Presépio de Carlos Drummond de Andrade

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Presépio de Carlos Drummond de Andrade

Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa
do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite
e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.

É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar
parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a
esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um
cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.

Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda,
pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe
o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação
feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os
minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles
são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o
espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido,
ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores,
quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse
botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil
coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em
seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo
com brilhantina, está Abelardo.

Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie.
Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-
se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho… Alguma coisa mais do que resignação
sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a
atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo.
Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio
está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é
íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo
povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que
ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já
morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos,
porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio
que cede a novidades.

As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira


satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os
irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-
lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no
Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O
melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a
paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura.
Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se
poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve
querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros
que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da natureza dos animais
domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de
um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites para o
humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza
da mão de Abelardo.

Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a
igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come
mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me! Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas
de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo
espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito importante e que
não pode absolutamente ser adiado – se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra,
numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas.
Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado,
mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e
Dasdores, interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também
percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas
ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.

A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde


convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto,
o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos
de celulóide, está alterado, ou subtraí-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se
insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a
impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando,
talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos
acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um
calor humano, já sabeis de quem.

Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o
ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir
com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa, ir
correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum
Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra
natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira
acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-
vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo
sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai
mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos
dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos
a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente.
Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para
localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a
fazê-lo, e o tempo dispara de novo. “Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam
pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o
caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no
sentimento de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor
que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro
iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num
largo pranto sobre o travesseiro.
Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na
imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração,
decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de
Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de
Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo na areia
do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.
Carlos Drummond de Andrade foi um grande poeta brasileiro do século 20. Nasceu em
1902 em Itabira, Minas Gerais. Começou sua carreira de escritor como colaborador do
“Diário de Minas”, que aglutinava os adeptos do movimento modernista mineiro. Sua
estreia literária aconteceu em 1930 com o livro “Alguma Poesia”.

Entre suas principais obras, destacam-se: “Brejo das Almas” (1934), “Os Ombros
Suportam o Mundo” (1935), “Elegia” (1938), “Sentimento do Mundo” (1940), “José”
(1942), “A Rosa do Povo” (1945), “Claro Enigma” (1951), “Fazendeiro do Ar” (1954),
“Lição de Coisas” (1962), “Boitempo” (1968), “Discurso de Primavera e Algumas
Sombras” (1977), “Corpo” (1984), “Amar se Aprende Amando” (1985), “O Avesso das
Coisas” (1988). Drummond também traduziu obras de Balzac, Choderlos de Laclos,
Marcel Proust, García Lorca, Mauriac e Molière. Vários de seus livros foram traduzidos
para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco e tcheco.

Morreu em 17 de agosto de 1987 no Rio de Janeiro, dez dias após a morte de sua filha
única, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade. Desde de 2011, Drummond
ganhou o Dia D, inspirado no Bloomsday, o dia dedicado ao escritor irlandês James
Joyce. A data, 31 de outubro, aniversário do poeta, é comemorada no Brasil e em
Portugal.
1951

Gênero: Conto;

Personagens: Dasdores, Abelardo, família e amigas de Dasdores;

-Dever x Prazer

-Diferenças dos conhecimentos das mulheres

-Diferenças da educação feminina;

Dasdores é uma simples moça dos anos 50. Vive em uma cidade pequena e ainda, muito
rural.

Algo que me deixou bem surpresa, foi a forma que as famílias educavam suas meninas
naquela época. Hoje, é comum que aprendamos que homens e mulheres são iguais. E
não há mais um cuidado específico para cada natureza. Mas a revolução sexual não
transformou as mulheres em homens. Talvez estejamos com a carcaça masculina, mas
por dentro continuamos inseguras e ainda muito frágeis em alguns campos.

Vemos nos parágrafos seguintes:

“Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda,
pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe
o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação
feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os
minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles
são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o
espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido,
ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores,
quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse
botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil
coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em
seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo
com brilhantina, está Abelardo.

Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie.
Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-
se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho… Alguma coisa mais do que resignação
sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a
atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo.
Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio
está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é
íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo
povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que
ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já
morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos,
porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio
que cede a novidades.”

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