O Que É A Filosofia Calvinista
O Que É A Filosofia Calvinista
O Que É A Filosofia Calvinista
J. M. Spier
Recomendo o pequeno e excelente livro de Spier como uma introdução muito
útil à filosofia calvinista ou reformacional. Há mais de cinquenta anos ele foi
minha introdução a essa tradição filosófica, e tem moldado meu pensamento
desde então.
— Al Wolters
Autor de Criação restaurada
Copyright © 1950, de J. M. Spier
Publicado originalmente em holandês sob o título
Wat Is Calvinistische Wijsbegeerte?
por J. H. Kok,
Kampen, Holanda.
EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
1ª edição, 2019
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
O que é a filosofia calvinista? / J. M. Spier, tradução Felipe Sabino de Araújo Neto — Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2019.
978-85-69980-96-4
CDD 230
SUMÁRIO
Sumário
Apresentação à edição brasileira
Prefácio
1. Antecedente histórico
2. O que é filosofia?
3. A filosofia calvinista
4. Filosofia e revelação
5. A grande fronteira
6. Os aspectos cósmicos
7. A esfera-lei
8. A soberania da esfera
9. A ordem da lei cósmica
10. A relação das esferas-lei
11. O tempo
12. Diagrama
13. O objeto
14. As coisas
15. A estrutura das coisas
16. A estrutura das relações sociais
17. A sociedade
18. As inter-relações
19. Corpo e alma
20. A estrutura do corpo
21. Os atos humanos
22. O pecado
23. Teoria do conhecimento
24. O horizonte da experiência
Conclusão
Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd
Apêndice 2: O meio intelectual de Herman Dooyeweerd
Bibliografia
Apresentação à edição brasileira
Johannes Marinus Spier — mais conhecido como J. M. Spier — nasceu
em 1902, sendo um pastor conhecido primariamente por ter popularizado a
filosofia de Dooyeweerd.
Este livro, traduzido para o inglês em 1953,[1] para o coreano na década
de 1960[2] e para o japonês em 1967 foi um grande responsável pela
introdução da filosofia cristã nos Estados Unidos, na Coreia, e no Japão.
O livro que agora aparece em português foi chamado de “uma
esplêndida introdução à filosofia de Dooyeweerd” por David Hugh Freeman
e William Young, tradutores do monumental A New Critique of Theoretical
Thought.[3] Já R. J. Rushdoony, em seu prefácio ao No crepúsculo do
pensamento ocidental, afirma que este livreto oferece “uma análise valiosa do
pensamento de Dooyeweerd”.[4]
Spier faleceu em 8 de junho de 1971, mas seus livros continuam sendo
utilizados para despertar o interesse de muitos para a filosofia de
Dooyeweerd. Queira Deus abençoar esta tradução.
— Felipe Sabino de Araújo Neto
Janeiro de 2019
Prefácio
Os fatores que me moveram a escrever este livro são os seguintes:
Nem todo cristão calvinista tem o desejo, oportunidade ou habilidade
de fazer um estudo completo da filosofia calvinista que tem sido revelada nos
escritos dos seus proponentes, Professor Dr. H. Dooyeweerd e Professor Dr.
D. H. Th. Vollenhoven, e como ela foi resumida em meu livro “Inleiding in
de Wijsbegeerte der Wetsidee”.[5]
Todavia, muitos em nossos círculos desejam conhecer mais sobre essa
filosofia que, nos últimos anos, tem-se tornado mais conhecida, parcialmente
por causa do estabelecimento de cátedras especiais nas universidades
públicas e escolas secundárias.
Regozijo-me neste interesse crescente nas questões filosóficas — não
somente porque o campo amplo da filosofia era explorado quase
exclusivamente, até anos recentes, por homens da ciência que não
reconheciam a Palavra de Deus como a norma suprema para a esfera
científica, mas também porque a filosofia subjaz a todo o labor nas ciências
particulares. Nosso povo calvinista sempre demonstrou interesse em teologia.
Mas se esse interesse reside na ideia que a teologia está mais intimamente
relacionada à fé e à igreja, exercendo portanto maior influência sobre a nossa
fé do que as outras ciências particulares, ele está fundamentado sobre uma
pressuposição equivocada. Teologia como ciência está no mesmo nível que
outras ciências particulares neste respeito, pois toda ciência é controlada pela
fé do investigador e está sujeita às Sagradas Escrituras como a norma
suprema, e nenhuma das ciências tem uma influência que fortaleça a fé. Mas
as questões mais profundas de toda ciência levam ao terreno da filosofia.
Portanto, uma pessoa que tenha interesse popular nas questões
científicas, mas não seja ela mesma um estudante de ciência, pode encontrar
melhor seu caminho na filosofia que é a ciência do todo, ou em outras
palavras, no pensamento científico concernente a todo o cosmo.
Por causa dessas considerações, escrevi este pequeno livro com a
esperança que ele possa cumprir seu propósito e servir ad majorem gloriam
Dei, para a maior glória daquele que deve ser louvado por todas as suas
obras.
— J. M. Spier
Junho de 1950
1. Antecedente histórico
Antes de apresentar um esboço das principais características do sistema
de filosofia calvinista, é necessário lançar luz sobre seu antecedente histórico.
Toda vida é historicamente orientada. E todo aquele que negligencia o
aspecto histórico de um assunto, não pode entendê-lo nem avaliá-lo
corretamente.
Quando falamos aqui de filosofia calvinista, queremos dizer aquele
sistema filosófico cristão que tem se tornado conhecido a nós durante os
últimos vinte anos pelo nome “Wijsbegeerte der Wetsidee”.[6] O nascimento
deste sistema é um evento de grande importância, embora não tenha recebido
a atenção geral que obviamente mereça. A não familiaridade é com certeza a
desculpa mais frequente para essa negligência.
Quais são os fatos do caso? É geralmente sabido que por muitos
séculos, mesmo antes do cristianismo adentrar no mundo, a filosofia foi
cultivada por aquelas pessoas que tinham alcançado certo nível de cultura. Na
Europa havia os antigos gregos e romanos — pense em Sócrates, Platão e
Aristóteles. Mais tarde, durante a Idade Média e nos tempos modernos, houve
especialmente as pessoas da Europa Ocidental. E durante os poucos últimos
séculos, a filosofia tem sido estudada em todo o mundo civilizado.
Durante esses séculos, pensadores de vários ramos têm concebido um
grande número de sistemas filosóficos. Esses sistemas algumas vezes
suplementam uns aos outros; às vezes ignoram uns aos outros; e outras eles
são até mesmo diametralmente opostos uns aos outros. Tais sistemas ainda
portam o nome de seus famosos proponentes — Tomás de Aquino,
Descartes, Espinoza, Kant, Hegel, Nietzsche e muitos outros.
A despeito dos muitos pontos acerca dos quais esses sistemas possam
diferir um do outro, em um aspecto eles são todos semelhantes: são todos não
cristãos. Eles não procedem da raiz da revelação divina. Eles não se sujeitam
à Palavra de Deus. Pelo contrário, todos começam a partir da soberania da
razão humana, a autossuficiência do entendimento humano, que se julga
capaz, à parte da luz da revelação, de descobrir a verdade com respeito às
coisas criadas e mesmo do próprio Criador.
Isso não significa que não foi desenvolvido nenhum sistema filosófico
que tenha usado ideias cristãs em certa extensão e as acomodado a temas não
cristãos. Aqui podemos mencionar a filosofia que foi originada e ainda é
propagada pelos católicos romanos, a saber, o tomismo, que é uma síntese
entre temas bíblicos e o tema clássico forma-matéria. Dessa combinação
surgiu a filosofia do tema natureza-graça. Mesmo em círculos calvinistas tais
sínteses foram realizadas quando homens como Kuyper, Bavinck, Woltjer e
Geesink tomaram de empréstimo ideias de Platão e Aristóteles e as uniram
com dados bíblicos a fim de formar um conceito de logos cristão. Mas a
assim chamada filosofia de síntese nunca pode satisfazer ninguém que esteja
convencido que a Palavra do Senhor deve ser a norma suprema na ciência; e
que Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, diz também sobre o domínio
filosófico — “É meu!”.
A grande reforma de Lutero e Calvino no século XVI não foi capaz de
produzir sua própria filosofia cristã. Embora isso seja lamentável, é algo bem
compreensível. O conflito não irrompeu na esfera científica, mas na
eclesiástica, e os reformadores não tentaram estruturar suas ideias puramente
bíblicas numa filosofia cristã. Contudo, eles lançaram o fundamento de uma
teologia reformada. Mas a teologia, uma ciência particular, nunca toma o
lugar de uma filosofia cristã, que é a ciência fundamental. Essa deficiência
teve uma influência nociva sobre a herança cristã nos séculos subsequentes à
Reforma, pois vários temas da filosofia não cristã predominante (o
Iluminismo) se infiltraram nos círculos cristãos, e não se ofereceu nenhuma
resistência apropriada. Sem dúvida, houve a resistência da fé baseada sobre a
Palavra de Deus. Lembre-se apenas no pietismo. Mas quando o inimigo ataca
com armas proveniente do arsenal da ciência incrédula, o cristão deve contra-
atacar com armas oriundas do arsenal da ciência cristã. Infelizmente, essas
não existem pois os filhos da Reforma retornaram ao cultivo fatal da filosofia
da síntese.
Todavia, o que nunca tinha ocorrido, agora aconteceu. O primeiro
sistema filosófico cristão finalmente chegou, tendo brotado da raiz do
calvinismo, do tema básico da criação, queda e redenção. Isso é um dom da
graça divina e um dos primeiros frutos da Universidade Livre[7] — aquela
universidade singular que em toda a sua obra científica continuamente se
sujeita à Palavra de Deus.
Como calvinistas não podemos falhar em observar esse fato
significativo, prestando atenção à palavra do salmista: “Não te esqueças de
nem um só de seus benefícios!”.
Regozijamo-nos, portanto, que o interesse nesta filosofia esteja
crescendo e que mesmo aqueles cujo trabalho diário não esteja no campo
científico estejam fazendo a pergunta: o que é a filosofia calvinista?
2. O que é filosofia?
Fé (teologia)
Amor (ética)
Retribuição (ciência do direito)
Harmonia (estética)
Valores econômicos (economia)
Associação (sociologia)
Linguagem (linguística)
Moldagem da cultura (história)
Pensamento (lógica)
Sensação (psicologia)
Vida (biologia)
Movimento (física)
Espaço (geometria)
Número (matemática)
tempo cósmico
Direcionado a Deus
Coração ou alma
Direcionado a um ídolo
13. O objeto
O ponto final a ser considerado no estudo das esferas de lei é o objeto
que desempenha esse importante papel não somente nas ciências, mas
especialmente em nossa experiência diária comum.
Por objeto nos referimos a uma coisa concreta. Se olho para uma
árvore, todo o meu ser subjetivo está ativamente engajado, embora o ato de
ver seja caraterizado pela função-sujeito psicológico, a função de percepção
sensorial. Mas eu vejo a árvore. A árvore em si não vê. Ela não é
psicologicamente ativa. Ela não tem nenhuma função sensorial subjetiva.
Contudo, a árvore está envolvida no psicológico, não como sujeito, mas
como objeto. A verdade é o objeto da minha visão.
A esse exemplo podem ser acrescentados muitos outros que estão
relacionados com outras funções-sujeito dos homens e das coisas que têm
objetos dispostos ao seu redor, de todas as esferas de lei. Esse é o primeiro
ponto que devemos entender bem: um objeto sempre tem uma existência
relativa. Ele tem existência somente, pelo menos nas funções-objeto abertas,
na relação concreta com um sujeito. Se olho para uma árvore, a função-
objeto psicológica da árvore está aberta. Se não olho para a árvore, então a
árvore naturalmente retém sua função-objeto psicológica, mas trata-se agora
de uma situação fechada. Há apenas a possibilidade de ser vista, embora o
ver efetivamente não ocorra.
Apresentemos agora exemplos de outras esferas de lei. Se penso sobre
um animal, em minha atividade analítica subjetiva esse animal torna-se um
objeto analítico ou simplesmente o objeto do meu pensamento. Pois o animal,
juntamente com toda a realidade temporal, tem uma função-objeto analítica.
Quando um carpinteiro faz uma mesa a partir de tábuas, como sujeito
ele está historicamente ativo com seu poder de formação de cultura. Nessa
situação concreta as tábuas devem ser vistas numa função-objeto histórica
aberta. Se uma pessoa escreve uma carta, ela, enquanto sujeito, está
linguisticamente comprometida em formar letras, palavras e sentenças. O
papel sobre o qual ela escreve funciona nesta situação como o objeto
linguístico.
Objetos na esfera de lei social de associação são móveis, casas, meios
de transporte, etc. Objetos econômicos são aquelas coisas às quais atribuímos
um valor monetário e portanto compramos ou vendemos. Objetos estéticos
são as coisas cuja beleza avaliamos. Eles têm uma função-objeto estética.
Os objetos jurídicos são coisas relacionadas à lei. Se reivindico algo
como minha propriedade privada, trata-se de um objeto jurídico nessa
situação. Coisas que amamos são objetos éticos, enquanto os elementos dos
sacramentos, um edifício eclesiástico, e a Bíblia enquanto livro são objetos
na esfera de lei da fé. O conteúdo da Escritura, sem dúvida, não é o objeto
mas a norma da fé.
As ilustrações acima foram extraídas da vida humana em suas várias
atividades subjetivas que são frequentemente realizadas em relação a objetos.
Todavia, mesmo na existência não humana os objetos aparecem. Quando um
pássaro constrói um ninho por instinto, o ninho é um objeto psicológico para
esse pássaro. Quando uma planta é alimentada com água e outros elementos,
tais elementos de nutrição são objetos biológicos. Se uma pedra meteórica cai
sobre a terra à noite e deixa um rastro de luz nos céus, a pedra em si é um
sujeito físico. Mas o rastro de luz, ao longo do qual se moveu, é o objeto
físico. O rastro não se move, mas tem algo a ver com o movimento do
meteoro.
O que esses exemplos nos ensinam? Em primeiro lugar vimos, em
nossa descrição das esferas de lei na seção sete acima, que somos
conscientemente incompletos. Há diferenciações entre a lei e o sujeito em
cada aspecto. A isso devemos agora acrescentar que o lado sujeito de cada
esfera de lei contém não apenas o sujeito mas também o objeto que está
relacionado com o sujeito de tal forma que tanto o sujeito como o objeto
estão sob a lei nessa esfera específica de lei.
Além disso, esses exemplos nos ensinam que na experiência ingênua,
isto é, na vida comum do dia a dia que é de natureza pré-teorética, podemos,
por meio da relação sujeito-objeto, experimentar o cosmos em sua
universalidade ou de acordo com todos os seus aspectos. Em nossa função-
sujeito psicológica sempre experimentamos o mundo todo em sua função-
objeto psicológica. Em nossa função-sujeito analítica experimentamos todo o
mundo de acordo com sua função-objeto analítica, pois ao pensar formamos
um conceito de tudo que chega ao alcance da nossa função-sujeito analítica.
Dessa forma, a função-sujeito histórica do homem é direcionada à função-
objeto histórica daquilo que, na criação, pode ser transformado em cultura.
Em terceiro lugar, esse acesso à onidimensionalidade da realidade
cósmica na relação sujeito-objeto é possível não somente na totalidade da
experiência ingênua, na qual todas as funções-sujeito interconectadas do
homem estão inclusas, mas também em cada atividade individual
caracterizada por uma função-sujeito específica. Na experiência ingênua total
não olhamos para uma flor (uma ação humana qualificada pela função-sujeito
psicológica), mas também pensamos sobre ela (uma ação analiticamente
qualificada), falamos sobre ela (uma atividade linguisticamente qualificada),
nos associamos com ela, apreciamos seu valor, respeitamo-la como a
propriedade de nosso próximo, etc. Assim, experimentamos a realidade
onidimensional da flor.
Podemos também experimentar a universalidade dessa coisa numa
ação específica. Na ação psicologicamente qualificada da visão, por exemplo,
experimentamos sua onidimensionalidade porque na função-sujeito
psicológica atual objetivamos psicologicamente todos os aspectos, i.e.,
fazemos deles os objetos de nossa percepção. O que vemos quando olhamos
para uma flor? Nessa visão perceptual da flor caracterizada como o objeto
psicológico, distinguimos não somente os aspectos pré-psicológicos —
contabilidade (e.g., o número de pétalas); a espacialidade (e.g., seu tamanho);
seu aspecto físico, isto é, o fato de que a flor, em sua forma não desenvolvida,
carece de certos nutrientes necessários; seu aspecto biológico (e.g., que está a
ponto de murchar) — mas também as qualidades psicológicas e pré-
psicológicas objetivas. Vemos também sua cor (uma propriedade psicológica
objetiva); seus atributos lógicos objetivos, pelos quais podemos formar um
conceito dela; sua função histórica objetiva (e.g., que é uma flor cultivada e
não selvagem); suas qualidades estéticas objetivas; sua função econômica
objetiva (e.g., que tem um certo valor no comércio); sua função jurídica
objetiva (e.g., que é a propriedade de outro); sua função ética objetiva (e.g.,
que é estimada por ser uma flor própria para um buquê de noiva); e sua
função pística objetiva, que é uma criatura de Deus a ser respeitada como tal.
Dessa forma, vemos que na relação sujeito-objeto captamos a realidade
das coisas em sua universalidade cósmica. Isso corrobora a declaração
anterior de que cada esfera de lei é um espelho do mundo todo.
Para finalizar o raciocínio, deve-se acrescentar que a existência humana
pode ser objetivada somente na medida em que se expressa nos aspectos
temporais. Podemos observar a estatura de um ser humano, seu sexo, cor,
imagem e status no comércio, governo, família, etc. Mas o homem como tal
em sua existência total não pode e não deve ser objetivado porque em sua
alma, que é o cerne do seu ser, ele transcende os aspectos temporais desta
vida. Dessa forma, o homem não pode ser tratado como mercadoria, nem
considerado como extensão de uma máquina. Pois ele carrega dentro de si o
mistério da redenção de Deus em Cristo por ser templo do Espírito Santo.
14. As coisas
Até aqui temos falado dos vários aspectos, ou modalidades de coisas.
Mas o que dizer das coisas em si? Como devemos vê-las filosoficamente? A
filosofia é afinal a ciência do todo, certo? Devemos fazer as seguintes
observações sobre este assunto.
Em primeiro lugar, observemos coisas inanimadas como fragmentos de
uma pedra natural. Sua existência é claramente caracterizada pelos três
primeiros aspectos — número, espaço e movimento (físico). Em cada um
desses três aspectos cada coisa inanimada funciona como sujeito. Nos
aspectos sucessivos, contudo, essa coisa não tem funções de sujeito. Ela não
vive, come, pensa, fala ou crê. Devemos portanto concluir que a realidade
plena dessa coisa está contida dentro desses três aspectos? Que sua existência
está encapsulada ali? Que ela não tem relação alguma com todos os outros
aspectos?
Não, pois embora não tenha uma função de sujeito, essa coisa tem,
porém, em todas as modalidades subsequentes, uma função como objeto. A
coisa que em si mesma não tem sensação e portanto não tem nenhuma
função-sujeito psicológica, pode todavia ser percebida pelo animal ou
homem, e, dessa forma, tem uma função-objeto psicológica. Podemos usar a
coisa como o objeto de nosso poder formador de cultura e fazer um objeto
decorativo a partir dele, por exemplo, por ele ter uma função-objeto histórica.
Dessa forma, uma coisa tem uma função em todas as esferas de lei. Sua
existência nunca é prematuramente fechada em um dos aspectos. Damos a ela
um nome. Associamo-nos com ela ao tomá-la em nossas mãos. Avaliamos
seu valor monetário. Achamo-la bela ou feia. Podemos respeitá-la como
propriedade de outra pessoa. Gostamos dela ou a desprezamos. E finalmente
devemos vê-la como parte da criação de Deus. Dessa forma o todo da
realidade cósmica está resumido em cada coisa. Cada coisa está relacionada
com a totalidade da vida por inúmeros contatos e possibilidades.
Uma planta difere de uma coisa inanimada ou de uma coisa física
porque ela é caracterizada por sua função-sujeito mais sublime. Em adição a
esses três primeiros aspectos, uma planta tem também uma função-sujeito no
quarto aspecto, o aspecto biológico, e uma função-objeto nos dez outros que
o sucedem. Uma planta é portanto uma coisa biológica.
Um animal difere também. Essa criatura tem funções sujeito nas
primeiras cinco esferas de lei, dessa forma também no psicológico. Um
animal possui uma vida sensorial de sentimento pela qual ele age e reage
instantaneamente. Em todos os aspectos subsequentes, o animal tem funções-
objeto. Portanto um animal é um ser psicológico.
O homem é exaltado acima de todas as outras criaturas, não somente
porque todas as funções temporais focam-se em seu coração como a raiz de
todo o seu ser, mas também no fato de que tem uma função-sujeito em cada
uma das esferas de lei, enquanto também tem as máximas funções-objeto.
Deus certamente adornou sua mais sublime criatura com muitos dons.
15. A estrutura das coisas
Isso nos leva ao tema que na terminologia filosófica é chamado
estrutura da individualidade (a “coisidade” da coisa), isto é, a estrutura de
criaturas como unidades ou totalidades individuais. O que se quer dizer com
isso? Uma coisa é mais que um punhado de funções-sujeito. Uma coisa não é
simplesmente uma coleção de atributos, mas uma unidade ou todo.
Como devemos entender isso filosoficamente? Para responder isso
devemos primeiro distinguir entre coisas naturais e coisas culturais. Há uma
diferença essencial entre um pedaço de pedra natural e um tijolo, entre uma
pepita de ouro e um anel de casamento, e entre uma árvore e uma caixa de
madeira feita a partir dela.
Coisas naturais são aquelas que são dadas como tais na natureza, e que
não passam por nenhuma ação de formação cultural por parte do homem. Há
sem dúvida coisas naturais que devem sua existência à atividade animal, por
exemplo, um ninho de passarinho, um buraco de coelho, uma casca de ovo,
etc. Mas isso não faz deles objetos culturais, já que sua forma é constante e
não é o resultado de uma atividade de formação e controle sobre a natureza,
direcionada por um insight racional e determinada por um objetivo. Elas
permanecem coisas naturais que são de uma estrutura objetiva, isto é, sua
realidade é caracterizada pela função-objeto psicológica, que é regulada à
vida animal.
Por outro lado, tudo que deve sua existência a um poder humano livre e
formativo é uma coisa cultural.
Em primeiro lugar, com respeito às coisas naturais — não fazemos
comentário adicional sobre coisas naturais como objetos — observamos
acima que esses possuem um número igual de funções-sujeito nas três
primeiras esferas de lei. Uma rocha tem três funções-sujeito, uma na esfera de
lei matemática, uma na espacial, e uma na física. A função-sujeito mais alta
— neste caso, a física — desempenha um papel distintivo e controlador. Na
estrutura da coisa, é a função diretiva ou qualitativa. Isto é, no meio de todas
as funções-sujeito, ela serve para direcioná-las de uma maneira singular em
direção a um objetivo específico. Por meio do processo interno de
desvelamento de uma coisa, todas as suas funções recebem uma unidade
estrutural interna de acordo com a lei. As funções unem-se para formar uma
estrutura individual pela qual a coisa demostra uma unidade interna, e se
tornam, portanto, uma coisa concreta que é singularmente distinguida de
todas as outras espécies de coisas.
Essa unidade de uma coisa não é determinada por um aspecto. Ela se
encontra mais profundamente ancorada na ordem cósmica mundial que em
um dos aspectos temporais. Pois ela coere e interliga os aspectos das coisas
num todo individual e significativo.
Mas porque essa totalidade da coisa é em si mesma de uma natureza
transitória e não transcende o horizonte temporal do cosmos, concluímos que
a unidade da coisa como um todo está ancorada no próprio tempo cósmico,
que perpassa verticalmente todas as esferas de lei. Esse é o caso com as
coisas naturais.
Com as coisas culturais, a situação é um pouco diferente. É verdade,
elas também têm uma função diretiva e qualificante que dá direção ao
processo de desvelamento dentro da coisa, direcionando todas as funções em
direção a um fim específico, expressando dessa forma a estrutura supra-
funcional da coisa de uma maneira única em cada um de seus aspectos. A
diferença, contudo, entre as coisas culturais e naturais, é que, nas primeiras, a
função qualificante não é a função-sujeito superior da coisa, mas uma das
funções-objeto.
Qual? Depende. Ela é determinada pela natureza ou caráter da coisa. A
função diretiva de um artigo assim chamado semimanufaturado, que serve
como material para a manufatura de vários produtos, é a função-objeto
histórica. A destinação de uma tábua, por exemplo, reside na possibilidade
dela ser transformada num produto finalizado. A função qualificante de uma
pintura é sua função-objeto estética; a de uma casa é a sua função-objeto
social em associação; a de um produto comercial, sua função-objeto
econômica; num tribunal, a do punhal com o qual um assassinato foi
cometido, sua função-objeto jurídico; a de um objeto herdado que temos em
alta conta, sua função-objeto ética; e a do edifício da igreja e do pão do
sacramento, a função-objeto de fé. Uma diferença adicional entre tais coisas
culturais e naturais é que — embora a função guia desempenhe um papel
importante no processo de desvelamento interno de ambos — na coisa
cultural há ainda uma função secundária a observar que desempenha um
papel muito especial em sua estrutura. Essa segunda função é sempre a
função-objeto histórica — o poder formador de cultura. Chamamos isso de
função fundante da coisa, pois esta coisa objetiva deve sua existência ao
poder de formação cultural de um homem que age sobre a base da
plasticidade objetiva do material que, por sua vez, se presta à produção da tal
coisa chamada cultura.
Ora, a “qualidade de coisa” desse objeto cultural consiste na unidade
indissolúvel entre suas funções qualificante e fundante. Essa estrutura da
coisa liga todas as suas funções na unidade individual supra-modal (unidade-
coisa), que também está ancorada no tempo cósmico.
16. A estrutura das relações sociais
Devemos dar atenção agora ao conceito filosófico das relações sociais.
[11]
Não podemos senão apontar as principais características. As relações
sociais constituem aquelas associações de pessoas que, sob a base de certa
estrutura de autoridade, estão unidas numa vida comunal única, tais como
casamento, família, Estado, igreja, escola ou clube. Clã e raça estão ambos
unidos no sangue e assentam-se, desse modo, sobre um fundamento
biológico. O clã é a comunhão entre pessoas consanguíneas contemporâneas;
enquanto raça representa essa consanguinidade na linha sucessiva e histórica.
Esses dois não são relacionamentos (verbanden), mas comunhões
(agrupamento), pois carecem de uma estrutura de autoridade. Ambos estão,
contudo, intimamente conectados com o relacionamento familial.
A filosofia não cristã sempre deu uma explicação dupla para a estrutura
organizacional da vida social humana. Por outro lado há a visão de
universalismo e, contra esta, a visão de individualismo. Devemos discutir
brevemente cada um desses pontos de vista que ainda estão em voga hoje.
O universalismo é a visão que sustenta que, dentre todos os
relacionamentos sociais, um é central, e, como o objetivo da vida, esse
relacionamento superior toma todos os outros como meios e partes
subservientes. Essa relação superior pode ser o Estado (socialismo estatal) ou
a igreja (tomismo).
Por outro lado, o individualismo procede da autossuficiência do
indivíduo, do homem divorciado de todas as relações da vida. Uma relação
não é nada senão uma união relativamente arbitrária de tais indivíduos
soberanos que voluntariamente abandonam parte de sua soberania em prol de
um propósito comum (humanismo liberal).
Nenhum argumento detalhado é necessário para demonstrar que um
calvinista não pode satisfazer-se com nenhuma dessas visões. Ele rejeita
inteiramente todo individualismo, já que este nega de fato a realidade das
relações; e, ao divorciar-se a personalidade humana de sua raiz religiosa, ele
o absolutiza em sua auto-determinação soberana. Mas ele também rejeita o
universalismo, pois, a despeito de seu reconhecimento da realidade das
relações sociais, ele falha em reconhecer suas diferenças, seus tipos
estruturais, como fundamentadas na ordem cósmica divina, e porque busca
explicar todas as associações humanas por meio da fórmula biologicamente
derivada do todo e suas partes. Aqui a natureza única das relações sociais é
ignorada e a relação superior é idolatrada.
A visão filosófica calvinista das relações sociais da vida humana se
resume a isso. Todo tipo de relação, família, Estado ou igreja, tem seu
próprio caráter, seu próprio princípio estrutural. Esse princípio estrutural é de
caráter supra-modal, isto é, ele não está confinado a um aspecto modal
específico; antes, abordamo-lo por meio da conexão indissolúvel entre as
funções qualificante e fundante. Esse princípio estrutural se expressa de
maneira única nos vários aspectos da relação. Ele também carrega um caráter
normativo. É necessário que se concretize (ou realize) universalmente nas
relações sociais. Cada relação, enquanto sujeito, está ela mesma sujeita ao
princípio estrutural normativo. Nenhuma relação terrena persiste
eternamente. Portanto, a individualidade de cada relação enraíza-se dentro do
horizonte do tempo cósmico.
Cada tipo de relacionamento tem uma função qualificante que, dentro
do processo de desvelamento interno, dirige todas as funções de uma forma
única em direção a um objetivo específico por meio do qual todas as funções
estão ligadas numa unidade estrutural interna. Cada relação social, em relação
íntima com sua função qualificante, tem também uma função fundante da
qual sua existência depende. Essas duas funções podem mudar de acordo
com a necessidade dos vários princípios estruturais.
Assim, a função qualificante do casamento é o amor, uma função ética,
embora o casamento em si esteja fundado no aspecto biológico do intercurso
sexual. Na família essas funções são as mesmas. A família nasce do
casamento. Ela é qualificada pelo amor e se assenta na relação sanguínea.
É diferente com respeito ao Estado. A função qualificante é a jurídica,
a da retribuição, ao passo que a função fundante deve ser buscada no
[aspecto] histórico, no poder de formação cultural da espada.
Por outro lado, a função qualificante da igreja é a fé — fé na revelação
divina. Sua função fundante é o [aspecto] histórico, baseado no poder de
formação cultural da Palavra divina.
E novamente há uma diferença com respeito à escola. Suas funções
qualificantes e fundantes residem ambas no histórico. Ela está fundada no
poder formador do conhecimento, e seu objetivo é transformar, por meio do
conhecimento, os alunos em adultos capazes de participar na tarefa cultural.
Sociedades ou clubes (verenigingen) são todos fundados sobre o
aspecto histórico. Elas têm origem no processo histórico do desenvolvimento
da humanidade, e são variavelmente qualificadas de acordo com sua natureza
e propósito. Um clube para o propósito de sociabilidade é caracterizado por
uma diretiva social; um clube de negócios é economicamente qualificado,
enquanto cada organização que une pessoas da mesma fé para um propósito
especial — por exemplo, uma sociedade escolar cristã, uma associação
política cristã, uma sociedade jovem cristã, ou um sindicato cristão — tem a
fé como sua função qualificante.
Os princípios estruturais de todas essas relações agora demonstram
uma diferença dupla da estrutura de individualidade das coisas. A primeira
diferença consiste no fato que as relações sociais têm uma função-sujeito em
cada aspecto. Elas são completamente subjetivas e não tem nenhuma
estrutura objetiva. Cada relação consiste de seres humanos, e os seres
humanos são sujeitos em todas as esferas de lei. Assim também os
relacionamentos.
Embora as próprias relações sociais não tenham funções-objeto, isso
não significa que não estejam interconectadas com o “mundo externo” por
meio da relação sujeito-objeto. Por exemplo, se uma família vive numa casa,
a função-sujeito social das relações familiar está entremeada com a função-
objeto social da casa. O território de um Estado tem uma relação objeto
espacial para com a função-sujeito espacial do Estado.
A partir de sua estrutura subjetiva, segue-se que a relação social deve
continuamente cumprir uma tarefa normativa. Os laços familiares entre os
membros devem ser mantidos. Ao manter uma consciência na igreja, os
membros da igreja devem manter a existência da igreja, e se conduzirem
como membros eclesiásticos fiéis. Se essa tarefa é descumprida, então as
relações sociais se degeneram e por fim se rompem mediante dissolução.
A segunda diferença entre a estrutura das relações e aquela da coisas
concretas é uma natureza diferente. Vimos que a unidade específica das
coisas concretas estava sob controle de sua estrutura de lei conforme está
enraizada no horizonte do tempo cósmico. Isso é verdade também, como já
afirmado, com respeito às relações sociais. Pois cada relação é transitória no
tempo, assim como coisas concretas são fugazes. O casamento, a família, a
igreja e o Estado não são eternos.
E, todavia, as relações sociais têm uma raiz mais profunda e religiosa
porque o homem, em distinção das coisas, tem uma fonte religiosa de vida.
Cada relação é uma expressão temporal de, e é finalmente determinada pela
comunhão religiosa de seres humanos. Essa comunhão religiosa dos homens
é uma renovação pactual que existia em Adão originalmente, tendo sido em
seguida destruída pela queda, sendo, porém, restaurada, por fim, pela graça
em Cristo. Por causa da queda, aliás, por causa da obra divina de recriação,
uma antítese surgiu nessa comunhão pactual profundamente religiosa dos
homens. Uma parte permaneceu na apostasia de Adão, enquanto a outra parte
é graciosamente restaurada, por Cristo, à relação de amor para com Deus. Eis
aí a origem do conflito irreconciliável entre o reino das trevas e o reino de
Deus.
Essa comunhão religiosa de homens, seja em apostasia ou em
regeneração, imprime uma marca sobre todas as relações sociais. Uma
família que vive pela fé na Palavra de Deus é uma revelação temporal do
corpo de Cristo, enquanto outra família, por conta de sua incredulidade,
continua a carregar a marca da apostasia e é uma expressão temporal do reino
das trevas.
Assim se dá com todas as relações sociais. Aqui cada relação que se
sujeita pela fé a Cristo e o serve tem um destino e influência que ultrapassa
todos os fins temporais, ao passo que cada relação que é estranha a ele não
verá uma aurora; pelo contrário, mantém seus membros em trevas eternas.
Dessa forma, tudo de nossa vida, tanto pessoal como social,
pertencendo a várias relações sociais, existe sub specie aeternitatis, sob o
aspecto da eternidade.
17. A sociedade
Igreja, Estado e sociedade — esses três são frequentemente
mencionados seguida e conjuntamente, como se fossem três iguais.
Todavia, eles não são, de modo algum, iguais no mesmo plano. Pois a
igreja e o Estado são relações que carregam um caráter institucional. Isto é,
elas não devem sua existência à iniciativa humana. Elas passaram a existir
por ordenança divina, assim como o casamento e a família. A existência de
cada pessoa é em certo sentido determinada por tais relações institucionais,
independentemente de sua própria vontade. Cada uma, sem tê-lo desejado,
nasceu de certo casamento, numa determinada família, e a partir do
nascimento pertence a determinado Estado e igreja.
Mas o que é a sociedade (maatschappij)? Em todo caso, ela não é
institucional, embora se refira a associações humanas. Poderíamos chamá-la
de a maior esfera da liberdade pessoal, na qual os homens podem se associar
como iguais, e estabelecer conexões uns com os outros e se organizarem
livremente, mas tudo isso fora da esfera dos relacionamentos institucionais.
Na esfera da sociedade encontramos dois tipos principais que merecem nossa
atenção: os contatos da sociedade (maatschappelijke betrekkingen) e as
organizações da sociedade (maatschappelijke verbanden).
Na sociedade devemos distinguir entre contatos pessoais entre homens
como iguais e os contatos entre vários relacionamentos sociais
(samenlevingsverbanden), cada um soberano em sua própria esfera. Aos
contatos societários pessoais pertencem aqueles do comprador para com o
vendedor; de um homem para com seu vizinho, conhecido ou colega; do
médico para com seu paciente; de alguém caminhando junto a uma pessoa
com quem se encontrou.
Mesmo esses contratos societários livres têm seus próprios princípios
estruturais, que são determinados pela conexão indissolúvel entre as funções
qualificadoras e fundacionais e que são expressos de uma maneira única em
cada um dos aspectos. Todas essas relações descansam sobre um fundamento
histórico, pois se originam no poder humano para formar cultura. Eles
passam a se desenvolver na história somente em certo nível de cultura. Tais
relações societárias livres não existiam ainda em povos primitivos. A função
diretiva de um contato societário livre varia de acordo com sua natureza. A
relação do comprador para com o vendedor é economicamente qualificada;
aquela de um homem para com seu vizinho é socialmente qualificada; aquela
entre dois colegas é caracterizada historicamente como de dois homens que
se entregam à mesma tarefa cultural.
Em todas essas formas individualistas de contatos sociais, os
indivíduos não estão unidos permanentemente, mas retém sua liberdade
pessoal um para com o outro. Eles têm apenas contato incidental um com o
outro, um contato que não se assenta sobre a base de uma organização. Esse
contato sempre consiste da relação sujeito-sujeito.
Há também contatos societários livres entre vários relacionamentos
sociais, tais como aquele entre duas ou mais famílias, entre Estado e igreja ou
entre vários negócios. A natureza de tais contatos podem variar. Quando uma
grande amizade existe entre duas famílias, seus contatos de sociedade mútua
são determinados pelo aspecto ético de amor. Mas se essas famílias se
associam simplesmente como vizinhos, então esses contatos são
caracterizados pelo aspecto social. E quando há contato entre vários negócios,
esse contato não precisa per se conter um caráter econômico, pois ele pode
simplesmente ser socialmente qualificado.
É possível também que os contatos societários entre esses
relacionamentos sociais tenham uma forma organizada permanentemente, por
exemplo, quando várias escolas se organizam numa união escolar. Então os
contatos societários livres transformam-se num relacionamento societário.
Por essas organizações societárias entendemos aqueles
relacionamentos que são caracterizados por uma estrutura de autoridade e que
vieram à existência pela união livre de indivíduos ou relacionamentos em
busca de um objetivo comum. Esse objetivo determina a natureza da
organização que há de ser formada. Aqui estão todos os tipos de negócios e
sociedades (verenigingen), que são sempre historicamente fundamentadas e
são variavelmente qualificadas como vimos acima.
O que é verdade dos relacionamentos sociais (família, igreja, Estado),
aplica-se também a esses contatos societários (comprador e vendedor) e
organizações societárias (união escolar). Seus princípios estruturais são
normativos e supramodais; eles se expressam singularmente em cada aspecto;
sua existência deve ser continuamente realizada de acordo com a norma do
princípio estrutural; sua individualidade subjetiva está enraizada no tempo
cósmico, por meio do qual sua identidade é determinada; eles têm uma raiz
religiosa que ou está divorciada da Palavra de Deus e de seu culto, ou então é
renovada para que busquem servir aquele que é exaltado como Rei do
mundo.
18. As inter-relações
A criação de Deus é uma unidade. Essa unidade pressupõe a existência
de muitas criaturas individuais que estão em contato umas com as outras de
várias formas e estão unidas em várias relações.
A filosofia deve dar conta dessa unidade cósmica que está
fundamentada na vontade do Criador. Mas, visto que a reflexão filosófica
nunca pode ir além do horizonte temporal, a unidade religiosa mais profunda
da criação se encontra além do seu alcance.
Essa unidade básica é a relação pactual entre Deus e humanidade —
primeiro em Adão e mais tarde em Cristo — em que o cosmos não-humano
foi incluído como o campo mais amplo onde o homem, em seu tríplice ofício
como sacerdote, profeta e rei, deveria executar o mandato dado por Deus para
dominar o mundo.
Já observamos algumas relações temporais entre as criaturas. Temos
visto como o tempo cósmico interliga e coere os vários aspectos.
Assinalamos também as conexões mútuas entre as esferas de lei na
antecipação e na analogia, as relações entre sujeito e objeto, e também as
relações entre sujeitos humanos tanto nos relacionamentos sociais como em
seus contatos na sociedade.
Contudo, devemos investigar ainda um tipo específico de relação entre
estruturas individuais que é chamada interrelação ou encapse. O que se
pretende dizer com isso? Interrelação significa uma conexão de estruturas em
que estas retêm sua própria esfera de soberania. A interrelação, portanto, não
denota a relação de uma parte para com o todo (por exemplo, de um
fragmento de pedra para com a rocha da qual se desprendeu); ou de um
negócio para com toda a indústria; ou de uma província para com o reino.
Pois na relação de uma parte para com o todo, a parte tem a mesma
qualificação que o todo ao qual ela pertence.
Mas onde a interrelação está presente, a independência única e
intrínseca das estruturas que o compõe é inteiramente mantida. Encontramos
tais interrelações entre várias coisas concretas, também entre relacionamentos
sociais e coisas concretas; e finalmente há também interrelação entre
estruturas mútuas de vida comunitária.
Citemos primeiramente alguns exemplos de interrelação entre coisas
concretas. Numa pintura a arte é trabalhada no material a partir do qual é feita
— lona, tinta e tela. O material é de uma estrutura sujeito-física, enquanto a
pintura é de uma estrutura objeto-estética. Porque a obra de arte está
fundamentada no material físico e não vice-versa, falamos aqui de uma
interrelação fundante unilateral. As interrelações entre plantas ou animais e
os elementos físicos que são necessários para construir os organismos são do
mesmo tipo.
Outro exemplo de interrelação é aquele entre um pássaro e seu ninho, o
caracol e sua morada, a tartaruga e seu casco. Um animal é um sujeito
psicologicamente qualificado; enquanto o ninho, o casco do caracol e da
tartaruga são objetos psicológicos. Aqui temos uma interrelação encáptica
entre sujeito e objeto.
A interrelação entre um relacionamento social e uma coisa concreta é
vista na conexão entre um negócio diário e as vacas que são parte dele, ou a
relação de uma congregação para com seu edifício, ou de uma família para
com a casa na qual vivem. Esse tipo de interconexão é a relação sujeito-
objeto novamente.
Na categoria final — interconexão entre as estruturas mútuas de vida
comunitária — nosso primeiro exemplo é a conexão entre os relacionamentos
sociais e os contatos societários. Aqui há reciprocidade ou uma assim
chamada encapse correlativa. Isto é, os relacionamentos sociais e os contatos
societários existem somente em reciprocidade um com o outro. A existência
humana nunca pode ser completamente absorvida nos relacionamentos
sociais (igreja e Estado, por exemplo). Ela precisa da suplementação da
atividade pessoal livre ao estabelecer comunicação com outros. Por outro
lado, contudo, a liberdade do homem na sociedade deve ser limitada por sua
atividade nos relacionamentos sociais.
Outro exemplo é a interconexão entre os contatos e as organizações da
sociedade. Aqui temos uma interrelação fundante unilateral, pois as
organizações são possíveis somente sob a base dos contatos na sociedade.
Um terceiro exemplo é a interrelação de um Estado e um negócio que o
governo tomou a seu encargo (e.g., o sistema postal). Embora o Estado seja o
empreendedor, todavia, o negócio retém suas características econômicas. Isso
é um tipo de interrelação correlativa.
Um exemplo final é a relação entre o Estado e todas as estruturas de
vida corporativa encontradas dentro de seu território. Nesse caso falamos de
uma interrelação territorial. Aqui o caráter singular de cada estrutura da vida
corporativa é retido, enquanto o Estado tem o dever de zelar para que os
interesses de um relacionamento não sejam danosos ao interesse geral.
19. Corpo e alma
Um capítulo importante na filosofia é a antropologia, o estudo da
estrutura do ser do homem. A questão da relação do corpo e alma dentro da
unidade do nosso ser exige nossa atenção, de modo primordial. Não há
podemos encontrar nenhuma verdade sobre esse tema à parte da luz das
Sagradas Escrituras. Afora a Palavra de Deus, todo tipo de erro vem à tona,
conduzindo a dificuldades insolúveis.
O que a Bíblia diz sobre o ser do homem? Ela nos diz que nossa
existência consiste do aspecto “dois-em-um” da alma e corpo. As Escritura
Sagradas frequentemente designam a alma de coração. Trata-se do ponto de
concentração religioso mais profundo de todas as nossas funções temporais,
que, unificadamente, formam o corpo temporal.
É impossível uma ciência ou filosofia da alma. O conhecimento
científico da alma não existe. Pois toda ciência é limitada ao modo temporal
do ser da criatura. O que reside além da ordem temporal cósmica dos
aspectos está fora da esfera da reflexão científica. O que frequentemente tem
sido chamado “ciência da alma” é em geral reflexão a respeito da estrutura
das funções superiores do corpo. Seja qual for a verdade que possamos obter
concernente à alma do homem, ela nos é dada na Palavra de Deus: tudo o que
ultrapassa isso é especulação e fruto de fantasia orgulhosa. Qualquer conflito
com a informação presente na Bíblia é falsidade.
Na alma toda a nossa existência temporal está concentrada num ponto.
Nela o homem experimenta sua comunhão religiosa mais profunda na
unidade da raça humana. Também na alma está a raiz criatural da antítese
entre a parte da humanidade que continua na apostasia de Adão e a outra
parte que é renovada como o corpo de Cristo, o Salvador, enchido com o
Espírito, e unido ao Pai. Aí no coração humano faz-se as escolhas em relação
a Deus: uma escolha contra o Senhor em favor de um ídolo, ou então a
escolha amorosa de servi-lo de todo ser, guardando a aliança e cumprindo o
ofício tríplice do homem.
A vida da alma do homem se desdobra nas quatorze facetas das
funções-sujeito temporais que são refratadas pelo prisma do tempo cósmico.
Esse tessitura completa de funções é o corpo humano, que é uma totalidade
complexa.
Esses fundamentais da antropologia, que são basicamente bíblicos, são
absolutamente irreconciliáveis com as visões antropológicas da filosofia não
cristã e sua aliada, a filosofia da síntese. Essa filosofia geralmente advoga a
visão de que as três ou quatro funções humanas mais baixas estão ligadas
num composto que é chamado a substância do corpo humano, enquanto as
funções temporais remanescentes formam pois a substância complexa da
alma.
Há inúmeras objeções a serem apresentadas contra essa concepção
atual. Em primeiro lugar, não é biblicamente justificado falar de “substância”.
“Substância” na verdade significa aquilo que existe por si só, e repousa em si
mesmo — um pensamento que não pode ser harmonizado com a nossa fé no
poder todo-poderoso e onipresente de Deus pela qual ele sustenta todas as
coisas da criação. A filosofia calvinista não precisa desse conceito de
substância. Pois à parte da objeção acima, a filosofia calvinista não dá conta
da individualidade das criaturas por meio de uma filosofia da substância, na
qual a diversidade da criatura é comprimida num padrão de duas substâncias
(substância material e espiritual). A filosofia calvinista faz plena justiça à
singularidade de ambas as coisas e aos relacionamentos em sua concepção da
individualidade estrutural.
Em segundo lugar é feito injustiça à universalidade do corpo humano
ao reduzi-lo a um complexo das funções mais baixas, enquanto o restante das
funções do corpo é elevado à alma. Frequentemente isso significa que a
função do pensamento lógico é declarada como sendo absoluta e como a
função principal da alma, de forma que todas as outras “expressões da alma”
são expressões dependentes do pensamento.
Em terceiro lugar é difícil saber o que deve ser feito com a função
biológica. Alguns a incluem no complexo “corpo” substancial, ao passo que
outros a incluem no complexo “alma” substancial. Em quarto lugar a questão
da relação do corpo e da alma torna-se irrespondível.
E finalmente obstrui-se dessa forma o caminho para um entendimento
do que a Palavra de Deus revela no tocante à estrutura básica do ser do
homem, na qual o coração é o ponto de concentração religioso e supra-
temporal da vida.
20. A estrutura do corpo
Devemos adicionar algo ao que já foi dito sobre o corpo humano. Já
sabemos que o corpo não é uma substância nem o complexo das funções
humanas mais baixas. Ele é a soma de todas as nossas funções que procedem
do coração e são de natureza temporal. Mesmo a fé é uma função temporal
que procede do coração. Pois a Escritura diz “com o coração se crê para a
justiça” (Rm 10.10a).
Ora, a estrutura total do corpo humano na coerência de todas as
quatorze funções não é uma estrutura simples, mas complexa. Isso implica
que na unidade do corpo humano várias estruturas estão interrelacionadas.
Trata-se de uma interrelação unidirecional.
Quais estruturas estão conectadas na unidade do corpo humano?
1. A estrutura corporal física, na qual as três primeiras funções-sujeito estão
unidas numa estrutura individual. Essa é a estrutura dos elementos químicos
físicos que são necessários para o desenvolvimento orgânico do corpo.
2. A estrutura corporal biológica do organismo vivo que se baseia na e não
pode existir sem a estrutura física. O sistema nervoso autônomo, que não está
sob o controle da vontade humana, desempenha um papel nessa estrutura
biológica.
3. A estrutura corporal psicológica da vida sensorial do sentimento que está
fundamentada nas duas estruturas acima. Aqui o sistema nervoso animal, que
é obediente à nossa vontade, desempenha um papel importante no controle do
processo emocional.
4. O assim chamado ato-estrutura do corpo pelo qual todas as funções pós-
psicológicas são unidas e dentro das quais as três formas básicas de atos
humanos acontecem — as do conhecimento, da imaginação e da vontade.
Esse ato-estrutura reside nas três estruturas acima e é exclusivamente
humano, pois não é encontrado na vida animal. A estrutura total do corpo
humano na interrelação fundacional unidirecional das várias estruturas do
corpo é caracterizada pelo ato-estrutura. Por essa razão o corpo animal não
difere do corpo humano somente em partes, de maneira que o corpo animal
não tem nenhum ato-estrutura como o tem o corpo humano, embora em
outras partes eles sejam semelhantes. Eles diferem em todos os aspectos. A
vida emocional dos humanos e dos animais é de uma natureza completamente
diferente porque a vida emocional humana está aberta a, e é direcionada,
pelas funções pós-psicológicas, que unificadamente formam o ato-estrutura.
Visto que o corpo humano tem seu centro nas profundezas religiosas
do coração, o corpo do homem que se tornou um membro do corpo de Cristo
pela graça regeneradora pode tornar-se o templo do Espírito Santo: “Porque
fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo”
(1Co 6.20).
21. Os atos humanos
Acima vimos que o ato-estrutura do corpo humano é único. Devemos
considerar agora a atividade que é determinada pelo ato-estrutura do corpo do
homem. Em primeiro lugar, devemos responder à pergunta: O que devemos
entender por atos humanos? Não seria correto afirmar que tudo o que o
homem faz pode ser chamado um ato. Nas atividades do homem, devemos
sempre distinguir atos de operações. Se entramos numa loja e compramos
algo, isso é uma operação. Cada operação é um feito humano que tem
resultados diretos na realidade objetiva de forma que alguma mudança
ocorre. Dessa forma, quando compramos algo, o artigo comprado muda de
dono, embora ao mesmo tempo uma quantidade razoável de dinheiro também
muda de mãos na direção oposta.
Se retivermos essa ilustração de uma compra, todas as operações
humanas são resultado de atos prévios. Por que compramos algo? Pois
desejamos esse artigo. Mas não o desejamos a menos que tenhamos
conhecimento dele em algum grau e nossa imaginação tenha sido direcionada
para ele. Em outras palavras, cada operação é preparada para e gerada pelos
atos de conhecimento, vontade e imaginação.
Por ato então entendemos aquela atividade interior do homem pela
qual, de maneira imaginada, ele se lida, em suas funções pós-psicológicas,
com a realidade,.
Olhar para algo então é um ato. Pois ver não é pós-psicológico, mas
psicologicamente qualificado. Mas os seguintes são atos: pensar sobre algo,
falar sobre ele, trabalhar por ele, amá-lo, aferir o seu valor, julgar suas
qualidades estéticas e orar por ele. Nesses atos estamos imaginativamente
trabalhando com a realidade. Isto é, estamos engajados com ela em nosso
espírito, que é direcionado para a realidade. Mas não fazemos nada com essa
realidade. Ela não passa por nenhuma influência de nossos atos.
Tal ato-vida é normativo. Ele se passou sob a influência de nossa
atividade pós-psicológica, que se exerce sob a validade de normas, nas quais
a vontade de Deus para nossa vida é expressa. Dessa forma, um ato não é
uma reação induzida pela natureza, mas uma atividade responsável que pode
ser boa ou má, que deve ser promovida ou impedida. Dessa forma o
provérbio “o pensamento é livre” é absolutamente errado.
Atos são realizados pela estrutura corporal mais alta do homem. Mas
em sua execução eles não estão limitados às funções sujeito pós-psicológicas.
Não, eles funcionam em todos os aspectos de nossa existência temporal. Um
ato de fé, por exemplo, tem tanto analogias psicológicas como pré-
psicológicas — pense na alegria da fé ou no fato de que a fé é possível
somente sob o fundamento de nossa vida biológica.
Qual é agora a fonte mais profunda do ato-vida do homem? Essa é a
alma, o centro religioso de existência. O coração é o estímulo de nossos atos.
Dele nossas orações, desejos e pensamentos se acumulam e sob a direção do
ato-estrutura do corpo se expressam em todos os aspectos de nossa existência
temporal.
De tudo isso segue que um ato não tem nenhuma qualificação uniforme
em uma das funções. Pois nosso espírito é completamente livre em seu ato-
vida. Um ato de conhecer nem sempre precisa ser analiticamente qualificado.
Pelo contrário, o conhecimento pode ser qualificado pela fé, vale dizer, o
conhecimento espiritual; o conhecimento comercial é econômico; o
conhecimento dos homens é socialmente qualificado. As características que
um ato possui são determinadas pela estrutura da comunidade humana dentro
da qual tal ato ocorre. Quando uma criança deseja agradecer aos seus pais
com um presente, então esse ato da vontade é de natureza ética. Mas se essa
mesma criança deseja fazer algo para Deus, então esse ato de vontade é
qualificado pela fé.
Finalmente deve ser observado que os três tipos de atos — conhecer,
desejar e imaginar — nunca são completamente isolados, mas sempre
amalgamados entre si.
Dessa forma Deus equipou o homem, a mais sublime criatura, com
inumeráveis dons e poderes. Quando, com um novo coração, o homem usa
esses dons para servir ao seu Criador, aquele que se tornou novamente filho
de Deus por meio de Cristo demonstra algo das riquezas da imagem de Deus
que somente chegará ao seu completo desvelamento na inteireza da nova
humanidade, quando cada um, dos maior ao menor, conhecerá a Deus.
22. O pecado
A filosofia calvinista será incompleta caso não dê conta do terrível fato
do pecado que penetrou em todo o mundo e em toda a humanidade.
Já discutimos os atos e operações do homem. Ambos os tipos de
atividade são normativos, isto é, neles o homem pode se conformar à lei ou
transgredi-la. Se do seu coração ele se conforma à lei, então é renovado de
acordo com a imagem de Cristo, o que o Catecismo de Heidelberg chama a
ressurreição do novo homem. Mas se continuamente transgride a lei, ele
corrompe ainda mais a imagem de Deus na qual fora criado.
O que dizer sobre o pecado? Em primeiro lugar devemos distinguir
dois elementos no pecado. O pecado é de fato sempre a transgressão da lei de
Deus, mas isso pode ocorrer em dois níveis. Primeiro há pecado no nível mais
profundo. Nesse nível o pecador pode transgredir a lei religiosa fundamental
de todo o seu ser, que demanda que ele ame e sirva ao Senhor com todo o seu
coração. Essa é a apostasia radical, a defecção da nossa alma, nosso ser mais
íntimo, e portanto uma deserção de toda a pessoa em relação ao Deus vivo.
Não importa o que uma pessoa faça, não importa quão boas suas ações
possam parecer exteriormente, ela não pode agradar a Deus. Pois no coração
há idolatria, uma busca e culto a ídolos.
Por causa da relação pactual com Adão, a vida de todo mundo é agora
por natureza direcionada para a esquerda.[12] Somente por meio da graça
renovadora de Deus em Cristo Jesus essa defecção pode ser curada e em
princípio restaurada. Então aprendemos novamente a amar o Senhor com
todo o nosso coração e em princípio a nova vida inteira é direcionada para a
direita novamente. Então buscamos honrar a Deus e regozijar em suas leis.
Mas há outro tipo de pecado, nomeadamente, a transgressão da lei
temporal, modal. Tal pecado é uma ação anti-normativa nas esferas de lei
pós-psicológicas. No lugar da fé na Palavra de Deus há incredulidade. Ódio
substitui o amor. Erramos. Estimamos o que é feio e produzimos o que não é
harmônico. Cedemos à extravagância. Quebramos as regras de etiqueta.
Pecamos contra leis linguísticas. Agimos a-historicamente por causa de um
espírito reacionário ou revolucionário. Ao pensar cometemos erros.
Há uma combinação estranha entre esses dois níveis de pecado.
Quando a apostasia religiosa é unida com a desobediência modal, então a
imagem de Deus no homem é depravada ao extremo, e a vida de uma pessoa
é direcionada totalmente contra a vontade de Deus. As palavras da Escritura
vêm à mente; “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda
sendo imundo...” (Ap 22.11a). Aqui a vida humana assume uma
profundidade satânica e uma tendência demoníaca. É nesse espírito que o
“homem do pecado” aparecerá um dia.
É uma sorte, contudo, que, por conta da bondade geral de Deus, uma
obediência modal ainda é possível na vida apóstata que se afastou
religiosamente dele. Nesse ponto as virtudes dos incrédulos reluzem. Aqui
encontramos a bondade civil do ímpio. Dessa forma, a vida na terra numa
sociedade apóstata é ainda suportável, e as bênçãos ainda são desfrutadas sob
o rigor de um ideal de vida humanista.
Por outro lado, na vida do regenerado cuja alma está ligada a Deus em
Cristo, há tanto a possibilidade como a realidade da desobediência modal. É
nesse ponto que nos deparamos com os pecados dos santos, à parte do fato de
que, mesmo no mais profundo do coração, eles não são perfeitos, a despeito
de neles habitarem o Espírito Santo.
O pecado penetra mesmo nas esferas da vida pré-analíticas não-
normativas. É possível para o pecador usar os dados naturais de uma forma
equivocada. Psicologicamente, por exemplo, ele pode encontrar prazer no
mal e sexualmente empregar suas funções biológicas a serviço do pecado.
De fato, o poder do pecado não está limitado à vida subjetiva dentro
das esferas de lei, mas também diz respeito ao lado-lei dos aspectos
normativos sempre que o postular de princípios não é feito em obediência à
Palavra de Deus, por exemplo, quando os pais exigem algo dos seus filhos
que não seja para a glória de Deus.
Mas um dia na nova terra, o poder da injustiça será totalmente
erradicado da vida dos filhos de Deus. Então não apenas haverá perfeição
religiosa a serviço de Deus de todo o coração, mas também obediência
completa às leis modais — pelo menos na medida em que pudermos ainda
tratar dessas coisas lá —, quando a lei em sua plenitude será novamente
escrita no coração do redimido.
23. Teoria do conhecimento
Um sistema filosófico é incompleto caso não inclua uma
epistemologia. A ciência e a filosofia são elas mesmas o fruto do pensamento
teórico, de forma que uma teoria filosófica do conhecimento é na verdade
autoconsciência filosófica.
O homem adquire conhecimento por meio dos atos intelectuais. O
processo de conhecer tem o conhecimento como resultado, e, por
conhecimento, queremos dizer a posse da verdade. Por meio do
conhecimento obtemos tamanho insight da realidade que podemos considerá-
lo como sólido e certo.
No tocante ao conhecimento em si, isto é, a atividade do homem nos
atos intelectuais, é necessário distinguir entre conhecimento pré-teórico (ou
ingênuo) e conhecimento teorético. A filosofia não cristã em geral coloca
uma barreira entre esses dois e forma uma teoria que desqualifica o
conhecimento ingênuo em muitos respeitos como falso e imperfeito,
enquanto o conhecimento teorético é idolatrado como a certeza final e mais
sublime da vida.
A filosofia cristã rejeita tudo isso e dá uma visão completamente
diferente das relações mútuas desses dois tipos de conhecimento. Ela começa
com o fato que as duas espécies de conhecimento são religiosamente
orientadas, pois têm seu ponto de partida no coração humano. Isso significa
que todo conhecimento parte de um pressuposto religioso e participa de uma
direção religiosa para Deus ou para longe dele — direção esta que é
determinada na alma. Em outras palavras, o conhecimento como tal nunca
pode ser independente. Ele não nos oferece certeza absoluta para a nossa
existência.
O “conhecimento puro”, livre de determinações religiosas,
simplesmente não existe. Trata-se de autoengano. É uma posição acrítica que
recusa penetrar nas raízes mais profundas de nossa vida-ato. Ela abriga uma
atitude preconceituosa e incrédula que idolatra o conhecimento.
Além disso ambos tipos de conhecimento concordam nisto: que eles
visam a posse da verdade em relação à realidade.
Mas eis agora a diferença. O conhecimento ingênuo é indizivelmente
mais rico que o conhecimento teórico. Seu campo é tão amplo como a própria
criação de Deus. Não importa quão longe o conhecimento teórico possa
chegar, ele nunca pode alcançar a universalidade do conhecimento ingênuo.
Por quê? Não apenas porque a aceitação das Escrituras divinas em fé capacita
o conhecimento ingênuo a cruzar a fronteira do que é criado, algo impossível
ao conhecimento teorético, mas também porque o conhecimento ingênuo se
direciona para a realidade individual plena, enquanto o conhecimento
teorético deve abstrair-se do individual e ocupar-se com a estrutura das
coisas. Conhecer pessoas individuais em suas características pessoais
singulares, por exemplo, jamais pode ser a tarefa de um empreendimento
científico.
Uma segunda diferença reside no método. O conhecimento teórico é de
natureza abstrata. O conhecimento científico se direciona a um aspecto
específico da vida em abstração a todos os demais aspectos. Por outro lado,
essa abstração é estranha ao conhecimento ingênuo. Ele vive na plena
realidade de todos os aspectos. Dessa forma, a terna união com a vida é
mantida no conhecimento ingênuo.
Outra diferença é que o ato-conhecimento teórico é sempre
analiticamente qualificado, ao passo que o ato-conhecimento ingênuo pode
assumir todas as qualificações pós-psicológicas possíveis; e, dentro dele,
temos o conhecimento histórico, como o conhecimento que um trabalhador
tem do seu ofício; o conhecimento linguístico que nos capacita a expressar-
nos em palavras; o conhecimento social que adquirimos em associação com
pessoas e coisas; o conhecimento estético, conhecimento da fé, etc.
Eles diferem também nisto: que o conhecimento ingênuo está
fortemente ligado e edificado sobre a percepção sensorial de coisas concretas,
enquanto o pensamento científico abstrai-se disso e se desenvolve livremente
sob a direção de aspectos pós-analíticos. Por causa disso o conhecimento
teórico é um conhecimento aprofundado. Finalmente, o conhecimento
ingênuo não é sistemático, enquanto a ciência continuamente busca
sistematizar e completar o seu conhecimento.
Mas essas diferenças entre os dois tipos de conhecimento não levantam
uma barreira entre eles. Antes há uma afiliação, pois o conhecimento
teorético repousa sobre o conhecimento ingênuo. Se o conhecimento ingênuo
não tivesse nenhuma informação dos aspectos diferenciados da realidade,
então o homem da ciência não poderia abstrair um aspecto a fim de investigá-
lo sistematicamente. O conhecimento ingênuo jamais pode ser substituído
pelo conhecimento científico. Todo homem da ciência prossegue em seu
conhecimento pré-teorético quando fora dos limites de seu próprio campo, e
dessa forma experimenta o íntimo relacionamento com a realidade.
Nosso conhecimento, quer ingênuo ou teórico, deve ser reestruturado
em conceitos, julgamentos e demonstrações.
24. O horizonte da experiência
A palavra experiência resume a totalidade da atividade humana em atos
e operações. Dessa forma, experiência não é simplesmente uma atividade
epistemológica, mas manifesta todos os tipos possíveis. Um cristão como
crente tem a experiência da fé. Como pai, tem a experiência do amor em suas
relações com esposa e filhos. Como cidadão, tem experiência política. Como
comprador, possui experiencia econômica. Como artesão, ele adquire
experiência histórica de formação de cultura.
Essa experiência é estruturalmente determinada pelo horizonte cósmico
dentro de cujos limites Deus criou o mundo, e dentro do qual vivemos e nos
movemos. Assim, o horizonte do cosmos tem uma estrutura de lei por um
lado. Ele fornece os limites de nossa experiência. Nenhum homem pode
ultrapassá-los.
Mas esse horizonte de experiência tem um lado subjetivo também.
Algumas vezes a experiência humana pode estar fechada para algumas
estruturas da realidade que pertencem a um outro horizonte que não aquele
que está aberto para ela naquele momento. Uma criança pequena vive com as
coisas com as quais se tornou consciente por meio da sensação. Ela não
conhece nada ainda de conceitos e distinções modais, como os sociais e
econômicos; nem experimenta a unidade temporal dos vários aspectos das
coisas; nem jamais ouviu da raiz religiosa de toda criação ou da unidade
pactual de todas as criaturas.
A maneira pela qual a realidade criada torna-se acessível à experiência
de alguém é determinada por quatro dimensões que, em sua unidade
indissolúvel, formam o horizonte cósmico.
Essas quatro dimensões são as seguintes:
1. A dimensão religiosa
Não somente nós mesmos, que somos os sujeitos de nossa experiência,
temos a raiz do nosso ser na profundidade religiosa do coração humano, pelo
que todas as “comissões e omissões” são determinadas; mas todo o cosmos e
cada coisa no cosmos é religiosamente determinado tanto em sua origem
enquanto criatura relacionada ao Criador como também em seu ser. Pois ela
está envolta pela relação pactual na qual, por causa de Cristo, Deus incluiu o
mundo, juntamente com os crentes.
2. A dimensão cósmica do tempo
Isso implica que experimentamos coisas e situações na unidade
cósmica de seus aspectos temporais. Não somente observamos a cor de uma
determinada árvore, mas também mencionamos o seu nome, falamos do seu
valor, consideramo-la bela e gostamos dela.
3. A dimensão modal
Mediante isso experimentamos a natureza única de cada criatura.
Percebemos imediatamente que uma árvore é diferente de uma cabine de
telefone. Distinguimos entre um artigo de comida e algum que é usado para
ornamentação. Temos um insight intuitivo e uma experiência da distinção
entre os aspectos modais.
4. A dimensão plástica
Aqui lidamos com a estrutura de individualidade das coisas, relações,
atos, operações e situações. Toda existência concreta tem uma plástica
constante ou estrutura moldável. Uma casa e o edifício de uma igreja, por
exemplo, são coisas tanto subjetivas como físicas. Todavia, nunca
deveríamos confundir um com o outro porque a estrutura plástica de cada um
é obviamente distinta. Um carro e uma mesa são coisas tanto objetivas como
subjetivas. Mas cada um tem uma estrutura plástica distinta que
intuitivamente experimentamos em nosso relacionamento imediato com a
realidade.
Toda experiência humana sobre essa terra está ligada a esse horizonte
com suas quatro dimensões. Quando a Palavra de Deus é rejeitada, então a
dimensão religiosa de nosso horizonte de experiência é obscurecida,
excluindo-se portanto o caminho para a verdade mais sublime concernente à
criação em relação com o Criador e Redentor. Os incrédulos constroem sua
própria dimensão religiosa apóstata de vida que é tolice e conduz ao erro e à
falsidade. Isso é punido pelo obscurecimento de nossa experiência mesmo
dentro das outras dimensões do nosso horizonte. Pois então as criaturas não
são mais vistas em seu lugar apropriado ou nas relações nas quais Deus as
colocou.
Mas se em nosso coração aceitamos a Palavra de Deus, então nossa
experiência é livre também desse obscurecimento do pecado. Assim, o
verdadeiro significado da existência nos é revelado, bem como a importância
da nossa posição e chamado no grande cosmos de Deus. Então as palavras da
Escritura tornam-se verdadeiras para nós: “na tua luz vemos a luz”.
Conclusão
O exposto acima foi um breve esboço das principais características da
filosofia calvinista. Não hesito em dizer que essa filosofia é uma das grandes
bênçãos que Deus em sua graça deu ao nosso povo cristão, nessa era de
confusão e conflito mundiais.
Neste ponto não deveríamos nos lançar numa elaboração sobre seu
valor e importância na esfera científica, tanto no debate com os aderentes de
outros sistemas filosóficos quanto no fundamento sólido para as ciências
particulares.
Mas há uma questão demanda uma resposta. Ora, essa filosofia tem
importância para a multidão de crentes cujo trabalho diário não está na esfera
da ciência? Devemos responder essa pergunta com uma resoluta afirmativa.
Mas se alguém pensa que uma filosofia totalmente cristã será um meio de
fortalecer sua fé, suas expectativas não são apenas altas demais, mas
apresenta também uma concepção equivocada da relação da filosofia com a
fé. Pois a filosofia não conduz à fé, mas procede da fé. A totalidade da vida
cristã, incluindo a ciência, é dominada pela fé. A fé é a função guia no todo
da existência humana e não pode nem deve ser excluída no estudo da ciência.
Nem pode a filosofia ser apresentada como o substituto da religião.
Isso é frequentemente feito no campo da filosofia não cristã. A religião é
então considerada responsável pela miséria acientífica da massa da
humanidade. O homem da ciência, por outro lado, encontra sua mais alta
satisfação na adoração e consolo da filosofia. A elevação da filosofia a esse
nível devocional é fruto da religião apóstata. A ciência nunca pode ser
deificada. Ela não é a expressão mais alta da existência humana. Ela não é o
caminho aberto para Deus, nem pode se tornar uma pedra de tropeço no
caminho que conduz ao único nome debaixo do céu dado entre os homens
pelo qual devemos ser salvos.
Somente um cristão atento irá, sob a base da fé que é iluminada pela
Palavra de Deus, possuir uma visão correta da posição respectiva da ciência e
da filosofia no grande sistema da criação de Deus. Ele vê o lugar modesto de
todo conhecimento científico. Isso não leva a um desprezo da filosofia, mas à
sua correta apreciação.
A filosofia calvinista deve também servir à glória de Deus. De que
forma? Em primeiro lugar, os crentes devem louvar a Deus por sua graça ao
dar sabedoria para a reivindicação dessa esfera central da ciência à luz de sua
Palavra. E devemos orar por mais luz, a fim de que a filosofia cristã possa
manifestar mais clara e plenamente o significado das obras de Deus, e para
que, no campo científico, seja capaz de resistir ao inimigo com maior
sucesso.
Além disso, as conclusões da filosofia calvinista precisarão ser
absorvidas cada vez mais no mundo do pensamento cristão comum que
chamamos de nossa biocosmovisão. É necessário que esta seja corrigida,
ampliada e estimulada por esses resultados.
Desse modo, com maior clareza e vivacidade os cristãos serão capazes
de ver a sabedoria de Deus conforme demonstrada nas obras de suas mãos. E
se eles portanto louvam aquele que é absolutamente glorioso, experimentarão
esta resposta à sua oração: santificado seja o teu nome.
Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd
Roy Clouser
1. Aspectos da experiência
Assim, para apresentar sua ontologia não reducionista, Dooyeweerd
distingue um número de tipos exaustivos de propriedades e leis que, segundo
seu entendimento, são incapazes de serem eliminados ou de explicarem uns
ao outros. Ele chama esses tipos de “aspectos” ou modalidades da realidade
experienciada. E embora ele afirme que sua lista de aspectos é genuinamente
irredutível, devo sem demora assinalar que a ontologia que ele desenvolve
não depende de nenhuma lista particular desses aspectos. Outros pensadores
divergiram em relação a ele no que diz respeito à lista correta de aspectos; no
entanto, seguiram os contornos de sua teoria, de modo a fornecer uma
descrição não reducionista de suas respectivas listas de aspectos. No que se
segue, contudo, usarei a própria lista de Dooyeweerd, que é esta:
Fiduciário
Ético
Jurídico
Estético
Econômico
Social
Linguístico
Histórico
Lógico
Sensorial
Biótico
Físico
Cinemático
Espacial
Quantitativo
■ □
Funções ativas Funções passivas
3. Todos capsulares
4. Leis típicas
O último ponto mencionado na seção anterior leva-nos à questão sobre
como as propriedades de diferentes tipos aspectuais, bem como as sub-
totalidades com diferentes funções qualificantes, combinam-se para formar
coisas de um tipo particular. Posto de outra maneira: por que algumas
combinações de propriedades, partes e sub-totalidades aparentemente não são
possíveis, ao passo que outras o são? A resposta, diz a Teoria da Estrutura de
Lei, é novamente outra espécie de leis, leis que perpassam os aspectos.
Chamemo-las de “leis típicas”: leis que tornam possível combinar em uma
coisa propriedades, partes e sub-totalidades, de modo a formar coisas de um
tipo específico.[26] Essa ideia, além disso, delineia nosso foco sobre as
naturezas das coisas. Não basta apontar para as qualificações que algo pode
assumir, nem assinalar que algumas coisas são compostas de sub-totalidades,
bem como de partes. Devemos dar um passo à frente e diferenciar os tipos de
coisas de acordo com suas leis típicas.
Atente-se, por favor, para o fato de que, com a expressão “diferenciar
de acordo com a lei típica”, não se pretende sugerir que podemos obter
conhecimento dessa lei anteriormente à experiência com as coisas do tipo que
as tornam possíveis. Pelo contrário, postulamos essas leis a fim de descrever
as combinações de propriedades de diferentes tipos aspectuais, assim como
das sub-totalidades com diferentes qualificações aspectuais, que encontramos
dentro das coisas individuais do mesmo tipo. Nessa perspectiva, portanto,
uma coisa concreta é uma reunião estrutural individual de propriedades,
partes e talvez sub-totalidades, determinada por uma lei típica e qualificada
pelas leis aspectuais que governam sua organização interna. Uma coisa
concreta individual não é, pois, um agregado ou um pacote de partes e
propriedades, ao mesmo tempo em que não é, no entanto, nada acima ou
além de uma combinação estruturada por lei dessas partes e propriedades. Em
relação à ideia de uma lei típica, vale a pena assinalar que nem todas as
combinações que possamos conceber são de fato possíveis. Podemos pensar
em combinações formando coisas que, embora não autocontraditórias, não
são, todavia, possíveis: uma rocha falante, um cavalo voador, etc. A
explicação é que não são possíveis porque não há lei típica para eles. Nessa
perspectiva, portanto, há uma diferença entre “impossível” e “não possível”:
embora possamos falar de coisas que são impossíveis, por conta do fato de
que violariam uma lei (um círculo quadrado, uma pedra que ergue a si
própria), há também outras que não violam nenhuma lei, mas não são
possíveis, já que não há nenhuma lei típica para elas (uma árvore falante).
Dever-se-ia também notar que, diferentemente de leis aspectuais, leis
típicas existem anteriormente às coisas que a tornam possíveis e não lhe são
estritamente correlatas. Com base nessa teoria, há leis típicas não apenas para
cada tipo de coisas naturais, mas também para cada tipo de artefato.[27]
5. Artefatos
Até aqui aplicamos os conceitos apresentados pela Teoria da Estrutura
de Lei apenas às coisas naturais, pois as naturezas dos artefatos são mais
complexas. Elas exigem mais do que a especificação da função qualificante
de seu material natural e de sua lei típica, caso queiramos descrever aquilo no
qual o material natural foi transformado. Por exemplo, as pedras usadas para
construir uma casa não teriam, por si mesmas, mais que uma qualificação
física. Mas uma vez que passaram por um controle formativo humano e
foram transformadas numa casa, a nova totalidade que as encapsula adquire
uma qualificação social adicional, a despeito do fato de que todas suas partes
e sub-totalidades têm apenas uma função passiva nesse aspecto. Contudo, a
menos que reconheçamos que essa transformação de fato se deu, não
reconheceríamos que as pedras formaram uma casa, e assim perderíamos de
vista aquilo em que se tornaram.[28]
Desse modo, dois novos componentes são acrescentados à teoria a fim
de identificar a natureza de um artefato. Primeiramente, reconhece que um
artefato, diferentemente de uma coisa natural, pode ser qualificado por um
aspecto no qual tem apenas uma função passiva. Em segundo lugar, expande
a ideia sobre aquilo que qualifica a natureza de um artefato a fim de incluir o
aspecto que qualifica o processo de transformação pelo qual foi produzido,
assim como o aspecto que qualifica o tipo de plano que guiou sua formação.
O aspecto que qualifica o processo de formação de um artefato é chamado de
função fundante do artefato, ao passo que o aspecto que qualifica o plano que
guiou sua formação é chamado de função guia. Assim, no tocante ao
exemplo das pedras que formaram uma casa, a teoria diz que a função
fundacional da casa é histórica (ou cultural), porque esse processo é
qualificado pela habilidade humana de transformar materiais naturais. Mas
qual é então sua função guia? Uma resposta plausível seria a função
biológica. E não há dúvida de que uma casa serve a necessidades biológicas.
As casas teriam uma formação bastante diferente se nossos corpos fossem
significativamente diferentes daquilo que são. Porém uma casa é mais do que
um simples abrigo biológico — que é a razão pela qual difere de uma mera
cobertura ou barraca. A casa fornece um lugar para o intercâmbio social e
supre a necessidade de privacidade. E os tamanhos e formas variáveis de seus
quartos usualmente refletem uma diferença no status social entre seus
ocupantes. De fato, se faltasse a um edifício essas características, não o
chamaríamos de uma casa. Por essas razões, a teoria diz que a função guia de
uma casa é social.[29]
Não há espaço aqui para dar muito mais exemplos de como esses
conceitos servem para trazermos ao foco as naturezas dos artefatos; porém
listo alguns: de um livro, dir-se-ia ter uma função fundante histórica e uma
função guia linguística. A poesia cifrada no livro, por outro lado, teria uma
função fundante histórica e uma função guia estética.[30] De semelhante
modo, uma pintura ou uma escultura teria uma função guia estética. Em
contrapartida, um armazém, com suas plataformas de carregamentos e áreas
de estoque, apresenta uma função fundante histórica e uma função guia
econômica. É claro, um banco tem a mesma função guia. O que distingue um
armazém de um banco é a lei típica de cada um; a lei que determina as
relações internas das propriedades, partes e sub-totalidades e que as conforma
a seu tipo. Essa é o motivo pelo qual a descrição completa da natureza de um
artefato deve incluir sua lei típica, assim como sua qualificação por meio de
suas funções fundante e guia.
Nesse ponto, pode parecer que todos os artefatos teriam uma função
guia histórica (cultural). Afinal de contas, são todos formados por seres
humanos, não? Embora haja, em certo sentido, uma verdade nisso, há, no
entanto, artefatos formados pelo homem que têm sua fundação num aspecto
diferente do histórico. Para tornar esse ponto claro, contudo, devo, em
primeiro lugar, repetir que a teoria também vê as comunidades sociais como
artefatos, formados quando seres humanos dão uma organização específica a
relações inter-humanas aspectualmente diferenciadas. Essas diferem de
artefatos não sociais na medida em que seus “materiais naturais” são outros
seres humanos. Dito isto, aparentemente há (pelo menos) duas comunidades
que não deveriam ser consideradas como tendo uma função fundante cultural:
o casamento e a família. A razão é que elas não são criações culturais
espontâneas, pois estão enraizadas em nossa natureza biótica, sexual. Os
homens atribuem formas específicas a essas comunidades, é claro. Mas é
nossa composição biótica que conduz o processo de sua formação e assegura
que essas instituições receberão uma ou outra forma.
Albert M. Wolters
Mais do que no caso da maioria dos filósofos de estatura internacional, ainda se faz
necessário divulgar o pensamento de Herman Dooyeweerd fora de seu país natal, em razão
do desconhecimento generalizado sobre o meio intelectual em que desenvolveu sua
filosofia. Os dois fatores mais relevantes desse meio — o neocalvinismo holandês e a
filosofia alemã a ele contemporânea — são ainda grandezas amplamente desconhecidas no
mundo da filosofia anglo-americana. Ademais, as pessoas familiarizadas com um desses
fatores, em geral, costumam conhecer pouco acerca do outro.[35] Contudo, Dooyeweerd não
pode ser compreendido sem certa apreciação de ambas as tradições. Consequentemente,
meu propósito neste ensaio é oferecer um esboço breve e formal de como, de um lado, os
grandes temas do neocalvinismo holandês, e do neokantismo e fenomenologia alemães, de
outro, exerceram influência sobre a formação intelectual de Dooyeweerd. Desse modo,
espero tornar mais inteligíveis alguns dos problemas e categorias na filosofia de
Dooyeweerd, os quais são frequentemente de difícil acesso. Muitos dos temas que aqui
apresento serão trabalhados posteriormente pelos outros ensaios.[36]
Pode parecer que o neocalvinismo holandês e a filosofia alemã são fatores bastante
heterogêneos, não sendo, assim, possível compará-los efetivamente somente sob a rubrica
de meio intelectual. Afinal, o primeiro não se refere a um movimento religioso e teológico,
ao passo que o outro, a uma influência secular e mais estritamente acadêmica? Não há
dúvida da validade dessa observação, mas é importante notar que, da perspectiva do
próprio pensamento de Dooyeweerd, a oposição entre “religioso” e “secular”, ou entre
“teológico” e “mais estritamente acadêmico”, é falsa. Antes, talvez seja mais apropriado
tratar do neocalvinismo como a força intelectual dominante no nível da cosmovisão de
Dooyeweerd, e a filosofia alemã como o catalisador intelectual primário[37] no nível da
filosofia, estritamente falando, isto é, enquanto disciplina acadêmica técnica. Na própria
visão de Dooyeweerd, ambos esses níveis são “religiosos” (no neerlandês: geestelijk),
assim como “intelectuais”, embora somente o segundo seja intelectual no sentido preciso
de “científico” (no neerlandês: wetenschappelijk). Além disso, os dois estão intimamente
ligados entre si.
Neocalvinismo
Neokantianismo e fenomenologia
Hebden Taylor, A nova ordem legal à luz da filosofia cristã do direito. Brasília:
Monergismo, 2019.
Herman Dooyeweerd, Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São
Paulo: Vida Nova, 2014.
Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa
autonomia do pensamento filosófico. Brasília: Monergismo, 2018.
Herman Dooyeweerd, Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
Josué K. Reichow, Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd.
Brasília: Monergismo, 2019.
L. Kalsbeek, Contornos da filosofia cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa. Brasília: Monergismo, 2019.
[1]
Por Fred H. Klooster (1922-2003), autor de diversos livros e professor de Teologia Sistemática
durante 35 anos no Calvin Theological Seminary. Esta edição em português foi traduzida a partir da
edição inglesa.
[2]
Pelo Rev. Hak-Soo Han.
[3]
Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought, volume 1 (Paidea Press, 1984).
Prefácio do tradutor, p. XII.
[4]
Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia
do pensamento filosófico (Brasília: Monergismo, 2018), p. 15.
[5]
Kampen, 4ª edição, 1950.
[6]
“Filosofia da Ideia da Lei”, ou “Filosofia do Conceito de Lei”. O título enfatiza que esse sistema de
filosofia cristão reconhece a lei que Deus instituiu como a grande fronteira entre o Criador e a criação, e
a concebe como fundamental para entender o mundo. Cf. especialmente as seções 5, 7, 9 e 10 abaixo e
também Dr. H. Dooyeweerd, Transcendental Problems of Philosophic Thought (Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans, 1948), p. 15 ss.
[7]
A Universidade Livre, localizada em Amsterdã, Holanda, foi fundada em 1880 pelo Dr. Abraham
Kuyper. Hoje ela é uma universidade cristã de pleno direito, conhecida mundialmente, com faculdades
de teologia, direito, ciências naturais, filosofia, literatura, economia e medicina. Ela publica a revista
acadêmica, principalmente em inglês, chamada “The Free University Quarterly”.
[8]
Spier faz, aqui, referência a um dos paradoxos de Zenão, mais especificamente aquele popularmente
conhecido como “Aquiles e a tartaruga”, embora, como é óbvio, atualizando os agentes (i.e., o
automóvel e o carrinho de bebê) na sua exemplificação. [N. do T.]
[9]
Lembrando, conforme dito acima, que quatorze é o número obtido pela soma da ideia central
(núcleo de sentido) mais os momentos que são representações dos demais aspectos, precedentes e
posteriores (isto é, retrocipações e antecipações), dentro de cada esfera de lei. [N. do T.]
[10]
Após consideração posterior, o autor deste livreto não mais sustenta a visão do Prof. Dooyeweerd
de que o coração humano é supra-temporal. Em distinção às manifestações de tempo nas esferas de lei,
Spier agora fala do tempo religioso da alma. A esse tempo religioso e as formas de tempo dentro dos
aspectos, ele chama de as duas dimensões do tempo cósmico. Spier explica essa visão num novo livro,
Time and Eternity, publicado por J. H. Kok de Kampen.
[11]
Nas páginas seguintes três frases usadas são difíceis de verter exatamente para o inglês
(português). A dificuldade surge de distinções entre social (samenleving) e sociedade (maatschappij).
A primeira é “samenlevingsverbanden” (relações sociais) que incluem aqueles de uma natureza
institucional (família, igreja e Estado), bem como outros estabelecidos pela livre agência humana
(escolas, negócios, clubes) para os quais o segundo termo é usado, a saber, “maatschappelijke
verbanden” (organizações societárias). O terceiro termo é intimamente relacionado. É
“maatschappelijke betrekkingen” (contratos societários) e refere-se àqueles livres contratos que não são
baseados sobre organização e autoridade.
[12]
A referência aqui e mais adiante não diz respeito, por óbvio, a posicionamentos ideológicos
modernos, mas sim à metonímia bíblica que entende a “esquerda” como o caminho ou comportamento
pecaminoso e iníquo, e a “direita” ou “destra” como o estilo de vida em obediência ao Senhor. Cf.
Eclesiastes 10.2: “O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o da
esquerda”. [N. do T.]
[13]
A edição original de New Critique (doravante NC) foi publicada pela Presbyterian & Reformed
Publishing Co., Philadelphia, em 1953. Foi reeditada pela Mellen Press, Lewiston, NY, em 1997. Ao
dizer que a ontologia de Dooyeweerd tem um poder explanatório maior que a de Aristóteles, não
pretendo dizer que é mais detalhada, mas que evita vários impasses que a ontologia de Aristóteles não
pôde evitar, como a relação entre forma e matéria e se os artefatos representam novas formas.
[14]
A crença em algo enquanto a realidade incondicional da qual tudo o mais depende é central a todas
as religiões e é a única característica que todas têm em comum. Para Dooyeweerd, tais crenças são um
produto antes da experiência de uma pessoa que de provas ou argumentos — embora seja preciso ter
em mente que tais crenças podem ser suposições inconscientes, assim como compromissos sinceros.
Ademais, as experiências que dão origem a essas crenças podem variar em seu conteúdo. Por exemplo,
enquanto Calvino diz: “Rogam que se lhes responda como seremos persuadidos de que a Escritura
procede de Deus sem nos abrigarmos no decreto da Igreja? Assim como distinguimos a luz das trevas,
o branco do negro, o doce do amargo” (Instituição I, 7, 2), Paul Ziff disse: “Se você me perguntar por
que sou um materialista... não é por conta dos argumentos. Acho que teria de dizer que a realidade me
parece irresistivelmente física”.
[15]
Instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: Editora UNESP, 2008), p 57.
[16]
Dooyeweerd jamais empreendeu uma defesa dessa definição de crença religiosa ou da declaração
de que as crenças em algo como sendo autoexistente são igualmente religiosas, quer ocorram nas
teorias, quer se deem nas tradições religiosas. Argumento extensivamente a favor desses dois pontos no
capítulo 2 de meu O mito da neutralidade religiosa (Brasília: Monergismo, 2019).
[17]
Nesse ponto, a posição de Dooyeweerd é a mesma da teologia ortodoxa oriental. Como São
Gregório Palamas observa: “Os cristãos não podem tolerar qualquer substância intermediária entre o
Criador e as criaturas...” (citado em John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas, Londres: Faith
Press, 1964, p. 130). Por essa mesma razão Dooyeweerd também rejeita qualquer tentativa de provar a
existência de Deus, afirmando, pelo contrário, que “aquilo que se provaria não seria, por conta disso,
Deus”. A razão é que, uma vez que o ser de Deus é a origem criativa de tudo, incluindo as leis da
prova, ele não está, por conseguinte, sujeito a essas leis. Assim, tentativas de provar sua existência
inadvertidamente o rebaixam ao status de criatura.
[18]
Nem todo uso do termo “redução” se refere a um sentido ontológico. Por exemplo, não há objeção
à substituição da teoria do calórico pela teoria da vibração molecular. Os tipos maiores de teorias que
são objetáveis podem ser, grosso modo, descritos da seguinte maneira:
A. Substituição de sentido. A natureza de toda a realidade deve possuir apenas propriedades do
tipo X, e ser governado somente por leis X. Defende-se isso por meio da afirmação de que
todos os termos com sentido supostamente não-X podem ser substituídos por termos X sem
nenhuma perda de sentido, embora nem todos os termos X possam ser substituídos por termos
não-X (Berkeley, Hume e Ayer defendiam o fenomenalismo desse modo).
B. Identidade factual. Embora os termos de vocabulários não-X não possam ser inteiramente
substituídos por termos X, os termos não-X, entretanto, referem-se apenas a propriedades ou
leis X. Defende-se a seleção de X com base no fato de que a única ou melhor explicação para
qualquer coisa tem invariavelmente os termos X como seus termos primários e as leis X como
suas leis básicas (J. J. C. Smart defendia o materialismo dessa forma).
C. Dependência causal metafísica. A natureza da realidade é basicamente (não exclusivamente)
constituída do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) das coisas. Defende-se essa posição afirmando
que há uma dependência de via única das propriedades e leis dos tipos não-X sobre entidades
cuja natureza é exclusivamente do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) (Aristóteles e Descartes
defenderam sua ideia de “substância” dessa maneira).
D. Epifenomenalismo. Esta posição é semelhante à da causalidade metafísica, com a exceção,
porém, de que os tipos de propriedades dependentes, causados, são menos reais, já que não há
leis dentro desses tipos, de modo que não se pode oferecer nenhuma explicação genuína com
base em propriedades epifenomênicas (Huxley e Skinner defendiam que estados da
consciência são simples epifenômenos em corpos ou comportamentos puramente físicos).
[19]
Veja Tobias Dantzig, Number: The Language of Science (Garden City, NY: Doubleday, 1954), p.
2-3.
[20]
Planck e Einstein, por exemplo. Veja as observações de Einstein em ‘‘Autobiographical Notes’’ in:
Albert Einstein, Philosopher-Scientist, ed. P.A. Schlipp (New York: Harper Torchbooks), p. 43.
[21]
A ordem dentro dos aspectos inferiores na lista é considerada como leis rígidas, embora a ordem
dentro dos aspectos mais intimamente associados com a vida social humana é considerada normas.
Diferentemente das leis rígidas como a da gravidade, as normas da linguagem, polidez, economia,
estética, justiça e ética constituem uma ordem que humanos tem capacidade de violar.
[22]
Pois para que haja objetos com naturezas fixas, teria de haver anteriormente (ao menos) leis
aspectuais governando o modo pelo qual as propriedades de cada aspecto se relacionam umas com as
outras. E para que as regularidades de lei fossem impostas pelos sujeitos cognoscentes em sua
experiência, teria de haver, antes disso, regularidades do tipo lei regendo o processo cognitivo. Por
essas razões, o objetivismo e o subjetivismo apontam ambos — a despeito de suas intenções — para
um lado-lei distinto da realidade, que não tem sua origem nem no objeto nem no sujeito.
[23]
Os termos de Dooyeweerd para esses modos são “funções-sujeito” e “funções-objeto”, o que gerou
confusões em demasia, já que “sujeito” e “objeto” são usados aqui equivocadamente.
[24]
Veja NC, III, p. 78.
[25]
Os termos próprios de Dooyeweerd para essa ideia eram “encapse” e “totalidade encáptica”. Em
minha versão, simplesmente anglicizei os termos.
[26]
O termo de Dooyeweerd para isso era “estrutura de individualidade” (veja NC, III). Antes,
confundia-se tão frequentemente o termo, interpretando-o como se implicasse a organização interna de
um individual concreto em vez da lei que possibilita seu tipo, que cunhei a expressão “lei típica” para
substituí-lo. Há, é claro, aquelas que são chamadas “leis causais” na realidade, assim como as leis
aspectuais e leis típicas. A Teoria da Estrutura da Lei, no entanto, prefere chamá-las “relações causais”
porque, embora sejam parte da ordem da realidade, são multiaspectuais e têm qualificações aspectuais.
Além disso, não há relações causais nos três aspectos inferiores; elas surgem pela primeira vez no
aspecto físico. Porém, embora fundadas no aspecto físico, há relações causais qualificadas por cada um
dos aspectos a ele superiores. Por exemplo, a reprodução é uma causa bioticamente qualificada; a
conclusão de certas premissas é uma causa logicamente qualificada; e a escassez de uma mercadoria é
uma causa economicamente qualificada.
[27]
NC, III, p. 106.
[28]
Animais também forma artefatos, e a descrição destes é um tanto diferente. Em prol da concisão,
porém, tratarei apenas dos artefatos humanos. Para um tratamento completo da questão, veja NC, III,
capítulos 2 e 3.
[29]
Visto que o aspecto que qualifica a função guia de um artefato é aquele que qualifica o plano que
orientou sua formação, a ideia de uma função guia não pode ser separada da ideia de propósito. A
intenção, contudo, não é um propósito subjetivo que uma pessoa possa ter para com um artefato, mas o
propósito integrado em seu plano. Assim, embora alguém possa usar uma cadeira como uma escada ou
casar-se por dinheiro, os propósitos integrados nesses artefatos permanecem sendo social e ético,
respectivamente, a despeito de terem sido pervertidos por um propósito subjetivo. Veja NC, III, p. 143,
574.
[30]
Mais precisamente, as palavras do poema são linguisticamente qualificadas, ao passo que o evento
da leitura do poema é esteticamente qualificado. Veja NC, III, p. 110, 111.
[31]
No discurso habitual, o termo comum é “alma”. Mas os redatores bíblicos jamais usaram “alma”
para referir-se ao centro da existência humana, mas sim para a vida do corpo — daí é precisamente a
alma que morre. Mais frequentemente usam o termo “coração” para a identidade de uma pessoa; a sede
e fonte do intelecto, vontade, talento, disposições, etc. humanas. Na perspectiva bíblica, portanto, a
natureza humana não deve ser identificada com nenhuma de suas funções aspectuais. O coração
humano subjaz a todas elas como o agente em operação nelas. Dessa forma, embora somente os seres
humanos tenham funções ativas em todos os aspectos, eles não têm função qualificante.
[32]
Há exemplos de comunidades que são sub-totalidades dentro de um todo capsular maior, mas isso
jamais se aplica às grandes instituições da sociedade. Os exemplos são todos de organizações auxiliares
formadas para servir a outra comunidade, tal como uma associação de pais e mestres para servir a uma
escola, ou um grupo organizado para angariação de fundos para apoio de uma instituição de caridade
ou de um hospital.
[33]
Uma das exposições mais claras dessa ideia foi apresentada em seu livro Calvinismo, que são suas
palestras Stone ministrada no Seminário de Princeton em 1898.
[34]
Por outro lado, apontar para esferas de autoridade distintas significa que é possível ter as esferas
permeando todas as instituições e práticas. Não é o mesmo que a distinção público-versus-privado, por
exemplo. Um crime praticado em privado, numa igreja ou numa escola ainda assim se enquadra na
esfera da justiça, sendo portanto responsabilidade do governo, assim como a permuta ou a venda que se
dá dentro de uma família ou governo é o lado econômico dessas instituições.
[35]
Foi-me possível realizar a pesquisa no tema deste ensaio durante meu ano sabático nos
Países Baixos em 1981-1982, em razão de uma Bezoekersbeurs (Bolsa de Pesquisa),
oferecida pela Organização Neerlandesa de Pesquisa Científica (ZWO).
[36]
O presente ensaio é o primeiro da série que compõe a obra The Legacy of Herman
Dooyeweerd, editada por C. T. McIntire, e na qual diferentes especialistas e continuadores
da tradição da filosofia cosmonômica apresentam uma dimensão distinta e complementar
da obra de Dooyeweerd. [N. do T.]
[37]
Sobre Kuyper, veja P. Kasteel, Abraham Kuyper (Kampen: J.H. Kok, 1938) e
McKendree R. Langley, The Practice of Spirituality: Episodes in the Public Career of
Abraham Kuyper (St. Catharines: Paideia, 1984).
[38]
Praticamente não há literatura em inglês sobre o contexto de origem de Dooyeweerd.
Uma exceção é William Young, Towards a Reformed Philosophy: The Development of a
Protestant Philosophy in Dutch Calvinistic Thought Since the Time of Abraham Kuyper
(Franeker: Weyer, 1952). Para mais sobre Dooyeweerd e seus colaboradores, veja Bernard
Zylstra, “Introdução” em Contornos da filosofia cristã (São Paulo, Cultura Cristã: 2015).
Veja W.F. de Gaay Fortman et al., Philosophy and Christianity: Philosophical Essays
Dedicated to Professor Dr. Herman Dooyeweerd (Amsterdam: North: Holland, 1965).
[39]
Abraham Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã, 2008).
[40]
Veja Jan Veenhof, Nature and Grace in Bavinck, trad. Albert Wolters (Mimeo, n.d.).
[41]
Herman Dooyeweerd, “The Problem of the Relationship of Nature and Grace in the
Calvinistic Law-Idea”, Anakainosis 1 (1979, no. 4): 13-15. Esta é a tradução de um
excursus presente num artigo escrito por Dooyeweerd em 1928.
[42]
Karel Kuypers, “Herman Dooyeweerd” (7 de outubro de 1894 – 12 de fevereiro de
1977)”, in: Jaarboek da Academia Real de Artes e Ciências dos Países Baixos (1977), p. 3.
[43]
Ver Thomas E. Willey, Back to Kant: The Revival of Kantianism in German Social and
Historical Thought, 1860-1914 (Detroit: Wayne State University Press, 1978).
[44]
Willey, Back to Kant, p. 135.
[45]
T. De Boer, The Development of Husserl’s Thought, trad. Theodore Plantinga (The
Hague: Martinus Nijhoff, 1978).
[46]
Ou, como habitualmente traduzido, “suspensão de juízo”. [N. do T.]
[47]
Willey, Back to Kant, p. 102 ss.
[48]
Este exemplar consta presentemente na Dooyeweerd Collection, no Institute for
Christian Studies em Toronto.
[49]
Vincent Briimmer, Transcendental Criticism and Christian Philosophy: A Presentation
and Evaluation of Herman Dooyeweerd’s “Philosophy of the Cosmonomic Idea”
(Franeker: Weyer, 1961), p. 150-151.
[50]
Com relação a suas semelhanças: ambos nasceram em Amsterdã nos anos iniciais de
1890, frequentaram o mesmo colégio secundário clássico e a mesma universidade,
residiram por um tempo em Haia, estiveram em outras áreas de estudo antes de se voltarem
para a filosofia (direito, no caso de Dooyeweerd; teologia, no caso de Vollenhoven),
aceitaram as designações para sua alma mater em 1926, eram membros fundadores da
Sociedade pela Filosofia Calvinista em 1935, aposentaram-se nos anos de 1960, e
morreram em sua Amsterdã natal, em fins da década de 70. Para coroar tudo isso,
Vollenhoven era casado com a irmã de Dooyeweerd. Sobre Vollenhoven, veja The Idea of
a Christian Philosophy: Essays in Honour of D. H. Th. Vollenhoven (Toronto: Wedge,
1973), que contém um ensaio escrito por Dooyeweerd acerca de Vollenhoven.