Sifilis Congenita
Sifilis Congenita
Sifilis Congenita
ANO 2 • Nº 5 • SET/2017
Aspectos epidemiológicos
e preventivos da
sífilis congênita
É um agravo evitável, entretanto,
ainda representa um grave problema
de saúde pública e sua ocorrência
evidencia falhas principalmente
da atenção pré-natal. I Pág. 4
Foto: Depositphotos
Presidente
Claudio Barsanti O último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2015 estima
1o Vice-presidente que as doenças sexualmente transmissíveis continuam acometendo milhões de
Lilian dos Santos Rodrigues Sadeck pessoas em todo o mundo. Em 2012, os números atingiam 357 milhões de novas
infecções (cerca de 1 milhão por dia) das quatro infecções sexualmente transmissí-
2o Vice-presidente veis curáveis – clamídia, gonorreia, sífilis e tricomoníase, sendo a sífilis responsável
Marcelo Pinho Bittar por 5,6 milhões dos casos.
Os aspectos epidemiológicos, diagnósticos e de tratamento da sífilis na ges-
Secretária-geral tante e no neonato estão brilhantemente apresentados no primeiro texto desta
Maria Fernanda Branco de Almeida edição do Pediatra Atualiza-se. Dados recentes do Programa Estadual de DST/Aids
1o Secretário do Estado de São Paulo mostram que, apesar da maior e melhor detecção das
gestantes portadoras de sífilis, ainda são necessárias estratégias mais adequadas de
Sulim Abramovici cobertura no tratamento.
2o Secretário Os aspectos do diagnóstico clínico e sorológico da sífilis congênita são dis-
cutidos amplamente no segundo texto desta edição que relembra aos pediatras a
Fábio Eliseo F. Alvares Leite
importância dos dados maternos de pré-natal e o exame clínico cuidadoso, capazes
1o Tesoureiro de evidenciar sinais e sintomas típicos já nas primeiras semanas de vida. O algoritmo
Mario Roberto Hirschheimer apresentado na abordagem do recém-nascido com mãe portadora de sífilis resume
bem as etapas de investigação do neonato e o tipo de tratamento mais adequado.
2o Tesoureiro O tratamento adequado da sífilis neonatal não exclui a necessidade do seu
Glaucia Veiga Corrêa acompanhamento pelos próximos dois anos e o texto produzido pelo Departa-
mento de Neonatologia da SPSP apresenta as recomendações para esse seguimen-
to clínico e laboratorial.
Diretoria de Publicações A grande utilidade e praticidade dos textos apresentados nos diferentes nú-
meros do Pediatra Atualiza-se se destacam e colocam em evidência a interação
dos diferentes Departamentos da SPSP que colaboram na produção de resumos
Diretora concisos e atualizados, que cada vez mais vêm auxiliando nossos associados tão
Cléa R. Leone dedicados como somos nós – Pediatras.
Coordenadores do Pediatra Atualize-se
Antonio Carlos Pastorino Referência sugeridA
Mário Cícero Falcão World Health Organization. Report on global sexually transmitted infection surveillance 2015.
Geneva: WHO; 2015 [cited 2017 Aug. 8]. Available from: http://http://apps.who.int/iris/bitstre
am/10665/249553/1/9789241565301-eng.pdf?ua=1.
Departamento colaborador desta edição
Neonatologia Dr. Antonio Carlos Pastorino
Editor da Diretoria de Publicações
Informações Técnicas
Produção editorial
Texto & Arte Serviços Editoriais
Revisão
Rafael Franco
Sumário
Projeto gráfico
Raquel Ferreira Cardoso 4 10
Jornalista responsável Aspectos Importância
Paloma Ferraz (MTB 46219) epidemiológicos e do seguimento
preventivos da no tratamento da sífilis
Periodicidade: bimestral sífilis congênita congênita
Publicação on-line: www.spsp.org.br por Carmen Silvia Bruniera por Maria Regina Bentlin
Domingues e Lilian dos
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dificuldades no
diagnóstico e tratamento Siga a SPSP
ISSN 2448-4466
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Rodrigues Sadeck @SociedadeSPSP
| Neonatologia
aspectos epidemiológicos
e preventivos da
sífilis congênita
Carmen Silvia Bruniera Domingues
Lilian dos Santos Rodrigues Sadeck
Departamento de Neonatologia – SPSP
A sífilis congênita (SC) é uma doença de notificação com- Embora prevenível, a SC tem apresentado taxas crescen-
pulsória, decorrente da disseminação hematogênica do Treponema tes e bastante elevadas nos últimos anos, em todas as regiões
pallidum por via transplacentária, da gestante não tratada ou do Brasil. Em 2015, o país registrou 33.365 casos de sífilis em
inadequadamente tratada para o seu concepto.1-3 É um agravo gestante (SG) e 19.228 casos de SC, sendo 1.569 (8%) casos
evitável, entretanto, ainda representa um grave problema de saú- de aborto, natimorto ou óbito infantil.8 A taxa de incidência de
de pública e sua ocorrência evidencia falhas principalmente da sífilis congênita (Tisc) aumentou 2,7 vezes, quando comparada
atenção pré-natal (PN).4 O diagnóstico precoce da infecção ma- às taxas dos anos de 2010 e 2015, passando de 2,4 para 6,5 casos
terna, o tratamento adequado e oportuno são medidas simples e por mil nascidos vivos (NV).
efetivas para a sua prevenção.4 No estado de São Paulo (ESP), entre 2007 e 2015, foram
A transmissão para o concepto pode ocorrer em qualquer notificados 31.639 casos de SG e 15.967 casos de SC.9 Compa-
fase da doença materna, sendo maior o risco nos estágios iniciais; rando-se com os casos dos anos 2010 e 2015, nota-se elevação
de 70 a 100% das transmissões podem ocorrer na sífilis primária da taxa de detecção de SG (TDSG) e da Tisc, 3,1 vezes (de 3,5
e secundária, e cerca de 30%, na sífilis latente tardia e terciária.3 para 11,0 casos de SG por mil NV) e 2,7 vezes (de 2,0 para 5,4
A maior parte dos recém-nascidos com SC é assintomática (mais casos de SC por mil NV), respectivamente (Figura 1).
de 50%) e os sintomas, geralmente, manifestam-se nos primeiros Em 2015, o ESP registrou 6.956 casos de SG e 3.437 casos
3 meses de vida; por isso, é fundamental a triagem sorológica da de SC, sendo 375 (11%) casos de aborto, natimorto ou óbito
mãe na maternidade.3,5 Formas mais graves, como aborto, nati- infantil. Entre os casos de SC que nasceram vivos (N=3.117),
morto e óbito neonatal, também podem ser observadas na SC.3 cerca de 84% (N=2.620) eram assintomáticos, 96% (N=3.001)
O Brasil é um dos países que aderiu à iniciativa regional da com diagnóstico realizado na primeira semana de vida, 3,3%
Organização Mundial da Saúde e Organização Pan-Americana (N=104) com VDRL (venereal disease research laboratory) reagente
da Saúde (OMS/OPAS) para a eliminação da SC na América no exame de liquor e 2,3% (N=72) com alterações de ossos
Latina e Caribe. A SC será considerada eliminada quando atingir longos no exame radiológico.9
a taxa de incidência de 0,5 caso de SC a cada mil nascidos vi-
vos.1,6,7 Para alcançar essa meta, várias estratégias e ações vêm
sendo desenvolvidas, principalmente na atenção PN, com ên-
fase no diagnóstico, assistência e vigilância da doença. Essas 12,0
como para a prevenção dos casos, mas ainda não são suficien- 8,0
tes para o alcance da meta de eliminação. Maiores esforços de-
vem ser aplicados na qualidade dessa assistência, com ampla 6,0
nejamento reprodutivo.
0,0,
Toda gestante deverá ser testada para sífilis logo após o 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
diagnóstico da gravidez.5 É recomendada a realização do teste Ano de diagnóstico
Tisc TDSG
na entrada do PN, idealmente no primeiro trimestre, no segun-
do e terceiro trimestres de gestação e na admissão para o parto Figura 1 – Tisc e TDSG, por mil NV, segundo o ano de diag-
ou curetagem por abortamento, independentemente dos exa- nóstico, ESP, 2007 a 2015.
mes terem sido realizados durante o PN.3 Fonte: SINAN – Vigilância Epidemiológica - Programa Estadual DST/Aids-SP.
3.000
2.500
2.000
No de casos
1.500
1.000
500
0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
Ano de diagnóstico
Fez PN Diagnóstico no PN Diagnóstico no parto ou após
Figura 2 – Casos notificados de SC, cujas mães realizaram o PN, segundo o momento do diagnóstico da sífilis materna, ESP, 2007 a 2015.
Fonte: SINAN – Vigilância Epidemiológica - Programa Estadual DST/Aids-SP.
Sífilis congênita:
dificuldades no
diagnóstico e tratamento
Lilian dos Santos Rodrigues Sadeck
Departamento de Neonatologia – SPSP
A sífilis congênita (SC) continua sendo um dos grandes de- Tratamento da gestante com sífilis
safios para as políticas públicas de saúde, apesar de as estraté-
gias de prevenção serem bem definidas e da disponibilidade de É considerado tratamento materno adequado todo trata-
tratamento. mento completo, adaptado ao estágio da doença (Quadro 1),
A transmissão pode ocorrer em qualquer fase da gestação feito com penicilina e finalizado pelo menos 30 dias antes do
ou estágio clínico da doença materna; entretanto, a probabili- parto, tendo sido o parceiro tratado concomitantemente.4,5
dade de sua ocorrência varia, principalmente com o tempo de É considerado tratamento inadequado para sífilis materna
exposição do feto e o estágio clínico da doença materna. Assim, quando:
quanto mais recente a infecção materna não tratada, maior o
• é realizado com outro medicamento que não a penicilina;
risco, variando as taxas de 60 a 100% na sífilis primária ou se-
• é incompleto para o estágio da doença, mesmo tendo sido
cundária, reduzindo para cerca de 30%, nas fases de latência
feito com penicilina;
(precoce ou tardia).1,2
O diagnóstico da SC, pela dificuldade do encontro do • o início ou a finalização do tratamento ocorreu nos 30 dias
Treponema pallidum no recém-nascido (RN), precisa se basear nos anteriores ao parto;
dados históricos, exames laboratoriais maternos e dados clíni- • existe ausência de queda ou elevação dos títulos do VDRL
cos, laboratoriais e de imagem do RN,1-3 lembrando que cerca após o tratamento adequado;
de 50 a 70% dos casos de SC são assintomáticos. • o parceiro não foi tratado, foi tratado inadequadamente ou
não se tem a informação disponível sobre o seu tratamento.
Diagnóstico de sífilis durante a gestação Quadro 1 – Esquema terapêutico para tratamento da sífilis na
gestação
O diagnóstico de sífilis na gestante deve ser feito por meio
do teste de VDRL (veneral diseases research laboratory) ou do teste Estadiamento
Penicilina G Intervalo
RPR (rapid plasma reagin), que são utilizados para triagem diag- Benzatina entre as doses
nóstica por apresentarem elevada sensibilidade (VDRL: 78 a Dose total:
Sífilis primária Dose única
100% e RPR: 86 a 100%). O teste é positivo a partir de títulos 2.400.000UI
de 1:1. A sensibilidade diminui nos estágios precoces da doença,
Sífilis secundária Uma vez por
quando ainda não há resposta sorológica, e nas fases tardias (la- e latente ou com Dose total: semana,
tente tardia e terciária), quando os títulos estão caindo, chegan- até um ano de 4.800.000UI por duas
do a negativar em 33% dos indivíduos, mesmo sem tratamento. duração semanas
Com o tratamento, os títulos apresentam queda exponencial,
Sífilis terciária ou
tendendo a negativação em até dois anos. É importante destacar com mais de um
Uma vez por
Dose total: semana,
que tanto o VDRL quanto o RPR podem mostrar resultados ano de evolução
7.200.000UI por duas
falso-positivos, em casos de lúpus, artrite reumatoide, hansenía- ou evolução
semanas
ignorada
se, entre outras, ou resultados falso-negativos, devido ao excesso
de anticorpos em soro não diluído (efeito prozona).3,4 Fonte: MS, 20154 e SES-SP.5
Os testes para anticorpos treponêmicos, aglutinação pas-
siva (TPHA), imunofluorescência indireta (FTA-Abs) e ensaio
imunoenzimático (ELISA) não são indicados para triagem so-
Abordagem do Recém-Nascido
rológica, por apresentarem sensibilidade menor que os não tre-
ponêmicos. O ideal é que sejam realizados para confirmação de Realizar VDRL, em amostra de sangue periférico, de todos os
infecção treponêmica em toda gestante com teste não treponê- RN cujas mães apresentaram VDRL reagente na gestação, no parto
mico positivo, pois são altamente específicos.2,4 ou na suspeita clínica de sífilis. O sangue de cordão umbilical não
Ceratite intersticial
Coriorretinite
Achados clínicos Olhos
Glaucoma secundário (uveíte)
Lesão de córnea
Os RN sintomáticos podem apresentar uma variedade de
sinais e sintomas de aparecimento precoce (entre 2 a 8 semanas) Orelhas
Surdez por lesão do oitavo par
(Quadro 3) e outros de aparecimento tardio (após 2 anos de craniano
idade) (Quadro 4). Nariz em sela
Nariz e face
As lesões mucocutâneas, coriza mucossanguinolenta e as Mandíbula protuberante
lesões em palmas e plantas dos pés, podem ser contaminantes, Retardo mental
pois existe a presença do Treponema pallidum. Apenas nesses ca- Hidrocefalia
sos é indicado o isolamento de contato. SNC
Convulsões
As alterações do LCR encontradas em RN com neurossífilis Atrofia do nervo óptico
Paresia juvenil
são: celularidade > 25 leucócitos/mm3, proteínas > 150mg/dL generalizada
em RN de termo e > 170mg/dL em RN pré-termo e/ou VDRL
reagente.3-5 Pele Rágades
Mais de 50% dos casos de sífilis congênita atingem os Fonte: Kolmann & Dobson, 2016.2
ossos. Os ossos mais comumente acometidos são a tíbia, o
úmero e o fêmur.
Tratamento da SC
A principal manifestação ocular da sífilis congênita é a cera-
tite intersticial (opacidade e inflamação corneana) que, em con- O tratamento em RN, de acordo com a categoria que se en-
junto com dentes incisivos anômalos e surdez, são conhecidos caixa, deverá seguir a normatização do Ministério da Saúde (MS),4
como a Tríade de Hutchinson. conforme algoritmo a seguir (Figura 1). Solicitando estudo do
líquido cefalorraquidiano (LCR) e radiografia de ossos longos. Quadro 5 – Esquema de tratamento no período neonatal
O tratamento preconizado é apresentado no Quadro 5.
A1 – penicilina G cristalina 50.000UI/kg/dose, intravenosa (IV),
Na total falta de penicilina cristalina e procaína ou RN sem de 12 em 12 horas (nos primeiros 7 dias de vida) e de 8 em 8
massa muscular para receber medicação por via IM, o MS libe- horas (após 7 dias de vida), durante 10 dias. Ou penicilina G
rou uma portaria com a recomendação do uso de ceftriaxona:6 procaína 50.000UI/kg/dose, intramuscular (IM),
uma vez por dia, durante 10 dias
1. Com neurossífilis provável ou confirmada: dose de ataque – A2 – penicilina G cristalina 50.000UI/kg/dose, IV, de 12 em
100mg/kg, seguido de 80mg/kg a cada 24 horas, via IV, du- 12 horas (nos primeiros 7 dias de vida), de 8 em 8 horas
rante 10 a 14 dias; (após 7 dias de vida), durante 10 dias
2. Sem neurossífilis (afastado comprometimento do SNC): A3 – penicilina G benzatina, IM, dose única de 50.000UI/kg.
50mg/kg a cada 24 horas, via IV, durante 10 a 14 dias. Sendo impossível garantir o acompanhamento, o RN
deverá ser tratado segundo esquema A1
1. Centers for Disease Control and Prevention. Sexually Transmitted Diseases – para prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites virais. Brasília:
Treatment Guidelines, 2015. MMWR Recomm Rep. 2015;64:45-9. [cited 2017 Ministério da Saúde; 2015.
Jun 7]. Available from: http://www.cdc.gov/mmwr/pdf/rr/rr6403.pdf. 5. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP). Coordenadoria de Con-
2. Kolmann TR, Dobson SR. Syphilis. In: Wilson C, Nizet V, Maldonado Y, Re- trole de Doenças. Programa Estadual de DST e Aids. Centro de Referência e
mington JS, Klein JO, editors. Infectious diseases of the fetus and newborn Treinamento em DST e Aids. Guia de bolso para manejo da sífilis em gestantes
infant. Remington and Klein’s infectious diseases of the fetus and newborn e sífilis congênita. 2nd ed. São Paulo: SES-SP; 2016 [cited 2017 Jun. 7]. Available
infant. 8th ed. Philadelphia: Saunders; 2016. p. 512-43. from: https://issuu.com/crtdstaidsspcrtaids/docs/guia_de_bolso_da_s__fi-
3. Peeling RW, Ye H. Diagnostic tools for preventing and managing mater- lis_-_2___edi.
nal and congenital syphilis: an overview. Bull World Health Organization. 6. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP). Coordenadoria de Con-
2004;82:439-46. trole de Doenças. Tratamento de sífilis congênita no Estado de São Paulo. São
4. Brasil – Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamen- Paulo: SES-SP; 2016 [cited 2017 Jun. 7]. Available from: http://www.spsp.org.
to de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas br/PDF/NT012016.pdf.
RN sintomático RN assintomático
RN
RN sintomático
assintomático
Raios X ossos, punção
VDRL
lombar e hemograma
Exames Exames
LCR alternado
normais alternados
(neurossífilis)
LCR normal LCR normal
Tratar – A1
Tratar – A2 Tratar – A3
(cristalina/
(cristalina) (benzatina)
procaína) Tratar – A3
(benzatina) Tratar – A1
Tratar – A2
(cristalina/
(cristalina)
procaína)
Importância do seguimento no
tratamento da sífilis congênita
Maria Regina Bentlin
Departamento de Neonatologia - SPSP
O seguimento ambulatorial dos recém-nascidos (RN) ex- se houver elevação do título ou se este não se negativar até os
postos à sífilis materna é importante e deve ser realizado até pelo 18 meses de idade, reavaliar a criança e retratá-la, se necessário.
menos os 2 anos de idade, não só para confirmação diagnóstica, Quanto ao teste treponêmico (FTA-Abs ou TPHA), ele
mas também porque mais de 70% dos RN são assintomáticos deverá ser realizado a partir dos 18 meses, e, se for reagente, o
ao nascer e podem vir a desenvolver manifestações da doença a seguimento deverá ser estendido até 5 anos de idade.
partir de 2 anos de idade.1 Da mesma maneira que na situação anterior, a coleta seria-
A recomendação da Secretaria de Estado da Saúde de da do VDRL deverá ser interrompida após a obtenção de dois
São Paulo (SES-SP), da Coordenadoria de Controle de Doen- exames consecutivos não reagentes. Se os títulos do VDRL esti-
ças (CCD), do Centro de Referência e Treinamento (CRT), verem caindo nos primeiros três meses, forem negativos entre 6
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/Aids e do Progra- e 18 meses de vida e o teste treponêmico for negativo após os 18
ma Estadual DST/Aids de São Paulo, para acompanhamento meses de idade, considera-se que a criança não apresentou sífilis
dos RN expostos, tratados (Quadro 1) ou não (Quadro 2) no ou que ela foi tratada adequadamente no período intrauterino.
período neonatal, é mostrada a seguir.2 É importante ressaltar que as crianças que apresentarem o
A coleta seriada do teste não treponêmico, o VDRL, deve- teste treponêmico reagente após os 18 meses de vida deverão rea-
rá ser interrompida após a obtenção de dois exames consecuti- lizar seguimento pelo menos até os 5 anos de idade, para moni-
vos não reagentes. Se os títulos de VDRL estiverem caindo nos toramento de possíveis manifestações tardias da sífilis, como as
primeiros três meses e forem negativos entre 6 e 18 meses de alterações visuais, auditivas e de desenvolvimento, mesmo que
vida, considera-se que a criança foi tratada corretamente. Mas, elas tenham recebido tratamento adequado no período neonatal.
Meses 1 2 3 4 5 6 8 10 12 18 24
Vida * * * * * * * * * * *
VDRL VDRL VDRL VDRL VDRL VDRL
#LCR
**Neuro FTA-Abs
Oftalmo ou TPHA&
Audição
* Exame físico minucioso; # liquor (LCR): em casos de neurossífilis, repetir o LCR a cada seis meses até que haja normalização bioquímica, citológica e
sorológica; espera-se que o VDRL (venereal disease research laboratory) do LCR seja negativo até o sexto mês de idade e que o LCR esteja normal ao fim do
segundo ano de vida; se as alterações persistirem, retratar; ** avaliação neurológica, oftalmológica e audiológica deverá ser realizada a cada seis meses, até os
2 anos de idade, em crianças com sífilis congênita (SC); & TPHA – testes de hemaglutinação e aglutinação passiva.
Fonte: Elaborado pela autora.
Meses 1 2 3 6 12 18 24
Vida * * * * * * *
VDRL VDRL VDRL VDRL VDRL
FTA-Abs ou TPHA
Apesar de toda recomendação existente, a perda de segui- Mesmo com tantas dificuldades, é possível ter sucesso em
mento das crianças expostas à sífilis é muito alta. estratégias que visem reduzir a incidência da SC e suas com-
Estudo realizado no interior do Estado de São Paulo, no plicações. Em um estudo de coorte no Reino Unido, referente
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu aos anos de 2010 a 2015, a incidência de SC esteve abaixo de
(HCFMB), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), entre 0,5 a cada mil nascidos vivos (apenas 17 RN), mostrando que
2011 e 2014, mostrou que dentre 164 RN expostos à sífilis ma- é possível atingir as metas da Organização Pan-Americana de
terna, apenas 64 (40%) realizaram acompanhamento. Destes Saúde (Opas) com melhoria na assistência e, principalmente, na
64 pacientes, 49 (76%) tiveram teste treponêmico não reagente qualidade do pré-natal (PN).6
aos 18 meses de idade, 4 (6%) apresentaram teste treponêmico Cuba recentemente conseguiu eliminar a SC mostrando
reagente e 11 (17%) apresentaram teste treponêmico reagente que, mesmo em países com limitados recursos financeiros,
com 1 ano de idade, mas perderam seguimento após esse pe- isso é possível desde que se tenha um PN de qualidade e com
ríodo. Nessa mesma amostra, 49 RN foram diagnosticados com ampla cobertura, rotina de investigação da sífilis na gestação,
neurossífilis no período neonatal, mas apenas 19 fizeram segui- seguimento das gestantes com testes positivos e das crianças
mento ambulatorial e, dentre estes, somente 14 pacientes foram expostas e um sistema nacional de vigilância bem organizado
submetidos a coleta de liquor (LCR) de controle até os 6 meses e eficaz.7
de idade. Todas as análises citológicas, bioquímicas e sorológicas Diante da atual situação da SC, evidencia-se a necessidade
(VDRL) do liquor estavam dentro dos limites de normalidade, de definir estratégias para prevenção, diagnóstico e tratamento
incluindo os VDRL que foram não reagentes. A adesão às ava- adequado das gestantes, na tentativa de reduzir a incidência da
liações auditivas e oftalmológicas também foi muito baixa. Dos doença materna e suas complicações para o RN em curto, médio
64 pacientes acompanhados, apenas 33 (52%) realizaram avalia- e longo prazo. O seguimento sistematizado dos RN expostos é
ção auditiva e 11 (17%), avaliação oftalmológica. Foi encontrado ponto de relevância, não só pela necessidade de confirmação
um paciente com alteração visual.3 diagnóstica da SC, mas também para diagnóstico e tratamento
A perda de seguimento também é alarmante em outras re- precoces de possíveis complicações da doença, garantindo, as-
giões do país. Em Porto Alegre, no período de 1997 a 2004, de sim, a qualidade de vida dessas crianças.
um total de 398 RN com SC, apenas 30% foram reavaliados
entre 8 e 60 meses de vida.4 No interior de Minas Gerais, de um Referências
total de 54 RN com SC, 43 (80%) não foram referenciados para
1. Cooper JM, Michelowb IC, Wozniaka PS, Sánchez PJ. In time: the persisten-
seguimento ambulatorial.5 Isso é relevante porque alterações no ce of congenital syphilis in Brazil – More progress needed. Rev Paul Pediatr.
desenvolvimento e sequelas podem ter surgimento mais tardio e 2016;34:251-3.
comprometer a qualidade de vida dessas crianças. 2. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP). Coordenadoria de Con-
trole de Doenças. Programa Estadual de DST e Aids. Centro de Referência e
Entre as razões para perda de seguimento, encontram-se a Treinamento em DST e Aids. Guia de bolso para manejo da sífilis em gestantes
falta de informação da importância do acompanhamento para e sífilis congênita. 2. ed. São Paulo: SES-SP; 2016 [cited 2017 Jun. 7]. Available
evitar lesões futuras, o fato de a sífilis poder ser uma doença si- from: https://issuu.com/crtdstaidsspcrtaids/docs/guia_de_bolso_da_s__fi-
lis_-_2___edi.
lenciosa, em que a ausência de sinais e sintomas aparentes pode 3. Silveira SL. Estudo epidemiológico da sífilis congênita: a realidade de um
deixar a falsa impressão aos pais de que a criança está bem, e hospital universitário terciário [master’s thesis]. Botucatu (SP): Unesp; 2017.
assim não comparecer às consultas, isso tudo associado ao fato 4. Lago EG, Vaccari A, Fiori RM. Clinical features and follow-up of congenital
syphilis. Sex Transm Dis. 2013;40:85-94.
de muitos desses pacientes residirem em locais onde há neces- 5. Lafeta KR, Martelli Jr H, Silveira MF, Paranaiba LM. Maternal and congenital
sidade de deslocamento para outros centros a fim de realizar a syphilis, underreported and difficult to control. Rev Bras Epidemiol. 2016;19:
coleta de liquor ou avaliações de neurodesenvolvimento, o que 63-74.
6. Simms I, Tookey PA, Goh BT, Lyall H, Evans B, Townsend CL, et al. The inci-
dificulta a adesão ao seguimento.
dence of congenital syphilis in the United Kingdom: February 2010 to January
Nesse sentido, é importante avaliar o contexto socioeco- 2015. BJOG. 2017;124:72-7.
nômico em que a criança está inserida, esclarecer aos pais sobre 7. Caffe S, Perez F, Kamb ML, Leon RG, Alonso M, Midy R, et al. Cuba valida-
a doença e realizar pactuação com os municípios para um se- ted as the first country to eliminate mother-to-child transmission of human
immunodeficiency virus and congenital syphilis: lessons learned from the
guimento abrangente e individualizado e busca ativa dos casos implementation of the global validation methodology. Sex Transm Dis. 2016;
expostos para seguimento. 43:733-6.