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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO

NO SÉCULO XIX

Eliana Sales 1

Resumo
O consumo das bebidas alcoólicas é considerado uma prática bastante antiga na história
da humanidade impregnada de múltiplos significados e ritualísticas próprias de cada cultura,
estando frequentemente assentado em regras de conveniência social do saber beber acordadas
pelos grupos sociais, as quais eram mediadas por uma série de disposições simbólicas,
restritivas e permissivas. A crescente produção de bebidas e de maior teor alcoólico, as
transformações oriundas da dinâmica capitalista, a intensificação do processo de urbanização,
com uma tendência de criar espaços cada vez mais “civilizados” oportunizaram uma série de
delimitações quanto ao seu consumo. Este artigo propõe analisar o deslocamento de uma
prática conveniada pelos grupos sociais a uma normatizada pelo saber médico-psiquiátrico.
Palavras chaves: álcool, alcoolismo, discurso antialcoólico.

Abstract
The consumption of alcohol is considered a very old practice in human history, imbued
with multiple meanings and ritual of each particular time and culture and is often grounded
on the rules of social convenience of knowing how to drink agreed by the social groups, which
were mediated by a series of symbolic, restrictive and permissive measures. The increased
production of beverages and higher alcohol content, the changes arising from the capitalist
dynamic, the intensification of the urbanization process with a tendency to create spaces more
"civilized" provided a series of boundaries of its consumption. This article aims to analyze the
displacement of a practice by the social groups to one normalized by the medical and
psychiatric knowledge.
Keywords: Palavras chaves: álcool, alcoolismo, discurso antialcoólico. alcohol,
alcoholism, anti-alcoholic speech.

1 Aluna regular do Mestrado em História do Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal de


Pernambuco. Orientador: Profº Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda – UFPE.

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Heider Victor Cabral de Moura

Em que reino, em que século, sob que silenciosa


Conjunção dos astros, em que dia secreto
Que o mármore não salvou, surgiu a valorosa
E singular idéia de inventar a alegria?

Com outonos de ouro a inventaram.


O vinho flui rubro ao longo das gerações
Como o rio do tempo e no árduo caminho
Nos invada sua música, seu fogo e seus leões.

Na noite do júbilo ou na jornada adversa


Exalta a alegria ou mitiga o espanto
E a exaltação nova que este dia lhe canto

Outrora a cantaram o árabe e o persa.


Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria história
Como se esta já fora cinza na memória.

Soneto do Vinho, de Jorge Luis Borges.

Este soneto corrobora para asseverar que o uso de álcool nas sociedades
e culturas ocorre desde os tempos mais remotos, é bem verdade que não se
pode precisar sua origem exata, mas sua presença constante nos versos,
músicas, poesias, pinturas, mitologias, lendas e obras literárias demonstram
o quanto essa prática esteve vinculada ao ser humano em suas múltiplas
dimensões, ora como veículo de remédios, de perfumes, de expressão
artística e intelectual, ora como líquido extasiante capaz de provocar reações
de prazer, de olvidação das tensões, de distinção social e, principalmente,
sendo o componente essencial de bebidas consumidas como parte da
alimentação, dos ritos religiosos, da alegria e confraternização de diferentes
povos ao longo da história da humanidade.
Desde a época antiga a contemporânea, há relatos de povos que
conheceram técnicas de produção e uso de algum tipo de bebida alcoólica.

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Os egípcios, por exemplo, deixaram registrados nos papiros as etapas de


fabricação, produção e comercialização da cerveja e vinho. A primeira fez-se
produto fundamental na vida social, religiosa, econômica e nos sistemas
medicais das antigas civilizações do Egito e da Mesopotâmia, que a
consideravam um presente dos deuses, por sua capacidade “mágica” de
provocar um estado de consciência alterada. No Código de Hamurábi, a
civilização babilônica teve a preocupação de regulamentar as tabernas, o uso
2
das bebidas e impor medida de coação aos excessos.
O álcool ocupou uma posição de destaque na cultura ocidental, na
Grécia e em Roma o consumo de vinho já era bem difundido e elemento
importante nas atividades socioeconômicas e religiosas, sendo ainda
reconhecido e referendado por suas propriedades curativas, usado como
energético, cicatrizante, purgativo, antitérmico calmante, antisséptico,
remédio contra doenças crônicas e agudas. O médico grego, Hipócrates, foi o
primeiro a reconhecer as propriedades diuréticas do vinho branco,
assegurava que não só fortificava, mas alimentava o organismo, indicando
que, desde que fosse administrado a propósito e na medida certa poderia ser
utilizado tanto na saúde como na doença, advertindo o uso inadequado da
substância como predisponente a várias enfermidades: epilepsias,
3
convulsões, febre etc.
A tradição de uso do álcool se estendeu a Idade Média. Durante esse
período, em conformidade com medicina hipocrática, bebia-se água com “o
hábito sistemático de misturá-la com vinho, mais do que um sinal de bom
4
gosto, é uma medida de prevenção sanitária” dados os riscos por quem se
aventurasse a consumir a água disponível antes do advento dos sistemas de
tratamento.

2 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.) História da alimentação. São Paulo: Eslação
Liberdade, 1998.
3 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.) História da alimentação. Op. Cit., p.144.
4FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.) História da alimentação. Op. Cit., p.144.

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Heider Victor Cabral de Moura

Como se pode perceber, tanto o uso de álcool como a preocupação com


embriaguez são aspectos que acompanham a humanidade desde longas
datas. Basta lembrarmos uma passagem do Antigo Testamento da Bíblia
(Gênesis 9.21). Noé, após o Dilúvio, plantou uma videira e produziu vinho.
Fez uso da bebida a ponto de embriagar-se, e acabou sem decoro em sua
tenda ao pôr “a mostra as suas vergonhas". A distinção entre beber
moderadamente e a embriaguez reprovável foi marcada por atitudes morais
desde a Antiguidade. Os excessos eram censurados por expor as fraquezas
humanas como: as atitudes desmedidas, a falta de lucidez e o autocontrole,
mas se confiava que o consumo moderado conduzia a serenidade,
longevidade e sabedoria.
Segundo evidências antropológicas e documentos históricos, os
ameríndios e africanos faziam uso de bebidas alcoólicas antes da chegada dos
colonizadores europeus. Essas bebidas consistiam em fermentados, de
produção doméstica e de conteúdo alcoólico em quantidade reduzida. Três
principais bebidas eram consumidas na África: o vinho de palma, da
palmeira do dendê (o malafo), cujo uso se fazia em diversas circunstâncias
como bem de consumo, de troca e ritual, em Angola, por exemplo, o malafo
5
figurava como símbolo de masculinidade e poder político , uma feita da
infusão, maceramento de sementes, sorgo e milhetos e os vinhos do mel de
abelha (hidromel). Os indígenas, por sua vez, produziam e consumiam uma
diversidade de fermentados obtidos de frutas, sementes, raízes, seiva de
6
palmeiras e mel de abelha. O pulque no México, o guarapo e o sinisco , na
América Central, a chicha no Peru, a aloja na Argentina e o cauim no Brasil
são exemplos dos fermentados produzidos para as celebrações, não havia
entre esses povos o consumo cotidiano que dirimiam os ritmos da vida
normal, a bebida era sempre função grupal, solenidade especial, como em
comemoração a colheita e festas sagradas.

5 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
6 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. 10ª ed.- São Paulo: Graal. Vol.2. 2003.

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Apesar das especificidades de cada época e contexto a ingestão de


bebidas alcoólicas, constitui-se prática convencionada por uma série de
regras de consumo e comportamento etílico próprias de cada cultura, as
quais são aprendidas e reproduzidas, e que, geralmente, funcionam como
instrumentos para a construção de identidades, diferenças e controle social
do uso do álcool, definindo a forma, como e o momento de beber,
priorizando os espaços e as situações adequadas nas quais a bebida é
7
preconizada. Assim, o consumo não é desprovido de significações, agrega
valores justificados culturalmente por um conjunto de qualidades conferidas
às bebidas alcoólicas, parafraseando o antropólogo Sidney Mintz (2001),
podemos dizer que: o que se bebe, onde, como e em que circunstância e em
que quantidade, representam uma série de atos de cultura que materializam a
nossa identidade sociocultural.
O historiador Fernand Braudel (1970) analisando aspectos do
cotidiano, entre os séculos XV-XVIII, destacou as distinções nos regimes
etílicos da Europa, posta em evidência desde a antiguidade clássica, como
referencial simbólico capaz de corporificar identidades e/ou diferenças
culturais. Embora a circulação das bebidas alcoólicas tenha se processado em
toda a Europa, houve áreas delimitadas geograficamente de consumação,
sendo predominante nas regiões Norte e Leste, as cervejas e no Sul e Oeste,
os vinhos. A saber, na região Sul, o vinho estava embevecido de indicativos
culturais que definia um modelo de vida “civilizado” através dos quais se
reivindicava uma supremacia em relação ao Norte, onde a cerveja que se
8
“tornou no Ocidente a bebida dos pobres e dos Bárbaros” era predominante
e símbolo da cultura germânica, os pagãos usavam-na em seus rituais para
indicar sua oposição à sacralidade cristã do vinho.

7 Certeau define consumo como uma produção de significados variados em torno dos referentes da vida
cotidiana: a rua, a casa, o bairro, os objetos, os alimentos, dentre outros. In: CERTEAU, Michel de. A
Invenção do Cotidiano: 1 artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
8 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo, séculos XV- XVIII. Volume. I: As estruturas do
cotidiano. Rio de Janeiro: Edições Cosmos, 1970, p.191.

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Influíam de maneira decisiva nessa diferenciação, os códigos de


comportamento social do beber: as diferenças em relação ao que se bebia, e
como se bebia constituem o âmago dessa questão. Algumas normas de
consumo eram essenciais, como diluir o vinho em água e ter sobriedade, os
gregos antigos não consumiam regularmente vinho puro, a única ocasião em
que se permitia esse uso era durante o desjejum quando embebia o pão nessa
9
bebida bem como compreendiam a satisfação das necessidades e prazeres
do corpo pela comida, bebida e o sexo como indícios de sabedoria aos que
10
conseguiam fazer com temperança. O fato de não estar em conformidade
com a regulamentação cultural e social que regulava a consumação,
possibilitou aos bebedores do Sul embasar a sua suposta superioridade.
Ao deslocarmos da Europa para os regimes etílicos do Brasil colonial,
podemos atestar que essas contradições mais culturais do que propriamente
geográficas serviram para demarcar as relações sociais e fundamentar
preconceitos. Não há dúvida de que numa sociedade rigidamente
hierarquizada como a que existia na América portuguesa os alimentos ou as
bebidas assumiam significados diferentes conforme as condições de quem os
consumiam. Sendo assim, os mais humildes faziam uso da aguardente de
cana -agua ardiente - junto ao alimento diário, quase sempre como um
complemento alimentar. Enquanto os mais abastados consumiam-na como
11
aperitivo nos momentos de relaxamento e convívio social.
Cabe ressaltar, no entanto, que a cachaça mesmo sendo apreciada por
pessoas de diferentes segmentos sociais, geralmente, esteve associada às
camadas mais humildes da população, adquirindo também seu consumo
certo preconceito (bebida de pobre, de negro, sendo, inclusive, menos
valorizada em relação a outros tipos de bebidas), conforme Alencastro esse

9 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs). História da alimentação. Op. cit., p. 155.
10 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. 10ª ed.- São Paulo: Graal. Vol.2.
2003.
11 VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo:
Alameda; Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2005.

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aspecto está correlacionado ao seu papel de mercadoria-escambo de escravos


africanos e também pela associação que se estabeleceu entre a cachaça
brasileira e São Benedito, o santo negro, esta “representação racial do santo se
agregou ao uso de bebida que até o início do século XX foi considerada no
12
Brasil como uma bebida quase exclusivamente de negros”.
Se o processo de fabricação das bebidas alcoólicas fermentadas, que era
13
artesanal, da própria conservação que requeria consumação breve e dos
obstáculos que sobrepunha a comercialização pelo transporte contribuiram
para que não houvesse um consumo generalizado entre as pessoas, estando o
14
uso do álcool “como que ritual ligado sempre às festas e a magia” o advento
da destilação, na Europa, no século XIV, pelos alquimistas europeus,
15
provocou uma revolução , pois não somente surgiram bebidas de elevado
16
teor alcoólico, cerca de 40 a 50%, aos 4 a 12% dos fermentados como
também, em contraste a situação anterior “seu consumo não possuía as
formas coletivas ritualizadas de controle de usos abusivos e de investimento de
17
significados culturais na experiência inebriante”.
A questão da descoberta do álcool destilado constitui um ponto
controverso entre estudiosos dessa temática, comumente atribui-se a Arnaud
de Villeneuve (1250-1313), médico valenciano, a descoberta do álcool nos
líquidos fermentados, mas presume que os chineses prepararam esta
substância há muito tempo. Além disto, diz-se que Albucassis, médico árabe
no século XI, foi o primeiro que falou da destilação do vinho, enquanto que

12 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Op.cit.,
p.314.
13 De acordo com Braudel não havia um método de conservação do vinho, sendo o engarrafamento e o
uso regular de rolhas de cortiças ainda desconhecidos no século XVII. (BRAUDEL, 1970, p. 189).
14 SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de mestrado.
Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Campinas, São Paulo, p. 3, 1995.
15 Expressão empregada por Braudel para referir-se ao processo de destilação.
16 MASUR, Jandira. O que é alcoolismo. São Paulo: Brasiliense, 1991.
17 CARNEIRO, Henrique. Pequena Enciclopédia da Historia das Drogas e Bebidas: história e curiosidades
sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p.52.

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outros asseveram que a honra da descoberta pertence ao alquimista catalão,


Ramon Llull (1232 - 1316).
Para Braudel, essas deduções são fantasiosas, pois, segundo ele, o álcool
destilado foi descoberto por volta do ano 1100 na Itália meridional pela
“Escola de Medicina de Salerno que foi o mais importante centro químico da
18
época”. No entanto, o autor reconhece que Arnaud de Villeneuve
generalizou as aplicações desse agente através de seu trabalho “A conservação
da juventude”, onde propagou que a “aguardente... realiza este milagre,
dissipa os humores supérfluos, reanima o coração, cura a cólica, a hidropisia, a
19
paralisia, o paludismo, calma as dores de dentes, preserva das pestes” , sendo
assim, uma espécie de elixir para a conservação ou recuperação da saúde.
As bebidas destiladas, também chamadas, aguardentes – acquavites ou
eau-de-vie, foram reconhecidas pelas suas virtudes mágicas, ou seja, pela
capacidade de dissiparem mais rapidamente as preocupações, de produzirem
alívio mais eficiente as dores, de prolongar a euforia. Até o século XV, eram
preparadas em pequenas quantidades pelos boticários e médicos, sendo
utilizadas para conservarem e obterem essências de ervas e frutos, servindo
ainda de matéria prima para suas poções terapêuticas. Raras e caras não
estavam ao alcance de todos os bolsos. Desde que tomadas com moderação
ou diluídas em água, eram recomendadas como tônicos para combaterem
doenças e infecções, como analgésicos para aliviarem as dores de cólica e
dentes, como cicatrizantes das feridas e úlceras, para melhorar o rendimento
no trabalho, para facilitar a digestão e estimulante para resistir o frio.
Nos últimos anos desse século e os primeiros do XVI, esse panorama
alterou-se significativamente, ocorrendo uma mudança na manipulação das
aguardentes, que escaparam lentamente da esfera daqueles manipuladores à
direção de corporações de comerciantes. O início da industrialização dos

18 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo, séculos XV- XVIII. Op. cit., p. 196.
19 Idem. Ibidem.

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destilados ampliou a produção, provocou redução dos preços ao consumidor


e consequente aumento do consumo pelas classes populares. 20
Os destilados foram introduzidos na América durante o século XVI e
XVII. Foi quando também os europeus trouxeram o alambique para esse
continente. Examinando as proporções deste acontecimento, Braudel
posiciona dizendo que:

O alambique deu à Europa uma superioridade sobre todos estes povos, a possibilidade
de fabricar um licor superalcoólico, à escolha: rum, uísque, Kornbrand, vodca, calvados,
bagaceira, aguardente, gim: que é que se deseja tirar do tubo refrigerado do alambique?
[...] é inegável que a aguardente, o rum e a agua ardiente (o álcool da cana) tenham sido
presentes envenenados da Europa para as civilizações da América. [...] Os povos
indígenas sofreram enormemente com este alcoolismo que se lhes oferecia. 21

De fato a inserção dos destilados pelos europeus contribuiu para o


declínio no consumo das bebidas fermentadas locais não apenas dos
ameríndios, mas também dos africanos, a grande oferta e o maior poder de
inebriedade vão concorrer para sua preferência, o que causou um impacto
drástico no regime etílico desses povos na medida em que destituiu os
referenciais simbólicos e interditos que circundavam o consumo, dando
lugar a episódios rotineiros de intoxicação alcoólica. Além disso, os
destilados desempenharam um papel importante no processo de dominação
colonial, os europeus utilizaram-nos como métodos para que os nativos se
22
sujeitassem a sua dependência tanto “na África, na Amazônia, no Estado
do Brasil a cachaça se afirmou como um produto essencial no contato inicial
do colonizador e de seus agentes com os nativos”. 23 Os depoimentos de
viajantes, cronistas e jesuítas europeus que estiveram no Brasil durante o

20 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo, séculos XV- XVIII. Op. cit., p.196.
21 Idem. Ibidem, p. 220-221.
22 De acordo com Braudel não havia um método de conservação do vinho, sendo o engarrafamento e o
uso regular de rolhas de cortiças ainda desconhecidos no século XVII. (BRAUDEL, 1970, p. 189).
23 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Op. cit.,
p.317.

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período colonial, deixaram testemunhado como fez o jesuíta, José de


Anchieta, que aguardente da terra era “a peste das aldeias”, embriagando os
índios e levando-os a insubordinação e aos homicídios. 24
Num artigo, da Revista do Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico Pernambucano, intitulado: “O alcoolismo na História de
Pernambuco Antigo”, o Cônego, Carmo Barata, reafirma que os maus
exemplos dos colonizadores não pouparam os índios e africanos do vício da
bebedeira. 25 Esse alarde dos religiosos a respeito dos malefícios do álcool na
convivência social revela seu caráter contraditório ao observarmos que a
montagem de destilarias de aguardente, nos aldeamentos indígenas pelos
missionários, era fato corriqueiro e aceitável. O processo de catequese nos
aldeamentos indígenas valeu-se do “progresso da indústria de derivados da
cana-de-açúcar, dentre os quais se sobressaía a cachaça”. 26 Uma das opções
possíveis para entender essa preocupação dos religiosos parece assentar-se
nos excessos e seus respectivos efeitos, quando eles, obviamente, saiam de
seu controle.
A função econômica do álcool mostrava-se mais explícita à medida que
o processo de industrialização avançava, já dizia Immanuel Wallerstein,
estudioso da formação do sistema mundial, referindo-se ao final do século
XVI (apud CARNEIRO, 2009, p.4) que “a indústria mais próspera era
indubitavelmente a que produzia o perpétuo refúgio do pobre que se fazia cada
vez mais pobre: o álcool”. 27
Na segunda metade do século XVII, será a indústria dos destilados a
opção segura à recessão econômica causada pela crise agrícola, que provocou
a queda dos preços do trigo e do centeio, sobretudo na Inglaterra, na França

24 FILHO, Miguel Costa. A cana –de- açúcar em minas gerais. Op. cit., p.360.
25 BARATA, Cônego Carmo. O alcoolismo na história de Pernambuco antigo. Revista do Instituto
Arqueológico Histórico e geográfico Pernambucano. Janeiro de 1933 a dezembro de 1935. Vol.XXXIII.
Nº. 155-158, p. 193-199.
26 AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX. Revista de
História. N. 154. Departamento de Antropologia-FFLCH/USP, 2006, p.126.
27 FILHO, Miguel Costa. A cana –de- açúcar em minas gerais. Op. cit., p.360.

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e na Alemanha na medida em que se colocara ao alcance das populações


pobres tanto das cidades como do campo. 28 Essa situação possibilitou que
cada país colocasse em circulação seus destilados típicos: o whiskey escocês, o
gim inglês e holandês, a vodka russa, o marc francês, a bagaceira portuguesa,
o absinto espanhol, a grappa italiana, o obranntwein alemão se fizeram
artigos de primeira necessidade, pois “através dos séculos e em todos os países,
a bebida alcoólica, além do prazer báquico e da intoxicação, oferece a caloria
mais barata que os pobres podem comprar”. 29
Até mesmo as Américas passaram a produzir seus destilados próprios:
caso do pisco (aguardente de uva) do Peru, do chinquirito (aguardente de
cana) do México, do rum das Antilhas e da cachaça do Brasil 30 , esses dois
últimos “caracterizam as condições materiais e espirituais da formação do
moderno sistema mercantil” 31 , na medida em que “fizeram os circuitos de
trocas do antigo sistema colonial, tanto no Brasil, como no Caribe e nos
Estados Unidos, esses produtos foram chaves na integração do sistema das
plantations de cana-de-açúcar, do tráfico de escravos”. 32
A crescente produção e comercialização das bebidas alcoólicas
consequente a Revolução Industrial - modernização das técnicas de
produção e redução dos preços - favoreceram o uso indiscriminado e
generalizado do álcool. O uso abusivo, particularmente das bebidas
destiladas nas grandes cidades europeias e norte-americanas deflagrou
reações da sociedade burguesa capitalista que reclamou medidas de
contenção. Os médicos psiquiatras foram rápidos em abraçar a causa, já no
final do século XVIII, o psiquiatra, Benjamin Rush, nos Estados Unidos, foi

28 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Op. cit.,
2002.
29 Idem. Ibidem, p.308.
30 Idem. Ibidem, p.309.
31 CARNEIRO, Henrique. Bebidas alcoólicas e outras drogas na época moderna. Economia e embriaguez
do século XVI ao XVIII. Disponível em: <
Hhttp://www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htmH>. Acesso em: 23/10/2009.
32 Idem. Ibidem.

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um dos mentores do começo da resposta da Medicina às inquietações da


sociedade burguesa norte-americana, ao considrara o beber excessivo, isto é,
a embriaguez como uma “doença da vontade”, caracterizada pela perda de
controle incapacidade do indivíduo de se abster de álcool.
Na Europa, a primeira referência do consumo de álcool, enquanto
doença surge na Inglaterra na obra do médico inglês, Thomas Troter,
intitulada: Essay Medical Philosophical and Chemical on Drukenness de 1804,
que indicava o hábito da embriaguez como uma “doença da mente” que
comprometia o equilíbrio saudável do corpo. Definições similares surgiram
em outras regiões, na Rússia, em 1819, Carl Von Bruhl-Cramer realizou um
estudo com bebedores e concluiu que a embriaguez resultava de uma
“doença do sistema nervoso” que produzia uma impulsão irresistível pelo
consumo de álcool, a qual denominou de “dipsomania”.
Em 1838, na França, o alienista Esquirol criou o conceito de
“monomania instintiva”, no qual incluiu a ebriedade como sendo de caráter
que não se pode dominar. Porém, foi na obra do médico sueco Magnus
Huss, publicada em 1849, Alcoholismus chronicus, eller chronisk
alkoholsjukdom; ett bidrag till dyskrasiernas Kännedom, enligt egen och
andras erfarenhet que se utilizou pela primeira vez o termo alcoolismo para
descrever um conjunto de intoxicações alcoólicas que se apresentava com
sintomas físicos e/ou mentais pelo uso excessivo e prolongado das bebidas
alcoólicas. 33

33 CARNEIRO, Henrique. A fabricação do vício, texto apresentado na conferência: “A construção do vício


como doença: o consumo de drogas e a medicina”, no século XIII. Encontro Regional de História (ANPUH-
MG), em 15/07/2002, em Belo Horizonte. Disponível em:< www.neip.info>. Acesso em 12/04/2010;
CASTRO, Manoel Ferreira de. O alcoolismo. Dissertação apresentada na Escola Medico-Cirurgica do
Porto, 1902; SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de
mestrado. Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 1995; ________________.Bêbados e alcoólatras, Medicina e
cotidiano. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; CARVALHO, Diana Maul de; MARQUES, Rita de
Cássia (Orgs). Uma História Brasileira das Doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.

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No entanto, a inclusão do alcoolismo na classificação médica não se deu


de forma imediata, sucedeu gradativamente, pois ainda era recorrente o uso
terapêutico do álcool. O próprio Magnus Huss considerava o alcoolismo
como um problema decorrente das bebidas destiladas, reconhecendo as
virtudes terapêuticas dos fermentados, entre estes o vinho tinto, branco e
doce, ocuparam lugar de destaque, eram usados pelos médicos para preparar
diversos medicamentos, estando em conformidade com crença comum na
época que a água e o álcool que eles continham, eram extremamente úteis
porque “a água lhes dá a propriedade de dissolver as matérias salinas,
gomosas e extrativas; o álcool dissolve aquelas oleosas e resinosas”. 34
O surgimento da teoria do álcool-alimento, desenvolvida nos anos de
1840, pelo químico alemão Liebig, comprova o quanto ainda era muito
presente o uso das bebidas alcoólicas nas práticas médicas. Liebig acreditava
nas propriedades energéticas do álcool considerando-o alimento
termogênico, cuja função era estimular o funcionamento do aparelho
digestivo. As próprias bebidas destiladas também entravam na composição
de medicamentos prescritos pelos médicos como a Poção Todd, formulada
pelo médico inglês Bentley por volta de 1860, que consistia numa mistura de
água e aguardente indicada para tratar depressão, fraqueza física, febres,
inflamações, pneumonia, escarlatina, erisipela, varíola, sarampo etc. 35
De acordo com o historiador Fernando Dumas (1995), esse composto
influenciou a produção de outras poções em vários países europeus, apoiado
nas pesquisas da fisiologia, da terapêutica, da experiência e das observações
cotidianas na clínica, propagando-se para outras regiões abrangidas pela
medicina ocidental, inclusive para o Brasil, que outilizou em vários hospitais
para combater diversas enfermidades.
Os médicos da terapêutica pelo álcool defendiam que ela exigia
precauções quanta à dosagem prescrita, regularidade do uso e o estado de

34 SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Op. cit., p.2, 1995.
35 VILHENA, Mathias Antônio Moinhos de. O uso de bebidas alcoólicas. These - Cadeira de Hygiene e
História da Medicina da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1882.

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saúde do doente, pois o álcool poderia servir ao mesmo tempo como


remédio e veneno. 36 Assim sendo, reclamam para si a exclusividade da
prescrição, justificando que “ao medico pertence em cada caso particular
estabelecer bem as indicações para auxiliar o doente na evolução dos pheno-
menos morbidos” 37 , dessa forma “o seu uso não póde, não deve ser
discricionário; pelo contrário, deve somente ser prescrito por aquelles que
conhecem as suas propriedades physiologicas e therapeuticas”. 38
Logo, o alcoolismo interpõe-se em meio a um discurso divergente que
oscilava entre uso terapêutico e a nocividade das bebidas alcoólicas. Essa é
uma particularidade interessante nos discursos sobre o consumo de álcool,
quer seja médico, religioso, filosófico, político e econômico, a aparente falta
de nexo ou de lógica em que situa o objeto em questão, que se inscreve na
ambivalência entre remédio e veneno, prazer e desprazer, moderação e
excesso.
O alcoolismo manteve estreita correlação com a concepção de
degenerescência que impregnava a Medicina, desde o início do século XIX, a
qual podia ser reconhecida na diversidade de trabalhos que tratavam das
doenças classificadas como degenerativas como a própria cirrose hepática,
uma doença alcoólica do fígado. Sendo o modelo organicista proeminente
nas ciências e disciplinas médicas nessa época, influenciado pelo positivismo,
o alicerce para explicar a ação das bebidas alcoólicas sobre os órgãos e
sistemas do corpo humano. As observações experimentais da neurofisiologia,

36 Ao administrar a terapêutica pelos alcoólicos, deveria associar a dosagem prescrita ao perfil do


paciente, levando em conta o tipo de atividade que exercia, seu temperamento, seu biótipo, seus hábitos
alimentares. Usada em um paciente com fraqueza levaria a embriaguez, poderia causar a asfixia, ansiedade
etc. In: SAMPAIO, Antônio Augusto da Costa. Do álcool: sua acção physiologiga e seu emprego no
tratamento das doenças agudas e no curativo das feridas. Dissertação apresentada a Escola Médico-
Cirurgica do Porto, 1873, p, 47.
37 SAMPAIO, Antônio Augusto da Costa. Do álcool: sua acção physiologiga e seu emprego no tratamento
das doenças agudas e no curativo das feridas. Dissertação apresentada a Escola Médico-Cirurgica do Porto,
1873, p. 47.
38 VILHENA, Mathias Antônio Moinhos de. O uso de bebidas alcoólicas. Op. cit., p.32.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

da anatomia patológica e da clínica serviram tanto para comprovar seus


aspectos perniciosos quanto suas propriedades terapêuticas. No que se
referem aos nocivos, a anatomia patológica descreveu, detalhadamente, os
efeitos mórbidos das bebidas alcoólicas em diversos órgãos a partir de
experiências clínicas e autopsias aplicadas em humanos e animais
intoxicados pelo álcool (cães, suínos).
Os alienistas, nesse período, estavam empenhados na pesquisa do
substrato anatômico da alienação mental, acompanhando a racionalidade
anatomoclínica que orientava os modelos médicos vigentes. Nos asilos,
dessecavam os cadáveres, e procurava na formação do crânio ou nas lesões
cerebrais uma deficiência orgânica ou mesmo uma má formação hereditária
capaz de dar inteligibilidade aos transtornos mentais. A ideia de um fator
biológico de natureza hereditária já era destacado por Pinel, em seu Traité
médico-philosophique sur l’aliénation mentale, de 1801. Esse movimento em
busca de um substrato orgânico pode ser compreendido como uma maneira
de legitimar a nascente psiquiatria 39 enquanto ciência e, mais
especificamente, como um ramo autônomo da Medicina. O surgimento das
disciplinas como a Frenologia 40 e a Antropometria, em meados do XIX,
interpretando a capacidade humana pelo tamanho e proporção do cérebro
reforçou o caráter exclusivamente organicista do saber psiquiátrico.

39 A obra Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale – Tratado Médico - Filosófico sobre a
Alienação Mental ou Traité do alienista Pinel, publicada em 1801, inaugura a Psiquiatria como
especialidade médica dedicada à loucura, construindo-se a noção de que essa era igual à doença mental,
de que o espaço para o louco era o hospital psiquiátrico e de que o profissional habilitado para tratar a
loucura era o psiquiatra. In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e as épocas. São Paulo: Ed. 34, 1994, p.145.
40 A Frenologia foi desenvolvida pelo médico alemão, HFranz Joseph GallH, no Hséculo XIXH,
colocou-se como sendo capaz de determinar o caráter, características da personalidade, grau de
criminalidade e o desenvolvimento das faculdades mentais e morais, baseando-se formato externo do
crânio. In: MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. “A fatalidade biológica: a medição dos corpos, de Lombroso
aos biotipologistas”. In: História das prisões no Brasil. Vol.2. Rio de Janeiro: Rocco, 2009; SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). 1ª ed.-
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Heider Victor Cabral de Moura

Com relação ao consumo de bebidas alcoólicas os seus trabalhos


detalhavam os efeitos do álcool no sistema nervoso, demonstrando que o uso
da substância provocava anomalias cerebrais e outras séries de manifestações
mórbidas profundamente perturbadoras do estado mental do indivíduo
alcoolizado, paralisando seus centros do juízo e da reflexão, privando-o da
consciência e da liberdade dos seus próprios atos, agindo de forma impulsiva
por ideias que o álcool despertava e/ou elaborava. A alcoolização era, assim,
aproximada a loucura, na medida em que ambas distinguia-se pela ausência
de consciência nos atos praticados.
Os olhares perscrutadores dos psiquiatras não se restringiram ao corpo
do indivíduo embriagado, mas também ao corpo social, pois associaram o
“mau funcionamento dos órgãos humanos ao mau comportamento dos
indivíduos” 41 os quais no seu ponto de vista necessitavam de serem
examinados, controlados, classificados, afastados e isolados dos focos de
contaminação demonstrando claramente seu desejo de intervencionismo
político e de fornecer estratégias de controle para problemas sociais.
Com a teoria da degenerescência do alienista francês, Benedict-
Augustin Morel, apresentada no seu Traité des Dégénérescences, publicado
em 1857, que supõe uma progressiva degeneração da espécie a partir de um
tipo humano primordial idealizado, cuja transmissão se daria pela
hereditariedade, mas, que poderia ser adquirida no curso de uma vida
marcada por influências nocivas de origem patológica – tuberculose, sífilis,
paludismo, doenças da infância etc. – ou social – industrialização,
urbanismo, pauperismo, imoralidade dos costumes, conduta sexual
desregrada, abuso de álcool e temperamentos mórbidos, a Psiquiatra
encontrou um sólido referencial sobre o qual ancorar sua intervenção de

41 SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Moderação e excesso; uso e abuso: os saberes médicos acerca das
bebidas alcoólicas. Clio. Revista de Pesquisa Histórica. Recife. Programa de Pós- Graduação em História.
Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas/ apresentação Carlos
Alberto Cunha Miranda. Recife: Ed. Universitária da UFPE. Nº 24. Vol.2. 2007, p. 119.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

cunho higienista e eugenista 42 sobre a sociedade de modo a impedir a


propagação da degeneração da raça, pois conforme a ideia moreliana, os
efeitos da transmissão hereditária tenderiam a acentuar os traços da tara, dos
vícios e estados mórbidos adquiridos pelos predecessores nas gerações
subsequentes. Dessa forma, uma linhagem acometida pela degeneração
tenderia a acumular e agravar seus desvios hereditariamente aos
descendentes, imprimindo-lhes novos atributos até levar sua esterilidade e
extinção. 43
Conforme os pressupostos de Morel, o que se transmitia não eram os
traços característicos de um determinado distúrbio mental e sim as
tendências patológicas gerais, ou seja, determinados traços de degeneração
em um ancestral poderiam se manifestar de maneiras diferentes em seus
descendentes. O fato de não ter uma herança definida a ser transmitida,
torna claro que toda e qualquer patologia ou desvios, seja no comportamento
ou no corpo poderia surgir e disseminar-se a partir de um indivíduo
identificado como degenerado. Essa particularidade Foucault (2002) chama
de “laxismo causal indefinido” o quer dizer que “tudo pode ser causa de
tudo” 44 . Assim sendo, “a embriaguez, por exemplo, vai provocar na
descendência qualquer outra forma de desvio de comportamento, seja o
alcoolismo, claro, seja uma doença como a tuberculose, seja uma doença

42 Uma das preocupações fundamentais dos degenaracionistas era a concepção preventiva a serem
deduzidas dos pressupostos da teoria da degenerescência, em particular, as ações sanitárias e higienistas a
implementadas pelo Estado com o objetivo de conter a proliferação das tendências degeneradas entre a
população. A Eugênia (eu: boa; genus: geração) criada em 1883 pelo naturalista inglês, Francis Galton,
tornou o instrumento mais rápido e eficaz para resolver o problema, pois propôs ser ciência do
melhoramento do patrimônio hereditário cuja função era oferecer às linhagens mais adaptadas ou mais
bem-dotadas maiores condições de reprodução através de um projeto ampliado de intervenção social
fundamentado no princípio da prevenção via eugenia pela adoção de medidas profiláticas de controle,
como a esterilização e os exames pré-nupciais desencorajando casamentos nocivos como casamentos
inter-raciais, uniões com alcoolistas, epiléticos e alienados. (SCHWARCZ, 1993).
43 HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin-de-siècle. Rio de Janeiro: Rocco,
1993.
44 FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 399. (Coleção Tópicos).

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Heider Victor Cabral de Moura

mental ou mesmo um comportamento delinqüente”. 45 São essas condições,


segundo Foucault, que possibilitam a emergência dos “anormais”(a
prostituta, o homossexual, o criminoso, o louco, o alcoolista) os quais não
são considerados como portadores de uma doença em particular, mas como
sujeitos que antecipam um número ilimitado e indefinido de doenças
possíveis em sua descendência.
Essa concepção de degenerados abarca uma categoria muito ampla,
onde todos os desviantes sociais poderiam estar incluídos, o que proporciona
um poder inigualável aos psiquiatras na sociedade, pois somente “o olho
treinado e especializado do cientista médico seria o único capaz de identificar
na multidão os sinais indicadores dos desvios”. 46 Com efeito, a partir do
momento em que a Psiquiatria adquire a possibilidade de relacionar
qualquer desvio, irregularidade, retardo, a um estado de degeneração, ela
transformou-se num domínio de saber e de intervenção ao mesmo tempo
intra e extra-asilar. Essa nova configuração epistemológica foi o que
possibilitou a construção de uma Psiquiatria ampliada, capaz de se referir
tanto à alienação mental quanto às mais variadas condutas cotidianas. Nesse
ínterim os hábitos, costumes e comportamentos passaram a compor a grade
de sintomas inscritos em uma nosografia que classificava como doença todo
o tipo de conduta que não se coadunava em linhas gerais com os padrões
morais valorizados.
Ademais, a teoria da degenerescência apresentou-se como instrumento
fundamental para consolidar a concepção do álcool como uma substância
nociva ao situá-lo como causa determinante na degeneração da raça. A partir
desses pressupostos, o anatomista francês, Cruveilhier, reconstitui um
quadro dos efeitos degenerativos do alcoolismo na descendência humana:

45 FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Op. Cit. p. 399.
46 FERLA, Luís. Feios, sujos e malvados sob medidas: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo:
Alameda, 2009, p.24.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

Na primeira geração: imoralidade, depravação, excessos alcoólicos, embrutecimento


moral;
Na segunda geração: tendência para uso de bebidas alcoólicas, excessos maníacos,
paralisia geral;
Na terceira geração: tendência hipocondríaca, lipsomania e tendências homicidas;
Na quarta geração: inteligência pouco desenvolvida, estupidez ou idiotismo, extinção da
raça. 47

É interessante observar a quantidade de referências morais contida na


classificação e a variedade de predisposição a um estado de degenerescência,
evidenciando um quadro assustador, carregado de adjetivações negativas e
estigmatizante ao hábito de beber, responsabilizado pelo fim da espécie. Ao
prazer que se fazia, a partir de alguns goles, equivaleria a esse terrível destino.
Essas qualificações demonstram que o discurso dos médicos sobre o
alcoolismo não se apoiava apenas nas pesquisas científicas, mas estavam
também estruturados nos conceitos morais da sua época.
Ancorados no fundamento da degeneração latente e possível pela
presença da hereditariedade mórbida, os psiquiatras adquiriram o status de
magistrado, vigilante da moral e da saúde pública. Enquanto guardiães do
organismo social excessivamente prejudicado pela intoxicação alcoólica vão
se colocar na tarefa de esquadrinhar preventivamente a sociedade atirando-
se com ímpeto na identificação e supressão dos alcoolistas do convívio social
por serem portadores e transmissores hereditários dos germes da
degeneração.
A Antropologia Criminal italiana sistematizada por Lombroso, Eurico
Ferri e a Raphael Garofalo, influenciada pela teoria da degenerescência de
Morel, veio corroborar para representação negativa do álcool e do alcoolista
ao enfatizar o consumo de bebidas alcoólicas como concorrente insuperável
na produção da criminalidade. Esses teóricos defendiam a idéia de uma
predisposição hereditária, conjugada aos fatores ambientais como

47 NÓBREGA, Agripino. A justiça na repressão ao alcoolismo. Recife, p. 31-32, 1956.

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Heider Victor Cabral de Moura

concorrente para o crime. O consumo ocasional ou habitual do álcool


revelava o criminoso pela explosão dos instintos recalcados da sua
predisposição biológica latente, o que justificaria sua temibilidade sob o
ponto de vista social.
O consumo de bebidas, nessa perspectiva, conduzia ao vício que se
seguia aos instintos sanguinários dos indivíduos e a anulação dos seus
princípios morais. Além de confluir para uma ameaça à estrutura social, pois
o alcoolista deixava de cumprir com as exigências do trabalho. O que é
importante, no pensamento desses teóricos, é que ele veio fornecer um
excepcional “método de prevenção ao crime e de defesa social, ao permitir a
identificação do criminoso antes mesmo deste haver cometido o crime, e o
fazendo a partir de uma legitimidade científica” 48 , já que se confiava que a
partir da análise de determinadas características somáticas, psíquicas e
sociais seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o
crime, funcionando assim, como um importante recurso de controle social.
Essa criminalização e medicalização do álcool apresentaram-se como
medida de primeira instância para o corpo produtivo, que segundo Foucault,
será a preocupação da medicina da metade do século XIX, que “colocou o
problema do corpo, da saúde e do nível da força produtiva dos indivíduos” 49
como um problema de primeira instância. A produção discursiva
antialcoólica ao propagar o ideal de trabalhadores sóbrios, disciplinados,
responsáveis pelo sustento da família e pela manutenção da ordem, estava
em função de um mercado produtivo que primava por corpos sadios e
potencializados.
O discurso antialcoólico tem suas raízes históricas na moral burguesa:
disciplina do trabalho, das atitudes e dos gestos, o “uso-econômico-do-
tempo”. 50 A ordem burguesa da produtividade instituiu regras que deveriam

48 FERLA, Luís. Feios, sujos e malvados sob medidas: a utopia médica do biodeterminismo . Op. cit., p.30.
49 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.80.
50 THOMPSON, Edward. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em
comum. 3ª ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

gerir todas as instâncias do social, seja ela no interior ou fora do espaço


fabril. Para isso, estabeleceu um discurso moralizante que visava cristalizar
no conjunto da sociedade a ética do tempo útil, o qual deveria funcionar
como um “relógio moral” que cada indivíduo carregava dentro de si, assim,
“a necessidade de levantar cedo forçaria o pobre a ir para a cama cedo; e com
isso impediria o perigo de folias à meia-noite” 51 , o uso do tempo que não de
forma útil e produtiva, conforme o ritmo imposto pela fábrica passou a ser
sinônimo de ociosidade e depravação moral. Nesse interim, o uso das
bebidas alcoólicas, a frequência aos botequins passou a ser consideradas
práticas maléficas aos trabalhadores e a sociedade em geral.
Quando publicou em 1843 A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra Engels, contemporâneo a essas discussões sobre o consumo das
bebidas alcoólicas destacou que as miseráveis condições de vida a que
estavam submetidos os trabalhadores, vivendo em aglomerações insalubres e
em espaços apertados desprovidos de qualquer conforto e de saneamento
básico, as dificuldades cotidianas, a fadiga pelo trabalho monótono e
repetitivo, as extensas jornadas de trabalho pelas exigências da sobre
produção e os baixos salários concorriam para levá-los ao consumo de
aguardentes, que era praticamente a única fonte de alegria de que
dispunham. Os seus corpos enfraquecidos pela ambiente insalubre e pela má
alimentação impulsionam a busca por um estimulante externo, a necessidade
de companhia somente poderia ser satisfeita na taberna, não havendo outros
lugares para encontrar os amigos. Até mesmo o consumo de bebida ofertada
pelos pais aos filhos dava-se, conforme o autor, na “certeza de esquecer, na
embriaguez, pelo ou menos por algumas horas, a miséria e o fardo da vida, e
cem outros fatores tem efeito tão poderoso que não poderemos acusar os
trabalhadores de sua inclinação pela aguardente”. 52

51 Idem. Ibidem, p.292.


52 ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global, 1985, p.116-119.

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Heider Victor Cabral de Moura

No botequim, o trabalhador reencontrava seus companheiros para


trocar ideias, afogar suas mágoas, falar sobre política, comer e beber juntos.
Logo, esse estabelecimento tinha uma função maior do que simplesmente
fornecer bebidas alcoólicas, era centro de sociabilidade operária, espaço
central para produção e reprodução das relações sociais, sobretudo entre os
homens. Sob a ótica linear da moral burguesa, os psiquiatras compreendiam-
no como sendo lugar de corrupção da moral, de indisciplina, de depravação
dos costumes, de depauperação das forças de trabalho.
Na percepção deles, as condições miseráveis de vida dos trabalhadores
nas moradias ou no trabalho das fábricas, eram resultantes do seu
desregramento moral. Era o lar sujo, em desordem e promiscuidade que os
levavam aos lugares de venda de bebidas alcoólicas.
É importante frisar que o alcoolismo não foi combatido por ser uma
“doença” epidêmica que ameaçava o patrimônio biológico da raça, mas,
principalmente porque desestabilizava a ordem, instigava a transgressão,
exacerbava as paixões afastando os freios da moral conveniente, desse modo,
“o controle do temperamento e dos prazeres eram apenas duas das inúmeras
ações regulamentadas por este saber” 53 que buscava a todo custo a partir de
seu ‘cientificismo’ disciplinar a vida cotidiana operária, principalmente na
sua sexualidade e nas suas formas de diversão como parte de um projeto
moralizador da sociedade burguesa.
A ideia prevalescente nos discursos dos psiquiatras em relação à ida
com certa assiduidade aos botequins pelos trabalhadores era culpa em
grande parte do não cumprimento do papel feminino, pois diziam eles: “os
homens ricos têm mil maneiras de preencher suas horas de lazer. O
trabalhador tem apenas duas: ficar em casa ou ir ao cabaré”. 54 Era dada a
mulher, a obrigação de manter um lar saudável e acolhedor, cuidando para
que a casa estivesse sempre higienizada, sem o grito da criançada, tornando o

53 SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Op.cit., p.54, 1995.
54 HARRIS. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin-de-siècle. Op. cit., p. 289.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

lar atrativo ao trabalhador depois de um dia cansativo de labor. Na maioria


das vezes, essa mulher também trabalhadora das fábricas, exaurida em suas
forças, tinha que sustentar para si qualquer que fosse às lamentações , seu
humor deveria ser sempre atrativo a fim de segurar seu respectivo
companheiro em casa. A mulher tutelada pela Medicina vai ser considerada
um importante agente na luta contra o alcoolismo, sendo responsável pela
estabilidade emocional e administrativa da família. Ela era o baluarte de
esperança, do qual devia partir a educação, o controle, a temperança dos
hábitos, dos instintos e dos apetites.
O reconhecimento do costume de ingerir bebidas alcoólicas como um
hábito que deveria ser normatizado, sucedeu medidas profiláticas de
abstinência, direcionadas, sobretudo as classes trabalhadoras. Desde o
momento em que foi gestado, esse discurso esteve intimamente relacionado
às precariedades do modo de vida do operariado urbano: casas insalubres,
anti-higiênicas, desregramentos dos costumes, alimentação insuficiente,
saúde debilitada e entre outros aspectos compõem o quadro de convicção de
que era um problema específico dessa classe social. O conceito de doença
social engendrado em meados do século XIX abrangendo e criando moléstias
relacionadas ao desenvolvimento urbano-industrial, como a tuberculose, a
sífilis, a loucura e próprio alcoolismo, facilitava a associação entre as
camadas pobres da sociedade e essas moléstias devido à situação degradante
a que estavam submetidas nos ambientes urbanos.
Na segunda metade do século XIX, os discursos antialcoólicos
tornaram-se mais sólidos. Nesse momento, já se encontrava fortalecida a
corrente que negava ao álcool qualquer propriedadade nutritiva, pois em
1861, os fisiologistas Perrin, Ludger, Lallemand e Duroy refutaram a teoria
do álcool alimento, argumentando que embora o álcool ingerido fosse
eliminado, em partes, por todas as vias de excreção como na expiração, na
pele e na urina, grande parte da totalidade desse líquido realizava sua
combustão no interior do organismo. Por não ser a combustão instantânea,
ficando o álcool a circular no sangue até sua total destruição, o metabolismo

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Heider Victor Cabral de Moura

celular ficava bastante pertubado por uma espécie da afixia do tecido


sanguineo, devido a acumulação do ácido carbônico, resultante em parte da
sua queima. A nutrição longe de ser acelerada, era retardada, com grave
prejuízo para os elementos celulares dos órgãos, portanto não era alimento,
não aumentava a força muscular, não combatia a fadiga e mesmo como
medicamento deveria ser usado com muita cautela, pois poderia despertar
uma tara hereditária latente. 55
Na perspectiva desses estudiosos, o álcool era um agente tóxico, quer se
apresentasse na forma de bebidas destiladas ou fermentadas. Assim sendo, os
bebedores teriam todos os órgãos vitais de seu organismo afetados por lesões
dos órgãos digestivos, do coração, do aparelho respiratório (os alcoolistas
tinham condições de defesa destruídas contra doenças como pneumonia e
tuberculose), do sistema locomotor, do circulatório, do urinário e, em
especial, do sistema nervoso, o mais especialmente atacado, sendo o cérebro,
com efeito, o órgão onde se acumulava de preferência o álcool, fazendo-se
notar pelas lesões das células do córtex, lesões da medula e dos nervos
periféricos, lesões degenerativas das paredes vasculares e degenerescência
gordurosa das células nervosas.
Ainda que não tenham negado o álcool como estimulante do sistema
nervoso, reconheceram essa função como algo muito momentâneo, sendo a
sua ação excitante (inteligência vivaz, prontidão e abundância de idéias,
tendência para a expansibilidade e para a confiança etc.) imediatamente
seguida de um período depressivo, mais intensivo.

55 CASTRO, Manoel Ferreira de. O alcoolismo. Op. Cit., 1902; VILHENA, Mathias Antônio Moinhos de.
O uso de bebidas alcoólicas. Op. cit. 1882; SAMPAIO, Antônio Augusto da Costa. Do álcool: sua acção
physiologiga e seu emprego no tratamento das doenças agudas e no curativo das feridas. Op. Cit., 1873;
SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Op. Cit., 1995.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

A influência do álcool sobre o sistema nervoso foram agrupadas em três


períodos distintos pelo psiquiatra francês, Henri Legrand du Saulle,
considerado o modelo clássico na Medicina: alegre, furiosa e letárgica”. 56
No primeiro, a pessoa não se acha totalmente embriagada, ela torna-se
risonha, expansiva e alegre. Apesar dessa excitação, “ainda mantém sua
integridade e o domínio de seus sentidos; a consciência persiste ainda, [...] se
acha em plena posse de suas faculdades mentais”. 57
Já no segundo, a pessoa torna-se agitada e agressiva, pronunciando
palavras desconexas, a exaltação cede lugar a depressão, a pessoa fica triste,
melancólica e apática, apresenta enfraquecimento dos sentidos, da atenção e
da percepção, movimentos e gestos desordenados, dissociação de ideias,
memória prejudicada, vontade paralisada, as paixões e os impulsos tornam-
se mais intensos, obscurecimento da inteligência, irritação, ausência de
sensibilidade, alucinações etc., “o bêbado não tem mais um vislumbre da
razão, é um inconsciente e impulsivo. É o estado em que o homem fica
reduzido às condições de um irracional, capaz de tudo”. 58 Essa era
considerada a etapa em que o ébrio apresentava-se perigoso a ordem e
tranquilidade pública, a família, a si mesmo e a integridade física e moral da
população. O terceiro período caracteriza-se pela total letargia da pessoa que
sucumbe ao sono profundo, uma espécie de coma alcoólico - ivre-mort,
como designava os franceses.
Essas fases da embriaguez seguiram as comparações zoológicas,
frequentemente utilizadas nos discursos antialcoólicos para representação
dos estados morais dos bêbedos, sendo a primeira a fase do macaco, da graça,

56 SAMPAIO, Antônio Augusto da Costa. Do álcool: sua acção physiologiga e seu emprego no tratamento
das doenças agudas e no curativo das feridas . Op. cit., p.35.
57 ARANTES, José Augusto. A embriaguez. These da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1907,
p.11.
58 Idem. Ibidem, p.11.

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Heider Victor Cabral de Moura

da imitação; a segunda, a do leão, da briga, onde o bebedor crê-se forte como


a fera; a terceira, a do sono, o ronco que caracterizariam a fase do porco. 59
Se teoricamente os estágios da embriaguez puderam ser definidos, no
plano das cogitações concretas, os psiquiatras tiveram dificuldades em
estabelecer os limites perfeitamente precisos a respeito dos graus de
embriaguez numa pessoa em um determinado momento, pois esses três
períodos não se sucediam regularmente em todos os casos, nem cada um
deles ofereciam sempre uma sintomatologia completa. O psiquiatra Legrain e
outros correligionários admitiram que os fenômenos de um período, às
vezes, misturavam-se com os do outro, sendo difícil separá-los, mostrando-
se incertos em indicarem, de maneira geral, a quantidade de álcool necessária
para produzir o estado de embriaguez.
Corroborava para essa dificuldade o fato de que ação das bebidas
alcoólicas não ocorria da mesma forma em todas as pessoas, variavam
conforme a predisposição individual, a presença ou ausência de
enfermidades (ex. organismos de grande resistência à ação do álcool, eram
aqueles em que o fígado e o rim conservavam a integridade funcional
perfeita), os estados físicos nutricionais e vitamínicos no momento de
ingestão (a ação do álcool era pior em jejum que depois das refeições e mais
mal em desnutridos), a quantidade de álcool absorvida e a natureza da
substância ingerida (as aguardentes pelo elevado grau de concentração de
álcool eram consideradas mais prejudiciais que o álcool absorvido no vinho
ou na cerveja, as misturas e, sobretudo às associações de essências ao álcool
como anis, absinto também tornavam as intoxicações mais rápidas), a idade,
o estado emocional no momento em que se consumia a bebida, o sexo e
outros fatores. 60

59
ESPONSEL, F. Trabalhos de Anti-Alcoolismo. Malefícios do álcool. In: Archivos Brasileiros de Hygiene
Mental. Anno IV. Rio de Janeiro-, junho a outubro de 1931, nº 2, p.210.
60 CASTRO, Manoel Ferreira de. O alcoolismo. Op. Cit. 1902; CARVALHO, Francisco pereira de. Do
alcoolismo e sua prophylaxia. These da Faculdade de Medicina da Bahia, 1924; SAMPAIO, Antônio
Augusto da Costa. Do álcool: sua acção physiologiga e seu emprego no tratamento das doenças agudas e no

192 Ano VII No 7. 2010


ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

No processo de cristalização do alcoolismo como uma patologia,


podemos verificar um processo de transformação na noção de embriaguez,
que passou a ser classificada como alcoolismo agudo, a primeira etapa da
‘doença’ decorrente de libações mais ou menos abundantes de bebidas
alcoólicas. O abuso frequente concorria para que se estabelecesse o
alcoolismo crônico, descrito como resultado de uma intoxicação lenta e
progressiva do organismo, que ao contrário do alcoolismo agudo que se
caracterizava por acidentes episódicos e passageiros manifestva-se por uma
série de fenômenos patológicos que se fazia de modo persistente e mais
profundo sobre os órgãos do corpo humano, incidindo principalmente sobre
o sistema nervoso e/ou aparelho gastro-hepático.
Segundo o psiquiatra alemão, Émil Kraepelin, para que ele se
estabelecesse, bastava repetir com frequência uma quantidade de álcool,
grande ou pequena, antes de dissipar os efeitos das doses anteriores. 61 A
predisposição individual e o tempo de abuso das bebidas alcoólicas foram
considerados condições básicas para que se estabelecesse o alcoolismo
crônico.
De acordo com o modelo nosológico Kraepeliniano, considerado o
mais completo na classificação da loucura ou doenças mentais, as alterações
mentais por intoxicações alcoólicas dar-se-iam da seguinte maneira:
embriaguez, alcoolismo crônico, distúrbios psíquicos, delirium tremens,
distúrbios da percepção, psicose de Korsakow, delírio alucinatório dos
alcoolistas, demência alucinatória dos alcoolistas (paranóia alcoólica) delírio
de ciúme dos alcoolistas, paralisia alcoólica e epilepsia alcoólica. 62

curativo das feridas. Op. Cit., 1873; SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma
doença. Op. Cit., 1995.
61 NÓBREGA, Agripino. A justiça na repressão ao alcoolismo. Op. Cit., p. 48.
62 CASTRO, Manoel Ferreira de. O alcoolismo. Op. Cit. 1902; SAMPAIO, Antônio Augusto da Costa. Do
álcool: sua acção physiologiga e seu emprego no tratamento das doenças agudas e no curativo das feridas.
Op. Cit., 1873; SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Op. Cit., 1995.

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Heider Victor Cabral de Moura

Estabelecidas no alcoolista, essas e outras variadas entidades


nosológicas, segundo o pensamento psiquiátrico poderiam desenvolver-se
mais ainda nos seus descendentes. A convicção que o consumo do álcool e o
número dos loucos, dos paralíticos gerais cresciam paralelamente, foi a razão
para se concluir que o alcoolismo era a causa de todo o mal, mas a tendência
ao abuso do álcool, a loucura, e a paralisia geral são as manifestações do
mesmo mal, ou seja, de um lado o alcoolismo favorecia a aparição de todos
esse quadro, por outro lado, esses mesmos males, mais tarde convertidos em
taras inevitáveis, favoreceriam o alcoolismo.
Quanto ao mecanismo de transmissão do alcoolismo aos descendentes,
a ideia predominante entre os psiquiatras era que passava diretamente do pai
ao filho no momento da procriação, e da mãe ou da ama à criança pela
intoxicação durante a gestação ou no período da amamentação. As leis da
herança manifestavam-se inexoravelmente, independentemente dos pais
serem etilistas crônicos ou ébrios ocasionais. Os alienistas Esquirol, Morel,
entre outros argumentaram que entre as causas da epilepsia nas crianças,
alienação mental, idiotia, imbecilidade, ocupava o primeiro lugar o
alcoolismo dos pais no momento da concepção A predisposição biológica
isto é, ancestralidade alcoólica coloca-se como condição sine qua non para
que o alcoolismo se desenvolvesse.
Os estudos sobre o alcoolismo ao longo do século XIX, dando ênfase ao
caráter nocivo das bebidas alcoólicas somado aos crescentes movimentos
operários no período, reforçaram a necessidade de medidas normativas aos
comportamentos sociais das classes populares. Na França, segundo a
historiadora francesa, Ruth Harris, a Comuna de Paris foi marco definitivo
na luta conta o alcoolismo, pois o movimento foi compreendido como
resultado dos excessos patológicos do alcoolismo impulsionando os médicos
a adoção de medidas de saneamento aos modos de vida dos proletários, os
“Annales médico-psycologiques, por exemplo, uniram-se num grito geral de
angústia burguesa descrevendo os operários parisienses como bêbados

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

debochados, violentos, maníacos bebedores de absinto”. 63 Em L’alcoolisme


publicado em 1874, o alienista francês Valentin Magnan, fortaleceu as
representações negativas dos alcoolistas descrevendo-os como
dipsomaníacos que matavam, roubavam, espancavam suas mulheres,
deixavam suas famílias na miséria ou se prostituíam para sustentar seu vício
da bebedeira. 64
Diante de todos os males que suscitavam o alcoolismo, os psiquiatras
colocaram-se na contra ele assumindo várias funções: como higienistas e
sanitaristas sustentaram a luta com campanhas e ações diversificadas aos
hábitos considerados anti-higiênicos e antissociais com adoção de um
conjunto de leis, normas e práticas que incluíam higiene pública, higiene
íntima e corporal, alimentação e habitação higiênica, como legistas
examinaram pormenorizadamente as responsabilidades dos alcoolistas
estabelecendo a relação entre álcool, crime e violência, nos hospitais e
manicômios buscaram especializar-se em tratamentos para os alcoolistas,
além de lutar por instituições para abrigá-los. Essas funções, algumas vezes,
colidiam, provocando polêmicas, tensões e diferentes interpretações.
Ao longo desse período, emergiram várias campanhas reformistas e
medidas legais contra o uso abusivo de bebidas alcoólicas sob a fiança desses
cientistas. Na Suécia e Noruega, foi adotada uma série de decretos legais de
supressão das destilarias domésticas, permissão de produção às grandes
usinas de destilação desde que obedecessem a regulamentação e a fiscalização
que se interpunham a fabricação e o comércio das bebidas, concessão ao
poder municipal de limitar os lugares de venda de álcool, expropriação
mediante a indenização aos donos dos botequins, arrendamento das casas de
molhados a varejo às sociedades de temperança que detinham o monopólio
da venda das bebidas alcoólicas. Essa licença as sociedades de temperança foi
aplicada pela primeira vez em Gothenburgo, no ano de 1865, a qual passou a

63 HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin-de-siècle . Op. cit., p. 267.
64 Idem. Ibidem.

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ser conhecida como o Sistema de Gothenburgo, sendo adotado na Suécia


com o nome de bolag, e na Noruega de somlag, cujos objetivos eram:
diminuírem as tentações, reduzindo o número dos estabelecimentos,
dificultarem o consumo elevando o preço das bebidas, transformarem seus
botequins em lugares menos atrativos aos clientes, retirando as comodidades
e fechando muito mais cedo. O sistema de elevação das taxas sobre a
produção e o comércio das bebidas alcoólicas foi utilizado em vários países
como Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e nos Estados Unidos. 65
Na Europa, criaram-se códigos penais que analisavam a
responsabilidade do bebedor no momento do delito, procedimentos para
prender e multar pessoas que se encontravam bêbadas em público e
fiscalização aos cafés das classes operárias, o que motivou confrontos entre
polícia e os clientes.
Na perspectiva psiquiátrica, a legislação penal, somente se fazia eficaz
na luta contra o alcoolismo se atuasse em cinco frentes: repressão à venda de
bebidas falsificadas e impuras, punição aos vendedores de bebidas por
cooperar com a bebedeira dos clientes e por fornecer bebidas aos menores,
punição a embriaguez pública, punição mais severa aos reincidentes e a
embriaguez manifestada em tribunais, Igrejas, assembleias públicas ou
durante certos trabalhos em que representava perigo para outra pessoa e que
fosse determinado à internação em asilos especiais os alcoolistas que em
decorrência da sua enfermidade, sejam absolvidos das acusações criminais. 66
As medidas adotadas legalmente estiveram sempre abaixo das
expectativas e pregações dos discursos psiquiatras ao guiar-se “para uma
postura conciliadora que oscilava entre a força os interesses econômicos
envolvidos e uma permissividade calcada no princípio da liberdade do

65 MORAES, Evaristo de. Ensaios de pathologia social: vagabundagem, alcoolismo, prostituição, lenocínio.
Rio de Janeiro: Ed. Leite Ribeiro, 1921, p.83.
66 Idem. Ibidem, p.96.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

indivíduo”. 67 Esse último aspecto foi muito debatido pelos psiquiatras


quando sustentaram a legitimidade da criação de asilos especiais para os
alcoolistas, para eles a internação não contrariava as garantias individuais,
alegando que era uma medida preventiva já que se comprovaram os perigos
do alcoolismo no ponto de vista da degeneração física, da moral, da
degeneração pela descendência e da sua periculosidade social. Defendem que
que a sociedade tinha, pois, o direito de se proteger das ações intempestivas
daqueles que visavam sua destruição. O princípio da preservação social era
concebido como inviolável. Assim, o internamento, temporário ou
definitivo, em estabelecimentos especiais, era tido como melhor meio de
tratamento em virtude da supressão absoluta do álcool, sob qualquer forma,
“quando não tenha outras vantagens senão afastar as crises, a sua utilidade,
ainda assim, será muito apreciável”. 68
O primeiro asilo para alcoolistas surgiu nos Estados Unidos por
iniciativa privada, sendo também inaugurado na Europa em 1851, na cidade
de Dussendorf (Alemanha), sem adoção da assistência coativa. Com seu
Habitual Inibriate’s Act de 1898, a Inglaterra estabeleceu legislativamente, na
Europa, o princípio da internação forçada aos bebedores habituais que
cometessem sob a influência de bebidas alcoólicas atos punidos pela lei penal
comum, aos que fossem reincidentes em delitos por causa de embriaguez e
aqueles cuja alcoolização constituísse perigo individual e social. Desde então,
os asilos de diversos países europeus e dos EUA adotaram o duplo regime de
internação sob orientação das disposições legislativas que regulavam tais
processos. 69

67 SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Bêbados e alcoólatras, Medicina e cotidiano. MARQUES,
NASCIMENTO, Dilene Raimundo; CARVALHO, Diana Maul de; MARQUES, Rita de Cássia (Orgs).
Uma História Brasileira das Doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006, p.77.
68 FONTES, Alberto da Costa Ramalho. O alcoolismo: succintas considerações sobre o seu papel em
nosologia e em Sociologia. Dissertação apresentada a Escola Medico – Cirugica do Porto, 1908, p.62.
69 SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Bêbados e alcoólatras, Medicina e cotidiano. Op. cit., p.77.

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As campanhas antialcoólicas dirigidas pelas sociedades de temperança


foram, na perspectiva dos psiquiatras, os meios mais eficientes de luta contra
o alcoolismo. No interior dessas instituições foram forjadas concepções dos
alcoolistas, ora como um “doente”, ora como um “desvio” de carater. A
sociedade de temperança norte-americana desde começo do século XIX,
tendo como principal veículo a moral protestnte, havia se colocado na luta
contra os abusos das chamadas bebidas fortes como o gim e o whisky. Por
volta de 1830, o movimento se separou em duas correntes, sendo uma mais
tolerante ao consumo de álcool e outra mais radical, pregando a abstinência
total.
O partido da proibição e a W.C.T.U. (Women’s Cristian Temperance
Union), entre outras organizações, dedicaram seus esforços à proibição
nacional do álcool, promovendo uma ampla propaganda contra a indústria
de bebidas relacionando os problemas produzidos pelo álcool como sendo
responsáveis pela corrupção política e prostituição. Em 1920, o Congresso
aprovou a Emenda à Constituição sob forte influência do movimento
puritano de temperança a proibição em todo o país da fabricação e venda de
bebidas alcoólicas, iniciando, assim, o período conhecido por “Proibition” ou
“Lei Seca”. Esse período se estendeu de 1920 até 1933, mas não foi a solução
para os problemas. Aliás, tornou-se a Lei Seca um problema social, pois deu
origem ao comércio clandestino de bebidas, algumas ao invés de usar álcool
etílico faziam uso do álcool metílico que é impróprio ao consumo humano.
Em 1933 a lei foi revogada, ficando cada Estado norte-americano à
autonomia de resolver o problema a sua maneira. 70
Na França, por exemplo, em 1872, foi fundada a Association Francçaise
contre l’abus des boissons alcooliques, que premiava com medalhas os
indivíduos que sobressaíam pela sobriedade, em 1890, ela deu origem Union
Française Antialcoolique, cujo programa moralizador estava alicerçado nas
pesquisas dos psiquiatras como Legrain e Valentin Magnan, os quais

70 MASUR, Jandira. Op. cit., p.77.

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DO ÁLCOOL E DO ALCOOLISMO NO SÉCULO XIX.

propagavam o argumento que os efeitos do alcoolismo – biológicos e


socioeconômicos - não se restringiam aos alcoólatras, estendia-se a toda
sociedade, em virtude da assistência que lhes eram dispensadas em hospitais
ou prisões, pela contaminação aos outros indivíduos pelo exemplo, pelos
seus filhos que “epiléticos, escrofulosos e idiotas” onerariam os cofres
públicos pela incapacidade de autossustentar. 71
No Brasil, o alcoolismo, desde meados do século XIX, já se destacava
como objeto de teses médicas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e
da Bahia, dentre as quais o tema em questão situava-se muitas vezes na
fronteira entre o estatuto terapêutico e nocividade das bebidas alcoólicas. A
intervenção sobre o uso das bebidas alcoólicas aqui ocorre no final desse
período tornando-se mais sistemática no início do XX, influenciada pelo
alienismo francês e numa conjuntura caracterizada pela progressiva
emancipação dos escravos e o crescente aumento das imigrações, pelo regime
republicano e pela tentativa de elevar o país à categoria de “civilizado”.
A raiz histórica desssa investida encontra-se relacionada às reformas
urbanas das principais cidades brasileiras e a positividade do trabalho. O
consumo de álcool constituía uma ameaça à estrutura social, dado que era
julgado como corruptor dos trabalhadores, pois o homem deixava de
cumprir com seus deveres de pai, de chefe familiar, de “civilidade’ e
patriotismo. O trabalho era reconhecido como elemento fundamental para o
progresso do Brasil, sendo o trabalhador o elemento básico de toda essa
estrutura e o alcoolismo sua corrosão. Sob a ótica do trabalho, o alcoolista
era mão de obra inutilizada e prejuízo para toda a sociedade, diminuído em
sua força e no ritmo da produção deixava de cumprir com seu dever de
conduzir a economia brasileira a uma posição de destaque no cenário
mundial, além disso, representava gastos vultosos para o Estado em verbas
hospitalares, nas internações em hospícios e nas prisões. Juntamente com
seus filhos, considerados defeituosos e predispostos desde a infância a várias

71 HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin-de-siècle.Op. cit., p. 289.

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doenças: a loucura, a epilepsia, a tuberculose, a debilidade mental, a doenças


do sistema nervoso, a delinquência e ao crime etc., representavam um peso
morto à sociedade.
Ao situar o alcoolismo dentro de um quadro assustador de
degenerações de todas as ordens, esses discursos foram responsáveis não
somente por reforçar preconceitos já existentes, mas, sobretudo pela
construção de um estigma muito forte, gerador da situação de exclusão social
e de autoexclusão dos alcoolistas, compreendidos como doentes, criminosos
em potencial que deveriam ser policiados, adestrados ou isolados do
convívio social conforme as alegações de um saber que buscou
obstinadamente vincular o consumo de álcool apenas como uma questão
biológica, moralizante, não reconhecendo os fatores socioculturais que
envolvem essa prática.

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