2012 - Biesta - Boa Educação Na Era Da Mensuração
2012 - Biesta - Boa Educação Na Era Da Mensuração
2012 - Biesta - Boa Educação Na Era Da Mensuração
BOA EDUCAÇÃO
NA ERA DA
MENSURAÇÃO
GERT BIESTA
TRADUÇÃO Teresa Dias Carneiro
RESUMO
Neste artigo, defendo a necessidade de se reconectar com a questão da finalidade na
educação, principalmente à luz da tendência recente de focalizar as discussões
na área quase exclusivamente na mensuração e na comparação de resultados
educacionais. Primeiramente, argumento por que a questão da finalidade deve
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ABSTRACT
In this paper I argue that there is a need to reconnect with the question of purpose
in education, particularly in the light of a recent tendency to focus discussions about
this issue almost exclusively on the measurement and comparison of educational
outcomes. I first discuss why the question of purpose should always have a place
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in our educational discussion. I then explore some reasons why this question seems
to have disappeared from the educational agenda. The central part of the paper
is a proposal for addressing the question of purpose in education – the question
as to what constitutes good education – in a systematic manner. I argue that the
question of purpose is a composite question and that in deliberating about the
purpose of education we should make a distinction between three functions of
education to which I refer as qualification, socialisation and subjectification. In
the final section of the paper I provide examples of how this proposal can help
in asking more precise questions about the purpose and direction of educational
processes and practices.
O
S ÚLTIMOS 20 ANOS testemunharam um aumento notável no interesse na men-
Gert Biesta
rankings são empregados para identificar as ditas “escolas mal sucedidas” e,
em alguns casos, os “professores mal sucedidos” nas escolas. A ironia desses
argumentos é que a responsabilização é com frequência limitada à escolha
a partir de um cardápio fixo e, assim sendo, lhe falta a dimensão democrá-
tica (BIESTA, 2004a), que a elasticidade da escolha da escola é geralmente
muito limitada e a que igualdade de oportunidades quase nunca se traduz
em igualdade de resultados por causa do papel de fatores estruturais que
estão fora do controle das escolas e dos professores, minando também par-
te da cultura da “culpa e vergonha” do fracasso escolar (TOMLINSON, 1997;
NICOLAIDOU, AINSCOW 2005; HESS, 2006; GRANGER, 2008).
O interesse na mensuração de resultados educacionais não se res-
tringe à construção de tabelas classificatórias. A mensuração de resulta-
dos e sua correlação com o “input” educacional também é central para
a pesquisa que busca proporcionar uma base de evidências para a prática
educacional (BIESTA, 2007a). Os defensores da ideia que a educação deve
ser transformada numa profissão baseada em evidências argumentam que
apenas pela realização de estudos experimentais em larga escala – em que
a “regra de ouro” são as amostras de controle aleatório – e pela mensura-
ção cuidadosa da correlação entre input e out put que a educação será capaz
de testemunhar “o tipo de melhoria progressiva sistemática, com o passar
do tempo, que caracterizou aspectos bem-sucedidos de nossa economia e
sociedade durante o século XX em campos como a medicina, agricultura,
transportes e tecnologia” (SLAVIN, 2002, p. 16). Nos Estados Unidos, a nova
versão, em 2011, da Lei do ensino fundamental e médio (“Nenhuma crian-
ça deixada para trás”) resultou numa situação em que o financiamento fe-
deral de pesquisas só está disponível para investigações que utilizem essa
metodologia específica, a fim de gerar conhecimento científico sobre “o
que funciona”.
Um precursor importante de muitos desses desdobramentos pode
ser encontrado na pesquisa sobre eficácia escolar, que desempenhou um
papel influente nas discussões acerca da mudança e da melhoria educa-
cional a partir do início dos anos 1980 (TOWNSEND, 2001; LUYTEN et al.,
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Gert Biesta
valores. Um exemplo pode ser encontrado nas discussões acerca da eficácia
educacional. Fora o fato de que é difícil defender uma educação que não
seja eficaz – o que dá à ideia de eficácia educacional uma plausibilidade
prima facie –, a “eficácia” é, na verdade, um valor. Isso parece sugerir que
um argumento para a escola eficaz ou para a eficácia dos professores é
justamente fazer o que estamos sugerindo que se deve fazer. O problema é,
no entanto, que a eficácia é um valor instrumental, um valor que diz algo
sobre a qualidade de processos e, mais especificamente, sobre sua capaci-
dade de trazer à tona certos resultados de forma segura. Mas, se os próprios
resultados forem desejáveis, a questão é diferente – uma questão para a
qual precisamos de julgamentos baseados em valores que não são informa-
dos por valores instrumentais, mas pelo que podemos chamar, com mais
propriedade, de valores últimos: valores acerca de objetivos e propósitos da
educação. É por isso que uma educação eficaz não é suficiente – e podemos
até argumentar que às vezes estratégias educacionais que não são efica-
zes, como, por exemplo, as que dão oportunidades para alunos explorarem
seus próprios modos de pensar, fazer e ser, podem ser mais desejáveis do
que as que se orientam efetivamente para um fim pré-especificado. Em
vez de simplesmente defender uma educação eficaz, precisamos sempre
perguntar “eficaz para quê?” e, visto que o que pode ser eficaz em uma situ-
ação específica ou para um grupo de alunos, pode não ser necessariamente
em outra situação ou para outros grupos de alunos, também sempre preci-
samos perguntar “eficaz para quem?” (BOGOTCH, MIRÓN, BIESTA, 2007).
Para reintroduzir questões de valor e propósito nas discussões so-
bre educação, principalmente em situações em que a mensuração aparece
proeminentemente, precisamos reinserir a questão do que constitui uma
boa educação e é nesse sentido que gostaria de contribuir. Farei isso em
dois estágios. Na próxima seção, explorarei por que parecemos ter perdi-
do de vista questões sobre valores, finalidades e virtudes da educação. Su-
giro que pelo menos parte da explicação tenha a ver com a transformação
de um vocabulário educacional em linguagem de aprendizagem. Depois
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apresentarei meu aporte para a discussão sobre o que constitui uma boa
educação. Não o farei especificando quais devem ser os objetivos da edu-
cação, mas sugerindo uma estrutura conceitual baseada numa distinção
entre a função de qualificação, socialização e subjetivação da educação,
que pode nos ajudar a fazer perguntas melhores e mais precisas sobre
objetivos e fins educacionais. Ilustro a estrutura com uma breve discussão
de dois exemplos: educação para a cidadania e educação matemática, o
que não quer dizer que a estrutura só é relevante em relação a questões
curriculares particulares. Alego que um foco mais preciso no que consti-
tui uma boa educação é crucial para a forma como abordamos todas as
dimensões da educação e, principalmente, para os aspectos com que nos
comprometemos mais explicitamente nas questões de valores, como nos
A TRANSFORMAÇÃO DO VOCABULÁRIO
EDUCACIONAL EM LINGUAGEM DA APRENZIDAGEM
O pano de fundo deste artigo reside na falta, em muitas discussões educa-
cionais contemporâneas, de uma atenção explícita ao que seja educacional-
mente desejável. Há muitas discussões sobre os processos educacionais e
como melhorá-los, mas muito poucas acerca do que esses processos supos-
tamente causarão. Em outras palavras, há pouca discussão explícita acerca
do que constitui uma boa educação (FISCHMAN et al., 2006; sobre boa pes-
quisa educacional, ver HOSTETLER, 2005; sobre avaliação responsável, ver
SIEGEL, 2004). Por que isso ocorre?
Por um lado, a questão da finalidade da educação pode ser vista
como difícil demais de resolver ou até como fundamentalmente insolú-
vel. Isso é particularmente verdadeiro quando ideias sobre os propósitos
da educação são vistas como sendo inteiramente dependentes de valores
e crenças pessoais – o que quase sempre quer dizer subjetivos – e sobre
as quais nenhuma discussão racional é possível. Quase sempre o que está
por trás é uma representação dicotômica de visões acerca dos objetivos
da educação em termos de uma visão conservadora versus progressivista
ou tradicional versus liberal. A questão é se tais posições de valores são de
fato inteiramente subjetivas e, portanto, se vão além da discussão racional.
Mas, mesmo que seja difícil chegar a uma conclusão, pode-se argumentar
que, pelo menos em sociedades democráticas, deve haver uma discussão
corrente sobre os objetivos e fins da educação (pública) – por mais difícil
que essa discussão seja. (Para um relato interessante de tentativa feita pelo
Parlamento Escocês sobre essa discussão, ver PIRRIE, LOWDEN, 2004; ver
também ALLEN, 2003.)
No entanto, o que é mais provável é que a ausência de atenção
explícita aos objetivos e fins da educação leve a tomar como base implícita
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uma visão particular de senso comum sobre para que serve a educação.
Há que considerar, contudo, que o que aparece como senso comum quase
sempre serve aos interesses de alguns grupos (muito) mais do que aos de
outros. O principal exemplo de uma visão de senso comum sobre a fina-
lidade da educação é aquele que o que mais importa é o progresso acadê-
mico em um número restrito de áreas curriculares, especialmente Língua,
Ciências e Matemática, e é essa visão de senso comum que tem dado mais
credibilidade a estudos como TIMMS, PIRLS e PISA. (Ela é construída sobre-
tudo em termos do que chamarei função de qualificação da educação.) Se
o conhecimento acadêmico tem, de fato, maior valor do que, por exemplo,
as habilidades vocacionais, tudo depende do acesso que esse conhecimento
dá a posições particulares na sociedade e isso, como a análise sociológica já
Gert Biesta
sigualdade social por meio da educação. Portanto, em primeiro lugar, é do
interesse dos que se beneficiam do status quo manter as coisas como estão
e não abrir uma discussão sobre o que a educação pode ser. O que torna a
situação ainda mais complicada é que os que estão em posição de desvanta-
gem tendem a apoiar o status quo na expectativa (quase sempre equivocada)
de que por fim também adquirirão os benefícios atualmente disponíveis
para os que estão em posições mais privilegiadas (um fenômeno que, em
outros textos, caracterizei como “ansiedade de classe média” (2004a). Um
exemplo pode ser encontrado na meta do governo do Reino Unido que diz
que 50% da população deve ter acesso à educação superior. Apesar de essa
parecer ser uma ambição atraente e emancipatória, é comum esquecer
que, uma vez alcançada a meta, a vantagem posicional atual de possuir um
diploma superior terá mudado e outros marcadores de distinção – como a
diferença entre o diploma de uma “boa” universidade e o de uma “não tão
boa”, segundo os rankings – aparecerão para reproduzir de outras formas as
desigualdades existentes (ROSS, 1991; RANCIÈRE, 1991).
Os motivos para a ausência relativa de atenção a questões sobre
as finalidades educacionais não são, contudo, meramente “externos”. Eles
também têm a ver com transformações dentro do próprio campo da educa-
ção e que estão intimamente ligados a uma mudança no vocabulário usado
para falar de processos e práticas educacionais. Como já discuti em outros
textos com mais detalhes (BIESTA, 2004b, 2006a), as duas últimas décadas
testemunharam uma ascensão notável do conceito de aprendizagem com
um declínio subsequente do conceito de educação (para apoio empírico a
essa tese, ver HAUGSBAKK, NORDKVELLE, 2007). A ascensão do que cha-
mei “nova linguagem de aprendizagem” se manifesta, por exemplo, na re-
definição do ensino como facilitação da aprendizagem e da educação como
o provimento de oportunidades de aprendizagem ou de experiências de
aprendizagem. Isso pode ser constatado no uso da palavra aprendiz em vez
de aluno ou estudante. É evidente na transformação da educação de adultos
em aprendizagem de adultos e na substituição da educação permanente
Cadernos de Pesquisa v.42 n.147 p.808-825 set./dez. 2012 815
sar de não ser uma formulação nova – pode ajudar a repensar o que os pro-
fessores poderiam fazer para dar maior apoio à aprendizagem dos alunos.
Há até possibilidades emancipatórias na nova linguagem da aprendizagem,
na medida em que ela pode empoderar indivíduos para assumir o controle
de suas próprias agendas educacionais. Mas há também vários problemas
ligados a essa nova linguagem – e não se deve subestimar as formas como
a linguagem estrutura as formas possíveis de pensar, fazer e raciocinar em
detrimento de outras formas de pensar, fazer e raciocinar. Neste artigo,
gostaria de enfatizar dois aspectos problemáticos da nova linguagem da
aprendizagem. Um é que aprendizagem é basicamente um conceito “indi-
vidualista”. Ele se refere ao que as pessoas, como indivíduos, fazem – mes-
mo que fundamentado em noções como aprendizagem colaborativa ou
Gert Biesta
que sempre implica relação: alguém educando outra pessoa e a pessoa que
educa tendo uma determinada noção de qual a finalidade de suas ativida-
des. O segundo problema é que aprendizagem é basicamente um termo de
processo. Ele denota processos e atividades, mas está aberto – se não vazio –
em relação ao conteúdo e aos rumos.
Isso ajuda a explicar por que a ascensão de uma nova linguagem
da aprendizagem tornou mais difícil fazer perguntas sobre conteúdo, pro-
pósito e rumos da educação. É importante, nesse contexto, observar que a
ascensão de uma nova linguagem da aprendizagem faz parte de um pro-
cesso mais amplo de “learnification” da educação, um processo que está
tendo cada vez mais impacto sobre a política educacional e a própria práti-
ca. Podemos constatar isso, por exemplo, na ênfase crescente na educação
sobre qualidades e capacidades pessoais, como na estrutura do currículo
nacional escocês, Um currículo para a excelência, que especifica os objetivos da
educação em termos de possibilidade de desenvolvimento de quatro “capa-
cidades”: a do aprendiz bem-sucedido, do indivíduo confiante, do cidadão
responsável e do contribuinte eficaz (SCOTTISH EXECUTIVE, 2004) – uma
tendência que se inclina a tornar a educação uma forma de terapia mais
preocupada com o bem-estar emocional de alunos e estudantes do que com
sua emancipação (ECCLESTONE, HAYES, 2008; BIESTA, 2010). O que está
desaparecendo do horizonte nesse processo é o reconhecimento de que
também importa o que os alunos e estudantes aprendem e para que apren-
dem – importa, por exemplo, que tipo de cidadãos se supõe que se tornarão
e que tipo de democracia se supõe que criarão (BIESTA 2008b) – e que, por
esse motivo, a educação pode e, de certa forma, até tem que ser difícil e de-
safiadora em vez de ser apenas (descrita como) um processo suave que visa
a atender às supostas “necessidades” do aprendiz (BIESTA, 2004b, 2001).
Como então podemos trazer de volta questões sobre propósitos e
rumos da agenda educacional? Para essa questão me volto em s eguida.
Meu objetivo neste artigo não é especificar quais deveriam ser os objetivos
da educação. Em vez disso, estabeleci uma tarefa mais modesta de deline-
ar os parâmetros do que acho que deveria moldar as discussões sobre os
objetivos e fins da educação, reconhecendo que já há amplo espectro de
concepções disponíveis e que, em sociedades democráticas, deveria haver
uma discussão constante sobre os propósitos da educação, tanto em relação
à educação pública quanto privada. Um modo de desenvolver referências
para discutir os objetivos e fins da educação é começar pelas funções reais
que o sistema educacional desempenha. Gostaria de sugerir que a educação
geralmente desempenha três funções diferentes, mas relacionadas, às quais
me referirei como as funções de qualificação, socialização e subjetivação.
Gert Biesta
como oposta à função de socialização. Não se trata precisamente da inser-
ção de “recém-chegados” às ordens existentes, mas das formas de ser que
sugerem independência dessas ordens; formas de ser em que o indivíduo
não é simplesmente um espécime de uma ordem mais abrangente. Se toda
educação realmente contribui para a subjetivação é um aspecto discutível.
Alguns argumentariam que nem sempre é esse o caso e que a influência
real da educação pode ser restringida à qualificação e à socialização. Outros
argumentariam que a educação também sempre impacta o indivíduo – e
dessa forma também tem sempre um efeito individualizador. O que mais
importa, no entanto – e aqui precisamos mudar a discussão de questões
sobre as funções reais da educação para questões sobre os objetivos, fins
e propósitos da educação – é a qualidade da subjetivação, isto é, o tipo de
subjetividade – ou os tipos de subjetividade que são tornados possíveis em
razão de particulares arranjos e configurações educacionais. Alguns argu-
mentariam – e têm argumentado (ver, por exemplo, na tradição analítica,
PETERS, 1966; 1976; DEARDEN et al., 1972, e, para uma contribuição recen-
te, WINCH 2005 e, na tradição crítica, MOLLENHAUER, 1964, FREIRE, 1970;
GIROUX, 1981) – que qualquer educação que mereça ser chamada assim
deve sempre contribuir para processos de subjetivação que permitam que
os que estejam sendo ensinados se tornem mais autônomos e independen-
tes em seus pensamentos e ações.
A principal contribuição que gostaria de dar é sugerir que, quan-
do nos comprometemos com discussões sobre o que constitui uma boa
educação, devemos reconhecer que é uma questão “composta”, isto é,
que, para responder a essa pergunta, precisamos reconhecer as diferen-
tes funções da educação e os diferentes objetivos potenciais da educação.
Uma resposta à pergunta sobre o que constitui uma boa educação deve,
portanto, sempre especificar suas ideias sobre qualificação, socialização e
subjetivação – mesmo no caso improvável de querermos argumentar que
apenas uma delas importa. Dizer que a questão do que constitui uma boa
educação é uma questão composta não é sugerir que as três dimensões
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das áreas em vez de ser das áreas individuais, por assim dizer.
As três dimensões da educação precisam ser separadas em termos
de nossas lógicas para a educação, isto é, das nossas respostas para a per-
gunta do que constitui uma boa educação. Nesse caso, é importante expli-
citar como nossa resposta se relaciona com a qualificação, socialização e/
ou subjetivação. O aspecto mais importante é que estamos cientes das três
dimensões, do fato de que necessitam de lógicas diferentes e ainda de que,
apesar de ser possível haver sinergia, há também potencial conflito entre
as três dimensões, principalmente entre a dimensão de qualificação e de
socialização, por um lado, e a dimensão de subjetivação, por outro.
Uma questão que não vou poder discutir em detalhes tem a ver
com a ideia de em que medida e de que forma é realmente possível fazer
uma distinção entre socialização e subjetivação. A resposta a essa per-
gunta depende de se acreditamos que seja possível ocupar uma posição
que esteja para além da tradição. Apesar de críticos pós-modernos terem
argumentado que uma posição assim não é mais possível e que deve-
mos, portanto, admitir que a educação para uma autonomia (racional)
é apenas uma forma a mais de socialização (moderna, ocidental), tenho
argumentado que é precisamente com a ajuda da teoria e da filosofia pós-
-modernas que ainda podemos fazer uma distinção entre a socialização e
a subjetivação, embora ela não esteja mais baseada numa noção de racio-
nalidade ou autonomia, mas ligada à ideia de um tipo de singularidade
que vem à luz na capacidade responsável de responder à alteridade e à
diferença (BIESTA, 2006a, 2007b, 2008a).
Gert Biesta
política explícita: um temor de ser visto como defendendo a doutrinação
de um conjunto particular de valores e convicções políticas, quase sempre
expressos na ideia de que a educação para a cidadania deve ficar afastada
da política partidária. Não obstante, muitos programas de educação para
a cidadania são realmente baseados em visões sobre o que constitui um
bom cidadão. A abordagem à educação para a cidadania na Escócia, por
exemplo (BIESTA, 2008b), afirma claramente que crianças e jovens devem
ser capacitados a se tornar cidadãos responsáveis – e assim representa uma
visão clara sobre o tipo de conhecimento, habilidades e disposições que os
alunos devem adquirir, mas também sobre o tipo de cidadãos que devem
se tornar. A proposta de educação para a cidadania na Escócia contém, por-
tanto, claramente uma dimensão de socialização. A Escócia não é o único
exemplo de uma abordagem da educação para a cidadania que tem visões
claras sobre o tipo de cidadão que aspira criar; muitos programas da educa-
ção para a cidadania estão efetivamente baseados em visões pré-definidas
do que um bom – o que quase sempre quer dizer um obediente e bem-com-
portado – cidadão parece ser (BIESTA, LAWY, 2006; LAWY, BIESTA, 2006). A
questão, no entanto, não é apenas se a educação para a cidadania deve se
ater à transmissão de dimensões de cidadania e, ficar, assim, dentro do do-
mínio da qualificação, ou se deve também buscar criar um tipo particular
de cidadão. Há também a questão de se a educação para a cidadania pode e
deve contribuir para o que podemos chamar de subjetivação política, isto
é, para a promoção de um tipo de cidadania que não trate meramente da
reprodução de um modelo pré-definido, mas leve a ação política a sério. A
educação para a cidadania que se interesse por essa abordagem orienta-se
claramente em direção à dimensão de subjetivação da função educacional.
O que esse exemplo deixa claro, portanto, é que há diferentes respostas
para a pergunta do que é uma boa educação para a cidadania e o que ela
deve ter como objetivo, dependendo se focalizamos na qualificação, na so-
cialização ou na subjetivação. A ideia não é que precisamos escolher entre
as três. O conhecimento e o entendimento (qualificação) políticos podem
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COMENTÁRIOS FINAIS
Neste artigo, tentei argumentar a favor da necessidade de se reconectar
com a questão das finalidades na educação. Mostrei que agora vivemos em
uma época em que as discussões sobre educação são dominadas pela men-
suração e por comparações de resultados educacionais e que essas mensu-
rações parecem orientar grande parte da política educacional e, por esse
meio, também grande parte da prática educacional. O perigo aqui é que
acabamos por valorizar o que é medido, em vez de nos envolvermos com
a mensuração do que valorizamos. No entanto é isso que deve, em última
instância, embasar nossas decisões sobre a orientação da educação, e é por
isso que argumentei que devemos ressaltar a questão do que constitui uma
Gert Biesta
indicar por que questões sobre os objetivos e fins da educação parecem ter
desaparecido do nosso horizonte e as conectamos com a ascensão da lin-
guagem da aprendizagem e com a “learnification” da educação. Não tentei
responder à pergunta do que constitui uma boa educação, porque, no mí-
nimo, estou ciente da pluralidade das visões sobre esse assunto e também
convencido da importância de manter a discussão em curso, em vez de fe-
char a questão prematuramente. Minha contribuição neste artigo consistiu
em enfatizar que a questão da boa educação é uma questão composta. Isso
significa que, nas discussões sobre a finalidade da educação, precisamos
distinguir entre as formas pelas quais a educação pode contribuir para a
qualificação, para a socialização e para a subjetivação. Não queria sugerir
que é sempre fácil fazer isso e menos ainda que, uma vez articuladas nossas
visões sobre para que serve a educação, é fácil medir todos os aspectos. Mas
se não formos explícitos sobre nossas visões acerca dos objetivos e fins da
educação – se não atacarmos as perguntas quanto ao que constitui uma boa
educação – corremos o risco de as estatísticas e os rankings tomarem essas
decisões por nós. Precisamos, portanto, manter a questão da finalidade – a
questão do que constitui uma boa educação – em posição central em nossas
discussões educacionais e empreendimentos mais amplos. É importante
para a prática diária da escolaridade, assim como é para as instâncias em
que nos envolvemos mais explicitamente com a avaliação de nossas pró-
prias práticas educacionais e as realizações de nossos alunos – como no
caso da avaliação de alunos, da avaliação de programas e práticas e quando,
como educadores, somos chamados a responder por nossos atos e decisões.
Em todo caso, uma preocupação com a boa educação, em vez de uma pre-
ocupação com uma educação eficaz ou com a aprendizagem como tal, que
não tenha qualquer especificação da aprendizagem “do que” ou “para que”,
deve ser central em nossas considerações.
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GERT BIESTA
Professor of Education da School of Education & Laboratory for Educacional
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[email protected]
Recebido em: JULHO 2012 | Aprovado para publicação em: AGOSTO 2012