Essa Vida Eu Nao Desejo Nem Pra Um Cach

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E

CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA


SOCIAL

Sabrina Melo Del Sarto

“Essa vida eu não desejo nem pra um cachorro”: uma etnografia de hospitais psiquiátricos

Florianópolis
2024
Sabrina Melo Del Sarto

“Essa vida eu não desejo nem pra um cachorro”: uma etnografia de hospitais psiquiátricos

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGAS/UFSC) como requisito parcial para
obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Esther Jean Langdon.

Florianópolis
2024

1
Ficha catalográfica gerada por meio de sistema automatizado gerenciado pela BU/UFSC.
Dados inseridos pelo próprio autor.

Del Sarto, Sabrina


"Essa vida eu não desejo nem pra um cachorro" : Uma
etnografia de hospitais psiquiátricos / Sabrina Del Sarto
; orientadora, Esther Jean Langdon, 2024.
252 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa


Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2024.

Inclui referências.

1. Antropologia Social. 2. Etnografia de Hospital. 3.


Antropologia da Saúde. 4. Desinstitucionalização. 5.
Reforma Psiquiátrica. I. Jean Langdon, Esther. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social. III. Título.
Sabrina Melo Del Sarto

“Essa vida eu nāo desejo nem pra um cachorro”: uma etnografia de hospitais psiquiátricos

O presente trabalho em nível de Doutorado foi avaliado e aprovado, em 07 de março de 2024,


pela banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof.ª Dr.ª Sônia Weidner Maluf


Universidade Federal de Santa Catarina

Prof.ª Dr.ª Sandra Noemi Cucurullo de Caponi


Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Rodrigo Ferreira Toniol


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

___________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________
Prof.ª Dr.ª Esther Jean Langdon
Orientadora

Florianópolis, 2024.

3
AGRADECIMENTOS

Certo dia, já no último mês de escrita da Tese, me deparei com os livros de uma
autora que desvendou para mim alguns dos mistérios que compõem muitas das minhas
incompreensões. Em uma das suas passagens, Olga Tokarczuk (2021) escreveu: “Minhas
raízes sempre foram superficiais; a mais leve brisa sempre poderia me derrubar. Não sei
como germinar, simplesmente não possuo essa capacidade vegetal. [...] Minha energia é
derivada do movimento”. As palavras da autora, ao falarem do movimento, me colocaram
para percorrer os fluxos de uma trajetória que vem sendo construída por muitas mãos. Gosto
de pensar no contraste da solidão do trabalho de escrita com a força coletiva do viver e, por
sorte, tenho compartilhado a vida com seres que me fazem manter uma energia criativa de
esperança.
Começo meus agradecimentos àqueles que sempre, em todos os momentos da minha
vida, estiverem ao meu lado, me apoiando e não duvidando, nem sequer por um segundo, de
que eu seria capaz de realizar cada um dos meus sonhos. A meu pais, que nunca mediram
esforços para serem minha força propulsora, especificamente minha mãe, por me apresentar o
mundo da paixão pelo conhecimento e também pelo movimento, obrigada, Mãe, por me
permitir voar e me mostrar as múltiplas possibilidades do viver, e ao meu Pai, que me
ensinou que o ato de narrar transforma vidas e que a história da gente é a gente que escreve,
obrigada, Pai, pelo coração genuinamente bondoso que me fez acreditar em mim. Também
quero agradecer minha irmã Sophia, ela é, sem dúvidas, minha moção e minha fagulha, me
expõe para todas as minhas barreiras e constrói, ao meu lado, um mundo muito mais colorido,
obrigada, So, por desconstruir minhas certezas e estruturas. Agradeço também à Mari, minha
esposa, que sempre me apoiou e com uma paciência genuína sempre esteve comigo,
diariamente, em todo o processo doloroso e feliz do doutorado, obrigada, Amor, por ser
minha calma e minha tranquilidade e por ter um olhar sensível que torna meus dias mais
leves.
Agradeço à minha orientadora, que me acolheu desde meu primeiro ano no mestrado,
acreditando nas minhas ideias e tornando meus projetos possíveis, obrigada, Jean, por
organizar minhas confusões e simplificar os meus atritos. Também agradeço meu amigo e
ex-orientador, Andreas Hofbauer, pela escuta atenta e pela carinhosa empatia, além de sempre
se fazer presente, mesmo com a distância. Ao professor Antônio Braga, meu primeiro
professor de Antropologia, obrigada por ter sido quem percebeu, no início de tudo, meu eu
antropóloga. À professora Sônia Maluf, por sempre compartilhar seus conhecimentos

4
preciosos e trazer contribuições fundamentais não só para esta Tese, mas para o mundo
acadêmico como um todo e para os diferentes espaços que dele transbordam. À Professora
Sandra Caponi, uma das primeiras autoras que li sobre a temática da minha pesquisa, ainda
na graduação, e que, com uma gentileza admirável, aceitou estar presente na defesa desta
Tese. Ao professor Rodrigo Toniol, que também aceitou compor a banca de defesa e que tem
me mostrado a raridade da possibilidade de um mundo acadêmico empático e horizontal. À
professora Janis Jenkins, que me recebeu no Centro Global de Saúde Mental da Califórnia,
espaço em que grande parte desta Tese foi tecida. Ao professor Walter Oliveira, por construir
diálogos potentes entre a antropologia e a saúde mental e por abrir portar para essa pesquisa.
Às minhas Tias Neci e Rita, que sempre alimentaram a minha fé na vida e estiveram
presentes em todos os momentos deste trabalho. Às minhas Tias Claudia, Simone e Angélica
por sempre me enviarem carinho, me ensinarem como o amor é transformador e por sempre
acreditarem nos meus sonhos. Às minhas irmãs Vitória, Beatriz Reis e Mariana Bueno, por
serem meu apoio, minha inspiração e força, mesmo que às vezes de tão longe. Aos meus
afilhados Pedro e Artur e à Nicole, por me darem um amor sincero e muita alegria. À minha
bisavó Geralda, que viveu várias institucionalizações e que, possivelmente, foi a força
propulsora desta Tese, mesmo antes de eu ter ciência da sua condição. Às minhas avós que
habitam outro plano, Sebastiana e Aparecida, por trazerem para nossa família a força e a
possibilidade de transgredir a coletividade do ser mulher. Às minhas amigas Ani, Bea, Lila e
Malu e aos meus amigos Renato e Paulo, pelos cafés, conversas profundas e trocas infinitas.
Aos meus colegas do NESSI, GPPS e GEA, pelas trocas e aprendizados. À Mari (Ester
Borges), pelo olhar de cuidado, pela acolhida da Antropologia na Área da Saúde Mental e
pela amizade que construímos a partir desta pesquisa. À Bárbara, Jean e Pietro, por serem
minha família em San Diego e transformarem a experiência de viver fora do Brasil em uma
experiência de lar. À minha amiga Jill, por sempre estar comigo no Laboratório de Saúde
Mental Global e nunca permitir que eu duvidasse de um eu pesquisadora que estava
florescendo.
Agradeço imensamente aos moradores dos hospitais, por abrirem as portas de suas
“casas” e me receberem em seus cotidianos, me fazendo olhar para a vida e para as
possibilidades dela a partir de uma ótica sábia e, infelizmente, invisibilizada. Também às
equipes dos hospitais, por me receberem em seus locais de trabalho e tornarem esta pesquisa
possível.
Aos usuários do Sistema Único de Saúde e aos profissionais da Rede de Atenção
Psicossocial e do Conselho de Saúde Mental de Santa Catarina por incluírem as pautas

5
emergidas nesta Tese no centro de suas discussões. Aos financiadores da pesquisa, CAPES,
IBP e Fulbright, agradeço por me presentearem com a possibilidade de construir um campo
complexo, profundo e transformador.
Por fim, ao olhar para trás, percebo que a vida acadêmica tem muitos momentos de
solitude e senti falta, muitas vezes, de construir o conhecimento em grupo, de ler e ser lida
em outros espaços, em outras estruturas de poder, e com pesos também diferentes. O
individualismo moderno tem minado nossa capacidade de nos construirmos enquanto
comunidade e, quando me vejo ao lado dos meus amigos, familiares e professores, não
consigo sentir outra coisa senão uma profunda alegria por saber o quanto subversivos somos,
compondo com regras e criando espaços de resistência dentro de estruturas compostas por
afeto, pro estar junto e pela coletividade! Eu sou muito sortuda por ter vocês na minha vida!
Obrigada! Aos que estão perto e aos que estão longe… não tem nada melhor na vida do que
sentir que não estamos sós!

6
Amarás o vento, ainda que inquiete o sono
Mar Becker, 2024

7
RESUMO

O tema fundamental desta pesquisa é a institucionalização psiquiátrica pública e permanente,


bem como os desafios que o Brasil tem enfrentado nos processos de desinstitucionalização
dos sujeitos que vivem, ou viveram, nessas instituições. Tenciona-se uma justaposição das
questões relacionadas às vidas cotidianas compostas por múltiplas micropolíticas de sujeitos
que vivem, de forma permanente, como residentes de dois hospitais psiquiátricos, aos
documentos oficiais e às literaturas acadêmicas sobre a temática. O primeiro objetivo do
projeto foi mapear as instituições psiquiátricas públicas no Estado de Santa Catarina que
abrigam moradores permanentemente e enfocar naquelas que possuem, entre suas alas
médicas, espaços asilares ou ambientes destinados às internações de longa permanência.
Pretendeu-se compreender, no devir institucional, os mecanismos que corroboram com a
permanência desses indivíduos no interior dos hospitais. Buscou-se observar o
posicionamento desses ambientes nos processos de institucionalização e a existência ou não
de direcionamentos para a efetivação de mecanismos de desinstitucionalização. De modo
geral, utilizou-se uma abordagem etnográfica para compreender como a construção social do
cotidiano institucional reforça a perspectiva manicomial da doença mental. Pretendeu-se,
principalmente, compreender a partir das perspectivas dos próprios moradores, como a
institucionalização permanente é construída e reificada, buscando observar as atuais questões
que compõem o mundo institucional.

Palavras-chave: Etnografia de Hospital; Antropologia da Saúde; Desinstitucionalização;


Institucionalização; Reforma Psiquiátrica.

8
ABSTRACT
The fundamental theme of this research is the public and permanent psychiatric
institutionalization, as well as the challenges Brazil has faced in the processes of
deinstitutionalization of individuals who live or have lived in these institutions. The intention
is to juxtapose issues related to everyday lives composed of multiple micro-politics of
individuals who have permanently lived as residents in two psychiatric hospitals, with official
documents and academic literature on the subject. The first goal of the project was to map
public psychiatric institutions in the State of Santa Catarina that permanently house residents
and focus on those that have, among their medical wings, asylum spaces or areas designated,
after the beginning of the Brazilian Psychiatric Reform process, for long-term stays. The aim
was to understand, through institutional developments, based on ethnographies in hospitals
and a bibliographic and documentary survey, the mechanisms that contribute to the
permanence of these individuals within psychiatric hospitals. The goal was to observe the
positioning of these environments in the processes of institutionalization and whether there
are directions for the implementation of possible deinstitutionalization mechanisms. In
general, an ethnographic approach was used to understand how the social construction of
institutional daily life reinforces the asylum perspective of mental illness. The main objective
was also to understand, particularly from the perspectives of the residents of these
institutions, how permanent institutionalization is constructed and reified, seeking to observe
the current issues that make up the institutional world.

Key-words: Hospital Ethnography; Psychiatric Institutionalization; Psychiatric Reform;


Deinstitutionalization.

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 14
PARTE 1: REDEMOINHO MANICOMIAL........................................................ 14
PARTE 2: ETNOGRAFIA DE HOSPITAL PSIQUIÁTRICO.............................. 25
CAPÍTULO 1: INSTITUCIONALIZAÇÃO PSIQUIÁTRICA NO BRASIL:
ESTIGMATIZAÇÃO SECULAR DA LOUCURA.......................................................37
1.1) HISTÓRICO SECULAR................................................................................ 37
1.2) 1970 - (MAIS-UMA) REFORMA PSIQUIÁTRICA.....................................50
1.3) SANTA CATARINA E A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA......59
1.4) RELATÓRIOS E NOVAS LEIS DE SAÚDE MENTAL............................... 69
CAPÍTULO 2: O “PISAR EM OVOS” ETNOGRÁFICO: PERCURSOS ENTRE
AS ILUSŌES E AS ESCOLHAS.................................................................................... 76
2.1) PERCURSOS METODOLÓGICOS: AS MÚLTIPLAS-POSSIBILIDADES
COTIDIANAS E AS RESISTÊNCIAS VELADAS............................................. 80
2.2) INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS: ALGUMAS PINCELADAS BREVES..
85
2.3) ETNOGRAFIA DE HOSPITAL PSIQUIÁTRICO........................................ 89
2.3.2) COMUNICAÇÃO X NEGOCIAÇÃO: UMA ATUALIZAÇÃO DA
PISCADELA ANTROPOLÓGICA....................................................................... 96
2.3.3) COMO ETNOGRAFAR SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA?...................... 105
CAPÍTULO 3: MORADORES: QUEM SÃO AFINAL?........................................... 115
3.1) UM POUCO DO ENVOLTÓRIO, UM POUCO DO CONTEÚDO............115
3.2) PERFIL IDENTIFICATÓRIO: A VIDA ANTES DA
DESPERSONIFICAÇÃO.................................................................................... 117
3.3) PERFIL SOCIOECONÔMICO: ISOLAMENTO DA/NA
INSTITUCIONALIZAÇÃO................................................................................ 123
3.4) PERFIL CLÍNICO: “DEPOIS DE TANTOS ANOS AQUI, CRONIFICOU!”.
130
CAPÍTULO 4: O MERGULHO NO LIMBO - PARA CONHECER ALGUMAS
DAS BARREIRAS DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO......................................... 143

10
4.1) CARTOGRAFIAS ETNOGRÁFICAS.........................................................145
4.2) A CHEGADA (AO HOSPITAL) - OU A SAÍDA (DA VIDA)................... 149
4.3) CONCEPÇÕES DE LOUCURA.................................................................. 156
4.4) DESENHANDO A PERICULOSIDADE DOS MORADORES................. 164
4.5) OS SONHOS E O DESEJO DE SAIR......................................................... 171
CAPÍTULO 5: DESMONTANDO A INSTITUIÇÃO................................................ 182
5.1) DESCONSTRUIR X REFORMAR............................................................. 182
5.2) O DESMONTE DA INSTITUIÇÃO............................................................183
5.3) CAMINHO RUMO AO MANICÔMIO, DE NOVO...................................194
5.4) A INVERSÃO (NECESSÁRIA) DA LÓGICA DA DEPENDÊNCIA....... 201
5.5) O DOCUMENTO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO (PENAL) DE
SANTA CATARINA (2023)................................................................................ 208
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 216
ANEXOS......................................................................................................................... 232
REFERÊNCIAS............................................................................................................. 242

11
Introdução

Parte 1: Redemoinho Manicomial

Em Santa Catarina, do térreo do pavilhão leste, sob a indecifrável e gélida atmosfera


de um local posto para fazer existir, longe do mar, longe do colorido da diversidade da cidade
e da capital Florianópolis, aquietam-se pessoas vivendo ainda em uma situação parecida ao
que já foi, outrora, conhecida como Holocausto Brasileiro. A ínfima massa de sobreviventes
do (quase)fim dos tempos dos manicômios brasileiros, imóvel, faz-se subsistir ao que parece
ser o último estágio da vida. Para eles, é prevista somente uma espécie de alta, a alta
celestial. Violência, caos, medo e assombro. A ambição de uns poucos, unida à ignorância de
outros, sobrepõe-se à degradação de muitos, onde a vida é assistida dentro de muros,
permanentes, em uma espécie de prisão perpétua à moda brasileira.
Os contrastes entre os internos são apagados, infrações institucionais são relevadas e a
relação naturalizante tendendo-os a não-humanos prevalece na troca entre eles, os pacientes,
e os outros, os profissionais da instituição. Um espaço aniquilante que intriga e desconcerta e,
ainda hoje, depois de tantas denúncias e de tanta busca por reformas e respostas, permanece
indecifrável.
É a partir desses indecifráveis e dessas não respostas que esta pesquisa foi construída,
dentro de uma névoa, em um campo onde questões se sobressaem às respostas e “por ques”
flutuam sem encontrar explicações. Inspirada pelo historiador francês Michel De Certeau
(1978), tem-se como objeto nesta Tese não o “desconcerto” e a “confusão do discurso
político”, que parecem dançar juntos naquele espaço, soterrando qualquer possibilidade de
fuga, nem as “lamentações de uns” ou as “censuras dos outros”, mas sim “[...] o sentido
oculto daquilo que, mais profundo, e ainda misterioso, se manifesta essencial em uma grande
confusão de palavras” (p. 12).
Enfim, antes de qualquer coisa, você, leitor(a), precisa saber sobre qual espaço falo,
caso este amontoado de palavras não seja suficiente para que você imagine sobre o que
escrevo. Esta pesquisa tem como locus os Hospitais Psiquiátricos públicos brasileiros, mais
especificamente aqueles presentes no Estado de Santa Catarina e que, ainda hoje, abrigam
residentes permanentes em suas enfermarias. Uma breve pesquisa sobre o tema fará com que
um sujeito próximo daquela região estranhe que esteja no plural o nome destes locais, pois

12
bem, teremos tempo para falar sobre isso, por hora basta saber que não temos, no Estado,
somente um único hospital que abriga moradores em alas psiquiátricas de forma permanente.
Curioso é que, ainda em 2022, a loucura esteja tão próxima ao que definiu o teórico
francês Michel Foucault em 1979, a saber: uma ausência de obra1. Corroborando também
com o que escreveu a historiadora brasileira Maria Clementina da Cunha (1986, p. 110), a
loucura pode ser reconhecida, nesta Tese, como um “[...] conceito escorregadio, de limites
imprecisos e de natureza indefinível”. Além do mais, vale notar que o próprio caminho
histórico e degradante do conceito já é muito bem conhecido, trabalhado e até mesmo
denunciado (cf. BASTIDE, 1968; FOUCAULT, 2009; GOFFMAN, 1961; PESSOTTI, 1994,
entre outros) e que são indispensáveis as ponderações socioculturais para qualquer tentativa
de abordagem sobre o tema (cf. BENEDICT, 1988[1934]; DUARTE, 1994; LANGDON,
2013; 2015; LAPLANTINE, 1988; VELHO, 1981; entre outros).
Na própria Teoria Antropológica foram tecidos, desde a década de 1930, trabalhos
que se especializaram nas variações dos comportamentos heterogêneos entre as diferentes
sociedades, colocando em questão as concepçōes de “normalidade” e relativizando-as
(BENEDICT, 1988 [1934]; MEAD, 1963; SAPIR, 1949). Na Antropologia da Saúde, por
exemplo, podemos encontrar trabalhos que enfocaram na restituição da natureza social dos
fenômenos biológicos, permitindo uma desnaturalização da padronização de comportamentos
e das definições das doenças (MINAYO, 1994).
Voltando ao tema da loucura, bem como aos múltiplos tratamentos que se criaram
para esse tema, sabemos que - de modo geral - os indivíduos acometidos pelos sofrimentos
psíquicos sempre foram delegados à exclusão em instituiçōes fechadas, espaços conhecidos
como manicômios ou colônias e, atualmente, como hospitais psiquiátricos ou institutos de
psiquiatria. Além disso, a proclamação por uma sociedade livre desses locais, a partir do
jargão advindo do movimento antimanicomial que brada: manicômios nunca mais! tem
sobressaído nas discussões acadêmicas e populares transcorridas, dando uma ilusão de
inexistência dessa situação, em que pessoas ainda vivem dentro de instituições manicomiais
de forma permanente.
A epidemia da doença mental, tão abordada recentemente em diferentes literaturas,
desde as investigações biomédicas até as sociais, tem alertado para os riscos de uma
sociedade adoecida. Na medicalização da vida, diagnósticos passam a fazer parte do
1
Foucault (2009, p. 156): “O que é então a loucura, em sua forma mais geral, porém mais concreta,
para quem recusa desde o início todas as possibilidades de ação do saber sobre ela? Nada mais, sem
dúvida, do que a ausência de obra”.

13
cotidiano de escolas, empresas, universidades, entre outras instituições. Essas vidas passam a
ser geridas por dispositivos biomédicos e, nesta quase-epidemia - (talvez)global - pessoas de
todo o mundo continuam a se deparar, cada vez mais, com as possibilidades da loucura, a
partir de uma linha tênue que nos faz dançar no jogo das múltiplas formas de viver a lucidez
e/ou a insanidade.
São as formas de biopoder e biopolítica sendo materializadas no cotidiano de nossas
práticas, através da medicalização dos sofrimentos, da reprodução de práticas clínicas
disciplinares advindas do modelo biomédico hospitalocêntrico, da verticalidade das relações
profissionais e, também, da concepção biologicista do adoecimento mental (BARBOSA et
al., 2016, p. 185). Nessa toada, os estigmas contra outros-diferentes são alimentados e o
caráter periculoso da loucura continua a fazer morada no imaginário social, passando a ser
uma das mais atuantes justificativas para a permanência dos internamentos de longa duração,
a partir da criação da ideia do “louco perigoso”, que embala uma exclusão desmedida daquela
obra inacabada.
Dito de outro modo, um prognóstico de comportamento futuro, inexistente, faz crer
no risco e alimenta uma lógica manicomial desmoralizante. Nessa lógica, que aprisiona e
exclui, a preocupação não emerge para com o indivíduo apreendido, mas sim com a
possibilidade de um futuro dano advindo da projeção - imaginária - de um ato perigoso desse
interno. Isso justifica, para muitos, a necessidade de mantê-lo preso por toda a vida,
desviando e negligenciando questões sociais e culturais que fazem parte deste prognóstico e
transformando pessoas em eternos pacientes. É nesse cenário que fracassos clínicos
superpovoam instituições psiquiátricas, e reinternações incontáveis fazem parte do histórico
de cada indivíduo que adentra um hospital dessa natureza. São essas pessoas que
experienciam, diariamente, violências acumuladas em processos subentendidos como
terapêuticos. Afinal, quando foi que decidiram que a privação de liberdade seria o melhor
caminho para o tratamento da loucura?
No caso dos hospitais psiquiátricos, há uma rede de atores que estão, diariamente,
sujeitos às múltiplas violências, uma vez que elas podem ser encontradas tanto na relação
entre os profissionais e os pacientes, quanto na relação entre os próprios internados ou entre
os próprios profissionais. Em outras palavras, todos os atores que compartilham o espaço
manicomial estão expostos a essas situações de violência e são eles que experimentam,
cotidianamente, os desdobramentos de suas diversas formas, seja no âmbito da
desvalorização, desumanização, insulto, moralização ou omissão.

14
Parafrasear as constatações do trabalho da antropóloga argentina Rita Segato (2005),
que aborda as diferenças no tratamento de crimes a depender do ator que os comete, pode
nos ajudar a compreender esses casos de permanência de situações de violência ou, nas
palavras da autora, de “insulto moral”, pois, para que uma violência seja perpetuada por
tantos anos, tal como a realidade encontrada no interior desses hospitais psiquiátricos, é
preciso que seu ator principal, ou seja, a própria instituição, ocupe uma posição de poder,
afinal, “[...] nenhum crime realizado por marginais comuns prolonga-se por tanto tempo em
total impunidade.” (p. 269). Esse é o ponto, como não questionar o que permite essa
desmobilização que desestabiliza os direitos humanos de pessoas que vivem, ainda hoje, de
forma permanente em instituições psiquiátricas públicas no país? Como o poder desses
hospitais se mantém mesmo depois de tantas denúncias e tentativas de fechamento desses
espaços?
É nesse debate que as reflexões antropológicas emergem valiosamente, pois, a partir
da etnografia de hospital, podemos extrapolar essa visão hierárquica dominante das
instituições para enfim adentrar a esses universos manicomiais, que há tanto tempo são
nutridos e permanecem se reinventando em nossa sociedade. Nas palavras da antropóloga
norte-americana Lynn Bolles (2001, p. 27), a Antropologia pode ser vista como “[...] um
instrumento para localizar as fontes da desigualdade [...] dando sentido às estruturas de
opressão que enquadram e sublinham a criatividade e a história de um povo oprimido”2. E,
através desse instrumento, tal como abordado pelo antropólogo teuto-americano Franz Boas
(2014[1928]), o próprio conhecimento antropológico nos permite olhar com maior liberdade
para os problemas enfrentados por nossa civilização3, uma vez que reconhecemos a
importância de investigar também o enraizamento social da vulnerabilidade da doença como
fator determinante da saúde (SINGER, ERICKSON, 2013, p. 18).
Esse é então nosso ponto de partida, vamos traçar reflexões antropológicas no campo
da saúde mental e da institucionalização psiquiátrica permanente, reconhecendo os
determinantes estruturais e buscando focar, também, na experiência daqueles sujeitos que
vivenciam o Hospital Psiquiátrico diariamente. Vale notar que, mesmo depois de mais de 20
anos da promulgação da Lei de Saúde Mental do país (no 10.216, de 6 de abril de 2001),

2
"Anthropology was viewed as a tool to locate the sources of inequality and as a place where one
could participate in finding the "cure". [...] giving meaning to the structures of oppression that frame
and underscore the creativity and history of an oppressed people".
3
Anthropology recognizes the importance of investigating the social embeddedness of disease
vulnerability as a determinant of the health" (p. 18).

15
ainda hoje, no Estado de Santa Catarina, temos a inauguração de alas em hospitais
psiquiátricos públicos, além de novas internações perpétuas. Nessa toada, há uma nítida
sobreposição de questões socioculturais escamoteadas de “doença” e isso ocorre,
principalmente, porque todos os internados compartilham uma semelhança pontual, pois são
indivíduos que dividem um mesmo diagnóstico, todos eles sofrem de uma mesma doença, a
saber: a doença da institucionalização. Curioso notar que essa doença não consta em nenhum
dos documentos médicos dos mais de 80 moradores com quem convivi nos últimos anos,
entretanto, no discurso hospitalar ela aparece cotidianamente. Obviamente que cada um dos
residentes tem suas particularidades próprias, entretanto, teremos um espaço, mais à frente,
para detalhar quem eles são, por ora preciso que saibam principalmente dessa característica
comum que eles compartilham.
Se assim quisermos, se precisarmos de algo para ancorar as ideias, seria esse o
diagnóstico que podemos ter em mente ao ler esta pesquisa, pois todos os moradores de
hospitais sofrem dessa mesma doença, uma espécie de institucionalização crônica e
permanente. Podemos aqui nos valer da definição de instituição do psiquiatra italiano Franco
Basaglia, como espaços que repousam sobre uma “nítida divisão de funções”, por meio da
“divisão do trabalho”, sendo caracterizada pela nítida divisão entre aqueles que detêm o
poder e aqueles que não o detêm: “De onde se pode ainda deduzir que a subdivisão das
funções traduz uma relação de opressão e de violência entre poder e não poder, que se
transforma em exclusão do segundo pelo primeiro.” (1985, p. 100).
É nesses espaços que tenho traçado meu percurso antropológico. De certa forma, a
trajetória que tenho construído na área da etnografia de hospital tem também me construído
como pesquisadora, já que comecei a etnografar hospitais nos meus primeiros anos
vivenciando a/na Antropologia, ainda em 2016, quando estava na graduação em Ciências
Sociais. A primeira experiência (2016-2018) resultou em uma pesquisa etnográfica que
revelou as múltiplas formas de agência de sujeitos que viviam uma vida medicalizada e
institucionalizada permanentemente. Naquele contexto, comecei a perceber que, para além
das determinações estruturantes das instituições, subsistiam formas particulares de viver e
experimentar a institucionalização psiquiátrica. Em outras palavras, coexistiam formas
particulares e grupais, desenvolvidas pelos próprios moradores, de viver a instituição através
e além da normatividade imposta. Também percebi que a única maneira de acessar aquela
realidade seria através da etnografia em uma construção conjunta, horizontal e gradual de
processos de comunicação possível com pessoas que estão há décadas vivendo nesses
espaços limitantes.

16
Entre os anos de 2019 e 2020, no mestrado em Antropologia Social, continuei a
pesquisa aprofundando a investigação desses agenciamentos com aquela mesma população.
Naquela ocasião, pude também experimentar a vida institucional para além dos muros,
quando comecei a fazer passeios com os moradores, que viam na Antropologia, talvez, uma
possibilidade de tomar café na padaria. Entre muitas xícaras de café com leite, salgados,
tortas e misto quente, construímos juntos uma pesquisa a partir de uma relação horizontal e
muito próxima. Eu passava meus dias transitando entre as casas dos moradores e
compartilhando a rotina com eles, íamos juntos para a fila de medicação, comíamos juntos,
com colher e prato plástico, no refeitório do hospital e passávamos horas esperando a
próxima medicação ou a próxima refeição. O retorno ao mesmo campo me possibilitou
conhecer a institucionalização psiquiátrica de modo mais íntimo e pude me aproximar cada
vez mais da perspectiva daqueles que a vivenciavam. Foi naquele período que aprendi alguns
dos caminhos para tornar a etnografia de hospital nesses espaços - tão limitantes - possível,
além de ter também descoberto o quanto desafiadora ela é.
Depois desse percurso, no início do Doutorado em Antropologia Social, decidi
começar uma etnografia em um novo espaço, em outro Estado. Um mapeamento inicial
revelou que no Estado de Santa Catarina ainda havia duas instituições que mantinham
moradores vivendo em suas alas de forma permanente. O número de moradores e suas
condições de existência me fizeram optar por iniciar um novo período nessa trajetória de
pesquisa e, para o desenvolvimento desta Tese, acabei sendo escolhida por um novo campo
de investigação, muito mais caótico e degradante. Essa nova experiência me fez reorganizar
expectativas e reconstruir estratégias. Vou trabalhar essas questões ao longo de todo este
trabalho, mas vale dizer que o que encontrei em Santa Catarina está no limite final de
qualquer possibilidade de vida e existência. Em outras palavras, precisei realinhar minhas
expectativas etnográficas quando percebi que o agenciamento dos residentes, neste outro
Estado, estava muito mais limitado.
De modo geral, comecei a descobrir na nova pesquisa uma interdependência entre a
instituição e os moradores, como se a manutenção de um dependesse da existência do outro.
Isso porque fui notando que não há morador sem a instituição e, de certa maneira, também
não parece ser possível manter um hospital psiquiátrico em funcionamento, se não tiver - em
pelo menos uma de suas alas - a internação de pacientes permanentes. Dito de outro modo, o
hospital psiquiátrico também depende dos moradores para existir. Essa hipótese, que emergiu
depois do primeiro ano no novo campo, começou a inverter o que, para mim, sustentava a
lógica manicomial brasileira. Isso porque, era muito comum, quando questionava o porquê de

17
ainda termos pessoas vivendo de forma permanente em hospitais psiquiátricos, receber como
resposta automática: Porque eles não têm pra onde ir.
Não ter para onde ir parecia justificar a permanência institucional dos moradores, era
uma sentença completa, que não permitia complementos, como se fosse suficiente em si e
justificasse, com apenas cinco palavras, a manutenção de toda a estrutura manicomial que ela
reificava. Entretanto, o que o campo revelou foi que, de modo simplificado, a própria
instituição não mais existiria se não fosse pela ala residencial, que, mesmo com o
esvaziamento do hospital, não permitiu que suas portas fossem fechadas. Em um dos
hospitais do Estado, foi me dito, por diferentes profissionais, que a transferência dos
pacientes psiquiátricos para suas alas salvou a instituição, que já estava prestes a finalizar
suas atividades. Aquilo foi ressoando em mim e, de certa forma, quebrando alguns dos tijolos
que construíam a solidez da institucionalização, afinal, o hospital também dependia dos
moradores, ele também não teria como subsistir se não fosse a existência dos internos.
Caminhando para algumas questões teóricas, é possível vislumbrar que as Ciências
Humanas e Sociais têm desempenhado um papel importante nessas pesquisas sobre saúde,
principalmente por permitirem recuperar as influências das formações culturais e sociais
nesses debates. Franz Fanon e seu orientando Jacques Azoulay (2020), utilizaram um
exemplo de repetidas frustrações no interior de um hospital psiquiátrico para revelar o quanto
esses fatores não podem ser negligenciados. Os psiquiatras tentaram replicar um mesmo tipo
de tratamento para alas de pacientes de diferentes nacionalidades: uma ala de homens
muçulmanos e uma ala de mulheres europeias. Com os seguidos insucessos vividos no
Hospital em Paris, conseguiram demonstrar o quanto os tratamentos não poderiam ser
generalizados e que os aspectos culturais precisavam ser conhecidos e considerados antes de
se determinar a melhor forma terapêutica.
Isso foi notado porque os internos não respondiam aos tratamentos da mesma forma e,
ao mesmo tempo em que as mulheres europeias se integraram na socioterapia proposta, com
muito engajamento e exponenciais melhoras, os homens muçulmanos permaneceram apáticos
e sem envolvimento. Os psiquiatras notaram que estavam negligenciando os valores morais,
estéticos, cognitivos e religiosos da sociedade muçulmana e que a imposição de uma forma
de tratamento, revolucionária dentro de sua cultura europeia, utilizando a produção de
jornais, festas e ergoterapia como ferramentas terapêuticas, não tinha o mesmo efeito para os
homens muçulmanos.
Outro exemplo trazido pelas antropólogas médicas Erickson e Singer (2013) também
reforça a importância da dimensão cultural daquilo que é, em uma sociedade, reconhecido

18
como doença. Para as autoras, que utilizam como exemplo a relação de uma população com a
dengue, seria impensável refletir sobre esta sem uma apreciação de como ela interage com a
experiência humana, negligenciando a compreensão local que se tem dela, além dos
comportamentos culturalmente moldados para lidar com a situação e, por fim, sem considerar
como todos esses fatores influenciam na resposta social dada àquela doença. Isso é também
fundamental porque existem diferentes níveis de compreensão das doenças em uma mesma
cultura, tanto mais abrangentes, quanto locais.
Estes exemplos nos fazem pensar nas implicações culturais não tão somente das
doenças, mas também dos seus tratamentos. Depois de me aprofundar na temporalidade da
saúde mental e de notar como ela foi trabalhada, estigmatizada e também aniquilada ao longo
dos anos, informações estas trabalhadas principalmente no primeiro Capítulo desta Tese, uma
frase da psiquiatra brasileira Mônica de Oliveira Nunes (2012) passou a me acompanhar. A
autora questionou se as doenças teriam ou não um futuro, uma vez que “[...] todas as doenças
mentais têm uma historicidade, na perspectiva em que elas refletem a atmosfera cultural de
um tempo” (p. 905). Passei então a tensionar: como sobreviveriam as doenças às
composições da temporalidade? Ou ainda, como - no devir doença - o contexto cria modos
para pensá-lo e, também, para tratá-lo?
Além de pensar em qual o futuro possível para determinadas doenças, pude também
tensionar o pensamento para qual o futuro possível para determinados tratamentos e formas
de definir doenças, pois sabemos que elas são mais que definições biomédicas, são também a
definição que as culturas criam para elas, isso extrapola a dimensão biológica, sem
desconsiderá-la. Nesse sentido, passei a questionar: por que os tratamentos psiquiátricos
ultrapassados perpetuam? Como, mesmo sendo denunciados como retrógrados e ineficientes,
ainda encontram espaços para subsistirem e se multiplicarem?
No caso dos hospitais psiquiátricos, a insistência nesses sistemas obsoletos tem
fomentado uma lógica manicomial que omite problemas socioculturais latentes. A pobreza
enlouquece. A fome enlouquece. A desigualdade social enlouquece. Nessa lógica, o “louco” -
desenhado como “perigoso” - é mantido longe da sociedade que o adoece, como num ciclo
vicioso, que primeiro enlouquece, depois exclui e apreende e, posteriormente, o devolve ao
convívio social, para refazê-lo enlouquecer. Não existe reabilitação social ou reinserção
social sem teto, sem comida ou sem condições básicas de sobrevivência, muito menos
quando o sujeito está isolado do mundo.
Uma analogia é interessante para pensar nessa lógica. Como a formação de um
redemoinho que tem movimento e forma, a lógica manicomial é alimentada através de seu

19
movimento energético, aglutinando em si os resquícios que encontra no caminho e crescendo
a partir de um movimento giratório, sendo o eixo pelo qual tudo gira. Atua, principalmente,
na sustentação de um sistema criado por ela mesma. No ciclo, o próprio movimento cria a
noção de um eixo que, sem ele, aquelas estruturas não existiriam. Dito de outro modo, a
lógica manicomial, sendo também o próprio eixo desse redemoinho, sustenta sistemas que
perduram há séculos, e o seu movimento cíclico cria uma noção particular dessa estrutura,
uma sensação de necessidade que oculta as características intrinsecamente desumanas que
fomentam os espaços que a partir dela surgem. Essa mesma lógica, em movimento, dilacera o
que ela encontra como impedimento e se alimenta dos resquícios do que foi destruído, para se
tornar cada vez maior.
Esse redemoinho vai de encontro com os movimentos da Reforma Psiquiátrica
brasileira, que, desde as últimas décadas, têm como direcionamento principal o fechamento
dos manicômios no país. A diretriz principal seria vislumbrar a internação psiquiátrica como
uma exceção e não uma regra, além de respeitar a territorialidade e a integralidade dos
sujeitos internados. Muitas foram as lutas travadas para construir uma Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) que tivesse como base o respeito aos Direitos Humanos, a autonomia e a
liberdade das pessoas e a promoção da equidade, não negligenciando os determinantes sociais
em saúde e combatendo estigmas e preconceitos.
Essas lutas são históricas no país e, desde o século XIX, temos registros de denúncias
e batalhas travadas contra esses espaços. Tivemos muitos movimentos de conquistas, graças
aos quais muitos hospitais psiquiátricos foram fechados e ex-internos voltaram para suas
casas ou para Residenciais Terapêuticos (RT). Entretanto, não foi possível dizimar todos os
resquícios dos manicômios, pois alguns hospitais mantiveram seu funcionamento e apenas
foram renomeados e/ou reformados. É importante salientar que o movimento de mudança de
nome e as reformas físicas não foram acompanhados pela mudança da própria estrutura
dessas instituições, que persistiram fundamentadas pela lógica manicomial. Além do mais,
embora tenham ocorrido mudanças, a garantia de direitos básicos dessas pessoas ainda hoje
não é totalmente atendida.
Alguns profissionais costumam abordar o tema dizendo que entre os anos 2000 e
2010 - época em que a própria Lei de Saúde Mental foi aprovada no país e que os serviços
substitutivos passaram a ter prioridade - os moradores de hospitais psiquiátricos tiveram
ganhos significativos, pois os tratamentos foram humanizados e o ambiente de internação
também foi aprimorado. Entretanto, esses mesmos profissionais denunciam que, nos últimos

20
anos, isso não foi mantido, pois, com a falta de recursos e investimentos, ficou cada vez mais
difícil manter os serviços extramedicamentosos para essa população de residentes4.
Além disso, desde 2016, “[...] está em curso um processo acelerado de desmonte dos
avanços alcançados pela reforma psiquiátrica.” (DELGADO, 2019). Esse processo foi
iniciado a partir da Emenda Constitucioal (EC) 95, que tem atuado no sentido de uma “[...]
desconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas intersetoriais (assistência
social e educação, principalmente), com impactos imediatos no campo da saúde mental”
(idem). Segundo o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, de 2016 a 2019, o governo federal
alimentou esse desmonte a partir das seguintes medidas:

[...] 1) modificou a [...] Política Nacional de Atenção Básica, alterando os


parâmetros populacionais e dispensando a obrigatoriedade da presença do
agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família, com
consequências imediatas de descaracterização e fragilização da atenção
básica; 2) ampliou o financiamento dos hospitais psiquiátricos, concedendo
reajuste acima de 60% no valor das diárias; 3) reduziu o cadastramento de
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) [...] 4) ampliou o financiamento
para mais 12 mil vagas em Comunidades Terapêuticas; 5) restaurou a
centralidade do hospital psiquiátrico, em norma já publicada, e recomendou
a não utilização da palavra ‘substitutivo’ para designar qualquer serviço de
saúde mental [...]; 6) recriou o hospital-dia, um arcaísmo assistencial,
vinculado aos hospitais psiquiátricos, sem definir sua finalidade, em
evidente reforço ao modelo desterritorializado; e 7) recriou o ambulatório de
especialidade, igualmente sem referência territorial” (2019, p. 2).

Em 2020, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou um documento que


fomentava a lógica de uma contrarreforma psiquiátrica. Segundo a antropóloga Maluf (2023,
p. 91), em tal documento pode-se constatar a desconstrução do caráter comunitário em
liberdade, uma vez que a retirada dos Hospitais psiquiatricos dos dispositivos de cuidado
representa uma “fragilidade científica”. Este fato demonstra, portanto, “[...] sua afinidade
com um equipamento que historicamente serviu-se do sequestro, tortura e encarceramento
como justificativa de um modelo de tratamento que se mostra ineficaz e violento, atualizando
uma lógica colonizatória sob o corpo do usuário” (CHIABOTTO, NUNES, AGUIAR, 2022).
Esses direcionamentos infringem as orientações da última Reforma Psiquiátrica brasileira,
que conseguiu desativar mais de 60.000 leitos psiquiátricos e abrir 2.500 Centros de Atenção
Psicossocial5 (CAPS) em suas diversas modalidades.

4
Diário de Campo, novembro de 2021.
5
“Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são unidades especializadas em saúde mental para
tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente. Os centros
oferecem um atendimento interdisciplinar, composto por uma equipe multiprofissional que reúne
médicos, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, entre outros especialistas”. Disponível em:

21
Resta-nos questionar: qual o papel desses hospitais psiquiátricos hoje? Eles ainda
devem servir como espaço de residência? Para responder a essas questões, poderíamos
percorrer múltiplos caminhos, poderíamos mais uma vez retomar a extensa história da
loucura na sociedade ocidental, ou o que se supõe ser o Ocidente, já que é nele em que
vivemos, mesmo sendo tão diverso, múltiplo e desigual. Entre todas as possibilidades, decidi
colocar as lentes primeiramente nos percursos manicomiais brasileiros e, depois, afunilar a
análise para o Estado de Santa Catarina, por ser essa uma região que ainda hoje mantém
instituições psiquiátricas asilares. Vale relembrar que a lógica manicomial sempre esteve
presente, mas cresceu demasiadamente nos últimos anos. Tivemos, desde as últimas décadas
do século passado, em nível nacional, uma disseminação de psicofármacos, através dos quais
se instalaram novas “certezas” no campo das ciências da vida, “[...] novas intervenções sobre
as populações que se apoiam nas promessas de um saber médico e psiquiátrico obcecado por
antecipar riscos, evitar a dor e garantir a meta impossível de uma vida sem sofrimentos.”
(CAPONI, 2015, p. 126).
Interessante notar que os direcionamentos e indicadores de garantia de “saúde mental”
parece não ser aplicados dentro de hospitais psiquiátricos, uma vez que a medicação é
utilizada para “evitar” sofrimentos na mesma dimensão em que é utilizada para “domesticar”
os sentimentos em níveis de apatia, silêncio, fraqueza e descompasso. Não é à toa que, ainda
hoje, mesmo depois de 15, 20 ou 30 anos de internamento, os moradores continuam se
recusando a tomar tantos medicamentos. Nesse movimento, a biopolítica regula os corpos,
por ser “[...] uma tecnologia científico-política que se exerce sobre as populações entendidas
como multiplicidades biológicas, que se referem especificamente aos processos vitais, e que
tem como preocupação imediata antecipar os riscos.” (CAPONI, 2015, p. 129). E, vale
lembrar, que esses riscos têm diferentes dimensões que, na maioria dos casos, são
desconsiderados, prevalecendo apenas um: o risco de perturbação da ordem moral e social.
Ademais, esses riscos são vistos apenas na esfera extra hospitalar, como o risco de
perturbação de quem não está dentro do hospital. O risco dos próprios moradores,
normalmente, não é reconhecido ou manejado.
Vamos abordar esses temas posteriormente sobre a estrutura atual do internamento
psiquiátrico, sobre as tendências de modificação da Lei de Saúde Mental e também sobre as
experiências atuais vividas no interior dessas alas, mas, antes disso, preciso fazer algumas

Disponível em:
https://www.fiotec.fiocruz.br/index.php/noticias/projetos/5324-voce-sabe-o-que-sao-os-caps-e-como-e
les-funcionam. Acesso em 7 de dezembro de 2022.

22
considerações importantes para garantir que estamos partindo do mesmo lugar nesta
discussão e para, ao menos, tentar que alcancemos também uma linha de chegada parecida.
Para isso, preciso que nossas bagagens estejam alinhadas.

Parte 2: Etnografia de Hospital Psiquiátrico

Um caso de devir, inacabado, em vias de fazer-se e que extravasa toda e qualquer


matéria vivível ou vivida, é assim que o filósofo Gilles Deleuze (1997) define o ato de
escrever como um processo que está constantemente em vias de (re)construção. Para
tensionar, pensemos então sobre o ato de escrever sobre algo específico, a partir de uma
metodologia também singular, sobre uma experiência limite, uma espécie de conhecimento
venenoso ou uma memória contida e preservada de forma dolorosa nas entranhas de corpos
que lembram (DAS, 1995; FASSIN, 2007). Esse é um dos movimentos que guiam esta Tese,
um processo de escrita etnográfica e histórica sobre o que revela os limites aniquiladores de
uma situação plural, a saber: a institucionalização psiquiátrica, permanente e pública
brasileira. Mas, antes de ir para o extenso referencial teórico construído por décadas a
despeito disso, escolhi um caminho diferente. Longe de reificar lugares, esse processo de
escrita tem sido um espaço de contestações, dúvidas e experimentos e, por esse motivo, esta
Tese se fundamenta na justaposição entre a perspectiva daqueles que vivem a
institucionalização de forma permanente atualmente, os moradores - a partir de uma
etnografia de hospital - e o arcabouço teórico, histórico e documental que foi construído a
respeito deste tema.
A pesquisa etnográfica no interior de instituições psiquiátricas faz ressoar questões
que são fundamentais às investigações antropológicas, afinal, como sabemos, o hospital,
longe de ser uma ilha isolada, é também invadido e moldado pelos valores, regras e ideais do
mundo exterior (LONG; HUNTER; GEEST, 2008). Nas interações construídas no interior
desse espaço há, de certa forma, uma exposição do sujeito etnógrafo a um desafio relacional,
dentro de uma estrutura hierárquica que constrói relações predominantemente desiguais, a
partir das quais conceitos como alteridade e horizontalidade são colocados em questão. Na
estrutura da institucionalização psiquiátrica permanente, os internos dificilmente encontram
espaços para compartilharem suas opiniões, desejos e considerações sobre a vida ou sobre o
tratamento que recebem. Nessa toada, o próprio hospital acaba por reificar a inexistência de
formas de subsistir, aniquilando as possibilidades de agência dentro dessas alas.

23
Saramago, escritor português, escreveu, em um de seus contos, sobre um homem que
almejava navegar até uma ilha desconhecida e, quando questionado sobre como era aquela
ilha, ou onde ela ficava, ele respondia que não poderia falar sobre a mesma, uma vez que não
a conhecia, apenas tinha a certeza de que ela existia. Em outras palavras, ele argumentava
sobre a necessidade de ir em busca daquela ilha pela certeza de sua existência, mas sabia que
não podia se delongar acerca dos seus detalhes, pois ela era ainda desconhecida. Foi assim
que o projeto desta Tese nasceu, pois, enquanto pesquisadora, eu não tinha nenhuma
informação sobre a situação das instituições psiquiátricas públicas do Estado de Santa
Catarina que ainda hoje abrigam internos como moradores permanentes de suas alas, mas eu
sabia que poderia encontrá-las, pois não havia dúvida de que elas ainda existiam.
Além de conhecer o espaço dessas instituições, me interessava uma aproximação da
perspectiva daqueles internos que ainda viviam naqueles ambientes, pois queria conhecer
como os sujeitos experienciavam aqueles lugares atualmente. Minhas pretensões caminharam
para dois direcionamentos. No primeiro deles, buscava compreender por que, ainda hoje,
temos em nosso país hospitais mantendo moradores em suas alas, numa espécie de prisão
perpétua à moda brasileira. No segundo momento, queria investigar como aquele espaço era
vivido e experimentado na atualidade e queria ouvir o que contavam os residentes daquelas
alas; Também queria poder conviver naquele ambiente e experienciar aquela realidade, numa
espécie de observação interativa negociada (WIND, 2008), uma vez que minhas experiências
anteriores de etnografia de hospital me revelaram que o único caminho para me aproximar da
institucionalização seria a partir de um convívio cotidiano com aquele local.
Em resumo, fui guiada por uma tentativa de conhecer os sujeitos etnográficos não
apenas pelas suas condições de saúde, mas também através de suas formas incorporadas de
viver e experimentar a condição que viviam (idem), já que sabia o quanto os aspectos
informais do processo de tratamento eram igualmente importantes para as interpretações
sobre a própria institucionalização (CHENHALL, 2008). O que moveu esta pesquisa foi,
portanto, um esboço sobre práticas cotidianas experimentadas no interior de dois hospitais
asilares catarinenses, para, assim como definiu De Certeau (1978, p. 15), “[...] extrair do seu
ruído as maneiras de fazer” e também de compor não tão somente a vida institucionalizada,
mas também a própria institucionalização psiquiátrica permanente.
A antropóloga Venâncio (2000) trouxe em seus trabalhos a possibilidade de se
trabalhar com o que fala, nas palavras da autora, o louco. Segundo ela, embora a palavra do
louco esteja aprisionada a uma série de a prioris, criados tanto pelo senso comum quanto
pelos discursos também legitimados cientificamente pela ordem médica, foi deslumbrado,

24
somente no início do século XXI, que o louco pudesse falar nesses espaços. Entretanto, ainda
existe uma constante relação hierárquica entre aqueles que se comunicam com a loucura,
como se essa estivesse exposta, de forma petrificada, às contestações e desconsiderações. Isso
variava na relação da equipe com os moradores e também entre os próprios moradores, que
criavam “limites” e “medidores” de loucura, como por exemplo, quando um morador me
alertou: “Querida Sabrina, você não pode dar bola pra todo mundo... tem muito doido aqui...
aqui é hospital de doido... eu tô contente que tô aqui... antes tava na rua, catando papelão…”
(Diário de Campo, 29 de março de 2022).
É um incômodo pessoal pensar que, durante anos, a palavra do “louco” não foi
considerada ou ouvida, principalmente nos momentos de escolha dos tratamentos que
receberia. É ainda mais aterrorizador perceber que, ainda em 2023, muito do que ele fala não
é também validado. As desconsiderações se ramificam colocando algumas barreiras na
construção de relações com aqueles que experimentam uma vida institucionalizada e é
justificada pelos argumentos advindos, historicamente, da bagagem da loucura, o que revela
que ela está também construída na ordem do discurso, ou na impossibilidade dele.
A etnografia emerge, nesse contexto, como uma força valiosa, uma vez que a
comunicação com a loucura exige tudo o que ela preconiza. Explico melhor, nas primeiras
pesquisas, ainda na graduação (2016), quando comecei a etnografar hospitais psiquiátricos no
Estado de São Paulo, encontrei uma instituição também secular que abrigava nas suas alas
residentes permanentes. A parte residencial era dividida em duas alas distintas. Uma delas,
denominada de Lar Abrigado, buscava configurar uma aproximação de um espaço-lar, com
casas divididas com quartos, sala, cozinha, banheiro e lavanderia, além de um quintal
comunitário e um espaço para atividades diversas. A outra, fechada por muros, era chamada
de Patião, e abrigava os moradores que já não podiam conviver socialmente e, fazendo jus ao
seu nome, era composta por um pátio retangular muito grande, onde os pacientes viviam
espalhados pelo chão de cimento, com quartos comunitários dispostos nas laterais e apenas
um cômodo com as roupas coletivas.
Naquela ocasião, não pude trabalhar no Patião, pois me autorizaram a frequentar
apenas o Lar Abrigado. Nele, os moradores conviviam com mais liberdade e autonomia,
embora vivessem como moradores permanentes de um hospital psiquiátrico. Eles recebiam
pagamentos semanais, podiam fazer compras, ir ao salão de beleza, além de frequentar cultos
e missas e fazer passeios para fora do hospital. A convivência naquele ambiente era muito
ambígua, pois, embora os moradores fossem muito receptivos e tivessem uma certa
autonomia para viverem suas vidas, comecei a observar e experimentar o peso da própria

25
institucionalização, na qual o tempo é costumeiramente lento e o espaço físico faz perpetuar,
mesmo que indiretamente, situações degradantes e desumanas fundamentadas pela lógica
manicomial.
Como citei no tópico anterior, no mestrado voltei àquele mesmo campo para
aprofundar minhas investigações sobre a vida social daqueles moradores. No segundo
momento da pesquisa, pude então constatar que aqueles moradores, mesmo vivendo em um
ambiente extremamente coercitivo, conseguiam fazer subsistir suas particularidades, tornando
a vida dentro do hospital, ao menos, possível. Dito de outro modo, os movimentos
minoritários ou micropolíticos dos residentes revelaram-se enquanto espaços de
(sobre)vivência de sujeitos que vivem e habitam a realidade social da institucionalização
permanente.
Só cheguei nesse espaço de proximidade com a institucionalização a partir da
etnografia de hospital, com visitas diárias e uma convivência horizontal iniciada em 2016 e
finalizada em 2020. Naquela experiência, a própria circunstância definiu o método e não o
contrário (WIND, 2008). Percorrer esses movimentos dos moradores, enquanto prática
investigativa, me permitiu encontrar as trajetórias de agentes institucionalizados que atuam
no sentido de fazer (sobre)viver suas individualidades, desejos e formas particulares de
habitar o mundo. Nesse sentido, notei que, embora o hospital seja ainda um agente coercitivo,
ele não finaliza a vida dos moradores, pois, ao lidar com os mesmos, está lidando com
sujeitos que mobilizam desejos, direcionam ações e interpretam situações.
Cheguei em Santa Catarina com essa experiência em mente, acreditando que
encontraria aqui algo muito parecido com o que foi vivido em São Paulo. Essa ideia vinha
através de uma confiança imatura na execução da Lei de Saúde Mental. Promulgada em
2001, já previa a ressocialização e a desmedicalização progressiva dos pacientes de longa
internação, além de impedir que novos sujeitos fossem institucionalizados de forma
permanente nesses espaços. Também acreditava que tinha experiência suficiente para adentrar
um hospital psiquiátrico e trabalhar com o que ele me revelaria, entretanto, ainda não sabia
que o contexto de Santa Catarina me faria reorganizar todas as minhas certezas, além de me
fazer duvidar dos meus conhecimentos, me obrigando a reconfigurar minhas expectativas.
Como dito, comecei o novo percurso mapeando as instituições públicas que poderiam
ter moradores, liguei para cada uma delas e percorri um longo caminho até a confirmação de
haver pessoas vivendo de forma permanente em dois hospitais do Estado. Depois de
apresentar a ideia da pesquisa, marquei um encontro com os dois profissionais responsáveis
por cada uma das instituições. Era ainda na época da pandemia de COVID-19 e minhas

26
memórias atuais me fazem lembrar da sensação sufocante que a máscara e a condição de
avaliação me faziam experimentar. O acesso foi me dado muito rapidamente e, contrariando
as barreiras que imaginava enfrentar para entrar em instituições tão fechadas, fui muito bem
recebida nas duas instituições. Desde a primeira visita, foi me dito que os hospitais estariam à
disposição e que com a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) - avaliado pela
comissão da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - e com a aprovação do Comitê
de Ética local de um dos hospitais, eu poderia começar as visitas.
Meu primeiro dia no hospital foi também um momento de muitas expectativas, depois
de meses esperando a aprovação do CEP-UFSC. Isso porque o percurso burocrático de
aprovação no Comitê de Ética vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina foi muito
lento, os prazos de respostas não foram cumpridos e precisei, com uma certa frequência,
solicitar que meu processo caminhasse tal como era previsto. Nos dois hospitais, pude
conhecer as alas não tão somente de moradores, mas também de pacientes agudos que
estavam internados por curtos períodos de tempo.
Devido ao longo caminho para a aprovação no Comitê, fui colocada - em um dos
hospitais - para pesquisar em uma ala semelhante ao que era chamado, no outro Estado, de
Patião, uma vez que a ala residencial que eu faria a pesquisa acabou sendo fechada enquanto
eu aguardava a autorização. Aquele era um espaço muito fechado, no qual os moradores não
tinham seus próprios pertences e viviam em dois grandes pavilhões, com as camas colocadas
lado a lado e sendo divididas por corredores, dispostos de um modo que eu mal conseguia
passar entre elas. No outro hospital catarinense, os moradores também viviam em pavilhões,
mas esses estavam subdivididos em quartos e eles tinham seus próprios pertences e dividiam
os quartos no máximo com mais um morador. Escolhi, ao longo da Tese, apresentar os dados
dos dois hospitais juntos, pois todos os moradores do hospital “mais aberto”, antes viveram
nesta instituição “mais fechada” e, de certa forma, os históricos não têm diferenças
significativas, até mesmo a média etária nas duas instituições se repetiu. É importante referir
que, nos casos de diferenças significativas, os dados foram trabalhados separadamente.
Ambas as instituições não tinham tratamentos alternativos para os moradores. A
ressocialização não era trabalhada, nem a desmedicalização progressiva. Também não
encontrei nenhum movimento para possibilitar a desinstitucionalização. No hospital mais
fechado, a única alternativa que os moradores tinham era passar o dia no Centro de
Convivência: um galpão dentro da ala com uma única televisão e mesas e cadeiras plásticas
espalhadas. Lá eles recebiam lanches e frutas picadas e passavam o dia vendo televisão ou
ouvindo músicas. No outro hospital, mais aberto, os moradores não tinham nenhuma

27
atividade extra e passavam o dia em seus quartos também vendo televisão ou circulando no
quintal. No hospital mais fechado, as atividades de Terapia Ocupacional não eram abertas
para todos os moradores, sendo oferecidas apenas para alguns dos que eram selecionados pela
equipe de profissionais. No hospital mais aberto, a participação era livre, mas poucos
moradores frequentavam aquela ocupação. As salas de atividade física também não recebiam
os moradores abertamente, mas, no hospital mais fechado, alguns residentes faziam
tratamento com fisioterapeutas na própria ala asilar. No hospital mais aberto, o quadro de
profissionais era diferente do esperado, uma vez que o educador físico passou para a função
de motorista de ambulância e a aposentadoria do Terapeuta Ocupacional não abriu espaço
para novos profissionais da área, sendo a tarefa ocupada atualmente por duas profissionais
que trabalhavam há algumas décadas na cozinha da instituição.
Nos dois hospitais em que fiz o trabalho de campo, um paciente considerado “bom”
era aquele que seguia as regras do hospital, que tomava os medicamentos sem questionar ou
negar e que aceitava os horários de acordar, de dormir e de comer. Um bom paciente,
naqueles ambientes, não conversava, não fazia pedidos e não atrapalhava o fluxo de trabalho
dos profissionais que precisavam atender dezenas de pacientes e que, por sua vez, também
estavam sobrecarregados. No lado oposto, havia o paciente “solicitante”, que falava
abertamente sobre suas dores, preferências e desejos.
Minha intenção, desde o início da pesquisa, era conhecer as brechas, os movimentos
micropolíticos dos moradores, mas assim que eles emergiam, principalmente na instituição
mais fechada, os residentes eram instantaneamente punidos e medicados. Presenciei
incontáveis situações em que os profissionais recorreriam à contenção medicamentosa
quando os moradores reclamavam sobre algum tratamento, ou quando faziam pedidos que
fugiam do que era esperado para o momento. Vivenciando aquelas situações, comecei a
questionar a pesquisa, pois como poderia percorrer os movimentos micropolíticos dos
moradores se, no seu menor sinal, eles eram silenciados?
Exemplo disso foi vivenciado em diversas e recorrentes cenas, como em um dia em
campo, quando dois profissionais conversavam, ao meu lado, sobre um morador que, devido
ao “seu olhar”, iria precisar ser medicado. Eles disseram: “N. [morador] tá precisando de
medicação… Ele vai mesmo precisar de injeção! Olha o olhar dele! Vem cá bebê… vem…”
(Diário de Campo, 12 de abril de 2022). Em outra situação, uma moradora estava tremendo
muito no refeitório e, enquanto caminhava para sua mesa com um prato cheio de comida, o
derrubou no chão, escrevi no diário:

28
Hoje a S. [moradora] estava tremendo demais, quando recebeu o prato de
comida derrubou tudo no chão, na hora a C. [profissional] disse: “Vai ter que
ser medicada… jogou o prato no chão! Segura ela pra mim?” [falando pra
outra profissional]. Saiu rápido e voltou com uma injeção... deram a
injeção... levaram ela pra cama e amarraram as pernas e os braços dela... ela
ficou super agitada… tentando se proteger… Será que vou conseguir fazer
essa pesquisa? Me enjoa presenciar essas situações e agora, tendo que
escrever sobre elas aqui no Diário, sinto tudo de novo… onde vou chegar?
será que consigo chegar a algum lugar? (Diário de Campo, 28 de março de
2022).

Por observar que a própria estrutura de funcionamento das instituições aniquilava as


formas de agenciamento dos moradores, comecei a duvidar da possibilidade de construir um
trabalho que fugisse dessa regra manicomial e, remando contra a maré, incorporasse às suas
tecituras a perspectiva daqueles internados. Distanciando do conceito agência como sinônimo
de resistência, inspirada pela antropóloga Mahmood (2008), penso nesta Tese a noção de
agência a partir do paradoxo da subjetivação, em um processo no qual ao mesmo tempo
assegura a subordinação do sujeito às relações de poder e produz meios para que possa
também se produzir enquanto um agente autoconsciente.
Essa reflexão nos aproxima dos estudos de Butler (1993), ao afirmar que a estrutura
reiterativa das normas consolidam regimes particulares de discurso e poder da mesma forma
que fornecem meios para desestabilizá-los. Não há, portanto, a possibilidade de “desfazer”
normas sociais dissociada do “fazer” dessas mesmas normas. Nesse raciocínio, não existem
maneiras de desfazer normas sem, ao mesmo tempo, refazê-las e, como também não é
possível haver agência fora de uma estrutura de poder (ORTNER, 2006), são essas
determinações que permitem que as particularidades dos sujeitos sobressaiam. Em outras
palavras, os moradores de hospitais psiquiátricos podem encontrar, dentro das regras
institucionais, formas de agenciamento que os possibilitem viver entre seus desejos e o que
impõe a instituição (DEL SARTO, 2020). Entretanto, no novo contexto de pesquisa, a
maioria desses escapes eram aniquilados pela força coercitiva e medicamentosa daqueles
locais.
Além disso, o próprio acesso de uma antropóloga nesse espaço pode ser visto como
inviável, uma vez que os moradores estão há décadas sem encontrarem pessoas de fora da
equipe do hospital, vivendo uma experiência extremamente fechada. Os profissionais também
estão acostumados a trabalhar de forma isolada com os moradores, uma vez que a maioria
dos internados não tem responsáveis fora da instituição para acompanharem seus processos
de internação. A situação é a mesma para os moradores com familiares, pois as alas não são

29
abertas para visitas e os encontros acontecem apenas em locais específicos e externos
destinados a isso. A união dessas questões faz desenvolver uma sensação de pisar em ovos no
trabalho etnográfico, uma vez que, mesmo quando autorizado, o acesso não pode ser
considerado como garantido, exigindo constantes negociações (LONG, HUNTER, GEEST,
2008).
Além disso, segundo Taussig (1980), devemos notar que os sinais e sintomas da
doença vão além do funcionamento do corpo, uma vez que significam também componentes
criticamente sensíveis e contraditórios de nossa cultura e de nossas relações sociais.
Menéndez (2005) corrobora com essa constatação pois, de acordo com o autor, as formas de
cuidado não são estáticas e isoladas, mas reproduzem os contextos em que estão inseridas, o
que nos faz crer que elas reproduzem e recriam relações de desigualdade e subjugação social.
Mesmo com essas considerações, nas práticas médicas, a linguagem social limitante dos
corpos é, em alguma medida, ocultada no âmbito dos sinais biológicos e, nas práticas sociais,
isso é igualmente reificado, visto que nossa sociedade dificilmente desenvolve habilidades
para se comunicar com a loucura, ficando a responsabilidade centralizada nas mãos de
familiares ou profissionais que trabalham diretamente com aqueles que são vistos, antes de
tudo, como casos clínicos.
Nesta pesquisa, como podemos imaginar, os percursos dentro das instituições foram
construídos sobre muitos dilemas. Tentei algumas vezes conversar com a equipe sobre o que
experienciei, mas comumente me diziam que utilizavam apenas medidas de precaução e
proteção, dado que os pacientes eram muito solicitantes e que eles sabiam que se não os
contivessem, a situação poderia piorar. Quando perguntava sobre algo que presenciava,
normalmente era me dito que os moradores tinham “delírios” e que eu não podia acreditar no
que me falavam. Achava curioso esse posicionamento, pois os moradores não somente me
contavam, eu também experienciava aquelas situações, as via cotidianamente e o que para
mim era incompreensível, era para os profissionais algo naturalizado.
Além do mais, o que movia a pesquisa era justamente conhecer as particularidades
das perspectivas dos moradores, pois eu já conhecia a institucionalização a partir do que
contavam os profissionais, familiares e ex-residentes. Já tinha também me aproximado de
muitas pesquisas sobre o tema e sabia que o que faltava para um entendimento mais
complexo sobre a mesma, era a perspectiva daqueles que ainda hoje lá vivem.
Os saberes deles são extremamente negligenciados na literatura, tanto científica
quanto popular, e essa contestação foi uma das primeiras hipóteses para responder à pergunta
sobre por que, ainda hoje, temos pessoas vivendo de forma permanente em hospitais

30
psiquiátricos. A partir de recorrentes silenciamentos, despersonificações e falsos ideais de
proteção e segurança, a necessidade da instituição é reificada. Nesses espaços, os moradores
são, normalmente, representados por números e por seguidas justificativas de necessidade de
contenção e, nos relatórios, leis, prontuários médicos ou até mesmo em pesquisas, é muito
raro encontrar a palavra da loucura, que antes de fazer um sujeito estar na condição de
paciente, está presente em um sujeito de direito.

Hoje, logo quando cheguei, G. [moradora] estava na janela com o rosto


encostado no vidro e, do outro lado, estava o G. [outro morador], também
encostado no vidro da mesma janela... eles estavam se olhando... cada um
falava alguma coisa do seu lado da parede, mas não dava para ouvir o que
falavam... ela olhou para mim e disse: “Por que será que eu não morro? Por
que eu não posso morrer?” Respondi: “Por que você quer morrer?” E ela:
“Porque eu já sumi…”. (Diário de Campo, 5 de abril de 2022).

No ambiente institucional psiquiátrico, os moradores vivem em um campo de


desconsiderações e a institucionalização, embora justificada em termos de proteção, longe de
assegurar direitos civis, cria uma noção de dependência, num movimento que escamoteia, de
diferentes formas, o outro lado do espelho. Nessa toada, como uma segunda hipótese, já
pincelada anteriormente, percebi que antes dos moradores precisarem da instituição, a própria
instituição necessita dos moradores para se manter em funcionamento. A inversão da lógica
da institucionalização, que faz crer que a permanência no hospital é a única saída para a
condição dos moradores, é mais uma justificativa utilizada pelos defensores da manutenção
da manicomialidade brasileira, afinal, questionam: “Para onde eles iriam?”. Essa ideia de
necessidade do espaço tomou conta do imaginário social brasileiro referente à loucura e
reforçou, de modo generalizado, a ideia da necessidade da prisão perpétua à moda brasileira,
impossibilitando, de diferentes formas, a execução efetiva da desinstitucionalização.
Em campo, também sentia que os moradores se fechavam dentro de seus corpos
institucionalizados, na busca de manterem vivos quem eram para além da realidade
manicomial em que viviam. De certa forma, essa era uma das únicas saídas para combater
uma lógica que, de diferentes formas, os desumanizam. Eles criavam uma espécie de espaço
de proteção, formado principalmente pela ausência de interação. Trazê-los novamente para o
centro, durante uma pesquisa que queria conhecer suas perspectivas e que os via como
agentes que podiam relatar sobre o que viviam, causava um certo estranhamento e uma
desconfiança.
Compôs minhas investigações, portanto, um exercício contínuo de construção de
relações horizontais, em diversas tentativas de escapar das ciladas da verticalidade

31
manicomial. Muitas vezes me questionei se seria possível fazer uma etnografia em um local
em que o acesso era limitado, a convivência era assistida e a horizontalidade das relações era
também combatida. Era comum, por exemplo, que profissionais se incomodassem com a
horizontalidade que eu criava em campo, vindo me dar conselhos no modo de agir que
alimentava a costumeira lógica hierárquica da instituição. Obviamente que, em alguns
momentos, reproduzi aquilo que tentava evitar, mas chamo atenção aqui para o exercício
contínuo que mobilizei para evitar que isto acontecesse.
Meu próprio papel como pesquisadora foi também influenciado pelas urgências e
escassezes do campo, em um ambiente no qual as necessidades dos moradores excedem
aquilo que era previsto para uma etnógrafa em campo e, em certa medida, extrapola também
o que a própria equipe podia fornecer (TINNEY, 2008 apud FINKLER; HUNTER; IEDEMA,
2008, p. 249), afinal, eles viviam em um hospital, não em um local construído para ser
moradia. O cotidiano me exigia papéis-outros, como de cuidadora, amiga e ouvinte e, por este
motivo, o campo criou para mim algumas rotinas simples, como de pentear cabelos, fazer
tranças e maquiagem, ajudar a beber água, a comer, a vestir roupas, a colocar meias, entre
outras atividades.
Em resumo, esta Tese seguiu dois direcionamentos, primeiro, o de uma investigação
sobre a permanência da institucionalização psiquiátrica pública permanente no Estado de
Santa Catarina e, em seguida, o da busca de compreensões sobre como os moradores desses
espaços experimentam e vivenciam essa condição. O objetivo foi remodelado em campo,
quando deixou de ser apenas epistemológico e situou-se também na pragmática do processo,
centralizado no conhecimento que emergiu da interação prática (TAVARES, 2017). A
estrutura também acompanhou os fluxos propostos, indiretamente, pelo campo. No primeiro
Capítulo, enquanto esperava a autorização do CEP-UFSC, comecei a investigar, a partir de
uma pesquisa bibliográfica e documental, o histórico das internações psiquiátricas brasileiras
e a relação do nosso país com as outras regiões que também institucionalizam pacientes
psiquiátricos de forma permanente. Descobri, já nas primeiras investigações, que o início dos
movimentos de reforma nesses espaços não era datado a partir de 1970, como tenho visto de
forma repetida na literatura científica, mas existe há mais de um século, o que começou a
desenhar o que chamei, posteriormente, de redemoinho manicomial.
Nesta lógica, a partir de um movimento cíclico e institucionalizante, a criação de
locais destinados ao cuidado e ao tratamento de pessoas em sofrimento psíquico acaba,
inevitavelmente, chegando a espaços de violação de direitos. No ciclo, são traçadas reformas
e novos modelos passam a funcionar até que ocorra o próximo acúmulo de violações, em um

32
movimento repetitivo que sustenta a institucionalização psiquiátrica pública no país. O
Capítulo nos faz questionar se é possível haver uma instituição psiquiátrica que não esteja
fundamentada pela lógica manicomial, que viola direitos e aniquila as possibilidades de
existência nesses espaços.
No Segundo Capítulo, percorro outro caminho, aquele referente à pesquisa
etnográfica em dois espaços que chamei de limitantes: o interior dos dois hospitais públicos
catarinenses. Apresento os percursos metodológicos que segui na busca do que chamei de
múltiplas-possibilidades cotidianas. Aprofundei o conceito de etnografia de hospital,
incluindo o “psiquiátrico” no final do termo, para problematizar algumas questões que
emergiram, novamente, em campo. No início do que denominei de etnografia de hospital
psiquiátrico, questionei a própria possibilidade de pesquisa nesses espaços em que as
situações de violência, poder e desumanização de sujeitos são constantemente presenciadas.
Os rearranjos de expectativas e modos de atuação em campo também aparecem,
principalmente no ato de revisitar o Diário de Campo, quando trabalho algumas dúvidas
sobre a possibilidade de traçar pesquisas que fugissem da tratativa das experiências limitantes
de violações.
Já no Terceiro Capítulo, trabalhei com os perfis dos moradores, numa tentativa de
fugir de generalizações e desenhar, com mais detalhes e dados, quem eles são afinal. Em uma
investigação qualiquantitativa, a partir da convivência diária com os moradores e também do
que diziam os prontuários médicos deles, tracei três perfis, inspirada por Bezerra (2010). No
primeiro, no perfil identificatório, enfoquei na vida anterior à institucionalização dos
residentes, ou do que chamei de despersonificação desses internos, investigando nos
documentos os relatos e os dados que antecediam a vida hospitalizada. No segundo, no perfil
socioeconômico, trabalhei questões sobre isolamento e reificação da condição de
institucionalização e, no terceiro, no perfil clínico, abordei a questão da cronicidade clínica
atrelada à condição permanente do internamento. Nesse Capítulo, a própria
institucionalização aparece como uma doença comum entre os moradores e os prontuários
arquivados no hospital revelam o quanto os quadros clínicos e as realidades socioeconômicas
dos moradores se entrelaçaram no perpetuar de suas condições.
No Capítulo 4, inspirada por Cunha (1986), desço às abordagens de casos que o
hospital encerrou, no sentido de aprofundar o que revelou o contato direto e cotidiano com os
moradores. A partir dos dados revelados na etnografia de hospital psiquiátrico, começo a
observar de maneira mais próxima as barreiras que têm impedido a desinstitucionalização dos
residentes e trago para a luz questões que reificam a estigmatização da loucura na sociedade

33
brasileira. Observo, nessa parte da pesquisa, que a maneira pela qual os moradores chegaram
ao hospital, ou a maneira como saíram da vida social, assim como as concepções que foram
criadas para definir a loucura e legitimar a internação, a partir de ideais fundamentados pela
noção de periculosidade, aniquilam movimentos de resistência e desejos, traçando existências
que dificilmente deslumbram possibilidades-outras, fazendo-os também reforçar a
necessidade de serem institucionalizados.
Por fim, no Capítulo 5, parto para um desmonte da institucionalização, reconstruindo
o caminho de uma lógica que a perpetuou por séculos e que, agora em 2023, tem sido
invertida. Trabalho nesse Capítulo a relação entre a institucionalização psiquiátrica
permanente e a maneira como os agentes a experimentam, em uma tentativa de tensionar a
prerrogativa máxima a despeito do tema: a ideia da necessidade da instituição. Combino
então as três narrativas que têm sido trabalhadas, dos moradores, dos profissionais e das
normativas que têm sido construídas nas políticas de saúde mental, a partir da experiência
etnográfica não tão somente nos hospitais, mas também nas Conferências de Saúde Mental e
na investigação documental das novas portarias e emendas que têm sido publicadas no país.
Busco novamente compreender, a partir das trajetórias de vida dos residentes, os mecanismos
que contribuíram para a reificação da lógica manicomial institucionalizante brasileira, que
tem se estendido para diferentes serviços de tratamento e cuidado em saúde mental no país.
Por fim, objetivo principalmente nesta Tese documentar a existência dessa população e
observar como a tecitura de possibilidades de vida legitimou a permanência institucional
desses moradores.

34
Capítulo 1: Institucionalização Psiquiátrica no Brasil: Estigmatização Secular da
Loucura

“Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia...”


João Guimarães Rosa
1.1) Histórico secular

O histórico da estigmatização da loucura no Brasil é antigo e sempre esteve


acompanhado pela lógica manicomial que prevê a sua institucionalização. Ao contrário do
que se costuma encontrar em trabalhos sobre as reformas psiquiátricas no país, que partem da
década de 1970, as denúncias e tentativas de mudanças desses espaços são mais antigas do
que se pode imaginar, assim como os movimentos de denúncia de suas violências veladas.
Um dos primeiros registros sobre o tema da loucura no país, em 1.816, mostra Dona
Maria I (1777-1816), rainha de Portugal, sendo desenhada pela história como a “Pia” ou a
“Louca”. Naquela época, os ditos “alienados” perambulavam pelas ruas ou viviam
segregados em solitárias dentro das casas ou nos quintais das suas próprias famílias, o que
despertava críticas e reclamações da população como um todo (BASTOS, 2007, p. 1). A
assistência a todos os doentes no país era feita, desde 1.543, pelas Santas Casas de
Misericórdia. Naquele período, os direcionamentos eram de “[...] educar os enjeitados,
libertar os cativos, acudir os presos, cobrir os nus, dar de comer aos famintos, dar de beber a
quem tem sede, dar pousada aos peregrinos, curar os enfermos, acompanhar e enterrar os
mortos” (PICCININI, 2013, s/p).
Segundo Juliano Moreira (1905), um psiquiatra que lutou contra a violência
manicomial já nos séculos XIX e XX, sendo considerado um dos fundadores da psiquiatria
como disciplina no Brasil, não seria de se estranhar que os cuidados aos “alienados”
acompanhassem os direcionamentos de disseminação de fracassos tão presentes nos anos
iniciais do nosso país, quando éramos ainda uma Colônia. O autor traça um paralelo para se
pensar nos primeiros casos de “loucura” brasileiros, ao fazer caminhar lado a lado a própria
formação do Brasil Colônia com a formação do alienamento.
Dito de outro modo, ele evidencia que a população brasileira foi se formando
paralelamente à alienação, pois desde seus primeiros anos de Colônia, o país estava
estratificado em três agrupamentos étnicos que fomentavam a lógica do enlouquecimento.
Eram eles: 1) Os imigrantes: “É real que a grande massa de gente das cadeias para cá
enviada, muito havia de concorrer para a larga sucessão de epiléticos, histéricos e outros

35
degenerados com que progressivamente se foi adensando o vasto caldo de cultura da
criminalidade nacional.” (p. 726). Depois, 2) Os negros escravizados:

Esses, pessimamente tratados e nutridos [...] vinham empilhados naqueles


detestáveis navios do tempo [...] O álcool representou nesse bárbaro
processo de colonização o maior papel imaginável. Com ele procuraram
aumentar a pacatez das vítimas, mas simultaneamente foram-se-lhes
infiltrando nos neurônios os elementos degenerativos que, reforçados
através do tempo, dão a razão de ser de muita tara atual atribuída à raça e à
mestiçagem por todos aqueles que não querem se dar ao trabalho de
aprofundar as origens dos fatos (p. 729).

Por fim, 3) Os indígenas:

[...] também foi aproveitado à custa de álcool e miçangas, mas sem receber
em troca de sua abdicação da liberdade selvagem que usufruía senão os
sacramentos da igreja [...] Em permuta com as suas poucas moléstias
evitáveis trouxeram-lhes sífilis, lepra, tuberculose, alcoolismo etc. (p. 729).

Obviamente que esses três grupos não eram homogêneos, mas o que o autor evidencia
é que na própria formação do Brasil Colônia tínhamos elementos sociais, culturais e morais
que fomentavam a alienação e o enlouquecimento da população. Ele justifica sua
metodologia ao optar por utilizar as três estratificações dizendo que foi importante para “[...]
primeiro, mostrar que à má natureza dos elementos formadores de nossa nacionalidade
deve-se a nossa vasta degenerescência física, moral e social que injustamente se tem ligado
ao único fato da mestiçagem.” (p. 730). Essa denúncia combatia, já naquela época, o
pensamento higienista que viria a tomar grande espaço nos anos posteriores, em que
resumiam a degenerescência da população à mestiçagem, negligenciando as precariedades às
quais a população estava sujeita. Entretanto, o próprio médico que combatia o pensamento
higienista e os ideais de “pureza” e “aprimoramento humano” foi também, posteriormente,
defensor de algumas das medidas desse movimento, como a esterilização da população
alienada.
Essa retomada do período Colonial nos ajuda a aproximar da construção da
estigmatização da loucura e das primeiras cenas que evidenciaram a necessidade de exclusão
e aprisionamento dos alienados. Moreira argumentou também que as posses dos “doente”
eram um fator determinante para definir os tipos tratamentos que receberiam:

Através de todo o período colonial os alienados [...] foram tratados de


acordo com as suas posses. Os abastados, se [...] tranquilos, eram tratados
em domicílio e, às vezes, enviados para a Europa quando as condições
psíquicas dos doentes o permitiam e aos parentes, por si mesmo ou por
conselho médico, se afigurava eficaz a viagem. Se agitados, punham-nos em
algum cômodo separado, soltos ou amarrados, conforme a intensidade da

36
agitação. Os mentecaptos pobres tranquilos vagueavam pelas cidades,
aldeias ou pelo campo entregues às chufas da garotada, mal nutridos pela
caridade pública. Os agitados eram recolhidos às cadeias onde barbaramente
amarrados e piormente alimentados, muitos faleceram mais ou menos
rapidamente. A terapêutica de então era de sangrias e sedenhos, quando não
de exorcismos católicos ou fetichistas (1905, p. 730).

Em 1830, tivemos o primeiro protesto público contra a desumana forma como os


“insanos” estavam sendo tratados. Essa questão reverberou na Comissão de Salubridade da
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Foram então solicitadas “[...] urgentes
modificações no modo de distribuí-los, nos cuidados de asseio, protestou contra os
maus-tratos que lhes infligiam, clamou pela necessidade da criação de um asilo especial para
alienados.” (p. 730).
Já em 1835, o médico francês José Francisco Xavier Sigaud também denunciou a
precariedade dos estabelecimentos e o médico Antônio Luis da Silva Peixoto, em 1837, teceu
denúncias às práticas de cuidado que utilizavam acorrentamento no tronco de árvores como
tratamento e repressão e apontou as problemáticas sobre os doentes serem retirados do
convívio social (VELLOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002). Após suas considerações,
Peixoto propôs a construção de uma Casa de Alienados.

Um tal estabelecimento deve ser construído fora das grandes povoações e


cidades, num local plano e elevado, e disposto de modo que o ar possa
renovar-se facilmente. Deve oferecer separações distintas e suficientes para
que os doentes turbulentos e furiosos estejam separados dos tranqüilos, os
que se acham em tratamento dos insanáveis, os convalescentes de todos os
outros; e finalmente os epilépticos, ou os que padecem de alguma moléstia
acidental que possa ser danosa aos outros, devem ser separados […]
(PEIXOTO, 1837, apud VELLOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002, s/p).

Em 1839, outro médico, desta vez italiano, Luiz Vicente de Simoni, também
fomentou a discussão sobre a construção de um manicômio para tratar alienados no país. Ele
registrou: “Observa-se que os doentes ficam acumulados em doze pequenas células, sem
janelas e com dois leitos de madeira cada uma, e que o único passeio para os doentes era feito
num corredor comprido de aproximadamente cinco metros de comprimento por dois de
largura.” (SIMONI, 1939, apud VELLOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002, s/p).
Entretanto, foi somente quando José Clemente Pereira6 assumiu a Provedoria da Santa Casa
6
“Na cidade do Rio de Janeiro, presidiu o Senado da Câmara como desembargador. Foi quem levou a
D. Pedro o documento pedindo que ficasse no Brasil, proposta vitoriosa em 9 de janeiro de 1822. [...]
Integrou também o Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias, foi deputado-geral e, em 1828,
apresentou metas para um projeto de Código Criminal que só foi transformado em lei após as
emendas de Bernardo de Vasconcelos, em 1830. [...] Apoiou integralmente a antecipação da
maioridade de D. Pedro II. Foi, ainda, ministro da Guerra (1841) e senador pelo Pará (desde 1842).
Foi provedor da Santa Casa da Misericórdia, tendo sido o maior responsável pela construção do

37
de Misericórdia no Rio de Janeiro, que as Santas Casas foram reestruturadas para criar asilos
próprios para os loucos. Foi neste mesmo período que surgiu o Decreto Imperial (1841),
regulamentando o primeiro Hospício do Brasil e da América do Sul, o Hospício Pedro II, que
foi inaugurado em 1852 (PICCININI, 2013).
O Hospício começou a funcionar com 144 alienados, sendo 74 homens e 70 mulheres
(MOREIRA, 1905, p. 736). No estatuto do Hospício Pedro II, já estavam previstas as
atividades alternativas de trabalhos manuais, como em oficinas, jardins e chácaras7. Metade
da produção dos internados era destinada às despesas da entidade, já a outra metade era
destinada à formação de um “pecúlio”8 para o uso do alienado quando ele fosse liberado.
Entretanto, naquele mesmo espaço persistiam os tratamentos coercitivos antigos, que
utilizavam violência física e encarceramento para alguns dos internos (VELLOSO,
MONTEIRO, FONSECA, 2002).
Desde sua criação até 1862, período de mais de 20 anos, o Hospício recebeu alienados
trazidos pelas autoridades públicas de todos os Estados do país. Naquela época, era ainda
difícil encontrar espaços destinados somente aos alienados. No mesmo ano, a questão da
superlotação do espaço começou a aparecer pela primeira vez e ficou explícita a degradante
condição à qual estavam sujeitos os internados (MOREIRA, 1905).
Anos mais tarde, o diretor João Carlos Teixeira Brandão passou a defender a adoção
de modernos processos clínicos e, mais uma vez, foram solicitadas reformas no atendimento
prestado aos alienados, com a ideia da criação das Colônias Rurais. Em 1889, o pedido foi
acatado e colônias foram fundadas no Rio de Janeiro: “Esses locais foram criados com o
duplo objetivo de aliviar a superlotação de internos no Hospício de Pedro II, e testar novas
modalidades de tratamento psiquiátrico que prescreviam o trabalho agrícola como forma de
acelerar a recuperação dos doentes.” (VELLOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002, s/p).
Após a Proclamação da República, no mesmo ano (1889), a instituição Hospício
Pedro II foi renomeada para Hospício Nacional de Alienados, pois foi desanexada do
Hospital da Santa Casa da Misericórdia e passou a ter uma administração laica, assumida por
médicos. Em janeiro de 1890, após a ruptura institucional sob a tutela do governo provisório,

hospital na praia de Santa Luzia, além do hospício de alienados da Praia Vermelha. Essa obra fê-lo
credor da admiração de D. Pedro II, que ordenou que fosse erigida no salão nobre do hospital sua
estátua em mármore, feita pelo escultor Pettrich.” (SILVA, 2019, p. 1).
7
Segundo Juliano Moreira (1905, p. 737): Aos 27 de janeiro de 1854, o Dr. Manoel Barboza
conseguiu que fossem criadas oficinas de sapateiro, alfaiate, marceneiro, florista e de desfiar estopa.
Quando foram criadas as de alfaiate e sapateiro, havia no Hospício sete sapateiros e cinco alfaiates, e
havendo também quatro músicos ordenou José Clemente lhes fossem fornecidas uma rabeca, uma
flauta, uma clarineta e uma requinta como meio de distração e talvez de cura.
8
Espécie de poupança.

38
expediram a primeira norma jurídica a respeito do campo mental, o decreto 142. A partir dele
foi possível iniciar a história do setor mental como instância autônoma (PICCININI, 2013).
Em seguida, o decreto 206 de 1890 instruiu o funcionamento do Hospício: “É criado o
serviço de assistência médica e legal de alienados, que se regerá pelas instruções que também
com este baixam.”. É interessante pontuar algumas especificidades desse decreto, primeiro
que nos Art. 2º e Art. 13 ficava explícito a quem se direcionariam os cuidados: “[...] tem por
fim socorrer os enfermos alienados, nacionaes e estrangeiros, que carecem do auxílio
público…”, além de “Todas as pessoas que, por alienação mental adquirida ou congênita,
perturbarem a tranquillidade pública, offenderem a moral e os bons costumes, e por actos
attentarem contra a vida de outrem ou contra a própria…” (BRASIL, 1890).
Outro ponto interessante diz respeito às internações permanentes. Já nesse decreto
aparece a possibilidade do interno residir no hospital sem a alternativa de saída da instituição,
tal como consta no Art. 14, “As admissões serão ex-officio ou voluntárias ou definitivas.” e -
no Art. 15 - podemos encontrar:

A admissão definitiva terá logar mediante attestado do medico do asylo,


passado 15 dias depois da entrada do doente, si com este attestado concordar
o director. § 1º No caso de duvida a observação será prolongada por mais 15
dias, findos os quaes, si não for reconhecida a alienação, o director fará
apresentar ao chefe de policia o supposto alienado, si elle for indigente, ou
fará retiral-o do asylo pela pessoa que requereu a reclusão, si for
pensionista.

Eram também legalizados alguns meios coercitivos, como pode-se notar no Art. 28:
“Applicar [...] quando for absolutamente necessario e durante o tempo indispensavel, os
meios correctivos, taes como: a reclusa solitaria, collete de força e a privação de visitas,
passeios e quaesquer outros recreios.”. Quase uma década depois, em 1899, no governo de
Campos Salles, o Ministério do Interior resolveu reformular o regulamento da Assistência de
Alienados, no qual foram feitos expressivos cortes orçamentários (MOREIRA, 1905).
Mesmo assim, até 1903, 15 hospícios passaram a funcionar no país e o número continuou
crescendo. As Colônias também foram sendo fundadas em diferentes regiões, pois os outros
Estados perceberam que seria inviável enviar seus doentes para o Rio de Janeiro. Vale
recordar também que, até o século XIX, não eram consideradas as implicações sociais,
culturais e políticas na saúde e os profissionais apenas visavam evitar a morte após o
aparecimento de sintomas.
A constância das irregularidades tanto administrativas quanto orçamentárias, desde os
anos iniciais dessas instituições manicomiais, fez com que fosse necessária a instauração de

39
uma comissão de inquérito, em 1902. O relatório final da comissão (1903) destacou a
ineficiência da administração, a anarquia dos serviços e as inúmeras irregularidades.
(VELLOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002, s/p). Com o decreto nº 1.132 (1903) houve,
mais uma vez, uma reorganização da Assistência aos Alienados. Consta:

Art. 1º. O indivíduo que, por moléstia mental congênita ou adquirida,


comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a
um estabelecimento de alienados. §1º. A reclusão, porém, só se tornará
efetiva em estabelecimento dessa espécie [...] depois de provada a alienação.
§ 2º. Se a ordem pública exigir a internação de um alienado, será provisória
sua admissão em asilo público ou particular, devendo o diretor do
estabelecimento, dentro de 24 horas, comunicar ao juiz competente a
admissão do enfermo e relatar-lhe todo o ocorrido a respeito, instruindo o
relatório com a observação médica que houver sido feita.

Além da regularização das internações, no Art. 3º também aparece a possibilidade de


cuidados residenciais:

O enfermo de alienação mental poderá ser tratado em domicílio, sempre que


lhes forem subministrados os cuidados necessários. [...] Se, porém, a
moléstia mental exceder o período de dois meses, a pessoa que tenha à sua
guarda o enfermo comunicará o fato à autoridade competente, com todas as
ocorrências relativas à moléstia e ao tratamento empregado.

Merece atenção o Art. 5º, no qual fica regulamentado o direito do internado de


solicitar novo exame de sanidade ou de denunciar a ausência dessa formalidade, pois visavam
garantir os direitos legais dos doentes, além de evitar o problema do excesso de internações,
muitas vezes não “justificadas”. Já no Art. 6º e 7º, também fica regulamentada a possibilidade
de saída do estabelecimento de internação e, quando recusada, as autoridades competentes
deveriam ser informadas.
Aparece, novamente, as questões da violência no Art. 9º e da vigilância no Art. 12º,
dessa vez com o anúncio de ação penal nesses casos. Por fim, outro ponto diz respeito à
afirmação da ineficácia do hospício quando age sozinho, dependendo também de outros
serviços para ter o pleno desenvolvimento e para melhor atender aos enfermos:

[...] o Hospício de modo algum bastará às necessidades da Assistência a


Alienados no Distrito Federal. Excusado também é esperdiçar palavras para
demonstrar que as colônias agrícolas são um excelente meio de assistência a
insanos. Portanto, a citada reforma, está a impor-se. A economia que advirá
para o estado, as vantagens terapêuticas para os doentes, a possibilidade de
restringir a população do Hospício, tudo está a pugnar por esse desideratum.

No mesmo ano, Juliano Moreira assumiu a direção do Hospital Nacional e foi então
transposto para os trópicos o modelo de assistência que estava sendo utilizado na Europa

40
(PICCININI, 2013). Naquela época, a psiquiatria entrava para a categoria médica e anexava a
loucura à (des)razão. Moreira implementou uma perspectiva humanista no Hospital, medida
essa também adotada pela Lei Federal de Assistência aos Alienados, “[...] essa Lei era
baseada na proteção jurídica aos alienados, nos moldes da legislação francesa estabelecida de
30 de junho de 1838, que proibia, entre outras deliberações, a colocação dos doentes mentais
em prisões” (VELOSO, MONTEIRO, FONSECA, 2002, s/p).
Além disso, o médico registrou, em 1905, a evolução da assistência aos alienados no
país, quando enviou cartas para todos os Estados solicitando informações sobre os
internamentos. Ele publicou as informações recebidas nos Archivos Brasileiros de
Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins, com o título de “Notícia sobre a evolução da
assistência a alienados no Brasil (1905)”. Entre as informações, estão arquivos históricos
sobre a institucionalização psiquiátrica em São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do
Sul, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Paraíba, Alagoas, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Paraná, Goiás, Piauí e Mato Grosso. Os outros Estados não enviaram informações. Moreira
sintetiza o documento reiterando a importância de quatro datas principais:

As datas representam momentos importantes para a história da institucionalização


psiquiátrica e fica evidente o quanto ela foi composta por uma circularidade de revoluções e
retrocessos. Na sua lógica de construção, parecia haver uma dialética de funcionamento na
qual, primeiramente, as “situações problemas” eram identificadas, como a existência da
“loucura” nos “pacientes”. Em seguida, instituições eram fundadas para cuidarem desses
“problemas”, como os manicômios ou as colônias. E, por fim, quando emergiam as situações
de violência e a superlotação desses espaços, que não atingiam seus objetivos iniciais de
tratamento e tão somente faziam valer o objetivo de manter o problema fora da cena urbana,

41
eram criadas medidas que buscavam mitigar essas degenerescências, como decretos, novas
leis, reformas e movimentos de revolta.
As situações de precariedade, violência e alta taxa de internação apareceram em
praticamente todo o século, nos diferentes Estados do país, além das denúncias de serem os
locais destinados à loucura degradantes. As situações de violência e caoticidade não cessaram
com a criação de novos serviços, muito menos com as reformas nos tratamentos, e foram
ficando cada vez mais recorrentes. Em 1907, o que se via era, mais uma vez, uma degradação
no tratamento dos alienados.
Os manicômios e as colônias foram se proliferando, uma vez mais no país, e ficou
inegável a superlotação dessas instituições, além do descontrole das internações que não
seguiam as regulamentações já determinadas. Ocorreu, ao longo da história, uma permanente
repetição. Segundo os psicólogos brasileiros Maria Stella Brandão Goulart e Flávio Durães
(2010. p. 113), “[...] nas décadas de 1920 e 1930, a psiquiatria pública brasileira apostava na
estruturação da assistência hospitalar e nos dispositivos terapêuticos disponibilizados pela
medicina científica, que via, na internação, a resposta para todos os males…”. Dito de outro
modo, o tratamento era, novamente, apenas hospitalocêntrico e via-se pouca possibilidade de
cuidado fora da instituição. Além disso, “Paralelamente, os psiquiatras dialogavam com o
paradigma preventivista eugenista”. Nessa lógica, buscavam um desenvolvimento que
equiparasse o Brasil aos outros países que já tinham o capitalismo consolidado e, para tanto,
eram necessárias as “modernizações” que, obviamente, não deixavam espaço para a
“loucura” (SILVA, 2017).
Eram indicadas medidas que impedissem a propagação da “loucura” e de tudo o que
era considerado uma degenerescência da espécie, que supunha-se ser de ordem hereditária.
Dentre as medidas, emergiu a ideia da esterelização, da alta tardia e da proibição de
casamentos entre “psychopathas”, como pode-se constatar na declaração da ginecologista
Juana Lopes, em 1933, “[...] a sociedade deve defender-se, afastando todo elemento nocivo à
perfeição da raça, e se por sentimentalidade, consideraríamos um horror a tal destruição, não
o será impedir que eles se reproduzam” (p. 105, apud SILVA, 2017). Além disso, vale abrir
um parênteses para relembrar que além de não aconselharem o casamento dos
“psychopathas”, também acreditavam ser importante, nesta lógica higienista, evitar a mistura
entre as raças, “[...] uma vez que, para eles, os indivíduos não-brancos, negros ou mestiços
carregavam em seus genes atributos patológicos, tão nocivos quanto os dos doentes mentais”
(idem, p. 1583).

42
Naquela mesma época, também não era raro o aparecimento de figuras para combater
a manicomilidade desses locais. O diretor Lopes Rodrigues, em Minas Gerais, passou a
fomentar reformas de inspiração humanista, graças aos direcionamentos da Liga Brasileira de
Higiene Mental (1926) e foi considerado, à época, um “louco”:

[...] confrontou-se com a cultura e métodos violentos utilizados na


instituição, para posteriormente tentar a implantação de um modelo
assistencial mais humanizado. Foi quando Lopes Rodrigues aboliu o
“tratamento fechado”, as grades e o “instrumental mecânico de repressão”
(coleiras, argolas, manchões entre outros), para a surpresa de seus pares.
Quando interpelado pelas autoridades públicas “sobre seu ato
revolucionário, soltando as feras do Instituto e recebendo, por isso, o
batismo de louco” (Moreira, 1929, citado por Pires, 1959), respondeu:
“Minha coragem ... está sendo a de enfrentar os sãos” (Pires, 1959, p. 48).
(GOULART, DURÃES, 2010, p. 114).

Ainda nos anos 1930, houve mais um marco nos tratamentos, quando foram
introduzidas novas formas terapêuticas, como os choques insulínicos e elétricos e a
lobotomia. Segundo a professora e psicóloga Daniela Ribeiro Schneider et al. (2011), esse
fato trouxe solidez à disciplina da psiquiatria no Brasil, que afirmou-se como “científica”.
Naquele período, o hospital psiquiátrico continuou sendo o principal ator nos cuidados em
saúde mental e essa característica foi se fortificando cada vez mais.
Em 1934, o Decreto nº 24.559, que dispunha sobre “[...] profilaxia mental, a
assistência e proteção á pessôa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços
psiquiátricos e dá outras previdências”, promulgou a segunda Lei Federal de Assistências aos
Doentes Mentais “[...] determinando o hospital psiquiátrico como única alternativa de
tratamento”. Nesse decreto, podemos ver as primeiras medidas tomadas para oferecer
atendimento não tão somente para os “doentes”, mas também para os egressos dos hospitais
psiquiátricos:

Art 1º A assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental terá por fim: a)


Proporcionar aos psicopatas tratamento e proteção legal; b) dár amparo
médico e social, não só aos predispostos a doenças mentais como também
aos egressos dos estabelecimentos psiquiátricos; c) concorrer para a
realização da higiene psiquica em geral e da profilaxia das psicopatias em
especial.

Além disso, como mais uma tentativa de precaução contra a violência manicomial, foi
instituído um Conselho de Proteção aos Psicopatas. Já em relação à questão da internação de
menores de idade, que em muitas instituições acontecia junto aos outros internos adultos, foi
determinado que “§ 2º Os menores anormais somente poderão ser recebidos em
estabelecimentos psiquiátricos a êles destinados ou em secções especiais dos demais

43
estabelecimentos…”. Foi também determinada a separação por sexo, de acordo com as “[...]
reações psicopáticas e a possibilidade de vida e ocupação ao ar livre” (Art. 4º).
Ademais, as instituições teriam duas possibilidades de regimes: os estabelecimentos
abertos e os estabelecimentos fechados. As internações também foram regulamentadas: “Art.
12. Serão documentos exigidos para toda internação, salvo nos casos previstos neste decreto:
atestado médico, que será dispensado sòmente quando se tratar de ordem judicial, o
certificado de idoneidade de internando” e, completa a informação: “§ 4º Êsses documentos
deverão declarar quais as perturbações psíquicas ou manifestações suspeitas do paciente, que
justifiquem a necessidade ou conveniência de sua internação.”. Talvez, devido à superlotação
dos hospitais, mais um artigo do documento tentava regulamentar esse ponto das internações:

Art. 16. Uma vez hospitalizado, deverá o paciente ser imediatamente


examinado pelo médico de plantão, que redigirá uma nota clínica, tão
minuciosa quanto possível, visando o estado somático e mental do
internado, e fazendo, especialmente, ressaltar a natureza das suas reações
perigosas evidentes ou presumíveis.

Além disso, nesse decreto também vemos, pela primeira vez, um direcionamento para
que fossem evitadas as internações de longa duração. No Art. 20, decidiram:

Não poderá permanecer em estabelecimento especial aberto, fechado ou


mixto, qualquer paciente, depois de concedida alta pelo médico assistente,
com exceção dos internados judiciais, dos que forem enviados com a nota de
detido pelas autoridades policiais ou militares e dos que forem internados
pelas corporações militares. A alta será imediatamente comunicada, para os
devidos fins, às respectivas autoridades, que deverão providenciar, sem
demora, sôbre a retirada do paciente.

Aparecem também, pela primeira vez, algumas medidas de desinstitucionalização e


ressocialização progressiva:

§ 1º O médico assistente poderá conceder licença de experiência clínica, até


seis meses, justificada a concessão por qualquer dos motivos seguintes: I –
Promover a experiência de reintegração no meio social ou familiar; II –
Promover a influência curativa, quer em relação às perturbações mentais,
quer em relação a doenças intercorrentes por mudança de clima, regime ou
habitos; III – Averiguar o estado de cura definitiva colocando o licenciado
em condições de amplo exercício de suas faculdades intelectuais e morais;
IV – Precavê-lo contra a eventualidade de contágio mental iminente, dada a
sua predisposição individual e a necessidade de subtraí-lo à residência em
comum que possa agravar o seu estado psíquico.

Outro ponto que pode ser identificado nesse documento é a tentativa de


regulamentação dessas instituições, com solicitação de relatórios, atualização de informações
e fiscalização das mesmas, como pode-se notar no Art. 24:

44
O diretor de qualquer estabelecimento psiquiátrico aberto, fechado ou mixto,
enviará mensalmente à Comissão Inspetora um boletim do movimento de
entradas e saídas no mês anterior, devendo também comunicar-lhe, com
brevidade, todas as ocorrências importantes verificadas no mesmo
estabelecimento.

Foram ainda colocados limites de dias de internação, que também fomentavam a ideia
de evitar a institucionalização permanente, que eram uma recorrência problemática desses
serviços. No Art. 30 aparece um ponto relacionado ao direito do internado, pois o mesmo
teve, pela primeira vez, regulamentada a possibilidade de questionar suas condições de
internação, podendo solicitar novos exames de sanidade mental quando acreditasse ser
necessário.
Por fim, no Art. 32, ficou acordado que haveria também uma Comissão Inspetora,
composta por um juiz de direito (que seria o presidente), um curador e um psiquiatra do
quadro da Diretoria Geral de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental. Esse decreto foi
revogado apenas em 1990, pelo Decreto nº 99.78, que disporemos de mais informações mais
à frente.
Mesmo com essas novas possibilidades, as instituições continuaram mantendo a
decadente lógica manicomial. Obviamente que em alguns casos, graças à revolução
humanista de alguns profissionais, os espaços de internação da loucura tiveram alterações nas
formas de tratamento e passaram a respeitar os direitos dos internados, entretanto, a lógica
manicomial persistiu e bastava a troca do quadro de profissionais ou qualquer outro
impedimento, para que a situação manicomial voltasse ao espaço de internamento, revelando
a lógica de um redemoinho manicomial, que sustenta uma permanência dessas condições.
Em Santa Catarina, acompanhando o desenvolvimento da psiquiatria, foi fundado em
1941 o primeiro hospital psiquiátrico, na cidade de São José. Segundo Schneider et al.
(2011), a criação da instituição respondia aos direcionamentos da Liga Brasileira de Higiene
Mental, fundada em 1923, com o objetivo de limpar os centros urbanos, ocasionando o
surgimento do período conhecido nacionalmente como a Grande Internação. O atraso do país
é evidenciado pelo fato de que nesse mesmo período, na Europa, aconteceu no século XVIII,
ou seja, dois séculos antes.
Ainda segundo os autores, os hospitais psiquiátricos no país conservavam
características de albergues, onde os rejeitados pela sociedade viviam. Esse modelo era
patrocinado pela ideologia católica, através das Irmãs de Caridade, que buscavam trazer essas
almas a Cristo, acolhendo-as. Naqueles espaços, os cuidados religiosos, muitas vezes,
sobressaíam aos cuidados técnicos.

45
[...] o isolamento social da loucura passou a ser uma regra disciplinadora de
seu tratamento. O desdobramento lógico dessa medida foi o
descompromisso das famílias, das comunidades, dos governantes para com
as pessoas que apresentavam problemas psíquicos ou desajustes sociais. Isso
gerou o movimento de abandono dessas pessoas nos hospícios, que se
transformaram em verdadeiros abrigos, cada vez mais superlotados, de todos
os tipos de excluídos sociais, mantidos em condições insalubres, com muitos
leitos-chão, constituindo-se em um território dos horrores (SCHNEIDER et
al., 2011, p. 558).

O caráter terapêutico inicial, de cuidado e de tratamento dos doentes, foi se perdendo


de diferentes formas ao longo da história dessas instituições. Até mesmo aquelas que foram
fundadas justamente para combater a lógica manicomial, com o passar dos anos, acabaram
por repetir a violência e a superlotação dos espaços. Além disso, os motivos para a
internação, nas diferentes épocas, não estavam tão somente resumidos à esfera terapêutica, tal
como dito anteriormente, e muitos indivíduos foram internados a partir de justificativas
morais e sociais. O caso da visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Hospital Colônia
de Barbacena (1979), em Minas Gerais, ilustra essa situação. Considerado um precursor dos
movimentos de Reforma Psiquiátrica, Basaglia comparou o hospital brasileiro a um campo de
concentração nazista, devido às estruturas e terapêuticas do local. Escreveu a jornalista
Daniela Arbex (2013, p. 14):

Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham


sido, a maioria [...] internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia,
suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome,
foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de
70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas,
homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara
incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas
por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar
com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade
antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus
documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram
crianças.

Essas expressões de caoticidade continuaram emergindo, como o caso de outra


instituição manicomial, também em Minas Gerais, que foi chamada de “depósito de feras
enjauladas” (PIRES, 1959, p. 39, apud GOULART, DURÃES, 2010). De modo geral,
podemos ver que o internamento psiquiátrico sempre funcionou como um mecanismo social
utilizado principalmente para “eliminar” os elementos heterogêneos e “nocivos” e
“organizar” as sociedades (FOUCAULT, 2009). Dito de outra maneira, o próprio
“aprisionamento” da loucura foi reforçado com o viés da “segurança” e da “tranquilidade”
das sociedades.

46
Maria Clementina da Cunha (1986) reitera essa interpretação ao trazer para o debate o
fato de que a medicina higiênica ou mental, com caráter científico, fomentou um discurso
dominante sobre todas as instâncias da vida, invadindo as relações pessoais e moldando-as
segundo uma ideia de ordem e disciplina. Foi nessa toada que a própria pobreza passou
também a ser explicada como uma manifestação de formas biológicas inferiores, que
fomentava uma submissão entre os considerados “loucos” e “normais”, nas palavras de Silva
(2017, p. 1584): “Suas condições precárias de vida sequer eram levadas em consideração, o
que dirá as determinações sociais que os perpassavam”.
Segundo a psicóloga Fernanda Martinhago e o psiquiatra Walter Oliveira (2014), foi
no século XX que pôde-se testemunhar, a nível internacional, a eclosão de um conflito entre a
psiquiatria que se identificava com os avanços científicos e progressistas da época e as
próprias instituições psiquiátricas. Outra vez, profissionais denunciaram situações de
violência e foi colocado em questão o caráter asilar exercido pelos espaços psiquiátricos, que
estava muito mais a serviço da segurança pública e da assistência social, deixando em
segundo plano a atuação terapêutica que subentendia-se ter dentro desses lugares.
No mesmo período, o tratamento da loucura passou a buscar fundamentos orgânicos,
encontrados nas drogas ou nos psicofármacos. O primeiro antipsicótico, a clorpromazina,
passou a compor a cena psiquiátrica em 1952 e deu início ao que ficou conhecido como a
“revolução psicofarmacológica” (CAPONI, 2019, p. 21). A partir daquela década, a loucura
passou a ser gerida em novos campos. Esse momento foi acompanhado pela ideia da
necessidade de diagnósticos precoces para evitar as doenças mentais, bem como pela
consolidação dos estudos epidemiológicos (SCHNEIDER et al., 2011). Somente naquele
período que passaram a considerar a possibilidade de “recuperação” dos internados.
A crítica ao modelo asilar psiquiátrico, bem como aos tratamentos utilizados nesses
espaços, passou novamente a delinear seu formato em diferentes países. De acordo com o
psiquiatra Paulo Amarante (1996), havia duas tendências: primeiro, os movimentos que
criticavam a estrutura asilar e, segundo, os grupos que buscavam negar o modelo
hospitalocêntrico, vendo a psiquiatria como responsabilidade também do espaço público.
Mesmo nesses movimentos duplos, a “lógica psiquiatrizante” se mantinha e não havia uma
busca efetiva por rupturas. Segundo a enfermeira e pesquisadora Eliani Costa e a professora
de enfermagem Mirim S. Borenstein (1999), depois da Segunda Guerra Mundial, iniciaram
questionamentos aos modelos asilares psiquiátricos, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos, com propostas de comunidades terapêuticas e psicoterapia institucional, como

47
exemplo temos a psiquiatria de setor na Inglaterra, a psiquiatria comunitária nos Estados
Unidos e, mais tardiamente, a psiquiatria democrática na Itália.
O escritor brasileiro Lima Barreto foi um dos primeiros a registrar as condições dos
internamentos psiquiátricos no país a partir da perspectiva dos próprios internados, uma vez
que ele foi também hospitalizado. O autor teceu um importante trabalho revelando, de modo
visceral, o cotidiano institucional visto pela ótica de quem estava internado. Talvez - e muito
provavelmente - outros internos também escreveram sobre suas experiências e teceram
registros que nos mostram como era aquele mundo vivido, entretanto, numa busca em
registros, materiais documentais, livros e revistas, não encontrei, ainda naquele período,
outros trabalhos que relatassem a experiência dos internados a partir de seus próprios relatos.
Isso ficou menos raro, na segunda parte do século, com a chamada Reforma Psiquiátrica
brasileira, quando a atuação popular cresceu e tomou proporções que reverberam até a
atualidade. Antes de finalizar, fiquemos com uma passagem do autor sobre uma ala que foi
internado:

Aí é que percebi que ficava e onde, na seção de indigentes, aquela em que a


imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais
formidável. O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma
pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais
diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente
pobre (BARRETO, 2017, p. 8).

Vale apontar que muitas dessas características degradantes, que também foram
descritas ao longo desse primeiro tópico, mesmo que com um viés histórico, podem ser
observadas atualmente, em 2023. Embora esse tópico tenha dado uma sensação de situação
histórica, gostaria de lembrar que muito se repete ainda hoje e que, mesmo com significativas
mudanças, muito disso não foi superado. A história mostrou, até aqui, esses ciclos
manicomiais, de instituições criadas para “solucionar problemas”, mas que passam a ficar
superlotadas e povoadas por inúmeros casos de violência e negligência institucional, tal como
no citado redemoinho manicomial, por meio do qual uma lógica manicomializante se sustenta
e permanece, quase, intacta. Através desse histórico vemos, finalmente, que a reforma
psiquiátrica brasileira começou muito antes do que sustentam alguns livros e trabalhos
científicos.

48
1.2) 1970 - (Mais-Uma) Reforma Psiquiátrica9

Como visto anteriormente, o país manteve-se no ciclo vicioso institucionalizante


durante todo o século XX. Podemos dizer que em alguns Estados isso se mantém até a
atualidade, no século XXI. Nesse percurso conturbado, quando instituições eram denunciadas
pelo insuperável modelo violento, novas estratégias eram criadas para mitigá-lo. A
psicoterapia institucional, que ganhou força na Europa, chegou a traçar a ideia de que as
próprias instituições adoecem e, como tal, devem ser tratadas (MARTINHAGO, OLIVEIRA,
2014). Nesse ciclo, quando era identificado o adoecimento de uma instituição, traçavam um
roteiro diferente para esse local, mas muitas vezes de modo descontextualizado e isolado, o
que impedia de ocorrer um verdadeiro rompimento da estrutura adoecedora.
Uma experiência pioneira, em 1970, foi realizada no Estado de Santa Catarina - como
se sabe, locus desta pesquisa. Redigiram uma primeira ideia de política de saúde mental com
base nas experiências da psiquiatria preventiva, alinhada com a Divisão Nacional de
Previdência Social, trazendo como inspiração e modelo, principalmente, as práticas dos
Estados Unidos durante o governo Kennedy. Previam que “[...] a assistência psiquiátrica
passasse a ocorrer de forma descentralizada e regionalizada, oferecida sempre que possível na
comunidade, com uso de recursos extra-hospitalares” (PAULIN, TURATO, 2004, apud
SCHNEIDER et al., 2011, p. 554).
Na mesma década, pudemos observar outras iniciativas de mudança na assistência
psiquiátrica sustentadas pelo princípio preventivo-comunitário que antecedeu o que foi
conhecido, posteriormente, como Reforma Psiquiátrica brasileira (RPB). Exemplo disso pode
ser observado no Rio Grande do Sul, na Unidade Sanitária do Murialdo e na Clínica Pinel,
onde foram criados uma Comunidade Terapêutica e um Serviço Comunitário; no Rio de
Janeiro, onde a psiquiatra Nise da Silveira desenvolveu um trabalho que ficou conhecido
internacionalmente e, utilizando atividades de Terapia Ocupacional e Arteterapia, tornou-se
um marco na luta antimanicomial. Além disso, o Estado fundou sua primeira Comunidade
Terapêutica; em São Paulo, com a associação entre a Secretaria do Estado de Saúde e as
escolas de medicina, promoveram pesquisas epidemiológicas, capacitação de profissionais e
implantação de centros comunitários; e, em Minas Gerais, outras experiências inovadoras
causaram uma certa desestruturação do modelo hospitalocêntrico (SCHNEIDER et al., 2011).

9
Disponível em: https://laps.ensp.fiocruz.br/linha-do-tempo. Acesso em 7 de dezembro de 2022.

49
O modelo preventivo, em 1973, consolidou-se através do Manual de Serviço para a
Assistência Psiquiátrica. Foi então privilegiada a assistência na comunidade, utilizando
recursos extra-hospitalares. As redes de serviços já apareciam também com incentivo de
equipes multiprofissionais e princípios técnico-administrativos que viriam compor a base do
Sistema Único de Saúde (SUS), a saber: integração, regionalização, descentralização,
constante aperfeiçoamento pessoal, entre outros. Visavam, principalmente, baixar o custo das
internações, o que demandou a ampliação dos horizontes da ação psiquiátrica, expandindo
seu poder normatizador que pôde então alcançar o tecido social (idem). Segundo Amarante
(1996), um ponto que merece destaque na lógica preventivo-comunitária seria a inexistência
de tentativas de ruptura com o modelo psiquiatrizante. Por fim, é importante lembrar que o
manual nunca foi efetivamente utilizado, pois

[...] uma das principais razões para a não adoção do modelo preventivo no
Brasil [...] estava nos interesses privados da atenção à loucura, pois
paralelamente à edição do Manual, o próprio INPS começou a estabelecer
convênios com as clínicas privadas, para dar conta da excessiva demanda de
internação, tendo essa prerrogativa despertado de fato os interesses da
maioria da categoria médico-psiquiátrica. (SCHNEIDER et al., 2011, p.
560).

Vale pontuar, portanto, que uma das principais razões para a não adoção do modelo
preventivo no país estava relacionada aos interesses privados de atenção à loucura.
Importante ressaltar isso pois, como veremos adiante, essa questão tem sido determinante
para a manutenção da institucionalização psiquiátrica permanente, pelo menos no Estado de
Santa Catarina. Voltando, naquele período, anterior à década de 1980, a assistência
psiquiátrica era prestada pelo Ministério da Saúde, juntamente com as secretarias estaduais de
Saúde e, também, pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS):

Aos primeiros cabia atenção à população sem previdência social, o que


levou à manutenção dos macro-hospitais psiquiátricos, com imensa
população de excluídos. Ao MPAS “competia a assistência aos
previdenciários e seus dependentes. Sem qualquer rede própria, o MPAS
exercitava, principalmente a partir da criação do INPS, em 1967, a política
da compra de serviços da rede privada” (AMARANTE, 1997, p. 166), tendo
isso acarretado a elevação do “percentual de internações desta especialidade
[…] em 344% de 1973 para 1976” (AMARANTE, 1997, p.167). Como
consequência, no final dos anos 1970, inverte-se a balança, e 70% dos leitos
psiquiátricos no país passaram a ser de hospitais privados (PAULIN,
TURATO, 2004, apud SCHNEIDER, 2011, p. 561).

Os autores concluem que esse processo ocasionou o fortalecimento da lógica que


mercantiliza a loucura: “[...] o Estado, ao comprar os serviços psiquiátricos privados, cria

50
condições para a transformação da loucura em mercadoria” (idem, p. 561). Essa
transformação, por sua vez, reverberou na história manicomial do país até os dias atuais, mas
aprofundaremos na atualização dessas instituições nos próximos tópicos. Retornando, foi
exatamente nesse período que, em Santa Catarina, um Hospital Psiquiátrico - que na época
era conhecido como Colônia - teve seu primeiro profissional da área da saúde contratado,
sendo ele da enfermagem. Desde sua fundação, em 1941, os profissionais que trabalhavam
naquela instituição eram admitidos por indicação, por parentes ou funcionários conhecidos.
Caminhando nesses emblemáticos percursos da institucionalização psiquiátrica no
país, chegamos finalmente ao período histórico que muito tem aparecido em trabalhos
acadêmicos e jornalísticos sobre o tema. Entramos, agora, em um momento que, por vezes, é
conhecido como o início de um movimento de Reforma Psiquiátrica no país, visão essa que -
quando não aprofundada - pode negligenciar todo o histórico secular de movimentos
revolucionários nessas instituições manicomiais.
Segundo Amarante (2020), ao falarmos em Reforma Psiquiátrica no Brasil (RPB),
encontramos a difícil tarefa de construir uma periodização, uma vez que existem diversos
relatos e indícios de práticas de transformação que poderiam ser considerados reformadores.
Entretanto, o psiquiatra opta por demarcar um início desse processo em 1976, período que foi
fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); nas suas próprias palavras, uma
“[...] entidade pioneira e inovadora, que se tornou uma referência histórica no sentido de
demarcar o início, não apenas do processo da Reforma Psiquiátrica, mas também da Reforma
Sanitária brasileira…” (p. 129). Além disso, o autor sublinha que a RPB deve ser vista como
um processo social complexo, pois está sempre em movimento, sendo plural, dinâmica e
articulada por diferentes dimensões simultâneas que se intercomunicam.
Amarante define esse processo, também, como uma busca de intervenção no campo
de relações entre a sociedade e a loucura, no sentido de transformá-las através de práticas não
excludentes e de estratégias de inclusão social dos sujeitos. No país, esse processo surge
principalmente em defesa da saúde coletiva, da equidade na oferta dos serviços e do
protagonismo dos trabalhadores e usuários na gestão e produção de tecnologias de cuidado.
De modo geral, “A RPB propõe a reformulação do sistema assistencial, formula críticas ao
paradigma psiquiátrico, propõe novas práticas e elabora propostas de transformação do
modelo clássico de atenção em saúde mental.” (MARTINHAGO, OLIVEIRA, 2014, p.
1278).
Importante ressaltar que não somente a assistência à saúde mental, mas também todo
o sistema de saúde estava em crise naquele período e reivindicações de mudanças passaram a

51
fazer parte do cotidiano do país. A nível internacional, movimentos mundiais de
transformação atuavam, resultando, por exemplo em 1978, no estabelecimento da Lei Italiana
nº 180, que foi a primeira Lei que determinava o fechamento dos hospícios e proibia a
construção de novos.
Além disso, no mesmo ano, foi redigida a declaração de Alma Ata, na Conferência
Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, que reconheceu, finalmente, a saúde como
um direito humano associado aos determinantes sociais e enfatizou a importância da
participação popular e comunitária como fundamentais. Além do mais, uma sequência de
acontecimentos ocorreram, direcionando o país na busca da efetivação do conhecido lema:
“Por uma sociedade livre de manicômios”. Em linhas gerais, sublinhei adiante, de forma
cronológica, alguns momentos importantes nos caminhos seguidos até os dias atuais.
Vale destaque, primeiramente em 1977, a criação da Lei nº 6.439, em resposta à
situação crítica de assistência médica da previdência, que regulamentou o Sistema Nacional
de Previdência e a Assistência Social (SINPAS). Foi também lançado pelo sanitarista Josicelli
Freitas o Plano Integrado de Saúde Mental (PISM), na VI Conferência Nacional de Saúde,
em Brasília. O PISM, que abrangeria de 1977 a 1980, destaca cinco tópicos que merecem
atenção (BRASIL, 1977):
1) 23% do total de leitos, no país, são para doenças mentais. A proporção está de
acordo com os padrões recomendados; entretanto há distorções em sua
distribuição entre as Regiões.
2) Tem-se como meta criar um novo modelo de assistência com atendimento
predominantemente ambulatorial.
3) Será dada ênfase à integração das ações em vários níveis de complexidade
crescente (ambulatório, hospital - dia, e hospital - integral).
4) A rede de serviços se estenderá desde os lugares com 50.000 habitantes, que
deverão dispor de pessoal de saúde de nível simples, até as metrópoles que
deverão dispor de médicos e enfermeiros especializados, outros técnicos e
auxiliares técnicos.
5) Todo o PISM deverá contar com supervisão e avaliação contínua das ações de
saúde, nas cinco Grandes Regiões, Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e
Centro-Oeste.

Podemos notar que as reivindicações dos tópicos, já naquele período, repetiam o


longo histórico manicomial e institucionalizante que o país tem construído ao longo dos anos
e muitas das recomendações são solicitadas ainda hoje, em 2023, como o fortalecimento da
rede de atenção, a descentralização do hospital psiquiátrico, a avaliação dos serviços, entre
outros. Vale tomar nota que, em outros países, os movimentos de desinstitucionalização e

52
reforma das estruturas de hospitais psiquiátricos também vinham acontecendo. Nos Estados
Unidos, por exemplo, processos de desinstitucionalização já haviam começado anos atrás, em
1963, instaurados pelo Ato dos Centros Comunitários de Saúde Mental. Naquela época, havia
uma movimentação de transferência da responsabilidade pelos pacientes internados em
hospitais psiquiátricos para a comunidade e, em 1976, foi constatado que o papel da custódia
asilar dos Hospitais Psiquiátricos não estava sendo devidamente considerado ao promoverem
a desinstitucionalização, o que aumentou a ocorrência do fenômeno conhecido como “porta
giratória”, com muitas reincidências institucionais (MARTINHAGO, OLIVEIRA, 2014).
Cabe pontuar que constataram que o processo de desinstitucionalização demandaria
“[...] compromissos com a promoção de transformações nas relações sociais, de políticas
públicas incisivas e financiamento adequado” (idem, p. 1276). Na França, voltando um pouco
mais, em 1960, a Psiquiatria de Setor foi assumida com a necessidade do fim da exclusão dos
“doentes mentais”, preconizando um tratamento no meio social em que viviam e colocando a
internação hospitalar apenas para casos isolados, sendo vista sempre como transitória (idem,
p. 1277). Já na Itália, nesse mesmo período, os profissionais começaram os processos de
desinstitucionalização e as instituições tiveram, gradativamente, suas portas abertas em
Gorizia e Trieste. Quando questionado sobre o ponto de partida para essa abertura, respondeu
o psiquiatra Basaglia: “Partiu-se do encontro com a realidade do manicômio, que, sendo
opressiva, é trágica. Não era possível que centenas de homens vivessem em condições
desumanas somente por serem doentes. Não era possível que nós [...] fôssemos os artífices e
os cúmplices de uma tal situação” (1985, p. 29).
Interessante observar que a própria psiquiatria anunciou necessidades de reforma, ao
redescobrir que o convívio social e todas as formas de liberdade aliviavam os transtornos
psíquicos (MARTINHAGO, OLIVEIRA, 2014). Em 1978, mais um movimento de crise viria
a trazer conquistas para a RPB. Foi quando os médicos residentes do Centro Psiquiátrico
Pedro II, no Rio de Janeiro, denunciaram condições de maus tratos e violência - mais uma
vez - em uma instituição manicomial. Apontaram também para as péssimas condições de
trabalho a que estavam submetidos, notando que a instituição expressava sua violência não
tão somente nos internados, que recebiam uma carga inegavelmente maior de abusos, mas
também para todos os que compartilhavam aquele espaço.
Naquela ocasião, 260 trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM)
foram demitidos e iniciaram uma greve, sendo o período conhecido como a “Crise da
DINSAM”. Como fruto desta ocorrência, nasceu o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental (MTST), também no Rio de Janeiro. Foi implantado o SINPAS (Sistema Nacional de

53
Previdência Social) e o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social)10. Já no nosso comparativo com a Itália, foi, neste mesmo ano, que foi aprovada a já
citada Lei nº 180, a Lei da Reforma Psiquiátrica italiana, que determinou a extinção
progressiva dos manicômios.
Redirecionando o olhar de volta para o Brasil, ainda em 1979, foi assinada a Portaria
Interministerial nº 1369, tendo como objetivo a implantação do Sistema Nacional de Saúde.
Nela, foram estabelecidas as diretrizes para a atuação na área da saúde mental. Além dessa,
foi revogada a Portaria BSB 32/74 consignando a Política de Saúde Mental. Além disso, foi
realizado o I Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, em São Paulo, marcando
a atuação popular nos espaços de discussão sobre a assistência à saúde mental.
Na década de 1980, segundo Martinhago e Oliveira (2014), o Ministério da Saúde
passou a privilegiar a construção de estruturas substitutivas aos Hospitais Psiquiátricos. Em
1986, foi realizada a Primeira Conferência Internacional sobre a Promoção da saúde, em
Ottawa, no Canadá, tendo como objetivo proporcionar saúde para todos, fazendo parte de
uma expectativa de uma nova saúde coletiva a nível internacional. No ano seguinte, em 1987,
foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)11 do Brasil, em São Paulo,
o CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira. As redes de atenção à saúde mental passaram a
ser compostas pelos CAPS, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, Centro de Convivência e
Cultura e Serviços Residenciais Terapêuticos. Além disso, foram realizados dois importantes
eventos - no Rio de Janeiro, a I Conferência Nacional de Saúde Mental, na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, em Bauru-SP, ocorreu o II Encontro Nacional dos

10
O INAMPS se constituía como a política pública de saúde que vigorava antes da criação do SUS e
foi extinto pela Lei federal nº 8.689, em 1993. O antigo Instituto era responsável pela assistência
médica aos trabalhadores que contribuíam com a previdência social. Os setores da população que não
faziam essa contribuição não podiam acessar estes serviços. Com a criação do SUS, o atendimento
passou a ser universal, ou seja, qualquer pessoa pode acessar o serviço público de saúde em qualquer
parte do país. (Disponível em:
https://www.epsjv.fiocruz.br/instituto-nacional-de-assistencia-medica-da-previdencia-social-inamps
acesso em 28/11/2022).
11
Os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS são serviços de saúde de caráter aberto e comunitário
voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo
aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras substâncias, que se encontram
em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial. Nos estabelecimentos atuam
equipes multiprofissionais, que empregam diferentes intervenções e estratégias de acolhimento, como
psicoterapia, seguimento clínico em psiquiatria, terapia ocupacional, reabilitação neuropsicológica,
oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos familiares e domiciliares, entre outros.
(Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/caps acesso
em 28/11/2022)

54
Trabalhadores de Saúde Mental, onde foi criado o Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial.
O Sistema Único de Saúde brasileiro foi aprovado somente em 1988, nove anos
depois de sua primeira proposta (1979), na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que contou
com ampla participação popular. No ano seguinte (1989), mais um episódio de violência -
não isolado como podemos notar - foi denunciado em um espaço manicomial, na Clínica
Anchieta, em Santos. No mesmo ano, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3657/89, de autoria
do deputado federal Paulo Delgado que, inspirado pela Dra. Nise da Silveira e baseado na
experiência italiana de Franco Basaglia, previa a extinção dos manicômios no Brasil e a
criação de uma rede de serviços de saúde mental.

O projeto era simples, com três artigos estruturantes: o primeiro impedia a


construção ou a contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder
público; o segundo previa o direcionamento dos recursos públicos para a
criação de “recursos não-manicomiais de atendimento”; e o terceiro
obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade
judiciária. Depois de aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto
completou onze anos de substitutivos e postergações no Senado para de lá
sair em 1999, numa articulação do parlamentar proponente, do Ministério da
Saúde e do movimento antimanicomial. Voltou à Câmara já como projeto
substitutivo para nova rodada de negociações, aprovação final e
homologação pelo Presidente da República somente em abril de 2001
(PITTA, 2011, p. 4585).

A Declaração de Caracas, no ano seguinte, marcou as reformas na atenção à Saúde


Mental nas Américas. A participação popular no campo da saúde mental também continuou a
aumentar, graças à criação de associações de familiares e usuários dos serviços de saúde
mental. Fomentando ainda mais a participação popular, já em 1991, foi realizado em
Santos-SP o I Encontro de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, sendo possível
vislumbrar, talvez numa das primeiras vezes, movimentos de desinstitucionalização naquele
período e não mais, como visto anteriormente, apenas propostas de alteração na estrutura
institucional. Iniciou-se também a publicação de portarias para construir uma Rede de Saúde
Mental no país. Pode-se dizer que, naquela época, acompanhamos o que dizia Basaglia
alguns anos antes, sobre o reconhecimento popular e a necessidade de negação da própria
instituição:

A negação de um sistema é a resultante de uma desestruturação, de um


questionamento do campo de ação em que agimos. É o caso da crise do
sistema psiquiátrico enquanto sistema científico e enquanto sistema sistema
institucional: desde que nos conscientizamos do significado desse campo
específico, particular, em que atuamos, ele vem sendo desestruturado e
questionado. Isso significa que em contato com a realidade institucional, e

55
em nítida contradição com as teorias técnico-científicas, evidenciam-se
elementos que remetem a mecanismos estranhos à doença e sua cura
(BASAGLIA, 1985, p. 103)

Já em 1992, foi promulgada a primeira Lei de Reforma Psiquiátrica no país (Lei nº


9.216), no Rio Grande do Sul, que regulava todas as ações, recomendando os serviços
substitutivos, proibindo a construção de novos manicômios e a ampliação leitos e ressaltava,
por fim, o papel do Estado na fiscalização da assistência psiquiátrica (AMARANTE;
OLIVEIRA, 2004, p. 18). Com o slogan “Eu cuido, não prendo”, ocorreu o I Encontro
Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial, em Piatã, na Bahia, em 1993, além da
elaboração da “Carta de Direitos e Deveres dos Usuários da Luta Antimanicomial” no III
Encontro Nacional das Entidades de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial. Na
virada do século, em 2001, foi então, finalmente, promulgada a Lei nº 10.216 - Lei da
Reforma Psiquiátrica, também conhecida como a Lei de Saúde Mental brasileira.
Acompanhou a Lei um processo contínuo de mobilização comunitária, composto por oficinas
de arte, projetos, esportes e economia solidária (AMARANTE, 2021).
No mesmo ano, podia-se observar uma efervescência de eventos no campo da saúde
mental, como o V Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial e a III
Conferência Nacional de Saúde Mental. Depois disso, seguindo o histórico daquela reforma,
vemos alguns anos sem eventos ou grandes acontecimentos. A linha do tempo, criada pela
equipe da FIOCRUZ12, chega a pular três anos entre 2002 e 2005 e registra apenas em 2007
algum acontecimento no campo, a saber: a Realização da Oficina Nacional de Indicação de
Políticas Culturais para Pessoas em Sofrimento Mental e em Situação de Risco Social -
Loucos pela Diversidade, além do Encontro Internacional de Saúde Mental em Salvador,
Bahia e a criação da ABRASME - Associação Brasileira de Saúde Mental. Vale, entretanto,
destaque em 2003, para a promulgação da Lei nº 10.708 de 2003 (BRASIL, 2003), também
proposta por Paulo Delgado13, que instituiu o Programa de Volta para Casa, trazendo
incentivo financeiro para pessoas que foram vítimas da internação de longa permanência.

12
Disponível em: https://laps.ensp.fiocruz.br/linha-do-tempo. Acesso em 1° de dezembro de 2022.
13
Leis de Paulo Delgado: Lei nº 10.216 a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Lei nº 9.867
(1999) a qual dispõe sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais, visando a integração
social dos cidadãos conforme especifica. Lei nº 9.270 (1996) a qual acrescenta inciso ao art. 659 da
Consolidação das Leis do Trabalho. A saber: "conceder medida liminar, até decisão final do processo,
em reclamações trabalhistas que visem reintegrar no emprego dirigente sindical afastado, suspenso ou
dispensado pelo empregador.” Lei nº 10.708 (2003) a qual institui o auxílio-reabilitação psicossocial
para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações.

56
Nessa mesma linha do tempo, o Estado de Santa Catarina aparece apenas em 2008
com o Congresso Brasileiro de Saúde Mental (UFSC), na capital Florianópolis, organizado
pela ABRASME e, dois anos depois, reaparece com a IV Conferência de Saúde Mental,
sendo esta a última Conferência temática de saúde mental que ocorreu até a escrita desta
pesquisa, embora alguns eventos preparativos têm acontecido e compõem o acervo de
material etnográfico que será aqui abordado. Aquela foi a primeira vez que tivemos, no
Estado, um evento desta dimensão. Antes de continuar, portanto, vale fazermos uma pausa
para direcionarmos nosso olhar para o papel e a atuação do Estado catarinense nesses
percursos de Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial brasileiros, uma vez que está neste
o locus da presente pesquisa.

1.3) Santa Catarina e a Reforma Psiquiátrica Brasileira

A Reforma Psiquiátrica brasileira contou com diferentes atores ao longo do seu


percurso, além de ter mobilizado de distintas maneiras seus interlocutores. Em Santa
Catarina, tivemos alguns pontos que nos fazem evitar uma visão generalizada e totalizante da
mesma. Em 1940, foi criada uma Colônia, em São Pedro de Alcântara-SC, para o
internamento compulsório de pacientes portadores da doença de Hansen. Naquele período,
esses espaços eram conhecidos como leprosários e eram construídos como pequenas cidades
para abrigar famílias inteiras. No ano seguinte, a primeira Colônia Psiquiátrica do Estado foi
então inaugurada, com recursos públicos, em 1941, e tinha como objetivo: “[...] retirar do
convívio social aqueles tidos como loucos, para amenizar seu sofrimento e proteger o meio
social…” O hospital “[...] era visto como um alento ao sofrimento dos loucos.” (BORGES,
2013, p. 1532). Outras duas instituições foram inauguradas no mesmo período, um Hospital
para as doenças infectocontagiosas (1943) e um Abrigo de Menores para crianças
desabrigadas (1940), em um momento em que o Estado investia na reestruturação e na
modernização da política de saúde pública no país (MALUF et al., 2020).
Seguindo o recorte metodológico desta pesquisa, falaremos neste tópico apenas das
duas primeiras instituições, a Colônia para pacientes de Hansen e a Colônia Psiquiátrica, pois,
após o mapeamento etnográfico, foi revelado que esses dois hospitais públicos, embora
reformados, são os únicos do Estado que ainda abrigam moradores nas alas psiquiátricas, o
que escolhemos chamar aqui de institucionalização psiquiátrica permanente.

57
Ambas as instituições, desde a inauguração, criaram espaços de moradia para
internações permanentes, embora seus internados se diferissem nos diagnósticos ou, no caso
da instituição psiquiátrica, também pela ausência deles. Na data da criação do manicômio, já
era possível vislumbrar sua superlotação, pois tinha capacidade para 300 pessoas e foi
inaugurado com 311 pacientes, vindos principalmente do Asilo de Azambuja (Brusque-SC) e
do Abrigo Municipal de Alienados Oscar Schneider (Joinville-SC) (MALUF et al., 2020;
BORGES, 2013). A superlotação aumentou com o passar dos anos:

Em 1947 já eram 428 internos, e os números só aumentaram. O hospital


termina a década de 1950 com cerca de oitocentos internos, saltando, em
1967, para 1.773, e, no ano seguinte, é colocado na lista dos hospitais
psiquiátricos que utilizam os chamados leitos-chão, camas improvisadas
feitas no chão para internação de pacientes (BORGES, 2013).

A política que impulsionou a criação desses ambientes estava alinhada à Liga


Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, que tinha como objetivo principal a limpeza
dos centros urbanos. De acordo com Schneider et al. (2011), esse modelo provocou
novamente algo semelhante ao que foi, em 1979, caracterizado por Foucault como a grande
internação, que ocorreu na Europa muitos anos atrás, no século XVIII. Naquele período, os
asilos ou albergues manicomiais recebiam, principalmente, sujeitos que não se enquadravam
na ordem socialmente aceita.
Ainda em Santa Catarina, em 1968, foram criados três hospitais psiquiátricos
privados, em Criciúma, São José e Joinville respectivamente. O único Hospital Psiquiátrico
público, desde sua fundação, contava com carpintaria, padaria, horta, criação de gados e
porcos, engenho de farinha, olaria e lavanderia e, não à toa, fez construir à sua volta um
bairro que leva seu nome até a atualidade. Os moradores que vieram ali a residir, passaram a
trabalhar no hospital e a povoar a região. No auge das internações, o manicômio chegou a ter
aproximadamente 2.156 pacientes, que viviam aglomerados em pavilhões, em camas ou
leitos de chão, uma vez que a estrutura não comportava todos.

O que nós encontramos [...] quando chegamos em 5 de agosto de 1971[...]?


Nós fizemos uma contagem geral no hospital, colocamos todos os pacientes
do lado de fora das enfermarias e pessoas na porta contando. [...] Nós
contamos 2.156 pessoas internadas na Colônia, que tinham entre camas e
beliches 1.400 leitos. Havia, então, 756 leitos-chão. [...] O professor Luis
Cerqueira falava muito que leito-chão era uma instituição brasileira. Além
disso, o hospital tinha somente quatro médicos e noventa funcionários na
enfermagem para cuidar desses 2.156 doentes (KRAMER, 2010, apud
SCHNEIDER et al., 2011)

58
A partir dessa fala, podemos observar como foram as primeiras décadas do espaço,
que já na sua inauguração estava superlotado e, com a crescente das internações, passou a
comportar números inimagináveis, trazendo para si a característica de um grande albergue
que acomodava o que a sociedade excluía. Esse modelo era apoiado pelas irmãs de caridade
católicas, que desempenhavam a assistência aos internados privilegiando os aspectos
religiosos em detrimento dos cuidados técnicos (idem). Algumas tentativas de paralisar o
momento da grande internação começaram a emergir também em 1971, quando os
internamentos ocorriam majoritariamente por indicação de políticos, padres, familiares,
conhecidos de alguém que trabalhava no hospital, entre outros. Nos tratamentos, utilizavam
eletrochoques, insulinoterapia e brometos14. Além do mais, as situações de violência e abuso
sobressaíam a qualquer suposto tratamento e os índices de óbito eram altíssimos (idem, p.
564).
Segundo Costa e Borenstein (1999), o Hospital psiquiátrico aglutinou em si toda a
assistência mental do Estado, o que o fez concentrar encargos e atribuições que extrapolavam
sua função hospitalar: “[...] passou a assumir uma assistência custodial que se tornou
predominante em relação aos outros tipos de recursos terapêuticos.” (p. 80), o que alimentou
a superlotação do espaço:

Deparamo-nos então, com uma super população de doentes crônicos, sem


vínculos familiares, sem referência previdênciária e institucionalizados. A
maioria destes pacientes permaneceram num estágio de cronicidade estável
não evoluindo a um estágio final de deterioração. Seus sintomas psicóticos
não eram tão severos e poderiam residir fora do hospital. No entanto, o ócio
em que a instituição submeteu-os, levou a um gradual afastamento de suas
atividades e costumes, com um empobrecimento de suas funções (idem, p.
80).

Em 1975, Santa Catarina tinha a maior taxa de internações por consulta no Brasil
(SCHNEIDER et al., 2011). Com a grande internação, o papel de responsabilidade pelo
sujeito em sofrimento psíquico foi transferido das famílias, comunidades e governantes, para
essas instituições, que passaram a aglutinar em si não tão somente pessoas “doentes” que
buscavam tratamento, mas também aquelas que eram levadas às internações compulsórias
para que ficassem afastadas da convivência social, como mulheres solteiras grávidas,
homossexuais, profissionais do sexo, entre outros. Os tratamentos eram realizados através da
ordem moral e o isolamento social contribuía para construir o imaginário cultural de

14
Tendo o significado de algumas “Gotas amargas. Uma coisa que não se entende a finalidade até
hoje.”. (Entrevista com Kramer, 15 out. 2010, apud SCHNEIDER, 2011, p. 564)

59
necessidade dos asilos. Naquela lógica, ao isolar um doente e não necessariamente tratá-lo, o
“problema” poderia ser, enfim, esquecido dentro dos muros.
Os manicômios passaram a ser lugares-depósitos e os tratamentos ficaram em
segundo plano, pois o que era buscado, principalmente, era a organização e a manutenção da
instituição em si e dos espaços além dos muros, relegando aos pacientes o terceiro plano, do
esquecimento. Utilizaram, para isso, uma espécie de ideia de instituição-necessária, criando
imaginários que estigmatizavam a loucura para comprovar a necessidade de exclusão dela.
Como vimos anteriormente no ciclo da institucionalização, a ordem dos fatores,
dialeticamente, primeiro cria a necessidade social e ilusória da instituição, que é pautada na
ideia de “caridade”, para ajudar quem sofre daquele “mal”. Depois, o espaço para
institucionalizar é fundado e, a partir do momento que começa a atuar, caminha em direção
ao seu esgotamento, pois não demora para que os problemas da superlotação, degeneração
espacial e surgimento de situações de violência apareçam. O manicômio não sobrevive sem
essas características, pois são elas que o fundam, o sustentam e o fazem permanecer.
Em Santa Catarina ocorreu exatamente isso, assim como podemos observar também
em outros hospitais, como naquele em que fiz minha pesquisa de iniciação científica e de
mestrado entre os anos de 2015 e 2019 no Estado de São Paulo (DEL SARTO, 2018; 2020).
Nessa lógica, que se repete pelos diferentes Estados do país, quando a instituição psiquiátrica
chega ao seu limite, os atores precisam se unir para criarem soluções e, normalmente, essas
resoluções são de duas ordens: 1) reforma do ambiente; ou 2) busca de alternativas fora da
instituição e fechamento do espaço manicomial. A primeira solução sempre retorna ao ciclo
denunciado previamente, pois, apenas com a reforma do espaço, tem-se a ideia da criação de
uma nova instituição, entretanto, a estrutura que a sustenta se mantém e a faz desembocar, de
forma repetida, em uma situação manicomial. A segunda também, pois os espaços
alternativos, quando não priorizados e fiscalizados, podem ser aglutinados pelo mesmo ciclo
que os fará, uma vez mais, exemplos de espaços que seguem a lógica manicomial. É
exatamente por isso que usamos a analogia do redemoinho para falar desta lógica, porque ele
aglutina em si todos os serviços, todos os atores e, depois de ter forma e corpo, destrói tudo o
que está a sua volta. Cria, portanto, a necessidade de mudança e, quando ela é feita, retoma o
movimento circular que o levará, uma vez mais, à sua destruição.
Não fugindo dessa lógica, o Plano de Desenvolvimento Catarinense, na década de
1970, foi criado para uma aceleração do processo de desenvolvimento do Estado. Dentro dele
estavam previstos 13 programas, entre eles apenas um pertencia à área da saúde
(SCHNEIDER, 2011, p. 562). O Estado, naquele período, depois de notar a caoticidade a

60
qual sua instituição psiquiátrica havia chegado, decidiu, pioneiramente, que seriam seguidos
os princípios preventivos-comunitários, enquanto a indústria da loucura crescia. Segundo
Schneider et al. (2011), Santa Catarina, na sua dimensão econômica, estava passando pelo
período de integração e consolidação do capital industrial, acompanhado pela ditadura militar
no Brasil. Além do mais, a linha de intervenção do Estado era a política desenvolvimentista,
que utilizava, principalmente, a metodologia de planejamento estatal. Foi então criada uma
seção de saúde mental (decreto SES/10-1971) tornando a Colônia uma instituição vinculada à
Fundação Hospitalar (BORGES, 2013).
Outras mudanças estruturais foram notáveis, como a divisão do Hospital em 12
unidades, subdivididas em alas femininas e masculinas para cada Centro Administrativo
Regional de Saúde (CARS). O objetivo principal dessa divisão foi unir os internos de acordo
com suas afinidades culturais, sociais e geográficas. Além disso, em 1972, ocorreu a primeira
contratação de profissionais da psicologia, quando iniciaram as movimentações para a
desospitalização dos pacientes. Visando diminuir o número de internos, criaram leitos
psiquiátricos em hospitais gerais. Os trabalhos foram preconizados pelos técnicos da Opas
(Organização Pan-americana de Saúde), que estavam desempenhando um projeto de
capacitação dos médicos generalistas, contabilizando a implantação de 16 ambulatórios de
saúde mental (SCHNEIDER, 2011, p. 564). No mesmo período, em Chapecó, estavam
construindo um Hospital Psiquiátrico para pacientes da região Oeste e Meio-Oeste,
entretanto, as obras foram interrompidas para que evitassem o estabelecimento de mais um
manicômio no Estado.
Infelizmente, repetindo a tendência nacional, as experiências de avanço na saúde
mental foram interrompidas devido à ênfase hospitalocêntrica que, mais uma vez, se
sobressaiu às boas práticas desenvolvidas. Naquele mesmo momento, começou a se
consolidar a dívida externa brasileira e o aumento da inflação, o que afetava - diretamente -
as condições de vida da população. Entre 1973 e 1976, pudemos perceber um aumento nas
internações psiquiátricas de 344% (MALUF et. al, 2020).
Paralelas a esse aumento, cresceram também as denúncias públicas relacionados aos
manicômios que, como pudemos ver no tópico anterior, ocasionou o evento que ficou
conhecido como a crise do DINSAM (1978), na qual foram reveladas situações de agressões,
estupro, trabalho escravo e mortes (idem). Os interesses privados da assistência aos doentes
mentais também cresciam naquela época, quando convênios foram estabelecidos por clínicas
privadas, uma vez que o número de internados só aumentava no país. Segundo Velho (1981),
nas suas discussões sobre os comportamentos desviantes, tivemos no país a criação de uma

61
individualidade pura e as diferenças individuais fizeram com que pessoas fossem internadas
em instituições para serem mantidas afastadas de uma suposta ordem social.
Voltando à Santa Catarina, as Normas Gerais para a Prestação de Assistência Médica
aos doentes mentais, desde 1962, determinavam uma descentralização e regionalização da
assistência psiquiátrica, sendo oferecida também na comunidade, com recursos
extra-hospitalares, tais como os ambulatórios e os hospitais gerais. Essas ações estiveram na
base das transformações preconizadas pelos movimentos sociais na saúde mental brasileira,
entre os anos de 1980 e 1990 (SCHNEIDER et al, 2011, p. 554), entretanto, vale lembrar que
toda essa sequência de práticas, infelizmente, não foram continuadas pelos governos
posteriores o que tornou inviável a sua permanência.
O perfil dos pacientes foi traçado em 1984, quando identificaram que 55,7% deles
eram crônicos (com mais de cinco anos de doença e com permanência na instituição maior do
que na sua própria casa); 19,3% eram asilares (sem vínculo e/ou contata familiar há mais de
três anos); e 25% eram agudos (dependentes químicos e deficientes mentais). Em 1986, um
ano depois do fim do uso dos eletrochoques como terapia naquele ambiente, o primeiro
CAPS do Estado foi criado, em mais uma tentativa de romper com a lógica degeneradora do
ciclo manicomial.
Anos mais tarde, após a criação Sistema único de Saúde (1988), o Hospital
Psiquiátrico abrigava 863 pacientes crônicos e, com uma média de 300 deles com prognóstico
e diagnóstico, iniciaram trabalhos alternativos para as tentativas de retorno ao convívio
familiar (COSTA; BORENSTEIN, 1999):

[...] foram realizadas inúmeras viagens de ônibus para o Oeste do Estado, de


onde a maioria era procedente. As viagens tinham como objetivo além do
retorno dos pacientes aos seus lares, orientar as famílias de como tratar seus
doentes e buscar junto ao município, apoio para a permanência destes em
suas casas. Desenvolveu-se também um programa de triagem melhorada, na
tentativa de envolver os familiares na internação do paciente, devolvendo-o
ao convívio familiar e à sociedade, o mais precoce possível (p. 83).

Após essas tentativas, muitos moradores crônicos do hospital ainda não puderam ter
sua desinstitucionalização concluída, por problemas diversos, como não adaptação familiar,
inexistência de responsáveis legais fora da instituição, entre outros. Foi então que os
profissionais, inspirados por um modelo de projeto de reabilitação do doente mental a partir
de trabalhos agrícolas, desempenhado no Rio Grande do Sul, decidiram criar um Centro de
Reabilitação Agrícola dentro de outro hospital, na antiga Colônia criada para os pacientes de
Hansen. Isso só foi possível porque aquele hospital estava em vias de extinção, pois já havia

62
anos em que os portadores da doença já não eram mais institucionalizados permanentemente
e compulsoriamente, o que foi deixando, gradativamente, as alas vazias: “A ocupação de
leprosário por doentes mentais não é um fato recente. [...] Foucault (2008), relata que as
instituições asilares para “loucos”, foram herança da desativação dos inúmeros leprosários
existentes na Europa, até o século XVII.” (COSTA, BORENSTEIN, 1999, p. 82).
O projeto só foi finalizado e aprovado em 1986, buscando principalmente a
reabilitação e a reinserção dos pacientes crônicos à sociedade, com enfoque na recuperação
das habilidades perdidas nos anos de internação15 (COSTA, BORENSTEIN, 1999). Foram
então selecionados pacientes do Hospital Psiquiátrico para serem transferidos para a Colônia,
visando aos objetivos acima citados. Para tanto, como requisitos foram considerados: 1)
Pacientes com patologia esquizofrênica prioritariamente; 2) Pacientes do sexo masculino; 3)
Oriundo do meio rural; 4) Sem vínculo previdenciário; 5) Com início da doença há mais de
cinco anos e permanência na Instituição mais de 50% de sua vida; 5) Idade entre 25 a 50
anos; 6) Com vínculo familiar reduzido ou inexistente; 7) Com reduzida ou nenhuma
medicação psiquiátrica; e 8) Com condições clínicas compatíveis com a tarefa agrícola
(idem).
Para a reforma do espaço do projeto, que estava abandonado, foi formada uma equipe
de pacientes que eram levados, diariamente, ao local, para prepararem o ambiente. Eles
capinaram, reformaram e foram os responsáveis pela organização do espaço, sendo
orientados por uma enfermeira e contando com a ajuda de um assistente. Em 2 de fevereiro
de 1987, o primeiro grupo de 14 pacientes foi então transferido e - já naquela ocasião - os
profissionais de saúde que os acompanharam observaram que os critérios de seleção não
poderiam ser seguidos à risca, pois se compunham e se complicavam.

O perfil dos pacientes do primeiro grupo se caracterizou por: em relação ao


diagnóstico médico, três (3) eram deficientes mentais, dois (2) eram
epiléticos e os demais (9), eram esquizofrênicos. Em relação a procedência,
três (3) eram procedentes do meio urbano, nove (9) do meio rural e um (1)
de região desconhecida. Em relação ao tempo de permanência, todos
estavam há mais de 10 anos internados. Em relação ao vínculo familiar e

15
Objetivos do Projeto: “Em relação aos pacientes: através de um processo continuo, coordenado e
levado a efeito por uma equipe multidisciplinar, pretendia-se recuperar o doente mental crônico,
dentro dos aspectos biológico, psicológico, social e profissional, através da realização de atividades
rurais. Em relação à equipe terapêutica: possibilitar treinamento e aperfeiçoamento constante da
equipe multidisciplinar de enfermagem que as capacitasse para este tipo de trabalho, e de outros
profissionais que buscassem o hospital. Em relação à Instituição: reduzir o número de pacientes
crônicos [...] implementando uma nova proposta de modelo de assistência psiquiátrica aos pacientes
crônicos asilares, e oferecendo um maior número de recursos terapêuticos aos pacientes agudos
(psicóticos, dependentes qulmicos e deficientes mentais)” (COSTA, BORENSTEIN, 1999, p. 82).

63
previdenciário, quatro (4) dos pacientes possuem família, entretanto há mais
de 3 anos não recebiam visita, dois (1) possuíam família, sem visitas e nove
(9), não possuíam família. Dois (2) pacientes eram aposentados sendo que
um deles, a família era quem ficava com seu benefício, fato que foi
modificado posteriormente, e os demais não possuíam seguro saúde,
aposentadoria ou qualquer outro tipo de recurso financeiro. Em relação ao
uso de medicamentos, todos faziam uso de duas (2) ou mais medicações
psiquiátricas e em relação às condições fisicas, todos possuíam condições
compatíveis para o trabalho agrícola, e eram do sexo masculino. Um dos
pacientes, encontrava-se sob judice (COSTA, BORENSTEIN, 1999).

Também vale destaque a estrutura física do novo espaço. Com a transferência, os


pacientes foram divididos em duplas em sete quartos de um pavilhão, com armários e
pertences próprios; situação muito diferente da vivida no Hospital, onde muitos pacientes
viviam (e ainda vivem) em um mesmo pavilhão sem a divisão de quartos. Depois do primeiro
movimento de mudança, gradativamente, outros 36 pacientes foram transferidos. Como ainda
viviam na Colônia moradores remanescentes da época da doença de Hansen, o encontro de
ambos os grupos foi iniciado com atritos e medos diversos: “Os pacientes da psiquiatria
rejeitavam e temiam a lepra e os pacientes da hanseníase temiam os pacientes psiquiátricos”
(COSTA, BORENSTEIN, 1999, p. 85).
Por parte dos funcionários, também emergiram alguns atritos, pois viam como uma
“invasão” o novo projeto (idem). Entretanto, esses atritos foram sendo superados, uma vez
que, com a chegada dos novos pacientes, vieram também novos recursos e funcionários para
o hospital que estava abandonado pela Secretaria de Estado da Saúde, ou seja, a chegada dos
pacientes psiquiátricos teve seu papel fundamental na manutenção e no permanecimento da
própria instituição. O clima também melhorou entre os moradores, que passaram a trocar
favores entre si: “Os pacientes passaram a trocar favores e trabalhos entre si, como por
exemplo, uma das pacientes egressas do Hospital Psiquiátrico que lavava e passava as roupas
de alguns pacientes [...]. Os pacientes [...] capinavam para os pacientes da Unidade de
hanseníase” (idem).
Nos primeiros meses de funcionamento, eram desenvolvidas no projeto atividades
diversas, sempre centralizadas na agricultura, capinagem e jardinagem. Os pacientes
recebiam um salário mensal simbólico enviado pela Secretaria de Saúde e tudo parecia
ocorrer de forma favorável para a manutenção de uma proposta antimanicomial, entretanto,
tal como a lógica do redemoinho nos diz, mais uma vez o movimento giratório do hospital
tomou conta das boas práticas e os pagamentos foram cancelados na primeira mudança de
governo.

64
Nesse ponto fica evidente, ao olhar para todo este histórico, o quanto a continuidade é
importante para o fortalecimento das reformas. Já identificamos inúmeras práticas que
previam uma desestruturação da ordem manicomial, entretanto, todas elas terminaram em
rupturas, enfraquecimentos e descontinuidades. Além dos impedimentos administrativos,
outras dificuldades foram colocadas à prova, como o envelhecimento dos pacientes, que
tornou necessária a substituição das atividades alternativas oferecidas. Passaram então a criar
aves e sumos, além de permitirem que os pacientes desempenhassem atividades próprias,
como o exemplo de um paciente que engraxava calçados na comunidade, outro que preferiu
trabalhar com reciclagem, um outro que criava galos, alguns que foram contratados para
serviços externos ao hospital e outros que trabalhavam num bazar criado com as doações que
a instituição recebia. As vagas eram liberadas somente pelos óbitos ou as raras altas e a
equipe era responsável por buscar outros pacientes, no outro Hospital Psiquiátrico, para
ocupá-las (idem).
Para alimentar essa lógica antimanicomial no Estado, em 1992 começaram a
implantação da rede extra-hospitalar de Saúde Mental, com serviços substitutivos ao modelo
hospitalocêntrico. Um dos principais motivadores da rede integrada era a redução de leitos
em hospitais psiquiátricos e a participação popular, desde então, cresceu exponencialmente.
Dos recursos de Saúde Mental, 93% foram utilizados na demanda de busca pelo fim do
manicômio. Em 1994, 75% dos pacientes daqueles hospitais eram considerados casos sociais,
o que contribuía para aumentar a média de permanência e gerava gastos altíssimos
institucionais (idem).
Com o passar do tempo, a ênfase hospitalocêntrica retomou sua força naquele projeto
e as situações de violência e a caoticidade desses espaços voltaram a ser denunciadas. Isso
demonstrou, mais uma vez, o movimento do redemoinho manicomial, uma vez que a
instituição passou por mais um processo de ruptura, depois de repetidas denúncias de eventos
de desconsideração da humanidade dos ali internados. Reformas foram então sugeridas e
executadas, entretanto a estrutura, o eixo que a sustentava, permaneceu intacto e apenas ficou
desacordado até que pudesse voltar a aglutinar as novas tentativas de boas práticas que
emergiriam, para depois destruí-las, voltando ao estado manicomial de sempre.
Em 1995, mais uma fase de explosão chegou ao Hospital Psiquiátrico, que continuava
a abrigar moradores permanentes em seus pavilhões. Enquanto um grupo clamava pelo seu
fechamento, seguindo os preceitos que vinham sendo defendidos pela luta antimanicomial,
outros propunham, mais uma vez, a manutenção do espaço. Foi então decidido que o local

65
passaria por mais uma reformulação, dessa vez física, sendo também renomeado. A ala de
moradores recebeu um novo nome, mas a estrutura não teve grandes alterações.
Paralela à reforma da instituição, como efeito dos movimentos de Reforma
Psiquiátrica brasileira, foram criadas as Residências Terapêuticas para abrigar os pacientes
que viviam como internos por mais de 20 anos nas Colônias e nos hospitais psiquiátricos.
Entretanto, mesmo com todos esses direcionamentos, sendo as vagas limitadas, o hospital
continuou recebendo internos e não pôde desinstitucionalizar todos seus residentes.
Entre os anos de 2000 e 2013, foram criadas 27 portarias na tentativa de mitigar o
modelo violento e manicomial do país e pôde-se observar que os hospitais psiquiátricos
tiveram, gradativamente, seus números de leitos reduzidos. Houve uma diminuição de 80 mil
leitos em 1970 para 25.988 leitos em 2014 (AMARANTE; NUNES, 2018, p. 2072), e para -
aproximadamente - 20 mil leitos em 2017. Simultaneamente, ocorreu uma expansão dos
tratamentos farmacológicos, desenvolvida pela indústria farmacêutica, que influenciou toda a
comunidade psiquiátrica (CAMARGO, 2017).
Segundo o Parecer Técnico nº 08/2014, que faz parte de uma avaliação técnica a
respeito do Plano de Ação (PAR) da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), o Estado de
Santa Catarina possuía, em 2014, 630 leitos em hospitais psiquiátricos e um total de 272
moradores de instituições. Esse número não foi atualizado e, atualmente, não se sabe o
número exato dos internados nem as instituições que continuam abrigando os moradores. O
mapeamento realizado nesta Tese, que enfocou apenas em leitos públicos, identificou
inicialmente 63 moradores no Hospital Psiquiátrico e 39 moradores na antiga Colônia de
Hansen, entretanto, esses não são dados oficiais, pois o número de internos alterou ao longo
da pesquisa, com a internação de novos pacientes e também com o óbito de alguns deles.
De acordo com a pesquisadora Moura (2015), entre os anos de 2007 e 2010, foi criado
um Grupo de Trabalho (GT) de Desinstitucionalização de Santa Catarina, que realizou uma
ampla pesquisa, visando a desinstitucionalização dos moradores. Os membros do grupo
produziram um documento contendo diretrizes para a desinstitucionalização e o entregaram
para o Conselho Estadual de Saúde (CES), entretanto, nunca receberam um retorno e a
desinstitucionalização não avançou. Em 2015, o GT foi retomado para tentar direcionar
esforços para a desinstitucionalização no Estado, entretanto, as práticas foram vistas também
com pessimismo, trazendo para o debate as dificuldades de se manter uma reforma na prática.
Ainda segundo a autora, um dos integrantes do GT disse em reunião que “[...] a principal alta
existente [...] era alta celestial” (p. 102), situação esta recorrente até os dias atuais (2023),
quando um paciente é desinstitucionalizado apenas com a ocorrência de seu óbito.

66
A tarefa adiante será olhar para os últimos relatórios sobre esses espaços realizados na
virada do século e, posteriormente, no segundo Capítulo, iniciaremos uma investigação
buscando compreender: 1) Por que esses hospitais, ainda hoje, mantêm moradores em suas
alas médicas? Quais são as barreiras que impedem a desinstitucionalização dessas pessoas?
E mais, quem são essas pessoas que ainda hoje, em 2022, vivem dentro de hospitais
psiquiátricos?

1.4) Relatórios e Novas Leis de Saúde Mental

O percurso manicomial no Estado de Santa Catarina, como pôde ser visto, é muito
complexo e se desdobra em avanços e retrocessos em diferentes níveis, o que causa uma certa
sensação de lei do eterno retorno. Talvez por isso a analogia do redemoinho manicomial
esteja sendo construída nessas linhas e, mesmo que às vezes pareça caótica, basta rememorar
o fluxo de um redemoinho na mente, em movimento, andando, crescendo, destruindo,
perdendo força, desaparecendo e sendo recomposto novamente pela mais breve e forte
corrente de ar, para que se possa vislumbrar os passos dessa lógica. No caso manicomial, um
suspiro é suficiente para que ele volte a tomar forma e a ter força.
Isso torna evidente os retrocessos que sempre existiram. O primeiro hospital
psiquiátrico do Estado foi fundado em uma época em que já eram questionados os modelos
manicomiais de “tratamento”. Depois, com tentativas de humanização, transferiram parte dos
pacientes para uma outra instituição, tornando-a também um hospital psiquiátrico, embora ela
não carregue no nome essa definição. Após os processos de Reforma, obviamente que muitos
espaços do Estado fecharam, como é o caso do Hospital Psiquiátrico Rio Maina, em
Criciúma. Entretanto, na dimensão contrária, fecharam também Residenciais Terapêuticos
(RT) e retomaram a internação psiquiátrica permanente de pacientes que já estavam vivendo
em casas, graças à falta de profissionais e recursos econômicos, com a justificativa principal
do envelhecimento dos pacientes. Vamos adentrar a esses tópicos mais à frente, redesenhando
a atualidade desses espaços hospitalares que mantêm moradores permanentes dentro de suas
alas psiquiátricas, por enquanto, vamos focar nas duas primeiras décadas do século XXI,
quando relatórios de inspeção foram feitos no país.
Primeiramente, em um relatório feito pelo Ministério da Saúde, em 2004, denominado
“Residências Terapêuticas o que são, para que servem”, foi realizado um levantamento dessas
residências e nele consta que não havia nenhuma RT em Santa Catarina, embora o serviço
alternativo já estivesse estruturado em diferentes regiões. Isso evidencia o atraso do Estado

67
para a manutenção e combate da manicomialização de seus serviços e, atualmente, SC conta
apenas com três RT, a saber: em Monte Castelo, um SRT I e em Joiville, dois SRT II
(BRASIL, 2018)16.
No mesmo ano, foi feita uma inspeção em hospitais psiquiátricos em todo o Brasil,
publicada com o nome: “Direitos Humanos: uma amostra das instituições psiquiátricas
brasileiras”17. No texto, documentaram apenas a realidade de um Hospital Psiquiátrico de
Santa Catarina, embora tivesse outra instituição com moradores de ala psiquiátrica vivendo
de forma permanente dentro de suas estruturas. Pude observar, na análise documental, que
quando falam de SC, os redatores não costumam incluir o Hospital que antes era destinado à
doença de Hansen como uma instituição psiquiátrica, embora ainda hoje ele abriga 39
moradores em alas psiquiátricas. Voltando ao relatório, escolheram como título para falar
sobre o Hospital Psiquiátrico, a seguinte sequência de palavras: “Hospital Psiquiátrico de
Santa Catarina – mais ociosidade, mais impregnação”. As informações transcorridas são
ainda mais complexas, tão degradantes quanto os substantivos escolhidos no ato da titulação
dos autores.
Identificaram que a instituição possuía 359 pacientes cronificados e 160 pacientes
agudos. Sobre as unidades residenciais, utilizam o adjetivo “precário” para revelar que os
pacientes viviam em um local, que anteriormente era utilizado como galinheiro. Além disso,
os pacientes foram definidos como em “boas condições de higiene”, entretanto, enfatizaram
que muitos estavam usando sandálias de borracha mesmo com as baixas temperaturas do sul
do país. Esse dado foi marcante porque no trabalho de campo que realizei em 2022, ou seja,
17 anos depois, uma das coisas que os pacientes mais me pediram foram meias e lembro de
ter anotado, mais de uma vez no Diário de Campo, a ocorrência de moradores chorando
pedindo novas meias e reclamando do frio.
A palavra “impregnado” foi utilizada para descrever a situação dos pacientes devido
ao excesso de medicamentos e a “ociosidade” aparece como maior problema relatado pelos
pacientes. Sobre a estrutura da ala, registraram “[...] cobertores velhos, travesseiros sem
fronhas" feitos por colchões cortados e camas sem lençóis”. Um paciente com HIV (Vírus da
imunodeficiência humana) foi identificado e ressaltaram que não havia cuidados específicos

16
Disponível em:
https://www.saude.sc.gov.br/index.php/documentos/atencao-basica/saude-mental/enderecos/10678-ser
vico-residencial-terapeutico-srt/file. Acesso em 2 de dezembro de 2022.
17
Disponível em:
https://www.mpf.mp.br/portal/pfdc/midiateca/outras-publicacoes-de-direitos-humanos/pdfs/Relatorio_
Inspecao_Unidades_Psiquiatricas.pdf . Acesso em 3 de dezembro de 2022.

68
para o que era exigido pelo caso. Registraram uma paciente de nacionalidade francesa que
não dominava português e estava “isolada”. Também observaram pacientes adolescentes
internados por ordem judicial, o que “[...] termina construindo situações de flagrante
desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente–ECA.”. Na sala de Terapia Ocupacional,
não foram identificados trabalhos. Relataram que a direção estava ainda trabalhando na
documentação dos moradores, tendo sido emitidas 130 certidões de nascimentos naquele
período.
Sobre passeios, relataram que os pacientes fizeram uma viagem para Aparecida do
Norte, em São Paulo, o que foi muito interessante para mim, quando li, pois, no trabalho de
campo, os moradores sempre comentavam dessa viagem e me mostravam fotos do passeio.
Sobre a equipe, citaram um processo de educação continuada, mas os funcionários
reclamaram sobre a ausência de plano de cargos e salários para a carreira, tal como também
registrei atualmente depois de entrevistar alguns profissionais. Finalizaram dizendo que a
única política que tinham em relação à saúde do trabalhador eram as reuniões de equipe.
Alguns projetos foram citados, como o Centro de Convivência (para pacientes moradores) e o
Manual de Enfermagem (para a humanização dos serviços). Destacaram, ainda, que não
constataram projetos terapêuticos individuais voltados para os pacientes.
Documentaram um óbito por afogamento durante uma tentativa de fuga e o
desconhecimento, por parte dos pacientes, de seus direitos: “Desconhecem, por exemplo,
informações sobre as medicações utilizadas e seus efeitos” (p. 81). Mais uma vez isso se
repetiu nas constatações do Diário de Campo e trabalharemos com a atualização desses dados
mais adiante. Finalizam o documento com diversas indicações, entre elas, a seguinte:

1. Considerando o quadro descrito neste relatório, é urgente que o Ministério


da Saúde acelere e intensifique o processo de desinstitucionalização e o
fechamento de leitos nestas instituições, elementos fundamentais da
Reforma Psiquiátrica brasileira, ao mesmo tempo em que estimule os
serviços de atenção à saúde mental de natureza ambulatorial e comunitária,
à medida que o caráter incontrolável das instituições hospitalares
psiquiátricas na produção da violência significa, quotidianamente,
mortificação desnecessária à vida de mais de 50 mil cidadãos brasileiros.
Cada dia em que se mantêm funcionando os hospitais psiquiátricos significa
a multiplicação das chances de que os direitos desses cidadãos sejam
violados.

A partir dessa recomendação podemos ver que a precarização e a morte dos pacientes
eram ainda denunciadas, mesmo naquele ano, já existindo a Lei de Saúde Mental, mesmo o
hospital tendo passado por tantas reformas, mesmo tendo sido renomeado e, ainda, mesmo
com os projetos de tentativas de desinstitucionalização.

69
O fluxo manicomial é revelado aqui através de uma interessante maneira, quando nas
recomendações dizem que a tendência comum é que os direitos desses cidadãos sejam
violados nesses espaços. É exatamente esse ponto que nos faz parar para observar, pois ele
nos mostra que a manutenção da instituição, longe de provocar a superação das tendências
manicomiais, só fortalece uma estrutura de poder que desembocará, mais cedo ou mais tarde,
em mais uma violação de direitos. Palavras como “fiscalização”, “vigilância”, “avaliação”,
“redefinição” e “intervenção” já aparecem há anos e são repetidas em 2004, sendo
reconhecidas como fundamentais para a superação da lógica mortificante manicomial. Além
da identificação recorrente de internações psiquiátricas abusivas, os atos de violência sobre os
internos e a manutenção de espaços de violência, são também recorrentes.
Em 2019, outro relatório foi realizado, denominado “Hospitais Psiquiátricos no
Brasil: Relatório de Inspeção Nacional 2019”, nele, dois Anexos merecerem destaque, no
Anexo 1 podemos ver a Relação nominal dos Hospitais Psiquiátricos inspecionados, pois
foram escolhidos - por motivos metodológicos - apenas 40 hospitais de um total de 131
instituições psiquiátricas habilitadas no país. Em Santa Catarina, apenas um Hospital
Psiquiátrico, novamente, passou pela inspeção. No Anexo 3 podemos ver a relação nominal
dos Hospitais Psiquiátricos com habilitação ativa em setembro de 2018. No gráfico que
estruturei abaixo (Gráfico 1), podemos ver como essas instituições estão divididas no país.
Vale destacar que, em Santa Catarina só foram identificados 3 hospitais e que, embora com
pavilhões psiquiátricos lotados, o Hospital Colônia não foi, mais uma vez, contabilizado.

70
Como podemos notar, a região Sul ocupa a terceira colocação em relação ao número
de hospitais psiquiátricos, além disso, algumas informações do relatório merecem destaque.
Primeiro que o Hospital Psiquiátrico que trabalhamos nesta pesquisa era, na época, um dos 18
hospitais visitados que ainda recebia adolescentes. Além disso, o relatório demonstra que,
nele e em outros 8 hospitais, essas internações eram, na maioria dos casos, compulsórias.
Essa informação é importante porque, anos depois, ele parou de receber adolescentes,
entretanto, no ano da pesquisa de campo (2022), foi inaugurada uma nova ala para receber
apenas indivíduos menores de idade.
Outro ponto de destaque é a falta de dados sobre raça/cor, identidade de gênero e
sexual, pessoas com deficiência, gestantes, interdições e benefícios, o que gera, entre muitas
outras coisas, um apagamento desses sujeitos. Repetindo o relatório de 2004, encontraram
novamente um menor internado com os adultos, com a justificativa de ser uma internação por
ordem judicial. O espaço é também uma das seis instituições que abriga pessoas internadas
por decisão judicial e é ainda um de dois hospitais que têm também habilitação “PNASS
maior que 80%” (código 0615), o que significa que o hospital obteve na edição do
PNASH/Psiquiatria 2003-2004 pontuação igual ou superior a 81%, recebendo um incremento
financeiro no valor das diárias em psiquiatria pelo Programa Nacional de Reestruturação da
Assistência Hospitalar no SUS (Portaria SAS/MS nº 493).
Sobre a alimentação, não identificaram problemas. Em relação ao lazer, identificaram
pátios, ambientes com TV e quadra de esportes (sendo um entre apenas sete instituições com
essa estrutura). Encontraram alas sem acessibilidade, como a Unidade de Dependência
Química (UDQ). Já sobre a segurança do local, contam que esse obteve um alvará sanitário
em agosto de 2018, entretanto não foi apresentado o relatório da ANVISA e não havia alvará
de funcionamento do corpo de bombeiros por ausência do Projeto de Prevenção contra
Incêndio. Além disso, a rotina e as regras institucionais são denunciadas como agentes que
obstaculizam e restringem o acesso das pessoas internadas aos ambientes de convivência e
lazer. Além do mais, o Hospital estava entre os 33 hospitais que possuíam ausência de
atividades terapêuticas individuais e/ou coletivas e de lazer, o que promovia um “cotidiano
repetitivo” (p. 202). Foi também incluído entre aqueles 20 hospitais que não garantiam a
individualização e singularidade das pessoas internadas. Além de anunciarem a ausência de
um Projeto Técnico que, a saber, seria:

[...] o conjunto de objetivos e ações, estabelecidos e executados pela equipe


multiprofissional, voltados para a recuperação do paciente, desde a admissão
até a alta. Inclui o desenvolvimento de programas específicos e

71
interdisciplinares, adequados à característica da clientela, e compatibiliza a
proposta de tratamento com a necessidade de cada usuário e de sua família.
Envolve, ainda, a existência de um sistema de referência e contra-referência
que permite o encaminhamento do paciente após a alta, para a continuidade
do tratamento. Representa, enfim, a existência de uma filosofia que norteia e
permeia todo o trabalho institucional, imprimindo qualidade à assistência
prestada (p. 182).

Este projeto seria fundamental para a organização institucional e sua ausência,


segundo o relatório, seria uma predisposição para uma organização institucional violadora de
direitos. A inexistência também foi encontrada em outros 13 hospitais. Na mesma toada, o
projeto Terapêutico Singular não foi encontrado na organização do cuidado das pessoas
internadas, tanto no Estado, quanto em outros 19 hospitais. Por fim, sobre os profissionais, as
informações também repetem o que foi visto em 2004, pois relatam a falta de trabalhadores e
a alta demanda de serviços, além de atividades de Educação Permanente concentradas apenas
nos profissionais de enfermagem e sem visar continuidade dos treinamentos, sendo resumidos
em ações pontuais e não periódicas.
Além de todo este histórico, desde 2017, o Brasil tem passado por um movimento que
afeta ainda mais as conquistas da última Reforma Psiquiátrica. Foi criada a ideia da “Nova
Política Nacional de Saúde Mental” e, a partir dela, profissionais buscam direcionar esforços
para promover o retorno ao modelo manicomial centralizado na hospitalização e na
medicalização dos pacientes, alimentando uma política de mercado utilitarista para a saúde
mental. As justificativas para a institucionalização variam entre diferentes discursos e há uma
polarização no país. Por um lado, um grupo a favor da RPB luta pelo fim dos hospitais
psiquiátricos com moradores, denunciando questões de violência, alto poder de exclusão e
segregação e intensa violação dos direitos humanos. Por outro lado, um grupo que possui
uma lógica mercantilista, tem atuado no sentido de retorno ao modelo hospitalocêntrico,
argumentando que as práticas substitutivas - como os CAPS, as Residências Terapêuticas, os
Centros de Convivência, os projetos de geração de renda, os projetos culturais e as oficinas
de trabalho - não são suficientes nem eficazes para os tratamentos psiquiátricos no país e
geram gastos inaceitáveis para o Estado.
A Portaria nº 3.588 de 21 de dezembro de 2017, do Ministério da Saúde, dispõe sobre
alterações na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), direcionando a “Política de Saúde
Mental no sentido de um enfraquecimento dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico
e da rede de base territorial, fomentando a implantação de dispositivos de lógica manicomial
e restritivos de autonomia e liberdade” (p. 5). Além disso, nessa “Nova Política” podem ser
encontrados mecanismos de desestruturação da RAPS, retorno ao modelo hospitalocêntrico,

72
aumento no valor da diária de internação para alimentar a lógica mercantilista da loucura, não
regulamentação do encerramento de leitos com a desinstitucionalização, como disposto nas
Portarias nº 106 de 11 de fevereiro de 2000, nº 3090 de 23 de dezembro de 2011, e nº 1840 de
5 de novembro de 2014, enfraquecimento dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais com a
exigência de taxa de ocupação de 80% para mantê-los, retorno de unidades ambulatoriais
especializadas, enfraquecendo as equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF),
Equipe de Saúde da Família (ESF) e o CAPS; entre outros. (CRUZ, GONÇALVES,
DELGADO, 2020).
Com esse cenário efervescente, iniciei a pesquisa de campo, passando a investigar
suas proporções em níveis macropolíticos, através dos documentos e da participação nas
Conferências de Saúde Mental regionais, macrorregionais e Estadual, e em níveis
micropolíticos, dentro de hospitais psiquiátricos identificados no mapeamento etnográfico
como instituições hospitalares que ainda mantêm moradores em suas alas médicas. Além de
encontrar pavilhões abrigando muitos pacientes, presenciei duas situações limites: 1) o
fechamento de uma estrutura alternativa ao modelo hospitalocêntrico denominado Unidade
de Gestão Participativa, que funcionava nos moldes de um Residencial Terapêutico e, 2) a
manutenção e ocorrência de internação compulsória e permanente de um novo morador que
foi transferido para o Hospital. Vamos adiante adentrar, finalmente, às características atuais
desses espaços que, sendo modelos de dispositivos de saber-poder (FOUCAULT, 1987), vêm
transformando o redemoinho manicomial em um verdadeiro ciclone envelhecido e
abandonado.

73
Capítulo 2: O “pisar em ovos” etnográfico: percursos entre as ilusōes e as escolhas

“Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo que for


desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas... Daqui
para frente levo apenas o que couber no bolso e no coração.”
Cora Coralina

Entre bagagens pesadas sendo postas de lado, mas compondo - inevitavelmente - mais
da metade do que aqui escrevo, inicio esses emaranhados dizendo que este será,
imperativamente, um Capítulo sobre escolhas. Sartre (1946[1987]) já dizia que “não escolher
já é uma escolha” e Schopenhauer também se dedicou a esses espinhos dizendo que “a
[própria] tomada de decisão significa encerrar um universo inteiro de possibilidades”, uma
vez que “Todo “sim” está sempre encaixado à firme negação de seu oposto” (SAFRANSKI,
2018, p. 72). Esses excertos traduzem, em partes, o fazer etnográfico, isso porque as escolhas
que o compõem são as mesmas que o limitam e, na mesma proporção, o potencializam.
Não é nenhuma novidade, na Antropologia, que o trabalho etnográfico seja composto
por escolhas. Pesquisadores têm trabalhado esse tema há anos e, mesmo assim, os universos
inteiros de possibilidades que são encerrados nesses processos permanecem ocultos, como se
o simples fato de revelarmos sua existência nos poupasse de aprofundarmos em seus
significados. Uma pesquisa precisa de recortes, mesmo que isso signifique deixar para trás
uma porção de ‘importâncias’. Dentro de cada uma dessas escolhas, há um pequeno revelar
do pesquisador que nelas circulam. Haraway (1991, p. 195) já defendia uma abordagem do
conhecimento que reconhecesse seu caráter “situado”, que demonstraria também a posição e
o contexto a partir do qual o pesquisador fala. Não é - portanto - novidade pensar sobre e
expor, em um trabalho científico, quem é o(a) pesquisador(a) que está a fazer escolhas entre
os fluxos de pensamentos apresentados. Embora essa afirmação tenha suas controvérsias e
divida opiniões entre as diferentes ciências, o estudo aqui apresentado foi composto
duvidando de neutralidades axiológicas e questionando escolhas ao longo do processo,
impreterivelmente, científico.
As ciladas das diferenças (PIERUCCI, 1990) me ajudaram a reificar, em pleno 2023,
esse papel científico da Antropologia. Não faço arte, embora quisesse. Não faço literatura,
embora eu seja uma adepta assídua. O caminho metodológico que sigo está muito distante de
outras formas de produção de conhecimento, o que me faz vê-las emaranhadas e
horizontalmente potencializadas nas epistemologias ora criadas, ora reproduzidas. Opto por

74
traçar lugares que me ajudarão, posteriormente, a justificar escolhas. Esse é então nosso ponto
de partida. Parafraseando uma citação comumente repetida18, mas com leves e importantes
alterações: “Na ausência da etnografia imitando a vida, haverá a vida replicando a
etnografia”. Quem replica o que não pode ser determinado deve estar aberto aos fluxos que
virão nesses movimentos de criação, por este motivo que, antes de mais nada, é preciso
ressaltar que este texto é também um experimento - em movimento. Essa é a “força” da
pesquisa antropológica em hospitais, pois, quando tenta se aproximar da experiência de dor,
doença e sofrimento, não tem a pretensão de captar exatamente o que essas experiências
significam, mas sua força está, ao contrário, na modéstia e na consciência da incompletude da
tentativa (LONG, HUNTER, GEEST, 2008, p. 75).
Retomando os ensinamentos da Antropologia feminista, que nos ensinou que devemos
atentar-nos também aos antecedentes pessoais do pesquisador em campo (MOORE, 1988;
WIND, 2008), vale dizer que por trás dessas linhas há então uma pesquisadora, mulher, com
27 anos e trabalhando com etnografia de hospital desde os 19, ou seja, desde que comecei na
pesquisa estive debruçada sobre essa temática e meu eu ‘antropóloga’ foi inteiro construído
nessas experiências dentro de hospitais psiquiátricos, primeiro em São Paulo (2016-2020) e
agora em Santa Catarina (2021-2024). É interessante trazer essas informações antes mesmo
de apresentar a metodologia utilizada porque, enquanto etnógrafa mulher e relativamente
jovem, inevitavelmente, tornei-me também objeto de interpretação (WIND, 2008). Isso, por
sua vez, moldou, de diferentes formas, a maneira como fui recebida em campo, corroborando
com o que escreveu Peshkin (1985, apud GOODWIN et al., 2003), ao dizer que a identidade
do próprio pesquisador possui elementos tanto habilitadores quanto incapacitadores que
moldam os caminhos que são seguidos e/ou abandonados durante o trabalho de campo.
Trago isso para este momento da discussão, para que possamos retornar às questões
referentes às escolhas, que nem sempre são conscientes, mas são - sem dúvidas - sempre
contextualmente cocriadas no processo etnográfico, uma vez que a produção do
conhecimento antropológico está situada e repousa tanto no trabalho de campo, quanto nas
relações sociais que nele habitam (WIND, 2008). Em momentos que não nos resta espaço
para escolhas, torna-se inviável percorrer outros fluxos que não aqueles que o campo nos
indica. Podemos, então, notar não uma, mas múltiplas escolhas, de diferentes agentes,
compondo o que pesquisamos/vivemos.

18
Frase original: “Na ausência da arte imitando a vida, haverá a vida replicando a arte”.

75
Penso as escolhas em duas esferas, na primeira, da vivência, a escolha pode ser
também uma ilusão dentro de um campo de negociação, uma vez que os agentes escolhem o
que vão revelar em primeira instância e, secundariamente, acabam por também revelar outras
questões a partir das suas ações cotidianas, tornando ilusórias, na mesma medida, suas
próprias escolhas. Já na segunda esfera, a da escrita, a escolha é também uma outra ilusão,
entretanto, do pesquisador, que acredita “escolher” os dados com os quais irá trabalhar em seu
texto, ilusoriamente por si dominado. Essa escolha ‘do que escrever’, por sua vez, é também
moldada pelo que foi aberto pelo campo, pelo que tentou fechar-se, mas transbordou e pelo
que se tornou inconveniente relatar. Assim, pode-se ver o quanto o processo de “moldagem”
dos dados etnográficos é simbiótico, no qual quem pesquisa e a comunidade estudada
interagem de forma a moldar os dados que serão trabalhados. Esta modelagem, por sua vez, é
também um processo político semiconsciente de negociação (GOODWIN et al., 2003, p.
576).
Dito de outro modo, “A comunidade pesquisada não é um componente passivo; ela
também tem uma influência sobre aquilo que o pesquisador está incluído e excluído” (idem,
p. 576, tradução minha) e, contrapondo à gramática portuguesa, o próprio substantivo
feminino ‘escolha’, quando verbo, é coletivo, ou seja, construído contextualmente e
relacionalmente entre múltiplos sujeitos. Vamos abordar essas questões nas linhas que se
seguirão e encontraremos, já pressuponho, muito mais dúvidas que certezas. Por ora, vale
retomar o que escreveu Fluehr-Lobban (1998, apud GOODWIN et al., 2003), pois, ao
contrário do que se pode pensar, a gerência do fluxo de dados não está inteiramente sob
comando de quem pesquisa, mas deve ser negociada nos dilemas cotidianos.
Isso me faz lembrar da sensação de pisar em ovos que também esteve presente nas
composições que aqui estão sendo apresentadas, em uma etnografia que me fez encontrar
meus próprios limites e não permitiu, nem por breves momentos, que eu dela escapasse. Ela
me agarrou como quem precisa ser vista e, agora, o que faço é simplesmente revelar
fragmentos do que ela me mostrou. Gosto de criar esse espaço de diálogo etnográfico,
também entre pesquisador e pesquisa, além de escritor e leitor, mesmo que sem respostas e,
mesmo que dentro de um vazio silencioso, porque vejo a agência nos textos, que também nos
conduzem a lugares-outros nos processos de interpretações. Além disso, reitero a importância
de se ter em mente a influência da pesquisa no agente pesquisador, pois percebo que,
enquanto formos nós nossos próprios instrumentos de trabalho, não poderemos evitar que ao
construirmos nossa ciência estaremos criando nós mesmos, como disse Fanon (1986, p. 29),
“No mundo pelo qual viajo, estou me criando incessantemente.”.

76
Pois bem, têm sido dias silenciosos, ponderando entre possibilidades e revisitando um
passado que acabou de passar. É estranho olhar para trás e ver uma pesquisadora indo e vindo
entre telefonemas e visitas em instituições psiquiátricas, espaços que transbordam falsas
verdades e coroam especialistas inexperientes. Sempre que falo sobre esta pesquisa, a
primeira pergunta que escuto, sem exceções, é: “Mas como você fez para entrar lá?”. Acho
curiosa essa questão, porque não é um questionamento que emerge em todas as situações de
trabalho de campo, mas pesquisar uma instituição fechada, ou total, tal qual a famosa
definição de Goffman (1961)19, é uma tarefa que requer um trabalho diferente, assim como as
pretensões de fazer etnografia nestes espaços.
É por isso que opto por denominar meu trabalho de etnografia em lugares limites e,
infelizmente, ainda careço de definições. Talvez isso ocorra devido à inconstância que esses
espaços representam, mesmo dentro de regras solidificadas há, sem exageros, séculos. O
Lugar Limite, nesta pesquisa, é pensado como um espaço que confronta na sua própria
existência, que escancara e faz ser visto mesmo quando encoberto. É um lugar que grita em
silêncio. Lugar que se mostra no escuro. O Limite é dado já no início, seja pelo muro
(literalmente físico) que o circunda, pelas várias portas trancadas até chegar ao espaço
escolhido, pela condição ou (não-condição) de vida daquele ambiente, pela impossibilidade
do florescer, pela falta, pela escassez ou pela vida. Ali moram vidas que foram,
inegavelmente, interrompidas. Longe de romantizar o manicômio, o que apresento aqui são
cenas políticas do que lá vivi. O limite citado não foi, em momento algum, criado apenas por
um eu pesquisadora, mas também pelo próprio ambiente, limítrofe, que se escancara o tempo
todo.
Mas como fazer etnografia em um ambiente de escassez, onde muitas vezes revolta,
angustia e mais ata do que desfaz nós? Como fazer etnografia em um ambiente que demanda
e carece mais que qualquer outro espaço já pisado? Como não cristalizar lugares, fugir dos
romantismos e desenhar uma etnografia que suporte o emaranhado de dados tão caóticos e
por vezes violentos, como nesses espaços? Para onde podem nos levar esses fios de reflexões
que estão sendo construídos? O que, finalmente, escolher revelar dentro de infinitas e
necessárias possibilidades? Para numerosas questões e poucas respostas, opto primeiramente
por apresentar, a seguir, os caminhos escolhidos para adentrar a esses ambientes manicomiais
e institucionais e, em seguida, desceremos a essas questões de densidades metodológicas.
19
“[...] lugar de residência e trabalho, no qual indivíduos, com situação semelhante, separados da
sociedade por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”
(p. 11).

77
2.1) Percursos Metodológicos: As Múltiplas-Possibilidades Cotidianas e as Resistências
Veladas

Em julho de 2021, comecei um trabalho de caça ao tesouro e, embora essa analogia


possa trazer a ideia de que - no final e se bem sucedida - essa busca me faria encontrar um
baú cheio de jóias e ouros, não sabia ainda o que esperar caso encontrasse aquele estranho e
desconhecido objeto. Ele certamente não teria o que compõe baús comuns, essa era minha
única certeza. Não tinha mapas que eu pudesse recorrer e o que eu buscava estava sendo
enterrado constantemente, há anos, o que dificultava ainda mais o trabalho. Foi desafiadora a
tarefa de encontrar essa espécie de baú em movimento, com camadas incansáveis de terra
sobrepostas, que não deixavam que os seus rastros fossem vistos facilmente e faziam parecer
que encerravam-se ali.
Antes de iniciar a pesquisa de campo, deveria então encontrar as instituições
psiquiátricas públicas que continuavam abrigando moradores de forma permanente em suas
alas médicas. Comecei por buscas online, usando frases-chave como “hospitais psiquiátricos
em Santa Catarina”, “moradores de hospitais psiquiátricos”, “instituiçōes asilares
psiquiátricas em Santa Catarina”, “hospitais psiquiátricos com moradores”, “pacientes
crônicos de hospitais psiquiátricos”, “leitos psiquiátricos em Santa Catarina”, etc. Identifiquei
52620 leitos psiquiátricos ou de saúde mental no Estado21, entretanto, não consegui encontrar
informações sobre a existência atual de moradores permanentes nas alas psiquiátricas dessas
instituições, o que me fez partir para a segunda fase do mapeamento.
Depois de listar todos os hospitais públicos que tinham leitos psiquiátricos, liguei para
cada um deles para saber se abrigavam pacientes de longa permanência. Por motivos éticos
não revelarei os nomes dos hospitais e falaremos mais adiante sobre as instituições de modo
geral. Nessas ligações, era muito difícil receber as informações buscadas, pediam para que eu
ligasse novamente mais tarde ou diziam que não sabiam ou que não poderiam responder se
havia ou não moradores vivendo ali. Sempre me apresentei, nesses telefonemas, como
doutoranda em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e foram
poucas as vezes que questionaram algo a mais que isso. Naquela segunda fase, encontrei

20
Disponível em:
https://www.saude.sc.gov.br/index.php/documentos/atencao-basica/saude-mental/enderecos/15816-ho
spitais-sm-atualizado/file . Acesso em 30/6/2021.
21
Posteriormente, descobri quase 80 moradores que ocupavam “leitos psiquiátricos” e que não foram
contabilizados nos documentos do Estado.

78
apenas três instituições públicas que possivelmente abrigavam moradores em alas
psiquiátricas. Entrei em contato e marquei uma visita com duas delas, a terceira, que era um
hospital de custódia, nunca me retornou.
Na primeira visita, pude conversar com coordenadores responsáveis pelas instituições
e expliquei a pesquisa e as ideias iniciais que tinha para ela. Naquela época, meu objetivo era
compreender como funcionavam as internações de longa permanência, quais eram as
estruturas das alas asilares psiquiátricas e por que elas continuavam existindo mesmo com
todos os processos de Reforma Psiquiátrica brasileira, que pressupunham a
desinstitucionalização desses pacientes. Basicamente, queria encontrar as barreiras que
impediam esse processo de desinstitucionalização.
Além de levar cópias do meu projeto, aproveitei a visita para conversar com os
dirigentes e para também me apresentar. Eu já estava trabalhando com etnografia de hospital
há anos e precisava que eles soubessem que eu tinha certa experiência no campo. Não tive
nenhuma barreira para adentrar os espaços além da burocracia esperada. Na primeira
instituição, fui recebida com um certo entusiasmo, sendo chamada de “nossa antropóloga”; e,
na segunda, o diretor que me recebeu enfatizou que sabia como era complicado fazer uma
Tese no nosso país e que iria me ajudar a tornar a pesquisa realizável, pois ele tinha feito
doutorado também.
O acesso inicial não foi, em momento algum, um problema, mas o tempo para que a
autorização de tê-lo chegasse, foi longo e, para mantê-lo, também não foi tão simples quanto
para recebê-lo. Combinamos então, que depois da aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa, eu iniciaria visitas às alas de moradores permanentes ou, nas palavras deles,
“pacientes crônicos”. O primeiro hospital tinha um Comitê de Ética próprio, e meu projeto foi
discutido e aprovado no local. Entre a primeira conversa pessoalmente e a autorização por
escrito da primeira instituição, na qual eu iniciaria o trabalho de campo, se passou apenas um
mês, já a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) foi mais complexa.
O percurso no CEP rendeu um longo caminho. Pareceres diferentes vinham a cada
submissão, como se o diálogo entre os avaliadores não existisse. Foi uma experiência muito
diferente da pesquisa de mestrado, quando recebi a autorização já na primeira tentativa, muito
mais rapidamente. Devido à demora do processo, com intervalos de até dois meses para que
notícias sobre os pareceres fossem adicionadas ao sistema, além de várias ligações e
tentativas frustradas de respostas da aprovação ou pendência do projeto, mesmo com prazo
máximo para retorno vencido, só recebi a aprovação seis meses depois, na quinta versão.
Quando retornei à segunda instituição, a ala em que eu faria minha pesquisa havia sido

79
fechada, e os moradores foram levados a outro espaço do hospital. Precisei então reformular
brevemente o projeto, que levava o nome da ala no título.
De certa forma, aquele episódio teve um efeito positivo, pois tive então a autorização
para pesquisar uma ala “mais fechada” do segundo hospital, já que a ala “mais aberta” teve
suas atividades interrompidas. Ficou acordado que eu faria pesquisa de campo nos dois
hospitais, não simultaneamente, devido aos riscos da pandemia de Covid-19. No primeiro
hospital, eu fazia visitas de segunda a sexta, das 8 horas até às 15 horas. No segundo hospital,
fiz visitas também de segunda a sexta, das 8 horas até o meio-dia. Nesse período de campo,
fiquei alguns dias sem visitar os hospitais, na primeira vez devido ao teste positivo de alguns
moradores para o coronavírus e, depois, devido a alguns intervalos que precisei fazer entre
uma visita e outra para que eu pudesse revisitar e retraçar os planos metodológicos.
Naquela fase da pesquisa, para iniciar a etnografia de hospital proposta, fiz o que pode
ser definido como observação participante ou, com algumas atualizaçōes, como observação
interativa negociada (WIND, 2008, tradução minha), pois, ao observar, também vivemos o/no
ambiente, nos envolvemos com as vivências e com as tramas e percorremos fluxos de
acontecimentos que são direcionados pelas relações construídas. Hirsch (1995) também
contribui nessa discussão, ao propor aos pesquisadores uma mudança de perspectiva em
relação à observação, que incluiria - também - o exame da relação entre os diferentes níveis
que as constituem e a consciência da posicionalidade e da perspectiva do pesquisador
(MÜLLER, ORTEGA, MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2022, p. 9). É por esse motivo que,
gramaticalmente, a primeira pessoa do singular - eu - foi escolhida para os relatos desta
pesquisa, combinada com a primeira pessoa do plural - nós - nos espaços de convite para o
leitor entrar também no texto e nos relatos das relações entre pesquisadora e o campo.
De modo geral, as visitas nas duas instituições começaram em agosto de 2021 e foram
finalizadas em maio de 2022, totalizando mais de 70 relatos registrados no Diário de Campo.
Para este último, podemos ter em mente a definição de Goodwin et al. (2003, p. 573) que o vê
como um espaço de trabalho privado onde quem pesquisa pode deliberar sobre o que fazer
com estas informações sensíveis. Entretanto, adiciono aqui que este “trabalho privado” deve
ser contextualizado e as relações que o compõem devem ser reconhecidas, embora a ilusão do
espaço privado possa contribuir para o desenvolvimento das reflexões trabalhadas. No
coletivo da observação participante, encontrei o que viria ser trabalhado na escrita do diário,
em um espaço que permitia um fluxo de interpretação fluido e mais passível de erros, uma
vez que os materiais, que só seriam vistos por mim, seriam ainda retrabalhados e revisitados.

80
Alguns dias não puderam ser transcritos, pois, pela primeira vez, depois de tantos anos
vivenciando pesquisas etnográficas, experienciei visitas que simplesmente não permitiam que
eu escrevesse sobre elas. Precisei optar, diversas vezes, por apenas viver as experiências, o
que já me confrontava com situações bastante limítrofes, pois alguns espinhos não podiam
fazer parte do material escrito. Meu percurso metodológico, naquela fase da pesquisa, foi
construído assim: visitava a instituição e, no final do dia, transcrevia minhas experiências nos
meus diários de campo. Mantive também uma caderneta para tomar notas durante o dia, pois
viajava cerca de 50 quilômetros para chegar aos hospitais e temia esquecer algo importante
no caminho de volta. Como Diário de Campo, comecei com um caderno que se transformou
em arquivos digitados online, já que o fluxo rápido do pensamento e dos acontecimentos não
poderiam ser acompanhados usando caneta e papel. Também facilitou a escrita das anotações,
as minhas idas de ônibus, num percurso que levava duas horas e meia. No segundo hospital,
acabei indo de carro, em uma viagem que levava apenas 40 minutos, já que estava inviável
passar mais de cinco horas no trajeto de ida e volta para as instituições.
A dinâmica das visitas foi muito variada, desde passar o dia sentada com os
moradores, até jogar jogos ou fazer desenhos. Os moradores foram também compondo uma
rotina que eu deveria seguir, construímo-nas juntos e, quando eu chegava ao hospital, já tinha
algumas obrigações fixas, como passar no quarto de morador x, ir com morador y na
enfermaria, pentear o cabelo de morador z, etc. As demandas apareciam no cotidiano e,
juntos, a seguíamos. Além do diário, mantive outro caderno com datas, horários, tentativas de
contato e informações gerais dos processos burocráticos da pesquisa. Nele tenho escrito o dia
de cada contato prévio com as instituições, além das sensações que experienciava, os
percalços pelos quais passava e as inspirações que transbordavam. Participação em eventos e
indicações de leituras também eram transcritas naquele espaço, que foi composto por longas
listas de documentos que precisava reunir, leituras que deveria incluir nas discussões, além
das tarefas burocráticas do doutorado.
Um terceiro caderno foi utilizado para “desenhar a pesquisa”, para que, nos momentos
em que meu “eu” pesquisadora se distanciasse dela (principalmente na fase do estágio
sanduíche na Califórnia), eu pudesse me aproximar novamente de tudo aquilo que me movia.
Neste último caderno, eu literalmente “desenhava” a pesquisa para mim, mas depois acabei
por utilizar aquele material também no estágio sanduíche, pois, quando novos pesquisadores
chegavam no Psychological and Medical Anthropology lab., espaço que trabalhei por nove
meses, era-me solicitado que mostrasse a pesquisa que estava desenvolvendo a partir do
caderno, pois, com as imagens e desenhos, eles poderiam se aproximar um pouco mais do que

81
significa uma instituição psiquiátrica pública brasileira. Instituições como essas e com a
mesma finalidade não existiam nos Estados Unidos. Acabei visitando um hospital
psiquiátrico em San Bernardino, também na Califórnia, e descobri que as instituições daquele
formato só podiam ser ocupadas por sujeitos que cometeram algum delito, como são os
hospitais de custódia no Brasil. Muitos colegas brasileiros também não conheciam a condição
das alas psiquiátricas do nosso país e até mesmo em eventos de saúde mental era comum que
pessoas viessem conversar comigo, no final das minhas falas, relatando não saberem que essa
realidade persistia. Meu objetivo secundário passou então a ser documentar aquela realidade,
pois percebi que ela estava sendo, cada vez mais, escamoteada em reformas, mudanças de
nomes das instituições ou simplesmente silenciamento e omissão das suas condições.

Imagem 1 - Diário de Campo

Como vivia muito mais com os moradores do que com os profissionais da instituição,
optei por fazer entrevistas com estes últimos, pois a pouca convivência não seria suficiente
para traçar qualquer tipo de observação. As conversas semiestruturadas totalizaram 14
entrevistas, gravadas, transcritas e anexadas ao mar de dados que acumulei. Além disso,
compôs os materiais etnográficos, os prontuários médicos de cada um dos residentes, que
foram transcritos à mão em visitas específicas aos dois hospitais, pois era proibido que os
materiais fossem escaneados ou fotografados.

82
Além da etnografia de hospital, compus o trabalho com participação nas Conferências
de Saúde Mental de Santa Catarina, nas quais não somente observei, mas também fui
convidada a apresentar, em falas disparadoras, alguns dados das etnografias de hospital que já
tinha feito anteriormente. Também frequentei audiências públicas em Florianópolis-SC que
discutiam a criação de serviços substitutivos de saúde mental, participei dos eventos da Luta
Antimanicomial (na rua e em algumas instituiçōes de ensino superior), fiz 11 visitas a um
Residencial Terapêutico que abriga moradores permanentes (também fiz um Diário para essas
visitas) e participei da relatoria das propostas de Políticas Públicas de saúde mental no
Conselho Estadual de Saúde de Santa Catarina, no centro de Florianópolis.
A bricolagem tornou-se infinita e agora apresento, por motivos óbvios, apenas alguns
excertos de tudo o que foi experienciado e construído. Pensar na construção e no tecer
etnográfico é importante para reificar a agência de quem pesquisa nas investigações pois,
como dito anteriormente, não estamos à deriva em campo, embora possamos sentir, às vezes,
que assim vivemos.
O campo é construído na relação entre o pesquisador e as pessoas que vivem o/no
ambiente escolhido e, se anteriormente citei a sensação de “pisar em ovos”, posso agora
garantir que ela não foi simplesmente “despejada” em mim, mas eu também a construí
enquanto ali vivia, com uma preocupação excessiva que se direcionava para diferentes esferas
da minha própria existência. Sobre essa situação nas etnografias de hospitais, escreveram os
pesquisadores em Antropologia Médica de Sydney e Amsterdam, Long, Hunter e Geest
(2008), que “[...] o acesso não pode ser tomado como garantido. É uma relação delicada que
requer muita sensibilidade…” (p. 71, tradução minha). Era essa a sensação que mais me
dominava, que o acesso ao hospital não era garantido e que podia ser “perdido” a qualquer
momento, além de que eu deveria desenvolver uma sensibilidade apurada para saber como ali
agir assertivamente, de uma maneira que viabilizasse minha presença naquele espaço.

2.2) Instituições Psiquiátricas: algumas pinceladas breves.

Nos primeiros dias de campo, chegava ao hospital e passava, primeiramente, pelo


ritual inicial de lavar as mãos, usar álcool em gel e colocar uma máscara nova para entrar na
ala de moradores, ou, como chamavam na instituição, na ala dos “crônicos” ou
“deambulantes”. Vale pontuar que na instituição tinha um pavilhão que também abrigava
moradores da psiquiatria, mas que eram “não deambulantes”, ou seja, não podiam circular

83
pelo hospital, mas infelizmente minha autorização não englobava aquele espaço. Além disso,
já tinha levado meus comprovantes de vacina anteriormente e combinado que eu
permaneceria de máscara todo o tempo da pesquisa, pois os moradores não as usam, estão
“em casa”. Uma gentil enfermeira me levou para conhecer todas as estruturas físicas da
primeira instituição, um Hospital que antes era uma Colônia de Hansen. Passamos no quarto
de cada um dos moradores e pude me apresentar para eles, dizendo que era estudante e estava
pesquisando como era viver dentro de hospitais. Durante as visitas seguintes, sempre dizia
que, quando não quisessem conversar era só me dizer ou, quando não me quisessem por
perto, também. Naquela instituição, os moradores não usam uniformes e encontrei alguns que
me deixaram em dúvida para saber se eram pacientes ou não, isso porque apenas os
trabalhadores da área da saúde usavam jalecos, os profissionais de serviços gerais usavam
roupas comuns, e os profissionais da limpeza usavam um uniforme.

Alguns moradores foram solícitos, cumprimentaram, abraçaram e estiveram presentes


do meu primeiro ao último dia no hospital. Alguns outros preferiram não manter contato.
Outros ainda foram construindo uma relação de maneira longa e demorada, escolheram me
conhecer primeiro, antes de me receberem ali. Já os profissionais resumiam nosso contato
perguntando o que eu faria ali e sobre o que era minha pesquisa; depois da primeira conversa,
raramente conversavam novamente comigo, em muitos casos pareciam agir como se eu não
estivesse ali, estavam normalmente sobrecarregados andando de um lado para o outro entre as
diferentes alas do hospital.

A estrutura do primeiro hospital, que também chamei de “mais aberto”, basicamente,


pode ser pensada como um grande retângulo aberto e vertical, com muito espaço verde,
cercado por grama e árvores. À esquerda estão os pavilhōes da psiquiatria, totalizando quatro,
eles abrigam os moradores deambulantes, que são autorizados a circular pelo hospital. À
direita estão os pavilhōes para os cuidados das outras áreas médicas, além de dois pavilhões
psiquiátricos para moradores acamados ou com total dependência - os quais não podem sair
do pavilhão. À frente estão os prédios administrativos, o museu, o velório e o parlatório
(lugar construído, em sua origem, para que os pacientes recebessem visitas de familiares) e ao
fundo está o campo de futebol, a escola e o cemitério.

Os pavilhōes, por sua vez, são também compridos retângulos dispostos de maneira
vertical, com uma porta à frente e outra atrás, quartos dos dois lados, uma enfermaria no
começo e um banheiro no final. Nenhuma porta é trancada, embora tenha porteiros na saída
do hospital, os pacientes circulam por todo o espaço livremente. Os quartos abrigam um ou

84
dois moradores, que têm seus próprios pertences, como roupas, sapatos, armários, televisão,
poltrona, etc. A limpeza é feita por profissionais terceirizados, assim como as roupas que são
lavadas na lavanderia. As refeiçōes são feitas no refeitório e, uma vez por semana, eles
recebem um lanche especial, com cuca (bolo típico da região), orelha de gato (bolachinhas de
farinha empanadas no açúcar e na canela) ou outra guloseima simples e de baixo custo. A
rotina hospitalar é composta, basicamente, pelos horários de medicação e alimentação e os
moradores não têm nenhuma outra atividade durante o dia. Apenas três deles frequentam uma
sala de Terapia Ocupacional, que estava naquele momento das visitas sem um(a) terapeuta,
mas que é coordenada por outras duas antigas funcionárias de serviços gerais da instituição.
Lá, eles fazem tapetes de barbante para vender dentro do hospital.

Já a segunda instituição, tem uma estrutura bastante diferente, chamei-a de “hospital


mais fechado”. Primeiramente, vale pontuar que é uma instituição somente psiquiátrica, ou
seja, todas as suas alas estão direcionadas aos cuidados dessa área médica. A ala de
moradores fica trancada e separada das outras alas que, por sua vez, também ficam trancadas.
É muito comum ver os moradores acumulados na entrada da ala, olhando para o lado de fora
pela pequena fresta com grades de metal que tem no alto da porta. Dentro da ala, existem dois
pavilhões que não estão divididos em quartos, diferenciando-se potencialmente do primeiro
hospital. Eles são grandes retângulos fechados com divisão de cômodos apenas para a
enfermaria, o quarto de descanso dos funcionários, o cômodo com roupas coletivas, o
banheiro e o refeitório. As camas estão dispostas uma ao lado da outra, formando duas fileiras
de cada lado. No primeiro pavilhão havia 32 moradores homens e, no segundo, havia 31
moradores mistos, ou seja, homens e mulheres.

Alguns poucos residentes tinham pertences próprios que ficavam guardados em um


armário com chave. Esses, só mantiveram esse pequeno espaço privado porque passaram
alguns anos vivendo em casas no estilo de Residências Terapêuticas, mas foram trazidos de
volta para a internação fechada devido à falta de recursos financeiros naqueles espaços. A
rotina era composta pelos horários de medicação e alimentação, e os moradores tinham a
possibilidade de passar o dia em um Centro de Convivência, uma sala dentro da ala. Naquele
local, eles assistiam à televisão, escutavam músicas e recebiam alguns lanches, como frutas
picadas e vitaminas. Eles também circulavam no quintal da ala, que levava até uma igreja
que, por sua vez, também permanecia trancada e tinha algumas missas esporádicas. Era
comum que outros pacientes da ala de agudos também passassem pela ala de moradores
crônicos, que ficava no caminho de algumas das atividades do hospital.

85
Quando visitei essa segunda instituição pela primeira vez, fui levada pelo diretor para
conhecer todas as suas alas, inclusive aquelas de pacientes agudos. Mesmo em 2022,
presenciei leitos de chāo22 e muitos pacientes pedindo para serem retirados dali. Um
profissional me contou que a ala feminina de agudos é a mais difícil de lidar, pois elas são
muito “solicitantes” e pedem coisas o tempo todo. Todas as alas são trancadas e os pacientes
convivem uns com os outros em espaços pequenos, com as camas uma ao lado da outra.
A rotina comum na ala de moradores daquele hospital era composta pelos horários de
banho, alimentação, medicação e tempo no Centro de Convivência. O banho era coletivo e,
por volta das 8 horas da manhã, eles tiravam as roupas e ficavam todos no banheiro, ou na
porta dele, esperando para serem banhados, numa espécie de linha de produção. Depois
passavam na sala de roupas coletivas e uma técnica de enfermagem os secava e os entregava
um conjunto de roupas. Em seguida, iam em uma fila para pentear o cabelo e passar
desodorante, levantavam os braços e uma cuidadora espirrava o produto neles, e depois,
finalmente, eram liberados para ir para o Centro de Convivência.

Essa rotina fez com que o “estar em campo” fosse muito diferente do primeiro
hospital, pois naquela instituição os moradores faziam suas atividades de higiene sozinhos e
minhas visitas eram resumidas em convivências, conversas, etc. Já nesta segunda, eles me
solicitavam ajuda quando se arrumavam, quando saiam do banho, quando iam comer, entre
outras tarefas cotidianas. Além de pesquisadora em campo, passei a desempenhar alguns
papéis também de “cuidadora” e era muito comum que os moradores me pedissem ajuda para
colocar sapatos, fazer penteados no cabelo, caminhar para algum lugar ou para comer (alguns
tinham limitações físicas), etc. Quase todos iam para a sala de convivência, apenas alguns
passavam o dia todo dentro do pavilhão.

Quando comecei a fazer trabalho de campo naquela instituição, segui novamente os


passos que tracei no hospital anterior. Iniciei a pesquisa me apresentando aos poucos para os
moradores, pois a enfermeira que me recebeu apenas disse para que eu ficasse à vontade,
então fui de cama em cama para conversar com os residentes que estavam ali deitados, mas
acordados. Depois daqueles primeiros contatos, fomos traçando meu trabalho em conjunto e
compusemos nossa rotina também coletivamente. Neste segundo hospital, os pacientes
estavam muito mais limitados pelo ambiente que viviam, além de estarem literalmente

22
“Leitos de chão” é um termo comumente utilizado para definir a situação de hospitais com mais
pacientes do que sua capacidade, o que causa a necessidade dos mesmos dormirem em colchões
dispostos no chão, pela inexistência de cama para todos.

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trancados, o que criava um espaço muito mais caótico e, em certo sentido, violento e perigoso
e foi muito comum presenciar situações de agressões físicas e morais.

2.3) Etnografia de Hospital Psiquiátrico

Voltando um pouco no tempo e pensando sobre meus dias fazendo pesquisa de campo,
quando vivia diariamente naquelas hospitais, percebi que sentia, no começo, como se os dias
se expusessem para mim, e que eu poderia escolher como vivenciá-los. Entretanto, bastava
adentrar os muros dos hospitais para perceber que essa era uma ilusão terrível, pois minhas
escolhas estavam limitadas por um campo de possibilidades que não era demarcado por mim,
mas pelas relações interpessoais que desenvolvíamos naquela convivência e também por toda
a estrutura que mantinha aquele espaço vivo, mesmo depois de décadas de denúncias e
reformas.
Lendo e relendo o material etnográfico que fui compondo ao longo dos últimos anos,
não pude deixar de me deparar com um mar de possibilidades para escrever sobre aqueles
hospitais nos quais estava fazendo pesquisa, ambientes silenciosos e, ao mesmo tempo,
ruidosos, que têm uma dinâmica própria, além de um cheiro único e uma textura peculiar.
Pensei ser interessante observar a etnografia que queria compor como um ato de esculpir,
pois, embora a “matéria prima” dos etnógrafos esteja em movimento e seja uma matéria
“viva”, ao escrevermos sobre ela, estamos também moldando-a e compondo-a em uma tarefa
reflexiva que também nos molda e nos compõem simultaneamente. Vale nesse movimento,
portanto, estarmos sempre atentos às dinâmicas da vida cotidiana e à singularidade desses
movimentos que são criados. A noção de “paisagem médica” (medical landscapes) pode nos
ajudar a destacar essas características nas pesquisas, principalmente quando se pretende tecer
uma etnografia de hospital, pois aponta para a necessidade de priorizar este caráter fluido,
relacional e contextual das práticas que são gerenciadas por atores sociais no campo que
vivemos (HSU, 2008, apud MÜLLER, ORTEGA, MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2022).
Além dessas características, algumas considerações são imprescindíveis. Primeiro, é
importante que saibamos que os hospitais são instituições singulares, com regras variáveis.
As próprias formas de cuidar são também diversas, não somente dentro, mas também fora da
instituição, e os indivíduos que vivem naquele ambiente, tanto como pacientes quanto como
profissionais, circulam entre essas possibilidades. Em segundo lugar, devemos ter em mente a
necessidade de construir análises contextualmente sensíveis, destacando as relações de poder

87
envolvidas nas práticas de cuidado (MENÉNDEZ 2005; HÖRBST, GERRETS, SCHIRRIPA,
2017). Para ilustrar isso, nada mais simbólico do que pensar na relação entre os profissionais
de saúde e os pacientes, que ocupam diferentes espaços de poder. Nessas relações, a
negociação terapêutica reflete seus traços culturais imbricados, além dos determinantes
sociais e políticos que moldam esses espaços (MÜLLER, ORTEGA,
MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2022).
Na saúde mental, isso se complica ainda mais, pois muitas vezes há uma espécie de
“silenciamento” do “doente mental”, que ocupa uma posição ainda mais inferior nas relações
construídas dentro dessas instituições, uma vez que o próprio ambiente hospitalar reforça a
percepção dos pacientes sobre sua vulnerabilidade e dependência (MULEMI, 2008). Nesse
ponto, a Antropologia emerge, principalmente, ponderando nos seus escritos que as
experiências dos pacientes e das famílias também sejam ouvidas nesses ambientes onde são,
por vezes, silenciados, abrindo, de certa forma, novos terrenos para a investigação
sociocultural.
Para alguns autores, a “postura paciente-advocativa” deve ser cuidadosamente evitada,
uma vez que limita a complexidade desses espaços e pode impossibilitar a disseminação de
pesquisas. Dessa forma, em vez de defender um grupo de interesse em detrimento de outro,
podemos e devemos compor materiais que impulsionam a reflexão tanto de pacientes, quanto
de familiares e profissionais (LONG, HUNTER, GEEST, 2008), validando uma indicação
importante exposta por Spradley (1980), de que a etnografia pode oferecer também aos
profissionais de saúde a oportunidade de ver a saúde e a doença através dos olhos dos
pacientes. Entretanto, a força da Tese impossibilitou esse posicionamento neutro, uma vez
que o que encontrei, em campo, me levou para outra forma de construção de conhecimento
desse e para esse espaço. Isso não impede um impulsionamento de reflexões entre os
diferentes agentes que vivem e criam aquela realidade, pelo contrário, a pretensão é
direcionar o impulso não para repelir, mas para unir um grupo no sentido de encontrar saídas
para um problema imanente.
Quando trazemos essa discussão da neutralidade ou da ideia de se evitar o
posicionamento paciente-advocativo no caso da institucionalização permanente em hospitais
psiquiátricos, podemos nos sentir limitados, uma vez que é comum, nesses espaços,
presenciarmos situações que não nos deixam escapar do reconhecimento do status de
vulnerabilidade que os sujeitos-pacientes estão expostos. Vale lembrar que ser vulnerável não
é sinônimo de ser vítima (DAS et. al, 2001) e que, talvez, reconhecer a vulnerabilidade dos
outros setores, como por exemplo a sobrecarga e desvalorização dos profissionais, e não

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compará-las entre si, pode ser uma saída possível, mas não tenho certeza se suficiente. Isso
corrobora com os escritos de Geest (2015) pois, segundo o autor, as pesquisas que se
debruçam sobre as práticas de saúde podem iluminar novos insights inesperados, além das
intenções humanas ocultas nesses espaços criados como locais de tratamento. Nessa reflexão,
a doença não é vista apenas como uma condição arbitrária causada por uma adversidade, mas
também como o resultado, por exemplo, de trabalho precário, pobreza, exploração, entre
outros.
Antes de continuar, vale abrir um parênteses para olharmos um pouco para trás. Como
estamos falando de etnografia de hospital, é interessante que tenhamos em mente uma
definição do próprio hospital que, por si, representa uma espécie de condensação e
intensificação da vida em geral (LONG, HUNTER, GEEST, 2008). Historicamente,
retomando as discussões do primeiro capítulo, as atividades da ordem do cuidado médico
começaram em instituições de caridade e religiosas e, somente no final do século XIX, é que
o hospital tornou-se um símbolo da modernidade, com a incorporação da biomedicina como
prática científica. Naquela época, os hospitais eram também centros de educação médica, e a
ordem dos acontecimentos foi transformando-os de lugar de moradia para as camadas baixas
da sociedade para instituições impessoais, com especialistas, perdendo em partes a
característica de benevolência e indo em direção ao profissionalismo (FINKLER, HUNTER,
IEDEMA, 2008).
Entretanto, esse histórico pode ser colocado entre aspas, uma vez que algumas
instituições não passaram - totalmente - por essa transformação e, ainda hoje, sustentam, ao
menos no plano ideológico, um ideal de benevolência e asilo para as camadas baixas da
população, como é o caso de alguns hospitais psiquiátricos públicos brasileiros. Estes
espaços, por sua vez, mantêm um modelo de custódia, que é definido como um atendimento a
pacientes com condições médicas que podem ou não ser permanentes: “O tipo de cuidado de
custódia implica em dar mais atenção às práticas padronizadas, que obedecem a regras
institucionais rigorosas” (MULEMI, 2008, p. 117, tradução minha).
Na literatura antropológica, é comum que pesquisadores escrevam sobre a etnografia
de hospitais pensando-os como uma ilha “[...] onde os pacientes passam por outro regime,
vestem-se de forma diferente e habitam outros papéis.” (LONG, HUNTER, GEEST, 2008, p.
73, tradução minha). Por outro lado, alguns pesquisadores combatem essa ideia, pois, para
eles, as alas hospitalares são também invadidas e moldadas pelos valores, regras e ideais do
mundo exterior (idem, p. 76, tradução minha). É interessante observar essa variação pois,
embora seja importante reconhecer as particularidades de cada instituição, vendo-as como

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“universos” diferentes, é também necessário que reconheçamos que elas estão inseridas em
um sistema cultural que molda não tão somente suas estruturas, mas também suas formas de
agir, cuidar e se relacionar com os pacientes. Geest e Finkler resumem esta ideia:

Primeiro, ao contrário de uma noção comumente aceita de que os hospitais


são clones quase idênticos de um modelo biomédico global, os antropólogos
estão começando a descrever e a interpretar a variedade de culturas
hospitalares em diferentes países. Segundo, e relacionado ao primeiro, a
biomedicina - e o hospital como sua principal instituição - é um domínio no
qual os valores e crenças fundamentais de uma cultura vêm à tona (2004, p.
72, tradução minha).

Esse é o ponto, perceber que os hospitais têm suas particularidades e, de certa forma,
criam uma ‘situação de ilha’, mas que - na mesma proporção - estão inseridos em um sistema
de redes de relações que os moldam e são moldados por eles, uma vez que estão em um
continuum de cocriação. Segundo Spradley (1980), é esperado que o antropólogo seja
simultaneamente um interno e um externo do ambiente estudado e, de certa forma, essa
característica fica evidente também quando se escolhe fazer uma etnografia de hospital, já
que esses espaços têm suas barreiras físicas muito bem delimitadas e cabe ao pesquisador
circular entre os diferentes espaços - físicos ou subjetivos - para tecer suas interpretações.
Esses lugares subjetivos, por sua vez, se complicam e não têm suas fronteiras bem
delimitadas, o que torna impossível sua total diferenciação.
Além disso, enquanto pesquisador de uma instituição psiquiátrica asilar, o etnógrafo
será incorporado ao cotidiano do hospital de diferentes formas. No meu caso, por exemplo,
fui incorporada como pesquisadora e como uma espécie de cuidadora-ajudante, isso porque,
nessas instituições médicas que pretendem ser “lar” e “lugares de cuidado e proteção”, as
expectativas construídas na relação entre o etnógrafo e o campo podem requerer outros papéis
e, costumeiramente, as necessidades excedem a esfera da convivência ou da troca de
experiências (FINKLER, HUNTER, IEDEMA, 2008). Vive-se numa fronteira imaginária e
não ser “de dentro” nem “de fora” não significa dizer que se está distante ou perto demais do
campo, nem que afeta-se (FAVRET-SAADA, 2005) ou não, mas que há a possibilidade de
combinar a desejada dupla lente antropológica, com as perspectivas emic (insider - de dentro)
e etic (outsider - de fora) (LONG, HUNTER, GEEST, 2008).
Voltando às duas instituições que formaram o campo desta Tese, vamos então
aprofundar essa ideia de que o trabalho de campo é composto, principalmente, no cotidiano.
Já nas primeiras visitas, tentava absorver o máximo de informações possíveis e temia muito
esquecê-las, queria acumulá-las desmedidamente, pois estava sedenta descobrindo um

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universo novo. Aos poucos fui entendendo que nem tudo seria possível de ser relatado, ou até
mesmo de ser lembrado, foi quando finalmente entendi que etnografar não era tão somente
acumular o máximo de dados possíveis para depois trabalhá-los com uma extensa literatura,
mas era também - senão principalmente - viver esses espaços que vão sendo abertos por e
para nós. Viver a rotina do hospital e estar diariamente num campo verdadeiramente lento fez
com que eu precisasse rever algumas inclinações que o fluxo dos acontecimentos me faziam
tomar.
A questão do acesso foi citada anteriormente, mas é importante pontuar que qualquer
relação exige que o interesse seja recíproco, e os hospitais, como espaços institucionais
altamente estruturados, protegidos e fechados não são facilmente acessíveis ao inquérito
etnográfico (LONG, HUNTER, GEEST, 2008). Embora eu tenha conseguido a autorização
para fazer a pesquisa de maneira relativamente rápida, para mantê-la precisei trabalhar
diariamente na assertividade de estar ali.
Além disso, Geest e Finkler (2004) alertam que, nas etnografias de hospital, deve-se
também escolher como se apresentar em campo e, para isso, tem-se algumas opções, como se
apresentar como alguém da equipe, como paciente ou como pesquisador e, como tem sido
explicitado aqui, escolhi, desde o início da pesquisa, me apresentar como estudante,
antropóloga e pesquisadora. O que não impediu que eu fosse interpretada de diferentes
formas ao longo das convivências criadas.
Embora eu me apresentasse como pesquisadora e fosse chamada assim por vários
sujeitos do campo, muitos moradores foram criando outros papéis para eu desempenhar ali.
Havia, por exemplo, uma moradora que me esperava todos os dias pela manhã para fazer
tranças no seu cabelo e, uma outra moradora, que me esperava para ir para a sala de
convivência, pois gostava de ter companhia para andar. Não foram poucas as situações nas
quais os residentes me confrontavam dizendo que eu era, por exemplo, “paciente”, como um
dia em que estava conversando com dois moradores e um deles deitou a cabeça no meu
ombro, o outro logo nos alertou:

[…] Levanta daí! Mexer com paciente aqui não pode não, ela é paciente, é
paciente, se não fosse paciente tava em casa, não tava aqui não. Tá
internada, tá doente, se tivesse saúde tava em casa. É mulher doente. Quem
tá internado não pode sair, você não vê que ela tá todo dia aqui? (Diário de
Campo, 17 de novembro de 2022).

Quando isso acontecia eu reforçava que era pesquisadora e estava ali estudando a vida
social de pessoas que moram em hospitais, mas isso não era suficiente, pois minha
convivência lá, dia após dia, dizia muito mais que minhas palavras. Percebia nessas situações

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o quanto estava inserida no campo e o quanto fui, pouco a pouco, deixando de ser uma
“estranha novidade”. Isso foi fazendo com que fosse muito comum que os residentes me
fizessem recomendações de como agir para evitar problemas e foram muito frequentes os
alertas quando eu agia de algum modo que fugia das regras do hospital ou quando me
colocava em situação de risco, mesmo que sem perceber.
No primeiro mês na segunda instituição, por exemplo, um morador percebeu que eu
gostava de conversar e começou a selecionar para mim os moradores que “são bons de
conversa”, já que, segundo ele, não era com todo mundo que eu poderia conversar, pois
alguns não entenderiam. Ele também sempre me alertava quando algum morador que estava,
nas suas palavras, “desorganizado”, se aproximava de mim, dizia para eu ser cuidadosa pois
alguns podiam me agredir, já que estavam “doentes”. Ele me ensinava como lidar com as
situações do hospital e, na maioria das vezes, não tinha comportamentos punitivos com os
outros moradores. Isso se repetiu entre outros residentes, como em um dia que um morador
veio tentar se comunicar comigo e outros três moradores me alertaram para sair dali e me
chamaram para me juntar a eles, começaram então a me contar que tinham sido agredidos por
ele naquele mesmo dia. Perguntei por que, e eles me disseram que “por nada”, porque ele
“não estava bem da cabeça”, mas que “logo ele melhoraria”.

Obviamente que cada morador respondia às situações de conflito de forma diferente,


mas achei interessante que esses direcionamentos partissem deles que, mesmo depois de tanto
tempo institucionalizados e vivendo naquele ambiente, ainda desenvolviam maneiras para
tornar a convivência possível, pois era muito comum que evitassem conflitos entre si. Uma
outra moradora, de 56 anos e institucionalizada há 32 anos, também foi categórica quando
conversou comigo sobre os cuidados que deveríamos ter:

Fui um pouquinho no quintal da sala de convivência, nunca tinha ido lá…


aquela senhora de cabelo enroladinho, estava lá e chamei ela pra gente
caminhar um pouco no quintal até a igreja, mas ela me disse que era
perigoso: “Esses rapaz aí fora tão doido pra pegar a gente”, perguntei quem,
e ela: “Esses aí, as crianças daqui… eles dormem na cama à tarde e cedo
elas saem pra pegar as mulherada daqui” (Diário de Campo, 23 de março de
2022).

Esses alertas partiam também da equipe e uma dessas recomendações me levou a


outras reflexões, quando certo dia um fisioterapeuta veio conversar comigo para me dizer
para tomar cuidado e usar luvas, porque viu que eu tenho muito contato com os moradores e
eles têm “outros” hábitos de higiene. Nas suas palavras, se eu não me cuidasse, iria “pegar
muita merda na mão”. Aquele alerta me transportou para algo que não tinha notado ainda,

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mas percebi depois, quando observei que os profissionais sempre usavam luvas plásticas na
convivência com os moradores. A ausência de luvas, nas minhas mãos, era também um
motivo que me distanciava da equipe e que, talvez, pode ter contribuído para a forma
subjetiva como os pacientes se relacionavam comigo. Criei uma rotina de higienizar as mãos
repetidas vezes e optei por continuar sem as luvas.
Percebi que não teria uma pesquisa sem tato, pois a etnografia requer o conviver de
todos os sentidos, e não seria possível desenvolver uma observação participante somente a
partir do que meus olhos viam. Na relação que construímos, intencionalmente horizontal, eu
pedia que eles me ensinassem como era viver ali e aos poucos os cotidianos iam se revelando,
longe, mesmo que dentro, da estrutura coercitiva a que estávamos expostos. Também tinha
dificuldade de escrever sobre os sons do asilo, era muito comum ouvir gritos e choros, mas
como registrar isso no diário? Os textos são silenciosos e é difícil trazer para a experiência da
escrita os barulhos. Estava imersa nessas e em outras infinitas questões quando comecei a
descobrir que, se eu conseguisse viver o campo de modo mais “livre”, mas ainda assim
respeitando o rigor da minha metodologia, poderia chegar a espaços que de outra forma não
encontraria. O campo, dito de outro modo, foi realmente moldando as ações possíveis e/ou
necessárias e também quem eu seria no hospital e não bastou, como dito anteriormente, que
eu me apresentasse como antropóloga ou pesquisadora e dissesse a sequência de
significâncias que tinha criado para explicar o que era isso. Eu era, para eles, outras coisas e
tinha, também, outras funções.
É por esse motivo que pensei em escrever brevemente sobre etnografia de hospital,
porque estar em uma instituição total e, adicionando a essa noção a característica de ser
também asilar e psiquiátrica, fez com que eu precisasse desenvolver formas de agir que foram
muito particulares daquele espaço. Outro exemplo disso pode ser visto nas ocasiões nas quais
pegava uma caderneta para fazer anotação de palavras-chave que depois viriam a compor
meu Diário de Campo. Quando estava nos bancos de cimento anotando e refletindo sobre o
campo, era muito comum que um morador viesse até mim, sentasse ao meu lado e começasse
a falar uma lista de coisas que era para eu anotar para trazer para ele na próxima visita. O
papel que eu pegava para anotar as informações que observava era, para eles, sinônimo de
uma espécie de lista de compras, de coisas muito simples, mas urgentes em seus cotidianos.
Era comum que, em tom de segredo, eles se aproximassem de mim com o papel na
mão e diziam: “Anota aí, três latinhas de coca-cola e um pacotinho com duas orelhinhas de
gato”. Ou então: “Anota aí, dois pasteizinhos de carne moída”. Achava interessante porque no
dia a dia, perto dos outros moradores e profissionais, eles sempre me pediam objetos, como

93
óculos, relógios, etc.. Mas no papel, eles costumavam pedir mais comidas, principalmente de
padaria. Isso aconteceu muito na primeira instituição que, como dito, é um espaço mais
aberto, em que os moradores não estão trancados e vivem em seus próprios quartos, recebem
pagamento e têm seus próprios pertences. Já no segundo hospital, que por coincidência
também repetiu essa ação de pedidos, as solicitações eram de outras ordens, pois os
moradores não me pediam para anotar uma lista de comidas de padaria quando me viam com
papel, no máximo me perguntavam o que era aquilo e o que eu estava escrevendo. Entretanto,
os pedidos não deixavam de acontecer no cotidiano, e eles pediam itens básicos, como por
exemplo meias, calcinhas e sutiãs.
Achei curiosa essa repetição, nas duas instituições, de fazer pedidos nos momentos
que fazia minhas anotações. Isso não acontecia somente comigo, mas com qualquer pessoa de
fora que passasse pela ala, o que me mostrava que eles também me viam como alguém que
circulava dentro e fora do hospital, revelando que nesses casos não me viam como interna, já
que sabiam que eu podia sair do hospital, nem como profissional, pois me pediam itens que
eram proibidos na instituição. No começo, eu não sabia se podia ou não atender aos pedidos,
que eram muito simples e possíveis de serem realizados, então decidi sempre pedir
autorização e quando era autorizada levava o que me era solicitado. Além disso, também
apareceram muitas exigências da esfera do cuidado, mas sobre elas trabalharemos melhor
adiante.

2.3.2) Comunicação x Negociação: uma atualização da piscadela antropológica

Em um dos primeiros dias em campo, observando um morador que andava em volta


do pavilhão sozinho, o dia todo, comecei a me perguntar como poderia abrir um espaço de
comunicação para começar a conversar. Ele estava institucionalizado há 36 anos e tinha, na
época, 63 anos completos. Quando ele passava por mim, nós nos cumprimentávamos e ele
parecia muito solícito, sempre abria um sorriso e dizia “Boa tarde, senhora!”, e eu respondia,
“Boa tarde, senhor!”. Um dia, curiosa por aquele movimento, depois do café da tarde, resolvi
perguntar a ele se eu poderia acompanhá-lo na sua caminhada, ele olhou surpreso pra mim e
respondeu, de forma muito gentil, “Olha, senhora, não é por nada não, mas sabe que era disso
mesmo que eu tava precisando? Tava precisando de alguém pra andar comigo!”. Aquela
resposta, simples, foi - de alguma maneira - um movimento de abertura para as nossas trocas,
pois foi ali, andando em volta do pavilhão, repetidas vezes e em um movimento contínuo, que

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as ‘portas’ daquele lugar começaram a ser destrancadas. Ver uma pesquisadora com um
morador despertou a curiosidade de outros residentes que ainda não tinham tido interesse de
conversar comigo e que começaram a se aproximar mais e também a contar suas histórias,
além de perguntarem, muito, sobre as minhas próprias experiências.

Isso me levou longe, para o mito de Procusto, que era um homem que vivia em uma
floresta e tinha uma imensa cama. Todos que passavam por perto eram capturados e
colocados por ele no seu leito. Como cada pessoa tinha um tamanho, para que elas coubessem
na cama, Procusto cortava os pés das mais altas e esticava o corpo das mais baixas,
garantindo assim que o padrão da cama fosse obedecido. Nas instituições totais, muitas vezes,
a cama de Procusto aparece em diferentes formatos, nos hospitais psiquiátricos, por exemplo,
elas podem ser representadas pelos medicamentos, pelos uniformes e pelas inúmeras e
infinitas impossibilidades: de ser, de estar e de viver. É por esse motivo que entrar em um
espaço assim, como pesquisadora, faz com que os desafios sejam propostos diariamente,
numa estrutura que tem perpetuado violências múltiplas e, obviamente, feito com que quem a
viva a reproduza também compulsivamente. Evitar a ação de Procusto, nesses movimentos
etnográficos, é uma tarefa inegociável. Dizendo de outra forma, os moradores são seres
singulares e seria impossível qualquer tentativa de escrever sobre os mesmos somente através
de generalizações. Nesse sentido, os “casos” apresentados nos ajudam a revelar as
particularidades das experiências que ali são construídas.

Outro ponto é que, quando se entra em um hospital psiquiátrico pela primeira vez, é
comum receber uma lista de recomendações, os pacientes “perigosos” são identificados um
por um e é recomendado que não se aproxime deles. Nesse campo, a descrença em
possibilidades outras são reverberadas cotidianamente, o que não nos impede de nos
surpreendermos com determinadas situações. Uma fala de um psiquiatra, no único encontro
que tive com o mesmo antes de iniciar o campo, pode ser um exemplo disso. No primeiro
hospital, depois que a enfermeira chefe me apresentou para os funcionários e me levou para
conhecer todas as alas da instituição, passamos em frente ao consultório do médico que era
também o coordenador geral do local. Ele estava na janela e nos cumprimentou, em seguida
me apresentei e falei superficialmente sobre a pesquisa e ele, sem aparentar nenhum
vislumbre da possibilidade de uma “pesquisa bem sucedida”, apenas me respondeu: “Seja
bem-vinda, se você achar alguma coisa aqui vai ser muito, boa sorte!”. Vale pontuar que nos
meses seguintes em que estive no hospital, não presenciei o psiquiatra na ala nenhuma vez.

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Na busca para “encontrar alguma coisa”, comecei a perseguir as ações que
movimentavam a vida ali. Será sobre elas que trabalharemos a partir de agora, buscando o
que chamei, diversas vezes, de “alma no olho”. Explico melhor, nos primeiros dias de visita,
era muito comum encontrar moradores extremamente medicados, deitados ou sentados no
chão esperando o dia passar. No horário exato das refeições, eles caminhavam para o
refeitório, recebiam as comidas em pratos e copos plásticos e depois voltavam para o quintal.
Alguns comunicavam mais, contavam histórias, sentavam em poltronas e gostavam de
compartilhar suas experiências. A maioria dos relatos que apresento são desses moradores
que escolhiam se comunicar mais rotineiramente, o que possibilitou que aprofundássemos
nossas partilhas. Entretanto, muitos moradores também escolhiam não comunicar e outros,
devido à idade e ao corpo enfraquecido, também passaram a não mais usarem a linguagem
falada, tal como uma moradora de 82 anos, institucionalizada há 41, que está cadeirante há
quatro anos e já não mais se comunica verbalmente, mas tem uma vida que pulsa no olhar:

A moradora estava assistindo televisão e começou a fazer alguns sons, como


uns gritos abafados e nasalados, enquanto estava deitada na cama. Fui até
ela, ela me olhou e levantou vagarosamente as mãos, me entregando-as. Dei
as mãos para ela e ficamos olhando uma nos olhos da outra… eu queria de
alguma forma entender o que ela queria me comunicar… O olhar dela é tão
vivo que se distancia da sua condição física atual, não me canso de pensar
sobre isso… tem uma pulsão de vida muito forte… quando estou por perto
ela me aperta a mão e olha no fundo do meu olho… Quais histórias você me
contaria se pudesse, Mariinha? (Diário de Campo, 11 de abril de 2022).
As histórias que ela guardava estavam também acomodadas de diferentes formas em
cada um dos indivíduos que viviam naquele ambiente. Um caso específico e pontual, de outro
morador, pode nos ajudar a pensar sobre essas formas únicas de armazenar memórias,
linguagens e histórias. Pois bem, falo de um paciente que tem 55 anos de idade e está
institucionalizado desde seus 21 anos. Sua condição é ilustrada exatamente pelo que
constatou Basaglia a respeito de outros pacientes:

Coagido a um espaço onde mortificações, humilhações e arbitrariedades são


a regra, o homem, seja qual for seu estado mental, se objetiva gradualmente
nas leis do internamento, identificando-se com elas. Assim, sua couraça de
apatia, desinteresse e insensibilidade não seria mais do que o seu último ato
de defesa contra um mundo que primeiro o exclui e depois o aniquila: é o
último recurso pessoal que o doente, assim como o internado, opõe, para
proteger-se da experiência insuportável de viver conscientemente como
excluído. (1985, p. 120).

No diagnóstico, do mesmo, constava: “[...] 295.0 CID-1975, com rigidez afetiva,


tendência ao isolamento […]”, e nos registros de sua última internação, consta que ele foi
levado para o hospital por uma ambulância da sua cidade, no interior do Estado de Santa

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Catarina, pois “[...] apresentava distúrbio de conduta, tirava as roupas e perambulava nu pela
cidade”. Sobre seus familiares, consta: “Morava com três irmãos, situação econômica
precária […]”. Antes da institucionalização permanente, ele trabalhava como auxiliar de
pedreiro e minhocultura e tem no seu prontuário ambas certificações com seus respectivos
documentos comprobatórios. Quando iniciei o campo, fui alertada, sem exceções, por
profissionais de saúde, por outros internados e também por profissionais da limpeza, que
deveria “ficar esperta” com ele, pois ele era “agressivo” e “perigoso”.

Ele tinha um corpo rígido, parecia que tinha os membros pesados, pois se
movimentava bem lentamente. Me diziam que ele não falava e ele era, visivelmente, muito
medicado. Sempre que o via, ele estava com a boca aberta e babando muito, bem mais que os
outros moradores. Tinha um olhar profundo, olhava demorado, mas não falava nada. Ele
sempre estava em movimento, usava uma touca preta por baixo de um boné vermelho, calça
jeans com cinto e um moletom cor de vinho. Via ele de um lado ao outro do hospital
recolhendo entulhos, pois gosta de reciclagem e recolhe os lixos para separá-los. Além disso,
ele juntava pedacinhos de madeira espalhados pelo hospital, além de folhas e outros entulhos
e queimava-os em uma fogueira que fazia diariamente. Já no início, achei curioso vê-lo ali,
sempre em movimento, nunca falando nada, mas se comunicando ativamente pelo olhar com
os outros pacientes.

Como fiz o trabalho de campo durante a pandemia e passava o dia todo de máscara,
passei a ressignificar minhas próprias maneiras de construir contato e o olhar foi, sem dúvida,
uma ferramenta muito utilizada. Muitas vezes presenciava situações de corpos em condições
inexplicáveis, roupas sujas, cheiros fortes e secreções à vista. Sempre me recordava dos
escritos de Basaglia, que eu subentendia (erroneamente), serem relatos antigos, mas fui
descobrindo que muito do que era visto na década de 1980 pelo psiquiatra, podia ainda hoje
ser encontrado nos hospitais catarinenses.

Quando entramos num hospício, porém, o cheiro insuportável dos pavilhōes


fechados (o cheiro típico do manicômio), a balbúrdia das vozes, a baba e a
saliva na boca dos internados, as camisas cinzentas, as cabeças raspadas -
esses são os elementos da paisagem da doença mental no mesmo país onde
se encontram a Galeria dos Uffizzi, Portofino, Capri, Veneza e Roma
(BASAGLIA, 1985, p. 15).

Naquele hospital catarinense, presenciava moradores em crises de sofrimento


gritando, retirando as roupas, chorando e pedindo ajuda. Via-os também resistindo
cotidianamente, evitando certos medicamentos, recusando comidas que não gostavam,
reclamando dos cortes de cabelo obrigatórios, entre outras tantas situações. Buscava, a partir

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da troca de olhar, construir caminhos para me comunicar com eles naqueles espaços
limitantes. Como a máscara cobria meu rosto, as expressões dos olhos e sobrancelhas foram
fundamentais, pois era aquela a janela, do olhar, que foi abrindo - aos poucos - a possibilidade
de construirmos trocas, em um processo que - vale dizer - não foi nem um pouco linear.
Comecei a frequentar um alpendre do segundo pavilhão onde três outros moradores
passavam o dia, ora conversando, ora fumando um cigarro ou apenas esperando a próxima
medicação ou a próxima alimentação. Profissionais da limpeza também passavam seus
intervalos ali e era comum vê-los sentados com esses mesmos moradores. Os três foram, sem
dúvida, meus informantes mais ativos na primeira instituição, eles me ensinaram sobre o
hospital e foram eles que me apresentaram aquele paciente “perigoso”, a partir de suas
próprias perspectivas, já que eu o conhecia apenas a partir da perspectiva dos profissionais,
como um homem “imprevisível”.

Ainda não citei, mas dentro do hospital tem uma moeda de troca particular que é o
cigarro. As trocas funcionam da seguinte forma: se você pegar um cigarro emprestado deverá
devolver dois cigarros e, se você pegar um maço de cigarro completo emprestado, ou como
eles chamam uma “carteira”, você deverá pagar de volta para quem emprestou uma carteira e
meia. A regra parece funcionar bem, sempre vejo os intercâmbios de cigarros entre os que
fumam mais rápido e querem mais cigarros e os que guardam para barganhar depois.

O morador “imprevisível” é um desses residentes que preferem guardar cigarros para


emprestar e, nessa toada, ele acumula muitas carteiras de cigarro que ficam guardadas na sua
cabeceira da cama, trancada por uma chave que ele carrega pendurada no pescoço. Ele
distribui os cigarros conforme são solicitados, mas não perdoa dívidas. Certa vez, um
morador pagou apenas metade da sua dívida, o que causou uma perseguição, pois ele queria
receber os cigarros de volta. O morador devedor não conseguia ir para o refeitório sozinho,
faltou ao barbeiro e não queria sair do quarto, pois jurava que já tinha pagado toda a sua
dívida. O residente “perigoso” passava por nós e parava o olhar no morador devedor, como
forma de cobrar a dívida. Ele não dizia uma palavra, só ficava em pé, na frente do morador,
olhando para ele. Os profissionais diziam não saber o que fazer, pois a tensão do ambiente
estava aumentando e ele, possivelmente, logo partiria para agressão. Os outros moradores já
estavam se envolvendo e, como ele não falava, ninguém conseguia descobrir quantos cigarros
ele queria para perdoar a dívida.

Como o clima não era nada propício, não tentei me comunicar com ele, pois estava
seguindo as recomendações que me foram dadas. Um dia, na porta do refeitório, um morador

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estava com a touca cobrindo um dos olhos e ofereci para ajudá-lo a arrumar, ele aceitou. Ao
meu lado, sem que eu percebesse, estava o morador “perigoso”, com a touca também
cobrindo os olhos e o boné mal posicionado na cabeça. Por impulso, ofereci para arrumar os
acessórios dele e tive como resposta um rígido balançar de cabeça, para cima e para baixo,
indicando um “sim”. Naquele momento me senti aflita, poluída pelos pensamentos que foram
compartilhados desde que cheguei ao hospital, sobre seu alto grau de periculosidade. Foi ali
que me dei conta de que deveria desenvolver uma nova habilidade, pois precisava encontrar
meios seguros de descobrir o que meu campo me revelaria e não queria demonstrar qualquer
sentimento negativo, como o medo, ao fazê-lo.

Respirei fundo, retirei lentamente o primeiro boné do morador, confirmei se ele queria
mesmo minha ajuda e ele confirmou novamente balançando rigidamente a cabeça, tirei então
a touca e reposicionei-a, com as pontas dos dedos e o coração inevitavelmente pulsando forte.
Ele ficou parado, só observando e, como não falava, aguardou em silêncio. Depois de arrumar
a touca, posicionei o boné no topo de sua cabeça e ele permaneceu imóvel, apenas me
olhando no fundo do olho. Terminei e entramos no refeitório. Essa situação começou a se
repetir e, com a frequência das minhas visitas, comecei a encontrar mais com ele, que nunca
me cumprimentava, mas sempre aparecia com a touca cobrindo os olhos e o boné prestes a
cair.

Descobri depois que ele tomava chimarrão todos os dias e, uma vez, quando um outro
morador estava me mostrando algumas fotos, ele encheu a cuia com água quente e me
ofereceu, apontando para ela. Eu disse que não podia retirar a máscara, mas agradeci a
gentileza. Comecei a explorar o olhar, que era a única ferramenta disponível e, quando o via,
piscava um dos olhos e, por baixo da máscara, sorria. Ele nunca me respondia, era como se
não me visse. Continuei cumprimentando-o quando o via e piscava para ele com um sorriso
no rosto, como numa espécie de brincadeira. O silêncio continuava, assim como meu campo.
Eu sempre o via na porta de entrada do refeitório, mas não ia atrás dele para conversar,
normalmente deixava que os moradores me chamassem antes de me aproximar.

Um dia, estava sentada na frente do refeitório conversando com um outro morador, já


fazia três meses que estava indo ali e, de certa forma, eles já estavam acostumados com
minha presença, vinham me cumprimentar, abraçar, mexiam no meu cabelo, faziam piadas,
entre outras coisas que me faziam sentir muito acolhida naquele ambiente. O morador
“perigoso”, como sempre, estava sentado no chão, sozinho, segurando os joelhos e olhando
para frente. Aquele dia não pisquei pra ele, pois os outros moradores estavam requerendo

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muita atenção e estávamos conversando bastante. Em determinado momento, quando me
distraí da conversa, por alguns segundos, e olhei para sua direção, notei que estava me
encarando e, para minha surpresa, reparei que ele estava com um dos olhos fechado, travado,
formando uma piscadela! Quando olhei para ele, fiquei sem acreditar, ele estava -
definitivamente - tentado se comunicar comigo.

Pedi então para me sentar com ele, com a cabeça bem rígida e pesada, ele fez um sinal
afirmativo e me sentei no chão, ao seu lado. Perguntei seu nome, ele olhou para mim e o
disse, completo, com o sobrenome. Parei por alguns segundos sem entender, perguntei então
sua idade, ele me disse que tinha 55 anos e que nasceu dia 25 de dezembro de 1967. Não
acreditei no que se revelava à minha frente, só conseguia pensar: Por que me disseram que ele
não falava? Por que só ouvi a voz dele depois de meses no hospital? Fui mais a fundo,
perguntei de onde ele era, quanto tempo estava ali, sua comida preferida e o que ele gostava
de fazer. Ele respondeu às perguntas sobre sua vida, mas não respondeu nenhuma questão
sobre suas preferências, para essas, ele só dizia: “não sei”.

Disse para ele que tinha gostado de ouvir sua voz, que aquela era a primeira vez que o
via conversando e ele soltou uma gargalhada. O morador tinha escolhido, dentro da sua vida
institucional, não falar. Perguntei se ele gostava de jogar bocha e ele disse que sim, em
seguida perguntei se ele gostaria de jogar algum dia e ele se levantou. Entendi ali que
jogaríamos bocha naquele momento, antes do café da tarde. Fomos até o campo, ele escolheu
a cor das suas bolas e as separou das minhas; sem dizer nada, pegou a primeira bola e
lentamente a arremessou, em seguida foi arremessando as outras com muita precisão e,
quando terminou, apontou para as minhas, demonstrando que eu deveria jogar. Em certos
momentos, a sua baba descia antes que seu corpo e encontrava a bola antes de suas mãos,
fiquei pensando na quantidade de medicação que ele recebia. No final, ele contou os pontos e
disse que tinha ganhado. Recolheu as bolas novamente, separou-as e organizou-as para a
próxima rodada. Assim ficamos até que a enfermeira começou a chamar para o café,
voltamos para o refeitório e, desde então, ele nunca mais falou comigo.

O convite pela piscadela foi um despertar e representou um daqueles acontecimentos


que começam a dar sentido para o trabalho etnográfico. Agora eu sabia que ele recordava
suas informações básicas, sabia há quanto tempo estava ali e de onde tinha vindo, e, ainda,
que falava, apenas escolhia não se comunicar naquele ambiente no qual vivia. Aquela troca
foi rápida e nunca mais se repetiu, mesmo com meu campo continuando e mesmo vendo-o
todos os dias. Anotei no meu diário: “[...] tenho me dado conta que a comunicação com os

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moradores leva tempo, normalmente quando vejo um morador muito debilitado e
estereotipado é difícil imaginar como vamos nos comunicar logo nos primeiros encontros,
tem que ter paciência, o tempo aqui dentro é lento” (Diário de Campo, 27 de outubro de
2021). E, além de lento, percebi também que a comunicação não seria ali construída de forma
linear, eu deveria conquistar e cultivar espaços que a permitiam acontecer e, muitas vezes,
esses espaços não se repetiriam.

Etnografar um hospital psiquiátrico requer também que entremos na sua própria


temporalidade - única e singular - e também que saiamos do estado cafeinado da vida fora dos
muros, para adentrar universos outros, ora inacessíveis e ora tão disponíveis. Mais que tudo,
requer tempo e o desenvolvimento da habilidade de saber esperar, principalmente esperar pela
próxima “atividade”, que normalmente é a medicação ou a alimentação. A espera é um estado
diferente, ela leva mais tempo que as atividades convencionais, pois cinco horas esperando,
por exemplo, pode trazer a sensação de um dia todo.
Além disso, ela traz a sensação de um passado no presente, de viver em uma ausência
de movimento e em um silêncio que parece parar o ponteiro do relógio. Talvez por isso um
outro morador, que tem 56 anos e está institucionalizado há 36, foi tão categórico quando me
perguntou sobre o ano que estávamos. Disse para ele que estávamos em 2021 e ele logo me
perguntou se já era 2021 em Porto Alegre também. Eu disse que sim e ele respondeu: “Penso
que quem não trabalha aqui, quem não vem aqui no hospital, deve estar em 2028, 2029, por
aí…” (Diário de Campo, 10 de novembro de 2021).
A fala dele é muito reveladora, pois expressa uma noção de diferença de
temporalidade entre a vida dentro e fora do hospital, ilustrando em palavras o que eu sentia
desde o primeiro dia que tinha chegado naquela instituição. Embora estivéssemos todos em
2021, a institucionalização trazia a sensação de passado e de retrocesso e a vida institucional
também fomentava a ideia de parar no tempo, afinal, eles viviam a mesma vida há décadas e,
embora em condições melhores que quando chegaram, ainda assim viviam em um ambiente
disciplinador que não trazia possibilidades outras para suas existências.

Não foi à toa que trouxe para este tópico esses casos singulares. Nas cenas anteriores,
por exemplo, podemos ver a negociação e a comunicação desenvolvendo-se de formas
ímpares. No primeiro caso, ela aconteceu rapidamente e sem exigências, uma vez que o
morador aceitou prontamente que eu o acompanhasse nas suas caminhadas e dali em diante
passou a compartilhar seus saberes comigo. Já no segundo caso, nossa troca foi apenas
através do olhar e do forte aperto de mãos, em uma vida que pulsava em silêncio. Por fim, no

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terceiro exemplo, a relação com o morador, além de revelar uma negociação em movimento
contínuo, também mostrou que essa negociação, por si, não é linear e, portanto, o espaço para
que ela ocorra pode ser dado, conquistado e/ou renegociado.

Com alguns moradores precisei repetir o processo de negociação diversas vezes e, se


ficava dois dias sem ir ao hospital, como em um fim de semana comum, já precisava
recomeçar todo o caminho de construção de comunicação novamente. Para outros residentes,
a minha presença já era suficiente para que a nossa comunicação fosse viável e, quando me
viam, já vinham até mim ou me convidavam para ficar com eles. Esses exemplos foram
reforçando, na própria experiência etnográfica, a ideia da importância de sabermos
desenvolver estratégias de comunicação em campo de forma singular, vendo-o como um
espaço geral, nesse caso um hospital, mas composto por singularidades não passíveis de
generalizações.

É por esse motivo que gosto de pensar na comunicação do e no campo, que além de
ser composta por escolhas é também feita de negociações e, obviamente, isso não é uma
particularidade da etnografia de hospital. Como diz Amit, "[...] é a circunstância que define o
método e não o método que define a circunstância" (WIND, 2008, p. 87). Exatamente por
isso é importante pontuar que seguir os fluxos que o campo revela é uma tarefa
imprescindível que requer muita flexibilidade, pois nossas perguntas podem ser
transformadas, a qualquer momento, assim como todo o direcionamento da pesquisa, uma vez
que o campo vai se revelando também no cotidiano.

Além disso, tal como salienta Wolcott (2005, apud WIND, 2008), o trabalho de campo
está muito vinculado à intenção e ao estado mental de quem pesquisa e não pode ser resumido
à presença desse pesquisador em um local específico. Entretanto, na mesma proporção, ele
está também emaranhado pelas intenções da própria comunidade estudada, que não é, como
dito anteriormente, passível de generalizações, mas é composta por diferentes sujeitos.
Devemos, portanto, estarmos abertos e sensíveis à vida das pessoas, suas experiências,
sentimentos, sociabilidades, entre outros (HASTRUP, 2003, apud WIND, 2008, p. 86).

A negociação é também contínua e renegociar é um imperativo, pois cada contato


pode se desenrolar em inúmeros imprevisíveis. Talvez por isso eu goste tanto de insistir na
ideia do “pisar em ovos”, essa sensação terrível e ao mesmo tempo potente, que me fazia
sentir que a qualquer momento poderia agir de alguma forma que não mais viabilizasse minha
presença ali. Levou - mais uma vez - tempo para que eu entendesse que o campo pode se
fechar tanto quanto se abrir e que esses dois direcionamentos, normalmente, não são fixos e

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nem podem ser resumidos em binaridades, suas fronteiras se completam e se complicam
muito mais que se excluem. Essa sensação foi potencializada pelos eventos que me vi
presenciando situações não narráveis e sentia que saber o que eu havia descoberto poderia ser
motivo para que impedissem a continuidade do trabalho. O que eu não sabia, ainda, era que
aquelas situações eram tão rotineiras e comuns, que não eram vistas como eu as via, eram
vistas pelo campo como casos normais que acontecem cotidianamente dentro de um hospital
psiquiátrico.

2.3.3) Como etnografar situações de violência?

“[…] metade de mim é o que ouço, mas a outra metade é o que calo,
metade de mim é lembrança do que fui, mas a outra metade não sei.”
(Oswaldo Montenegro)

Diferentemente dos anteriores, já começo a escrita deste tópico com uma resposta à
pergunta que ele leva no título, pois não precisamos nos delongar para dizer que não se pode
somente etnografar sobre situações de violência, nós também as vivemos. Tal como escreveu
Wind (2008), nós não somente observamos, mas também testemunhamos o que acontece, a
partir da interação, da receptividade às experiências e dos eventos em curso. Todavia, não
imaginei que seria a partir da violência que eu passaria a entender a diferença metodológica
singular da etnografia. Eu poderia ir ao hospital, fazer algumas entrevistas com moradores ou
com profissionais e depois me debruçar sobre os dados encontrados. Ou, eu poderia acessar
os prontuários médicos, fazer entrevistas com familiares, ex-moradores, profissionais e
ex-profissionais e fazer outras pesquisas tão fundamentais quanto esta, entretanto, percebi que
somente acessaria o que eu precisava acessar, naquele ambiente tão fechado e coercitivo, a
partir da etnografia. Dito de outro modo, antes de fazermos observação participante, ou
participação observante, ou o próprio trabalho de campo, nós etnógrafos vivemos as situações
da pesquisa, o que nos faz deparar com situações que, de outras formas, provavelmente não
encontraríamos.
Isso ficou muito claro quando comecei a presenciar situações que me fizeram
questionar a frequência daquelas visitas e a possibilidade ou não de mantê-las, pois estava
presenciando muitas situações que expunham a vulnerabilidade tanto dos pacientes, quanto a
minha. Também questionava muito meu papel ali, quando encontrei um trabalho que - de
certo modo - me guiou nas incompreensões que encontrava, ao trazer que “Ao colocar o
sofrimento e a insatisfação dos pacientes no contexto das realidades da enfermaria, a

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etnografia permite uma compreensão mais profunda do que, por exemplo, entrevistas com
pacientes e suas famílias fora do hospital” (LONG, HUNTER, GEEST, 2008, p. 76). Percebi
que antes de descobrir o que poderia ser feito, eu deveria documentar, no Diário de Campo, o
cotidiano das alas, com o intuito de desenvolver uma compreensão mais profunda sobre a
própria institucionalização. Mesmo com esse objetivo em mente, era comum que eu voltasse
do trabalho de campo sentindo muita frustração, meu corpo chegava incompleto em casa e me
inundei em uma situação de muita incompreensão, angústia e desesperança.
Vale abrir um parênteses para dizer que nesta pesquisa, o conceito de violência, visto
como polissêmico, tal como constatado pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira
(2008), é pensado “[...] especialmente em sua perspectiva enquanto insulto moral somado à
produção de comportamentos de sujeitos atravessados por determinadas práticas
institucionais” (BANDEIRA, DEL SARTO, 2021, p. 501). O autor traz dois conceitos
valiosos para falar sobre o tema, o “reconhecimento” e o “insulto moral”, pois a ausência do
primeiro, numa interação social, perpetua uma negação de identidade à pessoa que está sujeita
às multiplicidades da violência e a existência do segundo pode ser vista como algo que
escancara duas características principais da violências: “(1) trata-se de uma agressão objetiva
a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e, (2) sempre
implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro.” (OLIVEIRA, 2008, p. 136).
Além disso, na institucionalização, a violência, em si, pode ser definida como uma
experiência relacional, vinculada também aos processos políticos e enviesada por questões
culturais e sociais. Então, para abordá-la, devemos reconhecer sua dimensão ativa, ou seja,
vendo o que produz, quais relações transforma e como essas transformações ocorrem (DAS,
2020).
Nesse sentido, essa escolha de compreender a violência no cotidiano não nos ausenta
da responsabilidade de reconhecer os processos sociais nos quais ela está inserida, pois a
partir da experiência humana, podemos também revelar as forças sociais que compõem
nossas vivências. Dentro dos hospitais, por exemplo, as violências emergem de diferentes
formas, tanto físicas quanto morais, como através das narrativas sobre o grau de
periculosidade dos pacientes ou sobre seus diagnósticos, que parecem compor as prontas e
consolidadas justificativas para as suas ocorrências. Tal como escreveu Basaglia, “[...] dentro
de uma instituição psiquiátrica existe uma razão psicopatológica para cada acontecimento e
uma explicação científica para cada ato” (1985, p. 122).
Pois bem, voltando ao trabalho de campo, os dias que se seguiram me fizeram
questionar tudo à minha volta, dentro e fora do hospital, pois eu não sabia como mobilizar

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pensamentos para refletir sobre aquele ambiente que estava inserida. Chegou uma fase da
pesquisa na qual eu não queria anotar no Diário quando chegava em casa, pois aquilo
significaria reviver as situações que estava presenciando. Escrever tornou-se um momento
doloroso e, aos poucos, minha busca desmedida por acumular dados foi sendo podada por
uma sensação de incompreensão.
Vale lembrar que essa não foi a primeira vez que trabalhei com etnografia de hospital
psiquiátrico e que, devido à experiência que já tenho no campo, acabei por naturalizar
também muitas situações que seriam indigeríveis para uma primeira vista. Entretanto, ao
adentrar a ala da segunda instituição que fiz pesquisa agora no doutorado, precisei começar
quase do zero minha adaptação àquele espaço, pois ainda não tinha presenciado um ambiente
tão limitante, fechado e coercitivo. Para exemplificar, vamos observar um caso que foi
derradeiro para tudo o que veio depois, escrevi no Diário de Campo:

Finalmente chegou a tão esperada Páscoa! Estávamos ansiosos por esse dia e
passamos a semana toda conversando sobre os possíveis cardápios, já que a
comida iria vir de um restaurante de fora do hospital! Uma moradora me
recebeu todas as manhãs dessa semana falando sobre o fim de semana,
dizendo que teria almoço de Páscoa e que nós iríamos comemorar com
“comida de restaurante” e “ovo de chocolate”. Quando cheguei ao hospital,
fui direto para o refeitório, pois os moradores estavam desde cedo na porta,
esperando pelo almoço especial. Quando a comida finalmente foi liberada,
os moradores entraram no refeitório e se sentaram cada um nos seus
respectivos lugares […] e ficaram esperando seus pratos de comida. Tinha
maionese, churrasco, arroz e farofa… macarrão também… parceria muito
bom… Uma outra moradora comeu rápido e pediu “mais um pouquinho” e a
enfermeira pegou seu prato e colocou um pouco mais de comida para ela. A
moradora que estava ansiosa por aquele dia viu e pediu também, mas não
deram para ela nem para mais ninguém… Perguntaram “Por que ela queria
mais comida se já tinha comido um prato inteiro?”. Ela disse que “Viu que a
outra moradora ganhou e queria mais um pouco também”, mas os
profissionais foram firmes em dizer que “não”, pois ela “Já tinha comido
comida suficiente”, afinal “Quem precisa de dois pratos de comida?”. Ela se
levantou e foi sentar no único banco que tem em um pequeno quintal na
porta do refeitório e começou a chorar muito alto… ninguém foi até ela… as
lágrimas escorriam e o seu sofrimento era evidente, mas ela não foi acolhida.
Então começou a gritar, dizendo que só queria “mais um pouquinho de
comida”, mas ninguém parecia se importar. Fui até ela e tentei conversar,
mas o choro dela abafava qualquer tentativa minha de acalmá-la, perguntei o
que tinha acontecido e ela me contou o que eu já tinha observado, que uma
moradora ganhou dois pratos de comida e que ela ganhou apenas um. Disse
também que a enfermeira estava “ficando ruim para ela”. A enfermeira foi
até nós e, em tom de ameaça, pediu para ela parar, caso contrário ela seria
levada para a quinta [uma outra ala ainda mais punitiva que os moradores
temem muito]… Ela continuou chorando e as ameaças foram aumentando, o
que a fazia chorar ainda mais. Outra enfermeira chegou, olhou para ela e
disse: "Ela tá sem controle, vai ter que tomar uma injeção”. A primeira
enfermeira tentou mais uma vez acalmá-la com ameaças dizendo que tudo

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bem, poderia dar mais um pouco de comida para ela, mas neste caso ela
ficaria sem o ovo de Páscoa. Ela chorou ainda mais, repetindo que “só queria
um pouco mais de comida”. Como o choro estava alto demais, a enfermeira
resolveu que a melhor opção seria a injeção e terminou a cena dizendo que
ela ficaria sem chocolate de qualquer jeito para “aprender a não fazer mais
isso”. Fiquei incrédula. Vi ela sendo medicada e aos pouquinhos o remédio
foi fazendo efeito, ela ficou calma, em silêncio, do jeito que eles queriam.
Fui embora na hora, com ânsia. Não almocei lá, nem consegui esperar as
próximas atividades, pois, quando aplicaram a injeção nela, peguei minhas
coisas e fui embora sem me despedir (Diário de Campo, 17 de abril de
2022).

Esse caso, de certa forma, escancara repetidas situações que presenciei em campo e
que fizeram parte de todas as composições desta Tese. Foi por esse motivo que, no tópico
anterior, comentei sobre a dificuldade de evitar desenvolver uma posição
“paciente-advocativa” naqueles espaços, ou seja, tomar, enquanto pesquisadora, um lado, pois
viver aquelas experiências tornou isso cada vez mais complicado. Depois daquele domingo de
Páscoa, quando voltei na segunda-feira, ainda me sentindo muito mal, a enfermeira me
recebeu como se nada tivesse acontecido, dizendo que não me viu indo embora e me
questionando por que não almocei lá, e completou dizendo: “Sobrou tanta comida!”. Percebi,
naquele momento, que o uso da injeção estava muito naturalizado e não era visto como eu o
via, para eles era mais um momento em que um paciente estava “alterado” e, para
“controlá-lo”, buscavam “ajuda” com a medicação.
Essa ocasião me lembrou das discussões sobre o eletrochoque pois, ao longo dos anos,
diferentes debates surgiram sobre os tratamentos psiquiátricos e foi comum encontrar
profissionais defendendo seu uso e usando pesquisas científicas para comprovar sua eficácia.
No entanto, independente de concordarmos ou não com seu uso, podemos fazer um exercício
de pensar como seria - nesses ambientes que já usam cotidianamente a injeção para “educar” -
se esses profissionais tivessem esses equipamentos disponíveis. Como eles seriam usados
nesses espaços que não têm sujeitos que podem escolher se querem ou não este tipo de
tratamento? Além disso, toda e qualquer tentativa de conversa sobre o uso da injeção para
“educar” era prontamente justificada. Quando questionei sobre o ocorrido no dia do almoço,
querendo entender o que tinha acontecido na perspectiva dos profissionais, eles me disseram
que ela poderia ficar “perigosa” se continuasse chorando daquele jeito e, para evitar, era
melhor que recebesse uma medicação.
Outra situação também se repetiu muitas vezes, com uma moradora que tomava banho
e lavava os cabelos todos os dias pela manhã e, como ela é um pouco mais independente, se
lavava antes do banho coletivo e depois precisava esperar até todos os moradores tomarem

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banho para ter seu cabelo penteado pois, segundo a cuidadora, era perigoso deixar eles com
um pente. Alguns dias, essa espera demorava, pois antes do banho coletivo a equipe tomava
café da manhã e só depois voltava para esse serviço. Perdi as contas de quantas vezes a vi
chorando, com o cabelo pingando e todo bagunçado, pois queria penteá-lo. Eles sempre
respondiam que não iam pentear o cabelo dela rápido, porque ela “precisava aprender a
esperar”. Quando o choro ficava mais intenso era preparada uma injeção, para “ajudar ela a se
acalmar”. Essas situaçōes com injeções apareceram muitas vezes no Diário de Campo:

[...] [o morador] me cumprimentou algumas vezes… estava circulando pela


ala esperando pelo banho. Foi bem querido, falou “Olá, Sa-bri-na”, como ele
costuma falar e me deu a mão para cumprimentá-lo… mas, quando as
técnicas passaram pela porta, ele a bateu bem forte, fazendo um grande
barulho… a técnica pegou ele pela mão, falando “vem bebê, vem com a
mamãe… não não bebê… vamos ficar bonzinho né… vamos ficar
mansinho?” Ele sabia que iria receber a injeção e tentou não ir, mas ela
continuou conduzindo ele até a cama, o deitou, o cobriu e disse: “Agora
você vai ficar mansinho…”. (Diário de Campo, 4 de abril de 2022).

Alguns dias antes, com outro morador, uma situação parecida aconteceu, escrevi
também no Diário de Campo:

Uma técnica começou a chamar outros técnicos, ela parecia um pouco


assustada… quando o enfermeiro chegou, ela disse que um morador quase a
agrediu e queria agredir também outra paciente… decidiram que teriam que
contê-lo… a técnica foi correndo na enfermaria preparar a injeção… voltou
com prazer, parecia, para aplicar… amarram seus braços e pernas na cama,
enquanto ele pedia para não fazerem isso… deram a injeção… de novo… de
novo essa cena… (Diário de Campo, 6 de abril de 2022).

Aquela cena me transportou para Basaglia, novamente, quando ele descreve algumas
situaçōes muito semelhantes, ainda na década de 1980:
Por mim, eu partilhava da opinião da maioria sobre os Hospitais
Psiquiátricos Provinciais: devido a experiências superficiais vividas no
passado, estes me pareciam algo entre prisão e o claustro - locais insólitos,
despertando o prazer sutil da violação. (1985, p. 14).

Vivenciando aquelas situações, acabei por entrar em novas questões, pois estava
investigando qual seria a melhor forma de trabalhar aqueles dados que estava presenciando.
Percebi, a partir dessas cenas, que seria impossível desvencilhar uma abordagem
“advocativa” daquele campo, numa tentativa de neutralidade. Desde as primeiras cenas de
violência presenciadas, agi então de diferentes formas tentando encontrar saídas. Tentei, no
primeiro momento, acolher quando via um morador em sofrimento, mas foi me indicado para
não fazer isso para eles não se “acostumarem”:

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Aumentaram a dose de remédio dela [moradora], que estava chorando desde
cedo e não queria andar sozinha pois dizia que estava tonta. Começaram a
lavar o chão da ala, e ela me pediu ajuda para caminhar até o Centro de
Convivência, já que o chão estava molhado e liso. Fomos juntas, de mãos
dadas, até que uma técnica de enfermagem chegou e disse que era para
tomar cuidado, pois ela era muito solicitante e se eu a ajudasse ela iria se
acostumar com aquilo, pois ela fazia isso pra chamar atenção. Uma outra
técnica nos viu e disse: “Tá fazendo isso porque ela tá te carregando, né?”
(Diário de Campo, 30 de março de 2022).

A sequência de desconsiderações com a moradora foi ficando cada vez mais grave, ela
passou a chorar quase todos os dias, tremia muito e foi ficando cada vez com mais medo de
caminhar. Presenciei duas quedas dela no refeitório, que foram vistas, também, como uma
maneira que ela tinha encontrado para “chamar atenção”. No dia que presenciei uma das
quedas, escrevi no diário:

Hoje no almoço foi uma verdadeira cena de horror: primeiro uma moradora
recebeu o prato sem arroz e feijão, quando questionou responderam que era
porque ela tinha que fazer dieta, pois estava "acima do peso”. Os
profissionais que decidiram isso, pelo visto ela não tinha participado da
decisão. No meio do almoço, a moradora que eles chamam de “solicitante”
caiu no chão, com tudo, e ficou deitada de bruços. Uma técnica fingiu que
não viu e a outra só disse: “Pra que isso? Pára com isso! Levanta!”. Quanta
violência… quanto terror… não ajudaram ela a levantar… ela chorou
tanto… eles falaram que “ela quer ser o centro das atenções”, mas ela já não
parecia muito bem desde cedo, tremia muito e chorava… muito triste…
(Diário de Campo, 28 de março de 2022).

Na dia da qualificação desta Tese, a professora Sônia Maluf, que participava da banca,
retomou o conceito de mulheres poliqueixosas (OLIVEIRA; JORGE, 2007, p. 96), destinado
às pacientes mulheres que relatam diferentes queixas e experiementam diversos sintomas,
mas não conseguem expressar seus sentimentos, elas “[...] não conseguem demonstrar os
problemas que são determinantes de sinais e sintomas.”. Além do mais, o caráter terapêutico
daquelas atitudes era muito óbvio para os profissionais que, quando me viam
presenciando-as, reforçavam “que fazia parte do tratamento”, “que era assim mesmo”, que
“tinha que ser assim”, que “eles são complicados e precisam ser tratados assim”, etc.
Os profissionais pareciam reproduzir aquela estrutura punitiva de cuidado
mecanicamente e, quando algum deles questionava aquelas cenas, era prontamente silenciado
pelos outros. Marquei uma conversa com um profissional que ocupava uma posição de poder
no hospital, dias antes de terminar a pesquisa, para contar sobre as situações que estava
presenciando, mas ele também justificou todas as cenas a partir do diagnóstico de cada
paciente. Passei então, em alguns casos, a simplesmente ir embora do hospital quando algo

108
ocorria, pois não queria ter que presenciar em silêncio aquelas atitudes e “escolhi”, também,
não registrar tudo no Diário de Campo, já que havia dias que não eram digeríveis.
Obviamente que, como estava inserida em um ambiente extremamente coercitivo, não
estava isenta de viver aquela violência e experienciei também outras duas situações limites.
Olhando para trás agora, quase um ano depois, vejo que foi muito pouco perto da quantidade
de dias que passei nos hospitais, mas de certa forma elas também moldaram esta pesquisa.
Escolhi expor apenas uma delas aqui, já que depois deste tópico avançaremos para investigar
a sociabilidade dos moradores e as questões da institucionalização permanente, e não quero
me delongar mais nesses impasses metodológicos.
A situação limite aconteceu em um dia que estava com outra moradora, na grade que
separa a ala de moradores crônicos da ala de pacientes agudos, aqueles que estão internados
por um curto período de tempo no hospital. Estávamos esperando alguém passar por ali, pois
ela queria pedir cigarros para os pacientes que estavam internados temporariamente. Como
ninguém passou, decidimos voltar para o Centro de Convivência, mas, no caminho, cruzamos
com um morador que já não mais socializa e que mora na ala com eles.
Ele tem 58 anos de idade e está institucionalizado há 37 anos, raramente verbaliza,
nunca o vejo conversando ou interagindo com ninguém e é extremamente medicado. Tudo
aconteceu muito rápido, bastou que cruzássemos o seu caminho para que, instantaneamente,
ele olhasse dentro dos meus olhos e, em segundos, lançasse com força e precisão um murro
no meu rosto. Ele acertou meu nariz, meus óculos caíram no chão e, quando voltei dos
segundos de incompreensão, confusa com o que tinha acontecido, corri para pegar os óculos
antes que alguém da equipe visse, entretanto, não fui ágil o suficiente. Vieram pegá-lo, deram
injeção e o trancaram em uma minúscula salinha com grades que fica dentro da ala. Aquilo
me avassalou, fiquei a manhã toda dizendo que estava bem, que só tinha sido um acidente,
mas eles foram firmes na punição. Da salinha, ele chorava e pedia pra sair, perguntando
repetidas vezes: “Já posso sair?”. Aquilo reverberou em mim a semana toda, escutava
repetidas vezes, no meu pensamento, aquele sofrimento e verbalização do morador que, até
então, não costumava falar.
Outros moradores vieram conversar comigo, me contaram que também apanham
muito dele, que devemos ter cuidado, pois ele está “doente”. Perguntei então o que fizeram
quando apanharam e um deles me respondeu: “Não fiz nada… não é ele que faz isso… é a
doença [apontado pra cabeça], é a doença dele que faz ele fazer isso… não é ele… o que que
é a doença, né? Vem dos nervos… doença mental… não falo nada porque ele tá doente.”
(Diário de Campo, 11 de abril de 2022). Aquela sabedoria, vinda daqueles fragmentos do

109
cotidiano, era a força propulsora que mantinha a pesquisa em curso. Desenvolvi um medo
frequente e, quando o morador que me agrediu me via, vinha correndo ao meu encontro e eu
tinha que andar de costas até o técnico de enfermagem mais próximo para evitar que ele
tentasse me agredir. Ele ficava me observando o tempo todo e eu o observava também. Os
moradores me alertavam quando ele estava se aproximando e tudo acontecia de forma muito
rápida. Pensei em não continuar a pesquisa, mas continuei. Eu me sentia impotente, mas não
encontrava espaço para agir diferente, o espaço era muito violento e obviamente as pessoas
que viviam ali reproduziam essa violência. Não sabia o que ele tentava comunicar com
aquelas ações repetidas e não tinha um espaço que propiciasse o entendimento disso.
Além de estar sujeita às violências do ambiente, eu também não tinha poder de fala,
assim como os moradores, e nem meu olhar de desespero, nem minha presença eram
suficientes para interromper as situações de violência que ali aconteciam e não havia o que eu
pudesse fazer para impedir que aqueles momentos, rotineiros, deixassem de se repetir. Mais
uma vez, encontrei em Basaglia uma sábia passagem sobre essa questão, relacionada a
profissionais que passam a investigar essas instituiçōes:

É muito simples para o establishment psiquiátrico definir nosso trabalho


como desprovido de seriedade e de respeitabilidade científica. É um juízo
que nos lisonjeia, pois finalmente nos identifica com a falta de seriedade e
de respeitabilidade desde sempre atribuída ao doente mental e a todos os
rejeitados (1985, p. 11).

Escolhi ir registrando como podia e como conseguia, o que não deixava de me inundar
de questões sem respostas, como nesta passagem do diário:
Hoje eu tive vontade de desistir, de novo. Escrevo no diário com náusea,
voltei do hospital horrorizada. Que horror aquelas pessoas vivem.. que saída
elas têm? O que eu posso fazer? Eu consigo fazer algo? Como? Preciso
encontrar um meio. O morador que me agrediu não tem vindo até mim mais,
os outros moradores não me deixam sozinha para evitar que a gente se
encontre, também fico pensando como agradecer eles pela gentileza de me
receberem com tanto cuidado e carinho, me ensinam tanto… (Diário de
Campo, 17 de abril de 2022).

Sobre minha relação com os profissionais, quanto mais eu visitava o hospital, mais
acostumados ficavam com minha presença e mais agiam sem me notar. A pesquisadora
Goodwin et al. (2003) passou também por uma situação parecida e relatou no seu trabalho os
desdobramentos na busca de entendimento do porquê de alguns anestesistas terem escolhido
conduzir uma conversa particular na sua frente, enquanto ela estava em campo. Ela conta que
tinha certeza de que eles sabiam que ela estava ali, mas queria entender porque escolheram
fazer algo que supunha-se ser privado na sua frente. Foi quando encontrou o trabalho de

110
Burgess (1984) que escreveu sobre a influência da presença do gênero na pesquisa de campo,
que aquilo começou a ficar mais evidente, ela então se questionou: “Minha aparente
invisibilidade poderia ser uma consequência de ser uma pesquisadora mulher e inexperiente?”
(p. 574). Pensei no meu campo nesses termos: ‘Será que o fato de eu ser uma pesquisadora
mulher, relativamente jovem, aparentemente inexperiente, criou essa ideia de inexistência da
minha presença ali?’ Será que se essa pesquisa fosse desenvolvida por outro pesquisador,
mais experiente em termos de idade, ele teria presenciado as cenas que vivi? E indo mais a
fundo, por ser a Antropologia um trabalho “não convencional”, será que minha presença ali
era mais vista em outros campos que não no profissional?
Além disso, com o passar dos dias em campo, foi ficando cada vez mais evidente o
quanto os moradores eram “despersonalizados”, ou o quanto suas condições de “sujeito” eram
negadas, uma vez que as repetidas denúncias e reclamações que faziam eram todas vistas no
plano do “delírio”. Esse é o ponto que diferencia muito a etnografia de hospital da etnografia
de hospital psiquiátrico, pois, embora em todas as instituições pessoas ocupem posições de
poder, dentro do hospital psiquiátrico os moradores são despidos de qualquer possibilidade de
negociação em relação aos seus tratamentos e, quando não o aceitam, são duramente e
instantaneamente punidos. Eles também não podem circular por outros tratamentos, pois não
têm autorização para sair dali e não são fornecidos outros recursos além do medicamentoso, o
que impede o desenvolvimento de um itinerário terapêutico, tal como definido por Menéndez
(2005), como práticas de autoatenção que um grupo social ou um sujeito utilizam para
conviver com problemas de enfermidades e mal-estares.
A baixa posição que ocupam, na hierarquia social e médica, além dos recursos
inadequados dos hospitais, tornam a possibilidade de negociar seus cuidados quase
impossível (MULEMI, 2008, p. 117). Atrelado a isso, está o sentimento de dependência,
criado cotidianamente, principalmente pelos profissionais, que também é usado para
fortalecer essa estrutura em um cenário que, antes de tudo, faz com que os pacientes
restrinjam sua própria agência. Depois de internados, os pacientes podem perceber que a
hospitalização pode ser sinônimo de uma “[...] rendição involuntária, e às vezes degradante,
às pessoas que cuidam da saúde” (idem p. 124-125). Nesse movimento, ocorre algo parecido
ao que notou também o antropólogo médico Mulemi, a saber:

Os médicos e enfermeiros desempenham um papel [...] na criação da


dependência entre os pacientes. O pessoal da enfermaria, por exemplo,
define os pacientes como não cooperativos se eles forem muito inquisitivos e
tenderem a se opor a seus planos de saúde. O bom paciente, neste sentido, é

111
aquele que evita perguntas e qualquer comportamento que possa antagonizar
os provedores de saúde (2008, p. 124, tradução minha).

A “obediência” aparece como uma forma de proteção e, antes de tudo, uma forma de
evitar as punições, como a injeção ou a medicação “educativa”. Só no meu Diário de Campo,
a ocorrência de injeção como forma de punição apareceu em 22 situações e isso, talvez,
impeça que os moradores desenvolvam o que eu mais buscava, a saber: as microdinâmicas
das experiências singulares (PETITMENGIN et al., 2019). De alguma forma, a estrutura
institucional mantinha aquele modelo de tratamento ou cuidado e os agentes o repetiam. Meu
papel ali passou a ser documentar as violências que presenciava, num ambiente que
internalizava cotidianamente uma sensação de opressão. Escrevi no diário: “[…] me sinto de
mãos atadas, mas sei que não estou, é a ilusão da instituição, ela cria essa sensação na gente e
quando menos esperamos, estamos a reproduzindo” (Diário de Campo, 27 de outubro de
2021).

112
Capítulo 3: Moradores: quem são afinal?

3.1) Um pouco do envoltório, um pouco do conteúdo

[...] a filha cheira à casa e a casa cheira à filha e por isso fica difícil saber
qual é a camada exterior, o envoltório, e qual seria o conteúdo.
Juliana Leite

A literatura - quase sempre - parece saber o que diz, ou o que faz. Como tenho dito,
repetidas vezes ao longo desse costurar de ideias, a composição do que aqui apresento está
extremamente atravessada por diferentes referências e experiências. Sempre que começo uma
parte nova dos textos, recorro, além dos fichamentos infinitos das leituras bibliográficas, a um
caderno de anotações com notas de livros literários que tenho lido nos momentos de
descanso. Parece um processo milagroso, porque sempre encontro trechos que parecem
borbulhar no sentido de me impulsionar a escrever novas linhas, como numa inexplicável,
desejada e recorrente inspiração.
Nessas andanças, entre algumas linhas possivelmente desconexas para terceiros - mas
que para mim faziam muito sentido, principalmente no momento em que foram anotadas -
encontrei algumas notas sobre um livro chamado “Humanos Exemplares”, de Juliana Leite,
lido em dezembro de 2022, quando estava no estágio sanduíche e escrevendo o Capítulo 2 da
Tese. Repetindo o início deste tópico, anotei um trecho que dizia: “[...] a filha cheira à casa e
a casa cheira à filha e por isso fica difícil saber qual é a camada exterior, o envoltório, e qual
seria o conteúdo”. Embora a autora tenha escrito sobre um contexto completamente diferente,
sobre a relação de uma filha morando no exterior e sua mãe, idosa, vivendo sozinha no seu
apartamento na época da pandemia de Covid-19, não consegui traçar uma linha que dividisse
aquela descrição para o que estava presenciando no hospital.
Recompondo suas palavras, pensei que a ideia de que “os moradores cheiram ao
hospício e o hospício cheira aos moradores” parece muito presente nos hospitais públicos nos
quais esta pesquisa foi realizada, não tão somente no plano da experiência - vivida, sentida e
observada -, mas também na própria maneira que aqueles que compartilham o espaço o
descrevem. É impossível contar a história de um hospital psiquiátrico sem ao menos citar
algum fato sobre alguém que viveu ali, ou ainda vive. É igualmente difícil fazer o exercício
contrário, e contar a história de algum morador sem citar a instituição ou o histórico desse
lugar. O ato de institucionalizar, em si, parece um ato de misturar, ele faz confundir fronteiras
e age misturando essências numa incansável busca por padronizações. Falar sobre as

113
tendências da instituição não significa desconsiderar aquilo que a ela escapa, porque, embora
ela tenha essa intenção tão bem conhecida de uniformização de sujeitos e comportamentos, é
também o locus onde as tendências de extrapolá-la nascem. É, portanto, inegável que os
moradores e a instituição estejam amalgamados construindo suas histórias simultaneamente.
O psiquiatra Franco Basaglia (1985) já dizia que o indivíduo “Torna-se um corpo
vivido na instituição, pela instituição, a ponto de ser considerado parte de suas próprias
estruturas físicas" (p. 121), e é muito comum que as interpretações sobre essas relações
também sejam construídas de forma misturada, uma vez que, para um olhar rápido, iniciante
ou desatento, possa ser difícil fazer uma separação. É neste exato ponto que o envoltório
parece se misturar ao conteúdo. Conhecer os moradores além do hospital exige tempo e
paciência, coisas raras na sociedade e na ciência em que vivemos, que têm igualmente pressa
e sede por constatações na construção de múltiplos conhecimentos.
É comum pensar nisso, porque somente dois agentes continuam existindo a despeito
de todas as mudanças, reformas e aposentadorias: o próprio hospital e o grupo de moradores.
Depois de tantos anos vivendo no mesmo ambiente, vendo as estruturas do lugar serem
reformadas, observando a equipe de profissionais se aposentar e experienciando a alta
celestial de seus companheiros, os moradores continuam habitando aquele espaço. Embora
seja dito constantemente entre os profissionais que todos ali são uma grande família, no final
de cada geração só restam os moradores, que passam a vida experimentando uma lógica que
para eles foi criada como sendo a mais indicada: a lógica manicomial.
Obviamente que falar dos moradores, num plural genérico, acaba por apagar muitas
singularidades construídas e vividas naquele espaço. Entretanto, como no mapeamento foram
encontradas mais pessoas do que era esperado vivendo dentro de hospitais como residentes
permanentes, decidi fazer uma tentativa de desenhar brevemente o perfil dos moradores neste
terceiro capítulo. Apresento, portanto, nos tópicos seguintes, o perfil dos moradores dos dois
hospitais nos quais a pesquisa de campo foi realizada. Utilizei, para tanto, os dados dos
prontuários médicos, combinados com as visitas etnográficas e as entrevistas
semiestruturadas para redesenhar essa população de forma mais generalizada.
Busquei compreender três perfis: no perfil identificatório, resgistrei nome (não
reproduzidos aqui por motivos éticos), ano de nascimento, idade, raça, sexo e naturalidade. Já
no perfil soocioeconômico, foram coletados dados sobre escolaridade, benefício social ou
renda que recebem, atividades laborativas anteriores à institucionalização e se recebem visitas
ou não. Ainda, no perfil clínico foram registradas a data e a idade na primeira internação, a
data e a idade na última internação, o tempo de institucionalização, o diagnóstico e o número

114
de internações nos hospitais psiquiátricos. Vale pontuar que os documentos, muitas vezes,
estavam incompletos, as informações eram inconsistentes e muito material foi apagado ao
longo dos anos. A transição entre instituições, muito provavelmente, contribuiu para essa
perda de dados, além dos casos específicos de moradores que foram encontrados sem
documentos e em situação de rua. Por esse motivo, ressalto que, nessa generalização inicial,
outras questões importantes podem ter sido também negligenciadas.
Um último ponto importante diz respeito aos dados de cada um dos hospitais em que
fiz a pesquisa de campo. Nos Quadros 1, 2, 3, 4, 5 e 6, presentes no Anexo da Tese, optei por
tabelar os dados de forma separada, referenciando os hospitais como “Hospital 1” e “Hospital
2”. Nas tabelas do Capítulo, optei por unir os dados de ambos os hospitais, uma vez que as
variações entre eles eram mínimas, talvez pelo fato de todos os moradores do Hospital 2
terem sido transferidos do Hospital 1. Em resumo, os dados apresentados, além de resumidos,
unem os dois hospitais. As diferenças entre as instituições são melhores trabalhadas em outras
características, pois os perfis identificatório, socioeconômico e clínico das duas instituições
são muito semelhantes. Por fim, vale pensar neste Capítulo como um texto de transição - ele é
um caminho necessário para chegar às discussões do próximo Capítulo, pois, como será visto
adiante, a partir dos dados das tabelas que serão apresentadas, foram sendo descobertas
questões delicadas que demandam um aprofundar lento, quase como um mergulho.

3.2) Perfil Identificatório: a vida antes da despersonificação

TABELA 1: PERFIL IDENTIFICATÓRIO DOS MORADORES


Participantes (n = 89)

Número Porcentagem (%)


Gênero
Feminino 26 29,2
Masculino 63 70,8
Idade
18 a 30 anos 1 1,1
30 a 60 anos 30 33,7
60 a 90 anos 54 60,7
Não consta 4 4,5

115
Raça
Branco 70 78,7
Negro 11 12,4
Pardo 2 2,3
Amarelo 1 1,1
Não Consta 5 5,6
Naturalidade
Santa Catarina 73 82,0
Outros Estados 5 5,6
Não consta 11 12,4

A Tabela 1, embora extremamente introdutória, já nos ajuda a traçar algumas


importantes e reveladoras interpretações sobre os moradores e também revelam questões que
precisamos aprofundar sobre a própria institucionalização psiquiátrica permanente, bem como
sobre a reificação da institucionalização no Brasil. É por este motivo que o subtópico anterior
foi iniciado com uma discussão sobre o amálgama que une os moradores e os hospitais, pois
seria impossível traçar uma generalização que os separasse. Falar sobre “um”, deixa implícita
a história do “outro”, assim como falar do “outro”, revela a história do “um”. Eles estão
inegavelmente imbricados e, já no Perfil Identificatório, podemos perceber isso. Vale lembrar
que a Tabela 1 é um resumo dos quadros 1 e 2, disponíveis nos Anexos desta Tese. Neles
estão os dados completos dos residentes dos dois hospitais em que realizei a pesquisa de
campo e algumas das informações deste capítulo foram retiradas diretamente dos mesmos,
como o caso de algumas médias, máximas e mínimas. Abaixo, o Gráfico 2 ilustra os dados
relacionados à idade dos moradores, em anos. Analisá-lo é um primeiro passo para que
possamos seguir para algumas considerações importantes.

116
Número dos moradores (eixo vertical) x Idade por agrupamento (eixo horizontal).

O eixo vertical do Gráfico 2 representa a quantidade de moradores; e o eixo


horizontal, a idade dos internos. Podemos observar, inicialmente, que a idade dos moradores
está expressivamente representada pela faixa etária 60-90 anos, com uma média etária total de
65 anos em ambas as instituições. Isso nos faz notar que a maioria da população - hoje
institucionalizada como residente em alas psiquiátricas públicas no Estado de Santa Catarina -
é idosa, pois, de acordo com o Estatuto do Idoso, um cidadão com idade igual ou superior a
60 anos é considerado pertencente a esse grupo23. Os dados também indicam que, além dos
cuidados da esfera da psiquiatria, essas pessoas provavelmente irão demandar
cuidados-outros, advindos do envelhecimento, o que provocaria a necessidade de mudança na
estrutura física desses locais.

Esse fato justifica a necessidade de uma adequação desses espaços, que passaram a
contar com alas destinadas aos cuidados clínicos gerais para o atendimento de outras
demandas além da psiquiatria. Por outro lado, essa manutenção do espaço alimenta a lógica
manicomial, pois, através de reformas das estruturas físicas, possibilita que essas instituições
continuem existindo. Além disso, essas alterações dão a sensação de estarem sendo realizadas
para melhorar a condição de vida dos internados, entretanto, elas são também uma
manutenção que garante a continuidade e a solidificação desses espaços.
23
Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/eleicoes-2022-periodo-eleitoral/estatuto-do-idos
o-assegura-direitos-de-pessoas-com-60-anos-ou-mais (acesso em 23/3/2023).

117
Vale pontuar que, a partir dos movimentos das Reformas Psiquiátricas, muitas
modificações foram iniciadas, mas, por outro lado, mesmo com a criação desses novos
espaços, os moradores continuaram enfrentando um longo caminho quando suas necessidades
escapavam da esfera da psiquiatria, o que nos faz questionar para quem exatamente se destina
essas mudanças: aos moradores, para melhorar suas condições de vida, ou para a própria
manutenção e permanência das instituições? Essa indagação surgiu quando comecei a
perceber que, normalmente, os pacientes de longa permanência não são prioritários nos
atendimentos das alas de clínica médica.

No trabalho de campo, essa questão esteve muito presente, pois acompanhei repetidas
queixas de residentes que demoravam muito tempo para serem atendidas, ou até mesmo
vistas, com a justificativa dos profissionais de que os pacientes crônicos são muito
“solicitantes”. Um caso ajuda a ilustrar esse ponto: quando uma moradora que estava com
uma unha inflamada e passou dias chorando pedindo para ir ao médico e levou um tempo até
que ela fosse atendida. Quando eu chegava ao hospital, mesmo no inverno do sul do país, ela
vinha me receber descalça, dizendo: “O médico ainda não veio, querida.” (Diário de Campo,
31 de março de 2022). Ela não conseguia usar sapatos fechados nem meias, pois estava com
muita dor. Cinco dias depois, ela continuava solicitando ajuda: “Eu tenho dinheiro… quero
tirar a unha, querida… não tirei a unha até hoje, querida…” (Diário de Campo, 5 de abril de
2022). A situação foi piorando, ela não estava mais conseguindo andar da mesma forma, sua
unha estava projetada para cima, mas mesmo assim o atendimento só veio duas semanas
depois da primeira queixa.

Outro dado revelado pelo Gráfico 2, sobre a faixa etária, merece a atenção. Podemos
notar que há um residente que tem 30 anos de idade atualmente e essa constatação nos
transporta para um fato considerável. Segundo a Lei de Saúde Mental (2001): “É vedada a
internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características
asilares…”. Pois bem, para que a lei seja cumprida, as pessoas deveriam, em tese, ser
institucionalizadas nesses ambientes antes de 2001, quando esse ato não era ainda proibido.
Além disso, os moradores não poderiam ser menores de idade (menores de 18 anos) para ali
serem internados. Nesse caso, apenas moradores acima de 40 anos atualmente foram
internados antes da Lei, pois esses teriam 18 anos em 2000, antes da Lei ser implantada. O
morador em questão tem 30 anos, o que indica que ele foi internado em uma instituição asilar
após 2001.

118
Foi a partir do encontro com esse morador que passei a investigar se pessoas
continuam a ser institucionalizadas nesses espaços asilares, mesmo depois da proibição
advinda da citada Lei. Descobri, posteriormente, que essa institucionalização recente não é
um caso isolado e, embora a maioria dos pacientes esteja internada há anos, foram recorrentes
as descobertas de institucionalização recente, inclusive no ano da pesquisa de campo (2022).

Avançando para os outros dados da Tabela 1, sobre a categoria gênero, podemos


observar que as instituições são habitadas por moradores do gênero masculino e feminino. No
Gráfico 3, podemos ver a porcentagem da combinação dos dados nas duas instituições:

Os indivíduos do gênero masculino são maioria, relembrando, mais uma vez, que esse
dado coletado é referente apenas às alas de moradores dos hospitais e que essa composição
pode possivelmente ser diferente nas outras alas, entre os pacientes com internações
temporárias. Já sobre a naturalidade (Gráfico 4 abaixo), vemos que praticamente todos os
moradores são do Estado de Santa Catarina, o equivalente a 82%, não deixando de ser
relevante o fato de que 12,4% dos moradores não têm sua naturalidade revelada:

119
Isso nos leva a questionar o porquê da desinstitucionalização desses moradores ter
sido tão complicada, visto que seus familiares viviam no mesmo Estado em que eles estavam
internados. Além disso, vemos uma mudança na configuração dos hospitais, pois nos anos
iniciais era muito comum que esses locais fossem compostos por pessoas de todas as regiões
do país, o que nos mostra que se tem mantido a pretensão da territorialidade, preconizada
pelas Reformas, pois é bem raro encontrar um morador de outro Estado vivendo dentro de um
hospital catarinense.

Já sobre a raça (Gráfico 5), são utilizadas nos prontuários médicos as categorias do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aparecendo entre elas: branco, negro,
pardo e amarelo. Adicionamos aqui a categoria “não consta” para os prontuários que não têm
essa informação. Notamos que a maioria dos pacientes são indivíduos brancos (78,7%),
sucedido de negros (12,4%), pardos (2,2%) e amarelo (1,1%), replicando a distribuição da
população do Estado, que é composta majoritariamente por indivíduos brancos (88,1%),
sucedidos por pardos (9%), negros (2,7%) e indígenas (0,2%).

120
Podemos observar nesses breves dados referentes ao Perfil Identificatório, que a
maioria dos moradores dos hospitais vivendo em alas psiquiátricas no Estado de Santa
Catarina, em caráter asilar, é composta por homens, idosos, brancos, com naturalidade
majoritariamente no próprio Estado. Além disso, temos inclinações para pensar que as
condições de envelhecimento dos moradores, juntamente com as propostas da Reforma
Psiquiátrica, impulsionam as mudanças físicas das instituições, entretanto, temos motivos
para crer que a manutenção do espaço é uma força que, antes de trazer melhorias para os
residentes, acaba por reforçar a lógica da necessidade da institucionalização. Por fim,
constatamos que indivíduos continuam sendo institucionalizados, mesmo depois da Lei de
Saúde Mental, que previa o fim das internações psiquiátricas em condição asilar permanente.

3.3) Perfil socioeconômico: isolamento da/na institucionalização

Seguindo para a próxima divisão dos dados tabelados, temos abaixo as informações
sobre o perfil socioeconômico dos moradores dos dois hospitais em que o trabalho de campo
foi realizado. Na Tabela 2, foram estruturados os dados sobre escolaridade, renda, profissão
anterior à institucionalização e se os moradores das instituições pesquisadas têm recebido
visitas nos últimos cinco anos ou não.

121
TABELA 2: PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS MORADORES
Participantes (n = 89)

Número Porcentagem (%)


Escolaridade
Não Alfabetizado 15 16,9
Primário 22 24,7
Primário Incompleto 7 7,9
Não Alfabetizado e
Primário 5 5,6
2º grau 1 1,1
Não Consta 39 43,8
Renda
BPC 1 s/m 45 50,6
Aposentado 11 12,4
Pensionista 3 3,4
Não consta 30 33,7
Profissão
Sem ocupação 24 27,0
Do lar 15 16,9
Servente 5 5,6
Lavrador 8 9,0
Outros 9 10,1
Não Consta 28 31,5
Visitas
Não Recebe 61 68,5
Recebe 26 32,6
Não Consta 2 2,2

Para começar a estruturação dessas informações, muito diversas em suas


possibilidades de revelar, iniciaremos a análise observando a escolaridade. Vale lembrar, uma
vez mais, que todos os dados foram primeiro estruturados nos Quadros 3 e 4, presentes no
anexo desta Tese, entretanto, optei por deixar no texto apenas um resumo deles. As categorias

122
utilizadas são aquelas que aparecem nos prontuários médicos, a saber: “primário”, para os
moradores que finalizaram o ensino fundamental, “primário incompleto”, para os moradores
que não finalizaram o ensino fundamental, mas frequentaram escolas, “segundo grau”, para
moradores que finalizaram o ensino médio, “não alfabetizado”, para moradores que não
frequentaram escolas e “não consta”, para os moradores que não têm essa informação no
prontuário. O gráfico abaixo ilustra a disposição dos dados das instituições.

No Gráfico 6, o eixo vertical representa a quantidade de moradores e o eixo horizontal


a escolaridade. É alarmante, à primeira vista, o quanto a questão da escolaridade tem sido
negligenciada, pois, na grande maioria dos prontuários, essa informação não consta. Nos
documentos, podemos observar que 39 de um total de 89 moradores não têm registrada sua
escolaridade, ou seja, 43,8% deles. Sobrevém, respectivamente, o número de moradores que
concluíram o grau primário, 22 (24,7%), depois os não alfabetizados, 15 (16,9%), e os
moradores que não concluíram o grau primário, mas estudaram, 7 (7,9%). Além disso, há
categorias que se misturam nos prontuários, tornando ainda mais difícil esquematizá-las.
Foram encontradas, simultaneamente, as categorias “não alfabetizado” e “primário” em cinco
prontuários (5,6%). Apenas um morador concluiu os estudos (1,1%), finalizados pelo então
chamado 2º grau.

Outro ponto que é importante ressaltar, é que alguns moradores que têm nos seus
prontuários escrito que são “Não Alfabetizados” escrevem e lêem, o que demonstra uma
dupla negligência, primeiramente a da falta de informação (quando não consta nos registros)

123
e depois da existência de dados não confiáveis (quando não condizem com a realidade),
tornando-os dados frágeis e inconclusos. Isso só pôde ser constatado no trabalho de campo,
quando os moradores escreviam nas folhas que eu levava para que pudéssemos desenhar. Por
outro lado, mesmo com essas variações, é importante ver como a instituição tem desenhado
seus moradores, não tão somente no cotidiano, mas também nos documentos que registram
seus históricos.

O próximo gráfico (7), referente à renda, nos leva para mais uma reflexão necessária.
As categorias utilizadas, mais uma vez seguindo os termos dos próprios prontuários, são:
“BPC 1 s/m”, sendo “BPC” a sigla do Benefício de Prestação Continuada, e “s/m” a sigla
usada para salário mínimo, “Aposentado”, “Aposentado ½ s/m” e “Não consta”.

Aqui podemos notar que uma expressiva parte dos moradores (50,6%) têm nos seus
prontuários que recebem um salário mínimo (s/m), através, principalmente, do Benefício de
Prestação Continuada (BPC-LOAS), que está previsto na Constituição Federal e é
direcionado para pessoas com deficiência ou idosos acima de 65 anos. Além disso, para
garantir o recebimento, os beneficiados devem ter uma renda familiar mensal máxima por
pessoa de ¼ do salário mínimo, valor referente à R$353,00 em 2023, uma vez que o valor do
salário mínimo mensal atualmente é de R$1.412,00. É necessário pontuar que esse montante
não é utilizado para os cuidados básicos dos moradores, pois, os mesmos, por estarem
institucionalizados, são mantidos através dos valores das diárias do Sistema Único de Saúde
(SUS). Em entrevista, uma enfermeira, que trabalha em um dos hospitais há 14 anos, relatou

124
que a diária que recebem por paciente é de R$57,00, totalizando, aproximadamente,
R$1.710,00 mensal.

Entrevistada: […] Nem todos são iguais, inclusive aqui no hospital. [...] esse valor da
psiquiatria é maior que é pra incentivar os hospitais a internarem paciente psiquiátrico, é um
incentivo, então por isso que tem um valor a mais… R$57,00 a diária né, então é por isso
que... que eles... porque não é todo hospital que quer paciente psiquiátrico

(Entrevista com uma enfermeira, 28 de março de 2023).

Quando esse valor foi citado, estranhei por ele diferir dos valores de diárias do SUS
para residentes crônicos. Inclusive, na outra instituição, esse valor era diferente, mas não foi
revelado exatamente. Essa informação do valor exato das diárias veio de uma profissional que
trabalha na instituição que não carrega no nome a especialidade “psiquiatria”, embora tenha
mais da metade de suas estruturas destinada a essa área médica, com moradores vivendo na
grande maioria de seus pavilhões. Como dito anteriormente, a chegada dos moradores da
psiquiatria foi vista como uma “salvação” da instituição, que seria fechada devido ao espaço
inutilizado, que antes era destinado aos pacientes de Hanseníase. Esta constatação nos retorna
para uma questão inegável, que existe uma dupla dependência entre a manutenção da
instituição, a continuidade e a permanência dos moradores naquelas alas que, de outro modo,
teriam suas atividades interrompidas. Em outras palavras, as instituições só sobrevivem se
mantiverem pacientes e, nesse caso, manter moradores é sinônimo de garantia para manter a
própria instituição.

Voltando ao caso anterior, a enfermeira me explicou que um ano depois que terminei o
campo (2022), a ala de moradores psiquiátricos passou a ser denominada de clínica geral,
embora fosse composta apenas por pacientes psiquiátricos institucionalizados com uma média
de tempo de internação de 24 anos. Percebi ali uma nova estratégia de manutenção da
institucionalização psiquiátrica que desemboca em dois graves problemas: o primeiro é que
não ser mais uma “ala psiquiátrica”, no nome, impossibilita que serviços destinados a essa
“modalidade” chegue até os moradores, como por exemplo a terapia ocupacional, as
atividades para viabilizar a desmedicalização progressiva e a ressocialização, atividades
físicas, entre outras. O segundo problema seria o revelar de uma nova forma de
invisibilização dessa população, aumentando os recursos institucionais, mas não alterando a
realidade deles: renomeando as alas como clínicas gerais e não psiquiátricas.

125
Entrevistada: [...] então, porque hoje em dia pode, tá... e uma outra informação, o nosso
hospital aqui com aqueles pacientes que eram na psiquiatria, ali que tu trabalhou e eram da
psiquiatria [...] Hoje em dia, foi a partir acho que do mês passado, não lembro direitinho, tá?
Mas faz pouco tempo, eles mudaram tudo [...] então assim, não é psiquiatria mais, é clínica
geral a unidade, a unidade virou clínica, e eles viraram clínicos [...] Na verdade, paciente
psiquiátrico, tu vê, ó, por mês é R$1700,00 por paciente por mês, eles ganham, o hospital
ganha, o SUS paga né… e o outro paciente normal é R$800,00, tem uns que é mais porque…
porque tem os procedimentos, curativos… tem um que faz direto curativo, ai aumenta um
pouquinho por mês

(Entrevista com uma enfermeira, 8 de março de 2023).

Esses pacientes que recebem R$800,00 reais mensais são aqueles que são
remanescentes da internação da hanseníase e que também passaram longos anos internados,
entretanto, hoje em dia eles vivem em suas próprias casas, dentro das estruturas do hospital.
Possivelmente, no outro hospital, é esse o valor que eles recebem por diária de paciente, pois
ainda há em seus cadastros a característica de internações de longa duração. Infelizmente não
encontrei a informação exata e esses dados podem não ser condizentes com a realidade, visto
que, em apenas uma entrevista, um profissional aceitou falar desse tema. Já o dinheiro da
aposentadoria ou dos benefícios dos moradores da psiquiatria é recebido pelas curadoras,
designadas pelo Estado, ou pelos familiares. Quando os residentes precisam de algum item
específico, como roupas, remédios não disponibilizados, cigarros, entre outros, é solicitado
para os responsáveis legais esses produtos ou, em alguns casos, solicitam o montante de
dinheiro para fazer a compra.

Apenas uma pequena parte do benefício ou aposentadoria fica com eles.


Semanalmente, os moradores do primeiro hospital recebem um “pagamento” que varia entre
R$10,00 e R$30,00, utilizado normalmente para a compra de cigarros. No segundo hospital,
os moradores não recebem esse pagamento. O restante do salário que recebem fica com seus
familiares ou com as cuidadoras, apenas no segundo caso necessitando de prestação de contas
no final do ano. Com esses dados podemos perceber que cada morador tem aproximadamente
um montante que varia de R$2.212,00 a R$3.122,00 (R$1.412,00 valor do salário mínimo
(benefícios ou aposentadoria) + R$800,00 ou R$1.710,00 (valor que o hospital recebe pela
diária de internação)), ficando a cargo da administração do hospital e dos responsáveis legais
as decisões de uso desses montantes. Isso nos faz aumentar a incompreensão sobre o estado

126
de pobreza em que eles têm vivido, com dificuldade para receber coisas simples como meias,
roupas íntimas e casacos de inverno.

Sobre as atividades laborativas anteriores à institucionalização, podemos notar que a


maioria dos prontuários não contém essa informação (28), contabilizando 31,5%. Este dado é
sucedido por aqueles que carregam no prontuário a informação “sem ocupação” (24), que
contabilizam 27% dos moradores, embora eles relatem cotidianamente histórias sobre
atividades laborativas que realizavam antes de serem internados.

Podemos notar que essa informação foi sendo apagada ao longo dos anos, uma vez
que é comum um morador ser internado pela primeira vez trazendo no seu prontuário dados
diferentes daqueles constatados nos prontuários seguintes. Sabemos, a partir da retomada
desses arquivos, que a maioria dos prontuários tiveram os dados das atividades laborativas
anteriores à institucionalização perdidos entre os processos de internamento, já que
encontrávamos essa informação nos papéis das primeiras internações, e nos das últimas
aparecia recorrentemente a categoria “sem ocupação”. Isso poderia indicar que o internado
perdeu seu trabalho depois das internações ou que os profissionais não se atentaram à
necessidade de registrar esses dados depois de recorrentes internamentos. Essa segunda
hipótese emergiu após perceber que muitas informações são perdidas ao longo dos
prontuários de internação e reinternação.

Vemos, portanto, que segundo os documentos a maioria dos moradores “não tinha
ocupação” laborativa anterior à institucionalização (27%). Em seguida, aparece a categoria

127
“Do lar” (15%), composta apenas por mulheres, depois lavrador (9%), composta apenas por
homens e, por fim, a categoria “servente” (5,6%). As outras categorias são menores,
aparecendo “pintor”, “motorista”, “policial”, “balconista”, “estudante” e “cuidadora” em uma
baixa frequência, contabilizadas na Tabela 2 como “outros” (10,1%).

Outro dado que também foi desaparecendo ao longo das internações, é aquele
referente à presença ou não de visitas, pois normalmente os pacientes recebiam mais visitas
no início da internação e atualmente elas são mais raras, como podemos ver abaixo:

Notamos aqui que 61 dos 89 moradores (68,5%) não recebem visita e, entre os 32,6%
que recebem visitas (26 moradores), há casos que receberam apenas uma visita ao ano ou
com frequência ainda menor. Além disso, com a pandemia, as visitas diminuíram ainda mais,
mas essa queda não foi contabilizada nesses dados, pois foram considerados apenas os
“moradores que receberam visitas nos últimos cinco anos”. A perda de vínculo social pode ter
contribuído para a diminuição da frequência das visitas, além da própria cronificação das
doenças institucionalizantes, que acarretaram em danos irreversíveis aos pacientes. Por fim,
podemos então resumir o perfil socioeconômico dos moradores como pessoas que têm, na
maioria dos casos, o ensino fundamental completo (primário), recebem pelo menos um
salário mínimo por mês, além da diária recebida pelo SUS para a manutenção de suas
internações. Também, não têm, na maioria dos casos, ocupação anterior à institucionalização
constatada nos prontuários e não têm recebido visitas de familiares ou conhecidos
recentemente.

128
3.4) Perfil Clínico: “Depois de tantos anos aqui, cronificou!”

Na Tabela 3, foram esquematizados os dados do perfil clínico dos moradores,


constando, tal como encontrado nos prontuários médicos, o histórico de internações,
descoberto principalmente a partir da relação das idades dos moradores na primeira e na
última hospitalização, o tempo vivido nos hospitais, o número de internações que
colecionaram durante a vida antes de serem institucionalizados e também o diagnóstico. Vale
pontuar que os dados completos estão organizados nos Quadros 5 e 6, presentes no Anexo
desta Tese, entretanto, por fins metodológicos, fiz um agrupamento em categorias para criar a
próxima Tabela (3).

TABELA 3: PERFIL CLÍNICO DOS MORADORES


Participantes (n = 89)

Número Porcentagem (%)


Idade na primeira internação
até 20 anos 32 36,0
de 21 a 31 anos 35 39,3
de 31 a 50 anos 8 9,0
mais de 50 anos 2 2,2
não consta 12 13,5
Década da primeira internação
1960 ou anterior 9 10,1
1970 22 24,7
1980 37 41,6
1990 7 7,9
depois de 2000 6 6,7
não consta 8 9,0
Idade na última internação
até 20 anos 5 5,6
de 21 a 31 anos 29 32,6
de 31 a 40 anos 21 23,6

129
de 41 a 50 anos 16 18,0
mais de 50 anos 9 10,1
não consta 9 10,1
Década da institucionalização
ou da última internação
1960 ou anterior 5 5,6
1970 4 4,5
1980 22 24,7
1990 34 38,2
depois de 2000 18 20,2
não consta 6 6,7
Número de Internações
1 13 14,6
2a5 19 21,3
6 a 10 16 18,0
11 a 20 19 21,3
mais de 20 7 7,9
não consta 15 16,9
Tempo vivido no hospital
menos de 10 anos 4 4,5
de 11 a 20 anos 8 9,0
de 21 a 30 anos 32 36,0
de 31 a 40 29 32,6
de 41 a 50 5 5,6
de 51 a 60 4 4,5
de 61 a 70 1 1,1
não consta 6 6,7

A ideia do colecionar de institucionalizações surgiu em 2019, quando em uma


pesquisa anterior (DEL SARTO, 2020), notei que muitos dos residentes de hospitais
psiquiátricos passaram por diversas internações ao longo da vida. Não é raro, por exemplo,
encontrar um morador de hospital psiquiátrico atualmente que, antes, já também tenha vivido
em orfanatos, instituições religiosas e, depois, passou a habitar alas psiquiátricas. Antes da
coleção de institucionalização, eles passaram por uma sequência de abandonos, de modo

130
privado, na família e de modo público, pelo Estado, que nunca foi capaz de suprir suas
necessidades para que fosse possível pensar em movimentos de desinstitucionalização. Na
Tabela 3, essa questão fica melhor ilustrada, mas somente se nos permitirmos fugir dos meros
e inconclusos números superficiais e mergulharmos no que eles revelam.
Assim como nos tópicos anteriores, a Tabela também nos impulsiona a seguir outras
importantes e necessárias investigações. Já no início da análise, é possível extrair que a média
da idade dos moradores na primeira internação é de 24 anos, ou seja, a maioria dos residentes
tiveram a primeira experiência em uma instituição psiquiátrica antes dos 25 anos de idade.
Além disso, segundo os documentos, todos os moradores tiveram sua primeira internação de
forma compulsória, ou seja, não escolheram ser internados. Descobrimos também que um
morador teve sua primeira internação quando ainda tinha 11 anos de idade, em 1978, no
mesmo ano em que a luta pelas reformas na psiquiatria estavam efervescentes, principalmente
por ter sido esse o ano da Crise da DINSAM, quando situações de maus tratos e violências
foram denunciadas por psiquiatras, culminando na demissão de aproximadamente 180
trabalhadores e motivando a criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental no
Rio de Janeiro.

Além disso, chamou atenção o fato de um morador ter tido sua primeira internação
aos 54 anos de idade, contrariando, em partes, a lógica do histórico de internações que pode
ser traçado quando paramos para analisar esses dados. Isso porque, a maioria dos residentes
foi internada muitas vezes ao longo da vida, e não somente uma vez, como o morador citado.
Normalmente, os moradores colecionam um alto número de internação até serem
institucionalizados permanentemente. Para ser mais exata, a média do número de internações
ao longo da vida é de pelo menos nove vezes, com um mínimo de uma única e com uma
máxima de 36 internações, ou seja, neste último caso, um só morador entrou e saiu do
hospital psiquiátrico por 36 vezes ao longo de sua vida, até que se tornou um residente
daquele espaço, quando passou a não ter mais sua alta hospitalar considerada.

Interessante olhar a data dessas internações, pois é expressiva as alterações nesse dado
ao longo dos anos, como podemos ver no gráfico abaixo, que demonstra as internações dos
residentes atuais dos hospitais nos quais o trabalho de campo foi desenvolvido. A primeira
linha, azul, demonstra a década da primeira internação dos pacientes, já a linha verde
representa quando eles foram institucionalizados, nas suas últimas internações, ou seja,
quando não mais receberam alta e passaram a viver de forma permanente no hospital.

131
No Gráfico 10, podemos ver um disparo dos internamentos no intervalo entre as
décadas de 1970 e 1980. No primeiro intervalo (1970-1980), 22 moradores tiveram sua
primeira internação e no segundo (1980-1990), 37 residentes foram internados pela primeira
vez. Foram enumerados 59 moradores, de um total de 89, o que significa dizer que 66,2%
deles foram internados naquele período. Já a institucionalização permanente, ou a data da
última internação - quando não mais tiveram alta hospitalar - acabou por dar um salto na linha
do tempo, pois podemos notar que nas décadas de 1980 e 1990 estão contidos os maiores
números de internações permanentes, contabilizando 22 moradores no período de 1980-1990
e 34 moradores entre 1990-2000. Totaliza desses dados 56 internamentos que se
transformaram em institucionalização, ou seja, 62,92% dos moradores atuais foram
institucionalizados naquele período.

Lembrando que esse número apresentado só contabiliza os moradores que ainda hoje
estão vivendo nos hospitais e que o histórico das internações no Brasil indica que o número
total era muito maior, chegando a mais de 1.000 pacientes nos anos citados. Os números são
menores, pois muitos deles receberam alta ou faleceram, entretanto, os dados revelam que os
residentes que ainda hoje vivem no hospital são, majoritariamente, remanescentes dessa
mesma época.

Os reflexos do histórico de luta de movimentos populares nos processos de


redemocratização do país, que compreendeu os anos de 1975 a 1985, revelam seus
direcionamentos nessa queda brusca no número de novas internações que se transformariam

132
em institucionalização permanente, entretanto, o internamento de quem já havia sido
internado - por pelo menos uma vez durante a vida - continuou crescendo até a virada do
século. A queda nos internamentos começou a ocorrer somente na década de 2000, época em
que as discussões da Lei de Saúde Mental estavam fervorosas no país. Entretanto, ainda
identificamos 18 moradores que foram institucionalizados depois de 2000, sendo três deles
institucionalizados antes da efetivação da Lei (2001) e 15 depois (2004-2022).

Essas internações revelam o resultado dos tratamentos das décadas anteriores, muitas
vezes focados somente no isolamento, medicalização e privação de liberdade, que levou à
fortificação da ideia da necessidade de manter pessoas dentro de um hospital de forma
permanente, uma vez que os tratamentos, na maioria dos casos fracassados, acabaram por
criar uma população que não poderia simplesmente voltar para a vida social, e a ausência de
serviços para acompanhar esse retorno fez com que o imaginário da necessidade da
institucionalização fosse fortalecido.

Outro dado foi que, ainda em 2022, o Gráfico 9 não chegou à marca zero, o que indica
- mais uma vez - que pessoas continuam se tornando moradoras de hospitais psiquiátricos,
como é o caso do morador que foi institucionalizado em 2021, no mesmo ano da pesquisa de
campo. Quando ele chegou à instituição, foi direto para a ala de moradores, pois havia sido
transferido de outro hospital psiquiátrico, local onde ficou anteriormente. Como ele teve um
AVC (Acidente Vascular Cerebral), não estava conseguindo falar, mas tinha muita saúde
física. Ele gesticulava pedindo para ir embora e a equipe hospitalar decidiu aumentar seus
medicamentos e colocar profissionais no seu quarto nos primeiros meses, pois segundo eles,
ele estava com “tendências suicidas” (Diário de Campo, 08 de novembro de 2021). No final
do primeiro mês no hospital, seus documentos chegaram e os enfermeiros o levaram para um
ambiente seguro para comunicar que tinham recebido seus papéis. Como pesquisadora achei
curiosa a exaltação da enfermeira que veio me contar animada que tinham finalmente
encontrado os documentos do paciente, pois eu imaginava que ele não poderia estar ali sem
nenhum documento, visto que ele veio de transferência de outro hospital, mas ele estava.
Quando ele ficou sabendo dos papéis, começou a “apresentar quadros de agitação” (Diário de
Campo, 09 de novembro de 2021), pois queria recuperar seus documentos, mas foi impedido
pela equipe, pois era regra que eles ficassem com o hospital.

Os profissionais me contaram apenas que o novo morador teve um AVC, que a esposa
que cuidava dele faleceu e que as suas filhas não queriam cuidar do pai, pois ele teve
problemas de dependência alcoólica ao longo da vida. Ele ficou por aproximadamente dois

133
meses internado em outro hospital psiquiátrico antes de ser transferido. Ouvi diversas vezes
técnicas de enfermagem dizendo não entenderem o porquê dele estar ali, já que não
encontravam justificativas, no plano médico psiquiátrico, para que ele pudesse passar a morar
em naquela ala. Também não consegui compreender o motivo dele estar ali, pois ele destoava
de todo o ambiente. Foi me dito que tentariam encontrar alguma saída, mas, enquanto isso
não acontecesse, ele continuaria vivendo como morador permanente do hospital.

O prosseguimento dessas formas de institucionalizar também nos alerta para as


tendências do que tem sido denominado de “Nova Lei de Saúde Mental” e, como resultado de
suas indicações, já podemos notar - nos últimos anos - um retorno gradual do modelo
hospitalocêntrico, como previsto por diversos especialistas da área, como o psiquiatra e
pesquisador Paulo Amarante (2021). Segundo o autor, a tendência da nova política seria,

a) a ambulatorização do cuidado; b) o desfinanciamento e a diminuição do


ritmo de ampliação da rede de atenção psicossocial; c) o retorno do
financiamento de dispositivos de isolamento e exclusão social (hospitais
psiquiátricos e comunidades terapêuticas); e d) a limitação dos espaços de
participação e controle social (p. 9).

Essas questões foram vistas cotidianamente ao longo do trabalho de campo, como


nesse caso de institucionalização recente e também em outros exemplos já citados, como o
fato de não ter sido encontrada nenhuma ação de movimentação para promover a
desinstitucionalização dos moradores, além dos casos de criação de novas alas e do
fortalecimento de dispositivos de isolamento.
Outro ponto que nos alerta para o que implica a institucionalização psiquiátrica no
nosso país é revelado quando olhamos para a média de tempo vivido no hospital, pois os
residentes estão morando ali em uma média de 30 anos. O tempo mínimo de vivência dentro
do hospital, entre os moradores, é de um ano, referente ao morador citado acima que foi
institucionalizado no momento da pesquisa de campo. O que nos sobressalta os olhos é o
tempo máximo, pois foi encontrada uma moradora que vive ali há 70 anos. Sua primeira
internação foi aos 14 anos de idade e ela foi institucionalizada naquele mesmo ano.
Atualmente, ela está acamada, tem 84 anos e precisa da equipe para praticamente todos os
cuidados diários, entretanto não recebe nenhum remédio psicotrópico. Ela permanece na
maca ou na cadeira de rodas o dia todo, quase não sai do quarto e sempre está muito bem
arrumada, com tiaras na cabeça, batom vermelho e sempre tem nos braços uma boneca com
vestido vermelho e chupeta na boca.

134
Mais especificamente sobre a institucionalização permanente, extraímos dos Quadros
5 e 6 que a média de idade em que os moradores foram institucionalizados é 35 anos, sendo a
idade mínima 11 anos e a idade máxima 83 anos. Sobre o morador que foi institucionalizado
aos 83 anos, como consta acima, desconfiamos da informação, pois no trabalho de campo ele
contou sobre um histórico de vivências em hospitais, o que indica que provavelmente seus
documentos tenham se perdido na transferência de um hospital para outro. Infelizmente, esse
morador veio a óbito em 2022, no ano em que eu estava trabalhando na redação da Tese.
Outro fato que pode ter ocorrido para justificar o dado de institucionalização aos 83 anos de
idade seria proveniente de uma alta temporária, pois quando os moradores precisam de algum
tratamento em outro hospital, eles são transferidos e quando voltam são reinternados, o que
pode ter feito com que constasse no seu prontuário que ele foi institucionalizado nessa idade.

Por fim, sobre a delicada categoria do diagnóstico, que foi muito evitada durante todo
o trabalho de campo e também de escrita desta Tese, foram tabeladas as variações em
subcategorias, tal como constava nos prontuários médicos, a saber: “Psicose Esquizofrênica”,
“Psicose associada com Epilepsia”, “Outras oligofrenias”, “Autismo infantil”, “Alcoolismo
Crônico” e “Transtorno Depressivo”. Além disso, foi encontrado em um dos prontuários a
informação: “paciente não tem sintomas de psicose”. Os números abaixo revelam a
frequência que essas categorias aparecem nos prontuários:

TABELA 4: DIAGNÓSTICOS
Participantes (n = 89)
Número Porcentagem (%)
Diagnóstico
Psicose Esquizofrênica 12 13,5
Psicose associada com Epilepsia 5 5,6
Alcoolismo 2 2,2
Transtorno Depressivo 1 1,1
Autismo 1 1,1
Outras Oligofrenias 13 14,6
Não Consta 55 61,8

Vale reiterar que os termos acima utilizados foram transcritos dos prontuários médicos
presentes nos hospitais, sendo categorias particulares do campo. Antes de interpretá-los, é

135
interessante fazer uma pausa para discutir o uso ou não desse dado específico na pesquisa
aqui tecida. Pois bem, nas primeiras investigações que realizei sobre a vida social de
moradores de hospitais psiquiátricos (DEL SARTO, 2018, 2020), optei por não saber os
diagnósticos dos moradores, pois sabia que se eu fosse conhecê-los depois de ter essa
informação, poderia ter uma convivência construída de forma enviesada, mesmo que não
intencionalmente. Obviamente que ao fazer etnografias, construímos nossas interpretações de
formas inclinadas às nossas pré-concepções, já que o fazer antropológico é também
construído na relação do pesquisador com o campo, ou seja, entre pessoas, experiências e
ambientes. Embora, enquanto cientistas, possamos clamar por uma neutralidade axiológica,
sabemos que não passa de uma ilusória herança de um pensamento positivista que, de certa
forma, não deixa de atravessar o ato de fazer ciência, principalmente em áreas que creem não
dar espaço para abstrações.

Mas o fato de ser difícil e raro esse distanciamento, não diminui a necessidade de
exercitá-lo, uma vez que podemos, ao mesmo tempo, reconhecer nossas limitações e trabalhar
a possibilidade de um estar aqui e estar lá (GEERTZ, 1989), de um olhar não tão de perto,
nem tão de longe daquela realidade. Para complicar ainda mais a situação, entramos nesse
caso da escolha do uso ou não-uso de categorias que já têm um histórico estigmatizante e
opressor. Estaríamos, no caso da escolha por usar estas informações, entrando em uma
interação para além da relação antropólogo e campo, pois por ser um ato anterior e antigo, no
caso dos moradores dos hospitais psiquiátricos, o antropólogo já encontra o diagnóstico no
seu formato mais sólido e enrijecido. O ato de diagnosticar diz como vidas são determinadas
e/ou indeterminadas, fazendo com que singularidades sejam criadas em espaços entre faltas e
excessos (DUNKER, 2011). Assim, a motivação que encontramos é de não simplesmente
reduzir as experiências em “substratos” bioquímicos, mas de compreendê-los em termos da
totalidade existencial da experiência vivida (JENKINS, 2015).

Segundo o psicanalista Dunker, o diagnóstico não é, em nenhum caso, universal, mas


também não o é particular. Ele está inserido na relação entre ambos e não deve ser visto como
classificação ou inclusão do caso em uma cláusula genérica, “[...] mas como reconstrução de
uma forma de vida.” (DUNKER, 2011, p. 116). Esse é o ponto, pois, após diagnosticar, há
uma reconstrução das vivências, podendo os sujeitos viverem essas experiências das mais
variadas formas. É igualmente interessante pensar nos diagnósticos como situações
construídas em diferentes relações, porque dessa forma podemos colocar em evidência
questões outras que o cercam. A antropóloga Nunes (2012), ao trabalhar sobre o tema,

136
ressaltou que em determinados casos, os diagnósticos podem ter efeitos sociais positivos,
trabalhando para:

[…] contenção da insegurança e a isenção da culpa de pacientes e familiares,


por um mecanismo de genetização e de biologização dos sintomas; a
esperança da gestão da incerteza e da falta de esperança de doenças […]
além da [...] possibilidade de, uma vez exteriorizadas as responsabilidades
sociopsicológicas na produção do adoecimento, abrir espaço para a relação
terapêutica e para o trabalho sobre as relações (p. 904).

Por outro lado, ela também revela as armadilhas da categoria, elencando cinco pontos
de perigo: 1) o reducionismo ao tratamento exclusivamente medicamentoso; 2) a mitificação
das moléculas; 3) a linearidade da relação causa-efeito entre substância e comportamento; 4)
a leitura dos sintomas a partir de uma perspectiva impessoal e invariável; e 5) a
marginalização das interpretações subjetivas e da ancoragem sociocultural dos processos de
adoecimento (idem). Pensar nesses pontos, tanto positivos quanto negativos, em contextos
múltiplos de saúde, nos faz reconhecer suas variadas funções e desdobramentos dos
diagnósticos.
Percorrer essas múltiplas possibilidades, contextualizando a discussão para o caso
aqui apresentado, nos transporta para questionamentos que estão enraizados de forma muito
profunda na nossa sociedade, de pensar que o diagnóstico justifica a necessidade de
internação, acreditando que, sem ele, a doença não tem forma social, o que implica, assim,
que ela também não pode ter para si designado um tratamento. Se ela não pode ser tratada,
ela também não poderia ser hospitalizada, o que causaria a não institucionalização do
paciente. Entretanto, os dados dos prontuários revelam que a equipe de profissionais não
precisou, necessariamente, de diagnósticos para a institucionalização dos moradores, visto
que 61,8% deles não têm em seus documentos a constatação deles.
O fluxo comum de desconforto, diagnóstico e tratamento é desconstruído, uma vez
que essa ideia simplificada não condiz com a realidade da institucionalização psiquiátrica
permanente. Além do mais, os sujeitos circulam entre as doenças, diagnósticos e infinitas
possibilidades de tratamento mas, no contexto da psiquiatria, outras questões fazem internar.
Naquele espaço, o sujeito internado, na maioria dos casos, não é consultado sobre os
tratamentos que irá receber, pelo contrário, o que acontece é um movimento evangelizador
ou educativo e não necessariamente terapêutico que, de certa maneira, obriga o paciente a
seguir o que foi para ele determinado.
Além disso, outro fato que nos preocupa está relacionado ao tempo do diagnóstico. No
caso dos prontuários analisados, eles foram dados já na primeira internação dos moradores,

137
em momentos de crise e violência, pois a primeira internação de todos eles foi compulsória,
ou seja, sem o consentimento do sujeito internado. É por isso que a questão do uso ou não
uso do diagnóstico torna-se tão específica no caso dos hospitais psiquiátricos brasileiros,
porque além de carregarem históricos perigosos de desconsiderações de sujeitos, acabam
muitas vezes por ocasionar na institucionalização de vidas de forma permanente. O
psiquiatra Basaglia, já em 1985, questionava os diagnósticos psiquiátricos definidos no
momento do internamento:

Que valor técnico ou científico pode ter o diagnóstico clínico com o qual foi
definido no momento do internamento? É possível falar de um diagnóstico
clínico objetivo, decorrente de dados científicos concretos? Ou, antes,
trata-se de uma simples etiqueta que, por trás da aparência de um julgamento
técnico-especializado, esconde, mais ou menos veladamente, um significado
mais profundo: o da discriminação? (p. 109).

Sobre essas armadilhas do diagnóstico psiquiátrico, corrompidos por ações


descriminalizantes, o autor retoma o peso das implicações sociais no ato de diagnosticar,
além das diferenças de tratamentos que os sujeitos enfrentam dependendo de suas posições
econômicas na sociedade:

Um esquizofrênico rico internado numa clínica particular terá um


diagnóstico inteiramente distinto do de um esquizofrênico pobre, internado à
força num hospital psiquiátrico público. O que caracteriza a hospitalização
do primeiro não é somente o fato de não ser automaticamente classificado
como doente mental […] é o tipo de internamento que se beneficia, que
impedirá que seja des-historificado, separado da sua própria realidade. O
internamento “particular" nem sempre interrompe a continuidade da vida do
doente; tampouco diminui ou abole de maneira irreversível sua função
social. Por isso, superado o período crítico, será fácil reinseri-lo na
sociedade. (idem).
Essa diferença entre as internações é gritante e parece ser revisitada todas as vezes que
entro em um hospital psiquiátrico. Os movimentos de des-historização atravessam todos os
moradores, assim como o ato de provocar uma irreversível perda de suas funções sociais. É
graças às confusas fronteiras entre os quadros clínicos e as realidades econômicas e sociais
dos internados que a experiência de institucionalização psiquiátrica sobrevive há séculos de
fracassos e reprovação. Além disso, os modos de lidar com os diagnósticos variam
exorbitantemente entre uma instituição e outra, o que faz com que as experiências, mesmo
entre sujeitos com o mesmo diagnóstico, sejam totalmente diferentes, indo ao encontro do
que escreveu Nunes (2012), a saber: as “[…] experiências de um mesmo diagnóstico
psiquiátrico podem ser vividas de modo diferente em função dos contextos nos quais esse

138
trabalho da cultura se realiza e dos usos da cultura na articulação dessas experiências.” (p.
910).
De certa forma, negar conhecer o diagnóstico dos residentes antes de conhecê-los faz
parte de um processo de recusa dos movimentos de subordinação, desrespeito e
aniquilamento que temos experienciado no nosso país no interior desses hospitais públicos
com alas psiquiátricas. Entretanto, por outro lado, conhecer esses diagnósticos nos aproxima
das justificativas para a internação, pois são eles, na maioria dos casos, que reiteram a
permanência de pessoas que vivem institucionalizadas dentro desses hospitais. É por esse
motivo, buscando encontrar as barreiras que impedem a desinstitucionalização psiquiátrica
no Brasil, que decidi - neste momento da pesquisa - debruçar também no que diz os
documentos a respeito dessa categoria, mas sabendo que a vivência dos moradores vai muito
além disso. Optei por ver os prontuários somente no último mês da pesquisa, o que garantiu
que construíssemos nossa relação sem o conhecimento desses papéis, colocando as doenças
entre “parênteses”, inicialmente, uma vez que reconheço que, tal como escreveu Basaglia
(1985):

A definição da síndrome já assumiu o peso de um juízo de valor, de um


rótulo, que vai além do significado real da própria enfermidade. O
diagnóstico tem um valor de um juízo discriminatório, o que não significa
que procuremos negar o fato de que o doente seja, de alguma forma, um
doente. É este o sentido de colocarmos o mal entre parênteses, ou seja,
colocar entre parênteses a definição e o rótulo. O importante é tomar
consciência daquilo que tal indivíduo representa para mim, de qual é a
realidade social em que vive e qual o seu relacionamento com essa realidade.
(p. 28).

Em campo, depois de conhecê-los tal como escolheram se apresentar para mim, como
acontece em qualquer outro contexto, pude posteriormente ver também como estavam
descritos nos documentos que reiteravam a impossibilidade de suas desinstitucionalização.
Essa escolha foi feita de modo muito consciente, reconhecendo, a todo momento, que eles
não seriam descritos a partir das categorias diagnósticas aplicadas a eles, pois eles
habitavam essas categorias, recusando-as, redefinindo-as, ignorando-as e/ou
redistribuindo-as (LOCKE, 2003).
Outra questão que notei foi de não ter sido raro encontrar nos documentos
justificativas para internamentos que fugissem da ordem psiquiátrica, mesmo quando
permaneciam nas esferas médicas, como os casos de crises epilépticas, ou quando saíam
dessas limitações nosológicas, como nos casos de desestrutura familiar, pobreza e
vulnerabilidades sociais. Sobre o uso dos diagnósticos aqui, foi também interessante retomar

139
o trabalho do filósofo e médico francês Canguilhem (1989) sobre o erro ontológico nas
pretensões de captação das patologias em termos categóricos e/ou contínuos, pois o ato de
compreender as “perturbações” como “entidades” diagnosticáveis, não só objetifica e cria
um hiato entre elas e a experiência individual, como também cria uma espécie de barreira à
compreensão das experiências através de um movimento, do que subentende-se ser
“normal” ao que se reconhece como “patológico” (JENKINS, 2015).
É por esse motivo que escolhi ter um posicionamento crítico com esses dados,
reconhecendo profundamente suas fragilidades, mas também notando o que eles revelam, a
saber: 1) Os diagnósticos foram estabelecidos, na maioria dos prontuários dos moradores, já
na primeira internação, em rápidas triagens de um hospital superlotado; 2) Os prontuários
não são atualizados há anos, tornando os diagnósticos também possivelmente ultrapassados;
3) Muitos prontuários não têm mais essa informação, que foi provavelmente perdida ao
longo das décadas das internações, o que não é suficiente para a desinstitucionalização dos
moradores; 4) O fato de um morador nāo mais ter diagnóstico psiquiátrico e/ou não receber
mais medicamentos psicotrópicos nāo é suficiente para desestruturar sua institucionalização
psiquiátrica; 5) Existe paciente internados sem apresentar qualquer quadro de doença.
Voltando então para o que nos diz a Tabela 4, podemos notar - resumidamente - que a
maior parte dos prontuários não têm mais diagnóstico seguidos de pacientes com “psicose
esquizofrênica” em segundo lugar e “psicose esquizofrênica associada à epilepsia” em
terceiro lugar. A ausência das informações nas tabelas também revelam a presença de
pessoas vivendo no hospital por outros motivos, por ordem econômica e(ou) social. Quando
questionava como esses casos indeterminados se tornaram moradores, a resposta vinha de
forma espontânea: “Depois de tantos anos aqui, cronificou!” (Diário de Campo, 25 de
janeiro de 2022).

140
Capítulo 4: O mergulho no limbo - para conhecer algumas das barreiras da
desinstitucionalização
Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e
pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.
Virginia Woolf
No tópico anterior, iniciei a discussão falando que a literatura, quase sempre, sabe o
que diz (e o que faz). Pois bem, seria - de certa forma - uma espécie de ironia não começar
este Capítulo com mais uma frase do meu caderno de inspirações literárias. Dessa vez, a
inspiração milagrosa nasceu a partir da leitura de algumas frases que anotei na época da
pandemia do Corona Vírus, quando o estar em casa me fez aproximar de alguns dos
pensamentos da escritora britânica Virginia Woolf. Mas, em vez de falar de mim, preciso
direcionar nosso pensamento para nós, para as possibilidades de estarmos trancados dentro e,
ao mesmo tempo, estarmos trancados fora.
Digo isso não de modo figurado, pois sei bem que algumas discussões antropológicas
têm desenvolvido ideais semelhantes, mas falo isso de modo empírico e pragmático,
pensando o estar dentro como o adentrar e permanecer em uma instituição - no nosso caso
psiquiátrica - e o estar fora como o ato de não habitá-la. Colocando um pouco de luz nisso,
seria interessante retomar uma experiência - possivelmente coincidente - que tive nos meus
primeiros dias em San Diego (CA), no estágio sanduíche no Centro Global de Saúde Mental.
Naquela época, no meu primeiro mês morando em um novo país, acabei por alugar um lugar
para morar muito distante da universidade, o que demandava um longo percurso de transporte
público, totalizando uma hora dentro de um ônibus e mais 40 minutos em dois trens.
Conheci, naqueles primeiros dias, uma realidade que não sabia que existia, pois fui
observando uma gigantesca massa de pessoas vivendo em situação de rua naquele país
desenvolvido, os chamados homeless, ou seja, os “desabrigados” ou os “sem casa”, na
tradução. Os trens eram muito frequentados por essa população, que encontrava naquele
espaço um ambiente relativamente seguro e confortável que, além de movimentá-los, também
os protegia das temperaturas californianas, com ar condicionado sempre ligado no verão e
com aquecedor no inverno. Nas bibliotecas públicas do bairro, também não era raro
encontrá-los, com seus carrinhos de supermercado cheio de pertences, sentavam nas cadeiras
das mesas de madeira e passavam o dia naquele ambiente. O mais curioso era que eles não
pediam dinheiro, comida, ou qualquer outra coisa, como vemos aqui no Brasil na população
em situação de rua. Eles pareciam mais estar em sofrimento psíquico, em uma crise, às vezes

141
com paranoias, choros, gritos e angústias e outras vezes com gargalhadas e conversas com
alguém que não podíamos ver.
Comecei a perceber que aquelas pessoas eram muito parecidas com os moradores dos
hospitais que eu tinha frequentado e, de alguma forma, as diferenças principais entre eles
eram, primeiramente, a impregnação dos internados e a ausência de medicação dos homeless,
depois a garantia de comida e lugar para dormir que tinham os internados e os desafios da rua
para os homeless, também o aprisionamento dos internados e a liberdade dos homeless e, por
fim, a impossibilidade de escolha dos internados e as alternativas outras dos homeless.
Ambos estavam presos na estrutura manicomial, um grupo com cuidados mínimos e o outro
com cuidados máximos, extremamente rígidos. Confesso que ficava pensando, no trajeto
entre minha casa e a universidade, o que seria menos pior, tal como questionou Virgínia
Woolf, estar trancado para fora ou estar trancado para dentro? Escrevi no diário:

Vim estudar em um café, da vitrine de vidro vi um homem (homeless) com


um carrinho de supermercado e duas sacolinhas, ele estava com o short no
joelho, aparecendo a cueca, além de usar meias pretas e uma jaqueta
acolchoada azul com o zíper laranja. Olhei pra ele, nos olhos, ele olhou pra
mim, olhou pra frente e começou a conversar, com o vazio. Gesticulou,
falou, olhou dentro da sacola, olhou pra fora, olhou pra dentro novamente.
Olhou pra mim de rabo de olho, olhou pra sacola novamente. Continuei
digitando o final do capítulo um da Tese, tentando não olhar muito, mas
vendo meu pensamento ir longe, afinal, qual é pior? Viver preso ou viver na
rua? (Diário de Campo, 18 de outubro de 2022).

Aquele questionamento começou a me acompanhar todos os dias, pois em


praticamente todos os lugares que eu frequentava, encontrava pessoas naquela situação.
Sempre tentava pensar no que seria pior, como escrevi anteriormente, viver preso ou viver
naquela condição, livre, mas num looping de crises de sofrimentos psíquicos, sem tratamento.
Naquele dia no café, continuei meu devaneio:

[...] Ele subiu o short, entrou no café, colocou suas coisas numa mesa ao
meu lado e foi pro caixa fazer o pedido. Quando voltou pra mesa, perguntei
o que ele tinha escolhido, ele disse que um café, pois gostava de comer com
sorvetes. Sentou em cima da sua coberta, que estendeu no banco de madeira,
espalhou na mesa seis sorvetes de bolachinha, aqueles que por fora têm duas
bolachas e o recheio é sorvete. Abriu um, tirou da sacola uma torta
congelada, abriu ela, e montou na mesa. [...] pensamento a mil, um pouco
parecido com o meu. Não sei o que me aproxima dessa situação, da loucura,
acho que é ela inteira, redonda. Queria conseguir falar mais com eles
[homeless], tal como falo dentro do hospital, mas lá eles são presos. De certa
forma eu também uso o controle da instituição - que contraditória sou -
enquanto luto para questioná-la, uso do poder dela pra tornar meu trabalho
possível, para conseguir me comunicar com os moradores... Será que se eles
não fossem presos eu teria desenvolvido a relação que desenvolvi? (idem).

142
Instantaneamente me vi reproduzindo o que anos atrás apontou Derrida (2002 [1967])
quando escreveu sobre a primeira edição do Clássico “História da Loucura”, de Michel
Foucault (2009[1979]), crítica essa que fez inclusive Foucault retirar o prefácio na segunda
edição do livro. Derrida não mediu esforços para lançar suas questões críticas sobre as
pretensões da obra, pois ressalta que ao mesmo tempo em que o autor pretende “[...] proteger
o sentido de um pensamento ou valor de uma obra contra as reduções psico médicas, chega
por um caminho oposto ao mesmo resultado: faz um exemplo” (p. 109). Ali me encontrei, 62
anos depois, caindo na mesma cilada. De repente, meus escritos que pretendiam defrontar
com as reduções institucionalizantes e biomédicas estavam, naquele momento, se reduzido a
elas, sendo resumido a partir delas e, em último e fatal lugar: estavam cogitando a
necessidade daquilo que me era mais assombroso e devastador: a institucionalização.
Aquela constatação me avassalou, foi o xeque-mate que recebi das contradições de
uma pesquisa em movimento. Caí na cilada da instituição, pois - por alguns meses - passei a
acreditar então na sua necessidade, afinal, para onde iriam os moradores? Para as ruas?
Vivendo as desestruturas estruturantes do estar preso do lado de fora? Como seria a vida
deles nas épocas de crise, passando fome, sem lugar para dormir e vivendo a violência das
ruas? E, novamente, me veio à mente a derradeira pergunta: o que é menos pior? Estar
trancado dentro ou estar trancado fora?

4.1) Cartografias etnográficas

Os olhos dos outros são prisões; seus pensamentos nossas celas.


Virginia Woolf

Com a reverberação dessas questões anteriores, precisei descer mais fundo na


institucionalização, afinal, ela tinha me dominado, tinha me feito crer - como faz há séculos -
na sua necessidade e na ausência de alternativas verdadeiramente plausíveis para o que ela
propõe. Lembrei novamente do início dos meus dias em campo e lembrei também do meu
primeiro campo, no interior de São Paulo (DEL SARTO, 2018; 2020). Naquela época, eu
tinha autorização para passear com os moradores e quando íamos na padaria que tinha no
mesmo quarteirão do hospital, me sentia angustiada de ver como os olhares do cotidiano
atravessavam a existência daquelas pessoas. No começo eles temiam sair, me perguntavam se
as pessoas seriam educadas com eles e se iriam tratá-los bem.
Comecei então a fazer um movimento de transferência, porque - como sabemos - o
manicômio não está tão somente dentro dos muros de um hospital psiquiátrico. O manicômio

143
vive e é reificado cotidianamente na nossa sociedade e a estigmatização delega para a loucura
a crença na ausência de alternativas. A escritora Virgínia Woolf foi precisa ao escrever que o
próprio olhar dos outros são prisões e que estamos, de certa forma, presos nos pensamentos
que são criados sobre nós. Esse é exatamente o ponto que quero trabalhar agora, afinal, por
que mesmo com todas as reformas dos espaços físicos, alterações e tentativas de
humanização, luta popular e entraves políticos, ainda temos instituições com essas estruturas
no nosso país? O que aprisiona os moradores são mesmo os muros das instituições? Como
fazer a desinstitucionalização em massa dentro de pensamentos construídos por décadas na
lógica manicomial? E ainda: Para onde devemos direcionar os movimentos de
desinstitucionalização?
Para começar essa discussão, podemos retomar três conceitos que têm sido
desenvolvidos academicamente para pensar neste tipo de questão, são eles: instituição,
institucionalização e desinstitucionalização. Sobre o primeiro, poderíamos recorrer à clássica
definição de “instituição total”, do sociólogo norte-americano Erving Goffman (1961, p. 11).
Para ele, esses espaços se caracterizam principalmente por serem estabelecimentos fechados,
nos quais um grupo numeroso de internos vive sua vida de maneira formalmente
administrada, em regime de internação e em tempo integral. Nessa toada, a instituição é um
único lugar de residência, trabalho, lazer e de qualquer outra atividade que o interno irá
experienciar.
Essa definição pode muito bem representar os hospitais psiquiátricos nos quais esta
pesquisa se debruçou, entretanto, proponho que façamos um exercício de além de reconhecer
essas características, avançar, encontrando os traços das instituições dentro e fora dos muros
físicos. Foucault (1987) explica que a sociedade disciplinar possibilitou a instauração do
poder disciplinar que tem como característica fundante a necessidade de se exercer em um
local fechado em si mesmo. Nas instituições, o poder e a sujeição transitam não somente pela
sujeição, mas também pela sutileza do adestramento, além disso, esse poder - dissimétrico e
não limitado - atravessa todas as relações.
Obviamente que essas instituições não são somente psiquiátricas, mas podem ser
também pedagógicas, médicas, penais ou industriais. Nelas, têm-se um controle do corpo e do
tempo, produzindo os “corpos dóceis”. Nesse sentido, as instituições serviriam
principalmente para fixar os sujeitos nos sistemas normatizadores, fabricando sujeitos a partir
de uma norma (idem). O poder aparece como fundamental nesta discussão, pois antes mesmo
de pensar em definições para a instituição, devemos investigar essa atmosfera implícita:

144
O que se deveria mostrar, na verdade, é que o essencial não é a instituição
com sua regularidade, com suas regras, mas sim, precisamente, esses
desequilíbrios de poder, sobre os quais tentei lhes mostrar como falseavam e,
ao mesmo tempo, faziam funcionar a regularidade do asilo. O importante,
portanto, não são as regularidades institucionais, mas muito mais as
disposições de poder, as redes, as correntes, as intermediações, os pontos de
apoio, as diferenças de potencial que caracterizam uma forma de poder e
que, creio, são precisamente constitutivos ao mesmo tempo do indivíduo e
da coletividade (FOUCAULT, 2006, p. 20).

O autor define esse poder como disciplinar, como uma última intermediação pela qual
os poderes em geral tocam os corpos e agem sobre eles, modificando-os, “Em outras palavras,
creio que o poder disciplinar é certa modalidade, bem específica da nossa sociedade, do que
poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder” (idem p. 50). Para finalizar, Foucault
traz uma proposta interessante, no lugar do conceito de instituição, provoca que pensemos em
quais são as táticas que são postas em ação nessas forças que são contrapostas nestes espaços,
e em como esses enfrentamentos se desenrolam na prática psiquiátrica. Nessa altura, vale
então reiterar o conceito de instituições no plural, pois têm características múltiplas e não
podem ser limitadas aos espaços físicos em si.
Além disso, essas instituições compõem os processos de institucionalização e também
de desinstitucionalização, determinando práticas, criando saberes e reificando para si a
detenção do que é visto como verdade. Nessa toada, a construção dessas instituições sobre a
separação do objeto doença da existência global, complexa e concreta do paciente e do corpo
em sociedade, foi um dos mais obscuros perigos da Psiquiatria (ROTELLI, 1990, p. 1), que
usou esses espaços institucionalizantes como destino de seus internados.
Partindo para a institucionalização, percebemos este conceito como algo que também
extrapola os espaços físicos, não podendo ser pensada apenas como o ato de trancar dentro,
mas como algo muito mais complexo, que atua tanto dentro quanto fora de estruturas. Essa
prática, de institucionalização, constitui os sujeitos, pois são, antes de tudo, modos de
controlar os corpos, organizar os espaços e vigiar os comportamentos (FOUCAULT, 2009).
Sua estrutura é tão definida que, socialmente, sua própria existência é suficiente para impedir
comportamentos futuros indesejados, a partir de sistemas de coerção dos processos de
subjetivação dos indivíduos que a ela estão expostos:

Parece-me que poderíamos dizer o seguinte: a crítica institucional - hesito


dizer "antipsiquiátrica" - , enfim, certa forma de crítica que se desenvolveu a
partir dos anos 1930-19401, partiu, ao contrário, não de um discurso
psiquiátrico que se supõe verdadeiro para dele deduzir a necessidade de uma
instituição e de um poder médicos, mas sim do fato da instituição, do
funcionamento da instituição, da crítica da instituição, para evidenciar, por

145
um lado, a violência do poder médico que nela se exercia e, por outro lado,
os efeitos de desconhecimento que perturbavam logo de saída a suposta
verdade desse discurso médico (FOUCAULT, 2008, p. 49).

Por fim, o conceito de desinstitucionalização também repete as características dos


anteriores, por não ser suficiente em si, mas em relação a algo, por ser múltiplo e também por
não poder ser definido em experiências singulares, mas na relação entre infinitas
possibilidades. Primeiramente, devemos evitar uma costumeira confusão entre os termos
“desinstitucionalização” e “desospitalização” (OLIVEIRA, 2010, p. 274) pois, assim como o
ato de institucionar, o ato de desinstitucionalizar não pode ser resumido à ação de retirar de
hospitais (desospitalizar):

Desinstitucionalizar é alterar esses padrões e buscar novas maneiras de ser,


reinventar novas formas de viver e, no âmbito do cuidado com a saúde
mental, criar novas abordagens, praticar novos olhares, inventar a mudança
para influir de forma positiva na determinação social do processo
saúde-doença (OLIVEIRA, 2010, p. 274).

Na definição de Oliveira, podemos ver o quanto o desinstitucionalizar atua tanto


dentro, quanto fora dos muros, na relação entre diferentes sujeitos, em espaços não tão
somente destinados às práticas psiquiátricas, mas também nas interações do dia a dia e nas
vivências construídas no cotidiano. Segundo o psiquiatra Franco Rotelli (1990, p. 2), “A
verdadeira desinstitucionalização será então o processo prático-crítico que reorienta
instituições e serviços, energias e saberes, estratégias e intervenções em direção a este tão
diferente objeto.”. Vale fazer uma pausa para perceber que também a institucionalização é
composta por esta mesma estrutura, pois está coabitada por mecanismos que a reforçam na
mesma medida que impedem que seu oposto - a desinstitucionalização - ocorra.
São essas estruturas que percorremos agora, pois, antes de tentar entender como
desinstitucionalizar, precisamos saber o que ainda institucionaliza, precisamos conhecer quais
os mecanismos que reforçam a lógica manicomial dentro das instituições asilares e, dito de
outro modo, precisamos conhecer exatamente o que faz com que pessoas continuem
habitando alas psiquiátricas de forma permanente ainda em 2023. Para tantas pretenções, vale
retomar a constatação da necessidade de descer aos casos que o hospital encerrou, “[...] no
sentido de olhar o rosto e ouvir suas falas [dos pacientes], conhecer suas histórias de vida e as
razões de seu internamento e perceber como se articulam dentro da vila asilar” (CUNHA,
1986, p. 144). É na cartografia etnográfica que essas barreiras institucionalizantes foram
sendo descobertas, nesse descer o olhar para tudo aquilo que vive e habita a instituição e é a
partir dele que percorremos os caminhos que se seguirão.

146
4.2) A chegada (ao hospital) - ou a saída (da vida)

Embora este quarto Capítulo traz no título a palavra “mergulho”, não me


surpreenderia saber que quem o lê esteja sentindo que ainda estamos apenas com água nas
canelas. Pois bem, foi intencional a criação dessa sensação, precisava que acostumássemos
nosso corpo com a “água gelada” antes do mergulho, tal como em um dia de inverno na praia,
onde primeiro colocamos a ponta dos pés e sentimos um congelar da alma, depois damos
alguns passos e a água alcança os joelhos, fazendo com que o frio no pé já não seja mais
percebido, e o choque congelante inicial seja amenizado, depois, com mais alguns passos,
deixamos a água chegar no umbigo, e assim por diante, com mais alguns passos lentos vamos
para o esperado mergulho. Existem algumas pessoas que preferem mergulhar de uma vez,
correm em direção à água e, em segundos, se vêem submersas naquele universo gelado e
infinito. Eu pertenço ao primeiro grupo, por isso optei por ir pouco a pouco, para evitar que
tenhamos a sensação de congelar o cérebro, ou - como tem ocorrido há séculos - a nossa
sensibilidade.
Com os pés já na água, vamos ver algumas histórias que os moradores contaram sobre
a chegada ao hospital, o que chamei, inspirada por reflexões anteriores, de A Primeira
Internação. A conversa abaixo aconteceu no dia 2 de novembro de 2021, com um morador de
50 anos de idade, que está institucionalizado há 26 anos.

[...] ele me contou que se internou no dia 16 de novembro de 1990.


Perguntei se no mesmo hospital, mas ele me disse que foi internado primeiro
na Colônia, “Minha vida toda é internado nesses hospitais”. Perguntei
quantos anos ele tinha quando foi internado e ele me disse que tinha uns 17
ou 18 anos. Questionei o que tinha acontecido, e ele me disse algo sobre a
polícia, “A polícia me pegou quando me deu uma crise lá no centro
vendendo jornal, daí ela me pegou e me levou lá pra delegacia, foi um dia de
noite, e disseram: “o Dr., o senhor dorme aqui hoje até amanhã, amanhã nós
levamo o senhor no xxx que é um hospital que trata as pessoa dos nervos
assim, se o senhor quiser ficar lá, muito que bem, se não, não temo lugar pra
te levar!”. Daí me trouxeram no xxx, eu gostei dali e tô ali internado até
hoje”. Depois, perguntei com quem ele morava antes, e ele disse que com a
família. Daí aproveitei pra perguntar quem era… ele disse que eles moravam
no jardim Atlântico, mas que não sabe se “são vivo ou se são morto”. Me
contou que em todos os anos de internação, só foi passear na casa deles uma
vez. Perguntei então qual tinha sido a crise que ele falou que teve entregando
jornal e ele me contou que foi um ataque epiléptico: “Eu, quando me dá esse
ataque epilético, onde eu tô eu caio. Aqui ó, uma vez eu caí atrás do fogão,
encostei a perna e a barriga no fogão quente, aí ó, o couro ficou tudo
grudado no fogão! Olha aqui como que eu fiquei!”. Fiquei muito comovida
com o que ele me contava, aquilo foi reverberando em mim, como pode
alguém viver tantas sequências de violência? Voltei para o tema da primeira

147
internação e ele me contou que foi trazido para o Hospital porque, segundo
os policiais, lá era um lugar que tratava o problema que ele tinha, o
“problema de nervo”. Concluiu: “É… eu já passei coisa que nem um
cachorro não quer passar. Eu já passei dor que nem um cachorro não quer
ter. É triste mesmo ser epiléptico…”. (Diário de Campo, 2 de novembro de
2021).

Foi interessante notar a nitidez que o morador tinha sobre sua internação; nos
prontuários, encontrei a informação de que ele foi internado com 18 anos, depois de uma crise
epiléptica. Depois daquele episódio, o rapaz foi reinternado no conhecido sistema de porta
giratória, ou seja, teve várias internações repetidas em uma mesma instituição, por exatas oito
vezes em seis anos, sendo institucionalizado permanentemente em 1996, quando tinha 24
anos de idade. Desde então, ele é morador da enfermaria do hospital. Mesmo depois de tantos
anos vivendo em um lugar, que muito faz confundir as percepções de espaço e tempo, ele
ainda recorda os detalhes da vida antes e durante a internação, e compõe - costantemente -
suas vivências com o cotidiano que para ele é possível. Nessa história, chama a atenção o
motivo de sua internação, pois ele foi levado ao hospital depois de uma crise epiléptica, por
policiais, que decidiram que os “problemas de nervo” que ele tinha, seriam melhor
solucionados em uma ala psiquiátrica, ao invés de um hospital geral.
No segundo caso, temos outro morador, de 52 anos e institucionalizado há 27 anos.
Ele teve sua primeira internação aos 13 anos de idade e tornou-se morador permanentemente
aos 25 anos, depois de 21 internações na mesma instituição. Além da ocorrência do fenômeno
da porta giratória, outras questões que já haviam aparecido nas histórias anteriores, também
se repetiram em seus relatos:

Questionei quando ele veio pro hospital pela primeira vez e ele me disse que
tinha uns “7 aninho, uns 10 aninho”, ainda disse que naquela época ainda
estudava no colégio e tomava mamadeira! Perguntei se ele nasceu aqui na
região, mas ele me contou que é nascido no Paraná e de lá foi pro
Educandário, pro Hospital de Custódia, pro CRT e depois pro “manicômio
de Florianópolis”. Me disse que sofreu um acidente na cabeça e ficou muito
ruim. Também me contou que sua família era seus colegas, pois ele não
tinha pai e não tinha mãe. Perguntei se hoje em dia ele tinha vontade de
alguma coisa, pra mudar o rumo da conversa, ele me disse que tinha vontade
de trabalhar, de namorar… e que queria sair do hospital, além de também ter
vontade de ter um isqueirinho azul. (Diário de Campo, 18 de novembro de
2021).

O relato desse morador é também muito revelador, primeiro porque ele denuncia,
através de suas experiências, com um exemplo empírico, os fracassos das diferentes
instituições que o internaram repetidas vezes sem conseguir efetivar seus objetivos. Em

148
segundo plano, vemos o caráter social de seu internamento, a ausência de estrutura familiar e
também os desafios de uma estrutura que somente fomenta espaços para a exclusão. Segundo
ele, sua família era composta por seus amigos, que também viviam nas ruas. Na luta por
sobrevivência, acabou por ser levado para um Hospital Psiquiátrico Público, pela decisão de
policiais que o encontraram e decidiram que naquele local ele poderia resolver seus
problemas, aos 13 anos de idade.
Me pergunto se esses policiais, quando escolhiam e decidiam internar pessoas em
condições socioeconômicas precárias, sabiam que estavam levando aqueles indivíduos para
uma espécie de prisão perpétua, uma vez que eles passariam a ser moradores desses espaços
que não tinham estruturas asilares, tendo sua própria humanidade colocada em questão e
impossibilitando qualquer possibilidade de recuperação. Amarante e Torre (2018) resumiram
de forma minuciosa esse “regramento da desordem” na institucionalização psiquiátrica, como
processos de dessubjetivação, desistorização e também de perda das redes de relações sociais,
desfigurando as subjetividades e as possibilidades expressivas e sensíveis desses indivíduos
(p. 1094).
A história de outra moradora ilustra, mais uma vez, o aprisionamento e a exclusão de
problemas pertencentes à ordem econômica, social e política, antes de serem definidos como
pertencentes à ordem médica - especificamente a psiquiátrica. Ela tem 45 anos de idade e
suas informações sobre data de internação, tempo institucionalizada, número de internações,
entre outras, não foram encontradas nos seus documentos. Segundo a equipe de profissionais,
isso aconteceu porque nos outros hospitais em que ela morou anteriormente não enviaram
todas as informações da moradora na transferência, provavelmente perto da virada do século,
em 2000. Além disso, alguns de seus documentos estão com sua família, que recebe seu
benefício previdenciário mensalmente e que dificilmente a visita. Quando conversamos sobre
sua chegada ao hospital, ela me contou:

Ela me disse que veio de Rio Maina, de um hospital que fechou… vieram
ela e mais um outro paciente que já faleceu… Ela foi enviada primeiro para
a ala de internação de agudos, depois para um espaço que simulava uma
residência terapêutica mas estava dentro do hospital e, em seguida, foi para a
ala de moradores. Perguntei como era no outro hospital e ela me disse que
era difícil explicar, pois “tinha muita gente louca”. Me contou que chegou lá
com 13 anos, porque estava se prostituindo e a família a levou… Disse que
sentiu muito medo quando foi internada, pois tinha um rapaz que “mamou
na teta” dela e de outra paciente, quando elas saíram pra fumar um cigarro.
Perguntei como foi ser transferida para o hospital que ela vivia hoje, mas ela
me relatou que eles não falaram que ela estava indo para lá, eles não
contaram, falaram que iriam levá-la pra casa de sua Tia e quando ela
percebeu, já na ambulância, ela estava na nova instituição: “Eu não tinha pra

149
onde ir, eles falaram que como eles não tinham pra onde levar eu, levaram
pra cá”. (Diário de Campo, 31 de março de 2022).

Nesse relato vemos que a primeira internação aconteceu quando a moradora ainda era
menor de idade, com 13 anos, assim como no caso anterior. Essa recorrência de internações
na infância e na adolescência foi muito comum nos hospitais em que esta pesquisa foi
desenvolvida. Foucault (1977) faz uma retomada interessante sobre o internamento de
crianças na construção da institucionalização psiquiátrica. Segundo o autor, há uma definição
dos padrões de velocidade de desenvolvimento de crianças e uma lentidão desse processo era
vista como um retardo, ou seja, um desenvolvimento mais lento. Nesse pensamento, a
maioria das crianças, que se desenvolvem dentro do padrão aceitável, provoca a construção
de uma normatividade em relação à qual as crianças serão situadas, sendo a fase adulta, o
estágio terminal deste desenvolvimento.
Embora no início os pensadores diferenciam a “idiotia” e o “retardo” da “doença
mental” ou “alienação”, com o passar dos anos, elas foram colocadas como pertencentes à
mesma categoria e destinadas à mesma instituição asilar: o hospital psiquiátrico. Nesses
internamentos, crianças e adultos eram internados nos mesmos espaços: “Durante toda a
segunda metade do século XIX, vocês vão encontrar as crianças idiotas efetivamente
colonizadas no interior do espaço psiquiátrico.” (FOUCAULT, 2008, p. 268). No cerne dessas
internações, não estavam os tratamentos, mas:

[...] não é para escolarizar as crianças ou porque não se consegue


escolarizá-las que se coloca o problema de saber onde pô-las. Coloca-se o
problema de saber onde pô-las, não em função da sua escolarização, da sua
capacidade de se deixar escolarizar; coloca-se a questão de saber onde pô-las
em função do trabalho dos pais, isto é, como fazer para que a criança idio-
ta, com os cuidados que requer, não seja um obstáculo uma vez que os pais
trabalham? (idem, p. 270).

Em outras palavras, já no início dessas internações, a intenção primordial não era o


tratamento, como se supõe ser a função de um hospital, mas sim o controle dessas crianças,
que podiam afetar o desenvolvimento econômico de seus familiares. Para o cuidado delas, foi
feita uma proporção que dizia que nos asilos seria necessário uma pessoa para cada cinco
crianças (FOUCAULT, 2008, p. 270), algo muito diferente das casas da família que, em
alguns casos, precisavam até mesmo de mais de um adulto para o cuidado de uma única
criança: “Cuidar em casa de um idiota, ainda mais quando inválido, consome os salários e a
capacidade das pessoas da casa, de modo que uma família inteira cai na miséria.” (idem, p.
270). É por meio do problema prático trazido pelas crianças, ainda nos séculos XVIII e XIX,
que a psiquiatria foi tomando poder de proporções que iam para além da “correção da

150
loucura”, se tornando “[...] algo infinitamente mais geral e mais perigoso, que é o poder sobre
o anormal, poder de definir o que é anormal, de controlá-lo, de corrigi-lo” (idem, p. 281).
Esse poder foi se expandindo cada vez mais, atingiu também outras camadas da
população e, ainda no século XIX, os então chamados de criminosos, bêbados ou prostitutas
eram considerados como imbecis de nascimento que não foram disciplinados (FOUCAULT,
2008, p. 280), cabendo às instituições psiquiátricas o asilo desses indivíduos. E, podemos
notar, que mais de um século depois, no Brasil, isso ainda se repetia, como na internação da
moradora do caso citado acima, que foi levada à instituição por estar se prostituindo. Esse é
um exemplo da generalização da psiquiatria, que se ligou a todos os regimes disciplinares que
existem ao seu redor, disseminando a ideia de que somente ela é ao mesmo tempo a ciência e
o poder de tudo aquilo que é considerado como anormal (FOUCAULT, 2008).
Ainda no caso da moradora, assim como nos outros casos acima descritos, ela foi
internada diversas vezes, segundo ela, “tantas vezes que não se pode contar”. Mais uma vez,
repetiram-se as situações de confusas justificativas de internação. Ela me contou que, quando
estava com a família, passava muita fome e precisava fazer algo para resolver a situação,
então começou a se prostituir. Além disso, a residente recebeu a comum explicação de “não
ter pra onde ir”, para justificar sua internação de caráter asilar dentro de um hospital depois de
alguns anos passados desde sua primeira internação. Essa ausência de alternativa e
impossibilidade de negociação apareceram em quase todos os relatos dos moradores. A
história dela tem uma outra dimensão particular pois, como dito anteriormente, depois de
viver alguns anos nas alas hospitalares, ela foi transferida para uma ala parecida com uma
Residência Terapêutica, vinculada ao mesmo hospital, onde pôde ter uma vida muito diferente
do ambiente que habitava. Entretanto, segundo a equipe profissional, a casa que ela e os
outros moradores viviam era muito antiga e era perigoso manter pessoas vivendo ali, então,
em vez de reformar ou alugar outra casa, os profissionais do hospital optaram por
institucionalizar os moradores novamente na ala fechada.
Atualmente, a moradora tem seus próprios pertences, diferente dos outros residentes
daquele espaço. Ela conseguiu manter um guarda-roupas onde acomoda os objetos que juntou
quando morou na Residência, também “trabalha” na Terapia Ocupacional, fazendo paninhos
para postos de gasolina e recebe um pagamento mensal, com o qual faz encomendas para a
enfermeira chefe, que traz o que ela precisa. Normalmente, ela recebe 90 reais e escolhe
produtos de higiene pessoal, como shampoo, sabonetes e cremes e também guloseimas. Ela
tem uma das melhores relações com a equipe, inclusive, na ocasião do almoço de Páscoa, foi

151
ela quem conseguiu repetir a comida do almoço, desencadeando o episódio que citei
anteriormente.
O último exemplo sobre o momento da Primeira Internação é sobre a história de um
outro morador, que está institucionalizado há 15 anos nesse hospital, mas veio transferido de
outra instituição psiquiátrica, onde viveu por pelo menos mais 15 anos. Sabemos disso graças
ao álbum de fotos, que o morador guarda com registros de alguns passeios e viagens que fez
no primeiro hospital em que foi internado como morador. Atualmente, ele tem 57 anos de
idade e foi internado 10 vezes antes de se tornar um residente.

Perguntei como foi quando ele chegou aqui e ele me disse que “quando
começou a internar” ele primeiro ficava um mês no hospital e dois meses em
casa. Depois trocou, ele passou a ficar dois meses no hospital e um mês em
casa… Depois ficou três, quatro meses direto no hospital… Naquela
ocasião, sua mãe só o visitou uma vez e não o levou mais para casa.
Finalizou dizendo: “A minha mãe tava cansada de fazer comida pra mim, aí
ela me colocou aqui pra descansar, mas eu falei pra ela que ela devia ter me
falado, eu não sabia que ela tava cansada, ela não me contou…”. (Diário de
Campo, 26 de janeiro de 2022).

A história desse morador, de certa forma, repete novamente alguns padrões. O número
de internações é alto, o rompimento com a família também aconteceu durante o processo de
internação, e a imprecisão do motivo da institucionalização aparece em todas as tentativas de
explicar os seus internamentos. Segundo alguns profissionais, no caso dele, a família passava
por muita dificuldade financeira e não conseguia manter os cuidados com o morador em casa.
Nas nossas conversas, ele sempre dizia que, quando saísse, me receberia na sua casa e faria
bolos e bolachinhas para mim, tal como aprendeu com sua mãe. Ele sempre reafirmava que
sabia cozinhar e que poderia fazer comidas caso eu fosse visitá-lo.
Fiquei pensando o quanto foi marcante a justificativa de que o levaram para o
hospital, pois sua mãe estava “cansada de cozinhar” para ele e também porque ele “não
trabalhava”. Provavelmente, apenas sua mãe cuidava dele e, quando ela envelheceu, a família
decidiu levar o morador para um Hospital Psiquiátrico de caráter asilar. Isso me lembrou do
trabalho de Jenkins (2015) pois, segundo a autora, o déficit de experiências produtivas
aparece como uma forma de mal-estar social - com inadaptação, sentimento de vazio e
valorização da “anomia social” (p. 123). Além do mais, também ilustra o caso do morador,
porque ele foi internado justamente por esse “déficit de experiências produtivas”, uma vez
que não desenvolvia nem atividades laborativas nem domésticas.

152
Nesse caso, podemos ver novamente uma repetição do que constatou Foucault (2008)
anos atrás, quando nessas situações confundem-se as necessidades de cuidado com a
necessidade da institucionalização, em situações que economicamente não poderiam ser
sustentadas pela família. No seu prontuário não está descrito nenhum episódio de crise ou
agressividade, apenas alguns delírios persecutórios. Ele desempenha bem as tarefas cotidianas
no pavilhão que habita, cuida da sua própria higiene, sempre anda muito bem arrumado e
gosta muito de usar casacos e cachecóis. Ele foi o primeiro morador que conheci e que não
tive certeza se era mesmo morador ou algum profissional do Hospital, escrevi no diário: “No
refeitório falei para o morador que ele estava chique e ele disse: “Perto desses mendigos né!”.
Ele usava cachecol vermelho e sobretudo preto, além de luvas pretas e botas” (Diário de
Campo, 8 de novembro de 2021).
Essas situações nos mostram, novamente, uma frequente barreira que impede todo e
qualquer movimento de desinstitucionalização: a reificação da ideia da necessidade da
instituição a partir da crença na impossibilidade de se encontrar alternativas de moradia e
tratamento para os moradores. Esse imaginário se traduz através da repetição da ideia do “não
ter para onde ir” que é reproduzido cotidianamente no hospital e também está inserido nos
prontuários dos moradores. Essa inclinação faz questionar a possibilidade de alta, tanto entre
os moradores, quanto entre os profissionais.
Além desse aniquilamento de possibilidades desenhado pelas ações
institucionalizantes que parecem, num primeiro olhar, serem sutis, mas que ecoam
diariamente naquele espaço, também temos outro fator que reifica a institucionalização de
forma cotidiana, que pode ser visto a partir da recorrência da imprecisão nos momentos de
internamento. Muitos deles vieram transferidos de outras instituições, ou seja, têm uma
experiência de vida composta majoritariamente por uma espécie de coleção de
institucionalização, visto que já habitavam anteriormente outros hospitais também em
internações de longa duração, como em orfanatos, prisões, entre outros (DEL SARTO, 2020).
Como suas internações aconteceram há muitos anos, não foi seguida uma regulamentação dos
processos terapêuticos e, na maioria dos casos, as situações sociais, econômicas e políticas se
misturaram aos motivos de internamento, mesmo que esse ocorresse em uma instituição
médica e psiquiátrica. Nessa toada, a imprecisão das justificativas para seus internamentos
são repetidas cotidianamente entre os diferentes sujeitos que vivem na instituição,
impossibilitando qualquer tentativa de saída, uma vez que para muitos é inexplicável o fato de
ainda estarem naquele ambiente.

153
Para sintetizar, além da perda de vínculos externos provocada pela internação de longa
permanência, a imprecisão das justificativas dos recorrentes internamentos e a
impossibilidade de vislumbre de alternativas outras para as vivências dos moradores são
exemplos de barreiras que podemos encontrar ao adentrar o cotidiano de uma instituição
psiquiátrica asilar. Além disso, foram as relações entre os profissionais e os moradores e
também as relações entre os próprios moradores, reproduzindo as normativas psiquiátricas no
cotidiano asilar, que alimentaram diariamente os muros da instituição, fazendo-os crer
(moradores, profissionais e familiares) que a única alternativa que tinham era aquela, ou seja,
viver uma vida toda dentro de uma ala psiquiátrica.

4.3) Concepções de Loucura

“Ontem à noite a enfermeira me deu um comprimido branquinho, dormi a


tarde toda…” [moradora]. Perguntei por que, e ela disse que era porque ela
estava muito preocupada com “esses moradores que ficam batendo em
inocente”. Disse que tem morador que “tá louco”, “fica batendo em
inocente”... E me perguntou: “Tão esperando o que pra levar ele pro xxx
[outro hospital]. Vai esperar o que? Vai esperar matar um? Filho da puta,
desgraçado!”. Emendou vários pensamentos: “Acho que nem um louco faz o
que ele faz. Eu chorei, querida… tanto… eram lágrimas à derramar de
verdade... eu ando meio rebelde, eu to numa fase muito ruim, querida…”.
[...] Resolvi perguntar o que significava “ser louco” e ela me disse que
“Louco é quem faz as coisas e não se lembra”, em seguida disse: “eu não
sou louca, não sou doente, eu sou doida! Doida, doida... querida…” [rimos].
Daí, perguntei o que é ser doida, e ela me explicou que uma pessoa doida faz
coisas e se lembra de tudo, disse: “Querida... vocês não viram nada, não
sabem do que sou capaz, nem imaginam... Mas isso eu não vou contar, não
vou deixar escapar da minha boca…” [colocou as duas mãos tampando a
boca]. Perguntei como foi vir pra cá e ela me contou que quem a trouxe foi a
polícia, amarrada em uma maca. Disse que dois policiais não conseguiram
segurá-la e que enquanto a amarravam, falavam: “vaca brava!”, “ô vaca
brava!” [soltou algumas gargalhadas] “louca, louca…”. “A atendente até
falou pra mim: “Eu vou te dar uma surra tão grande que você nunca vai
esquecer!”. (Diário de Campo, 22 de março de 2022).

Ela é uma moradora que sempre está em movimento; embora viva no hospital há 24
anos, ela mantém uma rotina de exercício físico diário (2 horas por dia), gosta muito de
conversar com os funcionários, canta algumas músicas enquanto se exercita e é extremamente
animada e ativa. Atualmente, ela tem 64 anos de idade e sempre viveu no mesmo hospital,
desde a sua primeira internação. Ela me contou que anteriormente ao seu primeiro
internamento, ela nunca tinha ido para um hospital, nem mesmo para um hospital geral, mas
depois da morte de sua patroa, foi tomada por uma tristeza profunda, ficando cada vez mais

154
doente, até que a levaram para um hospital psiquiátrico. Ela vivia com a patroa e cuidava dela
desde sua adolescência. A institucionalização da moradora, diferente da maioria dos outros
moradores, foi efetivada quando ela já estava com 40 anos de idade e as informações da
tristeza profunda pela morte da ex-patroa constam em seus documentos. Ela também é uma
das poucas moradoras que ainda recebe visita da família, de seu irmão e de sua cunhada. O
casal recebe sua aposentadoria e repassa uma pequena parte para a moradora, pois são eles
quem cuidam de sua filha, uma jovem que ainda não foi visitar a mãe e, por esse motivo,
acabam ficando com a maior parte do dinheiro da moradora. Ela disse que não tem certeza se
sua filha sabe que ela mora no hospital, pois não tem informações exatas sobre ela.
Na fala da moradora, a diferenciação entre ser ou estar “louca” e “doida” é muito
interessante, pois revela a potência da sabedoria de um indivíduo pertencente ao grupo
daqueles que mais entendem sobre institucionalização psiquiátrica, a saber: os moradores. Ela
é um exemplo clássico de uma interlocutora experiente (ANDRADE, 2012) e foi com ela que
pude aprender sobre alguns dos escapes da instituição asilar. Ela me fez pensar nos entres
daquele espaço, nas frestas, no que escorrega e escapa, para retomar os filósofos Deleuze e
Guattari (1997), ou no devir minoritário no sentido de ser esse um caso político que apela
para um trabalho de potência ou para uma micropolítica ativa, uma vez que todo devir é
também um bloco de coexistência.
Caminhando a partir desse direcionamento, inspirada por esses autores, optei neste
subtópico por focarmos principalmente na experiência da moradora na definição da loucura e
da diferenciação entre doideira ou doidice, para que possamos começar a pensar, a partir da
perspectiva dos moradores, nas outras barreiras que estão sendo formadas no impedimento da
desinstitucionalização. Diferente dos outros dois tópicos anteriores, vamos, a partir de agora,
ver como são interpretadas, vivenciadas e experienciadas, na cartografia da vida institucional,
as barreiras que compõem e são compostas pelos cotidianos.
A própria reificação da definição depreciativa da loucura pode ser considerada como
uma resistente barreira. Falo desse modo seguindo a extensa literatura que definiu que, ao
criar-se a loucura, precisa-se também criar uma ideia de normalidade e um destino para aquilo
que é considerado uma anormalidade (GOFFMAN, 1961; FOUCAULT 2009; CUNHA,
1986; VELHO, 1981; AMARANTE, 2020; etc.). Mesmo depois de anos internados, mesmo
depois de todos os movimentos de humanização dos serviços de saúde públicos e dos
inúmeros e incontáveis avanços trazidos pelas Reformas, a manutenção manicomial que recai
sobre o conceito de loucura é ainda muito ativa dentro dos muros dos hospitais, não tão
somente entre os profissionais que a utilizam para deslegitimar os discursos dos moradores,

155
mas também entre os próprios moradores que a utilizam de acordo com diferentes
intencionalidades.
Isso nos leva a pensar, mais uma vez, na possibilidade de inversão da lógica tão
difundida e já trabalhada anteriormente que faz crer ser necessário, para os moradores, ter um
local para morar no interior dos hospitais psiquiátricos, o que justificaria, dentro dessa lógica,
a necessidade da manutenção da instituição e a inexistência dos movimentos de
desinstitucionalização. Entretanto, por outro lado, vemos novamente que a instituição também
precisa criar mecanismos para manter pessoas vivendo dentro de suas estruturas, pois é essa a
única forma de manter sua própria existência. Essa inversão da necessidade, passando da
instituição para os moradores é, como dito, uma das principais ações que garantem a
institucionalização permanente deles.
Voltando ao conceito de loucura, podemos ver que a moradora, por exemplo, faz uma
articulação fundamental ao falar de si relacionando-a à doideira pois, nas suas palavras, ela
própria não é “louca”, mas sim “doida”. Nessa verbalização, ela faz uma reflexão sobre ter ou
não ter consciência dos atos para definir a condição dos indivíduos que têm para si delegado
os status de “louco” ou “doido”. Segundo ela, um “doido” é aquele indivíduo que faz algo e
se lembra do que fez posteriormente, ou seja, faz com intencionalidade e consciência aquela
ação. Já o “louco” seria aquele indivíduo que não percebe que está agindo de determinada
maneira, nem que está executando determinada ação e, posteriormente, não se lembra do que
fez. Segundo a experiência dela, nos momentos de loucura, a pessoa perde sua própria
consciência, ou seja, não age com intencionalidade. Um outro morador também define a
loucura de um modo muito interessante pois, para ele, uma pessoa “louca” é aquela que tem
“guerra na cabeça” (Diário de Campo, 23 de novembro de 2021). A experiência de ouvir
vozes, provavelmente, funda sua ideia da loucura como uma guerra, na qual diferentes forças
opostas lutam direcionando suas ações.
Observar essas definições e o uso delas no cotidiano hospitalar nos leva diretamente
para o circuito que foi formado ao longo dos anos e que sempre chegou, de uma forma ou de
outra, em um mesmo local: na exclusão daqueles que carregam essa definição no interior das
instituições psiquiátricas e, também, na própria diversidade das múltiplas tentativas de se
criar definições para reforçar a execução dessa ação. Talvez esse seja um dos únicos pontos
em comum entre a área médica, a área antropológica e a área composta pelos experientes
(ANDRADE, 2012) da loucura, pois todos os movimentos criados por esses subgrupos
acabaram por reificar a necessidade de uma definição, entretanto, essa significação está
normalmente carregada de sentidos que delegam espaços-excludentes.

156
Redirecionando o olhar para as definições clássicas de loucura, vemos que geralmente
ela está associada à uma existência facilmente errante (FOUCAULT, 2009, p. 9), mesmo
quando é percebida como um conceito escorregadio, cercado por limites imprecisos e por
uma espécie de natureza indefinível (CUNHA, 1986, p. 11). Segundo Veena Das (2011), as
elocuções ganham significados a partir dos contextos ao mesmo tempo que também os
formam, nesse sentido, observando nossos interlocutores em campo, no nosso caso no interior
dos hospitais, poderíamos perceber que os fragmentos do que dizem estão compostos por um
repertório de noções culturalmente densas que os cercam.
Quando a moradora escolheu diferenciar o “louco” do “doido”, ela reproduz um
padrão que separa em diferentes grupos os sujeitos. Grupos esses que podem ser
hierarquicamente diferenciados. Fora do hospital, normalmente, essa separação ocorre entre o
grupo dos “normais” versus o grupo dos “anormais”, generalizando os indivíduos
pertencentes a cada uma daquelas esferas duais. Isso também é reproduzido na ala
psiquiátrica, entretanto, ela cria essa divisão entre “louco” e “doido” para também comprovar
a distância que ela própria tem em relação aos outros que habitam aquele espaço, fazendo
uma diferenciação pontual e trazendo para sua realidade a permanência de sua consciência,
uma vez que se denomina de “doida”, aquela que “faz as coisas e se lembra do que fez”.
Esse movimento é muito significativo, já que no hospital os moradores têm,
normalmente, sua consciência colocada em dúvida constantemente. O deslocamento que a
moradora faz, aproximando-a da definição do “ser doida”, revela um circuito criado dentro
daquela estrutura para comprovar a existência da sua razão. Ela cria uma estratégia a partir
dessa diferenciação que a distância do grupo de moradores “loucos” e, ao mesmo tempo, a
aproxima dos moradores “doidos”, que assim como ela, também pertencem ao grupo
daqueles que agem com intencionalidade. A definição da moradora foi muito específica e não
se repetiu no cotidiano asilar. Entre os moradores, outra definição foi mais comum: aquela
que parte de um morador para se referenciar a outro como um “louco” ou um “doido”, ambos
sendo utilizados como sinônimos que generalizam diferenças.
Como não foi muito comum encontrar a diferença entre a loucura e a doideira no
trabalho de campo, resolvi buscar nas anotações a regularidade do uso dessas palavras para
identificar a frequência da escolha de utilização desses termos no cotidiano institucional.
Percebi que mesmo sendo usadas na maioria dos casos como sinônimos, o adjetivo ou
substantivo “louco”, recorrido de forma depreciativa, foi mais utilizado do que o adjetivo ou
substantivo “doido”, mesmo quando contabilizadas suas flexibilizações de gênero, no
masculino e no feminino. “Louca”, no feminino, apareceu em cinco ocasiões, “louco” em 34

157
ocasiões, totalizando 39 vezes. Já “doida” apareceu sete vezes e “doido” dez vezes,
totalizando 17 ocasiões. Esse dado fica ainda mais interessante quando observamos o uso dele
de forma separada entre as duas instituições. Na primeira ala, em que os moradores tinham
mais liberdade, não ficavam trancados e tinham seus pertences próprios, ou seja, estavam
muito próximos de ter uma vida desinstitucionalizada, as ocorrências do uso da palavra
“louco” para um morador caracterizar outro morador, apareceu apenas nove vezes e “louca”
não apareceu nenhuma, visto que na ala só havia homens, totalizando então nove situações
versus 30 situações na instituição fechada, na qual os moradores ficavam presos e não tinham
seus próprios pertences. Já os substantivos e adjetivos “doido” ou “doida” apareceu apenas
em uma ocasião na primeira instituição, versus 16 vezes na segunda.
O uso desse termo que reforça o lugar da “loucura” ou da “doideira” é muito mais
presente na instituição mais coercitiva, que fomenta a lógica da necessidade da
institucionalização a partir da descaracterização, desumanização, despersonificação e
dependência dos internados. Os dois casos abaixo podem elucidar essas constatações.

I
24
S: [A moradora S. não queria ir pro café] Não quero, não quero, não quero... diabo!
Não quero, não quero, não quero...
[pegaram ela à força para levar]
C: [Moradora C. falando sobre S.] Tá doida, ó! Faz três dias que não deixa ninguém
dormir, faz três dias que tá assim… essa aí é louca!
(Diário de Campo, 12 de abril de 2022)

II
R: [Morador R. falando de outros moradores] Ele me bate... ali o L., ele tem um
pouco de doido... ele bateu... a T. é minha colega, ela é bem querida... ela não gosta que
provoque ela... já esse aí é bem louco, sempre com a mão na bunda e no saco e depois vem
pra perto da gente... não gosto dele... [referindo ao T.].
(Diário de Campo, 4 de abril de 2022)

Os casos acima foram vivenciados na segunda etapa do trabalho de campo, na


instituição mais coercitiva. Como disse anteriormente, a necessidade de diferenciar os outros
“loucos” ou “doidos” do self internado foi muito mais frequente na instituição fechada, já na
instituição aberta os moradores se viam mais como pertencentes a um mesmo grupo. Nas

24
Esses casos foram retirados do Diário de Campo e reescritos no formato de diálogo, unindo as
informações que me eram relatadas. Eles não condizem exatamente com o que disseram os moradores,
são tentativas de reprodução do que me era confidenciado em campo.

158
passagens anteriores, a identificação dos outros moradores como loucos era muito recorrente.
Isso nos faz reafirmar uma hipótese, já apresentada no início deste subtópico: aquela que diz
que uma eficiente forma de reificação da necessidade da institucionalização seria justamente
criar a ideia de loucura entre os moradores e os profissionais pois, a partir desse imaginário,
eles próprios poderiam reproduzir os discursos que favoreciam a manutenção e a permanência
da instituição. O próximo caso também ajuda-nos a entender melhor essa constatação,

III
R: É claro... sou espanhol, vim lá do Oeste... lá em “Capendia” nós tinha uma dupla
e tocava gaita e violão a noite toda... viu querida... eu gosto de chamar as pessoas de querida
e querido porque eu não sei o nome de todo mundo... eu não dou trabalho, sou civilizado...
converso com todo mundo, tenho amizade, não dou trabalho... não brigo… Viu querida
Sabrina, não dá bola para os loucos daqui não… porque tão louco... já eu, o único problema
que eu tenho é diabetes... me dá sempre sede, é um problema que dá muita sede.... Eu perdi
as forças das pernas... a força de andar... mas eu tenho fé de voltar... eu rezo, eu tenho muita
fé, faço oração... eu gosto muito de conversar com você… essa cadeira que eu tô [ele agora
usa uma cadeira de rodas] quem comprou foi minha família, com meu dinheiro, eles
compraram pra mim... minha mulher me abandonou aqui... nós tivemos sete filhos, depois
que eu perdi o emprego da Sadia ela me abandonou aqui... eu comecei a beber e a fumar... eu
só tenho medo de morrer um filho meu... nunca bati em ninguém... nunca matei... aqui tem
muito louco...
S: Nossa… fico até sem saber o que dizer… Mas sr. R., fiquei com uma dúvida, o que
é ser louco?
R: Louco é esses caras que fala bastante... Esses cara que vive aqui… você só não
pode dar bola pra todo mundo... tem muito doido aqui... aqui é hospital de doido...
(Diário de Campo, 22 e 29 de março de 2022)

Já nos espaços com mais liberdade, como no outro hospital em que o trabalho de
campo foi realizado, a reafirmação da própria razão não era tão mobilizada pelos moradores
através da reificação da loucura de outros residentes, uma vez que não era uma questão para
eles a necessidade de reafirmar que a possuíam. Eles mesmos diferenciavam os pacientes das
duas instituições dessa forma, como quando um morador me contou: “Na Colônia fica os
pacientes mais ruim de cabeça, lá você não vai conseguir conversar com ninguém” (Diário de
Campo, 2 de novembro de 2021). E outro dia, quando outro morador também me contou: “Só
tem paciente ruim da cabeça na Colônia, agressivo, aqui só vem os melhores da cabeça”
(Diário de Campo, 4 de novembro de 2021). Esses movimentos me fizeram lembrar do
conceito de “estratégia” desenvolvido por De Certeau (1978), pois, de certa forma, mesmo
que produzido em um contexto completamente diferente, seu trabalho desenhou para mim
aquela situação que eu vislumbrava:

159
Chamo de "estratégia" o cálculo das relações de força que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um
"ambiente". Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio
e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma
exterioridade distinta. (p. 46).

A precisão dessa definição, no contexto hospitalar, me fez olhar para um cotidiano


asilar que era movimentado por sujeitos que também encontravam maneiras de se “isolar” do
ambiente em que viviam para recriar a possibilidade de habitar uma realidade diferente
daquela a que estavam expostos, com uma exterioridade distinta daquela que destina o lugar
do aniquilamento para a loucura. O filósofo Rousseau já dizia que a renúncia da liberdade
recairia na renúncia da qualidade de ser homem e, mesmo séculos depois, pude notar que isto
é reproduzido no Hospital, uma vez que na ausência da liberdade, é colocada em dúvida a
própria humanidade dos moradores, vistos repetidas vezes somente como “loucos” ou
“doidos”. Colocaria também nesse raciocínio a palavra renúncia entre aspas pois, no nosso
caso, estamos falando de sujeitos que têm suas escolhas limitadas pela institucionalização
permanente. A renúncia da liberdade se deu a partir de um sistema coercitivo e hierárquico,
que faz crer terem os indivíduos possibilidade de escolha, mesmo dentro da escassez dessa.

IV

P: Hoje esse aí tá assim, tá ruim esse aí, tá bravo, mas não é ele, é a doença, tá
doente da cabeça.
S: Doente da cabeça?
P: É… você não pode ligar pro que ele tá falando, ele não tem estudo.
(Diário de Campo, 2 de fevereiro de 2022).

Outro ponto interessante é o uso de categorias que fogem da ordem biomédica para
também reforçar a existência da loucura nos moradores. Nessa passagem apresentada acima,
o morador não justifica o “estar doente da cabeça” a partir de questões pertencentes à ordem
biomédica, mas pela questão socioeconômica do outro morador não ter frequentado uma
escola. Essa característica da loucura, como a falta de estudo, ou como resultado das situações
de pobreza em que os moradores viviam antes de habitarem o hospital, era também muito
recorrente. Diversas vezes eles também recorriam rapidamente à loucura ou à doidice para
justificar um comportamento que era, para aquele momento da ação, incompreensível.

Perguntei pra N. por que G. estava deitada de barriga na cama e corpo pra
fora fazendo uns barulhos, ela me respondeu: “Não sei, ela fica deitada
assim, é o jeito dela... não visse? Ela é brava, avança, quando fala dela, ela
fica resmungando… tá doida essa aí... ontem chorei até... incomodada com a

160
S. ... ela não deixa ninguém dormir... fica chamando demônio, demônio…
essa aí tá doida mesmo…” (Diário de Campo, 12 de abril de 2022).

Revisitando o Diário de Campo, pude então perceber alguns padrões nas situações de
delineamento da loucura. Primeiramente, notei que todas as tentativas de formular esse
significante, reificavam a necessidade de exclusão entre o grupo definido e aquele indivíduo
que o definia, este último ocupando um lugar hierarquicamente superior. Em segundo lugar,
percebi que as definições de loucura, entre os moradores, não eram tão somente utilizadas
para criar a noção de loucura dos outros, mas para reforçar a noção de normalidade daquele
que a verbalizava, assim como acontece também entre os indivíduos que vivem fora do
hospital e aqueles que vivem dentro de instituições. Isso demonstra que a criação e a
manutenção do conceito de loucura, em todas as instâncias, independentemente dos sujeitos
que a verbalizam, sempre está carregada por um viés negativo, excludente e aniquilante.
Dito de outro modo, em alguns exemplos, percebi que a “loucura” era mobilizada no
sentido de justificar um comportamento inesperado entre os moradores, que diziam que
determinado residente agiu de determinada forma porque não estava “bom da cabeça”
naquele dia. Nesse caso, como podemos imaginar, a loucura era vista como algo temporário e
momentâneo e o indivíduo apontado não a tinha de forma permanente, mas a manifestou
naquele momento específico. Em outros casos, notei que a loucura era mobilizada para
garantir a sanidade do orador que a apontava, quando ele se diferenciava no ambiente através
da constatação da anormalidade dos outros. Esses dois casos têm algo em comum: o uso da
categoria da loucura para responder aos incompreensíveis que apareciam no cotidiano
hospitalar e para subdividir em grupos aqueles que pertenciam àquela relação.
Para a manutenção da ordem, os interlocutores recorriam também às definições de
loucura para fortalecer a estrutura que tinham para pensar no cuidado dessa, não só para
mantê-la, mas também para criar e fortalecer a realidade na qual ela estava inserida. Esse
movimento parece ser reproduzido a partir daquele direcionamento criado pela lógica
manicomial, que usa a ideia da loucura para justificar, por exemplo, o tratamento que
disponibilizam para os pacientes. É esse mesmo raciocínio que alimenta a impossibilidade de
desinstitucionalização dos moradores, construindo mais uma barreira explicita que desfaz
qualquer tentativa de desmanicomialização, mantendo então os moradores tal como estão,
como habitantes permanentes de uma instituição psiquiátrica.

161
4.4) Desenhando a periculosidade dos moradores

As investigações sobre as barreiras que mantinham os moradores institucionalizados


permaneceram em ação durante todo o processo de pesquisa e, embora eu já conhecesse de
outros trabalhos aquelas constatações, acabava por me surpreender quando via que estavam se
repetindo ainda na atualidade. Como dito anteriormente, era muito instigante olhar para as
justificativas de internação dos moradores, tanto a partir dos prontuários médicos, quanto
através do que contavam os profissionais e os residentes no cotidiano asilar. Um ponto que
merece destaque foi percebido ouvindo os motivos de internação narrados nas vivências dos
moradores, no dia a dia, pois a maioria do que contavam como justificativa de internação
fugia da ordem normativa médica.
Em um segundo momento da pesquisa, quando trabalhei com os prontuários dos
moradores, descobri também que o que continha neles, na maioria dos casos, era
extremamente diferente daquelas narrativas que eram contadas no convívio hospitalar. Dito
de outro modo, as narrativas orais, na ala de moradores, eram criadas e recriadas com
direcionamentos muito diferentes daqueles presentes nos documentos oficiais. Ambos os
discursos, como podemos subentender, estavam carregados de intencionalidade, entretanto, a
intenção de cada um deles parecia caminhar - também - por sentidos opostos.
No cotidiano hospitalar, eram utilizadas situações do passado para reiterar a
necessidade do internamento permanente dos moradores e estas estavam, novamente,
distantes da ordem psiquiátrica. Entre os profissionais, bastava um comportamento
inesperado de um interno para que fosse suscitado um comentário que rapidamente recorria
aos episódios que os pacientes viveram na vida fora dos muros para justificar a forma como
escolhiam lidar com eles:

Entrevistado: Esse aqui é complicado, se você pegar pra ler a história dele você não
acredita, tem tudo registrado lá dentro, não tem muito mais o que fazer por ele, depois de
tanto tempo aqui, o que dá pra fazer a gente faz… Mas não tem muito o que ser feito.
(Entrevista com um enfermeiro, 23 de fevereiro de 2022).

Essas ações inesperadas que fugiam das regras institucionais também podiam suscitar
um comportamento, naquele ambiente, muito recorrente: da medicação compulsória que, na
experiência que tive em campo, servia de rotineiro mecanismo de contenção dos pacientes.

162
Para justificar a escassez de tratamentos alternativos ou a permanência do tratamento
medicamentoso compulsório - que muitas vezes levava ao embotamento e à impregnação -
além da falta de recursos que estavam expostos e a ausência da possibilidade do cuidado em
liberdade, era alimentado um imaginário da periculosidade dos internos.
Em todo o tempo que estive nos hospitais, não foram raras as situações em que
profissionais da equipe apontavam para um morador e contavam histórias sobre suas vidas
anteriores ao internamento para justificar alguma forma de contenção que havia sido
escolhida e realizada. Essas narrativas fazem parte da história oral contada e recontada no
asilo, principalmente entre os profissionais antigos e os mais novos, que eram cotidianamente
atualizados, através desse ato de narrar, sobre a vida anterior e fora dos muros dos moradores:

“Esse aí matou os pais com veneno.”


“Aquele ali assassinou o pai, a mãe e os irmãos.”
“Esse aí não é flor que se cheire, era matador de aluguel, matou muita gente.”
“Se tu pegar pra ver o que cada um fez tu nāo acredita, tem que tomar cuidado.”
“A gente tem que fazer essas coisas, não tem outro jeito, ela é perigosa, já agrediu
profissional, já bateu em paciente, não dá pra deixar…”
“Quando eu cheguei aqui, eu tinha muito medo dos pacientes. A gente pega pra ver a
história deles e se assusta, né? Por isso precisa ser cuidadoso. Por isso não pode bobear, eles
são espertos, tem paciente aqui que de louco não tem nada!”
(Falas de profissionais, Diário de Campo, 2021; 2022).

As narrativas sobre a periculosidade dos internados, passadas de profissional a


profissional e também entre os próprios moradores, eram, dentro daquele cotidiano, algo
muito parecido com o que definiu o psicólogo e professor estadunidense Jerome Bruner
(1991), não sendo somente uma forma de representar, mas também de construir realidades.
De certa forma, a partir das narrativas dos profissionais sobre os moradores, era afirmada a
ideia de “perigo” e também justificada a condição de vivência a que eles estavam expostos.
Era comum, por exemplo depois da aplicação de uma injeção para contenção, que os
profissionais conversassem entre si sobre situações complexas em que aquele mesmo paciente
viveu antes de se tornar um morador, como se suas ações antigas determinassem o tipo de
cuidado que ele deveria receber no hospital.
Em outras palavras, a ideia de que os residentes representavam um “perigo” para a
sociedade antes mesmo de serem internados, parecia justificar não tão somente o

163
internamento, mas também a continuação da condição precária na qual eles viviam. Antes de
nos aprofundarmos no conceito de periculosidade, vamos olhar para um outro termo que está
intimamente relacionado a ele e que, de certa forma, também alimenta a noção de perigo entre
os moradores: a estigmatização.
Uma definição clássica de Goffman (1980) nos ajuda a aproximar do termo estigma,
que pode ser pensado em referência a um atributo depreciativo que, ao estigmatizar alguém,
conforma normalidade a outrem. Na nossa sociedade, comumente, um indivíduo
estigmatizado tem sua humanidade questionada, o que abre espaço para diferentes formas de
discriminação que diminuem - diretamente - suas chances de vida. No cotidiano, é construída
uma teoria fundamentada no estigma, como uma ideologia para explicar a inferioridade de
uns em detrimento de outros. É ressaltado, nesse mesmo raciocínio, o perigo que aquele
indivíduo - visto como inferior - representa e, em alguns casos, é até mesmo racionalizada a
“animosidade” desse com base nas suas diferenças (idem, p. 8). Nesse processo de
estigmatização, o contato entre os indivíduos não é estabelecido em “bases iguais”, tornando
o estigmatizado suscetível ao que é apontado como seu defeito, fazendo-o crer que realmente
está “abaixo” do que deveria ser (idem).
Esse imaginário de insuficiência e inferioridade, dentro dos hospitais psiquiátricos
catarinenses (e também fora deles), ainda hoje se mantém e se reverbera, inclusive no
cotidiano do asilo, e é constantemente reificado entre os profissionais e entre os próprios
moradores. Entretanto, em campo fui percebendo que as direções das narrativas desses dois
grupos variavam muito, porque, embora o estigma da periculosidade para os funcionários
fosse reforçado majoritariamente por situações anteriores à institucionalização, para os
moradores ele era reificado pelas agressões que aconteciam no cotidiano do espaço que
viviam, quando alguns moradores, naquela condição de aprisionamento, tinham
comportamentos agressivos. Nos exemplos abaixo, podemos começar a compreender o uso
dessa concepção entre o grupo dos profissionais e o grupo de moradores. No primeiro caso, a
fala foi retirada de uma entrevista com um funcionário do hospital, já no segundo e no
terceiro caso, as falas vieram de uma conversa com duas moradoras:

I
Tu nem imagina, Sabrina… Vejo assim… né… tu com eles, assim né… porque…
Porque assim, num momento de surto aconteceram várias atrocidades, né? Se tu olhar o
prontuário, assim, tu vai ficar apavorada, e olhando pra eles, às vezes, tu vê:
“esquizofrênicos”, né? Mas ele matou… tentou estuprar a mãe… às vezes matou um filho…
isso e aquilo…”

164
(Entrevista com profissional de Enfermagem, 27 de abril de 2022).

II
Esse aí é bem perigoso… ele bate em mim, nega! [apontando para outro morador que
passou por nós]. Antes de ontem ele me deu um belisco que me fez chorar. Ele acorda de
noite e vem na cama da gente dar murro, nega, ele me pega pra bater e só Deus faz ele parar.
(Diário de Campo, 17 de março de 2022).

III

Eu fico preocupada, minha querida… tem aqui um morador que fica batendo em
inocente… Tá louco batendo em inocente, onde já se viu? Tão esperando o que pra levar ele
pro outro hospital? Vai esperar o que? É um perigo! Vai esperar matar um?

(Diário de Campo, 22 de março de 2022)

Nos casos acima, vemos que a dimensão do “perigo” circula entre as histórias de
dentro e as histórias de fora das instituições, além de transitarem também entre algumas
justificativas pautadas em situações do passado e em outras do presente. Os profissionais
(como exemplo temos o Caso I), costumam recorrer às histórias de fora, anteriores à
institucionalização, para alimentar a noção de perigo dos internos e para justificar o
tratamento que têm disponível para eles. Já os moradores (Casos II e III) recorrem,
majoritariamente, às histórias cotidianas de dentro para também fortalecer a ideia de perigo
dos que ali vivem, mas não citam questões sobre os tratamentos, possivelmente devido ao
baixo status que ocupam naquele espaço, a partir do qual não resta a oportunidade de
negociação. É nessa situação que a realidade clínica se forma enquanto uma zona de combate
de disputas, não necessariamente explícitas, de poder e de definições da doença e das
suposições dos graus de incapacidade (TAUSSIG, 1980).
O próprio desenho da periculosidade está intimamente ligado à institucionalização
permanente e ambos (o estigma da periculosidade e o ato de institucionalizar) são
mutuamente fortalecidos a partir de suas forças singulares. Foucault (2006) faz uma
recapitulação para se pensar nesta questão: da periculosidade relacionada ao internamento.
Ele retoma o histórico de internações psiquiátricas a partir da hospitalização de crianças no
século XVIII e XIX, tal como abordamos no tópico 4.2, para desenhar o caminho que se
seguiu até a internação daqueles conhecidos como “perigosos” nos manicômios.
O autor demonstra que as crianças que tinham comportamentos vistos como
“anormais”, naquela época chamadas de “idiotas” (p. 270), precisavam de um espaço para

165
ficarem, não necessariamente para serem tratadas ou educadas, mas para que seus pais
pudessem trabalhar. Neste processo, começaram a interná-las, num movimento em que a
razão econômica começou a influenciar nas ações das instituições asilares médicas e,
posteriormente, da psiquiatria, dando origem ao início da generalização do poder psiquiátrico.
Esse poder sobre aquilo que é considerado anormal e também para definir os
significados da anormalidade pode ser expandido para todas as instâncias da vida e, por esse
motivo, o autor aponta para uma possível expansão desmedida dessa forma de poder
estabelecida. Além das crianças, foram posteriormente colocados em questão os outros
indivíduos adultos que precisavam de cuidados - sendo esses vistos, muitas vezes, como um
gasto extra para os familiares que ficavam também impossibilitados de desenvolverem
atividades laborais.
O internamento, novamente, foi utilizado como uma solução para esse problema de
ordem econômica, entretanto, a internação gerava altas despesas para a coletividade local ou
para quem ali desempenhasse o poder de governar, assim, para que um conselho geral
aceitasse e sustentasse o tratamento, o médico deveria assegurar que o paciente representava
um perigo para a sociedade:

[…] era preciso, e era exclusivamente com essa condição que as


coletividades ou as autoridades locais aceitavam assisti-lo, era preciso dizer
[…] que ele era perigoso, isto é, que era capaz de cometer incêndios,
homicídios, estupros, etc. E isso os médicos dos anos 1840-1860 diziam
claramente. Eles diziam: somos obrigados a elaborar relatórios falsos, a
carregar nas tintas, a apresentar o idiota ou o débil como perigoso para
conseguir [que ele seja assistido] (FOUCAULT, 2008, p. 280).

A partir daquele momento, já no século XIX, começou a se desenvolver uma literatura


médica que criava um lugar estigmatizante para a loucura, fazendo dela sinônimo de algo -
indiscutivelmente - perigoso. Por fim, era dada à periculosidade o manicômio e às outras
doenças o hospital geral (ROTELLI, 1990, p. 2). Esse imaginário que construiu a ideia dos
indivíduos loucos-nocivos foi perdurando ao longo de todos os anos que decorreram e a cena
que institucionaliza a loucura foi se fortificando e se alimentando, cada vez mais, desta
lógica:

Novos personagens invadem a cena, trazidos à tona por uma psiquiatria de


raiz organicista, que buscava implantar um aparato institucional voltado para
a “regeneração moral” e que, em última instância, lançava-se de corpo e
alma às tarefas da disciplinarização e assepsia moral da cidade. Indivíduos
“a caminho” da loucura, aos quais se confere uma periculosidade intrínseca
— herdada das concepções tradicionais e popularizadas da loucura “furiosa”
—, mas invisível, insidiosa. Neles não se teme a agressão, o delírio, o
desatino, mas a insubmissão, a rebeldia, a “extravagância”: a maçã podre

166
que contamina as demais, para cuja identificação um olhar clínico se faz
indispensável. Joio no meio do trigo social, estes indivíduos “nocivos” são,
no entanto, na maioria das vezes, intocáveis pelas malhas da polícia ou da
justiça, em seus comportamentos nem sempre criminalizáveis. Necessário,
assim, para a “defesa da sociedade”, definir para os mesmos uma instância
legal e legitimada de exclusão e controle. A medicina mental se encarrega de
ocupar este espaço (CUNHA, 1986, p. 112).

Como temos visto, essa ideia da “defesa da sociedade”, que legitimaria a exclusão e o
controle de indivíduos, perpetuou ao longo do histórico da “medicina mental”, que tornou
essa “proteção” uma de suas funções principais. No nosso caso etnográfico, o que os
profissionais fazem, apenas repete o que vem sendo construído, desde os séculos passados,
antes mesmo desses espaços serem denominados de Hospitais, quando ainda eram Colônias.
Já naquela época, a formulação da periculosidade dos indivíduos correspondia à formulação
de uma “defesa” que tinha como objetivo implantar um “estado de segurança”. Nesse plano, o
alvo também não era a Colônia em si, mas a própria sociedade (MACHADO et al., 1978, p.
107). A partir desses processos, foi sendo ainda mais fomentada a concepção da loucura
como erro, incapacidade, inferioridade e periculosidade, o que reforçou o imaginário da
necessidade de retirar a loucura da cidade e o louco do convívio social, que perdeu seus
direitos ao trabalho, ao lazer, à cultura, e aos espaços de representação social e política
(AMARANTE; TORRE, 2018, p. 1103)
Os moradores dos hospitais em que o trabalho de campo foi feito são, em grande
maioria, remanescentes dessa época, pois suas primeiras internações ocorreram perto do
período das Colônias, na transição para a formulação dos hospitais. Essas concepções
perduraram no nosso país até os dias atuais e, dentro dessas instituições - ao menos naquelas
que foram lócus desta Tese - ainda corrobora a ideia constatada por Amarante (1996) de que a
doença mental é ainda determinada pelo conceito de periculosidade, que é utilizado para
justificar, para além da necessidade do isolamento, a natureza violenta, coercitiva e destrutiva
da instituição asilar. É por esse motivo que, dentro dos hospitais, as dimensões terapêuticas
perdem espaço para aquelas repressivas ações disciplinares. Como vimos, nesses espaços, as
formas institucionais preveem mais como lidar com o objeto e não com os sujeitos,
edificando uma série de preconceitos - muitas vezes pautados pela ciência - que foram
estabelecidos a partir das noções de periculosidade, irrecuperabilidade, e
incompreensibilidade da doença mental (idem).
Tem-se a ideia, a partir do grupo de profissionais dos hospitais, principalmente
pensada por meio das estruturas do poder médico, de garantir, ao internar, os direitos dos
internados, na mesma proporção em que previnem suas periculosidades e, nesse movimento,

167
o Estado - apoiado pela psiquiatria - tem o poder de “sequestro” dos pacientes,
submetendo-os às experiências de disciplinarização fundamentadas na “ciência”
(MACHADO et al., 1978, p. 489).
Existe, então, uma dupla ideia de “proteção”, primeiro da sociedade - alimentada pela
periculosidade do louco - e depois do doente - pautada pela ideia da necessidade de
assistência (PITTA, 1996). Nesse movimento de “proteger”, alimenta-se a lógica da
necessidade de “espaços para guardar” e os sujeitos são divididos entre grupos perigosos e
grupos que precisam de proteção. Obviamente que não há uma dualidade assim definida e as
categorias se complicam a depender da situação a que estão expostos os sujeitos nela
inseridos.
Amarante (2020, p. 23) aponta também para uma displicente concepção de transtorno
mental, que o vê apenas como algo que “[...] leva à perda da capacidade de juízo e julgamento
e, portanto, à violência e ao perigo para si e para a sociedade”. Nesse movimento, caso a
pessoa com transtorno mental ofereça realmente algum risco, ela será considerada como
inimputável, ou seja, como incapaz de responder pelos seus atos. Nesses casos, é
determinada, pelo juiz, uma medida de segurança, normalmente em um manicômio judiciário,
sendo aquela pessoa interpretada, pela justiça, como um indivíduo perigoso e imprevisível,
fomentando, mais uma vez, a necessidade da internação de longa duração ou até mesmo
permanente. Nessa avaliação do paciente, há novamente a pretensão de correlacionar os
sintomas atuais com um comportamento futuro, o que pode ocasionar na impossibilidade de
um vislumbre de uma desospitalização.
Voltando o foco para os internamentos em Hospitais Psiquiátricos, mesmo havendo
uma disseminada ideia de relação entre as doenças mentais e a periculosidade, pesquisas
anteriores indicam que entre os doentes mentais não é possível encontrar porcentagens mais
elevadas do que na população em geral de pessoas que cometem infrações violentas (GATTI;
TRAVERSI, 1998 apud BARROS, 1998). Entretanto, no censo psicossocial do Estado de São
Paulo, realizado em 2016, esta questão ainda persistiu:

Os moradores encaminhados pelo Judiciário são pessoas que não cometeram


delito ou crime, mas que chegaram à instituição por ordem judicial, sob a
justificativa de serem perigosos ou por não contarem com outros recursos.
Seja como for, passam a carregar duplo estigma, o de doente mental e o de
periculosidade, o que dificulta ainda mais a reinserção social (p. 64).

No censo, observamos que as duas justificativas para o internamento seria 1) por


serem perigosos e 2) por não contarem com outros recursos. Isso mostra a ambiguidade
desses processos que, em muitos casos, faz confundir esses dilemas. Atualmente, tem-se

168
buscado - a partir dos movimentos antimanicomiais - superar os pressupostos tradicionais da
psiquiatria, que estava focada em falsos ideais de defeito, irracionalidade, desrazão e
periculosidade do doente (AMARANTE, OLIVEIRA, 2004). Além disso, os debates
passaram a ser compostos também por questões sobre cidadania e direitos humanos, o que
permitiu diversos questionamentos sobre o “[...] manto enganoso da cientificidade da
psiquiatria.”, além de possibilitar o vislumbre de suas características essencialmente
disciplinares e normalizadoras (idem, p. 14).
Nessa toada, a internação não deveria ser a regra, pois ela deveria ter regulações
jurídicas em suas três modalidades: voluntária, involuntária e compulsória. Na própria
redação legal, houve uma tentativa de modificação das internações, na qual não é mais
mencionada a periculosidade do indivíduo ou a conveniência da família ou da sociedade
como determinantes para a internação (Decreto Federal nº 24.559/34.97). Até mesmo para os
pacientes cronificados, que perderam suas referências familiares e sociais, a permanência de
sua internação não é mais uma medida indicada (artigo 5º), devendo esse ser resguardado por
política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida (MENEGAT, 2010, p.
60).
Resumidamente, podemos então notar que muito do que era constatado anos atrás
ainda reverbera atualmente, de forma repetida e cíclica, a partir da função institucionalizante
dos hospitais psiquiátricos sobressaindo à função do cuidado, tendo como característica
principal muito mais a perpetuação da instituição manicomial em si do que o tratamento
médico dos pacientes que ali habitam. Isto nos faz ver mais uma barreira que tem
impossibilitado a desinstitucionalização dos moradores, pois é a partir desse mecanismo
manicomial que a lógica da institucionalização da loucura é alimentada e prevalece até os
dias atuais.

4.5) Os sonhos e o desejo de sair

I
S - E me conta do teu sonho?
J - Eu sonhei que nois tinha ido embora desse pavilhão, me acordei assim… sonhando… eu,
qualquer coisa que eu sonho, eu me acordo!
S - Como que foi o sonho?
J - Eu me acordei sonhando que nois tinha ido embora desse pavilhão aqui. Nois tinha ido
embora desse hospital.

169
S - Tava sol ou tava chuva?
J - Tava sol…
(Diário de Campo, 2 de novembro de 2021)
O vislumbrar de um dia de sol, saindo do hospital psiquiátrico, é uma cena que ressoa
no meu imaginário quando penso nos moradores, uma ideia que rapidamente se dissipa
quando recordo que eles ainda estão lá, enquanto aqui escrevo ou enquanto você, leitor, me lê.
É quase a mesma ideia de uma luz no fim do túnel, como uma garantia de que se a travessia
ocorrer, no final, seria ela que encontraríamos. Pois bem, foi exatamente essa possibilidade de
um dia de sol, verbalizada pelas palavras do morador, que despertou para a pesquisa um
redirecionamento do olhar para fluxos-outros que estavam compondo e sendo compostos pela
institucionalização psiquiátrica asilar daqueles espaços. Eu queria encontrar o movimento que
também estava contido dentro daquelas barreiras, e não tão somente descobrir o que as
fortificavam, mas também o que as desestabilizavam.
Precisei frequentar muito o “chão de hospital”, através da etnografia de hospital, para
encontrar falas assim, já que, estranhamente, nas primeiras conversas os moradores falavam
muito sobre o quanto estavam gratos por terem onde morar e também por terem garantida a
alimentação de todos os dias. O que mais me chamou a atenção foi a frequência do tema da
saída do hospital, pois, mesmo sem perguntar para eles sobre este desejo, ou a possibilidade
dele, a temática da saída sempre surgia.
De certa forma, parecia uma repetição dos casos que eu já tinha vivenciado em outros
hospitais, naqueles lugares em que também fiz pesquisas de campo anteriormente. Isso me faz
pensar que, talvez, a temática da saída seja uma pauta comum no interior de instituições de
longa permanência, até mesmo entre aqueles que já não mais vislumbram a possibilidade de
serem desinstitucionalizados. Curiosamente, no livro “A instituição negada”, os autores
italianos observaram também essa situação, da recorrência do desejo de sair e de alguns
episódios de negação dessa possibilidade de ir embora:

[...] existe sempre o desejo de ir embora. Pelo menos a maioria dos doentes o
quer. É possível que uma pequena minoria se tenha deixado dominar por
uma espécie de resignação, aceitando a ideia de passar aqui o resto de seus
dias. Essa é uma coisa que eu até posso compreender, especialmente quando
se trata de pessoas que estão internadas há vinte, vinte e cinco anos, e que a
sociedade, representada pelos parentes, especialmente os mais próximos, já
esqueceu. Acho que alguns atingiram um tal grau de resignação que dizem:
“Estou contente por estar aqui, sinto-me muito bem.”. Mas tenho a
impressão de que se esse doente fosse cuidadosamente interrogado, seria
possível verificar que nem sequer ele abandonou a aspiração de sair um dia
(FURIO, 1985, apud BASAGLIA, 1985, p. 87).

170
Em alguns casos, esse desejo de sair é mais recorrente, principalmente entre os
pacientes temporários, que realmente receberão alta em breve. Quando eu passava pelas
outras alas, era muito comum vir um paciente me pedir ajuda para sair da instituição.
Entretanto, entre os moradores, esse era um desejo mais velado, pois eles insistiam em falar
sobre aquilo de outras formas. Obviamente que a etnografia se revelou, nesse caso, como o
caminho fundamental para o desenvolvimento dessa ideia de uma “cuidadosa” investigação
que extrapolasse os primeiros e superficiais encontros, pois logo notei que, embora os
moradores reforçassem o quanto era importante para eles estarem ali, eles sempre escolhiam
falar sobre essa temática da saída.
Isso compunha com o que foi constatado anteriormente, porque entre os discursos que
reificam a institucionalização, está a impossibilidade de saída, a falta de alternativas, o
fortalecimento das características de periculosidade dos moradores e a ideia da necessidade
de proteção da sociedade e dos pacientes. Entretanto, nas entrelinhas da institucionalização,
os moradores encontraram caminhos para compor com aquelas situações que favoreciam seu
internamento, percorrendo as possibilidades de sair ou o próprio desejo de saída a partir de
outros meios.
Persisti percorrendo uma espécie de “arqueologia do implícito” (TAUSSIG, 1980, p.
10), a partir da qual os mapeamentos das relações sociais vislumbradas pelas categorias de
doença foram sendo desestabilizados. Nelas, as narrativas transitavam principalmente entre as
falas que diziam não querer dali sair ou entre aquelas que pediam, incansavelmente, para que
pudessem sair. Por um lado, dizer que preferiam estar ali era uma maneira de manter a
autonomia, no âmbito da narrativa, sobre a própria vida, uma vez que reforçavam que
“escolhiam” estar ali. Por outro lado, essas narrativas transitavam também pela possibilidade
de estar fora, de ter uma casa própria e a liberdade de ir e vir, mas essas apareciam muito mais
no formato de sonhos. O que mais sobressaiu no cotidiano hospitalar não foi explicitamente o
desejo de ficar ou o desejo de sair. Era recorrente que falassem primeiro sobre a permanência
deles naquele local, como uma espécie de justificativa de algo que para eles também poderia
ser incompreensível: o fato de ainda estarem ali.
A temática da possibilidade de saída do Hospital apareceu em 53 situações desde meu
último ano em trabalho de campo e os direcionamentos dela eram muito variados. Nos
primeiros dias em campo, na segunda instituição, encontrei uma moradora que tinha uma
rotina de fazer 50 minutos de bicicleta ergométrica pela manhã, diariamente. Comecei a
sentar ao lado dela para conversarmos enquanto ela fazia a atividade, pois sempre que eu
chegava, no Salão de Convivência, ela - em movimento - me chamava para conversar um

171
pouco. Em uma de nossas conversas, quando estávamos falando sobre a rotina no hospital, ela
me surpreendeu com uma fala muito específica:

II
L: Pra ser sincera, eu só troco aqui só pelo Morro do Aipim...
S: Morro do Aipim? O que é?
L: É o cemitério do hospital, querida… antigamente tinha uma plantação de aipim no
alto do morro e depois virou um cemitério do hospital, eles querem me tirar daqui, levar pro
xxx [outro hospital], mas daqui eu não saio. Eu só vou embora daqui no meu caixãozinho.
(Diário de Campo, 4 de novembro de 2021)
Naquela conversa, a moradora vislumbrava a possibilidade de saída apenas depois de
seu óbito, uma realidade que, infelizmente, é comum entre os moradores. Alguns funcionários
chamam esses episódios de “alta celestial”, pois para muitos essa é a única maneira de
deixarem de viver ali. As entrelinhas desses episódios de reificar a necessidade de estar no
hospital foram se revelando pouco a pouco, principalmente quando minha presença já não era
associada a uma novidade. Isso aconteceu quando meu eu, antropóloga, também já não era
mais confundido com alguém de dentro [paciente] ou com alguém de fora [profissional do
hospital ou familiar], pois passei a ser vista como alguém que poderia ser de dentro e de fora
ao mesmo tempo, ocupando uma nova categoria, de pesquisadora transeunte, que circulava
entre os moradores, mas não residia ali, que podia sair, mas no outro dia voltava, mesmo sem
fazer parte de nenhum dos tratamentos, nem como quem os aplica, nem como quem os
recebe.
A minha presença naquele lugar insistia em ser construída de forma horizontal e os
moradores sabiam que eu não tinha nenhum poder naquela instituição, assim como eles. No
cotidiano, fui percebendo que habitar o chão podia ser uma dimensão alternativa daquela
realidade, pois no chão a gente se colocava para o mundo numa posição diferente daquela
esperada, ao mesmo tempo em que reconectávamos com uma perspectiva de finitude e
miudeza que era dada, a todo tempo, para nós (em maior grau para alguns e em menor grau
para outros). O chão podia sim representar situações de desistência, desesperança e desafeto,
mas foi no chão do hospital que os moradores me viram de forma horizontal, viram que o
aprendizado que eu buscava somente eles poderiam me entregar. Obviamente que o estar no
chão é, para mim, muito diferente do estar no chão de um residente. A medicação exacerbada,
a apatia e o fluxo que insistia fazer ver, imóvel, a vida passar, pareciam ocupar o cotidiano
institucional, o que causava um efeito de conformidade e desilusão. Entretanto, me surpreendi
quando comecei a notar, nos momentos de escrita do Diário de Campo, que estava sendo

172
recorrente nessas ocasiões a aparição da “vontade de sair” do hospital e essa verbalização
estava acontecendo, normalmente, no chão.
O olhar com o qual via a vida e o tempo passarem, deitado junto a um corpo no chão
de cimento, também vislumbrava o desejo de sair, mesmo depois de décadas, vivendo na
mesma condição. Esse movimento, do desejo de sair, milagrosamente não foi apagado pela
coercitiva vida que recebiam enquanto ocupavam o papel de morador de hospital psiquiátrico.
Alguns residentes foram mais rígidos ao dizerem que a saída do hospital seria impossível de
acontecer, delongando um comprido discurso que justificava sua desesperança com as
dificuldades financeiras de se viver uma vida em liberdade. Outros moradores não diziam
exatamente que queriam sair, mas contavam sobre situações que se imaginavam naquele
movimento. Por fim, alguns eram enfáticos e compunham, cotidianamente, suas realidades
com a possibilidade da saída.
Na atmosfera do chão do hospital, os moradores encontraram espaço para fazerem
existir as possibilidades de se pensar sobre o lado de fora. Naquele estado aparente de
embotamento que eu os via, passando o dia deitados com um olhar vago, fui descobrindo
alguns movimentos que extrapolavam a condição que representavam fisicamente. Era como
um revelar das cartografias que o desejo traçava, das micropolíticas, como um movimento do
inconsciente na sua própria maneira de se orientar e se organizar no mundo (GUATTARI,
ROLNIK, 2006). Isso revelava um devir paciente até então desconhecido, pois, embora
estivessem fisicamente parados no chão, já ocupavam um lugar muito além dele.
Embora o chão já fosse suficientemente simbólico, ele também fazia mirar para aquele
movimento de vir a ser, naquele fluxo que levava as certezas a serem outras e que
transformava os impossíveis. A partir da forma que tinham, do sujeito que são e das funções
que preenchem, eles extraíam partículas entre as quais poderiam instaurar relações de
movimento num aparente repouso, próximas ao que estavam em vias de se tornar e através
das quais se tornavam, tal como aquele devir, representado pelo próprio processo do desejo
(DELEUZE; GUATTARI, 1997). Os moradores transitavam nesse devir paciente entre as
traduções do querer ficar e do querer sair e compunham sua permanência ali, ora com
esperança (de sair) ora com conformidade (de ficar):

III
C: Se eu ganhar chocolate vou dar um pouquinho pra ti, nega… Eu não quero ir
embora daqui não, nega… minha irmã quer, mas eu não vou não. Não vou. Não vou. Tenho
medo de carro, nega. Carro mata as pessoas. Eu tenho medo de carro. Tô triste [começa a

173
chorar], tô chorando nega, tô chorando porque minha irmã não vem mais… ela não vem
mais… não vem… eu queria sair daqui nega…
(Diário de Campo, 13 de abril de 2022)
Além do mais, muitos desejos eram revelados - principalmente - a partir do contar dos
sonhos, que permitiam um transitar na fluência das impossibilidades. Não penso que seja
difícil relacionar o desejo com o sonho, mas vale reiterar aqui que na maioria das vezes que o
sonho apareceu nas falas dos moradores, não era o sonho de desejar algo, mas o sonho
sonhado, o sonho que vem quando a gente dorme, aquele que (quase) vai embora quando a
gente acorda.
Quando entrávamos na temática do sonho, era sempre esse que aparecia, o que
comprovava que a instituição tinha sido eficiente na sua função de aniquilar a possibilidade
de sonhar desejando - acordado -, mas somente na teoria, já que na prática, mesmo contando
sonhos-sonhados, eles ainda encontravam espaços para fazer subsistir seus sonhos-desejos.
Um morador definiu da seguinte forma o sonho: “É um encanto na cabeça da pessoa, que
depois se desfaz.” (Diário de Campo, 4 de novembro de 2021). A possibilidade de se desfazer
desse encanto ressoou algumas semanas para mim, afinal, antes de se desfazer, parecia que o
sonho encontrava meios para recriar, de forma contínua, a realidade que viviam.

IV

P: Sonhei que tava com meus irmão, eu morava no Hospital de Criciúma, morei em
Blumenau também. Fugi um dia, pulei a janela, quebrei a perna e eles me pegaram e
trouxeram de volta. Quero ir embora, não quero ficar aqui. A polícia que me pegou. Eu
gostava de lá, comia lá, tomava cafezinho (risada), lá em Barreiro, no hospital de lá.
S: E fora do hospital?
P: Não. Tô revoltado, não posso mais. Fora do Hospital não posso, tô revoltado. Eles
não me deixam em paz. Esses paciente aí…
S: E sobre o sonho que temos conversado?
P: Ah, Sabrina, eu sonhei com dois pedaço de carne de churrasco antes de ontem.
Como vai ficar meus pagamento será? A Doutora das casinha falou que só vou sair daqui se
pegar meus cheque, meu dinheiro, o apelido dela é banana, mas a gente só chama pelas
costas.
(18 de novembro de 2021)
Como podemos ver, os sonhos não eram tão somente associados à vontade de sair,
mas também recorriam às situações cotidianas do próprio desejo, como nesse caso que
sobressaiu o desejo de comer carne de churrasco. Sempre fui fissurada pelas possibilidades
criadas pelo desejo, pois foi seguindo ele que descobri, anteriormente (DEL SARTO, 2020), o

174
movimento de moradores dentro de outra instituição psiquiátrica. Entretanto, em Santa
Catarina, o controle hospitalar parecia mais eficiente e foi muito difícil encontrar a
possibilidade de agir para além da norma hospitalar.
Quando o aproximei do significado do devir paciente, desse vir a ser em movimento
rumo às múltiplas possibilidades de ser e estar no mundo, pude começar a assimilar a
magnitude daquilo que não se escancarou, mas era ao mesmo tempo fluido e irrefreável e, na
maioria dos casos, se revelava pelos sonhos. Dito de outro modo, através do desejo foi
possível redescobrir a copresença que desinstalava certezas no alcançar entre os corpos: “O
devir é uma fonte de desejo. Desejar-se, colocar-se, encontrar-se, fazer uma co-presença, não
somente com outro indivíduo, mas também com toda a realidade à nossa volta.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 64).
Foi perseguindo os desejos que comecei a compreender que os moradores
encontravam meios para fazer subsistir suas particularidades e também para criar, dentro das
estruturas totalizantes e coercitivas dos hospitais asilares, espaços que faziam sobreviver suas
formas singulares de viver. Tal como tem nos ensinado uma extensa literatura antropológica,
mesmo no interior dos limites estabelecidos pela cultura, o comportamento humano sempre
tem alguma liberdade de ação e pensamento (EVANS-PRITCHARD, 1976, p. 174). É como
se, de alguma forma, a partir do movimento do desejo emergido e verbalizado no formato de
sonhos, os moradores encontrassem, dentro das referências dominantes, espaços para
incluírem seus próprios arranjos dissidentes, mesmo com toda coercitiva tentativa de
aniquilação dos processos de singularização (GUATTARI, 1997, p. 43):

V
A: O que que você tá fazendo?
S: Estamos conversando sobre minha pesquisa, você quer ajudar?
A: Eu quero… quero ajudar… coloca aí: “Quero ir embora daqui, ir embora, e não
voltar mais.”.
(Diário de Campo, 23 de novembro de 2021)
Esse desejo de sair continuou aparecendo do início ao fim da pesquisa, em alguns
casos de forma mais explícita e, em outros, mais escamoteado. O morador da passagem acima
passava a maior parte do tempo deitado no chão do quintal do pavilhão, ele ficava sempre
deitado de lado, com o braço esticado para frente do corpo, criando um suporte para deitar a
cabeça. O olhar dele demorava naquele espaço rente ao chão, ele conversava muito pouco e,
quando me via, sempre reforçava que queria ir embora dali. Como ele veio de outro hospital,

175
ele colecionava longos 36 anos vivendo dentro de hospitais psiquiátricos. No dia primeiro de
fevereiro de 2022, escrevi no Diário de Campo:

[…] no caminho do café encontrei com o Sr. A., ele estava muito
desanimado, perguntei o que ele tinha e ele disse que o tempo estava
“amarelando”, perguntou novamente de onde eu era e o que eu fazia ali…
depois disse que não estava muito bom não, que não queria mais ficar ali,
que queria ir embora pra uma casinha, pois não gostava de morar ali: “Quero
sair desse inferno dessas enfermaria”.

No final de setembro do mesmo ano, quando já estava no Estágio Sanduíche, descobri


que o Sr. A. tinha descansado da vida em hospitais, ele tinha ido a óbito, enquanto ainda
esperava o momento que poderia viver fora dali. Os dias que o vi deitado no chão foram seus
últimos momentos em vida e o seu desejo de morar fora das “enfermarias” nunca deixou de
existir. Nos sonhos do morador L. também aparecia o desejo de sair, tal como percebi relendo
meu Diário de Campo. Lembro ainda muito bem daquele dia. Foi um momento potente de
proximidade que tivemos, quando ele me convidou para ir ver que a gruta do Hospital estava
com água. Aquilo era uma novidade, porque nem sempre os profissionais ligavam a fonte e,
na maioria dos dias, ela estava vazia. Quando chegamos lá, ele pediu que eu me aproximasse
da fonte, ficamos nós dois agachados, de frente para ela, com as mãos submersas na água.
Estava um dia muito quente, passamos um tempo apenas olhando aquele movimento que
nossas mãos faziam na leveza da água que fluía… Depois começamos a conversar:

[…] perguntei qual era o sonho dele e ele me disse que sonhou que estava
em casa, na casa dos irmãos. Depois disse que tinha tia, avó… que todos
moravam em Passo Fundo. Falou que já esteve no aeroporto e que o irmão
está vivo, mas seus pais e sua avó não. Disse que sempre gostou muito do
irmão, mas que não sabe onde ele está agora. [...] Contou também que já
morou em Curitiba e que pegava ônibus para viajar. Disse ainda que em casa
gostava de tomar café com leite e que agora também toma no hospital
(Diário de Campo, 10 de novembro de 2021).

Na passagem acima, podemos ver como o morador rapidamente transitou na pergunta


sobre o seu sonho de vida para o que sonhou na noite anterior. Esse movimento sempre
acontecia quando conversávamos sobre o sonhar. Outra repetição foi referente ao desejo de
estar em casa, que era muito recorrente nas ilustrações dos sonhos, parecendo formar mais um
padrão dentro do cotidiano institucional.

Já o morador P. era mais enfático e insistiu, do início ao fim da pesquisa, que não só
queria, mas que iria sair do hospital em breve. Nos registros do Diário de Campo, anotei
muitas situações em que ele falava sobre o tema e, diferente dos outros moradores, no seu
caso, ele afirmava com muita convicção que a sua alta estava próxima:

176
[…] No fim do dia, encontrei o P. novamente, no refeitório, e ele falou pra a
enfermeira que pediu um relógio e um tênis para sua curadora, porque ia
morar numa casinha “lá fora”, mas a enfermeira disse que ele ganharia no
Natal… Ele rebateu dizendo que o Natal estava muito longe e que em breve
ele já ia sair do hospital. Ela respondeu dizendo que só faltam 2 meses. Ele
então concluiu dizendo que se ele tiver a casinha, ele pode ficar “até
descalço”, que “não tem problema” (Diário de Campo, 18 de outubro de
2021).
No dia seguinte, a situação se repetiu:

[…] Fui até o quarto do P., que me convidou para sentar numa cadeira que
ele tem ao lado da cama e ficamos conversando um tempo. Ele voltou a
dizer que daqui dois meses vai sair de lá, depois me contou que toma nove
comprimidos por dia, quatro cedo, um na hora do almoço para a voz e quatro
comprimidos à noite (Diário de Campo, 19 de outubro de 2021).

Essas situações sempre se repetiam. No mês seguinte, encontrei no diário mais uma
ocasião em que ele falava sobre sua alta: “Arrumaram casamento pra mim, vou sair daqui, já
tô com o papel na mão e vou morar pra lá, lá pra cima, perto do Supermercado São Jorge.”
(Diário de Campo, 04 de novembro de 2021). O casamento aparecia nos relatos sobre a saída
do hospital porque, para os moradores, caso se casassem poderiam também sair dali. Dias
depois, tive uma conversa com o mesmo morador:

VI
S: Como você está?
P: Eu tô bem, ganhei 2 carteiras cheias de cigarro, mas eu queria mesmo era quatro
por dia. Olha aqui minha bermuda [estava amarrada com um cordão], dei um cinto para o
O. V. [outro morador], em troca de seis cigarros. Queria ver de ir para uma casinha, que vai
ficar eu e minha esposa lá e a irmã dela vai parar com minha irmã lá no Rio Tavares com o
marido dela.
S: Lá é melhor?
P: Os dois são bons, né? Lá em Laguna que eu queria mesmo ir, queria ficar uns
quatro dias na casa da minha irmã e depois voltava, comia um pastel, comprava umas
cervejinhas sem álcool pra gente e para as mulheres que vão pra lá.
S: Por que saiu da casinha?
P: Porque não tinha dinheiro lá, não tinha cigarro, tinha que ficar vindo aqui pedir,
não tinha comida, tinha que ir no refeitório comer. Não tem outra escolha, né? Não tem
escolha. Olha, eu não quero ir pra Rio Maina, eu não preciso de tratamento. A mulher falou
que vai me dar quatro vidrinhos de álcool pra eu limpar a casa, limpar minhas coisas, eu sei
fazer essas coisas. Quando você vier com sua família pode ir me ver, vou fazer uma carne
ensopada, colocar bastante água pra não dar cheiro. Até hoje não ganhei meu tênis e meu
relógio, falaram que vou ganhar de Natal, tá perto?
(17 de novembro de 2021)

177
Nessa passagem, o morador fala sobre o desejo de viver momentos fora do hospital,
como em visitas à sua irmã, para ter um tempo com pessoas próximas. No prontuário, está
registrado que ele não recebe visitas desde 1996 e que está institucionalizado desde 1989,
tendo passado por diferentes hospitais. Ele reafirma também, na conversa acima, sua
competência para os cuidados diários, de limpeza da casa e da habilidade de cozinhar,
salientando sua autonomia e demonstrando, através da verbalização do desejo de sair, que
poderia gerir sua vida fora da instituição. No dia seguinte, ele me recebeu animado no
Hospital:

VII

P: Já te falei como que vai ser a minha saída? Nós vamos vir aqui com meu dinheiro,
você não vai contar pra ninguém do nosso combinado… vamos pegar meu cheque pra alugar
uma casinha, você vai pegar meus documentos pra mim”.
(18 de novembro de 2021)
Depois da virada de ano, o morador não ganhou o relógio novo, nem os sapatos que
estava pedindo há meses. Ele continuou pedindo e falando sobre sua saída, anotei no diário
em fevereiro:

P. falou do processo de novo, falou que já passou o tempo dele, que o


processo tá rodando e que logo ele vai para a casa dele. Perguntou se quero
casar com ele, porque ele vai ganhar 52 mil cruzeiros25, falei pra ele que já
sou casada. Depois me disse que não quer morar na frente do hospital, que
morar lá seria um “inferno”, pois ia ficar ouvindo barulho do hospital, as
músicas dos pacientes, ia enjoar de escutar todos os barulhos e de ficar
vendo os paciente caminhando de um lado para o outro e ia querer entrar,
mas não ia poder entrar, então não ia ter jeito: “Depois que eu pegar meu
dinheiro eu vou, não pagou eu ainda porque tô com dor no pé e no joelho,
mas a mulher falou que meu processo tá rodando” (Diário de Campo, 2 de
fevereiro de 2022).

Essa fala é muito interessante, porque, embora ele revele uma proximidade com o
hospital, quando diz que vendo a instituição todos os dias poderia “querer entrar” nela e que
“não iria poder”, ele ainda reafirma que prefere sair. Como as vivências dele reiteraram o
desejo de sair, seu cotidiano era construído a partir dessa possibilidade. Ele arrumava suas
coisas, solicitava o que precisava para a mudança e compunha, diariamente, com esse desejo
que, de certa forma, movimentava a rotina rígida proposta pela instituição que vivia. Era
como se aquele devir paciente produzisse uma diferença, estendendo outros rumos para a vida
do morador, que não reduzia sua vivência ao que era esperado ou estabelecido. Ele se

25
A transição da moeda cruzeiro para o real ocorreu em 1994, data em que o morador já estava
vivendo dentro de hospitais.

178
permitia sonhar com a saída, o que garantia uma não homogeneização de suas potências de
vida (DELEUZE, 1997, p. 88).
Curiosamente, o morador pertencia ao grupo de moradores do hospital que era
estruturado com mais liberdade, aquele em que os moradores não ficavam trancados, tinham
seus próprios pertences e também viviam em quartos próprios. Embora não tivessem uma
rotina alternativa e não pudessem sair do hospital, eles circulavam entre as diferentes alas da
instituição. Relendo o diário, pude perceber que a maioria dos casos sobre a possibilidade de
sair, ou sobre o desejo de sair, foram contados pelos moradores desse hospital.
Na outra instituição, mais fechada, na qual os moradores têm muito menos liberdade e
vivem em pavilhões comunitários, sem pertences próprios, o desejo e a possibilidade de sair
foram muito mais raros de serem encontrados, apareciam mais as justificativas próprias do
porquê estavam institucionalizados, como a falta de familiares e a baixa condição financeira.
Esse fato me levou a pensar no quanto uma internação mais livre, menos coercitiva, pode
facilitar os processos de desinstitucionalização, uma vez que a partir dela os moradores
conseguem vislumbrar possibilidades outras. Já na internação totalmente fechada, o
movimento de viver fora de uma realidade tão regrada parece muito mais distante, o que
parece fortalecer, de forma muito eficiente, a permanência dos moradores ali.
Por fim, vale sintetizar esse tópico com duas constatações fundamentais. Na primeira
delas, podemos notar que percorrer os espaços criados pelo desejo, dentro do cotidiano
hospitalar asilar, pode revelar as micropolíticas presentes de forma implícita nestes espaços
limitantes e coercitivos. Através da segunda constatação, podemos também compreender que
a partir do contar dos sonhos, da verbalização do ato de desejar, o próprio desejo encontra
espaço para ser revelado e cocriado, compondo a realidade hospitalar de maneiras outras e
também sendo constantemente recomposto por ela, até mesmo quando esse desejo não
encontra forma para existir na realidade. É por esse motivo que neste tópico esses conceitos
foram desenvolvidos simultaneamente, pois no devir paciente são os atos de desejar e de
sonhar que permitem subsistir algumas singularidades dos moradores.

179
Capítulo 5: Desmontando a Instituição

5.1) Desconstruir x Reformar

No dicionário Oxford, o verbo transitivo direto desmontar vem acompanhado das


seguintes definições:

1. desfazer (algo que forma um conjunto ou um todo separando-lhe os


elementos);
2. desarmar, desmantelar. “desmontar uma máquina”;

Já desconstruir, outro verbo transitivo direto, é acompanhado pelas definições:

1. destruir ou desfazer (algo).


2. desfazer para reconstruir (o que está construído, estruturado), frequentemente
fugindo a alguns princípios estabelecidos pela tradição.
“Drummond desconstrói a Canção do Exílio de Gonçalves Dias no poema
Um sabiá na palmeira longe”.

Nessa lógica, fica explícito que não existe a possibilidade de desconstruir algo sem
que, ao mesmo tempo, ocorra uma destruição. Desconstruir implica o ato de desfazer,
desarmar ou separar os elementos para presumivelmente reconstruí-los de formas outras. Não
caberia aqui, porventura, uma reforma dentro da desconstrução, ou do desmonte. Para
reconstruir, é necessário, primeiro, desmontar. Nesse caso, reformar seria o mesmo que
desmontar apenas uma parte, desfazer um ou dois elementos, deixando livre para a
autorreprodução desmedida o todo ou a base que o sustenta.
Isso pode ser visto como um pessimismo particular, de uma pesquisadora, nesse caso
a que escreve esta Tese, que tem percebido, há quase uma década, o quanto é impossível, a
partir de reformas, evitar a repetição de uma situação específica, a saber: cena manicomial no
Brasil. Pontuar como apenas “um” ou “dois” elementos desmontados pode parecer exagero, é
possível caber dentro de uma reforma muitos deles, uma centena de transformações, de
desconstruções ou de desmontes, mas não caberia a mudança do todo e esse é o ponto. A
manicomialidade transcende as reconstruções, quando essas estão vinculadas à uma base que
nunca foi desarmada. Tal como o eixo do redemoinho, trabalhado no início desta Tese,
parece-me agora que as reformas apenas postergam um futuro certeiro, aquele que leva as as
práticas, as formas de tratamento alternativas e as tentativas revolucionárias a desembocarem
na mesma e definitiva lógica manicomial. É exatamente isso que tem ocorrido nos últimos

180
séculos, tentativas de reformas que, de uma forma ou de outra, acabam por retornar ao mesmo
espaço que partiram, aquele que exclui, aprisiona e perpetua a violência contra a loucura.
Ao reformarmos os hospitais psiquiátricos, as expressões de violência que esses
ambientes representam continuam a existir e proliferam para todos os lados, dentro e fora dos
muros institucionais. Elas reificam a lógica da necessidade do aprisionamento, reforçam o
imaginário social que exclui esses sujeitos e transforma, em última instância, pessoas vivas
em casos clínicos fracassados e irreversíveis. Depois de uma reforma, basta apenas esperar
um tempo para que a instituição, não destruída, inicie novamente seu movimento avassalador
sobre as práticas alternativas, sobre os profissionais revolucionários e sobre toda e qualquer
tentativa de superação da lógica manicomial a que estes estão expostos. Para agora, portanto,
é urgente uma completa destruição do modelo manicomial que percorre o país. Destruir, não
reformar. Esse é o intuito deste Capítulo final.

5.2) O desmonte da instituição

O começo de quase toda pretensão de escrita sobre algo retoma comumente o seu
histórico, afirmação essa que pode ser percebida como muito corriqueira, quase um clichê
acadêmico. Muito comum começar falando sobre algo a partir de um histórico que sustenta
um presente, muitas vezes, incompreensível, como um mergulhar em possibilidades de razões
e motivos na busca de sentido de tantos incompreensíveis. Essa é a força da ideia de que
caminhando em direção ao passado, pode-se, por acaso, compreender fragmentos do presente.
Não no sentido de justificar ou aceitar aquilo como é, mas de saber onde nasceu, de onde
surgiu, de onde veio e como se sustenta.
Se voltarmos a Sahlins (1976), temos algumas definições da própria história, como
disciplina, que podem nos delinear caminhos possíveis para seguir nas análises. Para ele, essa
corrente de pensamento é ordenada culturalmente de modos diversos a depender da sociedade
que está sendo construída e de acordo com o “[...] esquema de significação das coisas” (p. 7).
Por outro lado, os próprios esquemas culturais são ordenados historicamente, uma vez que
podem ser, na prática, reavaliados. Nesse movimento, emergem as ações criativas dos
sujeitos, que organizam seus próprios projetos e dão sentido aos objetos partindo,
obviamente, de compreensões preexistentes. Isso implica dizer que a cultura, nesta linha de
raciocínio, é historicamente reproduzida na ação (idem). Entretanto, ao mesmo tempo, os
indivíduos criativamente atuam nos esquemas convencionais e, nestes termos, a cultura pode
também ser alterada, uma vez mais, também na ação. Nas palavras do autor, “Poderíamos

181
falar de “transformação estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de
posição entre as categorias culturais, havendo assim uma mudança sistêmica” (idem).
Sabe-se, portanto, que há a possibilidade de mudança de situações que são historicamente
construídas e reificadas e há a possibilidade, em outras palavras, de desconstruir e,
posteriormente, desmontar, a partir da ação criativa, situações que já não cabem na ordem
cultural de determinada sociedade.
Se transportarmos o raciocínio para a questão da institucionalização psiquiátrica
permanente, percebemos que seria possível que essa realidade sofresse uma mudança
sistêmica ou uma transformação estrutural caso um grupo social e político se movimentasse
nesse sentido. Penso, enquanto leio meus fragmentos do campo, ser exatamente isso que vem
sendo construído ao longo dos anos pelos sujeitos que têm se debruçado sobre o tema da
Reforma Psiquiátrica Brasileira. Entretanto, o que nos move em direção ao manicômio, uma
vez mais, é a própria ordem social, que atua reificando a estigmatização, construindo
barreiras no acesso ao cuidado e tratamento, não desenvolvendo programas de educação sobre
saúde mental e distribuindo serviços carentes e insuficientes para a população. Por outro lado,
coabita também uma regulação biomédica dos corpos, através das “neuronarrativas” da
aflição que, ao contrário das socionarrativas, reforçam argumentos neuroquímicos que diluem
a memória e a consciência social sobre as expressões de mal estar psíquico (MARTINEZ,
2023, p. 61).
Ainda sobre a temática, mas aprofundando no campo de pesquisa, percebi que
enquanto trabalhava na etnografia de hospital, depois do longo período que frequentei os
hospitais psiquiátricos e convivi diariamente com os moradores, acabei por conviver pouco
com a equipe de profissionais. Isso espelhou a própria realidade dos moradores, pois o
contato com a equipe acontecia muito mais nos momentos de medicação e alimentação e,
posteriormente a isso, tanto eu como os residentes ficávamos transitando nos pavilhões sem
outras atividades para fazer. Como uma alternativa para me aproximar dessas outras
perspectivas, relacionada ao ambiente de trabalho que construíam, uma vez que eu percebia
que a maneira que atuavam no cotidiano institucional fugia muito de um direcionamento para
superação do modelo manicomial, optei por realizar entrevistas, pois sabia que não teria outra
maneira de me aproximar deles. Foram escolhidos, para tanto, profissionais do hospital que
trabalhavam diretamente na ala de moradores permanentes. Foram feitas 14 entrevistas com
profissionais de ambas as instituições, sendo uma médica psiquiatra, nove enfermeiros, três
técnicos de enfermagem e um trabalhador de serviços gerais.

182
Por meio dessas conversas, que foram gravadas pelo celular e que seguiam um roteiro
pré-definido, pude mais uma vez aproximar de alguns dos impedimentos que atuavam no
sentido contrário à desejada transformação daquela condição. Era preciso, para esse pequeno
objetivo, olhar microscópicamente para esta pesquisa, para as duas instituições hospitalares
nas quais o trabalho de campo foi realizado e também para o que diziam os moradores e os
profissionais que atuavam naquele ambiente. Quando conversei com os residentes sobre a
Reforma Psiquiátrica, nenhum deles demonstrou ter qualquer informação a respeito dela e
assuntos relacionados aos direitos humanos não eram nem cogitados. Tudo era justificado por
ser uma regra da instituição, tanto a medicação obrigatória, como o tratamento coercitivo que
recebiam, assim como a estrutura aniquilante do ambiente em que estavam. Para eles, não
parecia haver perspectiva de mudança, era necessário manter o personagem do bom paciente
para garantir minimamente um bom tratamento.

A obediência para alguns pacientes implica mostrar que eles confiam e


aceitam as decisões de médicos e enfermeiros. O atendimento hospitalar,
portanto, envolve os esforços dos pacientes para cooperar com aqueles que
os tratam. Médicos e enfermeiros desempenham um papel, no entanto, na
criação da dependência entre os pacientes. A equipe da enfermaria, por
exemplo, define os pacientes como não cooperativos se forem muito
curiosos e tenderem a se opor aos seus planos de saúde. Os pacientes,
portanto, tentam confirmar que "estão nas mãos da equipe do hospital" e
prontos para aceitar os planos de cuidados hospitalares. O bom paciente,
nesse sentido, é aquele que evita perguntas e qualquer comportamento que
antagonize os profissionais de saúde. (MULEMI, 2008, p. 124, tradução
minha).

Embora a nossa amostra seja pequena, foi interessante descobrir que desses 14
profissionais, cinco deles não tinham nenhuma informação sobre a Reforma Psiquiátrica
brasileira e nenhum deles tinha informações atuais sobre as Políticas Públicas de Saúde
Mental brasileiras. Embora a pesquisa estivesse sendo realizada ao mesmo tempo em que
aconteciam as Conferências de Saúde Mental (municipal, regional e estadual), nenhum dos
profissionais sabia também da sua ocorrência. Em uma entrevista, uma profissional me
contou:

Sabrina: Sim... então você não estava aqui na época das discussões da Reforma Psiquiátrica
e da Lei de Saúde Mental?
Entrevistada: Não... não... nem sabia nem que existia!
(Entrevista com uma enfermeira, 17 de janeiro de 2022)

183
Outro ponto interessante foi que 13 profissionais afirmaram serem contra a
institucionalização psiquiátrica permanente, mas todos eles salientaram a importância da
instituição, uma vez que não encontram na rede outras possibilidades para os residentes. Foi
relatado, de forma recorrente, que o Município de São José - SC não apoiou os processos de
desinstitucionalização que os hospitais tentaram fazer, o que ocasionou o fechamento de uma
tentativa de Residencial Terapêutico (RT) e de uma ala com caráter asilar. Atualmente, uma
pensão protegida, que funciona no modelo de um RT, também corre o risco de ter suas
atividades interrompidas, uma vez que o hospital não consegue desvincular as
responsabilidades necessárias para mantê-la e o município também não contribui para garantir
que essas pessoas continuem vivendo no local. Entre os profissionais, apenas três deles
conheciam a possibilidade desses Residenciais:

Entrevistada: É.. Eu... Eu nunca fui, na verdade assim, favorável à institucionalização do


paciente... porém, contudo, entretanto, eu entendo que o paciente é essa pessoa que precisa
de cuidados especiais, né? E esses cuidados especiais o nosso sistema eu acredito que não tá
conseguindo dar conta, eu quero deixar bem claro assim ó, eu não sou a favor da
institucionalização, eu não sou a favor, mas também eu penso que as nossas políticas
públicas são muito pobres... o que que é feito na verdade, o que que é trabalhado com essa
família ou com essa pessoa que precisa desse cuidado especial, né... como que essa pessoa é
abordada dentro da comunidade né... como que a comunidade trabalha com essa pessoa que
chega lá na farmácia, no armazém, que vai no banco, que fica na rua... né? Como ela é
tratada na Unidade Primária de saúde? Que cuidados que ela tem? Entende? Então eu vejo
que a gente é muito pobre nisso, muito muito muito pobre nisso…
(Entrevista com uma técnica de enfermagem, 12 de novembro de 2021)

Enquanto os profissionais relatavam a situação do hospital, eu comecei a percebê-lo


como uma ilha, diferente das primeiras percepções que tive nos capítulos anteriores, tal como
constatou Long, Hunter e Geest (2008, p. 73), “[...] o hospital é de fato uma ilha onde os
pacientes são submetidos a outro regime, vestem-se de forma diferente e desempenham
outros papéis”. Cheguei a afirmar, anteriormente, que o hospital não podia tão somente ser
visto como uma ilha isolada, mas que ele compunha e era composto pela sociedade na qual
estava inserido. Entretanto, no caso dos cuidados com os moradores, não havia outros sujeitos
ou espaços dispostos a competir com aquele local manicomial e todas as formas de
tratamento e cuidado eram definidas apenas pela equipe de profissionais. Isso trazia a

184
sensação de isolamento do local, além de apontar para a impossibilidade de ocorrência de
denúncias e manifestações. Em resumo, as longas horas de discussões que eu assistia nas
Conferências de Saúde Mental, bem como as votações que eram levantadas, não chegavam
aos hospitais.
Quando via os profissionais dizendo serem contra aquele modelo de internamento,
percebia que eles também estavam envoltos pela lógica institucional que cria a ideia de
ausência de alternativas. Os próprios funcionários estavam aprisionados por aquela tendência
manicomial e, tal como percebeu Martinez (2023), viviam condições de sobrecarga e de
escassa formação provenientes do campo da ética, da bioética e das normativas jurídicas,
pautadas na necessidade de estabelecer relações dialógicas entre profissionais e pacientes. Há,
segundo o autor, uma pressuposição de que essas questões são secundárias e não centrais para
a terapêutica dos internados, criando uma espécie de “injustiça epistêmica” (FRICKER, 2007)
em um sistema de saúde mental que parece ser incapaz de garantir o pleno exercício dos
direitos humanos.
Para fortalecer um sistema de saúde mental mais inclusivo e dialógico, deveríamos
então desmontar os mecanismos pelos quais é privilegiado um modelo explicativo centrado
na enfermidade e nos desequilíbrios neuroquímicos não confirmados, e substituí-lo por um
modelo explicativo centrado também nos determinantes sociais (MARTINEZ, 2023). Nas
falas dos profissionais de ambos os hospitais, o problema da dificuldade da reinserção social e
a falta de apoio do município aparecem de forma recorrente como as principais justificativas
para a manutenção da institucionalização psiquiátrica permanente, ainda que os profissionais
afirmem serem contra este modelo de tratamento.

Entrevistado: Olha, é uma coisa que acontece porque a [rede?...] básica não funciona, se
funcionasse eles seriam acolhidos, eu acho que é um mal necessário, porque eles não têm pra
onde ir nesse momento. Tanto é que tu vê, a gente mantém eles aqui e eles têm a gente como
família, quem eles têm hoje é a gente... então assim, é um mal necessário. Se tivesse a rede
básica funcionando, residenciais lá fora, né? O que preconiza mesmo... com certeza eles não
estariam mais aqui. A gente fez um residencial, né? Eles tão aí, o município não acolheu,
quem acolhe é a gente, que é o Casarão, né? [...] eles estão de alta, mas vamos mandar pra
onde? Pra quem? Então eles ficam ali e a gente meio que faz aquele jogo, vai lá, faz uma
reunião, acorda, traz aqui... faz tudo né…
(Entrevista com uma Enfermeira, 2 de maio de 2022)

185
É interessante notar que os profissionais não defendem a manutenção do espaço de
trabalho através de argumentos favoráveis, mas sim pela falta de alternativas dos moradores.
Não era comum um profissional dizer que os hospitais eram muito bons, nem que os
definissem com adjetivos positivos e, quando falavam sobre as instituições, começavam, na
maioria das vezes, pelas críticas ao modelo e finalizavam o pensamento com falas que
reforçavam a necessidade da instituição por não terem para onde levar os moradores. A
própria ideia de segurança, utilizada como justificativa para a permanência dos residentes,
pode ser colocada em questão. Segundo uma pesquisa do Reino Unido, publicada em 2000,
uma visita ao hospital tem uma chance de 6% a 16% de piorar a saúde do paciente. Desses, de
3% a 4% correm o risco de incapacidade permanente e morte (FINKLER, HUNTER,
IEDEMA, 2008).
Tanto nos relatos dos profissionais quanto na literatura sobre a temática, fica evidente
que a barreira para a desinstitucionalização é muito mais encontrada no campo externo aos
moradores do que dentro de suas condições biomédicas. Esse fato pode ser melhor
compreendido se seguirmos nos aproximando do conceito de sociogênese, desenvolvido por
Fanon, ainda em 1952. Segundo sua teoria, que enfoca principalmente nas desigualdades de
raça, a sociogênese seria o desenvolvimento social de um fenômeno, o que indicaria dizer que
o mesmo foi produzido socialmente, contrariando a crença de ser ontologicamente dado.
Se usarmos essa definição no campo da saúde mental, a partir dessas justificativas de
falta de serviços e de ambientes seguros para a vivência dos residentes, ou da ausência de
formação continuada de profissionais, entre outros problemas relatados nas entrevistas,
percebemos que a institucionalização como moradia e tratamento não é reificada pelo campo
médico, mas sim pelo campo social. Na sociogenia de Fanon, a mente, o corpo e a doença se
desenvolvem em relação à consciência historicamente produzida e também aos contextos
sociais do sujeito que os detém.
A interseccionalidade de classe, raça e gênero pode ser vista também como fator
determinante para a reificação da institucionalização e da estigmatização dos residentes.
Segundo Hansen, Gutierrez e Garcia (2023), um caso norte-americano que aborda a teoria da
sociogênese, documenta que os homens negros são diagnosticados com esquizofrenia de duas
a oito vezes mais frequentemente do que os homens brancos. Os autores também relembram
que no país, os homens negros têm cinco vezes mais probabilidade de serem encarcerados do
que os homens brancos e ressaltam que os próprios critérios de diagnósticos para a
esquizofrenia emergiram historicamente de estereótipos de negros como homens
violentamente paranoicos.

186
A construção das representações desses estereótipos pode variar de acordo com o
local que são construídos. Como exemplo, temos uma constatação de Jenkins (2015) sobre os
Estados Unidos. Segundo ela, as representações públicas das doenças mentais naquele país
passaram a ser dominadas e foram construídas através de imagens produzidas pelo setor
farmacêutico, por um lado, e por episódios de violência com armas de fogo, por outro.
Todos esses dados reforçam e reafirmam a ideia da manutenção institucional a partir
de concepções culturais e sociais, o que indica que embora vivamos em uma sociedade
adoecida, na qual muitos sujeitos enfrentam sofrimentos psíquicos de diferentes dimensões e
ordens, temos poucos, em Santa Catarina, espaços públicos que tratam, efetivamente, desses
sofrimentos. Além do mais, a maneira como esses sujeitos serão tratados e a vida que será
determinada a partir dos diagnósticos possíveis que receberão será delineada a partir de
construções convencionais que, muitas vezes, são construídas socialmente, entretanto, ainda
assim, os tratamentos e formas de cuidado ofertados pertencem mais à ordem médica e
disciplinar, e questões outras, como o olhar para as subjetividades, o lazer, a socialização,
entre outras formas de convivência, encontram pouco espaço para subsistirem nesse formato
de institucionalização.
Na França, um exemplo abordado por Fassin (2007, p. 29) elucida uma alternativa
possível. Segundo o autor, o sofrimento produzido pela “situação social” apareceu como o
problema principal e a fala e a escuta como a solução mais viável. Naquele caso específico,
optaram pelo desenvolvimento de novas instituições terapêuticas denominadas de “locais de
escuta”, que não pertenciam nem ao domínio da ação social nem ao da psiquiatria tradicional
(JENKINS, 2006, p. 246). Trazendo para o Brasil, reverbera novamente a questão das duas
alternativas possíveis para esses espaços de internamento. A primeira seria a de mais uma
reforma dos espaços já existentes; já a segunda seria a necessidade de criação de novos
arranjos ou novos espaços para os processos de cuidado e tratamento. Vale questionar, nessas
múltiplas expectativas, se seria possível, então, um processo de desmanicomialização dos
serviços de saúde mental públicos a partir dos espaços que já temos. Será que mais uma
reforma nesses ambientes seria suficiente para impedir a reprodução de modelos retrógrados e
violentos? Ou seria então necessário construir uma nova forma, social e também localmente
contextualizada para lidar com os resquícios dos manicômios? É possível reformar um espaço
que tem se demonstrado insustentável?
Jenkins (2015) traz, novamente, uma contribuição interessante para essa questão pois,
segundo a autora, os estudos dessa temática exigem uma especificação das situações e
condições do que ela chama de trauma no desenvolvimento cultural, social e humano, e, nas

187
suas palavras, deve-se observá-los como uma sintonia complexa com as modulações da
existência bruta e a estrutura da experiência (2006, p. 228). Ela continua:

[...] Nesta relação haveria, por um lado, a experiência subjetiva e as


instituições sociais e, por outro, os eventos de trauma. O contraste conceitual
não seria, portanto, entre o indivíduo e a instituição interpretado em termos
da distinção entre os níveis micro e macro de análise, mas entre a
experiência e a instituição entendida em termos da relação entre a
subjetividade e a estrutura. Quando entendidas como níveis separados de
análise, a experiência e a instituição parecem abstratas e sem substância,
enquanto que, na verdade, elas estão vitalmente entrelaçadas no tecido e no
"ritmo da vida" (p. 244, tradução minha).

Já sobre o lado da instituição, a autora aborda:

O institucional engloba os aspectos relativamente impessoais do governo


estadual (incluindo escolas e prisões), o setor de saúde gerenciado, o sistema
de tratamento (hospitalar e ambulatorial) e o legado colonial que resultou em
uma mistura específica de grupos europeus, hispânicos e indígenas que
coexistem em um ambiente de pobreza endêmica. O experiencial refere-se
ao fluxo relativamente imediato da vida, à medida que os jovens navegam
pelas contingências da família (de apoio ou destrutiva), do eu (ter uma vida),
do gênero (identidade e sexualidade), da educação (desempenho e aspiração)
e do processo terapêutico (psicoterapia e medicação) [...] Minha insistência
no fato de que eles estão interligados, e não em níveis separáveis de análise,
significa que nossa interpretação deve incluir a experiência do envolvimento
com as instituições e as restrições institucionais sobre a experiência; os
encontros com o sistema de tratamento são vivenciados, e o processo
terapêutico é influenciado institucionalmente (idem, p. 245, tradução
minha).

Pensar nas experiências de envolvimento com as instituições, bem como as restrições


institucionais é o que tem conduzido esta parte final destes escritos, entretanto, é uma tarefa
complexa fazer considerações sobre essas interconexões. Outros autores, como Edgerton e
Cohen, trabalham o conceito de cultura para compreender esses aspectos. Segundo seus
escritos: “[...] a cultura é um fator ambiental conceitualmente distinto e potencialmente
poderoso, capaz de exercer um efeito significativo no curso da esquizofrenia ou de qualquer
outro transtorno mental” (NASSER et al., 2002, p. 230, tradução minha). Eles também
adicionam que “[...] os fatores culturais incluem a tolerância social à doença mental e o grau
de apoio e aceitação familiar, além do papel das influências socioculturais na apresentação e
intervenção da doença” (idem, p. 352).
Essa questão é de particular relevância, uma vez que a aceitação e o apoio familiar
poderiam também construir uma saída possível para o caso da institucionalização psiquiátrica
permanente, entretanto, na realidade desigual brasileira, questões financeiras agravam a

188
impossibilidade dessa alternativa. Temos relatos, também nas entrevistas, de familiares que
recebem a aposentadoria dos moradores e dificilmente a entrega para que possa ser usada
para suprir as necessidades que aparecem no cotidiano asilar. Também foi recorrente nos
relatos, o fato das famílias dos moradores estarem vivenciando situações de vulnerabilidade
social, como casos de mães com mais de um filho vivendo diagnósticos psicossociais e
internações psiquiátricas, além de irmãos, tios ou outros parentes na mesma situação. Alguns
moradores, quando retornaram para o convívio familiar, passaram a viver também em
condições de pobreza e fome e acabaram retornando para o hospital.
Encontrei nos prontuários relatos de residentes que foram enviados para a família e
voltaram sozinhos para a instituição, depois de passarem a viver em situação de rua. Alguns
familiares visitam os moradores e levam presentes, mas o vínculo social está extremamente
frágil e é facilmente abalado na primeira dificuldade que aparece, o que ocasiona o ciclo dos
internamentos recorrentes, que foi denominado anteriormente de porta giratória.
Jenkins (2015) retoma um estudo realizado na Inglaterra por Brown e Rutter, na
década de 1962, que nos ajuda a aprofundar neste ponto. Os autores iniciaram uma série de
estudos sobre a relação entre a situação de vida de um indivíduo após a hospitalização
psiquiátrica e os padrões de recuperação de condições diagnosticadas como esquizofrenia.
No estudo, houve uma mudança das suposições psiquiátricas predominantes sobre a
relevância etiológica de características familiares psicopatológicas para a identificação de
características familiares cotidianas que podem afetar o curso de doenças mentais graves
(idem, p. 104). Eles observaram que as pessoas que voltavam a viver com a família eram
reinternadas com mais frequência do que aquelas que voltavam a viver em ambientes não
familiares. Essa contestação nos revela, uma vez mais, a necessidade de criação de espaços
outros para o cuidado de pessoas que têm vivido nesses ambientes, uma vez que nem a
instituição que vivem, nem o retorno familiar, podem ser alternativas para desvinculá-los da
lógica que os aniquila e aprisiona. Entre os profissionais dos hospitais em que fiz a pesquisa
de campo, a questão da família também apareceu mais como um desafio do que como uma
alternativa,

Entrevistado: Esse é um paciente que veio de outro hospital, que embora tenha família a
família não aceita, hoje ainda conversei com a assistente social, porque a gente nem tá
assim... a gente não tá com paciente assim... não existe vaga nova pra isso... só para os que
já estão há muitos anos já... então ele tem essa situação... e a gente não pode também
liberá-lo pra rua... a gente tá aguardando a defensoria pra ver o local... enquanto isso ele vai

189
ficando aqui... Aquele também... chegou aqui em 2016, vindo do hospital clínico, mas tem um
quadro de esquizofrenia, não tem vínculo nenhum com a família, a gente não sabe nem se o
nome dele é esse mesmo... e nós não conseguimos... sem identificação nenhuma... com nome
fictício... porque o nome é fictício... ele não sabe o nome dele…
(Entrevista com uma técnica de enfermagem, 3 de fevereiro de 2022)

A questão do cuidado integral e das dificuldades socioeconômicas também


apareceram de forma recorrente como um impedimento para que a desinstitucionalização
ocorra:

Entrevistada: [...] A gente sabe que hoje, se eles forem para a residência, aqueles que têm
família, né? Eles são pacientes que demandam... demandam medicação que é um
psicotrópico, que é uma medicação que alguém tem que dar nos horários certos, sabe?
Então, tem uma forma de lidar com eles, porque eles sāo psiquiátricos, e outra que hoje eles
já são idosos, então é um cuidado, um manejo diferente que eu acredito que na sociedade,
pros familiares de hoje, iriam sobrecarregar... eu acho que eles não teriam o tempo, né? O
tempo, a dedicação que o hospital tem... porque aqui é em prol pra eles…
(Entrevista com uma enfermeira, 2 de maio de 2022)

Em outra entrevista, quando questionei quais seriam os pontos positivos e negativos


dos pacientes viverem institucionalizados de forma permanente nos hospitais, isso voltou a
aparecer:

Entrevistada: Então, assim né, têm dois pontos de vista... assim, né... eu acho que por um
lado é benéfico, até porque aqui eles têm os cuidados, são tratados assim, bem com carinho...
com amor... tem esse vínculo... tem a segurança... tem a confiança... porque muitas vezes, às
vezes a família não passa e não transmite isso pra eles... tem essa questão também... né? Que
hoje todo mundo tem essa correria e não tem tempo pra eles... de ser atencioso, de dar
carinho... de ter esse vínculo, esse contato né? De amor mesmo... e assim, o ruim é assim que
eu acho é nessa questão da família mesmo, porque a família não vem, muitas vezes não tem
esse interesse de vir saber como tá o familiar. É mais cômodo mandar o que precisa do que
ter esse contato físico com eles, né?
(Entrevista com uma enfermeira, 3 de fevereiro de 2022)

190
Vale abrir um parênteses para uma informação importante. Aqueles pacientes que têm
familiares não são curatelados, ficando suas aposentadorias como responsabilidade da
família. Diferente das curadoras, os responsáveis familiares não precisam, judicialmente,
prestar contas de como o dinheiro é utilizado e não há nenhuma normativa da porcentagem
que deve ser entregue para o morador, o que tem provocado, pelo que foi relatado, uma
ausência de transferência do dinheiro para os internos.

Sabrina: Então eles [os moradores] não costumam receber dinheiro?


Entrevistada: Não, o dinheiro é só dos paninhos, da terapia ocupacional… daqueles que
fazem, né?
Sabrina: Então não é um direito deles, aqui no hospital, receberem pelo menos uma parte da
verba da aposentadoria deles? Pergunto isso porque nos outros hospitais que eu fui, eles
davam um pagamento semanal para os moradores, que eles podiam gastar como queriam…
em salão de beleza, supermercado, padaria, lojas…
Entrevistada: Nãããão... não... eles vão lá e pedem pra mim pra comprar essas coisinhas, eu
vou lá e compro, um shampoo, um iogurte… o que eles me pedem…
Sabrina: Mas não é todo mês? Não é uma regra?
Entrevistada: Não... Por exemplo, agora a M. quer depilar... ela recebe todo mês 100 reais...
Sabrina: E a família dela fica com o restante?
Entrevistada: Fica.
Sabrina: E fica guardado? Ou eles não tem que dar satisfação?
Entrevistada: Não, não tem que dar satisfação não.
Sabrina: Hm... [...]
Entrevistada: Os curatelados recebem 20 reais toda semana. Toda semana. Que eu descobri
agora. E daí por isso que eu posso fazer esse almoço...
Sabrina: E esses 20 reais ficavam onde?
Entrevistada: Lá com a recepcionista, não fica aqui.
Sabrina: E você não sabia nesse tempo que você trabalha aqui sobre esse dinheiro?
Entrevistada: Não, eu não sabia.
Sabrina: Então ficou guardado esse tempo todo?
Entrevistada: Fica lá guardado. Agora, por exemplo, se eles quiserem comer… eu peço lá o
dinheiro…
Sabrina: Aham...
Entrevistada: Às vezes eles querem comer uma comidinha, por exemplo, então me falaram, tu

191
pode estipular, ou toda semana comprar uma marmita ou a cada 15 dias... aí eu tirava do
outro pra dar pro outro, entendesse?
Sabrina: E por que será que não tem uma norma pra isso? Por que poderia mudar muito,
né? O tratamento aqui dentro... se tivesse esse recurso… se eles tivessem acesso à
aposentadoria…
Entrevistada: Não sei, Sabrina, não sei. Também queria saber e até hoje não descobri.
(Entrevista com uma enfermeira, 3 de fevereiro de 2022)

É possível notar, a partir desses exemplos, que o retorno familiar não é uma
possibilidade para os moradores, ficando o Hospital e a equipe reféns das Políticas de Saúde
Mental e do desenvolvimento e do acesso aos serviços de saúde públicos. Obviamente que
estas questões não justificam o tratamento dado nesses espaços. Mas voltando a Sahlins
(1976), tal como vimos no início deste Capítulo, podemos perceber que os fragmentos do
passado nos ajudam a compreender algumas cenas do presente e, ao ter consciência dos
mesmos, podemos também notar que longe de terem sido superados, eles têm se repetido
cotidianamente e de forma manicomial nestes espaços. A pergunta que resta, ainda, é: Como
pode se sustentar um espaço que nem mesmo quem trabalha nele o afirma? Nem quem está
internado nele tem o poder de desejá-lo? E, que a sociedade, quando o conhece, o vê com
horror? O que afinal mantém o manicômio vivo?

5.3) Caminho rumo ao manicômio, de novo

O caminhar em direção ao manicômio é uma forte hipótese de resposta à pergunta


sobre o que mantém seu funcionamento a despeito das reformas e de todas as pretensões de
superação desses espaços. Indo contra a maré, o que temos observado atualmente é
exatamente o contrário do que propôs os movimentos de Reforma Psiquiátrica brasileira e, no
lugar da saída de internados do manicômio, podemos vislumbrar um caminhar em massa de
indivíduos para dentro dele.
Em Santa Catarina, a utopia machadiana parece se repetir mais de 100 anos depois.
Isso porque, no conto O Alienista, Machado de Assis parecia prever esse movimento, ou, na
verdade, escreveu sobre algo que vem acontecendo de forma repetida na nossa sociedade.
Naquela época, ainda em 1882, o autor previu uma internação em massa, na qual todo e
qualquer indivíduo estaria sujeito. O alienista, indivíduo que comandava a Casa Verde, nome
dado ao local destinado ao internamento, “[...] não discriminava nem o avarento nem o

192
pródigo: ambos foram internados no asilo; isso levou as pessoas a dizerem que o conceito de
loucura do alienista incluía praticamente todo mundo”. Anos mais tarde, Foucault (2009)
escreveu sobre essa mesma tendência, denominando-a de “A grande internação”. Hoje,
infelizmente, reescrevo essa história, prevendo uma internação em massa, num futuro
próximo, de muitos de nós.
Vamos percorrer o que revelou algumas pesquisas sobre a temática nos últimos anos
para que não pareça aqui que estou criando um conto utópico sobre hospitais psiquiátricos e
internações de forma generalizada, nesse vislumbre que escrevi anteriormente, sobre uma
suposta tendência desenvolvida por um sistema neoliberal que provoca o adoecimento dos
corpos, além de propiciar o direcionamento de um caminhar para dentro do hospício.
Se pararmos para olhar alguns números referentes à saúde mental no Brasil, nos
sentiremos alarmados com a situação que encontraremos. Um levantamento realizado pelo
Conselho Federal de Farmácia (CFF) demonstrou que a venda de antidepressivos e
estabilizadores de humor disparou no Brasil desde a pandemia provocada pelo Coronavírus.
Se compararmos os anos de 2019 e 2022, notamos que o número de unidades comercializadas
das drogas aumentou 36%, passando de 82.667.898 para 112.797.268. Já referente aos
anticonvulsivantes e antiepilépticos, que também são utilizados para tratamentos que incluem
quadros de depressão, o aumento de vendas nesse mesmo período foi de 21%. Se olharmos
para o período anterior à Pandemia, vemos que a maior porcentagem de aumento anual havia
sido 4%, em 2018. Tem ocorrido, como descreveu Martinez (2023), um “[...] incessante
aumento do consumo de antidepressivos como um exemplo de cerebralização das aflições
humanas” (p. 20, tradução minha), numa tendência neoliberal de supervalorização de
neurorarrativas sobre as diferentes formas de aflição que reforçam a explicação
neuroquímica, distanciando-a das socionarrativas que também determinam e dão forma ao
mal estar psíquico vivenciado pela população.
Em nível Global, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 10% da
população mundial sofre com transtornos mentais, sendo o Brasil o país que lidera o ranking
de ansiedade e depressão na América Latina, com quase 19 milhões de pessoas enfrentando
essas condições de saúde. Adiciona-se a isso o fato de que temos também o terceiro pior
índice de saúde mental, de acordo com o Mental State of the World Report, pesquisa que
englobou 64 países e entrevistou 407.959 pessoas online26. O projeto criou uma base de dados
mundial sobre saúde mental relacionada aos dados demográficos, estilo de vida e experiência

26
Disponível em: https://sapienlabs.org/global-mind-project/researcher-hub/. Acesso em
4/1/2024.

193
de vida relacionado ao uso da internet. A partir de um questionário online, ainda disponível, é
possível descobrir o próprio Quociente de Saúde Mental e as informações coletadas são
enviadas diretamente para uma base de dados que também está disponível de forma gratuita.
O relatório final revelou que um a cada três brasileiros relataram enfrentar múltiplos sintomas
do que chamaram, no estudo, de saúde mental negativa.
Se olharmos para os jovens adultos (young adults), este fato se agrava ainda mais. A
comparação é feita entre dois grupos etários, 55-64 anos (adultos) e 18-24 anos (jovens
adultos). A percentagem de pessoas angustiadas ou com dificuldades, no segundo grupo
etário (18-24), foi de três a cinco vezes superior à do primeiro grupo etário (55-64) em todas
as regiões estudadas. A América Latina e o Sul da Ásia tiveram o aumento mais acentuado na
porcentagem de pessoas enfrentando dificuldades, movendo de 10-12% na faixa etária de
55-64 anos para 45-50% entre os jovens adultos de 18 a 24 anos. O relatório concluiu que,
globalmente, os jovens adultos têm de três a quatro vezes mais probabilidades de ter
problemas de saúde mental do que a geração dos seus pais (p. 19).
Redirecionando o olhar para os espaços de tratamento e internação, a partir de uma
matéria escrita pelo jornalista Rafael Machado (2023)27, vemos uma crescente expressiva nas
internações psiquiátricas. Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
(CNES), temos no Brasil mais de 29 mil leitos de psiquiatria, sendo 13 mil do setor privado.
Embora tivéssemos vivido um período de redução de leitos, a partir dos movimentos de
Reformas, nos últimos anos, o que percebemos é um aumento desses espaços, em uma
sociedade que tem demandado cada vez mais esse tipo de tratamento.
Em 2020, tivemos 174 mil internações psiquiátricas no setor privado no país e esse
número continua crescendo. Ainda, segundo a reportagem, grupos de empresários têm
trabalhado para construir redes de hospitais com altos investimentos. No Estado de Santa
Catarina, por exemplo, foi vinculada uma instituição a uma dessas redes, que também tem
outra sede localizada no Rio de Janeiro. Ambos os empreendimentos contaram com um
investimento de 500 milhões de reais e são compostas por 400 leitos psiquiátricos particulares
(idem).
Com o aumento da demanda de tratamento, era de se esperar que o setor econômico se
apoderasse desse mercado da saúde mental, tal como aconteceu com a indústria farmacêutica
anos atrás. Esse movimento dessa outra indústria teve início ainda em 1952, com a descoberta
do primeiro antipsicótico, a Clorpromazina e, a partir desse medicamento foi sendo

27
Disponível em: https://futurodasaude.com.br/novos-hospitais-psiquiatricos/. Acesso em 4/1/2024.

194
desenvolvida uma estratégia biopolítica para reorganizar a gestão do corpo, através da
psiquiatria (CAPONI, 2019). Dito de outro modo, a Clorpromazina aparece como uma
estratégia de governo da loucura, dentro e fora de hospitais psiquiátricos (idem).
Outro estudo publicado no Brazilian Journal of Psychiatry28 e realizado
especificamente no Estado de São Paulo, com dados de 64.685 pacientes, revelou que
internações psiquiátricas involuntárias, ou seja, aquela que não tem consentimento do
paciente, cresceu 340% entre os anos 2003 e 2019 e a maioria das internações aconteceu em
instituições públicas, atingindo quase 87% dos processos de internamento. Entre os
internados, a maioria estava na faixa etária de 18 e 39 anos e eram pessoas solteiras. As
justificativas de internação foram, principalmente, os distúrbios psicóticos e a esquizofrenia.
Embora o motivo da internação estivesse ausente em parte expressiva dos relatos (44%), o
risco de dano a si ou a terceiros foi o mais presente (68,5%). Já referente à reinternação,
encontraram uma média de 13% dos casos.
Embora tenhamos ciência de que Santa Catarina conta atualmente com 857 leitos
psiquiátricos públicos que estão atualmente distribuídos em 78 hospitais que recebem
recursos através da via Política Hospital Catarinense (PHC), não conseguimos localizar dados
detalhados referente às últimas internações no Estado. Além desses movimentos de capital
que transitam dentro desses espaços de internamento, também encontramos outro desafio fora
das instituições. Podemos facilmente usar uma pesquisa realizada na África Subsariana
(ADEWUYA; MAKANJUOLA, 2008) para pensarmos também o caso específico brasileiro.
Aponto aqui, antes de aprofundar nos dados da pesquisa, uma possibilidade futura de
realização de uma pesquisa com esses mesmos enfoques, mas com o caso particular do Brasil,
porém, enquanto não a temos, podemos projetar alguns dados da África para o nosso campo.
Segundo Adewuya e Makanjuola (idem), há um elevado nível de distanciamento
social e estigmatização das doenças mentais na região em que o estudo foi conduzido, tal
como temos percebido, de forma recorrente, no Brasil. O nível de distanciamento social
desejado em relação ao doente mental aumentou de acordo com o nível de intimidade exigido
no relacionamento, sendo que, naquela região, 14,5% dos participantes foram categorizados
como tendo baixo distanciamento social, enquanto 24,6% como tendo distanciamento social
moderado e 60,9% como tendo um alto distanciamento social.

28
Disponível em:
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/03/11/estudo-avalia-chuva-de-internacoes-psi
quiatricas-involuntarias-em-sp.htm. Acesso em 4/1/2024.

195
A partir desses dados, passei a pensar em quais seriam essas porcentagens no Brasil,
um país que tem enfrentado, como vimos anteriormente, uma crescente disparada nos
problemas de saúde mental, na medicalização dos sofrimentos psicossociais, além de um
retorno massivo ao modelo hospitalocêntrico de tratamento e cuidado. Como a pesquisa
revela que o nível de distanciamento social tem relação próxima ao nível de intimidade
exigido no relacionamento, podemos vislumbrar que, talvez, esse panorama tende a se
modificar.
Uma vez que a cada dia mais pessoas são acometidas pelos sofrimentos psíquicos, as
possibilidades de ter alguém com vínculo social próximo enfrentando esses mesmos desafios
também aumentam. Entretanto, ainda ressoa a pergunta do por que, mesmo tendo a saúde
mental e os sofrimentos psíquicos atuado de forma presente na nossa sociedade, continuamos
alimentando modelos excludentes e aniquiladores de tratamento e cuidado. O estudo revela,
uma vez mais, a necessidade de investimentos em soluções que fujam da ordem
médico-hospitalar, como a incorporação de programas educativos antiestigma nas políticas de
saúde mental, educação comunitária relativa a este tema, além de acesso facilitado a
diferentes serviços e tratamentos.
No Brasil, as estratégias para englobar os determinantes socioculturais têm se
concentrado mais no incentivo à participação social no planejamento das práticas de cuidado
e nas participações em intervenções produzidas por pacientes e familiares (AMARANTE,
NUNES, 2018), entretanto, há um recorte de classe importante, uma vez que no país as
classes médias não favorecem os serviços públicos de saúde mental e os usuários de classes
populares encontram mais desafios econômicos, sociais e culturais para se envolverem nessas
ações (MÜLLER, ORTEGA, MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2022, p. 10).
Segundo Caponi (2019, p. 146), o saber psiquiátrico não é somente biológico ou
médico, mas continuamente se vale da força discursiva dessa posição para produzir seus
efeitos. Isso porque, ainda não foi possível comprovar as causas dos transtornos mentais, o
que reforça a hegemonia do modelo medicocêntrico e a utilização dos psicofármacos de
forma exacerbada, que enfocam na doença e não na sua “cura”. Martinez (2023) também
favorece essa linha de raciocínio ao afirmar que:

Um transtorno mental também é como ele é significado e ressignificado e o


que é feito com ele, como ele é construído, como suas manifestações são
lidas e interpretadas e como são gerenciadas de acordo com um jogo de
nomeação e antecipação que pode aliviar o sofrimento, aumentá-lo ou até
mesmo torná-lo crônico; facilitar o acesso ao tratamento ou torná-lo mais
difícil; (MARTINEZ, 2023, p. 37, tradução minha).

196
Em uma sociedade que tende a gestionar os sofrimentos psíquicos a partir de drogas
psicofármacas e internações limitantes, é difícil superar as tendências medicalizantes na
construção de espaços para o cuidado e o tratamento. Os próprios residentes dos hospitais têm
uma relação íntima com a medicação e, ao mesmo tempo, demonstram um posicionamento
crítico em relação à mesma. Em uma entrevista com um ex-residente, ele me contou:

D: Porque os remédios, eles mexem com o corpo inteirinho, inteirinho, inteirinho... o… [...]
da psiquiatria, né? Ele mexe da ponta dos pés até a ponta da cabeça... ele mexe com tudo o
remédio... entorta a mão, entorta dedo... enfim... todas as doenças o remédio ele [...] eu tava
estudando a bíblia, de boinha... ai fechei ela... deitei... ai depois fui abrir já não consegui
mais... não consigo mais... até o momento não consigo... só com óculos... pra ver aos
pouquinhos... mas a olho nu... é assim... você pensa.... De manhã eu tava lendo, de tarde eu
voltei e não consegui ler mais... pra você ver a quantidade de remédio que existe, né? Existe
milagre... o milagre vem... é isso ai... é o que vou dizer pra você... o remédio da psiquiatria
ele mexe com tudo... tudo... tudo, tudo, tudo... nem precisa procurar outros por ai... a
psiquiatria ela conhece tudo... eu tenho 40 anos de tratamento, com esse tipo de doença e...
gente morrendo, etc, etc... [...] mas é isso... o estudo da psiquiatria é isso tudo que eu falei…
(Entrevista com um ex-morador, 22 de novembro de 2021)

Ainda sobre os psicotrópicos e as desconsiderações dos campos culturais e sociais nos


sofrimentos psíquicos, Caponi (2019) revela que, contraditoriamente, as observações para
construção diagnóstica desses sujeitos utilizam parâmetros de avaliações relacionadas ao
campo social, em que julgam prioritariamente os comportamentos, antes de olhar para uma
patologia propriamente dita. Nesse raciocínio, o intuito final não trata de aliviar sofrimentos
de indivíduos, mas, por outro lado, pode ser visto como uma estratégia que permite garantir o
funcionamento de dispositivos disciplinares da nossa sociedade.
Nos hospitais nos quais fiz a pesquisa de campo, era muito comum as justificativas
das medicações estarem acompanhadas de situações em que comportamentos inesperados de
moradores ocorriam na instituição. No Diário de Campo, registrei uma conversa com dois
moradores me contando sobre uma terceira moradora que foi contida com uma medicação:
“Hoje pela manhã, a S. [moradora] me contou que ontem a C. [outra moradora] “tomou
injeção no rabo”... Perguntei pra ela por que, e J. [morador] me respondeu: “Pra acalmar ela,
não parava quieta!” (12 de abril de 2022).

197
A própria justificativa mais comum dos moradores por estarem no hospital também
foge da ordem médica. Quando conversei com um residente sobre o motivo que o levou de
volta ao hospital, depois de ter recebido alta hospitalar, ele me contou sobre uma sequência de
desafios socioeconômicos que precisou enfrentar por ter vivido durante décadas dentro de um
hospital. No Diário, encontrei essa passagem: “[...] Perguntei pra ele [para o morador]:
“Como você voltou pra cá?” E ele me respondeu: “Porque não tinha dinheiro lá, não tinha
cigarro, tinha que ficar vindo aqui pedir, não tinha comida, tinha que ir no refeitório que tem
aqui para comer. Não tem outra escolha, né? Não tem escolha.” (Diário de Campo, 17 de
novembro de 2021). Outra situação foi também emblemática, quando conversei com um
morador que criava passarinhos em uma gaiola:

[...] fomos até os passarinhos e ele quis me mostrar os coxinhos, dizendo:


“Olha bem se meus passarinhos passam fome! Enchi os coxinhos deles
ontem”. Falei que os passarinhos estavam melhores que eu, cheio de comida,
brincando, porque sempre falo pra eles que não ganho café da tarde no
hospital, o que é verdade. Ele riu e disse: “Só se eu te colocar numa gaiola
dessa”. Daí, perguntei: “Como será que deve ser né?” E ele: “Pelo menos
você não ia passar fome…” (Diário de Campo, 2 de fevereiro de 2022).

Nesse caso, embora o morador estivesse falando dos passarinhos, transferi


momentaneamente o que ele me disse para sua própria condição, já que eles sempre me
diziam que dentro do hospital, pelo menos, garantiam a alimentação do dia. Essa situação se
repetiu muito e era comum, em campo, ouvir de forma recorrente os moradores contarem que
estavam internados naquelas instituições porque, estando ali, pelo menos recebiam comida e
tinham um lugar para dormir. Nas nossas conversas, eles reforçavam sempre que pelo menos
ali tinham um teto e que não podiam reclamar, já que antes já estiveram até mesmo em
situação de rua. Escrevi, outro dia, no Diário de Campo:

Hoje, N. [moradora] me perguntou se ainda tem bichinho lá fora, se


referindo ao Corona Vírus. Eu disse para ela que estava diminuindo
bastante... ela então me contou que esse bichinho pegou ela no corredor, que
ela não sabe o que que ele viu na cara dela... falou que ficou internada na
enfermaria duas vezes, que quase que ela se foi, quase morreu...
Continuamos conversando e ‘do nada’ ela começou a chorar, perguntei por
que e ela disse que é porque ela não consegue mais viver em uma casa, uma
casa dela... disse que queria conseguir ‘parar’ numa casa… (Diário de
Campo, 18 de março de 2021).

Anteriormente, já escrevi sobre a recorrência da temática que os moradores trazem


sobre viver em uma casa, ou de sair do hospital. Por agora enfoquemos apenas nos destaques
que eles dão para justificativas que fogem da ordem biomédica para continuarem a viver ali.

198
É também necessário considerar, além das questões psicossociais, as intercorrências da
temporalidade nestes espaços. Segundo Tavares (2007), a dimensão temporal é fundamental
para se compreender as produções de significados nos internamentos. Nas suas palavras, a
temporalidade

compreende não apenas a ideia de que há um desenrolar do significado que


implica alterações de escolhas, mas também a percepção de que nesse
processo nem sempre se observam sínteses bem elaboradas de adesão a um
ou outro tratamento; pelo contrário, muitas vezes são as indefinições e as
sínteses parciais e provisórias que conferem a tônica de uma trajetória
(TAVARES, 2007, p. 212).

São essas indefinições que tentei percorrer nesta pesquisa, essas sínteses parciais e
provisórias que não necessariamente interrompem o fluxo aniquilantes da instituição, mas,
por sua vez, fazem com que subsistam pequenas brechas que permitem que os moradores
sejam, além de internos, também atores daquele espaço, ou, como preferi falar nos capítulos
anteriores, agentes daquela realidade. Entretanto, como também já citei anteriormente, nos
hospitais catarinenses foi muito difícil encontrar esses espaços e as instituições dominavam
todas as instâncias da vida. Vale, para finalizar essa discussão, acompanhar o que escreveu
Martinez (2023):

O campo da saúde mental ou das aflições humanas, como prefiro chamá-lo,


apresenta muitos limites e ângulos possíveis, muita complexidade para
considerarmos tudo como garantido. Parte da minha crítica aqui a alguns
conhecimentos e práticas “psi” pode ser expressa precisamente nessa ideia,
em como tomar tudo como garantido desarma a possibilidade de um
conhecimento menos dogmático e fecha o horizonte do espanto. (p. 17,
tradução minha).

Em resumo, é importante, uma vez mais, reafirmar a importância da perspectiva social


nas decisões relacionadas ao campo da saúde mental. Essa perspectiva é, nas palavras de
Martinez (2023), mais descritiva do que prescritiva, uma vez que não tenta, retomando Weber
(1968), alcançar o conhecimento sobre o que é normal ou patológico, mas sim sobre o
significado da ação social nesses espaços, incluindo como o normal e o patológico são
definidos e construídos (p. 18, tradução minha). Por fim, reforça que se trata de uma visão
parcial e incompleta, como em qualquer outra abordagem, mas não é menos legítima por esse
motivo.

199
5.4) A inversão (necessária) da lógica da dependência

Tenho ficado intrigada com a M. [moradora]. Ela tem o costume de parar em


frente ao espelho e fica se olhando bem de perto, falando alguns comentários
bem baixinho... Hoje, num desses momentos, perguntei se ela lembrava meu
nome, ela disse que não... Me falou assim: “Não uso muito a cabeça mais...
não tô muito boa”... Depois emendou dizendo que sentiu uma dor no olho...
que teve uma crise... uma “crise de sono”... e disse que achava que era por
conta do remédio... Me perguntou: “Quanto tempo demora pra chegar a
outra segunda-feira?”, falei que faltava quase uma semana… e ela
continuou: “Tô com uma preguiça... uma preguiça de graça... Tomei tanto
remédio... pra melhorar não sei do que... acho que pra melhorar os
acontecimentos...” (Diário de Campo, 5 de abril de 2022).

Melhorar os acontecimentos era uma interessante justificativa para o uso das drogas
psicotrópicas e a continuidade deste uso poderia ser mais uma hipótese do que sustenta aquela
instituição. Explico melhor. Nos hospitais era muito comum, como disse anteriormente, que
os profissionais justificassem a permanência dos moradores através da necessidade que os
mesmos tinham de serem cuidados de maneiras específicas e que, em ambientes fora daquele
espaço, seria difícil que os mesmos conseguissem manter os remédios controlados e, no caso
daqueles que fossem viver com a família, muito provavelmente seria difícil também para os
familiares lembrarem de manusear as drogas da maneira necessária. Vejamos então estas duas
camadas.
A primeira, reifica a necessidade da institucionalização se valendo de direitos comuns
e básicos da população, como o direito à moradia e à alimentação. Vimos no tópico anterior
que isso é muito recorrente e tanto os profissionais, quanto os moradores, afirmam a
importância residencial que aqueles espaços têm. Por outro lado, em uma segunda camada,
vemos a característica residencial se valendo de neuronarrativas (MARTINEZ, 2023), ou seja,
de questões do discurso biomédico para reafirmar a necessidade da institucionalização.
Como, atualmente, o único tratamento que os moradores recebem é o medicamentoso, a
manutenção das pílulas aparece como um impedimento para a desinstitucionalização.

Entrevistado: Porque a gente percebeu que ao longo do tempo, com o convívio deles aqui,
eles tinham toda condição de morar com a família... não eram adoecidos... era só dar a
medicação no tempo certinho, né? Então, alguns não tinham como ir... outros... dava até pra
morar sozinho, sabe? Só que assim, ó… a família não sabe manusear [os comprimidos]… a

200
família esquece, não tem condição de estar em casa o dia todo pra poder dar o remédio pro
paciente…
(Entrevista com técnico de enfermagem, 3 de fevereiro de 2022)

Os moradores também se relacionavam com os medicamentos de maneiras


particulares, um deles me contou que devido à quantidade de remédios que tomava, não
conseguia mais “ter relações públicas”, pois “o inconsciente e o consciente estavam fora” e
ele não conseguia mais manter uma conversa (Diário de Campo, 22 de novembro de 2021).
Nesse caso, podemos ver como o efeito do remédio é manuseado para também falar sobre a
condição de vivência dos residentes e não tão somente suas próprias “doenças”. O mesmo
medicamento era, naquele ambiente, usado para medicar, punir e tratar.
O eletrochoque também apareceu de forma curiosa em uma de nossas conversas,
quando perguntei para outro morador se ele já residia em alguma instituição psiquiátrica na
época em que era utilizada a eletroconvulsoterapia para o “tratamento”, no interior de
hospitais psiquiátricos públicos. Ele me contou que sim, que já levou muito “choque na
cabeça”. Perguntei para que aquele tratamento servia e ele me respondeu: “Pra desamassar o
corpo”. (Diário de Campo, 10 de janeiro de 2022).
Nas falas, podemos ver que estava muito cristalizada a vivência medicada, pois tanto
no discurso dos residentes, quanto no dos profissionais, essa questão aparecia como algo
dado, quase ontológico. Aqueles residentes eram “vítimas” de um modelo centrado nas
drogas (MONCRIEFF, 2013, apud CAPONI, 2019), segundo o qual “[...] as droga
psiquiátricas têm a função de induzir alterações cerebrais, produzindo um estado anormal ou
alterado, e estão longe de corrigir um estado anormal ou restabelecer um equilíbrio
neuroquímico”. Nessa relação, ocorre o que o autor chamou de “intoxicação cerebral”, tal
como acontece com outras substâncias psicoativas, como por exemplo o álcool. Nesse
raciocínio, “[...] atrever-se a falar das drogas psiquiátricas a partir do efeito que elas
provocam nos usuários significa reconhecer que a prescrição de psicofármacos encontra seu
fundamento nos efeitos que o fármaco produz, e não na capacidade de reverter um estado
patológico” (CAPONI, 2019, p. 89).
Nota-se novamente, que as justificativas para a permanência da medicação, muitas
vezes, não eram compostas por argumentos biomédicos. Isso porque, muitos moradores já
não recebem medicamentos psicotrópicos. Encontrei, como já citei anteriormente, um caso de
uma moradora que tem no seu prontuário médico a seguinte frase: “Paciente não possui
diagnóstico psicótico”. Isso nos leva, de novo, para uma dimensão ainda mais profunda da

201
cena institucional, aquela que reforça a condição de vivência dos moradores a partir de
questões principalmente pautadas na ordem social. Segundo Basu (2009), a doença mental
está carregada de uma série de conotações e experiências negativas, tanto para a pessoa
afetada como para o seu ambiente social e expressões como desordem, ruptura das relações
sociais, violências, sofrimento, medo e estigmatização são as consequências mais comuns
nessas interações.
O medo de sair, por exemplo, aparecia constantemente como algo que construía nos
pacientes o desejo de permanecer no hospital: “J. [uma moradora] me disse: “Eu não quero
mudar de casa não, porque eu tenho medo de cachorro…” (Diário de Campo, 23 de março de
2022), ou então:

Vai ter passeio nega, lá na piscina... vai ter bolo... adivinha que que vai ter?
Vai ter bolo pra gente comer... [...] eu tenho medo de cair, nega... eu tomei
injeção…” [Por que?] “Não sei... não posso sair daqui não, nega… pirão não
vem mais pra nóis... não tem mais pirão... vou rezar pra ti nega… (Diário de
Campo, 11 de abril de 2022).

Além do mais, o próprio conceito de paciente era interpretado pelos moradores


através de composições relacionadas à possibilidade ou impossibilidade de relacionamento
entre os pares ou com pessoas de fora. O conceito não necessariamente era acionado para
falar de aspectos de saúde e doença dos residentes. Exemplo disso foi notado quando eu
questionava os moradores sobre o que era ser, afinal, um paciente, já que isso aparecia muito
nas nossas conversas, quando me diziam, por exemplo, que paciente não podia casar, que
paciente não podia cozinhar ou que paciente não podia sair sozinho na rua. Quando
questionei, em uma roda de conversa, o que para eles significava ser um paciente, eles me
disseram:

[...] R. [morador] disse que foi uma palavra [paciente] que inventaram, que
não existe nos livros e que ele não gostaria mais de ser chamado pelos
funcionários assim, que ele não quer chamar os outros de funcionários e nem
quer ser chamado de paciente. Disse que inventaram esse nome pra chamar
ele, mas que ele não sabe o que significa, que lá são os moradores, pacientes
moradores, que deambulam na estrada. C. [morador] falou que não sabe
porque chamam ele de paciente e que ele não tá nem ligando pra isso, disse
que sabe o que significa isso, mas que quem é paciente não pode sair, não
pode comprar as coisas no supermercado, P. [morador] disse que não pode ir
na zona e que quando não era paciente ainda ia (Diário de Campo, 26 de
janeiro de 2022).

Ser ou não ser paciente implica, basicamente, poder ou não cumprir papéis sociais e
viver a experiência da vida com liberdade de ação e de escolha. Naquela conversa, os
moradores não usaram argumentos pautados na lógica biomédica para construírem suas

202
definições, para eles, serem denominados de “pacientes” era mais uma espécie de argumento
que os impediam de agir e de se movimentar para dentro e para fora dos muros das
instituições. Além disso, ser paciente também criava barreiras nas formas de se relacionar e
construir laços, tanto na vida institucional, quanto fora dela.
A própria lógica da “segurança”, aquela que diz que dentro do hospital os moradores
estão seguros, longe dos perigos que os cercariam caso vivessem fora daquele espaço, perde
sua força. Principalmente quando fica explícito que viver em um ambiente hospitalar expõe
os moradores ainda a mais riscos, como escrevi no diário:
Achei interessante um ponto que ela [enfermeira] levantou, quando
estávamos conversando sobre a institucionalização psiquiátrica
permanente… Ela falou sobre o risco de morar em hospitais, disse que é
uma ilusão isso de segurança, porque no hospital eles estão expostos a
muitos riscos, por exemplo de pegar uma infecção generalizada, alguma
bactéria mais seria, ela disse que pra ela o risco de viver em um hospital é
muito maior do que ser desinstitucionalizado e achei isso interessante porque
todos os profissionais que conversei antes, falaram que o ponto positivo da
institucionalização é justamente a segurança e eu ainda não tinha pensado
dessa forma… (Diário de Campo, 31 de janeiro de 2022).

Nessa argumentação, a ideia de risco é trazida para dentro da instituição, que abriga
também dentro de seus pavilhões muitos perigos, assim como citei nos tópicos anteriores.
Nos dois pensamentos, há diferentes riscos de sair do hospital e de viver dentro dele, mas o
curioso é que no cotidiano institucional, os riscos possíveis de uma vida em liberdade são
muito mais manuseados para construir argumentos institucionalizantes do que os riscos de
permanecerem ali. Para ser exata, o risco de viver dentro do hospital só apareceu em uma
conversa, e não esteve presente em nenhuma das entrevistas e em nenhuma troca de
experiência com os moradores nem com os profissionais. Vemos, assim, que o próprio
ambiente hospitalar residencial reforça a percepção dos moradores sobre a vulnerabilidade e a
dependência (MULEMI, 2008) o que fortalece, uma vez mais, a lógica que os aprisiona.

Entrevistado: Vou perguntar uma coisa pra ti assim, ó... tu achas correto a gente dar uma
chave para um paciente da psiquiatria? Ou, vou aumentar a pergunta: tu achas correto
qualquer paciente independente de ser da saúde mental, clínica médica, dermatologia, ficar
fechado no quarto?
Sabrina: Ficar fechado por escolha dele?
Entrevistado: Ter a chave...
S: Ah, eu acho que é importante ter a individualidade dele... ainda mais porque conheço o C.
também [morador que tem a chave do quarto]...
Entrevistado: E se esse paciente ficar trancado com a chave por dentro?
Sabrina: (silêncio). Não sei... Porque fico pensando assim… todos esses riscos são reais, mas
eles também existem pra todo mundo que mora fora do hospital... todo mundo pode sofrer um

203
acidente... assim... a gente pode sofrer... têm muitas pessoas idosas que também moram
sozinhas... e aí eu fico pensando assim, é... até que ponto então temos que limitar isso ou não,
já que é um risco que mesmo quem não estiver aqui dentro... mas eu entendo que é uma
responsabilidade do hospital... né... também...
Entrevistado: É... Eu falo isso porque assim, ó, não sei se é bom ou ruim... mas assim, como
as famílias não tem contato, a gente não teria grandes problemas, mas se fosse família mais
presente e acontecesse uma intercorrência grave dessa, a instituição teria com certeza muitos
problemas…
(Entrevista com um enfermeiro, 3 de fevereiro de 2022)

Aqui, além dessa ideia de proteção, aparece também a questão dos moradores não
terem pessoas de fora da realidade hospitalar para reivindicar seus direitos e para fiscalizar as
diferentes formas de tratamento e cuidado que eles recebem. Essa é uma questão muito
perigosa, porque ela acompanha os profissionais que trabalham com aqueles moradores
cotidianamente, uma vez que eles sabem que ninguém de fora irá intervir na maneira como
eles lidarão com aquelas pessoas. Nesses procedimentos de cuidado, considerados
institucionalmente como terapêuticos, os moradores são diariamente lembrados sobre sua
posição como pacientes (MULEMI, 2008), em vez de participantes mútuos de um processo
de recuperação e reinserção social, tal como preconizava a própria Lei de Saúde Mental
(2001). E, embora tenhamos literatura suficiente que comprove que as opiniões subjetivas dos
pacientes sobre o tratamento que recebem influenciam no resultado da hospitalização (idem;
TAMBURINI et al., 2003; SHAW, BAKER, 2004), ainda assim vemos essa questão ser
estruturalmente negligenciada.

Cheguei e encontrei T. [morador] deitado no banco, perguntei como ele


estava e ele disse que “enraivado”, disse: “Aqui a gente só come e eles não
agradam a gente, preciso de nada, preciso sair daqui, sair daqui de pressa, o
mais rápido possível!” “Pra onde você gostaria de ir?” “Pra lá pro Norte,
essa turma daqui não presta pra nada!”. (Diário de Campo, 30 de novembro
de 2021).

Isso nos leva a pensar, novamente, na possibilidade de inversão da lógica tão


difundida e já trabalhada anteriormente que faz crer ser necessário, para os moradores, ter um
local para morar no interior dos hospitais psiquiátricos, o que justificaria a necessidade da
manutenção da instituição e a inexistência dos movimentos de desinstitucionalização.
Entretanto, por outro lado, vemos que a instituição também precisa criar mecanismos para
manter pessoas vivendo dentro de suas estruturas, pois é essa a única forma de manter sua
própria existência. Essa inversão da necessidade, passando da instituição para os moradores é,

204
como dito, uma das principais ações que garantem a institucionalização permanente dessas
pessoas. Podendo, em tempo, ser considerada como uma das principais barreiras que
inviabilizam a saída deles.
Dito de outro modo, o que tem ocorrido, e isso fui percebendo após os longos anos de
experiência de campo - não somente no Estado de Santa Catarina, mas também no Estado de
São Paulo - é essa inversão secular da lógica da dependência. O que mantém a instituição em
pé, até os dias atuais, é exatamente esse imaginário social que não tem espaço para criar
alternativas outras para aquela condição. Afinal, o primeiro argumento que emerge é: Para
onde os moradores iriam? Já o segundo, seria: Quem manusearia os comprimidos que eles
precisam tomar? E, o terceiro: Como eles conseguiriam fazer suas comidas, cuidar de uma
casa, depois de viverem décadas apenas sendo medicados e tendo uma rotina com apenas
duas obrigações, de ir ao refeitório no horário da comida e na sala de enfermagem na hora da
medicação? Nota-se, aqui, que em momento algum surgem as perguntas: A instituição
manterá suas atividades se não tiver moradores em suas alas? Quem ocuparia os prédios
vazios caso os moradores fossem desinstitucionalizados? Qual seria o fim daqueles pavilhões,
caso fossem esvaziados?
Esse é o ponto principal a que chegamos depois desse longo percurso de Tese.
Percebemos, finalmente, que antes dos moradores dependerem de um local para viver, de
comida para sobreviver e de medicamentos para continuarem seus tratamentos, temos
instituições que precisam deles para continuarem existindo, temos pavilhões que dependem
de moradores para continuarem recebendo recursos, temos profissionais que dependem desses
espaços para continuarem com seus trabalhos e temos uma necessidade social de manter um
local para enviar aqueles casos clínicos que fracassaram. Para onde iria tudo, caso os
moradores voltassem a viver de forma livre, em Residenciais Terapêuticos, e não nos
hospitais? Será que as internações dos pacientes agudos seriam suficientes para manter uma
instituição psiquiátrica funcionando ou eles poderiam ser tratados em hospitais gerais, em
leitos destinados a esta demanda, o que provocaria a interrupção das atividades daquele
espaço?
Em resumo, a própria instituição psiquiátrica e manicomial parece precisar manter
pessoas vivendo em suas alas para que continue funcionando e ela nos faz crer que somos
nós, sujeitos sociais, juntamente com os moradores, que precisamos dela. Observem como,
depois dos movimentos de Reformas, aqueles hospitais que deixaram de ter moradores
acabaram também fechando suas portas. Não precisamos ir longe, no próprio Estado, temos
exemplo disso, o Hospital do Rio Maina que, inclusive, enviou os últimos dois moradores

205
para um dos hospitais que fiz essa última pesquisa. Quando os residentes saíram do hospital,
esse acabou por ter suas atividades encerradas e suas alas foram ocupadas por um espaço de
tratamento para as vítimas de Covid-19, na época anterior às vacinas da pandemia.
Sem os moradores, aquela estrutura de violência e aniquilamento não se sustenta. Essa
ideia de necessidade do espaço hospitalar e asilar tomou conta do imaginário social brasileiro
referente à loucura e reforçou, de modo generalizado, a ideia da necessidade da prisão
perpétua à moda brasileira, impossibilitando, de diferentes formas, a execução de uma efetiva
desinstitucionalização. Entretanto, por outro lado, a própria instituição não poderia se manter,
se não tivesse vivendo em suas alas moradores permanentes. Além do mais, os tratamentos,
tão ultrapassados e violentos, não poderiam existir em espaços que garantem os direitos
humanos dos internados, nem seriam reproduzidos em outros sujeitos que pudessem
reivindicar os seus direitos.

5.5) O documento de desinstitucionalização (penal) de Santa Catarina (2023)

No último mês de escrita desta Tese, quando já havia enviado a primeira versão para
minha orientadora, consegui agendar uma última entrevista que foi também muito decisiva.
Depois daquela conversa, mais uma vez, precisei realinhar expectativas, pois descobri que, no
Estado de Santa Catarina, um pequeno grupo de trabalho formado por pessoas da Secretaria
do Estado estavam iniciando movimentações para possibilitar a desinstitucionalização de
indivíduos internados em situação de longa permanência. Quando soube, imaginei que seriam
os moradores, agentes desta Tese, que vivem no interior de hospitais psiquiátricos em
condições complexas e precárias. Entretanto, na conversa do que chamei de “Outro último dia
em campo”, descobri que não, pois por algum motivo decidiram iniciar esse movimento com
outros sujeitos, pois estão investigando a possibilidade de desinstitucionalizar os indivíduos
que estão internados e apreendidos em um hospital de custódia, instituição localizada na
capital do Estado, em Florianópolis-SC.
No começo da pesquisa, ainda em 2020, tentei contato com aquela instituição, mas
nunca obtive um retorno. Tinha, naquele momento, interesse em também documentar aquela
população e fazer uma parte do trabalho de campo na instituição, entretanto, não foi possível.
As tentativas de conversar sobre a pesquisa e as possibilidades de trabalho naquele espaço
não obtiveram retorno até os dias atuais. Foi quando decidi focar em moradores de hospitais
especificamente, e não em instituições de custódia.

206
Na conversa que tive, o que mais me chamou atenção foi uma questão que ainda me
persegue, dias antes de enviar este texto para a banca: Por que não começaram pelos
moradores? Pelos indivíduos que vivem nos hospitais psiquiátricos? Pelos seres que vivem
nos leitos de saúde mental de forma permanente? Fico me perguntando como essa decisão foi
tomada, obviamente que a desinstitucionalização tem urgência em todos os espaços,
entretanto, uma desinstitucionalização em um hospital de custódia parece ser ainda mais
complexa e, nesta escolha, os moradores foram, mais uma vez, preteridos e invisibilizados.
Eles estão vivendo a poucos quilômetros dali, mas, mais uma vez, não foram a prioridade.
A entrevistada me contou que os moradores “não são uma questão” para os órgãos
reguladores e suas internações “não são vistas como um problema”, uma vez que a condição
que vivem ainda é desconhecida. Ela e outras pessoas me contaram que não é fácil conseguir
entrar nesses hospitais, que diversas equipes tentaram mas não conseguiram autorização e,
antes de continuar nesse tema, preciso abrir um parênteses para reforçar o quanto a
Antropologia é uma saída fundamental para viabilizar a desinstitucionalização desses sujeitos
(MALUF, 2020; MALUF, ANDRADE, 2017; entre outros). Sem minha formação na área e
sem a possibilidade de adentrar a um campo tão fechado e complexo advinda principalmente
do método etnográfico, essa pesquisa jamais teria sido possível.
Entrevistas e rápidas visitas jamais teriam adentrado aos espaços que adentrei, o olhar
lento, o pesquisar com calma, o ir e vir diariamente, o ouvir, a alteridade, o respeito e o
movimento de um ser curioso, ou uma antropóloga, foram fundamentais para que as portas
do hospital se abrissem. Foi a repetição, o voltar ao campo, de forma cotidiana, que revelou
as linhas do que aqui transcrevi. Stoller (1989, p. 6) escreveu sobre a importância de estudos
de “longo prazo” por esses nos confrontarem com erros interpretativos de visitas anteriores,
uma vez que, segundo o autor, leva-se tempo, não importando a perspicácia do observador,
para desenvolver uma compreensão profunda dos outros (DEL SARTO, 2020).
Nesse sentido, as experiências aqui abordadas foram vividas por uma antropóloga que
parecia pisar em ovos e tentava se manter firme em uma caminhada que exigia leveza, para
adentrar o universo dos moradores sem representar mais uma força coercitiva, e firmeza para
ocupar um espaço que exigia atenção e cuidado. Aqui vale retomar uma diferença pontual
entre as duas instituições em que fiz campo, que são estruturalmente destoantes. No hospital
mais fechado, o ambiente era inegavelmente mais violento e no hospital mais aberto, embora
mais humanizado e com mais espaço para a liberdade, a violência também circulava, mas de
outras formas, mais subentendida, mais nas entrelinhas, como na impossibilidade de acesso
ao próprio dinheiro, na falta de liberdade para sair do hospital e na punição dos desejos que

207
fugiam da rotina, por exemplo. De certa forma, o campo no hospital mais aberto foi muito
mais tranquilo, o medo não me percorreu em nenhum momento e a construção de um espaço
de pesquisa amoroso foi viabilizada de forma rápida.
Ainda não tinha falado sobre isso, sobre a construção de um campo amoroso no
interior de hospitais psiquiátricos, mas não consigo agora, olhando para a trajetória que tenho
percorrido, pensar em outra possibilidade de definição. Construímos juntos essa metodologia,
eu e os moradores com quem tenho convivido, desde que iniciei as pesquisas no mundo da
etnografia de hospital, ainda na graduação, no Estado de São Paulo. O campo amoroso não
pode ser pensado de forma romantizada, como algo que só flui para o lado da felicidade ou
até mesmo da facilidade, ele, na verdade, exige uma empatia e um deslocar de perspectiva
para a compreensão de um espaço que cria recorrentemente a possibilidade da violência, do
medo e do terror. No campo amoroso, ao mesmo tempo em que o pesquisador sabe que
precisa continuar a pesquisa, ele também faz temer a possibilidade de chegada em um espaço
que também aniquila ações. Desenvolver um espaço assim, num ambiente de violência,
parece ser uma romantização sem tamanho, mas essa pesquisa foi construída desse modo,
através de um olhar atento aos moradores que eram os sujeitos principais desta pesquisa, eles
me guiaram no hospital e as questões que aqui levantei foram também levantadas por eles,
principalmente no hospital mais aberto, onde tínhamos mais espaço para fazer subsistir
espaços de fala e manutenção de desejos, mesmo que somente no âmbito do contar,
principalmente quando pensamos nos sonhos.
Voltando para o - outro - último dia em campo, esse tópico só foi possível por
estarmos inseridos em uma pesquisa em movimento, e, nesse caso, o movimento foi
fundamental, pois ele mostrou que a zona de conforto está, uma vez mais, sendo combatida. É
como se o redemoinho manicomial estivesse, por hora, adormecido, e, mais uma vez,
ganhamos a possibilidade de mudar a realidade manicomial que vivemos. O que apresento
agora, depois desse encontro, é um “diagnóstico” que foi feito, dessa vez por uma Equipe do
Estado. Valioso em suas contribuições, infelizmente ainda não abarcou os dois hospitais nos
quais fiz pesquisa de campo, uma vez que, como já disse anteriormente, o hospital mais
aberto não é reconhecido como um hospital psiquiátrico, embora tenha vários pavilhões com
leitos somente de saúde mental que são moradias permanentes de sujeitos, e o segundo
hospital, embora seja psiquiátrico, não é uma instituição de custódia. A equipe optou por
fazer um “Plano de ação de estratégia para redirecionamento dos modelos de atenção à pessoa
com transtorno mental em conflito com a lei”, ou seja, os indivíduos que têm vivido longas
internações no interior de hospitais de custódia.

208
O documento foi transcrito a partir da Resolução nº 487, de 15 de fevereiro de 2023
que visa, em termos gerais, a desinstitucionalização de pessoas internadas em situação de
conflito com a lei. A questão dos moradores não é citada em nenhuma parte da nova
resolução e também não aparece no Plano de Ação do Estado, o que reforça, mais uma vez, o
que tenho trabalhado nesta Tese, sobre a questão da invizibilização dessa população de
residentes de hospitais psiquiátricos, que ainda não têm para si uma resolução para promover
suas desinstitucionalização. O desconhecimento desse espaço é inegável e esta Tese será,
talvez, um dos primeiros trabalhos que revela essa condição atual no país. Nas linhas dos
documentos, a institucionalização psiquiátrica permanente em hospitais parece ser um tema
superado, resolvido depois da promulgação da Lei de Saúde Mental (2001), e o que vemos
neste trabalho é algo muito diferente disto.
Como já pincelei anteriormente, após essas novas informações, tive finalmente a
resposta à minha pergunta do por que terem iniciado pelo hospital de custódia e não pelos
hospitais psiquiátricos, pois a condição dos moradores não é sequer conhecida, ainda não
tinha sido documentada (agora está sendo através destas linhas) e a realidade na qual vivem é
totalmente invisibilizada. Tive certeza dessa constatação quando li a Resolução assinada pela
Ministra Rosa Weber e publicada pelo Conselho Nacional de Justiça. Naquele documento, a
desinstitucionalização penal é priorizada e vista como um grande avanço para as políticas
antimanicomiais, entretanto, a questão dos hospitais que viraram residência permanece
inalterada e oculta.
Já no início, são apresentadas algumas considerações advindas da Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 2016, que merecem um destaque na nossa discussão: “[...] reafirma as
obrigações dos Estados Membros em promover e proteger todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais e garantir que políticas e serviços relacionados à saúde mental
cumpram as normas internacionais de direitos humanos.” (p. 2); Aparece também o Relatório
do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas de 2017, que recomenda
a qualificação dos serviços de saúde mental, com o intuito de “[...] acabar com a prática do
tratamento involuntário e da institucionalização” com o objetivo de promover a “[...] criação
de um ambiente político e legal que assegure a garantia dos direitos humanos das pessoas
com deficiências psicossociais” (idem); E ainda, considera a Resolução CNJ n. 113/2010 e a
Recomendação CNJ n. 35/2011, que têm como objetivo “[...] adequar a atuação da justiça
penal aos dispositivos da Lei nº 10.216/2001, privilegiando-se a manutenção da pessoa em
sofrimento mental em meio aberto e o diálogo permanente com a rede de atenção
psicossocial”.

209
No Art. 1º, o objetivo do documento é redigido:

Instituir a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, por meio de


procedimentos para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou
qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam custodiadas, sejam
investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de
pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de
alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio
aberto, e conferir diretrizes para assegurar os direitos dessa população.

Partindo desses pressupostos, o Plano de Ação Catarinense foi escrito com intuito de
pensar na desinstitucionalização dos HCTPs (Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico), apresentando “[...] uma proposta de transição de modelo manicomial,
atualmente vigente, para o modelo antimanicomial proposto pelo Conselho Nacional de
Justiça.” (p. 1). Tem como fim, criar estratégias para redirecionar o modelo de atenção às
pessoas com transtornos mentais em conflito com a Lei e, para tanto, a equipe tem feito um
levantamento da atual situação do Estado, documentando os desafios enfrentados pela Rede
de Atenção à Saúde (RAS) e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). O primeiro ponto
desse levantamento nos mostrou, como dito anteriormente, a invisibilidade da questão dos
moradores e, partindo para a segunda questão, podemos apreender da nova documentação
uma valiosa atualização sobre o cuidado da saúde mental catarinense.
O documento aponta que como a RAPS é operacionalizada por um sistema de
pactuação tripartite (instâncias do Governo Federal, os Estados e Municípios), os gestores
municipais

[...] não têm a obrigatoriedade de instalar estes serviços, uma vez que são
instituídos por adesão, somado à condição de “gestão plena”, onde a
organização do sistema municipal de saúde, incluindo a dos prestadores de
serviços vinculados ao SUS, tem o município como comando único
(BRASIL, 2003).

Isto provoca a necessidade de diálogo entre as três instâncias para a tomada de


decisões e também para a fundação de novos espaços para a acolhida dos indivíduos
desinstitucionalizados.
No Estado, que tem 295 municípios, há atualmente 110 Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) e apenas 4 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), no plano,
constatam que temos um óbvio déficit desses serviços:
Diante deste cenário, constata-se ainda um déficit de serviços residenciais
terapêuticos (Residencial de Acolhimento Permanente), para dar suporte às
pessoas sem vínculo familiar/social com histórico de sofrimento psíquico e
sucessivas internações ao longo da vida, e, Unidades Acolhimento

210
(Residencial de Acolhimento Transitório) para suporte aos usuários com
necessidades relacionadas ao uso abusivo de substâncias psicoativas.

Já sobre os leitos de saúde mental, temos três divisões. Primeiro, temos 852 leitos
psiquiátricos em hospitais especializados de código 47 no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES). Esses, estão contratualizados pela Política Hospitalar
Catarinense (PHC) e são pagos através de Autorização de Internação Hospitalar (AIH):

Para a composição dos leitos de saúde mental as unidades hospitalares


classificadas na Política Hospitalar Catarinense poderão ter até o número
máximo de 30 (trinta) leitos de Saúde Mental, desde que não seja a maioria
do total de leitos gerais, devendo estar adequados à legislação vigente na
área. São exigências para o hospital receber incentivo para leitos de Saúde
Mental na Política Hospitalar Catarinense, ter médico clínico 24 (vinte e
quatro) horas e trabalhar com plano terapêutico singular.

O valor desses leitos variam, inclusive entre os indivíduos que compuseram o campo
desta pesquisa. No primeiro hospital, que era mais aberto, o valor é de R$1.078,00 e no
segundo hospital, mais fechado, o valor é de R$1.227,00 para a ala de moradores. As outras
alas podem receber parcelas diferentes, a depender do contrato em que estão inseridas.
Depois, temos no Estado os Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral, codificados pelo
número 87 no CNES, sendo custeados pelo Ministério da Saúde, no valor de R$5.610,11 por
leito e incentivo de R$4.000 por leito em parcela única. Por fim, temos em Santa Catarina os
Leitos de Saúde Mental em Hospital contratualizados pela Política Hospitalar Catarinense
(PHC), neste modelo,

As unidades hospitalares recebem para atendimento de saúde mental um


recurso fixo mensal e um montante variável por leito/mês de acordo com o
número de leitos disponibilizados. As AIHs continuarão sendo processadas
para os atendimentos realizados nestes leitos. Os valores de incremento para
os leitos de saúde mental em 2021 serão mensalmente R$10.000,00 como
parcela fixa para o hospital que tem leitos de saúde mental implantados.
Soma-se a este incremento o valor de R$1.500,00 por leito de saúde mental
adulto e R$2.000,00 por leito de saúde mental pediátrico disponíveis para a
regulação estadual.

No total, a rede SUS estadual possui 987 leitos de saúde mental habilitados e, vale
pontuar, os residentes de um dos hospitais no qual esta pesquisa foi realizada não estão
contabilizados. Esses dados, embora extremamente importantes pelo que revelam sobre as
condições econômicas da manutenção das alas com leitos de saúde mental, bem como a
diferença entre os leitos de longa permanência e os leitos de rápida ou temporária internação,
nos reforçam ainda mais a ideia do retorno em massa ao manicômio. Primeiro, porque sendo

211
a condição desses espaços desconhecida, uma vez que é proibido entrar nas alas desses
hospitais públicos até mesmo no caso de visita a familiares, muitas pessoas acabam por
internar seus parentes acreditando serem esses espaços um lugar de cuidado e tratamento.

Ainda em campo, acompanhei o caso de uma mãe que levou sua filha para ser
internada no hospital mais fechado e foi me dito que ela só poderia ver a filha uma semana
depois da data da internação, pois poderia interferir no tratamento. Dentro do hospital, acabei
cruzando com a jovem, que também fazia doutorado e tinha a mesma idade que eu, 27 anos.
Quando ela me viu, me pediu, desesperadamente, para ajudá-la a sair daquele espaço. A
equipe logo interviu, levando-a para dentro da ala de pacientes agudos. Lembro de vê-la
extremamente medicalizada. O responsável veio conversar comigo dizendo que pelo fato de
ter falado comigo, ela agora corria perigo, pois eu “desestabilizei” o seu tratamento. Naquele
dia não me dei conta da violência que também passei, pois carreguei uma culpa de ter ouvido
uma pessoa que estava aflita e internada. O que afetaria sua situação, na imagem do
profissional, não era a condição caótica que ela estava vivendo naquela internação, mas o fato
dela ter encontrado alguém que poderia ouvi-la naquele ambiente aniquilador. Por sorte, sua
mãe acabou levando-a embora do hospital antes dos sete primeiros dias e ela não foi mais
internada.
Esse caso nos mostra o quanto o desconhecimento sobre esses espaços pode ser
perigoso, pois com os altos investimentos e incentivos para que hospitais tenham leitos de
saúde mental, passa ser interessante para as instituições manter novos internados em suas
alas, o que nos leva, uma vez mais, para a analogia machadiana de “O Alienista”, onde todos
acabam sendo internados. Em segundo lugar, emerge o problema da falta de fiscalização para
regular esses internamentos, uma vez que o acesso a essas alas é rotineiramente negado.
Sendo um espaço público em que indivíduos têm suas condições de sujeito negadas, não
deveria ser permitido a qualquer ser social uma visita àquele espaço? Se é um lugar de
cuidado e tratamento, porque precisa ser tão fechado? O isolamento é terapêutico? Por fim,
em terceiro lugar, está o problema da transparência, pois é um direito da população conhecer
os espaços públicos em que seus pares são internados.

Já sobre a lógica da inversão da necessidade, para finalizar este tópico, podemos notar
que ela ainda atua nesse aspecto. Como relatei anteriormente, há mais incentivo para hospitais
gerais ou para internações rotativas nos leitos de saúde mental, e o valor que os moradores
recebem é muito baixo se comparado às novas internações. Por outro lado, assim como foi me
dito, na última entrevista, a internação dessa população que vive há décadas institucionalizada

212
é também a mais barata se comparada com outros tratamentos oferecidos pelo SUS, pois os
medicamentos que recebem são praticamente os mesmos e não há custos significativos
advindos de outros procedimentos, como anestésicos, cirurgias, entre outros. O tratamento é
somente medicamentoso, não há uma rede plural de profissionais atuando naqueles espaços e
eles não têm nem mesmo seus próprios pertences, ou seja, ainda que seja pouca a verba que
os hospitais recebem, ainda assim, em volume, os moradores podem representar um lucro
para a instituição. Nesse movimento, a lógica da inversão ganha duas dimensões, a primeira
que omite a necessidade de manter os moradores para a manutenção da própria instituição e,
no segundo momento, a omissão da própria lucratividade desses espaços que carregam a
função de manter esses modelos degradantes ainda hoje abertos e em funcionamento no nosso
país.

213
Considerações Finais

Despedidas sempre doem, e estou aqui, mais uma vez, escrevendo sobre
elas. Me doeu fundo dessa vez. Vivi um campo limite, perigoso, estressante
e caótico. Tive vontade de desistir, me arrastava para os hospitais, com o
coração, literalmente, na mão. Persisti. Fui. Sem pensar. Mas fui. Continuei.
Mergulhei. Simplesmente me permiti viver. Pela primeira vez, não tive
estômago para escrever sobre todos os dias rigorosamente no diário de
campo. Sofri, chorei, me angustiei. Me senti perdida. Não vi saída. Senti,
senti muito, senti tanto, senti demais. Doeu. Muito. Ainda dói. Precisei parar
e respirar, para continuar. Os fins de semana foram vitais. Muito. O último
dia foi triste, a fase conturbada tinha se acalmado, as situações de violência
tinham amenizado, parecia que tudo era calmo… Sorri, abracei e agradeci.
Agradeci por terem me recebido e acolhido. Por terem aberto as portas e
fazerem minha pesquisa possível. Olhei no olho, apertei mãos, dei abraços.
Agradeci muito, um por um, e me despedi […] Disse que estava grata por ter
aprendido tanto, por terem me recebido com tanto carinho. S. [moradora] me
perguntou quem ficaria no meu lugar agora, G. [moradora] disse: “Gostei
tanto de ti... não vai voltar mais?”, N. [moradora] olhou nos meus olhos e
começou a chorar alto, muito alto, gritou: “Eu não queria que fosse embora...
eu gostei tanto de ti... eu falo tanto... falo mais que a boca... mas você me
escuta... com quem vou conversar agora?” […] Choramos juntas. Sr. J.
[morador] cravou seu olhar em mim. Que tristeza. Agradeci ele e ele me
agradeceu de volta... “A vida é bela, Sabrina. A vida é bela!”, os olhos
encheram de água, “Não chora, Sr. J.…”, “Eu tô chorando, só chorando,
Sabrina, gostei de ti, gostei de ti.”, “Isso é carinho, Sr. J., é saudade
adiantada.”, “É saudade, é saudade, Sabrina”. Sai pela porta sem forças,
vendo o olharzinho de Sr. J. pelo vão da porta de madeira, um olhar que
ainda olha pra fora... Que dor… (Diário de Campo, 9 de maio de 2022).

Escrevi a passagem acima em um dia em que as emoções se misturavam à tecitura de


uma pesquisa que teve, como instrumento de trabalho principal, o próprio corpo da
pesquisadora que a percorreu. Essa ideia, do corpo como instrumento em campo, aparecia
muito nas discussões com a professora Sônia Maluf, que compôs a banca de defesa e
qualificação desta Tese. Por este motivo, vale destacar que esta pesquisa foi construída a
partir de relações muito profundas, horizontais e sinceras, além de um respeito e admiração
notáveis. Essa passagem do diário foi escrita no último dia que fui ao segundo hospital,
aquele que era “mais fechado”, no dia em que estava finalizando meu trabalho de campo. Li
outro dia, que pessoas são como música, elas só existem se alguém as escuta e, naquele dia, o
ato de escutar se revelou como uma das principais tarefas que realizei ao longo destas
investigações. Foi escutando os sons e ruídos do ambiente asilar, e também dos moradores e
dos profissionais (de dentro e de fora da instituição) e trocando experiências diárias, em uma
etnografia de hospital que me fazia registrar cada detalhe em um diário de campo, que pude
finalmente chegar em algumas constatações.

214
Uma pesquisa construída a partir de relações e de uma observação interativa
negociada (WIND, 2008) é, ao meu ver, a única maneira que possibilita uma aproximação da
vida institucional em hospitais psiquiátricos. Foi somente indo diariamente naquele local e
passando muitas horas com os residentes, que pude ver as portas do campo se abrindo para
mim. O momento de escrever no diário, reunindo as experiências que tive com as anotações
que fazia era, praticamente, ritualístico, era naquela oportunidade que eu podia aprofundar
nas experiências que estava vivendo e tentar organizar tudo aquilo que experimentava e
sentia. Por isso meus escritos se misturavam e, além de descrições densas, também escrevia
sobre o que sentia e experimentava.
Naquele ambiente institucional, não bastaria entrar nos hospitais e simplesmente fazer
algumas entrevistas, pois eu precisava que os moradores escolhessem compartilhar suas
vivências comigo, em uma temporalidade que pertencia àquele ambiente e era, para uma vida
agitada, algo lento e demorado. Por isso escrevi que sentia estar pisando em ovos, porque vivi
um campo delicado e potente ao mesmo tempo e convivi com pessoas que careciam muito,
mas também doavam na mesma frequência. Isso era muito complexo, pois muitos daqueles
sujeitos têm passado anos sem poder compartilhar o que vivem ou o que sentem. Parecia uma
enfatização do que Walter Benjamin (2012, [1985]) constatou muitos anos atrás, quando
escreveu sobre as vias de extinção da comunidade dos ouvintes e, dentro de um hospital
psiquiátrico, aquilo se potencializava.
Aos poucos, os moradores abriram as portas do mundo institucional para mim e foi,
convivendo com eles, na rotina cotidiana, que pude escapar das ciladas da lógica
manicomial, que têm reificado verdades na nossa sociedade. Eles me mostraram, nas
entrelinhas de nossa convivência, que o modelo institucional que ainda mantemos no país é
insustentável, além de revelarem os perigos da escassez de recursos e de políticas que
fomentem a desinstitucionalização no país, principalmente, para nós que vivemos em uma
sociedade adoecida que carece de cuidados nessa esfera. Além do mais, foram eles que
mostraram, a partir do cotidiano institucional e de suas experiências singulares, como o
mundo hospitalar asilar é habitado atualmente no Brasil, situação essa desconhecida por
grande parte da população.
Nenhuma justificativa de falta de alternativa, baixos investimentos e desconhecimento
público daquela condição pode ser suficiente para conformar um impulso de mudança
daquele espaço e, em certa medida, de transformação e criação de novos serviços. Muitas
vidas já foram dilaceradas por essas instituições no nosso país, já fomos comparados a
campos de concentração nazista e, ainda em 2024, data em que finalizo a escrita desta Tese,

215
mantemos pessoas vivendo de forma precária em instituições psiquiátricas públicas. Nós,
enquanto seres sociais, temos também uma parcela de responsabilidade, assim como as
políticas, os governantes e a própria movimentação econômica neoliberal que tanto
alimentamos.
Chamo atenção para a necessidade de urgência, uma vez que podemos vislumbrar,
num futuro próximo, não o fim da institucionalização, mas um retorno em massa para os
manicômios no país, tal como no conto machadiano, num movimento da vida imitando a
literatura, quando todos os indivíduos passam a ser potenciais pacientes para ser internados
nessas instituições. As contas não fecham, temos altos índices de pessoas medicadas, os
maiores níveis de diagnósticos psiquiátricos da história nacional, população em situação de
rua crescendo, assim como a pobreza, a fome e o adoecimento. Além do mais, o próprio
sofrimento psíquico tem atingido todas as camadas sociais de um modo avassalador. Nesse
movimento, antes de ações para desestruturar esses espaços que já provaram ser insuficientes,
alas psiquiátricas públicas são inauguradas e reformadas e os movimentos para a
desinstitucionalização dos moradores continuam inexistentes, ao menos no Estado de Santa
Catarina.
Além desse histórico, o Brasil tem passado por um momento que afeta todas as
conquistas das reformas que vivemos no campo da psiquiatria. Através da ideia de uma
suposta lei de contrarreforma psiquiátrica, profissionais buscam direcionar esforços para
promover o retorno ao modelo manicomial centralizado na hospitalização e medicalização
dos pacientes, alimentando uma política de mercado utilitarista. Encontramos, uma vez mais
nessa nova tendência, mecanismos de desestruturação da própria Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), além do aumento no valor da diária de internação para alimentar a
lógica mercantilista da loucura, a não regulamentação do fechamento de leitos com a
desinstitucionalização, o enfraquecimento dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais com a
exigência de taxa de ocupação de 80% para mantê-los, o retorno de unidades ambulatoriais
especializadas, o enfraquecimento das equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF), Equipe de Saúde da Família (ESF) e o CAPS; entre outros (CRUZ, GONÇALVES,
DELGADO, 2020).
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2022, divulgou uma revisão
mundial sobre saúde mental e alertou para os riscos sociais dessas movimentações. No
documento, os agravos psicossociais aparecem como uma interação entre os sofrimentos
psíquicos de longa duração com as barreiras sociais, o estigma, a discriminação e a exclusão,
que impedem a participação plena e eficaz do sujeito na sociedade e no seu próprio

216
tratamento, e, mesmo tendo literatura suficiente que comprove que as opiniões subjetivas dos
pacientes sobre o tratamento que recebem influenciam no resultado da hospitalização
(TAMBURINI et al., 2003; SHAW, BAKER, 2004), ainda assim vemos essa questão ser
estruturalmente negligenciada, uma vez que os residentes catarinenses vivem em condição de
desigualdade com seus pares. Esses direitos, que deveriam ser garantidos, são:

Direito a: vida; reconhecimento igual perante a lei (capacidade jurídica);


acesso à justiça; liberdade e segurança da pessoa; ausência de exploração,
violência e abuso; viver de forma independente e ser incluído no
comunidade; habitação e reabilitação; saúde, educação, trabalho e emprego;
padrão de vida e social adequados proteção; e participação na vida política e
pública. (OMS, 2022).

Entretanto, pudemos observar, a partir dos fluxos desta Tese, que os indivíduos
internados como moradores permanentes não têm usufruído de forma total e igualitária desses
direitos pré-estabelecidos que deveriam ser assegurados. Caminhando em direção às
constatações da pesquisa, ressalto que antes de apresentar respostas, o que mais emergiu
foram situações de incompreensão. As pretensões de escrita sobre aqueles cenários, bem
como os impulsos para realizar uma pesquisa científica naqueles ambientes, de dois hospitais
psiquiátricos que mantêm moradores permanentes em suas alas ainda hoje, me fez percorrer
longos caminhos e seguir fluxos que, em muitos casos, até me distanciavam dos lugares que
almejei inicialmente chegar, ou das respostas que buscava no início das investigações.
Começar as páginas em branco, de cada um dos capítulos, foi um desafio amargo que me
misturou com aquilo que eu estava escrevendo. Digo isso porque, como citei anteriormente,
em momento algum pretendi seguir nesses escritos uma neutralidade axiológica, entretanto,
busquei sempre ser fiel a aquilo que o campo me revelava.
Quando trazemos essa discussão da neutralidade, pode emergir, novamente, a questão
do posicionamento paciente-advocativo que, para muitos autores, deve ser evitada.
Entretanto, no caso da institucionalização permanente em hospitais psiquiátricos esta questão
é invertida, pois, através das cenas que apresentei, seria impossível ter outro posicionamento
depois daquelas experiências. Vale lembrar que ser vulnerável não é sinônimo de ser vítima
(DAS et. al, 2001) e que, talvez, reconhecer a vulnerabilidade também dos outros setores,
como por exemplo a sobrecarga e a desvalorização que os profissionais estavam expostos,
pode ser uma saída possível para não ter somente um posicionamento advocativo, mas vários,
uma vez que a lógica manicomial age nos diferentes atores que vivem naquele espaço, tal
como nos profissionais e familiares, expressando situações de violência em diferentes níveis e
modelos.

217
Foi por essas incompreensões que, nestes escritos, acabei por percorrer fluxos também
contraditórios, pois coloquei em questão muitas certezas que tinha, desconstruí afirmações e,
no mesmo movimento, destruí muitas delas. Não é novidade que, quando se trata do tema da
loucura e da institucionalização psiquiátrica, não conseguimos construir conhecimentos sobre
sólidas bases, é um campo que está há séculos em construção, entretanto, podemos dele
extrair também algumas certezas inquestionáveis.
Iniciando pelas contradições, elenquei a seguir três delas, que foram, de certa forma,
pontos-chave da Tese. A primeira contradição que enfrentei foi percebida quando descobri, já
em campo, que perseguir os movimentos micropolíticos dos moradores não seria assim uma
tarefa tão possível quanto foi nas pesquisas que realizei em outro hospital psiquiátrico,
anteriormente, no Estado de São Paulo, na graduação e no mestrado. Me deparei com um
campo, agora no doutorado, muito mais fechado, limitante e aniquilador. Embora eu tenha
encontrado algumas formas de subsistência de particularidades dos moradores, precisei
realinhar minhas próprias expectativas, pois esperava vivenciar um espaço que possibilitasse
uma frequência muito maior delas e esta não foi a realidade que encontrei em Santa Catarina.
A segunda contradição ocorreu quando fui capturada pela lógica manicomial, durante
a escrita da pesquisa. Explico melhor, acabei por entrar naquela cilada que faz crer ser a
institucionalização a única alternativa para o caso específico dos moradores. Cheguei a
colocar em questão o que seria pior, estar trancado em uma instituição ou ser livre, mas não
ter assistência e viver em situação de rua. Naquele momento, percebi que estava sendo
consumida pela própria lógica manicomial, que cria em nós mecanismos que nos
impossibilitam de ver alternativas outras, tornando a sua própria existência algo necessário,
natural e, em certa medida, até ontológico. Repeti, no momento da pesquisa, o mesmo
movimento dos moradores e dos profissionais, pois todos nós, em certa medida, entramos
juntos na lógica da necessidade asilar da instituição para colocar entre parênteses a condição
precária de vivência dos moradores.
Na terceira contradição, escrevi, no início da Tese, que os hospitais não podiam ser
pensados como ilhas isoladas, visto que reproduziam os padrões culturais da sociedade em
que estavam inseridos. Entretanto, no último Capítulo, relendo o material etnográfico, percebi
também que, de certa forma, os espaços em que fiz pesquisa de campo pareciam sim estarem
envoltos por barreiras que os colocavam em espécies de ilhas, isoladas da comunidade que
estavam inseridos.
Notei isso, principalmente, depois de participar das Conferências de Saúde Mental de
Santa Catarina e de alguns eventos especificamente sobre saúde mental. Me alarmou

218
descobrir que a condição dos moradores não era conhecida nesses espaços, muitos
profissionais não tinham consciência da permanência daquele formato de tratamento e
descobri que a invisibilização deles não estava resumida à ordem social, mas podia ser
encontrada também dentro dos próprios espaços de construção de reformas e lutas
direcionados à lógica antimanicomial. Nessa toada, a analogia da ilha hospitalar parecia sim
fazer sentido, pois, embora o hospital estivesse reproduzindo os padrões culturais do espaço
em que estava inserido, era também um lugar escamoteado, escondido, onde a sociedade,
como um todo, não conseguia entrar. A vivência daquelas pessoas, que experimentam uma
espécie de prisão perpétua à moda brasileira, ainda estava exposta aos tratamentos
retrógrados e ultrapassados e grande parte dos movimentos revolucionários não chegavam
para aqueles sujeitos.
Nesse sentido, o tema fundamental da pesquisa foi delineado através de investigações
sobre a institucionalização psiquiátrica pública e permanente, bem como as barreiras que
encontrei em campo e que impedem os processos de desinstitucionalização dos residentes.
Precisamente, investiguei, a partir das trajetórias de vida dos moradores, das teorias
acadêmicas sobre institucionalização psiquiátrica e dos documentos oficiais pertencentes aos
hospitais e às políticas de saúde, os mecanismos que contribuíram para reificar a
institucionalização psiquiátrica permanente, mesmo com processos de Reformas sempre em
movimento no país. Em segundo plano, guiava a pesquisa a necessidade de documentar a
existência daqueles sujeitos, além de expor, também, a condição que vivem.
O que vi nos dois hospitais nos quais fiz pesquisa de campo foi, de forma resumida,
uma reificação da lógica de desumanização típica do regime autoritário e neoliberal que
prevê, para os sofrimentos psíquicos, tratamentos fundamentados em um viés punitivista e
excludente. As repetidas denúncias em diferentes relatórios e a partir de profissionais que
buscavam reformas naqueles espaços não foram suficientes para provocar a mudança
esperada naquela condição.
A pesquisa revelou também que é possível e necessário refletir sobre a
institucionalização psiquiátrica permanente para além das formas repressivas e estruturantes
explícitas, trazendo à luz as trajetórias que percorrem esses espaços, ou seja, as experiências
daqueles residentes que vivem nessas alas. Essa contribuição auxilia na efetivação de novos
arranjos para a condição que vivem, uma vez que as intimidades institucionais são muito
pouco reveladas na nossa sociedade e os pacientes são apresentados, em muitos casos, apenas
através de números.

219
Por esse motivo é que busquei documentar aquela população de moradores que vivem
atualmente nas instituições e, em seguida, optei por investigar, a partir da etnografia de
hospital, a condição manicomial que esses sujeitos estavam experimentando ao longo de suas
vivências. Ao contrário das memórias trabalhadas por Veena Das (2020), sobre a Partição na
Índia, essa realidade precisou ser escavada e colocada à luz, principalmente neste momento
em que o país tem enfrentado consecutivos retrocessos no campo da saúde mental.
Constatei, de diferentes formas, mas em todos os capítulos da Tese que, a partir de
recorrentes formas de silenciamentos, despersonificações e falsos ideais de proteção e
segurança, a necessidade da instituição naquele modelo insustentável é reificada na nossa
sociedade. Em outras palavras, sabemos que no ambiente institucional psiquiátrico, os
moradores vivem em um campo de desconsiderações e a institucionalização, embora
justificada em termos de proteção, longe de assegurar direitos civis, cria uma noção de
dependência, num movimento que escamoteia, de diferentes formas, o outro lado do espelho.
É por esse motivo que reitero a necessidade dos estudos antropológicos no interior desses
espaços hospitalares e asilares, pois, apenas a partir das particularidades da etnografia de
hospital, é que conseguimos chegar nesses lugares íntimos das instituições e a partir dela
entramos em espaços que são, por séculos, negligenciados e escondidos.
Os próprios motivos para a internação dos moradores, nas diferentes épocas, nunca
estiveram resumidos à esfera terapêutica, e muitos indivíduos foram internados a partir de
justificativas morais e sociais. Naqueles espaços, coabita ainda uma regulação biomédica dos
corpos que reforçam argumentos neuroquímicos que afetam a consciência social sobre as
expressões de mal estar psíquico (MARTINEZ, 2023). Além do mais, esses discursos têm
fomentado um posicionamento dominante sobre as diferentes instâncias da vida
(FOUCAULT, 2010; CUNHA, 1986), invadindo, com a lógica manicomial, múltiplos espaços
sociais. Nesse raciocínio, a institucionalização como moradia e tratamento não é reificada
pelo campo médico, mas sim pelo campo social e econômico e pela necessidade de moradia e
medicalização dos residentes. Nos próprios prontuários dos moradores, percebi uma ausência
significativa do dado “diagnóstico” (61,8%), além de encontrar um caso de uma moradora
que tem em seus documentos a seguinte frase: “Paciente não tem sintomas de psicose”,
entretanto, ela ainda vivia no hospital.
Nos primeiros capítulos da Tese, chamei esse ciclo institucional de redemoinho
manicomial, quando as situações de superlotação, escassez e recorrência de violências
acabam por fazer com que instituições psiquiátricas sejam reformadas, com novos modelos de
cuidado e tratamento, que acabarão por desembocar, no futuro, em novas situações

220
degradantes, sendo apenas uma questão de tempo entre uma denúncia, as reformas e o retorno
ao modelo denunciado.
A história brasileira referente à institucionalização psiquiátrica, traçada no primeiro
Capítulo, revelou essa circularidade recorrente, tanto dessas revoluções, quanto desses
retrocessos. As situações de precariedade, violência e alta taxa de internação também
apareceram em praticamente todo o histórico do país, além das denúncias de serem os locais
destinados à loucura degradantes. Obviamente que em alguns casos, graças à revolução
humanista de alguns profissionais, os espaços de internação da loucura tiveram alterações nas
formas de tratamento e passaram a respeitar os direitos dos internados, entretanto, ao menos
no Estado catarinense, a lógica manicomial persistiu e bastava a troca do quadro de
profissionais ou qualquer outro impedimento, para que essa situação voltasse ao espaço de
internamento, revelando a lógica do redemoinho, que sustenta uma permanência dessas
condições. Esse mesmo redemoinho expande a noção cíclica, combinando-a com as redes de
relações que são construídas nesses espaços, trazendo para a interpretação o movimento e a
possibilidade de construção e desmonte.
Até mesmo as instituições que foram fundadas justamente para combater a lógica
manicomial, com o passar dos anos, acabaram por repetir as situações de violência e
superlotação. Para a manutenção dessa condição, utilizam uma espécie de ideia de
instituição-necessária, criando imaginários que estigmatizam a loucura para comprovar a
necessidade da exclusão. Como vimos anteriormente, no ciclo da institucionalização, a ordem
dos fatores, dialeticamente, primeiro cria a necessidade social e ilusória da instituição, que
pode ser também pautada na ideia de “caridade”, para ajudar quem sofre daquele “mal”.
Depois do espaço para institucionalizar fundado e, a partir do momento que começa a atuar,
esse caminha em direção ao seu próprio esgotamento. O manicômio não parece sobreviver
sem essas características, pois são elas que o fundam, o sustentam e o fazem permanecer.
Em resumo, podemos então notar que muito do que era constatado anos atrás ainda
reverbera atualmente, de forma repetida e cíclica, a partir da função institucionalizante dos
hospitais psiquiátricos sobressaindo à função do cuidado, tendo os hospitais catarinenses a
característica principal da perpetuação da instituição manicomial. Ao reformarmos esses
hospitais, as expressões de violência que eles representam continuam a existir e proliferam,
dentro e fora dos muros. Elas reificam a lógica da necessidade do aprisionamento, reforçam o
imaginário social que exclui esses sujeitos e transformam, em última instância, pessoas vivas
em casos clínicos fracassados e irreversíveis.

221
Os próprios profissionais que trabalham nesse ambiente também estão tomados pela
mesma lógica e as sobrecargas nas condições de trabalho, a ausência de formação específica
para a saúde mental e a escassez de recursos para os tratamentos, fazem com que também
tenham em si expressada a violência da instituição. Além disso, a falta de fiscalização e de
transparência atuam de modo direto na maneira que os tratamentos são desempenhados e
escolhidos. Também me confidenciaram que, em ambos os hospitais, não há uma equipe
multiprofissional trabalhando com os moradores e todo o cuidado é feito apenas pela equipe
de enfermagem e os técnicos de enfermagem, o que causa, como podemos imaginar, uma
sobrecarga dos profissionais e uma expectativa de que atendam papéis que fogem de seu
campo de atuação.
No caso dos moradores, ao conviver com eles pude perceber que era muito raro que
suas queixas fossem vistas como denúncias ou atendidas como um pedido possível, na
maioria dos casos, suas condições de “indivíduo” eram negadas, uma vez que muitas falas
eram interpretadas no plano do “delírio”. Eles eram silenciados diariamente e, atrelado a isso,
estava o sentimento de dependência, criado também cotidianamente, que era usado para
fortalecer essa estrutura em um cenário que, antes de tudo, faz com que os pacientes
restrinjam sua própria agência.
Nessa lógica, a “obediência” ainda aparece como uma forma de proteção e, antes de
tudo, uma forma de evitar as punições, como a injeção ou a medicação “educativa”. A ideia
do “bom paciente”, que não questiona, não reclama e não é solicitante, esteve muito presente
nos hospitais e quando um morador fugia do comportamento esperado, como quando
questionava o porquê de uma nova medicação, ou se recusava a fazer determinada atividade,
eram prontamente silenciados. Obviamente que não poderia generalizar essas ocorrências e,
vale pontuar que encontrei alguns profissionais que tentavam escapar daquela lógica,
entretanto, na maioria dos casos essa situação acontecia de forma repetida. Como citei,
somente no Diário de Campo, a ocorrência de injeção como forma de punição apareceu em
22 situações e isso, talvez, impedia que os moradores desenvolvessem as micro dinâmicas das
experiências singulares que eu tanto procurava (PETITMENGIN et al., 2019).
O próprio ato de institucionalizar, em si, parece um ato de misturar, ele faz confundir
fronteiras e age misturando sujeitos e lugares em uma incansável busca por padronizações e
silenciamentos. Falar sobre as tendências da instituição não significa desconsiderar aquilo que
a ela escapa, porque, embora ela tenha tendências de uniformização de sujeitos e
comportamentos, ela é também o locus onde as tendências de extrapolá-la nascem. É,
portanto, inegável que os moradores e a instituição estejam amalgamados, construindo suas

222
histórias simultaneamente mas, ainda que de forma rara, os moradores encontram algumas
brechas para fazer subsistirem algumas de suas particularidades, como através do ato de
narrar seus sonhos, quando aparecia de forma repetida a imagem deles fora do Hospital.
Outra questão descoberta foi a frequência da “coleção de institucionalização”,
situação essa que provavelmente aumentou o distanciamento social dos pacientes e fortaleceu
as pretensões de abandono e internamento, revelando os fracassos do sistema institucional
como um todo. A maioria dos residentes foi internada pela primeira vez com idades próximas
aos 24 anos e todos eles tiveram a primeira internação de forma compulsória. Já a quantidade
máxima de internações chegou a 36, ou seja, um mesmo paciente foi internado 36 vezes antes
de se tornar um residente permanente daquela instituição, o que revela o revés clínico daquele
modelo de tratamento que foi destinado a eles.
Continuando no perfil dos moradores, em ambos os hospitais, pude constatar que são,
majoritariamente, homens (70,8%), idosos (60,6%), com uma média etária de 65 anos em
ambas as instituições. A maioria era composta por homens brancos (78,7%) e com
naturalidade no próprio Estado de Santa Catarina (82%). Sobre serem idosos, pude constatar
que as condições de envelhecimento deles, juntamente com as propostas das Reformas
Psiquiátricas, impulsionaram as mudanças físicas das instituições, entretanto, a manutenção
do espaço foi também uma força que, antes de trazer melhorias para os residentes, acabou por
reforçar a lógica da necessidade da institucionalização. Foi comum encontrar profissionais,
por exemplo, justificando o internamento naquele modelo dizendo que os moradores estavam
envelhecendo e precisavam de cuidados outros, não necessariamente pertencentes à esfera da
psiquiatria.
Sobre os processos de internamento, pude ver um disparo de internação no intervalo
entre as décadas de 1970 e 1980, quando 59 moradores tiveram sua primeira internação. Já
sobre a institucionalização permanente, ou a data da última internação - quando não mais
tiveram alta hospitalar - acabou por dar um salto na linha do tempo, pois pude notar que nas
décadas de 1980 e 1990 estão contidos os maiores números de internações permanentes,
contabilizando 22 moradores no período de 1980-1990 e 34 moradores entre 1990-2000.
Totaliza desses dados 56 internamentos que se transformaram em institucionalização, ou seja,
62,92% dos moradores atuais foram institucionalizados naquele período. Além do mais, a
média etária da institucionalização foi de 35 anos, ou seja, a maioria dos moradores foi
institucionalizada com idade próxima a esse parâmetro.
Referente às atividades laborativas anteriores à institucionalização, pude notar que a
maioria dos prontuários não contém essa informação (31,5%). Esse dado é sucedido por

223
aqueles que carregam no prontuário a informação “sem ocupação” (27%). Em seguida,
aparece a categoria “do lar” (15%), composta apenas por mulheres, depois lavrador (9%),
composta apenas por homens e, por fim, a categoria “servente” (5,6%), que também só conta
com homens. Notei ainda que 68,5% dos moradores não recebem visita e, entre os 32,6% que
recebem visitas, há casos de moradores que receberam apenas uma visita ao ano ou com
frequência ainda menor. Os documentos registram os moradores majoritariamente como
pessoas que não têm sua escolaridade documentada (43,8%), depois, com o ensino
fundamental encontrei 24,7% e não alfabetizados consta nos documentos de 16,9% dos
moradores.
Mesmo tendo um posicionamento crítico com os dados sobre os diagnósticos,
reconhecendo profundamente suas fragilidades, escolhi utilizá-los na pesquisa, pois sabia que
eles revelavam pontos importantes. Ao buscá-los nos documentos descobri que: 1) Os
diagnósticos foram estabelecidos, na maioria dos prontuários, já na primeira internação, em
rápidas triagens de um hospital superlotado; 2) Os prontuários não são atualizados há anos,
tornando os diagnósticos também possivelmente ultrapassados; 3) Muitos prontuários não
têm mais essa informação, que foi provavelmente perdida ao longo das décadas das
internações, o que não é suficiente para a desinstitucionalização dos moradores; 4) O fato de
um morador não mais ter diagnóstico psiquiátrico e/ou não receber mais medicamentos
psicotrópicos não é suficiente para desestruturar sua institucionalização psiquiátrica; 5)
Existem pacientes internados sem apresentar qualquer quadro de doença.
Também encontrei nos documentos uma dupla negligência, primeiramente a da falta
de informação (quando não consta nos registros) e depois da existência de dados não
confiáveis (quando não condizem com a realidade), tornando os dados dos papéis, em muitos
casos, frágeis e inconclusos. Por outro lado, mesmo com essas variações, é importante ver
como as instituições têm desenhado seus moradores, não tão somente no cotidiano, mas
também nos documentos que registram seus históricos. Sobre a questão econômica dos
residentes, também encontrei poucos dados. Nos prontuários consta que 50,6% recebem um
salário mínimo (s/m), através, principalmente, do Benefício de Prestação Continuada
(BPC-LOAS), que está previsto na Constituição Federal e é direcionado para pessoas com
deficiência ou idosos acima de 65 anos. Entretanto, acredito que esse número seja maior, uma
vez que foi me dito nas entrevistas que para que um indivíduo viva no hospital, ele precisa
receber aposentadoria ou benefícios. Além dessa verba, os hospitais também recebem as
diárias para a manutenção de suas internações, uma vez que são instituições públicas.

224
A partir desses dados vemos o quanto os movimentos de desistorização atravessam
todos os moradores, assim como o ato de provocar uma irreversível perda de suas funções
sociais, e conhecer essas questões nos ajuda a aproximar das justificativas para a internação,
pois são elas que reforçam a permanência de pessoas que vivem institucionalizadas dentro
desses hospitais. Para sintetizar, além da perda de vínculos externos provocada pela
internação de longa permanência, a imprecisão das justificativas dos recorrentes
internamentos e a impossibilidade de vislumbre de alternativas outras para as vivências dos
moradores são outros exemplos de barreiras que impedem a desinstitucionalização. Além
disso, foram as relações entre os profissionais e os moradores e também as relações entre os
próprios moradores, reproduzindo as normatividades psiquiátricas no cotidiano asilar, que
alimentaram diariamente os muros da instituição, fazendo-os crer (moradores, profissionais e
familiares) que a única alternativa que tinham era aquela, ou seja, viver uma vida toda dentro
de uma ala psiquiátrica.
Para a manutenção da ordem, os interlocutores também recorriam, no cotidiano
institucional, às definições de loucura, para fortalecer a estrutura que tinham para pensar no
seu cuidado, não só para mantê-la, mas também para criar e fortalecer a realidade que
estavam inseridos. Esse movimento parece ser reproduzido a partir daquele direcionamento
criado pela lógica manicomial, que usa a ideia da loucura para justificar, por exemplo, o
tratamento que disponibilizam aos pacientes. É esse mesmo raciocínio que alimenta a
impossibilidade da desinstitucionalização dos moradores, construindo outra barreira explícita
que desfaz qualquer tentativa de desmanicomialização.
Outro ponto que alimenta a impossibilidade de desinstitucionalização são as narrativas
sobre a periculosidade dos internados, passadas de profissional a profissional e também entre
os próprios moradores. De certa forma, a partir dessas narrativas, era afirmada a ideia de
“perigo” dos residentes e também justificada a condição de vivência a que eles estavam
expostos. Em outras palavras, a ideia de que os residentes representavam um “perigo” para a
sociedade justificava, naqueles ambientes, não tão somente o internamento, mas também a
continuação da condição precária que eles viviam.
Seguindo esses exemplos, podemos constatar que o desenho da periculosidade está
intimamente ligado à institucionalização permanente e ambos (o estigma da periculosidade e
o ato de institucionalizar) são mutuamente fortalecidos a partir de suas forças singulares. Esse
imaginário que construiu a ideia dos indivíduos loucos-nocivos foi perdurando ao longo de
todos os anos que decorreram e a cena que institucionaliza a loucura se consolidou também a
partir desta lógica. Existe, então, uma dupla ideia de “proteção”, primeiro da sociedade -

225
alimentada pela periculosidade do louco, e depois do doente - pautada pela ideia da
necessidade de assistência (PITTA, 1996).
Isso compõe com o que foi constatado anteriormente, porque entre os discursos que
retificam a institucionalização, está a impossibilidade de saída, a falta de alternativas, o
fortalecimento das características de periculosidade dos moradores e a ideia da necessidade
de proteção da sociedade e dos pacientes. Entretanto, nas entrelinhas da institucionalização,
os moradores encontraram caminhos para compor com aquelas situações que favoreciam seu
internamento, percorrendo as possibilidades ou o próprio desejo de sair a partir de outros
meios.
Na primeira instituição, percebi que seguir os fluxos criados pelo desejo, dentro do
cotidiano hospitalar asilar, revelava algumas micropolíticas presentes de forma implícita
nestes espaços limitantes e coercitivos. Como dito anteriormente, a partir do contar dos
sonhos, da verbalização do ato de desejar, o próprio desejo encontrava espaço para ser
revelado e cocriado, compondo a realidade hospitalar de maneiras outras e também sendo
constantemente recomposto por ela, até mesmo quando esse desejo não encontrava forma
para existir. Em outras palavras, no devir paciente são os atos de contar os sonhos sobre os
desejos que permitem subsistir as singularidades dos moradores. Nestes sonhos, o que mais
apareceu foram situações de saídas dos hospitais e reencontros com parentes, amigos ou
conhecidos.
Na outra instituição, mais fechada, na qual os moradores têm muito menos liberdade e
vivem em pavilhões comunitários, sem pertences próprios, o desejo e a possibilidade de sair
foram raros de serem encontrados e apareciam timidamente nas falas as justificativas próprias
do porquê estarem ainda institucionalizados, como a falta de familiares e a baixa condição
financeira. Esse fato me levou a pensar no quanto uma internação mais livre e menos
coercitiva pode facilitar os processos de desinstitucionalização, uma vez que a partir dela os
moradores conseguiriam vislumbrar possibilidades outras e haveria espaços para fazer
subsistir suas singularidades. Já na internação totalmente fechada, o movimento de viver fora
de uma realidade tão regrada parece muito mais distante, o que fortalece, de forma eficiente, a
permanência dos moradores.
Coabitam também, naqueles espaços, diferentes pensamentos sobre os riscos; primeiro
de sair do hospital e depois de viver dentro dele, mas o curioso é que no cotidiano
institucional, os riscos possíveis de uma vida em liberdade são muito mais manuseados para
construir argumentos institucionalizantes do que os riscos de permanecerem ali. Aqui, além
dessa ideia de proteção, aparece também a questão dos moradores não terem pessoas de fora

226
da realidade hospitalar para reivindicarem seus direitos e para fiscalizar as formas de
tratamento e cuidado que recebem. Essa é uma questão muito perigosa, porque ela
acompanha os profissionais que trabalham com aqueles moradores cotidianamente, uma vez
que eles sabem que ninguém de fora irá intervir na maneira que eles lidarão com aquelas
pessoas, o que pode provocar e tem ocasionado a recorrência de negligências, abusos e falta
de transparência.
Constatei ainda nos prontuários e no trabalho etnográfico que indivíduos ainda hoje
continuam sendo institucionalizados, mesmo depois da promulgação da Lei de Saúde Mental
(2001), que previa o fim das internações psiquiátricas em condição asilar permanente. No
próprio ano da pesquisa de campo, presenciei um novo morador, que foi internado no hospital
psiquiátrico pela primeira vez em 2022. Ele foi institucionalizado e passou a viver como
morador permanente do hospital.
Já a característica residencial dos hospitais, de modo geral, continuam a se valer de
neuronarrativas (MARTINEZ, 2023), ou seja, de questões do discurso biomédico para
reafirmarem a necessidade da institucionalização. Como, atualmente, o único tratamento que
os moradores recebem é o medicamentoso, a manutenção das pílulas aparece como mais um
impedimento para a desinstitucionalização. O próprio ambiente hospitalar residencial reforça
essa percepção dos moradores sobre a vulnerabilidade e a dependência que estão expostos
(MULEMI, 2008) o que fortalece, uma vez mais, a lógica que os aprisiona.
Em uma sociedade que tende a gestionar os sofrimentos psíquicos a partir de drogas
psicofármacas e internações limitantes, é difícil superar as tendências medicamentosas na
construção de espaços para o cuidado e o tratamento. Quando conversei com um morador
sobre o motivo que o levou de volta para o hospital, depois de ter recebido alta hospitalar, ele
me contou sobre uma sequência de desafios socioeconômicos que precisou enfrentar por ter
vivido durante décadas dentro daquela instituição, além da dificuldade de lembrar as pílulas
exatas que deveria tomar ao longo dos dias que estava desinstitucionalizado.
Para tantas barreiras e questões problemáticas, temos igualmente saídas diversas.
Caminhamos então para uma questão inegável, sobre uma codependência existente entre a
manutenção da instituição, ou seja, a continuidade da sua existência, e a permanência dos
moradores naquelas alas que, de outro modo, teriam suas atividades interrompidas. Em outras
palavras, as instituições só sobrevivem se mantiverem pacientes e, nesse caso, manter
moradores é sinônimo de garantia para manter a própria instituição. Dito de outro modo, os
hospitais parecem valer de suas características asilares para justificarem a ideia de
permanência de suas atividades, mesmo quando vistas como ultrapassadas e degradantes.

227
Nesse movimento, a instituição precisa criar mecanismos para manter pessoas vivendo dentro
de suas estruturas, pois é essa a única forma de manter sua própria existência. É essa inversão
secular da lógica da dependência que mantém a instituição em pé, até os dias atuais, e é
exatamente este imaginário social que não deixa espaço para a criação de alternativas outras
para aquela condição.
A inversão da lógica da institucionalização, que faz crer que essa é a única saída para
a condição dos moradores é então a principal justificativa utilizada pelos defensores da
manutenção da manicomialidade brasileira, afinal, questionam: “Para onde eles iriam?”. Essa
ideia de necessidade do espaço tomou conta do imaginário social referente à loucura e
reforçou, de modo generalizado, a ideia da necessidade da prisão perpétua à moda brasileira,
impossibilitando, de diferentes formas, a execução efetiva da desinstitucionalização dos
residentes. Na Tese, a própria institucionalização aparece como uma doença comum entre os
moradores e os prontuários arquivados nos hospitais revelam, em última instância, o quanto
os quadros clínicos e as realidades socioeconômicas dos moradores se entrelaçaram no
perpetuar de suas condições.
Amarante (2014)29 traz uma contribuição interessante para a temática da manutenção,
ao dizer que a própria ideia de Reforma Psiquiátrica é limitada, porque seria mesmo
necessário uma reforma cultural para que pudéssemos superar o modelo que vivemos, pois,
segundo o autor, é culturalmente que as pessoas demandam o manicômio, a exclusão e a
limitação do outro. De acordo com este raciocínio, para que tenhamos uma mudança
significativa nessas condições, precisamos também de uma transformação da relação da
sociedade com a loucura.
Esse é mais um ponto interessante que também chegamos depois desse longo percurso
de Tese. Percebemos, finalmente, que antes dos moradores dependerem de um local para
viver, de comida para sobreviver e de medicamentos para continuarem seus tratamentos,
temos instituições que precisam deles para continuar existindo, temos pavilhões que
dependem de moradores para continuarem recebendo recursos, temos profissionais que
dependem desses espaços para continuar com seus trabalhos e temos uma necessidade social
de manter um local para enviar aqueles casos clínicos que fracassaram. Em resumo, as

29
Entrevista disponível em:
https://portal.fiocruz.br/noticia/amarante-e-cultura-que-faz-pessoas-demandarem-manicomio-exclusao
-limitacao#:~:text=reforma%20da%20cultura.-,%C3%89%20culturalmente%20que%20pessoas%20d
emandam%20manic%C3%B4mio%2C%20exclus%C3%A3o%2C%20limita%C3%A7%C3%A3o%2
0do%20outro,um%20processo%20longo%2C%20muito%20demorado.. Acesso em 17 de janeiro de
2024.

228
principais barreiras encontradas nesta longa pesquisa foram subdivididas, a seguir, em 10
tópicos. São eles: 1) os profissionais naturalizam os modelos de tratamento e cuidado que
seguem, o que pode fazer com que reproduzam situações de violência sem que percebam e
que os impossibilitam de ver saídas outras; 2) na maioria dos casos, apenas os profissionais
de enfermagem cuidam dos moradores e desempenham todas as atividades relacionadas a
eles, o que impede que os processos de ressocialização e desmedicalização progressiva sejam
efetivados nos processos de desinstitucionalização; 3) esses profissionais, por esse motivo,
estão também sobrecarregados, o que os impede de criar espaços humanizados dentro dessas
instituições, o que provoca a medicalização compulsiva e coercitiva; 4) não existe uma
exigência de formação em saúde mental para que possam trabalhar no hospital psiquiátrico, o
que faz com que os novos profissionais desconheçam questões macro e micropoliticas sobre a
saúde mental e apenas reproduzam o que os profissionais mais antigos passam para eles; 5) há
uma inquestionável desumanização dos pacientes, que acabam por viver em condições
precárias e recebem tratamentos coercitivos, tais como dieta compulsória (no caso de
moradores que a equipe decide que precisam emagrecer), cortes de cabelo obrigatórios,
impossibilidade de escolha das próprias roupas, infantilização, entre outros; 6) o
envelhecimento da população de moradores reifica a necessidade do hospital psiquiátrico,
mas se utilizando de discursos biomédicos de outras ordens, como da psiquiatria; 7) as
reformas físicas não garantem melhorias diretas para os moradores, mas possibilitam a
manutenção e a continuidade da instituição; 8) embora a Lei de Saúde Mental proíba, pessoas
continuam a ser institucionalizadas de forma permanente ainda na atualidade; 9) os
moradores têm fonte de renda própria, mas não conseguem acessar a aposentadoria ou o
benefício e precisam passar por um longo processo de aprovação quando desejam algo, o que
impede o desenvolvimento de sua autonomia e liberdade; 10) as subjetividades dos
moradores não são consideradas e eles não têm nenhuma possibilidade de negociar seus
tratamentos, nem alternativas para viver de formas singulares a vida institucional.
Para finalizar, o que nos move novamente, em massa, em direção ao manicômio é a
própria desconsideração da humanidade de pessoas que passam por situações de sofrimentos
psíquicos ou de vulnerabilidades sociais e, uma vez mais, é a própria ordem social que atua
reificando a estigmatização, construindo barreiras no acesso ao cuidado e ao tratamento, não
priorizando o desenvolvimento de programas de educação sobre saúde mental e distribuindo
serviços carentes e insuficientes para a população. Nesse sentido, antes de perguntar para
onde iriam os moradores, no caso da efetivação da desinstitucionalização, deveríamos
questionar: Por que ainda permanecem nesses locais?

229
Anexos

Quadro 1: Perfil Identificatório do Hospital 1


Perfil Identificatório - Hospital 1
Nascimento Idade (ano) Naturalidade Raça Gênero
(ano)
1970 52 São Francisco do Sul - SC Negro Masculino
1965 57 Alvorada - RS Pardo Masculino
1944 78 Guaporé - RS Branco Masculino
1949 73 Campo Erê - SC Pardo Masculino
1971 51 Passo Fundo - RS Branco Masculino
1954 68 Não consta Branco Masculino
1946 76 Palmitos - SC Branco Masculino
1939 83 Jacinto Machado - SC Branco Masculino
1972 50 Urubici - SC Negro Masculino
1934 88 Município Seara - SC Negro Masculino
1958 64 Campos Novos - SC Branco Masculino
1939 83 Palhoça - SC Branco Masculino
1970 52 MG Negro Masculino
1967 55 Camboriú - SC Branco Masculino
1953 69 Não consta Branco Masculino
1963 59 Criciúma - SC Branco Masculino
1963 59 Não consta Branco Masculino
1958 64 Não consta Branco Masculino
1968 54 Itajaí - SC Branco Masculino
1957 65 Governador Celso Ramos - Amarelo Masculino
SC
1946 76 Não consta Branco Masculino
1956 66 Não consta Branco Masculino
1935 87 Barra Velha - SC Branco Masculino
1955 67 São José - SC Branco Masculino

230
Quadro 2 - Perfil Identificatório do Hospital 2

Perfil Identificatório - Hospital 2


Nascimento Idade (ano) Naturalidade Raça Gênero
(ano)
1963 59 Florianópolis - SC Branco Masculino
1955 67 Lages - SC Branco Masculino
1954 68 Lages - SC Branco Masculino
1964 58 Florianópolis - SC Negro Masculino
1966 56 Biguaçu - SC Branco Masculino
1951 71 Palhoça - SC Branco Masculino
1949 73 Biguaçu - SC Branco Masculino
1964 58 São Francisco do Sul - SC Negro Masculino
1941 81 Tubarão - SC Branco Masculino
1953 69 Itapiranga - SC Branco Masculino
1948 74 Não Consta Não Consta Masculino
1967 55 Campo Erê - SC Branco Masculino
1959 63 Canoinhas - SC Branco Masculino
1953 69 Tubarão - SC Branco Masculino
1957 65 Não Consta Branco Masculino
1963 59 Tubarão - SC Branco Masculino
1961 61 Curitibanos - SC Branco Masculino
1967 55 Itaiópolis - SC Branco Masculino
Não consta Não consta Imbituba - SC Não Consta Masculino
1992 30 Governador Celso Ramos - Branco Masculino
SC
1965 57 Araranguá - SC Branco Masculino
1950 72 Não Consta Negro Masculino
1966 56 São Pedro de Alcântara - SC Branco Masculino
1933 89 Florianópolis - SC Branco Masculino
Não consta Não consta Tubarão - SC Branco Masculino
1961 61 Maracajá - SC Branco Masculino
1947 75 Biguaçu - SC Branco Masculino
1955 67 Palhoça - SC Branco Masculino
1953 69 Curitibano SC Branco Masculino
1946 76 São José - SC Branco Masculino
1964 58 Rio dos Cedros - SC Branco Masculino
1957 65 Grão Pará - SC Não Consta Masculino

231
Perfil Identificatório - Hospital 2
Nascimento Idade (ano) Naturalidade Raça Gênero
(ano)
1962 60 Campo Alegre - SC Branco Masculino
1962 60 Mafra - SC Negro Masculino
1962 60 Imbituba - SC Branco Masculino
1978 44 Florianópolis - SC Branco Masculino
1950 72 Navegantes - SC Branco Masculino
1958 64 Joinville - SC Branco Masculino
Não Consta Não Consta Não Consta Branco Masculino
Não Consta Não Consta Não Consta Não Consta Masculino
1958 64 Caibi - SC Branco Feminino
1938 84 Itaiópolis - SC Branco Feminino
1963 59 Balneário Camboriú - SC Branco Feminino
1957 65 Florianópolis - SC Negro Feminino
1980 42 Florianópolis - SC Branco Feminino
1950 72 Mondai - SC Branco Feminino
1952 70 Criciúma - SC Branco Feminino
1959 63 Florianópolis - SC Branco Feminino
1939 83 Florianópolis - SC Branco Feminino
1951 71 Tubarão - SC Branco Feminino
1977 45 Criciúma - SC Negro Feminino
1962 60 Volta Redonda - RJ Branco Feminino
1945 77 Palhoça - SC Branco Feminino
1968 54 Catanduvas - SC Branco Feminino
1945 77 São Francisco do Sul - SC Branco Feminino
1952 70 Xanxerê - SC Branco Feminino
1957 65 Videira - SC Branco Feminino
1963 59 Joinville - SC Branco Feminino
1960 62 Campos Novos - SC Não Consta Feminino
1958 64 Cambará do Sul - SC Branco Feminino
1944 78 Florianópolis - SC Não Consta Feminino
1957 65 Palhoça - SC Branco Feminino
Não consta Não consta Não Consta Negro Feminino
1966 56 Florianópolis - SC Branco Feminino
1937 85 Santo Amaro da Imperatriz - Branco Feminino
SC
1945 77 Florianópolis - SC Branco Feminino

232
Quadro 3 - Perfil Socioeconômico do Hospital 1

Perfil Identificatório
Escolaridade Benefício Profissão Anterior Visitas
Não alfabetizado BPC 1s/m Sem ocupação Não recebe
Não Alfabetizado BPC 1s/m Não consta Não recebe
Não consta Não consta Não consta Não recebe
Primário Não consta Agricultor Não recebe
2º grau Não consta Sem ocupação Recebe visitas
Não consta Não consta Não consta Recebe visitas
Não alfabetizado Não consta Não consta Não recebe
Não alfabetizado Não consta Lavrador Não recebe
Primário incompleto BPC 1s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1s/m Não consta Não recebe
Primário incompleto BPC 1s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1s/m Não consta Recebe visitas
Não consta BPC 1s/m Sem ocupação Não recebe
Primário incompleto BPC 1s/m Não consta Não recebe
Não consta Não consta Não consta Não recebe
Não consta Aposentado Vendedor Recebe visitas
Não consta Não consta Não consta Não consta
Não consta Não consta Não consta Não consta
Agricultor /
Não consta Não consta Lavrador Recebe visitas
Não consta Não consta Lavrador Não recebe
Não consta Não consta Não consta Não recebe
Não consta Aposentado Não consta Não recebe
Não consta BPC 1s/m Lavrador/ Servente Não recebe
Não consta Não consta Pedreiro Recebe visita

233
Quadro 4: Perfil Socioeconômico - Hospital 2

Perfil Socioeconômico - Hospital 2


Escolaridade Benefício Profissão Anterior Visitas
Primário BPC 1s/m Policial Não recebe
Primário BPC 1s/m Servente/ Balconista Recebe Visitas
Primário BPC 1s/m Sem ocupação Não recebe
Auxiliar de
Primário BPC 1s/m Construção Não recebe
Primário BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Primário BPC 1 s/m Servente Recebe Visitas
Primário BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Primário BPC 1 s/m Motorista / Lavoura Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Operário Não recebe
Não Alfabetizado / Pensão 1/2 salário
Primário mínimo Sem ocupação Recebe Visitas
Não consta BPC 1 s/m Lavrador Não recebe
Não Alfabetizado / 1º
grau BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Lavrador Não recebe
Primário BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Primário BPC 1 s/m Servente/ Pintor Recebe Visitas
Não Alfabetizado BPC 1 s/m Sem ocupação Recebe Visitas
Não consta LOAS Não consta Não recebe
Primário Aposentado Pintor / pedreiro Recebe Visitas
Não Alfabetizado / Aposentadoria /
Primário Funrural Lavrador Recebe Visitas
Primário Aposentado Não consta Recebe Visitas
Primário Aposentado / BPC Loas Não consta Não recebe
Não Alfabetizado Aposentadoria do Pai Não consta Recebe Visitas
Não consta Não Consta Não consta Não recebe
Aposentado (contribuir
Não consta com INSS) Servente Não recebe
Primário BPC 1 s/m Loas Sem ocupação Não recebe
Fundamental BPC 1 s/m Loas Sem ocupação Recebe Visitas

234
Perfil Socioeconômico - Hospital 2
Escolaridade Benefício Profissão Anterior Visitas
incompleto
Não Alfabetizado Não Consta Sem ocupação Não recebe
1º grau incompleto Aposentado 1s/m Lavrador Recebe Visitas
Não Alfabetizado 1 s/m Não consta Não recebe
Não Alfabetizado Não Consta Do Lar Não recebe
Não consta Pensionista Sem ocupação Não recebe
Primário BPC 1 s/m Do Lar Recebe Visitas
Não consta BPC 1 s/m Loas Não consta Não recebe
Primário BPC 1 s/m Sem ocupação Não recebe
Não consta Não Consta Sem ocupação Recebe Visitas
Primário BPC 1 s/m Do lar Não recebe
Não Alfabetizado Não Consta Sem ocupação Não recebe
Primário Não Consta Do Lar Recebe Visitas
Não consta Não Consta Não consta Não recebe
Não Alfabetizado BPC 1 s/m Do Lar Não recebe
Não consta Não Consta Do Lar Não recebe
Fundamental
incompleto Não Consta Não consta Não recebe
Primário BPC 1 s/m Do lar Não recebe
Não Alfabetizado/
Primário BPC 1 s/m Estudante Não recebe
Não Alfabetizado Não Consta Não consta Não recebe
Primário Não Consta Não consta Não recebe
Não consta Não Consta Do Lar Não recebe
Não consta Não Consta Não consta Não recebe
Pensão 1/2 salário
Primário mínimo Pensionista / Do lar Recebe Visitas
Não consta Não Consta Do Lar Não recebe
Não Alfabetizado BPC 1 s/m Do Lar Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Do lar Não recebe
Não consta Não Consta Não consta Não recebe
Fundamental
incompleto BPC 1 s/m Do lar Recebe Visitas
Aposentado 1/2 s/m
(outra metade a família
Não consta recebe) Plantação e cuidadora Recebe Visitas
Não Alfabetizado BPC 1 s/m Loas Não consta Recebe Visitas

235
Perfil Socioeconômico - Hospital 2
Escolaridade Benefício Profissão Anterior Visitas
Não consta BPC 1 s/m Do Lar Não recebe
Não consta BPC 1 s/m Loas Não consta Não recebe
Primário Não Consta Sem ocupação Recebe Visitas
Não consta Aposentado 1s/m Do Lar Recebe Visitas
Não Alfabetizado BPC 1 s/m Não consta Não recebe

Quadro 5: Perfil Clínico dos Moradores


Idade na
Primeira Última Idade quando foi Tempo vivido
Nascimento Primeira Nº de
internação Internação institucionalizado no hospital Diagnóstico
(ano) Internação Internações
(ano) (ano) (ano) (ano)
(ano)

Psicose associada
1963 1989 26 2004 41 18 31
com Epilepsia
1955 1974 19 1996 41 26 17 Não consta
Outras
1954 1979 25 1980 26 42 Não consta Oligofrenias
especificadas
Psicose
1964 1980 16 1990 26 32 27
Esquizofrênica
Psicose
1966 1996 30 1996 30 26 16
Esquizofrênica
1951 1973 21 1973 22 49 1 Não consta
Outras
1949 1969 20 1996 47 26 36
Oligofrenias
1964 1982 18 1989 25 33 5 Não consta
1941 1962 21 1962 21 60 11 Não consta
1953 1982 29 1986 33 36 2 Não consta
Outras
1948 1982 34 1982 34 40 1
Oligofrenias
1967 1978 11 1978 11 44 1 Não consta
Psicose
1959 1974 15 1987 28 35 5
Esquizofrênica
1953 1973 20 1997 44 25 19 Não consta
1957 1982 25 1995 38 27 8 Não consta

236
Idade na
Primeira Última Idade quando foi Tempo vivido
Nascimento Primeira Nº de
internação Internação institucionalizado no hospital Diagnóstico
(ano) Internação Internações
(ano) (ano) (ano) (ano)
(ano)

1963 1983 20 2003 40 19 6 Não consta


1961 1980 19 1990 29 32 Não consta Não consta
1967 1979 12 1985 18 37 3 Não consta
Psicose
Não consta 1979 Não consta 1982 Não consta 40 7
Esquizofrênica
Transtorno
1992 2011 19 2011 19 11 2
Depressivo
1965 1987 22 1987 22 35 Não consta Não consta
Outras
1950 1980 30 1987 37 35 3
Oligofrenias
1966 1986 20 1996 30 26 11 Não consta
1933 1974 41 1994 61 28 11 Não consta
Não consta 1974 Não consta 1989 Não consta 33 20 Não consta
1961 1981 20 2003 42 19 15 Não consta
1947 1968 21 1988 41 34 10 Não consta
1955 1981 26 2000 45 22 2 Não consta
1953 1971 18 1990 37 32 Não consta Não consta
Alcoolismo
1946 2000 54 2001 55 21 3
Crônico
1964 1983 19 1997 33 25 9 Não consta
1957 1985 28 1997 40 25 11 Não consta
1958 1984 26 1984 26 38 1 Não consta
Sem sintomas
1938 1952 14 1952 26 70 1
psicóticos
Psicose associada
1962 1976 14 1992 30 30 5
com Epilepsia
1963 1982 19 1996 33 26 20 Não consta
1962 1987 25 1987 25 35 1 Não consta
1962 1982 20 1991 29 31 7 Não consta
Outras
1978 2002 24 2006 28 16 2
Oligofrenias
1957 1977 20 1984 27 38 11 Não consta
Outras
1980 1994 14 2000 20 22 2
Oligofrenias
1950 1982 32 1996 46 26 2 Não consta

237
Idade na
Primeira Última Idade quando foi Tempo vivido
Nascimento Primeira Nº de
internação Internação institucionalizado no hospital Diagnóstico
(ano) Internação Internações
(ano) (ano) (ano) (ano)
(ano)

1950 1983 33 1987 37 35 1 Não consta


1952 1975 23 2001 49 21 12 Não consta
1959 1975 16 1990 31 32 30 Não consta
1939 1966 27 2001 62 21 10 Não consta
1951 1973 22 1993 42 29 17 Não consta
1958 1974 16 1976 18 46 3 Não consta
1977 Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta
1962 1991 29 1991 29 31 3 Não consta
1945 1960 15 1966 21 56 7 Não consta
1968 1985 17 1992 24 30 16 Não consta
1945 1963 18 1996 51 26 29 Não consta
1952 1975 23 1983 31 39 7 Não consta
1957 1988 31 1997 40 25 10 Não consta
1963 1983 20 1985 22 37 6 Não consta
Não Consta 2008 Não consta Não consta Não consta Não consta 1 Não consta
1960 1983 23 1998 38 24 5 Não consta
Psicose
1958 1988 30 1998 40 24 3
Esquizofrênica
1944 1972 28 1990 46 32 Não consta Não consta
1957 1983 26 1987 30 35 5 Não consta
Não consta 1996 Não consta 1996 Não consta 26 1 Não consta
1966 1987 21 1989 23 33 3 Não consta
Psicose associada
1937 1955 18 1962 25 60 Não consta
com Epilepsia
1945 1994 49 1994 49 28 1 Não consta
Psicose
1970 1984 14 1995 25 27 21
Esquizofrênica
1965 1985 20 2007 42 15 10 Não consta
1944 Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta
Psicose
1949 1983 34 1993 44 29 1
Esquizofrênica
Psicose
1971 1989 18 2000 29 22 13
Esquizofrênica
Psicose associada
1954 Não consta Não consta 1997 43 25 Não consta
com Epilepsia

238
Idade na
Primeira Última Idade quando foi Tempo vivido
Nascimento Primeira Nº de
internação Internação institucionalizado no hospital Diagnóstico
(ano) Internação Internações
(ano) (ano) (ano) (ano)
(ano)

Psicose
1946 1967 21 1967 21 55 Não consta
Esquizofrênica
Psicose
1939 1973 34 1973 34 49 6
Esquizofrênica
Psicose associada
1972 1990 18 1996 24 26 8
com Epilepsia
Psicose
1934 Não consta Não consta 2017 83 5 Não consta
Esquizofrênica
Psicose
1958 1985 27 1993 35 29 6
Esquizofrênica
Psicose
1939 Não consta Não consta 2017 78 5 Não consta
Esquizofrênica
Psicose
1970 2013 43 2013 43 9 1
Esquizofrênica
Outras
1967 2021 54 2021 54 1 1
Oligofrenias
Psicose
1953 1974 21 2004 51 18 25
Esquizofrênica
Psicose
1963 1988 25 1998 35 24 6
Esquizofrênica
1963 Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta
1958 Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta
Psicose
1968 1992 24 2003 35 19 14
Esquizofrênica
1957 1981 24 1988 31 34 2 Não consta
1946 Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta Não consta
1956 1981 25 1989 33 33 15 Não consta
Psicose
1935 1979 44 1990 55 32 19
Esquizofrênica
Psicose
1955 1981 26 1983 28 39 16
Esquizofrênica

239
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