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Projeto ético-político

e exercício profissional
em Serviço Social

Os princípios do Código de
Ética articulados à atuação
crítica de assistentes sociais

Conselho Regional
de Serviço Social / RJ
P964p Projeto ético político e exercício profissional em serviço social : os princípios do código de ética
articulados à atuação crítica de assistentes sociais / Conselho Regional de Serviço Social (Org.).
– Rio de Janeiro: CRESS, 2013.
134 p.

Bibliografia
ISBN: 978-85-60593-04-0
1. Serviço social – Ética profissional. 2. Assistentes sociais – Ética profissional. 3. Código
de ética profissional - Serviço social. I. Conselho Regional de Serviço Social.


CDD: 361.3

Ilustração de capa: Clarice Goulart

Projeto gráfico: Carlos D

Tiragem: 4.000 exemplares

Impressão: Ediouro Gráfica e Editora


Projeto ético-político
e exercício profissional
em Serviço Social
Os princípios do Código de Ética
articulados à atuação crítica de
assistentes sociais

Organização:
Sumário
Apresentação Direção do Conselho Regional de Serviço Social / RJ 5

Prefácio Ética, política e emancipação: a atualidade de nossas escolhas 10


Elaine Rossetti Behring 7
Princípio 1 Liberdade: o valor ético central do código (três notas didáticas) 20
José Paulo Netto
Princípio 2 A defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do 29
autoritarismo
Jefferson Lee de Souza Ruiz
Princípio 3 Garantia de direitos, ampliação e consolidação da cidadania no Brasil: desafios do 42
Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais
Silene de Moraes Freire
Princípio 4 A defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação 55
política e da riqueza socialmente produzida
Joaquina Barata Teixeira
Princípio 5 A equidade e justiça social podem ser alcançadas no capitalismo? 64
Ivanete Boschetti
Princípio 6 Superando o politicamente correto: notas sobre o sexto princípio fundamental do 74
Código de Ética do/a Assistente Social
Guilherme Almeida
Princípio 7 Considerações sobre o sétimo princípio fundamental do Código de Ética dos 87
Assistentes Sociais: o pluralismo em debate
Valeria Forti
Princípio 8 Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova 100
ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero
Ney Luiz Teixeira de Almeida
Princípio 9 Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos 112
princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores
Conselho Federal de Serviço Social
Princípio 10 Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o 123
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional: significado,
limites e possibilidades
Yolanda Guerra
Princípio 11 Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de 136
inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade
e condição física
Magali da Silva Almeida

4
Apresentação
Direção do Conselho Regional de Serviço Social – RJ
Gestão 2011/2014 – “Trabalho e Direitos: a luta não para”

Há uma afirmação muito comum entre assistentes sociais de todo o Brasil.


Independentemente de local de atuação ou política social com que atue, das
competências e/ou atribuições a que recorra no seu exercício quotidiano, quase
toda a categoria afirma pautar suas ações pelo projeto ético-político do Serviço
Social.
Esta afirmação pode ser sinal de distintos processos. Um deles, que devemos
comemorar, é a profunda atualidade que o Código de Ética de assistentes sociais
tem no Brasil para contribuir com a interpretação crítica da vida social e para
orientar as atividades profissionais regidas por ele.
Não é algo desprezível. De 1993 (quando o Código foi aprovado e publicado)
a 2013 (quando esta coletânea é lançada) o Brasil e o mundo passaram por
diversas transformações. Todas elas podem, em alguma medida, interferir
no horizonte profissional de assistentes sociais. A apropriação do Estado
pela lógica do capital – que não é nova, mas persiste acentuada – traz para a
profissão desafios como lidar com contratações precarizadas, frágeis condições
de trabalho, baixos salários, desregulamentação profissional, metas meramente
quantitativas e definidas sem a participação da população.
O avanço de interesses capitalistas em relação ao que antes era visto e
disputado como direitos faz com que políticas como saúde e educação, dentre
diversas outras, se tornem nichos de alta lucratividade para a iniciativa privada.
Ao transformar direitos em mercadoria, altera-se a relação de profissionais destes
campos com seu fazer quotidiano. O discurso de que categorias teóricas (como
totalidade, contradição, classes sociais) e formas de organização como partidos
políticos, movimento social e movimento sindical estão superadas pela história
continua disputando legitimidade social. Para isso, são utilizadas instituições e
veículos como escola, universidade, jornais, canais de TV e rádio etc.
Neste quadro, um Código de Ética profissional que afirma uma perspectiva
anticapitalista pode soar estranho. O Código de 1993 aponta a necessidade da

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defesa da liberdade como valor ético central. Afirma que o exercício profissional
não pode ser efetuado discriminando ou sendo discriminado por razões de
classe social, gênero, raça, etnia, orientação sexual, geração, condição física
etc. Fala em indivíduo social – o que expressa uma determinada concepção
de ser humano, distante da perspectiva individualista burguesa. Expressa seu
compromisso com a socialização da participação política, mas, também, da
riqueza que, produzida cada vez mais social e coletivamente, é apropriada por
poucos. Afirma o compromisso profissional com a capacitação continuada e
com a qualidade dos serviços prestados à população.
Todas estas perspectivas não são defendidas a partir de um discurso único:
ressalta-se a necessidade de que o pluralismo seja um horizonte a ser garantido
nos debates profissionais sobre o papel social do Serviço Social, sobre a vida
social e sobre os mais distintos fenômenos que lhe são correlatos. O Código
ressalta, novamente na contramão do que pretende quem defende o status quo
atual, que saídas para desigualdades sociais e culturais devem ser buscadas
coletivamente (embora não negue a dimensão ética e o impacto social das
escolhas que fazemos individualmente).
Há, contudo, outro aspecto junto a profissionais que atuam em Serviço
Social no Brasil que afirmam defender o projeto ético-político profissional. Pode
haver, aqui, uma apropriação formal, descolada da realidade concreta e dos
desafios postos ao exercício profissional. É muito comum encontrar, nos debates,
em visitas de orientação profissional, em eventos da categoria e diálogos sobre
a profissão conceitos muito distintos – todos eles defendidos utilizando por
referência o denominado projeto ético-político do Serviço Social.
Não é por outro motivo que mesmo colegas que recebem denúncias éticas
contra si argumentam que atuavam em defesa do projeto ético-político. O projeto,
então, serviria como uma espécie de “guarda-chuva”, sob o qual encontrariam
guarida diferentes, e até mesmo divergentes, perspectivas profissionais. Ainda
que tendo passado por este debate durante a graduação (também ela vítima de
profundas reconfigurações na conjuntura contemporânea), profissionais teriam
dificuldade de identificar e refletir sobre como os princípios fundamentais do
Código de Ética de assistentes sociais se relacionam com o dia a dia de sua
atuação.
Alguns impactos desta perspectiva também são percebidos na relação do
CRESS-RJ (e, muito provavelmente, dos demais regionais e de nosso Conselho

6
Federal) com a categoria. Há situações em que o Código de Ética é visto apenas
em sua dimensão “legal”: seria um horizonte para que cada profissional soubesse
que atitudes são esperadas de sua atuação, bem como (especialmente) aquelas
que deveria evitar, de modo a não motivar denúncias éticas contra si. Esvazia-se
o conteúdo conceitual, político e teleológico do Código, em nome de seu caráter
“normativo”.
Esta apreensão costuma dificultar a associação dos onze princípios
fundamentais ao Código de Ética em sua totalidade. Se é fato que um Código
de Ética tem uma dimensão normativa, assumida coletiva e democraticamente
(ao menos no que se refere ao Serviço Social brasileiro) no processo de amplos
debates que lhe deram origem, é necessário apontar que esta é apenas e tão
somente uma das dimensões do Código. Fundamental, é verdade. Porque
estabelece parâmetros mínimos para o exercício profissional e a defesa da
população em relação à eventual desqualificação dos serviços que recebe.
Outra afirmação costumeira que dialoga com esta possível apreensão
do Código é aquela que diz que “na prática, a teoria é outra”. Ela dicotomiza
processos que estão absolutamente inter-relacionados. Gera a ilusão de que
existem práticas sem componentes conceituais e teóricos que lhes sustentem.
E, no outro extremo, de que existem teorias sem impactos reais na vida das
populações.
O CRESS-RJ já se deparava com estas questões (em debates quotidianos,
nas comissões temáticas, em eventos abertos à categoria e visitas de orientação
e fiscalização), quando, certo dia, uma assistente social que participa de algumas
comissões do Conselho nos apresentou a seguinte indagação: “não seria
o caso de provocar a categoria, em uma publicação sucinta e acessível, para
reflexões sobre o sentido de cada um dos princípios do nosso Código de Ética
e das relações entre eles?”. Na correta leitura da profissional, se a dimensão
pedagógica da atuação de nossos conselhos regionais e federal é central para
a Política Nacional de Fiscalização (Resolução CFESS nº 512/2007), o CRESS-
RJ poderia assumir a tarefa de estimular uma reflexão mais profunda entre
profissionais e estudantes sobre os onze princípios do Código.
A sugestão foi apreciada coletivamente no âmbito de nossas comissões
de formação profissional, de comunicação e cultura e da direção do Conselho,
e o CRESS-RJ decidiu propor a produção desta coletânea. Desde o início já
se imaginou que ela devesse ser (como é) introduzida por uma reflexão que

7
recuperasse aspectos importantes do projeto ético-político do Serviço Social
brasileiro. A seguir, viriam onze artigos resgatando aspectos teóricos e
conceituais de cada um dos onze princípios, sempre tentando estabelecer diálogo
com desafios e potencialidades postos ao exercício profissional quotidiano de
assistentes sociais.
Assumida a adequação de tal iniciativa, coube ao Conselho Pleno do CRESS-
RJ (que conta com participação de 18 conselheiros que compõem a direção, além
das que compõem as Seccionais de Campos de Goytacazes e de Volta Redonda
e de profissionais de base que participam de comissões e núcleos de nosso
Regional) a tarefa de listar doze assistentes sociais que pudessem dar conta
desta empreitada. Chegamos, então, a doze profissionais que se dispuseram
a nos oferecer as reflexões das páginas que se seguem, demonstrando seu
compromisso com a defesa de nossa profissão, sem receber um centavo por sua
produção teórica (já que o CRESS-RJ vende suas publicações a preço de custo,
sem reunir, portanto, condições de pagamento de direitos autorais).
Todos os artigos têm cerca de dez laudas. Mesmo afirmando não pretender
apontar respostas definitivas aos dramas e dilemas do quotidiano profissional,
autores e autoras instigam debates de grande relevância. Incentivam reflexões
críticas, provocam-nos a ir além do que geralmente apreendemos de uma leitura
apressada sobre os princípios do Código. Uma leitura atenta permitirá perceber
que, na própria coletânea, exercita-se a defesa do pluralismo previsto em um
dos princípios: ou seja, os conteúdos não são, necessariamente, consensuais.
Há diálogos possíveis entre distintas afirmações, reflexões, autores e autoras
utilizadas como referências para as ideias apresentadas.
Em suma, parece-nos que a coletânea denominada Projeto ético-político
e exercício profissional em Serviço Social: os princípios do Código de Ética
articulados à atuação crítica de assistentes sociais tem muito potencial para
se tornar (a exemplo de nossa coletânea de leis e resoluções, das edições da
revista EM FOCO, do folder sobre estágio, da cartilha sobre direitos humanos
e exercício profissional etc.) mais uma contribuição de nosso Regional para o
debate qualificado em torno do que é e do que deve ser o Serviço Social brasileiro.
A capacitação continuada, se não é capaz de resolver todos os desafios
postos a assistentes sociais na contemporaneidade (cujas raízes estão nos
processos que determinam a forma de organização econômica, política, social
e cultural da sociedade), pode ser um instrumento fundamental para refletirmos

8
sobre o que, efetivamente, estamos fazendo em nossa atuação e em que
medida realmente contribuímos para a defesa do projeto profissional construído
coletivamente há, no mínimo, 30 anos no Brasil.
Com Bertolt Brecht, convidamos você a fazer esta caminhada conosco.

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

Elogio do Aprendizado
Bertolt Brecht

Aprenda o mais simples


Para aqueles cuja hora chegou
Nunca é tarde demais
Aprenda o ABC; não basta, mas aprenda
Não desanime. Comece. É preciso saber tudo
Você tem que assumir o comando

Aprenda, homem no asilo


Aprenda, homem na prisão
Aprenda, mulher na cozinha
Aprenda, ancião
Você tem que assumir o comando

Frequente a escola, você que não tem casa


Adquira conhecimento, você que sente frio
Você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.
Você tem que assumir o comando.

Não se envergonhe de perguntar, camarada


Não se deixe convencer
Veja com seus próprios olhos
O que não sabe por conta própria, não sabe.
Verifique a conta. É você que vai pagar.
Ponha o dedo sobre cada item
Pergunte: o que é isso?
Você tem que assumir o comando.

9
PREFÁCIO

Ética, política e emancipação:


a atualidade das nossas escolhas
Elaine Rossetti Behring (FSS/UERJ – CNPq)

Ao completar cinquenta anos de existência, o CRESS-RJ faz a acertada


escolha de publicar este livro sobre o que vimos caracterizando, desde a
década de 90, como projeto ético-político profissional, na esteira da difusão
e desdobramentos da aprovação do Código de Ética do Assistente Social de
1993 (NETTO, 1999). Sentindo-me parte desta construção histórica como
dirigente do CRESS-RJ (1993-1996) e do CFESS (1996-1999 e 1999-2002), e
da ABEPSS (2009-2010), atendo com prazer ao convite do CRESS-RJ, ao qual
registro aqui meu agradecimento, esperando corresponder à expectativa com
uma contribuição ao balanço coletivo e permanente desta singular experiência
brasileira de construção do projeto profissional.
A iniciativa desta publicação revela a compreensão de que, para além
de fortalecer as atribuições precípuas do CRESS-RJ, trata-se de atualizar
permanentemente os debates, fomentar as inquietações e enfrentar dúvidas e
desafios que surgem a partir do solo histórico no qual o projeto profissional se
inscreve e que o desafia a todo o momento, dada a capilaridade histórica que
o orienta por princípio. Nosso Código de Ética alcança vinte anos de vigência
em 2013 e sua atualidade é evidente. Esta se deve aos caminhos escolhidos
em 1993, que apontaram para um Código onde se unisse tática e estratégia,
meios e fins. Pensou-se um documento menos conjuntural – marca do Código
de 1986 – e que mantivesse os compromissos sociopolíticos daquele último com
os trabalhadores, porém estabelecendo mediações mais claras com a realidade
brasileira e seu devir, e o exercício profissional, dando aos assistentes sociais

10
suportes nítidos no cotidiano. Contudo, ao mesmo tempo em que o Código de
1993 orienta hoje projetos de trabalho e posicionamentos político-profissionais
no dia-a-dia e também em circunstâncias mais amplas1, bem como é referência
para a construção de documentos similares na América Latina, o mesmo
também sofre críticas. Nossa contribuição será a de cotejar circunstâncias e
elementos que geram tensões sobre o projeto ético-político, e que resvalam
no Código de 1993, um de seus pilares centrais. Por outro lado, o projeto e
seus documentos-chave2, dentre os quais o Código de Ética de 1993, vêm
mostrando frente às circunstâncias que cercam sua trajetória no Brasil desde
1995, uma forte capacidade de construção de hegemonia – compreendida em
sentido gramsciano como direção intelectual e moral – e fomento da resistência,
relacionadas a dimensões da organização política, com destaque para a força do
Conjunto CFESS-CRESS, da ABEPSS e da ENESSO, mas também à consistência
e articulação internas especificamente do Código de Ética de 1993, que soube
operar com algumas categorias centrais ao método da economia política, a
mediação e a contradição, no mesmo passo em que mantém a referência no
trabalho, do ponto de vista objetivo e subjetivo, nos direitos, como momento da
emancipação política, e na superação da sociedade capitalista, na perspectiva
da emancipação humana. Retomarei essa ideia mais adiante, mas, antes disso,
cabe situar o contexto no qual se inscreve essa orientação estratégica e que, de
maneira geral, se contrapõe a ela em cada espaço de trabalho e em cada disputa
social, seja nas ruas, seja nos espaços institucionais.

De um ambiente hostil às recentes manifestações

O projeto profissional do Serviço Social brasileiro tem antecedentes nos


anos 1960 e 1970, com a reconceituação latino-americana, o Método BH, a
experiência do INOCOOP e outros processos. Mas é possível afirmar que o
grande momento de inflexão no Brasil foi o Congresso da Virada, realizado
em São Paulo, em 19793. Na luta contra a ditadura e, posteriormente, na luta
aguerrida por reformas na sociedade brasileira no ambiente da redemocratização,
que incluíram a incidência sobre a Constituição de 1988, e em sintonia com

1. Um exemplo desses posicionamentos mais amplos são as publicações CFESS Manifesta, que opinam
sobre acontecimentos em curso, datas comemorativas e expressões da questão social no Brasil e alhures,
sempre apontando para a emancipação humana e combatendo os desvalores e a barbárie.
2. Refiro-me às Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996 e à Lei 8662/93, que regulamenta a profissão.
3. Duas publicações recentes do CFESS são imprescindíveis para os que quiserem maiores informações e
análises sobre esse momento da história profissional e brasileira: CFESS, 2009 e CFESS, 2013.

11
as mobilizações dos trabalhadores e movimentos sociais naquele período, o
Serviço Social redirecionou seus documentos fundadores numa perspectiva de
ruptura com o conservadorismo, o autoritarismo e o psicologismo que marcaram
sua trajetória, e que estão presentes nos Códigos de Ética de 1946, 1965 e
1975 (BONETTI et alii, 2012). Tratou-se de estabelecer novas articulações na
sociedade brasileira, decorrentes por sua vez um novo ethos, o de trabalhador
assalariado (IAMAMOTO e CARVALHO, 1982), e que se situa numa perspectiva
de solidariedade e organização de classe, da classe trabalhadora. Todo esse
processo, em profunda sintonia com os acontecimentos na sociedade brasileira,
desemboca na revisão dos documentos fundacionais da profissão no Brasil,
sendo que o Código de Ética será revisto duas vezes – em 1986 e 1993 –, tendo
em vista sua adequação às demandas ético-políticas e profissionais.
Porém, já desde 1990, com a eleição de Collor e derrota de Lula em 1989
– que posteriormente revelou-se não ser apenas uma derrota eleitoral, mas
política – o ambiente em que se situa o projeto ético-político profissional e os
recém-aprovados princípios ético-políticos já não era o mesmo. Ao invés do
reformismo, especialmente por meio dos direitos sociais recém-adquiridos
constitucionalmente, tivemos o contrarreformismo feroz, obstaculizando
direitos e políticas sociais, impulsionando privatizações, destruindo empregos
e acirrando as desigualdades e a heteronomia crônicas no país, sob novas
formas. O neoliberalismo antinacional, antidemocrático e antipúblico reiterava
nossas marcas históricas, frustrando as expectativas de mudança na sociedade
brasileira pautadas nos anos 80, seja pela batuta do outsider Collor, seja pelo
confiável condutor do projeto da burguesia brasileira, Fernando Henrique
Cardoso4. Assim, os anos 90 colocaram o projeto profissional efetivamente no
campo da resistência, sendo representativo desta decisão política o Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais de 1995, realizado em Salvador, com a presença
de representação dos petroleiros que naquele momento realizavam uma greve
sob forte repressão e retaliação do governo FHC, que fazia lembrar a relação
de Margareth Thatcher com os mineiros ingleses do início dos anos 80. Este
Congresso elaborou a agenda da ação contra o neoliberalismo, uma agenda
teórica e ético-política que orientou as decisões da categoria dos assistentes
sociais ao longo daqueles anos regressivos.
Os anos subsequentes foram, portanto, duros para os trabalhadores e suas
organizações, implicando em processos de desorganização, dessindicalização,

4. Fizemos a análise deste período em Behring, 2003.

12
precarização do trabalho e desemprego, e destruição de direitos, todos eles com
implicações para os trabalhadores em geral e para os/as assistentes sociais.
Foram impactos na categoria enquanto trabalhadores/as, envolvendo salários
e condições de trabalho, e especialmente sobre as demandas e espaços
ocupacionais dos assistentes sociais, operando redirecionamentos das políticas
sociais, bem como incrementando as parcerias público-privadas neste terreno do
enfrentamento das expressões da questão social, objeto do trabalho profissional.
No entanto, apesar do ambiente destrutivo, as principais organizações forjadas
na luta contra a ditadura resistiam também ao neoliberalismo, e conquistavam
espaços de poder subnacional, acumulando forças para disputas sociais, políticas
e eleitorais. Por outro lado, nessa condição extremamente defensiva, houve
também deslocamentos no campo dos trabalhadores, recuos programáticos e
de política de alianças que vão cobrar seu preço no início dos anos 2000. Nesse
ínterim, as organizações profissionais se mantiveram no campo da denúncia
dos impactos deletérios das políticas em curso e do combate ao neoliberalismo
e sua contrarreforma, que obstaculizava inclusive o conceito de seguridade
social inscrito na Constituição de 1988, como expressa o documento de 2000
do Conjunto CFESS-CRESS, a Carta de Maceió5. Esse seguro posicionamento
político frente ao neoliberalismo tinha fundamentos no acumulo teórico e ético-
político dos anos 80 e início dos anos 90, com destaque aqui para o crescimento
da área de Serviço Social na pós-graduação e na pesquisa, e alimentava a
possibilidade real da constituição de frente única no campo dos trabalhadores
naquele momento.
No entanto, as condições gerais e históricas a partir do início do século
XXI vão tornar ainda mais complexo o que estamos caracterizando como um
ambiente hostil para a plena expansão dos princípios que orientam o projeto
profissional, e que serão comentados um a um nos demais capítulos deste
livro. Refiro-me aqui ao advento da chegada do Partido dos Trabalhadores ao
governo federal e ao conjunto de desdobramentos daí decorrentes. Além de
não interromper o curso e até mesmo aprofundamento de políticas centrais
de característica neoliberal (veja-se a saúde e a educação, e especialmente
elementos da política econômica), apesar de algumas alterações de rota com
impactos na vida dos trabalhadores com renda de 0 a 1,5 salários mínimos, o
novo contexto divide os trabalhadores com medidas no varejo – com destaque
para o Programa Bolsa Família. Já no atacado, é notório o favorecimento

5. http://www.cfess.org.br/arquivos/encontronacional_cartas_maceio.pdf

13
prioritário ao agronegócio, alguns segmentos industriais de base, com foco
no extrativismo das riquezas naturais, os tubarões privados da educação
e da saúde, o capital estrangeiro e o mundo da finança. Esta orientação
transformista dificultou ainda mais políticas de frente única, sejam em torno das
reformas interrompidas logo após a aprovação da Constituição, a exemplo da
seguridade social, sejam em torno de uma pauta anticapitalista, considerando
que parte ainda minoritária, mas aguerrida, do campo dos trabalhadores vai
compreendendo a natureza destrutiva do choque de capitalismo embutido
no assim chamado neodesenvolvimentismo, ou como preferimos, social-
liberalismo, modelo liberal-periférico, ou neoliberalismo requentado. Não cabe
desenvolver neste espaço o extenso debate sobre a caracterização do projeto
em curso no país, e as razões de seus deslocamentos. Trata-se de assunto para
muitas páginas e discussões. O que queremos destacar é que o ambiente se
tornou ainda mais complexo para a direção intelectual e moral que o Serviço
Social brasileiro construiu, já que implicou em reduzidos espaços para efetivas
reformas ou, mais ainda, para uma pauta mais ousada na perspectiva do
socialismo, inclusive com o campo do trabalho mais fragmentado e heterogêneo,
tanto material quanto politicamente.
Ao final da primeira década deste século, houve longo e intenso debate
no Serviço Social sobre a crise do projeto ético-político, frente a circunstâncias
históricas e ameaças reais no campo do exercício e da formação profissional, a
exemplo do crescimento do ensino à distância (Cf. Revista Inscrita, nº10), e dos
parâmetros adotados nas políticas sociais, bem como frente às perdas políticas
e materiais no campo dos trabalhadores. Se os debates giraram, sobretudo,
em torno de como conter o impacto do rebaixamento da formação profissional
de graduação, por meio de seu aligeiramento e empobrecimento, em função
da descoberta deste nicho de valorização pelos tubarões da educação, a
ideia da existência da crise do projeto ou sua negação esteve no centro dos
debates6. Considero que este foi um debate tenso, mas importante no sentido de
identificar as várias tendências deletérias a incidir sobre o projeto ético-político
profissional e refinar as análises. Houve múltiplos desdobramentos deste debate
balizando estratégias das organizações políticas da categoria no sentido de
criar contratendências e operar com as contradições e mediações na realidade
brasileira. Cabe destacar que, mesmo na conjuntura adversa, uma direção política
autônoma e anticapitalista vem sendo sustentada pelos assistentes sociais
6. Refiro-me aqui aos debates sobre o exame de proficiência na área de Serviço Social no final da primeira
década, cujo desfecho foi a recusa por maioria desta estratégia no Encontro Nacional CFESS-CRESS de 2008.

14
brasileiros em processos eleitorais para a renovação da direção e eventos.
Isto porque a direção política das organizações profissionais tem sido capaz
de dar algumas respostas concretas, a exemplo da histórica e vitoriosa luta em
torno das 30 horas de jornada de trabalho sem rebaixamento de salários, em
2010, a construção da Política Nacional de Estágio da ABEPSS, a campanha
Educação não é Fast Food (2011), várias resoluções do Conjunto CFESS-CRESS
que incidem nas condições e orientações estratégicas do trabalho profissional, e
mais recentemente a campanha Sem Liberdade Não Há Movimento. Esta última
campanha do Conjunto CFESS-CRESS mostrou-se fortemente sintonizada com a
realidade, considerando a retomada das lutas sociais no Brasil, nas memoráveis
jornadas de junho e julho de 2013, com grandes manifestações de massas nas
ruas como não se via desde a redemocratização do país. Penso que estamos,
em 2013, frente a um novo momento de inflexão, com a recusa popular do
clássico pão e circo, e novas formas de luta urbana, com repercussões políticas
e econômicas que ainda estão reverberando. As ruas, onde estiveram e estão
muitos assistentes sociais hoje, mostram a atualidade das nossas escolhas,
especialmente do Código de Ética dos Assistentes Sociais. As ruas em 2013
falaram da frustração dos direitos não realizados, da emancipação política sempre
restrita e contida, mesmo em tempos de governo do projeto democrático-popular,
que supostamente teria compromissos com este nível da emancipação nesse
país heterônomo, e onde a realização de direitos tende a acirrar contradições e
desbordar limites. No entanto, a política de alianças para a manutenção deste
projeto de poder logo deixou claro, mais uma vez, que as classes dominantes
brasileiras são incapazes de incorporar esta dimensão nas suas pautas, mesmo
com a condução petista do Estado brasileiro. O cansaço para com o privilégio
do crescimento capitalista mais predatório, e uma vida urbana massacrante e
violenta para os trabalhadores, com pouco acesso a saúde, transporte, moradia
e educação como direitos veio à tona com força e violência inusitadas. Somou-se
a isso a desconfiança para com a política tradicional parlamentar e a indignação
com a corrupção endêmica, que beirava a recusa peremptória e por vezes
reacionária da política, mas prenhe de razões, se pensamos na expansão da
pequena política no Brasil pós redemocratização. E as respostas foram pífias
ou repressivas, donde decorre que ainda temos o fermento desse processo em
plena ação, com possíveis desdobramentos políticos, econômicos e sociais nos
próximos anos.

15
A dialética entre emancipação política e humana
Linhas acima, afirmei a atualidade do Código de Ética e do projeto profissional
do Serviço Social brasileiro e que sua longevidade se relaciona à direção política
segura de suas organizações representativas, e a coerência interna de seus
documentos-chave, dentre os quais o Código de Ética de 1993. Distante de
qualquer otimismo atávico e que não percebe as ameaças, que ademais são
evidentes em tempos de capitalismo em crise, maduro e destrutivo no Brasil e
alhures, trata-se de ressaltar sua capacidade de hegemonia e resistência neste
ambiente tão refratário.
Quanto à coerência interna do Código de Ética de1993, registro a manutenção
do compromisso com os trabalhadores, que se expressa em princípios que
apontam para a perspectiva da emancipação humana, a exemplo da plena
expansão dos indivíduos sociais e da socialização da economia, da política e da
cultura, numa perspectiva de superação da desigualdade de classes. O humano
genérico e as necessidades radicais também comparecem na recusa a todas as
formas de discriminação e preconceito, o que tem colocado os assistentes sociais
lado a lado com movimentos contra a homofobia, o racismo e a opressão de
sexo. A concepção do Código de Ética de 1993 – resultado de longos debates
que se estenderam entre 1990 e 1993 – estabelece uma importante dialética entre
a emancipação humana e política, forjando nexos entre a dinâmica da realidade
brasileira e o cotidiano profissional. Numa sociedade heterônoma, dependente e
extremamente desigual, de passado escravista, na periferia do mundo do capital,
apesar dos ares de potência emergente, e com classes dominantes que optaram
historicamente por revoluções pelo alto, transições transadas e revoluções sem
revolução, a luta por direitos e justiça social torna-se, paradoxalmente, fermento de
uma perspectiva anticapitalista, traduzindo-se profissionalmente no compromisso
com os usuários, com o acesso aos direitos, e com a elaboração de políticas de
caráter universal. Isto por que o capitalismo brasileiro tem maiores e mais profundas
dificuldades para expansão de direitos, especialmente nas condições econômicas
contemporâneas e nas condições políticas, nas quais a burguesia nacional
permanece como um mito, como bem enunciaram Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes e Octavio Ianni, em sua extensa obra, que se combina a outros mitos, a
exemplo da democracia racial. Pelo exposto, a compreensão profunda do projeto
profissional passa pela ideia central de que os princípios que o orientam encerram
essa dialética entre emancipação política e humana, que se nutre do entendimento
da dinâmica específica da luta de classes no Brasil, estabelecendo com o solo

16
histórico importantes nexos. Tal dialética, por sua vez, busca fundamentos teórico-
filosóficos nos textos marxianos, a exemplo de A Questão Judaica e Crítica ao
Programa de Gotha, nos quais Marx realiza a crítica dos limites da emancipação
política já naquele período, numa obra de juventude e posteriormente numa obra
madura, não para negar sua importância ou para decretar sua ociosidade, mas
para ressaltar a necessidade da luta para além de suas fronteiras.
Após a experiência fordista-keynesiana social-democrata, e em tempos de
capitalismo maduro e em crise, esse debate se repõe necessariamente. Seria
nosso Código de Ética inspirado na social-democracia, colocando os direitos,
a cidadania, a democracia e a justiça social como princípios? Seria ocioso
defender esses princípios, pautando, em contraposição a eles, uma perspectiva
anticapitalista? No entendimento aqui desenvolvido a resposta a essas duas
perguntas é não. Por duas razões: a agenda dos direitos no Brasil dos direitos
não efetivados ou realizados apenas parcialmente, especialmente com o advento
do neoliberalismo, tem sido pauta dos trabalhadores e volta a ser com as lutas
de 2013. A burguesia brasileira, fortemente associada ao capital estrangeiro e à
finança, não comporta qualquer reformismo, onde o maior exemplo é a reforma
agrária em tempos de agronegócio e especulação financeira. Daí decorre a
importância de uma agenda de luta pelos direitos no Brasil, o que estabelece
mediações com a vida cotidiana de milhões de trabalhadores, de um lado, e
mediações com a luta anticapitalista de outro. A luta pelos direitos escancara os
limites dos mesmos, além de um efeito de politização e formação de consciência
extremamente importantes. Evidentemente, esse curso depende da direção
política, e é possível afirmar que o Serviço Social tem mantido o prumo em águas
turbulentas, na contracorrente.
Por outro lado, no mundo do capitalismo maduro e em crise, o que se
vê é o forte ataque aos direitos pelo capital, que busca se apropriar do fundo
público de forma cada vez mais intensificada para suas necessidades de
reprodução ampliada, inclusive se apropriando do trabalho necessário pela via
fiscal (BEHRING, 2010), no mesmo passo em que não incorpora mais reformas
amplas. Fica cada vez mais claro que a experiência social-democrata foi datada
e geopoliticamente situada. Nesse sentido, a luta pelos direitos, pela cidadania
e pela democracia (política e econômica) ganha contornos anticapitalistas, já
que o mundo do capital cada vez menos comporta essas dimensões, dado
seus desenvolvimentos destrutivos dos homens e mulheres, e da natureza.
Esta dialética é que permite a crítica ao neoliberalismo e ao social-liberalismo,
seja das entidades, seja em parte significativa da produção teórico-bibliográfica

17
do Serviço Social brasileiro, mantendo a autonomia política das entidades da
categoria frente aos governos, especialmente na última década.

Vida longa...

Por todo o exposto até aqui, penso que as escolhas consistentes que
fizemos e que se desdobraram ao longo desses últimos 30 anos em uma miríade
de medidas político-profissionais que realizam a disputa social no Brasil e
dentro da própria categoria – já que não somos uma espécie de ilha combativa
e homogênea, em meio a um mar regressivo – vem animando a continuidade
dessa direção estratégica. Dentre essas medidas, vale destacar, dentre
outros, o Projeto Ética em Movimento, os cursos de capacitação continuada,
os eventos temáticos sobre o trabalho profissional, a Política de Comunicação
e as campanhas anuais em torno de eixos centrais ao projeto profissional, a
luta pelas 30 horas semanais sem diminuição de salário, todas iniciativas do
Conjunto CFESS-CRESS. A ABEPSS, por sua vez, vem sendo importante no
movimento de resistência em defesa da qualidade da formação profissional,
do ensino público, gratuito e laico, e de uma pesquisa densa e engajada, na
contraposição ao produtivismo acadêmico e aos tubarões do ensino. Dentro
disso, destaco a Política Nacional de Estágio, os GTPs e a ABEPSS Itinerante.
O movimento estudantil caminha junto, participando das mobilizações e a
partir da sua dinâmica própria. Nas jornadas de junho e julho de 2013, viram-se
profissionais e estudantes de Serviço Social envolvidos em todo o país, com
destaque para o movimento contra a privatização da saúde e da educação. Cabe
destacar que vimos buscando aliados na sociedade brasileira. Se durante algum
tempo parecia que estávamos isolados nas nossas entidades, no último período,
com certa retomada das lutas sociais e maior esclarecimento sobre o projeto
em curso e seus limites para implementar medidas de reforma, esse cerco
parece ter se rompido, possibilitando desdobramentos interessantes ao projeto
profissional, que se nutre do solo histórico, ao mesmo passo que de suas forças
internas e persistentes. Vida longa, então, a esta construção do Serviço Social
brasileiro.

Referências bibliográficas
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contra-Reforma: desestruturação do Estado e
perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.

18
______________________. Acumulação capitalista, fundo público e política social. In:
Política Social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008.
______________________. Crise do Capital, Fundo Público e Valor. In: Capitalismo em
crise, política social e direitos. São Paulo, Cortez, 2010.
_______________________. Rotação do Capital e Crise: fundamentos para compreender o
fundo público e a política social. In: SALVADOR, Evilásio, BOSCHETTI, Ivanete, BEHRING,
Elaine e GRANEMAN, Sara (orgs.). Financeirização, fundo público e política social.
São Paulo: Cortez, 2012.
BENSAID, Daniel. Marx, o Intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
BONETTI, Dilséia, VINAGRE, Marlise, SALES, Mione e GONELLI, Valéria M.M. Serviço
Social e Ética: convite a uma nova práxis. 13 ª Edição. São Paulo, Cortez Editora, 2012.
CFESS (Org). 30 Anos do Congresso da Virada. Brasília: CFESS, 2009.
___________. Seminário Nacional: 30 Anos do Congresso da Virada (Anais). Brasília:
CFESS, 2013
CFESS. Carta de Maceió. Brasília: CFESS, 2000. http://www.cfess.org.br/arquivos/
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______. Revista Inscrita Nº 10. Brasília: CFESS, 2009.
IAMAMOTO, Marilda e CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil.
São Paulo: Cortez, 1982.
MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
_________. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
NETTO, José Paulo. “A Construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social frente à
Crise Contemporânea” In: Crise Contemporânea, Questão Social e Serviço Social.
Programa de Capacitação Continuada para Assistentes Sociais. Módulo 1. Brasília,
CFESS/ABEPSS/ DSS e CEAD-UnB, 1999.

19
PRINCÍPIO 1

Liberdade: o valor ético central do código


(três notas didáticas)
José Paulo Netto1

“Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas


políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos
indivíduos sociais” (“Código de Ética Profissional”, in Assistente social: ética e
direitos. Coletânea de leis e resoluções. Rio de Janeiro: CRESS/7ª Região/RJ,
2000, p. 15).

O Código de Ética Profissional que rege o exercício do Serviço Social no


Brasil, aprovado em 1993 e em vigor desde então, resultou – como é notoriamente
sabido – de um debate amplo, plural e denso, promovido em escala nacional
pelo sistema CFESS/CRESS (antes da Lei 8.662, CFAS/CRAS).
A meu juízo, esta é a razão principal da sua inconteste legitimidade
(para além da sua legalidade, assegurada pela sua plena consonância com a
Constituição de 1988): ele condensou, nos seus fundamentos, na sua estrutura
e na sua forma, talvez o mais largo e significativo consenso democrático a que
chegou a categoria profissional em toda a sua história no Brasil.
É claro que este consenso – como, aliás, qualquer consenso democrático,
pela sua própria natureza – não exclui a existência (e mesmo o aprofundamento,
em face do desenvolvimento profissional e de novas conjunturas) de diferenças e
divergências no interior da categoria profissional. O fenômeno é compreensível:
a categoria não é um conjunto homogêneo, mas um universo em que se refratam
(com maior ou menor fidelidade) os conflitos e as tensões da sociedade que o
inclui. Por isto, o Código está longe de ser um documento intocável: pode ser
objeto de revisão quando se põem de manifesto elementos e/ou prescrições nele

1. Professor Emérito da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

20
contidos que se revelem anacronizados ou temas de discrepâncias substantivas
(como, aliás, prova-o a história dos nossos Códigos, desde os fins da década
de 1940).
Há, todavia, no Código uma parte que, condensando os seus princípios
fundamentais, dispõe de uma vigência de “longa duração” – eu ousaria até
mesmo considerá-la como enunciadora do que em cartas constitucionais
elaboradas democraticamente (como a nossa Constituição de 1988) se
designam como “cláusulas pétreas”. Somente em momentos de profundas e
radicais transformações econômicas, históricas e sócio-políticas tais princípios
fundamentais podem ser postos em questão. Ora, nada indica que, no Brasil
contemporâneo, transformações deste gênero tenham ocorrido ou estejam em
vias de ocorrer.
Por isso, considero que, salvo grave erro de avaliação, os “princípios
fundamentais” do Código vigente desde 1993 não devem ser objeto de qualquer
revisão.
É sobre o primeiro dos “princípios fundamentais” do nosso Código que
incidem as didáticas reflexões apresentadas neste brevíssimo texto, precedidas
de uma rápida indicação acerca da articulação interna (organicidade) do Código
de 1993. Desnecessário é acrescentar que estas três notas são, elas mesmas,
uma interpretação (de responsabilidade inteiramente pessoal do signatário) de
um dos princípios do Código e, por isto, não passam de pequena contribuição
para pensá-lo com algum cuidado.

1.

Uma característica básica do Código é o esforço realizado, e que me parece


exitoso, para articular os seus “princípios fundamentais” com a operacionalização
do exercício profissional.
O Código é um documento enxuto: pouco ultrapassa a extensão de três
dezenas de artigos. Na sequência imediata do enunciado dos seus “princípios
fundamentais” e das suas “disposições gerais”, arrolam-se os direitos e
responsabilidades do assistente social e segue-se a normatização das relações
com os usuários, com as instituições empregadoras e outras, com as entidades
e organizações da sociedade civil, a ênfase no sigilo profissional e a relação
com a Justiça e, enfim, a observância e o cumprimento do Código, bem como a
questão das penalidades e sua aplicação. No entanto, as prescrições contidas
em todos os seus títulos dispõem de sólida articulação interna: a linha condutora

21
do Código vincula a dimensão ética do exercício profissional na intercorrência
da defesa dos direitos/deveres do assistente social com o compromisso de
prestações de qualidade aos usuários e do relacionamento com as organizações
da sociedade civil e os movimentos sociais.
O Código, nesta medida e à diferença de outros diplomas similares, não
possui duas faces, uma “interna”, centrada em determinações corporativas, e
outra “externa”, voltada para a interação com o público, as outras profissões, a
sociedade etc. Em todos os seus títulos, o Código mantém a integração das suas
prescrições com os seus “princípios fundamentais”. Apenas um exemplo, a meu
ver emblemático: um desses princípios consiste na “defesa do aprofundamento
da democracia” – e o princípio atravessa o título II (direitos e responsabilidades
do assistente social), o III (relações profissionais) e o IV (exatamente o que
parametra a observância, as penalidades e a aplicação do Código). Mas este
mesmo princípio da “defesa do aprofundamento da democracia” está plenamente
articulado não só às prescrições mais específicas: está integrado medularmente a
outros “princípios fundamentais”: a “defesa intransigente dos direitos humanos”,
o “posicionamento em favor da equidade social e justiça social”, a “garantia do
pluralismo” etc.
Dada esta articulação interna do Código, que é expressão da sua coerência
imanente, entendo que a sua interpretação – e é particularmente neste plano que
podem surgir polêmicas – implica que a sua leitura considere a totalidade da sua
formulação; não me parecem legítimas interpretações que isolem ou abstraiam
passagens/artigos do seu texto.
Esta última observação cabe igualmente ao “princípio fundamental” (aliás, o
primeiro) do Código – também ele só se apreende em sua inteireza se tomado no
quadro dos outros “princípios fundamentais” e da totalidade de todas as normas
nele explicitados.

2.

2.1.
A consideração da liberdade é, em primeiro lugar, a consideração de uma
categoria histórica. As diferentes formações sociais que se constituíram ao longo
da história, com suas culturas próprias, elaboraram diferentes concepções de
liberdade, consoante as condições em que se estabeleciam as relações entre os
membros da sociedade e as formas pelas quais esta atuava em face da natureza
(em qualquer estágio da história, é do intercâmbio com a natureza – sempre

22
realizado, no caso da sociedade, mediante o trabalho – que esta obtém os meios
materiais para se reproduzir).
Assim, a concepção de liberdade varia, se transforma, no decorrer da
história: certamente Sócrates ficaria assombrado com o sentido que J. Locke
atribuiu a ela. Se o filósofo grego (séc. V a.C.), vivendo na pólis em que o trabalho
escravo era um dado factual inquestionado (algo “natural”), pensava a liberdade
como problema ético ligado ao domínio de si mesmo, o inglês Locke (1632-
1704), inserido no processo da revolução burguesa, vinculava a liberdade ao
direito de propriedade.
A variabilidade do sentido que se confere à liberdade não se registra apenas
no curso da história – ela é constatável no quadro de uma mesma sociedade:
quando esta se mostra dividida e marcada por antagonismos de classes, a sua
cultura (e a categoria de liberdade só existe como parte integrante de um sistema
cultural, que comporta tensões e subsistemas diferenciados) necessariamente
os expressa; nem mesmo o controle que alguma classe sempre detém sobre os
meios de divulgação de ideias (escolas, igrejas, veículos de comunicação social)
pode ocultar por completo as contradições reais existentes. Para dar um exemplo
bastante simples, veja-se como é utilizada no Brasil atual a ideia de liberdade
pelos grandes proprietários de terras (representados pela Confederação
Nacional da Agricultura e da Pecuária/CNA) e pelos milhões de trabalhadores
rurais expropriados (representados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais
sem Terra/MST).

2.2.
O caráter histórico próprio à categoria de liberdade impede que se tenha
dela uma concepção única, legítima e verdadeira para todos os tempos e todas
as sociedades.
Enfrentando a concepção ahistórica de liberdade e considerando a sua
variabilidade – não apenas ao longo do tempo, mas também em sociedades que
coexistem lado a lado e, às vezes, numa mesma sociedade –, muitos filósofos
e cientistas sociais argumentam que as várias concepções de liberdade são
igualmente relativas e funcionais: expressando as peculiaridades das culturas
em que se inserem, elas são válidas somente no interior do seu sistema cultural
(ou de seus eventuais subsistemas) e, por isso, são também incomparáveis.
Nesta posição, tão difundida nos dias correntes entre pessoas letradas que
quase se tornou senso comum nos seus meios, há um elemento precioso: a
correta recusa de uma concepção ahistórica da liberdade. Boa parte dos filósofos

23
e cientistas sociais que a sustentam – e que, em geral, fazem-no no marco de um
evidente relativismo histórico – são também críticos do legado da Ilustração e da
sua programática sócio-cultural, a Modernidade, que identificam com a cultura do
capitalismo.

2.3.
A concepção de liberdade que comparece no primeiro princípio do Código
(e, como se viu na nota 1, a sua interpretação adequada implica a sua relação
com os outros princípios e com o conjunto do próprio Código) tem filiação
moderna e nada concede a qualquer tonalidade de caráter ahistórico – mas,
igualmente, nada tem a ver com o relativismo histórico referido e, por isso, não é
caudatária de correntes do pensamento pós-moderno.
Ao ser posta no Código como “valor ético central”, a liberdade funda
todos os outros “princípios fundamentais” (por isto, não é acidental que seja o
primeiro): é imediatamente fundante de sete dos outros (“defesa intransigente
dos direitos humanos”, “ampliação e consolidação da cidadania”, “defesa do
aprofundamento da democracia”, “empenho na eliminação de todas as formas
de preconceito”, “garantia do pluralismo”, “opção por um projeto profissional
vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária”, “exercício
do Serviço Social sem ser discriminado”) e mediatamente dos três restantes
(“posicionamento em favor da equidade e justiça social”, “articulação com os
movimentos de outras categorias” e “compromisso com a qualidade dos serviços
prestados à população”).
A contemporaneidade da concepção de liberdade do Código – uma
das expressões da sua historicidade – é flagrante, incontestável, nas suas
referências explícitas a temáticas/problemáticas que estão na agenda social
(não só da sociedade brasileira, mas da “sociedade global”): democracia como
socialização da participação política; direitos humanos; direitos civis, políticos e
sociais; equidade, diversidade e diferença; gênero e etnia.
Para a concepção de liberdade configurada no Código, a história não é um
cenário, um contexto: é a substância mesma de que se constitui a liberdade
enquanto escolhas/opções que se fazem no confronto entre alternativas reais
(ou, se se quiser, enquanto respostas que se propõem em face de problemas
objetivos). No Código, as escolhas profissionais são nítidas, inequívocas: numa
quadra histórica em que os Estados (inclusive o brasileiro) avançam políticas
sociais mercantilizadas e focalizadas, ele preconiza a universalidade do acesso
a bens e serviços; diante de uma vida social em que o atentado aos direitos

24
humanos é naturalizado, cotidiano, real e palpável (na guerra e na paz formal),
ele aponta sem concessões para a defesa daqueles direitos e para o combate ao
arbítrio; em face de uma sociedade em que operam mecanismos de exploração e
dominação, ele afirma a possibilidade de uma outra e nova ordem societária – e,
nesta afirmação, indica a sua referência geral: a sintonia da valoração ética que
assume “com a luta geral dos trabalhadores”.
Opções como essas infirmam, negam uma visão relativista da liberdade:
assumindo o caráter histórico dos valores que abriga, o Código não os equaliza a
outros – situa-os como melhores e os prioriza, põe-nos como fundamentais e faz
deles suportes de projetos societários (“sem dominação-exploração de classe,
etnia e gênero”). Por outra parte, o Código infirma também a possibilidade de
tomar a vida social contemporânea como fragmentária e segmentar, realidade
fundamentalmente simbólica, resultante dos sentidos que lhe conferem sujeitos
singulares. Nestes dois componentes reside a fronteira entre o espírito do Código
e tendências do pensamento pós-moderno.

2.4.
Se considero, como explicitei acima, que o Código inscreve-se numa
linhagem moderna, devo observar que nele há uma recepção crítica da Ilustração.
Penso que no Código subjazem linhas-de-força instauradas pelo pensamento
ilustrado, como, por exemplo, o universalismo e o racionalismo – mas seria
possível argumentar que ambos, se nele se mantêm subjacentes, mantêm-se
metamorfoseados, assim como a noção de direitos que ele compartilha é tão
historicizada que ultrapassa inteiramente o jusnaturalismo do século XVIII.
Todavia, o núcleo duro dessa recepção crítica parece-me residir noutro
lugar: o Código assume o princípio da individuação (conquista absolutamente
fundamental da Ilustração), mas expurga da herança ilustrada o individualismo
(conexo ao liberalismo clássico e exacerbado nas suas derivações). Com
este expurgo, a concepção de liberdade que o Código incorpora remete
expressamente a indivíduos sociais e, com isto, alteram-se estruturalmente as
condições concretas do exercício da liberdade: os outros não são limites para
a liberdade de cada um, mas a própria possibilidade dela (correlatamente, o
direito de um não se constrange pelo espaço ocupado pelo direito de outrem – o
direito deixa de ser definido negativamente). Por isto, a liberdade que é, para o
Código, “valor ético central”, exige o “respeito à diversidade” e a “discussão das
diferenças”; é liberdade que, para realizar-se, requer a “garantia do pluralismo”.
Também aqui, contudo, o Código evita o grave equívoco de confundir

25
democracia com liberalismo; a superação das concepções liberais é nítida: o
pluralismo consagrado pelo Código tem fronteiras, uma vez que propõe o “respeito
às correntes profissionais democráticas” (itálicos meus) – exclui-se, portanto,
qualquer “respeito” a correntes afetas a posições fascistas, racistas ou de qualquer
ordem que atentem contra os direitos humanos e aqueles tradicionalmente
constitutivos da cidadania moderna (direitos civis, políticos e sociais).

2.5.
É importante salientar que a dimensão prospectiva do Código, assentada
no valor central da liberdade e que instaura um horizonte programático, está livre
de qualquer concepção messiânica ou salvacionista da profissão (concepção
que muitos estudiosos identificaram no Serviço Social ao tempo da dominância
doutrinária católica e prolongada, noutros termos e noutras condições, no
movimento de Reconceituação).
Não há, no Código, nenhuma função providencial atribuída à profissão –
duas notações são aqui suficientes para mostrá-lo: 1ª. ao assinalar a “ampliação
e consolidação da cidadania”, ele a situa como “tarefa primordial de toda a
sociedade” (itálicos meus); 2ª. na sequência imediata da opção por um projeto
profissional vinculado à construção de uma nova ordem social, o Código confere
tal relevância à “articulação com os movimentos de outras categorias” que a
insere no próprio elenco dos “princípios fundamentais”.

3.

Posta como o primeiro dos “princípios fundamentais” na condição de “valor


ético central”2, a liberdade não é “definida” no Código.
A ausência de tal “definição” não indica, a meu entender, carência, falha
ou lacuna – caracteriza, antes, uma correta concepção da natureza de um
documento como o Código: uma estrita “definição” implicaria numa visão
cerrada, circunscrita, conclusa de liberdade.
O texto do Código venceu esta solução limitada e restritiva procedendo por
um caminho diverso: ofereceu da liberdade as suas determinações concretas,

2. Salvo melhor juízo, o Código utiliza valor como categoria ontológico-social, tal como Agnes
Heller formulou-a no ensaio “Valor e história”, coligido em A. Heller, O quotidiano e a história
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, pp. 1-15). Note-se que este ensaio expressa o pensamento
da Sra. Heller ao tempo em que ela ainda não se tinha convertido a um ideário de matriz
liberal.

26
explicitando-as no desdobramento do próprio primeiro “princípio” e na
formulação dos outros (aqui, mais uma vez, revela-se a articulação interna do
Código, a que já me referi).
A essencialidade da determinação concreta da liberdade reside nas
exigências a atender para o seu efetivo exercício: a “autonomia, emancipação
e plena expansão dos indivíduos sociais”. Sem “definir” a liberdade, o Código
patenteia que a concepção de liberdade que assume tem no seu núcleo a
individuação que supera o individualismo: trata-se da expansão de indivíduos
sociais emancipados porque autônomos e porque podem desenvolver livre
e socialmente as suas potencialidades3. O conteúdo concreto da liberdade é
assim exposto de modo inequívoco e diz respeito a toda a humanidade, a todos
os homens e mulheres sem qualquer discriminação (“por questões de inserção
de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual,
identidade de gênero, idade e condição física”).
O Código, todavia, vai além: determina, na quadra histórica contemporânea,
as condições elementares, também concretas, para que se atendam às
exigências de autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais
– a garantia dos direitos humanos, a democracia, a equidade e a justiça social,
enfim os traços pertinentes a outros “princípios fundamentais”. (E é supérfluo
indicar os imensos e coletivos esforços necessários para tornar realidade tais
condições elementares.)
Sem “definição” da liberdade, mas com tais determinações, parece-me
correto interpretar o espírito do Código afirmando que, nele, liberdade é a
possibilidade de escolher entre alternativas concretas; se assim é, o Código põe
a liberdade sem o constrangimento de limites previamente formulados: põe-na
exatamente como um horizonte de possibilidades.
Por isto, o seu caráter aberto: rigorosamente laico, o Código, determinando
concretamente o espaço, os meios e os fins da liberdade, contempla aspirações
que podem ser (e são) comuns a todos os humanistas e democratas – sejam
cristãos das mais variadas confissões, religiosos de outras extrações e de outras
matrizes filosóficas, agnósticos ou ateus, liberais sensíveis às transformações
históricas, democratas-cristãos, social-democratas, socialistas, eco-socialistas

3. Há aqui uma clara recuperação do alto humanismo do período clássico da cultura alemã (o
classicismo de Weimar), sinttizado por Goethe: “Mesmo o mais limitado dos homens pode se
desenvolver ilimitadamente”. Humanismo que, noutro registro, está posto em notável documento
do século XIX (mais exatamente, de fevereiro de 1848), que antevê uma sociedade “em que o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

27
e comunistas. É esta abertura (que, porém, dele exclui fascistas, racistas,
reacionários, violadores dos direitos humanos e dos direitos civis, políticos e
sociais) que garante o consenso democrático em torno dele.
Uma profissão – e o Serviço Social é apenas uma profissão – não se explica
e se compreende sem que se explique e compreenda a sociedade em que
se desenvolve. Uma profissão, porém, não é um epifenômeno dos processos
sociais em que se insere; não os “reflete” como se fora um “espelho”: a relação
entre ela e tais processos é ativa, complexa e extremamente mediatizada – as
determinações que os processos sociais (econômicos, históricos, políticos)
impõem à intervenção dos assistentes sociais são refratadas na profissão (nas
suas visões de mundo e de práticas) através de mediações da mais variada
ordem (desde as teórico-ideológicas e culturais às institucionais). É uma relação
visceral e não pode ser tomada como adjetiva, abrindo a via ao privilégio de
“análises internas” que conduzem ao endogenismo e convertem a autonomia
relativa do desenvolvimento profissional em processo independente dos conflitos
e lutas sociais. Na sua autonomia relativa, a profissão responde aos processos
sociais em que se inscreve – e tais respostas podem ser diversas.
O Código, com a centralidade ética conferida à liberdade, vem oferecendo
uma resposta profissional que, a mim me parece, atende às exigências históricas
contemporâneas.

Recreio dos Bandeirantes, outubro de 2013.

28
PRINCÍPIO 2

A defesa intransigente dos direitos humanos


e a recusa do arbítrio e do autoritarismo
Jefferson Lee de Souza Ruiz1

Introduzindo nosso diálogo

É crescente a preocupação, no exercício e na formação profissional em


Serviço Social, com uma desconexão entre aquilo que prevê o código de ética de
assistentes sociais do Brasil e o quotidiano de nossa ação profissional. Refletir
sobre o conteúdo ético, político, histórico e conceitual dos princípios do código
é um convite fundamental. Deve ser sempre aceito, de forma a não permitir que
a lógica desumanizadora impressa pelo capital para todas as dimensões da vida
social defina nossos objetivos e ações profissionais.
Nosso código de ética foi construído e aprovado por assistentes sociais
de todo o país nos anos 1980 e 1990. É importante destacar: os onze princípios
que introduzem as previsões que orientam nosso exercício profissional não
estão desconectados entre si. Ao contrário: há uma profunda articulação entre
valores e proposições neles constantes. Todas elas estão alinhavadas por uma
constatação fundamental: nos limites de uma sociedade capitalista não há como
viabilizar a emancipação humana anunciada por Karl Marx (2009), em que todas
as potencialidades humanas possam ser plenamente desenvolvidas (MARX &
ENGELS, 2009). Esta hipótese é uma premissa central das reflexões propostas
sobre o princípio que prevê a necessidade de uma defesa intransigente
dos direitos humanos e de recursarmos quaisquer expressões de arbítrio e
autoritarismo.
Recorreremos a breves elementos históricos e conceituais, visando a

1. Assistente social, mestre em Serviço Social pela UFRJ, assessor político do CRESS-RJ.

29
apreensão de que bases infundam nossas reflexões. Ao final proporemos uma
apreciação crítica sobre a relação deste princípio do código de ética e nosso
exercício profissional quotidiano.

Coincidências e oposições

Uma interessante coincidência histórica ocorreu no ano de 1993, quando


nosso código de ética foi aprovado e publicado. No âmbito dos debates sobre os
direitos humanos, foi também em 1993 que uma Conferência das Organizações
das Nações Unidas (ONU), realizada em Viena, capital da Áustria, aprovou
um Programa e uma Declaração que conseguiam, em seu texto, afirmar que
direitos humanos são, todos, indivisíveis, inter-relacionados, universais e
interdependentes2.
Esta previsão estabelecia uma interessante (e contraditória) relação com
duas frases ditas em 1924, em uma prisão do interior da Alemanha: “Os direitos
humanos estão acima dos direitos do Estado” e “Como os homens, primeiro,
criam as leis, pensam, depois, que estas estão acima dos direitos humanos”3.
Importante ressaltar que em 1993 o mundo vivia a superação da chamada
“Guerra Fria”4. As frases ditas algumas décadas antes, se articuladas com a
previsão aprovada em Viena e com a evolução havida nos debates sobre os
direitos humanos na segunda metade do século XX5, permitem perceber que
não há como pensar a preponderância de um ou outro Estado, de uma ou outra
forma de governo, de uma das dimensões do direito (a positivada, prevista em
lei) ou da produção de riquezas sobre necessidades efetivas da vida dos sujeitos
sociais que habitam o planeta.
As decisões de 1993 não estavam desconectadas da história do século XX.

2. Referimo-nos, aqui, ao artigo 5º do Programa e Declaração de Viena, aprovado na citada


Conferência. Seu conteúdo pode ser conferido em Mazzuoli (2005) ou pelo site www.dhnet.
org.br
3. Cf. Trindade, 2002, p. 13.
4. Uma ótima reconstituição deste período é encontrada em Hobsbawm (1995, pp. 223-252).
5. Efeito inequívoco das duas grandes guerras mundiais. Nelas, segundo Hobsbawm
(1995, p. 21), morreram ao menos 187 milhões de pessoas (nada menos que um décimo
da população mundial em 1900). Segundo o autor, trata-se do século mais assassino que
a história registra (Ibid., p. 22). Konder (2009, p. 103-104) acrescenta: apenas na segunda
guerra mundial (em que 61 países participaram) morreram sete milhões de alemães (outros
sete ficaram sem casas para morar); seis milhões de poloneses; seis milhões de judeus; vinte
milhões de soviéticos (dentre estes, treze milhões eram civis).

30
No que diz respeito ao código de ética, séculos de predomínio capitalista na forma
de organizar a vida em sociedade já haviam demonstrado que o papel previsto
para o Serviço Social em suas origens visava fundamentar e legitimar a atuação
(especialmente do Estado) no sentido de justificar a forma desigual como ocorre
a apropriação privada (por poucos) da riqueza social produzida (por muitos)
no mundo6. Já no que se refere aos direitos humanos, a deliberação de Viena
fazia avançar um debate iniciado, ao menos, em 1848. Naquele momento, o da
Primavera dos Povos – revolução popular que assolou a Europa “como um rastilho
de pólvora” (COMPARATO, 2008, p. 167-170) –, nas palavras de Trindade (2002)
as classes subalternizadas pelo capitalismo demonstrariam já ter percebido que
as promessas da Revolução Francesa de 17897 não seriam efetivadas para todos.
Por outro lado, o reconhecimento de que direitos chamados de civis, políticos,
sociais, culturais e ambientais, dentre outros, estão – todos – inter-relacionados e
são indivisíveis apontava, também, certa autocrítica de países socialistas. Desde,
ao menos, 1948 – quando da aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos – este foi o bloco responsável por propor o reconhecimento, em pé de
igualdade, de todas as dimensões da vida dos sujeitos sociais que se configuram
em disputas por direitos (SEDH, 2004). O fim do socialismo burocrático, também
responsável por profundas violações de direitos humanos8, permitia, do ponto de
vista histórico, que este balanço autocrítico fosse feito abertamente.

6. Uma vasta literatura profissional recupera e aprofunda este debate, a exemplo de Iamamoto
& Carvalho, 2009.
7. Hobsbawm (2010) registra o que era o mundo em 1789. Londres era sua maior cidade,
com um milhão de habitantes. Paris, a segunda, tinha 500 mil. Apenas outras vinte cidades
tinham em torno de cem mil habitantes – realidade já superada, no século XXI, pela maioria
das cidades-dormitório que abrigam populações que vivem ao redor de metrópoles e capitais
brasileiras. O restante da população vivia no campo, em aldeias e localidades isoladas. A
cada dez pessoas que nasciam sob o regime feudal, nove viveriam e morreriam no mesmo
local em que tinham vindo à vida. Liberdade, igualdade e fraternidade, para esta massa
popular, não tinha o mesmo sentido que lhes emprestavam os burgueses, setor dirigente da
Revolução Francesa. Como vimos há pouco, isto seria percebido em menos de um século
pelas populações trabalhadoras. Ainda: em 1789 o homem a que se referia a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão era apenas a pessoa do sexo masculino. Olympe de Gouge,
em 1793, ousou redigir a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Foi imediatamente
guilhotinada (BICALHO, apud CRUZ, 2013, p. 25). Marx, em Para a questão judaica (2009),
escrito em 1843, seria o principal crítico do caráter liberal-burguês da declaração de 1789
e dos direitos humanos conforme por ela previstos, com um texto em que, brilhantemente,
desmonta a defesa daquelas liberdade, igualdade, fraternidade e segurança defendidas
pelos burgueses.
8. Diversas dimensões levaram a tais violações, especialmente pelo stalinismo. A respeito, cf.
Hobsbawm (1995, pp. 363-390).

31
Mas onde está a contradição, citada há pouco, destes fatos com as frases
de 1924 sobre os direitos humanos, o Estado e as leis? Eis a resposta: em seu
autor. Adolf Hitler, preso na cidade de Landsberg-sobre-o-Lech, na Baviera, as
havia ditado a um escriba para o que viria ser sua autobiografia, posteriormente
denominada Mein Kampf9. Há, no mínimo, uma profunda contradição em prever,
em nome de direitos humanos, sociedades nos moldes propostos por Hitler. O
que faz com que Trindade (2002, 15-18) afirme que direitos humanos é um tema
de santos e canalhas. Segundo o autor, ao menos nos últimos 200 anos e na parte
ocidental do globo terrestre, não houve um ditador que, em algum momento, não
fizesse uso da linguagem dos direitos humanos para justificar suas ações.
Cuidado, contudo. A mesma disputa em torno de conceitos e significados
para as palavras ocorre com previsões como democracia (cf. COUTINHO, 2009),
igualdade (basta comparar as declarações da Revolução Francesa de 1789 e das
Revoluções Mexicana e Russa de, respectivamente, 1910 e 191710), solidariedade
(entre militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra trata-se de um
termo utilizado para denominar ações coletivas das classes subalternizadas
pelo capital, nada tendo a ver com sua utilização neoliberal para justificar ações
caritativas e filantrópicas em substituição ao papel do Estado)11. Todos estes
termos – democracia, igualdade, solidariedade, direitos humanos – devem fazer
parte da sociedade que, como seres dotados de capacidade teleológica, ousamos
construir e, nos limites que cabem a uma profissão, contribuir para seu alcance.

Por que defender, intransigentemente, direitos humanos

A esta altura podemos registrar que há uma apreensão de direitos humanos,


neste artigo, radicalmente distinta da proposta pela burguesia em 1789. Aqui,

9. Em português, “Minha luta”. Sobre o episódio, cf. Trindade, 2002, pp. 13-14.
10. Denominada Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, cujas previsões
foram incorporadas pela primeira constituição da República Socialista Federativa Soviética
da Rússia, em 1918. Cf. Trindade, 2002, pp. 157-159. Em relação à Constituição Mexicana,
Comparato (2008) e Trindade (2002) registram ser a primeira a prever, em lei, um conceito
caro a assistentes sociais brasileiros: o de seguridade social.
11. Acerca da disputa em torno do conteúdo das palavras, sugiro o ótimo artigo de Leandro
Konder (2009, 163-167), As palavras e a luta de classes. Vale recorrer, também, a Hobsbawm
(2010, p. 100): “(...) o termo ‘liberdade’, antes de 1800 sobretudo uma expressão legal que
denotava o oposto de ‘escravidão’, tinha começado a adquirir um novo conteúdo político.
Sua influência direta é universal, pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos
revolucionários subsequentes, suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um)
tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos”.

32
direitos humanos estão articulados a concepções distintas de direitos e de seres
humanos. Voltemos, rapidamente, a debates promovidos em nossas graduações
em Serviço Social.
Um ser humano é significativamente distinto dos demais seres vivos. Há
diversas características que nos permitem fazer esta afirmação. Para nossos
debates, duas se mostram fundamentais. A primeira é que mulheres e homens
são seres com capacidade teleológica. Projetam, idealmente, em suas mentes,
algo que pretendem construir, obter, disputar, conformar objetivamente, na vida
concreta, real. Uma segunda, que originalmente nos diferencia dos demais seres
vivos, é a capacidade de autorreconhecimento de nossas próprias necessidades.
Ao reconhecê-las, alteramos a natureza para satisfazê-las. Nesta relação não se
alteram apenas os recursos naturais disponíveis: nos automodificamos. Uma vez
satisfeita uma necessidade, percebemos o potencial de gerar satisfação para
outras dimensões da vida – que até então sequer tinham sido imaginadas. A
este processo, constante e ininterrupto, Marx denomina trabalho12. Nada deste
processo é efetuado individualmente. Nós, homens e mulheres, somos, por
excelência, seres sociais.
Por sua vez, direitos são mais do que leis13. Limitá-los a esta dimensão
significa assumir uma perspectiva liberal para sua interpretação: aquela que
costuma afirmar que somos iguais perante a lei, sem considerar a vida concreta
em sociedades profundamente desiguais. É bastante comum que chamemos de
direitos processos que não foram, ainda, reconhecidos em lei14. Flores (1989,
p. 126), ao estudar como então marxistas da Escola de Budapeste viam o
debate acerca dos direitos humanos, afirmava (com razão) que estes não são
inventados subjetivamente em cada conjuntura histórica. Eles são disputados no
processo dialético que conforma as necessidades e potencialidades humanas.

12. No livro 1 de O Capital, Marx (2008, pp. 211-212) nos diferencia de animais como
aranhas, abelhas e joões-de-barro. Estes também alteram a natureza, tecem e/ou executam
operações que se assemelham às de um tecelão, de um arquiteto, de um pedreiro. Contudo,
estas capacidades, nestes animais, compõem seu código genético. Os seres humanos,
diferentemente, executam aquilo que idealmente já estava presente em sua imaginação.
13. Lyra Filho (1982, p. 7) registra que na maioria das línguas direito e lei têm palavras
diferentes para distingui-los.
14. Isto ocorreu com o voto feminino e com a redução das jornadas de trabalho ao longo
da história. Hoje, chamamos de direitos (e lutamos por seu reconhecimento legal e efetivo)
princípios como a universalidade do ensino de nível superior, que (ao menos por ora) não tem
previsão legal no Brasil. Ou, ainda, após as manifestações de junho de 2013, defendemos
que o transporte público – antes naturalizado como serviço privado – seja gratuito, o que
implica responsabilidade estatal.

33
Afirma, portanto, que todo direito, pelo simples fato de sê-lo, é humano. Outros
seres vivos não disputam direitos, nem se organizam para retirá-los da parte
da riqueza que é apropriada privadamente por uma parcela escandalosamente
pequena da humanidade. Dornelles (2007, p. 11), por sua vez, afirma que
apenas seres humanos “(...) são capazes de serem sujeitos e terem suas
faculdades, prerrogativas, interesses e necessidades protegidas, resguardadas
e regulamentadas pelo Estado”. O reconhecimento estatal é apenas uma das
dimensões do direito – no capitalismo, diversos direitos são legais, mas ocorre
uma disputa (intensa e desigual) entre as classes sociais por sua efetivação.
Podemos afirmar, assim, que necessidades – e direitos – são sempre
gerados, e satisfeitos ou não, em sociedade. Direitos, então, são advindos das
relações entre seres humanos, implicando vida em sociedade; implicam em
reconhecimento de necessidades humanas postas, em processos históricos,
para a vida social; são parte integrante de disputas entre classes (em sociedades
desiguais econômica e socialmente) ou, mesmo, entre segmentos de classes
(em sociedades desiguais culturalmente15).
É preciso definir em que perspectiva defendemos direitos humanos. Os
princípios de nosso código de ética, vistos em conjunto, nos apontam uma
resposta.
No início de nossas reflexões apontamos que a direção teleológica, ética
e política dos princípios de nosso código apontam a necessidade de uma
sociedade anticapitalista. Alguns destes princípios chegarão às reflexões
de Marx, e dirão da necessidade de que a sociedade que nos dispomos a,
profissionalmente, contribuir para construir será aquela em que homens e
mulheres estarão humanamente emancipados (Marx a denomina comunismo).
A seguir, vimos como direitos humanos foram apropriados por concepções
muito distintas, de reacionárias a liberais, chegando a concepções que se
inspiram na crítica marxiana ao modo de produção capitalista. Esta leitura nos

15. Pensemos nas distinções de acesso a necessidades humanas, concretas e denunciadas


quotidianamente, existentes entre homens e mulheres; negros e brancos; migrantes e
pessoas que nascem e vivem em seus países; heterossexuais, bissexuais e homossexuais.
Todos estes processos articulam componentes de classe, mas não se reduzem a eles. O que
permite inferir a possibilidade de que, mesmo em sociedades que permitam real igualdade
econômica e social, fenômenos como racismo, machismo, homofobia, xenofobia possam
continuar presentes, sendo necessário combatê-los para buscar igualar condições de vida e
existência de diferentes e amplos segmentos populacionais. Este processo não nos fraciona.
Ao contrário: enriquece-nos. Permite perceber a fenomenal diversidade existente entre os
seres sociais.

34
leva a uma inevitável conclusão. Se os direitos humanos que o código de ética
de assistentes sociais brasileiros defende propugnam uma sociedade igualitária
e libertária, não estamos falando de direitos concebidos em perspectiva liberal.
Nossa referência são as necessidades humanas que, por razões históricas
e conjunturais, inúmeras vezes não são satisfeitas no modo de produção
então vigente. Ou seja, além de serem superiores ao Estado e às previsões
legais, direitos humanos estão, também, acima de cada modo de produção.
Expressam necessidades humanas, criadas e geradas a partir do que Marx
denomina trabalho, do pleno desenvolvimento das potencialidades dos seres
sociais – que, conforme vimos em Marx e Engels, só se dará plenamente em
uma sociedade sem classes sociais. Dialeticamente, tais necessidades serão
disputadas em qualquer sociedade em que houver óbices a sua concretização.
Apenas nesta perspectiva é possível qualificar nossa defesa de direitos
humanos como intransigente, como faz o princípio do nosso código de ética.
Não fosse assim, esta defesa seria meramente tática – feita em nome de uma
democratização pontual da sociedade, que, em outro modo de produção, ver-
se-ia necessariamente superada.
Há outra conclusão necessária. Se, como seres sociais, somos
compostos de distintas e diferentes dimensões (objetivas, subjetivas, afetivas,
sexuais, de gênero, de etnia, etárias, físicas e outras) não nos cabe assumir
uma frágil categorização das necessidades humanas em civis, políticas,
sociais, culturais, econômicas, ambientais, bioéticas etc. Fazê-lo significaria
assumir uma deliberação de âmbito profundamente subjetivo. Conquistar (e
atuar profissionalmente por) igualdade social não elimina diferenças, úteis,
necessárias e enriquecedoras da espécie humana. Como afirma a Escola
de Budapeste em sua apreensão marxista, portanto, não há como justificar
hierarquizar necessidades e direitos que, todos, se relacionam com diferentes
dimensões das vidas dos seres sociais. E isso guarda profunda relação com
nosso exercício profissional quotidiano.

Recusa do arbítrio e do autoritarismo

O debate sobre direitos humanos não tem sua complexidade restrita apenas
à existência de muitas e distintas apreensões conceituais sobre o tema. Além
de possibilitar distintas concepções, ele é depositário de intensa diversidade
própria de formações sócio-históricas distintas, realidades geopolíticas díspares,
características de governos locais etc.

35
Marques (2011) defende que falar de direitos humanos no século XVIII é
radicalmente distinto de fazê-lo no século XX ou no século XXI. Do mesmo modo,
falar de direitos humanos na Europa não significa o mesmo que apreciar seu
desenvolvimento, existência e reconhecimento na África, Ásia, América Latina ou
em países muçulmanos.
Pensemos na América Latina ao longo do século XX. Neste período, sangrentas
ditaduras assaltaram a vida de dezenas de milhares de latino-americanos, em
países como Argentina, Brasil, Chile e outros. Não por acaso, muitas das referências
feitas ao debate acerca de direitos humanos nestas localidades têm por princípio a
recusa do arbítrio, do autoritarismo, do controle estatal sobre as vidas das pessoas.
Eles resultaram em assassinatos, desaparecimentos políticos, torturas físicas,
sexuais, psíquicas e tantos outros processos repugnantes – destaque-se que, não
por acaso, marxistas sempre estiveram entre as vítimas... Se as ideias dominantes
em uma determinada conjuntura são as ideias defendidas pelas classes que
dominam o poder material e espiritual de uma sociedade (MARX & ENGELS, 2009,
p. 67, grifos originais), surge a possibilidade de que comportamentos semelhantes
se espraiem em sociedades que viveram processos históricos em que arbítrio e
autoritarismo nortearam ações estatais. Não por menos o Brasil (como fizeram
Chile e Argentina, embora nossa experiência se anuncie muito mais tímida que as
de nossos irmãos continentais) vem convivendo com a apuração de violações de
direitos humanos cometidas ao longo do período da ditadura iniciada na década
de 196016.
Fato é que há certa assimilação de comportamentos autoritários e arbitrários
no conjunto da vida nacional. Ela se expressa em diversas relações sociais
(familiares, afetivas, econômicas, culturais etc.). No âmbito do mundo do trabalho
tais processos assumem uma dimensão particular. Trata-se de corroborar e
ampliar as possibilidades de pressão sobre trabalhadores e trabalhadoras, de
forma a tentar fazer com que as posições institucionais prevaleçam (no Estado
ou em outras instituições) e/ou de gerar ritmos mais intensos de trabalho,

16. O debate decisivo que se coloca neste processo é o de que visão será preponderante
acerca da possível anistia a crimes cometidos naquele período histórico. No âmbito dos
debates internacionais sobre direitos humanos há um consenso de que crimes contra a
humanidade são inafiançáveis e imprescritíveis. No Brasil, esta polêmica está instalada entre
os próprios componentes da Comissão da Verdade e da Justiça, responsável pela apuração
acima aludida. Mobilizações sociais como os escrachos (manifestações defronte a casas e
locais de trabalho de torturadores já identificados pela historiografia nacional) promovidos
pela juventude podem ter importante papel no desfecho deste processo.

36
exigências quantitativas excessivas de resultados, ampliação da margem de
lucro de empresas – no âmbito da indústria e da iniciativa privada17.
No que se refere às nossas condições de trabalho e nossa autonomia
profissional precisamos enfrentar coletivamente tais situações. Em outra
perspectiva, contudo, tais elementos nos desafiam a refletir sobre como a defesa
intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do autoritarismo
impacta nosso exercício profissional.

Quem mais viola direitos humanos é quem mais nos emprega. Que fazer?

Dados disponíveis demonstram: quem mais emprega assistentes sociais


no Brasil é o Estado. O mesmo que é um dos maiores violadores de direitos,
quando se submete à lógica do capital, hoje predominante. Surpreendemo-
nos quando, ao tentar viabilizar acesso a direitos, nos deparamos com
imensos limites institucionais. Eles vão de verbas investidas nas políticas
públicas (a maior parte vai para pagar dívidas que não contraímos) a
condições dignas de trabalho. Como parte de nós costuma reagir? Reduzindo
a ação quotidiana ao meramente burocrático; escondendo-nos atrás de
condições inadequadas de trabalho e de relações autoritárias (todas próprias
das relações trabalhistas, não apenas de assistentes sociais) para justificar
nada fazermos quando direitos são violados18. Mas a violação de direitos não
ocorre apenas por ação. Ela também ocorre por omissão, como bem aponta
nosso código de ética. Negar à população acesso a necessidades legítimas
por não estarem previstas legalmente; não agir contra relações de trabalho
autoritárias, injustas, precarizadas; não se organizar sindicalmente nem fazer
lutas sociais; submeter-se a ditames institucionais que violam direitos: todos

17. Embora o termo “assédio moral” tenha sido assimilado por movimentos sindicais e
sociais e pelo campo do Direito, tais elementos apontam que não há nada de exclusivamente
“moral” em tais ações. São, na verdade, elementos que visam resultados econômicos e/ou
justificação de padrões de dominação em relações pessoais ou de trabalho. Qualificar tais
processos como morais tende a obscurecer as razões pelas quais tais atitudes são tomadas.
Tendem, ainda, a dificultar reações coletivas a este fenômeno (portanto não individualizadas,
como geralmente se assiste no âmbito legal e de diversas lutas contra o possível caráter
“moral” de tal assédio).
18. Estas afirmações advêm do convívio de cerca de 14 anos (no papel de assessor político
do CRESS-RJ) e da experiência docente em Serviço Social com situações e dimensões do
exercício profissional de assistentes sociais, seja no âmbito do estado do Rio de Janeiro, seja
no âmbito de encontros promovidos pelo Conjunto CFESS/CRESS e outros eventos.

37
estes são comportamentos que podem eternizar violações, não combatê-las.
Queiramos ou não, se conflitam com a direção apontada por nosso código de
ética para o exercício profissional.
O Serviço Social brasileiro, desde a “Virada” da profissão, construiu
referências para nossa atuação (as chamamos de projeto ético-político). Uma
de suas reflexões é a de que a construção de um exercício profissional crítico
e comprometido com as classes subalternas se dá por ações coletivas e,
simultaneamente, por opções éticas e políticas, individuais. O indivíduo social
não desaparece no âmbito das relações com outros sujeitos. Ao contrário:
relações sociais coletivas potencializam-se à medida que permitem que as
diversas potencialidades de cada sujeito social se somem às das demais
pessoas envolvidas.
Cada vez que nos negamos ao atendimento de longas filas de usuários,
sem propor-lhes alternativas, tomamos uma decisão política. A cada silêncio
diante de violações de direitos (de torturas e violências à ausência de espaços
de efetiva participação de usuários na definição das políticas) estas violações
se cristalizam. A cada discurso fatalista que assumimos (“não há o que fazer”;
“as condições de trabalho me impedem agir”; “se disser o que penso serei
transferido”; “corro o risco de perder meu emprego” etc.), sem acionar saídas
para ações alternativas (movimentos sociais; movimento sindical; sistemas
nacional e internacional de proteção a direitos humanos etc.), também violamos
direitos19. Deixamos de responder, com a qualidade que nossa graduação nos
possibilita, a demandas legítimas.
Nenhum avanço social foi obtido ao longo da história sem contradições,
perdas e ganhos. Acentuamos, anteriormente, que, aqui, direitos implicam
disputas entre classes e/ou entre segmentos de classe. Em sociedades
desiguais, cada avanço derrota outra perspectiva então vigente. Não há,
assim, qualquer possibilidade de alterar as raízes da desigualdade social ou
os diferentes tratamentos destinados à população sem se arriscar a perdas. A
defesa intransigente de direitos humanos e a recusa a quaisquer manifestações
de arbítrio e autoritarismo nas relações sociais se articulam ao questionamento
ao modelo de sociedade excludente e desigual existente. E não há como
imaginar que tais alterações não encontrarão reações contrárias dos que detêm

19. Reflexões neste sentido foram publicadas em cartilha de direitos humanos produzida pelo
CRESS-RJ em 2013. Ela encontra-se disponível em http://cressrj.org.br/download/arquivos/
cartilha-dh2013.pdf (acesso em 30/jun/2013).

38
os meios de produção de riqueza e/ou controlam mecanismos de reprodução
cultural e ideológica. A quem se surpreende com esta contradição, só podemos
saudar: “Bem-vindos e bem-vindas à luta de classes!”. Não há concessões fáceis
a quem se dispõe a assumi-la. Imaginá-lo seria adotar uma postura romântica e
descolada da realidade concreta da vida social.
O desafio, então, é como nos utilizar da autonomia relativa existente na
relação entre nosso fazer profissional e os interesses das instituições. Haverá
prováveis conflitos. Os princípios do código de ética contribuem para termos, em
mãos, horizontes de reflexão e proposição de alternativas a estas contradições.
No âmbito dos direitos humanos, instrumentos operativos (também
contraditórios, como todas as dimensões da vida) podem ser acionados na
busca de ampliar acesso a direitos. Referimo-nos ao processo conhecido como
Direito internacional de direitos humanos20. Nele, tratados, convenções, cartas e
cortes internacionais foram aprovados especialmente ao longo do século XX, no
processo de reação mundial aos horrores das duas grandes guerras mundiais.
Tais cartas, uma vez subscritas pelo Brasil, têm peso constitucional21. Na hipótese
das previsões destes documentos se chocarem com a legislação nacional, o
legalmente vigente é que prevaleça aquilo que for mais benéfico a quem teve
seu direito violado. Tais instrumentos e previsões podem e devem fazer parte de
nossos instrumentais de trabalho (pareceres e estudos sociais, manifestações
técnicas e outros). Eles preveem, ainda, a possibilidade de realizar denúncias,
nacionais e internacionais, de situações de violação de direitos – denúncias que
podem ser individuais ou coletivas, sendo preservado anonimato em situações
que o exijam.
Ou seja, não há como afirmar que não há o que fazer em situações de
violação de direitos com os quais temos contato. Contudo, isso exige não nos
limitarmos às exigências meramente institucionais. Requisita entendermos que
as alterações propostas pelo projeto societário ao qual nosso código de ética
se articula não se dão apenas no âmbito de nosso exercício profissional. Impõe
resgatarmos dimensões fundamentais de nossa atuação, como a dimensão
pedagógica (que potencializa a mobilização dos indivíduos sociais por sua
efetiva emancipação) e a sistematização de nossa prática profissional, capazes

20. A cartilha citada na nota anterior faz menção a ele, e a como acessá-lo. Outras fontes
importantes de consulta são o endereço eletrônico www.dhnet.org.br, além de Mazuolli
(2005),
21. Tal previsão consta do artigo 5º, inciso LXXVI, da Constituição Federal de 1988.

39
de oferecer um conjunto de elementos, dados e análises fundamentais para
processos de alteração necessários às diversas políticas sociais.
Aos que recorrerem ao costumeiro óbice de que a ONU e os direitos
humanos são limitados e contraditórios, perguntaremos: que legislação,
instrumento de ação, instituição e situação conjuntural não o são? Apresentar a
necessária e devida crítica aos limites postos para a vida social e para o exercício
profissional não nos isenta da postura crítica reclamada por nosso código de ética
profissional. Se defendemos que a defesa intransigente de direitos humanos e
a recusa do arbítrio e do autoritarismo são condições para este processo, estas
contradições nos acompanharão por toda nossa atuação profissional.

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Paulo: Saraiva, 2008.

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das Letras, 1995.

KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular,


2009a.

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LYRA FILHO, Roberto. O que é o direito. Coleção Primeiros Passos. São Paulo:
Brasiliense, 1982.

40
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ordem da barbárie. In FORTI, Valéria & BRITES, Cristina M. Direitos humanos e Serviço
Social: polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 195-209.

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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular,
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direitos humanos. Brasília: SEDH/Ministério da Justiça do Governo Federal do Brasil,
2004 (mimeo).

TRINDADE, José Damião de L. História social dos direitos humanos. São Paulo:
Peirópolis, 2002.

41
PRINCÍPIO 3

Garantia de direitos, ampliação e


consolidação da cidadania no Brasil:
desafios do Código de Ética Profissional
dos Assistentes Sociais
Silene de Moraes Freire1

Introdução

O Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais completa em 2013


vinte anos de sua aprovação. Dentre os princípios fundamentais que apresenta,
encontramos o reconhecimento da necessidade de “Ampliação e consolidação
da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas
à garantia dos direitos civis, sociais e políticos das classes trabalhadoras”.
Refletir sobre esse princípio, tema que nos foi proposto, envolve um conjunto
de determinações, dimensões e situações, postos por condições objetivas e
subjetivas a que estamos submetidos. Esse princípio revela uma concepção de
cidadania claramente inspirada na obra do sociólogo inglês Thomas H. Marshall
(1967), autor que se tornou paradigma de análise sobre o surgimento dos
direitos, defendeu a auto regulação do mercado e não considerou as relações
sociais e a luta de classes como elementos fundamentais de tal surgimento.
Marshall estabeleceu uma tipologia dos direitos de cidadania. Seriam os

1. Professora Associada do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social


da UERJ, mestre em Serviço Social pelo PPG da ESS da UFRJ, doutora em Sociologia pelo
PPG em Sociologia da FFLCH-USP, coordenadora do Programa de Estudos de América
Latina e Caribe (PROEALC) e do Observatório de Direitos Humanos do Centro de Ciências
Sociais da UERJ. Pró-cientista da UERJ. Pesquisadora FAPERJ, Bolsista de Produtividade do
CNPq, Coordenadora Adjunta do PPGSS da UERJ. Coordenadora do DINTER entre o PPG
da FSS da UFAL e o PPGSS da UERJ.

42
direitos civis, conquistados no século XVIII, os diretos políticos, alcançados no
século XIX – ambos chamados de direitos de primeira geração – e os direitos
sociais, conquistados no século XX chamados direitos de segunda geração.
Para Marshall (1967, p.84) a cidadania exige um elo de natureza diferente do
parentesco ou descendência, pois “requer um sentimento direto de participação
numa comunidade baseada numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio
comum. Compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e
protegidos por uma lei comum”; para o sociólogo o desenvolvimento da
cidadania é estimulado não só pela luta por direitos, mas também pelo exercício
e materialização dos direitos já adquiridos. A concepção marshalliana possui
forte marca liberal e é inspirada no modelo inglês de cidadania, experiência
totalmente diferenciada da realidade brasileira.
Desta forma é importante lembrar que o tema expressa a tensão entre as
determinações sociais e os princípios de um Código de Ética que revela as
opções não casuais por um projeto profissional. Assim, faz-se mister, em primeiro
lugar, refletir sobre as bases sociais do nosso projeto ético-político. Conforme
observou Barroco,

seu surgimento foi determinado fundamentalmente em função de certos(as)


sujeitos e condições históricas: o protagonismo da profissão, em seus setores
progressistas, contando com o processo de reorganização das classes
trabalhadoras e dos movimentos democrático-populares, no contexto de
redemocratização da sociedade brasileira dos anos 1980. Sendo assim, a
nossa força política está articulada, ainda que não seja de forma mecânica, ao
avanço dessa base social, que tem como pro-tagonistas os sujeitos de nossa
intervenção profissional: as classes trabalhadoras. (2001, p. 212)

Se ampliarmos os horizontes de nossas reflexões veremos que a perspectiva


de uma cidadania ampliada e a generalização dos direitos no Brasil (elementos
centrais na redução da desigualdade) possui uma história recente. Não por
acaso, no final do século XX fez parte da agenda política das reivindicações
que caracterizaram os anos 80. De um lado, era uma perspectiva que articulava
um campo político comum de movimentos e reivindicações diversas, do que
é registro o amplo debate, articulações e mobilizações que desaguaram na
Constituição de 1988. Por outro lado, é preciso também considerar que, nesses
anos de construção democrática, cidadania e direitos se constituíram como
referência de valor e perspectiva que organiza um modo de descrever a sociedade
brasileira colocando em pauta as obstruções e também as possibilidades de
uma modernidade pretendida como projeto. Como observou Murilo de Carvalho,

43
O esforço de reconstrução, melhor dito, de construção da democracia
no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das
marcas desse esforço é a voga que assumiu a palavra cidadania. Políticos,
jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples
cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente caiu na boca do povo.
Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política (...). No auge do
entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã.
(CARVALHO, 2001, p.7)

Não tardou muito e a década de 90 do século passado revelou que a


cidadania em nosso país ainda estava longe de se universalizar, mesmo no
patamar liberal. Essa inegável constatação sobre a questão da garantia de
direitos e da ampliação da cidadania no Brasil gerou e continua gerando inúmeros
debates travados sob o signo da fragmentação, não apenas do conhecimento,
como também da percepção da realidade. Não por acaso, temas de discussões
como direitos humanos, políticas sociais, defesa da efetivação dos estatutos,
políticas de cotas, direitos das minorias e tantos outros semelhantes a esses,
apesar de sua óbvia importância imediata, refratam o foco da análise totalizadora
para os aspectos mais visíveis, ou melhor, para as “pontas dos icebergs”, para
os efeitos e as consequências da desigualdade social entre nós e não para suas
causas e razões profundas. Além destes aspectos é muito frequente a crença de
que é possível combinar acumulação capitalista com equidade, sobretudo no
capitalismo maduro e destrutivo conforme a experiência brasileira revela.
O objetivo das discussões aqui enfrentadas é evitar os equívocos que as
análises fragmentadas e prisioneiras da aparência dos fenômenos acabam
gerando. Nossa intenção é ampliar os horizontes do debate sobre questões que
visam reduzir a desigualdade em nosso país através da utilização do fetiche da
questão da igualdade numa sociedade capitalista. Entendemos que somente
abordagens que apontem o cerne histórico da desigualdade persistente na
sociedade brasileira são capazes de ultrapassar o minimalismo conceitual das
reflexões acerca das reais possibilidades de redução/superação da desigualdade,
e/ou da conquista concreta da igualdade que envolve esse tema. Temos como
pressuposto que o lastro pós-moderno, que permeia grande parte do debate
contemporâneo sobre a questão da igualdade, ao anular a luta de classes como
ancoragem necessária das análises, acaba fundando assimetrias que geram
a fragmentação dos sujeitos sociais isolando-os das vinculações de classe. A
consequência é a fragilização das verdadeiras possibilidades de mudanças, ou
melhor, dos processos verdadeiramente emancipatórios dos sujeitos sociais
pertencentes às classes e camadas subalternizadas pelo capital.

44
Desse modo, a redução das desigualdades via medidas isoladas que partem
de compreensões fragmentadas da realidade, em realidade só consegue reduzir
o grau de consciência sobre esse fenômeno. Melhor dizendo, só consegue
ampliar a alienação.

É necessário compreender a nossa incompreensão


Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado... (Karl Marx)

Concordamos com José de Souza Martins (2002, p. 54) que não é possível
falar sobre os rumos da prática de intervenção na realidade social problemática,
se há uma barreira que dificulta que é a barreira do conhecimento insuficiente ou
limitado sobre a sociedade brasileira. Em outras palavras, é impossível se falar
nas dificuldades de defesa dos compromissos presentes no Código de Ética
no exercício profissional dos assistentes sociais, sem levar em consideração
essa mesma barreira do conhecimento mencionada por Martins (2002). Para
enfrentar essa dificuldade, segundo o autor, é essencial reconhecer os artifícios
do mundo contemporâneo e os obscurecimentos dos quais ele se reveste. É
necessário compreender a nossa incompreensão sobre a sociedade brasileira e
buscar apreendê-las de modo cada vez mais amplo. A incompreensão dos nexos
da desigualdade faz parte de um país ainda pouco estudado.
O Brasil, nas últimas décadas, vem confirmando uma tendência enorme de
manutenção das várias expressões da desigualdade. Seja através da distribuição
de renda/riqueza revelada, sobretudo pelos elevados níveis de pobreza, seja
através da fragilidade da universalização da cidadania que permanece em pleno
século XXI. Um país desigual, exposto ao desafio histórico de enfrentar uma
herança de injustiça social, que excluiu parte significativa de sua população do
acesso a condições mínimas de dignidade e cidadania, não pode enfrentar esse
debate sem balizar as inter-relações causais dessas dimensões.
Para melhor entendimento dos limites e possibilidades das recentes políticas
públicas implementadas para redução das desigualdades devemos perceber
que o Brasil, do final do século XX e início do século XXI, ainda é um país que não
rompe com seus traços históricos de manutenção de uma abissal desigualdade.
Não por acaso adquiriu nas últimas décadas a triste reputação de ser o país
mais desigual da região mais desigual do mundo, que é a América Latina. Tal

45
constatação foi publicada com riqueza de dados por ocasião da elaboração do
mapa da desigualdade social2. Os dados dos institutos de pesquisa IBGE (2007)
e IPEA (2006) sobre esse início de século XXI têm revelado a concentração
de renda, da riqueza e de outras distribuições, como o da educação3. Essas
desigualdades vêm demonstrando uma grande persistência, tendo atravessado,
sem alterações perceptíveis, períodos de crescimento acelerado e de estagnação,
de inflação galopante e de completa estabilidade de preços, bem como de
rápidas e profundas mudanças demográficas e tecnológicas. A preservação
de um verdadeiro abismo social gerado pela manutenção histórica de uma
desigualdade extremada fica mais fácil de entender quando percebemos a lógica
de construção/reprodução do capitalismo brasileiro4.
A desigualdade histórica brasileira se expressa pela concentração da
propriedade privada e, por consequência, por uma extrema concentração de
renda. A partir desta constatação podemos perceber a importância do resgate
da raiz da construção da dominação burguesa no Brasil, para compreensão do
modo como se conformou a reprodução das relações sociais em nosso país.
A classe burguesa exerce um papel imprescindível para a existência da
desigualdade social, visto que não é de interesse de tal classe fazer a sua extinção,
e sim administrá-la. Para tanto, é importante resgatar as análises realizadas por
Florestan Fernandes (1975), sociólogo marxista que elaborou uma teoria do
desenvolvimento na periferia da “economia-mundo” capitalista. Com base nas
reflexões de Fernandes (idem) podemos dizer que “foi a oligarquia – e não as
classes médias ou os industriais – que decidiu, na realidade, o que deveria ser a
dominação burguesa em nosso país, senão idealmente, pelo menos na prática”.
Conforme mencionou Fernandes, “o conflito emergia, mas através de discórdias
circunscritas, principalmente vinculadas a estreitos interesses materiais, ditados
pela necessidade de expandir os negócios” (idem, p. 205) e essa situação fez

2. Todos os dados mencionados foram baseados em informações do IBGE (2007) e do


IPEA (2006) publicadas nos sites: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.
php?storyid=381 e http://oglobo.globo.com/pais /mat /2007/ 12/21/327716442.asp,
3. Em matéria publicada em 23/08/2009 no Jornal o Globo, intitulada ‘Menos pobre e tão
desigual’: “o sociólogo do Iuperj, Adalberto Cardoso, que acabou de concluir livro sobre a
concentração de renda no Brasil, a desigualdade se mantém a mesma há 200 anos: — O
Brasil é assim há 200 anos. E a concentração é maior no topo da pirâmide de renda. Se
tirássemos os 20% mais ricos, teríamos um Índice de Gini sueco, o país mais igualitário”.
4. Os dados apresentados na publicação Estatísticas do Século 20, lançada em 2003 pelo
IBGE, deixaram claro que o crescimento econômico, em nosso país, não está diretamente
relacionado à redução da desigualdade social.

46
com que a burguesia se modernizasse muito mais no plano econômico do que
no plano político.
Isso remonta, para Fernandes, a compreensão do fato da burguesia
brasileira não assumir

o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade, pelo


menos de forma universal e como decorrência imperiosa de seus interesses
de classe. Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso, a
fim de tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade
brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do ‘atraso’ quanto
do ‘adiantamento’ das populações. Por isso, não era apenas a hegemonia
oligárquica que diluía o impacto da dominação burguesa. A própria burguesia
como um todo (incluindo-se nela as oligarquias), se ajustara à situação
segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas,
preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa,
intransigente e avassaladora (FERNANDES, 1975, pp. 205-206).

A expressão “revolução burguesa no Brasil”, segundo Fernandes (idem,


p. 203), em realidade significa o processo de consolidação do capitalismo no
país, com uma autonomia parcial com fortes tendências à integração nacional,
ao menos neste momento específico da análise. O que importa realmente para
o autor é a compreensão não das possibilidades que poderiam ter acontecido,
mas o que realmente ocorreu, ou seja, as diferentes etapas da consolidação do
capitalismo no Brasil, com as devidas transformações que estas proporcionaram.
A história da burguesia brasileira, para Florestan Fernandes (idem,
p. 203), não surge com a colonização, ou melhor dizendo, o Brasil não é
capitalista desde o seu descobrimento. Esta tem um aparecimento tardio e
dependente, optando por assimilar formas econômicas, sociais e políticas
do mundo ocidental moderno. Por este motivo é explicado o frágil caráter
revolucionário da burguesia, estritamente brasileira, que pode ser vista
como tal, mas com particularidades, diferente das revoluções burguesas
que aconteceram em outros países5. O Brasil, para Fernandes (idem,
p. 207), passou a ser burguês e capitalista bem posteriormente ao seu
descobrimento. Quando esta transformação ocorre, tem a significação de
modernização econômica, política, cultural e social. É um momento de transição

5. A interpretação que Fernandes (idem) faz sobre o Brasil permeia questões como a
escravidão e revolução burguesa. A primeira dispõe um conhecimento histórico da sociedade
do período colonial até o século XIX. Já a segunda mostra a forma com que a burguesia
brasileira se concretizou, desmascarando-a.

47
da época dos senhores, sob a hegemonia das oligarquias agrárias, para a era
burguesa, quando a hegemonia foi compartilhada entre aquela oligarquia e o
novo grupo social que surgia.
É importante entender que no Brasil não houve um confronto de estrutura
entre a antiga e a nova ordem; desse modo a opção da revolução brasileira
configura uma modernização conservadora6 ou revolução passiva no sentido
gramsciano7. A burguesia não entrou em conflito com a aristocracia agrária,
foi uma espécie de oposição dentro da ordem, se comprometendo com tudo o
que lhe fosse vantajoso. Ajustou-se à tradição, preferindo a mudança gradual
e a composição a uma modernização vigorosa. Para Fernandes (1975, p. 211)
é importante ressaltar que não há repetição, no Brasil, do que ele chamou de
“modelo democrático burguês de transformação capitalista”.
O poder burguês no Brasil resolveu e saiu de sua crise na esfera política
devido ao reordenamento estatal, a concentração do poder político do Estado
e sua militarização e, também, à reorientação, sob a égide do Estado, da
política econômica. Porém, como salienta o autor, esta não foi uma passagem
independente, como também não houve rupturas nas relações de dependência.
A contrarrevolução se deu no sentido contrário de uma verdadeira democracia
burguesa e da construção de alternativas para um desenvolvimento autônomo.
Ela se direcionou para a possibilidade da centralização do poder no Estado para
que permanecessem os aspectos pré-capitalistas de desigualdades.

6. O conceito de modernização conservadora foi formulado por Barrington Moore Jr. na sua
tentativa de explicar a modernização da sociedade alemã na passagem do século XIX para
o XX, quando o processo de industrialização contou com a participação fundamental dos
grandes proprietários de terra, cujos interesses foram contemplados com a manutenção da
estrutura fundiária daquele país.
7. Conforme observou Freire (1998, p. 34), “Gramsci fez questão de esclarecer que o seu
conceito de revolução passiva não é para ser aplicado restritivamente, sendo válido, por
extensão, a “toda época complexa de transformações históricas” (GRAMSCI, 1986, p. 188,
apud FREIRE, idem). Devido à sua universalidade, esse conceito pode igualmente nos
proporcionar instrumentos analíticos capazes de indicar traços decisivos de nossa formação
histórica. Não estamos com isso esquecendo que a universalidade do conceito, ao sublinhar
e precisar traços comuns, não pode deixar de lado o fato de que “esse caráter geral, ou
este elemento comum, que se destaca através de comparação, é ele próprio um conjunto
complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes” (MARX, 1972: 110, apud
FREIRE, idem). Em realidade, em se tratando de um país cujos momentos decisivos da sua
história foram sempre manobras “pelo alto”, o conceito de “revolução passiva” (ou revolução
“pelo alto”) é extremamente significativo para a compreensão, como observa Coutinho, “não
só [de] episódios capitais da história brasileira, mas também, de modo mais geral, de todo
o processo de transição do nosso país à modernidade capitalista” (COUTINHO, 1998: 143,
apud FREIRE, idem).

48
A exaltada capacidade brasileira de resolver os conflitos através de acordos,
como observou Emir Sader (1990), tem um preço que é a não-resolução dos
problemas de fundo do país, cujas vítimas são a maioria esmagadora da
população, excluída dos direitos básicos de cidadania. Segundo Sader, “a falta
de rupturas implica a falta de identidade. Falta de identidade nacional, das classes
sociais e dos atores políticos – já que a identidade, de um indivíduo ou de uma
nação, surge de processos de ruptura de contraposição ao outro” (1990, p. 1). A
história brasileira, para Sader, revela constantes alinhavamentos de pactos ‘pelo
alto’, que frustraram as aspirações populares e “as substituíram por processos
gattopardistas, em que ‘tudo muda para que tudo siga igual’” (idem).
A expansão da ordem social democrática constitui o requisito sine qua
non de qualquer alteração estrutural ou organizatória da sociedade brasileira,
por isso relaciona-se diretamente à questão da desigualdade persistente. Em
meados da década de 70, Florestan Fernandes (idem) já alertava que se não
conseguíssemos fortalecer a ordem democrática, eliminando os principais fatores
de suas inconsistências econômicas, morais e políticas, não conquistaríamos
nenhum êxito apreciável no crescimento econômico, no desenvolvimento social
e no progresso cultural. Estaríamos, como de fato já estamos faz muito tempo,
camuflando pura e simplesmente uma realidade triste, que faz da insegurança
social, da miséria material e da degradação moral o estado normal de existência
de grande parte da população brasileira. Uma sociedade como a nossa, que
historicamente não construiu afinidades com a democracia, que sempre
limitou a cidadania e fez da banalização destas questões traços fundamentais
da sua cultura política, nos leva a compreender os motivos dos efeitos perversos
do neoliberalismo, aprofundados no final do século XX, também terem se
apresentado entre nós como o caldeamento de uma arraigada sociabilidade
autoritária associada aos processos de mundialização.
Em suma, compreender a história do nosso país ajuda a entender as nossas
incompreensões frente aos limites persistentes de nossa democracia e cidadania.
Os rumos atuais das políticas sociais no Brasil nos obrigam a lembrar que a
modernidade construiu uma profunda articulação entre cidadania e democracia.
Democracia é sinônimo de soberania popular. Por isso, como menciona Coutinho
(1997, p. 145), “podemos defini-la como a presença efetiva das condições
sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação
ativa na formação do governo e, em consequência, no controle da vida social”.
Como adverte o autor, é fundamental destacar que a cidadania é fruto da
capacidade conquistada por alguns indivíduos, em caso de uma verdadeira

49
efetivação da mesma por todos os indivíduos, “de apropriarem-se dos bens
socialmente criados, de atualizarem em cada contexto histórico as mais amplas
potencialidades de realizações humanas abertas pela vida social”. Daí, como
alerta Coutinho, a necessidade de sublinharmos a expressão historicamente para
destacar o fato de que soberania popular, democracia e cidadania (expressões
que, em última instância, designam a mesma coisa) devem sempre ser pensadas
como processos históricos aos quais são atribuídos, permanentemente, novas e
mais complexas determinações8.

Consolidação da cidadania e garantia de direitos: desafios dos


assistentes sociais?

Para fazermos uma relação do princípio do Código de Ética aqui analisado


e o exercício profissional dos assistentes sociais temos que ter em mente que
a efetivação de princípios de um Código é historicamente situada, por isso é
fundamental conhecer a sociedade brasileira. Como observou José Paulo
Netto (2006), os Códigos de Ética profissionais são sempre objeto de diversos
e incontáveis debates no sentido de contestação de algumas normas e
princípios. Entretanto, é importante reconhecer que os elementos éticos dos
projetos profissionais ultrapassam as normas morais, os direitos e deveres
estabelecidos no Código de Ética, mas abarcam também as “escolhas teóricas,
ideológicas e políticas das categorias profissionais”, por isso os projetos
profissionais têm sido designados por projetos ético-políticos. Segundo Netto,

A dimensão política do projeto é claramente enunciada: ele se posiciona a


favor da equidade e da justiça social, na perspectiva da universalização
do acesso a bens e a serviços relativos às políticas e programas sociais; a
ampliação e a consolidação da cidadania são explicitamente postas como
garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes trabalhadoras.
Correspondentemente, o projeto se declara radicalmente democrático –
considerada a democratização como socialização da participação política e
socialização da riqueza socialmente produzida.
Do ponto de vista estritamente profissional, o projeto implica o compromisso
com a competência, que só pode ter como base o aperfeiçoamento intelectual

8. “Cidadania não é dádiva, tampouco é algo definitivo, ela não vem de cima para baixo, mas é
fruto de batalhas permanentes, travadas quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas.
Por isso, sua conquista e ampliação implicam processos históricos de longa duração. Assim,
não é casual que a ideologia hoje assumida pela burguesia propugne tão enfaticamente o fim
dos direitos sociais, o desmonte do Welfare State” (COUTINHO, 1997, p. 155).

50
do assistente social. Daí a ênfase numa formação acadêmica qualificada,
fundada em concepções teórico-metodológicas críticas e sólidas, capazes
de viabilizar uma análise concreta da realidade social – formação que deve
abrir a via à preocupação com a (auto)formação permanente e estimular uma
constante preocupação investigativa. (2006, p. 3)

Isso posto é importante atentarmos para os equívocos gerados por


concepções teórico-metodológicas frágeis que não identificam diferenças entre
as compreensões liberais e marxianas acerca dos conceitos, como é o caso do
conceito de cidadania, por exemplo. Não raro encontramos assistentes sociais
que sustentam sua ação profissional no tripé marshalliano dos direitos, como
caminho para construção da cidadania. Ignorando não apenas a realidade
brasileira como também as armadilhas da concepção liberal e as possibilidades
de compreensão desta luta como um avanço que não se esgota em si, conforme
observou Coutinho (1997)9. Desta forma, ao embasar o exercício profissional em
compreensões fragmentadas e sem fundamentação teórica, acaba-se criando
uma contradição com outro princípio do Código de Ética dos Assistentes Sociais
que afirma a “Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe,
etnia e gênero”. Entender os nexos dos princípios do Código de Ética exige,
como lembrou Netto (2006), o aperfeiçoamento da competência profissional.
Em recente estudo, elaborado para sua dissertação de mestrado, Souza
(2013) analisou a apreensão do conceito de cidadania pelos assistentes sociais,
através dos trabalhos do XI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais realizado
em 2004, e detectou em muitos deles a compreensão da cidadania como um
instrumento de acesso aos direitos, o que revela o desconhecimento de que o
exercício de uma cidadania plena exige o estabelecimento de uma sociedade
livre das desigualdades de classe. Conforme Souza (idem) mencionou,

o conceito de cidadania presente nos trabalhos analisados, transita em várias


hipóteses, muitas vezes confundido com o conceito de democracia, sendo
quase inexistente a problematização crítica da concepção liberal de cidadania,
que também é vista em alguns trabalhos como um processo de aprendizagem
social revelando um amoldamento dos segmentos improdutivos para o capital
na dinâmica capitalista e principalmente nas relações sociais “tipicamente”
burguesas (2013, p. 104).

9. A cidadania que se realiza pela participação nas instâncias ditas democráticas do Estado
não é a cidadania plena mencionada por Coutinho (1997, p.160): “esta só terá possibilidades
de concretização em uma sociedade sem classes”.

51
A mesma autora ao analisar a sequência de equívocos teóricos presentes nos
trabalhos observou que “a cidadania burguesa é muitas vezes colocada como
pré-requisito para emancipação; não se define a que emancipação se pretende
alcançar, mas está claro que se espera que a luta pelos direitos seja capaz de
impulsionar uma luta contra-hegemônica” (2013, p. 104). Ainda segundo Souza,
“a maior porcentagem de trabalhos verificadas no CBAS (2004) se concentra
no eixo de análise que atrela o conceito de cidadania ao acesso e exercício dos
direitos civis, políticos e sociais” (2013, p. 108). Assim sendo, é fácil perceber
que “o conceito de cidadania liberal ainda é privilegiado pelos profissionais
que participaram do CBAS (2004)” (2013, p. 108). Também é constatada uma
tendência, segundo a autora, em atribuir o conceito de cidadania à superação
da condição de exclusão social e, para tanto, não somente o acesso aos direitos
é mencionado, mas também uma “tomada de consciência” dos usuários dos
serviços sociais e projetos de intervenção e, ainda, a conciliação de situações
conflituosas, em especial nas famílias. Sendo poucos os trabalhos que deram
conta da crítica ao conceito de cidadania de acordo com a teoria marxiana,
apontando seus limites na sociedade capitalista, mas afirmando a luta pelo acesso
aos direitos como um compromisso ético-político com a classe trabalhadora
(2013, p. 108).
Reproduzimos aqui algumas breves conclusões do estudo de Souza (2013),
pois entendemos que as mesmas não são específicas deste Congresso, mas sim
um traço que vem sendo característico da profissão, sobretudo no seu exercício
profissional. Não raro encontramos profissionais que vislumbram o acesso e
garantia da efetivação dos direitos como um fim último de seu trabalho e como
possibilidade de emancipar os usuários. “Confunde-se a emancipação com a
saída da condição de dependência em relação ao paternalismo do Estado, como
se o indivíduo emancipado fosse aquele que conseguisse gerir sua sobrevivência
por seus próprios esforços” (Souza, 2013, p. 109).
Sem dúvida, o Serviço Social, enquanto categoria profissional, não possui
condições de efetivar um processo revolucionário, dado que tal construção
deve ser fruto de um movimento de classe, coletivo e ampliado. Entretanto,
decifrar esses limites e entender as possibilidades contra-hegemônicas do
exercício profissional é fundamental para o projeto ético-político do Serviço
Social, que não se resume a mera implementação do Código de Ética, como já
observou José Paulo Netto (2006).
O terceiro princípio do nosso Código de Ética é inegavelmente influenciado
pelas reflexões de Thomas H. Marshall (1967) como mencionamos na introdução

52
deste artigo; no entanto, perceber tal influência e as armadilhas das contradições
que ela engendra, ou seja, realizar a crítica da concepção liberal de cidadania
é uma tarefa fundamental para o aprofundamento e desenvolvimento do
projeto ético-político do Serviço Social, que ainda não desenvolveu plenamente
suas possibilidades, sobretudo quando observamos os limites, por exemplo,
no domínio dos indicativos para a orientação de modalidades de práticas
profissionais; particularmente neste terreno, como mencionou Netto (2006),
ainda há muito por fazer-se.

Referências bibliográficas
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político. In: Revista Serviço Social & Sociedade.  Nº.106. São Paulo Apr./June 2011,
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Vermelha. Estudos de Política e Teoria Social. UFRJ, PPGESS, vol.1, 1º semestre de
1997, p.145-165.

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Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

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político de militares e tecnocratas no pós-64. Tese de Doutorado do Programa de Pós-
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exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002.

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Zahar Editor, 1967.

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Elisabete Mota. Maria Inês Souza Bravo. Roberta Uchoa. Vera Nogueira. Regina Marsiglia.
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Profissional, São Paulo: OPAS, OMS, Ministério da Saúde, Cortez Editora, 2006.

53
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SOUZA, Carina. A apreensão do conceito de cidadania pelo Serviço Social no


Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais de 2004. Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

SOUZA, Jessé. Democracia Hoje. Novos desafios para a teoria democrática


contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001

54
PRINCÍPIO 4

A defesa do aprofundamento da democracia,


enquanto socialização da participação política
e da riqueza socialmente produzida
Joaquina Barata Teixeira1

1. Introdução

Os onze princípios do Código de Ética do/a Assistente Social, em sua


formulação completa, estão profunda e coerentemente inter-relacionados,
ensejando ao exercício profissional as bases a um compromisso ético-político
superior, no sentido da construção da sociedade do futuro desde agora. Trata-
se de um trajeto no rumo de uma concepção de mundo radicalmente nova,
que promova a ruptura com todos os fetiches e manipulações metafísicas da
ideologia burguesa, identificando a realidade com o “fazer humano”.
O quarto princípio, que abordaremos neste tópico, mantém e reforça
essa coerência, ao afirmar ”a defesa do aprofundamento da democracia”,
completando essa afirmação com o horizonte da “socialização da participação
política e da riqueza socialmente produzida”. É este complemento que marca
a distinção entre o sentido de democracia defendido no Código de Ética (e no
projeto ético-político profissional) e a ultrapassada e limitada democracia liberal,
em seu predominante conteúdo formal, cuja universalidade da participação
está limitada somente à esfera do voto, o que nos impõe desenvolver a crítica
da democracia representativa burguesa e da economia política, as quais

1. Professora aposentada da Universidade Federal do Pará, mestre em Planejamento do


Desenvolvimento – NAEA/UFPA, membro da Federação Internacional dos Trabalhadores
Sociais entre 2002-2008.

55
não contemplam e até se opõem aos interesses populares e das massas de
trabalhadores.
É verdade que na luta contra a ditadura, no Brasil, houve um momento de
unidade entre liberais e socialistas, no embate pela conquista de um regime de
liberdades político-formais, em oposição ao regime de exceção da época2. Mas
esse momento já foi ultrapassado, embora conserve alguns de seus estragos.
O prosseguimento dessa luta impõe ir além. Implica em prosseguir o árduo e
longo caminho pelo avanço das condições políticas e econômicas no rumo da
socialização da propriedade, da riqueza, da renda e do poder. Por isso estamos
de acordo com a formulação gramsciana, que inclui em um projeto alternativo e
de superação da ordem social capitalista, duas dimensões: uma dimensão ético-
política, e uma dimensão econômico-social (GRAMSCI: 1978). Não por acaso,
o Serviço Social atua nessas duas dimensões. Eis que também afirma Gramsci
que nenhuma hegemonia se constrói sem alguma retribuição no plano material
(GRAMSCI: 1978), indicando que subjetividade e objetividade são inseparáveis e
têm mútua determinação, e estão presentes no exercício profissional.

2. Socialização da participação política

Sem dúvida que o Código de Ética, ao tratar da socialização da participação


política, não se refere apenas às formas de participação dos institutos
democráticos da ordem social vigente, que se sabe foram conquistadas na
luta dos trabalhadores (alguns em oposição aos interesses burgueses, como
os sindicatos), mas que encontram seus limites no interior da sociedade do
capital. O Código refere-se também (e principalmente) ao sentido mais radical
a ser perseguido, o da socialização do PODER, intrinsicamente relacionado
à socialização da propriedade e da riqueza, o que só pode ser alcançado em
outra ordem social; daí que a democracia também vai alterando sua forma e
conteúdo, para distinguir-se, ao final, da democracia liberal, teorizada no século
XVIII por Locke e Montesquieu. Diz Luiz Mário Gazzaneo, em seu prefácio ao livro
“Mais democracia mais socialismo”, publicado em 1987 por Gorbachiov, que o
reconhecimento da democracia como valor chegou à então denominada União
Soviética, em que as palavras russas perestroika (reestruturação) e glasnost

2. Assunto desenvolvido por Carlos Nelson Coutinho, em sua obra A democracia como valor
universal (1984). Na versão digitalizada de 28/08/2008, ver página 34.

56
(transparência) passaram a adquirir significado universal, do mesmo modo que
as palavras soviet (Conselho) e bolshevik (maioria). Sobre a democracia no
socialismo, vale reproduzir as palavras de Coutinho:

a democracia política no socialismo pressupõe a criação e/ou a mudança


de função de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas
embrionariamente na democracia liberal clássica (...); esses elementos
da nova democracia já se esboçam. (...) Refiro-me aos mecanismos
de representação direta das massas populares (partidos, sindicatos,
associações profissionais, comitês de empresa e de bairro, etc.) (...) que
poderíamos chamar de sujeitos políticos coletivos. (COUTINHO: 1984, p. 37)

É preciso reconhecer que os espaços de representação direta, no interior
das prerrogativas democráticas e de cidadania da ordem republicana, oferecem
uma boa oportunidade de vivenciar a prática da socialização da participação, já
que são sujeitos que ultrapassaram o que Gramsci denomina o patamar mais
baixo da luta política: o da defesa apenas dos interesses pessoais e individuais
(atomizados). Ao organizarem-se coletivamente, os grupos já alcançam uma
etapa superior da luta política, mesmo que ainda em torno de interesses
corporativos.
Os limites desses espaços representativos na ordem burguesa revelam-se,
entretanto, quando só se limitam às lutas corporativas e não evoluem para o
último patamar, que Gramsci denomina da “solidariedade de interesses” (estão
subjacentes, aí, os interesses de classe). É a fase mais genuinamente ético-
política, quando as organizações, inicialmente de perfil corporativo, superam-se
e alcançam o mais alto patamar, inscrevendo-se na construção de outra forma
social, que seja capaz de concretizar a justiça, a liberdade e a igualdade, ideário
prometido pela revolução burguesa, mas não alcançado.
Mas sabe-se que se buscam outras formas de perseguir a socialização
do poder, no campo dos embates na esfera econômica, a exemplo das greves
do proletariado pela apropriação de parcela maior do valor-trabalho, com a
valorização da condição salarial do trabalho vivo; da luta pela socialização da
riqueza já existente, gerada pelo trabalho morto; da luta pela reforma agrária
(que contribui para suprimir a extrema subalternidade no campo). A cada dia
podem surgir novas reivindicações populares nesse campo, incorporando novos
grupos, novas demandas, no universo da participação política e da participação
na riqueza. Os movimentos de massa no Brasil, desde a jornada de junho de
2013, nos apontam para a dissolução do mito do “futebol como ópio do povo
brasileiro”, e anunciam novos tempos. São “forças motrizes em ação”, no dizer

57
de Lênin, como me lembrou acertadamente meu grande colega Marcelo Braz a
14 de outubro, em conversa no ônibus a caminho do 14º CBAS. Há que agora
organizar as “forças dirigentes”.
A socialização do poder, enquanto participação política, pode perfeitamente
ser exercida desde já em nossos espaços de representação direta: ABEPSS,
ENESSO, CFESS, CRESS estaduais, sindicatos aos quais se integram os
assistentes sociais, ou como docentes (a exemplo do ANDES / Sindicato
Nacional, ou das Seções Sindicais de Universidades Federais ou Estaduais),
ou como profissionais, em sindicatos ou associações (isoladas ou conjuntas
com outras categorias). Mas nenhum desses espaços deve perder de vista o
horizonte ético-político e econômico-social mais avançado, em busca do qual
devem assegurar a sua unidade na diversidade.

3. Socialização da riqueza socialmente produzida

É notório o reconhecimento de que a forma e o conteúdo do processo


produtivo contemporâneo tornam-se cada vez mais socializados, enquanto
contraditoriamente, o resultado da riqueza gerada nesse processo, é cada vez
mais apropriado privadamente, ensejando níveis de acumulação e concentração
da riqueza sem precedentes na história da humanidade. Os chamados grandes
projetos (especialmente os transnacionais), alguns dos quais localizados na
Amazônia, são ilustrações visíveis dessa configuração. O que isso quer dizer?
Quer dizer que os megaempreendimentos, somente para se instalar,
ocupam hoje extensos territórios (alguns dos quais com devastação de ricos
nichos florestais e de biodiversidade), deslocam populações de seus habitats,
expulsam agricultores de suas terras, invadem territórios indígenas ou de outras
populações tradicionais, além do que suas bases logísticas e de infraestrutura
estendem-se planetariamente, com a construção de oleodutos ou minerodutos,
pontes, aeroportos particulares, grandes hidrelétricas, os quais atravessam
fronteiras municipais, estaduais e até internacionais. As unidades produtivas,
da forma como se encontram concentradas e centralizadas, têm sido as
maiores responsáveis por crimes ambientais e comprovadamente as mais
devastadoras do meio ambiente e da força de trabalho. O lucro gerado por tais
empreendimentos, entretanto, nunca esteve em tão poucas mãos. Diz-se, hoje,
que os ricos do planeta podem ser colocados em um auditório com capacidade
para 400 pessoas.

58
Pode-se dizer também que o processo produtivo afetou duramente a própria
situação do emprego e do trabalho formal, que nesta era da informática exige
de seus trabalhadores levarem trabalho para casa, varando as madrugadas no
computador, tornando extensiva, sem medida e sem controle, a apropriação do
valor-trabalho e a quantidade do valor-excedente apropriado, que já não se limita
às 08:00 horas da legislação. Conforme o estudo de Castel (1978), o trabalho foi
afetado: a) em seus vínculos (perda da estabilidade, terceirização), b) em sua
demanda (flutuante, intermitente, episódica), c) em sua qualificação (exige-se
cada vez maiores graus de formação e o desemprego atinge até os qualificados),
d) em sua versatilidade e polivalência (o empregado faz tudo – a especialização
já não é importante), e) em sua desnacionalização (o trabalhador transita para
todos os cantos do mundo à procura de trabalho), f) em sua forma remuneratória
(salários cada vez mais baixos). Riqueza e pobreza nunca se antagonizaram tanto
quanto agora. E, no entanto, o trabalho, com o avanço científico e tecnológico,
nunca foi tão produtivo, tão gerador da abundância da qual está apartado.
Para Castel (1978), a empresa, na era de ouro, era uma máquina de integrar,
agora é uma máquina de “vulnerabilizar e de excluir”, mesmo em suas formas
modernizadoras e aparentemente democráticas, como a da gestão participativa,
que exige mais do que expertise em determinada atividade, exige cultura geral e
política, dificultando a absorção, tanto de jovens como de idosos. Quanto mais
poderosa e competitiva uma empresa, mais seletiva ela é, afirma Castel.

4. Capitular ou vencer?

Muitos afirmam que a polaridade capital x trabalho, intrínseca à ordem


social capitalista, ruiu, porque ruíram ou enfraqueceram algumas experiências
socialistas, porque a indústria já não demanda tanto trabalho manual (dado à
automação), porque alguns segmentos de trabalhadores ocupam os grupos de
elite das fábricas e se integraram no universo do consumo. Ora, trata-se de um
autoengano muito conveniente, para os que não têm interesse na luta social e
buscam um pretexto para a alienação e acomodação. Foi bom Ana Elizabete
lembrar, nos debates do 14º CBAS, a célebre e recorrente afirmação marxiana:
“se a aparência revelasse a essência, não precisaríamos de ciência”.
Durante esse mesmo Congresso, foi ouvida a reclamação de uma
participante (assistente social? – não sabemos), de que os expositores só falavam
em luta, luta, luta. Não tive a oportunidade de perguntar à congressista quando ia

59
mudar para outro planeta, ou de profissão. Isto é apenas um fragmento de uma
conjuntura em que, se do ponto de vista objetivo o mundo clama por outra forma
social, do ponto de vista subjetivo a luta social nunca esteve tão fragmentada, tão
distanciada da teoria crítica, tão pobre de referências ético-políticas e de unidade
na diversidade. O grito da rebeldia nunca esteve tão despolitizado, tão faminto
de consciência de classe, tão capturado pelo embrutecimento, pela violência
ou pelo fundamentalismo, tão distante da determinação de que é possível, sim,
construir outra forma social.
Se, como os conservadores adoram dizer por aí, a polaridade socialismo x
capitalismo ruiu, a desigualdade social gerada na ordem social capitalista nunca
foi tão assustadora, constituindo-se o maior desafio de nosso tempo. E por isso
há, no interior das nações, a presença contemporânea de grandes embates
entre, de um lado, as demandas e pressões da acumulação capitalista em crise,
e de outro, as prioridades ontológicas do ser social, com suas necessidades
humanas de pão, terra, trabalho, saúde, educação, justiça, liberdade e igualdade.
Falar em desigualdade é assunto que a economia política do capital hoje
não quer fazer, não quer processar, não quer debater, não quer nem ouvir, porque
essa economia e alguns governos neoliberais, diante da crise, só pensam
em repassar as perdas atuais do poder econômico para toda a sociedade e
principalmente para os trabalhadores.
Mas os que atuam no exercício profissional e que optam em assumir
corajosamente compromissos ético-políticos exigem pôr esse assunto em pauta
permanente. E o querem por quê? Querem-no por 3 razões substantivas.

1) A primeira razão é que, face ao deslocamento das perdas do capital para


o trabalho, a pobreza é fenômeno que cresce no contexto da crise sistêmica,
o que nos permite afirmar que a própria pobreza extrema hoje é massiva.
Cresce em sua dimensão estrutural e não conjuntural. Cresce e altera-se em
seu formato, em seu conteúdo, em sua quantidade e qualidade, assumindo
formas impensáveis no passado. Hoje é muito mais ampla e diversificada que
a do século XIX, porque os despossuídos de agora enfrentam a penúria num
contexto de abundância e querem “empoderar-se” para participar dela. Não
empoderar-se da forma romântica, como quer o pós-modernismo, com alguns
cursinhos de autoestima: não. Alguns pobres, hoje, empoderam-se com um
revólver colt mk4 nas mãos, ou com uma metralhadora AR-15 que roubam
do exército. Os pobres não querem mais a informalidade periférica nem a

60
mendicância. Ao lado de um grande contingente que sofre passivamente os
danos sociais e lutam pela vida tentando não sucumbir aos subterrâneos
da ilegalidade, há outros que buscam, sim, formas infracionais de consumo
e até de poder, algumas marcadas pela violência, a exemplo do comércio
das drogas, do contrabando, do tráfico de pessoas, do mercado dos seres
humanos, da exploração sexual adulta e infantil.
Claro, a violência é um corolário da perda de direitos. A violência é
subjacente a esse quadro, confirmando o que profetizou Rosa Luxemburgo em
1914, em seu trabalho intitulado “A crise da social-democracia”, publicado pela
primeira vez em 1915. Rosa deu o primeiro sinal de alarme, ao proferir a palavra
de ordem: ¨socialismo ou barbárie”, anunciando que não se deveria esperar o
amadurecimento do capitalismo para combatê-lo, porque esse amadurecimento
e velhice seriam portadores de perigo. Noventa anos depois, Meszáros invocaria
a palavra de ordem de Rosa Luxemburgo de outra maneira. Ele passa a dizer:
“Barbárie, se tivermos sorte, porque a ameaça de hoje é a destruição”. Se estamos
na barbárie, precisamos saber que pode haver coisa pior, se não detivermos
essa escalada de irracionalismo.
Por tudo isso é que temos, convivendo com o grande estoque de riqueza, 1/6
da humanidade passando fome, dos quais 852 milhões com fome crônica (BRAZ:
2012)3. No Brasil, a violência manifesta-se pela degradação da vida das classes
subalternas. Manifesta-se pela mútua destruição dos oprimidos. Vemos todos os
dias na mídia: policiais pobres matando bandidos pobres e vice-versa, pobres
gangues de jovens contra gangues de jovens pobres. Pessoas que se destroem
e nos destroem nas ruas, nos assaltos, nos sequestros, nos atos desesperados
que assaltam a razão, num falso antagonismo produto da alienação e falta de
organização dos oprimidos, rebaixando e degradando o conflito e deslocando
o alvo da luta de classes. Quando a subjetividade do trabalhador explorado
não é politizada e educada, ela sucumbe ao embrutecimento, à crueldade e à
iniquidade.
2) A segunda razão em pautar a desigualdade social como tema candente
é que o universo de abundância precisa ser socializado e não distribuído
(distribuição é o que fez um rico candidato de direita em Belém, que distribuiu
cestas básicas para ganhar a eleição para a Prefeitura – e ganhou).
Os críticos da economia política já constataram que a escassez não é mais

3. Revista Serviço Social e Sociedade número 111 (2012), apoiando-se em dados da FAO
(Fundo para Agricultura e Alimentação – ONU).

61
uma categoria do mundo da produção. O avanço das forças produtivas (onde
se inclui a tecnologia) e consequentemente da produtividade social do trabalho,
cria hoje, em quantidade e qualidade, maravilhas no campo do consumo, das
artes, da ciência e da técnica. Cria até em excesso, ameaçando os recursos
da natureza. Os shoppings e supermercados, com suas prateleiras e vitrines
abarrotadas de mercadorias, são só uma pequena amostra do incomensurável
estoque de riqueza gerado pelo trabalho morto e produzido pelo trabalho vivo,
mas que está egoisticamente em poucas mãos.
3) A terceira razão para enfrentar a desigualdade como desafio de nosso
tempo é o avanço da consciência da humanidade no campo dos direitos e da
ética, com inéditas exigências e desafios ao processo democrático republicano ou
ao próprio ideário socialista, que precisa de atualização. Hoje, são proclamados
direitos de primeira, de segunda, de terceira gerações, incluindo novos direitos,
como os direitos étnicos, os de gênero, de idade, os direitos de orientação
sexual. E os setores mais avançados da Ciência do Direito já discutem uma
quarta e uma quinta geração de direitos, num plano mais coletivo (como o direito
à autodeterminação dos povos e o direito à paz), proclamando o rompimento
com a individuação do direito burguês, que também assegura a propriedade
privada dos meios de produção. Na Amazônia, a propriedade da terra tem o
tamanho de um país para um só indivíduo, geralmente violento e reacionário, que
paga milícias particulares para expropriar pela força, para assassinar, intimidar
e calar. É o mesmo que explora o trabalho escravo e o trabalho infantil. São eles
que poluem a água, contaminam o ar, derrubam a floresta, sem se importar se
tudo isso é sagrado nas tradições do povo amazônico.
Nesta terceira razão, há também o reconhecimento de que a busca da
igualdade (na diversidade) e da felicidade, estão no centro dos melhores
sistemas filosóficos da história humana (BARROSO: 2009), desde Aristóteles,
passando pelo iluminismo, pelo marxismo, pelos filósofos de Frankfurt, e tudo
isto pode ser alcançado, se colocarmos no centro de nossa luta o combate à
desigualdade social de nosso tempo. Por tudo isso, há que resgatar a luta na
direção de uma democracia pluralista de massas (com hegemonia).

5. Conclusão
Encerramos este tópico comungando com as formulações que insistem
em demonstrar a necessidade do aprofundamento da democracia política no
Brasil, no sentido da articulação dos vários sujeitos políticos coletivos de base,

62
que se encontram dispersos, na perspectiva da formação de um grande bloco
democrático e popular. Estratégias contemporâneas já existem para assegurar
o respeito à autonomia e à diversidade dos sujeitos políticos, que em nada
impedem ou atrapalham uma unidade necessária a ser construída como “força
política”.
O Serviço Social brasileiro, não obstante todos os enfrentamentos do
período de arbítrio, já tem no Brasil uma tradição de organização que supera
a de outras categorias de mais longa existência e tradição. Os saltos obtidos
no mundo acadêmico e do trabalho ancoram-se em seu crescimento na
apropriação da teoria crítica da história. Nossas entidades caminham cada vez
mais articuladas, agregando forças políticas para o enfrentamento coletivo, não
só de suas questões particulares, mas, sobretudo, na luta dos trabalhadores
para elevar a um nível superior a democracia, em todas as suas dimensões:
política, econômica e cultural.

Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista
Forense, v. 371, 2004.
BRASIL. Código de Ética do/a Assistente Social. Lei 8.662/93 de regulamentação
da profissão. 10ª ed. rev. e atual. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2012.
BRAZ, M. Capitalismo, crise e lutas de classes contemporâneas. Questões e Polêmicas.
In: Questão Social: expressões contemporâneas. Revista Serviço Social e Sociedade nº
111. São Paulo: Cortez, 2012, pp. 468 - 493.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social – uma crônica do salário. Rio de
Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1998.
COUTINHO, C. N. A democracia como valor universal. São Paulo: Salamandra, 1984.
GAZZANEO, L. M. Prefácio à obra: Mais democracia mais socialismo. Rio de Janeiro:
Revan, 1987.
GRAMSCI, Antonio Obras escolhidas. Tradução de Manuel Cruz. São Paulo: Martins
Fontes, 1978.
GORBACHIOV, Mikhail. Mais democracia mais socialismo. Rio de Janeiro: Revan,
1987.
LUXEMBURGO, Rosa. A crise da social democracia. Portugal, Editora Presença, 1974.
MESZÁROS, I. O Século XXI. Socialismo ou barbárie. São Paulo: Boitempo, 2003.

63
PRINCÍPIO 5

A equidade e justiça social podem ser


alcançadas no capitalismo?
Ivanete Boschetti1

Constitui instigante desafio responder à demanda do CRESS/RJ para refletir


em algumas páginas sobre um dos princípios do Código de Ética dos/as Assistentes
Sociais, aquele que expressa o “posicionamento em defesa da equidade e da
justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços
relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática”.
Em outras ocasiões já desenvolvemos análise sobre a relação entre os direitos e o
Projeto Ético Político Profissional2, de forma que não há como deixar de retomar a
essência do que creditamos ser um dos maiores desafios dos assistentes sociais
brasileiros: atuar no espaço contraditório da luta por (e concretização de) direitos e
políticas sociais universais em uma sociedade profundamente desigual, assentada
em relações sociais e econômicas que reiteram a barbárie, a violência, a exploração
e opressões de gênero, etnia e orientação sexual.
A questão que intitula o texto indica o caminho que pretendo percorrer:
problematizar se este importante princípio do Código de Ética pode ser materializado
na sociedade capitalista. Trata-se de opção delicada e espinhosa, pois poderia
ser compreendida como uma negação dos valores e princípios que estruturam
nosso Projeto Ético Político Profissional. Esta não é, contudo, a perspectiva desta
análise. Ao contrário, o intento é precisar e reforçar o sentido deste princípio no

1. Assistente Social. Docente do Departamento de Serviço Social e Programa de Pós-


graduação em Política Social da UnB. Doutora e pós-doutora em sociologia pela EHESS/
Paris. Foi vice-presidente do CFESS na gestão 2005-2008 e presidente na gestão 2008-2011.
2. Ver, especialmente, os artigos “Seguridade Social e Projeto Ético-Político do Serviço Social:
Que Direitos para Qual Cidadania?”, publicado na Revista Serviço Social e Sociedade em
2004; e “Trabalho, Direitos e Projeto Ético Político Profissional”, publicado na Revista Inscrita,
em 2009.

64
conjunto dos valores do Projeto Ético Político Profissional, nos termos discutidos
por Netto (1999). Em ambiente de mistificação de aportes teóricos conservadores,
que assumem aparência de “modernos” e “contemporâneos”, e são considerados
capazes de assegurar a “emancipação humana”, mais do que nunca se faz urgente
e necessário precisar o sentido de equidade, justiça social e universalidade que
balizam nossas reflexões.

Equidade e justiça social: nem Rawls, nem Marshall

O princípio do Código de Ética dos/as Assistentes Sociais proclama


um posicionamento e defesa da equidade e da justiça social que assegure a
universalidade e a democratização das políticas sociais. Cabe então perguntar:
qual é a concepção de equidade e justiça social que tem essa capacidade? De
pronto, cabe enfatizar que não é a perspectiva de justiça social de John Rawls
(1981), situada nos marcos da democracia liberal burguesa, para quem a justiça
social no capitalismo é possível, desde que bens e serviços sociais sejam
canalizados para a superação das “diferenças” e “desvantagens” sociais.
Dois pilares sustentam a teoria de justiça de Rawls: a liberdade igual e a
diferença. O primeiro defende que a sociedade deve garantir igual sistema de
liberdades e direitos, para assegurar a igualdade de oportunidades. O segundo
reconhece que as desigualdades econômicas na distribuição de renda e riqueza
podem ser aceitas caso beneficiem os menos favorecidos (RAWLS, 1981, p. 67).
A perspectiva de justiça social rawlsiana não é, portanto, incompatível com a
desigualdade social. Ao contrário, nesta perspectiva, a diferença é tratada como
sinônimo de desigualdade, e resulta do tratamento diferenciado atribuído aos
membros de uma mesma sociedade. Assim, para o autor, a justiça social pode
ser alcançada no capitalismo se as diferenças individuais não forem impeditivas
do acesso às mesmas oportunidades para todos. Por isso, a justiça rawlsiana não
propõe a universalidade ou igualdade de condições e sim a resolução dos conflitos
sociais e superação das diferenças e desvantagens individuais por meio da
distribuição de bens sociais entre as pessoas. A justiça social em Rawls, portanto,
se limita à justiça distributiva individual e propõe a instituição de um “sistema
equitativo de cooperação” estabelecido em um “contrato social hipotético” e não
um sistema igualitário e universal de direitos.
Estes pilares configuram a ideia da justiça como equidade, sendo que esta
não preconiza a divisão igualitária e totalizadora dos bens e riquezas socialmente

65
produzidas. A equidade rawlsiana é tão somente a tentativa institucional de
equalizar os interesses discrepantes da sociedade de forma equânime, ou seja,
que possa ser vantajosa para todos:

Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar
princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça
são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo. [...] A essa maneira
de considerar os princípios da justiça eu chamarei de justiça como equidade
(RAWLS, 1981, p. 33).

A incorporação acrítica desta abordagem é farto alimento para quem, por


ingenuidade ou intencionalidade, sustenta ser possível alcançar a justiça social
individualmente, nos marcos das relações burguesas, a partir do acesso a
bens e serviços públicos, que reduza as diferenças e “desvantagens sociais”.
Os pressupostos para uma sociedade justa, nos termos rawlsianos, não são a
socialização da riqueza social apropriada privadamente. Seus pressupostos são,
por um lado, a garantia da igualdade de oportunidades a todos individualmente em
condições de plena equidade, e por outro lado, a garantia que os bens e serviços
sociais devem ser repassados preferencialmente aos “menos privilegiados da
sociedade”, ou, em termos bem contemporâneos, os “socialmente desfavorecidos”.
Evidentemente, o que propõe Rawls é a focalização dos bens e serviços para os
considerados “desvalidos”. Sua perspectiva de justiça social e equidade é, portanto,
absolutamente contraditória com a universalidade. Ao contrário, fortalece as
proposições de políticas sociais seletivas e focalizadas. A equidade como igualdade
de oportunidade, alcançada pela focalização das políticas sociais, sustenta as
orientações do Banco Mundial para as políticas sociais na América Latina3. A
proposta “inovadora” de “universalismo básico”, apresentada pelo Banco Mundial
(MOLINA, 2005)4, tão em voga no debate atual sobre programas condicionados de
renda e na limitação da saúde, educação e previdência pública a planos ou pilares
básicos, é uma forte expressão dessa perspectiva de justiça social. A equidade

3. Muitos documentos do Banco Mundial defendem a equidade como igualdade de


oportunidade. Ver os Relatórios Anuais de Desenvolvimento. Para uma crítica contundente aos
princípios liberais da teoria de justiça em Rawls, Locke e Habermas, consultar Pereira, 2002.
4. Trata-se da mais nova recomendação para as políticas sociais para América Latina, que
devem assegurar benefícios (mínimos) no limite possível do orçamento público (MOLINA,
2005), e transferir para o mercado o acesso a bens « complementares ». De acordo com
Minteguiaga (2009) é extremamente paradoxal falar em « universalismo básico », pois é
impossível construir uma cidadania universal, por meio da seleção daquilo que é básico ou
essencial.

66
não é nada mais do que a igualdade de oportunidade assegurada pelo acesso de
cada um, individualmente, a bens e serviços básicos, de modo a não permitir que
ninguém fique em desvantagem para competir no mercado.
A essa abordagem restritiva de justiça e equidade social, se soma a perspectiva
marshalliana de cidadania, que a limita à conjugação dos direitos civis, políticos
e sociais. Além da análise etapista e evolutiva do surgimento e desenvolvimento
destes direitos, que os retira da história e do processo contraditório de luta coletiva
da classe trabalhadora por melhores condições de vida, a “teoria da cidadania” de
Marshall (1967) também considera que a cidadania é compatível com a acumulação
do capital. Essa perspectiva alimenta as propostas de direitos funcionais para o
estabelecimento de uma “igualdade mínima” e de bens e serviços focalizados para
garantir um mínimo de bem estar social. Tanto Marshall quanto Rawls, portanto,
limitam suas perspectivas de equidade, justiça social e cidadania aos marcos da
democracia burguesa, e não propõem a universalização dos direitos e das políticas
sociais.
Em minha compreensão, não são estas concepções de cidadania, direito,
equidade e justiça social que estão na base do princípio aqui analisado do Código
de Ética dos Assistentes Sociais. Defendo que este princípio só pode ser entendido
na confluência com os demais princípios, em especial o que se refere à “defesa do
aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da
riqueza socialmente produzida” e o que preconiza a “opção por um projeto profissional
vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-
exploração de classe, etnia e gênero”.

Direitos universais: mediação na luta pela emancipação humana

A inserção do Serviço Social, seja dos profissionais, seja de suas entidades


como ABEPSS, Conjunto CFESS/CRESS e ENESSO, nas lutas em defesa de
direitos e políticas sociais universais, desde o movimento à construção coletiva
e processual do Projeto Ético Político Profissional5, não se pauta somente na
defesa dos direitos para reduzir a desigualdade. Essa luta incessante, coletiva,
que se renova a cada geração, é uma luta cotidiana contra a “economia política

5. Ver o livro “30 Anos do Congresso da Virada” e os anais do “Seminário Nacional: 30 Anos
do Congresso da Virada”, ambos publicados pelo CFESS e disponíveis em http://www.cfess.
org.br/visualizar/livros Acesso em 13 de setembro de 2013.

67
da iniquidade” (OLIVEIRA, 2007:09). Significa dizer que é uma luta contra os
processos estruturais causadores da desigualdade econômica e social.
A luta por direitos, nos termos que a concebo, é uma mediação fundamental
na luta histórica pela emancipação humana, nos termos marxianos (MARX,
2010). E a emancipação humana só se concretizará com a superação da mais
elementar forma de exploração humana: a apropriação privada da riqueza
socialmente produzida.
Evidentemente, os direitos sociais, por mais universalidade que possam
alcançar, nos marcos da sociabilidade capitalista, não são (e não serão) capazes
de socializar a riqueza e romper com a lei do valor. Nesse sentido não asseguram
direta e automaticamente a emancipação humana e tampouco superam a
desigualdade social. Nesta sociabilidade, fundada na geração de mais valor sobre
a exploração da força de trabalho (FONTES, 2010), os direitos se inserem em
um processo complexo e contraditório de produção e reprodução das relações
econômicas e sociais sob a égide do capital e da mercantilização das relações
sociais (SANTOS, 2007). Constituem o processo de reprodução ampliada do
capital (MANDEL, 1982), mas também constituem espaço de organização e luta
da classe trabalhadora, e podem impor limites aos ganhos do capital (BEHRING
e BOSCHETTI, 2006). Ao refletir por que os socialistas devem defender as cotas
(programas de acesso diferenciado ao ensino superior), Arcary (2006, s.p)6
afirma que:
O programa socialista inscreveu na história a necessidade da luta contra a
propriedade privada para defender o direito à vida. O socialismo elevou o
direito ao trabalho, à moradia, educação, transporte, lazer, como a missão
fundamental da vida civilizada, e o sentido da vida pelo qual vale a pena lutar.
A universalização dos direitos sociais remete ao cerne do projeto socialista: a
luta pela liberdade humana, em que o trabalho deixe de ser um castigo para
os explorados, e passe a ser a plena realização do potencial criativo de busca
do conhecimento, beleza e solidariedade.

O sentido da defesa dos direitos, nos marcos da sociabilidade capitalista,


portanto, é o de lutar para universalizar o acesso a bens e serviços, para
redistribuir a riqueza socialmente produzida pela ampliação de acesso ao fundo
público, para fortalecer as lutas políticas a fim de consolidar a emancipação
política e democratizar os espaços públicos, para ampliar o acesso aos bens e
serviços e gritar contra as diferentes formas de discriminação e opressão. Não

6. Cf. Equidade e utilitarismo: por quê os socialistas defendem as cotas? Disponível em http://
www.pstu.org.br/node/11712 Acesso em 15 de setembro de 2013.

68
se trata de confundir a luta por direitos com a luta pela emancipação humana,
pois esta só será possível com a supressão da ordem burguesa e a instauração
da igualdade substantiva, a igualdade de condições. Mas também não se trata
de negar as lutas pela universalização do acesso aos bens e serviços públicos
como uma mediação importante para impor limites ao capital. A igualdade social
não se realiza nos marcos do capitalismo, porque a acumulação e desigualdade
são seu motor incessante, mas a luta pela universalização dos direitos integra
uma estratégia de transição necessária, ainda que insuficiente.
Isso exige compreender, analisar e situar os direitos numa perspectiva
de totalidade, identificar suas múltiplas determinações, bem como reconhecer
suas contradições no espaço de construção da sociabilidade humana. Se a
luta e conquista de direitos do trabalho é capaz de impor limites aos ganhos
do capital (MARX, 1987), sua possibilidade de realização é determinada pelas
lutas sociais pela emancipação humana. Negar a luta por direitos ou se opor
a ela por que não é capaz de estabelecer a igualdade substantiva me parece
negar o sentido contraditório intrínseco a todos os processos sociais e ignorar
a condição de exploração e opressão da classe trabalhadora, porque “num
mundo de desigualdade, toda violação de direitos é uma violência”, como afirma
a campanha da gestão do CFESS (2011-2014)7.
É com essa perspectiva que interpreto o princípio de equidade e justiça social
preconizado no Código de Ética do/a Assistente Social. Como o compromisso
com a igualdade substantiva, aquela que se realiza com a socialização da
riqueza, aquela que se move pautada no projeto de construção de uma
sociedade emancipada das relações capitalistas. Nestes termos, obviamente,
esta concepção de igualdade não se realiza na sociabilidade capitalista. Ainda
que os marxistas lutem pela equidade em uma perspectiva crítica, diferente
da equidade focalista rawlsiana, seu projeto societário é a igualdade social. A
equidade, portanto, pode constituir um período de transição. Contudo, estas
reformas sociais, necessárias, mas insuficientes, tampouco vêm se realizando.
No ambiente contrarreformista brasileiro, em contexto de crise do capital, até
mesmo as conquistas sociais mais elementares estão sendo destruídas pelas
forças do capital, o que tensiona ainda mais o princípio aqui discutido e impõe
limites à já frágil possibilidade de universalização democrática das políticas e
direitos sociais.

7. Disponível em http://www.cfess.org.br/visualizar/campanhas/ Acesso em 14 de setembro


de 2013.

69
Tensões na luta por direitos e pela universalização
democrática das políticas sociais

O aceleramento das contrarreformas de matiz neoliberal que assolaram os


países capitalistas de norte a sul do globo desde a década de 1970 impôs um golpe
estrutural na perspectiva social democrata de welfare state europeu e abortou
qualquer possibilidade de sua instauração nos países de capitalismo periférico.
Está cada vez mais distante a possibilidade de universalização dos direitos e
políticas sociais. Em estudo recente (BOSCHETTI, 2012, p. 781) demonstramos as
tendências contemporâneas avassaladoras de privatização dos sistemas públicos
de saúde, educação, previdência e avanço de políticas de ativação do trabalho,
sobretudo por meio da ampliação de programas focalizados de assistência social.
Estas tendências, retomadas aqui sinteticamente, sinalizam as tensões
enfrentadas cotidianamente, apontam os desafios éticos e políticos dos/as
assistentes sociais e exigem posicionamentos cada vez mais contundentes em seu
âmbito de intervenção e nas lutas coletivas pela ampliação dos direitos e políticas
sociais. São tendências presentes em praticamente todos os países capitalistas:
endurecimento dos critérios de elegibilidade; focalização das prestações; redução
do nível das prestações, por meio de diferentes mecanismos: alteração dos
índices de reajuste das prestações em espécie, mudança no modo de cálculo das
aposentadorias (aumento no tempo da contribuição, estabelecimento de teto nos
valores), endurecimento dos critérios de estabelecimento dos graus de invalidez
para obter aposentadoria; aumento (ou introdução) de contrapartida exigida
dos beneficiários para acesso a alguns serviços antes inteiramente gratuitos;
desenvolvimento de serviços e seguros privados; introdução de métodos de
gestão do setor privado a fim de controlar o volume de despesas nos organismos
públicos; transferência de atividades públicas de proteção social para as famílias
e a sociedade civil; redução ou estabilização dos salários no poder público;
criação de agências não estatais ou transferência de serviços ao setor privado; e
desenvolvimento de políticas de ativação para prestações de seguro-desemprego
ou assistenciais.
Diante destas tendências, cada vez mais agudizadas em contexto de crise do
capital e de financeirização e apropriação do fundo público por interesses rentistas
(SALVADOR et al., 2012), as políticas sociais brasileiras vivem na berlinda, e estão
em franco retrocesso. Ao invés de caminharem no sentido de sua universalização,
seguem caminho inverso: processos privatizantes, sobretudo na saúde,

70
previdência e educação, e expansão de programas assistenciais de transferência
de renda condicionados que reduzem os índices de pobreza extrema, mas não
são capazes de reduzir a desigualdade social.
Nesse contexto, o posicionamento em defesa da igualdade substantiva,
que balize as lutas pela universalização dos bens e serviços públicos, é, mais do
nunca, atual, necessário e constitui desafio cotidiano dos/as assistentes sociais.
Estes desafios nos exigem:
1) Desmistificar o mito da política econômica favorável ao trabalho: no Brasil,
predomina uma política econômica regressiva, pautada na financeirização do capital
e subordinada aos interesses do capital. As elevadas taxas de juros favorecem os
bancos privados; o aumento de impostos onera mais os trabalhadores de menor
salário e menos os empregadores; o compromisso com o pagamento estrondoso
dos juros da dívida pública produz incessantes cortes no orçamento público. A
política econômica, portanto, está subordinada aos interesses do capital.
2) Desmistificar o mito do Brasil sem miséria e sem desigualdade: apesar dos
festejados “resultados” de redução da pobreza, medidos pelo aumento de
rendimentos do trabalho e benefícios sociais, o Brasil continua sendo um dos mais
desiguais do mundo (84ª posição no mundo, entre 187 países, medido pelo IDH/
PNUD) e possui uma das piores concentrações de propriedade urbana e rural,
segundo o Censo Agropecuário.
3) Desmistificar o mito do desenvolvimentismo social: o Brasil não vive um período
de forte desenvolvimento econômico e social: os índices de crescimento do PIB
são pífios, o acesso à previdência social pública se restringe a menos da metade
da população economicamente ativa, a saúde pública atinge somente 60% da
população e vive uma insidiosa corrosão, apenas 11% de jovens entre 18 e
24 anos chegam ao ensino superior e um em cada quatro brasileiros sobrevive
somente com recursos oriundos do programa bolsa família. Assim, o mito do novo
desenvolvimentismo constitui um “véu de ignorância”, para utilizar um termo do
próprio Rawls, e atribui ao país uma condição de desenvolvimento econômico e
social que estamos longe de viver (CASTELO, 2012; GONÇALVES, 2012).
Certamente, o Brasil que desejamos e projetamos, e pelo qual lutamos,
não é o que festeja e se contenta com a pífia redução da pobreza e da miséria;
também não é o que favorece o sistema bancário e o grande capital, nem o
que privatiza serviços públicos essenciais, como educação, saúde, luz, água,
telefone, transporte; menos ainda é o que usurpa recursos do fundo público para
pagar dívidas ilegítimas e odiosas (CHESNAIS, 2012), que garante o consumo
e a reprodução do capital e obtém o consentimento pela assistencialização,
que possui um dos piores e mais lotados sistemas carcerários do mundo e que

71
convive cotidianamente com a violência e toda forma de preconceito.
O princípio de equidade e justiça social que universalize direitos e políticas
sociais democráticas não deve se contentar com esse Brasil que barbariza
cotidianamente a vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras, que
lhes nega o direito de trabalhar, de morar, de estudar, de se alimentar, de se
locomover com condições civilizadas. A luta pela universalização dos direitos
é possível, necessária e urgente. Mas é também insuficiente. A única forma
efetivamente democrática de assegurar universalmente a igualdade substantiva
é lutar incansavelmente, em todas as trincheiras, por uma sociedade em que a
emancipação humana seja um projeto realizado.

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73
PRINCÍPIO 6

Superando o politicamente correto:


notas sobre o sexto princípio fundamental
do Código de Ética do/a Assistente Social
Guilherme Almeida1

Costuma-se até dizer que não há cegueiras, mas cegos,


quando a experiência dos tempos não tem feito outras
coisas que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras.
José Saramago (1995:308)

Todo/a estudante de graduação em Serviço Social em algum momento da


sua formação se vê diante do Código de Ética do/a Assistente Social referendado
pela categoria em março de 1993. Esta é uma experiência tão marcante que
muitos/as deles/as quando escrevem suas monografias de conclusão de curso
fazem recorrentes alusões ao Código quando são instados a discutirem a relação
entre seus temas e a ética e, muitas vezes, como orientadores/as, nós somos
levados/as a adverti-los/as de que, apesar de fascinante, o Código não encerra
em si o imenso acúmulo de discussões sobre ética2 da profissão.
O fato é que eu também me lembro da emoção que senti quando conheci
o Código como estudante em meados dos anos de 1990. Sobretudo, quando li
seus princípios fundamentais e percebi o quanto eles eram a síntese do projeto
societário almejado pelos/as assistentes sociais mais críticos e comprometidos,

1. Professor Adjunto da Faculdade de Serviço Social (FSS/UERJ), pesquisador do campo


das relações de gênero e sexualidade e coordenador adjunto do LIDIS/UERJ (Laboratório
Integrado de Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos).
2. Compartilhamos aqui do entendimento de Simões de que “a ética, como expressão da
moral, passa a ser a consciência da moral, que toma a moral como seu objeto. Por meio
da ética os assistentes sociais têm a oportunidade de adquirir sua identidade espiritual-
profissional e de apreender o que é a sua unidade enquanto grupo particular, relativamente
à sociedade” (2000:69).

74
o quanto eram síntese do mundo em que gostaríamos de estar.
Ainda hoje me espanto diante do quanto a geração de assistentes sociais
que contribuiu para a formulação do Código de 1993 foi visionária para firmar
perspectivas que, vinte anos depois, permanecem tão ousadas quanto o eram
naquele momento.
Não tenho dúvida do quanto este produto histórico – o Código − foi
tributário das lutas sociais da sociedade brasileira dos anos de 1980 e 1990
por democratização e ampliação de direitos, bem como de que tal formulação
só se tornou possível por que a vanguarda dos/as assistentes sociais não se
restringia a assistir o desenrolar das lutas sociais, mas se percebia como um dos
protagonistas delas como trabalhadores/as, procurando situá-las, desta forma,
também na esfera mais próxima da atuação técnico-profissional.
Igualmente é indiscutível o quanto a luta intracategoria por hegemonia da
teoria social crítica para estabelecer-se como referencial na profissão tonou
possível o alargamento da compreensão acerca das relações sociais no Brasil e
dos significados da atuação profissional, reorientando a discussão do referencial
ético-político da categoria.
Meu papel neste artigo é focar em um dos princípios fundamentais do
Código de Ética, o sexto de onze princípios. Sua formulação compreende o:
“empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o
respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à
discussão das diferenças” (CFESS, 2012:23).
Vivemos hoje um contexto bastante contraditório da sociedade brasileira,
onde os limites da democracia burguesa estão expostos, o “permanente e
gradual desmonte da seguridade social” (BOSCHETTI, 2009:332), o mundo do
trabalho cada vez mais desfavorável ao acesso a direitos trabalhistas e o Estado
organiza o enfrentamento da “questão social”3 pela via da crescente militarização
combinada entre outros aspectos, a dispositivos de transferência de renda aos

3. Assinalo aqui a compreensão de Netto, para quem inexiste qualquer ‘nova questão social’.
O que devemos investigar, portanto, é a emergência de novas expressões da questão social.
O problema teórico é determinar concretamente a relação entre as expressões emergentes
e as modalidades imperantes de exploração. Para o autor, não se pode desconsiderar a
forma contemporânea da “lei geral de acumulação capitalista” nem a complexa totalidade
dos sistemas de mediações em que ela se realiza, bem como as particularidades culturais,
geopolíticas e nacionais que requerem determinação concreta; contudo, o desafio teórico
envolve ainda a pesquisa das diferencialidades histórico-culturais (que entrelaçam elementos
de relações de classe, geracionais, de gênero e etnia constituídos em formações sociais
específicas) (2001:48).

75
mais pobres que não alteram com radicalidade a desigualdade econômica entre
as classes sociais, desigualdade que nos manteve historicamente entre os
países do topo da desigualdade econômica mundial4.
Por outro lado, as lutas sociais de dimensão nacional, desencadeadas
principalmente a partir de junho deste ano, pelo Movimento Passe Livre
(MPL), mostraram o que grande parte da literatura das Ciências Sociais sobre
movimentos sociais (cf. GOHN, 1999; CHAUÍ, 1986) já havia demonstrado: que
eles estão vivos, são intensos e plenos de contradições, ainda que mais ou
menos visíveis de acordo com a conjuntura e conjunto de reivindicações que os
caracteriza.
Muitas das lutas sociais históricas da sociedade brasileira estiveram
relacionadas à desigualdade econômica e outras tantas sempre denunciaram
ao longo de nossa história também formas de expressão da “questão social”
de forte influência cultural. É o caso das históricas lutas contra o racismo
protagonizadas por mulheres e homens negros/as e indígenas5 desde o período
colonial. É o caso das lutas contra o sexismo protagonizadas pelo movimento
feminista, pelo movimento de mulheres e, mais recentemente, inclusive por
homens que se sentem também limitados pelo binarismo de gênero6. Lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais diretamente afetados pela homofobia
e pelo sexismo também protagonizaram historicamente no Brasil formas de
resistência individuais (que remontam também ao período colonial7) e coletivas
que podem ser encontradas ainda nas primeiras décadas do século XX, mas que
ganharam maior expressão pública a partir do final da década de 1970, com o
que ficou então conhecido como MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) e
que hoje é conhecido como movimento LGBT.
Crianças, adolescentes, idosos/as e alguns de seus/suas cuidadores/as
também vêm protagonizando resistências históricas contra os limites de uma
sociedade que é adultocêntrica e, por isso, tende a restringir direitos e autonomia
dos/as que são considerados/as jovens demais ou velhos/as demais para serem
ouvidos/as. Pessoas com necessidades especiais físicas e mentais e/ou com
doenças crônicas também vêm denunciando a indiferença de uma sociedade

4. Recente matéria on line da Folha de São Paulo transcrevia a fala de Maria Lúcia Vieira,
gerente do IBGE, sobre a “estabilidade da desigualdade” no Brasil a partir do índice de Gini
no país (Folha de São Paulo, 2013).
5. Para citar os grupos racial e etnicamente mais frequentemente discriminados no Brasil.
6. Para maiores informações, cf. Bento, 2008.
7. Para maiores informações, cf. Trevisan, 2002.

76
que tende a ver suas necessidades como déficit irreversível e que não credita
importância a suas potencialidades e habilidades.
No atual contexto brasileiro, a ameaça à laicidade do Estado (que nunca
de fato se completou no Brasil republicano) é muito expressiva. É importante
ir além das aparências e identificar que muitos parlamentares que compõem
a chamada Frente Parlamentar Evangélica (ou outras frentes parlamentares,
confessionais ou não, mas igualmente dogmáticas que atuam tanto no Poder
Legislativo Federal quanto nas suas expressões estaduais e municipais por todo
o país) têm sido aguerridos na supressão de direitos sexuais, do direito à livre
expressão de gênero e contrários à redução das desigualdades entre homens e
mulheres. Tais parlamentares muitas vezes representam, ou mesmo compõem
diretamente, os quadros do grande capital nacional e internacional, administrando
e/ou defendendo conglomerados econômicos, segmentos de mercado altamente
rentáveis, constituídos por empresas como: construtoras, ligadas ao agronegócio,
redes de TV, rádio e jornais, editoras, gravadoras e até bancos8.
Neste sentido, entendo que a demonização de setores da classe trabalhadora
em razão de sua sexualidade, pertencimento ou expressão de gênero, por
exemplo, constitui também um importante e altamente lucrativo dispositivo
ideológico por legitimar um projeto societário onde a liberdade e a diversidade
humanas são cambiadas pelos privilégios de uma idealizada teocracia cristã
afinada com as desigualdades históricas da sociabilidade capitalista.
Com seu trabalho político no Legislativo e sua influência em parte do Poder
Executivo e Judiciário, tais grupos conservadores reforçam as bases de um projeto
de sociedade que afeta diretamente vários grupos socialmente discriminados. Um
exemplo óbvio disso são as já frequentes invasões/depredações de templos das
religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, acompanhadas ou
não de agressões a seus sacerdotes e frequentadores (noticiadas pela imprensa
de vários lugares do país) por grupos de pessoas influenciadas pelo dogmatismo
religioso9.
As lutas de grupos socialmente discriminados que destacamos e outras
tantas nos apontam a concretude tanto dos grupos socialmente discriminados
e as discriminações que se nutrem das supostas diferenças. Mas podemos
nos perguntar: diferença do quê? Destacada uma pequena minoria da

8. Cf. o caso do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e de sua esposa, que
adquiriram recentemente 49% das ações do Banco Renner (Revista Exame on line, 2013).
9. Cf., por exemplo, matéria jornalística do Portal G1 da Rede Globo que descreve situação
como esta num Centro de Umbanda no bairro do Catete, zona sul do Rio de Janeiro (RJ).

77
sociedade brasileira que pode ser considerada rica, branca, masculina, adulta,
heterossexual, cisgênero10 e sem necessidades especiais ou doenças crônicas,
o que sobra é quase toda a sociedade brasileira.
Esta pequena minoria constitui ideologicamente o ideário do indivíduo bem
sucedido e dá significado ao que temos chamado de “diferenças”. A julgar pelo
que de fato nossa sociedade constitui, “diferentes” são os que compõem essa
pequena minoria. Não quero com isso ignorar as defasagens econômicas e de
acesso a direitos vividas em alguma medida por todos/as que não correspondem
a esse ideário, apenas chamar a atenção para o fato de que reconhecer o
racismo, o sexismo, a homofobia11 e todas as outras formas de discriminação,
não é reconhecer o direito a reparações sofridas por “minorias”, é lutar pela
melhoria das condições de vida de quem de fato constitui a grande maioria
da nossa população. Se participamos dessa luta reivindicando as chamadas
políticas sociais universalistas ou através de políticas de reconhecimento ou de
ação afirmativa, ou ainda, da combinação de ambas, é uma discussão que foge
ao escopo deste artigo desenvolver12.
É fato, entretanto, que precisamos enfrentar algo que em diferentes medidas
e situações pode afetar cada um destes grupos, o estigma13 e a discriminação.
Estes estão presentes – quer estejamos atentos/as a eles ou não − no cotidiano
das instituições onde as políticas sociais são implementadas: nos postos de
saúde, nos hospitais, nos centros de atendimento social dos municípios, nos
abrigos, nos asilos, nos conselhos tutelares, nas diferentes instâncias da justiça,
nas delegacias, nos presídios e penitenciárias, nas instituições de cumprimento
de medidas socioeducativas para adolescentes, nas escolas, nas universidades,
nas empresas públicas e privadas, nas ONGs e nas instituições filantrópicas.
As práticas que contribuem para a discriminação são protagonizadas por
usuários/as, familiares, profissionais e gestores/as e não são de modo algum
resultantes da perversidade individual. São construções sociais, são ideologias
10. Para Maranhão Filho (2013), “cisgênero é quem se apresenta em conformidade com a
maioria das expectativas sociais relativas ‘ao que é ser homem ou mulher’, ou de acordo com
os dispositivos de gênero que lhe foram atribuídos na gestação e/ou nascimento. Sujeitos
cisgêneros, assim como transgêneros, podem ter distintas orientações sexuais, como gays,
lésbicas, heterossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuais”.
11. Conforme Bento, “as reiterações que produzem os gêneros e a heterossexualidade
são marcadas por um terrorismo contínuo. Há um heteroterrorismo a cada enunciado que
incentiva ou inibe comportamentos, a cada insulto ou piada homofóbica” (2008:32).
12. Para uma discussão apurada deste tema cf. Fraser (2012).
13. Para uma interessante discussão acerca de como a estigmatização pode afetar a saúde,
cf. Bastos (2011:79).

78
e, como tais, passíveis de serem desconstruídas através da mediação do
trabalho político e educativo na dimensão individual e coletiva. Um front dessas
lutas de extrema relevância para os/as assistentes sociais, portanto, é a busca
da transformação das culturas institucionais nas quais as discriminações
se tornam possíveis e são toleradas. Isto exige sensibilização, informação e
treinamento para novas atitudes. Tal trabalho não elimina os preconceitos, mas
pode contribuir para a ampliação de direitos e para pôr em questionamento os
processos de invisibilização14.
A invisibilização, ademais, constitui uma das expressões mais perversas
do preconceito. Ela atua tanto através de dispositivos que não permitem o
reconhecimento da existência de práticas discriminatórias, como o silêncio, a
dissuasão dos/as que desejam denunciar, a rejeição do debate, quanto através
da invisibilização da existência material dos próprios sujeitos. Como exemplo,
destacaria a dificuldade que muitos/as profissionais de diferentes áreas
encontram para registrar em seus prontuários ou estudos sociais o pertencimento
étnico-racial dos sujeitos que descrevem. Este é um dispositivo que invisibiliza
que grande parte “dos usuários” dos benefícios e serviços assistenciais, por
exemplo, sejam reconhecidos, como de fato são, na maioria dos contextos do
Rio de Janeiro: mulheres pardas e pretas.
Estes mecanismos também nos impedem de identificar a existência
de lésbicas, gays e bissexuais entre os/as integrantes das famílias que
acompanhamos (desconsiderando suas possíveis dificuldades) e, ainda,
favorecem que tomemos como “natural” o fato de que algumas travestis que
vivem em situação socioeconômica extremamente precária, por exemplo, não
sejam usuárias do SUAS.
Visibilizar não é vitimizar, é permitir que se estabeleçam espaços de debate
sobre as formas sutis (ou não) pelas quais as discriminações se estabelecem
e se perpetuam, socializando informações, discutindo direitos, estimulando
a participação política pela exposição de meios concretos pelos quais esta
participação se torna viável15. A vitimização em si, ou seja, a tomada destes ou

14. Utilizo o termo “invisibilização” e não “invisibilidade”, em referência e deferência à


discussão feita por Jurema Werneck no Seminário Feminilidades, realizado no LIDIS/UERJ,
em 2012. Para ela, o que ocorreu historicamente com grupos como as mulheres negras não
foi “invisibilidade”, porque elas sempre existiram e resistiram, foi invisibibilização, apagamento
de seus feitos como forma de aniquilamento.
15. Para a discussão do conceito de participação, cf. Bordenave. Para tal autor, participação
social é “o processo mediante o qual as diversas camadas sociais têm parte na produção,
na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada” (1995:24).

79
de outros indivíduos como receptores passivos de uma ordem social injusta
e acachapante, perpetua leituras de inspiração althusseriana que felizmente
vêm sendo superadas pela profissão ao longo de sua história e que identificam
os aparelhos ideológicos do Estado como obstáculos instransponíveis, não
vislumbrando qualquer espaço de construção de contra hegemonia, esta última
perspectiva, uma preciosa contribuição gramsciana (cf. GRAMSCI, 1978). A
vitimização é estéril, é mãe apenas de discursos tão potentes quanto bolhas de
sabão e, além disto, ela destitui os protagonistas de respeitáveis lutas individuais
e/ou coletivas, de sua maior contribuição para o gênero humano, sua vívida
capacidade de resistência16.
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e os Conselhos Regionais
de Serviço Social (CRESS) de todo o país têm buscado dar capilaridade e
disseminar tais discussões para o conjunto da categoria. Constituem, de forma
inequívoca, expressões de uma postura ético-política que mantém o Serviço
Social como vanguarda com relação ao sexto princípio do Código e aos demais,
algumas posturas do CFESS, para citar alguns exemplos:
• as Resoluções do CFESS (489/2006 e 615/2011) vetam atitudes
discriminatórias por orientação sexual e identidade de gênero e, inclusive,
reconhecem o mesmo direito aos profissionais que compõem a categoria;
• a Campanha O Amor Fala Todas as Línguas, que tanto efeito teve inclusive
como pedagogia visual, porque chegou aos mais diversos lugares do
país, a despeito das resistências que suscitou em muitos profissionais e
em seus empregadores;
• o fortalecimento de espaços para as discussões do preconceito e da diver-
sidade nos grandes fóruns da categoria, como os CBAS e os ENPESS;
• a campanha No mundo de desigualdade, toda violação de direitos é
violência, de dezembro de 2012, que, entre outros temas, abordou a
questão do racismo;
• a Resolução do CFESS nº 627/2012, que veda ao CFESS e aos CRESS
o uso de qualquer símbolo, imagem ou escritos religiosos em suas
dependências;
• a Resolução do CFESS nº 594/2011, que introduz aperfeiçoamentos
formais, gramaticais e conceituais em seu texto, garantindo uma
linguagem de gênero não sexista.

16. Cf. a discussão de Chauí (1986) sobre como as práticas de confirmo e de resistência
convivem na cultura popular brasileira.

80
Penso que estas posturas devam ser mantidas e ampliadas, mas também
penso que elas não cumprem o papel – nem poderiam – de dar capilaridade e
a radicalidade necessária a tais discussões no âmbito da atuação técnico-
profissional, da formação profissional e da produção acadêmica em Serviço Social.
Especialmente a formação profissional precisa se constituir cada vez mais
como um campo de incidência daqueles/as que na profissão se interessam por
estes debates. Ainda há limitações curriculares na maior parte das Instituições
de Ensino Superior (IES) à discussão de temas como os abordados ao longo
deste texto, pois, em geral, nos cursos de graduação eles tendem a ficar
restritos a disciplinas como “Ética Profissional”, onde são tratados em geral
superficialmente (visto que é uma disciplina obrigatória com uma ementa vasta);
como “Movimentos Sociais”, onde são tratados em geral em trabalhos empíricos
relacionados a expressões dos movimentos sociais, mas sem muita profundidade
com relação à bibliografia, entre outras limitações. Tais temas também tendem a
ser tratados em disciplinas eletivas e/ou cursos de extensão e eventos técnico-
científicos pontuais. Os limites destas últimas possibilidades de discussão dos
temas estão no fato de que disciplinas eletivas são circunscritas pelos limites do
currículo pleno de cada curso e por condições objetivas como disponibilidade
docente e interesse prévio dos/as alunos/as. Os cursos de extensão podem
ter maior incidência, mas, assim como os eventos técnico-científicos pontuais,
incorrem na irregularidade da oferta. Desta forma, muitas vezes nos deparamos
com alunos/as sensibilizados para a importância de discussão dessas supostas
“diferenças” em suas monografias, dissertações ou teses, mas que desistem por
encontrarem poucos espaços de debate sobre elas na profissão e mesmo pouco
estímulo ao desenvolvimento desses temas em muitas IES. Isso, por vezes, se
reflete na recusa da orientação por docentes, entre outros limites.
As dificuldades da construção de uma formação profissional que permita
o maior florescimento de discussões eticamente ligadas ao “empenho na
eliminação de todas as formas de preconceito...” estão diretamente associadas
à fragilidade da produção acadêmica de Serviço Social sobre vários dos temas
associados ao sexto princípio.
Tive oportunidade de atuar como um dos coordenadores do Grupo Temático de
Pesquisa (GTP) 6, da Associação Brasileira de Ensino e Pós-Graduação em Serviço
Social (ABEPSS). Conforme a própria ABEPSS, os GTP’s são tomados como:
um espaço dinâmico, estimulante e efetivo de e laboração, produção e
circulação do conhecimento. Organizando-se em torno de pesquisadores da

81
área de Serviço Social e afins, os Grupos Temáticos de Pesquisa congregam
pesquisadores para tratarem de temas de relevância social, constituindo-se
em núcleos capazes de disseminar informações sobre temáticas específicas,
promover debates fecundos17.

Contribuí também para a construção do GTP “Serviço Social, Relações


de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Geração, Sexualidades”,
atuando na ênfase em sexualidade durante o biênio 2010/2012. Atuei ainda
como parecerista nos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS) de
2001, 2004 e 2010 e, por vezes, em alguns deles, também como coordenador do
GT que reunia a produção sobre gênero, raça/etnia, sexualidade, entre outras
discussões pertinentes ao tema deste artigo. Estas foram experiências muito
enriquecedoras e que me permitiram um ângulo de visão daquela produção.
Posso compartilhar, de maneira sintética neste artigo, que pude observar
que há uma crescente reivindicação por parte de assistentes sociais de que
tais temas sejam mais presentes nos espaços profissionais. Nesta direção,
foi comemorada a realização no XIII CBAS, de 2010, da plenária simultânea
“Marxismo, feminismo e Serviço Social”, desenvolvida pelas professoras
Telma Gurgel (UERN) e Marlene Teixeira (UnB), que constituiu o lugar de maior
visibilidade até então alcançado pela temática das relações de gênero no maior
e mais diversificado fórum da categoria. No mais recente CBAS, o XIV, realizado
há pouquíssimo tempo em Águas de Lindóia (SP), tivemos pelo menos outras
duas plenárias simultâneas diretamente relacionadas a grupos socialmente
discriminados; a primeira foi “Política de drogas: consensos, dissensos e direitos
em debate – questões para o Serviço Social” e a segunda, “Diversidade sexual
e identidade de gênero: desafios para o Serviço Social”. As plenárias contaram
com a participação de assistentes sociais e outros profissionais que dedicam
sua atividade profissional a estes temas e tiveram uma expressiva frequência, a
exemplo da realizada em 2010.
Todavia, a experiência como parecerista me mostrou que os trabalhos
sobre gênero estavam ainda, majoritariamente focados na violência de
gênero e na reprodução biológica (exceção para o aborto, que é pouquíssimo
discutido18), aspectos que, embora importantes, constituem apenas uma fração

17. Informações obtidas a partir da página eletrônica: http://abepss.org.br/ensino/gtp/


documento-gtp/. Acesso em outubro de 2013.
18. É importante dizer que em setembro de 2010, o Conjunto CFESS-CRESS deliberou
pela defesa da legalização do aborto, numa outra atitude corajosa dirigida a um crescente
contingente de mulheres que são vistas pela sociedade em geral com preconceito, sofrem

82
da imensa variedade de questões que poderiam ser abordadas analiticamente
e subsidiar intervenções dos profissionais. Identifiquei também uma relação
de forte dependência entre posicionamento político e acadêmico sobre os
temas e “vivência pessoal”. Isto, em si, não constitui um problema do ponto
de vista metodológico e ético-político, mas pressupõe uma identificação com
os temas em moldes rígidos e a ausência de pluralidade entre os sujeitos que
conduzem tais discussões. É reduzida, assim, a presença de profissionais
discutindo tais temas sem que tenham obrigatoriamente a experiência pessoal
de pertencimento a um destes grupos socialmente discriminados, o que pode
sugerir que elas são “eletivas”, ao contrário de outras: posso olhar para
elas se eu quiser, ainda que sejam onipresentes no cotidiano profissional e
os grupos que enfocam sejam apontados pelo Código como um dos seus
princípios fundamentais.
Cabe ressaltar, ainda como uma limitação que observei naquela produção
teórica, a baixa presença de trabalhos que correlacionassem aspectos sociais
como classe social, raça/etnia, gênero, geração e sexualidade. O pressuposto
é que estes são domínios estanques ou sobrepostos e não correlacionados no
cotidiano dos indivíduos e grupos socialmente discriminados19.
Considero fundamental, para que nos aproximemos cada vez mais do
empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, que estejamos
atentos/as ao fato de que as supostas “diferenças” não estão num outro abstrato,
situado sempre do outro lado da mesa ou do microfone. Somos uma profissão
com um grande contingente de mulheres e conhecemos as razões históricas
para sermos um crescente contingente de mulheres que vêm dos estratos mais
empobrecidos da classe trabalhadora, onde estão também os/as negros/as,
índios/as, migrantes, moradores/as das periferias das grandes cidades, entre
outros grupos socialmente discriminados. Somos uma profissão, como outras,
generificada. Somos formados/as por uma maioria do gênero feminino, que é
também o gênero que tem menor remuneração, menor apropriação da riqueza,
menor participação nos lugares de comando, na política e maior participação
na pobreza e na violência de gênero em quase todo o mundo. É também por
estas características que somos formados/as com todas as experiências de

discriminações variadas, inclusive nas instituições de saúde, têm seu direito à autonomia
negado e que têm muitas vezes sido submetidas a prisões e a diferentes formas de maus
tratos. É importante distinguir que discriminação é o preconceito convertido em ato.
19. Para uma discussão destas relações, conferir autores que discutem interseccionalidade,
por exemplo, Moutinho (2004).

83
discriminação e privação de direitos humanos20 que tais inserções comportam e
com todo o potencial criador e de resistência, também.
Negar “nossas diferenças” não elimina a existência delas. Portanto, é preciso
olhar criticamente para o fato de que, embora nossas turmas de graduação
tanto em IES públicas quanto privadas comportem um grande contingente de
jovens pardas e negras, o número de pessoas com estas características declina
à medida em que voltamos nosso olhar aos cursos de pós-graduação stricto
sensu. O número também declina se olhamos para os espaços ocupacionais de
maior prestígio na profissão, como, por exemplo, a carreira docente, onde não
só o contingente de mulheres negras diminui drasticamente, como o de homens
socialmente brancos cresce visivelmente. Se recusamos, de fato, explicações
determinísticas de base psicológica e individualizante, precisamos recorrer às
Ciências Sociais para compreender tal fenômeno e cortar a própria carne de
nossas atitudes cotidianas.
Estes são alguns dos âmbitos nos quais precisamos focar atualmente para
que possa ocorrer no âmbito da categoria não só o enfrentamento da resistência
histórica à discussão contida no sexto princípio (o que vem sendo cada vez mais
feito por sujeitos individuais e coletivos), mas para que não caiamos na armadilha
do “politicamente correto”: aquela conduta que higieniza dos discursos os termos
e assuntos que possam originar conflitos, inclui nos discursos alguns termos
estratégicos que permitam evitar que o emissor seja visto como conservador e
que permite a este mesmo emissor seguir seu caminho habitual de pensamento
e ação, sem colocar de fato em discussão os temas. O politicamente correto é
superficial, cede a modismos e visa apenas atender aos requisitos cosméticos
de uma sociedade que valoriza cada vez mais os espetáculos, as encenações
políticas. É preciso superá-lo.

Referências
BENTO, Berenice. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que é participação. São Paulo, Brasiliense, 1995.

20. Trata-se de uma concepção de direitos humanos pautada no questionamento acerca da


(im)possibilidade de universalização de todos os direitos humanos sob o modo de produção
capitalista, bem como na crítica à concepção liberal que tende a naturalizar ou a difundir a
inevitabilidade de uma sucessão cronológica entre direitos civis, direitos políticos e direitos
sociais, a exemplo da proposta por Marshall em 1967. Para maiores detalhes, cf. Trindade
(2011:23).

84
BOSCHETTI, Ivanete. A política de seguridade social no Brasil. In: CONSELHO
FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL/ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA
EM SERVIÇO SOCIAL. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais.
Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de Ética do/a Assistente Social.
10ª Edição revista e atualizada. Brasília: CFESS, 2012.
FRASER, Nancy. Luta de classes ou respeito às diferenças? Igualdade, identidades e
justiça social. Le Monde Diplomatique Brasil, ano 5, n.49, jun.2012, p.34-35.
GOHN, Maria da Glória. Classes Sociais e Movimentos Sociais. In: Capacitação em
Serviço Social e Política Social: Reprodução Social, trabalho e Serviço Social (módulo
02). Brasília: CFESS, ABEPSS, CEAD, UnB, 1999.
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. ’Inclusão’ de travestis e
transexuais através do nome social e mudança de prenome: diálogos iniciais com
Karen Schwach e outras fontes. Disponível no endereço eletrônico: www.diversitas.fflch.
usp.br. Acesso em maio de 2013.
MOUTINHO, Laura. ‘Raça’, sexualidade e saúde: discutindo fronteiras e perspectivas.
Physis, v.14, n.2, 2004.
NETTO, José Paulo. Cinco notas a propósito da ‘questão social’. Temporalis n.3.
Brasília: ABEPSS, 2001.
SIMÕES, Carlos. A Ética das Profissões. In: BONETTI, Dilséa Adeodata et al. Serviço
Social e Ética: convite a uma nova práxis. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da
Colônia à atualidade. 5. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos: para além do capital. In:
FORTI, Valeria & BRITES, Cristina Maria (orgs.). Direitos humanos e Serviço Social:
polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

Matérias jornalísticas e sites consultados


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL – http://
abepss.org.br/ensino/gtp/documento-gtp/. Acesso em outubro de 2013.

85
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. “Conjunto CFESS-CRESS delibera pela
defesa da legalização do aborto”. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/
noticia/cod/471. Acesso em outubro de 2013.
“Edir Macedo compra 49% do Banco Renner”. Disponível em: http://exame.abril.com.br/
negocios/aquisicoes-fusoes/noticias/edir-macedo-compra-49-do-banco-renner. Acesso
em outubro de 2013.
GLOBO.COM - “Evangélicos invadem centro espírita no Catete, diz polícia”. Disponível
em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL587234-5606,00-EVANGELICOS+INVAD
EM+CENTRO+ESPIRITA+NO+CATETE+DIZ+POLICIA.html. Acesso em outubro de
2013.
SALLOWICZ, Pedro Soares Mariana. “Queda da taxa de desigualdade fica estagnada”.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/09/1348185-queda-da-
taxa-de-desigualdade-fica-estagnada-dizem-dados-do-ibge.shtml. Acesso em outubro
de 2013.

86
PRINCÍPIO 7

Considerações sobre o sétimo princípio


fundamental do Código de Ética dos
Assistentes Sociais: o pluralismo em debate
Valeria Forti1

Há algum tempo, a atual Diretoria do Conselho Regional da 7ª Região


convidou-nos para debatermos o tema “Ética e Sociedade”. Foi um momento
muito interessante e proveitoso em que diferentes e pertinentes polêmicas,
especialmente referentes aos princípios que fundamentam o Código de Ética
vigente, vieram à tona. Um dos aspectos mais discutidos foi o pluralismo no
Serviço Social – aspecto presente em um desses princípios do nosso Código
Profissional e constantemente apreciado ou questionado no meio profissional,
inclusive pelos discentes. Esses são motivos que suscitaram o convite para
ora – período em que nosso Código profissional alcança sua segunda década –
expressarmos alguns argumentos que contribuam para o debate sobre o tema,
melhor dizendo, sobre o 7º Princípio Fundamental [do atual Código de Ética],
cuja inerente polêmica e a exígua produção em nossa literatura nos permitem
ressaltar, desde já, além da sua relevância, os limites que encontraremos nesse
percurso em busca de contribuições favoráveis ao debate.
Tendo em vista o que foi dito, damos início à nossa abordagem pela
compreensão de que nos cabe pensarmos o Serviço Social, o seu “solo histórico”
– tanto de origem quanto de interven-ção –, para que possamos formular
considerações acerca do referido Princípio. Dessa maneira, destacamos que essa
profissão surgiu e se desenvolve na sociedade burguesa cujos antagonismos de
classe engendram o que convencionalmente chamamos de “questão social” e
suas expressões. Essas expressões da “questão social” constituem o objeto de
trabalho da profissão e, mesmo que ao longo da História adquiram diferentes

1. Assistente Social, professora adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro da Uerj.

87
matizes, em linhas gerais podem ser caracterizadas como as expressões dos
problemas socioeconômicos, ideopolíticos e culturais presentes desde o quadro
de emersão da classe operária como sujeito político. Todavia, cabe esclarecer
que esta profissão surge em período específico do percurso capitalista. Foi
engendrada após a passagem do capitalismo concorrencial para outro estágio
— um período em que a sociedade capitalista acentua as características que lhes
são inerentes, a era dos monopólios. A passagem do capitalismo concorrencial
para a era dos monopólios fez recrudescerem as contradições imanentes a
tal sistema, uma vez que o capitalismo monopolista, conforme explicita Netto,
“recoloca em patamar mais alto o sistema totalizante de contradições que
confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração, alienação e
transitoriedade histórica” (2001, p.19).
Isso significa dizer que houve alteração na dinâmica dos processos inerentes
à ordem burguesa, tornando necessária a ampliação da ação do Estado, a qual
podia ser qualificada como episódica e pontual no período do capitalismo
concorrencial. Assim, em decorrência das necessidades dos trabalhadores face
às suas condições de trabalho e vida e à possibilidade organizativa dos mesmos,
haja vista as tensões suscitadas pelo antagonismo entre as classes, ou seja, a
hipertrofia das expressões da “questão social” à época monopolista, pode-se
ter evidência de que uma característica importante do período foi a ampliação
da legislação social em geral – um mecanismo tomado pelo imperialismo como
concessões, sob limites, em face das crescentes lutas operárias, visando a
proteger a dominação capitalista da possibilidade de ataques mais intensos
dos trabalhadores. Diante disso, cabe o esclarecimento de que a ampliação da
legislação social – as políticas sociais – incrementou a destinação de rendimentos
sociais para o Estado, visando às lutas dos trabalhadores, também correspondeu
aos interesses da reprodução ampliada do modo de produção capitalista.
Portanto, as políticas sociais devem ser observadas face à contradição inerente
à relação entre o capital e o trabalho e não como possibilidade de efetivação
da redistribuição progressiva da renda nacional que crescentemente retire do
capital em favor do trabalho, o que implicaria, inevitavelmente, o colapso do
sistema capitalista.
Diante disso, voltamos ao Serviço Social para lembrar que, salvaguardadas
as diferenças por regiões e entendendo que a gênese dessa profissão no
continente latino-americano não significou mero prolongamento do que ocorreu
na Europa ou nos Estados Unidos, uma vez que corresponde às relações

88
determinadas pelo capitalismo no continente, destacamos que, não obstante
singularidades, é possível referência à emersão da profissão como resultante
das condições inerentes ao capitalismo periférico e das correspondentes formas
das expressões da “questão social”. No Brasil, o Serviço Social surge na década
30 do século passado e se institucionaliza alicerçado por um conjunto de saberes
alinhados a parâmetros do pensamento conservador. Sua origem vincula-se
aos interesses burgueses face às lutas travadas pelas forças da organização
política e sindical da classe trabalhadora, que representavam necessidades
de significativo contingente populacional pauperizado, e as forças políticas
econômicas dominantes. Ou seja, surge como uma alternativa profissional capaz
de contribuir para o processo de ampliação e consolidação das bases industriais
no país, processo que contou com Getúlio Vargas à frente do Estado em prol da
construção dos alicerces do poder burguês industrial em detrimento do poder da
oligarquia agroexportadora brasileira. Dessa maneira, o Serviço Social emergiu
como uma das estratégias para o controle, o disciplinamento e a reprodução da
classe trabalhadora face aos esforços que uniram o Estado e a Igreja católica
em consonância com a expansão do capitalismo no país. Uma profissão que
dirigiu sua ação aos trabalhadores com importante influência da doutrina social
católica.
Pode-se dizer que a inserção do Serviço Social nas políticas sociais contribui
durante longo tempo para que certos interesses da classe trabalhadora fossem
“refuncionalizados” em prol da lógica capitalista – uma alternativa profissional
que acriticamente efetivou determinadas mediações necessárias à manutenção
da ordem social, propagando e reforçando a possibilidade de mútua colaboração
entre o capital e o trabalho.
Não é difícil, diante do exposto, captarmos o porquê de o pensamento
acrítico e conservador ter sido quase unânime no meio profissional do Serviço
Social por tanto tempo, nutrindo explicações e posicionamentos moralizantes
face aos problemas sociais. E, mesmo que hoje caiba observarmos a alteração
de tal quadro na profissão, não é possível pensarmos em sua erradicação.
Quando mencionamos a existência do conservadorismo na profissão por longo
tempo e de modo praticamente unânime, temos que lembrar o significado do
Movimento Crítico no Serviço Social iniciado em meados de 1965, um processo
que, mesmo que comporte alguns equívocos, indubitavelmente viabilizou
avanços importantes à profissão e lhe trouxe novos aportes teóricos, inclusive
substancialmente críticos.

89
Dessa maneira, sem que aqui tenhamos como finalidade comentário
aprofundado sobre o Movimento Latino-Americano de Reconceituação do
Serviço Social, cabe-nos mencionar que foi um movimento que emergiu em
consonância com o contexto dos anos 1960, firmando-se como relevante
marco de revisão crítica da profissão, que tocou tanto os seus padrões teóricos
quanto o seu exercício profissional – portanto, um fenômeno profissional
destacado face ao tema ora desenvolvido e que, em sua heterogeneidade por
países e regiões, trouxe à baila diversos questionamentos acerca da sociedade
e das injunções postas ao trabalho do assistente social, o que impulsionou um
posicionamento diferente, crítico em relação ao Serviço Social, às demandas
a ele dirigidas e, em consequência, à lógica capitalista, que se desdobrou
no histórico profissional, viabilizando diferenças concepções teóricas,
ideopolíticas, éticas e técnico-operacionais, ou seja, materializando diferenças
marcantes em nossa profissão.
Netto (1981) esclarece que esse foi um movimento tipicamente latino-
americano, articulado em decorrência da crise estrutural que, a partir dos anos
1950, afetou os padrões de dominação vigentes na América Latina, no que
diz respeito ao plano sociocultural. Um fenômeno profissional que significou
a busca de superação do Serviço Social tradicional, por meio da resposta
profissional possível e fornecida por determinados segmentos da categoria às
práticas empiristas, paliativas, reiterativas e burocratizadas realizadas pelos
profissionais do Serviço Social na América Latina. Foi um projeto profissional que
não comportou proposta unidimensional. Caracterizou-se pela heterogeneidade,
pela convivência, por meio de polêmicas, debates e embates de tendências
diversas, conflitantes e até muito contrastantes. Para verificação disso, basta
compararmos a tendência modernizadora da produção brasileira de 1967,
explícita no Documento de Araxá, e algumas propostas produzidas no Chile, no
período Allende, que, segundo Faleiros (apud FORTI, 2013, p. 107), podem ser
classificadas como político-revolucionárias. O Movimento de Reconceituação
do Serviço Social foi projeto engendrado no momento em que na dinâmica da
sociedade latino-americana estava em curso um processo de questionamentos
da sua estrutura dependente e excludente. Esses questionamentos atingiram, em
diferentes dimensões, não só os países latino-americanos, mas também outros
em que a profissão do assistente social desfrutava de um nível avançado de
inserção na estrutura sócio-ocupacional. No Brasil, os referidos questionamentos
iniciaram, no percurso histórico do Serviço Social, relacionados com problemas

90
referentes ao cenário latino-americano dos anos 1960, o que nos leva a mencionar
a participação de profissionais da área no Método de Desenvolvimento de
Comunidade – uma atividade que, se, por um lado, serviu para aprofundar a
influência norte-americana no Serviço Social, por outro favoreceu reflexões
críticas acerca da relação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Ou seja,
pode-se dizer que, no país, o Movimento de Reconceituação foi deflagrado a partir
de questionamentos que giraram em torno da funcionalidade do Serviço Social,
tendo em vista a superação do subdesenvolvimento (NETTO, 1991). Acrescente-
se que o Movimento sofreu a influência de determinados aspectos exteriores à
profissão. Com base no pensamento de Netto, podemos, sinteticamente, referir-
nos: à revisão crítica operada nas ciências sociais – fonte de validação teórico-
metodológica do Serviço Social; às alterações processadas em instituições
com evidente vínculo com a profissão – a Igreja católica e, em plano de
menor significação na nossa realidade, algumas confissões protestantes; e ao
movimento estudantil, que dinamizou a erosão do tradicionalismo profissional
(1991, p. 145).
Diante de tudo o que foi abordado, torna-se evidente que as críticas às
práticas profissionais historicamente ligadas à ordem burguesa incidiram
também sobre o Serviço Social tradicional.2 Com isso, os pressupostos de
integração das políticas do welfare state passam a ser negados pelos resultados
que produzem e a neutralidade é questionada e recusada. Na América Latina,
como já sinalizamos, a operacionalização dos programas de Desenvolvimento de
Comunidade foi questionada, tendo início o processo de “erosão da legitimidade
do Serviço Social Tradicional” (ibid.).
Em nossa apreciação é inconteste que esse Movimento marque o início
do curso da absorção, por uma parcela dos profissionais do Serviço Social,
de novos aportes teóricos críticos. Esse foi o período em que conteúdos
desenvolvidos por autores críticos da ordem burguesa, marxistas ou não –
como, por exemplo, Paulo Freire –, foram apropriados pelos profissionais da
área. O acesso a esses conteúdos favoreceu que uma parcela dos profissionais
problematizasse o papel do assistente social na sociedade, sua origem, seu
exercício e suas requisições profissionais. Em decorrência, alterações nas
concepções adotadas de Homem/Sociedade e Estado, fundamentando um

2. É importante lembrar que o processo não se restringiu à nossa profissão e nem mesmo às
políticas do welfare state : ele se deu em todas as atividades institucionalizadas que operavam
na reprodução das relações sociais. Referimo-nos aqui apenas ao Serviço Social por ser
nosso objeto de estudo.

91
diferente referencial teórico e ético para a profissão, foram sendo adotadas.
Dessa maneira, a profissão, que era alicerçada por aportes teóricos cujo
conteúdo não exigia a ultrapassagem do horizonte ideológico burguês,
tomou rumo diferente, que trouxe questões e posicionamentos diversos, até
contrastantes, ao meio profissional. Mesmo que avaliemos que nesse processo
não ocorreu uma consistente crítica teórica do passado profissional, dele
originaram-se elaborações teórico-práticas que se desdobraram e romperam
a hegemonia do conservadorismo na profissão. Surgiu um referencial crítico
em relação à sociedade burguesa que foi aprofundado, refinado, e atualmente
busca assegurar valores que se dirijam à legitimação de práticas que
contribuam para assegurar interesses da classe trabalhadora, vislumbrando a
possibilidade de construção de uma nova ordem societária. Uma ordem cuja
lógica não seja a contradição entre o gênero humano e o indivíduo, tampouco
o primado da mercantilização na vida social.
Dessa maneira, é possível dizer, em linhas gerais, que o Serviço Social
surgiu por meio do estímulo de segmentos das classes dominantes aliado
aos que exerciam ativas práticas de apostolado católico e como uma das
respostas à “questão social”. Assim, manteve por muito tempo, basicamente, um
posicionamento pouco afeto à crítica, desautorizando a negação dos alicerces
da vida social no mundo capitalista. E, em seu rumo ideocultural, assimilou a
doutrina social da Igreja católica, conjugando-a, em alguns momentos de sua
trajetória, com outras vertentes do pensamento conservador. Quanto a isso, basta
observarmos as referências contidas nos primeiros Códigos de Ética Profissional
dos Assistentes Sociais. Todavia, impulsionado por questões que, inicialmente,
se evidenciaram no Movimento de Reconceituação, tomou rumo distinto,
construindo diferentes referências para o seu exercício profissional, conforme
se pode perceber, por exemplo, nos seus dois últimos Códigos Profissionais,
datados de 1986 e 1993.3
A nosso ver, o Código de Ética vigente representa de maneira destacada,
uma vez que “instrumento” orientador e parâmetro para a ação profissional, a
direção dos compromissos assumidos pelo Serviço Social brasileiro nas últimas
décadas do seu percurso histórico – o chamado Projeto Ético-Político.4 Nele é

3. A esse respeito, consulte-se: Valeria Forti em Ética, crime e loucura: reflexões sobre a
dimensão ética no trabalho profissional. 3ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2013; CFESS
(Org.) Código de Ética Comentado. São Paulo: Cortez, 2012.
4. Segundo Marcelo Braz M. Reis (2001), os elementos constitutivos que emprestam
materialidade ao Projeto subdividem-se em: a) dimensão da produção de conhecimentos no

92
possível observarmos uma perspectiva crítica à atual ordem político-econômica
e o vínculo com posicionamentos democráticos em prol dos interesses da classe
trabalhadora.
Nesse Código há seção destinada aos seus Princípios Fundamentais, que
significam os fundamentos, os valores essenciais, que dão sentido às referências
normativas que o compõem. São 11 os Princípios Fundamentais do atual Código
Profissional e aqui, como já foi dito, nos voltamos para um deles, o 7º Princípio:
Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o
constante aprimoramento intelectual.
Como buscamos esclarecer, ao longo do seu percurso histórico, o Serviço
Social foi se distanciando da postura tradicional, inicial, que, pode-se dizer,
assegurava homogeneidade ao meio profissional. Isso decorreu da incorporação
de concepções teórico-metodológicas diversificadas, que conformaram
diferentes concepções de Homem, Sociedade e Estado e, portanto, diferentes
compreensões e proposições ético-políticas.5 Ou seja, a partir do movimento que
deflagrou um processo de renovação crítica na profissão foi sendo delineado um
perfil profissional diferente daquele da sua gênese, pois, evidentemente, plural
– expressão da incorporação de tendências teóricas diversas, conflitantes e até
contrastantes. É lógico que, em uma profissão exercida em um contexto social
democrático, não caberia uma única concepção teórica como seu fundamento
e expressão. Todavia, para a compreensão disso não cabe supormos isenção
de parâmetros analíticos e/ou de ação. E esse é um aspecto muito polemizado

interior do Serviço Social; b) dimensão político-organizativa da categoria; c) dimensão jurídico-


política da profissão. Nesta última estão presentes o Código de Ética Profissional, a Lei de
Regulamentação da Profissão e as Diretrizes Curriculares, mais precisamente as Diretrizes
Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa do Serviço Social (ABEPSS).
Dessa maneira, sem qualquer discordância do conteúdo abordado pelo autor, consideramos
caber acrescentar o exercício profissional cotidiano [dos assistentes sociais] como parâmetro.
Diante disso, convém esclarecermos que, a nosso ver, o Serviço Social é profissão inserida
na divisão social do trabalho e que, apesar de poder situar-se indiretamente na produção,
recebe assalariamento em função da requisição patronal/institucional de participar no sentido
de viabilizar a subordinação do trabalho à produção, ao capital. É uma profissão que, mesmo
que não consumida diretamente no processo de produção visando à valorização do capital é
requisitada a participar disso, do seu engrandecimento. Além disso, devemos esclarecer que
a polêmica acerca de trabalho, processo de trabalho e Serviço Social não faz parte do nosso
universo de discussão neste texto, e que aqui utilizamos indistintamente as expressões ação
profissional, intervenção/exercício profissional e trabalho do Serviço Social/assistente social.
5. Essa dimensão pode atribuir sentido ao trabalho profissional, uma vez que responsável
pela finalidade da ação.

93
no meio profissional, uma vez que o pluralismo é recorrentemente captado
como sinônimo de ecletismo – como a possibilidade de junção sem critério de
vertentes teórico-filosóficas distintas. Muitas vezes, essa hipótese é bastante
valorizada e defendida como meio de extração do que há de melhor em cada
uma das diferentes vertentes, o que evidencia referência a diferenças, mas entre
equivalentes. Ou seja, desse modo há a defesa, mesmo que não se tenha clareza
disso, da neutralidade no campo das ciências humanas ou sociais, de onde o
Serviço Social extrai seus fundamentos teórico-filosóficos. Não há dúvida de que
o Princípio que aqui debatemos destaca o imprescindível respeito às diferentes
correntes pro­fissionais, mas nem por isso deixa de incluir o fato de que esse
respeito deve-se às vertentes teórico-filosóficas democráticas e que não são
tomadas como equivalentes. No Código vigente, a democracia é apreendida
como valor indispensável, uma vez que única possibilidade de assegurar o que
se encontra definido como valor ético central – a liberdade. Nossa referência não
é, obviamente, à perspectiva de liberdade formal, uma vez que não focalizamos
uma proposição meramente enquadrada nos parâmetros da lógica liberal,
tampouco restrita à socialização da política. Há aqui uma apreciação que, além de
considerar a liberdade como inerente ao Ser Social – ser consciente, racional, e,
dessa maneira, capaz de escolhas entre alternativas –, pressupõe a socialização
econômica face à relação entre a efetivação da liberdade e a riqueza socialmente
produzida. Ademais, no Princípio não cabe a suposição de equivalência entre
as correntes teórico-filosóficas presentes no meio profissional, uma vez que
partícipe de um quadro de Princípios Fundamentais que se desdobram em
outras referências normativas que constituem o atual Código Profissional, cujo
horizonte vislumbra a possibilidade de superação da ordem social vigente. Dessa
maneira, se, indubitavelmente, o pluralismo não é compatível com o sectarismo6
nem com o dogmatismo,7não pode ser também captado como a erradicação,
considerando-se as diferentes orientações teórico-filosóficas, da possibilidade
de direção social proeminente no meio profissional. Sabemos que na vida social

6. Referimo-nos à intolerância, à intransigência com posição diversa daquela defendida pelo


sujeito.
7. Se, inicialmente, o termo dogmático foi utilizado na filosofia para designar a diferença
entre os filósofos que definem cada ponto de sua opinião em contraposição aos Céticos que
não definem e, utilizado por Kant, foi termo cuja referência significou a metafísica tradicional
– portanto, “o preconceito de poder progredir na metafísica sem uma crítica da razão” –
aqui a referência é à verdade de determinado(s) sujeito(s) ser defendida como a única e,
portanto, irretocável, inquestionável, uma possibilidade que redunda em intolerância e até na
desqualificação do(s) argumento(s) trazido(s) pelo(s) outro(s).

94
há diferentes forças sociais em disputa e isso não significa equivalência entre
elas, mas uma dinâmica social que abrange inúmeras posições, próximas,
diversas e antagônicas – portanto, pressupõe superações e continuidades. Não
seria dessemelhante no âmbito profissional. E isso é o que pode assegurar um
debate rico e fértil em busca da melhor possibilidade de desvendamento da
realidade social e em detrimento de posicionamentos preconceituosos ou que
se assentem na desqualificação do outro, como se tratasse de um mero suposto
adversário. Quanto a isso cabe mencionarmos que, muitas vezes, unicamente
visando a obscurecer a luta em prol de interesses individuais e/ou de grupos
particulares, observa-se até a desqualificação de semelhantes, de profissionais
do mesmo campo do pensamento, que compartilham propósitos profissionais,
como se representassem, em um campo de luta, meros e perigosos adversários
e, por isso, devessem ser exterminados. Principalmente em uma sociedade
competitiva como a nossa, cuja alienação é característica, isso pode ocorrer
por mera competição sob o álibi de diferença teórico-política essencial; ou seja,
desqualifica-se o outro para vencer no debate e alçar o posicionamento almejado
ou qualquer outro tipo de interesse individual ou de grupo particular. É como
se não fosse necessário o compromisso com a verdade, mas sim a efetivação
do suposto êxito individual ou de grupos particulares em um exercício que,
comumente, é considerado como legitimamente político. Portanto, o pluralismo,
expressão destacada do Princípio ora em debate, não significa “ecletismo”,
ou seja, a aceitação da junção sem critério de diferentes vertentes teórico-
filosóficas, nem “neutralida­de” – a ideia de equivalência de expressões teórico-
filosóficas diversas. Signifi­ca o reconhecimento e a convivência de diferenças
teórico-filosóficas e/ou ideopolíticas e alternativas operacionais que precisam ser
respeitadas, sem que isso possa ser confundido com ausência de explicitação
de posição assumida e/ou justificativa para a falta de debate, uma vez que o
posicionamento claro, a honestidade teórica e o debate são ingredientes
indispensáveis para o convívio profissional e o aprimoramento intelectual. Não
nos cabem preconceito nem receio quanto ao diferente, captando a diversidade,
o plural, como incômodo ou obstáculo, se realmente nossa busca se dirige ao
conhecimento, pois provavelmente o contato com o conhecimento diverso nos
proporcionará acréscimos, complemento e aprimoramento intelectuais e/ou a
possibilidade de ratificação da posição que defendíamos, ou seja, provavelmente,
nos enriquecerá.
Significa que, apesar de optar por determinada direção social, há o entendimento
da diversidade como horizonte dos profissionais, há a cap­tação de direção social

95
como possibilidade (de escolha), como uma direção que deverá ser opção da
categoria por considerar que esta decifra melhor a realidade e, por conseguinte,
favorece ao profissional responder às demandas que se colocam no cotidiano do
seu trabalho institucional (FORTI, 2013).
Diante do que acabamos de citar, cabe-nos esclarecer que não
desconhecemos a tensão que pode ocorrer entre certos interesses individuais
do profissional e os compromissos assumidos pela categoria profissional, o
que inclui definições nos campos teórico e ético-político. Todavia, deve ficar
claro que, ao nos vincularmos a uma profissão, incorporamos determinações
históricas, legais, intelectuais, valores – enfim, uma cultura profissional que
representa uma dinâmica de projetos em curso cujos traços proeminentes
mostram diferentes produtos, autores e atores. Ou seja, participamos de uma
complexa esfera da vida social e dela somos representantes, e esse papel não
se restringe ao âmbito do “individualmente” ou, como comumente ouvimos
no cotidiano, ao “definido pela minha consciência”. Não obstante a dinâmica
inerente a determinada profissão, nela há um cariz proeminente, uma cultura,
cujos valores definem sua autoimagem e sua imagem social, uma vez que se
insere em uma coletividade, e trata-se de uma corporação. Aliás, se refletirmos
criticamente, poderemos captar o quanto a ideia de uma ação individual absoluta
é mera construção ideológica, desprovida de fundamento – somos sujeitos
em relação, e até nossa identidade só se torna possível nesses termos, no
convívio social, na relação com o outro, “o diferente”: somos indivíduos sociais.8
Nessa linha de raciocínio, cabe acrescentarmos que a relação entre diferentes
posicionamentos, projetos, interesses, forças sociais intrínsecas e externas
ao meio profissional suscita um processo dinâmico de polêmicas, debates,
embates, lutas e disputas pela conquista de direção político-ideológica no âmbito
da profissão. Ou seja, pressupõe a conquista de posicionamento decorrente da
predominância do consenso em detrimento do que lhe é distinto, a conquista
de algo pelo exercício de forças coercitivas. Estamos falando de hegemonia
no campo profissional, o que significa a defesa de determinado projeto e sua
sustentação pela predominância do consenso, sem que isso possa ser confundido
com unidimensionalidade de pensamento e/ou posição no campo profissional,
tampouco como justificativa para desqualificação do outro ou sectarismos. Os
debates e as decisões de uma categoria profissional devem ocorrer de maneira

8. A esse respeito, é importante consultar Marilda Iamamoto em Trabalho e Indivíduo Social:


um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez,
2001.

96
democrática, com a maior e mais qualificada participação possível. Há de ficar
claro que a existência de projetos societários e profissionais em disputa não pode
ser captada como obstáculo. Até mesmo porque seria descabido pensarmos em
uma sociedade ou em um segmento social, como, por exemplo, uma categoria
profissional, com homogeneidade. Evidentemente, sempre nos depararemos
com distintas apreensões da realidade social e diferentes compreensões acerca
da profissão. Isto só deverá servir, em um ambiente de maturidade intelectual e
emocional e de posicionamento democrático, para fermentar o aparato teórico e
ideológico-cultural na profissão. Como sabemos, em um mesmo campo teórico
cabem tensões, polêmicas e embates, o que poderá fortalecer as ideias, os
posicionamentos e os objetivos profissionais.
Além do que estamos discutindo, é importante frisar que o trabalho
profissional do assistente social pressupõe definição de finalidades e
conhecimentos compatíveis para a sua realização. Nisso, os co­ nhecimentos
acumulados (na formação profissional e em possibilidades extracurriculares)
e os atributos profissionais são recursos fundamentais para o bom êxito no
trabalho. Ou seja, ao longo de sua formação, o conhecimento teórico-prático
adquirido, a ca­pacidade de expressão oral e escrita, a capacidade de estabelecer
relacionamento profissional com indivíduos e grupos no espaço institucional
de modo demo­crático para a realização de programas sociais, a possibilidade
de leitura crítica da realidade e de implementação de ações correspondentes –
técnicas e ético-políticas qualificadas –, portanto, sua competência profissional,
expressa de modo singular e que depende de constante aprimoramento, são
fatores indispensáveis para o desenvolvimento pertinente do seu trabalho
cotidiano.
Diante do exposto e tomando rumo conclusivo, cabe-nos destacar
sinteticamente que, ao mencionarmos a existência de direção social como
possibilidade, mesmo em face da defesa de um posicionamento plural, isso
não pode ser confundido com desconsideração ou demérito do sentido
das diferentes tendências democráticas teórico-metodológicas e ético-
políticas no meio profissional. Aliás, sequer podemos considerar ausência
de distinções, contrastes, nuanças, no mesmo campo teórico-metodológico
e ético-político. É evidente que há quem não se identifique no campo teórico-
filosófico, mas o entendimento disso não pode ser restrito, suscitando
dogmatismo ou sectarismo. Tampouco cabe o equívoco (contrário) de se
buscar conciliação entre posições excludentes, como se fosse possível a
apropriação acrítica do dito popular: “cabe-nos tirar o melhor de cada coisa”,

97
o que, no meio profissional, significaria ter como possibilidade a extração
do que é apreciado (particularmente) como pertinente, como bom, de cada
vertente do pensamento, como se entre as vertentes não houvesse distinção
nem a possibilidade de parâmetros analíticos e avaliativos diante da realidade
social. Ou seja, diante da equivalência das diferentes concepções teóricas
haveria apenas a questão da escolha e, dessa maneira, estabelecer critério
de seleção entre elas significaria “falta de flexibilidade” do profissional. Por
outro lado, a aceitação de todas sem distinção significaria virtude profissional,
pois expressão de “não-radicalidade”, “flexibilidade de posicionamento”, uma
vez que, tratando-se de equivalentes, não haveria consequências no campo
profissional e na vida social em geral. Tal perspectiva leva-nos a pensar em
requisições dirigidas aos assistentes sociais atualmente que, em busca de
obscurecer objetivos institucionais, exigem que trabalhem como se não lhes
coubessem compromissos profissionais ou a impressão de direção social
– atribuição de sentido ético-político em seu trabalho cotidiano –, como se
cumprissem “tarefas ou missões”, seja na docência ou nos serviços em
geral. Sem dúvida, esse descompromisso profissional não estaria em acordo
com os Princípios Fundamentais do Código Profissional vigente, tampouco
com o atual Projeto Profissional Crítico. Em ambos não cabem perspectivas
relativistas, utilitaristas, que prezem pela neutralidade. Ao contrário, indicam
que democracia pressupõe socialização da riqueza socialmente construída e
têm no horizonte a possibilidade de superação da ordem social, defendendo
valores universais em consonância com o gênero humano.
Diante do exposto, encerramos o presente texto destacando para reflexão:

a elaboração e afirmação [...] de um projeto profissional deve dar-se com a


nítida consciência de que o pluralismo9 é um elemento factual da vida social
e da profissão mesma, cabendo o máximo respeito a ele, respeito, aliás, que
é um princípio democrático. Mas o respeito ao pluralismo, que não deve
ser confundido com o ecletismo e com o liberalismo, não impede a luta de
ideias [...]. Ao contrário, um verdadeiro confronto de ideias só pode ter como
terreno adequado o pluralismo que, por seu turno, supõe também o respeito
às hegemonias legitimamente conquistadas (NETTO, 2009, pp. 96-97).

Referências bibliográficas
ABABAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
CFESS (org.) O código de ética do(a) assistente social. São Paulo: Cortez, 2012.
9 . Grifo do autor.

98
FORTI, Valéria. Ética, crime e loucura: reflexões sobre a dimensão ética no trabalho
profissional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
___________ e BRITES, Cristina Mª. Direitos Humanos e Serviço Social: polêmicas,
debates e embates. 3ª ed,. Lumen Juris, 2013.
__________ e GUERRA, Yolanda. Ética e direitos: ensaios críticos. 4ª ed. Lumen Juris,
2013.
IAMAMOTO, Marilda. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária
na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001.
NETTO, José P. A crítica conservadora à reconceptualização. In: Serviço Social &
Sociedade. no 5. São Paulo: Cortez, março, 1981.
____________ Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.
São Paulo: Cortez, 1991.
_____________ A construção do Projeto Ético-político do Serviço Social frente à crise
contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e política social. Módulo 1-
Brasília: ABEPSS/CFESS, 1999.

99
PRINCÍPIO 8

Opção por um projeto profissional vinculado


ao processo de construção de uma nova ordem
societária, sem dominação, exploração de
classe, etnia e gênero
Ney Luiz Teixeira de Almeida1

O exercício profissional do(a) assistente social é repleto de desafios de


diferentes ordens: teórico-metodológicas, políticas e éticas. O maior deles
talvez seja o de reconhecer que embora eles surjam no cotidiano institucional
relacionados a dimensões distintas de seu trabalho, na verdade são expressões
de uma totalidade dinâmica e contraditória. Assim, a ação profissional (um dos
momentos de um complexo processo de objetivações sociais) envolve escolhas
singulares que a ela não se restringem, visto que suas consequências se
articulam com práticas socioinstitucionais inscritas na dinâmica de superação/
reprodução da sociabilidade burguesa.
O Código de Ética do/a assistente social, desse modo, traduz um esforço
coletivo de orientação do trabalho profissional a partir de valores que não estão
desvinculados da vida cotidiana e das lutas sociais, ou seja, possui um fundamento
ontológico que orienta as normativas próprias aos códigos profissionais. Vincula,
portanto o campo das escolhas singulares que se apresentam na dinâmica
institucional – na qual o trabalho do/a assistente social se insere – a um conjunto
de valores universais fundamentais à consolidação de uma práxis emancipatória.

1. Professor Adjunto da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ). Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pós-doutorando em Educação pelo Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro – Campus de Nova Iguaçu, sob a supervisão da Professora Doutora Célia
Frazão Linhares.

100
Muitas das dificuldades por nós identificadas ao longo de anos de
envolvimento com os rumos e percalços da formação e do exercício profissional,
relativas à incorporação dos valores éticos que orientam a profissão, resultam
de uma apreensão sem historicidade do trabalho e dos processos que os
determinam, sejam eles forjados a partir da dinâmica das classes e do Estado
ou a partir dos movimentos empreendidos pela própria categoria profissional. A
tendência de realização de leituras fragmentadas da vida social como do próprio
trabalho também se revela nas formas de apreensão dos valores que norteiam
a ação profissional. Nesta direção, não tem sido incomum uma apropriação dos
valores fundamentais que regem nosso projeto profissional também de forma
idealizada, desvinculada da própria realidade social da qual emanam e visam
ultrapassar.
Ao tratarmos aqui do oitavo princípio do nosso Código de Ética, a “opção
por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova
ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero”,
reiteramos que seu significado, articulado aos demais princípios, fornece
um horizonte para a ação profissional que, sustentado na unidade de seus
momentos coletivos e individuais, se constrói historicamente como possibilidade
forjada na dinâmica da profissão em sua relação com as classes sociais, como
devir. Um processo de luta pela emancipação humana que se efetiva a partir
de condições objetivas, nas quais o trabalho profissional é realizado, e para as
quais convergem os onze princípios que constam de nosso código, conforme a
seguinte ponderação:

Assim, quando se referiu à emancipação, o CE não pretendeu afirmar que seria


possível realizar a emancipação humana nos limites do trabalho profissional,
pois supõe que existem níveis diferentes de emancipação; que a emancipação
sociopolítica não se confunde com a emancipação humana (MARX, 1991),
mas que isso não a torna menos importante, como realização relativa de
conquistas emancipatórias. Além disso, no CE, a emancipação social e
política, realizada em graus diversos nos limites da sociabilidade burguesa,
não se desconectam do horizonte da emancipação humana no CE. Assim, o
Código articulou dois níveis de orientação ética profissional que se vinculam
organicamente: o presente e o devir mediado pelo trabalho profissional na
perspectiva do seu alargamento e no horizonte de sua superação (BARROCO
e TERRA, 2012, p. 59-60).

O Código de Ética é ao mesmo tempo síntese de uma trajetória profissional,


coletivamente construída em sua relação com o processo de luta pela superação

101
da ordem burguesa protagonizado pelas classes subalternas, e horizonte de
possibilidades de conquistas enraizadas no solo real das políticas sociais, dos
movimentos sociais, do Estado e da sociedade civil. Não se sustenta, portanto,
numa relação entre o passado, o presente e o futuro unidirecional, mas em
processos históricos produzidos por sujeitos coletivos portadores de vontade
política, em uma dinâmica social com continuidades e rupturas, movida pela
disputa de projetos societários distintos, cujos interesses antagônicos polarizam
as classes e suas frações em relação às formas de organização da produção e
de distribuição da riqueza social.
Essas disputas, em nosso tempo histórico, assumem expressões sociais e
institucionais diversas, complexas e presentes nas mais variadas dimensões da
vida social: na educação, na cultura, na ideologia, na família e no Estado. Elas
se plasmam em processos de estabelecimento de consenso e de coerção junto
às classes subalternas a partir da ampliação da função educativa do Estado e de
suas instituições.
É no espaço da vida cotidiana que as práticas reiterativas, repetitivas,
espontaneístas e imediatistas reproduzem modos de vida próprios a uma
realidade social alienada e alienante como a que é particular à sociedade
burguesa. Para tanto, são necessárias ações pedagógicas também inscritas no
cotidiano das instituições sociais que possam favorecer a internalização dos
valores dominantes, a reprodução de costumes hegemonizados e o incentivo
às posturas cada vez mais individualizadas que assegurem as condições de
reprodução material e espiritual de um modo de produção amplamente desigual
e desumanizador. É nessa mediação entre a vida cotidiana de parcela significativa
da população e o aparato burocrático do Estado e das organizações da sociedade
civil que o/a assistente social é chamado a atuar. Numa esfera determinada da
divisão social e técnica do trabalho na qual as demandas sociais reconhecidas
pelo Estado e pelas classes dirigentes assumem a forma de direitos sociais
objetivados em programas, benefícios e serviços inscritos numa outra esfera da
cotidianidade, relativa à dinâmica de funcionamento das políticas sociais. Sendo
que, desta vez, a repetição, o espontaneísmo e o imediatismo incidem de forma
particular sobre a ação profissional do/a assistente social, determinadas pelas
racionalidades formal-burocráticas que organizam os processos de trabalho
institucionais.

O trabalho realizado pelo assistente social em diferentes contextos


institucionais se apoia numa base comum que é acionada a partir do acervo
teórico-metodológico e ético-político que dá suporte à formação e ao

102
exercício profissional. Contudo, este acionamento, apesar da capacidade de
escolha de cada sujeito profissional, não ocorre a despeito dos processos
socioinstitucionais de controle e ação política próprios à profissão, como
tampouco das determinações que incidem sobre o trabalho nos serviços e,
particularmente, no âmbito das políticas públicas. Neste último caso concorre
decisivamente a condição de assalariamento da profissão, decorrente do fato
de não dispor de todos os meios necessários à execução de seu trabalho
(ALMEIDA e ALENCAR, 2011, p. 142).

A tensão entre a autonomia do sujeito profissional e as determinações


da estrutura organizacional própria ao Estado burguês e seus mecanismos
institucionais de regulação social não constitui nenhuma novidade no âmbito
do Serviço Social, mas tão pouco pode ser considerada uma questão menor,
ou sem importância, para a realização dos princípios éticos e políticos que
norteiam o trabalho do/a assistente social. Além da natureza contraditória de
sua função social nos processos de disputas ideológicas – que caracteriza a
gênese e desenvolvimento da profissão –, sua condição de profissão assalariada
e inscrição em aparatos técnico-burocráticos prestadores de serviços sociais
regidos por processos de gestão cada vez mais subsumidos à lógica e interesses
privados exacerbam no exercício profissional essa tensão.
Muitos dos desafios profissionais gravitam neste árido e polêmico campo de
tensão, no qual as formas de consciência e a liberdade ganham especial destaque,
visto que devem ser compreendidas em suas bases materiais, históricas. Assim,
tomadas como possibilidades concretas do uso da razão, da capacidade teleológica
e do ato de realizar escolhas entre alternativas existentes, ou seja, como formulação
de escolhas conscientes voltadas para realização de uma finalidade, enquanto
processo de objetivação do trabalho profissional em todas as suas dimensões,
sobretudo, política. Uma objetivação de natureza profissional articulada às demais
objetivações sociais que são produzidas levando-se em consideração as condições
reais de existência, mas visando criar as condições de sua superação.
Destarte, reafirmamos a necessidade imperativa de compreensão
dos princípios fundamentais do Código de Ética de forma articulada e não
fragmentada, como processo consciente de escolha do/a assistente social. Uma
opção pela vinculação das alternativas construídas no exercício profissional
cotidiano ao conjunto de valores universais e ao propósito de construção de
outra forma de sociabilidade, que imprime um sentido ético e moral ao trabalho,
mas que não ignora sua imersão na dinâmica contraditória dos espaços sócio-
ocupacionais onde se materializa.

103
Na verdade, a consciência e a liberdade são componentes fundamen-
tais para todas as formas de realização ético-morais (...) as objetivações
ético-morais fundamentam-se nas capacidades humanas desencadeadas
pela práxis: a sociabilidade, a consciência, a liberdade e a universalidade
humanas. A consciência é uma exigência, na medida em que o indivíduo
deve ter um mínimo de participação consciente nas deliberações e escolhas
de valor que realiza como sujeito moral ou ético. Presume-se que o sujeito
ético seja consciente e dotado de vontade, uma vontade que, pela natureza
da ética, deve ser livre, ou seja, seu portador não deve ser coagido por
outros indivíduos em suas decisões, não deve ser obrigado a decidir pelo
uso da força psicológica ou física, deve ter um mínimo de controle sobre
seus impulsos, isto é, ter autodomínio (BARROCO, 2008, p. 59).

A consciência e a liberdade no âmbito do exercício profissional representam


não só possibilidades de escolha na direção de uma nova ordem societária, mas
condições necessárias à materialização, no trabalho singular de cada assistente
social, das formulações éticas e políticas universais socialmente construídas e
assumidas pelo Serviço Social. Constituem, portanto, mediações necessárias à
consolidação do projeto profissional na dinâmica institucional cotidiana.
A opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção
de uma nova ordem societária é antes de tudo uma opção forjada coletivamente
no interior de nossa profissão, mas que de modo algum representa uma
vontade que lhe seja exclusiva. Daí a necessidade de articulação com outros
sujeitos profissionais e sociais para a realização de uma práxis efetivamente
emancipatória, reconhecendo que o protagonismo dessa construção não se dá
no campo de qualquer profissão. Deste modo, qual seria a importância desta
opção por uma profissão? De que forma uma profissão como a de Serviço Social
contribui com esse amplo e complexo processo social? As respostas podem
caminhar em várias direções, mas nos atemos a uma em particular: relacionada
à função socioinstitucional da profissão na divisão social do trabalho.
A construção de uma nova ordem societária sem dominação-exploração
de classe, etnia e gênero requer um compromisso claro com o processo de
emancipação humana, com a produção cotidiana das condições sociais que
possibilitem não uma liberdade idealizada, mas um progressivo e radical
processo de autodeterminação dos sujeitos, seja na condição de indivíduos
singulares como e, sobretudo, humano-genérica. Uma sociedade sem qualquer
tipo de dominação e exploração hoje deve ser pensada a partir das condições de
dominação e exploração às quais estamos submetidos enquanto gênero humano

104
nas mais diversas formas sociais concretas. Aquelas que se reproduzem social
e institucionalmente nas práticas familiares, escolares, no âmbito do Estado, nos
espaços públicos e privados a partir da extensão das relações de dominação e
exploração de uma classe que detém os meios de produção sobre outra que é
obrigada a vender sua força de trabalho.
Reconhecidamente as formas de dominação e/ou exploração estão
amplamente disseminadas nas relações de gênero, étnicas, geracionais,
familiares, de trabalho, de vizinhança e afetivas. Não se pode ignorar que numa
sociedade que prima pela atomização dos indivíduos e pela subsunção das
relações sociais à lógica da produção da mercadoria encontra-se em curso um
amplo processo de desumanização, que torna descartáveis todas as mercadorias,
inclusive a força de trabalho e o sujeito portador da mesma. O desafio posto
na construção de uma nova ordem societária é extremamente amplo, pois não
pode prescindir da crítica à sociabilidade burguesa, produtora em larga escala
de um modo de vida vazio de significação política, pois se encontra repleto
de processos fetichizadores. Mas também requer uma capacidade crítica que
desvele nas dinâmicas institucionais cotidianas as artimanhas da burocracia, das
racionalidades gerenciais das políticas e dos programas sociais que fragmentam
a realidade social e isolam as profissionais.
Cabe ao/à assistente social um esforço teórico, mas também político e ético,
fundamental de suspensão de seu cotidiano que ultrapasse a imeditiacidade dos
processos institucionais, das normas e rotinas que aparentemente forjam “as
condições técnicas de acesso” da população aos direitos sociais e às quais o
trabalho profissional deve se “pautar”. As formas de dominação e/ou exploração
de classe, etnia e gênero não são apenas manifestas na esfera privada das
empresas – onde sobressai o trabalho abstrato –, da família, das relações de
vizinhança e comunitárias. Elas são reproduzidas também nas instituições que
educam para o consenso a partir das políticas sociais organizadas pelo Estado,
a partir dos mecanismos legais e burocráticos que fracionam os processos de
trabalho institucionais nos quais se inserem os/as assistentes sociais.
As lógicas em voga de administração gerencial dos processos de trabalho
institucionais se articulam funcionalmente aos mecanismos sociais de reprodução
das desigualdades que particularizam a sociedade capitalista. As políticas
sociais conformam contraditoriamente espaços de reconhecimento e negação
da condição de sujeito político da classe trabalhadora, assim como dos seus
direitos sociais. É por essa razão que a ação profissional transita num circuito
institucional bastante estratégico no processo de luta pela emancipação humana,

105
na medida em que pode contribuir para o fortalecimento de conquistas sociais
que se não ultrapassam as desigualdades próprias à ordem burguesa consolidam
práticas políticas democráticas e contrárias às hierarquias verticalizadas. Assim
como integra o esforço sociopolítico de denúncia e negação das formas de
dominação e exploração em suas expressões institucionalizadas.
Torna-se, desse modo, um grande desafio para os/as assistentes sociais
apreender a dinâmica e extensão de tais processos não apenas nas relações
sociais em geral, mas nos percursos institucionais fragmentados, nos discursos
e posturas profissionais no âmbito da prestação dos serviços sociais.

A rotina cotidiana oculta diferentes faces do desrespeito sofrido pelos


usuários nas triagens, nas entrevistas, nas idas e vindas em várias instituições,
até ser atendido, na invasão de sua privacidade, na moralização de suas
atitudes. Muitas vezes, mergulhado na rotina institucional, o profissional não
percebe que está impedindo ou limitando o acesso aos direitos, de forma
direta ou indireta. Aparentemente, na lógica da hierarquia institucional e da
fragmentação que perpassa pelas relações dos diferentes profissionais que
nela atuam, a responsabilidade de cada profissional termina quando um caso
atendido é passado para outro profissional.
Entretanto, se o usuário passa por diferentes profissionais e não é
atendido em suas necessidades, o resultado da ação profissional é a não
viabilização de suas necessidades acrescida de situações de humilhação
e constrangimento. Nesse sentido, de quem é a responsabilidade? Do
último que atendeu? Da instituição? Vê-se assim o quanto a fragmentação
e a hierarquização institucional podem facilitar a desresponsabilização de
um conjunto de profissionais em face do produto e das consequências
do atendimento realizado nas instituições. O produto final de práticas
como essas resulta na inviabilização de uma ética comprometida
com o atendimento das necessidades dos usuários, mas a parcela de
responsabilidade dos profissionais – que passa por várias mediações,
inclusive a de denúncia das instituições, conforme previsto no CE – nem
sempre é posta em questão, pois em geral é dissolvida no emaranhado
disperso de um trabalho que não tem controle sobre a totalidade do
processo (BARROCO e TERRA, 2012, p. 80-81).

As formas institucionalizadas de dominação de uma classe sobre a outra,


de um grupo social sobre outro, de homens sobre as mulheres, de adultos
sobre os adolescentes e as crianças, de brancos sobre negros, pardos e índios,
dos intelectuais e das instituições sobre a população, dos governantes sobre
os governados, dos dirigentes sobre os subalternos em qualquer espaço,
público ou privado, revelam assimetrias de poder que hierarquizam sobre
diferentes espectros normativos, burocráticos ou meritocráticos os dominantes

106
e os dominados, os exploradores e os explorados. Os processos de trabalho
escondem, sob a justificativa das competências técnicas, das normas, das rotinas
e dos saberes institucionais e profissionais, mecanismos velados de manutenção
de valores e posturas que reproduzem práticas de dominação não tão visíveis
quanto aquelas que na dinâmica social já encontram suportes políticos e legais
de denúncia e enfrentamento.
Abre-se, deste modo, um leque de preocupações que deve estar presente no
exercício profissional cotidiano, sedimentando a capacidade crítica e propositiva
do/a assistente social em relação às dimensões éticas, políticas e teóricas de
seu trabalho. Para tanto a compreensão das formas como as políticas públicas
e os programas sociais se estruturam torna-se um movimento fundamental
para o desvelamento de uma determinação central para se pensar os limites e
possibilidades da ação profissional.

Os processos de trabalhos nos quais os assistentes sociais se inserem


também são determinados por lógicas de descentralização (racionalizadora
de recursos), focalistas e privatistas. Revelando que as diferentes formas de
sua organização respondem tanto aos processos de desenvolvimento de
tecnologias de intervenção social produzidos em cada área de ação do Estado,
mas também dos processos políticos e ideológicos que hoje marcam a dinâmica
da sociedade civil e de suas relações com o Estado sob a hegemonia do capital
financeiro. A mercantilização dos serviços, a retração da esfera pública e a
reprodução dos processos de sociabilidade próprios à lógica da acumulação em
tempos de capital fetichizado também demarcam novos contornos ao mercado
e às relações de trabalho no âmbito das políticas públicas, cujas expressões
variam de acordo com a trajetória histórica de cada uma delas. Deste modo,
a autonomia que o assistente social possui na definição e condução de seu
trabalho é sempre confrontada com essas tendências e fenômenos, criando
um campo de embates que é próprio ao trabalho que se desenvolve na esfera
dos serviços sociais e que não se supera apenas com a ação individual dos
profissionais, exigindo processos coletivos, como os que se encontram em
curso em cada política e, particularmente, no âmbito do Serviço Social a partir da
mobilização e atuação de suas principais entidades representativas (ALMEIDA e
ALENCAR, 2011, p. 171).

O trabalho do/a assistente social, contraditoriamente, se inscreve nas


formas instituciona-lizadas de manutenção das relações de poder necessárias
à reprodução de uma sociabilidade assentada em processos de dominação
econômica, política e cultural, mas também ingressa no circuito das práticas
sociais que buscam a superação desta ordem social. No entanto, um problema
importante se destaca neste reconhecimento: o risco de tomar essa contradição

107
como uma dualidade, como condição inibidora da autonomia profissional. A
opção por uma ordem societária sem dominação e exploração de qualquer tipo
não se limita ao campo das práticas profissionais, mas tem nelas uma importante
mediação, haja vista as funções que desempenham nos processos de reprodução
das relações sociais. Para o Serviço Social essa opção tem representado uma
inserção política e profissional nos processos de mobilização e luta pelos
direitos humanos organizados por diferentes sujeitos políticos. Esta dimensão
relativa à formação e ao exercício profissional tem encontrado nas entidades
da categoria, o Conselho Federal de Serviço Social, os Conselhos Regionais
de Serviço Social, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social e na Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social, importantes e
decisivos agentes coletivos. Contudo, a inserção nos movimentos de defesa dos
direitos humanos e afirmação/ampliação dos direitos sociais não se restringe à
ação desempenhada pelas entidades, são também espaços de atuação coletiva
e individual dos/as assistentes sociais.
A autonomia profissional sempre esbarra nas condições que particularizam
as relações de trabalho assalariadas e nas formas de prestação dos serviços
sociais organizadas por um Estado classista; no entanto este limite expressa,
sobretudo, as condições nas quais essa autonomia pode ser exercida e não sua
negação. Ela envolve a capacidade de leitura e organização da ação profissional
a partir dos princípios éticos afirmados na trajetória do Serviço Social, ou seja,
pressupõe antes de tudo o exercício da razão e da livre escolha sobre alternativas
concretas, que resultaram, por seu turno, também de disputas que envolveram
práticas políticas e profissionais ética e teoricamente formuladas na dinâmica
societária.
Nos termos apresentados nesta reflexão compreendemos os princípios
éticos relacionados à opção por uma nova ordem societária sem dominação
e exploração de qualquer espécie como horizonte e suporte do trabalho
profissional, que requer a formulação de um projeto profissional no qual as
estratégias de ação sejam construídas reconhecendo tanto a dinâmica dos
processos de luta protagonizados pelos sujeitos coletivos como as contradições
presentes nas práticas institucionais, nas políticas públicas, nos programas
sociais e nos serviços prestados à população.
Um dos desafios que se apresenta hoje para os/as assistentes sociais é
o de reconhecer os sujeitos coletivos que atuam no campo de luta contra
distintas formas de discriminação, preconceito, dominação e exploração, além
de identificar os graus possíveis de articulação com seu trabalho cotidiano.

108
Traduzir no projeto de intervenção2 as ações de articulação política como um
componente do trabalho profissional estabelecendo vínculos com o conjunto
dos processos institucionais nos quais se insere não tem sido uma tarefa fácil,
mas que julgamos necessária para o enfrentamento da lógica fragmentada que
prevalece na relação entre concepção e condução dos processos de trabalho
institucionais.
A formulação do projeto profissional no campo laborativo tem se tornado
uma sobrecarga para muitos profissionais diante das precárias condições em
que seu trabalho se realiza, mas é uma daquelas tarefas que só é produzida
como parte do esforço empreendido na relação entre consciência e liberdade
para a construção de uma ação teleologicamente fundada, voltada para atingir
determinadas finalidades no campo profissional, institucional e social. O projeto
por si só não produz alterações substantivas na condução do trabalho, mas
materializa a capacidade crítica e propositiva que buscamos sedimentar no
exercício profissional. Oferece um campo de diálogo e compreensão acerca
das competências e atribuição autodefinidas no âmbito da autonomia técnica
e profissional do/a assistente social. Além de poder previamente estabelecer
os horizontes e os procedimentos necessários à condução dos processos de
avaliação, sistematização e investigação integrados à rotina institucional.
De certo modo tal movimento diz respeito a uma compreensão mais
ampla da autonomia profissional que não faz alusão a uma ou outra dimensão
do trabalho do/a assistente social, pois a pensa enquanto totalidade, o que a
torna fundamental para uma efetiva apropriação dos princípios éticos que
orientam a profissão. Neste ponto, afirmamos que tais princípios não são
alcançáveis e realizáveis sob quaisquer condições teóricas, políticas e técnicas,
visto que pressupõem um exercício profissional que não se reduz ao campo
dos “compromissos” firmados discursivamente, pois se sustentam em práticas
qualificadas, nas quais a busca permanente por aprimoramento, pela troca,
pela socialização de experiências sistematizadas constitui mais do que novas
exigências para o/a assistente social, e sim um processo de escolha ética por um
tipo determinado de trabalho e não por qualquer forma de realização do mesmo.
A relação entre a autonomia do sujeito e as determinações da estrutura revela
uma tensão ineliminável do trabalho profissional; por essa razão a recuperamos
insistentemente como foco de reflexão acerca da viabilidade dos princípios

2. Lembrando que a construção do projeto de intervenção em si já constitui hoje um desafio


central na construção de um trabalho ética e teoricamente orientado

109
éticos que norteiam a profissão, particularmente no que se refere à construção
de uma nova ordem societária sem dominação e exploração. Visto que as
condições objetivas a partir das quais cada sujeito profissional se posiciona e
atua em relação a essa construção não são as desejadas ou necessárias, envolve
também a opção pela construção de uma ação profissional que, realizada a partir
dessas condições, também atue sobre elas visando sua superação. Contudo,
para isso o desvelamento de como essas bases reais de realização do trabalho
profissional expressam condições singulares de reprodução dos processos de
dominação é fundamental.
A realização de processos investigativos sobre as condições de vida e
trabalho da população, sobre os processos institucionais que asseguram sua
reprodução, sobre a formulação de estratégias na esfera privada que ampliem o
campo de proteção social para além da família e do trabalho, sobre o alcance e as
formas de estruturação dos serviços e programas sociais são indispensáveis para
a compreensão dos mecanismos institucionalizados de reprodução das práticas
de dominação social que produzem os consentimentos passivos. A produção de
conhecimento sobre esses processos é fundamental para o estabelecimento de
vínculos políticos e profissionais com os sujeitos coletivos que atuam na defesa
dos direitos humanos e nas lutas contra diferentes formas de opressão, visto que
fornecem dados, conteúdos e análises que possam se compartilhados visando o
fortalecimento dos processos de mobilização e de denúncia social.
O enfoque que privilegiamos neste texto sobre as condições que envolvem
o exercício profissional no campo das políticas sociais, da operacionalização dos
programas e serviços sociais como expressões contraditórias da dinâmica de
reprodução/superação da de uma ordem societária sustentada em práticas de
dominação e exploração não foi apresentado com a intenção de opor o trabalho
profissional a essas práticas, como se constituíssem campos intocáveis. Ao
contrário, procuramos mostrar que, nos marcos da sociabilidade do capital,
inúmeras práticas institucionais expressam contradições pouco identificadas
com os processos de dominação em função de privilegiarmos apenas uma
de suas feições, aquela que traduz no campo organizacional do Estado e das
instituições da sociedade civil os mecanismos instituídos de acesso a bens e
serviços sociais, não necessariamente públicos.
A ação profissional não pode deixar de examinar as condições
socioinstitucionais sobre as quais ela se realiza como parte do processo de
reprodução das condições necessárias à manutenção de uma ordem societária
excludente, dominadora e exploradora das capacidades humanas. Porém, este

110
exame deve também desvelar as possibilidades que esses espaços contraditórios
encerram e a partir das quais a ação profissional pode se realizar como
componente de um processo contra-hegemônico, como forma de resistência,
particularmente como trabalho presidido por valores éticos e morais vinculados
a um determinado projeto societário. Contudo, tal exame não é suficiente para
que qualquer alteração se efetive: deve ele integrar o esforço de realização das
formas de consciência e de liberdade no âmbito sobre o qual cada assistente
social, em sua singularidade, pode diretamente realizar escolhas: o da autonomia
profissional.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, N. L. T. de & ALENCAR, M. M. T. de. Serviço Social, trabalho e políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2011.

BARROCO, M. L. S. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2008.


(Biblioteca básica de serviço social; v. 4).

BARROCO, M. L. S. & TERRA, S. H.; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL –


CFESS (Org.). Código de Ética do/a assistente social comentado. São Paulo: Cortez,
2012.

111
PRINCÍPIO 9

Articulação com os movimentos de outras


categorias profissionais que partilhem dos
princípios deste Código e com a luta geral
dos trabalhadores
Conselho Federal de Serviço Social – CFESS1

Refletir sobre o princípio acima citado do atual Código de ética do/a Assistente
Social nos exige apreender as diversas dimensões da realidade concreta,
como: a compreensão do/a assistente social como trabalhador/a, logo sujeito/a
componente da classe trabalhadora e os impactos que a ordem monopólica do
capital vem, historicamente, desenvolvendo, de afrontamento às condições de
vida e trabalho, bem como aos direitos duramente conquistados pela classe
trabalhadora. Nesse contexto de luta, polarizado entre o capital e o trabalho, faz-
se importante a junção de forças daqueles que ousam afirmar que a exploração,
a desigualdade social, a alienação, dentre outros, não são fenômenos naturais.
Faz-se necessário enfrentá-los e tal enfrentamento é uma ação coletiva da classe
trabalhadora e os/as assistentes sociais, como trabalhadores/as assalariados
que são, podem e devem contribuir com este processo.
O presente artigo pretende recuperar a importância da categoria trabalho;
depois desenvolve uma reflexão sobre o trabalho no capitalismo e, por fim,

1. Texto escrito pela gestão “Tempos de luta e resistência” (2011-2014), composta por:
Presidente: Sâmya Rodrigues Ramos (RN), Vice-Presidente: Marinete Cordeiro Moreira (RJ),
1ª secretária: Raimunda Nonata Carlos Ferreira (DF), 2ª secretária: Esther Luíza de Souza
Lemos (PR), 1ª tesoureira: Juliana Iglesias Melim (ES), 2ª tesoureira: Maria Elisa dos Santos
Braga (SP). Conselho Fiscal: Kátia Regina Madeira (SC), Marylucia Mesquita (CE), Rosa
Lúcia Prédes Trindade (AL). Suplentes: Heleni Duarte Dantas de Ávila (BA), Maurílio Castro
de Matos (RJ), Marlene Merisse (SP), Alessandra Ribeiro de Souza (MG), Alcinélia Moreira de
Sousa (AC), Erivã Garcia Velasco – Tuca (MT), Marcelo Sitcovsky Santos Pereira (PB).

112
empreende um balanço do Serviço Social no processo de ruptura com o
conservadorismo profissional e sobre as lutas da profissão na articulação com os
movimentos de outras categorias profissionais que partilham dos princípios do
Código de Ética do/a Assistente Social e com a luta geral dos/as trabalhadores/as.

1. O trabalho e a sua centralidade na vida de homens e mulheres

Ainda que apareça que o trabalho humano vem sendo substituído pela
maquinaria e pelos modernos processos de informatização e da robótica – que
não deixa de gerar novos desempregos – o fato é que, mesmo com as novas
tecnologias, o capitalismo não pode abrir mão da ação humana, do trabalho.
No trabalho está a origem do processo de formação do ser humano, uma
vez que, por meio de um processo criativo e criador de transformar a natureza em
busca de suas necessidades, este ser se constitui tão especial, que se diferencia
dos outros animais. Ao transformar a natureza o ser humano passa a se constituir
num ser pensante, com capacidade teleológica, desenvolve a linguagem e o agir
ético, entre outras faculdades (MARX, 2012).
Mas o trabalho, que constitui a essência do ser, passa, no capitalismo, a
ser um fardo para homens e mulheres. Pois o trabalho alienado – uma vez que
o ser humano não trabalha para responder a uma necessidade sua e sim vende
a sua forca de trabalho para sobreviver e não se vê no produto final que ajudou
a construir – é algo que o destitui da compreensão de que pode ser sujeito de
sua história.
Portanto, é fundamental reafirmar a importância do trabalho e caminhar por
terrenos distintos dos que pregam o fim do trabalho como categoria central para
entender o mundo. Afinal, nunca na história da humanidade se trabalhou tanto –
e em condições tão precárias.

2. As investidas do capital para intensificar os processos de exploração da


classe trabalhadora

Compreende-se que a exploração é condição de existência do modo de


produção capitalista. Contudo, a exploração do trabalho não se inicia com
o capitalismo, pois nos modos de produção que o antecederam (asiático,
escravismo e feudalismo) a exploração do trabalho também estava presente. Do
ponto de vista ontológico o surgimento da propriedade privada e do Estado estão
diretamente relacionados com a exploração do homem pelo próprio homem.

113
Todavia, no modo de produção capitalista a exploração assume particularidades,
e o assalariamento passa a ser a mediação para o atendimento das necessidades
daqueles que só lhes resta sua capacidade de trabalho. Noutros termos, o
capitalismo produz e reproduz a exploração do trabalho assalariado, como parte
de sua própria dinâmica.
Na sociedade fundada na apropriação privada dos meios de produção
e na exploração do trabalho assalariado o processo de produção é orientado
pela busca do lucro e, consequentemente, da acumulação de capital. Neste
sentido, ao longo da história do capitalismo a gestão do processo produtivo
e o disciplinamento da força de trabalho é uma necessidade constante, o que
pode ser observado com os modelos taylorista, fordista e toyotista de produção
– expressões do processo de subordinação e subsunção do trabalho ao capital.
Chamamos atenção, aqui, para o taylorismo – que é um modelo de
organização do processo produtivo e de gestão e disciplinamento da força de
trabalho no capitalismo, pautado nas formulações, entre o final do século XIX e
início do século XX, de Frederick Taylor (1856-1915). Tem como premissa básica
a subdivisão das atividades realizadas pelos trabalhadores em tarefas simples
e repetitivas, bem como o advento da “administração científica”, com vistas a
controlar e padronizar a produção (PINTO, 2007).
O fordismo tem sua origem nas ideias de Henry Ford (1862-1947), aprofunda
o modo de produção taylorista ao introduzir, na linha de montagem das fábricas,
máquinas automáticas – um sistema de carretilhas já usadas pelos matadouros
– que passam a substituir o trabalho, até então desenvolvido pelo homem, de
deslocamento da matéria-prima, dos instrumentos de trabalho e do produto que
está sendo elaborado em partes dentro do processo de produção coletiva (PINTO,
2007).
Assim, o taylorismo/fordismo foi uma estratégia, dentro do modo de
produção capitalista, que teve como característica – a partir da entrada em cena
da maquinaria e, consequentemente, da introdução de novas tecnologias – uma
produção coletiva e em série em um mesmo espaço, com diversos/as operários/
as trabalhando simultaneamente de forma parcelar, cronometrada e rápida.
Nesse modo nenhum/a trabalhador/a domina todo o processo de trabalho e,
sim, desenvolve uma ação repetida diversas vezes durante a jornada de trabalho
sob o controle de uma gerência. Esse padrão de produção foi hegemônico até
os anos setenta do século passado. A partir daí começa a entrar em declínio
e as estratégias da produção passam a ser montadas a partir do que se
convencionou chamar, em geral, de “reestruturação produtiva”/“acumulação

114
flexível”, influenciadas a partir do modo toyotista de produção.
Nesse novo contexto, podemos observar uma múltipla processualidade: de
um lado verificou-se uma desproteção/desregulação do trabalho industrial, fabril,
nos países de capitalismo avançado, com maior ou menor repercussão em áreas
industrializadas dos países de economia dependente. Por outro, efetivou-se
uma expressiva expansão do trabalho assalariado, a partir da enorme ampliação
do assalariamento no setor de serviços. Verificamos, ainda, uma significativa
heterogeneização do trabalho, expressa também através da crescente
incorporação do contingente feminino no mundo operário, e vivenciamos uma
subproletarização intensificada, presente na expansão do trabalho parcial,
temporário, subcontratado, terceirizado. Presenciamos, também, o incremento
dos assalariados médios e de serviços, o que possibilitou o sindicalismo nesta
frente, ainda que o setor de serviços já presencie o desemprego (ainda que se
possa questionar o potencial político desse sindicalismo); uma exclusão, nos
países desenvolvidos, de jovens e de pessoas de meia idade do mercado de
trabalho; por outro lado, gerou nos países industrializados uma redução de
crianças no mercado de trabalho e expandiu o que Marx chamou “trabalho social
combinado”, onde trabalhadores de diversas partes do mundo participam do
processo de produção e de serviços (ANTUNES, 2006).
Nesse novo cenário o grande avanço tecnológico, a automação, a robótica e a
microeletrônica dominaram o universo fabril, inserindo-se e desenvolvendo-se nas
relações de trabalho e de produção do capital. O capitalismo foi se reorganizando
através de novas modalidades de desconcentração industrial, novos padrões de
gestão da força de trabalho, dos quais os Círculos de Controle de Qualidade
(CCQs), a gestão participativa, a busca da qualidade total, são expressões
visíveis. O toyotismo penetrou, combinando-se ou mesmo substituindo o padrão
fordista dominante, em várias partes do capitalismo mundializado. Passamos a
vivenciar novas formas de produção, cujos desdobramentos foram e ainda são
também agudos, no que se refere aos direitos do trabalho. Estes passam a ser
desregulamentados, flexibilizados ou até mesmo destruídos de modo a dotar o
capital do instrumental necessário para adequar-se a sua nova fase. Direitos e
conquistas históricas da classe trabalhadora foram substituídos e eliminados do
mundo da produção. Diminuiu-se ou mesclaram-se, dependendo da intensidade,
o despotismo taylorista, pela participação dentro da ordem e do universo da
empresa, pelo envolvimento manipulatório, próprio da sociabilidade moldada
contemporaneamente pelo sistema produtor de mercadorias (ANTUNES, 2006).
A fase atual do capitalismo é marcada por uma característica fundamental

115
criada pelo seu próprio desenvolvimento: a internacionalização e financeirização
da economia, acrescida pelo enaltecimento do papel do mercado em detrimento
da ação estatal; a deterioração das condições de trabalho e de vida da classe
trabalhadora; a difusão de um novo tipo de individualismo.

3. O papel do Estado nas respostas às expressões da questão social

Ainda que historicamente essa resposta tenha sempre se dado na


triangulação de tensionamentos e necessidades da classe trabalhadora, dos
capitalistas e do Estado, não resta dúvida que o Estado quando incorpora as
demandas da classe trabalhadora o faz sob a aparência da concessão, tendendo
a respostas pontuais, visto que sua função social no capitalismo é garantir a
propriedade privada e a exploração de classe. No entanto, sabemos – e o
Serviço Social tem acúmulo sobre isso – que as políticas sociais são concessão
e conquista ao mesmo tempo.

Importa ressaltar que a despeito de as políticas sociais se constituírem em


antecipações estratégicas das classes dominantes, elas são impensáveis sem
a organização da classe trabalhadora. [...] Contudo, o reconhecimento de que
a luta de classes é uma importante mediação para o desenvolvimento das
políticas sociais, não pode servir de justificativa para operar uma mistificação
com que se busca apagar o conteúdo de classe do Estado (TAVARES;
SITCOVSKY, 2012, p. 215).

No caso brasileiro não podemos desconsiderar o processo de contrarreforma


do Estado2, pautada nas orientações ideopolíticas do neoliberalismo.
Ao longo dos anos 1990, propagou-se na mídia falada e escrita e nos meios
políticos e intelectuais brasileiros uma avassaladora campanha em torno das
“reformas”. A era Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi marcada por esse
mote, que já vinha de Fernando Collor, cujas características de outsider (ou o
que vem de fora) não lhe outorgaram legitimidade política para conduzir esse
processo. Tratou-se, como se pôde observar, de “reformas” orientadas para o

2. De acordo com Behring (2003, p. 146), está em curso no Brasil não uma reforma, mas
uma contrarreforma. A autora afirma que há uma apropriação indébita do termo reformista:
“Mesmo que o termo reforma seja apropriado pelo projeto em curso no país ao se auto
referir, partirei da perspectiva de que se está diante de uma apropriação indébita e fortemente
ideológica da ideia reformista, a qual é destituída de seu conteúdo progressista e submetida
ao uso pragmático, como se qualquer mudança significasse uma reforma, não importando
seu sentido, suas consequências sociais e direção política”.

116
mercado, num contexto em que os problemas no âmbito do Estado brasileiro
eram apontados como causas centrais da profunda crise econômica e social
vivida pelo país desde o início dos anos de 1980. Reformando-se o Estado, com
ênfase especial nas privatizações, e, acima de tudo, desprezando as conquistas
da Constituição Federal de 1988 no terreno da seguridade social e outros – a
Carta Constitucional era vista como perdulária e atrasada –, estaria aberto o
caminho para o novo projeto de modernidade. O principal documento orientador
dessa projeção foi o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE, 1995),
amplamente afinado com as formulações de Bresser Pereira, então à frente do
Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE) [...] (BEHRING;
BOSCHETTI, 2007).
Temos uma conjuntura de reversão e destruição dos direitos sociais, numa
configuração de política social que reforça o desfinanciamento público, o retorno
à filantropia, o trabalho voluntário, a transferência de responsabilidades estatais
para a sociedade civil “prestadora de serviços” e a mercantilização dos direitos
sociais.

[...] no que diz respeito aos programas sociais, [temos o] trinômio


articulado da focalização, privatização e descentralização. Assim, trata-se de
desuniversalizar e assistencializar as ações. Uma política social residual que
soluciona apenas o que não pode ser enfrentado pela via do mercado, da
comunidade e da família. O carro-chefe dessa proposição é a renda mínima,
combinada à solidariedade por meio das organizações da sociedade civil
(BEHRING, 2009, p. 310).

Além disso, concordamos com a tese de que existe uma relação direta entre
precarização e diversas formas de flexibilização do trabalho e dos direitos. A
precarização do trabalho e a flexibilização dos direitos são as mudanças mais visíveis
de um período de hegemonia do capital financeiro e de enfraquecimento da classe
trabalhadora. Mas, relacionada a esta engrenagem, está, também, o enfrentamento
da chamada questão social com pobres políticas para pobres, políticas focalizadas
e voltadas para a redução da pobreza absoluta (GUERRA, 2011).

As formas de organização social do trabalho, historicamente, determinam a


arquitetura das políticas sociais. Isso significa dizer que o desenvolvimento
histórico do trabalho exerce influência direta na definição do tipo, do conteúdo,
dos objetivos e do alcance das políticas sociais. Portanto, as políticas sociais
podem sofrer inflexões de acordo com o estágio de desenvolvimento da
sociedade capitalista, pois a história do capitalismo é atravessada por formas
diferenciadas de subsunção do trabalho ao capital (TAVARES; SITOCOVSKY,
2012, p. 227).

117
A política econômica do Brasil está em plena sintonia com a dinâmica mundial
do capital e isso se expressa no aprofundamento das expressões da questão
social; na banalização da violência; na destinação do fundo público direcionado
a serviço da dívida, financiamento da crise do capital; na privatização do Estado;
na superexploração da força de trabalho; na dívida pública e no desemprego.
Esse contexto tem reposto aos movimentos sociais e sindicais articulados
à luta dos trabalhadores desafios permanentes e cotidianos com a luta pela
universalização das políticas sociais; expansão e efetivação dos direitos:
ampliação do acesso ao ensino público, gratuito, presencial, laico e de qualidade
em todos os níveis; desconcentração da terra e da propriedade; redistribuição da
renda e riqueza; garantia de alocação do orçamento público nas políticas sociais
e fim de sua utilização para pagamento de juros e amortizações da dívida pública,
como mediações da luta pela construção de outra sociedade sem exploração de
classe e opressões de gênero e etnia. Uma sociedade para além do capital!

4. O Serviço Social e o compromisso com os interesses da classe trabalhadora

O Serviço Social brasileiro se configurou distante dos movimentos e das lutas


da classe trabalhadora. Afinal, nossa gênese está relacionada com a mudança
do Estado monopolista frente às expressões da questão social, tendo a reação
católica enquanto caldo cultural desse processo.
Na ruptura com o conservadorismo, há pouco mais de 30 anos, a direção
política da profissão se comprometeu com os interesses da classe trabalhadora.
Paradigmático foi o Congresso da Virada (1979), com a mesa de encerramento
que contou com representantes sindicais e que se constituiu como um marco
histórico do processo de organização da categoria; foi a expressão de um
novo posicionamento político dos(as) assistentes sociais e das suas entidades
representativas no III CBAS, realizado em São Paulo no ano de 1979. As entidades
representativas dos(as) assistentes sociais são expressões deste processo de
organização política e passam a desenvolver, a partir desse marco histórico do III
CBAS, uma expressiva agenda de lutas profissionais e sociais.
Mas o fato é que poucos da categoria – ainda que certamente progressistas
– se envolvem com as lutas classe trabalhadora. Ainda caímos em tentação de
falar sobre eles, os trabalhadores. Precisamos falar de nós, assistentes sociais
trabalhadores, tal qual nossos companheiros trabalhadores.
Neste sentido, Lopes (1999) salienta que os/as assistentes sociais devem
orientar sua intervenção na sociedade na perspectiva de considerar sua

118
especificidade profissional e sua universalidade, enquanto trabalhador/a, como
unidade e como particularidade. Na mesma direção, Abreu (2002) salienta a
necessidade de mobilização e organização da categoria visando à formação de
sua identidade de classe como parte da classe trabalhadora.
Essa questão é muito importante. Primeiro porque a classe trabalhadora em
si, ainda que seja, certamente, o público alvo do Serviço Social, foi tratada – e
se não ficarmos atentos ainda pode ser assim tratada – como “cliente”, “pobre”,
“assistido”, “extremamente pobre”. Há uma tendência na profissão, que tem a ver
com suas origens, de compreender e abordar o usuário despossuído da classe a
que pertence. Isso reforça a individualização e a responsabilização dos sujeitos
pelo que ocorre em suas vidas. Todavia, a direção hegemônica do Projeto Ético
Político Profissional é clara ao se vincular a determinado projeto societário numa
perspectiva de ruptura radical com a exploração capitalista e todas as formas de
opressão.
As conquistas civilizatórias sempre foram do tensionamento dos “de baixo”
contra os representantes do capital. Foi a organização da classe trabalhadora que
reduziu jornada de trabalho, impôs férias, horas de descanso, organização sindical
classista e autônoma etc.
Por isso, é importante a articulação do Serviço Social com as forças sociais
de esquerda. Foi na releitura da profissão, no contexto de reabertura política pós-
ditadura militar que o Serviço Social brasileiro pode se alinhar junto aos setores
progressistas do Brasil.
O Serviço Social contribuiu na construção da Central Única dos Trabalhadores
(CUT), democratizou suas entidades, reformulou seus instrumentos normativos
(pensemos especialmente no Código de Ética vigente – de 1993 –, onde não há
espaço para o corporativismo e sinaliza a articulação aos princípios históricos
das lutas da classe trabalhadora e o precedente da possibilidade de denúncia por
parte dos usuários etc.).
As entidades da categoria hoje participam de movimentos junto aos outros
trabalhadores. Cabe ressaltar que não se trata aqui de fazer uma mera listagem
das atividades e ações realizadas, mas de destacar processos verdadeiros de lutas
e resistências que se constroem coletiva e cotidianamente no interior do Conjunto
CFESS/CRESS e na articulação com outras categorias profissionais, tendo como
referência a luta mais geral da classe trabalhadora.
O Conselho Federal de Serviço Social redefiniu sua postura política a partir
do final da década de 1980, em sintonia com os processos de redemocratização
da sociedade brasileira e de renovação profissional, ocorridos neste período.

119
Destaca-se, nas décadas de 1980/90, o protagonismo do CFESS na perspectiva de
contribuir para a materialização do projeto profissional, por meio de investimentos
no debate e na intervenção no âmbito das políticas sociais, da ética, bem como sua
participação ativa em articulações com outros sujeitos coletivos, os quais atestam
a sua importância para o processo de materialização do projeto ético-político do
Serviço Social (RAMOS, 2006, p. 106).
Esses processos também revelam o amadurecimento teórico, ético-político
e normativo do Serviço Social brasileiro nas últimas décadas. Pensemos:
• na Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde e nos fóruns estaduais, contra
as terceirizações e os modelos de gestão privatizantes que desvirtuam o Sistema
Único de Saúde (SUS): Fundações, Organizações Sociais (OS), Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (EBSERH);
• no Fórum Nacional de Trabalhadores do SUAS, promovendo em conjunto com
outras categorias profissionais a campanha “Nosso trabalho com direitos é direito
social pra você – Por concurso público e contra a precarização do trabalho no SUAS”;
• no Fórum das Entidades Nacionais dos Trabalhadores da Saúde (FENTAS), que
articula as 14 profissões da área da saúde;
• na Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos, em articulação política com sujeitos
coletivos que asseguram o debate crítico sobre a política brasileira de drogas, o
posicionamento contrário em relação à internação compulsória e ao financiamento
público das comunidades terapêuticas;
• no Comitê Nacional Executivo da Campanha pelos 10% do PIB para a educação
pública, já reafirmando a luta histórica da categoria em defesa de uma educação
pública, gratuita, laica, presencial e de qualidade;
• no Plano de Lutas em Defesa do Trabalho e da Formação e Contra a Precarização
do Ensino Superior, do qual participam o Conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS e
ENESSO;
• na Política de Educação Permanente do Conjunto CFESS/CRESS, que tem como
objetivo contribuir para a garantia do aprimoramento intelectual, tendo em vista a
qualidade dos serviços prestados à população usuária;
• na campanha de gestão do Conjunto CFESS/CRESS 2011-2014, “Sem movimento
não há liberdade”, que reafirma o compromisso ético com a defesa intransigente dos
direitos humanos e teve adesão e apoio de diversos movimentos sociais e entidades
comprometidas com esta luta em todo país;
• na luta pela implementação da Lei das 30 horas para todos/as assistentes sociais,
confirmando a luta histórica da classe trabalhadora pela redução da jornada de trabalho;

120
• na aprovação da redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais para
todas/os trabalhadores/as do Conjunto CFESS/CRESS, sem diminuição salarial;
• na luta pela aprovação do Projeto de Lei que estabelece piso salarial para assistentes
sociais;
• na Resolução sobre as condições éticas e técnicas do exercício profissional
(Resolução CFESS nº 493/2006);
• no acompanhamento permanente de projetos de lei de interesse do Serviço Social;
especialmente queremos chamar atenção para a articulação para aprovação da lei
que institui os profissionais de Serviço Social e de Psicologia nas escolas públicas de
educação básica;
• na campanha pela realização de concursos públicos para assistentes sociais em
diferentes espaços sócio‑ocupacionais;
• na promoção de seminários nacionais gratuitos para analisar questões e desafios
referentes ao trabalho profissional;
• na elaboração de parâmetros/subsídios para atuação de assistentes sociais nas
áreas de saúde, assistência social e educação;
• nas articulações do CFESS com os movimentos sociais que se colocam numa
perspectiva emancipatória e nas representações políticas da entidade nos mais
diversos conselhos gestores de políticas sociais.
Com isso, reafirmamos, mais do que nunca, o reconhecimento e compromisso
com as lutas históricas da classe trabalhadora e contra as ações que procuram
inibir, obstaculizar e coibir suas formas de resistência e de organização coletiva.
Os investimentos do CFESS no debate e intervenção, no âmbito da defesa
das condições de trabalho das/os assistentes sociais, atestam a importância da
sua ação política para o processo de materialização do projeto profissional do
Serviço Social brasileiro. Todavia, ainda que tenhamos concordância com o fato
de que toda classe em luta precisa formular suas reivindicações em direitos e
leis, sabemos que somente as alterações legais ou a conquista de direitos não
poderão transformar a realidade. Para eliminar a exploração, é indispensável
superar o modo de produção capitalista, não deslocando do nosso horizonte a
perspectiva da revolução social. Somente a força coletiva, manifestada pelos/as
trabalhadores/as na luta de classes, nos permitirá moldar com nossas próprias
mãos uma nova ordem societária sem dominação-exploração de classe, etnia e
gênero.
“As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis. Meu nome é tumulto, e
escreve-se na pedra”. (Carlos Drummond de Andrade)

121
Referências
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da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002.

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(UNOESTE – Campus Toledo), 27 a 29 de julho de 2011.

IAMAMOTO, Marilda e CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil.


8ª edição. São Paulo: Cortez e Celats, 1991.

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MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. (Tradução de Reginaldo


Santanna). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012.

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profissional: o protagonismo do Conselho Federal de Serviço Social. Tese de doutorado
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reprodução da força de trabalho. In: MOTA, Ana Elizabete. (org). Desenvolvimentismo
e construção de hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade.
São Paulo: Cortez, 2013.

122
PRINCÍPIO 10

Compromisso com a qualidade dos


serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da
competência profissional: significado, limites
e possibilidades
Yolanda Guerra1

A luta é justamente para que a qualificação humana não seja subordinada


às leis do mercado e à sua adaptabilidade e funcionalidade, seja sob a forma
de adestramento e treinamento estreito da imagem mono domesticável dos
esquemas tayloristas, seja na forma de polivalência e formação abstrata,
formação geral ou policognição reclamados pelos modernos homens de
negócios e os organismos que os representam (Frigotto, 1996, p. 31)

INTRODUÇÃO

Como resultado de lutas e conquistas da categoria (SANTOS, 2012) através


de seus sujeitos individuais e coletivos, o atual Código de Ética profissional,
documento que sintetiza os compromissos que a profissão estabelece com diversos

1. Assistente social, Mestre e Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (1994 e 1998). Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço Social na
Contemporaneidade- NEFSSC da UFRJ e o Projeto de Pesquisa sobre os FUNDAMENTOS
HISTÓRICOS, TEÓRICO-FILOSÓFICOS E POLITICOS DA NOÇÃO DE DIREITOS E O
SERVIÇO SOCIAL. Autora do livro A Instrumentalidade do Serviço Social (Cortez, 1995) e de
artigos publicados em periódicos especializados.

123
segmentos da sociedade brasileira, para além de uma referência normativa e
compulsória, tem sido o horizonte para o qual segmentos da categoria profissional
têm se orientado na perspectiva da realização de um exercício profissional
que atenda com competência, no nível imediato, às demandas profissionais, e
mediatamente, que afirme compromissos na construção de uma determinada
sociedade. Dentre outras delimitações, o Código expõe compromissos assumidos
com os sujeitos que demandam acesso às políticas e aos serviços sociais, dos
quais somos formuladores e/ou executores. Tais compromissos contemplam uma
determinada leitura da realidade e neles estão implicadas uma visão de homem e
de mundo e uma perspectiva de sociedade. Dito de outro modo: nosso Código de
Ética, diferentemente do que é característica de todo código moral, não se constitui
em uma pauta de dever ser, num documento jurídico-formal, mas em um projeto
que tanto contempla os fundamentos teórico-metodológicos que nos permitem
uma leitura da realidade capaz de desvelar o significado social da profissão
na nossa sociedade quanto carrega no seu interior um conjunto de princípios
que explicita os valores que priorizamos e as forças políticas que reforçamos
e atribuem, de maneira coerente, uma determinada direção teórico-prática ao
que fazemos no nosso cotidiano. Assim, este projeto é também processo em
construção e ganha efetividade no enfrentamento das reais condições objetivas
e subjetivas que conformam o cotidiano exercício profissional. De igual modo,
tais princípios só podem se plasmar no cotidiano profissional mediatizados pelas
nossas atribuições e pela maneira como respondemos às demandas que nos
chegam. O objetivo deste artigo é explorar o significado de um dos princípios mais
importantes do Código de Ética, o qual, por que referido ao exercício profissional, é
responsável por atribuir-lhe determinado estatuto, do que decorrem compromissos
sócio-profissionais e políticos da maior relevância. Estou me referindo ao 10º
principio: “compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população
e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional”,
apontando para seu significado, suas possibilidades e limites. Faz-se necessário
afirmar que a realização deste princípio constitui-se numa possibilidade de dar
efetividade aos valores e princípios do nosso projeto ético-politico.

1. Todo principio deve partir da realidade e a ela retornar

Seria tão fácil quanto ilusório neste texto estabelecer uma pauta principista
que, orientada por um dever ser, exigisse das assistentes sociais, no âmbito
ideal, que buscassem uma formação contínua capaz de avançar sobre sua

124
formação graduada, na perspectiva de preencher suas lacunas, através das
especializações/capacitações nos moldes das que são oferecidas no mercado,
as responsabilizando individual e unicamente por este longo processo
educativo que é resultado de um modelo de ensino tecnicista, baseado na
hierarquização das profissões e na fragmentação entre os que pensam e os
que fazem, retirando do Estado sua responsabilidade por uma educação de
qualidade. Fácil seria culpabilizar as profissionais pela ausência de acesso a
uma formação/capacitação que incida sobre a qualidade dos serviços prestados
à população usuária, sobre seu aprimoramento intelectual e a materialização
deste no cotidiano, quando as condições objetivas e subjetivas para isso lhe
são dificultadas. Fácil seria supor que qualquer tipo de formação/capacitação
vale a pena2, quando a mercadoria educação tem sido cada vez mais valorizada
como um grande nicho de mercado e, como toda mercadoria, concebida pelos
critérios de barateamento e rápido consumo e, ainda, quando grande parte
dos cursos oferecidos no mercado difunde/reproduz a lógica do capital, a
dinâmica mesma de seu processo de autovalorização e o ethos liberal burguês.
Equivocada seria a análise se considerássemos que as questões que limitam um
exercício profissional competente e compromissado referem-se, exclusivamente,
à necessária capacitação dos profissionais.
Não obstante, parece correto afirmar que nenhum profissional pode
efetivamente se colocar num patamar de competência sem que faça um esforço
sistemático de buscar uma capacitação contínua na direção de qualificar o seu
exercício profissional, seja na formulação/avaliação de políticas, seja na gestão/
execução dos serviços, seja na supervisão de estágio, seja na docência, seja na
pesquisa, dentre outras atribuições e competências.
Então, se não se quer tratar os princípios do projeto ético-político como
um conjunto de intenções, desvinculados da própria realidade, um remédio
que pode curar todos os males, uma panaceia que resolve todos os problemas,
temos que “subir da terra aos céus” (TRINDADE, 2011, p. 74), ou seja, partir das
condições objetivas da própria realidade.
Assim é que discutir um princípio do Código de Ética, neste caso, o
“compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional”, só nos

2. Aqui estou me referindo aos MBAs e ao recorrente processo de empresariamento da


educação, em especial, no que se refere aos cursos de graduação/especialização em
Serviço Social.

125
é possível se o remetermos à realidade. O caminho para a problematização do
tema busca, a partir da própria racionalidade do real, extrair os elementos que
nos permitam desvelar a lógica presente nas condições objetivas e subjetivas
deste exercício profissional, bem como nas exigências e possibilidades de
aprimoramento sócio-profissional e qual a direção social estratégica a ser dada
neste processo.
Nesta perspectiva, inicio afirmando que é exatamente aí, na realidade
mesma, que se põe a necessidade da qualificação profissional e que esta, a
depender se seus fundamentos permitirem o desvelamento da realidade,
condicionada a princípios éticos e uma direção política crítica e contestatória,
se converte em competências teórica, política e técnica direcionadas para um
exercício que priorize a qualidade do atendimento das demandas dos usuários,
convertendo-as em demandas coletivas.
Se a afirmação acima tem pertinência, penso que nos cabe refletir sobre:
Qual o significado deste aprimoramento intelectual para uma profissão como o
Serviço Social? Quais os fundamentos da racionalidade que deve ser priorizada
nesta formação? Qual o papel da formação/capacitação de novo tipo para a
construção da contra-hegemonia, com orientação dada pelo projeto ético-
político?
As respostas a estas indagações traçam o caminho metodológico que
vamos percorrer na perspectiva da problematização do tema.

2. Significado do aprimoramento intelectual para uma


profissão como o Serviço Social

Parto da premissa de que a profissão vem estabelecendo uma relação


ambígua3 com o conhecimento teórico, o que incide sobre a maneira pela qual
as profissionais dimensionam a relação teoria/prática. Por algumas décadas, da
gênese da profissão no Brasil4 até o inicio dos anos 80 do século passado, o que
prevaleceu no meio profissional foi um profundo desprezo pelas matrizes clássicas
do conhecimento, pela pesquisa teórica e histórica que negava os dogmas sobre
a natureza e gênese da profissão, priorizando, ao contrário, um modo de “fazer”

3. Eu afirmaria até que a profissão tem para com os fundamentos teóricos uma relação de
“amor e ódio”.
4. Lembrando que a profissão surge como “uma atividade com bases doutrinárias e não científica,
no interior de um movimento de cunho reformista-conservador” (IAMAMOTO, 2004, p. 21).

126
burocrático, repetitivo, pragmático, instrumental. Por outro lado, nesta trajetória,
o conhecimento teórico, ao ser reconhecido pela profissão, passa a ser utilizado
como metro para medir a competência profissional, ignorando não apenas os
saberes interventivos e instrumentais, mas as mediações da própria realidade e a
legitimidade profissional acabam sendo consideradas como variável dependente
do seu estatuto teórico (NETTO, 1992).
Se a história é portadora das explicações racionais, são os processos históricos
que tecem as mediações próprias da cultura profissional que nos permitem
examinar e interpretar ontológica e dialeticamente, ou seja, no movimento da
própria realidade, a razão de, em geral, nutrirmos um profundo descaso pela teoria,
pelo conhecimento, pela capacitação profissional. Mas o próprio modo de ser da
profissão é causa deste rechaço. Sendo o Serviço Social uma especialização do
trabalho coletivo inserida na divisão do trabalho do mundo burguês, ele é travejado
pela racionalidade da fragmentação entre os que planejam e os que executam. A
aparência é a de que “para que estudar tanto para intervir em realidades caóticas,
com políticas minimalistas”? Aqui comparece claramente uma concepção de
prática indeterminada que responde a uma necessidade de atuar e modificar
algumas variáveis do cotidiano, que atende a demandas difusas, heterogêneas,
inespecíficas, que não se diferenciam de atividades realizadas por leigos. No
nível do cotidiano, na imediaticidade da prática, nas respostas instrumentais,
desaparecem os fundamentos teóricos que servem como orientação à escolha
dos meios e a clareza das finalidades da própria intervenção profissional. Ao limitar
sua intervenção a responder as demandas imediatas, a profissional aciona uma
racionalidade instrumental, cuja finalidade está em responder ao “faça”, como um
imperativo da maneira como o profissional vivencia as demandas do cotidiano.
Nesta concepção, a formação profissional estaria oferecendo “teoria demais”,
visto sê-la desnecessária e inútil. Quem não se apercebe qual a teoria pela qual
se orienta torna-se refém de qualquer teoria. Assim, um certo anti-intelectualismo5
encontra-se presente na cultura da profissão, que se contrapõe a uma tendência
ao teoricismo: a utilização das formulações teóricas como receita ou modelo a ser
aplicado à realidade.
Outra determinação importante da própria profissão está na sua natureza

5. A ideia é de Repetti, ao tratar a relação entre o Serviço Social argentino e o peronismo


“original”. Ver tese de doutoramento: Reflexões sobre o Serviço Social argentino: a formação
profissional sob os impactos do “peronismo original” de 1943 a 1955. Tese de Doutorado
defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. Original inédito.

127
como profissão interventiva no âmbito do cotidiano, direcionada a dar respostas
às expressões da chamada “questão social”. Esta determinação acoberta a
necessidade das teorias, em especial de uma teoria crítica capaz de desvelar os
fundamentos da questão social, e coloca a profissão num determinando patamar
de dar respostas que possam incidir na modificação de variáveis presentes no
cotidiano (NETTO, op.cit) para o que a razão instrumental lhe é suficiente, donde
a tendência a converter as formulações teóricas clássicas e contemporâneas em
metodologias de intervenção.
Sabe-se que qualquer profissão somente é reconhecida na medida em que
se sintoniza com as requisições da dinâmica societária, caso contrário, corre o
risco de ver seu exercício profissional esgotar suas possibilidades, perder seu
significado sócio-profissional. Porém, as determinações da realidade, se não
selecionadas sob o parâmetro da crítica, acabam por restringir a qualificação
àquelas exigências do mercado e aqui o perfil é o do técnico adestrado que sabe
perfeitamente preencher as fichas, formulários, lidar com a legislação e com os
sistemas, sem captar os interesses implícitos nos mesmos.
Assim, na perspectiva de uma capacitação contínua e permanente tal como
proposta no nosso Código de Ética Profissional, não se trata apenas de promover
uma recorrente e sistemática atualização profissional, o que por si só já seria de
grande relevância. O que se exige é uma formação que habilite a profissional
tanto a fazer a critica da racionalidade posta na educação da qual sua formação
é resultado quanto se lhe exige o aprimoramento dos seus conhecimentos
numa determinada direção. Faz necessária uma formação que a capacite a uma
leitura crítica da realidade e das tendências e limitações do mercado de trabalho,
suas atuais exigências de capacitação no âmbito do gerenciamento da força de
trabalho, no âmbito da gestão da miséria, dos chamados “riscos sociais” através
de políticas minimalistas, atribuições que hoje colocam a profissão como o braço
executor dos atuais procedimentos exigidos pelo Estado Gerencial, resultado da
contrarreforma dos anos de 19906.
Nesta perspectiva, qual o significado deste aprimoramento intelectual para
uma profissão como o Serviço Social? Por que se capacitar para o trabalho? Que

6. Venho trabalhando a hipótese de que o Estado Gerencial, resultado da contrarreforma


do Estado no Brasil, cria novas funções e atribuições para os assistentes sociais, todas elas
direcionadas ao preenchimento de fichas e monitoramento de Sistemas (de condicionalidades,
sócio-educativo, de prestação de benefícios previdenciários etc.), procedimentos
burocráticos e pré-determinados que visam ao controle da população usuária, disfarçados
por uma aparente neutralidade técnica, sob o discurso de que é a profissional que insere a
sua intencionalidade no instrumental.

128
trabalho é este que exige capacitação?
Em primeiro lugar cabe aqui ressaltar a intrínseca articulação entre a
dimensão formativa e interventiva. Ambas se refletem uma na outra na direção
de conhecer, elaborar respostas e responder aos desafios sócio-profissionais e
políticos.
Os profissionais se inserem nos espaços sócio-ocupacionais, se relacionam
com o mercado e com os empregadores a partir de relações sociais à base da
alienação que caracteriza a venda da força de trabalho por um salário e de um
contrato que orienta um conjunto de regras e procedimentos. A condição de
assalariamento do exercício profissional pressupõe a mediação do mercado
de trabalho, mas não só. Pressupõe o atendimento de demandas advindas
dos empregadores, que via de regra se confrontam com as dos usuários
e, especialmente, com as da profissão. Para desvelar a própria alienação do
trabalho e realizar os procedimentos de desalienação, faz-se necessário ao
profissional suspender temporariamente seu cotidiano de trabalho, através
de outras atividades que lhe permitam “oxigenar” a percepção que tem da
instituição, das demandas, possibilidades e limites sócio-institucionais. São
efetivamente momentos de suspensão que portam a capacidade de nos colocar
novamente em sintonia com a dimensão humano-genérica do nosso próprio ser.
A contradição está no fato de que o processo de trabalho, tal como nos
apresenta Marx, contém em si uma dimensão formativa através da qual tomamos
ciência da realidade e adquirimos novos conhecimentos, os quais servirão
também a outros sujeitos, o que nos sintoniza com o gênero humano. Além
disso, o processo de reflexão teórica contido nos momentos de capacitação
detém esta possibilidade e se constitui em importante momento de suspensão
com o cotidiano, posto que ao retornar a ele renovado, a assistente social tende
a fazer outra leitura da realidade, captando elementos que outrora não foram
percebidos. Para sobreviver ao cotidiano, temos que desvendá-lo antes que ele
nos “devore”. Tal como a Esfinge, ele nos desafia a responder ao enigma: como
sobreviver ao cotidiano, como não ser devorado por ele? Como sobreviver a ele
e transcendê-lo?
Temos que considerar o cotidiano não como espaço do imediato, do
aleatório, do caótico, do improviso, mas como uma totalidade, composta por
várias dimensões que lhe dão sentido e direção, que tem uma lógica constitutiva,
uma racionalidade que não é apreendida na dinâmica mesma do cotidiano.
Assim, como parte das próprias atribuições profissionais, do exercício

129
profissional competente, a educação permanente é imprescindível e ineliminável,
já que para realizar e qualificar as atribuições inscritas na lei de regulamentação
a necessidade do aprimoramento profissional é incontestável.

3. As racionalidades subjacentes à formação profissional:


fundamentos que devem ser priorizados

Para além da sua formação generalista, tal como as demais especializações,


a assistente social necessita de aprofundamento que lhe capacite operar em
determinado setor da realidade, espaço sócio-ocupacional, o que requer
conhecimentos sobre tal área em particular. A especialização é um requisito básico
para o exercício profissional. Não obstante a profissão mobilizar um conjunto de
procedimentos que lhe permite a manipulação prático-empírica da realidade por
meio de ações instrumentais, ela não alcança seus objetivos se não conhecer
os fundamentos da ordem burguesa (sua estrutura), se não souber analisar a
conjuntura, captar as tendências do desenvolvimento histórico da sociedade,
conhecer as táticas e estratégias sócio-profissionais e políticas mais adequadas
ao momento. Requer, portanto, conhecimentos e saberes teóricos e investigativos
(além dos instrumentais). Com isso podemos afirmar que há saberes nos quais
subjazem racionalidades, que possuem níveis, alcances e naturezas diferentes.
Na perspectiva de dar respostas mais qualificadas e legitimadas aos complexos
processos sociais e expressões da questão social a formação contínua se coloca
com uma estratégia das mais importantes e elementares.
Não obstante ao seu potencial em se constituir uma estratégia das mais
fecundas de realização do movimento dialético que vai da teoria à pratica e vice-
versa, nem toda capacitação continuada vale a pena, nem todas conduzem ao
aprimoramento. Há um tipo de formação que deforma: aquela que se limita ao
treinamento na utilização de sistemas ou procedimentos, que visa orientar um
passo a passo, nos moldes de muitas que se nos colocam na atualidade, que
se limitam a ensinar um fazer despido de significado social, que promove um
empobrecimento da razão. O que significa que essa capacitação não vai além
dos objetivos de atender às demandas do mercado, às metas de produtividade,
à resolutividade imediata e paliativa, à emergencialidade da situação, ao controle
da população. Não resta dúvida de que muitas profissionais secundarizam a
qualificação e quando delas se aproxima é para conhecer a nova legislação, as
normatizações dos programas e serviços que implementa, identificando-as com

130
a teoria e limitando sua prática à observância da norma e da legislação e/ou a um
conjunto de atividades desconexas entre si7.
Somente uma formação/qualificação teórico-política critica permite revelar
o significado de uma capacitação contínua e as implicações da sua negligência.
O traço crítico desta capacitação exige a tomada de posição tanto diante
da sociedade, descortinando para as profissionais o seu papel como cidadãs;
quanto diante da profissão, e aqui a crítica não se reduz a mera capacidade
teórica. Falo da crítica compromissada, que leva a uma intervenção coerente
com a democratização do acesso a bens e serviços sociais. Daí a luta por
uma formação que configure um perfil de profissional critico, competente e
comprometido ética e politicamente, ou seja, profissional capaz de compreender
o significado social da sua intervenção em toda a sua plenitude, que saiba
estabelecer compromissos político-ideológicos com o usuário, concebido como
trabalhador e não como pobre (teminologia ideológica destituída de conteúdo
de classe).
Nesta perspectiva, a visão de competência e seus requisitos ultrapassam o
horizonte do senso comum: aqui competência significa capacidade de responder
às demandas mediante um projeto. Não se definindo em abstrato, ela é uma
categoria relacional e só pode ser referida à sua relação com o outro. Daí a
pergunta: competência para quem, competência para quê?
Com este entendimento, ela pode ser determinada nas suas dimensões:
teórica, prático-institucional e política. A primeira, competência teórica,
significando o que as diretrizes estabelecem como um rigoroso domínio das
matrizes teóricas das ciências sociais e humanas e da produção do Serviço
Social; a segunda: competência técnica, compreendida como a habilidade de
responder às demandas e capacidade de reconfigurá-las, domínio das técnicas
interventivas e de pesquisa; e a terceira, a competência política, implicando
a qualificação para analisar criticamente a realidade institucional e social,
desvelar a correlação de forças contraditórias e identificar estratégias e táticas
sócio-políticas e profissionais. Supõe articular valores e forças para qualificar a
competência técnica.
Assim, a capacitação que defendemos deve formar profissionais críticos,
competentes e comprometidos com projetos societários para o Brasil tanto em
termos profissionais imediatos quanto em termos de seu envolvimento com as lutas
7. Dentre elas, as mais comuns e historicamente utilizadas: encaminhamento, marcação
de consulta, registro, controle de internação, emissão de declarações, acompanhamento
familiar, preenchimento de cadastros.

131
e movimentos sociais, e com sujeitos coletivos (profissionais, sindicais e partidários).
Nesta perspectiva, para além da titulação (objetivo último da política de
governo), a formação em pós-graduação é estratégica e realimenta a organização
política da categoria na direção do projeto ético-político profissional.
Postos os princípios do que, a nosso ver, entendemos ser uma formação
de qualidade, conectada aos princípios e valores do nosso projeto ético-político,
parece que podemos responder à pergunta: qual formação, para que sociedade?
E, como resultado, temos os compromissos assumidos com os usuários e outros
sujeitos individuais e coletivos.

4. Papel da formação/capacitação de novo tipo para a construção da contra-


hegemonia: competências e compromissos

Sem dúvida que a qualificação profissional não apenas nos permite


descortinar nossas competências, redimensioná-las, ampliá-las, conquistar
novas competências e legitimidades. A produção de conhecimento crítico é uma
ferramenta, é uma arma (a arma da crítica), é uma estratégia para a formação e
a capacitação profissionais.
Considerando que a formação intelectual integra os valores, as expectativas,
as utopias, ela direciona para a realização de projetos individuais e coletivos,
para a construção de um tipo de sociedade. Isso por que o processo formativo
vai além da transmissão de conhecimento, da apreensão das teorias sociais.
Incorpora saberes interventivos, procedimentais e valores. O que pretendo
ressaltar é que toda formação tem um conteúdo político. É ele que nos habilita
a construir vínculos, alianças e estratégias de luta conjunta com os movimentos
sociais progressistas e com os trabalhadores que buscam o acesso às diversas
políticas sociais que implementamos. Ele permite que se construa uma visão
social de mundo que supere o ethos individual burguês e que se assente numa
concepção ética radicalmente humanista, historicista, universalista e dialética
– visão para a qual as possibilidades da genericidade humana têm prioridade
sobre os interesses particulares.
Nesta direção, se concordamos que a qualificação visa à formação de
um novo indivíduo social, um conjunto de estratégias deve ser mobilizado
nesta direção8. A política de formação continuada elaborada pelas entidades

8. Neste sentido, evoco dois projetos de formação continuada: Ética e Movimento e ABEPSS
Itinerante.

132
da categoria (Conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO) é exemplar e
retrata o acúmulo alcançado até o momento. Investimentos na pós-graduação,
especialmente no strictu senso, têm se constituído em importante estratégia de
contínua formação profissional. A oferta de cursos de especialização, reciclagem,
atualização que tratem não apenas dos objetos sobre os quais atuamos, mas
que reflita sobre o próprio Serviço Social e contribua para o aprofundamento dos
fundamentos sócio-históricos da profissão, do seu significado social e das suas
relações e condições de trabalho na contemporaneidade.
Porém, se consideramos que o aprimoramento intelectual incide na
qualidade dos serviços prestados, então faz-se necessária a criação de espaços
que oportunizem a formação em serviço tais como reuniões de estudo9,
supervisão técnica, supervisão de estágio10, assessorias, consultorias.
Há, também, que se aproveitar os diversos espaços de formação já
constituídos tais como cursos promovidos pelas entidades11, eventos da
categoria12. Novos espaços e alternativas vêm surgindo com a constituição
de Núcleos de Estudos e Pesquisas nas universidades13. Não há como não se
considerar que a participação de assistentes sociais nas comissões dos CRESS,
Comissão de Ética, nos Fóruns de supervisores e de estágio são inserções que
permitem ricas experiências e aprimoramento intelectual. A própria atividade
militante em sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e nas entidades
da categoria é de uma riqueza inquestionável. Não tenho dúvida da necessidade
de se ampliar a oferta de cursos de especialização lato sensu, especialmente

9. Considero que uma alternativa é a organização de grupos de estudos no local de trabalho.


Não tenho dúvidas de que essa iniciativa terá impacto na qualidade dos serviços, ao mesmo
tempo em que incidirá na representação social da profissão.
10. Dentre as possibilidades e espaços de aprimoramento profissional está a supervisão e
aqui cabe mencionar a supervisão como atribuição profissional e como espaço de formação,
bem como seus dois níveis: supervisão técnica e supervisão de estagiários, o que implica
tanto em qualificar os espaços de estágio quanto em investir no constante aprimoramento e
qualificação de assistentes sociais, supervisores ou não.
11. Apenas para citar alguns: cursos de especialização, Ética em Movimento, ABEPSS
itinerante, curso para supervisores, cursos para concurso etc.
12. Especialmente os Congressos estaduais e nacional de assistentes sociais e os Encontros
regionais e nacional de pesquisadores em Serviço Social, por se constituírem em espaços
acadêmicos e profissionais que melhor expressam os debates e as reflexões contemporâneas,
bem como retratam o estado da arte da pesquisa na área.
13. Cabe mencionar a potencialidade do conhecimento gerado através das pesquisas no
sentido de fornecer subsídios ao exercício profissional. Tem sido cada vez mais frequente
a participação de assistentes sociais na realização de pesquisas, muitas delas vinculadas a
núcleos de estudos e pesquisas.

133
em unidades de formação acadêmicas públicas, aumentando a oferta de cursos
gratuitos e que atendam as reais demandas e necessidades dos profissionais.

5. A título de conclusão

Se, de fato, a profissão tem como princípio o “compromisso com a qualidade


dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual”, e se este
contribui para um exercício profissional competente, então, tal aprimoramento
passa a ser uma demanda do usuário, donde se faz necessária uma formação
que desenvolva valores sócio-cêntricos e permita a construção de critérios para
aferir a qualidade dos serviços prestados.
Se, de um lado, tem-se criado na profissão uma cultura de educação
permanente14, por outro, como decorrência das precárias condições de vida
e de trabalho das assistentes sociais, as possibilidades de capacitação são
dificultadas enormemente. Aí localiza-se a contradição, já que o aprimoramento
profissional é estratégia de enfrentamento e de defesa das condições éticas
e técnicas e da qualidade do trabalho. Permite garantir a direção estratégica
do projeto ético-político profissional. Contribui, efetivamente, para diminuir a
distância entre a vanguarda acadêmica e o profissional de campo (NETTO, 1996).
Ao mesmo tempo, sabe-se que em razão de a profissão estar inserida
numa realidade em movimento, no enfrentamento das diversas e complexas
expressões da questão social, aguça-se a necessidade de atualização
sistemática, donde a demanda por profissional que saiba ler a conjuntura e que
conheça a direção social das escolhas que subjazem às suas propostas e que
invista no protagonismo dos sujeitos sociais, estimulando sua participação na
formulação, gestão e avaliação de programas e serviços sociais de qualidade.
Somente assim poderá o profissional reconhecer a relação dialética entre
limites e possibilidades de uma adequada, contínua e sistemática capacitação
profissional como determinações que se refletem uma na outra, de modo que só
a percepção e explicitação dos limites é que permite ao profissional descortinar
o campo de possibilidades.
Parece correto que o enriquecimento da instrumentalidade do exercício
profissional depende do aprimoramento teórico-prático e político advindo de
uma qualificação capaz de construir o perfil de profissional crítico, competente

14. Refiro-me ao crescimento dos cursos de pós-graduação stricto sensu, como resultado do
amadurecimento intelectual da profissão.

134
e compromissado, profissional que, inspirado pela razão dialética, faça do
seu exercício profissional uma possibilidade na construção de alternativas de
superação da ordem social do capital.

Referências bibliográficas
FRIGOTTO, G. A Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1996.

GUERRA, Y. A Instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995.

NETTO, J.P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.

________. Transformações societárias e Serviço Social – notas para uma análise


prospectiva da profissão. In: Revista Serviço Social e Sociedade n. 50, Ano XVII, abril,
São Paulo: Cortez, 1996.

REPETTI, G. J. Reflexões sobre o Serviço Social argentino: a formação profissional


sob os impactos do “peronismo original” de 1943 a 1955. Tese de Doutorado defendida
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2013. Original inédito.

SANTOS, S. M. de M. In: Barroco, M. L. S. e Terra, S. H. Prefácio. Código de Ética do/a


assistente social comentado. São Paulo: Cortez, 2012.

TRINDADE J. D. de L. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels. São


Paulo: Alfa Ômega, 2011.

135
PRINCÍPIO 11

Exercício do Serviço Social sem ser


discriminado, nem discriminar, por questões
de inserção de classe social, gênero, etnia,
religião, nacionalidade, opção sexual, idade
e condição física
Magali da Silva Almeida1

Canta América
Não o canto da mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro
nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas novas ordens
de napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador

Solano Trindade2

1. Doutora em Serviço Social pela PUC-RJ. Professora adjunta e coordenadora de estágio


do colegiado do curso de graduação em Serviço Social da UFBA e professora aposentada
da FSS/UERJ. Desenvolve estudos e pesquisas sobre relações raciais/gênero/classe, com
ênfase nas mulheres negras e interfaces com o Serviço Social. Colaboradora do Conjunto
CFESS/CRESS.
2. Solano Trindade (1908-1973) É poeta, pesquisador das tradições populares, teatrólogo,
pintor e boêmio. Filiou- se ao partido comunista e, como outros militantes à época do governo
Dutra, foi perseguido e preso. Na sua poesia gostava de afirmar sua descendência e de ser
chamado de” poeta negro”. Sua luta pela liberdade foi narrada em seus poemas, no Teatro
Popular Brasileiro (criado por ele e sua esposa, D. Margarida Trindade e com o sociólogo
Édison carneiro em 1950) e na militância partidária. Conviveu com importantes escritores e
chegou a ser comparado ao cubano Nicolas Guilhén e o americano Langston Hughes. Carlos

136
Introdução

Neste artigo pretendo refletir, sem pretensão de esgotar o debate, sobre o


princípio Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por
questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade,
orientação sexual, idade ou condição física. Os estudos no campo do direito ao
tratar do princípio da não discriminação envolvem, necessariamente, o debate
sobre a igualdade. Discriminar significa distinguir, diferenciar, estabelecer
diferença. Todavia como são incipientes os estudos sobre a discriminação no
Serviço Social, focarei minha contribuição sobre esse fenômeno, aqui entendido
como fenômeno histórico, político e cultural responsável pela persistência
e perenidade da injustiça social, moralmente inaceitável, sob o qual são
perpetuadas iniquidades de toda ordem.
Portanto, são objetivos deste texto, elencar alguns apontamentos conceituais
acerca da discriminação e conceitos conexos na tentativa de explicitar as
refrações da questão social que incidem sobre as classes subalternas3, assim
como no exercício profissional do assistente social. Pretendo, ainda, apresentar
um breve histórico das ações de combate à discriminação construídas pelo
Conjunto CFESS/CRESS, com ênfase na participação do CRESS 7ª Região.

I
A discriminação4 é fundamentada no preconceito e representa uma atitude

Drumond de Andrade disse sobre alguns de seus poemas: “Há nesses versos uma força
natural e uma voz individual rica e ardente que se confunde com a voz coletiva”. Sobre Solano
Trindade ver: www.quilombhoje/solano/solanotrindade.htm
3. A categoria “subalternidade” pertence ao legado gramsciano e diz respeito à ausência do
poder de mando, de poder de decisão, de poder de criação e de direção [...], faz parte do
mundo dos dominados, dos submetidos à exploração e à exclusão social, econômica e política
[...]; predominam os interesses dos que detêm o poder econômico e de decisão política [...].
A subalternidade vem sendo introjetada ao longo de nossa história, e a experiência política
predominante na sociedade brasileira é a dominação, apesar dos ricos momentos sócio-
políticos de lutas entre dominados e dominantes. (Yasbeck apud LUIZ, 2011, p. 16)
4. Discriminação, diferentemente do preconceito, “consiste em um ato ou conduta (...) que
viole direitos com base no critério arbitrário, independentemente da motivação que lhe
deu causa (...)”. No ordenamento jurídico brasileiro a discriminação pode ser classificada
em discriminação direta ou indireta. A discriminação pode ser praticada por indivíduos ou
instituições, denominada discriminação institucional. “A perspectiva tradicional geralmente
tende a perceber a discriminação individualista, esporádica e episódica. A perspectiva
institucional, por sua vez, acentua o caráter rotineiro e contínuo da discriminação” (Relatório
do Comitê Nacional para a Preparação da III Conferência Mundial das Nações Unidas contra
o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, 2001, p. 35).

137
irracional. Seguindo esse raciocínio, torna-se uma exigência da práxis a análise
da totalidade dos processos sócio-políticos, que produzem as desigualdades
sociais, cujas contradições explicitam os limites reais da ordem burguesa que,
por seu turno, impedem o exercício pleno da democracia, da liberdade, da
justiça, da igualdade e da cidadania.
Chamo a atenção para a força viva das práticas discriminatórias, pois
estas atitudes são aliadas do conservadorismo e também responsáveis por
naturalizar as diferenças e transformá-las em desigualdades. E, nesse curso, a
naturalização do que é histórico ganha legitimidade pelo poder hegemônico e
oculta a violência, as hierarquias (de poder nas relações sociais) produzidas por
estereótipos5 cuja função é biologizar6 o que é social nas relações e práticas
sociais. A naturalização é a mediação para a essencialização da vida social. É,
por assim dizer, a perpetuação da hegemonia do capital sob a experiência de
vida dos sujeitos sociais concretos: negros(as), índios(as), população LGBT
(lésbicas, gays bissexuais, transexuais e travestis), crianças, idosos, pessoas
com deficiência e o legado religioso não hegemônico.
Para Barroco (2012)

Preconceito e discriminação são formas antiéticas de se relacionar com as


diferenças sociais e individuais. As intervenções profissionais desencadeadas
por diversas formas de atendimento que excluam ou discriminem os usuários,
impeçam o seu acesso aos serviços, limitem a sua autonomia, que os
submetam a situação de desrespeito e de autoritarismo interferem na vida do
usuário (BARROCO, 2012, p. 74).

Nesse sentido, discriminar é violar direitos. Por isso, o principio da não


discriminação defendido no Código de Ética do Assistente Social, como os demais
princípios apresentados anteriormente nesta coletânea, acenam para uma práxis
social, na qual a ação profissional está fundamentada em uma concepção ética
que tem como fundamento ontológico o ser social. Nesta concepção, os valores
que norteiam a escolha do referencial teórico- metodológico, técnico-operativo e
ético-político “são determinações da prática social, são resultantes da atividade
criadora tipificada no processo de trabalho” (CFESS, 2010). Nesse sentido, a
postura intransigente contra toda e qualquer forma de discriminação coloca

5. Atribuição de valor, geralmente negativo, a indivíduos ou grupos, impondo-lhes um lugar


social de inferior e de incapaz.
6. Explicar desigualdades construídas socialmente segundo as características físicas dos
indivíduos devido a sua identidade étnico-racial, de gênero.

138
ao exercício profissional muitos desafios. Mas, nesta reflexão, em particular,
quero ressaltar a importância da interlocução com os movimentos sociais como
mediação para a defesa diversidade humana.
Apesar da fragmentação, gênero, raça/etnia, sexualidade e classe estão
intimamente imbricados na vida social e na experiência do indivíduo social. Para
Carrara (2010) para tratar desses temas transversalmente é necessária uma
atitude não essencialista em relação às diferenças. Para o autor

A adoção dessa perspectiva justifica-se eticamente, uma vez que o processo


de naturalização das diferenças étnico raciais, de gênero ou de orientação
sexual, que marcou os séculos XIX e XX, vinculou-se à restrição do acesso
à cidadania a negros/as, indígenas, mulheres e homossexuais. (CARRARA,
2010, p. 13)

Diversidade como valor, condição e direito do ser social, não é plena na


sociabilidade burguesa. Como afirma Bussinger (1997), os direitos humanos
proclamados no marco da Declaração de 1789 são efetivamente direitos formais,
pois, na prática, contraditoriamente, não chegaram a se materializar, pois

foram direitos definidos pelo molde dos direitos do homem burguês, daí
suas insuficiências para contemplar a emancipação social do conjunto dos
homens e mulheres indistintamente. A liberdade e a igualdade prometidas a
todos os homens converteram-se em uma ilusão da emancipação política.
(BUSSINGER, 1997, p. 35)

Assim, a emancipação social da humanidade passa necessariamente pela


negação dos direitos humanos se a sua realização é requerida na esfera (única e
exclusivamente) da emancipação política do indivíduo social.
Para Marx, a emancipação política foi importante no contexto histórico de
seu tempo; representou um grande progresso na luta por direitos, mas de modo
algum representa a finalização do processo emancipatório da toda humanidade.
Nestes termos,

Era convicção de Marx que a plena humanidade exigiria uma perfeita e


completa emancipação das cadeias de qualquer índole. A verdadeira
emancipação humana implica a emancipação política, mas a supera, pois se
realiza no âmbito da emancipação social, ou seja, no âmbito da revolução
do proletariado. Este é [...] o fator decisivo para que tenha início uma nova
etapa para a convivência social, uma nova época para o homem, fundada na
supressão da propriedade privada dos meios de produção e na abolição das

139
diferenças entre proprietários e não-proprietários, de cuja distinção se nutre a
sociedade em classe. (Ibidem, p.35)

O processo de emancipação de toda humanidade, deste modo, requer a


supressão da propriedade privada e, igualmente, a ultrapassagem das estruturas
racistas, sexistas, homolesbotransfóbicas, dentre outras formas de discriminação
a que os sujeitos sociais estão submetidos. Como sinaliza Danuta Cantoia Luiz
(2011), a humanidade de um modo geral ainda está longe de uma vida em
sociedade onde a igualdade faça parte de sua experiência. Para a autora, os
indicadores de desigualdade, as catástrofes, são expressões de sua imaturidade,
e cada vez mais exige dos sujeitos sociais individual e coletivamente a edificação
de valores críticos emancipatórios.
Nessa ótica, o trabalho ganha centralidade e é a marca distintiva da
humanidade dos sujeitos sociais. Ou seja, o trabalho é atividade vital à existência
humana e fonte de satisfação das necessidades do ser humano e de sua
possibilidade histórica. É através da produção de seus meios de vida que os
homens [e as mulheres – ênfase da autora] distinguem-se dos outros animais
e suplantam o determinismo da natureza, desenvolvendo sua capacidade
criadora e alcançando sua humanidade. O trabalho é a mediação que permite a
ultrapassagem do condicionamento natural para a criação (FORTI, 2008).
Todavia, a sociabilidade burguesa, longe de garantir condições materiais para
a realização do trabalho criador, ao contrário, produz, como afirma Marilda Vilela
Iamamoto (2012), a auto-objetivação do sujeito assentada na sua própria negação,
na perda do controle do trabalho, no gasto de seu tempo de vida, subordinada a
fins que desconhece. É ainda a autora quem nos diz que

a vivência do trabalho tem centralidade na vida dos indivíduos sociais.


Extrapola o ambiente da produção e se espraia para outras dimensões da
vida, envolvendo relações familiares, a fruição dos afetos, o lazer, o tempo
de descanso, comprometendo a reposição das energias físicas e mentais, a
duração da vida e os limites da noite e do dia. (IAMAMOTO, 2012: 17)

A análise das expressões da questão social na perspectiva de totalidade deve


ser orientada por valores historicamente construídos em defesa da democracia,
liberdade, cidadania, justiça e igualdade, os quais cimentam o projeto ético-
político profissional do assistente social em defesa dos direitos. Por isso
chamo atenção para que fiquemos atentas(os) aos processos de naturalização
das diferenças, a que estamos mergulhadas(os) no cotidiano. Todas(os) nós,

140
sem exceção, somos educados com base em valores burgueses. Entretanto a
capacidade criativa/transformadora e histórica dos indivíduos sociais permite,
através da práxis social, a consciência dos limites da sociabilidade burguesa à
realização plena de sua humanidade. A consciência deste limite é o que o faz
promover transformações. Mas o processo de desconstrução não é, de forma
alguma, linear. Trata-se de um processo contraditório, sempre exigindo a crítica
do instituído na sociedade capitalista.
Brites (2012) chama atenção para os campos de tensão que ocorrem
quando a defesa dos valores emancipatórios esbarra nos limites da sociabilidade
burguesa. Para a autora, a profissão não está imune:

Pensemos por exemplo, nas várias formas históricas de repressão aos


movimentos sociais sempre e quando suas representações e estratégias de
luta indicam a possibilidade de radicalizar o enfrentamento dos domínios do
capital, como vem ocorrendo com a crescente criminalização dos movimentos
sociais na atualidade (BRITES, 2012: 61).

A contradição ganha objetividade quando a legitimidade das reivindicações
dos movimentos sociais esbarra na norma estabelecida, no status quo. A
avaliação de justiça se perde em nome da ordem e passa-se a considerar legítima
sua repressão (Idem, p. 61).
O racismo, a homolesbotransfobia, o sexismo/misoginia7, a discriminação
contra idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, ou mesmo
a discriminação religiosa, muitas vezes podem se expressar no universo
profissional. As expressões discriminatórias, como afirma Barroco (2012)
resultam de uma cultura conservadora decorrente da precarização da formação
profissional, da falta de solidez teórico-metodológica, da ausência da crítica
etc. Para a autora, “a capacitação profissional é necessária ao desvelamento da
realidade em face das implicações éticas do agir profissional, dos impasses das
escolhas de valor, entre outros” (BARROCO, 2012, p. 75).
Em que medida nossa intervenção nos vários espaços sócio-ocupacionais
tem reconhecido (e conhecido) a diversidade humana como mediação ontológica
do ser social? O que sabemos da história, cultura e reivindicações coletivas dos
sujeitos sociais negros, mulheres, indígenas, população LGBT, crianças, idosos,
pessoas com deficiência e os legados das religiões não hegemônicas?
Ainda hoje, no exercício profissional alguns assistentes sociais não dão

7. Misoginia é o ódio, desprezo ou repulsa ao gênero feminino e às características a ele


associadas. A palavra vem do grego misos e gyné.

141
valor devido, ainda que involuntariamente, a algumas informações registradas
cotidianamente na ficha social. Destaco aqui algumas preocupações que me
levam a sugerir às(aos) leitoras(es) a repensarem os modelos tradicionais do
sistema de informação institucional. Será que o registro técnico que realizamos
tem proporcionado visibilidade às desigualdades sociais que têm suas raízes no
preconceito? Esse registro ajuda a combater a discriminação institucional?
Vou exemplificar. Quando a(o) profissional não registra ou ignora a
importância de algum indicador de discriminação presente na realidade, repito,
mesmo sem ter intenção, pode estar discriminando. Quando não registramos
ou preenchemos indevidamente a informação sobre o quesito raça/cor,
ou igualmente a identidade de gênero do/a usuário/a do serviço, estamos
colaborando para a manutenção do silêncio das expressões da discriminação
inscritas nas expressões da questão social que se expressam na instituição. Esta
discriminação, dependendo do marcador e estereótipo, é denominada racismo
institucional ou homofobia institucional.
Outra dimensão da discriminação pode ser identificada na forma como
alguns(mas) profissionais dimensionam as informações sobre filiação ou
conformação familiar das(os) usuárias(os). Na maioria das instituições as fichas
de identificação ainda mantêm, exclusivamente, como referências sobre filiação,
o nome do pai e da mãe. Esta forma de registro reforça a noção de família nuclear
burguesa heterossexual, e não dá visibilidade às famílias homoafetivas. Neste caso,
como sugestão, podemos incluir no quesito filiação, nome do pai/pai ou da mãe/
mãe. Outro quesito importante é a religião. E ainda, existe algum espaço para indagar
sobre a religião do usuário? Será que estamos naturalizando as desigualdades
quando fazemos escolhas profissionais baseadas em valores religiosos?
Partindo dessa realidade, torna-se uma exigência teórica e ético-política a
escolha de referenciais emancipatórios, sem os quais nos manteremos presos/
as ao conservadorismo, Assim, o que sabemos sobre os processos históricos
de resistências das classes subalternas no combate ao preconceito e às práticas
discriminatórias nos sindicatos, nas políticas setoriais? E das lutas pela igualdade
e liberdade das classes subalternas que são invisíveis como os quilombolas,
povos indígenas, mulheres, das comunidades tradicionais?

II
Neste momento, faço um breve resgate histórico da agenda política de
combate à discriminação promovida pelo Conjunto CFESS/CRESS.
Na história das entidades da categoria a luta contra o preconceito e

142
discriminação é assumida na agenda política no final dos anos de 1980 e
conduzida a partir de iniciativas locais ou regionais. A inserção de um número não
muito significativo de assistentes sociais (porém atuantes) na militância partidária,
nos movimentos feminista, de mulheres ou negro, do eixo Rio-São Paulo,
colocou novas demandas e desafios para a profissão na construção de ações
de combate às discriminações de gênero e raciais naquela conjuntura. Inserido
neste cenário, o CRESS 7ª Região, orientado pelos princípios do Código de Ética
de 1986, com destaque para seu último princípio – o  apoio  e/ou  a  participação 
nos  movimentos  sociais  e  organizações  da  classe trabalhadora – amplia a
agenda política da entidade em 1988, incorporando o combate ao preconceito e à
discriminação racial, como uma importante frente de luta em defesa dos direitos
de cidadania dos trabalhadores. Durante o ano de 1987 o CRESS do Rio de
Janeiro integrou a comissão organizadora da Marcha Contra a Farsa da Abolição
que ocorreu no ano seguinte, no dia 11 de maio. Esta marcha foi a resposta dos
trabalhadores e trabalhadoras negros à política do então presidente José Sarney
e reuniu mais de 5000 pessoas, no Centro do Rio de Janeiro, denunciando o
racismo e a discriminação racial e a ausência de políticas públicas.
Em 1989, duas mulheres negras integrantes do CRESS 7ª Região,
apresentam, o primeiro trabalho do estado sobre racismo e Serviço Social8, na
assembleia de aprovação de comunicações do VI CBAS realizado no Rio Grande
do Norte neste mesmo ano. O Congresso Chico Mendes9, assim denominado em
homenagem ao ativista homônimo assassinado brutalmente em 22 de dezembro
de 2008, foi relevante, não somente pelos temas tratados naquela conjuntura,
mas, sobretudo, pela inauguração na agenda das entidades da categoria das
lutas antirracista, feminista e do movimento de mulheres no contexto da luta
de classes. O trabalho referido foi apresentado no Eixo “Análise de conjuntura,
econômica, política e social na sociedade brasileira e no contexto latino-
americano referenciado ao capitalismo internacional”, simultaneamente com
outras assistentes sociais de São Paulo e de outras regiões do país. As reflexões
em torno da questão indígena e da diversidade sexual vão emergir nos CBAS de
1998 e 2001, respectivamente. Portanto, a importância destes temas no âmbito
do exercício profissional vem sendo referendada na permanência desses eixos
temáticos nos CBAS.
Desde então, com frequentes e orgânicas articulações com o movimento

8. Ver Matilde Ribeiro, 2004.


9. Para aprofundamento do tema ver os Anais do Congresso Chico Mendes.

143
sindical dos trabalhadores e dos movimentos sociais, as entidades da categoria,
principalmente as do Conjunto CFESS/CRESS, deu-se início a experiências
locais importantes, no que concerne a lutas contra a discriminação. Cabe
destacar, neste processo, a iniciativa pioneira do CRESS 7ª Região pela
criação em 2000 da Comissão de Gênero e Etnia, hoje denominada Comissão
de Gênero, Etnia e Diversidade Sexual (GEDS) que, ao longo de 13 anos, tem
agregado profissionais da base da categoria para discussões importantes
sobre a diversidade humana (mulher, negros, indígenas, população LGBT,
dentre outros) e direitos humanos.
A seguir apresento iniciativas do Conjunto CFESS/CRESS de combate à
discriminação:

CAMPANHAS NACIONAIS
2003
• Campanha Nacional de Combate ao Racismo – “O Serviço Social Mudando os Rumos da
História” (cartaz)

2006
• Campanha “Assistente Social na luta contra o preconceito - O amor fala todas as línguas –
Assistente Social na Luta contra o preconceito”  (cartaz e banner)

CFESS MANIFESTA
2008
• 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBTT);
CFESS na Luta pela Livre Orientação e Expressão Sexual
• Dois Anos da lei Maria da Penha: Em defesa da mulher
• Por mim, por nós, pelas outras: Dia Internacional da não violência contra a mulher

2009
• 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa idosa: Avanços e desafios da rede nacional
de proteção e defesa da pessoa idosa
• Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa
• Pelo Fim da violência Contra a Mulher
• 19 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
• 3 anos da Lei Maria da Penha
• Dia Nacional da Visibilidade Lésbica
• Dia nacional de Luta da Pessoa com Deficiência

144
• Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto
• Dia Nacional do/a Idoso/a
• Dia internacional de Combate à Violência Contra a Mulher
• 8ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: Enfrentar os desafios na
afirmação de uma política que assegure os direitos humanos de crianças e adolescentes

2010
• 100 anos do Dia internacional da Mulher
• Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa: Um não à violência contra
a pessoa idosa
• Dia internacional do Orgulho LGBT: Não à homofobia! Liberdade de Orientação Sexual
• 20 Anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Direitos humanos para a criança e
o adolescente
• Dia Nacional da Visibilidade Lésbica
• Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência: Sobre o quê estamos falando?
• Dia Nacional do/a Idoso/a: Para valorizar a pessoa idosa
• Dia Nacional da Consciência Negra: Diversidade, equidade e igualdade: a questão racial na
agenda do Serviço Social

2011
• Dia Internacional da Mulher
• Dia Nacional de Luta contra a Homofobia: A nossa luta é todo dia contra a homofobia
• 3ª Conferência Nacional de Política para Mulheres: Assistentes sociais lutam pela autonomia
e emancipação das mulheres
• 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT: Assistentes sociais
em defesa da diversidade humana
• Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa: Pessoa idosa é sujeito
de direitos!
• Dia Internacional contra a Exploração Sexual e Tráfico de Mulheres e Crianças: Um basta ao
tráfico e à exploração de mulheres e crianças
• Dia Latino-Americano pela Discriminalização e Legalização do Aborto: “Eu aborto, tu abortas,
somos todas clandestinas”
• Dia Nacional da Consciência Negra: Zumbis e Dandaras contra a desigualdade racial no Brasil
• 3ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa: O Serviço Social afirma: envelhecer
com dignidade é direito!
• 2ª Conferência Nacional da Juventude. Juventude: que direito e qual desenvolvimento
queremos?

2012
• Dia da Luta indígena: Questão indígena e Serviço Social
• Dia do Orgulho Mundial LGBT: Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente
diferentes e totalmente livres

145
• 9ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: o papo é reto no Serviço Social
• Dia Internacional Contra Exploração Sexual e Tráfico de Mulheres e de Crianças: Estão
tratando ser humano como mercadoria!
• Dia Internacional da Pessoa com Deficiência e 3ª Conferência Nacional sobre o Tema: Um
longo caminho para efetivar direitos...
• Dia Nacional da Visibilidade Trans: O direito à identidade trans!
2013
• Dia Internacional da Mulher: Sou assistente social. Luto contra o desrespeito, defendo direitos!
• Dia da Luta Indígena: Éramos livres e felizes...
• Dia Nacional do Trabalho Doméstico: Para romper a herança da escravidão
• Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual e o Tráfico de Pessoas: Denunciar é proteger.
Sou assistente social. Eu denuncio!

À guisa de conclusão
A iniciativa da gestão “Trabalho e Direitos: a Luta Não Para”, do CRESS 7ª
Região, em trazer para as(os) assistentes sociais do estado do Rio de Janeiro a
coletânea “Desafios para o Serviço Social no século XXI” foi fundamental para
nutrir o debate ético-político, numa conjuntura de muitas contradições, nas
quais os direitos humanos, em tempos de barbárie, têm sido sistematicamente
violados.
Nesse cenário, processos discriminatórios das mais variadas motivações,
atuam para naturalizar as diferenças e manter as desigualdades. O racismo10, a
homofobia11, lesbofobia e transfobia, a misogenia ou sexismo, recrudescem. A
desproteção das crianças, adolescentes e idosos é uma realidade que deve ser
igualmente denunciada e combatida.
Nós, assistentes sociais, temos construído um conjunto de ações políticas
importantes de combate à discriminação racial, de gênero, de geração.
Precisamos, ainda, enfrentar com mais efetividade a discriminação religiosa, da
qual têm sido objeto de ataque as religiões de matriz africana – de forma incisiva
– e a tradição indígena de forma mais silenciosa.
A classe trabalhadora brasileira nos séculos XX e XXI lutaram incessantemente
por liberdade e igualdade no campo de classe, gênero, étnico-racial, sexual, de

10. É uma doutrina que afirma não só a existência das raças, admite a superioridade natural,
de uma raça sobre as outras.
11. Termo usado para se referir ao desprezo, ódio às pessoas com orientação sexual diferente
da heterossexual. A homofobia é a expressão máxima da discriminação contra a população
LGBT e responsável por umas das mais expressivas violências de gênero, culminando em
assassinatos deliberados.

146
compleição física e, também, pelo respeito à diversidade humana. Essas histórias
são muito pouco conhecidas, porque fazem parte do legado desvalorizado,
criminalizado, quando não menos nocivo, dizimado.
A persistência de atitudes e práticas discriminatórias em nossa realidade
reproduzem as hierarquias sociais estruturantes das relações de dominação
e exploração capitalistas, naturalizando as diferenças, cujas expressões são
socialmente construídas, reproduzindo as desigualdades.
Cabe ressaltar, ainda que grande parte das conquistas desses sujeitos
sociais tenham sido consolidadas na Constituição Brasileira de 1988, que a
materialização de suas demandas através de políticas públicas nem sempre
ocorreram de forma universal e com equidade. O conservadorismo tem atuado
fortemente nas instituições sociais, diluindo as expressões da questão social e
transformando-a em situações focalizadas, solapando sua dimensão histórica
e seu caráter de classe. Os sujeitos sociais ameaçadores da ordem burguesa,
de forma inconteste, têm sido combatidos. A resistência, agora veiculada como
“vandalismo” dos movimentos a favor do “passe livre” e, se não bastasse,
novas expressões eugênicas têm ganhado força, como o projeto da “cura
gay” e o confinamento dos usuários de crack, onde suas maiores vítimas são
afrodescendentes. Novamente a questão social ganha a identidade de “caso
de polícia”, a repressão dos movimentos pela terra pelos quilombolas, povos
indígenas ou pelo MST. A violência contra a mulher se mantém expressiva, assim
como o genocídio do jovem negro.
O conservadorismo também se expressa quando não se reconhece a
conquista do direito de utilização do nome social pela população LGBT, ou
quando se expressa uma atitude preconceituosa às mulheres que se posicionam
na cena pública em defesa dos direitos feministas e/ou antirracistas.
Neste sentido, o princípio da “não discriminação” expressa o dever e o
direito de exercer a profissão, segundo no Código de Ética do Assistente Social,
mediante o qual o profissional é identificado com valores históricos em defesa da
igualdade de gênero, raça/etnia, geração, diversidade sexual, dentre outros, com
vistas à construção de uma sociedade democrática, livre de preconceitos de
qualquer natureza, uma sociedade emancipada: uma sociedade anticapitalista.
As conquistas da sociedade civil brasileira, indubitavelmente, ainda que
distante do processo de emancipação social plena dos sujeitos sociais – retraída
e impedida na sociabilidade do capital – guardam em suas realizações o germe
capaz de possibilitar emancipação política, condição fundamental para à
concretude daquela, ou seja, de uma sociedade sem classes.

147
Por fim, ensejo que as reflexões apresentadas nesse pequeno artigo convide
a(o)s assistentes sociais a potencializarem as lutas contra toda e qualquer forma
de discriminação, pois a sua persistência incide diretamente na democracia e,
sem ela, não há possibilidade concreta da liberdade.

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148
www.cressrj.org.br

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ISBN 978-85-60593-04-0

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