Samuel Beckett - A Ultima Gravação
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Samuel Beckett - A Ultima Gravação
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO
DE KRAPP
2014
Enfermaria 6
Fyodor Books
Calçada Nova de São Francisco,
n° 6, loja 3, Chiado, 1200-301 Lisboa
www.enfermaria6.com
Samuel Beckett
A ÚLTIMA GRAVAÇÃO
DE KRAPP
Uma noite, muito tarde, no futuro.
O refúgio de Krapp.
À boca de cena, a meio, uma pequena mesa, cujas duas gavetas
se abrem em direcção à assistência.
Sentado à mesa, virado de frente, i.e., fronteiro às gavetas, um
velho de aspecto cansado: Krapp.
Calças pretas desbotadas, apertadas e demasiado curtas para
ele. Colete preto coçado, quatro espaçosos bolsos. Um pesado relógio
de corrente. Camisa branca, sebenta, aberta no pescoço, sem colari-
nho. Umas insólitas botas brancas, sujas, tamanho, pelo menos, 45,
muito estreitas e bicudas.
Rosto pálido. Nariz vermelho. Cabelo grisalho em desalinho.
Barba por fazer.
Muito míope (mas sem óculos). Duro de ouvido.
Voz roufenha. Entoação distinta.
Caminhar laborioso.
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(Rapidamente). Ah! (Dobra-se sobre o livro, folheia-o, encon-
tra a entrada que quer, lê.) Caixa… trrrês…. bobine… cinco.
(Levanta a cabeça e olha fixamente em frente. Com gosto.) Bobine!
(Pausa.) Bobiiiine! (Sorriso feliz. Pausa. Dobra-se sobre a mesa,
começa a examinar e a remexer nas caixas.) Caixa… trrrês…
três… quatro… dois… (com surpresa) nove! Meu Deus!…
sete… ah! A sacaninha! (Pega na caixa, olha para ela.) Caixa
trrrês. (Poisa-a na mesa, abre-a e olha para a bobine dentro dela.)
Bobine… (examina o livro)… cinco… (examina as bobines)…
cinco… cinco… Ah! O estuporzinho! (Tira uma bobine e olha
para ela.) Bobine cinco. (Poisa-a na mesa, fecha a caixa três, poi-
sa-a junto das outras, pega na bobine.) Caixa três, bobine cinco.
(Dobra-se sobre a máquina, olha para cima. Com gosto.) Bobiiiine!
(Sorriso feliz. Dobra-se, coloca a bobine na máquina, esfrega as
mãos.) Ah! (Olha para o livro, lê a entrada na parte inferior da
página.) A mãe descansa por fim… Hum… A bola preta…
(Levanta a cabeça, olha fixamente no vazio em frente. Perplexo.)
Bola preta?… (Examina de novo o livro, lê.) A ama morena…
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(Uma voz forte, bastante pomposa, claramente a de Krapp,
em época muito recuada.) Trinta e nove, hoje, e são como um…
(Pondo-se mais confortável, atira uma das caixas para fora da
mesa, pragueja, desliga, atira violentamente as caixas e o livro para
o chão, rebobina a fita até ao princípio, liga o gravador, retoma a
posição.) Trinta e nove, hoje, são como um pêro, salvo o meu
velho achaque, e intelectualmente tenho agora boas razões
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Quando olho…
Krapp desliga o aparelho, fica a cismar, olha para o relógio,
levanta-se, vai até ao fundo do palco, até à zona que fica às escuras.
Dez segundos. Estampido da rolha. Dez segundos. Segunda rolha.
Dez segundos. Terceira rolha. Dez segundos. Breve acesso de música
trémula.
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(canta)
Agora o dia findou,
A noite aproximaaa-se,
Sombras…
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…Nesse ano que já lá vai, com o que eu espero que seja,
talvez, um brilho nos olhos ainda por vir, há, é claro, a casa
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(lê do dicionário) Estado – ou condição de quem é – ou
continua – viúvo – ou viúva. (Consulta. Confuso.) Ser – ou
continuar?… (Pausa. Olha, de novo, para o dicionário. Lê.) «Os
carregados fumos da viuvez»… Também de um animal, espe-
cialmente pássaro… a viúva ou tecelão… Plumagem negra nos
machos… (Consulta. Com gosto.) O Vidua!
Pausa. Fecha o dicionário, liga o aparelho, retoma a posição à
escuta.
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…banco junto à represa de onde podia ver a janela dela.
Ali me sentava, com um vento danado, desejando que ela
tivesse ido embora. (Pausa.) Nem vivalma, praticamente, só
os do costume, amas, crianças, velhos, cães. Fiquei a conhecê-
-los bastante bem – oh, de vista, claro, quero dizer! De uma
jovem beldade morena, lembro-me em especial, toda branco
e goma, peito incomparável, com um grande carrinho de bebé
de capota preta, uma coisa do mais fúnebre. Sempre que eu
olhava na direcção dela, ela tinha os olhos postos em mim. E
no entanto, quando ganhei coragem para lhe falar – sem termos
sido apresentados –, ela ameaçou chamar a polícia. Como se
eu tivesse intenções quanto à virtude dela! (Riso. Pausa.) A
cara dela! Os olhos! Como (hesita)… crisólito! (Pausa.) Ah,
bem… (Pausa.) Estava lá quando (Krapp desliga o aparelho, fica
a cismar, volta a ligá-lo)… o estore desceu, uma daquelas coisas
de enrolar, castanho, sujo, eu atirava uma bola para um cãozito
branco, calhou. Por acaso, olhei para cima e ali estava. Tudo
acabado, por fim. Continuei sentado mais um bocado, com a
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Estive agora mesmo a ouvir o estúpido daquele estupor por
que me tomava, há trinta anos, custa a crer que alguma vez
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fui assim tão mau. Graças a Deus que me safei daquilo tudo,
seja como for. (Pausa.) Os olhos dela! (Fica a cismar, apercebe-
-se de que está a gravar silêncio, desliga o aparelho, fica a cismar.
Finalmente.) Tudo lá, tudo, toda a (Apercebendo-se de que isto
não está a ser gravado, liga o aparelho.)… Tudo lá, tudo neste
velho planeta, toda a luz e toda a escuridão, e toda a fome, e
todos os festins de (hesita)… todas as eras! (Num grito.) Sim!
(Pausa.) Deixá-lo ir! Jesus! Desopilar dos trabalhos de casa!
Jesus (Pausa. Cansado.) Ora bem, se calhar ele tinha razão.
(Fica a cismar. Apercebe-se. Desliga o aparelho. Consulta o enve-
lope.) Ora! (Amachuca-o e deita-o fora. Fica a cismar. Liga o apa-
relho.) Nada para dizer, nem um pio. O que é um ano, agora?
A ruminação amarga e o banco de ferro. (Pausa.) Degustei a
palavra bobine (Com gosto.) Bobiiiine! O momento mais feliz
dos últimos meio milhão deles. (Pausa.) Dezassete cópias ven-
didas, das quais onze a preço de factura, para bibliotecas itine-
rantes do outro lado do mar. Ser conhecido. (Pausa.) Uma libra
e seis, mais qualquer coisa, oito, não tenho grandes dúvidas.
(Pausa.) Esgueirei-me lá para fora antes de o Verão arrefecer.
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…groselhas, disse ela. Eu disse outra vez que achava que
não havia remédio, e que não valia a pena continuar, e ela con-
cordou, sem abrir os olhos. (Pausa.) Pedi-lhe que olhasse para
mim e, passado uns momentos (pausa)… passado uns momen-
tos ela fê-lo, mas os olhos eram simples frestas, por causa da
claridade. Debrucei-me sobre ela, para os deixar à sombra, e
abriram-se (Pausa. Baixo.) Deixa-me entrar. (Pausa.) Vogámos
por entre bandeiras e parámos. Como elas se afundavam, sus-
pirando, diante da proa! (Pausa.) Deitei-me atravessado sobre
ela, a cara nos peitos dela, e as mãos sobre as dela. Deitámo-
-nos lá sem nos mexermos. Mas debaixo de nós tudo se movia,
e nos movia, calmamente, para cima e para baixo, e de um lado
para o outro.
Pausa. Os lábios de Krapp mexem-se. Sem som.
Passa da meia-noite. Nunca experimentei tanto silêncio. A
terra podia não ter qualquer habitante.
Pausa.
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Cai o pano.
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