Da Ascendencia Arabe Dos Senhores Da Maia
Da Ascendencia Arabe Dos Senhores Da Maia
Da Ascendencia Arabe Dos Senhores Da Maia
1. Introdução
É nossa intenção delimitar desde início o objeto deste estudo. Trata-se de uma análise
textual e linguística que tem por base o Livro Velho de Linhagens, e, mais precisamente, o
relato conhecido como a Lenda da Gaia, o qual é tido como o texto primeiro sobre a
linhagem dos Senhores da Maia. Usaremos, ainda que de forma acessória, algumas outras
fontes cristãs e árabes, principalmente tendo em vista a proposta genealógica que
apresentaremos no final.
Não temos, neste momento, disponibilidade para ver mais bibliografia que tem sido
elaborada sobre este tema, e principalmente um vasto estudo de Francisco Antônio Dória,
intitulado A Semente. Uma hipótese sobre a origem dos senhores da Maia, século X 1 onde
o autor organiza um quadro geral, procurando destrinçar aspetos lendários e
historiográficos na construção do discurso genealógico sobre os Senhores da Maia. A
amplitude do esforço e a coletânea de textos relativos ao tema ou com ele
contextualizáveis, é notável e digna de natural elogio. Atendendo, no entanto, ao grande
volume de informação que Francisco Dória carreou, e que, nalguns pontos, convém ser
reavaliada, será necessário afinar conhecimentos instrumentais, nomeadamente os
relativos à onomástica árabe, por exemplo, mas não só, e que permitam estabelecer
critérios conducentes à construção de um quadro mais consistente, quer sobre a
informação presente naquele relato, quer sobre a origem da memória senhorial que
naquele texto tem a sua primeira formulação escrita. 2
Para quem não está familiarizado com estes textos, o que é o Livro Velho de Linhagens
(LVL)3? Pretendemos abordar aqui, de forma algo preliminar, aquela fonte textual, que tem
sido muito trabalhada, quer do ponto de vista histórico, quer também do ponto de vista
genealógico.
O LVL é o mais antigo nobiliário português4. O nosso contacto com as linhagens nele
tratadas levou-nos a constatar que em alguns dos antropónimos, e também em alguns
dos conteúdos textuais, existem sinais que apontam para uma certa “arabização” da
realidade social dos primórdios das linhagens tratadas na obra5. E constata-se ainda
também a procura de conseguir um evidente relevo às marcas dessa moçarabização, e
que se encontram presentes nos passados, reais ou mitificados, dos personagens que dão
corpo e conteúdo àquele mais antigo nobiliário português.
O Livro Velho de Linhagens (LVL) apareceu quando, para a antiga nobreza de raiz
portucalense, se tornou sensível uma crise social, com reflexos directos na sua economia
e no seu estatuto. Três décadas após a conclusão da chamada “Reconquista”, quando
Afonso III tomara posse das últimas praças algarvias, em meados de Duzentos, e já aquela
mesma nobreza não encontrava forma de continuar a conseguir fontes de ingressos,
expandindo os seus senhorios territoriais, como era até então tradicional, geralmente
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RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 3
E, dessa maneira, a velha fidalguia começava a sentir-se, cada vez mais, sujeita ao
arbítrio do monarca, mercê, por exemplo, das acções fiscalizadoras que tinham dado
corpo às chamadas inquirições régias6; mas, também, através da substituição, nos mais
importantes cargos curiais, dos membros daquelas antigas linhagens por indivíduos da
nova nobreza emergente, de mais baixa proveniência social, é certo, mas mais cortesã,
mais letrada, e também mais disposta a obedecer às ordens do rei7.
É hoje um dado adquirido de que o Livro Velho de Linhagens foi redigido no Mosteiro
de Stº. Tirso, tendo sido composto entre cerca de 1285 e 1290, a mando de Martim Gil de
Riba de Vizela, senhor que assumiu a herança simbólica e linhagística dos Senhores da
Maia, que lhe vinha por sua mãe, a primogénita do último dos Senhores daquela
linhagem9.
O Mosteiro de Stº. Tirso, fundado por um antepassado materno daquele Martim Gil de
Riba de Vizela, estava, desde a sua própria origem, intimamente ligado à memória
daquela linhagem, pois nele fora constituído, desde a sua fundação, o panteão familiar
6 Sobre as Inquirições Régias levadas a cabo por ordem de D. Afonso III, v. Luis Krus, “Escrita e poder:
as Inquirições de Afonso III”, in Idem, A Constução do Passado Medieval. Textos inéditos e
publicados, Lisboa, IEM, 2011, pp. 41-58. Sobre as Inquirições, em geral, que decorreram nos
reinados de Afonso II, Afonso III, Dinis e Afonso IV, v. “Inquirições”, Dicionário de História de
Portugal (dir. Joel Serrão), Porto, Figeirinhas, 1989, vol. III, pp. 328-330.
7 Sobre os personagens que operaram aquela alteração sob as ordens de Afonso III, v. Leontina
Ventura, A Nobreza de Corte de Afonso III, II vols., Coimbra, FLUC, Dissertação de Doutoramento,
1992, policop.
8 O “Livro Velho” […] Afirma-se como texto de combate ideológico, como manifesto da sociedade
senhorial”, Luís KRUS, A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380), Lisboa, FCG /
JNICT, 1994, p. 70, n. 60.
9 Sobre Martim Gil (I) de Riba de Vizela, v. Leontina Ventura, A Nobreza de Corte de Afonso III, II vols.,
Coimbra, FLUC, Dissertação de Doutoramento, 1992, policop.; J. Mattoso, “Livros de Linhagens”, in
Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Ed. Caminho, 1993, pp. 419-421;
A. Rei, “Os Riba de Vizela, Senhores de Terena (1259-1312)”, Callipole 9 (2001), Câmara Municipal
de Vila Viçosa, pp. 13-22, para aquele senhor, especialmente pp. 17-19.
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4 RAÍ ES & MEMÓRIAS 29
dos Senhores da Maia10.
A obra é designada como “Livro Velho” para, dessa forma, identificar o mais antigo
livro de linhagens que se conhece em Portugal. Não é conhecido na sua forma integral, ou
porque não chegou a ser completado; ou porque perdeu algumas das suas partes
constitutivas. Sendo afirmado no respectivo ‘Prólogo’ que a obra em causa trataria cinco
linhagens, apenas subsistiram duas dessas cinco, e uma das quais, incompleta. É,
portanto, uma obra genealógica, de modelo linhagístico, e teve a sua génese entre o meio
senhorial mais antigo do espaço portucalense e posteriormente português.
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RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 5
Há uma questão, que tem sido bastante referida, e que tem que ver com a ordem pela
qual aquelas linhagens aparecem enunciadas no Prólogo do LVL. Elas surgem na seguinte
ordem: Sousas, Braganções, Maias, Baiões e Riba Douro.
Tem sido afirmado, também, que o critério que conduziu àquela ordenação, é o da
primazia social e de prestígio de cada linhagem.
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6 RAÍ ES & MEMÓRIAS 29
A questão, que antes de mais nos parece óbvia, é: se a obra foi patrocinada por um
herdeiro e chefe de linhagem da Maia, porque coloca a sua em terceiro lugar, e não em
primeiro? Não entenderia ser a sua a primeira e de maior prestigio? É, convenhamos, um
pouco estranho, para uma obra, destinada, entre outras coisas, a ser um panegírico da
própria linhagem do mentor, que aquela ordem reflicta o que hoje designamos por um
género de “ranking” social, no qual a família patrocinadora acabasse por não aparecer
muito bem colocada. Quanto a nós, entendemos tratar-se de uma ordenação que obedece
a um outro critério estrutural: ao referir os “ bons filhos d’algo” de que vai falar, coloca-os
a todos como participes e pertencentes a um conjunto único. Ao dizer, depois, que se
dividem em cinco troncos, deixa pressupor um momento em que todos já têm uma
ascendência comum, como apresentamos no quadro anterior.
O facto de ele ter feito uma ordenação em que os da Maia ficaram no meio, coloca-os,
quanto a nós, no centro objectivo e simbólico do próprio texto, fazendo deles o tronco
principal do conjunto linhagístico, onde depois, vão sendo “enxertados” os outros ramos,
através dos casamentos, com varonias das outras quatro linhagens. É esta a nossa leitura
daquela ordenação linhagística presente no Livro Velho, que pelas razões aduzidas,
quanto a nós, faz mais sentido do que a primeira.
Esta ordenação, presente no LVL, já não se constata nos Livros posteriores, nem no do
Deão nem no do Conde D. Pedro12: quer porque o número de famílias tratadas aumentou
grandemente, o que muito dificultaria uma organização como aquela; quer porque os
autores destas duas obras não estão procurando uma exaltação daquelas antigas
linhagens, entretanto já extintas na varonia, e também, quase todas, no nome; ou ainda, e
por último, porque já não era, certamente, aquela a lógica organizacional das respectivas
obras.
Mais: aquele Livro foi, ele mesmo, o produto explícito dessa manifestação de prestígio,
e dessa afirmação de precedência e, portanto, de implícita autoridade e legitimidade a
que se arrogavam aqueles senhores portucalenses e que lhes daria um direito
inquestionável à posse dos seus domínios e direitos, relativamente ao que entendiam
serem interferências não justificadas nem justificáveis, por parte dos monarcas do Reino
ANTÓNIO REI
RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 7
português.
A Casa Real tinha a sua origem no casamento, ocorrido em finais do século XI, de D.
Henrique de Borgonha com D. Teresa, filha de D. Afonso VI de Leão e Castela, o
Conquistador de Toledo, o Imperador. Enquanto aquelas linhagens – os Maias, os
Sousões, os Braganções, os Riba Douro e os Baiões - remontavam a antigos presores ou
senhores de fronteira, que desde o século IX tinham sabido sobreviver e manter as suas
casas, em artifícios de diplomacia e de estratégia, colocando-se sempre algures,
procurando sobreviver, escapar-se, autonomizar-se, dos poderes cristão asturiano-
leonês, a norte; e do islão cordovês, a sul.
De qualquer forma, uma atitude, bem diferente da que tinham os cristãos que vinham
d’além-Pirinéus para com os hispânicos em geral, quer estes fossem muçulmanos, quer
fossem mesmo moçárabes. Recordemos, por mero exemplo, a conquista de Lisboa e a
chacina da população, independentemente do credo professado.
Não esqueçamos que, nos finais do século X, os senhores cristãos daquelas paragens,
os chefes das linhagens de Infanções, com seus colaterais e súbditos, também
acompanharam Muhammad ibn Abî ‘Âmir, o famoso hâjib que se autointitulou de Al-
Mansûr, na campanha militar que foi até Compostela, e também no regresso, até Lamego,
onde foram agraciados pelo mesmo poderoso ministro de Córdova, e de onde cada um
regressou, com os seus, para as suas terras 14. Até o local de separação nos indica que
Convém, neste contexto, recordar que, por exemplo, ao nível da própria monarquia
asturiana, e ainda no século VIII, os casos dos reis Silo e Mauregato, que governaram,
respetivamente entre 773 e 783, e entre 783 e 788, já foram ambos frutos de relações
entre cristãos e muçulmanas15.
A invocação, por parte dos descendentes dos primitivos Senhores da Maia, de uma
ascendência árabe, mais exatamente, remontando à aristocracia árabe, é o argumento de
base do LVL. Quando o LVL é composto todos os membros das Cinco Famílias de
Infanções, como já vimos atrás, descendem dos primeiros da Maia, embora seja o
representante da linhagem, Martim Gil de Riba de Vizela, que se fez cargo da empresa de
por, por escrito, aquela memória genealógica, argumento, senão já de poder efetivo, ao
menos de seguro prestígio em frente da recente Casa Real.
O texto em que aparece o relato sobre a origem do primeiro dos da Maia, é designado
como Lenda da Gaia (ou ainda, embora menos, como Lenda do Rei Dom Ramiro). Sendo
entendido como tratando-se de um texto “lendário” ou “épico-lendário”16, é geralmente
emparelhado com outros relatos com origem na nobreza peninsular, como o que fala da
15 Luiz de Mello Vaz de São Payo, A Herança Genética de D. Afonso Henriques, Porto, Centro de
Estudos de História da Família da Universidade Moderna, 2002, p. 235, § 317.
16 A primeira acessão surge em José Mattoso (in “A família da Maia no século XIII”, Nobreza Medieval
Portuguesa. A Família e o Poder, Lisboa, Estampa, 1994, pp. 331-342, p. 331), e a segunda
acessão em Luís Krus (in “O Discurso sobre o passado na legitimação do senhorialismo português
dos finais do século XIII”, Passado, Memória e Poder na Sociedade Medieval Portuguesa. Estudos,
Redondo, Patrimonia, 1994, pp. 197-207, p. 202).
ANTÓNIO REI
RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 9
origem dos Haros, que ascenderiam à ninfa Dama de Pé-de Cabra; ou como o que,
falando dos Marinhos, os faz remontar à sereia Dona Marinha.
Também no que concerne ao “rei Ramiro” que surge no relato, tem-se procurado
precisar se o monarca que aparece no relato se trata efetivamente do monarca Ramiro II
das Astúrias, ou se se trataria de um homónimo daquele 17.
Sobre este ponto, queremos trazer aqui novas informações que nos ajudam a situar o
infante Ramiro, antes de ser rei e depois de o ser18, efetivamente na região onde decorre a
trama relatada na Lenda da Gaia.
17Luiz de Mello Vaz de São Payo afirma que o “Rei Ramiro” progenitor dos da Maia (que apenas mais
tarde o LL do Conde D. Pedro chama de “Ramiro II”), não seria o monarca que figurou na História
com aquele nome, mas antes um seu tio homónimo, filho de Afonso III, o Grande, que em 925,
após a morte de seu irmão Fruela II, se proclamou Rei, sem sucesso, pois acabou sendo
reconhecido seu sobrinho Afonso IV, filho de Ordonho II (v. Luiz de Mello Vaz de São Payo,
“Ramiro II, sobrinho da Condessa Mumadona e Ramiro II progenitor da linhagem Maia”, in
Genealogia & Heráldica nºs. 5/6 (2001), Porto, Univ. Moderna, pp. 230-245).
18 O Liber Testamentorum de Lorvão refere o rei Ramiro naquele cenóbio na Era de 971 (ano de 933),
ou seja menos de dois anos depois de se ter tornado rei (v. António Losa, “Moçárabes em território
português nos séculos X e XI: contribuição para o estudo da antroponímia no «Liber
Testamentorum» de Lorvão”, in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da
UEAI, Universidade de Évora, 1986, pp. 273-289 + 3 ilustrações, ilustração I).
DA ASCENDÊNCIA ÁRABE DOS SENHORES DA MAIA (SÉCULOS X - XIII) - NOVOS DADOS
10 RAÍ ES & MEMÓRIAS 29
Sendo a notícia em causa proveniente de uma fonte árabe, o Muqtabis de Ibn Hayyân19,
portanto insuspeita, e ainda para mais corroborada pela cristã Crónica de Sampiro, damo-
la naturalmente por boa e outorgando veracidade historiográfica ao relato em causa.
Diz-nos a fonte árabe Muqtabis, que entre 925 e 931: “Ramiro filho de Ordonho […]
detinha a região entre o oeste da Galiza e os limites de Coimbra”20,
passagem que é corroborada por uma outra, esta presente em fonte cristã, a Crónica
de Sampiro (em versão silense), que nos diz:
(“Era DCCCCLXIII [963 – 38 = 925]. Mortuo froyla […] Ramirus in partes Visei”), 21
A fonte cristã, aquando da morte de Fruela II em 925, situa Ramiro, o futuro rei, “nas
partes de Viseu”, ou seja na região de Lafões. Ou, grosso modo, e agora atendo-nos à
fonte árabe, coloca-o num espaço entre o curso do Douro e os limites a sul da região de
Coimbra, no mínimo até ao Mondego. Ambas as fontes coincidem, assim, com a presença
do infante Ramiro na região, atestada pelo menos entre 925 e 933.22
Parece, pois, confirmado que se trataria efetivamente de Ramiro, futuro Ramiro II e não
de outro homónimo, mesmo que parente próximo daquele.
4.1. “Alboazar”
No LVL quando diz que o rei Ramiro pôs nome ao filho, chama-o de “Alboazar”. Se a
este termo juntarmos “Cid” (que ausente no LVL, aparece no entanto em LL), teremos a
expressão “Cid Alboazar”. Agora vejamos a seguinte passagem, na parte final do relato,
19 Fonte historiográfica composta no século XI d. C. / V h. pelo historiador Ibn Hayyân, o qual dispôs
para o seu trabalho de muita documentação oficial autógrafa, pelo facto de ser filho de um
secretário pessoal do famoso hâjib al-Mansûr (m. 1002 d.C. / 393 h.). O tomo V da obra em
causa, que abarca o período entre 912 e 942, foi editado por Pedro Chalmeta (Madrid, Instituto
Hispano-Árabe de Cultura, 1979), e traduzido para castelhano por Maria Jesús Viguera e Federico
Corriente (Texto Medievales, 64, Saragoça,1981).
20 Muqtabis V , ed., p. 345 (ár.); trad., p. 259.
21 Este excerto da Crónica de Sampiro surge na tradução castelhana do Muqtabis V (v. supra n.19), p.
156, n. 6. Queremos referir ainda que, curiosa e significativamente, a antiga heráldica municipal
de Gaia e de Viseu fizeram eco da memória que liga ambas as localidades ao episódio do rei
Ramiro e durante o qual terá nascido o epónimo dos da Maia (v. Armando de Mattos, A Lenda do
rei Ramiro e as armas de Viseu e Gaia, Ass. Cultural Amigos de Gaia, Porto, 2001 (ed. fac-sim. da
de 1933).
22 A questão, não importante do ponto de vista genealógico, que subsiste, será se o seu filho,
epónimo dos da Maia, Cid Alboazar Lovesendo Ramires, terá nascido quando o próprio Ramiro
ainda era infante, entre 925 e 931, ou já depois de rei, após 931.
ANTÓNIO REI
RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 11
“o padre […] lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia”
(o sublinhado é nosso).
ﺴﻴﺪ ﺍﺑﻮﺍﻷﻋﺻﺎﺮ
Sayyid Abû l-A’ṣâr
“Alboazar” sendo a transcrição da expressão árabe supra Abû l-A’ṣâr23, que é
traduzível por “pai, epónimo ou origem das linhagens”, ou seja, concorda plenamente
com a explicação medieval anterior: “padre […] de muito boa fidalguia”. Se se lhe juntar o
“Cid”24 que significa “Senhor”, teremos a reconstituição completa da expressão árabe que
aparece atribuída à fala do rei Ramiro.
O termo “Alboazar”, que transcreve a sinónima expressão árabe, terá tido uma função
de título, de identificação dos primórdios da linhagem, pois surge integrado na
onomástica das primeiras gerações dos da Maia.
A verdade é que não conhecemos, de facto, para o filho de Ramiro, um nome pessoal,
nem um possível patronímico para além da titulatura de Sayyid Abû l-A’ṣâr.
4.2. “Artiga”
23 “Abû l-‘Asâr” é literalmente “Pai dos tempos [: o chefe carismático]”; mas também tem a leitura,
que cremos, neste contexto, muito mais significativa, de, “Pai das linhagens”, ou seja epónimo,
tronco de linhagem, progenitor). Cf. Federico Corriente, Dicionário Árabe-Español, 2ªed., Madrid,
Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1986, p. 514.
24 “Cid”, forma dialectal magrebi para “Sayyid” (Senhor, no sentido de Dominus. Em propriedade
designa o descendente do Profeta que vem pelo neto Al-Hussayn; o que vem pelo neto Al-Hassan
é chamado de “Sharîf”: “Nobre”).
25 Esta última variante em “O” em vez de “A”, será mais um sinal de tafkhîm, fenómeno fonético
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12 RAÍ ES & MEMÓRIAS 29
Para Artiga não encontrámos nenhum nome árabe de semelhante fonética, e cujo
significado se adequasse ao contexto de cariz genealógico em causa. Assim, aventamos
que o nome seria, efetivamente «‘Arîqa» ﻋﺮﻴﻗﺔ e ao qual, por lapso de copista, nalgum
momento, a yâ ( ﻴ ) foi escrita como tâ ( ﺘ ), tendo os pontos diacríticos inferiores
Retornando à original «‘Arîqa» ﻋﺮﻴﻗﺔ, este termo significa « “a que vem de nobreza
e linhagem” e / ou “a que tem nobreza e linhagem” », o que encaixa perfeitamente no
contexto genealógico em presença, e acarretará, naturalmente, ambos os significados.
O LVL não tem qualquer passagem que traduza o termo ‘Arîqa, mas no LL
encontramos “dona Artiga que era d’alto linhagem”, o que mais uma vez vem confirmar,
que o termo árabe é próprio e se encontra bem traduzido.
«‘Arîqa», não sendo, em aparência, um título, não é, no entanto, de descartar que este
nome possa ter algo de honorífico, uma vez que a essa senhora devem os da Maia,
originalmente, a sua nobilitas árabe: ela vinha de nobres (descendia de califas e do
próprio Profeta), ela tinha nobreza e transmitiu-a à descendência. É um nome, no mínimo,
matricial, no sentido etimológico (de mater) completo desta palavra.
O autor da versão original do LVL, por tudo o que ficou dito atrás, teria acesso à língua
árabe. Ou porque ele mesmo a conhecia, ou porque alguém próximo lhe facultaria as
informações necessárias. Se esta versão original não tiver sido traduzida do árabe antes
da sua utilização como fonte do LVL, então o redactor deste, ou a equipa que o integrava
teria algum elemento com o necessário conhecimento do idioma árabe.
Pois quem redigiu aquela expressão “Sayyid Abû l-A’ṣâr” seria, não apenas um bom
conhecedor do idioma árabe, mas conheceria mesmo a nomenclatura genealógica árabe,
pois a expressão utilizada, revela, toda ela, erudição e conhecimentos daquela natureza. E
da mesma forma quem traduziu a expressão em causa, pois ela encontra-se bem
ANTÓNIO REI
RAÍ ES & MEMÓRIAS 29 13
traduzida.
Será que o próprio autor seria ele mesmo um letrado com origens moçárabes, que
tomara votos naquele Mosteiro? 27 Ou haveria, mais tarde, quando da composição do LVL,
em Stº Tirso, algum árabe letrado, escravo ou convertido, que auxiliasse o redactor do
LVL?
Não esqueçamos que por essa mesma época em que estava a ser composto o LVL, se
estava traduzindo, também em meio senhorial, o chamado Livro de Rasis, com recurso a
muçulmanos letrados que integravam as equipas de tradutores28.
5. A nobilitas árabe
Era, portanto, a ascendência árabe que tornava os da Maia “os mais nobres em todas
as Hespanhas”. Eles, e todos os que deles descendiam passavam, em consequência
daquela origem, a aceder a essa condição de elite, de nobilitas, que lhe vinha do sangue
árabe, e que eles consideravam por cima da que poderia ser conseguida por mercê de um
rei cristão, fosse ele asturiano, leonês ou português. A sua condição de nobre vinha-lhes
no sangue, e não dependia, em nada, daquilo que qualquer monarca cristão lhes pudesse
ter concedido.
O seu sangue árabe, por si só, enobrecia-os, e assim não deviam nada da sua nobreza
a ninguém, nem dependiam, em nada, de ninguém; nem do rei então reinante, nem de
27 Não é incomum a presença da herança cultural árabe nos meios monásticos portugueses, pois no
verso de alguns documentos que tinham perdido o seu valor probatório, aparecem exercícios de
caligrafia árabe e cópia de pequenas frases no mesmo idioma, como, por exemplo, num
documento de meados do século XIII, proveniente do Mosteiro de Alcobaça e hoje na Torre do
Tombo, (v. ANTT, Alcobaça, M6, doc.21).
28Sobre esta tradução do chamado Livro de Rasis de árabe para português, v. António Rei, “O Louvor
da Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval. Das suas origens discursivas ao Apartado
Geográfico da Crónica de 1344”, Tese de Doutoramento em História Cultural e das mentalidades
Medievais, FCSH-UNL, 2007, policop.; IDEM, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-
Râzî a D. Pedro de Barcelos, Lisboa, Colibri, 2008, especialmente pp. 69-85; IDEM, “O Redactor do
Livro de Rasis”, in VI Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, em Batalha, Alcobaça, Porto
de Mós, 6, 7 e 8 de Novembro 2008; IDEM, “A tradução do Livro de Rasis e a memória da Casa
Senhorial dos Aboim-Portel”, in Cahiers d’Études Hispaniques Médiévales nº 33 (2010), Lyon, ENS
Éditions, pp. 155-172.
DA ASCENDÊNCIA ÁRABE DOS SENHORES DA MAIA (SÉCULOS X - XIII) - NOVOS DADOS
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qualquer outro, antepassado daquele ou não.
Concluindo: foi este motivo que levou Martim Gil de Riba de Vizela a promover a
composição deste Livro de Linhagens, que apesar de incompleto, revela uma estruturação
e um conjunto de informações sui generis, que não volta a ser repetida, daquela forma,
nas composições genealógicas posteriores.
Não esqueçamos, também, que vários califas de Córdova, como ‘Abd al-Rahmân III e
Al-Hakam II, foram filhos de mulheres cristãs do norte peninsular.
Proposta Genealógica
Queremos terminar este estudo com uma Proposta Genealógica assente, basicamente,
em três fontes, uma árabe, a Jamhara, tratado genealógico hispano-árabe da autoria de
Ibn Hazm29 (grande erudito hispano-árabe dos séculos X-XI d.C.); o Liber Testamentorum
de Lorvão30 e o Livro Velho de Linhagens. 31
29 Apud Elías Terés, “Linajes Arabes en al-Andalus” (primera parte), Al-Andalus, t. 22, fasc.1 (1957) p.
55-111; Idem, “Linajes Arabes en al-Andalus” (conclusión), Al-Andalus, t. 22, fasc.2 (1957) pp.
337-376; Idem, “Dos familias marwaníes de al-Andalus”, Al-Andalus, t. 35, fasc.1 (1970) pp. 93-
117.
30 Apud António Losa, “Moçárabes em território português nos sécs. X e XI: contribuição para o
estudo da antroponímia no "Liber Testamentorum" de Lorvão”, Actas do XI Congresso UEAI – Islão
e Arabismo na Península Ibérica, Univ. Évora, 1986, pp. 273-289.
31 Apud Alexandre Herculano, Portugaliae Monumenta Historica, ed. Academia Real das Sciencias,
Lisboa, 1860.
32 António Rei, “Descendência hispânica do Profeta do Islão – exploração de algumas linhas
primárias”, in Armas e Troféus, IX série, 2011-2012, Instituto Português de Heráldica, Lisboa, pp.
31-59.
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