Semântica, Enunciação e Ensino
Semântica, Enunciação e Ensino
Semântica, Enunciação e Ensino
978-85-7772-367-6
Virgínia B. B. Abrahão
Semântica,
enunciação
e ensino
Vitória, 2018
A Hugo Mari, meu mestre em Semântica.
Pelas lentes dos seus grossos óculos pude
vislumbrar os homens na linguagem.
Sumário
Prefácio, 09
Conversa inicial
O ensino da semântica, 25
Capítulo 1
A semântica no quadro das ciências da linguagem, 29
A linguística moderna, 31
Algumas teorias linguísticas, 33
O gerativismo, 35
O funcionalismo, 41
A semântica sob a perspectiva da discursividade, 46
Capítulo 2
A produção de sentidos e o sujeito, 51
Capítulo 4
Do signo ao discurso, 111
Conclusões
A semântica da enunciação, 161
Referências, 171
Prefácio
Por acaso, vale a pena dizer que a semântica, tal como a con-
cebemos neste trabalho (e em trabalhos anteriores do autor), é
uma disciplina sóbria e modesta que não tem pretensões de ser
uma panaceia universal para curar todos os males e as enfermi-
dades da humanidade, sejam imaginários ou reais. Não se en-
contrará, na semântica, remédio algum para as cáries dentárias,
o delírio de grandezas ou os conflitos de classe. Tampouco é a
semântica um artifício para estabelecer que todos, com exceção
daquele que fala e dos amigos, dizem disparates.
Alfred Tarski (1972, p. 18, tradução nossa)
O desafio em questão
1 O comentário de Tarski reflete parte das discussões que vamos desenvolver neste
texto, mas é preciso marcar diferenças com as pretensões do autor sobre a semântica
no âmbito de sua abordagem como um todo, que não tinha uma preocupação tão
imediata com as línguas naturais.
7
investir menos na formatação de “padrões lunáticos” de sentido e mais
nas atividades ordinárias dos sujeitos com o sentido.
A conjunção de semântica e ensino já anuncia algo inusitado. Em-
bora a recorrência em outros campos da linguagem seja relativamente
corriqueira – sintaxe e ensino, discurso e ensino –, no caso presente, o
desejo desafiador de superar os obstáculos, colocados pelo primeiro
termo em favor do segundo, ressoa como uma inquietação da autora
na busca de um fazer com a semântica, ainda tão pouco encorajado
pelas reflexões teóricas. O que pode representar o exercitar a semân-
tica nos bancos escolares, quando se trata de algo tão natural na vida
dos falantes? O que torna a semântica viável, quando buscamos va-
lidá-la no campo de práticas escolares? Vamos ensinar nossos alunos
a produzir sentido? Vamos prepará-los para o domínio conceitual de
alguns termos da área? Afinal, para que serve a semântica, para além
das negações metafóricas de Tarski?
A lista de perguntas é interminável e com ela crescem as responsa-
bilidades da autora para nos dizer algo de representativo sobre o tema.
O percurso traçado no livro é alentador, pois destaca questões funda-
mentais sobre a significação linguística sem deixar de lado sua convi-
vência necessária no campo sistêmico da gramática, alicerçado a partir
de orientações sintáticas que foram descritas no trabalho. Além disso,
há uma tarefa que talvez possa aglutinar grande parte das preocupa-
ções com a semântica, algo que seria não apenas de responsabilidade da
autora, mas também dos futuros usuários deste livro. Trata-se de fazer
valer os fatos semânticos como uma habilidade cada vez mais intensa
para a nossa experiência de leitura e de interpretação.
Na sequência, em vez de apenas repassar o trabalho desenvolvido
pela autora em seus itens específicos – eles se autoexplicam –, preten-
demos traçar um perfil de alguns nichos da semântica, a partir dos
quais a proposta da autora se torna ainda mais importante. Seleciona-
mos quatro dimensões, com a certeza de que a mesma reflexão poderia
ser feita por meio de outras, que julgamos suficientes para se ter uma
macrovisão da proposta da autora: a semântica, o significado, a teoria e
a descrição/análise. Finalmente, concluímos este prefácio voltando ao
texto de Virgínia com alguns comentários adicionais.
8
A semântica em questão
9
de nenhuma dessas denominações em seu trabalho, mas sua aborda-
gem, pensada em termos dos dois últimos capítulos, é voltada para a
semântica do discurso, ou para a semântica da enunciação.
Essa discrepância no número de abordagens pode estar associada à na-
tureza dos próprios objetos linguísticos, associados, por sua vez, aos dois
campos destacados na linguagem. Por exemplo, todos os morfemas que
compõem o sistema verbal do português já foram sistematizados em grande
extensão, mas não foram sistematizados todos os semas, sememas, traços,
categorias – ou outra denominação que possam assumir – que integram
a significação dos verbos do português, ou de outras classes gramaticais.
Além disso, o morfema é um objeto linguístico em sentido restrito: ne-
nhum outro campo do conhecimento, na dimensão conceitual da linguís-
tica, mostrou um interesse particular em seu estudo, em sua apropriação,
embora isso não impeça que outras formas de conhecimento possam dele
se valer para análises circunscritas; o significado (mesmo com denomina-
ções diferentes: sentido, significação, conteúdo, valor, informação etc.) é
um objeto que, a princípio, interessa a qualquer área do conhecimento e
muitos se valem dele também como objeto de estudo: a lógica, a filosofia, a
psicologia, a computação, as ciências da informação, a biologia etc.
Mesmo que o objeto seja o mesmo no interior de cada uma das
áreas acima, cada aspecto qualificado de uma abordagem permite vê-lo
de uma forma diferenciada, admitindo, porém, que sempre estaremos
propícios a ver semelhanças e diferenças que as abordagens captam. Isso,
todavia, não nega que essa diversificação terminológica não possa con-
ter redundâncias, sobreposições e mesmo relações de implicação (parte/
todo) e até mesmo modismos. Apesar dessa diversificação, as maiores
dificuldades presentes nessas abordagens não parecem concentrar-se na
configuração teórica dos objetos em questão, ao menos de forma essen-
cial, mas antes no seu processo de análise. Afinal, o que extraímos dessas
abordagens como processos que nos levam a explicar, a justificar me-
lhor os fatos de sentido que estão associados aos objetos, aos eventos do
mundo? O que representa o padrão de uma análise dos fatos de sentido
que essas abordagens propõem realizar? Devemos esperar um nível de
descrição e outro de análise, providos por essas abordagens?
Respostas a questões dessa natureza não parecem muito evidentes
e, às vezes, contentamo-nos com uma descrição provida por uma te-
oria, na suposição de estarmos desenvolvendo uma análise. Isso não
10
representa um erro de avaliação daquele que se propõe a uma análise
do sentido, mas a incerteza do que possa, de fato, representar a pas-
sagem de uma descrição do sentido para uma análise do sentido, em
razão da forma como operamos com categorias que estão disponíveis
no interior das teorias.
O significado em questão
2 O próprio Putnam nomeou um dos seus textos como "The meaning of meaning"
(1977).
11
O equívoco, parece-me, está na suposição de que a questão
“O que é significado?” pode ser respondida de um modo
direto e completo. A questão é geralmente tratada como
se fosse paralela a uma questão como “Qual é a capital da
França?”, para a qual uma resposta direta e completa “Paris”
pode ser dada. Supõe-se que uma resposta possa ser dada
sob a forma de “Significado é isso ou aquilo”. Mas a questão
“O que é significado?” não admite uma resposta direta do
tipo “é isso ou aquilo”; sua resposta é, ao contrário, uma
teoria inteira (KATZ, 1972, p. 1, tradução nossa).
A teoria em questão
12
origens que marcam as discussões sobre o significado3, antes mesmo
de uma especulação sobre a construção de uma teoria, nunca tiveram
um ponto único de referência. O significado mereceu uma atenção es-
pecial da linguística, da lógica, da filosofia, da psicologia (e de outras
dimensões menos enfáticas) e, por isso mesmo, os fatos analisados nem
sempre alcançaram padrões semelhantes de formatação.
As razões dessa dispersão são muitas, mas merece destaque especial o
fato de o significado ter sido objeto de abordagens técnicas diferenciadas
que alternaram entre padrões mais ou menos formais (Katz, Bierwisch,
Weinreich, Lakoff ), em concepções mais ou menos mentalistas
(Jackendoff), em orientações mais ou menos empíricas (Zlatev). Além
do mais, cada uma dessas abordagens associou ao significado outras
categorias atinentes a essas áreas de forma particular. Cabe salientar,
entretanto, até mesmo por dever de ofício, que foi na linguística o lugar
onde se buscou uma forma efetiva de seu entendimento, em razão de
necessidades técnicas de sua representação acopladas às teorias.
Todavia, neste prefácio, não temos como discutir formatos específi-
cos de representação do significado a partir de abordagens como a análise
componencial (Bendix), a semântica interpretativa (Katz), a semântica
gerativa (Lakoff), a semântica cognitiva (Jackendoff) ou léxico gerativo
(Pustejovsky). Amostragens dessas formulações são amplamente difun-
didas nos textos dos próprios autores, todas elas representativas de uma
faceta da semântica dedicada à análise linguística. Aqui ressalto algumas
questões que perpassam o trabalho da autora, desenvolvido neste livro. De
forma especulativa e geral, inicio por uma citação de Greimas (1975, p. 7):
3 Não pretendo ao longo deste texto fazer uso específico da diferença entre esses con-
ceitos, embora reconheça que em alguns contextos eles não possam ser intercambiáveis.
Usarei genericamente significado, mas manterei sentido quando se tratar de citação em
que o termo foi usado.
13
Esta parece ser uma dificuldade marcante no processo de construção
de uma teoria semântica, indiferentemente da natureza da abordagem que
ela possa ter: como falar do sentido de uma forma objetiva, se os termos de
que nos valemos para isso já teriam uma contaminação de origem?
A proposta do autor é que esse objetivo só seria alcançado se dispu-
séssemos de uma linguagem (no caso, uma metalinguagem) que fosse
ela própria desprovida de qualquer significação. Algumas notações ló-
gicas recorrem a esse tipo de expediente que pode lembrar parcialmente
esse desejo do autor, mas o teor de estranhamento de tal metalingua-
gem poderia gerar um efeito inverso, como foi o caso, por exemplo, da
notação proposta por Frege (1999), sob a forma de uma conceitografia
– uma escrita para conceitos. É nessa dimensão que Greimas lembra
a expressão “desprovido de sentido”, isto é, algo que assume sentido
no interior da própria metalinguagem, ou que seja esta o instrumento
apropriado para tratar dos percursos de significação a que um termo
qualquer está sujeito numa língua natural.
As alternativas, que foram aventadas para uma metalinguagem –
combinatória de traços em formatos diferentes – para falar do signifi-
cado, continuam enfrentando dificuldades. Grande parte das críticas
ao formato de uma teoria semântica continua incidindo sobre uma re-
presentação formal/estrutural de significado. Os desafios sobre a cons-
trução de teorias semânticas levaram a uma combinação de padrões
diferentes de representação para o significado, ainda que o princípio
de composicionalidade de traços tivesse certa recorrência. Parece, to-
davia, que as dificuldades destacadas nesses processos, ao se valerem da
própria linguagem natural, tornam-se menos estranhas do que, muitas
vezes, o uso de um sistema artificial, ainda que os formatos naturais
possam gerar certas redundâncias.
Não sabemos ainda como isolar o significado de uma contaminação
natural a que os signos estão submetidos numa sociedade e nem se esse
deva ser um critério para uma teoria semântica. Desconhecemos o que
seria um código que mantivesse uma pureza de sentido que pudesse ser
validado apenas para um mundo singular de conceitos. Uma das razões
que nos levam a esse assombramento diante dos fatos de sentido pode
estar associada ao teor intuitivo que temos para significar: qualquer
coisa que se apresente à nossa percepção é um significante a que resta
atribuir um significado. Os significados nos perseguem, deles não te-
14
mos como escapar, ou, como formula Greimas (1975, p. 8): “Quer se
situe o sentido imediatamente atrás das palavras, antes das palavras ou
depois das palavras, a questão do sentido permanece”.
Apesar dessa onipresença do sentido – Onde não há sentido? O que
resiste ao sentido? –, as expectativas sobre o seu tratamento sempre represen-
taram um desafio que estava além das especulações sobre a necessidade de
uma neutralidade metalinguística. A sua presença acompanha nossas deci-
sões sobre as coisas mais elementares sobre o mundo da vida – por exemplo,
significar o que é alimento e o que não – como também sobre as mais com-
plexas. É por razões dessa natureza que Greimas, reportando a Bloomfield,
afirma: “o sentido existe exatamente como uma evidência, como um dado
imediato, mas que nada mais se pode dizer sobre ele” (1975, p. 8).
Não devemos também desconsiderar que essas dificuldades – ou até
mesmo certo reconhecimento de incapacidade diante da aleatoriedade,
da dispersão de muitos fatos de sentido – devam ser vistas como algo
que se impôs a qualquer formulação sobre sentido de modo a tornar
tudo o que foi produzido como absolutamente desprovido de qualquer
relevância. Ao contrário do que podemos supor, a compreensão dos fa-
tos de sentido cresceu amplamente em meio ao turbilhão de obstáculos
que cada uma das abordagens enfrentou.
Não há dúvidas de que grande parte das teorias semânticas almejou
o ideal de um sistema formal que pudesse dar conta dos seus objetos,
que fosse um suporte objetivo para conduzir os analistas pelas armadi-
lhas da produção do sentido. E nem se poderia esperar algo diferente
para uma teoria. Se nos valemos da lógica simbólica como sustentação
para a descrição de muitos fatos semânticos específicos – quantificação,
estrutura de predicados, negação, pressuposição, condições de verdade
–, é porque nela, como um instrumento disponível, depositamos uma
possibilidade de pensar os fatos de sentido para além do varejo da in-
tuição. É claro que muitos outros sistemas lógicos foram utilizados na
descrição semântica – lógica modal, fuzzy logic – com vistas a recuperar
fatos semânticos que não cabiam dentro de uma lógica muito rigorosa,
e as lógicas não clássicas assumiram esse papel para a semântica. Embo-
ra relevante para certas etapas da discussão, as questões sobre o sentido
ainda se mantiveram como um desafio renitente, sobretudo a partir do
momento em que se tornou necessário assumir questões relativas ao
processo de enunciação.
15
A descrição/análise em questão
4 Essa imobilidade (ou a quase impossibilidade para ir além da intuição) foi materializada
na frase de Dale Carnegie (numa das interpretações possíveis), citada por Katz (1970),
"Se você tem um limão, faça uma limonada" e não uma teoria semântica ou uma definição
analítica, pois, se você já sabe tudo sobre limão, o melhor é transformá-lo numa limona-
da, isto é, você já tem dele o valor prático que nenhuma teoria lhe dará. Além do mais, é
importante lembrar que na história da semântica o termo limão aparece como uma das
espécies naturais mais destacadas na discussão de propriedades analíticas e de críticas à
composicionalidade do significado por meio de matriz de traços semânticos.
16
O problema aqui é que a semântica não é tão simples. Os
falantes competentes nem sempre sabem o que estão dizen-
do. O que falantes competentes realmente sabem, em vir-
tude de sua competência, é como usar expressões da lingua-
gem; eles conhecem os efeitos que vários enunciados estão
aptos a ter em várias circunstâncias. Mas disso não se segue
que eles sempre sabem, de modo específico, o que é dito
(BERG, 2002, p. 354, tradução nossa).
17
ria semântica que não leve em conta o trabalho interpretativo do falan-
te, o que ele tece em termos de significação quando combina compo-
sicionalmente propriedades lexicais e relações sintagmáticas. Por mais
que propostas como as de Katz, Katz e Postal, Jackendoff, por exemplo,
apresentem dificuldades conceituais, este parece ser um ponto unani-
memente aceite: uma teoria semântica é, em sua essência, uma expla-
nação plausível de como falantes de uma língua produzem sentidos por
meio das sentenças que constroem e isso está muito além de uma tarefa
de apenas descrever o significado de itens lexicais. Em alguma extensão,
os processos inferenciais de que os falantes se valem para interpretar
sentenças são aqueles que estão disponíveis para uma análise semântica,
além do descritivismo lexical.
O livro em questão
18
produção do sentido poderia ser compreendida nos domínios estritos
do gramatical. Aqui a autora traz para a cena da significação linguística
duas dimensões essenciais – o sujeito e a história – e a complexidade
inerente às correlações com a atividade intersubjetiva, com a ideologia,
com o processo social, como a própria autora denomina: “Enfim, os
conceitos aqui trabalhados remetem-nos para uma concepção de lin-
guagem vinculada aos homens e à sua história coletiva”.
Ambos os capítulos comprimem, de um modo geral, questões rela-
tivas ao percurso, das quais destacamos de forma especial a semântica
em questão e a teoria em questão. Não existe, na formulação da autora,
nenhum compromisso nominal destacado em termos de uma aborda-
gem específica, pois essa talvez não fosse mesmo uma questão relevante.
Quando o vínculo sintático se realiza pela gramática gerativa, já temos
escalas de abordagens mais ou menos previsíveis, e o mesmo podemos
pensar em termos do funcionalismo, com uma perspectiva pragmática
mais declarada. Há nesses capítulos indícios das dificuldades da cons-
trução de uma teoria semântica: com que elementos e de que forma
uma teoria deve se compor para além da dimensão gramatical? É assim
que entendemos a discussão em torno do sujeito, da ideologia e das
extensões que cada um desses termos comporta.
O terceiro capítulo abre espaço para duas questões nucleares da se-
mântica: a teoria do signo e a teoria da referência, uma com o papel
histórico de resgate do estruturalismo e a outra do resgate da filosofia
analítica. Os dois enfoques representam uma abordagem seminal para
o projeto da autora, pois é a partir deles que ela inicia sua jornada de
mostrar o que pode ser feito com a semântica, quando os falantes se
apropriam dos signos em sua dimensão estrutural e funcional. É esse
lugar que a autora escolhe para projetar os passos iniciais de seu projeto
de ensino para a semântica, por meio de movimentos claros na tenta-
tiva de explicitar o valor funcional dos conceitos, de validar processos
de análise como também de engajar as questões de sentido a uma dis-
cursivização do trabalho linguístico. Aqui o texto contorna o que nos
referimos anteriormente como o significado em questão, por optar por
estratégias de fundamentação para o trabalho linguístico, tanto para
a significação e para a referência como também para desdobramentos
possíveis de uma e outra. As abordagens “inaugurais”, selecionadas para
a discussão do projeto semântica/ensino, não serão submetidas a uma
19
formatação teórica de ver e de representar certos objetos semânticos,
mas orientadas para fenômenos linguísticos de base que servirão para
sustentar a dimensão de análise pretendida pela autora em itens diver-
sos que compõem o capítulo seguinte.
O quarto capítulo se faz representar, em grande parte, por aquilo
que Katz (1972, p. 4-5) denominou de subquestões para a questão “o
que é significado?” e representa um conjunto de objetos semânticos –
sinonímia, antonímia, polissemia, paráfrase, hiperonímia, ambiguidade
etc. –, acrescido de fenômenos linguísticos que implicam estruturação
de significados – teoria dos campos –, como também processos que ope-
ram sobre transformações semânticas – conotação, metáfora, metonímia.
É nesse capítulo que a autora investe todo o potencial da semântica
para o ensino, pois já no início declara: “Nossa intenção é a de fun-
damentar no futuro professor de língua portuguesa um olhar sobre o
movimento dos sentidos em linguagem”.
Pelo exposto acima, os tópicos assumidos pela autora estão distribu-
ídos por muitas abordagens semânticas diferentes, mas são efetivamente
sensíveis, ao mesmo tempo, a emperrar e a impulsionar o trabalho dos
falantes. A pretensão da autora é que o seu destinatário – o futuro pro-
fessor de língua portuguesa – seja iniciado no ensino da semântica por
esses parâmetros, pois são eles que se apresentam de forma imediata para
um trabalho de interpretação – para qualquer texto que lemos, será sem-
pre possível destacar alguns deles, como ensaia a autora em muitas ativi-
dades propostas. É nesse momento do texto que são propostas diversas
atividades para um fazer com a semântica, quer tenham elas o objetivo
de depuração conceitual, quer tenham o papel de uma otimização da
leitura. É na dimensão de cada um desses parâmetros, certamente mui-
tos outros poderão ser pensados, que a relação semântica e ensino parece
tornar algo muito próximo à atividade dos falantes com a língua. Ainda
que sob muitos aspectos as questões apontadas requeiram um desen-
volvimento maior, o que é ressaltado constitui, certamente, um ponto
de partida para uma qualificação do ensino do português que a autora
pretende como semântico. Talvez seja esse um contorno a ser perseguido
para aquilo que denominamos a descrição/análise em questão.
Ao longo deste prefácio, procuramos apontar alguns desafios inter-
postos no caminho da semântica, a partir de quatro aspectos seleciona-
dos, julgando que eles representam um cenário a partir do qual a autora
20
formula sua reflexão. Certamente, são questões de magnitude diferente
para as quais não temos ainda um projeto que possa aglutiná-las de
modo racional.
A semântica continua sendo uma fração do conhecimento humano
propensa a muitas rebeldias e para a qual ainda não dispomos de pa-
drões formais nos quais ela pudesse ser teoricamente disciplinada em
sua totalidade. A semântica representa padrões de organização do co-
nhecimento, mas esses padrões, por estarem associados a toda atividade
sensório-perceptiva do homem, são, pela sua própria natureza, com-
plexos e dinâmicos e, em muitos casos, multimodais. Eles são sensíveis
ao desenvolvimento orgânico do homem, à sua capacidade incessante
de atribuir sentido e valor aos fatos que compõem o ambiente em que
circula. A semântica estrutura o registro de toda essa atividade do ho-
mem sobre o ambiente físico e social, embora possamos ainda não saber
como todos os registros sensíveis ao corpo figurem de modo organizado
no léxico de uma língua.
Uma parcela importante desses desafios foi materializada em muitos
momentos nas reflexões da autora, seguramente aqueles para os quais
temos alguma certeza de sua manifestação no próprio léxico. Nesse sen-
tido, o texto de Virgínia, sobretudo no último capítulo, é um convite
aos professores de língua materna para experienciar, eles próprios e com
os seus alunos, um pouco dessa aventura pelos lugares do sentido: uma
aventura cujo início a autora propõe, mas na qual também espera contar
com os adeptos dessa proposta para um avanço ainda maior. Precisamos
começar a romper com essa mentalidade de supor as questões de sentido
como inalcançáveis para um fazer pedagógico com a linguagem.
Por fim, esperamos que esse viés inconformista que a autora sempre
cultuou em relação à ausência sistemática da semântica nas atividades
escolares seja assumido pelos professores de português como um desafio
a ser enfrentado em termos de ensino da língua.
Hugo Mari
PUC Minas
21
Conversa inicial
O ensino da semântica
22
todo itinerário histórico que eles cumprem: a cada instante de uso, a
saber, a cada circunstância política própria, ele se deixa contaminar por
aquilo que é circunstancial e momentâneo”.
Trata-se de um modo de olhar a linguagem que prioriza o sentido,
voltando-se para uma análise linguística que considera cada palavra,
cada texto, cada fala, a partir do lugar de quem a produziu, das con-
dições histórico-sociais de produção, do modo como foi dito e até
mesmo de que leitor foi previsto. Essa perspectiva de análise textual
discursiva arrisca-se a analisar não as palavras em si, ou os textos por
eles mesmos, mas os mecanismos que se registram nas práticas de
linguagem, os quais possibilitam determinados efeitos de sentido. Por
isso ela objetiva as produções de sentido na linguagem.
Mari (1991, p. 51-52), comentando sobre a produção de sentido, diz:
“Ela não tem como objeto a significação ‘in natura’ como o faz o cálculo
do significado, mas a sua forma desnaturada, degenerada, contaminada
pelas práticas de linguagem correntes”.
Dentro dessa perspectiva dos estudos semânticos, o sentido se
assegura não só a partir do sistema linguístico que lhe dá suporte, já
que uma mesma frase pode ser entendida de diversas maneiras, nem
somente a partir do momento histórico em que ele ocorre. Afirmar
que determinado discurso significa algo devido ao lugar e ao mo-
mento em que foi articulado é negar o humano dentro dos discursos,
responsável por movimentar as formações discursivas em função do
seu desejo ou da sua consciência, ainda que peremptória. Assim, a
significação proposta nunca é da ordem do previsível, do contextu-
almente determinado.
Para esse autor, um processo de interação em linguagem provoca
uma significação pouco precisa, a partir da qual o sujeito produtor dos
discursos diz, muitas vezes, para não ser entendido; ou elabora discur-
sos simplesmente para que notem a sua presença ou até para ocupar um
lugar de destaque, para ser respeitado. Ele joga com os subentendidos,
com os “não ditos”. O discurso mais interessante não é, dessa maneira,
o mais informativo ou mais fiel ou verdadeiro.
A questão que se coloca é: que efeitos de sentido os discursos pro-
duzem? E esses efeitos de sentido não podem ser compreendidos a
23
partir de interpretações fechadas, unívocas. Ao contrário, múlti-
plas interpretações podem surgir e é nesse ponto que a semântica
da enunciação pode contribuir, observando os fatores linguísticos
ligados aos sociais.
É a semântica da língua que possibilita as metáforas, as metonímias,
os subentendidos, as paráfrases, as ambiguidades, etc. no jogo com as
relações sintáticas, morfológicas, fonológicas, pragmáticas e discursivas.
E o seu estudo busca identificar os fatores que possibilitam diferentes
formas do dizer e os efeitos que produzem.
Ao observar o jogo semântico que se trava em linguagem, podemos
compreender melhor o homem, a sociedade, seus desejos pouco ex-
plícitos e até seus medos e esperanças. Isso porque a linguagem não é
racionalizada, ela é uma prática social dinâmica e por ela as pessoas e as
sociedades são estruturadas.
Por visar a presença da semântica na escola, os conteúdos aqui
trabalhados não serão abordados exaustivamente, tendo em vista as
várias pesquisas sobre um mesmo tema. Há muitos artigos, teses e
livros que podem servir de objeto de pesquisa aos que se interessarem
pelos temas aqui levantados.
O que se pretende é que o estudante formado em letras, que se
tornar um professor de língua portuguesa, saiba como incluir a se-
mântica em suas aulas. Mas isso sem separar a semântica da sinta-
xe, da morfologia, da leitura e produção de textos, da pragmática e
até da fonologia. Afinal, a língua apresenta diferentes aspectos, mas
todos correlacionados e só nas suas relações recíprocas podem ser
compreendidos.
A semântica tem sido relegada do seu papel de enriquecer o olhar dos
professores e alunos sobre a linguagem. Ela sequer chega às salas de aula
de língua portuguesa no ensino médio. Mesmo nos cursos de letras, ela
tem sido preterida, o que traz prejuízos para os estudantes, porque eles
não são treinados no jogo da linguagem e sim moldados nas suas regras.
Produzir sentidos é fazer a linguagem se renovar a cada instante,
tornando-a própria, singular. Estudar os efeitos de sentido produzidos
é pensar a linguagem como um jogo de vários parceiros em que diversos
fatores entram na análise.
Por isso a proposta aqui apresentada é trazer de volta a semântica
para as aulas de língua portuguesa, mas agora como aquela que entre-
24
laça o linguístico ao social, ao histórico, ao desejo, à vida que pulsa por
meio da linguagem.
25
Capítulo I
26
Na corrente linguística denominada estruturalismo, os estudos
passaram a considerar as palavras em oposição e não as coisas em si.
Classificam as palavras em oposição de acordo com a média cultural.
Os linguistas separam, então, o que é do âmbito da linguagem daqui-
lo que é do âmbito dos preconceitos sociais. Conforme a abordagem
estruturalista, os opostos são classificados em complementares, escala-
res, recíprocos, polares, e não somente contrários. Por exemplo, subir
e descer são ações recíprocas, e não opostas; já velho e novo são termos
gradativos, pois admitem outros termos entre eles.
Modernamente, após os estudos em análise do discurso de tendência
marxista, já não se admite que as coisas sejam colocadas em oposição,
já que a realidade é observada dialeticamente, dentro da complexidade
que a estrutura. Desse modo, uma pessoa pode ser “velha” (tradicional)
em muitos aspectos e “nova” (moderna) em muitos outros. Um objeto
“velho” (antigo) pode ser “novo” para alguém ou tornar-se novo após
reformas. Portanto, essas categorias estão na dependência dos discur-
sos/textos em que aparecem, angariando aí valores inusitados. Have-
ria outras vias de exploração da antonímia, como a filosofia, as teorias
cognitivistas, a pragmática, as abordagens referencialistas, entre outras.7
Veja, portanto, quanta diferença faz uma opção teórica quando do es-
tudo dos fenômenos linguísticos. Por isso, analisar os livros escolhidos
para pesquisas e observar o tipo de abordagem teórica que realizam
parece ser o passo inicial para se arvorar nas pesquisas em semântica
ou em qualquer outra abordagem dentro dos estudos linguísticos, bem
como para ensiná-las.
Por isso, retomaremos alguns conceitos básicos da linguística geral
a fim de situar os princípios dessa ciência. Logo depois, enfocaremos
as principais correntes nos estudos linguísticos e as abordagens se-
mânticas que eles carreiam. Fechando o capítulo, apontaremos para
a perspectiva da discursividade como sendo o lugar eleito por nossa
abordagem.
27
A linguística moderna
Dicionário Aurélio:
Linguagem:
“Uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e
de comunicação entre as pessoas.”
Língua:
“O conjunto das palavras e expressões usadas por um povo, por
uma nação, e o conjunto de regras de sua gramática; idioma.”
(FERREIRA, 1977, p. 31)
28
“Ele estava angustiado porque o que lhe dava prazer nas leituras
não era tanto a beleza das frases, mas as doenças delas. Quando
isso confessou ao padre, recebeu como resposta que aquilo não
era um mal.
— Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue
para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
— Você não é um bugre? – Ele continuou.
— Que sim, eu respondi.
— Veja que bugre só pega por desvio, não anda em estrada.
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariti-
cuns maduros.
— Esse padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agra-
mática.”
(Manoel de Barros, Livro das Ignorãnças, 1997, p. 87)
29
Essas concepções refletem visões também diversas na relação do ho-
mem com a linguagem e, portanto, modos diferentes de se observar
os múltiplos fatores implicados na significação.
A decisão por um determinado enfoque para abordar os dados sig-
nifica uma concepção de linguagem, um modo de encarar e até de
gerar os objetos de estudo. Por isso, a seguir, abordaremos as principais
correntes dos estudos linguísticos modernos e suas consequências na
observância dos fatos linguísticos.
30
evolutivo da língua deveria haver também um estudo sincrônico (em
um período de tempo em questão) e descritivo. Quando Saussure con-
ceitua a língua como sistema e preconiza o estudo descritivo desse sis-
tema, faz nascer o estruturalismo como método de estudos linguísticos.
Com o estruturalismo a linguística delimitou seu objeto de estudos,
definiu seu método e consolidou suas possibilidades. Foi um tempo de
descrições detalhadíssimas das línguas, o que fez crescer a fonologia, a
fonética e a morfologia, principalmente.
O transformacionalismo surge como um veio do estruturalismo e faz
avançar os estudos em sintaxe. Tendo como seu precursor Noam Chomsky,
essa corrente dos estudos linguísticos propõe uma revolução conceitual ao
trabalhar o inatismo em linguagem, que traz como fruto os conceitos de
competência e desempenho. A língua já não é vista como herança social,
ao contrário, estrutura uma complexidade imanente, pois adentra a consti-
tuição dos seres humanos, no cérebro físico (mentalismo).
Mais recentemente, desde a década de 1970, vêm crescendo os estudos
dentro de uma corrente funcionalista em linguagem. Esses estudos par-
tem de uma visão mais global da língua, tentando aglutinar categorias que
relevem ao mesmo tempo a estrutura e o funcionamento da linguagem.
Trata-se de uma corrente emergente e que, por isso, ainda se encontra sub-
dividida em várias facetas, tendo estas em comum uma preocupação com a
língua na sociedade, o que se contrapõe ao que preconizam os mentalistas.
A linguística se fixa, assim, como uma ciência imprescindível a qualquer
ramo do conhecimento das ciências humanas, com um cabedal conceitual
bem estruturado. Sociólogos, filósofos, antropólogos, psicólogos, psicanalis-
tas, historiadores, enfim, profissionais de diversas áreas vêm se interessando
pelo fenômeno da linguagem e buscando se instrumentalizar na linguística.
Imbricados nessas grandes correntes dos estudos linguísticos (histo-
ricismo, estruturalismo, gerativismo e funcionalismo), crescem estudos
da linguagem que vêm assumindo percursos diversos que se servem do
instrumental da linguística para pensar a linguagem vinculada às mais
variadas manifestações humanas.
Neste capítulo, abordaremos mais detidamente o gerativismo e o
funcionalismo, no capítulo 3 enfocaremos os princípios do estrutu-
ralismo saussuriano. Abordar todas as correntes na sua relação com a
semântica requereria de nós um livro específico, porém há muitas pu-
blicações sobre as várias correntes dos estudos linguísticos e suas conse-
31
quências na abordagem dos fenômenos. Nosso propósito, aqui, é o de
marcar as diferenças entre elas.
O gerativismo carreia o inatismo linguístico, já o funcionalismo
assume os pressupostos cognitivistas na estruturação da linguagem,
quando se estuda o que em semântica faz parte da cognição humana
enquanto condição para a linguagem. Por exemplo, os estudos da me-
táfora, dentro da abordagem cognitivista, apontam para esse fenômeno
como sendo uma das bases da linguagem humana e não simplesmente
uma figura de linguagem, um artefato que a embeleza, isso porque as
nossas experiências com a realidade são sempre indiretas, gerando rea-
lidades múltiplas. As metáforas surgem, assim, a partir de experiências
concretas vividas pelos indivíduos em seus confrontos interativos que
ocorrem via linguagem; não são resultado de processamentos automáti-
cos derivados das competências inatas para a linguagem. Nessa direção,
há um grande espaço entre pensar a construção de objetos de discurso
que se dá via processos de significação e considerar a língua como natu-
ral (gerativismo). Ou seja, para os funcionalistas a relação da linguagem
com a realidade não é direta, mas ocorre na medida em que os grupos
articulam seus objetos de discurso e, com eles, suas formas de vida.
Esmiuçaremos essas diferenças a seguir.
A abordagem aqui pretendida não é nem gerativa nem funcional,
mas sim enunciativa. A construção desse olhar enunciativo sobre a
linguagem será objeto do nosso próximo capítulo. No entanto, como
estamos focando nossa atenção na formação do licenciando em letras,
buscamos construir nele esse olhar para as diferenças nas abordagens.
O gerativismo
32
Gerativismo – pressupostos teóricos básicos
Todos os homens, em condições normais, aprendem uma língua.
Além disso, a linguagem entra em funcionamento mais ou menos
no mesmo período em todas as crianças que gozem de condições
normais. Constatações como essas fazem com que os inatistas
pressuponham que a linguagem seja um componente próprio
da espécie humana, geneticamente codificado. Existiria, portanto,
um domínio específico para a linguagem na mente humana.
No entanto, Noam Chomsky, precursor dessa corrente, não pre-
tende idealizar as propriedades da mente humana e sim pressupor
essas propriedades a partir de dados da realidade linguística. Segundo
Chomsky, muito pouco se sabe hoje sobre a mente, o que impossi-
bilita especular sobre ela. Nesse sentido, propõe isolar para estudo as
propriedades do que ele denomina faculdade da linguagem. Essas pro-
priedades constituiriam elementos essenciais no estudo da aquisição
da linguagem, pois dizem respeito aos princípios invariantes do estado
inicial (S0) da linguagem humana e à gama de variações permissíveis.
À teoria do S0, ou estado inicial, Chomsky dá o nome de gramática
universal (GU). A GU é, portanto, a caracterização dos princípios
inatos biologicamente determinados da linguagem humana.
Ao modo de estruturação de uma linguagem natural na men-
te das pessoas, Chomsky (1980) pressupõe uma língua-I (língua
internalizada). A língua-I incorporou formas de representações
mentais e as regras que transportam/transferem as representa-
ções para um dialeto específico. Isso só se torna possível devido
aos princípios contidos no S0. O problema das gramáticas seria
descobrir esses princípios e mostrar como eles possibilitam esse
modo de representação diferenciado dos dialetos.
A faculdade da linguagem se apresenta, então, como um sis-
tema computacional rico, estreitamente arquitetado em suas es-
truturas e rígido nas suas operações essenciais.
Em se considerando domínio como o conjunto de repre-
sentações que sustentam uma área específica do conhecimen-
33
to, Chomsky pressupõe a existência de um domínio específico
para a linguagem, o qual se organiza a partir de princípios que
determinam as estruturas sob as quais subsequentes aprendiza-
gens têm lugar.
Jerry Alan Fodor, filósofo e cientista cognitivo americano,
também inatista, pressupõe uma estrutura mais fechada para a
linguagem na mente humana. Para ele, a língua é modularizada,
ou seja, possui uma unidade de processamento informacional que
encapsula determinado conhecimento e computa a partir dele.
Assim, a língua se estruturaria de modo totalmente independen-
te de outros aspectos da cognição, não necessitando estabelecer
conexões com outras estruturas do cérebro para se organizar. Está
como que encapsulada, com suas bases totalmente desenvolvidas,
dentro de uma unidade de processamento informacional.
Os objetivos dos estudos dentro da proposta inatista são, en-
tão, identificar as reais propriedades do estado inicial da faculda-
de da linguagem e sua realização particular como uma potencial
ou atual língua-I. Desse modo, para Chomsky, o aspecto matu-
racional da linguagem é estritamente biológico.
Apesar de montar um modelo de desenvolvimento aplicado
a qualquer domínio de conhecimento, independentemente das
mudanças de estado (S0, S1, S2, S3, ... SL), Chomsky não se de-
tém nas questões de desenvolvimento. Acredita poder pressupor
sobre a base inata a partir do estado da linguagem no adulto.
Dois fatos sustentam o gerativismo: um centrado na questão ina-
tista – qualquer criança, em condições normais, aprende uma língua – e
outro centrado na competência, criatividade linguística regida por
regras – podemos criar e entender milhões de frases sem mesmo tê-las pro-
duzido. Daí por que Chomsky opta pelo modelo sintático-formal.
Nesse modelo, o papel das regras transformacionais é de
transformar estruturas (elas são simplesmente um mecanismo
de transformação). A interpretação semântica se dá na estrutura
profunda. O elemento gerativo é sintático. O falante só pode
interpretar semanticamente se ele representar formalmente.
34
Comentários
35
Inevitavelmente inscrevemos Chomsky dentro de uma corrente de
pensamento positivista, no que se refere à sua prática científica. A teoria
positivista do pensador Augusto Comte é fundamentada à luz de duas
premissas essenciais explicitadas por Löwy (1993, p. 69):
36
de ensino acreditavam que, internalizando as estruturas, o aluno aprenderia
a língua em questão. Enquanto isso, Chomsky propõe a hipótese de que
podemos criar e entender milhões de frases sem mesmo tê-las produzido.
Além disso, a exposição a uma língua seria o suficiente para fazer emergir
em nós as hipóteses concernentes à sua gramática. A hipótese da criatividade
linguística também influenciou grandemente os métodos de alfabetização.
Na sua primeira fase, a teoria gerativa padrão fornecia um instru-
mental que realmente colocava por terra os princípios estruturalistas
clássicos, a partir dos processos descritivistas dos constituintes imedia-
tos e das possibilidades explanatórias de dois níveis de estruturas com
regras que possibilitavam essas descrições.
Contudo, as transformações na teoria acabam por denunciar os seus
pressupostos básicos: afinal, como a criança, em contato com os dados,
pode realmente chegar a elaborar a linguagem ou a retomar a linguagem
que já tem em si?
Passa a haver uma inocuidade do ponto de vista descritivo e um
problema do ponto de vista teórico. O gerativismo propõe, então, o
“modelo de princípios e parâmetros”, caminhando para uma preocupa-
ção maior com a GU (gramática universal).
Portanto, mesmo que inicialmente houvesse uma preocupação com
os universais linguísticos, a grande atividade girava em torno da noção
de competência. A teoria ficou no descritivismo. Propunha-se um dis-
curso racionalista, lógico, a partir do método dedutivo de Popper, em
oposição a um discurso empirista, mas utilizando-se de um método
indutivo de verificação e generalização altamente questionável.
Contudo, a teoria se mantém dentro do formalismo que a reduz à
sintaxe. A semântica e o léxico, por exemplo, foram propositadamente
relegados, pois o modelo formal não conseguiu dar conta desses dois
aspectos da linguagem. Ora, na verdade não era bem o formalismo que
não suportava esses aspectos, mas as suas naturezas, as quais denunciam
questões de uso a serem relevadas, as quais implicariam revisão dos
pressupostos teóricos básicos. Afinal, via processos de significação, a
língua parece muito menos estruturada e muito mais estruturante das
individualidades e, via léxico, ela se apresenta muito mais uma estrutu-
ração coletiva e muito menos pronta, estruturada de antemão.
Atrás do formalismo, escondem-se profundas revisões teóricas para
o gerativismo. Resta saber se a linguagem possui bases inatas, ao modo
37
como pressupõe Chomsky, em qualquer dos seus eixos constitutivos. O
recorte epistemológico elaborado por Chomsky é totalmente conscien-
te dessa complexidade.
Observamos, então, que, enquanto lidava em termos descritivistas
práticos, sem evidenciar seus pressupostos positivistas básicos, a teoria
consegue respaldo devido ao momento em que se insere e contra quem
se insurge. No entanto, o paradigma gerativista começa a entrar em
crise quando se volta, sobretudo, para as bases biológicas da linguagem.
Dessa crise emerge o funcionalismo.
O funcionalismo
38
Para os inatistas a língua é um sistema conceitual. Já para
os funcionalistas ela é um sistema de função de interação, ins-
crevendo-se na história, e a significação se constrói, portanto,
dentro de um processo socialmente constituído.
O papel do meio demarca, deste modo, um profundo distan-
ciamento entre as duas perspectivas teóricas, pois, entre propul-
sionar e constituir, há uma enorme diferença de abordagem que
marca concepções totalmente distintas do fenômeno em questão.
Assim, enquanto os gerativistas enfatizam os universais lin-
guísticos, os funcionalistas enfatizam as variações entre línguas.
Estes optam por considerar o texto ou discurso e não a frase,
como faz o gerativismo.
Comentários
A partir dos pressupostos funcionalistas acima enumerados, proce-
deremos à análise das bases do funcionalismo com uma postura his-
toricista. Não do historicismo linguístico, e sim dentro da proposta
historicista advinda da sociologia do conhecimento idealizada por Karl
Mannheim (1968) em oposição ao positivismo.
Segundo Foracchi (1982, p. 138, apud FIGUEIREDO, 1996, p.
20-21), o historicismo parte de três hipóteses fundamentais:
39
Löwy (1993, p. 70) assim descreve os pressupostos historicistas: “[...]
ninguém está fora do rio da história, olhando para ele de suas margens.
Todo observador está imerso no curso da história, nadando ou navegando
em um barco neste curso tempestuoso da história, ninguém está fora”.
Se no positivismo se mantém uma concepção de que os fatos, a
vida, enfim, obedecem a uma lógica natural, no historicismo qualquer
fenômeno é histórico e só pode ser compreendido dentro da história.
Além disso, tanto os objetivos da pesquisa como o pesquisador estão
imersos no processo histórico. Contudo, afirmar que ninguém está fora
da história não quer dizer que todos construam a história. Neste ponto
o historicismo se difere do marxismo.
O sujeito, no positivismo, é portador de unidade de consciência
totalmente abstrata, supratemporal e suprassocial. No historicismo, o
sujeito sofre da história. Já no marxismo, o sujeito constrói a história.
Desse modo, o historicismo superou o positivismo, mas não aderiu ao
materialismo histórico-dialético.
Este é o retrato perfeito das propostas funcionalistas em linguagem
que inserem os estudos linguísticos dentro dos fatos sociais e das influ-
ências da temporalidade, mas não apontam para rompimentos de fato
com a proposta anterior, ao permanecer tratando a linguagem como
instrumento de interação e não como fator constituidor dos sujeitos.
Se o gerativismo pretende explicar o fenômeno da linguagem a par-
tir do cérebro humano dentro de uma perspectiva naturalista, o funcio-
nalismo pretende observar na linguagem o seu funcionamento, a partir
de fatores sócio-históricos. Sob as duas perspectivas a linguagem não é
constituidora, mas historicamente constituída.
O funcionalismo é muito discutido na sociologia e na educação.
Segundo Oliveira (1994, p. 60):
40
Dentro dessa perspectiva da solidariedade orgânica, a organização
é percebida como um sistema orgânico inspirado nas ciências natu-
rais, em que as partes se relacionam com o todo. Assim, o funcionalis-
mo toma para si uma visão integrada da sociedade a partir da ideia de
causação múltipla e recíproca e do reconhecimento do consenso como
uma base importante de integração.
Trata-se de uma proposta integrada às bases capitalistas e cientificis-
tas. A anormalidade é conjectural, na verdade há uma harmonia, uma
ordem, em tudo. A desigualdade social é percebida como tendo seu
lado funcional, pois distribui os papéis necessários ao funcionamento
da sociedade.
Um dos princípios basilares do funcionalismo é o de estudar os fe-
nômenos pelas suas consequências. Durkheim acreditava na possibi-
lidade de se encontrar a verdade científica. Para ele, os observadores
orientavam-se pelas ideias que tinham das coisas, em lugar de obser-
var, descrever e comparar as coisas. Afirmava que a ciência deve ser ela
mesma, preservando a sua neutralidade em relação às outras ciências.
Para que se constitua como tal, a ciência deve abordar fatos passíveis de
observação, classificados por sua homogeneidade e considerados inde-
pendentemente dos resultados. Dentro de uma postura positivista de
ciência, afirma que cabe a ela exprimir a realidade e não julgá-la. Cabe
à ciência a verificação isenta.
A teoria dos sistemas é um dos desdobramentos do funcionalismo
e tem por base uma visão integrada e dinâmica dos vários sistemas que
compõem uma realidade. Busca, a partir dessa visão integrada, soluções
para os problemas. Dessa teoria advém a noção de sistema aberto, donde
se admite um contínuo fluxo de entrada e saída que, em contato com o
meio, permite a integração mútua entre as suas variáveis. Desta forma,
incorporam-se a manutenção e a mudança, e o sistema se mantém em
harmonia apesar dos conflitos internos. Portanto, a totalidade é con-
siderada em seu dinamismo e consequente possibilidade de alteração.
Fica evidente a influência, no funcionalismo em linguagem, des-
sas correntes funcionalistas norte-americanas que postulam a teoria
dos sistemas, pois, também em linguagem, mantêm-se os princípios
da organicidade, sistema aberto, etc. O paradigma da gramaticalização
é o resultado dessas posturas a partir das quais se pretende observar a
ordem nas diferenças, sistematizar o diferente.
41
Pelo que entendemos, todas as observações anteriormente levanta-
das sobre o funcionalismo em geral cabem ao funcionalismo em lin-
guagem. Também este parte do consenso e não do conflito, apesar de
considerar o todo e pressupor o dinamismo.
É patente a influência do positivismo dentro da perspectiva fun-
cionalista, presente nas suas concepções de homem, de sociedade e de
sistema, e os funcionalistas se autodenominam neopositivistas.
São várias as críticas feitas ao funcionalismo dentro da sociologia e
da educação. Sander (1984, p. 28) faz algumas considerações em rela-
ção às limitações do funcionalismo, as quais parafraseamos, resumida-
mente, a seguir:
- Ao desconsiderar as consequências da ação intencional dos par-
ticipantes da organização, o comportamento organizacional torna-se
determinístico. O ser humano é determinado pela organização.
- As mudanças organizacionais resultam da adaptação da organi-
zação às exigências do ambiente externo, e a solução dos conflitos da
organização atende aos interesses do sistema maior.
- Preocupa-se com as consequências da ação social, desconsiderando
suas causas.
- Descuida dos aspectos éticos e substantivos do ser humano viven-
do em sociedade para cultuar a eficiência utilitarista e a racionalidade
instrumental. Utilitarismo materialista.
A própria concepção da linguagem enquanto instrumento nos leva à
adequação dessas críticas ao funcionalismo em linguagem (utilitarismo
materialista). Nele a linguagem é vista cumprindo uma função social
determinada. Não se considera a intenção nem as causas do ato co-
municativo. A linguagem é determinada pela organização social, assim
como o ser humano. Cabe à teoria resolver os problemas de inade-
quações e variações, buscando entendê-las dentro do todo orgânico. O
todo não é a soma das partes, constitui algo diferente.
No geral, em linguística atribuímos parentescos e conciliações entre
teorias as mais distintas, mas não percebemos as bases dessas concilia-
ções. Temos a tendência de admitir tudo como sendo o mesmo, sem
perceber as diferenças nas bases teóricas entre os diferentes estudos.
Essa é uma tendência particularmente marcante dentro das diversas
propostas funcionalistas em linguagem, pois a visão do todo, do sis-
tema orgânico é um dos quesitos da proposta. Essa visão plural, que
42
deveria ser um ponto favorável à proposta funcionalista, acaba por de-
por contra ela, pois se perdem as particularidades, as causações, em
função da organicidade e da causalidade. De acordo com os princípios
de Durkheim, a linguagem é estudada por seus efeitos sociais. Os fatos
internos à linguagem nos escapam, por isso nos cabe estudar os fatos
externos que simbolizam os internos.
A pragmática surgiu no âmbito do funcionalismo como linha de
pesquisa efetiva, o que fez com que ela, por isso, privilegiasse não o
sujeito, nos estudos, mas o contexto de interação.
Neste trabalho não estamos pretendendo privilegiar as relações pre-
sentes no contexto comunicativo (uso contratual da linguagem), pois
para nós o contexto determina o uso da linguagem, contudo acreditamos
que o sujeito burle constantemente as convenções, propondo sentidos
sempre novos. Afinal, o sujeito é um dos pilares da produção de sentido.
Segundo Pavel (1990, p. 66): “A pressão do contexto linguístico, que
depende da força da linguagem, não chega nunca a obturar totalmen-
te a presença de um sujeito doador de significação e imperfeitamente
subjugado à linguagem”. Por isso nos distanciamos da Pragmática, en-
quanto proposta teórica de cunho funcionalista, apesar de valorizarmos
uma postura pragmática de trato com a linguagem, aquela que observa
a enunciação em seus usos, ainda que sem enquadrá-la em modelos so-
ciocomunicativos predefinidos.
43
póteses, examinar sistematicamente essas hipóteses de tal
modo que se esboçassem classificações, semelhanças, dis-
tinções. A linguagem, com o estruturalismo, foi percebida
como um sistema de funcionamento regular, previsível e
passível de descrição sistemática. Assim foi percebida tam-
bém a movimentação dos astros de Newton; os organismos
vivos, na biologia; a estrutura da sociedade, em sociologia
(HENRY, 1994, p. 36).
44
pioneiros ao lidarem com o significado a partir de postulados lógicos.
Sua herança para os estudos semânticos foi enorme e até hoje as aborda-
gens giram em torno de frases ou proposições, tal qual faziam. Segundo
Pires de Oliveira (2001, p. 19): “Há muitos estudos sobre fenômenos
do português brasileiro que adotam a perspectiva formal”. Evidente-
mente, essa abordagem traz para os estudos semânticos um estatuto de
cientificidade, além de possibilitar a sua inserção sistemática dentro da
linguística, conferindo à semântica um campo de investigação próprio,
diferente da sintaxe ou da morfologia. Um nome relevante no Brasil,
dentro dessa tendência, é o de Rodolfo Ilari, com suas obras, e uma
obra de referência seria a de Kempson (1980).
Oswald Ducrot situa seus estudos dentro da perspectiva estrutura-
lista, e o faz dialogando com a semântica formal. Esta coloca o referente
em destaque ao examinar o significado, ou seja, a linguagem aponta
para o seu exterior, nomeando-o. Diferentemente, para a semântica da
enunciação ou semântica argumentativa, a linguagem institui realida-
des e instaura a subjetividade.
A semântica ocupa-se das questões de significação em uma língua
natural. Obviamente, essas questões relativas à significação, ou, mais
propriamente, à produção de sentidos, perpassam diferentes áreas
do conhecimento humano, pois a reflexão sobre os diversos sentidos
produzidos em uma sociedade leva, sem dúvida, a uma melhor com-
preensão dessa mesma sociedade, bem como dos sujeitos que dela
participam. Entendemos, desse modo, que as questões semânticas
recobrem tanto fatores sintáticos, morfológicos e pragmáticos como
também fatores da ordem do filosófico, do antropológico, do socio-
lógico, entre tantos campos com ela imbricados.
Sob essa perspectiva, a linguagem é entendida como constituidora
de saberes e sujeitos. Trata-se de uma perspectiva que considera o senti-
do como sendo de natureza conjuntural, dependente de fatores variados
para se constituir.
Desse modo, não só o discurso é da ordem da história ou da ordem
da ideologia, mas também o sistema linguístico, enquanto sistema de
relações obrigadas, de imposições sociais e culturais, que varia segundo
a comunidade, é da ordem da história, claramente.
Por exemplo, sob o prisma da discursividade, o presente do indica-
tivo não é simplesmente um quadro dentro do paradigma das conju-
45
gações verbais. A cada situação discursiva, as construções de presente
adquirem valores inusitados, atualizando fatos passados, ao substituí-
rem as formas do pretérito: “Em 1964 ocorre o golpe militar no Brasil”;
presentificando o futuro, em lugar das formas de futuro, como quando
se diz “Vou amanhã”; estabelecendo uma ideia de contemporaneidade
coletiva: “Hoje é primavera”; ou de verdade permanente, como quando
se diz que “A terra é redonda”; ou, ainda, transportando os fatos para
uma situação de presente estendido: “Moro em Vitória”. Portanto, es-
sas construções fazem parte não apenas de estratégias argumentativas,
mas de organizações sistêmicas que estruturam os discursos de um
tempo, de um local, que estruturam, enfim, “formas de vida”, como
diria Wittgenstein (1984).
Já em 1977 o professor Milton José Pinto, em seu livro Análise se-
mântica de línguas naturais: caminhos e obstáculos, apontava para a inter-
disciplinaridade do fato semântico:
Ao final desse mesmo livro, o autor acrescenta, como uma das pers-
pectivas de desenvolvimento na área da semântica: “uma semântica
discursiva, baseada no desenvolvimento de uma teoria dos discursos”
(1977, p. 90).
Quanta diferença não faria treinar nos alunos um olhar sobre as es-
truturações discursivas? Isso implicaria um novo entendimento da com-
plexidade na relação do homem com a linguagem, considerando esta
não só como instrumento, mas como fenômeno complexo e nem por
isso inabordável. Uma linguagem viva, pulsante, que reflete em si os mo-
dos de existência, e não meros paradigmas verbais, frios de gente. Lem-
brando o cantor e compositor Gonzaguinha na canção “Redescobrin-
do”, uma linguagem que se faz “jogo do trabalho na dança das mãos”.
46
Assim, sob essa perspectiva da cientificidade então vigente, podemos
até dizer que a disciplina semântica encontrava-se bastante estruturada
e com certa homogeneidade, possuindo muitas obras que sustentavam
a sua condição de uma semântica linguística.
Ainda que tenha separado o homem da linguagem ao estudar os sig-
nificados socialmente produzidos, essa disciplina estruturou-se como
um campo de estudos próprio, dentro da linguística. Resta-nos, pesqui-
sadores da área, fazer com que ela incorpore as discussões mais recentes
e caminhe de retorno ao homem, fonte inesgotável do sentido.
Contudo, como nos lembra Pavel (1990, p. 64): “é tão vão propor à
linguística abrir-se à plenitude do sentido [...] quanto esperar da anato-
mia que ela se espiritualize através do estudo do coração ou do cérebro.”
47
Capítulo II
A produção de sentidos
e o sujeito
“[...] o mesmo discurso que revela, es-
conde, o mesmo que aglutina desagrega,
o mesmo que esclarece aliena. Assim é a
linguagem humana e diferente não pode
ser o sujeito que nela se engendra.”
Hugo Mari (1991, p. 29)
48
com Wittgenstein (1984), observando um sujeito com menos au-
tonomia com relação à linguagem. Logo a seguir, após repassarmos
rapidamente algumas diferentes abordagens sobre o sujeito, na sua
relação com a linguagem, recairemos diretamente no conceito de
ideologia, que traz esse sujeito para as relações históricas e sociais.
Retomamos, porém, ao final, o nosso foco na análise linguística a
partir dos efeitos do sentido.
Hoje o conceito de ideologia no trato com a linguagem é ques-
tionado, pois remete à esfera da representação. Atualmente a cons-
trução do conceito de linguagem como sistema simbólico passa pela
noção de construção da subjetividade, ao considerar a natureza fa-
bricada/modelada da natureza humana. Portanto, não se pensa mais
algo de fora a interpelar os sujeitos, a manipulá-los, mas sim uma
construção coletiva totalmente moldada das nossas subjetividades.
No entanto, retomaremos aqui o histórico desse conceito, porque
muitas são as teorias que surgiram tendo por base uma concepção
marxista. A própria noção de discurso elaborada pela análise do dis-
curso de linha francesa participa dessa construção. Entendemos, por
isso, que passar por esse conceito é a melhor maneira de demonstrar
a complexidade da constituição dos sujeitos em linguagem.
Quando se pensa na enunciação, a produção de sentido parece
ocorrer via mecanismos de manipulação do código que apresentam
traços de diferença, conduzindo a dimensões referenciais distintas
(MARI, 1991). Contudo, algumas teorias discursivas afirmam que
o sujeito produtor de discursos não joga com a linguagem de modo
consciente, já que se encontra nela imerso, mas os sujeitos observam
a realidade de maneiras diferentes e por isso reinauguram a lingua-
gem com novas metáforas, sendo a metáfora própria da condição da
linguagem e não um lugar a ser construído por um sujeito a partir
das suas escolhas conscientes.
Aqui estamos assumindo um conceito de sujeito não totalmente
consciente, nem totalmente individual, mas que vivencia experiências
de significados. Assim, realiza produções de sentidos a partir das suas
condições de enunciação.
49
A produção de sentidos na linguagem
50
destaque, ou para ser respeitado. Neste sentido, ele joga com os su-
bentendidos, com os “não ditos”. O discurso mais interessante não é,
desta maneira, o mais informativo ou mais fiel ou verdadeiro. Não há
como medir essas categorias, pois elas não se encontram nos discursos
e sim nos interesses do leitor.
Dentro dessa perspectiva, as palavras não significam em si, mas nos
homens, na sua relação com a história. Apesar de as frases assegurarem
parte da significação firmada pelas convenções sociais, elas permitem
aberturas e rearranjos que rearticulam uma parcela do seu sentido em
função das intenções do sujeito produtor dos discursos.
Para as teorias deterministas, a linguagem é tratada como preexistin-
do ao sujeito e ao objeto, ou seja, a linguagem nomeia a realidade. Para
as perspectivas que consideram o sentido, o objeto é constituído em
linguagem, segundo as condições históricas vividas pelo sujeito.
Por exemplo, por mais que possua a mesma denominação, o que
um médico ortopedista entende por “joelho” é bem diferente daquilo
que nós entendemos. Se falarmos sobre uma lesão no “joelho”, isso vai
significar pouca coisa para um fisioterapeuta, afinal, o “joelho” é algo
complexamente estruturado. Por significar coisas distintas para os mé-
dicos, fisioterapeutas e pessoas comuns, podemos dizer que a palavra
“joelho” não diz de uma realidade única.
Agora pensemos em palavras como “copo”, por exemplo, que reme-
te a uma infinidade de “tipos de copos”, numa multiplicidade de cultu-
ras distintas. Imagine palavras como “saudade”, “amor”, e até a palavra
“pai”, que para alguns significa “progenitor” e, para outros, “aquele que
cuida”, ou mesmo deixa certo vazio significativo para muitos dos que
não possuem uma figura paterna como referência.
A linguagem, neste sentido, não se estrutura como um instrumen-
to pronto, ela se reconstrói constantemente nas inter-relações que vai
alicerçando. Nesse processo, múltiplas realidades coexistem ao ponto
de a comunicação ser um processo de não comunicação ou de falta.
Pensando que estamos sendo compreendidos, esquecemo-nos de que
as realidades de cada pessoa são distintas, pois a sua história lhes trouxe
outras significações.
Ao discutir essas questões, Mari chama a atenção para o fato de o
sentido não se esgotar em uma matriz de traços conceituais/cognitivos
(significado). Na verdade, essa matriz é acrescida de uma intenção. O
51
sentido é, desta forma, conjuntural. Tanto é assim que os modelos ló-
gicos não conseguiam descrever todas as dimensões do sentido, porque
ele caminha por lugares inusitados, sempre, e depende das situações
para se fazer. Para Mari (1991, p. 29), “não existe um sentido único,
nunca, em nenhuma frase, embora exista um sentido consensual, mui-
tas das vezes”.
A questão da significação em uma língua natural suscita um vasto
quadro conceitual, com grande flutuação terminológica, pois o objeto
de estudo é por demais fluido, apesar de ser de grande interesse para as
mais diversas áreas, como psicologia, sociologia, antropologia, filosofia,
neurofisiologia, artes, comunicação social, entre outras, principalmente
na atualidade quando a civilização da escrita se instaura dentro da “al-
deia global”.
52
Desse modo, as concepções histórico-comparativistas, largamente
difundidas na época, retiram a linguagem de uma perspectiva mera-
mente instrumental ou convencionalista, perspectiva esta presente nos
gramáticos normativistas, advindas das gramáticas greco-latinas.
No entanto, a partir dessas concepções histórico-comparativistas,
afirma-se que a história teria, por si mesma, um sentido próprio, in-
dependente dos indivíduos. Segundo Henry, Wundt opõe-se à visão
dos neogramáticos, porque para estes “a história encontra sua dinâ-
mica originariamente na ação de indivíduos isolados e na psicologia
dessas ações” (HENRY, 1994, p. 33).
53
sobre essa tentativa de cientificidade a partir da biologia, quando
Chomsky se propõe a pensar a linguagem como geneticamente codi-
ficada: “pode-se perguntar com razão se a linguística tem necessidade
dessa legitimação e se ela tem alguma possibilidade em encontrá-la
desse lado” (HENRY, 1994, p. 39).
Henry (1994, p. 39) admite que, “no campo das ciências humanas
e sociais, a linguística ocupa mesmo uma posição particular. Ela chegou
a colocar de forma regular suas relações com a história, estabelecendo a
autonomia de seu campo em relação a ela”. Desse modo, a linguística
pode servir às outras ciências, mas não se abre à história, porque isso
significaria assumir a existência de contradições, pois a história não pos-
sui um sentido, uma direção a priori.
Segundo Henry, as concepções de história presentes nas ciências
humanas ou concebem que ela tem sentido por si mesma (historicis-
mo) ou que o seu sentido depende da ação dos homens (marxismo).
Ao interligar história, linguagem e sujeito, Henry atribui à história
um movimento próprio, afeito às contradições que constituem os
acontecimentos. Deste modo, não há uma linguagem a priori, um
sujeito biologicamente acabado, um pensamento originário e nem
uma história que tudo preside. Tanto a história quanto o sujeito e a
linguagem se fazem no devir, nas contradições, dentro de um movi-
mento incessante.
Sob a perspectiva da história como acontecimento, caberia às ciên-
cias humanas interpretar (reconstruir) os sentidos da nossa realidade
subjacente, constituidora dos povos, como quer Wundt, ou dos saberes,
como quer Foucault. Daí surge a noção de “produção de sentido”.
Para Henry (1994, p. 51-52):
54
A partir da influência de Hegel e da importância da in-
terpretação histórica da cultura, as ciências humanas são
vistas caracteristicamente como ciências que se fundam
na interpretação das manifestações simbólicas da cultura
em seus vários contextos. A interpretação, a reconstrução
do sentido é portanto o modo de compreensão mesmo de
nossa realidade cultural. A própria experiência humana
passa a ser vista como produção de sentido (MARCON-
DES, 1994, p. 201).
Isso porque a linguagem é entendida como constituidora dos su-
jeitos sociais e, como tal, lugar de onde emanam as concepções ide-
ológicas de uma época e de um povo. Mas em Marx a consciência é
sobredeterminada pela história (e, consequentemente, pela linguagem).
E é na produção dos sentidos socialmente recorrentes que se afrouxam
as concepções marxistas clássicas em linguagem, pois o que percebemos
é que não há como negar a constituição intersubjetiva dos significados,
e isso aponta para certo nível de indeterminação. O fundamental dessa
abordagem é que a significação é entendida a partir das suas condições
de produção, ou seja, não mais se pensa a significação distante da pro-
dução dos discursos.
Evidentemente, os estudos sobre a produção de sentidos não se configu-
ra dentro de uma corrente de estudos linguísticos específica, alicerçada em
abordagens teóricas fechadas. Ela é sim um modo abrangente que abarca
um vasto campo de estudos que se aglutinam dentro de uma perspectiva
de trato da linguagem a partir do processamento social do sentido.
Falante ou sujeito?
Uma das diferenças mais marcantes nessa abordagem da perspectiva
da produção do sentido é a noção de sujeito. Sob essa perspectiva, não
há alguém que se aproprie de uma linguagem pronta para transmitir
suas ideias e sentimentos (o falante). Aqui a linguagem é entendida
como parte integrante na construção da subjetividade. Não há sujeito
sem linguagem assim como não há linguagem sem sujeito.
Vamos procurar compreender o que isso significa.
55
Nenhuma pessoa é considerada uma individualidade completa, pois
cada qual é constituída, em suas atitudes, em seus desejos, em sua lin-
guagem, por uma história coletiva. Nem mesmo o pensamento pode
ser tido como fruto de um indivíduo autônomo.
Nas teorias que apresentam a linguagem como instrumento de co-
municação, o sentido advém da organização das frases e das unidades
lexicais. Estas já estariam definidas fora de qualquer contexto. O sig-
nificado do dicionário é priorizado em detrimento do sentido que as
expressões ganham em uso. O resultado é um produto final previsível,
com poucas variações.
Se entendermos que sem o sujeito não há linguagem, ou seja, que
ela não está pronta antes do uso, o sujeito pode ser compreendido como
uma prerrogativa de linguagem (MARI, 1991). Sem ele a linguagem
inexiste. Como cada sujeito vivencia experiências de significado dis-
tintas, os efeitos de sentido produzidos por seus discursos não podem
ser previstos. Nunca se sabe o que o outro vai captar ou perceber. Os
efeitos de sentido dependerão das condições de produção, circulação e
consumo dos discursos (VERÓN, 1980).
Para Mari (1991, p. 8) o sujeito deve ser o interesse primeiro daqueles
que pretendem lidar com a significação. A importância dessa categoria
está no fato de ela assumir a questão da produção de sentido em lingua-
gem de um modo não fixado, não previsível. Não se trata somente de um
emissor ou de um falante. Não se trata de uma pessoa que pretende trans-
mitir determinados fatos ou sentimentos da maneira mais clara possível,
querendo diminuir o nível de redundâncias, para que o ouvinte tenha a
compreensão global da mensagem. Mari (1991) acredita, dessa maneira,
que o sentido não se assegura nem só no sistema linguístico, já que uma
mesma frase pode ser entendida de diversas maneiras, nem somente em
relação ao momento histórico. Assim, a significação proposta nunca é da
ordem do previsível, do contextualmente determinado.
No ditado popular, exemplificado por Mari – “Nem tudo que reluz
é ouro.” –, somente as palavras sublinhadas podem sofrer redecodifica-
ções, visto que a sintaxe é convencionalizada, bem como os elementos
coesivos. E, no entanto, o ditado se abre para as utilizações as mais
diversas, propondo efeitos de sentidos inesperados, conforme as inten-
ções e o momento. Desta forma, segundo Mari (1991), o sujeito se
constitui em três momentos:
56
• Linguagem como condição: o sujeito depende do sistema lin-
guístico para se constituir em discurso. Assim, ele reproduz sim,
o sistema (aprende uma língua), como também se confronta
com ele. E a determinação do sistema é necessária, pois é por
meio dela que o sujeito encontra suporte para se alicerçar.
57
Aprofundando os conhecimentos sobre a noção de sujeito em
linguagem
58
D’Oliveira, introdutor da obra de Wittgenstein (1984, p. XV)
da Coleção Pensadores, assim apresenta as concepções do filósofo:
59
é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida
(WITTGENSTEIN, 1984, p. 18).
60
Dentro da perspectiva proposta por Wittgenstein, não se deve
centrar no que está supostamente oculto à linguagem, e sim des-
vendar o seu funcionamento, conforme dissemos anteriormente.
Contudo, ele não propõe uma abordagem da linguagem de um
modo simplista e ingênuo; é necessário ter em mente a sua com-
plexidade, como explica D’Oliveira nos comentários iniciais às
Investigações filosóficas (1984, p. XV):
61
Diferentes abordagens sobre o sujeito
62
Segundo Marcondes (1995, p. 25), no mesmo artigo, é Hegel quem
introduz a crítica ao paradigma subjetivista ao questionar a filosofia
kantiana. Contrapõe ao caráter originário da subjetividade a noção de
uma consciência historicamente determinada, constituída e não mais
originária. Para Hegel, o sujeito é resultado de um processo que envol-
ve: linguagem – sistema simbólico herdado; trabalho – interação com o
mundo natural através da produção dos meios de subsistência humana
em suas várias formas históricas; ação recíproca – interação da consciên-
cia individual com outras consciências.
Na linguística, com base em uma perspectiva marxista, o livro Mar-
xismo e filosofia da linguagem, de Bakhtin/Volochinov (1988 [1929]),
critica o subjetivismo individualista apontando para um sujeito histó-
rico-social e para uma concepção de língua que não é abstrata e nem
possui como fonte o ego. Segundo o autor, a língua se constitui na
interação verbal. Bakhtin contrapõe-se a Saussure (1972 [1916]), que
trata a língua como abstração e o sujeito como falante, articulador de-
cisório da linguagem.
Para Althusser (1970, p. 93), também marxista, “a ideologia inter-
pela os indivíduos enquanto sujeitos”; deste modo, indivíduos concre-
tos sofrem das ações das formações ideológicas presentes em qualquer
sociedade e se transformam em sujeitos. Esses indivíduos passam a ter,
então, a ilusão da subjetividade a partir da qual se reconhecem e são
reconhecidos em sociedade. Esse sujeito constituído pela e para a ide-
ologia aceita o seu assujeitamento, pois tem a impressão de que tudo é
exatamente assim.
Althusser aponta, porém, para sujeitos não reconhecidos socialmen-
te, os “maus sujeitos”, que, não caminhando de acordo com as coerções
impostas pelas condições de produção, sofrem punições dos aparelhos
repressivos do Estado. Portanto, apesar da extrema determinação apre-
sentada por Althusser em sua teoria, esta acaba por apontar para as
contradições presentes no próprio sujeito, ou para certa tensão na sua
constituição.
Para muitos teóricos, como Pêcheux, foi Althusser quem formulou
os fundamentos reais de uma teoria não subjetivista do sujeito. Base-
ando-se nessa perspectiva teórica, Pêcheux busca trabalhar essa questão
dentro da linguagem e afirma que “a interpelação do indivíduo em
sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com
63
a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído
como sujeito)” (PÊCHEUX, 1988, p. 163).
No entanto, o sentido das palavras é dependente das condições de
produção dos discursos. Deste modo, tanto o sujeito como o sentido
são constituídos no discurso. Sob esse ponto de vista, nega-se um sujei-
to fundador da linguagem, detentor do significado, por uma concepção
do sujeito constituído em linguagem.
Resumindo:
64
a significação sob quaisquer desses pontos de vista: dialogal (Bakhtin),
inserida nas formações discursivas e ideológicas (Pêcheux), a partir dos
jogos de linguagem (Wittgenstein), entre tantos outros.
Pretendemos ter demonstrado o que há de comum entre essas diver-
sas abordagens, que é exatamente a inserção da linguagem na história,
do sujeito na linguagem e do sentido nas condições de produção.
Sujeito e ideologia
65
nava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas
sobre o real” (CHAUI, 1984, p. 25).
Os ideólogos inicialmente apoiaram Napoleão Bonaparte, por acredi-
tarem que ele assumia as ideias da Revolução Francesa. No entanto, mais
tarde romperam com Napoleão e este passou a usar o termo “ideólogo”
como aquele que vive num mundo especulativo, fazendo abstração da
realidade. Esse conceito triunfou sobre o anterior e triunfa até hoje.
“A ideologia alemã” – texto que faz parte da obra completa de Marx
e Engels, datado de 1845/1846, mas publicado em 1932 – anuncia a
existência prática de um conceito de suma importância para estudos
subsequentes, o conceito de “ideologia”. Para Marx, a ideologia pos-
sui uma ligação direta com as relações econômicas. Os indivíduos são
impedidos de constatar a exploração do capital para que aceitem a sua
submissão a ele.
Chaui (1984, p. 113) assim a define:
66
Umberto Eco interessa-se pelo movimento contínuo pelo qual a
informação redimensiona códigos e ideologias e se retraduz em novo
código e nova ideologia. No livro As formas do conteúdo (1974), Eco re-
afirma a ideologia como “visão de mundo” que os falantes de uma dada
sociedade compartilham, o que a constitui em “sistema semântico”.
Interpretá-lo é interpretar parcialmente a sociedade.
Rossi-Landi, no livro A linguagem como trabalho e como mercado
(1985), considera o caráter necessariamente ideológico do discurso,
uma vez que todo discurso se localiza numa situação histórico-social
determinada. Ou seja, segundo esse autor, só é possível pensar a partir
de uma ideologia. Cada discurso apresentará, implícita ou explicita-
mente, um projeto social que lhe garanta o sentido.
Para Eni Orlandi em Análise de discurso – princípios e procedimen-
tos (2003):
67
O sujeito vivencia experiências de significado
Por meio deste breve passeio por alguns autores, pudemos perceber
que a categoria sujeito é um espaço que diz da complexidade da lin-
guagem, porque envolve tanto as relações históricas e sociais quanto a
própria constituição da linguagem.
O que estamos propondo é uma análise da linguagem em uso nas
interações, observando-se as questões sociais e culturais que o arranjo
do material linguístico propõe, privilegiando-se os efeitos de sentido.
Desse modo, o enfoque recai tanto sobre o confronto que o sujeito es-
tabelece com o sistema linguístico quanto sobre o confronto do sujeito
com a história. Dentro da concepção aqui adotada, esse sujeito repre-
senta sempre um grupo, porque está imerso num sistema simbólico.
No entanto, as pessoas possuem experiências de significado que viven-
ciam de modos particulares. Dessas vivências surgem traços de diferen-
ça. Estamos considerando, portanto, um produtor de sentidos, que pode
ser um grupo, uma pessoa, uma coletividade, e que, porém, não possui
consciência plena do processo de produção dos sentidos em linguagem,
já que se trata de um processo complexo e pouco delimitável.
Não montamos palavras exclusivamente para verbalizar. Optar por
determinadas estruturas significa optar por um lugar no mundo. Re-
presenta assumir posturas em linguagem. Desta forma, as partes cons-
titutivas da linguagem, sua sintaxe, sua morfologia, que estruturam o
sistema linguístico, não se encontram prontas ou fixadas. Somos nós
(enquanto coletividade) que alicerçamos determinadas estruturas den-
tro das possibilidades, em função dos nossos desejos, dos nossos pro-
pósitos histórico-sociais, para nos colocar, marcar nosso espaço, nosso
ponto de vista. Ao linguista cabe observar o funcionamento desses dis-
cursos, em cada um dos detalhes que os diferenciam dos demais, no
jogo que propõem. A leitura das diferenças vai formando a rede que nos
possibilita ler nuances do todo – o momento histórico, a sociedade, as
comunidades.
Segundo Gnerre (1998, p. 19), “entender não é reconhecer um sen-
tido invariável, mas ‘construir’ o sentido de uma forma no contexto no
qual ela aparece”. O autor acrescenta que:
68
Nas sociedades complexas como as nossas é necessário um
aparato de conhecimentos sócio-políticos relativamente am-
plo para poder ter um acesso qualquer à compreensão e, prin-
cipalmente, à produção das mensagens de nível sócio-político
(GNERRE, 1991, p. 21).
69
tente (de um sociólogo, e não de um operário, como é o caso do outro
candidato); mão direita (ou seja, uma opção que não é de esquerda);
mão sem traumas ou defeitos (o outro candidato não possui um dedo).
Enfim, essa polissemia produziu o efeito de sentido de paternalismo,
que veio bem a calhar com o imaginário social da maioria do povo bra-
sileiro, de mentalidade colonialista, reconhecendo no Estado o guardião,
o Pai, a Mão que o protege e conduz os seus rumos sem que ele possa,
queira ou deva interferir. Mas, igualmente, esses efeitos de sentidos não
passaram pelo consciente das pessoas nem seu jogo foi explicitado.
O candidato ganhador foi aquele da “mão certa”, pois, entre um
“pai” e um “cara legal”, prefere-se o pai, evidentemente.
A linguagem, neste sentido, não se estrutura como um instrumen-
to pronto. Ela se reconstrói constantemente nas inter-relações que vai
alicerçando em espaços que estabelecem relações paradigmáticas (em
ausência), a partir de relações sequenciais (sintagmáticas).
A partir dessa mesma perspectiva, Verón (1980) defende que não
devemos observar nos discursos quem fala ou com que intenção elabo-
ra, mas como diz e sobre que bases o fez. Ou seja, é da forma que emerge
a significação, ainda que o jogo seja com o momento histórico.
Segundo Mari (1991), os efeitos de sentido provocados pelas bifur-
cações de leituras, refrações ou mesmo estabilizações de sentido conduzem a
dimensões referenciais distintas, que se devem considerar no momento da
análise semântico-discursiva. Para o autor, os sujeitos estão sempre sub-
mersos na linguagem, camuflados nas formas padronizadas dos discursos,
mas as marcas de seu grupo emergem nas articulações linguísticas que pro-
põem, podendo emergir, também, alguns traços de experiências que di-
ferenciam grupos, fazendo fluir diferentes marcas da memória discursiva.
70
Capítulo III
Teoria do signo e
teoria da referência
71
Qual a relação das palavras com as coisas?
Cada uma das teorias responderá a essa questão de uma forma dife-
rente. Contudo, o que elas mantêm em comum é uma discussão sobre
a significação. Afinal, a relação entre as palavras e as coisas é sempre inter-
mediada pelos sentidos que atribuímos aos objetos reais/imaginários,
aos sonhos, aos desejos, etc.
Iniciaremos abordando uma parte da teoria do signo linguístico, de
Ferdinand de Saussure, porque ela influenciou sobremodo a linguística
no Brasil, devido à base europeia recebida pelas ciências humanas nes-
te país, a despeito de outras teorias sobre a linguagem. Logo a seguir,
abordaremos as questões sobre a referência e o sentido, desde Frege até
as abordagens mais discursivas sobre a relação signo vs. realidade. As
considerações aqui tecidas são fundamentais para o capítulo 4, em que
levantaremos questões sobre o ensino da semântica numa dimensão
que pretende ir do signo ao discurso.
72
A teoria do signo linguístico
9 Diz-se que o Curso de linguística geral é atribuído a Saussure porque não foi escrito
pelo próprio autor. É fruto de suas aulas, compiladas por dois alunos (Charles Bally e
Albert Sechehaye) a partir dos cadernos de outros alunos.
10 Sugerimos a leitura de dois capítulos do livro Curso de linguística geral: "Natureza
do signo linguístico" e "Imutabilidade e mutabilidade do signo" (Primeira parte: prin-
cípios gerais – capítulos I e II).
73
A concepção nominalista remonta ao livro Crátilo de Platão, para
quem o ato de nomear é uma forma de expressar a essência da coisa no-
meada, ou seja, existe um elo comum entre os nomes e as coisas que eles
nomeiam. O acesso a essa essência primordial seria possível a partir do
exame etimológico e da decomposição dos nomes em seus elementos
primitivos. Por isso Platão buscava na linguagem a verdade, expressão
da própria natureza das coisas. No Crátilo apresenta 140 etimologias
de palavras. Sob essa perspectiva, pouco importa o que as palavras sig-
nificam, e sim o que elas nomeiam (o que referenciam). O que está
em jogo é a realidade, e não a linguagem. Pela linguagem se pretendia
compreender melhor a realidade nomeada.
Já para Saussure não existe uma relação direta entre o objeto, de um
lado, e a palavra que o nomeia, de outro. Essa relação é sempre inter-
mediada por um sentido. Isso porque a linguagem, para Saussure, é de
natureza psíquica.
O signo linguístico é, assim, uma entidade psíquica de duas face-
tas, o significante e o significado:
Significado Conceito
Significante Imagem
acústica
74
O professor corrige o aluno dizendo:
— Não se diz “largatixa”, e sim “lagartixa”.
Então o aluno retruca:
— Mas estou dizendo “largatixa”, do jeito que você falou.
Esse aluno não consegue assimilar a forma da palavra apresentada pelo
professor, porque a forma mental que ele possui é “largatixa”. Essa ele adqui-
riu na sua comunidade de fala e a tendência é que ele continue falando assim.
Portanto, para Saussure, não existe uma relação direta do homem
com uma flor, por exemplo, porque essa relação é intermediada por um
signo linguístico e o que a pessoa consegue ver da flor é o que a sua comu-
nidade entende por flor. Ou seja, o objeto já possui um conceito que vem
com uma imagem acústica. Por isso, dificilmente flor vai ser objeto para
comer ou algo perigoso, pelo menos segundo a concepção que possuímos
de flor. E essa relação é sempre de natureza psíquica, o que pode levar as
pessoas a não compreenderem exatamente o que o outro lhes diz, porque
a imagem que cada qual possui do objeto é diferente.
Aqui exemplificamos com objetos concretos, mas imagine o que
isso significa quando se pensa em palavras que denotam sentimentos ou
crenças, como paz ou inferno, por exemplo. Cada pessoa ou comunida-
de terá um conceito diferente desses signos, os quais ainda são mutáveis
conforme o momento histórico-social.
Ora, então, para Saussure, não possuímos uma relação direta com as coi-
sas, o que faz com que nossa comunicação seja sempre frustrante, de algum
modo. Isso também justifica as terapias que pretendem compreender o que
significa “família”, “pai”, “ética” para os pacientes, ajudando-os a reconstituir
conceitos e compreender melhor as concepções dos outros ao seu redor.
A teoria do signo linguístico, de Saussure, apresenta dois princípios
básicos, tendo em vista a própria natureza do signo: a arbitrariedade e a
linearidade do signo linguístico. Eles serão discutidos a seguir.
75
arbitrário = imotivado
76
Há quem sustente, muitas vezes, que alguns sons são as-
sociados com certas idéias particulares ou dão determina-
do tipo de impressão. O som vocálico do inglês heat, por
exemplo, simbolizado [i], é considerado como relacionado
com a noção de leveza, brilho, ou falta de substância, pelo
menos quando em contraste com [a]. Este último, em ter-
mos relativos, tende a dar a impressão de grandeza e poder
(LANGAKER, 1972, p. 33).
77
Segundo princípio: o caráter linear do signo
78
Extensão Linearidade Arbitrariedade
Signo - + +
Símbolo + - -
Imutabilidade
79
Para Saussure a língua é mais do que um contrato, ela é uma institui-
ção social, tal como a família e a escola. Por isso ela é imune às interpe-
lações da comunidade.
Ele diz que se trata de uma instituição diferente das demais, pois
os indivíduos, em larga medida, não têm consciência das leis da lín-
gua. Na verdade, eles nem sabem que ela é uma instituição de tanto
ela se entranha na vida das pessoas. Já as leis que regem o funciona-
mento da sociedade são sempre questionadas, porque fazem parte
de um código civil. A língua é aceita passivamente pelos falantes, na
verdade nem é objeto de preocupação dos falantes. Isso porque o sis-
tema linguístico é altamente complexo, mais do que qualquer outro
sistema institucional.
Essas duas posturas, da língua como contrato e como instituição
social, serão muito discutidas posteriormente a Saussure. São elas que
fazem a ligação entre os estudos da linguagem e a sociologia (sociolin-
guística, sociointeracional).
Desse modo, o objetivo da linguística, para Saussure, é estudar a
vida normal e regular de um idioma já constituído. Por isso opta, em sua
teoria, pelo estudo da langue (língua como sistema), enquanto objeto
de estudo da linguística. Já a parole (fala) só será estudada muito mais
tarde, com o advento da corrente funcionalista em linguística.
Então, para Saussure, a língua é imutável, pelas seguintes razões:
a) porque possui caráter arbitrário (era de se supor que essa tese
estivesse a favor da mutabilidade do signo, mas o fato é que, por não
ser motivada, se a língua fosse mutável, as pessoas não conseguiriam se
comunicar por meio dela);
b) porque existe uma quantidade inumerável de signos e assim não
há como substituí-los;
c) devido ao seu caráter extremante complexo. Mesmo quando gra-
máticos tentam modificar a língua, esbarram na sua complexidade;
d) o povo não pensa a língua (os indivíduos não possuem consci-
ência sobre as leis da língua), por isso não pensariam em revoluções
(mudanças radicais), nesse nível.
80
Mutabilidade
81
exclusão da enunciação do contexto comunicativo, ficando este dependen-
te da compreensão do significado, o que faz do significado o soberano, já
que é na busca da sua compreensão que deve ocorrer a comunicação.
82
cebeu críticas contundentes, pois, no capítulo “Imutabilidade e mu-
tabilidade do signo”, se admite que o tempo altera a língua, porque
altera todas as coisas. Nesse contexto, “tempo” é compreendido como
o passar dos anos, como tempo cronológico. No entanto, o Curso de
Saussure propõe como objeto de estudo da linguística “estudar a vida
normal e regular de um idioma já constituído” (SAUSSURE, 1972,
p. 87). Como se pode perceber, a língua é vista como herança social e,
nesse sentido, o “tempo” aparece como fator de determinação histórica.
Portanto, apesar de colocar a língua como instituição social, essa obra
não a entende como acontecimento histórico-social e, nesse sentido,
os significados já estariam assegurados de antemão, ainda que passíveis
de variações próprias do signo, que muda sem alterar o sistema. O que
se apresenta, portanto, é uma língua relativamente estável, a partir da
dominância do conceito, como dito anteriormente.
Aplicando os conceitos
83
A seguir, temos o conto, que será posteriormente analisado na ínte-
gra, em cada um dos aspectos acima levantados.
Menina
84
só ela percebesse, sutil. Toda pessoa tem que ter um pai, dizia-se.
Sentia que pai era algo parecido com mãe ou roupas: tem-se sem-
pre. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
— Quede seu pai, Ana Lúcia?
— Está viajando – disseram-lhe isso ou ela inventara? Ah,
cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilza não se beijavam quando a mãe estava presen-
te. Se ela chegava eles perdiam o ar ansioso, os gestos rápidos (via
tudo da janela do quarto), sua respiração tornava-se sossegada,
pareciam dois amigos de mãos dadas. Beijar devia ser proibido.
Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais.)
— Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
— Está.
— Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Sentiu-se impotente ante a palavra desconhecida. Uma coisa
nova, que não se podia saber de que lado olhar para possuí-la
toda ou a parte mais bela. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita,
era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber
como sair ilesa da nova armadilha. Tita corada e brilhante de
prazer na sua frente.
— E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça. Ana Lúcia balançara
o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia das
coisas, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria algo
como bonita? Não, não parecia. Flor? Flor parecia. Orquídeas,
rosas, sempre-vivas, desquitadas... Parecia. “Mentirosa! Sua mãe
é desquitada! Não era flor. Tita dissera como quem diz o quê? O
quê? O quê? Sem-vergonha. Sim!, como quem diz sem-vergo-
nha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com excessiva força, amou-a até sentir lágri-
mas, defendendo-a contra a palavra bruta: desquitada, sem-vergonha.
Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava,
baixinho, torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: des-
quitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra agredia, sempre feria.
85
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava
a mãe intensamente, enquanto ela costurava, rápida, bonita mesmo,
com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos,
a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa – a
mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo.
Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada; só por isso duvidou de si, subitamente um dia a tomar
leite para dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Pura,
respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas des-
cobertas. Deixou que a nova ideia se acalmasse. Em breve adormecia.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a
palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava
a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora velha e feia protegia-se atrás da mesa da visão com-
pleta das alunas. Ao terminar a aula perguntava:
— Alguém deseja saber alguma coisa?
Ana Lúcia acendeu-se emocionada. Por que não a professora? Tal-
vez ela fosse boa, talvez dissesse sem raiva o que era desquitada.
Levantou-se tímida, insegura. Já de pé, desistiu: – não perguntou,
quero sentar-me; ela é má, eu sei; não pergunto.
— O que é? – a voz da professora era mansa, mas fria, fria.
Não pergunto, dizia-se.
— O que é? – a voz insistia.
As meninas riam, insuportáveis. Helenice e seus dentes enor-
mes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sentiu que ia chorar. Estar
perto da mãe era o que mais desejava.
— Sente-se – ordenou a professora irritada.
A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bo-
nita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la
calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de
pano com a tesoura.
Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da te-
soura. Admirava o jeito decidido da mãe cortar pano, não hesitava
nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Saberia que Tita chamava-a
de... Como quem diz... (tentava evitar pensar as palavras, mas sabia
86
que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão di-
fícil!). A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora
quase com fome depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e
— Mamãe o que é desquitada? – atirou rápida com uma
voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou
Deus aparecia – sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instan-
te, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura
no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamen-
to, a máquina avançando desgovernada sobre o vestido de seda
brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu as coisas em sua exatidão com uma voz ma-
ravilhosa e um riso:
— Eu precisava mesmo explicar a situação. Mas você é tão
pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Achou
que não devia dizer tudo. Sabia como.
— Desquitada é quando o marido vai embora e a mulher
fica cuidando dos filhos.
Pronto, libertara-se – sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada,
desquitada – repetia sem medo. Não precisava saber mais. Sentia-
se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar com aquela
força de antes. Sendo apenas uma menina podia cansar-se e então
o que seria da mãe? Bom, que desquitada não insultasse. Bom mes-
mo, deixava-a livre para pensar e não pensar, coisa tão difícil que...
— Marido é o pai? – ocorreu-lhe de súbito. A mãe sorriu e
confirmou.
(Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada – ia
Ana Lúcia aprendendo, descobrindo.)
Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exem-
plo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Essa é
uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez mais.
87
Análise semântica do conto “Menina”
Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério,
sombra. Não se arriscava a dar um palpite, havia perigo de outro engano...
desquitada
88
Em um primeiro momento, Ana Lúcia trabalha sobre o próprio sis-
tema linguístico tentando encontrar um significado para a palavra via
motivação, a partir de estruturas sintáticas possíveis à palavra:
Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia das coisas, de um gesto, de
uma palavra como desquitada ou parto.
89
[...] é quando o marido vai embora e deixa a mulher
cuidando dos filhos.
90
aquele que foi embora e aquele que está viajando
Toda pessoa tem que ter um pai, dizia-se. Sentia que pai era algo parecido com
mãe ou roupas: tem-se sempre. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem
91
signos instituem, assim, o que chamamos de realidade.
Contudo, em 1996 foram encontrados os manuscritos de Saus-
sure, que são os rascunhos que resultariam em um livro de linguísti-
ca geral. Uma parte deles foi organizada por Simon Bouquet e lan-
çada no Brasil em 2004 com o nome de Escritos de linguística geral.
Nos Escritos de Saussure, o signo é apresentado não a partir do
sistema dual (significante-significado), mas na sua diferença com
outros signos, e só se percebe a sua significação na relação com o
que ele não significa. Dentro dessa concepção o signo é forma e
significação, sendo que uma forma é relativa a uma significação e
uma significação a uma forma, e isso em relação a outras formas e
a outras significações também. Assim, os signos não estão prontos
na língua, eles existem na relação com outros signos.
Sob essa perspectiva, continua-se a isolar o referente da lingua-
gem e importa pouco a relação referencial, mas pesa menos a língua
como instituição, como herança social que calca nela os significa-
dos. Estes passam a se fazer na relação com outros signos, no movi-
mento mesmo da linguagem.
Poderíamos supor que o Saussure dos Escritos já assume a língua
no âmbito da sua realização e assim o sistema de referenciação seria
um arquitetar constante dentro das práticas de linguagem. No en-
tanto, essa concepção de signo ali presente está calcada na de valor
linguístico, na ideia de língua como sistema, e aponta para relações
discursivas de trocas. Isso porque os valores se definem pelas suas dife-
renças. Há signos intercambiáveis entre si, outros não, e o seu valor é
um valor dentro do sistema semiológico da língua. Segundo o próprio
Saussure do Curso (1972, p. 129): “Todavia, malgrado a importância
capital das unidades, seria preferível abordar o problema pelo aspecto
do valor, que é, a nosso ver, seu aspecto primordial”.
Também nos Escritos, a relação da linguagem com a realidade
apresenta-se fortuita, pois se estabelece na relação entre signos,
dentro de um sistema de trocas. Os signos se constroem, assim,
na sua negatividade: A só é A porque não é B.
Isso significa que a organização sistêmica da língua estrutura as
92
suas possibilidades, mas as realidades propostas pela linguagem se
definem não conceitualmente, e sim reciprocamente. Isso aponta
para uma linguística da fala ou do discurso. Nas palavras do próprio
Saussure (2004, p. 273):
93
existe senão para os indivíduos que a significam, já que o processo de
significação passa pelo deslocamento da relação da linguagem com
a realidade. Não se trata de um processo individual de produção de
significados – porque a língua, em Saussure, é herança social –, mas
de um processo pouco assegurado de antemão.
Saussure fala ainda dos deslocamentos inerentes a essa relação
significante-significado, pois um significante pode gerar inúmeros
significados e um significado pode caber em mais de um significan-
te, dependendo do contexto histórico-social em que os discursos se
situam, o que gera as conotações, as polissemias, as metáforas, etc.
O autor trabalha o conceito de “valor linguístico”, estando os
signos na dependência dos valores de troca e valores de uso, os
quais são socialmente estruturados e, por sua vez, estruturantes
das relações sociais. Se, por um lado, em Saussure a língua possui
uma faceta estritamente individual, já que se articula em indiví-
duos independentes, por outro ela é vista em estrita relação com
a história coletiva, fazendo-se e refazendo-se segundo os proces-
sos históricos que estruturam as sociedades.
Teorias da referência
94
Interessa-nos, para essa discussão, enfocar a abordagem discursi-
va da referência, para a qual o processo de convenção se insere nas
questões de organização e sustentação das comunidades de linguagem
e estabelece relações de poder e de força. Sob essa perspectiva, convém
observar o movimento de construção e transformação dos sentidos. A
construção de um conceito de referência discursiva permite-nos uma
melhor leitura das possibilidades referenciais da linguagem enquanto
modos difusos de comportamento dos sentidos.
Discussões sobre os modos pelos quais a linguagem referencia a re-
alidade advêm dos primórdios dos estudos sobre a linguagem, encon-
trando-se mesmo em Platão, quando este propõe o debate sobre a natu-
reza da linguagem: seria ela natural ou convencional? Outra importante
referência sobre essa questão, agora mais centrada no funcionamento
da linguagem, é Sobre o sentido e a referência, de Frege, datado de 1892,
que é considerado o texto marco dessa discussão.
No Ocidente, essa questão caminhou de modo tradicional via tríade
semiótica, em que se distinguem sujeito-linguagem-referente/represen-
tação. Ou seja, entre o sujeito e a realidade (ou objeto com o qual ele
deseja estabelecer alguma relação), está a linguagem.
Após Saussure, passou-se a considerar que essa relação não é tão objetiva
como se poderia supor, já que em linguagem a realidade é refratada. Tal
como a luz que ao passar por um vidro se refrata, não atingindo as coisas
diretamente, assim acontece nessa relação do sujeito com o objeto, o sujeito
vê o objeto pela “parede” da linguagem; antes disso, o objeto não existe para
ele de modo significativo, mas pela linguagem o objeto perde a sua carac-
terística natural e passa a ter uma existência convencionada socialmente.
É consenso nas teorias que discutem a linguagem que ela não aponta
para os objetos, referenciando-os, já que via linguagem os objetos adquirem
significação. Além disso, objetos deixam de existir e outros passam a existir,
conforme o momento histórico-social. Não só as coisas presentes no mun-
do físico são objetos de discurso, mas também os desejos, os sentimentos,
os objetos imaginários, entre outros, possuem realidade em linguagem.
Ora, se ocorre a significação da realidade via linguagem, então o
que se interpõe de fato entre a relação sujeito vs. objeto são os sentidos.
Isso nos leva a acreditar que o sujeito não entra em relação direta com a
realidade, pois essa relação é sempre intermediada pela linguagem, com
tudo o que ela carreia de convenção, de concepções e até de história.
95
Além disso, o momento histórico-social parece articular os discursos
possíveis de uma sociedade e de uma época. Afinal, o próprio sujeito se
constitui como tal, em linguagem, já que é um ser social.
Desse modo, não é a linguagem enquanto sistema que interdita a
relação direta entre o sujeito e a realidade, mas sim essa relação comple-
xa que o sistema linguístico mantém com a história e com os sujeitos.
O que resulta dessa relação entre o sistema linguístico, a história e os
sujeitos é o sentido. Este se apresenta como algo errático, flutuante,
adaptável, reorganizável, instável.
O sentido não deixa que a relação entre o sujeito e o objeto seja
de natureza puramente referencial, direta, marcando exclusivamente as
propriedades desses objetos. Por isso, sob o ponto de vista aqui adota-
do, o objeto de estudos da semântica deve ser o sentido e não o signifi-
cado, já que este é relativamente mais estável, dentro de uma sociedade,
indo até mesmo para os dicionários. É verdade que os significados nos
dão a ilusão da referência, mas essa ilusão logo se dissolve diante de um
olhar um pouco mais atento sobre o funcionamento dos discursos.
96
Além disso, Frege percebia que entre a representação e a referência
está o sentido, que para ele são modos de apresentação do objeto. O senti-
do não é resultante nem da representação e nem da referência, mas está
no meio das duas.
97
Referência discursiva
98
Tendo em vista a perspectiva da discursividade da linguagem, não
poderíamos considerar o sujeito como simples indivíduo, autôno-
mo em relação à linguagem e sem qualquer dependência desta para
elaborar as suas concepções. Dissemos que o sujeito se constitui em
linguagem, e nada mais. Agora podemos inferir que ele não é em si
uma individualidade, mas muito mais uma complexidade. Sujeito
aqui não é o falante, não articula a linguagem pela fala, ao contrário,
ele não é “fora da linguagem” e “fora da história”, já que é um sujeito
social. Também não se sabe se é ele quem fala, quando se articula em
linguagem, ou “se falam” por meio dele outros sujeitos, os lugares
comuns, a sociedade, seus amigos, seus pais, seus professores, etc.
Enfim, como afirma Kristeva (1969), é preciso saber quem fala quan-
do eu falo e que me implica totalmente em cada som que enuncio,
em cada palavra que escrevo.
Quando falamos de história, não estamos pensando em uma se-
quência de acontecimentos no tempo, e sim na própria construção
dos acontecimentos no discurso. Sem história não há linguagem e
não há sujeito, porque é na história que eles se constituem e não em si.
Desse modo, a história é constituidora das realidades possíveis e estru-
tura em si as relações que propulsionam os sentidos, afinal, os discursos
são marcados historicamente. É ela que os arquiteta, e não a vontade de
um sujeito autônomo. É nela que se inscreve a memória. É na história
que os dizeres se arquitetam como possibilidades ou são subsumidos
enquanto realidades. Os saberes aí se inscrevem assim como todas as
organizações sociais e políticas.
Partindo da constatação de que a história não se constitui por si
mesma, mas nos homens, de que ela se faz num movimento, numa
direção que não possui um sentido a priori, tendo a contradição como
condição mesma desse movimento, e de que é nesse movimento que o
próprio homem se constitui, então se pode dizer que por si mesma a
história não existe. Ora, então como a linguística pode compreender o
seu objeto, a língua, já que ela se faz na história?
Segundo Henry (1994, p. 51):
99
faça sentido, que não peça interpretação, que não reclame
que lhe achemos causas e consequências. É nisso que con-
siste para nós a história, nesse fazer sentido, mesmo que
possamos divergir sobre esse sentido em cada caso.
Isso nos leva a entender por que, para as teorias da enunciação, cada
ato enunciativo constitui um acontecimento único, ainda que seja uma
frase repetida. Isso significa que a enunciação não se instala em um
tempo-espaço estabelecido na realidade imediata. A enunciação em si é
história e requer uma interpretação para se constituir. Ela não se faz por
si mesma, mas nos homens, na sua relação.
O sistema linguístico também não está isento da história e do su-
jeito. Ele se tece na comunidade e depende das condições históricas
dessa comunidade para se estruturar. Poderíamos dizer que ele é o mais
determinista de todos os elementos estruturantes do sentido, contu-
do ele permite a conotação, a metonímia, a polissemia e tantos outros
processos por meio dos quais o sentido se renova. Além disso, para a
linguagem significar algo, ela depende das condições histórico-sociais.
E para se renovar também, pois o sistema deve garantir a compreensão
da linguagem por todos os envolvidos.
Não há, portanto, como separar sujeito, história e linguagem, já que
um só existe em função do outro. O resultante dessa articulação são os
sentidos. E para adentrar a proposta de discussão da referência discur-
siva aqui apontada, é necessário pensar essa relação a fim de considerar
o modo mesmo de construção dos discursos.
O conceito de “referência discursiva” considera que, ao nos referir-
mos, não apontamos para a realidade, mas para relações internas de uma
comunidade de linguagem. Desse modo, criamos elos de dependência
de grupo e, por conseguinte, transitamos por relações de poder ou nos
submetendo ou questionando os suportes interdiscursivos dessas de-
pendências. Evidentemente, as relações referenciais criam mundos pró-
prios e é por meio desses “mundos possíveis” que temos acesso ao que
chamamos de realidade. Mas esses “mundos possíveis” não podem ser
discerníveis senão pelas suas relações. Eles não existem em si, mas como
um sistema complexo que organiza sujeitos e discursos. Os indivíduos
também são estruturados a partir dessas relações, tornando-se sujeitos.
100
Segundo Foucault (1987, p. 161):
101
se influenciam pelas nossas possibilidades historicamente arquitetadas
em linguagem. Se assim não fosse, sujeito e linguagem não se confun-
diriam. Como não há sujeito fora da linguagem, esta determina mesmo
as possibilidades de existência para nós daquilo que experimentamos.
Neste sentido, a representação resulta das possibilidades determina-
das pelas condições instauradas pelo sentido. Mas, sob essa perspectiva,
o sentido se apresenta como altamente determinista, impondo as possi-
bilidades do sujeito na sua relação com a realidade.
Segundo Mari (2005, p. 98):
102
aliena”. Ou seja, estamos numa condição de não comunicação na medida
em que, ao mesmo tempo que um falante articula seu discurso a partir da
sua condição de leitura, o seu interlocutor pode estar em outro modo de
articulação das possibilidades do sentido proposto, tendo em vista as suas
próprias condições de leitura. Se as realidades são múltiplas, como garantir
a compreensão entre os sujeitos, enquanto falantes de uma língua?
Neste momento, necessitamos de outro conceito para compreender
essa relação que se estabelece em linguagem, o conceito de referenciação,
agora também ele retomado pelo prisma da discursividade.
Referenciação
103
seja, mantém-se uma relação causal com a realidade que é considerada
estável e preexistente, não afetando os sujeitos que se constituem como
falantes. Tudo se passaria por meio de um processo cognitivo pouco
explicado, como se a mente dos falantes fosse o foco da representações.
Além disso, as condições históricas que possibilitam a construção de
objetos de discursos são vistas como fatos sociais e tudo se processa
porque a linguagem é entendida como interação social.
Ao referir-se a essa perspectiva pragmaticista da referenciação, Araú-
jo afirma:
Ora, os objetos de discurso não são em si, mas em função dos dis-
cursos em que se articulam, pois, como afirma Cardoso (2003, p. 139),
“os sentidos de um discurso somente se tornam viáveis pela história,
pela formação de uma memória enquanto condição do legível”. Os
sentidos não surgem como um adendo do léxico, a sua contraparte
conceitual; eles se estabelecem enquanto modos de ser da linguagem,
na história e como condição dos sujeitos.
104
A referenciação é, assim, uma forma de organização dos discursos
que pode ser observado na linguagem, mas que se articula a partir de
condições históricas específicas e dos sujeitos que nela se constituem.
Portanto, a referenciação engendra em cada discurso um modo de ser e
o organiza segundo acordos específicos que instauram as possibilidades
do dizer. Para compreendê-la, precisamos observar a organização dos
elementos envolvidos nos discursos que estruturam um sistema, uma
organização própria.
Dessa maneira, não basta identificar os modos de criação e recriação
de objetos de discurso, é preciso identificar as possibilidades desses ob-
jetos nas práticas discursivas.
Podemos pensar, como exemplo, o discurso sobre a doença realiza-
do por um médico alopata em oposição ao mesmo tema abordado por
um médico homeopata. Eles organizarão seu discurso em função de
suas compreensões sobre doença e, desse modo, cada qual criará uma
relação referencial própria, o que gera uma organização discursiva espe-
cífica de cada área. Há, portanto, em cada um dos discursos, processos
referenciais muito específicos. Para uns as doenças podem ser entendi-
das como reflexos de uma realidade mais complexa, para outros, como
uma mera questão biológica conjuntural.
O sentido não está anexado ao léxico, mas é determinado pelo jogo
sócio-histórico que possibilita o dizer. Por isso o sentido está mais em
função das posições que os sujeitos ocupam nos discursos – seja no
momento da sua produção, seja no do seu reconhecimento – do que
em função da sua relação referencial ou, mais precisamente, de uma
intencionalidade referencial.
Portanto, para as teorias da enunciação, a referência se constitui
dentro de uma prática discursiva estando diretamente dependente do
sentido para organizar as coordenadas do dizer.
Foucault (2007, p. 136) afirma:
105
gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas,
sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram,
em uma dada época e para uma determinada área social,
econômica, geográfica ou linguística, as condições de exer-
cício da função enunciativa.
106
Capítulo IV
Do signo ao discurso
“Eta, língua desgranida!
Alfonsín não entende nada:
Porta é maior que portão
Pois não quer dizer que sim
Pois sim quer dizer que não
Mas se Sir Ney diz que sim
E Pires dita que não
Alfonsín entende tudo:
Farda é mais que fardão”
Millôr Fernandes
107
uma base para discutir os demais, porque, afinal, pretendemos sair da
palavra em direção ao discurso.
108
sos de significação a partir de uma concepção enunciativa, ou seja, da
linguagem colocada em uma condição de enunciação e não somente da
palavra abordada por si mesma.
Nosso intuito é o de treinar no aluno um olhar sobre o movimento
dos sentidos nos discursos, em vez de observar palavras isoladas. Tendo
em vista a formação do professor de língua portuguesa, separaremos os
processos de significação para que sejam compreendidos em suas estratégias
específicas. Contudo, na linguagem em uso percebemos, por exemplo, que
junto das metonímias ocorrem as metáforas, as polissemias, as conotações, os
campos semânticos, as hiponímias, etc. Evidentemente muitos processos de
significação embasam outros ou ocorrem de modo concomitante, porém
concordamos com Jakobson (2000, p. 56), para quem “uma observação
atenta mostra que, sob a influência dos modelos culturais, da personalidade
e do estilo verbal, ora um, ora outro processo goza de preferência”.
Ao focar determinada estratégia de significação, como a ambiguida-
de, pode-se observar que para ser construída ela se utiliza das conotações,
das hiponímias, das homonímias, etc. Entendemos que, ao olhar um pro-
cesso de significação separadamente, no caso, a ambiguidade, o professor
aprofunda discussões sobre seu uso. Com isso evita a atitude simplista de
só identificar ambiguidades, passando a observar a produtividade delas,
conforme o discurso em que aparecem, tal como as piadas e charges
e o seu uso problemático em textos informativos. Podem-se observar,
então, os tipos de ambiguidades que mais aparecem em determinados
discursos. E, quando elas desaparecem, nos textos de propagandas, por
exemplo, quais seriam os motivos? Sugerimos, portanto, que cada um
dos fatores de significação aqui abordados sejam trabalhados separada-
mente, em sala de aula, ainda que se completem. Além disso, pensamos
que é fundamental colocá-los em uma situação de uso.
109
Essa perspectiva de ensino tem o privilégio de incluir o aluno como
leitor-produtor de textos e discursos e de inseri-lo no jogo da lingua-
gem, nas suas artimanhas. Sob a perspectiva dos estudos gramaticais, o
aluno era relegado às regras e à identificação de “figuras de linguagem”.
Ele era excluído do processo mesmo da sua produção e permanecia
como leitor medíocre, sofrendo da linguagem e, o que é pior, manten-
do em si o imaginário de que a utilização “correta” e “bela” da lingua-
gem é coisa de poucos. Esse aluno só estuda fatores semânticos, então,
para poder compreender o que lhe dizem. Ele terá dificuldades em se
ver jogando com esses elementos para produzir sentidos sempre novos.
Está excluído social e culturalmente da linguagem e, por conseguinte,
da cultura, mas pronto para ser um leitor passivo, bem como um cida-
dão que não questiona, resumindo-se a consumir; facilmente manipu-
lado, portanto. É esse o aluno que queremos formar?
Consideramos difícil, para o professor, assumir esse lugar da lingua-
gem que estamos propondo, formando cidadãos inquietos e atentos ao
movimento da linguagem na sociedade. Isso significa abandonar uma
concepção de ensino focada no significado, no sentido acorrentado
pelo dicionário. Ao assumir que a linguagem se constitui no uso, esta-
mos propondo uma concepção dinâmica de construção de realidades,
pautada nas interações, nas trocas cotidianas.
A prática cotidiana desse tipo de trabalho com a linguagem pode
trazer enorme prazer para professores e alunos. Afinal, os sentidos falam
dos homens, das suas organizações e trazem para as aulas a singularida-
de das comunidades de fala.
Denotação e conotação
12 Uma boa abordagem sobre esse tema pode ser encontrada no livro didático Para
entender o texto, de Platão e Fiorin (2007).
110
Denotação: É o uso do signo em seu sentido real, ou seja, o
uso da palavra em seu sentido original.
Conotação: É o uso do signo em sentido figurado, simbó-
lico, ou seja, o uso da palavra, dando-lhe outro significa-
do, que não o original; um sentido figurado (CATARINO,
2014, grifos nossos).
111
palavras da língua de uso cotidiano, por exemplo a palavra “carteira”.
Há múltiplos significados para tal termo, a ponto de não sabermos qual
o primeiro: carteira de dinheiro; de sentar, de banco, de identidade,
imobiliária, etc. No conto “Menina”, trabalhado no capítulo anterior,
o conceito da palavra “desquitada” não é conhecido, já que se trata de
uma palavra de uso jurídico. O que é dado como conhecido, no conto,
é o uso conotativo do termo, que correspondia a “sem-vergonha”. Na
época retratada no conto, década de 1970, esse parecia ser o sentido
consensual do termo.
Já a conotação é definida como sendo um “sentido figurado” da pa-
lavra, um sentido “simbólico”. Ora, então a conotação é tratada como
um uso especial da palavra. Mas, se pensarmos em algumas palavras
da língua, como a acima mencionada, “desquitada”, ou a palavra “cha-
to” (piolho do púbis), perceberemos que é comum o uso segundo da
palavra, e não o seu sentido primeiro. Isso ocorre com muitas outras
palavras da língua, por exemplo a palavra “estrela”, que é utilizada para
se referir a planetas.
Quando pensamos na linguagem em uso, observamos que os sen-
tidos atribuídos às palavras são flutuantes. No uso cotidiano, a palavra
“corda”, por exemplo, adquire conotações variadas como “dar corda”
(estimular), “corda bamba” (situação difícil), “tá com a corda no pesco-
ço” (alguém está pressionando a pessoa), entre outros usos.
Se levantarmos nomes de partes do corpo, tais como cabeça, mão,
cotovelo, pés, olhos, etc., e os observarmos no uso cotidiano, veremos
o quanto são usados com sentidos os mais variados: “dor de cotovelo”,
“pés no chão”, “olhos nas costas”, “passar a mão”, “cabeça de vento”,
etc. Portanto, o que se verifica é uma movimentação constante do sen-
tido das palavras, o que nem sempre corresponde a um sentido especial,
figurado. Por exemplo, “burro” no sentido de não inteligente já é tão
comum que não chega a ser um “sentido especial”. O mesmo acontece
com a palavra “cara”, que pode significar “rosto”, “pessoa”, “alto valor”,
entre outros usos.
Como se pode observar, os sentidos variam conforme a cultura, a
classe social, a “tribo” e nesse processo ganham conotações diversas,
pois a conotação acontece no âmbito da história. Observemos, por
exemplo, a listagem de nomes de animais, abaixo:
112
Utilização conotativa dos nomes de animais – fenômeno pró-
prio da linguagem coloquial: ameba, anta, aranha, aranha ca-
beluda, arara, asno, baleia, besouro, bode, boi de piranha, bruxa,
burro, cabra, cachorro, carneirinho, carrapato, cascavel, cavalo,
chato, cobra, coruja, curiango, dinossauro, égua, elefante, foca,
formiguinha, galinha, galo, gambá, garanhão, gato, gavião, jacu,
jararaca, jiboia, leão, lesma, lobo, macaco, mariposa, maritaca,
marmota, muquirana, onça, ovelha, papagaio, peixinho, peri-
quita, peru, perua, piolho, piranha, porco, potranca, rato, san-
guessuga, sapo, tartaruga, tigresa, morcego, tiú, tiziu, topeira,
tubarão, vaca, veado, zebra.
Órgãos sexuais: cobra, perereca, periquita, peru, pinto, pomba, rola.
113
Assim, a conotação se associa a planos de expressão já constituídos,
acrescendo-se aos significados já existentes. Segundo Mari (1991, p. 68):
114
tas pelas conotações13. Assim, trata-se a conotação como uma forma de
o falante intervir no sistema linguístico, e não mais dentro da clássica
diferenciação entre verdade vs. mentira, tão comum nos manuais didá-
ticos, os quais tendem a ver a conotação como processo classificatório
de significados.
Quando, porém, o professor difere a denotação da conotação nos
moldes tradicionais (denotação = expressão exata da realidade; e conota-
ção = falseamento do real), ele está afirmando que tudo o que vem da li-
teratura, do humor, do uso corriqueiro da linguagem – que usa muito a
conotação – é falso, não deve receber crédito. Como consequência, fica
implícito que há os lugares de verdade na sociedade, que só se utilizam
da denotação: a ciência, por exemplo, ou a medicina, o direito – o que
as análises têm mostrado que não é verdade (CORACINI, 1991). O
professor está, então, referendando a estrutura social vigente em que os
lugares da verdade estão estabelecidos e está formando pessoas crentes
no poder, pouco questionadoras, passivas.
115
esse motivo, Trier só usa o conceito de campo semântico, não tratando
do campo léxico. A partir dessa ideia, ele conseguiu analisar o campo
semântico do iluminismo e o que esse movimento representava para
a sociedade em que surgiu. Fez uma espécie de análise de conteúdo
ou análise inicial do discurso, ou ainda uma análise da representação
social daquele momento.
Trier constatou que eram três as palavras-chave que melhor defi-
niam as concepções referentes ao “conhecimento”, na Alemanha de
1200: Wisheit (sabedoria, conhecimento espiritual, estética e religiosa),
Künst (conjunto de conhecimentos dos nobres, do cavalheiro) e List
(ofício, conhecimentos populares). Essas palavras refletiam uma divisão
do saber popular (List) e cortês (Künst), mas uma sabedoria espiritual
que estaria acima dessas duas (Wisheit). Um século depois, em 1300,
Künst passa a significar conhecimento elevado, ou arte; há uma substi-
tuição de List por Wizzen (saber em geral, e também uma capacidade
técnica particular), mas agora como uma habilidade individual e não
social. Houve, assim, uma mudança na sociedade que foi claramente
demonstrada pelas mudanças de sentidos das palavras.
Ullmann (1977), por sua vez, considera a palavra como um elemen-
to no interior de conjuntos, classificados a partir de uma análise das es-
truturas sociais. Deste modo, a lexicologia está diretamente relacionada
à ciência da sociologia, para esse autor.
Os campos semânticos são muito utilizados principalmente na análise
de conteúdo e nas teorias das representações sociais, advindas da psico-
logia (MOSCOVICI, 1989).
Um campo de significação é um conjunto de palavras associadas.
O campo léxico ou campo lexical está mais preso às significações já es-
tabelecidas, recorrendo às variações sufixais, ao dicionário, ou ao que
estritamente se observa em relação a uma situação ou a um objeto. Já
o campo semântico é um conjunto de palavras associadas a uma ideia,
identificando-se com o momento histórico, os dialetos e as situações de
uso da linguagem.
Por não estarem devidamente diferenciados ou definidos, na maior
parte das teorias e livros de semântica, os conceitos de campo semântico
e campo lexical frequentemente são confundidos. Há autores que os
tratam por campos léxico-semânticos, ou campos associativos tal como
faz Ullmann (1977). Na verdade a base dessa diferenciação está na ideia
116
de denotação e conotação, ou seja, o campo léxico está para o âmbito
da denotação (significados estabilizados na língua, tendo em vista um
determinado momento histórico); já o campo semântico está para o âm-
bito da conotação (significados associados).
Como exemplo, podemos pensar o campo lexical de “morrer”: fale-
cer, deixar de viver, passar de um estado de vida biológica para um estado
de morte biológica, etc. Já um campo semântico de “morrer” poderia ser:
bater as botas, ir dessa para melhor, passar para um plano superior, apagar,
ir pra terra de pés juntos, bater a caçoleta, esticar o pernil, desocupar o beco,
dar a casca e tantos outros, conforme as culturas.
Enquanto nos campos lexicais temos palavras unidas por uma rela-
ção semântica comum, formando um campo conceitual, os campos se-
mânticos representam o conjunto de significados possíveis em torno de
uma unidade lexical, dado um determinado contexto histórico, social e
cultural. Ou seja, o campo semântico é mais amplo porque engloba tudo
o que está associado a uma ideia.
De acordo com a discussão anteriormente feita, sobre denotação e
conotação, observamos que as palavras estão em constante modificação
por receberem conotações as mais variadas, o que torna mesmo difícil
estabelecer os limites entre a denotação e a conotação. Ora, então pode-
mos concluir que, quando associamos palavras em um campo comum,
tendemos a nos deslocar sempre para a conotação.
Vejamos um exemplo que justifique a afirmação anterior. A partir
da ideia de “automóvel”, teríamos os seguintes campos de significação:
Campo léxico: roda, freio, retrovisores, volante, espelhos, bancos,
lona de freio, parafusos, modelo, ano de fabricação, cor, lâmpadas, cai-
xa de marchas, pedais, etc.
Compusemos o campo de significação com palavras associadas estri-
tamente visíveis em um automóvel – campo lexical. No entanto, como
podemos observar, grande parte dessas palavras migraram de outros
campos para compor esse, por exemplo: cor, lâmpadas, parafusos, ban-
cos, espelhos, pedais, etc., ou seja, servem a mais de um campo léxico.
Não há, portanto, palavras estabilizadas na língua, com funcionamen-
to fechado, preciso, que comporiam um campo lexical básico. O que
ocorre são associações constantes, já que as palavras da língua sempre se
estruturam em analogia com outras.
117
Por isso podemos concluir que o que temos na língua, na
verdade, são campos semânticos, já que os significados são
pouco estáveis, em qualquer língua.
118
horizontal, tendo por base o valor que as palavras possuem para deter-
minado grupo, em certo momento histórico-social. Um bom exercí-
cio pode ser solicitar ao grupo que organize palavras de uma listagem
de sinônimos dentro de uma organização horizontal, ou seja, pelo
valor que possuem.
119
Sinonímia e antonímia
14 Uma boa discussão sobre essa questão encontra-se no livro Semântica, de Ilari e
Geraldi (1990).
120
se abandone esse conceito, devido à sua pouca utilidade e inconsistên-
cia. Quanto à sinonímia, diz que os dicionários de sinônimos deveriam
se chamar dicionários analógicos, já que veiculam ideias afins.
Palmer (1976) faz um exaustivo estudo sobre a sinonímia, o que o
leva a afirmar que:
121
Além disso, são consensuais em dizer que falar de antonímia, pura e
simplesmente, é insuficiente, porque nem sempre há oposição contra-
ditória, por vezes o que há é reciprocidade, como em comprar e vender.
122
em função do público que se pretende atingir, adequando discursos.
Diante dessas constatações, sugerimos que os professores questio-
nem a definição de sinônimos e antônimos nos manuais didáticos, bem
como os exercícios que cobram substituição de palavras em frases soltas.
Sugerimos um ensino baseado na produção e interpretação de textos.
Estudantes e professores podem criam textos como o abaixo, feito por
duas alunas do curso de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), Fernanda Maia e Tatiana Aparecida, para ensinar sinonímia:
123
— Seu pai tem razão, meu filho. – disse a esposa do profes-
sor. – Você ainda não tem noção do amor que os pais sentem
pelos filhos. Somos capazes de fazer qualquer coisa por vocês. É
inconcebível o repúdio de um pai pelo filho.
A vizinhança continuava atenta às movimentações na casa do
menino Carlos.
— E agora, – perguntou o dono da farmácia a um cliente que
lhe teria dado a informação. – será que o menino vai morar so-
zinho? Coitado! Ele já não tem mãe e o pai... enjeitou o próprio
filho! O mundo está perdido!
— Do que você está falando? – perguntou o vizinho da es-
quina.
— Ora, você ainda não sabe? O pai que rejeitou o filho...
— Que pai, que filho?
— O pai de Carlos, o menino que mora ao lado de sua casa.
Você está desinformado, hein?!
— Vocês estão ficando loucos? – perguntou o vizinho da es-
quina, com um ar de espanto.
E continuou: — Carlos não foi rejeitado, abandonado e
muito menos desprezado pelo pai. Acho que houve um engano.
Os desinformados aqui são vocês. O pai de Carlos apenas viajou.
Viajou para comprar um presente para o filho. Só isso!
— Não acredito nisso, toda a vizinhança sabe que os dois não
se dão muito bem – retrucou o farmacêutico.
— É verdade, eles brigam de vez em quando, mas daí a de-
samparar, abandonar o próprio filho, isso ele não faria.
124
O pai deixou o filho.
O pai largou o filho.
O pai desistiu do filho.
O pai renunciou ao filho.
O pai repudiou o filho.
O pai enjeitou o filho.
O pai rejeitou o filho.
Sobre o ensino da antonímia, o que fica é que qualquer palavra pode ser
colocada em oposição a outra, conforme o contexto em que aparece. Ao
mesmo tempo, nem sempre as palavras que são listadas como antônimas
encontram-se em oposição, como é o caso de ganhar e perder. Essa oposição
pode valer em situações de jogos, mas não de ganhar presentes, por exemplo,
pois nesse caso não se usa perder presentes como seu antônimo.
Então, o que se pode trabalhar em sala é o valor opositivo de ter-
mos nos textos. Podem-se utilizar textos poéticos ou músicas, como
no caso da música abaixo:
125
O quereres – Caetano Veloso Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Onde queres revólver, sou coqueiro Encontrar a mais justa adequação
E onde queres dinheiro, sou paixão Tudo métrica e rima e nunca dor
Onde queres descanso, sou desejo Mas a vida é real e é de viés
E onde sou só desejo, queres não E vê só que cilada o amor me armou
E onde não queres nada, nada falta Eu te quero (e não queres) como sou
E onde voas bem alto, eu sou o chão Não te quero (e não queres) como és
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês Onde queres comício, flipper-vídeo
Onde queres Leblon, sou Pernambuco E onde queres romance, rock’n’roll
E onde queres eunuco, garanhão Onde queres a lua, eu sou o sol
Onde queres o sim e o não, talvez E onde a pura natura, o inseticídio
E onde vês, eu não vislumbro razão Onde queres mistério, eu sou a luz
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão E onde queres um canto, o mundo
E onde queres cowboy, eu sou chinês inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
Ah! Bruta flor do querer E onde queres coqueiro, eu sou obus
Ah! Bruta flor, bruta flor
O quereres e o estares sempre a fim
Onde queres o ato, eu sou o espírito Do que em mim é em mim tão
E onde queres ternura, eu sou tesão desigual
Onde queres o livre, decassílabo Faz-me querer-te bem, querer-te mal
E onde buscas o anjo, sou mulher Bem a ti, mal ao quereres assim
Onde queres prazer, sou o que dói Infinitivamente pessoal
E onde queres ternura, mansidão E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Onde queres um lar, revolução
Do querer que há, e do que não há
E onde queres bandido, sou herói em mim.
126
O que se percebe quando se opta por tratar a antonímia a partir de itens
lexicais isolados é uma postura dualista preconceituosa, já que um termo
exclui o outro. Por essa perspectiva, ou uma pessoa é normal ou anormal,
ou é rica ou é pobre, ou é nova ou é velha, ou é boa ou é má. Isso significa
treinar nos alunos uma redução na observação da realidade, e não a sua am-
pliação. Além disso, cultivam-se preconceitos já tão fortemente arraigados
em nossa sociedade. Por isso seria bom que o professor desfizesse os opostos
marcados socialmente, em vez de referendá-los.
Polissemia e homonímia
127
nas preposições, nas conjunções, nas flexões, etc.), como
à significação externa concentrada nos semantemas e ca-
racterizadora das palavras (v.), mas há casos extremos que
principalmente chamam a atenção na descrição linguística;
cf. prep. a em – ir a Lisboa, andar a pé, falar a Pedro, ou
andar em – andar a largos passos, andar de automóvel, an-
dar doente. As correspondências de formas, de uma língua a
outra, nunca se mantêm em todo o campo polissêmico que
cada forma na sua língua abrange, o que complica a técnica
de fatura do dicionário bilíngue (v.) e a tradução de língua a
língua (CÂMARA JR., 1986, p. 116, grifos do autor).
128
O que é importante percebermos é que, mesmo sendo homônimas,
as palavras são polissêmicas, já que essa é uma propriedade de todas as
palavras da língua. Uma propriedade não exclui a outra.
Podemos perceber, ainda, que a distinção entre homonímia e polis-
semia também depende das propriedades denotativa e conotativa das
palavras. Se se considera a denotação, a palavra isolada do contexto, o
que se chama de sentido real ou primeiro, então o peso recai sobre a ho-
monímia. No entanto, se pensamos a língua a partir da conotação, esta-
remos no âmbito da polissemia, pois o que a possibilita é a condição de
as palavras conotarem, ou seja, adquirirem cargas semânticas diversas.
Nas salas de aula, o que observamos é o ensino da homonímia com
o fim de diferenciação ortográfica. A abordagem gira em torno da se-
guinte classificação, com algumas variações.
• Homófonas homográficas (homônimos perfeitos): palavras
iguais na escrita e na pronúncia – são, manga e cabo, por exem-
plo;
• Homófonas heterofônicas: palavras iguais na escrita, mas dife-
rentes na pronúncia – colher (ação, verbo) e colher (utensílio,
substantivo);
• Homófonas heterográficas: palavras iguais na pronúncia, mas
diferentes na escrita – concertar e consertar, por exemplo.
Observe como é difícil para o aluno compreender essa distinção
e gravar essa nomenclatura que pretende diferenciar os processos
homonímicos.
Já sobre a polissemia, lidar com ela significa possibilitar a ampliação
da condição da leitura dos textos, observando-os em suas nuances de
sentidos, bem como da produção de sentido pelos alunos, quando pro-
duzem suas falas e textos.
O texto de Monteiro Lobato, colocando a problemática da lingua-
gem nas palavras de Emília, pode ser fantástico para demonstrar aos
alunos o papel da polissemia na linguagem.
129
Por que eles não cortam a língua?
Monteiro Lobato
Emília ria-se, ria-se. O pobre anjinho não tinha ideia nenhu-
ma das coisas da Terra, porque sempre vivera no céu, lá nas nu-
vens. Emília era obrigada a explicar tudo, tudo...
— Oh, disse ela, você não imagina como é interessante a
língua que falamos aqui! As palavras da nossa língua servem para
indicar várias coisas diferentes, de modo que saem os maiores
embrulhos. O tal cabo, por exemplo. Ora é isto, ora é aquilo.
Há os cabos de faca, de bule, de panela, como eu já disse que
são as pontas por onde a gente pega nesses objetos. Há os cabos
da Geografia, que são terras que se projetam mar adentro. Há os
cabos do Exército, que são soldados. Há os cabos submarinos,
que são uns fios de cobre compridíssimos por meio dos quais os
homens passam telegramas dum continente a outro por dentro
dos mares. E há um tal “dar cabo”, que é destruir qualquer coisa.
— Mas por que é assim?
— Para atrapalhar a gente. Eu penso que todas as calamida-
des do mundo vêm da língua. Se os homens não falassem, tudo
correria muito bem, como entre os animais que não falam. As
formigas e as abelhas, por exemplo. Esses bichinhos vivem na
maior ordem possível, com suas comidinhas a hora e a tempo – e
que comidas! O mel é uma perfeição que você nem sonha! Exa-
tinho da cor dos seus cabelos, mas sem cachos; em vez de cachos
tem favos. E qual é o segredo da felicidade desses animaizinhos?
Um só: não falam. No dia em que derem de falar, adeus paz,
adeus mel! A língua é a desgraça dos homens na Terra.
— Se é assim, por que eles não cortam a língua?
130
que textos sejam utilizados para se ensinar homonímia, abandonando-
se os tipos de homônimos ou as listas de palavras homônimas. O texto
abaixo pode servir como um bom exemplo. Ele foi criado por uma
aluna do curso de Letras da Ufes: Ludimyla Sathier Aguiar.
Um conserto no concerto
131
De volta ao trabalho, cheque, cheque, cheque, extrato, extra-
to, extrato, cliente, cliente, cliente...
— Daqui a pouco isso termina!
No final da tarde, enquanto me preparava para encerrar o
expediente, recebi de minha esposa, aquela com TPM, uma bela
cesta de vinhos e, nela, um convite para um concerto no Teatro
Carlos Gomes, com direito, no final do espetáculo, a um “con-
certo”, esticadinha a dois, para recompensar o bom dia elétrico,
a TPM e tudo mais...
Acho que disse que tudo tem começo, meio e fim. Creio que,
especialmente naquele dia, estava quase tudo certo, porque ape-
sar de toda a correria daquela sexta, tudo teve começo, meio e
conserto, ainda bem!!!!
132
Portanto, não convém que aqui tratemos dos parônimos, ainda que
apareçam nos livros didáticos, devido à imprecisão conceitual que carreiam.
Hiponímia e hiperonímia
Hiponímia Hiperonímia
Vaca Animal
↓ ↓
Mamífero Mamífero
↓ ↓
Animal Vaca
133
Relação de Hiponímia:
↓
animais
HIPERÔNIMO
(ou superordenado)
animal → hiperônimo
134
do texto. Essa relação de hiponímia interna ao texto não está fixada an-
teriormente a ele, por meio do significado denotativo dos vocábulos de
uma língua, já que no texto as palavras adquirem sentidos diversos. O
que é importante para garantir a coesão textual é que seja estabelecida
uma relação interna de hiponímia, própria de cada discurso.
Segundo Ilari e Geraldi (1990, p. 52, grifos dos autores):
135
curió e canário são co-hipônimos em relação a pássaro, que seria o hipe-
rônimo nesta relação. É preciso ressaltar que ser hiperônimo não é uma
característica imutável do lexema. Na relação pássaro e animal, pássaro
passa a ser hipônimo de animal.
A hiponímia estabelece uma relação argumentativa indispensável à
clareza do texto ou discurso. Uma ideia ou conceito sempre acarreta
outra, e, se essa relação não estiver bem organizada no texto, o leitor
demora a compreender o que está sendo dito.
Além disso, ela traz envolvimento, prendendo o leitor na constru-
ção argumentativa. Observe o texto abaixo:
136
Além disso, se a progressão não for feita do termo mais geral para o mais
abrangente, de repente o leitor pode perder o foco pretendido pelo autor
e até não conseguir compreender o que se diz. Veja o seguinte exemplo:
Observe que o ouvinte já não sabe se o carro multado foi o Uno Mille ou a
caminhonete Fiat Estrada. Isso porque a progressão não foi feita adequadamen-
te: carro → outros carros → veículo → caminhonete Fiat Estrada → o veículo
→ Fiat → Uno. Além disso, um co-hipônimo foi colocado, a caminhonete
Fiat Estrada, sem que ficasse no mesmo nível argumentativo que Uno Mille.
Resultado, o ouvinte terá que se esforçar para compreender o que é dito.
Vamos tentar deixar o texto mais claro:
137
A relação hiponímica (do termo mais específico para o mais geral)
ficou assim estabelecida:
Uno Mille branco → Fiat → veículo.
Co-hipônimos: muitos outros carros e caminhonete Fiat Estrada,
mas entraram depois que a informação sobre a multa foi concluída.
Com essa ordenação, o foco do texto recai sobre a multa que o Uno
Mille branco recebeu.
Se o texto fosse ordenado do termo mais abrangente para o mais
geral, teríamos uma relação baseada na hiperonímia. No geral, opta-se
por essa relação quando se quer causar suspense ou prender o leitor.
138
foco central do texto, o produtor opte por termos mais específicos ou
mais genéricos.
A importância do trabalho com a hiponímia e com a hiperonímia nas
aulas de ensino de língua é inegável, contudo, ela é dificilmente encontra-
da nas gramáticas e livros teóricos de linguística e nos manuais didáticos.
Para os textos argumentativos, a relação adequada é aquela que de-
corre da hiponímia. Para os textos literários, de suspense, por vezes a
hiperonímia pode ser a mais adequada.
139
Em uma reportagem sobre um ator, após ele ser referencia-
do pelo seu nome próprio, pode ser chamado pelo nome de
um dos seus personagens e, por fim, pode ser identificado
como “marido de alguém” ou “pai de alguém”.
Metáfora e metonímia
A metáfora e a metonímia são consideradas figuras de linguagem ou,
mais especificamente, figuras de palavra ou tropos (emprego de uma pa-
lavra com sentido figurado), o que as diferencia das figuras de sintaxe.
As figuras de linguagem são reconhecidas como recursos pouco con-
vencionais que os escritores ou falantes utilizam para promover mais
expressividade à mensagem.
Esse conceito de figura de linguagem advém da concepção de que
a linguagem nomeia a realidade, possuindo com esta uma relação refe-
rencial, portanto. Haveria, entre pensamento e linguagem, uma relação
de utilidade: a linguagem expressaria o pensamento. Ou seja, o pensa-
mento estaria separado da linguagem. Os usos fortuitos da linguagem
figurada romperiam com essa relação puramente referencial, provocan-
do alegorias para as expressões comunicativas.
A partir de Saussure, com o advento da linguística moderna, como
vimos nos capítulos anteriores, já não se concebe o pensamento separa-
do da linguagem. Para Saussure (1972), tanto o significante quanto o
140
significado são de natureza psíquica. Isso quer dizer que, quando apren-
demos uma língua, já estamos imersos nos seus significados e, assim, na
possibilidade de compreensão da realidade que essa língua admite. Para
Wittgenstein, no seu livro Investigações filosóficas (1984), a linguagem
estabelece o limite do nosso mundo e, por conseguinte, também da
nossa possibilidade de reflexão.
Jakobson (2000, p. 61) reconhece as metáforas e metonímias como
processos cognitivos. Falando sobre a afasia (perturbação na lingua-
gem), reconhece que as variedades de afasia se situam entre dois po-
los: distúrbio da similaridade (metáfora) e distúrbio da contiguidade
(metonímia). O indivíduo que sofre do distúrbio da similaridade tem
dificuldade de selecionar e substituir elementos linguísticos, ou seja,
realizar e/ou compreender as metáforas. Já aquele que sofre do distúr-
bio da contiguidade apresenta dificuldades de combinar elementos no
contexto, alterando o poder de preservação da hierarquia das unidades
linguísticas, ou seja, não consegue elaborar e/ou compreender as meto-
nímias – posição que vem reforçar o caráter cognitivo desses processos.
A metáfora estabelece uma relação associativa e a metonímia, uma re-
lação de contiguidade (proximidade, adjacência). Dessa maneira, quan-
do utilizamos esses recursos, não o fazemos para sermos mais expressi-
vos e sim porque estamos observando as relações daquele modo e não
de outro.
Essa concepção cognitivista é hoje tão aceita que já há vários tra-
balhos de pesquisa publicados, principalmente sobre as metáforas, na
perspectiva da linguística cognitiva.
Lakoff e Johnson (2004, p. 93, grifo dos autores) assim comentam
a metonímia:
141
Para os autores, nem as metonímias nem as metáforas “são ocorrências
casuais ou aleatórias para serem tratadas como exemplos isolados” (2004,
p. 94). Tratam-se de processos sistemáticos que organizam nossos pensa-
mentos e ações e que se baseiam nas nossas experiências:
Assim, quando alguém diz que “tempo é dinheiro”, realiza uma metá-
fora baseada em experiências de realidade. O mesmo acontece quando se
diz “comi um prato cheio”: a metonímia é utilizada dentro de relações já
estabelecidas socialmente em que prato estabelece relação com quantida-
de. Afinal, o prato não foi ingerido e sim o que havia dentro dele.
142
Brandão (1989, p. 83) afirma que “a possibilidade praticamente
infinita de se encontrar um termo que englobe outros dois torna o
processo metonímico um recurso extremamente produtivo de significa-
ção”. Isso faz com que a delimitação dos usos da metonímia não sejam
suficientes para contemplar as suas possibilidades. Por isso, há muitas
variações nessas classificações, entre os gramáticos.
Cegalla (1991, p. 515) acrescenta a essa lista os seguintes itens:
a) O instrumento pela pessoa que o utiliza: Ele é um bom
garfo. (por comedor)
b) O sinal pela coisa significada: Os partidários da coroa
eram poucos. (em vez de governo monárquico)
c) O indivíduo pela espécie ou classe: Os mecenas das
artes. (por protetores)
d) A quantidade pela espécie: Os mortais. (no lugar de os
homens)
143
se quer dizer que “tempo é igual a dinheiro” e sim que o tempo é valioso
como o dinheiro. Ou, quando se diz que “Maria é uma rosa”, não se quer di-
zer que “Maria é como uma rosa” e sim que ela lembra a beleza de uma rosa.
144
vadindo mesmo outras realidades experimentadas pelos sentidos. Já as
metonímias nos levam ao específico, que também é um lugar no qual
não detemos o nosso olhar. Elas têm a propriedade de nos trazer para
a realidade singular, de nos transportar para detalhes, para a realidade
concreta.
Olhar o mundo metonimicamente é uma característica daqueles
que percebem a realidade a partir do seu imediatismo, que seleciona o
específico como um modo de olhar. E essa perspectiva passa por ques-
tões histórico-sociais, por opções políticas, por momentos em que o
homem se vê, ou quer se ver, inserido no específico, no particular e tem
na realidade objetiva a sua referencialidade.
Segundo Jakobson (2000, p. 57),
145
a ambientes diversos. Dificilmente não usamos metáforas quando as
realidades são experimentadas pelos cinco sentidos, como quando ta-
pamos os olhos e tocamos coisas.
Ambiguidade e paráfrase
Saindo do âmbito da palavra, vamos caminhando em busca dos
processos de significação calcados na frase, nos diálogos, no texto.
A ambiguidade e a paráfrase são estratégias argumentativas decor-
rentes do trabalho refletido sobre a linguagem. As duas estratégias são
constantemente utilizadas, mas são pouco trabalhadas em salas de aula
de ensino de língua materna e estrangeira.
No geral a ambiguidade é tratada como problema de linguagem,
e a paráfrase, como passagem da voz ativa para a passiva. No entanto,
cotidianamente encontramos ambiguidades em nossos diálogos, em bi-
lhetes, manchetes de jornais, propagandas, etc. Também parafraseamos
textos, aquilo que ouvimos e até o que falamos, quando dizemos com
outras palavras o que acabamos de falar, ao tentar nos explicar.
Na tradição dos estudos de retórica, a ambiguidade é conhecida
como anfibologia. Normalmente ela é estudada a partir de frases soltas.
Localiza-se o fator gerador e procuram-se formas de desambiguizá-las.
A ambiguidade é definida como a propriedade dos enunciados de
apresentarem várias possibilidades de interpretação, simultaneamente.
Exemplos:
146
Observe que, quando a possibilidade de dupla interpretação é des-
feita pelo contexto de comunicação, então não se trata mais de ambi-
guidade. O pronome seu/sua é muito marcado pela ambiguidade. Por
exemplo: “Pedro visitou seu amigo e depois saiu com sua noiva.” Nesse
caso fica a dúvida se a noiva era de Pedro ou do amigo, contudo essa
ambiguidade é desfeita se o assunto em pauta é Pedro e o ouvinte sabe
que ele possui uma noiva. Além disso, a continuidade do discurso ga-
rante que a ambiguidade seja desfeita.
A desambiguização pelo contexto comunicativo ocorre naturalmen-
te, pois o falante é capaz de identificar o sentido exato das palavras
homônimas e polissêmicas quando em situações de uso. Uma frase do
tipo “esperei muito tempo no banco”, se isolada, deixaria dúvidas se o
banco é de assentar ou uma agência bancária, mas, dentro de condições
normais de comunicação, o falante compreenderia exatamente de que
banco se trata.
147
Também é necessário distinguir ambiguidade de vaguidade. A va-
guidade é fruto da indeterminação própria das palavras ou sentenças.
Por exemplo, a palavra “alto” é vaga, pois para que algo seja considerado
“alto” é preciso que esteja relacionado a alguma coisa. Afinal, algo é
considerado alto em relação a quê? O que é “alto” para alguém pode
ser de tamanho normal para outros. Essa é uma questão de perspectiva.
• Ambiguidade pragmática: numa perspectiva mais abrangen-
te, a ambiguidade reúne, além da multiplicidade de sentidos de
palavras ou sentenças, uma variedade de forças próprias do ato
de linguagem. Por exemplo, se alguém diz: “Eu estarei aqui no
momento oportuno”. Esse ato de linguagem pode significar
tanto uma promessa quanto uma ameaça ou uma advertência.
Quando o contexto deixa esses atos de linguagem com possibi-
lidades de dupla interpretação, temos aí uma ambiguidade que
não é nem sintática nem lexical. Esse seria um caso de ambigui-
dade pragmática.
148
Exemplo de convites em quadros de avisos de igrejas:
Encontro de Jovens Mamães:
Você quer se tornar uma jovem mamãe?
16 Uma boa leitura sobre o tema é o livro de Affonso Romano de Sant’Anna, Paródia,
paráfrase e cia. (1988).
149
Dificilmente somos compreendidos de uma primeira vez que orga-
nizamos um argumento. A análise depende de observação do mesmo
assunto por perspectivas diferenciadas e essas retomadas são sempre
parafrásicas, pois precisamos retomar a mesma perspectiva a fim de am-
pliá-la e seguir com o discurso analítico.
150
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida em teu seio mais amores
Pressupostos e subentendidos
151
dos. Se o ouvinte não questionar o pressuposto, ele se verá enredado
pelos argumentos apresentados.
Os subentendidos são informações pouco explicitadas, mas que po-
dem ser inferidas. Porém, se o falante quiser se esconder, pode negar
que disse aquilo, diferentemente dos pressupostos que se erigem sobre
dados linguísticos.
Exemplos:
Ex. 1: Até o Marcos veio à aula hoje.
Pressuposto: “Grande parte dos alunos, senão todos, foram à aula
hoje”.
Subentendidos: “O Marcos vai pouco às aulas” ou “Os alunos fal-
tam muito às aulas”.
O pressuposto, nesse exemplo, reside no “até” (advérbio de inclu-
são), enquanto elemento reconhecidamente desencadeador de pressu-
posição. Ao questionar o pressuposto, o diálogo fica comprometido, na
sua possibilidade de continuidade: “Ora, os alunos dessa turma nor-
malmente não faltam”.
Quanto ao subentendido, o Marcos pode dizer: “Mas eu nunca fal-
to à aula”. Nesse caso, o falante poderia alegar que não quis dizer que
o Marcos falta sempre, mas que ele faltou na outra aula. Ou os alunos
poderiam questionar: “Nós frequentamos sempre as aulas, não faltamos
quase nunca”. O falante poderia retrucar que “não quis dizer isso e sim
que todos vieram hoje”.
Portanto, o pressuposto, se linguisticamente questionado, compro-
mete a continuidade do diálogo. Já no caso dos subentendidos, por serem
elementos de natureza retórica, o falante pode deles facilmente se safar.
152
No livro O dizer e o dito (1987), Ducrot, ao analisar o processo de sig-
nificação dos enunciados, percebeu que não haveria como fazer uma des-
crição semântica linguística finita para cada enunciado, pois eles não pode-
riam ser esgotados em somente uma interpretação. A esse respeito conclui:
153
fornece uma primeira razão para tratá-lo no componente
linguístico onde, evidentemente, deveria ser descrito o
valor semântico dessas construções. O mesmo argumento
não pode ser empregado, tratando-se dos subentendidos,
pois a relação com a sintaxe é bem mais difícil de aparecer
(DUCROT, 1987, p. 19).
154
- João, que está doente, parou de bater na mulher. (igualmente
mantém o pressuposto de que ele batia na mulher)
Mas a frase “Até Maria veio” pressupõe que muitas pessoas vieram.
Esse pressuposto alicerça-se na expressão “Até”. Contudo, resiste à ne-
gação, como previsto por Ducrot. “Até Maria não veio” levaria ao pres-
suposto de ninguém veio.
Ao mesmo tempo, pode-se dizer que qualquer enunciado possui um
pressuposto, enquanto informação compartilhada por uma comunida-
de linguística. Se alguém diz “A piscina está cheia”, pressupõe-se que na
casa há uma piscina, caso contrário a informação possui outro sentido e
o ouvinte terá que fazer um esforço para compreendê-la.
Mesmo depois das inúmeras revisões que sofreram as teorias linguís-
ticas sobre a pressuposição e os subentendidos, não há como negar que o
trabalho com esses temas em sala de aula é fundamental para ampliar
as condições de interpretação de textos, dos estudantes. Considerando
as salas de aula de língua portuguesa, parece interessante levar em conta
todas as formas de subentendidos, sejam eles visuais ou linguísticos, as-
sim como conceber a pressuposição em seu sentido mais amplo, como
uma base para que a comunicação se efetive, mas também no sentido de
informação que prende o leitor e estabelece com ele um laço bastante
coeso, de modo que, para ele fugir ao pressuposto, terá que questioná-lo.
Se prosseguir no diálogo, é porque aceitou o pressuposto.
A informação pressuposta pode ser trabalhada a partir de piadas,
programas humorísticos, ou dentro de falas cotidianas. O mais tranqui-
lo é levar o jornal para a sala de aula e observar como ele joga com os
pressupostos, envolvendo os leitores. As chamadas das reportagens dão
a impressão de que é preciso ser interno àqueles conteúdos, que quem
não lê jornal está “fora do mundo”, alienado. Consegue-se isso com a
utilização da pressuposição, na maioria das vezes. Por exemplo, quando
lemos “Encerram-se as Olimpíadas no Brasil”, podemos pressupor que
estavam acontecendo as Olimpíadas no país, devido ao verbo encerrar.
Essa manchete pressupõe que o leitor tenha conhecimento prévio desse
fato. Se não sabe é porque se trata de um leitor alienado, que tem que
ler mais jornais. Consumir notícias. Ser interno aos conteúdos veicula-
dos pela mídia nacional, local e mundial, para ser considerado cidadão.
Para a sala de aula, parece fundamental levar os alunos a observarem
o jogo travado por esses dois processos argumentativos, de modo que
155
aqueles possam se desvencilhar das amarras que estes propõem. No caso
dos pressupostos, é preponderante observar os elementos linguísticos
desencadeadores.
Breves considerações
156
Conclusões
A semântica da enunciação
157
Na proposta estruturalista, porém, o estudo do léxico é mantido, ten-
do por base a herança das concepções historicistas (período anterior ao
estruturalismo). Contudo, dentro da abordagem historicista, ainda que
se focasse o vocábulo, estudavam-se as mudanças de sentido com os fato-
res estilísticos, os sintáticos e os morfológicos. Já o estruturalismo separa
esses campos de conhecimento. Caberá à semântica observar os signifi-
cados presentes numa língua natural, descrevendo o seu funcionamento.
Estudam-se, então, os campos léxicos, os antônimos, os sinônimos, os
homônimos, os hiperônimos, buscando quadros lógicos e bem estabele-
cidos das possibilidades de significados presentes nas línguas. Uma obra
que representou essa perspectiva foi a Semântica de John Lyons (1980).
É interessante notar que dificilmente são encontrados, nas obras
desse período, estudos sobre a propriedade polissêmica das línguas,
sobre as conotações – estas só aparecem como oposição à denotação,
como desvio, portanto –, enfim, sobre as mudanças de sentido, de modo
geral. Portanto, as mudanças de sentido são classificadas e ordenadas,
recebendo denominações inusitadas. Contudo, em uma literatura vol-
tada para a graduação, mas que ainda ocupa os primórdios do estru-
turalismo em semântica, encontramos uma abordagem da significação
como um movimento dos sentidos, como na Semântica de Ullmann
(1977) ou mesmo n’A semântica de Guirraud (1975), porque elas ainda
trazem traços do período anterior, o historicismo.
Já na versão gerativista da proposta estruturalista, ainda que o estu-
do do vocábulo por ele mesmo tenha sido abandonado para dar lugar à
sintaxe, a semântica perde espaço, pois os componentes de significação
não são tão facilmente categorizados como os sintáticos, a não ser por
traços distintivos básicos. Uma obra que reflete bem esse período é a
de Lúcia Lobato, A semântica na linguística moderna: o léxico (1977).
No entanto, dentro da virada funcionalista que tem como fator de
análise o texto – abordagem que chega ao Brasil na década de 70 –, a se-
mântica passa a ser vista como sendo a base da linguagem, considerada
de modo indissociável das demais disciplinas de estudo da linguagem
humana. Nesse momento, os estudos em pragmática ganham espaço e
as implicaturas conversacionais, as dêixis, os atos de fala, as questões de
polidez, etc. passam a fazer parte das aulas de semântica.
Antecedendo a esse período, ganhou realce a semântica argumentativa,
que tem como nomes fundadores Émile Benveniste e Oswald Ducrot, que
158
percebiam a significação a partir de condições argumentativas concre-
tas, observando os pressupostos, o movimentos das conjunções e dos
verbos, trazendo à tona os estudos da enunciação de modo efetivo, ao
considerar os implícitos e a significação observada nos argumentos,
ainda que não fossem considerados os atos de fala. As obras de semân-
tica passam a abordar, por exemplo, o acarretamento, a referenciação,
as anáforas e as pressuposições. As obras mais atuais de semântica,
voltadas para a graduação, refletem essa tendência, ainda que não
abandonem as perspectivas da lógica formal clássica e a abordagem
estruturalista, como a Iniciação à semântica de Duarte (2000) e o Ma-
nual de semântica de Cançado (2005).
Na análise do discurso (AD), a semântica sempre teve um papel pre-
ponderante. É da década de 1970 a obra de Michel Pêcheux Semântica
e discurso. Sob essa perspectiva, porém, o que se leva em conta são os
sentidos e não propriamente os significados, pois interessavam à AD os
efeitos de sentido. Segundo Pêcheux (1990, p. 56), a AD deve cuidar
não do significado estabelecido e sim das suas contradições, elipses, fal-
tas, equívocos. A semântica é, para essa disciplina, o encontro possível
com a materialidade da linguagem.
Panoramicamente podemos resumir o que foi dito antes, enten-
dendo que, sob a égide dos estudos aristotélicos e hermenêuticos,
a semântica começa a se estruturar ainda no historicismo (mudan-
ças de sentido) e ganha sua autonomia no período estruturalista
nas suas vertentes: estruturalista clássica, gerativista, argumenta-
tiva e formal. Já na sua vertente funcionalista, surge a semântica
cognitiva, bem como a pragmática (como disciplina) e os estudos
em linguística textual, que tomam por base as questões semânti-
cas. Evidentemente se trata de uma visão bastante panorâmica,
mas suficiente para situar os estudos na área, a fim de tecermos
algumas conclusões.
Como foi dito em nossa Conversa inicial, a perspectiva aqui
adotada é a da semântica da enunciação, ou seja, estamos entenden-
do que não há um significado estático, único, unívoco, quando se
produz a linguagem. Nem mesmo se se considerar que existe um sig-
nificado básico, ainda ele é fluido. Quando dizemos, por exemplo,
“acende a luz”, no geral nos referimos à lâmpada. Também dizemos
“luz do dia”, significando “reflexos do sol”. Então, qual o significado
159
básico da palavra “luz”? Ao que parece, trata-se de um signo polissê-
mico, além de receber conotações as mais variadas e inesperadas nas
interações cotidianas, como quando ele é relacionado ao conceito de
ideia, nas revistas em quadrinhos.
Segundo a perspectiva aqui adotada, a semântica é o estudo dos
sentidos ou dos efeitos de sentidos. Isso porque acreditamos que os
significados são fluidos, instáveis, dinâmicos, dependentes do mo-
mento do uso para se constituírem. O que se tem são significados
estabilizados em determinados momentos, que possibilitam que as
pessoas se entendam, mas eles se modificam sempre. As palavras
se fazem no uso e não existem fora ou antes do uso, por isso não
podem ser vistas separadas dos discursos, dos lugares sociais em
que aparecem.
Nas palavras de Bakhtin:
160
É muito marcada, na nossa sociedade, a concepção de que a lin-
guagem expressa o pensamento. Ou seja, o pensamento é separado da
linguagem, cabendo à linguagem a tarefa de nomear a realidade.
Para a linguística não há separação entre pensamento e linguagem,
porque não se pensa fora da linguagem. Além disso, não se acredita
que se pense melhor na medida em que se possua mais vocabulário. A
linguagem não é um conjunto de palavras, mas um sistema complexo
que estrutura em si formas de vida, que levam a modos de pensar, de
conceber a realidade. Há vários filmes que abordam essa questão, como
O enigma de Kaspar Hauser, Nell e outros.
Bakhtin (1988, p. 95) ainda afirma que:
161
A referida autora vai mais longe ao dizer da influência da linguagem
sobre o homem:
162
Enconióstico
163
Um texto publicado pela empresa Microtec em anúncio na revista
IstoÉ (MICROTEC, 1997) demonstra bem como as palavras participam
da vida social, mais do que são herdadas, pois se refazem num movi-
mento constante. Vejamos a seguir:
164
linguística, ainda que esse substrato venha a tornar-se
determinante para a situação de uso. Eles são também
produto de todo itinerário histórico que cumprem em
cada instante de uso; a saber, em cada circunstância
política própria, eles se deixam contaminar por aquilo
que é circunstancial e momentâneo. Ao incorporar a
determinação histórica, a questão da produção do sen-
tido abre espaço, então, para uma série de fatores que
afetam a percepção do sentido, fatores que se materiali-
zam, muitas vezes, mediante a manipulação do código.
165
Referências
166
vel em: <http://150.164.100.248/site/E-Livros/EnuncMaterialidade-
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texto: leitura e redação. 17. ed. São Paulo: Ática, 2007.
174
VELOSO, Caetano. O quereres. In: ______. Velô. Rio de Janeiro:
Polygram, 1984.
175
Este impresso foi composto utilizando-se as famílias tipográficas
Trajanus Roman e Warner Pro. Sua capa foi impressa em papel
Supremo 300g/m² e seu miolo em papel Pólen Soft areia 80g/m²
medindo 14,5 x 21 cm, com uma tiragem de 300 exemplares.