulada Psicología Social


(MARTÍN-BARÓ, 1982e, 1982f, 1982g). O estilo é bem parecido com o dos que há pouco
analisamos, que eram uma espécie de guia para as disciplinas ministradas por Martín-Baró.
Foram abordados praticamente os mesmos temas encontrados no Acción y Ideología
(MARTÍN-BARÓ, 1983a), provavelmente um de seus livros mais lidos; tendo, até onde
conhecemos, nosso exemplar é de 2005, pelo menos onze reimpressões.

Eles condensam senão as principais posições de Martín-Baró em relação à Psicologia,


as mais populares e vulgarizadas. Seguindo seu modo usual de introduzir textos teóricos,
define qual é o objeto de estudo da psicologia social: ação como ideologia. A famosa assertiva
de que devemos partir da realidade para contribuir com o processo de libertação ganha maior
evidência que nunca261.

Sua clareza filosófica possibilita-lhe fugir de esquemas que fazem da Psicologia um


instrumento das classes dominantes. Ao questionar o método em que se fiam os psicólogos
sociais, contestando famosas publicações daquele período (de J. Moreno, de K. Lewin, de R.
Zajonc, P. Zimbardo, por exemplo) afirma que muito dessa área ainda se confundia (e fundia)
com uma psicologia de grupos, o que é inconcebível, uma vez que admitir que o ser humano é
ser social, não é igual a fazer análises de dinâmicas grupais.

261
Ver mais sobre esse tema em Martín-Baró, 1983a/2005, p. 10, prólogo.
254
Em invés de começar com definições teóricas sobre seus objetos de estudo no escrito
(a tortura, por exemplo), destaca suas mediações concretas262, ilustrando suas posições
menciona a vida nas favelas e as greves. Não poderíamos concordar mais com essa exposição.
Esses três fenômenos sociais (a tortura, as favelas e as greves) se analisados desde o
materialismo histórico-dialético podem mostrar a potência crítico-científica da Psicologia.

Vimos que para Martín-Baró os indivíduos precisam ser apreendidos como parte da
História em que se movem e os situam, mas nesse texto a asserção ganha complexidade. É
necessário perceber a atividade humana como constituída sócio-historicamente e não apenas
como influenciada pelo meio externo. É notável como a apreensão da dimensão dos
significados surge como essencial para a tarefa da Psicologia, o que atesta a historicidade com
imprescindível; em diversas passagens enfatiza exatamente como os significados das ações só
podem ser devidamente estudados quando ele próprio é posto dentro das relações sociais que
o sustentam e produzem; é evidente, para nós, que o sentido dessas ações também não são
desprezíveis.

No que se refere à ideologia há alguns impasses. Esse texto foi o primeiro lido por nós
em que ele assume abertamente uma crítica a Louis Althusser (que, lembremos, apareceu em
diversos outros). Reconhecendo que o termo ideologia tem inúmeras significações em
diferentes contextos teóricos, registra a diferença básica entre as noções funcionalista e
marxista. Nas palavras dele:

La concepción funcionalista entiende la ideología como un conjunto coherente de


ideas y valores que orienta y dirige la acción de una determinada sotiedad y, por
tanto, que cumple una función normativa respecto a la acción de los miembros de
esa sociedad. La concepción marxista (que tiene sus raíces en Maquiavelo y Hegel)
entiende la ideología como una falsa conciencia en la que se presenta una imagen
que no corresponde a la realidad, a la que encubre y justifica partir de los intereses
de la clase social dominante (MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 26).
Certo de que ambas partem de concepções diferentes de sociedade e indivíduo, toma
partido da apreensão concreta da realidade e dos seres sociais. Ele reconhece os avanços da
perspectiva estruturalista do marxismo sobre a ideologia, pois eles a afirmavam não como
algo externo ou adicional, mas elemento essencial e constitutivo da ação, que passa a ser vista

262
Nas palavras dele: “Finalmente, la psicología social estudiará la tortura como una forma de relación humana
(por irónico que pueda aparecer este calificativo en el presente caso) y, portanto, como un processo que no puede
explicarse simplemente a partir de la realidad de los individuos que en él participan. Como puede mentalmente
una persona llegar a convertirse en torturador? Cuál es el significado social del proceso de torutra? Cómo
reaccionan las personas a la tortura? Qué efectos transitorios y permanentes produce en los grupos sociales el
peligro real de la tortura?”(MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 9).
255
desde a totalidade dos interesses sociais que a geraram; e também como doadora de sentido à
ação individual (cognição e valores). No entanto, sua crítica a essa concepção enfoca com
radicalidade seus pressupostos; pois eles eliminavam, na prática, o “papel” do indivíduo, e é
evidente que nem toda ação possui os mesmos “significados ideológicos” na trama das
relações sociais (escovar os dentes é diferente de se mobilizar para uma greve, por exemplo).

Sem esconder que pretende oferecer um marco teórico unificador para a psicologia
social, Martín-Baró (1982d)263 expõe rica cultura sobre a literatura psicológica ao propor uma
sintética exposição sobre a história da psicologia (diga-se de passagem, sua revisão não é
acrítica ou simplesmente conteudista; sua subdivisão em três períodos foram perpassadas de
condenações ao psicologismo e ao sociologismo de várias escolas psicológicas, por exemplo).
Sua análise historiográfica parte da resposta dessas escolas a três questões: o que mantém
unida a ordem estabelecida, o que nos integra, e o que pode nos libertar dessa ordem?
Fazendo clara referência ao marxismo, escreve:

De acuerdo con la definición propuesta de psicología social, pretendemos acá


adoptar una perspectiva dialéctica. El término dialéctica se ha vuelto en ocasiones un
expediente para salir nominalmente del pasto teórico, sin que en la práctica concreta
de quienes se dicen dialécticos haya ninguna diferencia con quienes practican el
psicologismo o, sobre todo, el sociologismo. Otros identifican dialéctica com
interacción, lo que es una comprensión bien superficial 264. El método dialéctico tal
como lo entendemos aquí, asume que el objeto se constituye precisamente por una
mutua negación de polos, y que esto ocurre en un proceso histórico. En el caso
concreto de la psicología social, aplicar el método dialéctico quiere decir que al
estudiar los problemas se parte del presupuesto de que persona y sociedad no
simplemente interágan como algo constituido, sino que se constituyen mutuamente
y, por consiguiente, que negándose uno y otro, se afirman como tales. El individuo
es persona porque existe una sociedad (no individual) que le hace persona; pero la
sociedad es sociedad porque existen individuos (negación de la sociedad) que la
plasman y dan realidad. En la práctica, el método dialéctico significa que no
podemos entender los procesos ideológicos de la persona sin atender como parte
esencial a su estructuración social. (MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 38).
Em suma, aponta quatro elementos históricos necessários para a compreensão da
gênese e do desenvolvimento da psicologia social científica: a) maior consciência sobre as
diferenças entre os grupos; b) concepção secularizada de ser humano; c) revolução industrial;
e d) desenvolvimento de “novas metodologias”. Interessa-nos, ainda destacar qual então seria
seu objetivo:

[...] la psicología social debe buscar como objetivo el posibilitar la libertad social e
individual. En la medida en que el objeto de estudio lo constituye la acción en
cuanto ideológica, es decir, en cuanto determinada por factores sociales vinculados a

263
Conferir mais sobre isso na página 19 do referido texto.
264 O que dizer então de Osorio (2009)?
256
los interesses de clase de los diversos grupos, se pretende que el sujeto tome
conciencia de esos determinismos y pueda asumirlos (aceptándolos o rechazándolos)
mediante una praxis consecuente. Ejercer la libertad va a constituir así, en muchos
casos, un verdadero proceso de liberación social. Por eso se presenta como objetivo
el hacer posible la libertad, ya que actuarla es por principio una praxis social en la
que no sólo interviene el conocimiento265 (MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 79).
Voltaremos a considerações críticas sobre as implicações concretas de assumir a
libertação como objetivo da Psicologia. Na sequência de capítulos do livro, vemos que, ao
discorrer sobre o caráter social do humano (passa pela etologia, pelo behaviorismo radical até
chegar ao marxismo), indica que sem desprezar o que há de biológico, só é possível atestar
humanidade quando se considera as relações concretas (no capitalismo isso significa
apreender os indivíduos como membro de uma classe social266). Nas palavras dele:

Según esta visión, la individualidad de la persona es dada por lo biológico pero la


personalidad misma, la realidade humana como tal es formada históricamente como
encarnación de los influjos sociales que de modo específico influyen en la
individualidad. No se trata por tanto de considerar al ser humano como un puro
efecto mecânico resultante de una confluencia de fuerzas sociales; son más bien los
vínculos del individuo con su circunstancia y su medio social los que van
estructurando la concreción de su persona. (MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 97).
O terceiro capítulo é primoroso, para nós, um dos marcos históricos da discussão
latino-americana na ciência psicológica sobre a relação classe social e psiquismo. Ao
problematizar o tema, ainda que substancialmente não avance, arrasta-o para o concreto; em
outros termos, atesta que qualquer tentativa da psicologia social sobre teorizar os grupos e/ou
fenômenos sociais sem considerar a classe social, mascarar-se-á uma mediação vital do
processo de socialização real de nossa particularidade histórica.

Reiteremos: chamar atenção para a realidade psicossocial das classes sociais é, sem a
menor dúvida, uma das mais significativas contribuições de Ignacio Martín-Baró. Apesar de
muito poder ser dito sobre ela do prisma sociológico, quando entramos nos campos da
psicologia há muita penumbra267. No livro ele crava:

265
Especificando ainda mais o entende por “objetivo” escreve: “Al definir el objetivo de una actividad o de un
quehacer, es necesario distinguir entre la finalidad perseguida por el sujeto y la finalidad objetivamente realizada
o posibilitada por la naturaleza específica de la actividad o que hacer en cuestión. La voluntad e intención del
sujeto puede dar en muchos casos una orientación definitiva a su quehacer; pero es importante subrayar que la
naturaleza objetiva de los procesos no es cambiada a voluntad y que, como se suele decir, "el infierno está lleno
de buenas intenciones" (MARTÍN-BARÓ, 1982d, p. 75).
266
Uma vez mais, o marxismo da explicação de Martín-Baró é derivado de citações a Lucien Séve.
267
Afinal, como é possível “constatar”, por meio do método materialista-dialético e histórico as expressões
concretas das classes sociais no psiquismo humano sem incorrer em determinismos político-econômicos? Alguns
apontamentos sobre a práxis dos indivíduos, suas condições reais de existência, a posição que ocupam em
relação aos meios de produção, os grupos que o socializaram etc. são lugares comuns aos iniciados, mas como
apreender isso quando pesquisamos o indivíduo A ou B singularmente falando? Considerando que sabemos que
257
La forma más satisfactoria de examinar el influjo de las clases sociales en el
psiquismo humano como variable estructural consiste en aplicar el enfoque
dialéctico. Desde esta perspectiva, y según la sexta tesis de Marx sobre Feuerbach,
ya mencionada en el capítulo anterior, "la esencia humana no es una abstracción
inherente al individuo aislado. En su realidad es el conjunto de las relaciones
sociales" (Marx 1845/1974, pág. 667). La esencia humana no se encuentra, por
consiguiente, en la individualidad heredada genéticamete sino que se encuentra en
las relaciones que configuran al individuo como persona humana. (MARTÍN-
BARÓ, 1982d, p. 145)268.
Não há dúvida quanto ao fato de que a “consciência” dos indivíduos pode
corresponder ao interesse dos grupos funcionais a que pertencem e, mais, aos imediatos de
sua classe social; ou seja, ela pode apresentar contradições, mas o jesuíta assegura que quando
o psicólogo analisa a “psicologia dos indivíduos” se depara com a psicologia da classe desse
indivíduo. Tendo por certo que o pertencimento a uma classe é um dado objetivo confessamos
que, em alguns momentos, não entendemos o que ele quis explicar para além dos “lugares
comuns marxistas”. Ele ainda apontará para outra categoria complexa e polissêmica dessa
tradição (e consideravelmente ignorada pela psicologia): a alienação.

O primeiro capítulo do segundo volume do Psicología Social (equivalente ao quarto


capítulo no Acción y ideologia) disserta sobre os processos de socialização269. A ênfase dele
recai sobre aspectos históricos (e espaço-temporais) do processo de socialização; em outras
palavras, não é que a sociedade influencie a formação da singularidade humana, mas que a
singularidade humana é constituída por ela enquanto tal270.

A discussão sobre identidade pessoal e social atesta a dinamicidade com que ele
concebia o mútuo condicionamento entre indivíduo e sociedade, sem desprezar o que há de
biológico (ainda que em nenhum momento de fato chegue a se expor, ou melhor, ousar

não se devem deduzir apressadamente traços “classistas” de componentes ontogenéticos que possibilitariam o
desenvolvimento da personalidade. Sabendo que Martín-Baró não identificava consciência de classe com classe
social, nem consciência de classe com a consciência de pertencer a uma determinada classe social, cabe agora
elencar alguns indicadores de como ele articulava elementos teóricos que correspondiam a essas realidades
distintas.
268
Essa citação leva-nos diretamente a sua definição de “psicología de classe”, que segundo ele, é passível de
comprovação empírica (MARTÍN-BARÓ, 1982, p. 147 - 148), ainda que esteja em grande medida na
dependência da consciência de classe de seus membros.
269
Nas palavras de Martín-Baró (1982e, p. 163): “[...] vamos a entender la socialización como aquellos procesos
psicosociales en los que el individuo se desarrolla históricamente como persona y como miembro de una
sociedad. Esta definición sostiene tres afirmaciones esenciales: (1) la socialización es un proceso de desarrollo
histórico; (2) es un proceso de desarrollo de la identidade personal; y (3) es um proceso de desarrollo de la
identidade social.
270
Repetimos exaustivamente parágrafos como esse, pela necessidade de demonstrar a constância ou
inconstância, os acréscimos sutis e alguns saltos de seu projeto ético-político. Mas podemos afirmar que esse
modo de expor teoricamente o ser social não mudará até o fim de seus dias.
258
afirmar a real participação da materialidade do organismo na formação da personalidade).
Basicamente, ele aborda a socialização sob três aspectos: o linguístico (faz referência indireta
a Vigotski271 e direta a Leontiev e Luria); o moral (entre outras coisas discute a perspectiva da
psicanálise, das teorias da aprendizagem e do desenvolvimento para ao surgimento da moral)
e a sexual272.

O capítulo versa ainda sobre outras duas categorias fundamentais: o trabalho e a


percepção. Se por um lado é bem verdade que em várias passagens, ao que tudo indica, trata
como sinônimo trabalho e ocupação laboral (emprego), por outro não podemos menosprezar
que com acerto situa-o como marco definidor do humano, “el trabajo es la actividad más
importante en la organización de la vida humana” (MARTÍN-BARÓ, 1982f, p. 262). É
abordando o trabalho que encontramos referência direta à materialidade273, até aqui, no mais
das vezes, ele fez uso da categoria concreto para se referir aos “contextos históricos”.

A outra categoria que destacamos é a atividade psíquica superior que ele chama de
percepção274. A partir de diversos experimentos de ianques e de europeus, Martín-Baró
(1982f) aponta a centralidade dessa categoria para a psicologia social, pois é inegável que a
percepção que temos sobre objetos da realidade e dos outros indivíduos são uma das
mediações que nos levam ou impedem de agir.

O mérito do capítulo está em não tratar a percepção como dádiva exclusiva da


composição fisiológica do cérebro ou da personalidade, do “Eu” etc., mas demonstrar o

271
Aqui ele cita Vigotski no livro Pensamiento y lenguaje. Teoría del desarrollo cultural de funciones psíquicas
(Traducción de María Margarita Rotger). Buenos Aires. La Pléyade. 1973, originalmente publicada em 1934;
essa informação consta em suas referências bibliográficas.
272
E é sobre ela que mais sentimos falta de um posicionamento claro quanto à importância do somato-biológico;
ou seja, sua crítica de que o machismo e seus apontamentos sobre a sexualidade terem gênese sócio-histórica são
relativamente fáceis de acompanhar, no entanto, diferente de outros textos, principalmente os do início da década
de 1970, ele não mais trata o “como” o biológico compõe a identidade gênero dos indivíduos. Naquela época ela
articulava erroneamente essas esferas, mas pelo menos as articula concretamente.
273
Nas palavras dele: “El trabajo nos ubica en un contexto material, un médio ambiente donde dela tras tenemos
que realizar nuestras tareas. Hablar del mundo del trabajo es, entonces, afirmar que el trabajo nos incardina en
una situación material, física, en una circunstancia especifica, sea ésta el cafetal o la oficina, el bus o ia clínica, la
fábrica o el comercio, el aula de clases o la estación de servicio”. (MARTÍN-BARÓ, 1982f, p. 267).
274
No livro podemos encontrar parágrafos do tipo: “Pero, ¿que es la percepción? una de las definiciones mas
aceptadas señala que es el processo por el que se captan estímulos y se interpreta su significación o sentido.
Huelo el perfume de las flores, veo a Juan corriendo, siento que me duele la cabeza, oigo las consignas gritadas
por un grupo de manifestantes. En todos estos casos, los sentidos suministran información sobre objetos,
personas o acciones, pero los estimulas son interpretados como realidades con una significación. La percepción
no es, por consiguiente, un simple proceso de reflejar estimulas que se le presentan al sujeto. La persona no es un
procesador pasivo o mecanico de inforamación; por el contrario, la persona desepeña un papel activo y
determinante en la configuración perceptiva de aquello que capta.” (MARTÍN-BARÓ, 1982f, p. 271).
259
caráter imanentemente social que a constitui no psiquismo humano. Se por um lado é
empiricamente constatável que características somato-biológicas são em grande medida
responsáveis pelas diferentes sensações dos mesmos objetos materiais, o “como” e o “o que”
se percebe é processo psicossocial e, mais, o risco de creditar ênfase excessiva
(individualizante) na percepção faria crer que basta uma mudança na “percepção” das coisas
para que as próprias coisas mudem. Longe de uma abordagem simplista e mesmo que não
tenha realizado nenhuma pesquisa de base acerca da percepção, o capítulo é de suma
relevância275.

Retomando com o próprio Martín-Baró (1982f), a percepção não deve ser entendida
como simples “peça” do psiquismo humano (como se ela fosse um processo de decodificação
cognoscitiva; afinal, que a ação dependa da percepção não quer dizer que ela dependa “só”
dela). Ele nega também que só as características específicas da subjetividade (diríamos com
Vigotski [2009], que os múltiplos nexos entre diferentes funções superiores) seriam as
responsáveis pelas mediações concretas dessa função psíquica. É vital reconhecer que cada
particularidade histórica específica determina e/ou enfatiza o que é bom ou mau, aceitável ou
inaceitável, exigido e/ou proibido, e esses valores não são criações da percepção singular, mas
de uma complexa síntese mediada na consciência por emoções, afetos, cognição etc.
(referimo-nos aqui aos significados e aos sentidos históricos no processo de desenvolvimento
da percepção276).

O sexto capítulo tenta recolocar criticamente o conceito de atitude no radar da


psicologia social latino-americana. Partindo da constatação do uso trivial delas pelo senso
comum, realiza uma revisão bibliográfica sobre como diversos psicólogos (uma vez mais
referimo-nos aos estadunidenses) as utilizavam em diversas pesquisas com propósitos muito
diferentes. Nesse âmbito, ressaltamos que há também justa crítica, não às pesquisas empíricas

275
Em nosso caso, estudantes de Psicologia Social da PUC-SP, não temos lido ou acompanhado nenhuma
discussão mais ampla sobre isso, nem temos visto debates sobre nos grandes congressos nacionais. A verdade é
que parece que abandonamos o osso para perspectivas que só fazem empobrecer nossa credibilidade científica.
276
Em suma, é constrangedor para nós da “psicologia social desde o materialismo histórico-dialético”
reconhecer que temos dificuldade em responder a “simples” questão: o que é e como funciona a percepção?
Muitas discussões sobre a polarização dos processos grupais, estereótipos, preconceitos raciais e de gênero
poderiam ser amplamente subsidiados caso essa resposta fosse dada. Aos marxistas não considerar como se dão
os nexos entre a percepção do indivíduo e sua práxis é indesculpável. Se apontarmos para a práxis como critério
de verdade saber como, do ponto de vista ontogenético, ocorre seu desenvolvimento histórico, deve ser tarefa
urgente, caso contrário, somos nós que seremos reféns de bravatas, a despeito de que venham bem embaladas.
Muito do que lemos em Martín-Baró, seu interesse por grupos, mobilização dos processos grupais, percepção
dos indivíduos nos grupos etc., condensaram em nossas conclusões muito do que propomos salientar como o
mais relevante em sua obra.
260
em si, mas à utilização dos laboratórios como ambientes privilegiados delas. O problema não
seria negar que de alguma forma possam ser úteis, mas seria não compreendê-las (as
pesquisas) dentro do marco histórico de uma sociedade específica e do momento do
desenvolvimento da ciência em questão. Em outras palavras, incompreender que tanto a
manutenção financeira de um laboratório quanto suas produções não são neutras, e mais, não
perceber que elas respondem a interesses sócio-políticos de diferentes matizes é grave
equívoco.

Ainda sobre atitudes (umas das categorias mais trabalhadas pelo autor ao longo de sua
carreira de pesquisador da Psicologia), destacamos como Martín-Baró (1982f), em diversos
momentos (como na página 254, por exemplo), entende-a de modo a considerar que o
humano não é apenas “razão” e “inteligência”, mas também afeto, emoções e sentimentos. A
popular tríade analítica, pensar-sentir-agir, seria inúmeras vezes mencionada.

O núcleo duro de seu argumento se embasa em uma crítica à pesquisa do sociólogo


Richard T. LaPiere. O estadunidense notou que havia uma baixa relação entre o que alguém
diz em relação ao preconceito étnico e o que na prática da vida cotidiana acontecia. Logo,
mesmo sem enaltecer acriticamente o uso de estudos sobre atitudes, afirma que a única
possibilidade de apreendê-las é captando seu sentido como totalidade, além disso, novamente
notamos a centralidade da categoria significado; para ele é preciso entendê-las como relação
significativa entre sujeito e objetos de seu mundo.

Não obstante, quando critica o uso da categoria atitude, de certa forma realiza também
uma autocrítica, pois em alguns momentos (MARTÍN-BARÓ, 1981c, por exemplo) a
considera como o que alguém “diz” sobre um tema qualquer, sem estabelecer as diferenças
entre o dizer e a práxis. Ele próprio flertaria com esse erro em diversos momentos.

Os desdobramentos dos livros de 1982 viriam no ano seguinte, com o Acción y


ideologia (MARTÍN-BARÓ, 1983a). Continuamos aqui a exposição dos dois últimos
capítulos daquela publicação. O sétimo, intitulado “cooperacción y solidariedad” defronta-se
com um dos difíceis nós postos à ciência considerando o avanço praticamente onipresente dos
modos de individualização burguesa e das organizações políticas que subsistem no
capitalismo; os humanos podem ou não ser altruístas?

A discussão é pertinente, mas as definições que encontrarmos sobre “acción prosocial”


em contraposição às antissociais ainda são frouxas, e mesmo apontando traços histórico-
261
sociais do ser humano, a solidariedade genuína, ou seja, quando a práxis individual se alinha
aos interesses da genericidade humana, não parecem ser a norma entre as sociedades que
historicamente já existiram no mundo277.

Admitir a solidariedade e a cooperação como possibilidades históricas postas como


potenciais a espécie, pouco faz para explicitar como elas se dão ao longo do desenvolvimento
das sociedades na História e, menos ainda, para nos ajudar a concretamente entender como
isso se dá na singularidade dos indivíduos. Cabe, no entanto, lembrar que o autor traz, uma
vez mais, os “significados e os sentidos” para discuti-las; o que sem dúvida é coerente com a
posição favorável à perspectiva que ele chama de “enfoque histórico278”.

Por fim, no último capítulo retoma sua perene discussão sobre a violência, tomando
com objeto de sua exposição à situação nada abstrata da guerra civil salvadorenha que há
pouco mais de três anos já tinha feito mais de 10.000 mortos. Em que pese sua competência e
fluência no assunto, as definições que dá tanto à violência quanto à agressão (que aqui
aparecem com conotações distintas) é bem próxima da definição etimológica desses termos.
Ele salienta que só seria possível apreendê-las de fato no marco das relações sociais de
produção e reprodução econômico-políticas, no caso de El Salvador, considerando a luta de
classes (MARTÍN-BARÓ, 1983a, p. 405). No seio do capitalismo, não é possível analisá-las
sem considerar o individualismo, a competição e a propriedade privada, por exemplo.

Admite, em suma, que todo ato violento se distingue por quatro fatores constitutivos:
a) a estrutura formal do ato; b) a “ecuación personal” (MARTÍN-BARÓ, 1983a, p. 405); c) o
contexto possibilitador; e d) o fundo ideológico. Já afirmamos isso, mas esse texto é claro em
diferenciar a violência dentro de um marco histórico concreto: negar a violência, “venha de
onde ela venha”, é de um principismo míope ante as realidades atrozes perpetradas pelo
capitalismo. O exemplo que dá é o da violência do escravo em sua luta por liberdade.

Novamente vemos que se, por um lado, devemos colocar Martín-Baró no campo dos
“pacifistas” por outro ele não é ingênuo, mesmo porque sua análise era consequente com a

277
A cooperação entre seres da espécie homo sapiens aponta para a essência radicalmente social do ser humano,
o que não é o mesmo que taxar que a cooperação, ao longo desenvolvimento ontogenético, permaneça atuando
de forma dominante em um indivíduo que necessariamente contou com alguma cooperação humana para ser
tornar efetivamente humano. Não encontramos uma discussão em termos ontológicos sobre a cooperação e a
solidariedade, mas é verdade que também não nos dedicamos com afinco a essa tarefa.
278
O detalhe é que ele ainda faz referência a Herbert Marcuse (MARTÍN-BARÓ, 1983a, p. 334), contrariando
talvez a hipótese e Oropeza (2016), de que o flerte dele com a psicanálise foi um de seus pecados de juventude,
aliás, ele também cita Erich Fromm na página 401.
262
situação de extrema violência vivida em El Salvador, e a guerra não dava margens para
muitas elucubrações.

Sintetizando: essas obras são uma notável contribuição à ciência latino-americana.


Tanto pelo esforço de revisão, fruto de longo e dedicado trabalho de leituras, ainda que muitas
das discussões ora apresentadas já figurassem em outros períodos, quanto pela amplitude dos
temas. Martín-Baró (1983a) não é apenas leitor de psicólogos estadunidenses, mas um crítico
desses trabalhos. E se faz falta a presença de autores latino-americanos nas discussões, é
preciso lembrar que ali estávamos no ano de 1983, as condições da circulação das publicações
e do país em que ele vivia não eram favoráveis.

No livro Psicología Social V279, Martín-Baró (1984c) discute as relações entre


sociedade e indivíduo enfatizando o conceito de sistema social. Adiantando em cinco anos os
primeiros capítulos do Sistema, grupo y poder; que seriam praticamente idênticos280.

Começando por uma distinção básica entre o enfoque funcionalista e o conflitivo para
a explicação do que é um sistema social, Martín-Baró (1984c) utiliza Talcott Parson281 para
explicar o primeiro e Marx e Engels, basicamente, para explanar o segundo. A proposta
desses últimos é que a sociedade se funda em um ordenamento que de modo nenhum é dado
naturalmente e que não é o consenso majoritário dos membros de cada sociedade que as
fazem permanecer com tal, pelo contrário, é justamente o conflito entre classes que são seu
“motor” no capitalismo.

Em linhas gerais, o funcionalismo partiria de consensos axiológicos e da conseguinte


estabilidade natural da sociedade para explicar sua permanência na História (o conflito,
portanto, seria visto anormal). Para Martín-Baró (1984c, p. 23), o principal problema desse
enfoque:

[...] estriba en su punto mismo de partida, es decir, en la imagen original de la célula


o del organismo viviente. Asumir que un sistema social puede ser entendido como
un organismo supone aceptar la existencia de un orden unitario y coherente entre

279
Vimos em 1982 as três primeiras edições desta série; é provável que exista uma quarta, mas não a
encontramos.
280As diferenças que encontramos foram mudanças nas datas em certos parágrafos. Ou seja, o parágrafo em si é
igual, na página 84 de Martín-Baró (1984c), por exemplo, vemos uma referência ao ano corrente (1984), no livro
de 1989, uma mudança para ano 1988. A diferença entre eles é a substituição do último algarismo.
281
Para quem: “un sistema social, es decir, un determinado ordenamiento de las relaciones entre los miembros de
un grupo humano, se basa en la existencia de un sistema común de valores compartido, aunque independiente de
los actores humanos” (MARTÍN-BARÓ, 1984c: 18).
263
todas las partes que componen ese sistema social. De hecho, el enfoque de sistemas
hace ver a toda sociedad como una totalidad coherente, sin más divisiones
significativas que las de la especialización funcional ni más escisiones que aquellas
producidas por la progresiva diferenciación de subsistemas que, al exigir nuevos
ajustes del todo social, promueve la evolución y el progreso. Si se trata de un
sistema social, es porque hay una unidad coherente; por tanto, la unidad es el
presupuesto esencial que permite hablar de un sistema. Y dada la unidad, el orden
del sistema, es lógico asumir que tiene que haber al menos un mínimo de armonía
entre los diversos elementos o partes constitutivas y que esa armonía viene dada por
la complernentariedad sistémica de sus respectivas funciones. Por ello, el factor
clave para la existencia de un sistema social es el acuerdo axiológico entre sus
miembros, la aceptación colectiva de unos mismos valores y unas normas comunes
de convivencia. (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 23).

Ora, se existem papéis sociais, para o funcionalismo, é porque verdadeiramente a


sociedade necessita deles. Há uma conexão imediata entre papéis e necessidades sociais
(coerência entre eles). Tanto a realidade é tomada como o que existe de forma naturalmente
dada (positivismo vulgar) quanto o que existe é tomado como aquilo que deveria ser
(idealismo a-historicista282). Em contrapartida, nos enfoques conflitivos três aspectos são
essenciais para a análise do sistema social:

“(1) la determinación de cuáles son las relaciones sociales principales en una


sociedad; (2) el examen de la estructuración sistémica, sobre todo de la relación
entre las estructura socio-económicas y las político-ideológicas; y (3) una
comprensión de los procesos de cambio tal como ocurren en esa sociedade
(MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 28).
Isso não é o mesmo que admitir que no interior de um mesmo modo de produção não
existam casos singulares. Por exemplo, quando uma mesma pessoa ocupa uma dupla posição,
de trabalhador por um lado e de capitalista por outro283. A diversidade das formas de inclusão
no mercado capitalista gera, em cada situação concreta, uma estratificação social distinta284.

Martín-Baró (1984c), fazendo referência a Anthony Giddens, traz a sua explicação


sobre o enfoque conflitivo o conceito de superestrutura ideológica, afirmando que três são as
principais funções delas: a) universalizar os interesses próprios da classe exploradora; b)
negociar mediações jurídico-políticas das contradições sociais; e c) naturalizar o presente. Um

282
O próprio autor crítica o idealismo na página 24 do livro.
283
Pensemos por exemplo em alguém que trabalha como gerente de banco dioturnamente, mas que também
emprega um funcionário na pequena fábrica de roupas que possuí.
284
Nas palavras do autor: “Ahora bien, la estratificación no sólo depende de las relaciones de producción en
cuanto diferencian entre quienes se apropian del producto del proceso laboral y quienes son privados o
despojados de él (relaciones de apropiación); la estratificación es también en parte una consecuenciade la
diferenciación ocasionada por el mismo proceso productivo entre quienes ejercen dominio y entre quienes son
dominados, entre quienes poseen poder de decisión y, quienes tienen que someterse a los dictámenes ajenos
(relaciones de dominio)” (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 30).
264
das características mais interessantes desse fragmento do livro é sua afirmação de que a
ideologia é responsável por realizar uma cisão entre esferas políticas e econômicas, como se
no capitalismo fosse possível dividi-las.

Ainda sobre as diferenças entre os enfoques, retoma a discussão polêmica entre


consciência de classe e alienação, afirmando que:

Ambos modelos consideran que buena parte del determinismo social actúa por la
interiorización individual de las exigencias sistémicas; pero mientras el
funcionalismo considera que esta interiorización culmina en la aceptación voluntaria
de los valores del sistema, el enfoque conflictivo distingue entre una interiorización
por falta de conciencia (alienación) y una interiorización consciente, que sólo se da
cuando los valores corresponden a los intereses de la propia clase social. (MARTÍN-
BARÓ, 1984c, p. 42).

No trecho em que Martín-Baró disserta sobre a construção social da realidade


encontramos mais possibilidades de equívocos. Suas crescentes e constantes menções à obra
de Peter Berger e Thomas Luckmann podem alimentar ainda mais a interpretação de que ele
teria sido influenciado por algum aspecto do giro-linguístico. Sem a menor pretensão de
“livrar a barra” de Martín-Baró apelando para recursos retóricos que “arredondassem” sua
posição, cremos que é incorreto colocá-lo lado a lado com os que creem que a linguagem é a
responsável última por dar sentido à realidade, e mais, por construí-la.

A forma como introduz o debate sobre as classes sociais, a luta de classe e como se
posiciona a favor de uma leitura próxima da teoria da dependência285, assegura que mesmo
citando o interacionismo simbólico e considerando o diálogo como importante manifestação
da realidade social na vida cotidiana, é preciso cuidado para entender o modo peculiar como
incorpora as teses da obra clássica de Berger & Luckmann (Construção Social da realidade).

Sua exposição denota isso claramente. Segue-os quando afirmam que a ordem social é
um processo histórico irrefreável, e que a vida social é produto da atividade histórica.
Ademais, junto com eles, atesta que a sociedade é produção humana, uma realidade objetiva e
que o indivíduo é “produto social”; ainda que genéricas, essas não asseguram que sua

285
Em palavras dele: “en el caso de los países latinoamericanos. la situación se agrava ya que el proceso de
desarrollo modernizante se produce en una situación de dependencia estructural: son las necesidades y
exigências de los centros hegemónicos las que dictan los parámetros fundamentales del desarrollo
latinoamericano, no las necesidades de la propia población: Así, los sistemas sociales se estructuran en una
situación de doble dependencia: una internacional, entre estos paises y los países hegemónicos, y otra nacional,
entre la capa poblacional ligada a esos centros extranjeros, representante interna de sus intereses, y la masa
poblacional restante” (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 77)
265
apropriação do interacionismo simbólico não foi acrítica286. O problema de se os “termos e os
nomes” cristalizados nas relações podem efetivamente produzir mudanças sociais é sempre
confrontado com a realidade do modo de produção econômico. Só assim a falácia de uma
possibilidade de negociação de interesses entre classes sociais é desmascarada287.

Mesmo discorrendo sobre o funcionamento das instituições e de suas normas, não as


reifica, antes busca compreender o caráter ideológico delas dentro do conjunto de forças
sociais hegemônicas que determinam suas formas e seus conteúdos. Ele estabelece
interessante relação entre atividades cotidianas e reprodução da ordem vigente de um sistema
social.

Acerca de sua incorporação de Berger e Luckann (1968/1976), é importante destacar


que Martín-Baró articula-os com sua já em vias de consolidação proposta teórica; entretanto,
ele reconhece que a linguagem cotidiana desempenha papel fundamental na manutenção da
ordem social, mas não como atividade magicamente criadora dessa ordem, desconectada das
relações sociais concretas. Reiteramos que mais do que defendê-lo contra desvios pós-
modernos (e de fato, o capítulo nos parece, do ponto de visto da coerência teórica nos
pressupostos problemático), queremos destacar que em nenhum momento ele perde a
historicidade de vista ao analisar os sistemas sociais.

O segundo capítulo versa sobre um dos grandes temas Psicologia, e quiçá das ciências
sociais em geral, o poder. Vimos em nosso capítulo dedicado à política que a relação entre ela
e o poder não é passível de simplificação, logo, o objetivo de Martín-Baró (1984c) foi apontar
que o poder é mediação central das relações sociais e, mais ainda, analisá-lo sob suas
manifestações concretas.

São perceptíveis traços do marxismo em suas asserções, em compensação nomes


como Max Weber (se remetendo as tipologias do poder) e Michael Foucault (endossando, ao

286
Para confirmar isso: “La idea fundamental del interaccionismo simbólico consiste en que las personas se
transforman a si mismas y su medio ambiente a través de la interacción y, en particular, a través de los procesos
de comunicación. Esta transformación supone la creación de simbolismos: las cosas, los actos adquieren sentidos
peculiares y esos sentidos compartidos revierten sobre sus creadores, que se ven obligados a dar respuestas a los
productos de su propia actividad. Ahora bien, más que hablar de un continuo proceso de creación, habría que
hablar de uma continua recreación, sobre todo si se tiene en cuenta que el efecto de la mayor parte de las
actividades en nada toca a los parâmetros fundamentales de la vida social, sino que más bien los reafirma. En
otras palabras, la mayor parte de los sentidos y simbolismos más importantes en la vida de cada sociedad están
ya establecidos y los individuos no hacen sino asumirlos a través de la socialización y confinnarlos en el
desempeño de sus rutinas cotidianas. (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 81).
287
Conferir mais sobre este tema na página 83 de Martín-Baró (1984c).
266
que nos parece o paradigma estratégico) volta e meia são utilizados. Principalmente em
relação ao weberianismo, há evidentemente uma apropriação não isenta de ressalvas; no que
tange à possessão de recursos sociomateriais para a definição do que é e de como funciona o
poder, por exemplo. Entretanto, queremos apenas destacar momentos importantes, sem perder
de vista o objetivo desta tese, que é analisar o conjunto da obra para que entendamos seu
projeto para a Psicologia. Atesta ele:

puede influir en el comportamiento de las personas y grupos de dos maneras: (a) una
inmediata, imponiendo una dirección concreta a la acción; b) otra mediata,
configurando el mundo de las personas y determinando los elementos constitutivos
de esa misma acción. Estas dos formas no son excluyentes, sino inclusivas.
(MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 100).
Sobre seus três aspectos elementares, escreve que: “[...] (1) se da en las relaciones
sociales; (2) se basa en la posesión e recursos y (3) produce un efecto en la misma relación
social.” (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p.103). Já dissemos, mas não perdemos por enfatizar, que
em nenhum momento ele prescinde de apreendê-lo (o poder) como categoria concreta; pelo
contrário, o que se vê é uma insistência em associá-lo às classes sociais, fugindo de esquemas
mecanicistas; em outros termos, o poder não estaria disponível apenas aos ricos, ao passo que
os pobres sofreriam de impotência ante a constatação da inexistência de recursos materiais.

Ao assumir que o poder surja precisamente nas relações sociais, salienta a volatilidade
que em um processo grupal, por exemplo, o exercício do poder se dá. A dificuldade, nos
parece, seria ajustar as “escalas” analíticas. Se em alguns momentos vemos como teorias
macrossociais simplificam excessivamente a distribuição e a função dele na vida humana, as
micro-perspectivas não conseguem transcender a aparência das situações singulares, ou seja,
sequer produzem o que chamamos de ciência; não afirmamos com isso que não existam
variações nas manifestações concretas do poder em cada particularidade sócio-histórica e
cultural.

Em diversos momentos do texto, ele salienta como o caráter relacional, o fundamento


concreto (real e objetivável) e os efeitos históricos do poder devem ser bases de uma
discussão própria da psicologia social288. Martín-Baró (1984c) basicamente retoma exemplos
já utilizados em outros livros (personalidade autoritária, dos frankfurtianos; os experimentos

288
Nas palavras do jesuíta: “Proponemos, aquí, una definición de poder que representa una ligera variante de la
definición weberiana y que supone la simple integración de los tres elementos esenciales ya mencionados. Poder
es aquel carácter desigual de las relaciones sociales basado en la posesión diferencial de recursos que permite a
unos realizar sus intereses, personales o de clase, e imponerlos a otros.” (MARTÍN-BARÓ, 1984c, p. 110).
267
de Zimbardo e Milgram etc.) para ilustrar seus argumentos, seu enfoque é que recai sobre
outros aspectos.

Vimos neste subitem que o jesuíta se dedicou a temas de suma importância para a
psicologia social (processos grupais, luta de classes, poder, atividade, seu método, definição
de objetos de estudos etc.), nosso objetivo foi expor sinteticamente a “direção” ético-polítca
de suas críticas.

4.2.4 As preocupações da práxis de Martín-Baró: fenômenos sociais estudados

Sabe-se que o jesuíta não foi do tipo de pesquisador que fazia “samba com uma nota
só”. Nosso objetivo agora foi mostrar o quanto sua capacidade de articular diferentes áreas do
conhecimento possibilitou-lhe ricas análises de diversos e relevantes fenômenos da sociedade
salvadorenha (guerra, violência, terrorismo, opinião pública, eleições políticas etc.).
Conhecendo ainda que a preocupação de Martín-Baró era muito mais a transformação da
realidade, do que a de consolidar a Psicologia como ciência, pretende-se expor sua dedicação
em versar sobre os problemas de El Salvador sem abrir mão dos aportes científicos; em outras
palavras, nele vemos como diversas matrizes teóricas foram “utilizadas” em função da
“transformação da sociedade”.

Nessa direção, mesmo partindo de diversas críticas aos métodos estatísticos que
tentavam descobrir “o que as pessoas pensam”, Martín-Baró (1983b) faz análise fatorial de
como a imagem da mulher salvadorenha era concebida (lembrando estudo feito em Martín-
Baró, 1980e). Sem cuidado, o mesmo poderia ser dito do artigo Polarización social en El
Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1983c), pois se observa os mesmos procedimentos de pesquisas
empregados até aqui (questionários estatísticos e análise de conteúdo289); o tema, polarização
social, é que merece atenção, pois abarca aspectos psicossociais da guerra que, como vimos,
ocupava cada vez mais a atenção das reflexões de Martín-Baró.

289
O mesmo pode ser lido em Martín-Baró (1983d), Los sectores medios ante el plan Reagan una perspectiva
sombría.
268
Ao retratar o quanto “grupos rivais” se hostilizam mutuamente ao ponto de
praticamente empregarem os mesmos adjetivos para se qualificaram, alertamos que não se
confundam “essas descrições” como um problema pertinente exclusivamente as rivalidades
envolvidas. Explicamo-nos: entre a ARENA e FMLN, naquela ocasião, existiam diferenças
concretas, quando o lado aliado aos trabalhadores acusava o exército burguês de torturadores
bárbaros e o lado contrário dizia o mesmo, não se deve entender com isso que ambos
ganharam esses estereótipos (categoria utilizada por Martín-Baró, citando Henri Tajfel)
arbitrariamente290.

No mesmo ano de 1983, Martín-Baró (1983d) publicou outra pesquisa estatística,


feita com funcionários e estudantes da UCA (aliás várias delas foram feitas essas “amostras”)
sobre a “opinião” deles a respeito do plano de Ronald Reagan para El Salvador. Nosso
destaque, na publicação vai para a forma com que o autor aborda a importante participação
das camadas médias no funcionamento e manutenção do capitalismo291. Continuando na
mesma temática, Martín-Baró (1983e) analisa a situação da América Central de modo
articulado aos interesses do grande capital internacional. Sua denúncia da invasão bélica
ordenada por Reagan a Granada mostra o quanto a “ameaça comunista” era falaciosa e que na
verdade pretendia subjugar países mais vulneráveis economicamente.

Em uma conferência de 1983, que só seria publicado em 1987, no Boletim da


AVEPSO (volume X, Votar en El Salvador: Psicología Social del desorden político ;
MARTÍN-BARÓ, 1987k), acrescente densidade a suas análises conjunturais; debate o voto
como ação política (os fenômenos sociais relacionados à democracia de modo geral
interessam ao jesuíta). Defende o que chama de princípio epistemológico “desde quien”. E

290
Martín-Baró enfatiza essas diferenças quando articula seu debate sobre a polarização social à luta de classes.
E mais, afirma que mesmos que as descrições pudessem se corresponder formalmente, isso não significava que
ambas eram igualmente verdadeiras (ou falsas), atesta ainda que umas das duas partes pode, de fato, aproximar-
se mais da realidade que a outra; contudo, na conclusão e retomando o assunto, é visível sua busca por fazer os
dois “polos” dialogarem, eliminando “impedimentos” objetivos que impossibilitavam uma solução dialogal. Ele
retomaria criticamente essa posição nos anos que seguintes.
291
Nosso destaque, na publicação, vai para a forma com que o autor aborda a importante participação das classes
médias no funcionamento e manutenção do capitalismo. Nas palavras dele: “Son de hecho los sectores médios
los que proporcionan el porcentaje mayor de profesionales y técnicos que dan viabilidad a los regímenes sociales
así como los qu e constituyen el mercado de consumo más significativo. De ahi la convicción de que el
asentamiento social y politico de una sociedad requiere la formación de una amplia capa media que, al juntar la
satisfacción de sus necesidades básicas con una aspiración incesante al ascenso, sirva de colchón amortiguador al
malestar de los sectores proletarios y marginados”. (MARTÍN-BARÓ, 1983d, p. 517). Continuando na mesma
temática, Martín-Baró (1983e), analisa a situação da América Central de modo articulado aos interesses do
grande capital internacional. Sua denúncia a invasão bélica ordenada por Reagan a Granada, mostra o quanto a
“ameaça comunista” era falaciosa e que na verdade pretendia subjugar países mais vulneráveis economicamente.
269
para exemplificar na prática isso, cita a psicanálise que tanto poderia aparecer na vertente
reichiana (que fazia psicanálise desde os trabalhadores; ou a do argelino Franz Fanon) quanto
na de Talcott Parsons e seu sofisticado funcionalismo.

No escrito, ele se refere ainda a uma Psicologia Social da Política que precisaria se
desentranhar da ideologização (termo que aparece na página 30 desse artigo, e que será
retomado reiteradamente daqui em diante) e dos interesses dominantes. As últimas eleições
salvadorenhas (1972-1977-1982) apontavam que o exercício cívico do voto precisava ser
interpretado à luz da conjuntura política de dependência e de explorações econômicas. Vemos
os primeiros passos na direção de uma discussão mais sofisticada entre psicologia e política.

Em 1984, Martín-Baró iniciou a uma série de conferências e artigos sobre a guerra e


seus desdobramentos psicossociais. Em uma palestra sobre saúde mental (Guerra y salud
mental; MARTÍN-BARÓ, 1984a), por exemplo, abordaria relações entre violência coletiva (a
guerra) e psiquismo humano. Sua crítica é assaz precisa e direta; o conceito de saúde
mental292 que usualmente era utilizado pela psiquiatria de forma individualizante foi
duramente criticado293.

Ao trazer a guerra, “[...] una confrontación de interesses sociales que acuden a las
armas como recurso para dirimir sus diferencias” (MARTÍN-BARÓ, 1984a, p. 340) para o fio
da navalha da psicologia social (guerra esta que em pouco mais de três anos e meio ela tinha
feito mais de 50.000 vítimas fatais) sintetiza com habilidade as mediações da particularidade e
da singularidade de um conflito bélico. Neste texto, cita três características dela: a) a
violência; b) a polarização; e c) a mentira. Tendo já comentando um pouco sobre o que o
autor escreve sobre as duas primeiras, ressaltamos agora somente o que diz sobre a mentira.

Não há como dizer que estamos diante de um construccionista social ao dissertarmos


sobre alguém que teoriza sobre ela como componente de uma guerra (ergo, ele crê na
existência de uma “verdade”). Longe de “individualizá-la”, indica como os meios de

292
Nas palavras dele: “[...] la salud mental constituye una dimensión de las relaciones entre las personas y
grupos más que un estado individual, aunque esa dimensión se enraíce de manera diferente en el organismo de
cada uno de los indivíduos involucrados en essas relaciones, produciendo diversas manifestaciones (sintomas) y
estados (síndromes)” (MARTÍN-BARÓ, 1984a, p.336).
293
Temos visto o quanto Martín-Baró evita o sociologismo, e em se tratando de saúde esse erro seria grosseiro,
por que mesmo confrontando uma situação de guerra civil nem todas as pessoas manifestam os mesmos
sintomas e reagem da mesma forma aos conflitos. Em contrapartida, isso não minora a relevância da apreensão
de mediações concretas como a das classes sociais, do envolvimento no conflito e da temporalidade (efeitos a
curto, médio e longo prazo de uma guerra), por exemplo.
270
comunicação são responsáveis por desinformar e desorientar a população. Concordamos que,
em uma situação de guerra, a mentira e as forças sociomateriais que as fazem circular não
podem ser desprezadas em uma análise psicossocial294. A propaganda e seus efeitos sociais
concretos (bem como a opinião pública) são fenômenos sociais que passaram a ter destaque
em seus escritos.

No mesmo ano 1984, vemos outro exemplo disso; o militante (El terrorismo del
estado norteamericano, MARTÍN-BARÓ, 1984b) protesta contra o avanço das políticas
encabeçadas por Reagan e por sua administração em prol de uma luta “antiterrorista”.
Chamando de terrorismo o que era imposto pelos ianques à Nicarágua, comenta acerca da
existência de uma “guerra suja”, que envolvia complexa rede de aparatos que distorciam fatos
óbvios. Mentirosos e moralistas cínicos são os termos utilizados para se referir à barbaridade
dos interesses político-econômicos estadunidenses.

No início de 1985, Martín-Baró (1985a) publicou o primeiro de uma série de textos


sobre a opinião pública. De saída, notamos que muitas das referências bibliográficas desta
pesquisa foram inicialmente concebidas como pesquisas orientadas a outros propósitos. Como
veremos nos dois próximos textos, ele passaria a comentar, a partir de então, sobre a
necessidade de um “espelho social” para a realidade, com o objetivo de promover a tomada de
consciência (conscientização).

Outro ponto que merece atenção se refere aos conceitos utilizados; discorremos aqui
sobre um escrito emblemático da posição “eclética” do autor. Nas primeiras páginas
observamos a expressão “alienação coletiva” sacada de um texto de Martiza Montero, pouco
depois “consciência coletiva” e, logo à frente, “consciência comunitária”. No combate à
mentira social, “[...] que constituye la elaboración ideológica de la realidad en forma tal que
sea compatible con los intereses de la classe dominante, fijando así los limites en que se puede
mover la conciencia coletiva [...]” (MARTÍN-BARÓ, 1985a, p. 188), ele sobreleva o
importante papel dos meios de comunicação na difusão de informações sobre a realidade
salvadorenha. O país estava dominado por quatro canais televisivos pertencentes
majoritariamente a um mesmo dono.

294
Nesse texto ele confirma que o batalhão Atlacalt, que seria o responsável por sua morte, teria sido treinado
desde essa época pelos E.U.A.
271
Diante desse processo de desinformação apresenta a desideologização295, que seria
justamente um antídoto contra a ideologia dominante; mas a questão é saber se desideologizar
é o primeiro passo para a desalienação ou o contrário, ou se os dois ocorrem ao mesmo tempo.
Não encontramos nenhuma discriminação sólida desses conceitos, então, pode-se supor: a) o
autor entende que seus leitores saibam a diferença entre elas, por óbvio que lhe pareceu ou (b)
não considera que alienação e ideologia são categorias que encontram mediações e
manifestações concretas distintas. Voltaremos a esse tema nas conclusões.

Mas como desideologizar a realidade? A resposta dada se afiança na capacidade das


pesquisas feitas com/sobre a opinião pública, por exemplo. Martín-Baró (1985a) tem ciência
que havia muitas diferenças entre a credibilidade das pesquisas sobre atitudes se comparada
às de opinião pública; na prática as segundas não gozavam do prestígio acadêmico das
primeiras.

A noção de que opinião pública versa sobre uma “consciência coletiva” (ver mais
sobre isso página 191 do texto) não fica clara. Ora, se a propaganda produz o efeito de
consolidar os interesses das classes dominantes, a opinião pública seria então uma forma de
resistir, disputando os mesmos espaços de divulgação? A realidade, no entanto, é que os
meios de comunicação de massa pertencem aos ricos. De qualquer forma, é desse debate que
inferimos a pertinência social, seguindo a orientação do jesuíta, do surgimento do Instituto
Universitário de Opinião Pública (IUDOP).

Quatro coisas caracterizariam a pesquisa com opinião pública para Martín-Baró


(1985a): a) sistematicidade; b) representatividade; c) totalização; e d) dialética. Os dois
últimos itens, que elas devem ser totalizadoras (“intentar lograr una totalización de sentido”,
p. 193) e a dialética, demonstram certa oscilação, pelo fato de não explicitá-las textualmente
em nenhum momento; afinal, estamos diante de duas categorias caras às ciências sociais296.
Antes de concluir a análise do texto, leiamos essa citação:

295
Nas palavras do autor: “[...] Se trata de introducir en el ámbito de la conciencia colectiva elementos y
esquemas que permitan desmontar el discurso ideológico dominante y poner así en marcha los dinamismos de un
processo desalienador” (MARTÍN-BARÓ, p. 190),
296
Um parênteses. Definitivamente, pelo contexto, a “dialética” não pode entendida como sinônimo de diálogo,
muito menos de dialogicidade. Como o próprio jesuíta descreve no texto, propor “diálogo” entre a FMLN/FDR,
os insurgentes e a oligarquia até meados de 1984 era considerada atividade de cunho subversiva. Só após
outubro de 1984, depois do primeiro encontro oficial entre representantes dos dois lados, é que se passou a
considerá-lo como possibilidade, sendo veiculado como benéfico nos meios de comunicação. O militante não
estava retrocedendo em sua posição pró-revolução, o que ele demonstra ali foi vigor ao defender o que chama de
opinião do povo. O contraditório é que o mesmo povo chamado de alienado é o que prefere o diálogo ao invés de
272
Es claro que la realización y utilización de las encuestas de opinión pública
involucra un problema de poder: la elaboración de una versión de la realidad, la
determinación formalizadora de lo que es o no es realidad en una circunstancia y
sociedad concreta, está fundamentalmente en las manos de quienes detentan el poder
social.[grifos nossos] (MARTÍN-BARÓ, 1985a, p. 198).
Entramos aqui em uma série de problemas teóricos que efetivamente poderiam abrir
margem para questionamento de nossa posição quanto ao afastamento do autor das escolas
construcionistas. Afinal, é possível “elaborar”, por meio do poder, o que é e o que não é a
realidade? Evidente que não, não se pode confundir as muitas formas de se descrever a
realidade, ou algum fenômeno que a compõe, com a realidade em si mesma. Cada vez mais
retornamos à questão da centralidade do método para a constituição de uma sólida Psicologia
Concreta.

Nessa esteira, em La desideologización como aporte de la psicología social al


desarrollo de la democracia en Latinoamérica, Martín-Baró (1985b) marca com signos
distintivos sua proposta para a psicologia social latino-americana. Ele enfatiza a necessidade
científica de apreensão da condição estrutural de subdesenvolvimento, de dependência, de
desigualdade e de injustiça do continente, passando pela teorização, entre outras coisas: do
significado dos regimes políticos de caráter autoritário e repressivo espalhados por sua
geografia, do combate ao controle político-econômico hegemônico dos E.U.A. e, por fim,
pelo entendimento das implicações concretas do surgimento de movimentos populares de
oposição.

Apesar de curto, o escrito é teoricamente problemático. Com isso queremos dizer que
ele faz menções a grandes categorias das ciências sociais de forma que algumas delas não nos
pareceram claras. Querendo fugir de idealismos que abstraem a realidade, criticando o
materialismo e o sociologismo economicista (e o psicologismo reducionista), ele salienta a

uma saída militar para o conflito. Mas ora, alguém poderia questionar: a realidade social precisava ser
desideologizada para conscientizar o povo ou ela precisa de pesquisadores que ouçam o povo (desinformado e
alienado) quando ele opta pelo diálogo e não por uma disputa bélica? É claro que a resposta acima poderia ser
dada facilmente, lembrando que ambas, mesmo nos termos dele, não seriam auto-excludentes. Mas, há outras
que nem tanto. São inconsistências aparentes como essas que se tornam cada vez mais latentes quando ele
trabalha com categorias e matrizes teóricas com pressupostos tão divergentes. Desalienar, desalienação social,
desideologizar, desmascarar a ideologia parecem todas escoar para a tábua de salvação que seriam as pesquisas
de opinião pública “críticas”. Contraditoriamente, e ultrapassando a necessidade científica de coerência, as
publicações do IUDOP foram o trabalho de maior transcendência social feito por Martín-Baró; ou seja, é bem
provável que a visibilidade pública que ele já tinha (as cinco bombas lançadas contra a sua casa até o ano de
1985 atestam isso) seria ampliada após a criação do Instituto; tornando-o alvo ainda mais precioso para os
batalhões paramilitares da direita salvadorenha.
273
importância de “desideologizar297” o senso comum permeado pelos interesses das classes
dominantes. No entanto, sobre ideologia afirma:

Cada ordenamiento social exige la elaboración de un universo simbólico que cumpla


varias funciones críticas para su supervivencia y reproducción: a) Darle un sentido
frente a los grandes interrogantes de la existência humana; b) Justificar su valor para
todos los sectores die la población; c) Permitir su interiorización normativa en los
grupos y personas. Es claro, que me estoy refiriendo a las principales funciones que
se suelen asignar a un la ideología. Cabe añadir que, al ejercer estas funciones, la
ideología operativiza y oculta al mismo tiempo los interesses de las clases
dominantes, generando una falsa conciencia, una distorsión entre la configuración de
la realidad y su representación en la conciencia de los grupos y personas.
(MARTÍN-BARÓ, 1985b, p. 105).
Estamos diante de uma imprecisão no uso de categorias. Ideologia afinal é entendida
como expressão real ideativa dos interesses dominantes ou toda e qualquer sociedade humana
a produz como precipitado de seu modo de socialização? Parece-nos que aqui estamos na
primeira interpretação. O autor fala que desmascarar, desideologizar (já vimos em outros
textos também o desalienar) seria uma tarefa contraofensiva, o que logicamente não se daria
se a ideologia fosse vertida em uma acepção neutra. Veremos, ainda naquele ano, que ao
propor a conscientização como tarefa da psicologia (MARTÍN-BARÓ, 1985c), mais fatores
devem ser adicionados se quisermos apreender adequadamente sua proposta298.

Ainda sobre o artigo, esclareça-se que estamos diante de um pesquisador que não abre
mão de considerar a lutas de classes como materialização de interesses específicos em
determinadas circunstâncias históricas; logo, a questão da ideologia (por bem ou por mal) será
central para a compreensão de sua proposta. Sua posição política sobre a Psicologia defender
a democracia não pode ser considerada rasteiramente porque ao sustentá-la como forma de
organização sócio-política por excelência, o faz propondo um efetivo controle popular sobre
os rumos político-econômicos de suas nações, o que em nada se assemelhava ao que acontecia

297
Nas palavras do próprio autor: “desideologizar significa desenmascarar ese sentido común enajenador que
encubre los obstáculos objetivos al desarrollo de la democracia y los hace aceptables a las personas. Ahora bien,
qué hacer para desarrollar esta tarea desideologizadora en nuestras sociedades? Tres puntos nos parecen
esenciales al respecto: a) Asumir la perspectiva del pueblo; b) Profundizar el conocimiento de su realidad; y c)
Comprometerse críticamente en un proceso que de al pueblo el poder sobre su propia existencia y destino”
(MARTÍN-BARÓ, 1985b, p. 105).
298
Retomando o que escreveu em seu livro de 1982 sobre Psicologia Social, ele diz que ela: “[...] es aquella
disciplina cuyo objetivo estriba en examinar lo que de ideológico hay en el comportamiento humano, tanto de las
personas como de los grupos (Martín-Baró, 1983, págs. 1-20). Asumiendo que toda acción humana signilicativa
es un intento por articular los intereses sociales con los interesses individuales, a la psicología social le
corresponde estudiar ese momento en que lo social se hace individual y el individuo se hace social. Se trata, por
tanto, de analizar los influjos sociales, intergrupales o intcrpersonales, referidos a una historia concreta, a una
circunsiancia y situación muy específicas; y, en ese contexto, todo influjo social constituye, en mayor o menor
grado, la materialización de aquellas fuerzas e intereses de las clases que componen una determinada formación
social”. (MARTÍN-BARÓ, 1985b, p. 105).
274
na América Latina do período. Para ele, a Psicologia poderia colaborar com o
desenvolvimento democrático ao desmascarar formas assumidas pelo senso comum que
operacionalizam e justificam um sistema social explorador e opressivo299 (ver mais sobre o
tema na página 106 de Martín-Baró, 1985c).

Por fim, para ele o conhecimento da Psicologia deveria ser um espelho em que o povo
pudesse ver sua imagem refletida, pois isso contribuiria para que ele pudesse transformá-la;
acrescente-se que no escrito há uma sutil confusão entre o vocábulo dialogicamente e o
dialeticamente que, desde o início de 1970 não víamos. Como o objetivo do texto nos pareceu
ser operativizar propostas, ele sugere que psicólogos sociais façam pesquisas sobre a opinião
pública.

Um parênteses. Ainda acerca do que devem fazer os psicólogos, o artigo El Papel del
psicólogo en el contexto centroamericano (MARTÍN-BARÓ, 1985c) é um de suas mais
emblemáticas contribuições. Seja porque, e em nosso caso, é um dos poucos traduzidos para o
português, e isso pode ter feito com que entre nós fossem recorrentes citações diretas e
indiretas a ele, ou por que, de fato, ele condensa algumas proposições características da obra
como um todo. Retomaremos as vigas mestras que o orientam na última parte desta tese,
agora nos convém apenas frisar que ele é fruto de uma conferência realizada na Costa Rica,
em 4 de outubro de 1985, ou seja, feito próximo do ano de sua morte. Apesar das muitas
citações a autores que utilizam diferentes pressupostos filosóficos, ele retoma vários que
constantemente aparecem como referências basilares; especificamente aqui chamamos a
atenção para a produção de Paulo Freire e para o conceito de conscientização.

Para Martín-Baró (1985c), e agora com maior clareza teórica, a práxis da Psicologia
demanda que ela se volte aos problemas concretos da realidade que atende, à produção de
pesquisas “desde” a América-Latina e não em pesquisas feitas “para” ela. Do prisma
profissional, a Psicologia, para o autor, por longo tempo havia se dedicado a responder aos
anseios dos setores sociais privilegiados pelo capitalismo. O problema obviamente não estava
então nas intenções subjetivas dos psicólogos nem em sua simpatia política pelo partido A ou
B, mas efetivamente em sua práxis. Seu projeto consistia então em reorientar não apenas o

299
Nesse contexto, ele que retoma a presença da religiosidade como fenômeno social relevante de uma análise
psicossocial. Veremos ainda como em seus anos finais há uma retomada intermitente das temáticas do universo
religioso, dessa vez sob a forma crítica, associando-a a resistência e luta políticas.
275
quefazer do presente da profissão, mas a partir de uma revisão histórica de seu passado,
pensar, no “aqui e agora”, o que ela poderia e teria potencial para concretizar no futuro.

Mesmo com definições “minimalistas” sobre a consciência, e por mais que tenha
ampliado a definição de conscientização freiriana para indicá-la como horizonte da Psicologia
(meta excessivamente genérica que ele próprio reconhece; conferir mais disso na página 168
do texto), há uma clara orientação ao engajamento político-social que contrariava
pressupostos individualistas e a-históricos (em diversos momentos fez menção à identidade
histórica, tema que daqui para frente apareceria mais frequetemente).

Nas palavras dele, “se trata de despojar [...] sus pressupostos teóricos adaptacionistas y
sus formas de intervención desde el poder” (MARTÍN-BARÓ, 1985c, p. 175). Sem
pormenorizar o que seria esse “desde el poder” e sintetizando, a Psicologia necessitaria de
uma revisão teórica, bem como de escolher objetos de pesquisas coerentes com os anseios dos
explorados. Antes de concluirmos a análise desse texto, um contratempo surge quando mal
interpretamos fragmentos como esse:

“[...] no debe tanto centrase en el donde, sino en el desde quién; no tanto en como se
está realizando algo, cuento en beneficio de quién, y por consiguiente, no tanto en el
tipo de actividad que se practica (clinica, escolar, industrial, comunitária u outra),
cuanto en cuales son las consecuencias históricas concretas que esa actividad está
produciendo. (MARTÍN-BARÓ, 1985c, p. 175)”.
Não acreditamos que seja o caso de Martín-Baró, mas muitos desconhecedores de sua
bagagem cultural poderiam inferir dessa citação algum “ativismo ingênuo” da parte dele,
como se ele relegasse a um segundo plano a importância da teoria, uma vez que ele próprio
admite repetidas vezes que a realidade deve ter prioridade sobre ela. Insistimos: é inadequado
seu emprego do vocábulo “teoria”; não ousaríamos defendê-lo neste texto, e já comentamos
os porquês anteriormente, mas também é verdade que a crítica que apenas capta a forma de
seu texto perderia a riqueza do conjunto deles e, principalmente nesse caso, de sua práxis.

Retomando o caminho de denunciar problemas sociais, o texto El hacinamiento


residencial: ideologización y verdad de un problema real (MARTÍN-BARÓ, 1985d) estuda
um fenômeno social que seguia de perto seus interesses de pesquisa nos anos 1970; a
superlotação (hacinamiento300) residencial (que teria algo de parecido com o tema de seu
doutorado em 1979) seria agora resgatada com maior rigor conceitual. Suas conclusões

300
Nas palavras dele: “[...] aquella experiência de escassez espacial causada por la presencia de demasiadas
personas en una determinada situación”. (MARTÍN-BARÓ, 1985e, p. 33).
276
indicam que as condições sócio-históricas são fundamentais para se entender esse fenômeno,
tanto a realidade concreta não deve ser desprezada quanto a cultura especifica em que ele é
produzido301.

No artigo Conflicto social e ideología científica: De Chile a El Salvador (MARTÍN-


BARÓ, 1985e), ele condensa uma revisão crítico-teórica dos cinco anos de guerra civil em El
Salvador. Por diversas razões julgamos esse texto relevante para o conjunto da obra; a mais
importante é que nele lemos sobre sua busca por compreender desde a totalidade o que
acontecia na América Latina daquele período. Ele analisa, por exemplo, a presença em curso
de projetos sociais libertadores espalhados pelo continente. Para ele, tanto no Chile quanto em
El Salvador, os cientistas sociais estavam sendo convocados a solucionar problemas sociais
para os quais sua formação universitária não lhes havia preparado.

Ao discorrer sobre a guerra, nota que a violência perpetrada pelo Estado salvadorenho,
que havia produzido, no começo do conflito, um fenômeno social que chama de polarização
social, entre a esquerda e a direita políticas, estava desmobilizando diversos setores sociais;
que passaram a não querer mais se identificar com nenhum dos lados da luta, a despeito de
suas implicações na vida cotidiana. Para ele, a disputa bélica orbitava basicamente três
projetos políticos (o da oligarquia, o dos reformistas, eivados de divergências, e o dos
revolucionários), e isso dificultava as saídas pacíficas para os conflitos. Em todo o caso, ele é
taxativo ao declarar que a reforma era a alternativa que favorecia a classe dominante.

No auge dessa situação de indefinição político-econômica põe luz novamente sobre os


fenômenos sociais da religiosidade e da organização dos movimentos populares. Nessa
esteira, atesta o papel de protagonismo dos campesinos302 nas organizações populares contra a
guerra civil salvadorenha, daí que afirma não poder prescindir desse debate (religiosidade e as

301
Deparamo-nos no escrito com vários fatores que apontam para a “materialidade”. Desde sua preocupação
com o espaço físico das cidades, com o modo de produção que as sustentam ou mesmo com as estruturas
políticas e ideológicas e com as atividades sociais concretas que a compõe. Sem embargo, isso não o impediu de
utilizar outro termo pobre de referências teóricas explícitas, e que seria retomado em diversos outros, a
ideologização; que nos pareceu, consistir em uma forma enviesada de produzir conhecimento (nossa inferência
carece de comprovação).
302
Nas palavras do autor: “El campesinado es el gran protagonista de las organizaciones populares salvadoreños,
un hecho que sin duda constituye una importante novedad histórica.” (MARTÍN-BARÓ, 1985e, p. 324)
277
organizações populares) como alternativa aos partidos políticos “oficiais”; e isso se daria
justamente pelos aspectos histórico-culturais da América Latina303.

Invertendo possíveis acusações de que seu projeto para a Psicologia era moralista pelo
fato de ele ser um clérigo (MARTÍN-BARÓ, 1985e), indica como os cientistas sociais tinham
respondido muito mais de forma moral do que científica ao conflito salvadorenho do que os
próprios cristãos304.

O final do texto preconiza a necessidade de nova racionalidade; precisamente esse


termo, racionalidade, é o que utiliza citando Marcuse305, que já não frequentava suas
referências bibliográficas na época (contrariando, outra vez, a hipótese de “pecados de
juventude” de Oropeza, 2016). Escreve também sobre a necessidade histórica de construirmos
um horizonte ético-político que passaria por assumir um compromisso crítico com a
desideologização. Ele afirma: “Si la crítica desideologizadora nos aleja de la falsa conciencia,
el compromiso ético nos aparta del positivismo míope” (MARTÍN-BARÓ, 1985e, p. 334).

Ora se por um lado com algum esforço se entende que a tal desideologizacion é capaz
de afastar-nos de uma falsa consciência sobre os fenômenos sociais, como é que a ética
combateria o positivismo? Acreditamos que a questão ética esteja intimamente vinculada com
o combate a “neutralidade científica”, mas ela em si mesma, entendida como valor humano,
nada poderia fazer “para combater o positivismo”. Todavia, ele acrescenta: essa nova
racionalidade crítica seria capaz de proporcionar o descobrimento de novas verdades
históricas por construir. Complementando, subscreve:

La sociología del conocimiento nos ha enseñado que toda razón está situada y que el
lugar desde donde se conoce no sólo determina cómo se captan las cosas, sino
también qué cosas se captan. Por ello una nueva racionalidad reclama una nueva
incardinación de nuestro quehacer como científicos sociales, una nueva perspectiva
(MARTÍN-BARÓ, 1985e, p. 335).
Na última parte da tese, retomaremos alguns prejuízos da falta de coerência teórica,
mas aqui adiantamos que citações desse tipo, que afirmam que a sociologia do conhecimento
ensinou algo sobre uma razão sempre situada e determinada, foi a mesma que também deveria
ter ensinado a não confundir a razão com uma pesquisa científica. Em todo caso,

303
Acrescenta a isso, uma análise sobre como as organizações populares tinham sido revolucionárias no combate
pacífico por mudanças estruturais radicais (ver mais sobre na página 332 de Martín-Baró, 1985e). Nesse
contexto, traz ainda os conceitos de consciência religiosa, desalienação religiosa e a desideologização.
304
Para uma discussão mais ampla conferir a página 329 de Martín-Baró (1985e).
305
Conferir mais acerca disso na 334 de Martín-Bartín (1985e).
278
concordamos que acolher novos objetos de estudo era além de uma exigência ética expressão
de honestidade científica.

Em Igreja y revolución en El Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1985f), retomamos uma


conferência que só seria publicada em 1989 pela Associação Venezuelana de Psicologia
Social, em que o jesuíta discute o papel da Igreja católica nos conflitos salvadorenhos.
Expondo as origens históricas da teologia da libertação ele indica o porquê do cristianismo
possuir uma dupla vertente, tanto uma inclinada ao conservadorismo político quanto outra à
subversão306.

Martín-Baró (1985f) não hesita ao cravar que a Igreja Católica contribuiu


significativamente para a conscientização da população salvadorenha, para a organização
comunitária (tendo as Comunidades Eclesiais de Base por modelos) e que a fé cristã foi
doadora de sentidos humanos à vida em meio ao caos social, articulando a “tomada de
consciência” política com a mudança de diretrizes teológicas, dado que essas últimas
propunha salvação atrelada à história humana, uma libertação das condições reais de
exploração. Daí que o método alfabetizador freiriano (de inspiração cristã e marxista, para
ele) tenha sido instrumento riquíssimo. É interessante a forma como relata sua experiência
como observador do processo de organização dos camponeses ao longo da década de 1970,
passando, como já dissemos, pelos debates feitos nas próprias comunidades cristãs307.

Na última publicação que lemos de 1985, feita para o foro “Alternativas para la paz”,
de 28 setembro de 1985, intitulado Un camino hacia la paz en El Salvador (MARTÍN-BARÓ,
1985g), vemo-lo adotar posições teóricas sobre a análise conjuntural do El Salvador
ligeiramente distinta das que até esse momento tinha apresentado, e nessa direção, não as
retomaria mais. Supomos aqui que a indefinição sobre a duração da guerra possa ter feito com
que o autor mudasse o tom de suas críticas.

306
Desde a sociologia aponta como a própria história da colonização das Américas fora feita a base da cruz e da
espada, ressaltando, todavia o quanto a presença da pedagogia freiriana, nos idos de 1970, foi importante para
modificar o cenário religioso de El Salvador. Em sua revisão, esclarece que temas como a injustiça, a pobreza e a
violência são marcas das preocupações dessa vertente teológica autenticamente latino-americana, qualquer
semelhança entre sua produção na psicologia e ela não pode, portanto ser interpretada como mera coincidência.
O intragável para alguns é admitir que foi a Teologia e não a Psicologia que fez avançar o interesse por temas
importantíssimos para a teoria social no continente. Em suma, Martín-Baró não era o único interessado em
revolucionar a América Latina.
307
Apesar de interessante do prisma científico, há no texto um descuido epistemológico na discussão que faz
sobre a “consciência coletiva”; vemos Martín-Baró (1985f) trazer Émile Durkheim para auxiliá-lo junto a
indicações críticas de Karl Marx (religião como ópio) e de Max Weber, que via na religião, de acordo com o
jesuíta, elemento cultural importante para justificação da racionalidade da ordem social capitalista.
279
Sem se referir diretamente a categorias como luta de classe, a ideia central da palestra
foi instigar o diálogo (não entendido como fim em si mesmo, mas como meio) entre os
“grupos” envolvidos; atentemo-nos, todavia, que toda a teorização sobre a irreconciliação de
interesses classistas no capitalismo poderia converte-se nesse texto, sem cuidado, em uma
necessidade preeminente de uma solução dialogal e pacífica entre as partes. Toda a guerra
salvadorenha, segundo o texto, estaria estribada em: a) uma economia injustamente
estruturada (a palavra capitalismo não é mencionada); b) uma inflexibilidade institucional
(sumiu a luta de classe); c) crise político-ideológica do regime salvadorenho. Sobre o conflito
diz ainda:

Así, al examinar el conflicto salvadoreño, hay que distinguir por lo menos dos
niveles de confrontación: por un lado, la confrontación principal entre las fuerzas
gubernamentales y las fuerzas insurgentes; pero, por otro lado, la contradicción
secundaria que se da entre el proyecto político oligárquico, el proyecto reformista de
la Democracia Cristiana y el proyecto de "seguridad nacional" de los Estados
Unidos (ver Partidos, 1984). Hoy por hoy, la Democracia Cristiana se ha convertido
en el gerente del proyecto norteamericano para El Salvador; sin embargo, no parece
adecuado identificar totalmente sus respectivos proyectos para el país ni se puede
ignorar que, bajo ciertos aspectos, la Administración Reagan tiene más
coincidencias ideológicas con la perspectiva oligárquica que con la perspectiva
democristiana (MARTÍN-BARÓ, 1985g, p. 4).
Os interesses representados pela FMLN/FDR são indiretamente trabalhados pelo
autor; ainda que há tempos ele já os vinha identificando como os autênticos da maioria
salvadorenha. As definições do que nomeia “pressupostos para a paz”, são as seguintes:

a) Estabelecer uma clara distinção entre paz como ausência de guerra e a paz
como estado de concórdia social;

b) “Hace falta que todos los sectores sociales tomen conciencia de aquellos
intereses que son comunes y que se sitúan incluso más allá de la diferencia de
clases.” (MARTÍN-BARÓ, 1985g, p. 6). [grifos nossos], nem precisamos
enfatizar mais nosso ponto;

c) “El criterio fundamental [...] debe ser siempre el interés del pueblo
salvadoreño, [...], y no los intereses parciales de un partido, grupo o institución
por importantes o representativos que sean”. (MARTÍN-BARÓ, 1985g, p. 6).

d) Abandonar posturas que defendam o tudo ou nada.

e) Levar em consideração todos os envolvidos no conflito (aqui poderiam inquirir


que ele considerava a FMLN, por exemplo).

280
Ele conclui a apresentação comentando sobre uma necessária humanização da guerra
civil (que envolvia criar zonas neutras, não atacar hospitais e escolas etc.308).

4.2.5 1986: o ano da nomeação oficial da proposta para a ciência psicológica de


Martín- Baró

Este ano seria emblemático, pois tanto a preocupação do jesuíta com a noção de
opinião pública ganharia desdobramentos concretos, com a criação do Instituto Universitário
de Opinião Pública, quanto é nele que surge um dos artigos que catalisam suas ideias centrais
sobre a Psicologia intitulado Hacia una Psicología de la liberación (1986d); que diferente de
outros de seus títulos que também levaram noção de liberación no nome (Hacia una docencia
libertadora, de 1972, ou o capítulo final do Raíces Psicológicas de la guerra, Hacia una
sociedade liberadora, por exemplo) não emplacaram como agnome qualificativo por
excelência de sua compreensão dessa ciência. Antes de chegar ao núcleo deste trecho serão
destacados aspectos do método de algumas de suas publicações daquele ano que podem nos
auxiliar.

O primeiro texto que tivemos acesso de 1986 foi La ideología familiar en El Salvador
(MARTÍN-BARÓ, 1986a). Nele, o jesuíta almejou conhecer a “opinião” dos setores médios e
altos sobre o caráter conservador ou progressista de suas “atitudes” em relação à instituição
família. No resumo que antecede seu artigo, ele escreve: “opinión que permite analisar la
ideología por meio de las atitudes” (p. 291) [grifos nossos]; a confusão parece-nos patente.
Outra vez lemos sobre uma correlação positiva, para o autor, entre escolaridade e “atitude
política” progressista; seus estudos sobre machismo e sobre o papel da mulher vão nessa
mesma direção.

308
Nesse contexto, o jesuíta ainda retoma a ideia de “guerra sucia”, uma violação massiva dos direitos humanos
mais básicos da população. Tanto os atos da FMLN quanto os dos esquadrões da morte são taxados de
terroristas, ao passo que o diálogo é lembrado como importante para a despolarização e elaboração de um
necessário projeto nacional. Ao que nos parece, o autor que “despolariza” alguns pontos de sua teoria e
claramente empunha aqui bandeira branca/neutra, indicando a produção de “consenso colectivo” (MARTÍN-
BARÓ, 1985g, p. 8). O que não devemos esquecer é quem era sua audiência. Ao analisar retrospectivamente
não lemos nenhum outro texto que flertasse com essa linha argumentativa.
281
O método da coleta de opiniões é bastante parecido com o que ele vinha utilizando até
esse momento: questionários para indicação do grau de acordo ou desacordo, segundo o
modelo da escala Likert. Apesar de inquirir sobre a opinião acerca da família, ele nomeia o
“conservadorismo” ou o “progressismo” de atitudes, não opinião. Ao longo das próximas
páginas aprofundaremos mais nossas críticas a seu modus operandi, mas, ainda nesse artigo,
por exemplo, ele tende a indicar certa crise na ideologia salvadorenha daquele período
baseada na resposta verbal/escrita de 252 casais. Não questionamos a qualidade da amostra
utilizada, mas se, de fato, é possível confundir a práxis desses casais, o que eles realmente
fazem na vida cotidiana, com o que eles “responderam verbalmente” quando foram
entrevistados por estudantes de Psicologia.

A primeira pesquisa que lemos assinada pelo jesuíta, já vinculado ao IUDOP, foi El
Pueblo salvadoreño ante el dialogo309 (MARTÍN-BARÓ, 1986b). Ali seu rigor procedimental
em relação ao método estatístico se mostra cabalmente. E mais, a própria utilidade de
pesquisas desse tipo mostra seu potencial, pois servem de arma na luta para informar a
população sobre o que de fato acontece, fugindo do desserviço ofertado pelos meios de
comunicação de massa. Por outro lado, não é preciso uma pesquisa dessa magnitude para
encontrar a resposta de que o diálogo era a “melhor” solução para a maior parte população;
ainda mais se essa opção contrastava com outras “alternativas violentas”. Afinal, seis anos de
guerra intensa e que brutalizava os mais pobres, não torna muito provável que encontrássemos
a sociedade salvadorenha animada para continuar um combate mortal. Não obstante, foram
apontados como principais problemas do país, na ocasião: a) a crise econômica; b) a guerra
civil; e c) falta de emprego. À medida que o diálogo foi proposto pela maioria absoluta dos
salvadorenhos nada de “concreto” sobre o conteúdo dessa possível conversa foi debatido.

Em Socialización política: dos temas críticos (MARTÍN-BARÓ, 1986c), encontramos


um debate pertinente sobre uma categoria popularizada (e que tem relação com “processos
grupais”) entre os iniciados em Psicologia e que ele mesmo já debateu ano longo da década de
1980: a socialização.

Comparando com outras de suas publicações, ficam ainda mais evidentes as


referências marxistas de sua concepção de socialização e de ser social, pois ainda que utilize
termos diferentes, atesta ser equívoco apreender cientificamente indivíduo e sociedade como

309
A direção e a planificação do trabalho de campo foram feitos por Victor Antonio Orellana e a supervisão por
Roberto Stanley Oliva e Gladys Cristiana Rivas.
282
entidades separadas, abstratas e a-históricas. Tanto o indivíduo como a sociedade devem ser
dialeticamente entendidos como mutuamente referenciados (constituintes da existência do
outro). O que não deve ser confundido com eliminar completamente a singularidade presente
em cada “exemplar” da espécie humana (a herança genética, por exemplo). Em linhas gerais,
considera a socialização o processo por meio do qual nos tornamos pessoa na História, isso
inclui aspectos afetivos e cognitivos.

Mas o que há de especificamente político nisso? A resposta, para ele, não pode se
abster de considerar a situação histórica concreta em que esse processo ocorre (o sistema
sócio-político em questão, bem como o modo de produção econômico); isso envolve
considerar a classe social, o sexo, a identidade de gênero, a família, as instituições etc. Nas
palavras do autor, socialização política é:

“the individual construction of a reality and a personal identify that are or are nor
consistente with a particular political system. [...] in a dialectical interaction between
one’s genetic heritage and a particular society or social group, narrow down the
possibilities of what one will become.” (MARTÍN-BARÓ, 1986c, p. 75)310.

Traremos enfim o texto que atribui a Martín-Baró distinção entre os psicólogos latino-
americanos: Hacia una Psicología de la liberación (MARTÍN-BARÓ, 1986d). A publicação
é provavelmente o texto chave para a construção desta tese. Nele se encontra uma série de
elementos característicos e que sintetizam muito do que vimos até este momento: o
compromisso com as classes exploradas e a crítica às psicologias individualistas, a-históricas,
hedonistas (e de métodos duvidosos). A questão da diferença entre ciência psicológica e
práxis libertadora também é trabalhada.

Ele constata que a psicologia social latino-americana tinha se mantido até aquele
momento em uma dependência servil aos interesses das minorias exploradoras. Reconhece
que existiam poucas expressões teóricas autênticas sobre problemas da região, talvez porque
alguns dos mais conhecidos nomes dessa ciência mimetizaram métodos e planos de pesquisas
importados de regiões que possuíam desenvolvimento socioeconômico e político distinto
(rastreia o problema até a colonização, mas menciona também o neocolonismo cultural). Em
suma, mostra que grandes avanços científicos vieram de outras áreas como a sociologia,

310
Em outros termos, o estudo da socialização política enfoca o processo pelo qual as necessidades, pensamentos
e valores são formados em relação às necessidades, pensamentos e valores demandados por um sistema sócio-
político particular. Para concluir, mais uma vez fica evidente que ele tem como referência de bons trabalhos, na
maior parte das vezes, estudos empíricos que mensuravam atitudes; o problemático é não definir o que é uma
atitude convincentemente, e por que razões elas são passíveis de serem apreendidas com questionários.
283
filosofia, pedagogia e teologia da libertação; pior, endossa que conhecemos mais sobre os
latino-americanos lendo seus novelistas, Mario Vargas Llossa e Gabriel García Marquez, por
exemplo, do que seus psicólogos.

O escrito salienta o imperativo da transformação do mundo sobre o da mera


explicação dele; atesta que o que escraviza a Psicologia são principalmente: o mimetismo
intelectual, a carência de uma epistemologia adequada e o dogmatismo provinciano.

Quando insiste que quase a totalidade dos esquemas teóricos e práticos foram
importados dos E.U.A, talvez seja o caso de mergulharmos um pouco mais fundo nas
implicações práticas dessa afirmação. Do contrário, posições como a de Iñiguez (2003), de
que ele não foi suficientemente crítico (ainda que tenha sido radical), encontraria validade. É
fácil constatar que a maior parte dos seus procedimentos de pesquisa foram feitos à moda
estadunidense; isso quer dizer que em muitas oportunidades ele se valeu de questionários
estatísticos para descobrir atitudes e comportamentos dos salvadorenhos a respeito de
determinados assuntos. No que se refere à crítica de Martín-Baró (1986d), também é verdade
que esse foi um dos primeiros textos seus em que o vemos mencionando uma proposta de
pesquisa genuinamente diferente das familiares aos ianques311.

Antes de elucidar isso, consideremos alguns fatores. Lembremos que o próprio autor
reconhece a ausência de uma teoria (ela chama de epistemologia) adequada; e é aqui que a
confusão pode aparecer. Afinal, ele acusa as epistemologias e os procedimentos de pesquisa
comuns nos E.U.A de inadequadas ou afirma que o problema é a utilização delas em
realidades diferentes, e que isso conduziria ao erro?

Sua crítica mais profícua refere-se ao individualismo e ao hedonismo contido nelas


(que seria camuflado por pesquisas que fazem com que problemas sociais sejam tratados
como que “nascidos” nos indivíduos), mas as próprias pesquisas e artigos de revisões
bibliográficas dele poderiam ser utilizados como testemunhas de que nem mesmo ele fugiu
disso.

Uma rápida leitura seria suficiente para atestar que a maior parte das pesquisas que o
jesuíta cita são estadunidenses, isso só começaria a mudar visivelmente na metade da década
1980 (com isto não negamos a presença de Paulo Freire, por exemplo, em toda sua formação

311
Foi a primeira vez que lemos uma citação direta à pesquisa-ação participante de Orlando Fals Borda, por
exemplo.
284
em Psicologia). Nossa crítica não é ingênua, ele não foi mero copista, antes mostrou seu gênio
crítico e até criativo ao interpretar muitas delas, mas também é verdade que sua formação
basicamente se constitui em relação (em alguns momentos como negação) ao modelo de
psicologia debatido pelos ianques.

No momento em que ataca o positivismo que, para ele, considerava que o


conhecimento deveria se limitar aos dados positivos, contrapõe-o ao princípio da negatividade
debatido tanto por Hegel quanto por Marx; não sem razão Oropeza (2016) deduz que essa
premissa teria sido influência de Herbert Marcuse e da discussão da escola de Frankfurt 312.
Sobre sua concepção de realidade, atesta:

“Considerar que la realidad no es más que lo dado, que el campesino salvadoreño es


sin más fatalista o el negro menos inteligente, constituye una ideologización de la
realidad que termina consagrando como natural al ordem existente” (MARTÍN-
BARÓ, 1986d, p. 290).

Frases como essa, aparentemente bem intencionadas, pois denotam um combate ao


não reconhecimento da historicidade no método da Psicologia, podem deixar incólumes
alguns equívocos. Explicamo-nos: em NENHUMA realidade existente o negro, por ser negro,
será menos inteligente, necessariamente, que quaisquer outros humanos de qualquer outra cor!
Faltou ao contexto do artigo supracitado justamente reconhecer que as “medidas
pseudocientíficas” inventadas pelas psicologias dominantes criavam, por critérios
anticientíficos, essas diferenças; é provável que não foi esse o sentido que o autor quis dar à
frase, porém também procede que escrita da forma em que está, ela pode ser entendida assim.
O que nos remete novamente ao problema da falta de um método capaz de discernir entre joio
e trigo; que o autor tanto falava e dele tanto padecia.

Sua crítica ao “idealismo metodológico” (MARTÍN-BARÓ, 1986d, p. 290) passa


longe da definição clássica de idealismo; nas palavras dele: “ idealista es el esquema que
antepone el marco teórico al análise de la realidad, y que no da más pasos en la exploración de
los hechos que aquellos que le indica la formulación de sus hipótesis” (MARTÍN-BARÓ,
1986d, p. 291). São tantas as acepções e diferenças entre idealismos que fica difícil pôr no

312
Mas que a verdade seja dita, a maioria das vezes que ela (a escola alemã) aparece nos textos é em referência
ao famoso livro Personalidade Autoritária, não encontramos outras citações diretas ou mesmo inferências a
vasta produção de Theodor Adorno ou Max Horkheimer (principais expoentes da escola de Frankfurt). Logo,
dizer que ele foi influenciado por ela “como um todo” não corresponde ao que aconteceu.
285
mesmo saco, no sentido em que o autor utiliza o termo, um idealista irracionalista como
Nietzsche e um idealista racionalista como Hegel.

Aos poucos, demos pistas acerca dos problemas relativos à confusão que o autor faz
da proposta marxiana de se partir da realidade (isso não ocorre apenas em um texto). Marx
jamais admitiu que se deve abrir mão da teoria para “priorizar” o “empiricamente
constatável”; mas, justamente por estar amparado teoricamente é que ele parte da realidade, e
isso não é um jogo de palavras, os desdobramentos dessa inversão são fundamentais para
diferenciar uma fenomenologia vitalista consequente do materialismo histórico-dialético313.

Sobre os falsos dilemas da Psicologia, Martín-Baró (1986d) atesta que não há razão
para contrapor: a) uma psicologia científica a uma psicologia com alma; b) uma humanista
contra uma materialista; ou c) uma reacionária ante uma progressista. Deve-se reconhecer
que, pelo menos nas páginas desse texto, suas frases tiveram muito mais impacto retórico (que
não foi pouco; em 2018 ainda estamos discutindo seu artigo) do que efetivamente um sólido
embasamento teórico-crítico. Vejamos como ele lida como o segundo dilema, por exemplo:

En lo personal, este dilema me desconcierta, porque creo que una teoría o un modelo
psicológico serán válidos o no, tendrán o no utilidad para el trabajo práctico y, en
todo caso, acertarán más o menos, mejor o peor, como teoría y modelo psicológicos.
Pero no logro ver en que respecto Carl R. Rogers sea más humanista que Sigmund
Freud o Abraham Maslow más que Henri Wallon. Más bien creo que si Freud logra
una mejor comprensión del ser humano que Rogers, o Wallon que Maslow, sus
teorías propociarán un quehacer psicológico más adecuado, y, en consecuencia,
harán un mejor aporte para la humanización de las personas (MARTÍN-BARÓ,
1986d, p. 292).
Não estamos nesse parágrafo diante de um pragmatista que subordina a qualquer custo
o fazer da ciência aos interesses do que chama de humanização das pessoas? Em outras
palavras, “se a causa for nobre”, qualquer “santo” ajuda? Pelo que lemos até aqui, essa seria
uma alegação injusta, mas também conferem as críticas feitas a sua falta de coerência interna.
Ele, literalmente, mescla pressupostos ontológicos e sociológicos; muitas vezes vemos
citações de Durkheim, seguidas das de Marx com pinceladas de Weber.

Quando se dedica a efetivamente descrever uma psicologia da libertação, inicia o


trecho trazendo à baila a teologia da libertação. São notórias as semelhanças nas “intenções”
de ambas as áreas, e mais, no ponto de partida das duas: os pobres. Aqui a tal da “verdad

313
Para uma discussão potente sobre o tema conferir o artigo do vietnamita Trân Đúc Tháo, De la
phénoménologie à la dialectique matérialiste de la conscience (II) (II). La Nouvelle Critique. n° 86, p. 23-29,
1975.
286
practica” mais uma mais levaria vantagem sobre a “verdad teorética”; mas com Marx
aprendemos que a verdade da ciência não é produto de uma “prática que funciona” nem de
elucubrações lógico-formais, mas da práxis transformadora da realidade orientada ético-
políticamente.

Sem definições mais específicas, lemos, no artigo, sobre a desalienação pessoal e


coletiva em contraposição à alienação pessoal e à opressão social. Quanto à necessidade de
uma nova epistemologia, ele enfatiza o “desde” os povos e não o “para” os povos 314
(MARTÍN-BARÓ, 1986d, p. 297). Sobre a nova práxis que a Psicologia deveria assumir,
versa mais a respeito da necessidade de tomar partido dos explorados do que justifica
teoricamente essa posição.

Relembremos que essa conferência foi pronunciada em 1986, e ela constitui um


marco crítico na história da psicologia latino-americana. Realizar essas críticas de onde
estamos só foi possível porque muitos profissionais mantiveram vivo o legado questionador
de Martín-Baró. Para concluirmos, e sobre as tarefas históricas dessa ciência, ele aponta para:
a) a recuperação da memória histórica; b) desideologização do senso comum e da experiência
cotidiana; e c) a potencialização das virtudes populares. (MARTÍN-BARÓ, 1986d).

Data do mesmo ano, outro texto importante para compreendermos as articulações


internas entre o que propunha para seu projeto de psicologia social (e da categoria processos
grupais), que claramente assumia tarefas libertadoras. Intitulado Psicologia Social de los
grupos (MARTÍN-BARÓ, 1986f), o texto posteriormente comporia parte de seu livro
Sistema, Grupo y Poder, do ano de 1989.

A publicação basicamente propõe um estudo sobre as categorias fundamentais para


apreensão psicossocial dos grupos. A historicidade perpassa toda a crítica que ele engendra,
de Freud à perspectiva psicanalítica, acusadas de individualismo de um lado, a Kurt Lewin e à
teoria do campo, como a-histórica e presentista de outro, por exemplo. Longe de esquemas
subjetivistas é patente tanto a presença da categoria ideologia na análise que faz dos grupos
quanto a consideração da dimensão material/objetiva que necessariamente está presente nos
processos grupais.

314
Logo, o livro editado, em 2009, pela professora Raquel Lobo Guzzo com a colaboração de Fernando Lacerda
Júnior comente um lapso de linguagem ao publicarem sobre a “psicologia da libertação”, pois intitulam sua obra
de: Psicologia social para a América Latina: o resgate da psicologia da libertação. O que de fato não
desmerece em nada o bom trabalho dos dois.
287
Apontando para a falta de capacidade das teorias para explicar tanto pequenos quanto
grandes grupos, a impossibilidade de reduzi-los a características pessoais de seu membros e a
historicidade, como constituinte e mediação sem a qual se tornam indecifráveis, admite que os
grupos são “aquella estructura de vinculos y relaciones entre personas que canaliza en cada
circunstancia sus necessidades individuales y/o los intereses colectivos” (MARTÍN-BARÓ,
1986f, p. 17).

Posteriormente completa a definição escrevendo que os processos grupais são parte da


estrutura social, e que não pode ser reduzido à soma de seus membros, ou seja, a totalidade do
grupo supõe vínculos entre indivíduos que canalizam tanto necessidades individuais quanto
interesses coletivos; ele é “materialización” (MARTÍN-BARÓ, 1986f, p. 18) desses
interesses. Ao tratá-los dessa forma, amplia o significado do termo materialização fugindo de
conceituações que a entendem como a “fisicidade” das coisas.

Uma vez mais315, a tríade categorial explicativa dos grupos é retomada: identidade,
poder e atividade. Ainda que com sutis distinções, elas seguem sendo o motor explicativo do
que ele chama de teoria dialética dos grupos (não chama mais de “enfoque dialético”). Uma
diferença de outras explicações é o que nomeia de tipificação dos grupos (influência
weberiana?), ele os dispõe da seguinte forma:

a) Primários: que não podem ser entendidos fora de sua conjuntura social mais ampla e
que englobariam a satisfação de necessidades básicas de uma pessoa. Aquele em que o
poder estaria condicionado às características pessoais dos membros;

b) Funcionais: os que correspondem à divisão do trabalho no interior de um determinado


sistema social, tendo seu poder baseado na importância ou valor dado ao seu fazer
laboral em uma sociedade particular;

c) Estruturais: equivalem à divisão mais básica entre membros de uma sociedade de


acordo com interesses objetivos derivados da posse sobre as propriedades privadas e
sobre os meios de produção. Cada indivíduo pertence a uma classe independente de
sua vontade. Ele seria então o mais determinante do que cada um pode chegar a ser,
ainda que esse determinismo se atualize por meio dos grupos funcionais e primários
(conferir mais sobre a discussão em Martín-Baró, 1986f, p. 225).

315
Em Martín-Baró (1981e), ele também versa sobre isso e o faria novamente em Martín-Baró (1987e).
288
A segunda parte do livro, intitulada “La dinâmica del grupo primario”, em linhas
gerais revisa teorias psicológicas e sociológicas (com algumas referências à solidariedade
mecânica e orgânica de Durkheim) sobre a formação, a estabilização e os fenômenos grupais
relacionados ao grupo primário, que no texto ganha concreção na explicação da dimensão
eminentemente histórica da família.

Um das críticas recorrentes de Martín-Baró aos estudos da psicologia social (dos de


Kurt Lewin, passando pela tradição humanista de compreensão dos grupos de Rogers) é a
incapacidade de essas escolas apreenderem corretamente as necessárias mediações existentes
entre o que chamamos de singularidade, particularidade e universalidade. Para ele, diversos
estudos empíricos adoecem de uma precipitada generalização de seus resultados,
desconsiderando que sem uma conjuntura histórica-social específica um processo grupal é
pura abstração.

Por um lado, Martín-Baró (1986f) faz um apontamento coerente sobre


vulnerabilidades em diversas posições de psicólogos estadunidenses e europeus, mas, por
outro, “simplesmente” propõe a conscientização como forma “ideal” de trabalhar com grupos.
É evidente que esse argumento precisa de mais elaboração, cabe-nos apenas dizer que se ele
foi competente para mostrar por que não devemos entender até mesmo as decisões tomadas
por um grupo considerando apenas características individuais de seus membros (os valores,
por exemplo, sempre se remetem a esferas extra-grupais), falta maior sistematização sobre o
“como”, ou melhor, das possíveis intervenções que potencializem o que chama de libertação.

Isso não minora a importância crítica de seu estudo, pois (nos idos de 1986) seu texto
deve ser entendido como um importante avanço. Além do mais, por sua capacidade de
articulação, lemos sinais claros de uma superação teórica de muitas de suas próprias
discussões. É inegável que estamos diante de um pesquisador como rara cultura científica e
que se manteve atento às produções que mais circulavam na Psicologia de seu período316.

316
Merece atenção, também, o modo como critica escolas psicológicas que enfatizavam os afetos e os
sentimentos dos grupos como objetos de estudo. E sim, concordamos que se emoções e sentimentos forem
entendidos como representantes do que há de autêntico da singularidade, em contraposição ao aparelho cognitivo
dos indivíduos, fazer-se-ia uma cisão “burra” além do que provavelmente se incorrerá no grande risco de
produzir pílulas do tipo “autoajuda. Todavia, é preciso cautela. As emoções e os afetos, tal como trabalhadas
sistematicamente pelo Núcleo de Pesquisa Dialética Exclusão-Inclusão Social (NEXIN), coordenado pela
professora Bader Sawaia, busca expor o quanto elas são mediações concretas das atividades humanas capazes
não de “em si mesmar” os indivíduos, mas se corretamente apreendidas e apropriadas pela práxis dos psicólogos
sociais podem ser emancipadoras. A seguir, retomaremos esses pontos, mas em suma, quando as consideramos
289
O debate que começa em 1986 culmina na publicação do livro Sistema, grupo y poder,
(MARTÍN-BARÓ, 1989b). Seu texto, uma de suas contribuições mais significativas para o
debata da Psicologia no continente, seguindo o estilo revisionista-crítico, não se acovarda e
tenta emplacar um aporte legitimamente característico da psicologia social sobre uma das
discussões mais relevantes das ciências sociais: como se dão concretamente e dentro da
divisão social do trabalho no capitalismo o funcionamento, organização, perpetuação e
mudança dos processos grupais.

A parte final do trabalho, a nosso juízo, corresponde a um problema ainda sem solução
convincente. Do reconhecimento praticamente consensual entre materialistas histórico-
dialéticos de que o trabalho é atividade vital por excelência, tanto do ordenamento social
quanto da personalidade dos indivíduos, Martín-Baró (1989b), apresenta uma diferenciação
teórica dentro do que normalmente chamamos de grupo, os grupos funcionais. A palavra
funcional aqui poderia ser precipitadamente levada ao campo das discussões funcionalistas,
mas uma rápida passagem pelas páginas do texto seria suficiente para desenredarmo-nos deste
equívoco. Lembremos que o autor diferenciava grupos primários, grupos funcionais e grupos
estruturais.

Ciente de que grupos funcionais surgem no seio da divisão social do trabalho, afirma
que: a) todos eles respondem sempre às necessidades sociais de uma sociedade concreta; b)
existe relação orgânica entre os diversos grupos funcionais em cada particularidade histórica;
e c) o sentido dessas relações só se entende à luz da totalidade social.

Em linhas gerais, a difícil tarefa do capítulo é destrinchar pormenorizadamente como


se dão as mediações sociais reais entre ocupação laboral dos indivíduos singulares em relação
ao modo de produção econômico capitalista (a posição deles na luta de classes, por exemplo);
O que torna a discussão mais complexa é considerarmos que dentro dos grupos funcionais
existem diversos indivíduos que pertencem a classes sociais diferentes; na prática isso levou
muitos psicólogos despreparados teoricamente a acreditar que as classes sociais não existiam,
uma vez que determinados “grupos” estão/são compostos por indivíduos que ocupam
posições distintas em relação aos meios de produção.

capazes de dirimir as angústias individuais e/ou azeitar os conflitos macrossocial elas podem servir à produção e
à manutenção de passividade e da subordinação.
290
Para rebater o argumento de que as classes sociais não existem, Martín-Baró (1989b)
cita que as relações sociais não são definidas apenas pelo modo como se dão as interações
cooperativas ou competitivas entre indivíduos singulares, mas elas só são cientificamente
apreendidas quando se consideram os sentidos e os significados sócio-históricos dessas
relações; em última instância, a capacidade da teoria em compreender as relações macro e
microssociais (lembremo-nos das mediações categoriais: singular-particular-universal) que
permeiam a vida cotidiana.

Seguindo uma linha weberiana, Martín-Baró (1989b) tipifica os grupos funcionais em:
a) os grêmios317, que seriam aqueles formados para corresponderem a uma determinada tarefa
no interior de uma sociedade (médicos, advogados, psicólogos etc); e b) as organizações, que
são os grupos funcionais institucionalizados formalmente e que estruturaram seu modo de
agir318.

Ainda sobre os processos grupais traz à baila a questão dos “papéis sociais”; em uma
nota só, diríamos que a tese dele é de que não se pode perder de vista os nexos entre os papéis
e as classes sociais; não se pode desprezar a mediação da ideologia nessas relações. Sabendo
que a realidade precede a consciência, a execução de determinado papel sempre será valorada
por meio de referências sociais que lhe dão sentido, e é partindo da questão dos papéis sociais
que o autor chega à discussão sobre consciência de classe; afinal, como a consciência de
classe ilumina os vínculos entre grupos funcionais e os grupos estruturais?

Martín-Baró (1989b) escreve que não podemos confundir o fato de se ter consciência
de certos interesses gremiais como consciência de classe. Em alguns casos, os primeiros
podem levar à segunda, mas não há uma relação mecânica entre elas. Subscreve que:

317
Martín-Baró (1989b) faz uso de uma expressão comum em espanhol, mas não familiar aos lusófonos.
“Grêmio” segundo ele mesmo é o conceito de origem latina que já no século 16 era utilizada para aludir a uma
corporação de trabalhadores. Em português o termo seria guilda, optamos pela palavra em espanhol para evitar
pormenores irrelevantes. Ele cita inúmeras caraterísticas concretas do conteúdo a que a palavra se refere, ela não
causa duvida nesse sentido. Antevendo a pergunta que viria sobre como então diferenciar quando um grupo de
médicos formaria um grêmio (grupo funcional) ou não, ele elenca três critérios: a) estruturação interna; b)
referências intergrupais; e c) a própria tarefa do grupo. Distinto de um processo grupal primário, afirma que os
funcionais não dependem tanto do que cada indivíduo faz isoladamente, mas do que fazem em relação às
demandas de sua sociedade, seus efeitos concretos sobre ela e não tanto o que ele (processo grupal) exerce sobre
seus próprios membros; sabendo que isso inevitavelmente acontecerá.
318
O exemplo que ele mesmo dá de um hospital ajuda bastante a perceber essas diferenças. Nessa mesma
instituição trabalham juntos médicos, enfermeiros, administradores etc. De um ponto de vista mais geral, o
grêmio dos médicos é diferente daquele dos enfermeiros, mas ambos formam uma organização, no sentido de
que são empregados por uma mesma instituição.
291
el problema principal para el paso de la conciencia gremial a la conciencia de clase
estriba fundamentalmente en el carácter práxico de esta última: la conciencia de
clase no constituye un simple saber, sino un saber activo, un saber que se artivula en
la acción, consecuente con los intereses de la propria clase social (MARTÍN-BARÓ,
1989b, p. 333).
Mais do que efetivamente explicar a contribuição que o autor dá para essa área (o que
mereceria um trabalho à parte), nosso objetivo foi expor o quanto sua apropriação sobre a
teoria dos processos grupais traz contribuições significativas às ciência humanas. O fato de
estabelecermos diferenças entre o que os indivíduos reconhecem como interesses coletivos de
seu grupo não equivalerem à noção marxista de classe social, por exemplo, pode nos ajudar a
entender que nem todo grupo (grande ou pequeno), que reivindique uma bandeira “comum”,
está igualmente agindo de forma coerente aos interesses de sua classe, mesmo porque
devemos reconhecer a maior chance de um grupo funcional mais amplo ser formado por
membros de diversas classes sociais319.

4.3 Um projeto ético-político que ruma para a complexificação das


relações entre Práxis, Política e a Psicologia.

Este trecho se subdivide em duas partes que abarcam: 1º) uma síntese dos fenômenos
sociais estudados por Martín-Baró na década teoricamente mais rica de sua carreira (1980); e,
2º) sua profícua discussão sobre as relações entre a práxis, política e Psicologia, ou seja, sobre
elementos que compõem interna e externamente o horizonte de atuação de sua proposta.

319
E é nesse ponto, que julgamos que Martín-Baró pode contribuir com a discussão feita pelo já citado NEXIN,
da PUC-SP sobre o “comum”; que até onde acompanhamos, tem sido pautada principalmente pelas leituras de
Baruch Espinosa e Liev Vigotski. Nessa direção, uma releitura crítica mais profunda desse capítulo de Martín-
Baró (1989b), talvez nos ajudasse nessa tarefa. Mesmo por que a partir da página 353, ele apresenta uma rica
exposição desde a psicologia social sobre os significados e os sentidos sócio-históricos das greves trabalhistas,
por exemplo. Para autor, um dos elementos que levariam alguém a participar de uma greve seria sua “conciencia
social” (MARTÍN-BARÓ, 1989b, p. 356). Mesmo que suponhamos o entendimento do que ele pretende (que o
indivíduo esteja ciente dos interesses de seu grupo), não podemos deixar de anotar (sabendo da inexistência de
uma consciência humana que não seja sócio-historicamente formada) que teorizar sobre uma consciência
“sempre social” social é redundante. Aliás, parece-nos que está na moda ressaltar o adjetivo “social” de
categorias psicológicas que, sendo elas psicológicas, já deveriam por si mesmas supor relações sociais. Para
concluir, a tríade identidade, poder e atividade seguem sendo aplicáveis ao estudo de processos grupais primários
e funcionais.
292
4.3.1 Objetos de estudos e fenômenos sociais: uma síntese mediada pela utilização
de Martín-Baró da categoria processos grupais

Começamos as análises dos anos finais do jesuíta com uma publicação oficial do
IUDOP assinada por Martín-Baró (1987a) intitulada Así piensan los salvadorenhos urbanos
(1986-1987)320. Mesmo assumindo nossa falta de familiaridade com textos desse tipo
(levantamentos estatísticos mais rigorosos), notamos a vastidão dos temas abordados, que vão
desde a saúde (quais as doenças que mais acometem os moradores das zonas urbanas, por
exemplo) até os problemas da educação no momento (entre eles, a falta de investimento
público). A parte final do livro debate a região mais delicada do questionário, a que nos
pareceu mais difícil pelo menos, pois questiona o que salvadorenhos “diziam” sobre partidos
e candidatos políticos naquela conjuntura; fica patente que, mesmo depois dos piores anos da
guerra civil terem passado (1980-1982), a maioria ainda não se sentia segura para opinar
sobre política institucionalizada321.

Já em Martín-Baró (1987b), notamos o quanto suas leituras eram inventivas.


Parafraseando a clássica frase marxiana de que religião é ópio, ele faz uma análise de diversos
aspectos da religião na América Latina, desde a história de colonização político-econômica e
cultural, marcada por sua presença (como justificativa racionalizante da barbárie), até suas
manifestações subversivas nos idos de 1960322.

Imerso na discussão da teologia da libertação Martín-Baró (1987b), baseado em uma


conceituação weberiana, faz uma tipologia para a religião e para a religiosidade (fenômeno

320
Não precisaríamos nem dizer que não supomos que seja possível realizar um questionário para saber “o que”
ou “como” alguém pensa, contudo o intuito do título tem um forte apelo ao modo como o senso comum usa essa
expressão.
321
Um parênteses. Se a discussão do autoplágio estivesse em voga naquele período, alguém poderia acusar
Martín-Baró, mas o faria injustamente. Reconheçamos, entretanto que muitas de suas publicações são revisões,
ampliações e correções de diversos escritos e conferências pretéritas (várias delas viraram artigos, por exemplo).
A sensação de que por ventura este trecho esteja repetitivo se deu por que buscamos fidelidade ao movimento de
seu projeto, e uma que os textos versam sobre temas muitíssimo semelhantes, não tivemos muitas escolhas. Tudo
isso para dizer que em Martín-Baró (1987b), Del opio religioso a la fé libertadora, vemos fragmentos(parágrafos
inteiros) exatamente iguais aos de Martín-Baró (1985g), Igreja y revolución en El Salvador, que seriam
publicados pela AVEPSO em 1989.
322
Considerá-la uma das mais importantes mediações institucionais e culturais na formação dos latino-
americanos não deveria espantar um cientista social, destacamos, no entanto, e isso fica mais nítido ao longo do
próprio texto, o quão pouco a psicologia social vinha se dedicando a compreender um fenômeno tão ubíquo.
293
social de destaque em sua produção323). Sem entrar nos méritos teológicos ou lógicos do
cristianismo, discorre sobre a religião como instituição reprodutora da ideologia, dando aos
leitores a sensação de que nem sempre a ideologia está associada aos interesses burgueses
(nesses anos finais a mediação da categoria ideologia foi retomada com vigor). O jesuíta
ressalta como, por meio da historicidade, a “religião subversiva” apreendeu os assuntos da fé
de tal modo que fez com que ela servisse de modelo para a organização de diversos setores
marginalizados em El Salvador, nos referimo-nos às famosas Comunidades eclesiais de base
(CEB). Sobre isso, destacamos o comentário feito por Blanco (1998), que escreve que os
mesmos três traços destacados como positivos nas CEBs: historicidade da salvação,
compromisso prático e vivência comunitária, seriam os definidores do pensamento e da ação
da psicologia social de Martín-Baró324.

Na sequência de textos, (por isso o título de nosso trecho conter a palavra “síntese”),
El latino indolente: carácter ideológico del fatalismo latino-americano, (MARTÍN-BARÓ,
1987c), lança novamente luz a um recorrente fenômeno social de seu interesse: o fatalismo
(que nutria relação, por vezes, íntimas com o complexo social da religião). Blanco (1998)
afirma que o fatalismo volta e meia apareceria nos textos do militante salvadorenho, mas
muitos elementos básicos sobre essa categoria já podem ser lidos na primeira metade dos anos
1970 (em seus estudos sobre a população campesina)325.

Sobre o modo como trabalhou quais deveriam ser os interesses práticos da Psicologia
nessas questões, é curioso que mesmo afirmando diversas vezes que esta ciência deveria se
focar na ação como ideologia, faz menção em dezenas de seus estudos sobre o conceito de
atitudes326 e não de ação. Assim como em pesquisas com “opinião pública” não encontramos

323
Basicamente distingue o que seria uma religião da ordem, aliada às classes exploradas, e por isso,
retroalimentadoras de uma visão do cristianismo individualista, fatalista e adaptacionista; e a religião da
subversão, de claros traços comunitários, voltada às peculiaridades próprias de cada processo grupal e
fundamentalmente contestatórias (a mulher foi alvo de profusas reflexões da teologia da libertação, por exemplo.
Talvez resida nela a inspiração para diversos de seus escritos sobre o sexismo e o machismo, por exemplo).
324
Nas palavras de Blanco (1998, p. 274): “Y es igualmente evidente que estos tres rasgos son los que definen,
en una coherencia de pensamento y de acción envidiable, la Psicología social de Martín-Baró. Ése es
precisamente el punto de encuentro entre el humilde párpároco Zacamil y jayaque, el aguerrido Vicerrector de la
UCA, y el carismático psicólogo social internacionalmente reconocido”
325
A categoria fatalismo entendida como algo inevitável e que remete a um futuro desgraçado ou
predeterminado ao fracasso, não é uma discussão que surge especificamente na América Latina, o próprio autor
cita estudos de Erich Fromm, por exemplo. No entanto, negar a pertinência dessa discussão sobre algo tão
marcado por “enviesamentos” na cultura do continente é equívoco. Adjetivos como passivo, preguiçoso,
acomodado são de vários modos associados aos indivíduos que não são “modernos” o suficiente, que não
absorveram por completo a cultura do colonizador e, portanto permanecem atrasados.
326
Blanco (1998) chega a taxar que atitudes é um dos temas “especialmente prediletos” de Martín-Baró.
294
diferenças substanciais entre termos que aparentemente significam coisas diferentes. Se for
verdade que há certa constância no modo como aborda seus objetos de estudo (situando-os
historicamente), por outro, os mesmos autores da psicologia estadunidense que critica
(psicanalistas, frankfurtianos e comportamentalistas, por exemplo) são frequentemente
utilizados nos textos como exemplos tanto para endossar seus argumentos quanto como alvo
de críticas.

As referências (latino-americanos, estadunidenses e europeias) que menciona no texto


(MARTÍN-BARÓ, 1987c) fizeram uso de diversas teorias e procedimentos de pesquisas
distintos. Quando lemos o texto, é realmente intrigante vê-lo, por exemplo, misturar “caráter”,
“síndrome” fatalista e classes sociais no mesmo artigo. É como se os pressupostos conflitantes
de Marx, Durkheim e Weber fossem postos à margem da discussão327. O que lemos
assemelha-se a um mosaico, de fato e de direito pertinentes e, mais, relevantes, para a
Psicologia, mas sem alguns cuidados científico-filosóficos. Contraditoriamente, em vários
momentos, ele próprio alerta para o perigo da importação irreflexiva de teorias que
efetivamente são expressões intelectuais de interesses das classes dominantes. Enfim, sua
posição teórica de que é preciso partir da realidade e não da teoria (como se houvesse uma
cisão entre elas) pode ser um dos responsáveis por problemas como esses328.

327
Nas palavras dele: “El fatalismo es, por ello, una realidad social, externa y objetiva antes de convertirse en
una actitud personal, interna y subjetiva” (MARTÍN-BARÓ, 1987c, p. 96). Temos outro argumento para nos dar
razão, a nota de roda pé feita pelo organizador do livro, Blanco (1998), comentando a citação que supracitamos,
escreve: “Una afirmación en la que confluyen Durkheim y Vygotski. La primera parte (la realidad, externalidad
y objetividad) nos lleva al Durkheim del {hecho social}, mientras que la traducción posterior en una actitud
personal, interna u subjetiva nos condute a la {ley genética del desarrollo vultural} del ruso. No es, acaso, el
fatalismo una suerte de representación colectiva, en el sentido más durkheimiano del término, que sirve de
envoltura a los procesos psicológicos superiores? (sobre la nócion de representación colectiva en Vugotski ver el
capítulo 4 del libro de Alex Kozulin La Psicología de Vygotski. Madrid: Alanza, 1994). Não é que concordemos
plenamente com Amálio Blanco, mas temos que admitir que essa é uma interpretação possível dado que em
diversos momentos os autores das mais diversas escolas psicológicas e sociológicas são citados à revelia. (p. 96).
328
Por fim, e ainda sobre o fatalismo, não há dúvida de que devemos, segundo o próprio Martín-Baró (1987c),
considera-lo como manifestação nos indivíduos intrínseca e dialeticamente vinculada a determinadas condições
econômicas, políticas e culturais, sabendo que seus efeitos são manifestos tanto afetiva quanto cognitivamente
nas atividades humanas da vida cotidiana. Na cultura latino-americana ele assume função política importante; ao
não perceber a construção histórica das sociedades humanas, a ideologia mascara, naturaliza e estigmatiza a
identidade dos povos sob sua insígnia reificante. Para romper com o fatalismo o autor indica a: a) recuperação da
memória história; b) a organização popular e c) a prática de classe. Com exceção do item (a) que pode ser
tranquilamente presumido, os outros dois carecem sempre de meios reais para concretizá-los, em outras palavras,
concordamos que tanto a organização quanto a prática de classes são fundamentais, mas “como fazer isso”?
Sobre o item (b) comenta que devemos organizá-los (os explorados) em torno de seus próprios interesses,
supondo que exista uma comunidade de interesses entre eles (ver mais acerca disso na página 100 do texto
citado) quanto ao (c), atesta que devemos praticar a revolução! Como se isso fosse tão simples quanto tirar um
sapato apertado.
295
Quando nos referimos ao modo como Martín-Baró se aproxima do debate entre
Política e Psicologia, temos mostrado que a temática da religião não pode ser desconsiderada
para entendermos como se dá essa aproximação329. O texto Es machista el
salvadorenho?(MARTÍN-BARÓ, 1987d), reforça a hipótese da influência da teologia da
libertação em seus escritos, pois sabemos esta produzia muito sobre a questão das mulheres330
e do sexismo. Afora isso, a conclusão do estudo precisa ser problematizada:

[...] los datos del presente estúdio confirman la hipótesis de que la actitud machista
tiende a darse en los sectores poblacionales bajos, aquellos con menor educación.
Sin embargo, de nuestros datos nó puede concluirse en favor de la interpretación
culturalista o en favor de la interpretación histórico-dialéctica[grifos nossos]. Lo que
sí muestra este trabajo es que el machismo no es una actitud social generalizada
entre los salvadoreñoi(y, por tanto, entre "los latinos"), sino que depen de de ciertas
condiciones sociales. (MARTÍN-BARÓ, 1987d, p. 121).
Antes de tudo, nossa questão é sobre a pertinência de se fazer um questionário com
1408 pessoas (48.1% de mulheres331) dos setores médios salvadorenhos para chegar à
conclusão de que “maior a escolarização menor o machismo”. O simples fato de que uma
mulher em um país machista estudasse 13 anos ou mais já não demonstraria que ela está
imersa e/ou foi constituída por relações sociais de cunho “menos” machista do que as que não
tiveram oportunidade e nem foram incentivadas para isso?

Em resumo: nosso objetivo foi chamar atenção ao fato de que não somos contra
pesquisas empíricas que utilizem questionários, apenas apontamos que “medir” uma “atitude”
com um questionário é, no mínimo, difícil. Chegar à conclusão de que o método histórico-
dialético equivaleria ao culturalista, como faz no texto ora analisado, com procedimentos de
329
Em Religión y guerra psicológica (MARTÍN-BARÓ, 1990a), escrito provavelmente em 1989, o jesuíta
retorna à temática das implicações políticas da religiosidade. Postula que a religião precisava ser entendida como
atividade perpassada pela ideologia. O que quer dizer que sem análise concreta, a afirmação de que ela é ópio do
povo é desprezível. Passando por uma revisão de suas próprias pesquisas, e de outros autores que acompanharam
os avanços do movimento pentecostalista na América Central, estabelece relações entre as características do
Deus servido e do fiel; em outras palavras, quis verificar se o envolvimento com a religião produzia mudanças
sociais conservadores ou progressistas. A pesquisa indica que muitos dos membros das Comunidades Eclesiais
de Base passaram a discutir e se envolver mais na vida comunitária de El Salvador, por exemplo. O interessante
é a forma com que ele delineia seu objeto de estudo, trazendo à baila uma discussão tão relevante para Psicologia
na América Latina, que é a da relação entre vida cotidiana e religiosidade. Com maestria expõe como a guerra
psicológica, utilizada como complemento ideológico da guerra militarizada, apropriava-se da religião para
combater os “levantes” promovidos pelos desdobramentos concretos da teologia da libertação. O autor ainda
trabalha com a categoria atitude, aliás, no texto, encontramos os vocábulos: comportamentos, ações e atitudes, e
não vimos muitas diferenças na utilização deles, ainda assim não afirmaríamos que para ele todos são sinônimos.
330
Martín-Baró são mais de quatro textos dedicados exclusivamente a essa discussão, sem contar os que fazem
alusão indireta. O curioso é que após tantos textos e viravoltas acadêmicas traços fundamentais que usa para
defini-lo ainda são exatamente os mesmos quatro (genitalidade-virgindadade, dominação-subordinação,
"valeverguismo”-sensibilidade e guadalupismo, [MARTÍN-BARÓ, 1987d, p. 106]) que utilizou em 1972.
331
Não temos competência para entender o significa esse 0,1% ao lado do 48, mesmo ele tendo explicado que
excluiu questionários inválidos
296
pesquisa como esse, só reforçam a tese da importância de cuidar para que não empreguemos
pressupostos teóricos incompatíveis com nossos instrumentos de coleta de dados.

Um parênteses. Expomos alguns elementos sobre a conjuntura política e econômica de


El Salvador, mas à moda de síntese precária relembremos alguns dados. A guerra civil que
começou oficialmente em 1980, em três anos matou mais de 27 mil pessoas, naquele período
vimos como Martín-Baró se posicionou firmemente contra a oligarquia e contra o apoio
estadunidense aos atos de violência bélica e a todos os seus dispositivos repressivos.

No correr desses poucos anos, ficou cada vez mais difícil para os E.U.A. justificarem
esse financiamento com o argumento de que lutavam pela “liberdade”. Em 1984, as
formalidades da democracia representativa foram então uma estratégia para “legitimar” seus
desmandos. Entre 1986 e 1987, houve crescente aumento das mobilizações populares
revolucionárias, isso se deu muito em função da reorganização dos sindicatos dos
trabalhadores (podemos ter ideia disso observando os títulos de Martín-Baró no período, que
efetivamente se mantiveram atentos à realidade de seu país, por exemplo).

Entre maio e junho de 1987, uma série de atentados terroristas dos esquadrões da
morte (atribuídas ao grupo paramilitar chamado ARDE, Ação Revolucionária de Extermínio)
novamente mostrou-se preocupante (no ano anterior foram registradas 122 mortes vinculadas
a eles). E é dessa conjuntura movediça (que ocorreu a mudança das políticas ianques da
segurança nacional para as de conflitos de baixa intensidade), que Martín-Baró passaria a
discorrer sobre as dimensões psicossociais da guerra, expondo os desdobramentos e as
mediações concretas de outra categoria fundamental para a compreensão de sua obra: a
violência.

Que o projeto estadunidense visava o extermínio do movimento revolucionário para


perpetuar seu extenso domínio econômico e político não é novidade, o que o jesuíta percebe,
todavia, no texto De la guerra sucia a la guerra psicológica: el caso de El Salvador
(MARTÍN-BARÓ, 1987g), é que eles recorreram ao que ele chamou de guerra suja e de
guerra psicológica para cumprir essa tarefa332.

332
A primeira se orientava à destruição dos setores e dos indivíduos que apoiavam material ou intelectualmente,
real ou potencialmente os insurgentes, mas como não existem justificativas legalizadas para isso, recorriam aos
esquadrões da morte para realizar seus feitos. Eram três seus objetivos principais: a) desarticular as organizações
populares; b) eliminar figurar importantes dos insurgentes; e c) debilitar as bases de apoio do movimento
revolucionário. Já a guerra psicológica (que de “subjetivismos” ou idealismos, não tinha nada, pois o jesuíta
297
Martín-Baró (1987g), fez apontamentos engenhosos sobre os efeitos psicossociais de
guerra; desde sentimentos de pavor, insegurança, medo generalizado, tremores, angustias etc.,
até a perda do senso de coletividade e da capacidade de se engajar politicamente em
movimentos que militavam por condições mais justas. O artigo mais do que apenas útil como
denúncia bem construída, também mostra a capacidade da ciência psicológica colaborar com
o “desmascaramento” do que ele nomeava de mentira institucionalizada. O autor conclui com
uma convocação ética aos profissionais da Psicologia333.

No último texto lido em 1987, La violência en Centroamérica: una visión psicosocial,


Martín-Baró (1987j), mostra coragem. Muito do que acerca da violência já fora dito em outras
oportunidades foi retomado (MARTÍN-BARÓ, 1983a, por exemplo), contudo, vale lembrar
sua pertinente síntese ao articular violência, ideologia e luta de classes no capitalismo 334. Boa
parte do artigo é dedicada a explicitar a conjuntura econômica e política violenta vivida pela
América Central, principalmente El Salvador. De acordo com ele, a Psicologia radicada na
América Latina não havia construído arcabouço teórico suficiente para responder a essa
situação.

Retomando a definição de que não existe violência abstrata, atesta que só situando-a
historicamente podemos diferenciá-la qualitativamente; consequentemente, ao fazer isso
aperfeiçoaríamos o aporte da investigação psicológica. Há pouco apresentamos que além da
guerra militarizada, segundo Martín-Baró (1987g), era preciso estudar com mais profundidade
a guerra “suja”, e sobre isso acrescenta que considerar o caráter ideológico da violência

enfatiza exatamente a base material que a sustentava) pretendia ser a forma pseudodemocrática de alcançar os
mesmos fins que a guerra suja.
333
Já no texto, Guerra y trauma psicosocial del niño salvadorenho (MARTÍN-BARÓ, 1988e), lemos novamente
um debate sobre a guerra e o trauma psicossocial. A grande diferença entre esse texto e os demais é que aqui ele
opta por discutir concretamente os efeitos da guerra nas crianças. Um perspicaz complemento ao que já vinha
propondo é o de perceber que a Psicologia não deve se ocupar apenas em acudir indivíduos e/ou grupos “após” o
acontecimento traumático, mas deve também se empenhar para agir antes e durante situações sociais promotoras
de traumas; isso pode parecer óbvio, mas foi preciso que ele escrevesse sobre isso antes. E é daí, desse ponto,
que partem as diferenças entre a definição que ele dá ao conceito de trauma para a maneira como o DSM III (em
voga naquele período) o definia; em linhas gerais, trauma reclamaria apreensão de: a) seu caráter dialético, ele
não só é produzido socialmente, mas sua própria natureza se originaria nas particulares relações sociais em que o
indivíduo está inserido; b) que sua solução não está no tratamento psicologizado dos indivíduos; e c) que as
relações não só causam o trauma como os mantém reiteradamente revividos na memória dos indivíduos. Longe
de apreendê-los parcializadamente, Martín-Baró (1988e), discerne quais afetos, emoções e sentimentos estão
atrelados a uma situação traumática específica. Sua postura de situar pesquisas sócio-historicamente abre muitas
janelas para propostas inovadoras. Nesses últimos textos, cada vez mais a estatística abandona a posição de
centralidade nas pesquisas, ou seja, deixa de ser o argumento justificador da cientificidade do trabalho.
Ele reconhece que recairia em um sociologismo ingênuo caso creditasse absolutamente todos os atos violentos
ao modo como se organiza a sociedade, pois em inúmeros casos ela tem origem nas idiossincrasias individuais,
seu alerta é que mesmo elas (peculiaridades singulares) precisariam ser interpretadas à luz da conjuntura sócio-
histórica, caso contrário se produzia uma abstração psicologizante.
298
significa: “[...] Por lo menos dos cosas: (a) que expresa o canaliza unas fuerzas e intereses
sociales concretos en el marco de un conflicto estructural de clases; y (b) que tiende ocultar
esas fuerzas e intereses que la determinam.” (MARTÍN-BARÓ, 1987j, p. 164-165).

Por sua definição, vemos que a despeito de que ele utilize e faça sugestões baseadas
em propostas das psicologias estadunidenses, ele não se confunde com elas. Em resumo, sua
tese é de que a violência é muito utilizada por seu caráter instrumental; em outras palavras, é
instrumentalizada porque é eficiente; o que não significa dizer que essa constatação deveria
servir de incentivo para ações dessa estirpe.

Mesmo criticando pesquisas de tipo etológico que postulavam sobre supostas raízes
genéticas da violência, utiliza-as para reforçar que é ingenuidade imaginar que um sistema
social, por avançado que possa ser, será capaz de erradicar completamente a violência de suas
estruturas, simplesmente porque a possiblidade de agir assim sempre estará presente como
potencialidade humana335.

No penúltimo ano de vida de Martín-Baróxxv, encontramos mais acerca da categoria


violência no artigo La violencia politica y la guerra como causas del trauma psicossocial en
El Salvador (MARTÍN-BARÓ, 1988b)336. Seguindo a trilha de seus escritos sobre a guerra,
denuncia implacavelmente os estragos por ela causados. Notamos no texto um “quê” de
autonomia teórica. Desde 1987 percebemos em seus escritos um crescente uso de
autorreferências nas suas próprias pesquisas, o que pode ser indicador de que estava
consolidando um aporte próprio e original sobre o tema.

Da análise feita, fica-se com a certeza de que sua abordagem psicossocial para o que
chama de trauma, além de não ter de relação com “abordagens” usualmente adotadas pelas
psicologias clínicas dele, mostra como a apropriação teórica (histórica e dialética) desses

335
Concluímos a análise do texto com as recomendações que ele faz à Psicologia no enfrentamento desses
problemas: a) treinar pessoas no autocontrole e desenvolvimento de capacidades e hábitos que lhes permitam
canalizar simbólica ou construtivamente suas frustações; b) desenvolver, nas escolas e nas casas, consciência
crítica sobre modelos ideologizados de reprodução da violência; c) promover socialmente atitudes de cooperação
e, sobretudo, “un estilo de vida austero y solidário, consistente con los recursos objetivos de los países, que
refuerce continuamente el compartir, no el acaparar, el éxito colectivo, y no sólo el triunfo individualista”; e d)
propiciar um novo ordenamento das relações sociais, contribuindo assim para construir “un hombre nuevo en
una sociedad nueva” (MARTÍN-BARÓ, 1987j, p. 144).
336
O primeiro texto assinado pelo autor em 1988 foi o Opinión preelectoral y sentido del voto en El Salvador,
(MARTÍN-BARÓ, 1988a) essa pesquisa versava sobre a opinião pública salvadorenha a respeito da votação que
ocorreria em 20 de março 1988; pode-se ver ali o quanto o IUDOP sofria pressões e com tentativas de
deslegitimação tanto do Partido Democrata Cristão (PDC) quanto da extrema direita representada pela Aliança
Republicana Nacionalista (ARENA).
299
conceitos, das relações entre indivíduos concretos e a sociedade concreta de El Salvador,
frutificou para o avanço da ciência psicológica337.

Nossa análise seguinte dedicou-se criticar uma conferência proferida no congresso


Mujeres en El Salvador: perspectivas para la acción.(MARTÍN-BARÓ, 1988c) e que como
vimos é assunto recorrente em suas “análises concretas” dos processos grupais (Martín-Baró,
1980e, 1983a, 1983b, 1987d, por exemplo). Com a desenvoltura de quem há anos se debruça
sobre o tema, o autor demonstra notável fluidez e coerência em seus postulados. A radical
assunção da historicidade faz com que ele desnaturalize o “modelo” de família comumente
aceito como o único correto/possível, tão intimamente atrelado a padrões culturais e religiosos
servis aos interesses econômicos burgueses. Quanto à Psicologia, faz breves menções sobre o
que seriam estereótipos, consta também uma análise reiteradamente atualizada da conjuntura
político-econômica e uma exposição de possíveis “sentidos” psicossociais “sobre o papel” da
mulher na família (que poderia, ao mesmo tempo em que se fazia “porto seguro”, converter-se
em empobrecedor cárcere). Apenas resvalando no machismo, seu foco foi a questão das
mulheres e a necessária desconstrução dos lugares comuns que as aprisionam à relações de
humilhação e subserviência aos homens. Por fim, incita tanto educadores quanto as próprias
mulheres a se conscientizarem.

O último artigo analisado do ano 1988, La mujer salvadoreña y los medios de


comunicación massiva (MARTÍN-BARÓ, 1988g), vai nessa mesma direção. Uma diferença
aqui é o método, pois realiza uma análise de conteúdo de um periódico famoso em El
Salvador (La Prensa Gráfica) e de quatro emissoras comerciais de TV do país338.

337
Desde o diagnóstico de sintomas corporais (tremores, diarreias, taquicardia) ocasionados pela guerra até a
análise dos refluxos sociais das atividades dos processos grupais na manutenção da vida cotidiana foram
considerados. Indicamos esse texto como leitura obrigatória aos psicólogos latino-americanos dedicados aos
estudos das relações concretas entre violência e psiquismo humano, pois destacando sintomas psicossomáticos
provocados pela violação sexual massiva de mulheres por soldados do exército salvadorenho, por exemplo, e o
“desmedido” do uso da violência, caracteriza a guerra salvadorenha em três notas fundamentais: a) violência; b)
polarização social, que seguindo a pesquisa do próprio autor, tinha diminuído em meados de 1984, mas após
quatro anos permanecia intensa; e c) mentira institucionalizada. Para concluir, ressaltamos que suas asserções
sobre o conceito de trauma passam pelas mediações clássicas da análise psicológica: pensar (conhecimento),
sentir (afeto, emoção, sentimento) e agir (atividade), e mais, ele enfatiza a urgência por parte da Psicologia em
empreender a: despolarização, desideologização e a facilitar a desmilitarização da América-Latina.
338
Nesse mesmo bojo, das discussões sobre os papeis sociais, em Martín-Baró (1987i), vemo-lo trazer algo que
seria abordado em alguns artigos do ano seguinte, que é a questão da identidade nacional. Sobre isso, escreve:
“Hay, con todo, un objetivo todavía más fundamental y que reclama una estrecha cooperación entre
investigación y educación: se trata del rescate educacional de todos aquellos elementos constitutivos de la
identidad nacional del pueblo salvadoreño que permitan la construcción de una sociedad nueva, más humana y
justa. Sé que éste es un tema polémico y complejo pero, como psicólogo social, pienso que se trata de un
300
As análises conjunturais de Martín-Baró no ano 1989 acompanham a tensão que
culmina na ofensiva militar da FMLN, em novembro. Como foi a tônica dos últimos escritos,
veremos um impressionante número de artigos e conferências dadas por todo o continente
tanto sobre a guerra quanto sobre seus efeitos psicossociais. Praticamente todos os exemplos
utilizados para ilustrar seus argumentos foram tomados das condições objetivas de El
Salvador, seja explicando grupos ou retratando o trauma, seja debatendo as tarefas da
Psicologia ou criticando algumas de suas escolas.

***

Inauguramos as análises textuais de 1989 com uma publicação assinada por Martín-
Baró (1989a), mas produzida pelo IUDOP. Mesmo sabendo que as críticas das psicologias
críticas podem rechaçar de antemão pesquisas de opinião pública, nosso intuito agora é
mostrar, ao reconhecermos seus limites, a possibilidade de nos valermos delas como recurso
para compreensão da realidade. Ora, coisa muito diferente é tomar a resposta dada na
pesquisa como “coisa em si” ou tratá-la como indicador, tendência. Na prática isso significa
que alguém pode, por N motivos, responder uma coisa e fazer outra, ninguém dúvida disso,

problema crucial para el presente y futuro de la educación en El Salvador, en todo Latinoamérica [...]”
MARTÍN-BARÓ, 1987i, p. 96). Ele prossegue, na mesma página: Rescatar lo más valioso de la historia de
nuestros pueblos, proyectarlo educativamente a fin de construir una nueva historia, me parece la forma de
ofrecer al sistema escolar ese sentido que hoy habría perdido en nuestros países. Pero, sobre todo, me parece la
forma de contribuir a que nuestros pueblos emerjan a la historia con voz propia y de que su palabra no sea
silenciada o ignorada, sino escuchada y respetada por el resto de los pueblos. (MARTÍN-BARÓ, 1987i, p. 96).
Vê-se outra vez em ¿Trabajador alegre o trabajador explotado? (MARTÍN-BARÓ, 1989e), uma tentativa
desde, segundo ele, o ponto de vista psicossocial, discutir a identidade nacional dos salvadorenhos. Importa-nos,
para o propósito dessa tese, apenas destacar o modo como ela foi interpretada: como uma representação social
(p. 152). O procedimento da pesquisa realizada é sem dúvida mais complexo do que muitos outros que lemos até
aqui, pois além de seus tradicionais questionários, foi realizado um grupo com uma média de 7 pessoas para
ouvi-los sobre quais eram os traços mais característicos dos salvadorenhos. A nosso juízo, tamanhas são as
confusões de se propor uma pesquisa como essa, que tenta “assimilar” tantas posições conflitantes em relação a
uma proposta extensamente criticada de Psicologia, que até mesmo as próprias conclusões do autor, ainda que
bem articuladas, poderiam nos dar razão. A identidade é categoria com alto grau de complexidade, tratar a
“opinião” de determinada população como “espelho” da identidade nacional, considerando que as sociedades são
dividas em classes e desconsiderando a ideologia, poderia muito mais proporcionar uma “opinião ideologizada”
que efetivamente corresponder ao que ele havia intentado. Toda a interpretação que faz dos dados coletados
(questionários e entrevistas) é profundamente marcada por seu referencial teórico, o que muito provavelmente
fez com entregasse um resultado muitíssimo mais rico do que um mero “espelho social” da realidade. Aliás, o
artigo é um bom exemplo de como muitas pesquisas suas são muito melhores do que os “procedimento”
utilizados poderiam indicar, e isso se dá devido a sua compreensão das relações sociais no capitalismo, que
ultrapassou em muito suas condições de expô-las cientificamente.

301
mas a proposta de Martín-Baró (1989a), de histórica e sistematicamente acompanhar a
mudança no tipo e na qualidade dessas respostas, pode ser relevante, como veremos.

Nem todas as respostas coletadas nos questionários que ele utilizou possuem
credibilidade. Saber, por exemplo, aproximadamente quantos salvadorenhos têm acesso a
água potável (63.6% utilizavam poços artesanais, ou seja, faziam uso de uma fonte
permanente de infecções, uma vez que vários deles eram contaminados) ou com que
frequência utilizavam o transporte público, é absolutamente relevante, mas é completamente
diferente de supor que se sabe qual é a “atitude” de um camponês, na vida cotidiana, diante da
agressão das políticas externas estadunidenses, apenas pelo que ele é capaz de verbalizar.
Enfim, dados precisam de interpretação! E Martín-Baró não se furta a proporcioná-la aos seus
leitores. Tamanha é a competência do Instituto em predizer alguns eventos sociais (quem
venceria as eleições de 1988, por exemplo) que passa a ser estupidez desconsiderá-lo como
fonte informativa sem ao menos debatê-lo antes.

Martín-Baró (1989a), na página 3, reforça a independência ideológica do IUDOP.


Salientamos esse dado, pois até o último ano de sua vida a questão da ideologia foi
catalizadora de muitas de suas formulações, o que não quer dizer que se possa sem mais tomar
partido por uma interpretação de qual seja a acepção que utiliza sem entendermos a totalidade
de seus textos. Lemos, com Oropeza (2016, p. 160), que o próprio Martín-Baró tinha clareza
de seu trato heterodoxo do termo, o que não o exime de ter cometido equívocos. Afinal, a
desideologização como tarefa para a Psicologia se tornaria desprezível caso tomássemos a
acepção de ideologia como neutra. Caso fosse assim, ao invés de desideologizar, a proposta
deveria ser “ideologizar para o lado certo”.

A situação de El Salvador em 1989 era alarmante; segundo Martín-Baró (1989a), os


principais problemas do país eram: a guerra civil, a crise econômica e os altíssimos índices de
desemprego; sem contar as precárias condições da saúde, a elevada taxa de analfabetismo, a
violência etc. O que faz com que nossa crítica sobre as questões do método na obra de Martín-
Baró careçam de serem entendidas em uma dobre vertente.

Apontar que ele expunha pesquisas cientificamente vulneráveis à crítica materialista


histórico-dialética, não equivale a dizer que elas foram irrelevantes para fazer avançar os
interesses dos explorados. Perguntar-nos-iam então se não é melhor alguém fazer pesquisas
criticáveis, mas eticamente bem orientadas, do que pesquisas “cientificamente coerentes” que

302
a desprezassem. Nossa resposta passa por termos aprendido com Martín-Baró que o conflito
entre ética e ciência é falso dilema. Mas, não perceber que existem diferenças entre elas (ética
e ciência) é imperícia. Para alguém agir eticamente ele não precisa ser cientista, mas para ser
“cientista de fato” é preciso agir eticamente (corresponder na práxis aos interesses da
genericidade humana, o que não se resume a uma perspectiva subjetivista sobre o que é ética);
em síntese, elas não são auto-excludentes, mas não são idênticas.

O segundo texto que lemos de 1989 foi uma conferência apresentada pelo autor em 17
de janeiro nos E.U.A (Berkeley, California)339, intitulada Consecuencias psicológicas de la
represión y el terrorismo. Seguindo de perto a trilha argumentativa que a essa altura já lhe era
característica, Martín-Baró (1989c) apresenta aos seus ouvintes na ocasião as atrocidades
cometidas em nove anos de guerra. Nosso destaque foi para o modo como não poupa os
“revolucionários” do qualificativo “terroristas”, ainda que reconheça que as atividades
violentas deles nem se comparavam (em proporção) com as perpetradas pelo Estado
salvadorenho. Citando Max Weber, admite que a guerra havia sido burocratizada; ele retoma
temática no texto La institucionalización de la guerra340 (MARTÍN-BARÓ,1989g).

É desnecessário enfatizar a pertinência teórica do artigo, pois um fenômeno tão


concreto e brutal quanto a guerra, na práxis, não era um mero “discurso violento”, pelo menos
não foi um discurso para os mais de 70 mil mortos; sua materialidade, reiteremos, não permite
certos desvios academicistas. No escrito lemos ainda sobre como ela era “ideologicamente”
sustentada por um “discurso oficial” que não só impossibilitava a compreensão de certos
fenômenos, mas chegava mesmo a popularizar o que ele chamou de “mentira oficial341”.

Em Martín-Baró (1989h), lemos um texto que foi escrito para o XV Congresso


Internacional da Associação de Estudos Latino-americanos, mas que tragicamente não foi
apresentado pelo próprio autor. O combativo artigo atesta a pertinência de estudos sobre a

339
O material provavelmente foi escrito em 1988, mas há incerteza.
340
A prévia desse artigo foi apresentada no XXII Congreso Interamericano de Psicología, celebrado en Buenos
Aires, entre 25 a 30 de junio de 1989. No texto ele procura sob diferentes aspectos apreender concretamente
como a guerra civil passou a fazer do cotidiano de El Salvador; e para isso fez uma discussão sobre sua
institucionalização (utilizando Berger & Luckmann como referências sobre o conceito de instituição e de certa
forma Durkheim, no que tange aos modos como nos relacionamos com elas).
341
Suas proposições sobre a polarização nos processos grupais lhe foram úteis para apreender como se
perpetuavam e circulavam noções de que todos os guerrilheiros da FMLN eram pessoas macabras, bárbaras, e o
pior de tudo, comunistas. Ele conclui comentado uma pesquisa feita com crianças de setores altos e baixos de El
Salvador; mesmo sabendo que ela não foi realizada com uma amostra representativa, indica o que parece óbvio
de antemão, desprezando todo o aparato estatístico ali utilizado: a guerra havia se tornado parte do cotidiano
salvadorenho, havia se institucionalizado.
303
opinião pública isentos dos interesses dos meios de comunicação de massas que
tradicionalmente em El Salvador estavam orientados pelos interesses das minorias
exploradoras e pela agenda política dos E.U.A.

O texto extirpa toda a dúvida a respeito da transcendência das fronteiras acadêmica do


IUDOP; um exemplo disso é que quando Ronald Reagan, com uma pesquisa do Instituto
Gallup, afirmava que 90% dos latino-americanos apoiavam a presença dos E.U.A na
América-Central. O instituto vinculado a U.C.A desmentiu-o no ano seguinte, mostrando
justamente uma grande rejeição por parte dos salvadorenhos (só 20,4% apoiava aos ianques
ao passo que 61,0% se opunham a ela).

Concluiremos esse subtrecho desses apontamentos de Martín-Baró sobre fenômenos


sociais relevantes para a compreensão da sociedade salvadorenha com uma de suas melhores
sínteses sobre a categoria processos grupais. Se o livro Raíces Psicosociales de la Guerra, de
1981, é o nosso preferido, dentre os artigos, nossa escolha é Los grupos con historia: un
modelo psicossocial (MARTÍN-BARÓ, 1987e), que serve como texto base em disciplinas de
psicologia social como de inspiração para produção de pesquisas sobre o tema. Sem mais
delongas, Martín-Baró (1987e), analisa movimentos sindicalistas salvadorenhos e para isso
revisa muitos de seus apontamentos ao longo dos anos, desde o já citado livro de 1981 até os
mais recentes de 1984 e de 1986.

Como o próprio título denota, ele propõe uma teoria para a apreensão dos processos
grupais (chama de modelo psicossocial). Coisa que estranhamente, no artigo El reto popular a
la Psicología Social en América Latina (MARTÍN-BARÓ, 1987f), ele afirmaria que não faz
sentido para a Psicologia, pois volta ao seu “chavão” de que a realidade deve ter prioridade
sobre a teoria e não o contrário; convenhamos que se seguirmos à risca a proposta do Los
grupos com história... (que é prosseguir ampliando e corrigindo criticamente sua teoria desde
os interesses das classes exploradas) não será a realidade que terá primazia em relação à
teoria, mas justamente a relação dialética entre elas.

A verdade é que não há nada de absolutamente novo no texto. Ele se destaca, porém
pela competência e capacidade de síntese crítica sobre perspectivas psicológicas
individualistas, frouxas teoricamente e a-históricas. Ocorre, todavia, que outra vez ele recorre
a frases de efeito como: “Sin negar lo que de válido hay en ambos tipos de teorias
[mencionando a proposta de Freud e a teoria de Kurt Lewin]”. Ora, se por um lado

304
concordamos que existam pontos relevantes nas teorias acima citadas, não ajuda muito em um
texto teórico, como este, não apontar o que há de válido nelas; uma vez que ele destaca pontos
negativos no artigo. Sobre o tema central da publicação, os grupos, escreve:

A la luz de estas condiciones, definimos un grupo humano como aquella estructura


de vínculos y relaciones entre personas que canaliza en cada circunstancia sus
necesidades individuales y lo los intereses colectivos. Tres son, por tanto, los
elementos esenciales de cualquier grupo: (a) su carácter estructural, es decir, esa
realidad unitaria de vínculos y relaciones entre personas que surge precisamente en
su mutua referencia, aunque esa referencia no esté necesariamente atada a ningún
indivíduo en cuanto tal; (b) su carácter instrumental respecto a los intereses y
necesidades humanas, lo que les remite a unas circunstancias concretas; hay grupos
porque el agruparse es condición esencial para satisfacer las necesidades de quienes
los integran y (c) los grupos pueden canalizar tanto las necesidades personales como
los interesses colectivos y, por lo general, hay una articulación entre unas y otros; de
este modo, todo grupo tiene siempre una dimensión de realidad referida a sus
membros y una dimensión más estructural referida a la sociedad en que se produce.
(MARTÍN-BARÓ, 1987e, p.13).
Ele lembra também as três dimensões dialeticamente articuladas que já havia
mencionado: identidade, poder e atividade. Não obstante, mostra o como e o quanto uma
pesquisa-ação-participante pode ser útil para apreendermos determinados processos grupais.
A maior prova disso é o modo como o autor situa historicamente os sindicatos na conjuntura
econômica e política de El Salvador e da América Latina.

Fugindo do que comumente fazia, escreve que entrevistou e participou de reuniões


com os sindicalistas; em outras palavras, fez parte do processo grupal estudado para realizar a
pesquisa, note-se que apesar de também ter contado com seu característico uso de
instrumentais da estatística, estes ficaram em segundo plano.

4.3.2 Caracterízação do projeto ético polítco de Martín-Baró: relações entre


práxis revolucionária, política e Psicologia.

De um momento apoteótico, com seu artigo sobre processos grupais, Los grupos con
historia: un modelo psicossocial (MARTÍN-BARÓ, 1987e), nossa análise caminha para seus
momentos de maior tensão em relação aos aspectos teórico-científicos do projeto ético-
político do autor. Abriremos essa seção com a análise do artigo El reto popular de Psicología
en América Latina (MARTÍN-BARÓ, 1987f), fruto de uma conferência dada no XXI
Congresso Interamericano de Psicologia, que exigiu que adiantássemos alguns apontamentos

305
de nossas conclusões, pois nele o jesuíta expõe com clareza algumas vigas mestras do modo
como compreende a Psicologia e suas tarefas históricas342.

Ainda na primeira página e discorrendo sobre as dificuldades encontradas por


estudantes de Psicologia que realizam trabalhos empíricos, reporta que uma pergunta
frequente é a que pede indicações de “marcos teóricos” que orientem os estudos, que ajudem
a operacionalizar problemas de pesquisa. Para o autor, isso refletiria certa dose de alienação,
que estaria tanto no estudante quanto nos profissionais da Psicologia. Em outras palavras,
voltamos mais uma vez a nossas críticas ao fato de Martín-Baró (1987f) não perceber que ele
próprio, não priorizava apenas o que era empiricamente constatável da realidade (sem uma
teoria). Nas palavras dele: “[...] La metodología en que hemos sido formados, de corte
típicamente idealista, nos lleva de la teoría a la realidad, de los modelos a los problemas, y no
viceversa” (MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 304). Ele prossegue:

Las teorías y modelos, originalmente elaborados para responder a unos problemas y


desde unos intereses, arrastran sus condicionamientos históricos al tratar de
aplicarlos a otros problemas en circunstancias distintas. La comprensión de nuestra
realidad queda así mediatizada a lo que esquemas diseñados en otros mundos
puedan captar, sin caer quizá en la cuenta que pretender comprender el malestar del
trabajador salvadoreño con el modelo surgido de los estudios hechos en Hawthorne
puede ser equivalente a intentar cubrir nuestros {fríos} tropicales con el abrigo de
pieles diseñado para el invierno de Chicago. Vale la pena añadir que el error
principal no hay que buscarlo en el abrigo de pieles, es decir, en los modelos
originales que con frecuencia respondieron las exigencias de la realidad en que
surgieron, sino en quienes los aplicamos acríticamente, ajenos a la especificidad que
la historia de los pueblos impones a cada situación particular [grifos nossos].
(MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 304).
Até o momento reiteramos quão problemático é acreditar ser possível decifrar a
realidade antes/sem mediações teóricas, pois, na melhor das hipóteses, estamos diante de um
pesquisador ingênuo. Não reconhecer que SEMPRE e NECESSARIAMENTE fazemos uso
de conceitos (mediados pelas palavras, emoções, afetos, razão etc.) para apreender a realidade
e posteriormente comunicá-la a alguém, é não compreender praticamente nada dos estudos de
Vigotski (1934/2009); não que estejamos cobrando isso dele. Conquanto, na citação acima,
notamos que o erro pode ser ainda mais profundo. Ao reler a citação e, mais ainda, as
premissas formuladas pelo jesuíta sobre as psicologias estadunidenses, vemos certas raízes
das críticas de Iñiguez (2003), quando afirma que estamos diante de um autor radical, mas não
crítico.

342
No mesmo congresso encontramos um texto intitulado Sólo Diós salva: sentido de la conversión religisosa
(MARTÍN-BARÓ, 1987k) que se configura praticamente como uma prévia de outro artigo que seria publicado
em 1989 chamado Religion as an Intrument of Psychological Warfare. (MARTÍN-BARÓ, 1990a)
306
Voltando ao texto, observamos que o erro não estava, para o jesuíta, naquelas
pesquisas em si mesmas, mas na aplicação delas em outras realidades históricas. Seria
deslealdade com Martín-Baró dizer que seus trabalhos se assemelham, sem mais nem menos,
aos de psicólogos ianques famosos; logo, adiantemos que se o apontamento de Iñiguez (2003)
acerta ao se referir à ausência de uma postura crítica em relação a alguns procedimentos de
pesquisas “importados”, ou seja, que ele porventura não tenha reconhecido alguns limites das
pesquisas com questionários estatísticos, por exemplo, (aplicar questionários sobre atitudes
“desde” as classes exploradas não os faz mais cientificamente corretos que aplicá-los desde o
interesses das classes dominantes se a estatística é tomada como fim em si mesma), não há
como igualar suas pequisas aos dos estadunidenses.

O equívoco é empregar o instrumento de pesquisa “X” quando o objeto de estudo


teoricamente delimitado demanda outros procedimentos necessariamente. Voltando à Iñiguez
(2003), ele atirou no que viu e acertou no que não viu343, o problema não é que um
questionário se proponha a mensurar, por amostragem, os votos de uma população no
candidato político A ou B, mas em acreditar que uma resposta verbal a itens pré-definidos
sejam capazes de apreender a complexidade dos fatores que constituem uma atividade
humana complexa em relação a algum fenômeno da vida cotidiana.

Martín-Baró (1987f) equivoca-se ao aceitar de antemão “la posibilitad abstracta de


cualquier aporte psicológico”(p. 304) contanto que eles respondam aos anseios das maiorias
populares. Não é possível conciliar pressupostos ontológicos, é preciso “invertê-los”
dialeticamente quando for preciso; caso contrário, estamos diante de um ecletismo que não se
reconhece como tal.

Sabendo disso, não queremos afirmar que Martín-Baró não mostre sensibilidade ao
voltar corretamente seus estudos para os problemas concretos dos latino-americanos (o
desemprego e a mediação sindicalista, na esfera do trabalho, por exemplo). Corroboramos sua
constatação da falta pesquisas sobre implicações concretas sobre o desemprego estrutural nas
sociedades capitalistas da América Latina, que dirá o quão relevante social e cientificamente
elas seriam se enfrentassem os difíceis obstáculos de teorizar sobre a mobilização e
organização das lutas populares. (O que não faz sentido é acender vela para qualquer teórico
para cumprir essa tarefa). Estamos diante de um problema nada novo na ciência psicológica: o

343
O comentário que o catedrático de Barcelona faz a Martín-Baró é de segunda mão; em seu artigo (IÑIGUÉZ,
2003) menciona a leitura feita por Pacheco & Jimenez (1990) do jesuíta.
307
do método. O texto continua com citações que vão da psicanálise ao marxismo. Mas, a certa
altura, piora:

No parece haber actualmente mucha duda entre la mayoría de los científicos sociales
sobre el carácter histórico de la realidad social, lo que significa por lo menos dos
cosas: a) que la realidad es en buena medida definida por quien tiene el poder social,
y b) que esa definición subjetiva o clasista de la realidad es un elemento importante
en la consiguiente configuración de la realidad objetiva misma (Berger y Luckmann,
1968). Es importante aplicar este principío a la Psicología para examinar con ojos
críticos tanto aquellos aspectos de la existencia que en cada caso se definem como
problemas de estudio cuanto la manera como se definem. [grifos nossos].
(MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 304).
Mesmo sem condições de esmiuçar especificamente a proposta de Berger &
Luckmann (1968/1973) no livro citado, não é possível admitir, desde o método do
materialismo histórico-dialético, que a realidade seja definida pelos poderosos, ou, no
mínimo, é preciso elucidar algumas coisas.

A realidade não é definida/criada por quem quer que seja arbitrariamente. Lukács
(1986/2013) mostra que a sociedade é polo dialético do ser social visto em sua singularidade
e, nesse sentido, é produção humana intrinsecamente dependente da natureza. Sem embargo,
dado o modo de produção em que vivemos (capitalismo), a classe exploradora, por dominar
os meios de produção e reprodução da vida, impõe para cada sociedade particular, de modo
particular, interesses específicos como se eles fossem convenientes para todas as classes
sociais. Esse exemplo serve para lançar luz sobre a complexidade de apreender apenas a
“intenção subentendida” de um autor, sem considerar teórica e criticamente suas proposições.
Não temos nenhuma dúvida de que a práxis de Martín-Baró esteve pautada em um profundo
senso ético e revolucionário, uma coisa (erro teórico, de coerência interna) não
necessariamente, e em todos os casos, determina necessariamente uma práxis revolucionária;
o caso dele, nesse texto, é exemplo disso. Afinal, muitos morreram pela causa da
emancipação humana e nem por isso fizeram ciência.

Se de meados da década de 1980 em diante cremos que a proposta crítica do autor para
a Psicologia de fato inovava, sua convicção ética de que devemos partir dos interesses dos
explorados era incomum entre psicólogos e rigorosamente correta; em nossos dias, é preciso,
partindo de seu “desde os explorados”, seguir avançando, o que implica superar todo ativismo
eticamente bem orientado com táticas e estratégias cientificamente (aqui nos referimos ao
método) sólidas.

308
Dessa esteira, e para nossos colegas dos Encontros Internacionais de Psicologia da
Libertação que defendem que a ciência é uma artimanha burguesa encobridora de toda a sorte
de desvios e opressões, recomendamos enfaticamente a leitura do texto que estamos
debatendo nesse momento. Martín-Baró (1987f) não só a acolhe (e a objetividade científica)
como é contra o que, muito provavelmente, poderíamos dizer com Löwy (2002), de uma
defesa do excepcionalismo indo-americano. Como se tivéssemos que rejeitar teoricos
estrangeiros (europeus ou estadunidenses, na maior parte dos casos) “por el simples hecho de
ser foráneos” (p. 313). Ainda sobre a necessidade de uma elaboração teórica adequada para a
Psicologia (os desafios seriam: a redefinição dos problemas de pesquisa e a questão da
objetividade científica), Martín-Baró (1987f, p. 314), afirma:

“El problema, en mi opinión, es más de orden epistemológico que conceptual, más


metodológico que teórico. Lo que faltan no son tanto los conceptos en sí de la
Psicología cuanto el momento dialéctico de su vinculación; lo que termina por
distorsionar la visión de la realidade no es tanto la teoria que se aplica cuanto el
objeto al que se pretende aplicarla. Por ello mi propuesta estriba en una inversión
marxiana del processo: que no sean los conceptos los que convoquen a la realidad,
sino la realidad la que busque a los conceptos; que no sean esos problemas los que
reclamem y, por así decirlo, elijan su própria teorización. Se trata, en otras palavras,
de cambiar nuestro tradicional idealismo metodológico en un realismo crítico.”
(MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 304).
Para os puderam rotular de precipitadas nossas críticas, aqui está nossa prova dos
nove. Conhecer o método é a condição primeira que possibilita ao humano o início de uma
pesquisa científica (desde a ontologia). É preciso ter passado pelo processo de
desenvolvimento e formação de conceitos para que o psiquismo humano, mediado pela
palavra e pelas emoções na consciência, possa se dedicar a uma atividade tão complexa
quanto a científica.

Quando o psicólogo-jesuíta diz que os objetos devem “reclamar sus teorías”, ele não
se dá conta que o próprio objeto por ele delimitado como interessante, legítimo, ético etc. já é
fruto de uma série de distinções científicas, julgamentos de valor e conceituais, sobre o que
deve ou não ser objeto de estudo; logo, todo o processo é fruto consciente ou automatizado de
uma atividade complexa do pesquisador. O que ele pretendeu fazer NADA tem de inversão
marxiana, pois Marx não partiu de Hegel sem antes “inverter-lhe” os pressupostos; aliás,
Marx só é Marx, no sentido de grande teórico, justamente por ter feito isso.

Alguém poderia contra-argumentar em defesa do jesuíta citando suas próprias


palavras, no texto: “mi convicción es que el realismo histórico aplicado al trabajo de la
Psicología social en Latinoamerica exige el replanteamiento de algunos de los modelos y

309
conceptos disponibles, y la elaboración de nuevos modelos.” (MARTÍN-BARÓ, 1987f, p.
315). E, de fato, faria isso com razão; contudo, e pela análise do conjunto do escrito,
afirmamos que só quando se estabelecem com clareza os pressupostos teórico-filosóficos é
que se pode efetivamente realizar uma crítica imanente de uma obra.

O que Martín-Baró (1987f) escreve sobre a objetividade científica soou tão confuso
que apenas diremos que ele mesmo reconhece que partindo de onde ele partia a tarefa não
seria nada fácil (pode-se ler mais sobre isso na página 317 do texto referido). Para concluir,
aponta a libertação (da explotación económica, de la miséria social y de la opresión política,
p. 315) dos povos como horizonte de atuação, nas palavras dele:

La aceptación del reto popular debe llevar a la Psicología social latinoamericana a


asumir un nuevo horizonte para su quehacer, a plantearse unos nuevos objetivos y a
establecer un programa de tareas y formas concretas de acción. El horizonte de una
actividad constituye el marco último en el que adquiere sentido aquel trasfondo
frente al cual se dibujan los contornos de lo que se hace o se deja de hacer. El
horizonte no es algo extrínseco al quehacer; por el contraio, constituye su
determinismo más profundo, aquella totalidad última que define el sentido de cada
actividad parcial (MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 318).
Os objetivos que se apresentam à práxis do psicólogo seriam: a) “el replateamiento de
todo su bagaje teórico” (MARTÍN-BARÓ, 1987f, p. 319) e b) fortalecimento das opções
populares. Já as tarefas libertadoras se consolidam em: a) estudo sistemático das formas de
consciência popular; b) resgate e potencialização das virtudes populares; e c) análise das
organizações populares como instrumento de libertação histórica.

O artigo Procesos psiquicos y poder344, Martín-Baró (1987h) toca outros pontos


teóricos centrais de suas formulações para a Psicologia, ao passo que apresenta três bons
exemplos concretos que auxiliam a compreensão do que pretende.

Ao começar conceituando a “guerra psicológica” mostra como seus efeitos são


passíveis de estudos pela Psicologia, nada tendo de abstratos, idealistas ou puros
subjetivismos. É justamente dessas formas de guerra que pretendeu apresentar suas
contribuições à Psicologia política. Sabendo da ambiguidade da expressão, ele escreve:

Ahora bien, el término psicología política resulta ambiguo y se presta a confusiones.


Por psicología política cabe entender, cuanto menos, dos sentidos muy diferentes: a)
la psicología de la política, es decir, el análisis y la comprensión psicológica de los
comportamientos y procesos políticos, y b) la política de la psicologia o la

344
Existe uma versão recentemente publicada em português (2014) deste texto sob a responsabilidade de
tradução de Fernando Lacerda Jr. Por ser um excelente material para uso em sala de aula recomendamos a versão
online e em português. O texto pode ser encontrado na Revista de psicologia política. vol.14 no. 31. São
Paulo dez. 2014.
310
psicología en cuanto política, es decir en cuanto también la psicología representa
unos determinados intereses sociales y, por lo tanto, sirve como instrumento de
poder social. (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p. 206).
Dito isto, seu trabalho enfoca o item (a) de sua própria distinção, a psicologia da
política. Ele mesmo lembra que é preciso construir uma Psicologia ciente dos
condicionamentos reais do modo de produção econômica de cada sociedade; portanto nunca
neutra. Sabendo da necessária interdisciplinaridade (faz referências à economia, sociologia,
direito e história, por exemplo) defende a existência de uma contribuição específica da
Psicologia a esse campo de pesquisa (a política). Sobre a complexidade da questão, defende
que:

En primer lugar, lo psíquico sí puede ser un elemento importante en la


determinación de algunos acontecimientos políticos y, por lo tanto, la psicología
tiene un aporte que hacer al análisis político. En segundo lugar, la psicología no
puede pretender convertirse en la hermenéutica de la política o dar razón de todo el
ámbito de la política, entre otras razones porque hay muchos acontecimientos
políticos cuyo carácter no es influído por la mediación de los actores; el aporte
específico de la psicología debe reducirse al examen del comportamiento político (el
comportamiento en cuanto mediación de la política), es decir, a la política en cuanto
es actuada por personas y grupos (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p. 210).
O que pode gerar confusão para os leitores desatentos, e esse foi o caso de Pereira
(2013), é que sua definição de “comportamento político” não é ortodoxa, nas palavras dele:

Conviene subrayar de paso que la unidad comportamental sobre la que estamos


reflexionando no es una simple "respuesta" en el sentido técnico del término (E-
R), una conducta aislada tal como la postulada por el conductismo, sino más bien
un conjunto de comportamientos, a menudo complejo, una actividad o serie de
actividades que tienen una unidad de sentido personal y/o social. (MARTÍN-
BARÓ, 1987h, p. 214).
Ele prossegue:

[...] la especificidad política de un comportamento [deve ser entendida] en su


relación de sentido con las fuerzas y el orden existente en una determinada
formación social. En la medida en que una actividad promueva los intereses de un
determinado grupo social y que afecte o influya en el equilibrio de fuerzas sociales y
en el orden social tal como se encuentran en un determinado momento, esa actividad
tiene un carácter político. Para este enfoque, una actividad será tanto o más política
cuanto más influya o condicione el orden establecido o los procesos que se dan entre
las fuerzas sociales existentes. (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p. 214).
Ele é partidário, e nós também, de que não são nem os indivíduos isoladamente (ele
chama de atores no texto) nem seus atos em si que determinam essencialmente o “político”
das atividades humanas, mas as relações deles com a totalidade própria da sociedade da qual
são parte. Aliás, esse é um excelente escrito para os que não entendem, ou melhor, estão
influenciados pelas distorções pós-modernas do significado teórico da categoria totalidade.
Mas, afinal, como ele define a psicologia política?

311
[como o] estudio de los procesos psíquicos mediante los cuales las personas y
grupos conforman, luchan y ejercen el poder necesario para satisfacer
determinados intereses sociales en una formación social. Esta definición contiene
tres elementos esenciales: 1) los intereses sociales de una formación social; 2) su
mediación en procesos psíquicos, y 3) la conformación, lucha y ejercicio
comportamental del poder (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p. 215-216).
Em linhas gerais, atividades políticas seriam aquelas que desempenham papel
importante na confrontação social dos interesses de classe e dos grupais. Apreendê-las é,
portanto, expor concretamente as mediações por meio das quais elas manifestam esses
interesses sociais. No texto ele ainda resgata a questão da ideologia (e o faz citando Louis
Althusser, que diz que os indivíduos e os processos grupais experimentam a vida na ideologia
e por meio dela, não passivamente, mas como instâncias ativas). Não estamos certos se
Althusser concordaria com tamanha relevância dada ao papel dos humanos nessa leitura, em
todo caso, a acepção do jesuíta está correta.

A psicologia política seria, então, uma “aplicación” (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p.221)


da definição da psicologia social entendida como a que estuda a ação como ideologia.
Examinaria o que de ideológico existe no comportamento político. Sabendo do risco de
redundâncias e confusões, Martín-Baró (1987h, p. 221) escreve:

La delimitación de lo que pertenece a la psicología política respecto al resto de la


psicología social se establecerá por el carácter de los comportamientos frente al
sistema social, es decir, que se tomarán como objeto del análisis psicopolítico sólo
aquellos comportamientos que tengan un impacto significativo en la estructura o
funcionamiento del orden social establecido (aquellos comportamentos que hemos
definido como políticos).

Ele continua:

El carácter fundamental del comportamiento en cuanto político estriba en su


finalidad objetiva de avanzar unos intereses en el interior de un sistema social para
lo cual se sirve del poder. Se habla de finalidad objetiva del comportamiento político
para indicar su independencia de la consciência subjetiva de los actores; en otras
palabras, el carácter político de um comportamiento no depende de que sea
pretendido conscientemente por quien lo realiza o de que su finalidad sea
adecuadamente reflejada por la conciencia del actor (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p.
222).
O terço final do artigo é dedicado a aprofundar a estreita relação entre poder e política.
Lembremos que se toda atividade política implica necessariamente a utilização do poder não
podemos fazer com que a definição objetiva dos nexos entre eles fique demasiadamente
ampla, pois perderíamos a dimensão científica desses nexos. Muito da discussão feita no texto
resulta de sínteses de anos anteriores, nas palavras dele:

312
El poder no es una cosa que se posea, como se posee una casa o, incluso, corno se
tienen ("posee") de unas cualidades humanas. En este sentido, es importante
distinguirlo de los recursos que, en una determinada circunstancia y para
determinados actividad y objetivo, proporcionan poder. [...] El poder desde una
perspectiva psicosocial constituye una característica que surge en las relaciones
sociales, tanto las que se dan entre individuos como las que se dan entre grupos [...]
El poder no es por lo tanto algo extrínseco a las relaciones, sino que el carácter
mismo de las relaciones humanas se define en buena medida por el poder que en
ellas actúa. De este modo, tanto las relaciones como los actores relacionados se
constituyen sobre la base del ejercicio del poder social. (MARTÍN-BARÓ, 1987h, p.
224).
Encontramos mais detalhes sobre sua compreensão da Psicologia política no artigo El
metodo en Psicología Politica (MARTÍN-BARÓ, 1989d) que por sua vez, antecede alguns
dos apontamentos que veremos com uma profundidade maior em uma conferência de 1989
(Retos y perspectivas en Psicología latinoamericana, MARTÍN-BARÓ, 1989f). O pequeno
texto condensa apontamentos importantes sobre o que durante os últimos anos de sua vida
tornaram-se preocupação constante: as relações entre método, procedimentos de pesquisa e
objetos de estudo. Trabalharemos esses três pontos adiante, mas convém alertar que aqui ele
já discriminava como problemas deste campo de estudo: a) as questões teóricas, b) as
metodológicas, e c) as práticas.

Ele expõe a íntima relação desses três “problemas”, tendo já se mostrado partidário de
uma definição do comportamento político a partir da apreensão de seu sentido; ou seja, dentro
de relações sociais concretas (sociedade, classes sociais, modo de produção etc.). Queremos,
no entanto, ressaltar o que diz sobre os pressupostos filosófico-científicos do neopositivismo,
pois denota o que aparentemente poderia ser uma réplica à nossa crítica sobre sua incoerência
interna, nas palavras dele:

[...] Se puede y se debe criticar el empleo mecanicista y abusivo que se hace de los
tests, y hasta se puede y se debe rechazar muchos de los tests más comúnmente
empleados, que traducen serios prejuicios culturales y aun de clase. Sin embargo, no
puede descartarse el test como un método de investigación y de práctica profesional
renunciando así a una fuente de conocimiento cuya utilidad ha sido verificada en
múltiples circunstancias y con diversos objetivos. No está probado que la utilización
de los tests signifique automaticamente la supeditación a los presupuestos
positivistas y menos todavía la subordinación a las necessidades del poder
sociopolítico establecido, aunque haya que admitir que con demasiada frecuencia,
éste es el caso. [...] Si se acepta que los métodos empleados por la psicología no
están necesariamente vinculados a los presupuestos positivistas, es necesario revisar
su utilización concreta para discernir que a los métodos añade la filosofía
neopositivista adherencias que bien pudieran estar afectando esencialmente su
naturaleza. (MARTÍN-BARÓ, 1989d, p. 42).
Estamos mais uma vez diante das complicações das polissemias dos conceitos de:
método, instrumentos de pesquisa e procedimentos de pesquisa. Vamos por partes, não
entendemos que, na citação acima, os testes seriam “métodos de investigación” eles são
313
recursos técnicos para se coletar dados para uma pesquisa, eles não são a pesquisa toda em si
mesma. Creditar a inexistência de uma “prova empírica” sobre a correlação entre um
determinado teste psicológico e um pressuposto específico só denota quão complexa é a falta
de clareza entre o que é método, o que é pressuposto e o que são premissas.

Queremos com isso destacar que a confusão de termos em uma discussão científico-
filosófica dessa complexidade pode abrir caminhos para inúmeros equívocos, mesmo se
desconsiderarmos a “forma” como critério de verdade exclusivo do texto; e esse é o nosso
caso. Dificilmente alguém que tenha nos acompanhado até aqui duvidaria que o que ele
chama de “métodos de investigación”, já não são função de premissas inevitáveis de certos
pressupostos ontológico-filosóficos. É evidente que a própria decisão de um pesquisador em
se valer de um teste indica que ele julga possível que o teste seja capaz de apreender algo que
ele se propõe a estudar. Não faz sentido utilizá-lo para saber se alguém é neurótico ou não,
caso se assuma fenomenólogo ou skinneriano; poderíamos dar outros exemplos, mas cremos
que esse basta.

O ponto em questão aqui é que o autor parte de um pressuposto filosófico não


explicitado, ao que parece nem para ele mesmo, pois quando disserta sobre a liberdade na
escolha dos instrumentos de uma pesquisa, já afirma certos pressupostos sobre a condição
humana (somos seres históricos), que por si só já deveria impossibilitar uma suposta “livre
escolha” de instrumentos de pesquisa (nos casos dos que perdem essa dimensão). Essa não é
uma discussão marginal, e é exatamente por isso que pretendemos discutir em termos
ontológicos nossos pressupostos. Martín-Baró (1989d) prossegue e complexifica ainda mais o
debate, pois concordando com o que dissemos agora, e sendo incoerente com o que ele
mesmo diz na página anterior, escreve:

Los métodos y, sobre todo, los instrumentos, no son más que eso métodos e
instrumentos, y lo que se haga con ellos dependerá en buena medida del marco
teórico en el que se utilicen, así como del carácter de su misma utilización. Por
supuesto, esto no quiere decir que cualquier metodología o cualquier instrumental
pueda sin más utilizarse desde cualquier teoría o para cualquier problema; significa,
simplemente, que el método debe ser definido desde el planteamiento del problema
y no viceversa (Wright 1959/1977) (MARTÍN-BARÓ, 1989d, p. 43).
Já vimos que é recorrente esse tipo de lapso por parte de Martín-Baró. Ele não repara
que a definição de seus “problemas sociais” (sua pertinência, seus vínculos com as lutas da
classe explorada etc.) já são frutos de um referencial teórico. Logo, a “impressão” que ele tem
de partir da realidade não se justifica racionalmente, pois é nítida sua opção por certos
pressupostos axiológicos e ontológicos para chamar determinando fenômeno social de
314
“problema”. Ele mesmo dirá quais são eles, discorrendo acerca do que deve ser o objeto da
psicologia política, na página 47, pois ela:

[...] pretende una reconstrucción del objeto de la psicología, devolviendo el ser


humano a su sociedad y a su historia, es decir, recuperando su existencia personal
social. Ello requiere ante todo considerar al ser humano en su exterioridad e
interioridad. El ser humano es una realidad objetiva en el ámbito de una sociedad y,
por tanto, objeto y sujeto en las circunstancias producto y productor de unas
condiciones materiales, interlocutor y referente de unas relaciones sociales. Pero el
ser humano es también una realidad subjetiva, generador de una perspectiva y de
una actividad y, por tanto, productor de una historia (personal y social) y portador de
una vivencia. Ver así al ser humano requiere devolverlo a su circunstancia social y a
su historia, que no son simples variables que se sumen a una realidad personal, sino
constitutivos esenciales de esa misma realidad. [grifo nosso]. (MARTÍN-BARÓ,
1989d, p. 47).
Martín-Baró (1989d) mostra sua versatilidade intelectual, e a dificuldade que é criticar
o conjunto de sua obra, quando no subitem seguinte de seu texto, comentando sobre a
necessária superação da dualidade sujeito-objeto, constrói parágrafos como:

Tampoco debe creerse que se supera la dualidad sujeto-objeto cuando el


investigador abdica de su saber. Ocurre aquí algo semejante a cuando el educador
pretende convertirse en simple «facilitador», cambio contra el que Paulo Freiré ha
protestado veemente y que nada tiene que ver son su pedagogía «del» oprimido. El
investigador debe traer a la relación investigativa su conocimiento y su experiencia
técnica de manera semejante a como el educador debe aportar su saber teórico y
práxico a la relación pedagógica. El eje de una participación que permita superar la
dualidade sujeto-objeto no estriba en que el investigador abandone su saber o en que
acepte ingenuamente cualquier iniciativa del investigado, sino en que la
investigación se realice mediante un proceso de diálogo continuo entre investigador
e investigado, considerado como interlocutor válido desde el principio hasta el final.
(MARTÍN-BARÓ, 1989d, p. 49).
A citação é irretocável. Aliás, ela deveria ser continuamente relida e difundida.
Quantos de nós não ouvimos que devemos “abrir” mão de nosso saber para fazer “pesquisa-
ação participante” legítima? Isso é tanto psicológica (é impossível prescindir de toda a história
do nosso desenvolvimento cognitivo-afetivo ante de alguém, ou pior, por “vontade” própria)
quanto cientificamente ineficiente345.

Finalizamos a análise desse texto com uma sequência de citações diretas que,
descontextualizas, poderiam ferir profundamente toda a argumentação que lhes apresentamos
até aqui:

Con frecuencia se confunde metodología científica con instrumental técnico, y se


considera de manera más o menos implícita que una buena investigación psicológica
debe servirse de «tests» y cuestionarios, a ser posible debidamente tipificados
(«estandarizados»). No es raro que el estudiante de psicología plantee su tesis de

345Para nós, entre outras coisas, isso denota um sério problema na questão da formação dos cientistas sociais,
que precisaria ser debatida com mais calma, e esse não é o lugar para isso.
315
grado a partir de un cuestionario que ha visto y le ha gustado o de un test que le
parece útil. Así el punto de arranque (y las más de las veces, también de llegada) es
el instrumento, que cobra un valor final y casi absoluto: la teorización y, lo que es
más importante, la realidade enfocada quedan supeditadas a la óptica del test o
cuestionario escogido. [Depois de um parágrafo, ele mesmo escreve] El método,
entonces, y con mayor razón aún el instrumental estará necesariamente determinado
por el carácter del problema, y viceversa (MARTÍN-BARÓ, 1989d, p. 49).
Primeiro esse ponto argumentativo não é novo! Segundo e, não menos importante,
afinal o jesuíta tem ou não clareza sobre as diferenças entre o que é método científico e o que
são instrumentais teóricos? Da metade em diante da citação eliminamos qualquer dúvida:
tanto método quanto instrumentais técnicos são mutuamente determinados pelo problema,
certo? Errado! O engodo é acreditar que é o “problema de pesquisa” quem determina a
relação de reciprocidade interna entre método e instrumental técnico. Martín-Baró (1989d)
não reconhece ali que a própria DEFINIÇÃO do problema é DETERMINADA pelos
pressupostos teórico-filosóficos e pela orientação ética do pesquisador; nossa insistência em
debater as relações entre historicidade e método não poderia encontrar melhor justificativa do
que a de proporcionar concreticidade à nossa crítica. Podemos concordar com a postura dele
em abrir o leque de possibilidade de instrumentais técnicos ao pesquisador da Psicologia346,
conquanto que não mistifiquemos a relação vital entre fundamentos filosóficos e as questões
de método347.

O texto analisado a seguir, é fruto de uma conferência, e se intitula Psicología del


trabajo en América Latina. Vários apontamentos que ele fez no texto de 1986, Hacia uma
psicología de la Liberación, podem ser relidos neste trabalho. Contudo, o que chama atenção
de saída é a quantidade de pesquisadores latino-americanos que são citados ao longo da
riquíssima exposição sobre as condições concretas do trabalho (emprego) no continente.

Ao longo das páginas, e a partir das discussões que já se vinha construindo sobre
Psicologia Política, analisa tanto as origens dos estereótipos sobre os latino-americanos

346
Nas palavras dele: [...] el carácter científico de una investigación o de un trabajo no está vinculado a la
utilización de ningún instrumento em particular. Pero ello mismo hace que se pueda echar mano con toda
libertad de cualquier instrumento disponible, siempre y cuando no extrañe por su propia naturaleza una visión
reduccionista del problema estudiado (MARTÍN-BARÓ, 1989d, p. 49).
347
Ele reitera sua posição sobre o “critério de verdade” da psicologia, reconhecendo que aí residia um dos
problemas cruciais de qualquer filosofia da ciência. No fundo comentamos da discussão feita sobre o que é a
realidade e como a apreendemos. O ponto positivo da sucinta argumentação é que ele não trata a realidade como
o “dado” positivamente mensurável, observável, palpável etc. que além de perder completamente a apreensão da
historicidade dos fenômenos sociais, incompreende os aspectos necessariamente negativos da dialética imanente
ao movimento contraditório da própria realidade. O detalhe é que a própria ideia que ele defende de que a
verdade não estaria no “presente”, mas no que ela “deveria ser” pode facilmente incorrer em idealismos utópicos
caso não se exponha os meios concretos para que esse vir-a-ser se concretize na história humana.
316
(preguiçosos, vagabundos etc.), relacionando-os tanto a uma divisão social trabalho
discriminadora e marginalizadora, quanto ao desemprego e à dinâmica da exploração
capitalista348. Sobre isso, é louvável o modo como cuida de situar a divisão social trabalho na
América-Latina, não reproduzindo esquemas supostamente marxistas que dividiam
mecanicamente tudo em uma disputa “ou vai ou racha” da relação burguesia e proletariado
(transplantados acriticamente do período histórico de Marx e Engels para as condições
concretas do desenvolvimento econômico latino-americano).

Até esse momento, e principalmente nos últimos anos, podemos ver em seus textos a
preocupação em teorizar sobre a realidade dos camponeses, distinguindo conceitualmente
estratificação social, classe social e estratos ocupacionais (mediaçãos concreta dos processos
grupais). Retomando posição parecida com a de sua juventude sobre a ideologia, como
alimentadora de uma falsa consciência (MARTÍN-BARÓ, 1988, p. 123), ele aproxima a
Psicologia do trabalho da Psicologia Política, e com isso ele pretende:

[...] superar las deficiencias de los enfoques predominantes, que tienden a aislar los
procesos psíquicos de los contextos sociopolíticos concretos en los que se producen
y a los que se artivulan. En otras palabraas, la psicología política pretende devolver
al análisis psicologico la concreción histórica de la que le priva un universalismo
científico mal entendido. Esto es importante en el caso do trabajo, dada la íntima
conexión existente entre la división social del trabajo y el ordenamiento político
(MARTÍN-BARÓ, 1988d, p. 127).

Ao achegar-se ao seu objeto de estudo, desde os interesses dos trabalhadores


explorados e considerando o modo de produção injusto que se reproduz por meio da
exploração do trabalho, ele esboça um versátil conceito de saúde mental relacionado ao
trabalho (mostrando propriedade ao discorrer sobre a literatura da Psicologia, das que nomeia
“dominantes” até as mais “críticas”). Diríamos que esse é outro diferencial dele, pois mesmo

348
O jesuíta apresenta com clareza sua posição sobre o conflito que cinde a sociedade capitalista e não hesita ao
apontar as classes e a luta de classes como mediações concretas para entendermos o significado e o sentido do
trabalho humano; fugindo dos esquemas clássicos da psicologia do trabalho que por um lado individualizavam o
problema por um lado (fazendo a culpa da falta de uma ocupação remunerada, por exemplo, recair
exclusivamente nos ombros dos próprios indivíduos) ou por outro, e mesmo que considerando as relações
sociais, desarticulavam as esferas institucionais e/ou micro-grupais da totalidade da sociedade (MARTÍN-
BARÓ, 1988d).
317
com recorrentes críticas às “vertendes hegemônicas”, ele não deixa de se atualizar sobre suas
produções nos países onde o capitalismo estava mais bárbaro/avançado349.

Na conferência realizada no XIII Congresso Colombiano de Psicologia, Martín-Baró


(1988f) mostra um modus operandi cada vez mais idiossincrático. Intitulado Hacia una
psicología política latinoamericana, o texto possibilita especularmos sobre como suas
viagens por congressos internacionais podem ter possibilitado maior articulação entre seus
trabalhos e o de diversos psicólogos latino-americanos. Talvez por isso, por compreender
mais amplamente a conjuntura, precocemente ele tenha percebido avanços e limites da ainda
incipiente psicologia política latino-americana. Isso fica claro na resumida, mas bastante
convincente análise que realiza de três áreas psicologia: a) a escolar; b) a organizacional
(empresarial); e c) a clínica. Sem poupar críticas a nenhuma delas, no que diz respeito às
teorias que sustentam algumas dessas práticas, traz à luz que mesmo dentro de áreas
dominadas pelo individualismo e pelo a-historicismo é possível contemplar tímidos avanços.

A questão da “neutralidade” científica (da suposta objetividade existente na


neutralidade) cada vez mais migra de uma discussão marginal e passa a ocupar centralidade
na defesa do modo como propõe que a Psicologia seja praticada. A dificuldade reconhecida
seria a de em cada caso concreto distinguir quais seriam os legítimos interesses das maiorias
exploradas pelo capitalismo. Questões do tipo “ou tudo muda ou nada” eram inúteis e só
podiam ser feitas abstramente, pois a realidade latino-americana estava amplamente fundada
em contradições político-econômicas que tornavam a práxis emancipadora muito complexa.

A sugestão dada por ele é que a Psicologia não só se aperceba dos desdobramentos
políticos de sua práxis (tanto a vertente reacionária ou a progressista produzem efeitos
políticos concretos), mas também da falta de arcabouço teórico-crítico suficientemente
sistematizado sobre como se dão os nexos entre ela e a escolha de determinados objetos de
estudo, ou ainda, os da situação da luta de classes no continente e os avanços monopolistas do
capitalismo mundial.

A complexidade da posição de Martín-Baró (1988f) elucida que não estamos diante de


um pesquisador aventureiro, mas ante alguém que dedicou a vida à apreensão da situação da
América Latina (diga de passagem, por uma profunda identificação com o continente). Nessas

349
Nós já não poderíamos dizer o mesmo de nossa experiência nas disciplinas do doutorado, que ficaram, com
raríssimas exceções, presas a críticas de partes da chamada crise das ciências sociais iniciado em 1960, mas isso
é assunto para outra prosa.
318
últimas conferências, por exemplo, lemos constantemente ele utilizar o pronome “nós”, se
referindo aos latino-americanos.

Ainda sobre a delicada relação entre militância política como critério para a atividade
científica e técnica (MARTÍN-BARÓ, 1988f, p. 93), ele concorda que valores e convicções
éticas devem guiar o fazer da ciência, mas não é ingênuo e percebe o quanto, em muitos
casos, isso descamba para uma militância mecanicista e pobre do ponto de vista científico.

É nesse ponto que o próprio autor dispõe de uma capacidade autorreflexiva admirável.
Percebendo que não deu conta de solucionar esse problema em seus últimos textos, e ciente
de suas limitações, não se deixa paralisar pelas dificuldades da tarefa e, mais, prossegue
combativamente em busca de aperfeiçoar suas posições teóricas. Discorrendo sobre as
dificuldades da Psicologia Política atesta:

[...] la mayoría [dessas psicologias] deja mucho que desear, oscilando entre la
especulación poco elaborada y la presentación acrítica de los modelos en boga; en lo
empírico, se trata por lo general de investigaciones poco originales, que utilizan de
manera más bien mecánica el instrumental técnico desarrollado por la psicologia
social norteamericana; finalmente, es en lo práctico donde se encuentran algunos
trabajos de excelente factura, de innegable originalidad y sentido crítico (MARTÍN-
BARÓ, 1988f, p. 101).
Retomando apontamentos sobre problemas da psicologia política latino-americana
(poderíamos estender para a Psicologia geral) ele atesta:

a) Uma teoria insipiente: não existia, segundo o autor, nenhum esquema convincente,
bem elaborado lógica e historicamente que articulasse relações macro e
microssociais e ajudasse o quefazer político concreto desde uma opção ética
explícita.

b) Falta de um método de apreensão da realidade mais completo: esse item


particularmente nos chama atenção devido às críticas construídas até aqui. Temos
por certo que ele sabia o significado das palavras pressuposto e pesquisa, e nesse
texto, ele demonstra como, para ele, era possível abandonar o pressuposto e
“salvar” o instrumental utilizado pelo neopositivismo, por exemplo. Nas palavras
dele:

“Mi propria experiencia me lleva a reconocer también, que no se halogrado hasa


ahora una integración coherente entre el instrumental utilizado por el
neopositivismo, innegablemente útil y que, como ya se ha indicado, no tiene por qué
vincularse a sus presupuestos, y los principios epistemológicos en que se funda la

319
investigación-acción, lo que crea problemas adicionales sobre la validez de los
productos logrados.” (MARTÍN-BARÓ, 1988f, p. 104).

Estamos lidando com um autor que reconhece avanços da chamada pesquisa ação-
participante, mas que vê poucas investigações cientificamente relevantes
mediadas por ela; ele escreve “[...] con frecuencia, constituye un ideal [pesquisa
ação-participante] poco viable.” (MARTÍN-BARÓ, 1988f p.104).

c) Uma aplicação prática insegura: as dificuldades em equacionar adequadamente o


compromisso ético-profissional com a atividade política concreta.

No que diz respeito aos aspectos positivos da crítica que realiza sobre a psicologia
política, não hesita ao defender que o ponto de partida deve ser a realidade latino-americana,
atravessada naquele momento por três dilemas fundamentais: a) ditaduras ou democracias; b)
dependência ou autonomia regional; e c) a alienação ou identidade histórica.

Se por um lado insistimos que há carência de definição ontológica da categoria


realidade em Martín-Baró, pois mesmo sendo crítico declarado do positivismo (Kenneteh
Gergen, Lupicinio Iñiguez e Thomas Ibánez também o são, por exemplo) algumas de suas
posições podem levá-lo a um realismo ingênuo; por outro lado, quando expõe concretamente
quais os problemas sociais latino-americanos (como os que acabamos comentar), mostra que
não a compreende de modo displicente, idealista ou que permanece na aparência dos
fenômenos.

Essa foi uma das grandes dificuldades desta tese: realizar uma crítica “criteriosa”
quanto ao rigor no uso das categorias e da coerência entre pressupostos teórico-filosóficos,
sem perder de vista o concreto, ou ainda, a práxis política e a profissional (revolucionária) de
Martín-Baró, que ultrapassava necessariamente a forma e o conteúdo dos escritos que
analisamos. Por fim, e ainda sobre o texto, ele reforça o debate sobre a necessidade de a
Psicologia compreender a alienação (para ele, perda do controle pessoal em relação a algum
aspecto do funcionamento psicológico) e a desalienação (recuperação da consciência pessoal
e social).

Na conferência dada na universidade de Guadalajara, no México, intitulada Retos y


perspectivas de la psicología latino-americana (MARTÍN-BARÓ, 1989f), percebe-se que
estamos lendo algo escrito por alguém que domina tanto nos detalhes quanto no conjunto os

320
elementos centrais dessa área científica. E é ali que podemos encontrar outra (a segunda, nos
textos que lemos) menção explicita a uma psicologia da libertação.

Munido de sua experiência e sem citar muitas referências, condensa a história da


Psicologia ao desenvolvimento das sociedades humanas, chegando à conclusão de que ela
surge para satisfação intelectual das necessidades superiores surgidas nesse processo
histórico. Seu complemento crítico, todavia é que na maior parte das vezes a Psicologia tinha
se dedicado a responder aos interesses das minorias dominantes do modo de produção
econômico e político de nossa história recente.

A falta de engajamento nos processos sociais revolucionários não deveria, segundo


ele, ser creditada apenas à falta de “vontade” dos psicólogos, mas seria preciso compreendê-la
em relação à própria sociedade em que se constituiu.

Para Martín-Baró (1989f), repensar o papel da Psicologia passava por responder a três
perguntas: a) uma epistemológica, b) uma conceitual e c) outra da práxis. A primeira questão
envolveria o critério de verdade empregado por essa ciência para validar socialmente sua
produção. Ele lembra a essencial historicidade do ser humano que, diferente das produções
das ciências duras, careceria, antes de ser generalizada cientificamente, encarnar-se em uma
circunstância histórica concreta; esse é um alerta principalmente aos que se intitulam da
“psicologia da libertação”, e que já abandonaram a ciência que, como vimos, em NENHUM
momento foi deixada pelo autor; pelo contrário, na página 74 do texto analisado, vemos sua
veemência ao enfatizar os aspectos científicos de sua proposta.

Sobre a segunda questão (a conceitual), novamente abordamos um dos aspectos mais


problemáticos de sua obra. Ele diz que o problema das teorias e conceitos não é tanto o que
eles “veêm”, mas aquilo que eles não veêm sobre a realidade (resgatando o debate da
positividade e da negatividade do conhecimento).

O que fica claro, não obstante, é que ele se apropria de modo muito singular dessa
questão. A negatividade do conhecimento assume para ele um caráter de “dever”. As
pesquisas devem não só apreender a realidade como ela é, mas como ela poderia ser, o que a
priori não está de todo errado, mas não contempla a profundidade do debate sobre a
negatividade no materialismo histórico-dialético; em linhas gerais, ele não entende a
negatividade como mediação do próprio processo de apreensão da realidade. Sem embargo,

321
ele utiliza uma expressão que denúncia seu modo de compreendê-la (a realidade), ainda que
não saibamos exatamente seu significado: “lógica realista” (MARTÍN-BARÓ, 1989f, p. 74).

O que o jesuíta atesta sobre a relevância social da Psicologia é deveras perspicaz:


TODAS as suas escolas são socialmente relevantes, possuiem desdobramentos sociais
concretos, mas nem todas servem à causa dos trabalhadores. Logo, e, em um exemplo
simplório, existir um critério de seleção nos programas de mestrados e doutorados pedindo
aos candidatos para explicitarem a relevância social de sua pesquisa deveria vir com a
ressalva do “relevante para qual classe social”. Nem os mais céticos acreditariam que a
Psicologia como instituição científica não está presente na vida cotidiana, é só lermos revistas
semanais, vermos como as crianças são tratadas nas escolas e os trabalhadores nas empresas
para vislumbrarmos sua ostensiva presença.

Infelizmente temos que discordar de Martín-Baró (1989f), quando ele assume que a
Psicologia superou seu “complexo de inferioridade” frente às ciências naturais. Muitos em
nosso meio sequer entenderam as diferenças elementares entre elas, e ainda insistem em fazer
da primeira uma cópia da segunda. Ele próprio lembra, e concordamos com isso, que o
conflito entre ciência e compromisso (substituiríamos apenas por ética) é falso. Fazer ciência
implica objetivamente assumir alguns valores em detrimento de outros, mas quais valores? Os
éticos, entendidos como os que se alinham aos interesses do gênero humano visto em sua
totalidade e considerando seu próprio desenvolvimento histórico particular. Outro problema
que envolve a Psicologia como ciência é o da universalidade. Nas palavras dele:

Cómo llegar a formular principios y leyes, que es lo proprio de una ciencia, cuando
el objeto de la psicología es el ser humano? La pregunta no es fácil y, desde luego,
no estoy seguro de que mi respuesta puede ser satisfactoria. Porque, en última
instancia, la universalidad de la psicología como ciencia remite a la concepción,
explícita o implítica, que tengamos sobre lo que es el ser humano y la sociedad
(MARTÍN-BARÓ, 1989f, p. 81).
Sobre a mesma questão, continua:

[...] en la alternativa de si la psicología debe buscar explicar o comprender, me


inclino por la comprensión y, mejor aún, por la interpretación, a no ser que
despojemos al término explicación de la connotación exclusiva de causalidad
eficiente, entendida además en el sentido unidirecional y casi mecánico, y
retomemos al menos parte de los varios sentidos que, según Aristóteles, tiene el
término causa (MARTÍN-BARÓ, 1989f, p. 81).
Vemos nessas citações, sem distorções, o quanto sua posição, se levada às últimas
consequências lógicas, acabariam por negar a própria capacidade de “interpretar” um dos
lados das lutas sociais, o dos dominados. Baseado na “realidade” empírica de um determinado

322
fenômeno não é possível deduzir “logicamente” um “lado interpretativo”; é preciso estar
munido de pressupostos teórico-filosóficos e éticos, como ele bem disse em uma das
primeiras citações desse mesmo texto. Ora, se a “interpretação” dele sobre os humanos e a
sobre sociedade é baseada na realidade (descolada de uma apreensão teórica de sua
ontologia), como negar ao positivista que a “interpretação” dele está errada?

Quando ele taxa que a verdade deve ser construída considerando a conjuntura
científica em que se encontra, concordamos, com a ressalva de que com “construção” ele se
refira à teoria capaz de apreender ontologicamente o movimento contraditório e dialético da
realidade, pois tudo o que é social em certo sentido é produção humana, mas é preciso não
confundir tal “construção” como algo criado individual e arbitrariamente, muito mesmos ex-
nihil. Não acreditamos que o autor esteja no campo da pós-modernidade nesse aspecto, a
despeito de que vimos que existem muitos que gostariam de colocá-lo nela.

Sobre os desafios futuros, a Psicologia indica um horizonte ainda por fazer, e é aqui
que entra a proposta da Libertação, cunhado por influência direta da teologia latino-
americana. Isso em nada negava a herança “libertadora” da própria Psicologia que, como ele
mesmo diz, com Pinel já mostrava seu potencial350.

Terminamos nossa análise, portanto com um texto que demonstra justamente o caráter
inconcluso e ao mesmo tempo vasto de seu projeto ético-político para a Psicologia.
Rememorando ainda que, por sua práxis revolucionária, aos 16 de novembro de 1989, Jose
Ignacio Martín-Baró foi assassinado. Cientes do peso da frase, maior do que qualquer crítica
teórica que poderíamos engendrar, encerramos nossa tarefa.

350
Por fim, no texto Fundamentos teóricos y metodológicos de la investigación latino-americana (MARTÍN-
BARÓ, 2010) vemos um texto enxuto e incisivo sobre algumas de suas posições em relação a teoria e a pesquisa.
Afirma, por exemplo, que todo conhecimento é construção que pretende dar razão a uma realidade; construção
que é sócio-historicamente determinidade pela realidade e não uma invenção de cunho subjetivista. Nas palavras
dele: “Tanto la realidad social como el conocimiento sobre esa realidad son históricas, es decir, producidas por la
actividad humana. Esto significa, entre otras cosas, que las realidades sociales existentes de hecho no son sino
una entre múltiples formas que esa realidad podría haber asumido y que su misma existencia se constituye como
negación de otras alternativas” (MARTÍN-BARÓ, 2010, p. 99). Quando ele expõe seus fundamentos
metodológicos reitera sua crítica ao que chama de idealismo que para ele “radica en asumir como punto de
partida alguna teoría o modelo (“el marco teórico”) para verificarla en la realidad, en lugar de partir de los
problemas tal y como los plantea la realidad la realidad que vivimos” (MARTÍN-BARÓ, 2010, p. 100).
Nitidamente trabalha com uma acepção de idealismo diferente da nossa, pois na mesma página complementa:
“Frente a este “idealismo positivista”, la investigación en Latinoamérica debe privilegiar un realismo
metodológico, es decir, un esfuerzo por confrontar y plantear la realidad en su carácter problemático antes de
filtrarla por esquemas o modelos teóricos.”
323
Conclusões preliminares para outros recomeços

A histórica debilidade da Psicologia em incursões críticas sistematizadas talvez se dê


por sua herança profundamente atrelada aos subjetivismos e a sua deficiência nas questões do
método e dos seus fundamentos ontológicos. Mesmo nas vertentes usualmente chamadas
científicas, não é grande o apreço por esse tipo revisão; Vigotski não é regra. No que tange
aos aspectos teórico-metodológicos, os avanços do irracionalismo e a consequente perda, no
que chamam pós-modernidade, da categoria totalidade, central ao método científico, além de
tê-la afastado (a Psicologia) do debate sobre a ontologia do ser social e da ética fez com que
nos contentássemos com uma pluralidade caricata que “se desmancha no ar”.

De modo geral, a psicologia social feita no Brasil tem pouca estima pela crítica
crítica. O inchaço do individualismo burguês (que se manifesta cabalmente nos intelectuais na
forma de vaidade), de tal forma a tem encarcerado dentro de psicologismos, que alguém com
justiça poderia nos perguntar se há remendo em estágios tão avançados de fragilidade. A
incapacidade de diferenciar uma crítica dirigida à produção intelectual de quem quer que seja
de uma ofensa pessoal, pode atravancar essa empreitada. Um dos prejuízos imediatos é que,
agindo assim, impede-se a superação teórica de nossos mestres, que se cristalizam e cada vez
mais se afastam da vida cotidiana por não terem seu legado vivificado por constantes
atualizações. Não custa lembrar que o significado da palavra superação, nesse caso, em nada
se assemelha à imodéstia ou presunção.

Cremos que há saída e com isso não pleiteamos que nossos esforços de pesquisa
devam se mobilizar na direção exclusiva de “produções teóricas críticas” em detrimento de
práxis mais engajadas, trata-se, sobretudo, de aperfeiçoar as relações entre método e práxis
(superar o ativismo bem intencionado).

Dito isso, resta-nos apontar algumas conclusões. Dividimos esta etapa em três eixos
que sintetizam: 1º) as condições sócio-políticas do continente e as referências teóricas de
Martín-Baró; 2º) seu projeto ético-político para a Psicologia (e algumas diferenças entre “sua
origem” e seus desdobramentos em interlocutores do jesuíta); e 3º) as trilhas para novas
pesquisas, feita à moda de um posfácio.

324
1º - Síntese das condições sócio-políticas e das referências teóricas de

Martín-Baró

Resgatando apontamentos feitos por Carlos Nelson Coutinho (1972/2016), passamos


neste trecho por alguns aspectos mais genérico-universais do desenvolvimento de algumas
expressões da filosofia burguesa que como nuvens carregadas ameaçaram a obra de Ignacio
Martín-Baró. Pretendíamos assim desviar, de toda sorte de presentismos; que deformam tanto
o conteúdo quanto a forma de um objeto de estudo; justamente por não apreenderem a
historicidade, não captarem concreta e adequadamente as condições históricas e sócio-
políticas do momento em que surgiram; transplantando-o (objeto de estudo) sem critérios
razoáveis ao fluxo do imediatismo e da conveniência351.

Analisamos a obra de um pesquisador que articula (e confunde, em alguns casos)


proposições teológicas (a escolástica e a discussão da teologia da libertação, por exemplo),
existencialistas, psicanalíticas e, por fim, marxistas. A parte interessante é que, ao longo de
sua carreira, precisamente sua busca por aproximar a Psicologia das expressões latino-
americanas de críticas sociais (referimo-nos à teologia da libertação, à pedagogia freiriana, à
sociologia e à filosofia da libertação, fundamentalmente) tornaram-se uma das marcas mais
típicas do seu intento352.

Nessa direção, sabemos também que sua etapa formativa em Psicologia correspondeu
em boa medida a uma proposta de ciência marcadamente atravessada por vieses
estadunidenses e europeus (como ocorria na maior parte do continente, inclusive no Brasil). O
momento inicial de seus estudos foi tomado em grande medida pela difusão do
existencialismo nas universidades latino-americanas e na resposta a ele dado pelo

351
Além disso, a utilização exclusiva do presente como critério de validação do conhecimento empobrece o
debate, pois faz acreditar que cada novo resultado de pesquisa é uma novidade científica. Não nos referimos
apenas a defeitos na revisão bibliográfica, mas também a deficiências na capacidade mesma de “generalizar”
dados seguindo critérios propriamente científicos (a fragmentação e a incapacidade de retomarmos a totalidade
produzem micro-escritos que apontam, em alguns casos, para as mesmas coisas). Quando pós-modernos atacam
a ciência com o irracionalismo, em sua vertente mais reacionária, minam justamente o potencial da razão como
arma da classe trabalhadora e dos cientistas a ela aliados.
352
Cremos ter demonstrado que seu projeto ético-político para a Psicologia está articulado além de a Filosofia, a
outro complexo social multiforme que é o da religião (em sua expressão sistematizada, a teologia). Sem
embargo, as implicações disso e os desvios teóricos de seu projeto, menos se deram pela proximidade de
objetivos práticos entre a teologia da libertação e a proposta para a Psicologia de Martin-Baró, do que pela
ausência de um método científico capaz de aprofundar algumas de suas proposições.
325
estruturalismo (lembremos também das inúmeras ditaduras espalhadas pela região). Não é de
surpreender, portanto, sua precoce afinidade com Sartre e Heidegger, no início da década de
1960, e que seu conceito de ideologia, em meados de 1970, tenha muito dos escritos de
Althusser. A dificuldade está em discernir com clareza, em sua obra, nuances entre o modo
como o jesuíta se apropriou do idealismo subjetivista, dos existencialistas e de seu
contraposto objetivista, o estruturalismo. Não acreditamos que estamos ante alguém que se
enquadre nem em uma nem em outra escola.

Ainda sobre aquele período, Coutinho (1972/2010) ensina que tanto o irracionalismo
quanto o “racionalismo formalista” eram expressões necessárias da ideologia burguesa. A
complexa relação entre ambos, a despeito de sua contraposição, mantinham em comum a
incapacidade de considerar a historicidade e, por decorrência, apreender a dialética e a
relevância da práxis humana para a ciência.

Um parênteses. Grosso modo, a história da filosofia burguesa pode-se dividir em duas


grandes etapas. A primeira, dos renascentistas a Hegel, e a segunda, que ocorre entre meados
de 1830 até 1848, período marcado por uma ruptura mais nítida e uma progressiva
decadência, dado o abandono das conquistas das fases anteriores353. Da era das revoluções até
nossos dias, a herança racionalista histórico-dialética de Hegel seria soterrada. Quando não
explicitamente pelas filosofias reacionárias, pela crença em fórmulas idealistas, abstratas e
individualizantes capazes de “esclarecer” o humano que, uma vez iluminado seria capaz de
mudar o mundo. Nas “filosofias da decadência” (COUTINHO, 1972/2010, p. 29) vemos um
repúdio mais ou menos integral do terreno científico. Ou seja, há negação e abandono das
questões decisivas da concepção de mundo e da teoria da realidade; na prática, ética e
ontologia são desprezadas como realidades concretas; elas (filosofias hegemônicas) se
convertem em franca ideologia burguesa. Por isso, quando insistimos nesse debate, sabemos
das possíveis críticas que se nos sobrevirão sobre a pertinência dele na Psicologia, mas
somando forças a Fernando Lacerda Junior, por exemplo, o citamos pela proximidade da
temática; acreditamos que, sem resgatá-lo, uma Psicologia Geral jamais terá a chance de ver a
luz do dia.

Retomando a questão histórica, com a ampliação e o desenvolvimento do mercado


capitalista, cada vez mais as expressões culturais humanas tornam-se “globalizadas”, no
353
Um dos maiores obstáculos da burguesia, contudo, foi abandonar a razão, que tanto lhe fora útil para demolir
o feudalismo, mas que agora “voltava seu gume contra ela mesma”, parafraseando Marx. (COUTINHO,
1972/2016).
326
sentido de que é cada vez maior o intercâmbio sócio-político e econômico entre diversas
sociedades humanas354. Foi com seu desenvolvimento (do capitalismo) que o “humanismo
coletivista” perdeu espaço para o individualismo (que em si mesmo nega a sociabilidade
imanente dos seres sociais). As filosofias burguesas passaram a deslegitimar a práxis como
momento criativo concreto; fizeram (e fazem!) com que a historicidade perdesse espaço para
um historicismo abstrato e subjetivista (apologia da positividade), e em lugar da dialética,
incitaram ao irracionalismo que demandava como justificação a intuição ou o agnosticismo
(amparado na limitação da racionalidade das “formalidades objetivistas”). (COUTINHO,
1972/2010).

Afirmamos, portanto, que o projeto de Martín-Baró para a Psicologia só é passível de


apreensão quando o entendemos como expressão ideal circunscrita historicamente nas
contradições sócio-políticas e econômicas vividas na América Latina (especialmente a
situação de guerra vivida em El Salvador); ou seja, ele respondia, ainda que com auxílio em
alguns momentos de expressões teóricas e desdobramentos das filosofias burguesas
“progressistas”, aos imediatos desarranjos causados pela injustiça e pela desigualdade social
produzidos pelos avanços do capitalismo mundial.

No mais das vezes, vimos que até a década 1970, Martín-Baró recorria à lógica formal
e, em alguns casos, ao escolasticismo para criticar as injustiças sociais. Com seu constante e
intermitente contato com a literatura psicológica corrente no período, vimos que se coagulam
nele traços de certo hibridismo entre uma proposta psicanalítica à esquerda (no início de suas
investigações na Psicologia) e os debates marcados pelo projeto societário socialista e das
insurreições políticas de alguns setores sociais da América Latina, como as Comunidades
Eclesiais de Base, por exemplo.

Mesmo se alguém disser que estamos, em muitas passagens, diante de um idealista


racionalista, uma vez que seria erro grosseiro dizer que ele não concebia a realidade
objetivamente, não se poderia supor que estamos ante um pesquisador que via identidade
entre aparência e essência dos fenômenos, que tratava toda a relação do humano com a
realidade como fruto de experiências subjetivistas. Em resumo: os desafios feitos a Martín-

354
Contraditoriamente, no capitalismo tornou-se acessível à ciência apreender os seres sociais, na realidade da
vida cotidiana, como parte do gênero humano (totalidade concreta de complexos teleológicos fundados no
trabalho e em suas objetivações). O ser social passa a se relacionar então com outros humanos por meio de
inúmeras mediações como a da classe social, do emprego, da nação etc. Em suma, “A mediação recíproca da
universalidade e singularidade pode alcançar uma nova síntese teórica, que supera a falsa antinomia medieval de
realismo e nominalismo, graças à elaboração da categoria particularidade” (COUTINHO, 1972/2016, p. 34).
327
Baró eram extremos e limitadores, mas isso não o impediu de conquistar avanços importantes
na/para a práxis da Psicologia na América-latina.

2º - Síntese do projeto ético-político para a Psicologia de Martín-Baró

Qual o desenlace apropriado à introdução crítica de um projeto tão versátil e


abrangente? Antes de qualquer coisa, recomendamos que ele seja lido e difundido em cursos
universitários de Psicologia. Optamos neste momento por uma exposição didática de alguns
elementos que o compuseram, partindo do reconhecimento indiscutível dos limites concretos
enfrentados por projetos ético-políticos como o da psicologia nomeada da libertação em uma
sociedade capitalista (na condição de “uma” corrente crítica dentro de um seguimento
profissional no seio da luta de classes); isto é, cravamos que qualquer intento profissional
dessa estirpe, depara-se, para além de seu horizonte intencional, com o muro de lamentações
das condições reais da vida no capitalismo.

Em uma síntese de nossa compreensão sobre os projetos profissionais355, afirmamos


que eles não se limitam a:

[...] normativas morais e/ou prescrições de direitos e deveres: eles envolvem,


ademais, as opções teóricas, ideológicas e políticas dos profissionais – por isto
mesmo, a contemporânea designação de projetos profissionais como ético-políticos
revela toda a sua razão de ser: uma indicação ética só adquire efetividade histórico-
concreta quando se combina com uma direção político-profissional (NETTO 1999,
p. 8).
A tradição marxista, nomeadamente na história recente com György Lukács, fincou
bases ontológicas, apoiado em Marx e Engels, da apreensão da sociedade como ente real e
concreto vinculado à práxis humana. Daí, e ampliando esses termos, temos que trabalhos
coletivos sempre são dirigidos por “projetos” (teleologicamente), pela antecipação intelectivo-

355
Netto (1999, p. 4) sintetiza a ideia de projeto profissional: “[...] apresentam a auto-imagem de uma profissão,
elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os
requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos
profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões
e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas (inclusive o Estado, a que cabe o
reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais)”.

328
afetiva da finalidade que se pretende alcançar em determinadas inter-relações concretas com
outros grupos humanos e com a natureza.

No mestrado, citando o trabalho de Barroco (2008), registramos que existem inúmeros


deles (projetos societários, profissionais e individuais, por exemplo). Temos então que os
relacionados às profissões, além de suporem formação teórica e/ou técnico-interventiva no
chamado ensino superior, são mediados por outros fatores importantes, como as disputas
internas de cada coletivo profissional por se estabelecerem como hegemônicos.

Além disso, eles tendem a ser flexíveis e aptos a incorporar diferentes demandas, isso
não os exime de serem invariavelmente “projetos de uma determinada classe”, ainda que
evidentemente refratem determinações de distintas naturezas, por exemplo: culturais, de
gênero, étnicas etc. Por essa razão, eles contêm acentuada dimensão política, não apenas por
se erigirem no seio do Estado burguês, mas porque estão neles presentes múltiplas
determinações sociais e culturais relacionadas ao exercício do poder. Muitos se digladiam
apenas dentro do espectro de possibilidades e dos limites impostos pela democracia política
(representativa); o de Martín-Baró ultrapassou esses limites.

Não obstante, segundo Netto (1999), a experiência histórica mostra que, na


(des)ordem do capital, por razões econômico-sociais e culturais, e mesmo em se tratando de
democracias político-representativas, projetos profissionais que respondem aos interesses das
classes trabalhadoras e subalternas sempre dispõem de condições desfavoráveis no
enfrentamento dos projetos das classes exploradoras e politicamente dominantes.

Atestamos, portanto, que não identificamos a proposta para a Psicologia associada à


libertação (em Martín-Baró) apenas com um projeto profissional (como uma
subespecialização do trabalho coletivo no marco da divisão sócio-técnica do trabalho
especificamente regulado juridicamente). A despeito de algumas semelhanças, nossa ressalva
reside no fato de que, originalmente, seu propositor não demonstrou se mobilizar ou se
organizar para entrar no campo de disputas por hegemonia entre outros projetos de
“psicologias já institucionalizadas”.

Martín-Baró discutiu temas que não interessavam exclusivamente aos profissionais da


sua área, mas ao conjunto de envolvidos em sua esfera de atuação (indivíduos, comunidade,
Estado etc.). Sua militância por uma sociedade nova (que se deu por meio da Psicologia, mas
não se restringiu ao campo acadêmico), não o conduziu somente a pesquisar temas que
329
fizessem com que essa ciência ampliasse sua capacidade explicativa, mas, principalmente, a
demonstrar como ela poderia servir à emancipação. Logo, o horizonte da práxis advogado por
ele alinhava-se com a criação de uma arma crítica da/para classe trabalhadora na luta pela
superação do capitalismo e que exigiu (exige!) cada vez mais, em escala social, a adoção de
valores que expressasem as necessidades sócio-genéricas da humanidade356.

A ênfase ética de seus escritos (fruto também do debate feito na teologia da libertação)
resgatou um componente essencial das ciências humanas, que como vimos com Löwy (2012),
no início do século 20, tinha sido desprezado por muitas correntes “das esquerdas” latino-
americanas357. Não cabe aqui aprofundar em quais aspectos e por quais razões a teologia da
libertação se constituiu uma expressão efetiva de uma posição anticapitalista358. Por outro
lado, a compreensão de suas matrizes epistemológicas sobre a questão da ética e a da
transformação social foi fundamental para apreendermos os significados dados à ética por
Martín-Baró e a posterior articulação dela ao fazer da Psicologia. Ao aliá-las (ciência e ética),
ainda que o modo como ele trabalhe a segunda seja vulnerável a críticas ontológicas (carece
adicionar a suas proposições algumas mediações sem as quais facilmente poder-se-ia incorrer

356
Cônscio da dificuldade em distinguimos, na práxis profissional da Psicologia, e em cada momento histórico-
particular concreto, quais são os valores legítimos da genericidade humana, o jesuíta enfatiza que ela
(Psicologia) deve se conscientizar de quais os desdobramentos políticos dessas atuações (tanto faz se a
psicologia histórico-cultural ou a cognitivista, ambas produzem efeitos sociais); isso implica em que uma análise
concreta (ontológica) de seus efeitos sociais pode ser um começo.
357
Quando a esfera da vida privada e a crescente burocratização do cotidiano no capitalismo retiram da
subjetividade seus fundamentos racionais objetivos, em nosso caso, a ética como valor objetivo, vemos como
cada vez mais seu debate desde o “ontológico” parece ser enredo de ficção científica, quando não simplesmente
desnecessário. Ao se desconectarem (ética e razão) das realidades dos modos de produção e reprodução da vida,
a ciência é abandonada à irracionalidade. Em Martín-Baró, do meio da década de 1980 em diante, pode-se ver
mais desenvolvidos traços originais de sua proposta e ficam mais explícitos como ele articula o quefazer da
Psicologia aos interesses dos explorados, sendo esse seu emblema. González-Rey (2011) chama-o de pioneiro
em uma psicologia social implicada na transformação (em prol dos explorados) da realidade social do
continente.
358
Sua denúncia da realidade social capitalista como fonte da dissolução da subjetividade e da desintegração da
personalidade humana (cisão entre afetos/emoção e razão/cognição) em nenhum momento rejeitou a razão, e
nem poderia. Do contrário, no caso de uma crítica irracionalista (ou opinativa), e mesmo que elas se constituam
objetivamente como “momento crítico”, sem a razão acaba-se parando na análise aparente da realidade. Em
outras palavras, certas capacidades humanas quando orientadas à captação de situações de injustiça tomadas em
sua imediaticidade empírica, mas explicadas apenas por crivos valorativos de cunho subjetivista, perdem a
potência crítica da razão em elevar o conhecimento sistematizado à sua expressão mais elaborada, a científico-
filosófica. Caindo assim, ou em um pessimismo incontornável por um lado, ou na sensação de atroz impotência.
De acordo com Coutinho (1972/2013), a destruição da razão, o abandono da ontologia do ser social como
possibilidade científica e da dialética conduzem a esse resultado.
330
no relativismo), vemos como ele expõe, racionalmente, quanto a ética não está em
contradição interna com a atividade cientifica359.

Coube-nos depreender de seus textos um projeto profissional que reclamava


determinados valores humanos para sua justificação, privilegiando certos meios (materiais e
culturais) para concretizá-los, ainda que em alguns momentos a cientificidade da empreitada
tenha sido posta à margem de uma consideração crítico-teórica mais rigorosa. O inserimos,
portanto no campo de tensões que compuseram as discussões sobre a práxis da Psicologia, em
especial a da América Latina, apresentando-o, por um lado, como resposta crítico-positiva
para a atuação dessa ciência (sua crítica à neutralidade científica serve de referência para
entendermos como ele entendia a relação entre práxis, ciência e realidade, por exemplo) e, por
outro, crítico-negativa, pois almejava desvencilhá-la de sua histórica adaptação aos interesses
burgueses.

Outro aspecto que merece destaque em nossa incursão está em afirmar que a origem e
a amplitude teórico-ética daquele projeto não foram filhas unigênitas da mera reflexão
acadêmica de seu propositor360, de sua riqueza espiritual, nos termos de Marx. Seria incorreto
cravar que seu intento não tenha ultrapassado a apreensão particular-imediata de sua
realidade, tal como a de muitos desdobramentos decadentes da filosofia burguesa. Há
inúmeras referências às categorias econômicas concretas que atestam isso (o perene
entrelaçamento entre classe social, consciência de classe, luta de classes e ideologia ao
quefazer da Psicologia aniquilam qualquer dúvida).

Ademais, não deduzimos o alcance, a forma concreta e a direção que a práxis ético-
política que o projeto de Martín-Baró assumiu na realidade exclusivamente de suas

359
Sobre sua concepção de ciência é preciso enfatizar que ainda que ele reconheça diferenças entre as ciências
duras e as humanas, em nenhum momento as hierarquiza. Pelo contrário, quando jovem, demonstra ter ideal
científico bem característico aos popularizados nas psicologias estadunidenses, como: predição, explicação e
controle (MARTÍN-BARÓ, 1976e). Ainda sobre o tema, esclareçamos um pormenor: não pressupomos que todo
experimentalismo na Psicologia seja sinônimo de produção acadêmica da ideologia burguesa. Cremos que as
ciências humanas podem se valer deles. Os limites objetivos da generalização dos produtos dessas pesquisas é
que, em todos os casos, sem exceção, precisam ser expostos a uma profunda crítica ontológica e ética. Quando
em diversos momentos trouxemos a problemática das relações entre Martín-Baró com “as estatísticas” foi
justamente para ilustrarmos esse ponto.
360
Não é demérito nenhum colocá-lo ao lado de outros intelectuais desmistificando assim as “historiografias dos
grandes homens”. Ao passo que nos é óbvio, ao analisarmos seu modus operandi, que ele possuía uma série de
talentos caros ao fazer científico (rigor expositivo, habilidade e familiaridade com diversas áreas do
conhecimento etc.).
331
intenções361. Aqui consideramos os desdobramentos subjetivos de suas atividades como
indicadores para depreendermos seu projeto libertador para a Psicologia, mas que
precisamente por estarem ancorados em um projeto societário que expressava concretamente
interesses da classe trabalhadora, permitiu-lhe alcançar uma dimensão ético-afetiva e política
que seria impossível se ele próprio fosse fruto do interesse subjetivista-idiossincrático de seu
propositor (e, nesse caso, de qualquer outro) 362.

Nosso debate sobre a ética não pretendeu, como precipitado, criar um “código de ética
da Psicologia da Libertação”, isso não impossibilita a utilização desta tese e, oxalá
gostaríamos que para isso ela servisse, como elemento teórico-crítico nas discussões que
envolvam ética e práxis. Afora isso, e até diríamos que esta talvez tenha sido a menina de
nossos olhos, nosso objetivo ao fazer a crítica ao projeto de Ignacio Martín-Baró foi apreender
dele aquilo que compõe avanços reais na produção de uma Psicologia Concreta. As forças
motrizes de nosso esforço agora podem aparecer com clareza: a) estudar a gênese e os
desdobramentos do projeto ético-político de Martín-Baró desde os seus fundamentos teóricos
e do método e b) esboçar pistas para sua superação (por incorporação363).

Sobre os aspectos “internos” de seu projeto, vê-se em Pereira (2013) que os seguintes
elementos/categorias/conceitos são fundamentais para entendermos sua proposição: a)
Libertação; b) Ideologia-desideologização; c) Processos grupais (poder, identidade,
atividade); d) Atitude-atividade-ação-comportamento político; e) Identidade-socialização-
conscientização; f) Violência-especificidades da guerra; g) Religião; h) Educação-
universidade; i) Sexismo- machismo- gênero; j) Política. Além disso, do seu projeto para a
Psicologia, merecem destaques:

361
Ao mapear a formação cultural (escolarização) de Ignacio Martín-Baró, pesquisa que também figurou em
Ibáñez (1998) e Portillo (2012), detectamos uma das primordiais determinações que incidiram sobre nossos
interesses: sua formação acadêmica e religiosa; o que não nos autorizou a relacionar diretamente, sem mais nem
porquê, sua escolarização formal à sua práxis política. Seria ingenuidade julgar que Martín-Baró tenha
mimetizado acriticamente preceitos éticos de sua filiação religiosa. O que, todavia, não nos fez desprezar uma
aproximação com as nuances da posição dos jesuítas (e dos cristãos) à ética. A complexidade de estudar a gênese
de um projeto ético-político se acentua quando se supõe encontrar sua origem em um único indivíduo, por
contraditório que isso pareça. Em todo caso, seria descuido teórico proceder de tal forma (ir ao indivíduo para
fuçar a gênese de suas ideias), sem apreendermos profundamente a mediação entre sua singularidade (corporal,
afetiva, emotiva, intelectual etc.) com a particularidade histórica em que ele viveu (sua vida cotidiana),
relacionando-a, concomitantemente, a História (universalidade); perder-se-ia o foco e as bases concretas de uma
análise ontológica.
362
Para mais sobre essa discussão (da Psicologia como serva dócil do capital) ver: MARTÍN-BARÓ (1983a),
BADER (2001), PARKER (2007).
363
Trabalhos dessa natureza podem não ser muito bem vistos, mas respondem ao desafio feito pelo próprio
Martín-Baró (sobre a falta sistematização nas propostas da Psicologia).
332
a) Dimensão política, que apontava para: 1) justiça social, termo próprio dos textos de
Martín-Baró, que ali adquire caráter de concretude; pois defende uma democracia
radical, no sentido de horizontalizar as relações de poder que constituem a totalidade
social; 2) a ampliação do acesso à informação crítica e fidedigna, o Instituto
Universitário de opinião Pública é exemplo disso; 3) luta pela socialização da
participação política e uma tímida discussão sobre a socialização da riqueza
socialmente produzida. Em resumo, a Psicologia pode contribuir com as ciências
políticas, mas isso não deve fazer dela uma hermenêutica do político.

b) Dimensão científica, que implicava: 1) compromisso de não assimilar acriticamente


conhecimentos e práticas hegemonicamente aliadas aos interesses do grande capital
(nem ele mesmo se livrou totalmente do que conseguiu detectar); 2) constante revisão
do aparato metodológico das pesquisas, apontando para um constante aperfeiçoamento
intelectual fundamentado na historicidade, na apreensão das contradições do modo de
produção capitalista e na dialeticidade histórica.

c) Dimensão ética, reiteradamente evidenciada e que almejava: 1) privilegiar a libertação


como núcleo estruturante da práxis; sua intenção era vincular a ciência psicológica aos
projetos societários que claramente apontavam para uma nova ordem (socialista?), em
que exploração e opressão não fossem fatores intrínsecos; 2) defender e valorizar a
verdade histórica dos povos vilipendiados pelo capitalismo, reconhecendo o que ele
chama de virtudes populares úteis à construção do novo humano; 3) esclarecer e
distinguir tanto a defesa quanto os limites reais nas operações jurídico-burguesas da
noção de “direitos humanos”; 4) valorizar a diversidade cultural e étnica que também
compõe parte essencial dos valores do ser social.

Sobre as diferenças entre a proposta de Martín-Baró e a de muitas “psicologias” do início


do século 20, destacamos que a contribuição de Vigotski (1926/1996) pode ser utilizada como
crivo para diferenciá-la positivamente364. O modo como o criticamos passa pelo

364
Um parênteses. Vigotski (1926/1996) ilustra de modo inequívoco como a relação entre filosofias idealistas
consequentes (ou seja, que consideram a historicidade ainda que de modo equivocado), que procuram produzir
conhecimento a partir da práxis humana com objetivos práticos de modificá-lo, esbarravam, em alguns
momentos de seu procedimento prático-cognitivo, com uma relação materialista-instrumental com a realidade
em si das coisas. No mesmo texto, Vigotski aponta ainda que o idealismo sofisticado da ciência psicológica, ou
seja, o que se ocupa em “equalizar” logicamente princípios teórico-metodológicos que orientam sua atividade de
pesquisa com um método de exposição de seus resultados compromissados com explicar/descrever/analisar uma
determinada atividade humana, ou ainda, que não se acomodam à produção de asserções abstratas e
descompromissadas da pura especulação filosófica, contraditoriamente, podem também deparar-se com o muro
333
reconhecimento de que, a despeito de uma atitude intelectiva, por vezes própria do
idealismo365, a finalidade e a orientação ético-político dos textos entra na trama dos conflitos
ideológicos como teoria psicossocial orientada à práxis com claras pretensões de superação do
capitalismo por meio de ações revolucionárias.

Martín-Baró não apenas produziu “propaganda” esquerdista sofisticada, mas se


debruçou sobre categorias de primeira relevância para a construção de uma Psicologia
Geral366. Ele soube expor o que essa ciência “deve ser” baseada em seu próprio potencial
científico, não em especulações. Seu projeto vislumbrou a libertação da Psicologia dela
mesma (do psicologismo), como ciência e profissão fragmentada no seio da divisão sócio-
técnica do trabalho no capitalismo, e de sua histórica aliança com a burguesia.

Nossa exposição não procurou apresentar o projeto como homogêneo (feito um bloco
monolítico sem contradições) e muito menos “acabado”. Desta feita, quando diferenciamos
seus posicionamos dos de alguns de seus seguidores contemporâneos, dos que aderem à
proposta da psicologia da libertação “institucionalmente” (que organizam congressos sob esse
guarda-chuva), por um lado compreendemos isso como parte do pluralismo constituinte de
qualquer projeto ético-político, mas por outro não confundimos essa “diversidade” com uma
tolerância liberal para com o ecletismo367, como diria Netto (1999).

da realidade. Ora, assim como um pesquisador que afirma partir do materialismo histórico-dialético não por isso
garante que seu trabalho seja alicerçado nesse método, o idealista, que afirma pressupostos abstratos, pode
acabar, contraditoriamente, e mesmo sem intenção objetiva, produzindo resultados preciosos à Psicologia
Concreta.
365
Martín-Baró não passa ao largo de apurar sérios problemas no método da Psicologia, mas, neste ponto, talvez
estejamos diante das mais sérias complicações de seu projeto. Sua noção de idealismo, como “esquema” que ia
dos modelos explicativos à realidade (impedindo-nos de compreendê-la efetivamente, enviesando-a), passa longe
de carregar a complexidade histórica do debate sobre o idealismo ao longo da História da Filosofia, por exemplo.
Não se trata aqui de uma crítica exclusivamente conteudista ou formalista. Não é possível admitir que o mesmo
termo (idealismo) contenha tamanha elasticidade sem prejuízos científicos. A confusão que ele faz com o
método marxiano, que parte da realidade (ainda que na forma de abstrações caóticas empiricamente constatáveis,
mas volta a ela expondo sínteses de suas determinações concretas) também merece destaque negativo. Em
nenhum momento Marx prioriza o “empiricamente” constatável em detrimento da teoria, antes, amparado
teoricamente, parte da realidade; essa inversão é fundamental para diferenciar a proposta de alguém como
Hartmann, tal como explicada por Lukács (1984/2011), por exemplo, do materialismo histórico-dialético.
366
Tomemos, como exemplo, sua discussão da categoria percepção (entendida como função psicológica superior
com gênese indissociavelmente sócio-histórica) e de como ele ressalta a importância das teorias sobre os
processos grupais para as lutas sociais.
367
As dificuldades de organização e conciliação entre psicólogos latino-americanos “da libertação” não são
exclusivamente originárias das singularidades dos indivíduos que se vinculam a ela, mas também expressam
concretamente que o ecletismo na Psicologia contemporânea tem impedido sínteses capazes de organizar a
produção desta ciência, mesmo que estejamos falando de núcleos temáticos próximos.
334
A resposta à questão de se a “psicologia da libertação” alcançou ou não vida própria
longe de seu propositor é polêmica. O que podemos afirmar é que o projeto inicial sofreu
inúmeras vulgarizações que o desfiguram em vários casos; logicamente não estamos nos
referindo à totalidade dos interlocutores, mas cremos não ser possível cravar que estamos ante
algo consolidado.

Quando os continuadores da tal psicologia da libertação abandonam a totalidade e


negam a ciência e/ou razão, diluem as “posições éticas” originais em puro ativismo bem
intencionado, amputando justamente a parte mais relevante do esforço de Martín-Baró, que
foi construir uma ciência orientada à emancipação humana. Uma coisa é errar (do prisma
científico) tendo-a (emancipação) como meta, outra, muito diferente, é nem sequer concebê-la
como possível.

No fim do dia fica o impasse: nem a crítica de González-Rey (2011) parece-nos de


todo acertada, de fato a psicologia da libertação não se desintegrou totalmente com a morte de
Martín-Baró, se é que foi isso que ele quis dizer, mas também não podemos afirmar com
segurança que suas propostas, tal e qual surgiram, sobreviveram. Muitas leituras
construcionistas, revisionistas, repetições de lugares comuns e a pouca profundidade crítico-
teórico a tornaram um mosaico importante do ponto de visto histórico, mas assaz inofensivo,
em grande parte de seus debatedores, principalmente no que se refere à práxis revolucionária.

3º - Trilhas para novas pesquisas

Nosso subitem final tem caráter de posfácio, pois ao mesmo tempo em que encerramos
um ciclo de estudos, traçamos planos para futuras pesquisas que, desde os dados colhidos,
superariam o status de uma introdução crítica. Ou seja, partindo de Martín-Baró, mas não
estacionando nele, trazemos ao palco a questão da ideologia e do estranhamento (alienação
para o jesuíta), questões também destacadas por Oropeza (2016), como centrais ao seu projeto
para a Psicologia (principalmente a primeira).

A esta altura, seria inviável descermos aos pormenores ontológicos nada irrelevantes
dessa temática (por tratarmos aqui de uma mediação importante da vida cotidiana, e no caso
específico da ciência psicológica, da formação histórico-cultural do psiquismo); é preciso
335
achegar-se ao tema desde o concreto; por isso recorremos, em alguns momentos, aos
apontamentos de Lukács (1986/2013).

Na tradição marxista há que se lembrar que a discussão sobrevive à custa de polêmica.


A ideologia ora é fruto da superestrutura e necessariamente mascara a realidade concreta dos
fenômenos sociais, ora tem ares de neutra; para citar apenas duas grandes linhas. De antemão,
e explicaremos mais sobre isso adiante, enquanto uma ideia permanece na esfera do
psiquismo, por melhor ou pior, valorosa ou imoral que seja, não podemos considerá-la
ideologia, pelo fato objetivo dela não ter entrado concretamente na trama de objetivações
humanas, na cadeia de relações sociais que mutuamente a compõem.

Quando vimos Martín-Baró, nos idos de 1970, levar o foco da Psicologia para a
questão da ideologia, cremos estar diante de uma de suas grandes contribuições à área.
Contudo, o labor a ser feito, ao nos afiançar no materialismo histórico-dialético, não é tanto
dar andamento às críticas gnosiológicas sobre deformações e defeitos lógicos das ideologias
burguesas, pois, ainda que isso tenha alguma serventia, e de fato tem, caso permaneçamos
com uma concepção de “crítica à ideologia burguesa” que se restringe ao combate “de ideias
com outras ideias”, jamais ascenderíamos a seus aspectos mais relevantes, isto é, às esferas
em que mais a Psicologia pode e deve contribuir com a discussão.

Com efeito, é muito mais fácil apreender as manifestações ideológicas por meio da
análise de suas implicações sociais, de suas manifestações fenomênicas reais, do que partindo
de um determinado modo de produção econômico e sistema de organização político-cultural,
desdobrar precisamente qual é (ou está sendo) a ideologia de determinados processos grupais
em cada particularidade histórico-cultural específica. Ou ainda, a facilidade constatável da
inversão de clave nos caminhos investigativos serve para exemplificar que estamos nos
referindo (ideologia em uma acepção pejorativa ou neutra) a um complexo multiforme,
plurideterminado e volátil. (LUKÁCS, 1986/2013).

Para continuar a tarefa iniciada por Martín-Baró, desde a teoria psicossocial concreta,
é preciso ampliar o que conhecemos sobre a gênese ontológica da ideologia e de seus nexos
concretos com a atividade humana, da relação entre pores teleológicos direcionados à
satisfação das necessidades imediatas ou das socialmente produzidas do ser social. Sabemos,
pois que o processo engendrado pelas atividades humanas produzem conflitos de muitas
ordens diferentes, uma vez que percebemos que, por mais singularidade que contenha o

336
trabalho individual, não se pode extirpar dele sua generidade368. Partindo de asserções sobre o
trabalho, Lukács (1986/2013) define que ideologia369 é

“[...] sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a
práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade
e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse
sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua
origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem
socialmente em sociedade”.(LUKÁCS, 1986/2013, p. 465).
Todos os modos de exteriorização humanos podem se tornar ideologia na acepção
lukacsiana, o que não significa que todos eles se tornarão. Ideologia é um meio de luta social
que caracteriza toda a sociedade, é dessas lutas que se tem origem (e se pode entender) o
significado pejorativo que lhe atribuem no capitalismo.

Contrastando com diversos momentos do que lemos em Martín-Baró, o que nos chama
atenção em Lukács (1986/2013) é que ele não admite a verdade ou a falsidade como critério
para decidir se se trata ou não de algo ideológico,

“Nem um ponto de vista verdadeiro ou falso, nem uma hipótese, teoria etc.,
científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si só uma ideologia: eles podem
vir a tornar-se uma ideologia. [...] só depois que tiverem se transformado em veículo
teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou
menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos.” (LUKÁCS,
1986/2013, p. 467).

A ideologia deixa de ser imediatamente tomada como “algo que vela ou enviesa” a
compreensão ontológica de um determinado fenômeno social, e passa a ser o modo efetivo e
concreto com que determinadas exteriorizações ideativas humanas são ou não úteis, entram ou
não na trama dos conflitos engendrados socialmente e que igualmente demandam saída social.
Em outras palavras, só quando determinada explicação conceitual se converte em meio para
travar combates em torno dos antagonismos sociais é que ela pode operar como ideologia. A
transformação das produções da ciência em ideologia se dá pelo modo como a ciência se
insere na vida cotidiana, e esse efeito pode ser conscientemente direcionado ou não. Quando

368
Pode-se ver nele, ainda que de modo extremamente idiossincrático em cada caso particular, uma manifestação
da genericidade humana que é posta em relações sociais muito mais amplas do que o indivíduo singular é/será
capaz de prever antes de efetuá-lo.
369
Uma discussão mais elaborada do tema pode ser lida em TERTULIAN. N. O conceito de ideologia em
Lukács. In: Margem Esquerda, ensaios marxistas. Volume, 11. Boitempo editorial.
337
Martín-Baró propõe como tarefa para a Psicologia a desideologização, deve-se considerar que
a própria práxis científica já é mediada ideologicamente370.

É preciso ter clareza que o surgimento das ideologias pressupõe estruturas sociais em
que esses interesses se manifestem e almejem impor-se uns contra outros. No capitalismo, as
manifestações ideológicas se dão na luta de classes, com bem percebeu Martín-Baró. Neste
momento, menos do seguir Lukács (1986/2013), em sua dura exposição da gênese histórico-
social da ideologia, interessa-nos registrar que o problema que a envolve não é
unilateralmente científico-gnosiológico (como nos pareceu fazer em alguns momentos
Martín-Baró; na desideologização, por exemplo), mas ontológico-prático371.

Cumpre-nos fazer saber que a ontologia da vida cotidiana desempenha um papel


decisivo como mediação entre o modo de produção econômico e a ideologia dele decorrente.
Com o desenvolvimento das forças produtivas se complexificam constantemente as esferas da
cultura, da validade e da importância do costume, do hábito, da educação etc. Todos esses
elementos são frutos de pores teleológicos, e apenas isso já serve para indicar o surgimento de
esferas ideológicas próprias ainda que não independentes372.

Mas, afinal, por que a questão da ideologia, e não qualquer outra, figura nas
conclusões deste trabalho? Pois bem, Martín-Baró trabalha em diversas oportunidades a
truncada relação entre atividade humana, ideologia, método e objetivos da Psicologia como

370
Para que fique claro: nada pode surgir no âmbito do ser social que não seja decisivamente determinado sócio-
historicamente, não eliminamos automaticamente com isso nenhuma parte desse ser social que não seja
codeterminada pelas circunstâncias singulares de sua gênese nos indivíduos (ainda que o desenvolvimento do
psiquismo seja necessariamente social, cada indivíduo possui singularmente, em seu corpo, por exemplo,
características irrepetíveis que incidem de modo irrevogável sobre esse processo). Todos os portadores
ontológicos imediatos da atividade social são humanos singulares. Logo, no plano imediato, todos os conflitos
sociais entre interesses se dão entre indivíduos e/ou processos grupais. Essa afirmação possui dupla dimensão.
Uma, que manifesta a individualidade de cada humano, em cada circunstância específica necessariamente, e
outra, que é capaz de apreender a relação desses momentos de singularidade com a particularidade histórico-
social em que vivem, e, em todo o caso, remetem-se a universalidade. (LUKÁCS, 1986/2013).
371
Nas palavras do húngaro: “Não é só a luta constante da ciência contra tais ideologias [burguesas] que
constitui um fator significativo do desenvolvimento humano; essa luta, muito antes, também é um componente
da própria história da ideologia e, precisamente do ponto de vista da ontologia social, trata-se de um componente
significativo.” (LUKÁCS, 1986/2013, p. 480).
372
O exemplo concreto dado por Lukács (1986/2013) é o do direito burguês. A ampla e notória presença desse
complexo ideológico na particularidade histórica que vivemos no Brasil em 2016-2018 dá credibilidade e valida
concretamente à explicação do húngaro quando ele versa sobre a função social da ideologia. Que ele (direito)
permanece articulado a interesses político-econômicos da classe dominante é ponto pacífico, mas também é
verdade que suas tensões internas produzem inúmeros desdobramentos aparentemente inexplicáveis para
deterministas mecanicistas que vulgarizam o materialismo histórico dialético.
338
campo científico e profissional. Sua definição “clássica” de que a psicologia social deve
estudar a ação como ideologia evidencia nosso ponto.

O projeto ético-político da psicologia da libertação é perpassado por questões como:


“desmascarar” a ideologia, desideologizar a realidade e “desalienar” as pessoas. Em certo
sentido, a conscientização, que ele enfatiza textualmente, tornar-se-ia o contraponto
progressista aos ataques burgueses travados no campo da ideologia, com o acréscimo, no caso
dele, de que ele faz um apelo genérico a uma práxis coletiva e não a um mero saber
contemplativo da realidade373.

Cremos que o jesuíta tenha mirado o que viu e acertado no que não demonstrou com
clareza. Devido a sua ampla formação intelectual, seus interesses ético-políticos e pela
conjuntura político-econômica salvadorenha, ele não pôde deixar de notar a força real da
ideologia burguesa em seu cotidiano, sua presença extensiva e intensiva, prática, no processo
e no correr da guerra civil.

Tanto o confronto bélico quanto o modo como os E.U.A influenciaram seu


prolongamento fizeram com que o atento pesquisador visse o quanto a Psicologia
hegemonicamente praticada no período, em diversos momentos, operava a favor da ideologia
burguesa (aliando-se aos seus interesses classistas), tinha, sem embargo, possibilidade real e
concreta, não apenas especulativo-filosófica, de se aliar aos trabalhadores. Ao criticarmos sua
“conceituação” de ideologia, sob nenhum aspecto minamos e/ou invalidamos seu esforço.
Nessa direção, sua obra é um dos melhores exemplos dentro das propostas latino-americanas
que indicam o porquê devemos apreender o processo desigual e contraditório desses nexos
(vida cotidiana, ideologia e práxis científica) e seus desenvolvimentos históricos.

O projeto é sofisticado ao ponto de perceber que nada seria mais anticientífico do que
descolar a ciência psicológica da História, da sociedade e da cultura (e consequentemente das
esferas ideológicas). Isso implica, por desdobramento imanente, que o processo de construí-la
como científica, em vez de buscar isolá-la demonstrando sua especificidade dentro do leque

373
Seguindo outro caminho, não a da exposição detalhada (ontológica) da ideologia, Mézáros (1989/2004),
mostra como os avanços das filosofias burguesas, mandaram-na (a questão da ideologia) para o cemitério dos
debates científicos “avançados”. Na América Latina, o debate seguiu outros rumos. No mesmo ano que esse
discípulo de Lukács escrevia a obra O Poder da ideologia, por exemplo, considerando as “academias”
estadunidenses e europeias como referência crítica (ou seja, sociedades desenvolvidas da perspectiva do
capitalismo), vemos que Martín-Baró comprometia-se, também da academia, mas além disso, da militância
política, com defender teoricamente debates sobre a luta de classes, a ideologia e a necessidade de uma
sociedade nova.

339
das ciências sociais, deve necessariamente, por imposição da razão, buscar (re)estabelecer
conexões concretas com outras áreas do conhecimento humano. A libertação da Psicologia
implica não aleijá-la das áreas que vitalmente a compõem374.

Logo, as disputas internas dentro das ciências humanas não podem ser desprezadas
caso queiramos efetivamente retomar um debate sobre Psicologia Concreta e Ideologia.
Martín-Baró, por questões particulares, não enfrentou esses problemas desde sua ontologia,
apenas apontou alguns importantes desvios epistemológicos causados por essa ruptura, como
vimos no último capítulo.

Não obstante, para a Psicologia, como ciência e profissão, esse debate é elevado à
condição sine qua non caso queiramos superar, na teoria e na práxis, a ideologização burguesa
que a atormenta. Não dependemos (nós psicólogos) de outras áreas científicas sazonalmente,
antes só abstramente se imagina um conjunto de práticas profissional-científicas coerentes
com a realidade do ser social que desprezassem esses nexos. A incapacidade de perceber a
totalidade e a profundidade da questão não é fruto do descaso dos profissionais do ponto de
vista singular, mas de uma deficiência em nosso próprio processo formativo, como vimos
trabalhando ao longo do texto.

Que fique claro: é possível conceber “psicologias” amputadas e desnutridas de


fundamentos ontológicos, o que não convém é considerá-las igualmente corretas em termos
científicos; em todo o caso, lembramos que é preciso perceber que mesmo as “cientificamente
equivocadas” exercem efetivamente uma complexa função social na luta de classes e no
funcionamento da sociedade.

Em resumo, o debate sobre ideologia, método e Psicologia científica iniciado por


Martín-Baró representa não apenas um avanço circunscrito sócio-historicamente à
particularidade latino-americana, antes expõe um nó ainda truncado, que carece de atenção e
críticas da Psicologia Concreta375.

374
As ciências humanas se encontram, em certo sentido, na mesma condição: a de produzirem e consolidarem-se
inter e transdisciplinamente; o que gera, quando nos referimos à profissionalização dos cientistas, que como
trabalhadores vendem sua força de trabalho e cumprem demandas sociais e do mercado econômico, acirradas
disputas internas. Uma vez que cada formação profissional, no seio do capitalismo, demanda espaço para atuar,
busca legitimar seu saber e, em suma, quer conquistar posto relevante na condução ideológica da vida cotidiana.
375
Não se suspeita mais da crescente presença do aparato (técnico) psicológico na ideologia burguesa
contemporânea. Nem é preciso ser especialista para encontrar a todo o tempo problemas de amplitude social que
orbitam as esferas mais imediatamente relacionadas aos indivíduos. Fenômenos sociais como a vigorexia ou a
anorexia, por exemplo, (que dificilmente se explicariam por causas genético-hereditárias, mas são sócio-
340
O modo como Martín-Baró apreende relações entre psicologia política, política da
psicologia e ideologia também merece destaque em seu projeto ético-político. Contudo, é
preciso distinguir que a ideologia e a política apesar de esferas sociais articuladas, não são
idênticas. Esclareçamos: se o desenvolvimento da práxis política se direciona, no mais das
vezes, para o movimento populacional, à promoção (ou inibição) da produção que, por seu
intermédio, pode experimentar mudanças qualitativas, o critério para a função e o significado
da ideologia não reside na correção cientificamente objetiva de seu conteúdo, mas na direção
e em seu impacto sobre as tendências que põem na ordem do dia o desenvolvimento das
forças produtivas (LUKÁCS, 1983/2016). É evidente que os conteúdos ideológicos influem
nas tomadas de decisões políticas, o que se afirma é que eles operam por mediações
diferentes.

Logo, o debate sobre os aportes específicos da ciência psicológica na exposição


científica dessas mediações, em cada caso concreto, das relações entre ideologia, psiquismo,
processos grupais e totalidade social pode ser extremamente pertinente à luta de classes,
especificamente para a classe trabalhadora. É preciso, antes, reconhecer a gênese da
constituição da Psicologia como necessidade histórica burguesa, sem desconhecer que esse
processo a engravida de um potencial crítico-destrutivo dessa mesma ideologia. Estudar

particulares e se atrelam aos modos de socialização capitalista) ao serem enxotados para o campo da
“autoestima”, para o da vida privada, perdem suas mediações mais centrais. Poderíamos acrescentar inúmeras
ilustrações, mas ao tratar o indivíduo como mercadoria, as relações capitalistas de produção progressivamente
coisificam o próprio corpo do humano, fazendo-o passar por algo que está para o psiquismo (aqui ideal e
abstramente considerado) como o barro está para o oleiro. Nesse exemplo, o combate a psicologização desses
fenômenos nas “clínicas psicológicas”, demanda ser tratado com perícia e à luz de avanços já alcançados. Isso
requer que reconheçamos que a crítica “principista” de que devemos eliminar por completo a própria clínica
(como espaço de atuação profissional do psicólogo, e nesse sentido, Martín-Baró tem razão ao propor um
horizonte libertador para a clínica), além de superficial é incapaz de perceber o processo contraditório que
envolve essas práticas e suas demandas reais. Mesmo sem acompanhar Foucault (1977), em todos os pontos de
sua análise, ele estava correto ao criticá-las como docilizadoras e domesticadoras dos indivíduos por excelência,
acrescentamos: no mais das vezes reprodutoras da ideologia burguesa; o que nos referimos, todavia é que algo
precisa ser feito para responder imediatamente as atrocidades do capitalismo, e quer aceitemos quer não, ela (a
clínica) consolidou-se como possibilidade concreta de dirimir conflitos singulares das individualidades, ainda
que não satisfatoriamente em muitos casos. O aumento expressivo da drogadição na cidade de São Paulo (para
acrescentar outro exemplo de fenômeno social de amplos desdobramentos econômico-políticos que por vezes é
individualizado), nos últimos decênios, não deixa margem para dúvidas. Algum acolhimento imediato é
necessário a essa população. Nossas efusivas e pertinentes críticas às internações compulsórias, aos tratamentos
exclusivamente medicamentosos etc., não deveriam equivaler – em si mesmos – à produção efetiva de ciência
psicológica capaz de acolher as especificidades singulares de cada caso, sem deixar de apreender nesses mesmos
casos as mediações particulares e universais que as compõe. Evidentemente que não propomos uma
instrumentalização burocrática e tecnicista da ciência em favor de problemas sociais imediatos, mas enfatizamos
que a ausência considerável de sistematização teórico-prática-técnica nas chamadas psicológicas críticas,
principalmente nas políticas públicas, também deve ser considerada emblemática. Apontar com Martín-Baró que
a Psicologia deve atravessar sua práxis pela ética, apreendendo historicamente a realidade, implica perceber que
esse momentum de sua práxis, em cada caso específico, é vital (além de uma possibilidade latente imante de seu
corpus científico).
341
detalhadamente essas relações é tarefa para outra tese; basta-nos aqui, antes de entramos em
pormenores da exposição de Martín-Baró, advertir sobre a pertinência de futuros estudos
sobre o tema.

Concluindo, quando Lukács (1983/2016) considera a totalidade das implicações sócio-


políticas reais que incidem sobre a ideologia, em invés de postulá-la como contendo em si
mesma valor pejorativo (como em diversos textos fez Martín-Baró), ele amplia sua
capacidade explicativa na mesma medida em que não coisifica seu processo de surgimento e
suas funções sociais dinâmicas376.

Ideologia e Religião

Sabemos por meio de Marx & Engels (1932/2009) que as ideias dominantes são
expressão ideal das relações materiais de dominação377, são suas representações apreendidas
idealmente; isso é facilmente constatável quando lembramos que intelectuais (na função de
trabalhadores), além de proeminência social, regulam a produção e distribuição das
concepções de mundo prevalentemente difundidas, ainda que na vida cotidiana elas
encontrem resistências populares de diversas formas. Dito isso, Martín-Baró opõe seu projeto
aos interesses da burguesia. Seguindo os autores supracitados, ideias (e ideologias)
revolucionárias pressupõem a existência de uma classe revolucionária, de condições materiais
que possibilitam suas aparições em cada época. No caso específico desta tese, entendemos
que o que ficou conhecido como teologia da libertação, por exemplo, não tenha sido “criada”
ex-nihil, ou melhor, ganhado expressão social concreta apenas por vontades humanas
singulares.

376
Nas palavras dele: “E isso se dá porque ele a compreende, como categoria do ser social, desde sua gênese
histórica até o capitalismo, que, e seguindo seus escritos, vemos que é, “[...] a primeira formação econômica,
cujo processo de reprodução não possui um vínculo desse tipo [práxis políticas] com coisas passadas, no qual –
pela primeira vez na história – os fins postos pelos pores teleológicos que perfazem a práxis política, segundo o
seu teor político, não podem ser direcionados para a restauração de algo passado, mas devem ser direcionado
para a instauração de algo futuro” (LUKÁCS, 1983/2016, p. 517).
377
A ideologia,“[...] enquanto meio de dirimir conflitos sociais, é algo eminentemente direcionada para a práxis
e, desse modo, também compartilha, claro que no quadro de sua peculiaridade, a propriedade de toda práxis: o
direcionamento para uma realidade a ser modificada (sendo que, como já foi demonstrado, a defesa da realidade
dada contra tentativas de mudanças evidencia a mesma estrutura prática). A sua peculiaridade dentro do conjunto
de práxis é a generalização que, em última análise, é sempre orientada socialmente, isto é, a síntese abstrativa de
grupos de fenômenos cujo elemento comum consiste sobretudo em que podem ser mantidos, modificados ou
rejeitados em seu conjunto”. (LUKÁCS, 1983/2016, p. 520).
342
O desenvolvimento econômico do capitalismo mundial, a situação das lutas de classe,
a instabilidade política global (expressa caricatamente na polarização da guerra fria –
capitalismo vs socialismo) consolidou na religião (amplamente presente e fundamental para
que a compreensão da vida cotidiana dos latino-americanos) chamada por Martín Baró
(1987b) de subversiva378, uma expressão ideal de insurreição crítica, anticapitalista e de
ênfase nos aspectos éticos e históricos da luta das classes exploradas.

Com Löwy (2012), vimos que tratamos de um movimento que não emerge
propriamente entre os mais pobres, tampouco com abastados, mas dos estratos médios do
continente. O fato de que, como rastilho de pólvora, tenha tomado força e ganhado
notoriedade em meados 1960, não é explicado pelas intenções desses estratos nem pelo
brilhantismo de um ou outro filiado a ela, mas de, naquele momento, a religião ter sido
“contraditoriamente” tomada como operadora de uma crítica ideológica ao próprio
capitalismo, incorporando um conjunto de reinvindicações autênticas da classe trabalhadora.
Que fique claro, não abordamos aqui a religião como complexo total, referimo-nos a uma
espécie de “seita” surgida no interior dele (cristianismo da libertação), uma fração de
insatisfeitos que ganhou notoriedade especificamente no seio da igreja cristã historicamente
mais influente e culturalmente mais opressora do continente.

Em linhas gerais, e no que se refere a alguns aspectos lógico-gnosiológicos e práticos,


a reconsideração crítica de certos dogmas cristãos à luz da historicidade (a salvação da alma
como práxis libertadora da sociedade), a releitura dos textos sagrados encarnados no
“sofrimento ético-político” dos pobres espalhados pela América Latina, a absorção de fatores
teórico-críticos das ciências sociais e a criação de comunidades eclesiais de base foram
núcleos organizadores de diversos setores da classe trabalhadora.

Por isso, devemos, ainda que superficialmente, explorar minimamente a relação da


ideologia, da religião e da Psicologia na obra de Martín-Baró antes de finalizar. As
semelhanças ideopolíticas propositivas entre a teologia da libertação e seu projeto nos forçam
a isso. Todavia, devemos apreender que a religião, do prisma ontológico, não se assemelha à
filosofia e muito menos diretamente à teologia. Nas palavras de Lukács (1986/2013, p. 538):

A religião nunca foi nem é pura ideologia no exato sentido aqui pretendido, mas é
simultaneamente e antes de tudo também um fator operante no plano imediato da

378
Um estudo ontológico dessa temática implicaria em que considerássemos o próprio processo de colonização
europeu encabeçado pelas armas e pela cruz católica, obviamente não temos condições de empreendê-lo aqui.
343
práxis social real dos homens. Por sempre ter simultaneamente – e de modo
essencial – metas paralelas à filosofia, a religião representa, em termos sócio-
ontológicos, uma forma de transição sintética entre política e filosofia.
Naturalmente, às vezes também há filosofias, bem como produtos artísticos
singulares, que tentam transpor o seu enunciado de generalizações genéricas
diretamente para a práxis. Contudo, as religiões se distinguem delas, inclusive
nesses casos extremos, pelo fato de, via de regra, serem capazes de pôr em
movimento meios de organização social, recursos do poder, o que se situa fora da
esfera de possibilidades da filosofia e da arte.
Se o vacilo de Hegel e vários outros idealistas foi reduzir o complexo total da religião
à teologia ou à filosofia da religião, o de Lukács (1983/2013) foi acreditar que a religião
necessariamente “tem, em decorrência da necessária negação da imanência do próprio ser
social, uma tendência – todavia peculiar – para o estranhamento como base irrevogável” (p.
539). Entramos aqui em franca polêmica. Mesmo reconhecendo uma “tendência para o
estranhamento”, se caso ele tivesse tido oportunidade de observar a gênese e o surgimento do
cristianismo da libertação na América Latina, tendo como principal diferencial a historicidade
da práxis e o convite à prática de atividades políticas (como definidora última da
autenticidade do cristão) articuladas à luta classista, ele veria que justamente frações do
“complexo total” da religião também engendram, no capitalismo, profundas contradições.

O fato de a igreja católica (e boa parte do movimento protestante) ter esmagado a tal
corrente “libertadora”, só legitima ainda mais o argumento. Não reconhecer seus
desdobramentos subjetivos e concretos, em diversas regiões do continente latino-americano,
distorceria um estudo ontológico a esse respeito (lembremos das relações entre cristãos e a
revolução Nicarágua, por exemplo).

Ideologia e Método

Sabendo que religião e filosofia foram mediações primordiais na orientação teórica da


práxis de Martín-Baró e na proposição de seu projeto para a Psicologia; nosso objetivo agora
foi abordar tangencialmente o que pode ser lido com profundidade desde sua ontologia em
Lukács (1986/2013), que os limites entre generalizações filosóficas e científicas não existem a
priori, nem podem ser tratados com precisão. Isso significa que qualquer método científico
está sujeito a um exame crítico generalizador da filosofia, ao passo que a própria filosofia
retira dos avanços científicos (mas não apenas deles) seus substratos conceituais. “Enquanto o
método da generalização da ciência torna-se cada vez mais desantropomorfizardor, a sua
culminação na filosofia representa simultaneamente um antropocentrismo” (p. 540).

344
Quando salientamos o esforço consciente de Martín-Baró por atrelar sua prática
científica a pressupostos filosóficos e ético-políticos explícitos, vemo-lo entrar em campos
nada secundários e que privilegiam o debate ontológico da função social da Psicologia na vida
cotidiana379. Além dos conhecidos chavões e das discussões gnosiológico-epistemológicos –
já não se trata mais disso nesse momento, um detalhamento possível da gênese histórica das
ideias psicológicas e da Psicologia, de suas metamorfoses ao longo da história – possibilitaria
não só que liquidássemos a aparente complexidade que obstrui a construção de uma
Psicologia Geral quanto nos auxiliaria a perceber que sua fragmentação e deformações são
expressão de tendências ideopolíticas burguesas dentro dessa ciência380.

Ainda sobre os aspectos ontológicos do tema, não é difícil admitir que historicamente
haja uma tendência no ser social, como ser-em-si, para o acúmulo de conhecimento sobre seus
modos de conhecer a natureza, outros humanos e a sociedade do ponto de vista da totalidade
(principalmente porque consideramos esse acúmulo de experiências oriundos do trabalho e da
linguagem que, para nós, são categorias centrais do desenvolvimento filogenético,
ontogenético e microgenético humano).

A sofisticação dos modos de socialização no capitalismo fez com que, como nunca
antes, a consciência humana pudesse sobrelevar o indivíduo da percepção de si como
exemplar singular humano para objetivamente torná-lo individualidade humana, generidade
em si, e posteriormente, em alguns casos, eleva-o a generidade para si (quando pensamos na
consciência da classe, por exemplo). Tudo isso para dizer que em decorrência desse processo
contraditório e desigual, a ideologia engendra uma demanda específica no corpo das ciências
sociais (entendidas como conjunto de complexos também surgidos no processo histórico de
mediação ideológica das relações humanas com a natureza e com outros humanos). A vida
cotidiana demanda progressivamente no capitalismo mais explicações de cunho científico a
respeito da singularidade dos indivíduos381.

379
Uma apreensão mais global de como essa ciência tem se inserido ideologicamente como artifício para
justificar ou questionar o status quo é vital para uma historiografia da Psicologia desde o materialismo histórico-
dialético.
380
Só assim será possível construir uma história da complexificação do desenvolvimento da personalidade
humana sem recorrer a explicações mitologizantes ou a estruturalismos trans-históricos.
381
No diz que respeito a Psicologia científica tanto por sua origem histórica particular (século 19) quanto pelas
concepções ideológicas burguesas preponderantes sobre a alma/consciência/espírito daquele período, na Europa,
berço “oficial” de seu nascimento, sabemos que ela foi marcada por tendências idealistas. Não obstante, desde
seus primórdios coexistiam correntes materialistas (nossa análise não pode sair de abstrações razoáveis, uma
discussão mais digna sobre o tema pode ser conferida em Peixoto, 2014).
345
Lukács (1983/2016) ataca duas frentes dessa problemática (do método e da ideologia)
e auxilia-nos indiretamente. No primeiro momento, quando discorre sobre a incapacidade do
materialismo vulgar de apreender as formas ideológicas mais elevadas do gênero humano (por
desdobramento lógico dessa asserção, pode se fazer a crítica às psicologias materialistas
vulgares quando elas deduzem a ideologia, ou pior, as funções psíquicas superiores,
mecanicamente das condições econômicas, como se as últimas fossem maquinalmente
determinadas). Em um segundo, porque esse materialismo deformado é forçado a recorrer a
filosofias burguesas como “complemento filosófico” (o neokantismo, o positivismo, o
neopositivismo etc. são utilizados para preencher essas lacunas na Psicologia “crítica”, por
exemplo).

Em nosso caso (da Psicologia) uma explicação economicista das funções psicológicas
superiores e do psiquismo seria ridicularizada sem grandes esforços, pela mera empiria de
estagiários na área. A impopularidade do determinismo econômico, em compensação, fez
com que tentativas de arrastá-la para o campo do materialismo fossem vistas como igualmente
estúpidas (seja na expressão de anseios cientificistas, de John Watson ou na “doutrinária”
reatologia proposta por Konstantin Kornilov, no início da Revolução Russa). Não são vastas
as manifestações genuinamente dialéticas da produção de conhecimento desde o materialismo
histórico nessa área. (VIGOTSKI, 1926/1996).

Ao longo da obra de Martín-Baró vimos que ele não considera a Psicologia ou suas
categorias como necessariamente ideológicas (uma vez que propunha que ela teria amplo
potencial desideologizador da realidade). Em contrapartida, de acordo com Lukács
(1983/2013), todas as ciências sociais têm, em si mesmas, elementos irrevogavelmente dessa
natureza382,

382
Nas palavras dele: “porque o papel desempenhado por todo ciência social na divisão social do trabalho
simultaneamente também propõe a tarefa de retratar, ordenar, expor, etc. os fatos e as conexões por ela tratados
assim como eles de fato atuaram e atuam na totalidade do ser social”. (LUKÁCS, 1983/2013, p. 563).
Acrescentando mais fatores sobre a complexidade (e contraditoriedade) de suas funções sociais, ele
complementa, na mesma página: “[...] antes de tudo, de modo algum decorre da gênese ideologicamente
determinada de uma obra científica, e até de toda uma ciência, a sua incapacidade para constatações ou teorias
científicas objetivas”. Ou seja, nem só as ciências sociais são ideológicas quanto mesmo se tratando de seus
produtos, não se pode de antemão condená-los como não-científicos sem uma análise ontológica. Apenas na
apreensão de sua função social concreta isso se torna possível. O fato de Lukács (1983/2016), não deduzir de
uma obra científica em si mesma (de seu caráter cientificamente correto ou incorreto) sua função ideológica
expõe as determinações concretas dessa categoria; que ambas (ciência e ideologia) possuem nexos reais não
duvidamos, todavia afirmamos que da divisão social do trabalho surgem, em relação dialética, contraditória e
desigual, diversas ciências a fim de apreender a totalidade do ser social, logo, tanto o fazer do cientista, a escolha
de objetos de estudos, o tratamento dos dados etc. são processos por ela (ideologia) mediados. No capitalismo, a
da classe dominante (a burguesa), refrata na própria esfera científica fragmentações que acabam por violar em
346
E dizemos isso por que uma das tarefas que repetidas vezes foi enaltecida como
prerrogativas da Psicologia de Martín-Baró foi uma suposta capacidade dela para
desideologizar a vida cotidiana383. Em outras palavras, a produção da Psicologia (de textos até
suas práticas profissional-acadêmicas) deveriam expor o funcionamento opressor e explorador
do modo de produção capitalista. O que o jesuíta não foi capaz de se dar conta é que, em certo
sentido, ele permaneceu no campo das batalhas ideológicas ao enfatizar isso. A Psicologia,
pois como produção humana do ser social, também se constitui mediada ideologicamente.
Isso não invalidada, obviamente a importância das disputas travadas pelo jesuíta, apenas
asseguram-lhe seu lugar real, o campo gnosiológico. Arbitrar sobre como discernir sobre a
realidade e a direção ético-política que a ciência deve adotar não é apenas uma tarefa que
encontra solução lógico-epistemológica, mas implica necessária e obrigatoriamente entrarmos
na dimensão ontológica, na apreensão de sua função social, de acordo com Lukács
(1986/2103).

Nossos argumentos favorecem a compreensão de que a pretensa negação do caráter


ideológico da atividade científica não proporciona maior cientificidade a uma produção
intelectual. Por uma necessidade ontológica, a relação entre pesquisador e pesquisa científica
assumirá esse caráter. O que duplica a dificuldade de estabelecer sínteses. E explicamos o
porquê.

muitos casos fundamentalmente a capacidade de apreensão da ontologia do ser social, a gênese de seu processo
histórico de formação.
383
Onde queremos chegar com esse ensejo argumentativo? Se pensarmos no modo como Martín-Baró verte o
conceito de desideologização, por exemplo, e o que Lukács (1986/2013), diz sobre ela, isso ficará mais claro:
“Não muito diferente é a situação da assim chamada desideologização que se tornou mote em moda da
manipulação neopositivista. Existirem conflitos sociais e eles terem de ser dirimidos de alguma maneira, tanto no
plano espiritual como no propagandístico, permanece um fato social objetivamente irrevogável mesmo em meio
à mais difundida e à mais organizada das manipulações. Porém, isso transforma a desideologização realmente
executada uma contradição social em si mesma, a sua teoria, na melhor das hipóteses, numa autoilusão. Não se
contesta, desse modo, a “originalidade teórica” da desideologização – desde que seja no âmbito de uma teoria da
ideologia. Segundo a determinação social do seu ser, ela igualmente é uma ideologia, tendo, todavia, uma
constituição bem peculiar”. (LUKÁCS, 1986/2013, p. 569). Ele continua, na mesma página: “[...] Pois, ao passo
que a maior parte das ideologias mais antigas – racional ou irracionalmente fundamentadas, sinceramente
convictas ou futilmente demagógicas etc. –, apelavam, no enfretamento e na resolução de todo e qualquer
conflito, predominantemente para a generidade do homem como princípio enfim decisivo da práxis, a
desideologização da era da manipulação pretende pôr em movimento quase que exclusivamente o homem
particular, quer exercer uma influência motivadora somente sobre o entendimento e os instintos dessa
particularidade. Nesse ponto, manifesta-se de modo totalmente escancarado, aquilo que objetivamente entrara
em ação já em Max Weber, claro que num nível intelectual e moral muito superior, a saber, que a gnosiologia
não é o órgão apropriado à diferenciação entre ideologia e não ideologia. A função social decide se algo se
torna ideologia, e sobre isso a gnosiologia, por sua essência, não pode dispor. [itálico nosso]”.
347
Não basta, como supúnhamos nos idos de 2014, expor algumas inconsistências lógico-
formais e epistemológicas do projeto ético-político de Martín-Baró, caso pretendêssemos
avançar desde o materialismo histórico-dialético. Vimos que deveríamos partir de uma
exposição sobre suas asserções nesses campos, mas só quando demonstrássemos
concretamente como seu projeto para a Psicologia se forjou como produção ideal, como
ciência, na luta de classes (sua função social) é que poderíamos então expô-lo desde sua
ontologia.

Em outras palavras, nossa crítica à confusão terminológica empregada por Martín-


Baró no quarto capítulo não pode ser entendida como critério último de sua correção ou
incorreção no que tange à sua luta pela emancipação humana. Sintetizando o dito até aqui:
nem a correção nem a incorreção das proposições do jesuíta em si mesmas serviriam para que
realizássemos uma crítica ontológica de sua obra, mas apenas quando dispuséssemos de
condições de apreender a totalidade das condições sócio-políticas e econômicas a que
correspondiam seus escritos e, mais, como eles efetivamente serviram à luta de classes
cumpriríamos nossa tarefa.

O que sentimos falta em Martín-Baró, todavia, foi uma coerência interna maior em
suas pesquisas sobre a ideologia. Ademais, seu compromisso ético com a classe trabalhadora,
ainda que eivado de muito “ativismo bem intencionado”, consolidou-se como um dos traços
mais característicos desse embate em seus textos (ética e ideologia); a articulação com a
“política” é também, e em diversos aspectos, inovadora e potente.

Estranhamento e Psicologia

A preocupação de Martín-Baró com o que ele chama de alienação e nós, para fins
didáticos neste estudo, de estranhamento, deveria fazer com os psicólogos mais à esquerda se
detivessem sobre o tema, dado que esta é categoria fronteiriça aos interesses de diversas áreas
científicas. No jesuíta, não vemos um debate mais detido sobre a alienação (estranhamento),
ao mesmo tempo em que em inúmeros de seus textos, por exemplo, ele versa sobre uma
forma concreta de sua manifestação social: o fatalismo.

É obvio que não nos ocuparíamos de explicar o estranhamento na teoria marxiana, mas
exatamente pela consideração de que essa é uma categoria do ser social no capitalismo da

348
mais alta relevância para a Psicologia, apontamos como sintomático que não encontremos um
debate mais amplo e aprofundado sobre o tema nem no jesuíta e nem na chamada Escola de
São Paulo384. Afinal de contas, a essa altura não basta apenas assentir que a Psicologia, como
fez Martín-Baró, deva “desalienar” as pessoas.

Não vem ao caso explicar minuciosamente como o modo de produção capitalista


cindiu o trabalho em material e intelectual de modo historicamente inovador e como isso
rompeu (não mecânica, mas de modo sócio-políticamente determinado) as capacidades de
desenvolvimento integral da personalidade humana385.

Mas, ainda na direção de uma explicação sucinta, Lukács (1983/2013), ao expor sobre
os momentos do trabalho (objetivação e alienação), facilita a diferenciação entre o que é
alienação, no sentido de que o humano sempre produz no trabalho algo que é externo a ele
mesmo, “alienando-se” nesse processo, para o estranhamento (com o fato de ele ser
expropriado do produto e da fruição proporcionada por suas atividades socialmente
produtivas, que produzem valores de uso e troca). Temos, então, que o estranhamento é um
dos fenômenos sociais mais centrados no humano singular e por isso deveria orbitar as
primeiras páginas das “psicologias críticas386”.

Outrossim, um destaque do jesuíta sobre a questão da superação do estranhamento é


visto nitidamente quanto ele aponta para a dimensão coletiva do horizonte de atuação de seu
projeto para a Psicologia, sem com isso, minorar a importância do que cada um pode fazer

384
Em todo caso, afirmamos que, em linhas gerais, o estranhamento só é compreendido desde a particularidade
histórico-social em que ele ganha concreção efetiva e real nos seres humanos. Complementando: “[...] o
desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades
humanas. Contudo – e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente à luz do dia –, o
desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade
humana” (LUKÀCS, 1986/2013, p. 581).
385
Vale lembrar ainda que é nele (capitalismo) que contraditoriamente a riqueza potencial da personalidade
humana é alçada a modos cada vez mais socializados de produção e reprodução da própria vida (remetemo-nos
ao surgimento da máquina, por exemplo), ao passo que a produção (do ser social) lhe é parcialmente espoliada,
pois o trabalhador é privado de compor o gênero humano como humano, sendo obrigado fazê-lo como
mercadoria.
386
Não foi preciso ser psicólogo para reconhecer que ainda que o estranhamento se manifeste individualmente
no plano imediato, seu ser-propriamente-assim é um acontecimento social. O exemplo do líder grevista que
demonstra clareza de sua condição de classe, mas que tiraniza sua companheira em casa pode confundir os
“psis” mais precipitados, e fazê-los abandonar um estudo mais detido dessa categoria precocemente. Fazer isso
acarreta prejuízos, pois ele é um dos fenômenos sociais mais ubíquos na vida cotidiana e complexos do ser
social. Tende a deformação qualquer análise que perdesse sua processualidade e articulação com diversos outros
esferas do ser social. Para o húngaro, a própria história da humanidade a partir de certa altura da divisão do
trabalho é a história do estranhamento humano. (conferir mais sobre o tema em Lukács, 1986/2013, pg. 586).

349
singularmente na direção da emancipação humana no plano imediato (ninguém a si próprio se
liberta, autoproduz-se, mas isso necessariamente se dá por meio do trabalho e do
desenvolvimento do psiquismo, sempre mediado pela linguagem). O que Martín-Baró faz é,
em primeiro lugar, retirar esse “processo de superação” do campo de uma contemplação de si
mesmo autorreferente (como se a clínica psicológica pudesse realizar essa tarefa libertadora,
por exemplo), ao mesmo tempo em que registra que ultrapassar o estranhamento significa
envolver-se, como profissionais de uma ciência, em práxis sociais capazes de mobilizar sócio-
politicamente o que há de mais autêntico nos anseios dos explorados. Mesmo que para isso
ele faça afirmações do tipo “resgaste histórico das virtudes dos povos latino-americanos”, e
que ela contenha inegável dose de um anticapitalismo romântico, o fato dele conceder
importância à apreensão histórica da gênese dessas virtudes merece destaque; e outra, seria
equívoco dizer que ele para nesse resgaste; como vimos, seu horizonte aponta para o futuro.

O “bê-á-bá” para a superação do estranhamento no capitalismo não foi dada nem por
Martín-Baró e nem por Lukács (na ontologia do ser social, pelo menos). Contudo, o primeiro,
mesmo sem descer ao “ontológico” das categorias que estuda, operacionaliza de modo
engenhoso elementos centrais para uma discussão que não se detém nem só ao interesse
particular da Psicologia e nem só à particularidade histórica que ele viveu, mas avança no
sentido de produzir uma teoria científica capaz de, em cada caso específico, apreender o
movimento de cada processo grupal (lembremo-nos da tríade: identidade, poder e atividade)
para intervir nelas. O segundo contribui no sentido de demonstrar seu funcionamento (do
estranhamento) e suas implicações no desmantelamento da personalidade, nas formas cada
vez mais sofisticadas de estranhamento (apesar de que se deteve em uma exposição filosófico-
teórica dessas relações).

Mas, por que dedicarmo-nos a esta altura a explicitação da categoria estranhamento?


Ora, ela é um dos maiores obstáculos ao nascimento da genericidade em si no humano. E o
que isso tem a ver com a Psicologia? Parafraseando Engels: a importância dos humanos
singulares nunca é igual a zero nesse processo de superação.

O projeto ético-político para a Psicologia de Martín-Baró previa como meta que os


profissionais dessa área, além de se comprometerem com a produção de conhecimento sobre
o funcionamento da ideologia burguesa, engajassem-se nas lutas da classe trabalhadora.

À guisa de síntese do que vimos do estranhamento até aqui:

350
[...] em primeiro lugar, todo estranhamento é um fenômeno socioeconomicamente
fundado; sem uma mudança decisiva da estrutura econômica, nada de essencial
poderá ser modificado nesses fundamentos por meio de alguma ação individual. Em
segundo lugar, sobre essa base, todo estranhamento é, antes de tudo, um fenômeno
ideológico, cujas consequências prendem a vida individual de todo homem
envolvido de maneira tão multifacetada e firme que a sua superação subjetiva só
poderá ser realizada na prática como ato do indivíduo envolvido em cada caso
específico. Portanto, é perfeitamente possível que homens singulares sejam capazes
de discernir teoricamente a essência do estranhamento, mas em sua conduta de vida
permanecem estranhados e até, dependendo das circunstâncias, estranham-se ainda
mais. [...] Com efeito, todo momento subjetivo do estranhamento só pode ser
superado por meio de pores corretos na prática por parte do indivíduo envolvido,
mediante os quais ele modifica de fato e na prática o seu modo de reagir aos fatos
sociais, ao seu comportamento perante sua própria conduta de vida, perante seus
semelhantes. O ato individual direcionado para si mesmo, constitui, portanto, o
pressuposto incontornável de uma superação [Aufheben] real (e não apenas verbal)
de todo estranhamento no que se refere ao ser social de cada homem singular. Em
terceiro lugar, como também já foi ressaltado anteriormente, no âmbito do ser social
há somente estranhamentos concretos. O estranhamento é uma abstração científica,
todavia indispensável à teoria, portanto uma abstração razoável. (LUKÁCS,
1983/2016, p. 633).
Deste trecho teríamos inúmeras considerações a fazer desde as contribuições de
Vigotski e Martín-Baró. Basta-nos, ressaltar alguns pontos importantes para qualquer
estudante de Psicologia. A luta contra o estranhamento na dimensão da singularidade não é
um processo que ocorre exclusivamente no campo da cognição-intelecção. Se pensarmos por
alto, uma das grandes contribuições de Freud foi a de suspeitar que a vida humana não
consiste apenas na “via consciente”, em “saber para mudar”, mas em que mesmo sabendo de
algumas coisas, não mudamos.

O projeto psicológico defendido por Vigotski propunha uma ciência capaz de não
apenas ofertar uma explicação racional sobre o porquê desse fenômeno (estranhamento), mas
principalmente almejava construir instrumentos teóricos para intervirmos na direção da
produção sócio-histórica de humanos plenamente humanizados. (VIGOTSKI, 1930/2004).

Muitas críticas são feitas à práxis dos coletivos de luta política, por exemplo,
justamente pela ênfase quase que exclusiva nos aspectos pedagógicos e lógicos no processo
de luta contra os estranhamentos da vida cotidiana. Mas, temos que ter presente que essa
superação só ocorrerá de fato quando o modo de produção e reprodução da vida humana não
for mais o capitalismo (não tiver na exploração do humano pelo humano seu fundamento
ontológico, e pelos motivos já explicitados). O que não quer dizer que enquanto isso não
ocorra nada pode ser feito. A proposta de Martín-Baró é um exemplo concreto que esboça
como podemos nos envolver, desde a Psicologia, em práxis emancipadoras.

351
Destacamos no último capítulo como Martín-Baró não despreza a questão das
emoções e dos afetos na análise dos processos grupais (relações por excelência nas quais se
dão esse processo de superação), contudo diríamos que há ali, necessidade de acréscimos.
Esse curto apontamento é fruto de um artigo não publicado, escrito pela psicóloga social Lívia
Gomes dos Santos e por nós, sobre o processo de formação e desenvolvimento de uma greve
de funcionários, estudantes e professores na PUC-SP em 2013. Em suma, o que nos foi
possível perceber é que a circulação dos afetos e seus efeitos no psiquismo e na atividade
daqueles indivíduos (nas relações grupais) não constituem um elemento secundário ou
“menor” em uma análise psicossocial da apreensão dos rumos imediatos das decisões e da
práxis de um coletivo.

Se com Vigotski (1934/2009), tivemos oportunidade de entender que o


desenvolvimento das funções psíquicas superiores não se dá dissociado das relações sociais
que o constituem, e com Lukács (1983/2016), expusemos que o capitalismo tende a cindir de
modo acintoso o desenvolvimento da personalidade humana, ao mesmo tempo em que
possibilita à singularidade algo nunca antes visto na História (torna possível pela primeira vez
que alcançássemos a genericidade em si espontaneamente e a para si por meio da consciência
de classe), não podemos desprezar uma análise mais detida, isto é, ontológica, dos nexos entre
consciência e emoções e, posteriormente, entre a personalidade humana e a função social das
emoções no processo de emancipação humana.

Da mesma forma que ninguém está “enfermo” de sua língua materna, ninguém adoece
de “estranhamento”, que muito menos que um estado psíquico é um processo que se desenrola
dentro de complexos sociais. Ao passo que a linguagem, na qualidade de mediação no
psiquismo, por meio da complexificação das relações entre palavra e pensamento, amplia as
condições reais do individuo se relacionar com a realidade e com outros humanos, o
estranhamento é um processo que opera no sentido da desintegração, do esfacelamento na
vida cotidiana, das condições que possibilitam a ascensão à genericidade para si. Desse modo,
a Psicologia deve implicar-se nesse debate não para “curar” indivíduos e grupos
“estranhados”, mas para expor cientificamente suas determinações concretas em cada caso
particular, intervindo de modo emancipador na processualidade de sua produção e reprodução
(na práxis).

Não se é passivo no processo de estranhar-se. Isso quer dizer que quando Martín-Baró
menciona que uma tarefa da Psicologia é desalienar, é preciso cuidado para não entender que
352
os indivíduos não apenas “sofrem” com o estranhamento (o que do ponto de vista da
singularidade é verdadeiro), mas que também (na dimensão social de seu trabalho e dos
desdobramentos reais de suas relações sociais, dos produtos que gera por meio de seu
emprego quando compra ou vende sua força de trabalho, por exemplo) ele o reproduz.

Seja como for, trazer ao campo da consciência o modo como se tem processado os
modos de socialização e individuação (genericidade em si) de como o ser social conduz sua
vida no cotidiano, em nada pode desprezar como parte importante do processo emancipatório
a relevância das atividades dos indivíduos. O que temos condições de afirmar desde a
Psicologia Concreta é que enquanto a consciência das relações concretas da realidade não se
converte de modo integral, por meio da práxis, no motor da luta dos seres sociais (consciência
de classe em si e para si), enquanto ela não extrapola o campo do pensamento e se realize
concretamente como atividade (por teleológico) orientada à mudanças sociais e na relação
com a natureza (em forma de práxis transformadoras dessas relações estranhadas no
capitalismo), ainda não se deu passo nenhum na direção de uma superação efetiva do
estranhamento. Daí que tenhamos alguns ajustes de cunho epistemológicos ao conceito de
conscientização.

Primeiro, porque ele pode hipertrofiar aspectos racionais que supostamente motivam a
práxis revolucionária, algo do tipo: quando todos souberem “explicar” a exploração do
capitalismo isso equivaleria a libertar-se dele (com isso, é óbvio que não queremos minorar a
importância da dimensão racional-consciente da práxis, e como bem alerta Martín-Baró, nem
afastar a Psicologia e da Pedagogia), mas é preciso reconhecer que pode-se perder a apreensão
das mediações e das relações dialéticas entre as emoções e afetos nesse processo.

Em suma, o humano torna-se pessoa (na acepção de Vigotski) mediante o


desenvolvimento das forças produtivas sociais, mas contraditoriamente pode também ser
estranhado de si por forças operantes nesse mesmo movimento. A proposta de um projeto
ético-político e científico para a Psicologia firmada no materialismo histórico-dialético não
pode comportar ilusões de que “esclarecimentos científicos”, debates teóricos, possam em si
mesmos superar o estranhamento na vida cotidiana. Jamais enfatizaremos o suficiente que
apenas quando se discerne criticamente desde a ontologia a função social da ideologia, pode-
se, sem claudicância e ciente das limitações particulares do desenvolvimento dessa ciência,
em cada caso, engajar-se em uma práxis que intenciona e tenciona com questionamentos e
práticas profissionais as manifestações do estranhamento no ser social.
353
Na parte que nos cabe nesta tese compete-nos apontar que Martín-Baró travou um
combate teórico-ideológico por meio de suas investigações na Psicologia, que só podem ser
adequadamente compreendidos se entendemos que, a despeito de sua plena correção do ponto
de vista científico, os desdobramentos concretos de sua práxis políticas trouxeram a nu
diversos modos como a exploração econômica da burguesia se manifestava em seu cotidiano
(propagandas, produção de pesquisas de ampla circulação que mentiam sobre a situação real
das condições de moradia e habitação etc.), e o quanto a guerra civil-militar cumpria
propósitos específicos na manutenção do status quo salvadorenho, impedindo o avanço da
luta dos trabalhadores.

Em outros termos, para além do “teor de verdade” de suas constatações, a função


social de suas pesquisas foi capaz de travar, naquele cabimento histórico, um combate efetivo
contra o capitalismo, de rebelar-se contra os interesses da burguesia; quem duvidar disso,
retrucamos, então, que explique seu assassinato.

Para concluir e fugindo do caráter utópico-idealista que seu projeto possa carregar
(lembrando as palavras do próprio Marx, no Guerra Civil na França387) a classe trabalhadora
“não tem nenhum ideal a realizar, mas querem libertar os elementos da nova sociedade dos
quais a velha e agonizante sociedade burguesa está grávida”. O fato de Martín-Baró não ter
produzido ciência apenas “no âmbito” de sua particularidade, mas partindo dela ter apontado
para a necessidade de colaborarmos com a elevação do ser social à condição de generidade
para si, fez com que ele pudesse perceber certas tendências do estranhamento passíveis de
combate pela Psicologia. Sua ideia era fazer com que o conhecimento científico da realidade
se convertesse em princípio para a práxis e a inegável prova de nossa afirmação reside
justamente em sua constante dedicação à historicidade como fundamento e base para
construção da ciência psicológica.

Chegamos, pois, ao fim desta etapa. E sobre a batalha ideológica que precisamos
travar desde a ciência psicológica concreta contra a ideologia burguesa, ressaltamos que a
consideração da categoria historicidade (concreta) e de um método capaz de apreender o
movimento dialético da realidade figuram basilares à construção de uma práxis ético-política
ancorada e retroalimentada pela possibilidade histórica da revolução.

387
MARX. K. A guerra civil na França. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo: 2011. p. 60. Essa citação
também figura em Lukács (1983/2016, p. 781).
354
Nosso objetivo não foi profanar nem santificar a obra de quem quer seja: Marx,
Vigotski, Martín-Baró etc., cremos que eles devem ser tratados como o que foram: humanos
contraditórios, para que se cumpra o propósito de fazer avançar a causa dos trabalhadores,
desde o mirante dos explorados, sem quaisquer ídolos do teatro. Em especial ao último deles,
o autor de destaque neste estudo, e, ainda, por ter tombado pela luta revolucionária,
dedicamos esses apontamentos críticos, na expectativa de que não se esmague ainda mais a
cana já quebrada, e nem se apague o pavio ainda fumegante da Libertação.

355
NOTAS

i
Neste trabalho, seguindo a sugestão de Maar (2007), que é também a de Michael Löwy (2002), tomamos algo
ou alguém por crítico quando sua práxis enfrentou determinada formação social contrária aos valores éticos
historicamente alcançados pela genericidade humana, tendo como prerrogativa a capacidade humana de
modificar as relações sociais. O que não significa que perdemos os nexos concretos e mesmo a contradição de
que ao fazê-lo, enfrentar criticamente sua sociedade, intelectuais (na condição de vendedores de força de
trabalho) estão atrelados de forma socialmente determinada ao modo de produção de suas respectivas sociedades
(em nosso caso, o capitalismo). Reitera-se, assim, uma dimensão central de uma análise como a que segue: a
ética. Ela (a ética) atrelada à práxis pode constituir-se uma chave teórica para a compreensão de uma importante
dimensão da inserção real e dos desdobramentos concretos das atividades intelectuais. Aproveitando o ensejo,
admitimos que é preciso SUPERAR o ativismo ético. Nas palavras de Löwy (apud Maar, 2007, p. 61): “A ação
revolucionária justa é aquela que se funda num conhecimento dialético da realidade, que descobre, não em fatos
isolados, mas na totalidade dinâmica, as tendências dirigidas para o objetivo final, mas “esse objetivo final não
se opõe como ideal abstrato ao processo, ele é como um momento da verdade e da realidade, como sentido
concreto de cada etapa atingida, imanente ao momento concreto”. Questões como a do realismo ou utopismo
revolucionários precisam ser diferenciadas. Ou seja, não podemos subestimar, em uma análise materialista
histórico-dialética, a necessidade de apreender como se dão efetivamente os nexos entre teoria, movimentos
sociais (lutas de classe), consciência da classe trabalhadora e o próprio desenvolvimento societário. Comentando
a postura de Lukács sobre o humanismo no marxismo e do humanismo antropológico, Lowy (apud Maar, 2007,
p. 62) escreve: “Marx nunca fala do homem isolado, do homem abstratamente absolutizado, pensa-o sempre
como membro de uma totalidade concreta, da sociedade, [...] tendências românticas podem criticar a
desumanidade do capitalismo, mas são incapazes de superar o dilema do empirismo resignado e da utopia [...] e
se limitam a colocar o homem como imperativo moral. O humanismo marxista, ao contrário, é realista e
revolucionário, parte de contradições concretas da sociedade burguesa e mostra a possibilidade objetiva de tal
superação emancipatória do proletariado consciente, única classe capaz de realizar os valores humanos legados e
degradados pelo capitalismo”. Seguindo Delari Júnior (2015), cravamos que a inexistência de meios concretos
entre a passagem do campo das possibilidades (na acepção aristotélica do termo) para o da realidade, não
importando o quanto de “boas intenções” se tenha no processo, sob nenhuma circunstância deve ser tomada
como científica. Em outros termos, a passagem para a realidade é uma produção histórica que necessariamente
deve contar com a participação dos seres sociais. Em suma, a questão nevrálgica que condiciona nosso estudo
sobre a práxis dos intelectuais é como se deu sua inserção social concreta.

ii
O peruano Haya de la Torre (1895-1979), líder do partido Aliança Popular Revolucionária, procurou “renovar”
o marxismo para adaptá-lo à realidade do continente, afirmando que o “espaço-tempo indo-americano” é
governado por leis próprias e é profundamente diferente do “espaço-tempo” analisado por Karl Marx. Questionar
a irreversibilidade do tempo (e não evidentemente suas complexas relações com a realidade), utilizando como
argumento a posição geográfica não nos parece cabível.

iii
O argentino Juan B. Justo (1865-1928) foi o primeiro tradutor d’O capital para o espanhol, mas Löwy (2012)
não o considera como o primeiro marxista latino-americano por conta de suas ideias ecléticas e semiliberais.
356
iv
De acordo com o major estadunidense A. R. Harris, sob a atroz ditadura militar do general salvadorenho
Martínez, trinta ou quarenta famílias possuíam aquele país, o resto da população não tinha praticamente nada.
Para o militar ianque, a situação de El Salvador devia ser parecida com a da França, a da Rússia e do México
antes de suas revoluções.

v
Após as mortes de Mella e Mariátegui aflorou um processo de degradação do projeto marxista na/para a
América Latina que perdurou várias décadas. Isso não é o mesmo que vaticinar que não existiram intelectuais e
militantes críticos nesse período, e nem que uma oposição de esquerda e o trotskismo, por exemplo, foram
irrelevantes. Apenas denotamos que, já em 1936, a “stalinização” dos partidos comunistas, que tiveram um
desenvolvimento desigual e contraditório em inúmeros países desde a década anterior, estava cristalizada. Löwy
(2012) ressalta que não é de surpreender que, para os comunistas, o stalinismo soasse como palavra de ordem na
defesa da pátria do socialismo mundial, a U.R.S.S. Ainda hoje contabilizamos os prejuízos dessa postura. Outro
esclarecimento: com stalinismo queremos designar a criação, em cada partido, de um aparelho dirigente –
hierárquico, burocrático e autoritário – intimamente ligado, do ponto de vista orgânico, político e ideológico, à
liderança soviética e que seguia fielmente todas as mudanças de sua orientação internacional. O resultado desse
“aparelho dirigente” nas esquerdas foi a adoção da “doutrina da revolução por etapas e do bloco de quatro
classes” (o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia e a burguesia nacional) como fundamento da sua
prática política. A doutrina elaborada por Stalin foi aplicada na China e, mais tarde, generalizada para todos os
chamados países coloniais ou semicoloniais (inclusive, é claro, a América Latina). Em resumo: ele propõe uma
interpretação economicista do marxismo.

vi
Quando em 1960 o movimento 26 de Julho desapropriou os principais setores do capital norte-americano em
Cuba (telefonia, eletricidade e usinas de açúcar) as fábricas foram nacionalizadas. Em outubro, daquele mesmo
ano, a grande burguesia foi expropriada em benefício da maioria dos cubanos. A revolução, para alguns dos
participantes diretos da escalada cubana, sempre foi socialista. Ernesto Guevara chegaria a proclamar um
“processo revolucionário ininterrupto” no país. Aliás, a figura do argentino foi o emblema desse período; de
acordo com Löwy (2012), que ele era um dos que atribuíam papel importante à “ética comunista” no processo
revolucionário, rejeitando medidas econômicas de construção socialista que se baseavam “nas armas podres que
nos deixou o capitalismo (a mercadoria como unidade, a rentabilidade, o interesse econômico individual como
motivação etc.)” (GUEVARA apud LÖWY, 2012, p. 45). Em tom jocoso Guevara escreve que Cuba teria
rompido com todas as leis da dialética, do materialismo histórico e do marxismo, em uma franca ironia que
contrapunha o etapismo economicista do marxismo stalinista. É fruto do guevarismo, após 1968, ano da morte
do Che na Bolívia, o desenvolvimento de vários movimentos de guerrilheiros urbanos que tiveram considerável
impacto político. Löwy (2012, p. 47) lista alguns exemplos: “[...] o Movimento de Libertação Nacional –
Tupamaros (liderado por Raúl Sendic) no Uruguai, o PRT-ERP (Partido Revolucionário dos Trabalhadores-
Exército Revolucionário do Povo, liderado por Roberto Santucho) na Argentina, A ALN (Aliança Libertadora
Nacional, liderado por Carlos Marighella) e o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, liderado por
Carlos Lamarca) no Brasil, e o MIR (Movimiento de izquierda Revolucionário, liderado por Miguel Enríques) no
Chile”.

357
vii
Alguns setores da diocese de San Salvador receberam animadamente as notícias da nova linha pastoral da
teologia da libertação e, em se tratando de paróquias, elas ajudaram ativamente a difundir as organizações
populares de massa que formaram o corpo que enfrentaria o regime político-militar do país. Outro elemento que
merece destaque nesse âmbito é a educação popular, que era uma estratégia altamente produtiva. Temas
notoriamente comuns ao cristianismo como justiça e paz foram utilizados como ensejo para problematizar a
situação de exploração. É fruto do envolvimento dos católicos com os movimentos populares, por exemplo: a
Frente Unida de Estudantes Salvador Allende (Fuersa), o sindicato dos professores e a Federação Cristã de
Campesinos Salvadorenhos (Feccas) e a Frente de Ação Popular Unificada (Fapu); intimamente ligada à Igreja
(contudo, essa conexão duraria pouco, ainda que a influência católica sobre ela fosse inegável).

viii
Em resumo: a teoria da dependência, de acordo com Marini (1969/1999), afirma: a história do
subdesenvolvimento latino-americano se entrelaça a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. O
momento da expansão mercantilista europeia no século 16 foi o que uniu a América Latina ao capitalismo
definitivamente. Os países ibéricos foram os primeiros a violar os territórios americanos engendrando situações
de conflitos por todas as partes, mas foi a Inglaterra, mediante dominação político-econômica e bélica que impôs
controles tanto a Portugal quanto a Espanha e que iniciou uma voraz exploração. Para Marini (1969/1999) os
processos engendrados pela colonização vaticinaram a integração dinâmica de “novos países” ao mercado
mundial. As nações que apresentavam certa infraestrutura econômica (desenvolvida ainda na fase colonial) e
mostravam alguma capacidade de criar condições políticas relativamente estáveis foram as que responderam
mais rapidamente às exigências mundiais (Chile, Brasil e depois Argentina, por exemplo) sentindo na prática os
efeitos dessa integração. Um parênteses. A partir de 1875, devido a transformações ocorridas no capitalismo
internacional, potências como Estados Unidos da América e Alemanha despontam no cenário mundial. E é esse
o momento do surgimento de monopólios capitalistas; essa característica teve gênese na acumulação de capital
realizada em etapas anteriores que aceleraram e forçaram a busca de novos campos de aplicação (de capital) fora
das fronteiras nacionais, mediante empréstimos (públicos e privados), financiamentos, inversões de carteira ou,
em menor proporção, investimentos diretos. A aceleração dos processos de industrialização e urbanização
(afluxos tanto do capital estrangeiro circulando, quanto do aumento da infraestrutura de transportes) aumentou a
demanda por matéria-prima e alimentos. O crescimento econômico latino-americano foi vertiginoso nesse
período; essa expansão, sem embargo, aprofundou a “dependência” aos países mais industrializados. Nos países
em que a principal atividade de exportação estava sob o domínio das burguesias locais perdurava certa
autonomia (ainda que em íntima relação com o mercado mundial). Dessa forma, dois terços do continente latino-
americano se desenvolveram, durante os séculos 19 e início do século 20, como exportadores especializados na
produção de certos tipos de bens primários. Boa parte da mais-valia produzida era drenada para economias
centrais, seja pelos preços praticados (ou pelas práticas financeiras impostas), ou ainda pela ação direta de
investidores estrangeiros no campo da produção. As classes dominantes locais tentaram, em contrapartida,
aumentar a valor absoluto da mais-valia criada principalmente por agricultores e mineiros; ou seja,
superexploraram os trabalhadores; tal prática constituiu-se princípio fundamental da economia subdesenvolvida
(baixos salários, desempregos constantes, desigualdades sociais imensas, repressão policial etc.). A consolidação
do imperialismo como forma dominante do capitalismo internacional não se deu sem conflitos. De acordo com
Marini (1969/1999, p. 116), “no curso de sua evolução, terá que passar por um período extremamente difícil, que
358
se abre com a guerra de partilha colonial de 1914, avança com a desorganização imposta ao mercado mundial
pela crise de 1929 e culmina com a guerra pela hegemonia mundial de 1939”. As tendências engendradas por
esse processo dão lugar a tendências contraditórias. O imperialismo era tensionado por um lado, pela figura dos
E.U.A. que queria ampliar sua economia e seu poderio militar e, por outro, pelo socialismo como possibilidade
histórica. A superexploração do trabalho nos países periféricos se acentuou junto à acumulação de capital no
interior do sistema. A diversificação e o crescimento das zonas periféricas de desenvolvimento do capitalismo
compuseram (e compõem) uma crise no mercado capitalista. A que data da segunda década do século 20, teve
como consequência uma reestruturação da economia primário-exportadora na América latina. A crise do setor
externo (restrições à exportação e dificuldades para satisfazer o consumo interno mediante importações) exigiu
mudanças nas atividades. Nas palavras de Marini (1969/1999, p. 118) lemos: “A industrialização de substituição
de importações se impôs, então, em linhas gerais, em todos os países latino-americanos, segundo as
possibilidades reais de seu mercado interno e em consequência do grau de desenvolvimento alcançado na etapa
anterior. Desde 1920 até o início do anos 1950, muitos países se lançam por este caminho e alguns, como
Argentina, Brasil e México, chegam a criar uma indústria leve capaz de satisfazer no essencial a demanda interna
de bens de consumo não duráveis”. Os desdobramentos da segunda guerra mundial tiveram efeitos reais no
processo de industrialização latino-americano. Os industriais pressionaram as massas urbanas, mais do que no
período anterior, no quadro do que popularmente ficou conhecido na política como populismo estatal. Em
termos gerais, essa situação correspondeu ao término da industrialização primária, substitutiva de bens de
consumo não duráveis e a implantação de uma indústria pesada, produtora de bens intermediários, de consumo
durável e de capital. A indústria leve primária se apercebeu do esgotamento de suas possibilidades de expansão
no mercado interno, ocasionando tentativas de ampliação por meio da redistribuição de renda (desde aumento de
salários até uma proposta de reforma agrária). Somado a isso, a dificuldade na importação de bens intermediários
e equipamentos necessários conduziu a burguesia ao enfrentamento de uma segunda etapa no processo de
industrialização, a das indústrias pesadas. Tornou-se necessário realocar o capital do setor exportador para o
industrial e pôr em andamento proteções alfandegárias que protegessem o mercado nacional. Marini (1969/1999)
destaca ainda que na reorganização do mercado mundial sob a hegemonia dos Estados Unidos, o imperialismo
consolidou uma tendência à integração dos sistemas de produção. E isso se deu por duas razões fundamentais: a)
pelo avanço da concentração de capital em escala mundial, o que engordou os recursos aplicáveis das empresas
multinacionais que passaram a procurar novos campos de investimento no exterior; e b) o grande
desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias centrais que foi acompanhado pelo progresso
tecnológico. Ele acrescenta: “[...] por um lado, [isso fez] com que o tipo de equipamentos produzidos, cada vez
mais sofisticados, se aplicassem a atividades mais elaboradas de tipo industrial nos países periféricos, havendo
interesses, por parte de economias centrais, de estimular ali o processo de industrialização. Por outro lado, na
medida em que o ritmo de progresso técnico reduziu nos países centrais o prazo de reposição do capital fixo, de
uma média de oito para quatro anos, surgiu a necessidade, para esses países, de exportar à periferia
equipamentos e maquinarias que se tornaram obsoletos prematuramente e, o que é pior, não totalmente
amortizados (MARINI, 1969/1999, p. 121)”. Ao utilizar tecnologias importadas dos países centrais que
progressivamente desprezavam mão-de-obra, a indústria latino-americana deparou-se com um mercado reduzido
e tentou compensar isso abusando de manobras nas relações preço-salário. Para elevar o montante de divisas

359
disponíveis para a importação de equipamentos e bens intermediários, a burguesia industrial cedeu aos interesses
do setor agro-exportador. No entanto, ao realizar essa tarefa sem limitar sua acumulação de capital (necessário
para enfrentar a segunda etapa de industrialização), reafirmou o princípio fundamental do subdesenvolvimento: a
superexploração da força de trabalho. Os fenômenos econômicos daí decorrentes se manifestam na aceleração da
inflação e na negativa em se realizar reformas agrárias efetivas (El Salvador sofreu essas implicações), o que
prenunciou uma ruptura da base em se que apoiavam as políticas populistas da região. Ou seja, a suposta aliança
entre a burguesia industrial e seus discursos pseudorrevolucionários, as reformas de base e as políticas de
redistribuição de renda foram por água abaixo. Corolário disso foi a renúncia da burguesia em levar adiante uma
política de desenvolvimento autônomo. O assédio estrangeiro só aumentaria nos anos 1950, a burguesia
industrial latino-americana, de um ideal desenvolvimentista autônomo, partiu para uma integração consolidada
com os capitas imperialistas dando lugar a um tipo de dependência mais atroz que a anterior. Para Marini
(1969/1999, p. 123), “o desenvolvimento capitalista integrado acentua, pois, o divórcio entre a burguesia e as
massas populares, intensificando a superexploração a que estão submetidas e negando-lhes o que representa sua
reivindicação mais elementar: o direito ao trabalho”. A queda dos regimes liberal-democráticos em diversos
países coincidiu com essas duas tendências: por um lado o abandono das políticas bonapartistas e, por outro, a
das aspirações ao desenvolvimento capitalista autônomo; a isso se acresça o papel direto do Estado e os
incrementos nos gastos militares (que não se baseou nas demandas de uma oferta industrial de expansão de
consumo popular; afinal, pobres não compram armas no atacado). A lei geral da acumulação de capital
(elaborada por Marx) mostrou na América Latina toda a sua brutalidade (ela implicava na concentração da
riqueza em um polo da sociedade e o pauperismo absoluto da maioria dos indivíduos do outro). Marini
(1969/1999), longe de explicar tudo pelo economicismo materialista, afirma que o êxito dessas políticas não foi
uma fatalidade do destino e muito menos estava escrita na ordem natural das coisas. As condições culturais e as
peculiaridades concretas do continente são fundamentais para apreendermos ontologicamente a situação.
Naquela conjuntura, os projetos de integrações econômicas regionais e a ditadura de classe representada pelos
regimes tecnocráticos-militares passaram a fazer parte da realidade de inúmeros países do continente. A
reorganização dos sistemas de produção latino-americanos, no que tange à integração econômica imperialista e
ao encolhimento das lutas de classe, facilitou a aparição dos regimes militares de corte tecnocrático. Para Marini
(1969/1999, p. 125), “Sua tarefa [das ditaduras] é dupla: por um lado, promover os ajustes estruturais necessários
e pôr em marcha a nova ordem econômica que a integração imperialista requer; por outro lado, reprimir tanto as
aspirações de progresso material como os movimentos de reformulação política produzida pelas ações das
massas. Reproduzindo em escala mundial a cooperação antagônica levada a cabo no interior do país, tais regimes
estabelecem uma relação de estrita dependência com seu centro hegemônico: os Estados Unidos, ao mesmo
tempo em que esbarram continuamente com este, em seu desejo de tirar maiores vantagens do processo de
reorganização em que se encontram empenhados”. Pode-se afirmar que a América Latina integrada ao
imperialismo foi condição de sobrevivência para o sistema imperialista. Logo, seu processo de industrialização,
por suas características, intensificou a exploração das massas trabalhadoras na cidade e no campo. Seguindo
mesmo o autor, “Assim, na medida em que a indústria sempre dependeu do excedente produzido no setor
externo da economia e sempre quis absorver partes crescentes do mesmo, as classes beneficiadas pela exportação
buscaram compensar a perda que isso representava através do amento da mais-valia absoluta arrancada das

360
massas camponesas (MARINI, 1969/1999, p. 126)”. Se não é possível fazer jus à complexidade da teoria da
dependência ou, menos ainda, do “subdesenvolvimento” econômico latino-americano. Pelo que apresentamos
até o momento já se percebe o quanto esta teoria dialogou com diversas áreas do conhecimento no continente.
Nossa meta com essa extensa nota foi perscrutar minimamente o modo com a teoria da dependência que tanto
influenciou Martín-Baró concebia o desenvolvimento econômico.

ix
Vimos com Löwy (2012) que a primeira insurreição liderada por um partido comunista na América Latina foi
a de 1932, em El Salvador. Mas, qual foi o mote desse conflito? Segundo Montgomery & Wade (2006), um
crescente movimento de trabalhadores, iniciado no Congresso Centro-Americano de Trabalhadores, em 1911,
aproximou diversos setores explorados. No entanto, só em 1918, os trabalhadores formariam a Confederação dos
Trabalhadores de El Salvador. Pouco tempo depois, sindicalistas radicais do México e da Guatemala adquiririam
fama em El Salvador. A militância que só crescia foi composta por anarquistas, anarcosindicalistas e comunistas.
Foi nesse período que se organizou o núcleo que liderava o partido comunista salvadorenho. O presidente
salvadorenho da ocasião, Romero Bosque, mostrava-se disposto a tolerar sindicatos e partidos políticos desde
que eles não ameaçassem a oligarquia. Contudo, ao saber da organização de mais de oitenta mil camponeses,
proibiu manifestações públicas como comícios e propaganda de esquerda. O decreto foi ignorado e Farabundo
Martí, um dos líderes do partido, sofreu represálias, tendo que fugir para a Guatemala. Só em 1931 retornaria a
El Salvador, já na presidência de Arturo Araujo. O que o presidente da vez não contava era com a crise
econômica internacional de 1929, e incapaz de gerir a situação foi deposto por um golpe de Estado em 1930,
quando então o general Maximiliano Hernandez Martínez assumiria a chefia da nação. Nesse período, o agitador
Farabundo Marí foi outra vez preso por receber livros marxistas de Nova Iorque. Percebendo que o general
Martínez negaria a possibilidade de que alas da esquerda fossem eleitas legitimamente (as últimas eleições
tinham sido marcadas por fraudes descaradas), ele e outros líderes radicais teriam marcado a data da insurreição
dos explorados: 22 de janeiro de 1932. Nas palavras de Löwy (2012, p. 22), “o governo, porém, informado dos
preparativos comunistas, desencadeou uma onda de repressão preventiva, prendendo os principais líderes do PC
salvadorenho – Farabundo Martí, Alfonso Luna, Maria Zapata e Miguel Mármol – e fuzilando soldados
suspeitos de simpatias comunistas. Em resposta, uma insurreição camponesa inspirada e conduzida pelos
comunistas irrompeu em janeiro de 1922, especialmente nas regiões das grandes plantações de café.
Destacamentos vermelhos de camponeses indígenas, armados em sua maioria com machetes e alguns rifles,
ocuparam vários povoados durante alguns dias e estabeleceram efêmeros ‘sovietes locais’. Aparentemente,
participaram do levante mais de 40 mil combatentes”. O programa político daquele movimento era a revolução
socialista; poder para os conselhos operários, soldados e camponeses, contra a ditadura militar, o imperialismo e
a burguesia local. A insurreição foi sufocada e passou a ser conhecida como La Matanza. Foi um extermínio
selvagem e implacável. Vinte mil homens, mulheres e crianças foram assassinados nas regiões vermelhas. Como
o Comintern reagiu à façanha dos comunistas na América Central? De acordo com o único dos lideres que
sobreviveram a repressão, Miguel Mármol, foi um descaso quase total. Após os eventos, ao passo que alguns
saudavam a bravura dos mortos em combate, o Partido Comunista dos Estados Unidos criticou as “tendências
sectárias golpistas e esquerdistas do PC salvadorenho” (ANDERSON apud LÖWY, 2012, p. 23). Ele continua,
na mesma página: “Portanto, podemos concluir que a rebelião de 1932, constitui um evento inteiramente singular
na história do comunismo latino-americano, por seu caráter de levante armado de massas, seu programa
361
abertamente socialista e sua autonomia face ao Comintern. O fato de esse episódio ter sido mais ou menos
‘esquecido’ ou desconsiderado pelo movimento comunista oficial é, evidentemente, a consequência dessas
peculiaridades, que progressivamente contradiziam a nova orientação dos partidos comunistas. Só foi
redescoberto e reabilitado pelo guevarismo na década de 1970 [essa informação é de Roque Dalton, poeta
salvadorenho apreciado por Martín-Baró]”. (LÖWY, 2012, p. 23). O plano que vazou quatro dias antes da data
marcada fez com que Farabundo Martí fosse preso junto com outros dois companheiros. O resultado foi um
levante desorganizado e confuso que se deparou com uma contrapartida brutal e feroz. Entre os milhares
massacrados, menos de 10% tinha efetivamente participado das ações da esquerda. Farabundo Martí foi julgado
e executado pelo tribunal do Exército.

x
No período agora trabalhado, a década 1970, muitos sindicatos se politizaram e à medida que a repressão
aumentava “iam se apagando mais e mais as linhas democráticas entre a afiliação aos sindicatos e às
organizações populares de base e os movimentos guerrilheiros” (MONTGOMERY & WADE, 2006, p. 53). O
aumento da repressão e da crescente radicalização intensificou a movimentação das organizações militares e
paramilitares (anticomunistas); principalmente após as eleições de 1972. Surgiram tenebrosos “esquadrões da
morte” e frases como “seja patriota mate um padre” passaram a ser comuns no país. Em 1977, por exemplo, as
eleições decorreriam entre protestos violentos (a polícia matou dezenas de manifestantes), e essas ações serviram
“de testemunho adicional de que a possibilidade de reformas por meio de eleições não existia”
(MONTGOMERY & WADE, 2006, p. 53). Só por meio de um conchavo político-militarizado a esquerda
conseguiu se reorganizar; primeiro com as Forças Populares Revolucionárias (FPL) e, posteriormente, com o
Exército Revolucionário do Povo (ERP), saído do Partido Comunista (muitos líderes dessas organizações eram
“influenciados” pelos católicos). Sem embargo, diferenças políticas e ideológicas entre a “esquerda” atingiram
seu ápice quando o poeta salvadorenho Roque Dalton, que era filiado à Resistência Nacional, foi assassinado, em
1975, por alguns membros do Exército Revolucionário do Povo (ERP). O caso do partido comunista
salvadorenho é emblemático, pois expunha as contradições da situação: eles optaram pela via reformista
participando do processo eleitoral por meio de sua frente legal, a União Democrática Nacionalista (UDN). Só
após o massacre das eleições de 1977, eles mudariam de lado e recorriam à luta armada. As milícias criadas em
meados de 1979, transformariam-se nas Forças Armadas de Libertação (FAL). A resposta do governo às
crescentes manifestações e à organização da esquerda criou a Ordem Democrática Nacional (ORDEN), que
somou forças à União Comum Salvadorenha (UCS), patrocinada pelos Estados Unidos e que cooptava
camponeses para servirem aos interesses do sistema econômico hegemônico. É nesse momento que surge o
Bloco Popular Revolucionário (BPR), entidade organizada pela Federação Cristã de Campesinos Salvadorenhos
(Feccas) e pela Associação Nacional de Educadores Salvadorenhos-21 (Andes-21) e de grande representativa
nacional. Em 1980, o BPR se tornaria a maior organização de massas do país. Surge também a Frente de Ação
Popular Unificada (FAPU), outro grande coletivo que adquiriria notoriedade por apresentar análises incisivas
sobre a realidade salvadorenha. Por intermédio de seus trabalhos a FAPU provocou repercussões importantes no
desenvolvimento de um programa político unificado (e por sua insistência na consolidação de alianças com os
setores progressistas da Igreja e dos partidos políticos, somados à participação da Universidade Centro-
Americana, dos sindicatos progressistas e de representantes da iniciativa privada), ela se tornou a representante
política oficial da esquerda quando as cinco facções se unificaram e, em 10 de outubro de 1980, formaram a
362
Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN). Percebe-se até aqui que narramos um conturbado
período de lutas sociais. O significativo aumento das organizações políticas associadas ao ativismo da Igreja
Católica passaria a ser combatido com violência sem precedentes pelas forças governamentais. A combinação
entre uma repressão feroz e uma economia em franca degeneração gerava instabilidade.

xi
Em suma a situação da estratificação social salvadorenha era a seguinte: a) classes dominantes compunham
mínima fração da população salvadorenha, e no ano de 1988, por exemplo, era basicamente formada por
rentistas. Se de alguma forma ela diminuiu no início da década de 1980 - com a primeira fase da Reforma
Agrária (1981-1982) - anos depois cresciria bastante, investindo seu capital nos bancos e em ações na bolsa de
valores tanto de El Salvador quanto fora do país. Montes (1988) relata que no subsetor dos grandes
proprietários, destacavam-se também a situação das empresas privadas gigantes e grandes. Nesse período,
grandes proprietários alcançavam 0,28% das famílias, desse número, 0,24% concentravam-se nos setores
agropecuários, 0,0013% nas indústrias, 0,0016% no comércio e 0,0013% nos setores financeiros e demais
serviços do país. No subsetor dos altos gestores, dada à dificuldade de obtenção dos dados (foram considerados
como integrantes dela: profissionais de grande influência nas empresas, assessores, altos gerentes ou outros
postos importantes de diretoria), a aproximação feita é que 0.06% das famílias faziam parte dela; esse número
podia ser menor. No subsetor dos proprietários medianos (proprietários que contratavam mão de obra e obtinham
reprodução ampliada de capital) as empresas somavam total de 3.350, das quais 2.238 eram do setor
agropecuário. Supondo que cada propriedade pertencesse a famílias diferentes (e que nenhuma pertencesse a um
único dono), 0,42% da população salvadorenha comporia essa classe; 0,28% desse número estariam no setor
agropecuário; b) as camadas médias e Pequena burguesia eram formadas por aproximadamente 3.561
professores e instrutores universitários, 7.525 membros de associações profissionais (aproximadamente 1000
pessoas trabalhavam nos meios de comunicação). De um total de 32.086 - e se cada indivíduo representasse uma
família diferente - isso equivaleria a 3,4% da população salvadorenha. Empregados nos setores públicos, em
1985, eram 118.534, foram excluídos todos os que entravam na categoria intelligentsia; supondo que nenhum
deles compunha parte de outra fração e fossem de famílias distintas, isso equivaleria a 2,8% das famílias
salvadorenhas (MONTES, 1988a); e c) os “dominados” e os “semiproletários” ocupavam diversos cargos, em
alguns casos, em setores informais da economia, principalmente o agrário. Das 249.163 microempresas
existentes, 234.941 eram de micro-exploradores agropecuários e estavam nesta categoria 31.15% das famílias
salvadorenhas. A situação do proletariado apresentava dados oficiais muito diferentes entre si. As empresas
privadas geravam por volta de (nos anos 1978 e 1979) 241.212 empregos remunerados, dos quais 87.033
correspondiam ao setor agropecuário, se dessa análise fossem retirados administradores, técnicos (que
correspondiam as camadas médias da população) e as empresas não agropecuárias com mais de 5 trabalhadores,
esse número orbitava a cifra de 180.000 proletários; desse número 85.000 faziam parte do setor agropecuário (o
que percentualmente representaria 22,5% e 10,6% da população de famílias salvadorenhas, supondo que cada
trabalhador representasse uma família diferente). A parcela dos desempregados e subempregados era a de maior
dificuldade para análise. Em 1980, início da guerra civil, o desemprego da população economicamente ativa era
de 55% e o subemprego, 33,7%. Em 1985, o desemprego aberto aumentou 37,7% e o subemprego superava 40%
segundo as estimativas. A divergência entre diversos dados “oficiais” faz-nos deduzir que o Instituto de Opinião
Pública fundado por Martín-Baró, e que analisaremos a seguir, era fruto de necessidade histórica de resistência.
363
xii
Pormenorizemos aqui o que esse ano representou para a organização dos movimentos sociais em El Salvador.
Aos 22 de janeiro de 1980, 48º aniversário da insurreição de 1932, as organizações populares realizaram um ato
de proporções gigantescas. Pelo menos 200 mil pessoas foram a San Salvador para demonstrar força e prestar
homenagens aos combatentes mortos. Todavia, o que começou como manifestação pacífica converteria-se em
cena de guerra. O Exército Revolucionário do Povo (ERP), após matar o poeta Roque Dalton, ausentaria-se das
grandes discussões entre as organizações populares de resistência e só com a criação do Diretório
Revolucionário Unificado (DRU), em 22 de maio de 1980, voltaria ao cenário político. A criação do DRU não
resolveu os problemas, pois a presença de diferentes táticas entre eles e as das Forças Populares de Libertação
(FPL), por exemplo, que insistiam em uma guerra prolongada, fez com que os últimos optassem por uma
estratégia que combinava guerra revolucionária e insurreição popular. A Frente Democrática Revolucionária
(FDR), que tinha como observadores tanto a Igreja Católica quanto a UCA, unificaram forças de oposição,
centro-esquerda e à esquerda do espectro político. A intensificação da repressão forçou a FDR a mudar de tática
migrando de manifestações de massa para as greves gerais. A estrutura da organização se baseava sinteticamente
em três pilares: guerrilheiros, milícias e comitês populares de bairro. Ao longo dos quatro últimos meses do de
1980, líderes da FDR sofreram com emboscadas e muitos foram assassinados. Essa tragédia foi o estopim para
que a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional partisse para a luta franca. Para termos uma ideia do
alcance e da força da FMLN, eles teriam, naquela década, mais representantes em outros países do que El
Salvador tinha de embaixadas. De acordo com Montgomery & Wade (2006, p. 80), “o desenvolvimento e a
educação popular eram componentes cruciais da estratégia geral da FMLN. Embora os seus grupos apoiassem as
crenças marxistas, os princípios diretores para a sua organização eram social-democratas, não marxistas”.
Durante os anos mais duros, os comitês populares de bairro se tornaram unidade básica da organização política.
Outra característica emblemática dessas organizações revolucionárias que mercece destaque é o papel que as
mulheres ocupavam nelas; divergindo do machismo e do sexismo tão comuns. A presença dos cristãos centro-
esquerdistas, mulheres e diferentes tendências políticas nas correntes de esquerda contribuíram muito para a
singularização do caso salvadorenho.

xiii
De acordo com Tapia (1991), o partido “arenero” (como ficou conhecido em El Salvador) deu início ao
processo de modificações que é descrito por ele, nos seguintes pontos: a) homogeneização dos altos comandos
do Estado (passaram a dominar poderes legislativos, executivos e judiciários); e b) alteração no campo das forças
excluídas do pacto de dominação (organizações sociais lentamente começaram a se reorganizar depois da intensa
repressão de 1981). Neste ínterim, a Igreja Católica desempenhou papel importantíssimo, pois foi uma das
principais referências de organização social.

xiv
Ainda em relação ao tema, o sítio oficial da UCA assinala: “En relación con esta intensa actividad académica,
floreció la producción impresa: UCA Editores, fundada a comienzos de la década de 1970, incrementó
notablemente su fondo editorial, tal como se puede constatar en su catálogo. Entre 1979 y 1984, la UCA llegó a
tener nueve revistas, incluyendo ECA, fundada en 1946. Estas publicaciones, que recogen y difunden la
producción académica de los departamentos, fueron precedidas por una de corta vida, llamada Abra. La lista es
la siguiente: Administración de Empresas (1979), Boletín de Ciencias Económicas y Sociales (1979), Ciencia y
Tecnología (1980), Proceso (1980), Carta a las Iglesias (1981), Boletín de Psicología (1982), Taller de

364
Letras (1982), Revista Latinoamericana de Teología (1984). El boletín de economía se transformó en
larevista Realidad económico-social, primero (1988), y luego en Realidad (1994). A comienzos de la década de
los noventa, algunas de estas revistas tuvieron que suprimirse por falta de circulación. Entonces, Realidad se
convirtió en la revista de humanidades y ciencias sociales, como lo indica su título actual. Hubo otras dos
revistas tecnológicas de corta vida: Ciencias Naturales y Agrarias (1986) y Boletín de Ingeniería Eléctrica y
Ciencias de la Computación (1991)”.

xv
Vários desdobramentos dessas respostas esculpiram a “ética cristã” que depois, mesmo que sob a bandeira do
protestantismo, figuraria no título da obra de Max Weber (1864-1920) A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo (WEBER, 1905/2007). Além disso, o problema da origem do mal enfrentado por Agostinho foi de
grande importância para a época (século 4 depois de Cristo). Ele defendia que só o “bem” existe, seu
contraponto seria apenas sua ausência ou privação. Temos nele o nascimento “oficial” da noção do mal como
falha humana, imperfeição. Outro grande destaque dado por ele versa sobre a liberdade humana; pressuposto de
fundo absolutamente central para uma aclaração sobre a ética. O silogismo é: se a natureza é marcada pelo
pecado original, a imperfeição originada na fraqueza de Adão faz com que o ser humano esteja sujeito às
tentações e aja contrariamente à lei moral, portanto haveria um determinismo que tornaria inevitável o pecado,
por conseguinte, a ação antiética. Em absoluto, os indivíduos não seriam livres, uma vez que, em última
instância, não seriam eles, mas o pecado original (falha em sua própria natureza) o responsável pelos erros. Isso
resulta em que o ser humano seria compelido a agir contrariamente à ética necessariamente, uma vez que sua
ação seria determinada heteronomamente, não existiria liberdade individual, logo não estaria verdadeiramente
pecando (MARCONDES, 2014). O livre-arbítrio, ou liberdade individual, são as asas de Dédalo desse labirinto.
Para Agostinho (apud MARCONDES, 2014), o livre-arbítrio é uma espécie de capacidade humana que nos torna
responsáveis por escolhas e decisões. Pode-se, portanto, agir de forma ética ou não. Só tendo intrinsecamente a
chama da liberdade, consegue-se verdadeiramente pecar. Em suma: sem a liberdade, nem o pecado pode ser
“racionalizado” pela teologia cristã ocidental.

xvi
Acerca da ética no século das luzes, vale a pena lembrarmo-nos das contribuições de Immanuel Kant, talvez
para a maioria da comunidade acadêmica o ápice do discurso acerca da ética na Modernidade. Pois, fluente como
poucos nas leituras filosóficas clássicas, conhecedor das transformações sociais vividas na Europa, da
efervescente teologia protestante e, claro, privilegiado pelo lugar em que nasceu, Königsberg, território da antiga
Prússia, ele propugnou para a ética algo que ultrapassava os limites da mera reflexão cognitiva, influenciando,
por exemplo, decisivamente o desenvolvimento histórico do direito positivo. A sucinta explanação de
Marcondes (2014, p. 86) resume seu intento: “Ele estuda a razão tanto no sentido prático quanto teórico. Analisa
as condições segundo as quais a razão funciona, a maneira como opera e também seu objetivo. No aspecto
teórico, trata-se do conhecimento legítimo da realidade com base na distinção entre entendimento e
conhecimento. No que diz respeito à prática trata-se da escolha livre dos seres racionais, que podem se submeter
ou não à lei moral, que por sua vez é fruto da razão pura em seu sentido prático; portanto, age moralmente aquele
que é capaz de se autodeterminar. O pressuposto fundamental da ética kantiana é a autonomia da razão”. Nessa
direção, três de suas obras são fundamentais para nosso estudo Fundamentação da metafísica dos costumes
(1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1797-8). A ética kantiana respondia ao que

365
deve fazer o humano. Só isso já sinaliza o grau de mudanças sócio-políticas e culturais ocasionados por aquele
período na constituição histórica do espaço psicológico (como veremos a seguir, elas já começam a afluir para o
individualismo burguês). A proposição, na Metafísica dos costumes, ecoa viva: “- age como se a máxima de tua
ação devesse tornar-se mediante tua vontade a lei universal da natureza”. A ideia é de que ação moral (que não
deve ser confundida com a ética), independente da situação e das condições, pode e deve ser universalizável.
Trata-se, pois, de um princípio formal – só será ético se for universalizável. É nesse mesmo texto que
encontramos o tão falado imperativo categórico. De acordo com ele, deveres morais são válidos
incondicionalmente, isto é, são princípios que inadmitem exceção (Kant, 1785/2005). A força moral do
imperativo deriva da própria razão; o esclarecimento racional, portanto, é a saída do humano da condição de
menoridade autoimposta, que figura como sua incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a orientação
de outros (MARCONDES, 2014). Kant (1785/2005) atrelou o próprio exercício da liberdade ao esclarecimento,
ou iluminação, condicionando a maturidade do sujeito ao exercício, aqui não mais hábitos, da própria razão. Ao
chamar, por exemplo, de preguiçosos e covardes os que não amadurecem a razão, ele aponta para, o que aqui nos
interessa primordialmente, o caráter subjetivista de sua perspectiva ética; fruto de não pequena divergência por
parte dos materialistas histórico-dialéticos. Para o enriquecimento de nossa discussão, e aproveitando o fio
levantado pelas questões de Kant, avançaremos para alguns apontamentos de Nietzsche (e, posteriormente, aos
de Freud e de Foucault) ao debate, e explicamos o motivo. Em Nietzsche temos um dos mais severos críticos da
ética racionalista e da existência de uma moral religiosa na história da filosofia. Ao bravejar a “transvalorização
de todos os valores”, e valendo-se de sua famosa humildade, ele alcunha de “animais de rebanho” os homens e
mulheres que porventura se afiançam à moral, tal como ele próprio a compreendia, para guiar seus
comportamentos. A astúcia nietzschiana, todavia, reside em sua capacidade de compreender moral e ética como
objetivações humanas, derivações do que ele taxava de “razão universal”, sendo que, em seu entender, ela (razão
universal) era a “substantificação” dos sentimentos e instintos humanos abstratamente cristalizados, logicamente
resultado histórico, cultural e educacional da civilização. Para Marcondes (2014, p. 107), “[...] a Genealogia da
Moral, de 1887, [de Nietzsche] tenta mostrar que os conceitos e valores tradicionais da moral não são universais
e nem estabelecidos objetivamente. Têm suas origens em um momento histórico determinado, em uma cultura
específica, e servem a certos interesses e propósitos que, no desenvolvimento da tradição, acabam por ficar
esquecidos”. Para Nietzsche, os filósofos tradicionais não se questionaram sobre o realmente importante: o
sentido da própria moral. A questão de fundo pode simploriamente se condensar em um trecho da Genealogia da
Moral: “(...) Foram os “bons” mesmo, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que
sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era
baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.” (NIETZSCHE, 18871998, p. 19). Os dilemas que assolam a
consciência humana sobre a moral e a ética, segundo aquele autor, seriam uma coagulação, em seus conteúdos,
de interesses hegemônicos. Assertiva que, sem dúvida, concordaríamos se com isso ele não nos desiludisse das
potências da razão e das emoções para apreendermos os valores pertencentes à genericidade humana. Diferente
de Kant, que escreve uma “crítica da razão”, ele se destaca por sua “crítica à razão”, às capacidades e funções
dela; além disso, seus escritos são fontes bibliográficas importantes e, devidamente não citadas, pelo próximo
autor que trouxemos para ampliar nosso debate: Sigmund Freud. O “pai de criação” da Psicanálise, na linha
arguitiva de Nietzsche, propõe sofisticado questionamento aos que pretendem ancorar valores éticos na razão e

366
dificulta, mais ainda, a possibilidade de justificação lógica desses mesmos valores. A própria noção de
inconsciente, para alguns, já é argumento suficiente para “ferir narcisicamente” projetos sociais de cunho
científico-revolucionários e éticos. Freud postula, em termos genéricos, que as atividades humanas não estão
totalmente na dependência do controle racional e das deliberações da consciência; pelo contrário, aponta que, em
grande parte, eles são determinados por elementos inconscientes, como pulsões, desejos reprimidos e traumas.
Sua obra é demasiadamente controversa para satisfatoriamente abordarmos a problemática ética em poucas
linhas; porém, cremos ser lugar comum entre iniciados na psicanálise que muito do que na Filosofia foi tido
como “valores universais próprios da genericidade humana” é traduzido, em sua pena, pelas “apropriações dos
valores culturais” feitas pelo que rotula de instâncias psíquicas (id, eu e super-eu). Para concluir essa série
explicações sobre a ética apresentaremos em traços simplistas a proposta de Michel Foucault (1926-1984), que
articulou posições de Nietzsche, Freud e Marx, sob inspiração, no começo de seus escritos, do estruturalismo
francês e da fenomenologia (com isso não minoramos algumas veias originais de sua obra sobre o tema). Seu
projeto é audacioso, dado que, ao reconhecer o que julgou avanços em Nietzsche, desvincula um “ato moral” de
uma série deles que seguem uma regra, lei ou valor; antes, põe que esses atos implicarão sempre certa “relação a
si”, que não é imediatamente “consciência de si”, mas a constituição de si como “sujeito moral”. Existe aí, ao
menos é o que nos parece, preciosa e sofisticada distinção. Nas palavras de Foucault (2001, p. 28): “[...] o
indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em
relação ao preceito que respeita, estabelece para si certo modo de ser, que valerá como realização moral dele
mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se,
transforma-se”. Ou seja, o indivíduo abandona o “aprisco dos nobres, aristocratas e poderosos”, no dizer de
Nietzsche, e passa a assenhorar-se de um “rebanho” do tamanho de sua capacidade de criar um “sujeito moral”.
Muito da discussão ética no Foucault “da maturidade” consiste em uma releitura dos clássicos gregos,
principalmente de Platão e dos estoicos. Sua empresa, entre outras coisas, transpôs o “conhecer-se a si mesmo”
socrático para “cuide-se de si mesmo”. Não faríamos jus à detalhada trajetória histórica dos argumentos de seus
argumentos sem uma robusta exegese, principalmente d’ A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade,
de 1984. Ademais, parece-nos pertinente sua colocação acerca de que os indivíduos não se relacionam com um
código moral de forma mimética, mas, seria no relacionamento com ele, na forma com que o percebemos
(primeiro como algo estranho e, só depois, por meio da prática de suas liberdades, coadunando-se ou rechaçando
esse código), que podemos conceber um ato como moral/ético ou não (FOUCAULT, 1984/2004). Não há, para o
francês, ética entre escravos (à semelhança dessa proposição podemos citar o texto de Hardt e Negri na obra
Commonwealth - para mais detalhes sobre o tema consultar: HARDT, M. & NEGRI, A. Commonwealth.
Cambrigre, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009). Apesar do que dissemos, o
debate de Foucault sobre a liberdade é polêmico. Quando se discute a liberdade como condição ontológica da
ética, ela mesma deve assumir traços concretos de prática da liberdade. Em outras palavras, a proposta
foucaultiana pode se aproximar à crítica da ética kantiana, pois, se “levada ao extremo, seria preciso supor uma
consciência moral tão pura e racional, que a cada ato seria preciso começar do zero, o que na prática seria
reforçar o individualismo” (VALLS, 2013, p. 21). Se conteúdos éticos nunca se atrelam à totalidade social
concreta, essa “prática do exercício da liberdade”, entre outras coisas, estaria mediada apenas pela “compreensão
subjetivista” da ética e da moral, portanto, à mercê das condições reais dessa capacidade nos/dos próprios

367
indivíduos. Sem nenhuma mediação social efetiva, Lukács (1986/2013) afirma que a ética perde contato com a
realidade social das coisas em-si, assemelhando-se, assim, mais à “ideologização burguesa” do que aos valores
humanos. Em resumo: a ética só pode ser apreendida em suas dimensões na/da práxis humanas. Um parentesês.
Podemos, acordados com Valls (2013), separar didaticamente seus problemas teóricos em dois campos: a)
problemas gerais e fundamentais (como liberdade, consciência, bem, valor, lei etc.); b) problemas específicos (de
aplicação concreta, como os problemas de ética matrimonial, de bioética etc). Ontologicamente a distinção só se
produz como momento de abstração, pois aprendemos com Lukács (1986/2013), que na realidade este complexo
é unitário e indecomponível. Em síntese, para Valls (2013, p. 56), “a ética abrange formas humanas de resolver
as contradições entre necessidade e possibilidade, entre tempo e eternidade, entre o individual e o social, entre o
econômico e o moral, entre o corporal e o psíquico, entre o natural e o cultural e entre a inteligência e a
vontade”. Sobre a relação da ética com a da liberdade, é preciso considerar que se a primeira relaciona-se com os
valores que medeiam o trabalho coletivo humano e a própria vida cotidiana, temos que levar em conta, em todos
os casos, a responsabilidade singular dos próprios indivíduos como seres ativos, agentes de responsabilidades, na
apreensão das atividades éticas. A ressalva é que ao propormos a responsabilização, em nada flertarmos com
uma “culpabilização” dos indivíduos.

xvii
Não submergiremos nos meandros teóricos do projeto político-societário emancipatório difundido por Marx e
Engels (socialismo-comunismo), mas isso não inviabiliza lembrarmos que, em linhas gerias, ele versa sobre a
possibilidade histórica (longe de uma inevitabilidade do Destino) de mulheres e homens livres da exploração
econômica e da opressão ideológica burguesa, “em condições de liberdade, igualdade e justiça social, assim
como de dignidade humana” (Vázquez, 2010, p. 78), exercer domínio sobre suas condições sociais de existência.
Esse projeto ético-político é racional e realizável, mas não sem condições reais para tanto. Na síntese feita por
Vázquez (2010), ele é: a) necessário, porque se não chegarmos ao socialismo a lógica destruidora do capitalismo
conduzirá a humanidade sempre a “novas barbáries”; b) desejável, pela superioridade de seus valores humanos
(éticos) e econômicos, em comparação aos que regem o capitalismo, e por responder aos interesses e as
necessidades de toda a sociedade; c) possível, existiram no século 20 tentativas (malsucedidas é verdade) de seu
estabelecimento, elas atestam que, ao se darem condições históricas e sociais favoráveis, uma mudança se
viabiliza; d) Realizável, se dada possibilidade histórica vir à luz e a humanidade “tomar consciência” da
necessidade de agir para realizá-la e, consequentemente, mobilizar-se organizadamente para tanto, ela se tornará
uma alternativa histórica concreta. Para concluírmos, para Vázquez (2010), esse projeto, especialmente, versava
sobre a pretensão ou intuito de conhecer a realidade (do capitalismo) desde o seu ser-em-si “para” transformá-la;
eles queriam apreender as possibilidades de mudanças inscritas na realidade, as condições necessárias para tanto,
as forças sociais que levarão a cabo essa transformação, bem como dos meios e vias mais adequadas. Podemos
abordá-lo, portanto, sob quatro aspectos: crítica, projeto, conhecimento e prática transformadora (ou política
revolucionária).

xviii
Os outros acampamentos foram intitulados: 1) Ignacio Martín-Baró – Atención a víctimas de la violência; 2)
Ernesto “El Che” Guevara – Justicia social y política pública; 3) José Martí – Migraciones y desplazamientos
forzado; 4) Martin Luther King – Derechos humanos y civiles; 5) Mahatma Gandhi – Resistencia civil,
convivencia y cultura de paz; e 6) Alejandro Chao Barona – Vinculación de la universidad con la sociedad civil.

368
xix
Para encerrar as contribuições de Ignacio Dobles Oropeza a esta tese, deter-nos-emos brevemente em seus
apontamentos sobre um das categorias mais preciosas trabalhadas por Martín-Baró para o avanço da Psicologia
concreta, a violência. Poucas atividades humanas são tão complexas e possuem tantos significados distintos em
situações “aparentemente” (do ponto de vista sensorial imediato) parecidas quanto àquelas consideradas
violentas. Podemos parafrasear o exemplo, se não nos falha a memória, dado por Theodor Adorno quando ele
diz que em uma mesa cirúrgica, alguém empunhando um bisturi dilacerando um tórax humano em um hospital
pode não ser considerado violento, mas quando falamos de tráfico de órgão, essa mesma cena pode ser sinal de
tragédia. Martín-Baró tratou de discutir a violência ao longo de praticamente toda sua frutífera jornada
intelectual (desde Violência e Cristianismo [MARTÍN-BARÓ, 1964d] até o artigo Religión y guerra psicológica
[MARTÍN-BARÓ, 1989?/1990a], por exmplo). Sua proposta não só aniquilava tentativas de compreendê-la
parcialmente, como tratou de captar nessas atividades humanas os significados e os sentidos delas em cada
particularidade histórica específica. A análise da categoria violência é emblemática porque ela não só contém
indícios teóricos de seus avanços científicos, mas também põe luz sobre a seriedade com que ele encarava os
problemas concretos enfrentados por El Salvador. O modo como se posicionou concretamente (ética e
politicamente) contra violência do estado salvadorenho serve de elemento concreto para depreendermos como
efetivamente se construiu sua proposta de Psicologia. Não dissertamos apenas sobre o autor de textos críticos ou
de uma figura nacionalmente conhecida pelas conversas que estabelecia com os ouvintes pelas rádios, mas
também sobre um militante que prestou auxílio corpo a corpo às frentes políticas de resistência marginalizas e
postas na ilegalidade naquela quadra histórica. Sua premissa de que sem situar a violência concretamente não é
possível condená-la por igual, é polêmica, mas ao mesmo tempo expõe uma dimensão da discussão que por
vezes é eclipsada. Não se trata, pois de justificá-la, mas de compreender suas origens e seu funcionamento, como
bem lembra Oropeza (2016). Mais uma vez enfatizamos que a busca pela significação dos atos violentos e a
apreensão do sentido deles (considerando a totalidade social) são componentes sem os quais não é possível uma
discussão em termos ontológicos. O escravo africano que reagia de modo agressivo as injúrias e espancamentos
dos capatazes nas fazendas cafezais brasileiros, por exemplo, não pode ser taxado de violento “tanto quanto” ou
“da mesma forma” que o senhor do engenho que lhe designava tal punição. Sem as mediações teóricas
adequadamente tratadas torna-se impossível distinguir efetivamente o que é a violência. Uma vez que a
“positividade” do comportamento, o empiricamente constatável, é incapaz de assegurá-la, ainda que
evidentemente pode (e deve, em vários casos) ser ponto de partida para sua apreensão. Não se discute violência,
de acordo com Martín-Baró (1989g), sem considerar a totalidade dos indivíduos (seu corpo, suas emoções, as
condições reais de operação do seu psiquismo etc.). Não é possível falar de uma violência “sociologizante”,
como que determinada externamente. Sempre as condições reais do desenvolvimento histórico dos indivíduos e
dos processos grupais envolvidos precisam ser analisadas como componentes reais do processo que a engendra.
Isso não quer dizer, todavia, que se possam encontrar as raízes genéticas da violência dentro de nenhum
indivíduo isoladamente; apenas quando consideramos as condições sociomateriais e culturais (mediatas e
imediatas) e mesmo as do momento em que esse ato é praticado, encontramos suas determinações reais. O
transfundo ideológico é parte importante da análise de Martín-Baró. Parar na microanálise da violência, não
situar adequadamente esse ato no marco histórico do desenvolvimento do modo de produção político e
econômico que o possibilitou é erro científico. Nessa direção, é interessante percebermos a atualidade da

369
discussão de Martín-Baró sobre uma categoria cada vez mais presente, de diversas maneiras, nas páginas dos
jornais mundo afora: terrorismo. De largada, notamos o quanto ele readéqua, ainda nos idos de 1980, a diferença
entre entender o terrorismo como algo praticado por indivíduos isolados ou de considerá-lo efeito colateral ou
mesmo atividade deliberada do Estado burguês. Não é mera retórica, sabemos por inúmeros exemplos que
determinado ataque militar é considerado ou não terrorismo, caso esteja ou não previsto em alguma
jurisprudência, caso seja legalizado ou não. Mas, de fato, uma bomba lançada não é menos explosiva por ter
origem no esquadrão A ou B. Em suma, terrorismo, para Martín-Baró (1989c), possuí uma forte carga
ideológica. A sentença é precisa, pois como lembra Oropeza (2016), para “contribuir” com a chamada “doutrina
de segurança nacional” a Psicologia se envolveu ativamente (com a chancela da American Association of
Psychologists – APA – nos Estados Unidos) na chamada guerra contra o terror fornecendo algo como
“interrogatórios reforçados” (Enhanced interrogation) mais eficientes. Em outras palavras, um eufemismo para
produção científica da tortura refinada por meio de pesquisas em Psicologia. A temática ora apresentada enseja
oportuna ocasião para expormos outro elemento que recebeu grande atenção por parte do jesuíta: a guerra
psicológica (retomaremos o tema adiante). Sua contribuição, em resumo, apreende aspectos que usualmente são
deixados de lado pelos debates psicológicos. Martín-Baró se acerca da guerra civil salvadorenha sem
negligenciar a destruição concreta e notória que ela causa, ampliando o que a ciência conhece sobre seus efeitos
na vida cotidiana. Ressalte-se, ainda, o quanto a ciência psicológica hegemônica forneceu instrumentos e
recursos para os envolvidos nas guerras sobrepujarem-se aos seus adversários (estudando os hábitos, os
costumes, o medo, a humilhação e elaborando retóricas para “explicar” as atrocidades cometidas etc.). A
dedicação de Martín-Baró ao tema “guerra e seus desdobramentos psicológicos” (e sabendo que o uso da
propaganda e dos meios de comunicação para “influenciar” opiniões e perspectivas são importantes nesses
casos; apreender como a questão da saúde mental e dos danos psicológicos causados por ela afetam tantos os
grupos quanto os indivíduos vistos em suas singularidades, por exemplo), alcançou consideráveis avanços. Aliás,
abordar saúde mental em uma conjuntura de guerra por si já deveria causar impactos sobre o que comumente se
diz sobre essa expressão. É lugar comum lermos definições de saúde acintosamente inclinadas a pressupostos
individualistas e adaptacionistas, o simples fato de a definição de Martín-Baró ser mais abrangente deve ser visto
como “avanço” científico tanto naquele período quanto do nosso; pois, alguns insistem em tratá-la como uma
“propriedade” indivividual, com se saúde fosse algo que se tem e não algo que se produz nas relações sociais.
Como ele bem aponta, em casos extremos de guerra e conflitos psicológicos intensos, “ciertas dosis de síntomas
psiquiátricos son la expressión del máximo de salud mental y bienestar [...]” (MARTÍN-BARÓ apud Oropeza,
2016, p. 200). Isto é, não é possível discutir o que é saúde mental sem considerarmos concretamente as relações
sociais (aqui trabalhadas em uma acepção muito próxima, apesar de não referendada, ao método que Vigotski
utilizava).

xx
Por reconhecer a ordem cronológica como auxílio expositivo, amparamo-nos no pressuposto assinalado
anteriormente sobre a irreversibilidade do tempo. Uma publicação de 1989 sobre os desafios da Psicologia
Política veio, sob qualquer ângulo, depois das discussões de Martín-Baró sobre o materialismo histórico-
dialético e Deus, em 1965.

370
xxi
Vimos no segundo capítulo desta tese algumas posições de Tomás de Aquino, e não é nosso objetivo nos
aprofundarmos nele, mas algumas aclarações são úteis principalmente por conta da aproximação do aristotelismo
à cosmogonia cristã. De acordo com Araujo (2007), Tomás de Aquino sofreu fortes resistências em seu período
para justificar algumas leituras possíveis dos clássicos do estagirita (Física, Metafísica, Ética a Nicômaco e
Política, por exemplo); tendo que recorrer muitas vezes a traduções do próprio grego para se justificar.
Empregando o que chamou de intuição analógica, Aquino buscou estabelecer pontes entre platonismo-
agostiniano e concepções materialistas aristotélicas. Por isso, sua filosofia é eivada do realismo metafísico que
não negava a existência de coisas “extramentais” (palavra recorrente no texto ora lido) ainda que as submetesse,
em última instância, à criação divina a partir do nada (ex-nihil). Para Campos (apud Araujo, 2007, p. 10), “é a
partir deste núcleo que se estruturam as teses fundamentais que integram a vasta síntese filosófica de Santo
Tomás: as propriedades transcendentais do ser; a divisão do ser em substância e acidente; o conceito de suposto,
hipóstase e pessoa (hipóstase racional), a teoria da causalidade, na ontologia; a composição de matéria e forma,
quais princípios intrínsecos de todo ser corpóreo; hierarquia das formas substanciais, em filosofia natural; a
teoria da alma espiritual e, consequentemente imortal, qual forma substancial do corpo; a colaboração de
conhecimento sensível e da inteligência humana, na constituição do conhecimento, assim como do apetite
sensível e da vontade na explicação da ação humana; a doutrina da liberdade, qual características dos seres
dotados de razão; a colaboração da inteligência e da vontade na constituição do ato livre, no plano da
antropologia e da psicologia racional; enfim, a Realidade divina vista qual fim último do homem, em cuja posse
encontra ele sua perfeita felicidade; a lei moral, entendida qual participação da lei eterna de Deus, na criatura
racional e a teoria das virtudes, vistas quais meios para obtenção do fim último do homem, que são os princípios
básicos da moral tomista”. Em resumo, Tomás de Aquino admite a existência extramental da realidade, de um
mundo exterior ao humano, ou ainda, de um universo distinto do sujeito cognoscente repleto de inteligibilidade
potencial (curiosamente, ele recorre à mesma acepção de potência aristotélica que se baseia Lukács). Mas, como
afirmar a objetivação do conhecimento no tomismo? Nas palavras de Araujo (2007, p. 13), “[...] ora, o
conhecimento humano, [...], é o ato de tornar-se outro sem deixar de ser, pois envolve aquela sobreexistência
imaterial ativa em nós, em que é presentativo o outro enquanto outro, ou seja, em que há representação por meio
do objeto conhecido”. Na mesma lauda, ele completa: “Entretanto, convém enfatizar que no momento em que
conhecemos constitui-se uma síntese (ou união) do não eu (a realidade) ao eu, ou seja, a síntese gradativa do
objeto ao sujeito; porém, tal síntese nunca ocorre fisicamente, e sim, por meio de uma espécie intencional, de
uma similitude psíquica, em que o cognoscente desperta para a realidade da existência individuada. E ao
despertar para a realidade da existência passa a intui-la em todas as suas implicações”. Para Aquino, são duas as
formas de conhecimento: a) o das coisas materiais, conhecimento sensível, comum a todos os animais; e b) o das
coisas imateriais, universais e necessárias (conhecimento intelectual, próprio do humano). O conhecer passaria
invariavelmente pelos sentidos, pois são eles os que primeiro informam ao indivíduo a existência de algo fora
dele. Logo, todo conhecimento (sensível ou intelectual) sempre supõe a existência de seres extramentais como
princípio que os determina, em outras palavras, são constitutivos da inteligibilidade do real; núcleo de toda
filosofia tomista (ARAUJO, 2007).

xxii
Muitos psicólogos pós-modernos sequer se ocupam com o fato insuprimível de que a vida necessariamente
teve um começo na História. Na outra ponta, vários marxistas, no afã de explicar o concreto da realidade, tomam
371
inquestionavelmente a premissas de Charles Darwin como referência sem se dar conta que nem mesmo biólogos
e paleontólogos materialistas estão de acordo com certas posições “vulgarizadas” do naturalista inglês. Longe de
entrarmos em uma discussão sobre a teoria da evolução em si, ilustramos o modo como Martín-Baró concebia
origem da vida. “Radical” é a palavra que o define nesse aspecto. Partindo de críticas às posições de Lamarck,
Darwin e de Vries, ele defende o neotransformismo de Teilhard de Chardin; jesuíta e paleontólogo estudioso da
origem do Universo que buscou diálogo entre as posições “evolucionistas criacionistas” e suas necessidades
científicas de comprovação (esse autor foi criticado por Lukács no segundo volume de sua ontologia
[1986/2013], diga-se de passagem). O simples fato de ele afirmar que a história humana é também a história de
uma evolução natural dessa espécie, já deveria servir para livrá-lo (aliás, aos jesuítas de modo geral) de críticas
ingênuas sobre um suposto idealismo mágico-religioso em suas concepções ontológicas. No trabalho de Martín-
Baró (s.d.4), vemos a linguagem e a cultura como importantes mediações para entendermos o desenvolvimento
de nossa espécie, contudo, sua explicação se orienta, em última instância, por determinar que a diferença
fundamental entre a espécie humana (historicamente falando, uma das mais recentes a surgirem no planeta
Terra) e as demais, foi um ato de criação divina.

xxiii
Até o mesmo capitão Francisco Mena Sandoval (o mesmo do “golpe progressista” apoiado pela UCA em 15
de outubro de 1979), rebelou-se de dentro do quartel unindo-se aos insurgentes. Não tivemos condições de
efetuar uma análise do desenvolvimento desigual e contraditório das forças armadas na guerra civil ora citada,
mas pelas pesquisadas feitas, cremos que uma generalização rasteira sobre o papel dos oficiais do exército
salvadorenho deformaria uma análise mais completa deste período histórico.

xxiv
Martín-Baró (1981f) narra que só chegou até essas zonas conflituosas depois de vários contatos com
interessados em divulgá-las. Sua posição no texto é marcadamente pró-socialista, o que não querer dizer que ele
não pensava em uma revolução que fortalecesse as pequenas e médias empresas privadas, por exemplo. Ao
analisarmos conjunturalmente, parece que ele se refere muito mais a um socialismo à Nicarágua que um cubano.
Sua postura em relação ao uso da violência se comparada a de seus primeiros escritos aqui muda bastante;
estamos diante de alguém que se pudesse, optaria sempre pela via pacífica, mas confrontado com tal realidade
histórica, admite que os caminhos reformistas estavam fechados e que a violência precisava ser entendida como
uma resposta legítima de todos os que combatiam a injustiça e a exploração econômica. Se nos perguntassem
qual o texto que melhor retrata quem foi Ignacio Martín-Baró, nossa resposta não titubearia ao afirmar o Raíces
psicosociales de la guerra en El Salvador.

xxv
Ainda em 1987, La investigación y el cambio social (MARTÍN-BARÓ), vemo-lo retomar um grande tema de
sua juventude: a educação. São poucas páginas, mas encontrarmos ali aforismos interessantes, do tipo: “não é
por que tudo não mudou que nada não mudou”. Isso se aplica especialmente aos “fundamentalistas” marxistas.
Ainda sobre o texto, e sabendo que encarava zona perigosa na teoria social, a da relação entre escolarização e
mudanças político-econômicas, Martín-Baró, sem tomar partido sobre um dos lados da polêmica (um que
entende a escola como aparelho ideológico, portanto sempre reprodutora de interesses dominantes e o outro de
que a escola é revolucionária), discorre acerca de como a educação é importante área da vida das sociedades
humanas modernas e por isso deveria receber mais pesquisas e interesses por parte dos psicólogos latino-
americanos.
372
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