João Calvino - Galatas PDF
João Calvino - Galatas PDF
João Calvino - Galatas PDF
COMENTÁRIOS
BÍBLICOS
SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS
JOÃO CALVINO
IF IEL
Editora Fiel
Título do Original: Calvin’s Commentaries
Edição publicada por © Baker Book House
P r o ib id a a r e p r o d u ç ã o d e s t e l iv r o p o r q u a is q u e r
a
F IEL
Editora Fiel
Editor: Pr. Richard Denham
Coordenação Editorial: Tiago Santos
Tradução: Rev. Valter Graciano Martins
Av. Cidade Jardim, 3978 Revisão: Pr. Wellington Ferreira e Tiago Santos
Bosque dos Eucaliptos
Capa e diagramação: Edvânio Silva
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3936-2529 Direção de arte: Rick Denham
www.editorafiel.com.br ISBN: 978-85-99145-28-9
Sumário
Capítulo 1
Versículos 1 a 5 ................................................................ 19
Versículos 6 a 9 ................................................................26
Versículos 10 a 14...........................................................32
Versículos 15 a 2 4 ...........................................................35
Capítulo 2
Versículos 1 a 5 ................................................................43
Versículos 6 a 10.............................................................. 49
Versículos 11 a 16...........................................................56
Versículos 17 a 2 1 ...........................................................65
Capítulo 3
Versículos 1 a 5 ................................................................ 73
Versículos 6 a 9 ................................................................ 77
Versículos 10 a 14...........................................................82
Versículos 15 a 18...........................................................87
Versículos 19 a 2 2 ...........................................................92
Versículos 23 a 2 9 ...........................................................99
Capítulo 4
Versículos 1 a 5 ...............................................................107
Versículos 6 a 11.............................................................113
Versículos 12 a 2 0 ...........................................................119
Versículos 21 a 2 6 ...........................................................126
Versículos 27 a 3 1 ...........................................................132
Capítulo 5
Versículos 1 a 6 .............................................................. 137
Versículos 7 a 12.............................................................144
Versículos 13 a 18...........................................................148
Versículos 19 a 2 1 ...........................................................153
Versículos 22 a 2 6 ...........................................................155
Capítulo 6
Versículos 1 a 5 ...............................................................159
Versículos 6 a 10.............................................................164
Versículos 11 a 13...........................................................169
Versículos 14 a 18........................................................... 171
Prefácio à edição em português
habitavam a parte da Ásia que recebeu 0 seu nome, foram divididos em três
principais nações, a saber: os tectosages, os tolistobogi e os trocmi, e conse-
qüentem ente ocupavam três cidades que exerciam hegemonia. Houve um
tem po em que exerceram tanto poder sobre seus pacíficos vizinhos que uma
grande parte da Ásia Menor se lhes tornou tributária. Por fim, perderam muito
de sua herança valorosa e varonil, e se entregaram ao prazer e à luxúria. E as-
sim foram derrotados na guerra e facilmente subjugados pelo cônsul romano
Cnaeus Manhus.
Nos dias de Paulo, os gálatas encontravam-se sob 0 domínio romano.
Ele os instruíra fielmente no genuíno evangelho, mas, em sua ausência, falsos
apóstolos penetraram entre os gálatas e corrom peram a verdadeira sem ente
do evangelho por meio de dogmas falsos doutrinas erradas. Ensinavam que a
observância de cerimônias ainda era indispensável. Isso pode aparentar tri-
vialidade; mas Paulo luta por essa tese como por um artigo fundamental da fé
cristã. E na verdade 0 é, pois nem 0 mal mais aparentem ente inofensivo não
haverá de extinguir 0 resplendor do evangelho, arm ar cilada às consciências e
remover a distinção entre a antiga e a nova aliança. Ele percebeu que tais erros
estavam tam bém relacionados com uma opinião ímpia e destrutiva sobre 0
merecimento de justiça. E essa é a razão por que ele batalha com tam anho vi-
gor e veemência. Quando tivermos com preendido quão significativa e séria é a
natureza desta controvérsia, então haverem os de estudá-la com uma atenção
muito mais aguçada.
Se alguém avaliar o tem a como ele se apresenta nos comentários de
Orígenes e Jerônimo, então se adm irará de Paulo ter feito tanto rebuliço em
torno de alguns ritos externos. Mas quem quer que busque a fonte de tais
ensinos haverá de reconhecer que houve razões de sobra para reprovações
tão veementes. Os gálatas, levados por sua excessiva credulidade, ou, antes,
por sua volubilidade e insensatez, haviam se desviado do curso certo. Por
isso são censurados tão severam ente pelo apóstolo. Assim, não concordo com
aqueles que pensam que Paulo os tratara mais rispidam ente em virtude da
m orosidade dos gálatas para apreender a estas coisas. Os efésios e os colos-
senses haviam sido subm etidos às mesmas tentações. Se houvessem cedido
tão facilmente ao conto desses vigaristas, concluiremos que Paulo os teria
tratado mais gentilmente? Não era propriam ente a natureza daquelas pessoas
que tornava o apóstolo tão pronto a repreendê-las, e sim a ignomínia da ques
0 Tema da Epístola aos Efésios · 13
tão em si mesma.
Agora que descobrim os a razão porque 0 apóstolo escreveu a epístola,
vejamos agora a forma como ele a organizou. Nos primeiros dois capítulos,
ele defende a autoridade de seu apostolado, ainda que mais para 0 final do
segundo capítulo ele toque incidentalmente em seu principal ponto, a saber, a
questão da justificação do homem, embora só no terceiro capítulo ele comece
a discussão direta e completa deste tema. Nesses dois capítulos, aparente-
mente ele trata de muitos temas, mas na verdade seu único objetivo é provar
que ele é igual aos apóstolos mais proem inentes, e que não há qualquer razão
plausível para que não seja ele considerado no mesmo pé de igualdade com
eles.
Mas, é im portante que saibamos porque ele labutava tão arduam ente em
prol de sua própria reputação. Pois, desde que Cristo reine e a pureza da dou-
trina perm aneça incontaminada, o que im porta se ele está acima ou abaixo de
Pedro, ou se ambos são iguais? Se todos devem diminuir para que unicamente
Cristo cresça (Jo 3.30), é algo indigno existir disputa entre os homens posição.
Pode-se igualmente perguntar por que ele se com para com os outros após-
tolos. Que rixa tinha ele com Pedro, Tiago e João? O que houve para que se
pusesse em oposição àqueles que eram de uma só mente e aliados íntimos?
Minha resposta é a seguinte: os falsos apóstolos, que haviam iludido os
gálatas a promoverem suas reivindicações pessoais, pretendiam obter favor
ao fingirem haverem sido comissionados pelos próprios apóstolos. Sua gran-
de influência junto aos gálatas, surgiu justam ente do fato de insinuarem que
representavam os apóstolos e comunicavam uma mensagem da parte deles.
Eles, porém, afirmaram que Paulo não deveria deter 0 nome e nem a autorida-
de de apóstolo. Objetavam que ele não fora escolhido por nosso Senhor como
um dentre os doze, que jamais fora reconhecido pelo colégio [apostólico]
como apóstolo e que não havia recebido sua doutrina diretam ente de Cristo
ou mesmo dos apóstolos. O alvo de tudo isso era não só minar ao máximo a
autoridade de Paulo, mas ainda colocá-lo como simples membro do rebanho,
muito abaixo até mesmo daqueles que fizeram tais insinuações.
Se esta situação houvesse m eram ente perm anecido na esfera pessoal,
não haveria dificuldade para Paulo ser reconhecido como um discípulo ordiná-
rio. Mas quando percebeu que sua doutrina começava a perder credibilidade
e autoridade, não lhe era mais possível perm anecer em silêncio. Ele tinha
14 · 0 Tema da Epístola aos Efésios
agora o dever de resisti-los com ousadia. Quando Satanás não ousa atacar
abertam ente a doutrina, seu próximo estratagem a é diminuir sua autoridade
através de ataques indiretos. Portanto, lembremos que, ao atacarem a Paulo,
estavam realmente atacando a veracidade do evangelho. Se ele perm itisse ser
despojado das honras do apostolado, seguir־se־ia que reivindicara 0 que não
lhe pertencia de fato e de verdade, e essa falsa ostentação torna-lo-ia suspeito
em outras áreas. Desse fato tam bém teria dependido a confiabilidade de sua
doutrina; pois tão pronto a teriam considerado como provinda de um discípu-
10 ordinário e não de um apóstolo de Cristo.
Em contrapartida, ele estava sendo lançado nas som bras pelo brilhan-
tismo de grandes nomes. Aqueles que reivindicavam 0 patrocínio de Pedro,
Tiago e João reivindicavam tam bém autoridade apostólica [para si]. Não ti-
vesse Paulo vigorosamente resistido a essa ostentação, ele teria se rendido à
falsidade, deixando que a verdade fosse tripudiada em sua pessoa. Ele, pois,
reage energicamente, de duas maneiras: ele era um apóstolo designado pelo
Senhor; e não era em nada inferior aos demais, senão que se equiparava a
eles em direito e dignidade, assim como participava de seu título ־apóstolo.
Ele poderia, na verdade, ter negado que aqueles im postores fossem enviados
ou comissionados por Pedro e seus colegas. Mas apresenta uma defesa mui-
to mais séria, dizendo que ele nem mesmo havia se subm etido aos próprios
apóstolos. Pois se tivesse divergido, te 1־-se-ia suspeitado que punha em dúvida
sua própria causa.
Jerusalém era a mãe de todas as igrejas. Pois 0 evangelho fluíra dali para
o mundo inteiro, e com justiça poderia ser chamada de a principal sede (pri-
marias sedes) do reino de Cristo. Qualquer um que chegasse em outras igrejas,
vindo de lá, era recebido com 0 devido respeito. Muitos, porém, se enchiam
de vão orgulho por se terem familiarizado com os apóstolos, ou, ao menos,
por terem aprendido em sua escola. Portanto, nada lhes satisfazia senão 0 que
haviam visto em Jerusalém. Não só rejeitavam, mas im prudentem ente conde-
navam, cada costum e que não estivesse em vigor ali. Esse com portam ento
insolente torna-se ainda mais pernicioso, quando se pretende que a prática de
uma igreja local se faça lei universal. Às vezes nos tornam os tão afeiçoados a
um mestre ou a um lugar, que, sem qualquer senso crítico, passam os a impor
a opinião dessa única pessoa ou os costum es desse único lugar a todas as pes-
soas e a todos os lugares, como se fossem universais. E tal atitude é ridícula
0 Tema da Epístola aos Efésios · 15
além de que, muitas vezes há tam bém alguma dose de ambição nela presente;
aliás, um espírito excessivam ente crítico é sem pre ambicioso.
Retornemos a esses falsos apóstolos. Se tivessem simplesmente, movi-
dos por sua pervertida rivalidade, tentado estabelecer por toda parte 0 uso
daquelas cerimônias, como haviam sido observadas em Jerusalém, já estariam
pecando gravemente, porquanto é injusto transform ar um costum e diretamen-
te numa regra. O pior mal, porém, era a sua im piedosa e perigosa doutrina, a
qual aprisionava as consciências humanas por meio da religião; e faziam a
justificação depender de sua observância. E assim descobrim os por que Paulo
defendia seu apostolado com tanta tenacidade, e por que ele se contrastava
com os demais apóstolos.
Ele segue este tem a até ao final do segundo capítulo, onde ele passa a
argum entar em torno de seu principal assunto, ou seja: que somos justificados
gratuitam ente aos olhos de Deus, e não mediante as obras da lei. E extrai sua
defesa do seguinte argumento: se as cerimônias não têm qualquer poder de
justificar, então a sua observância é desnecessária. Ele, contudo, não trata só
de cerimônias, mas discute as obras em geral; de outra forma, o argumento
como um todo seria inconsistente.
Se alguém sentir que isso é um tanto forçado, então que 0 mesmo con-
sidere duas coisas. Primeiramente, a questão não pode ser estabelecida sem
que se admita 0 princípio geral de que somos justificados unicam ente pela
graça de Deus; e este princípio põe de lado não apenas as cerimônias, mas
igualmente outras obras. Em segundo lugar, Paulo não estava tão preocupado
com a questão das cerimônias, mas com a im piedosa noção de que obtem os a
salvação pelas obras. Observemos, portanto, que ele começa de forma apro-
priada, trazendo à luz, de pronto, os princípios apropriados para a defesa de
seu argumento. Era indispensável indicar a fonte, para que seus leitores sou-
bessem que a controvérsia não visava a questões sem importância, e, sim, se
preocupava com a matéria mais im portante de todas, a saber: a forma como
obtem os a salvação.
Equivoca-se, portanto, quem supõe que o apóstolo limitou-se tão-so-
m ente à questão que envolvia cerimônias, pois esse assunto, por si só, não
se sustentaria. Temos um exemplo similar em Atos 15.2. Surgiram disputas
e contendas se a observância de cerimônias era necessária. Na discussão, 0
Qual foi seu propósito nisso? Parece uma digressão absurda; mas na verdade
não 0 era, pois um erro particular não pode ser refutado satisfatoriam ente a
menos que um princípio universal seja admitido. Por exemplo, se tenho de
debater acerca da ingestão de carne proibida, não falarei som ente acerca de
alimentação, mas também me municiarei com a doutrina geral, ou seja: que
autoridade têm as tradições humanas de obrigar a consciência? Citarei 0 ver-
sículo que revela que só existe um Legislador que tem 0 poder de salvar e de
destruir (Tg 4.12). Em suma, Paulo, aqui, argumenta negativamente do geral
para 0 particular, que é 0 m étodo comum e mais natural em controvérsias. Por
meio de quais evidências e argumentos ele prova a afirmação de que somos
justificados unicam ente pela graça de Cristo, verem os em seu devido lugar.
Isso ele segue até ao final do terceiro capítulo.
No início do quarto capítulo, ele trata do uso correto das cerimônias,
e porque elas foram designadas, dem onstrando, ao mesmo tempo, que elas
estão agora abolidas. Para rem ediar 0 absurdo que poderia ocorrer em cer-
tas mentes sobre qual era a essência das cerimônias, e que as mesmas eram
sem qualquer préstim o, bem como 0 fato de que os pais desperdiçaram seu
tem po observando-as, 0 apóstolo apresenta duas afirmações: em seu devido
tempo, elas não eram supérfluas; e agora, com a vinda de Cristo, foram aboli-
das, porquanto ele é sua Verdade e seu Fim. E assim ele m ostra que devemos
perm anecer nEle [Cristo]. Também faz breve menção da diferença entre nossa
própria condição e a dos [antigos] pais. Segue-se que o ensino dos falsos após-
tolos é ímpio e perigoso, visto que ele obscurece a clareza do evangelho com
velhas som bras. Com este ensino, Paulo abranda algumas exortações a fim de
comover os sentim entos deles. Mais para 0 final do capítulo, ele adorna seu
argumento com uma bela alegoria.
No quinto capítulo, ele os exorta a m anter inabalável a liberdade obtida
pelo sangue de Cristo e a não deixar que suas consciências fossem enleadas
pelas opiniões humanas. Ao mesmo tempo, porém, lembra-lhes qual é 0 le-
gítimo limite da liberdade. Ele então aproveita a ocasião para realçar a real
ocupação dos cristãos, para que não viessem a desperdiçar seu tem po com
cerimônias e a negligenciar questões de real importância.
Capítulo 1
chamada com maior vigor do que 0 faz em outras epístolas. Paulo não so-
mente declara que fora chamado por Deus, mas também afirma com muita
clareza que a chamada ocorrera não da parte de homens, nem por inter-
médio de homem algum. Esta afirmação, devemos observar, não se aplica
ao ofício que ele tinha em comum com os outros pastores (de communi
pastorum officio), e sim aoapostolado. Os autores das calúnias que Paulo
tinha diante de si não ousavam despojá-lo completamente da dignidade do
ministério cristão. Recusavam-se apenas a dar-lhe 0 título de apóstolo e a
colocá-lo nessa categoria.
Estamos falando do apostolado em si mesmo, pois a palavra após-
tolo é usada de duas maneiras. Às vezes, denota os pregadores do
evangelho, sem im portar-se com a classe a que pertenciam. Mas, nesta
passagem, apóstolo tem uma referência distinta à mais elevada ordem
na igreja (primarium in Ecclesia ordinem). Por conseguinte, Paulo é igual
a Pedro e aos outros doze.
A primeira cláusula - que ele fora chamado não da parte de homens
- declara algo que Paulo tinha em comum com todos os verdadeiros mi-
nistros de Cristo. Assim como nenhum homem deve tomar “esta honra
para si mesmo” (cf. Hb 5.4), assim também não está no poder dos homens
0concedê-la a quem quer que a queira. O governo da igreja pertence so-
mente a Deus. Portanto, a chamada não é legítima, se não procede dEle. No
que concerne à igreja, um homem que chegou ao ministério não por uma
boa consciência, mas por motivos ímpios, talvez foi vocacionado de modo
regular. Mas, nesta passagem, Paulo fala de uma chamada comprovada de
modo tão perfeito, que nada lhe faltava.
Alguém pode alegar: “Os falsos apóstolos não faziam, com freqüência,
essa mesma reivindicação?” Admito que sim. Aliás, eles faziam isso com
um estilo exaltado e desdenhoso, um estilo que os servos do Senhor não
ousavam empregar. Todavia, os falsos apóstolos não tinham aquela cha-
mada proveniente do céu, que Paulo tinha 0 direito de reivindicar.
A segunda cláusula, a de que fora chamado não por intermédio de
homem algum, se aplicava de modo particular aos apóstolos. Isso não era
0 que ocorria no caso de um pastor comum. Paulo mesmo, quando via
Capítulo 1 · 19
que tudo quanto decidem impor-nos tem de ser considerado como defi-
nitivo. Mas a condição e a forma da Igreja de Roma são muito diferentes
do que existia nas igrejas da Galácia. Se Paulo vivesse hoje, veria as mi-
serãveis e horríveis ruínas de uma igreja, e não um edifício. Em suma, 0
amor para conosco: não poupou 0 seu Filho unigênito, antes, por todos
nós O entregou (Rm 8.32). Cristo, por outro lado, ofereceu-se a Si mesmo
em sacrifício, para reconciliar-nos com Deus. Logo, concluímos que a mor-
te de Cristo é a satisfação pelos pecados.
Para nos desarraigar. De modo semelhante, 0 apóstolo declara o pro-
pósito de nossa redenção, ou seja: que Cristo, por meio de sua morte, nos
comprasse para sermos sua propriedade peculiar. Isto acontece quando
somos separados do mundo. Pois, enquanto somos do mundo, não perten-
cemos a Cristo. A palavra mundo é usada como substituto da corrupção
que existe no mundo, da mesma maneira como é empregada em 1 João
(bem como em muitos outros lugares), que diz: “0 mundo inteiro jaz no
maligno” (1 Jo 5.19). João também a usa de modo idêntico em seu evange-
lho, quando recorda estas palavras do Salvador “Não peço que os tires do
mundo, e sim que os guardes do mal” (Jo 17.15). Neste versículo, a palavra
mundo significa a vida presente.
0 que significa mundo nesta passagem? Significa os homens separa-
dos do reino de Deus e da graça de Cristo. Pois, enquanto 0 homem vive
para si mesmo, está completamente condenado. 0 mundo é, portanto,
contrastado com a regeneração, assim como a natureza humana é con-
trastada com a graça, e a carne, com 0 Espírito. Os que nascem do mundo
nada possuem, exceto pecado e perversidade, não por criação, e sim por
corrupção. Cristo morreu pelos nossos pecados, a fim de remir-nos ou se-
parar-nos do mundo.
Deste mundo perverso. Ao acrescentar 0 adjetivo perverso, 0 apósto-
10 tencionavamostrar que falava da corrupção ou depravação que procede
do pecado, e não das criaturas de Deus ou da vida física. No entanto, pelo
uso desta mesma palavra, Paulo destrói todo orgulho humano. Ele declara
que, sem a renovação da natureza humana que é realizada pela graça de
Cristo, em nós há somente perversidade. Pertencemos ao mundo; e en-
quanto Cristo não nos redime do mundo, este nos domina e vivemos para
ele. Entretanto, embora os homens se deleitem em sua suposta excelência,
eles são indignos e depravados, não segundo a sua própria opinião, mas
conforme 0 julgamento do Senhor, declarado nesta passagem pelas pala
24 · Comentário de Gálatas
vras do apóstolo.
Segundo a vontade. Paulo indica a fonte original da graça: 0 propó-
sito de Deus. “Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu 0 seu Filho
unigênito” (Jo 3.16). Mas devemos observar que Paulo costumava expor
0 propósito de Deus como algo que excluía toda compensação ou mérito
humanos. Assim, neste versículo, “vontade” denota aquilo que é chamado
de beneplácito. O significado é que Cristo sofreu por nós, não porque éra-
mos dignos ou porque fizemos algo que exige a reação dEle. Cristo sofreu
porque esse era 0 propósito de Deus.
De nosso Deus e Pai eqüivale a “de Deus, que é nosso Pai”.
5. A quem seja a glória. Com esta repentina ação de graças, 0
apóstolo tencionava despertar, poderosamente, os seus leitores a consi-
derarem aquele dom inestimável que haviam recebido de Deus e, desta
maneira, prepararem sua mente para receber instrução. Mas também
pode ser considerada uma exortação geral. Toda ocasião que nos traz à
mente a misericórdia de Deus deve ser aceita como uma oportunidade
para darmos glória ao Senhor.
somente porque você mesmo 0 disse”. Para mostrar que não havia fun-
damento para essa calúnia, 0 apóstolo renuncia imediatamente 0 direito
de promover qualquer coisa contrária ao seu próprio ensino. Ele não
reivindica superioridade sobre os outros homens; apenas exige de todos,
que são iguais a ele mesmo, sujeição à Palavra de Deus.
Ou mesmo um anjo vindo do céu. Para destruir mais completamen-
te as pretensões dos falsos apóstolos, Paulo evoca os próprios anjos. Ele
disse que os anjos não deviam ser ouvidos, caso anunciassem algo dife-
rente, e que deviam ser considerados anátemas. Alguém pode imaginar
que era absurdo envolver os anjos numa controvérsia acerca da doutrina
de Paulo. Um ponto de vista correto a respeito do assunto nos capaci-
tará a perceber que este procedimento do apóstolo era conveniente e
necessário. Com toda certeza, é impossível os anjos do céu ensinarem
qualquer coisa além da pura verdade de Deus. Mas, quando havia con-
trovérsia a respeito da fé na doutrina que Deus revelara sobre a salvação
dos homens, Paulo não achava suficiente refutar a opinião dos homens,
sem refutar, ao mesmo tempo, a autoridade dos anjos.
Assim, não é supérfluo que 0 apóstolo pronuncie uma maldição
sobre os anjos, caso ensinassem outra doutrina, embora seu argumento
tenha por base uma impossibilidade. Essa linguagem exagerada deve
ter contribuído para fortalecer a confiança na pregação de Paulo. Seus
oponentes, mediante 0 uso de nomes famosos, tentavam atacar seu en-
sino e caráter. Ele os responde afirmando com ousadia que nem mesmo
os anjos são capazes de abalar sua autoridade. Isto não é, de modo al-
gum, uma ofensa aos anjos. Eles foram criados para promover, mediante
todos os meios possíveis, a glória de Deus. Aquele que se esforça, de
maneira piedosa, para cumprir esse mesmo objetivo, embora por meio
de uma citação aparentem ente desrespeitosa dos anjos, não prejudica a
dignidade deles. Esta linguagem não só expressa, de maneira impressio-
nante, a majestade da Palavra de Deus, mas também transm ite à nossa
fé uma extraordinária confirmação, enquanto, confiando na Palavra de
Deus, nos sentimos à vontade para tratar os anjos com desdém e me-
nosprezo.
Capítulo 1 · 29
via sido designado para esse ofício mediante revelação de Jesus Cristo. No
entanto, Paulo usa vários argumentos, que, considerados juntos, são reco-
nhecidos como suficientemente fortes para estabelecer a sua conclusão.
Paulo argumenta, em primeiro lugar, que fora chamado pela graça de Deus;
em seguida, que seu apostolado fora reconhecido pelos demais apóstolos;
e os demais argumentos são apresentados no restante da epístola. 0 leitor
deve, portanto, lembrar-se de apreciar a narrativa como um todo e de ex-
trair a inferência não de partes isoladas, mas de toda a epístola.
Que me separou. Esta separação era 0 propósito de Deus pelo qual
Paulo foi designado ao ofício apostólico, antes mesmo de nascer. A chama-
da ocorreu depois, no tempo certo, quando o Senhor tornou conhecida a
sua vontade a respeito do apóstolo e lhe ordenou que realizasse a obra.
Sem dúvida alguma, Deus havia decretado, antes da fundação do mundo,
0 que faria a respeito de cada um de nós e destinado a cada um, mediante
que não imaginassem que ele tinha interesses diferentes dos interesses
dos outros apóstolos e que desejava afastar-se deles, Paulo nos diz que
subiu a Jerusalém a fim de avistar-se com Cefas. Embora Paulo não tenha
esperado pela aprovação dos apóstolos, para começar seu ofício, não foi
contra a vontade deles, e sim com 0 pleno consentimento e aprovação
deles, que entrou na classe de apóstolo. Paulo desejava mostrar que nun-
ca estivera em desarmonia com os apóstolos e que, nesta altura, estava
em plena harmonia com todas as opiniões deles. Ao mencionar 0 tempo
que permanecera na Arábia, Paulo demonstra que viera não para aprender,
mas apenas para ter comunhão mútua.
19. E não vi a outro dos apóstolos. Isto foi acrescentado para eviden-
ciar que Paulo não tinha outro propósito em sua viagem; e não atendeu a
qualquer outra coisa.
Senão Tiago. É oportuno perguntarmos quem era esse Tiago. Quase
todos os antigos pais concordam que ele era um dos discípulos, cujo so-
brenome era Oblias e “o Justo”, que presidia a igreja de Jerusalém. Outros
pensam que ele era filho de José, com outra esposa. E outros acham que Tia-
go era primo de Cristo, por parte de mãe. (Esta é a idéia mais provável.) Mas,
como ele é mencionado entre os apóstolos, não concordo com essa opinião.
Também não existe sustentação para 0 argumento de Jerônimo, afirmando
que 0 título apóstolo é aplicado a outros além dos Doze. Nestes versículos,
0 assunto em consideração é a mais elevada classe de apóstolos; e veremos
que Tiago era considerado uma das principais colunas da igreja (G12.9). Pa-
rece mais provável que Paulo falava sobre 0 filho de Alfeu.
É mais provável que os demais dos apóstolos estivessem espalhados
pelos vários países; visto que não permaneciam em um único lugar. Lucas
relata que Barnabé trouxera Paulo aos apóstolos (At 9.27). Isto não deve
ser entendido como uma referência aos Doze, e sim aos dois que estavam
sozinhos em Jerusalém.
20. Ora, acerca do que vos escrevo. Esta afirmação se estende a toda
a epístola. A profunda seriedade de Paulo neste assunto é mostrada pelo
fato de que ele recorreu a um juramento, algo que só deve ser usado em
ocasiões sérias e importantes. Não devemos estranhar que Paulo tenha in-
Capítulo 1 · 39
1. Catorze anos depois. Com certeza, podem os dizer que esta não foi
a mesma viagem mencionada por Lucas (At 15.2). A conexão da história
nos leva ã conclusão contrária. Descobrimos que Paulo fez quatro viagens
a Jerusalém. Já falamos sobre a primeira dessas viagens. A segunda aconte-
ceu quando, em com panhia de Barnabé, Paulo levou as ofertas de caridade
das igrejas gregas e asiáticas (At 12.25 ). Minha opinião de que esta pas-
sagem refere-se a esta segunda viagem se fundam enta em várias razões. E
qualquer outra suposição tornaria irreconciliáveis as afirmações de Paulo
e Lucas. Além disso, há boas razões para conjecturarm os que Paulo repre
42 · Comentário de Gálatas
endeu a Pedro em Antioquia, enquanto vivia ali. Mas isso aconteceu antes
de Paulo ser enviado, pelas igrejas, a Jerusalém, para resolver 0 proble-
ma a respeito da observância de cerimônias (At 15.2). É ilógico imaginar
que Pedro teria usado tal dissimulação, se a controvérsia já houvesse sido
resolvida e o decreto apostólico, publicado. Mas, nesta passagem, Paulo
escreve que viera a Jerusalém e, somente depois, acrescenta que repre-
endera a Pedro, por causa de um ato de dissimulação, um ato que, com
certeza, Pedro não teria cometido, exceto em questões duvidosas.
Além disso, Paulo jamais teria mencionado essa viagem, realizada
com a concordância de todos os crentes, sem referir-se ã ocasião e à me-
morável decisão tomada pelos apóstolos. Não se têm certeza quanto ao
tempo em que a epístola foi escrita; sabe-se apenas que as igrejas gregas
conjecturam que ela foi enviada de Roma; e as igrejas latinas presumem
que a epístola procedeu de Éfeso. Quanto a mim, creio que ela foi escrita
não somente antes de Paulo ter chegado a Roma, mas também antes de 0
reconhecer como irmão. A razão por que esse homem era incircunciso
foi apresentada: a circuncisão, sendo algo indiferente, podia ser negligen-
ciada ou praticada, conforme 0 exigisse a edificação. A regra que deve
sempre ser observada é esta: embora todas as coisas nos sejam lícitas (1
Co 10.23), devemos exigir apenas 0 que é conveniente. Paulo circuncidou
a Timóteo (At 16.3), para que a incircuncisão não causasse escândalo às
mentes fracas; pois, naquela ocasião, ele estava lidando com os fracos,
aos quais ele tinha 0 dever de tratar com ternura. E teria feito 0 mesmo
com Tito, porque era incansável em seus esforços de suportar os fra-
cos. Mas este caso era diferente. Alguns falsos irmãos estavam à espera
de uma chance para caluniar a doutrina de Paulo e teriam espalhado
imediatamente 0 rumor: “Vejam como o campeão da liberdade deixa de
lado, quando está na presença dos apóstolos, aquele caráter ousado
e fervoroso que costuma assumir quando está entre os ignorantes!” Ora,
assim como “devemos suportar as debilidades dos fracos” (Rm 15.1),
assim também precisamos resistir, com vigor, aos inimigos astutos que
espreitam deliberadamente a nossa liberdade. As obrigações vinculadas
ao amor ao próximo não devem ser prejudiciais à fé. Portanto, em assun-
tos indiferentes, 0 amor ao próximo será 0 melhor guia, contanto que a fé
sempre receba a nossa primeira consideração.
4. E isto por causa dos falsos irmãos. O sentido pode ser duplo: ou
que os falsos irmãos usaram isso como um motivo de acusação perversa e
se empenharam para constranger Paulo ou que o apóstolo não circuncidou
propositadamente a Tito, porque discernia que os falsos irmãos usariam
isso de imediato para caluniá-lo. Haviam se introduzido sutilmente na com-
panhia de Paulo, esperando conseguir um destes objetivos: despertar a
indignação dos judeus contra ele, caso desprezasse as leis cerimônias; ou,
se Paulo tivesse deixado de usar sua liberdade em Cristo, eles exultariam a
respeito de Paulo, diante dos gentios, considerando-no um homem derrota-
do que havia abandonado a sua doutrina. Prefiro a segunda interpretação,
ou seja: Paulo estava ciente da trama e resolveu não circuncidar a Tito.
Quando ele disse que Tito não fora “constrangido”, seus leitores pu-
deram entender que a circuncisão não é condenada como algo ruim em
46 · Comentário de Gálatas
dois motivos de acusação. Eles teriam dito imediatamente: “Você fez algum
progresso; corrigiu seus erros passados e não repetiu sua antiga impru-
dência”. Assim, em primeiro lugar, toda a doutrina que Paulo ensinara até
essa altura cairia em suspeita. Em segundo lugar, ele sempre possuiria,
doravante, menos autoridade, uma vez que seria reconhecido como um
discípulo comum. Vemos, pois, que a razão desta jactãncia santa não era a
consideração por sua própria pessoa, e sim a necessidade de proteger sua
doutrina. A controvérsia não se referia a indivíduos; portanto, não era um
conflito de ambições. Contudo, Paulo determinara que nenhum homem,
por mais eminente que fosse, obscureceria seu apostolado, do qual depen-
dia a autoridade de seu ensino. Se isso não bastasse para silenciar aqueles
cães, seus latidos seriam suficientemente reprimidos.
Quais tenham sido. Estas palavras devem ser lidas como uma cláusu-
la separada, pois 0 parêntese foi introduzido para assegurar aos inimigos
que Paulo não se preocupava com opiniões de homens. Esta passagem é
interpretada de várias maneiras. Ambrósio pensa que ela é uma referência à
tolice de tentar minimizar Paulo exaltando os apóstolos, como se ele tivesse
dito: “Se não me sentisse igualmente à vontade para argumentar que eles
eram apenas pobres analfabetos que nada sabiam, exceto pescar, enquanto
eu fui bem educado, desde a minha juventude, sob os cuidados de Gamaliel.
Mas ignoro tudo isso, porquanto sei que para com Deus não existe qualquer
discriminação de pessoas”. Crisóstomo e Jerônimo assumiram um ponto
de vista mais radical; era como se Paulo ameaçasse indiretamente até os
mais notáveis apóstolos, com as seguintes palavras: “Quem quer que sejam
eles, não escaparão ao juízo divino, se, porventura, não cumprirem seus
deveres. Nem a dignidade de seu ofício, nem a estima dos homens os poupa-
rá”. No entanto, a outra interpretação parece mais simples e mais concorde
com a intenção de Paulo. Ele admite que os apóstolos eram os primeiros
quanto ao tempo, mas argumenta que isso não 0 impede de ser igual a eles
em dignidade. Paulo não diz que a condição presente dos apóstolos não
lhe interessava, mas se refere a uma época já passada, quando eles eram
apóstolos e ele, Paulo, se opunha à fé em Cristo. Em suma, ele não pretendia
que 0 assunto fosse decidido em termos de passado e recusa-se a admitir 0
Capítulo 2 · 49
pelo qual a doutrina de Paulo foi confirmada, e seu ofício como mestre,
aprovado. É duvidoso se Paulo relaciona a operação eficaz de Deus com 0
sucesso de sua pregação ou com as graças do Espírito Santo outorgadas
aos crentes. Não entendo a operação eficaz de Deus como que denotando
0 sucesso da pregação de Paulo, e sim como uma referência ao poder e à
eficácia espiritual que ele mencionou em outro lugar (1 Co 2.4). O sentido
de todo 0 versículo é que não houve uma barganha frívola arranjada ente
os apóstolos, e sim uma decisão que Deus mesmo selou.
9. E, quando conheceram a graça. Paulo revela, em suas verdadei-
ras cores, 0 desdém arrogante daqueles que menosprezavam a graça
de Deus naquele que conquistara a admiração e o respeito dos primei-
ros apóstolos. Pois fingir que ignoravam aquilo que os apóstolos viam
desde o começo teria sido insuportável para esses arrogantes. Isso nos
exorta a render-nos à graça de Deus, onde quer que seja percebida, a
menos que desejemos lutar contra o Espírito Santo, cuja vontade é que
seus dons não permaneçam ociosos. A graça que os apóstolos perce-
beram ter sido outorgada a Paulo e a Barnabé os moveu a confirmar o
ministério deles, ao recebê-los como seus associados.
Tiago e Cefas. Já afirmei que Tiago era 0 filho de Alfeu. Não po-
dia ser 0 irmão de João, a quem Herodes m atara pouco antes. E supor
que ele era um dos discípulos elevado acima dos apóstolos seria um
absurdo. Lucas m ostra que ele tinha a primazia entre os apóstolos e
atribui-lhe o resumo e a decisão do assunto abordado no Concilio (At
15.13). Depois, Lucas menciona que “todos os presbíteros” da igreja em
Jerusalém reuniram-se com esse Tiago (At 21.18). Ao dizer que eram
reputados colunas, Paulo não está falando desdenhosam ente, mas ci-
tando a opinião geral e argumentando, com base neste fato, que os atos
desses homens não deviam ser rejeitados negligentemente.
No que concerne à questão de posição, é surpreendente que Tiago
seja apresentado antes de Pedro. Mas a razão talvez esteja no fato de que
ele presidia a igreja de Jerusalém. Quanto à palavra coluna, sabemos que,
à luz da natureza das coisas, àqueles que excedem os outros em talentos,
sabedoria ou dons possuem maior autoridade. Na igreja de Deus, aquele
54 · Comentário de Gálatas
que desfruta de maior graça deve receber maior honra. E não adorar o
Espírito Santo onde quer que Ele se manifeste, por meio de seus dons,
constitui ingratidão, bem como impiedade. Assim como um povo não deve
ficar sem um pastor, assim também uma assembléia de pastores requer
um moderador. Contudo, a seguinte regra deve ser sempre observada: “0
maior dentre vós será vosso servo” (Mt 23.11).
10. Que nos lembrássemos dos pobres. É evidente que os irmãos
na Judéia labutavam sob extrema pobreza; do contrário, não teriam so-
brecarregado as outras igrejas. Isso talvez foi causado, em parte, pelas
várias calamidades que sobrevieram a toda a nação e, em parte, pela fú-
ria de seus próprios patrícios, por quem eram espoliados diariamente de
seus bens. Era justo que recebessem ajuda dos gentios, que lhes deviam o
evangelho, uma bênção incomparável! Paulo diz que cumprira fielmente 0
da. Disto podemos ver quão firme era a doutrina de Paulo: ele não somente
obteve a aprovação espontânea dos apóstolos, mas também a defendeu
com firmeza no debate com Pedro, e saiu vitorioso. Que razão haveria para
alguém hesitar em recebê-la como a verdade segura e inquestionável?
Ao mesmo tempo, Paulo aborda outra calúnia: que ele era apenas um
discípulo comum, muito aquém da categoria de apóstolo; pois a repro-
vação que ministrara era um sinal de igualdade. Reconheço que os mais
preeminentes são, às vezes, repreendidos adequadamente pelos mais hu-
mildes; e essa liberdade de repreensão da parte do inferior em relação
ao superior é permitida por Deus. Mas isso não nos leva a concluir que
0 repreensor tem de ser igual ao repreendido. Contudo, a natureza da re-
aconteceria diante do povo. Mas eles não tem 0 apoio da expressão κατά
πρύσωπον, a qual nos diz que Pedro foi repreendido e silenciado “face a
face” ou “na presença”. É frívola a idéia de Crisóstomo no sentido de que
Paulo e Pedro, a fim de evitar escândalo, teriam conversado em particular,
se tivessem alguma diferença. 0 menos importante tinha de ser ignorado,
se comparado ao pior de todos os escândalos: aquele que dividia a igreja,
colocava em risco a liberdade cristã e menosprezava a doutrina da graça
de Cristo. Portanto, este pecado público tinha de ser corrigido.
0 argumento do qual Jerônimo depende é extremamente frágil. Ele
pergunta: “Por que Paulo condenaria em outro o que louvava em si mesmo,
visto que se orgulhava de que, em relação aos judeus, procedia como ju-
deu (1 Co 9.20)? Minha resposta é que Pedro fez algo bem diferente. Paulo
se acomodava aos judeus somente até onde essa atitude era coerente com
a doutrina da liberdade. Por isso, ele não permitiu que Tito fosse circunci-
dado, para que a verdade do evangelho não fosse prejudicada. Mas Pedro
Capítulo 2 · 57
15. Nós, judeus por natureza. Alguns acham que isto é uma contra-
alegação, como se Paulo, falando em lugar de seu oponente, antecipasse a
objeção de que os judeus tinham privilégios mais elevados. Mas isso não
significa que estavam isentos da lei. Pois teria sido bastante absurdo que
eles, a quem a lei fora dada, reivindicassem tal coisa; embora fosse certo
que havia algumas marcas distintivas entre eles e os gentios. Não rejeito
nem adoto totalmente essa interpretação, como logo se evidenciará. Ou-
tros a entendem como que representando a própria afirmação de Paulo,
nestes termos: “Se vocês pusessem 0 fardo da lei sobre os judeus, isso se-
ria mais razoável, já que a lei lhes pertence por herança”. Esta explicação
também não satisfaz.
Portanto, passemos à segunda parte do discurso de Paulo, que co-
meça com uma antecipação. Os gentios diferiam dos judeus neste aspecto:
eram “ímpios e profanos” (1 Tm 1.9), enquanto os judeus eram santos, pois
Deus os escolhera para que fossem seu povo. E os judeus podiam lutar por
essa superioridade. Por meio de antecipação sábia, Paulo faz a objeção
mudar em direção à conclusão oposta. Se os judeus, com toda a sua dis-
tinção, viram-se forçados a correr à fé em Cristo, muito mais necessário é
que os gentios busquem a salvação pela fé. Portanto, 0 significado destas
palavras de Paulo é: “Nós, que parecemos exceder aos outros e que, pelo
benefício da aliança, temos sempre desfrutado do privilégio de estar perto
de Deus, não encontramos qualquer outra maneira de obter a salvação,
exceto por meio do crer em Cristo. Por que, então, devemos estabelecer
outra maneira para os gentios? Porque, se a lei fosse necessária ou pro-
veitosa à salvação daqueles que cumpriam seus preceitos, ela o teria sido
especialmente para nós, a quem foi outorgada. Mas, se a abandonamos e
nos voltamos para Cristo, não devemos, de modo algum, exigir dos gentios
submissão a ela”.
0 vocábulo pecadores significa, neste versículo, como em muitas ou-
tras passagens, uma pessoa “profana” (Hb 12.16) ou alguém que se encontra
perdido e alienado de Deus. Assim eram os gentios, que não desfrutavam
de comunhão com Deus, enquanto os judeus eram, por meio da adoção,
os filhos de Deus e, portanto, separados para a santidade. A expressão por
60 * Comentário de Gálatas
tudo 0 que Paulo afirma depois se refere à lei moral, e não à lei cerimonial.
E, novamente, ele contrasta a justiça da lei com a graciosa aceitação com
a qual Deus se apraz favorecer-nos.
Nossos oponentes objetam que o termo “obras” teria sido usado sem
qualquer adição, como se Paulo não pretendesse limitá-lo a uma categoria
particular. Mas respondo que há uma excelente razão para esse tipo de ex-
pressão; pois, se uma pessoa excedesse aos anjos em santidade, nenhum
galardão se deveria às obras, e sim ao fato de que Deus o prometera. A
perfeita obediência à lei é justiça e tem uma promessa de eterna vida ane-
xada a si. Mas 0 seu caráter procede de Deus, que declara: Aquele que a
cumprir a viverá (cf. Lv 18.5). Trataremos deste ponto mais plenamente
em seu devido lugar. Além disso, a controvérsia com os judeus se referia
à lei. Por essa razão, Paulo prefere lutar corpo a corpo e levar 0 ataque ao
campo deles, em vez de fugir de um lado para outro, aparentando evasão
ou falta de confiança em sua causa. Conseqüentemente, ele resolve enfren-
tar a controvérsia a respeito da lei.
A segunda objeção deles é que todo 0 problema não se referia a ce-
rimônias. Admitimos isso. Por que, então, indagam eles, Paulo passaria
repentinamente de um aspecto particular do assunto para 0 assunto como
um todo? Esta foi a única causa do equívoco de Orígenes e Jerônimo. Eles
não pensaram que, enquanto os falsos apóstolos contendiam apenas a
respeito de cerimônias, Paulo tratava do assunto de forma mais abran-
gente. Orígenes e Jerônimo não consideravam que a própria razão por
que Paulo lutava com tanta paixão era que a doutrina tinha conseqüên-
cias mais sérias do que parecia à primeira. Paulo não se preocupava tanto
com a observância das cerimônias, e sim com o fato de que a confiança e
a glória da salvação estavam sendo transferidas para as obras. De modo
semelhante, nas disputas sobre a proibição de certas carnes e dias, nos
importamos não tanto com a proibição em si mesma, e sim com as arma-
dilhas preparadas para a consciência. Paulo não estava se afastando do
tema, ao começar a discussão sobre a lei como um todo, embora os falsos
apóstolos argumentassem restritamente sobre as cerimônias. 0 objetivo
deles em impor as cerimônias era que os homens buscassem a salvação na
62 · Comentário de Gálatas
17. Mas se, procurando ser justificados em Cristo, fomos nós mesmos
também achados pecadores, dar-se-á 0 caso de ser Cristo minis-
tro do pecado? Certo que não!
18. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me
constituo transgressor.
19. Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver
para Deus. Estou crucificado com Cristo;
20. logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse
viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus,
que me amou e a si mesmo se entregou por mim.
21. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei,
segue-se que morreu Cristo em vão.
17. Mas se, procurando ser justificados. Paulo agora se volve aos gála-
tas. Temos de evitar a conexão desta cláusula com a anterior, como se ela
fizesse parte do discurso dirigido a Pedro. Que necessidade havia de falar
deste modo a Pedro? No entanto, esse fato tem pouca ou nenhuma relevân-
cia para 0 problema. Portanto, que cada um formule sua própria opinião.
Além disso, alguns (entre eles, Crisóstomo) a lêem afirmativamente
e a entendem neste sentido: “Se, enquanto buscamos ser justificados em
Cristo, não somos plenamente justos e continuamos impuros; e se Cristo
64 · Comentário de Gálatas
qualquer santidade à parte de Cristo, pois não tinham nenhuma. Por isso,
a censura: “Cristo veio para tirar-nos da justiça procedente da lei, para
transformar santos em pecadores, para sujeitar-nos ao pecado e à culpa?”
Paulo nega isso, repelindo, com horror, a blasfêmia. Cristo não introduziu
0 pecado; pelo contrário, Ele 0 revelou. Cristo não removeu a justiça, mas
despojou dos judeus a sua falsa pretensão.
18. Porque, se torno a edificar. A resposta tem duas partes. Esta é a
primeira parte e nos diz que tal suposição está em desarmonia com todo 0
Capítulo 2 · 65
te letal. Paulo contrasta essa morte efetuada pela lei com outro tipo de
morte, ou seja: a morte na comunhão vivificante da cruz de Cristo. Ele diz
que, por estar crucificado juntamente com Cristo, pode começar a viver. A
pontuação comum desta passagem obscurece seu significado. Lê-se: “Por
meio da lei morri para a lei, a fim de viver para Deus”. Mas 0 contexto flui
mais polidamente assim: “Mediante a lei, morri para a lei” e, então, separa-
damente: “A fim de que eu viva para Deus, estou crucificado com Cristo”.
A fim de viver para Deus. O apóstolo mostra que 0 tipo de morte ao
qual os falsos apóstolos se apegavam como fundamento de contenda era
desejável. Pois ele disse que estamos mortos para a lei, a fim de vivermos
não para 0 pecado, e sim para Deus. Viver para Deus significa, às vezes,
regular nossa vida segundo a vontade dEle, de modo que, em toda a nossa
vida, não cogitamos em nada mais além de sermos aprovados por Ele. Mas
aqui significa viver, se podemos usar esta expressão, a vida de Deus. Deste
modo, são preservados os vários pontos de contraste; pois, seja qual for
0 sentido em que estamos mortos para 0 pecado, neste mesmo sentido
vivemos para Deus. Em suma, Paulo nos diz que essa morte não é 0 fim
de tudo, e sim a origem de uma vida melhor; porque Deus nos resgata do
naufrágio da lei e, mediante sua graça, nos restaura para outra vida. Nada
direi a respeito das outras interpretações. Este me parece ser 0 verdadeiro
significado do apóstolo.
“Estou crucificado com Cristo” explica a maneira como nós, que esta-
mos mortos para a lei, vivemos para Deus. Enxertados na morte de Cristo,
extraímos dessa morte uma energia secreta, assim como os brotos extra-
em vigor da raiz. Novamente, 0 escrito de dívida da lei, “que era contra
nós”, Cristo 0 cravou em sua cruz (Cl 2 . 14). Portanto, crucificados com Ele,
estamos livres de toda a maldição e culpa provenientes da lei. Aquele que
despreza esse livramento anula a cruz de Cristo. Lembremo-nos, porém,
de que somos libertos do jugo da lei somente por nos tornarmos um com
Cristo, assim como os brotos extraem das raízes a seiva somente por se
desenvolverem em uma única natureza.
20. Já não sou eu quem vive. O termo morte é sempre odioso ao espí-
rito humano. Havendo dito que estamos crucificados “com Cristo”, Paulo
Capítulo 2 · 67
vivemos no mundo, vivemos ao mesmo tem po no céu; não som ente por-
que nosso Cabeça está no céu, mas tam bém porque, em virtude de nossa
união, tem os uma vida em comum com Ele (Jo 14.23).
Que me amou. Esta cláusula é adicionada para expressar 0 poder da
fé, pois esta indagação poderia ocorrer imediatamente a alguém: “Quando
a fé recebe esse poder de comunicar à nossa alma a vida de Cristo?” De
acordo com isso, 0 apóstolo nos informa que 0 amor e a m orte de Cristo
são os objetos sobre os quais a fé repousa. É desta maneira que 0 efeito da
fé deve ser julgado. Por que razão vivemos pela fé de Cristo? Porque Ele
nos “amou e a si mesmo se entregou” por nós. O am or de Cristo O levou a
unir-se a nós. Ele completou a união por meio de sua m orte. Ao dar-se por
nós, Cristo sofreu em nossa própria pessoa. Além do mais, a fé nos torna
participantes de tudo 0 que ela encontra em Cristo. A m enção do amor
significa 0 mesmo que João disse: “Não que tenham os amado a Deus, mas
ele nos antecipou por seu am or” (1 Jo 4.10). Se algum mérito nosso tivesse
compelido a Deus a redimir-nos, este mérito teria sido declarado. Agora,
Paulo atribui tudo ao amor; portanto, resulta da graça gratuita. Observe-
mos a ordem: Ele nos “amou e a si mesmo se entregou” por nós. Era como
se Paulo dissesse: “Ele não teve outra razão para morrer, exceto 0 fato de
que nos am ou”. E isso se deu quando éram os “inimigos”, segundo Paulo
mesmo declara em Romanos 5.20.
A si mesmo se entregou. Não há palavras que expressem perfeita-
mente o que isto significa. Pois, quem pode encontrar linguagem capaz
de declarar a excelência do Filho de Deus? Todavia, foi Ele mesmo que
se entregou como preço de nossa redenção. A expiação, a purificação, a
satisfação e todos os benefícios que recebem os da m orte de Cristo estão
incluídos nas palavras “a si mesmo se entregou”.
Por mim é m uito enfático. Não é suficiente contem plar a Cristo
com o Aquele que m orreu pela salvação do m undo, se não experim enta
as conseqüências desta m orte e não é capacitado a reivindicá-la como
a sua própria m orte.
21. Não anulo . Há grande peso nestas palavras, pois quão terrível
é a ingratidão m anifestada no d esp rezar a graça de Deus, tão im ensu
Capítulo 2 · 69
sentido de “crer”. Não estou preparado para rejeitar essa tradução, mas
prefiro a palavra “obedecer”, visto que Paulo não os acusou de haverem
rejeitado o evangelho desde o princípio, e sim de não haverem perseve-
rado na obediência.
Ante cujos olhos. Como eu já havia sugerido, estas palavras visavam
expressar um agravamento; pois, quanto mais Cristo era conhecido, tanto
mais grave era 0 erro de abandoná-Lo. Paulo lhes diz que a clareza de seu
ensino era tal, que não era uma doutrina obscura, e sim uma imagem nítida
e vivida de Cristo. Eles conheceram a Cristo de tal maneira, que podiam
afirmar tê-Lo visto.
Foi Jesus Cristo exposto. A interpretação de Agostinho referente à
palavra προεγράφη (foi exposto) é abrupta e incoerente com a intenção do
apóstolo. Ele faz este vocábulo significar que Cristo seria excluído das posses
de alguém. Outros propõem uma palavra diferente: proscriptus, que, usada
no sentido de “proclamado publicamente”, não seria incoerente. Os gregos
tomaram por empréstimo do verbo προγράφο a palavra προγράμματα, para
denotar as tabuletas em que se faziam anúncios de propriedade destinada
à venda e que eram expostas à vista de todos. Mas 0 particípio retratado é
menos ambíguo e, a meu ver, 0 mais apropriado. Para mostrar quão vigorosa
havia sido a sua pregação, Paulo a compara, primeiramente, a um quadro
que exibia, de modo vivido, 0 retrato de Cristo àqueles crentes.
Assim, não satisfeito com esta comparação, Paulo acrescenta: foi
Jesus Cristo exposto como crucificado. Com isso, Paulo sugere que a
verdadeira visão da morte de Cristo não poderia tê-los afetado mais
Capítulo 3 · 73
justiça a fé dos que crêem. Somos, pois, informados de que nossa justifica-
ção é mediante a fé (Rm 3.21; 5.1), não porque a fé infunde em nós um hábito
ou uma qualidade, mas porque somos aceitos por Deus.
Mas, por que à fé recebe tamanha honra, a ponto de ser chamada
a causa de nossa justificação? Primeiramente, temos de observar que a
fé é apenas uma causa instrumental. Falando de modo restrito, a nossa
justiça não é nada mais do que a nossa aceitação graciosa por parte de
Deus, a aceitação sobre a qual está alicerçada a nossa salvação. Mas,
visto que o Senhor testifica seu amor e sua graça no evangelho, por nos
oferecer a justiça sobre a qual temos falado, nós a recebemos por meio
da fé. Assim, ao atribuirmos à fé a justificação do homem, não estamos
tratando da causa principal, mas apenas indicando 0 caminho pelo qual
os homens podem chegar à verdadeira justiça. Portanto, esta justiça não
é uma qualidade inerente nos homens, e sim 0 dom de Deus. Esta justiça
só pode ser desfrutada por meio da fé. Tampouco é uma recompensa
justa devida à fé, porque recebemos por meio da fé 0 que Deus nos dá
gratuitamente. Todas as expressões semelhantes à que agora citamos
têm o mesmo sentido: somos “justificados gratuitamente por sua graça”
(Rm 3.24); Cristo é a nossa justiça. A misericórdia de Deus é a causa de
nossa justiça. A morte e a ressurreição de Cristo obtiveram a justiça por
nós. A justiça é outorgada por meio do evangelho. Obtemos a justiça pela
instrumentalidade da fé.
Isto revela 0 ridículo do erro de tentar reconciliar as duas proposi-
ções: que somos justificados pela fé e, ao mesmo tempo, pelas obras. Pois
aquele é justo “pela fé” (Hc 2.14; Hb 10.38) é pobre e destituído de justiça
pessoal, descansando tão-somente na graça de Deus. Esta é a razão por
que Paulo conclui, na Epístola aos Romanos, que Abraão, tendo obtido a
justiça pela fé, não tinha qualquer direito de se gloriar diante de Deus (Rm
4.2). Pois não se diz que a fé lhe foi imputada como parte da justiça, mas
simplesmente como justiça, de modo que a sua fé era verdadeiramente a
sua justiça. Além disso, a fé não olha para qualquer outra coisa, a não ser
para a misericórdia de Deus e para 0 Cristo morto e ressurreto. Todo o
mérito das obras é excluído como causa da justificação, quando a justiça é
78 · Comentário de Gálatas
10. Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldi-
ção; porquanto está escrito:
Maldito todo aquele que não permanece em todas as
coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las.
11. E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus,
porque
0justo viverá pela fé.
12. Ora, a lei não procede da fé, mas: Aquele que observar os seus
preceitos por eles viverá.
13. Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio
maldição em nosso lugar (porque está escrito:
Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro),
14. para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cris-
to, a fim de que recebêssemos, pela fé, 0 Espírito prometido.
Capítulo 3 · 81
10. Todos quantos, pois, sáo das obras da lei. Eis um argumento ex-
traído da natureza contraditória de dois sistemas, pois a mesma fonte não
pode produzir calor e frio. A lei mantém toda a raça humana debaixo de sua
maldição. Portanto, é inútil esperar uma bênção da lei. Paulo declara que
são das obras da lei aqueles que põem sua confiança nas obras da lei para
a salvação. Essas formas de expressão devem sempre ser interpretadas à
luz do estado da questão. Ora, sabemos que a controvérsia abordada nesta
epístola se relaciona com a causa da justiça. Todos quantos desejam ser
justificados pelas obras da lei são declarados que estão sujeitos a maldição.
Mas, como Paulo prova isso? A sentença da lei é que todos quantos trans-
gridem qualquer parte da lei são malditos. Vejamos agora se existe alguma
pessoa que cumpre a lei. Nunca houve tal pessoa, e jamais haverá alguém
que 0 faça. Nestas palavras, todo homem é condenado. A premissa menor e
a conclusão estão faltando, para que o silogismo se formule assim:
Quem transgride 0 menor dos mandamentos da lei é maldito.
Todos são culpados desta transgressão.
Logo, todos são malditos.
Este argumento de Paulo não seria coerente caso tivéssemos força
suficiente para cumprir a lei, pois haveria uma objeção fatal à a premissa
menor. Ou Paulo raciocina de maneira errada ou é impossível alguém cum-
prir a lei.
Um oponente talvez argumente: “Admito que todos os transgresso-
res são malditos. E daí? É possível encontrar alguém que cumpre a lei.
Pois 0 ser humano pode escolher livremente 0 bem ou 0 mal”. Mas, nesta
passagem, Paulo apresenta com muita clareza aquilo que os papistas hoje
consideram como doutrina detestável, ou seja: que os homens estão des-
tituídos do poder de guardar a lei. Assim, ele conclui, com ousadia, que
todos são malditos, visto que a todos foi ordenado guardar a lei perfeita-
mente. Isto significa que na atual corrupção de nossa natureza não existe 0
poder de guardar a lei perfeitamente. Por isso, concluímos que a maldição
pronunciada pela lei, embora seja acidental, é perpetua e inseparável de
sua natureza. A bênção que a lei nos oferece é excluída por nossa deprava-
ção, de modo que só permanece a maldição.
82 · Comentário de Gálatas
11. E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado. Uma vez mais,
Paulo argumenta com base em uma comparação de sistemas opostos,
assim: “Se somos justificados pela fé, não pode ser pela lei. Mas somos
justificados pela fé. Portanto, não pode ser pela lei”.
Ele prova a premissa menor usando uma passagem de Habacuque,
que também é citada na Epístola aos Romanos (Hc 2.4; Rm 1.17). A pre-
missa maior é provada pela diferença nos métodos de justificação. A lei
justifica aquele que cumpre todos os seus mandamentos, enquanto a fé
justifica aqueles que são destituídos do mérito das obras e confiam ex-
clusivamente em Cristo. Ser justificado pelos seus próprios méritos e ser
justificado pela graça de outrem são sistemas irreconciliáveis: um é anula-
do pelo outro. Este é o significado do argumento. Consideremos agora as
cláusulas em separado.
O justo viverá pela fé. Como já expusemos esta passagem na Epís-
tola aos Romanos, é desnecessário repetir sua exposição aqui. 0 profeta
certamente apresenta a orgulhosa confiança da carne em oposição à fé
genuína. Ele declara que “0 justo viverá pela fé”; e com isso pretendia di-
zer não que o justo suportará por algum tempo e ficará sujeito à derrota
por intempéries repentinas, e sim que 0 justo continuará vivendo e que,
mesmo diante do perigo iminente, a sua vida será preservada. Não há, por-
tanto, consistência nas censuras desdenhosas de nossos adversários, os
quais alegam que 0 profeta usou a palavra fé num sentido mais amplo do
que 0 sentido empregado por Paulo nesta passagem. Ao usar a palavra fé,
Paulo se referia evidentemente ao exercício de uma consciência tranqüila
e firme que confia somente em Deus. Portanto, Paulo usa corretamente a
sua citação de Habacuque.
12. Ora, a lei não procede da fé. Indubitavelmente, a lei não é contrá-
ria à fé; pois, se 0 fosse, Deus seria incoerente consigo mesmo. Mas temos
de retornar ao princípio já considerado: que a linguagem de Paulo é adap-
tada a este caso particular. A contradição entre a lei e a fé está no tema da
justificação. É mais fácil 0 leitor unir 0 fogo e a água do que conciliar estas
duas afirmações: os homens são justificados pela fé e são justificados pela
lei. “A lei não procede da fé”, ou seja, a lei possui um método de justificar
Capítulo 3 · 83
significando que a maldição de todos nós caiu “sobre ele” (Is 53.6). Se al-
guém acha severa esta linguagem, que tal pessoa se envergonhe da cruz
de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus não ignorava 0 tipo de
morte que seu Filho morreria, quando pronunciou: “O que for pendurado
em madeiro é maldito de Deus” (Dt 21.23).
Mas, como é possível, alguém perguntaria, que 0 Filho amado fosse
amaldiçoado por seu Pai? Respondemos: há duas coisas que têm de ser
consideradas não só na pessoa de Cristo, mas também em sua natureza
humana. Uma é que Ele era 0 Cordeiro de Deus imaculado, cheio de bênção
e de graça. A outra é que Ele assumiu 0 nosso lugar, tornando-se assim um
pecador, sujeito à maldição, não em Si mesmo, mas em nós, de tal maneira
que Lhe era indispensável ocupar 0 nosso lugar. Cristo não podia deixar
de ser o objeto do amor de Deus, mas, apesar disso, suportou a sua ira.
Pois, como poderia Ele reconciliar conosco 0 Pai, se o Pai fosse um de seus
inimigos e O odiasse? Concluímos que Cristo sempre fazia 0 que agrada-
va ao Pai (Jo 8.29). Novamente, como poderia Ele nos ter livrado da ira
de Deus, se não a houvesse transferido de nós para Si mesmo? Portanto,
Ele foi “traspassados pela nossas trangressões” (Is 53.5) e lidou com Deus
como um Juiz irado. Esta é a loucura da cruz (1 Co 1.18) e a admiração dos
anjos (1 Pe 1.12), que não somente excede, mas também aniquila toda a
sabedoria do mundo.
14. Para que a bênção de Abraão. Depois de haver dito que “Cristo
nos resgatou da maldição da lei”, 0 apóstolo aplica, agora, essa afirmação
ao seu propósito. A bênção prometida a Abraão se encontra nisso e da-
qui flui aos gentios. Se os judeus têm de ser libertados da lei para serem
herdeiros de Abraão, 0 que impedirá os gentios de obterem 0 mesmo be-
nefício? E, se esta bênção está somente em Cristo, é a fé somente em Cristo
que nos faz possuir essa bênção.
O Espírito prometido parece significar, de conformidade com 0 idio-
ma hebreu, “uma promessa espiritual”. Embora esta promessa se relacione
ao Novo Testamento: “Derramarei 0 meu Espírito sobre toda a carne” (J1
2.28), nesta passagem Paulo refere a outro assunto. 0 Espírito, aqui, deve
ser contrastado com as coisas exteriores, não apenas com cerimônias,
Capítulo 3 · 85
mas tam bém com descendência física, de modo a não deixar lugar para
diversidade de categoria. Com base na natureza da prom essa, Paulo mos-
tra que os judeus não diferem dos gentios; pois, se a prom essa é espiritual,
tem de ser recebida unicam ente pela fé.
15. Irmãos, falo como homem. Ainda que uma aliança seja
meramente humana, uma vez ratificada, ninguém a revoga ou lhe
acrescenta alguma coisa.
16. Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente.
Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos, porém
como de um só: E ao teu descendente, que é Cristo.
17. E digo isto: uma aliança já anteriormente confirmada por Deus,
a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-
rogar, de forma que venha a desfazer a promessa.
18. Porque, se a herança provém de lei, já não decorre de promes-
sa; mas foi pela promessa que Deus a concedeu gratuitamente a
Abraão.
15. Falo como homem. Paulo tencionava, com esta expressão, deixá-
los envergonhados. É ignominioso e desprezível imaginar que Deus tenha
menos im portância do que 0 homem mortal. Ao exigir que a aliança sagra-
da de Deus não recebesse menos deferência do que a deferência atribuída
geralmente às transações humanas, Paulo não põe Deus no mesmo nível
com os homens. A im ensa distância que existe entre Deus e os homens é
deixada à consideração humana.
A inda que uma aliança seja m eram ente humana. Este é um argu-
mento construído a partir do menos im portante para o mais im portante.
Se os contratos humanos são tidos como obrigatórios, quanto mais obriga-
tória é a aliança que Deus estabeleceu? O term o grego é διαθήκη, que Paulo
usa neste versículo, significa mais freqüentem ente 0 que a versão latina 0
traduziu - testamentum, (um testam ento). Mas, às vezes, tam bém signifi-
cava uma aliança, em bora neste sentido a forma plural é usada com mais
86 * Comentário de Gálatas
porém, prefiro entendê-la apenas como a aliança que Deus fez. A analogia
com base na qual o apóstolo argumenta não se aplica estritamente a um
testamento, e sim a uma aliança. Paulo parece raciocinar a partir de tran-
sações humanas para chegar àquela aliança solene que Deus estabeleceu
com Abraão. Se as transações humanas são tão sólidas que nada lhe pode
ser acrescentado, quanto mais inviolável deve permanecer esta aliança!
16. Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente.
Antes de prosseguir com 0 seu argumento, Paulo introduz uma observa-
ção a respeito da substância da aliança: a aliança repousa exclusivamente
em Cristo. Mas, se Cristo é 0 fundamento da aliança, segue-se que esta é
gratuita. Este é 0 significado da palavra promessa. A lei tomava em con-
sideração os homens e as suas obras; a promessa leva em conta a graça
de Deus e a fé.
Não diz: E aos descendentes. Para provar que nessa ocasião Deus
falava a respeito de Cristo, Paulo chama a atenção à forma singular, deno-
tando um descendente específico. Tenho ficado surpreso com 0 fato de
que os crentes, quando vêem esta passagem ser tão imprudentemente dis-
torcida pelos judeus, não lhes oferecem resistência mais determinada; em
vez disso, esgueiram-se do assunto como se 0 mesmo fosse um território
indisputável. No entanto, a objeção deles é bastante plausível. Visto que a
palavra “descendente” é um substantivo coletivo, Paulo parece raciocinar
de modo incoerente, ao argumentando que um único homem é indicado
por essa palavra, à luz da qual todos os descendentes de Abraão estão
compreendidos na passagem que já citamos: “Multiplicarei a tua descen-
dência [ ז ד עhebraico - zerang] ou [ ז ד ע ךhebraico - zargnacha] como as
estrelas do céu e como a areia na praia do mar” (Gn 22.17). Assim, como
eles imaginam, detectada a falácia do argumento, eles nos tratam com
triunfo insolente.
Fico ainda mais surpreso com 0 fato de que nossos escritores se man-
tenham em silêncio quanto a este assunto, uma vez que não nos faltam
Capítulo 3 · 87
meios para refutar a calúnia dos judeus. Entre os próprios filhos de Abraão
começara certa divisão, pois um deles foi excluído da família. “Por Isaque
será chamada a tua descendência” (Gn 21.12). Conseqüentemente, Ismael
não é incluído no reconhecimento. Avancemos para 0 segundo passo. Os
judeus admitiam que a posteridade de Esaú era a descendência bendita?
Não! Argumentam que a descendência de Esaú, embora fosse ele 0 primo-
gênito, foi excluída. E quantas nações surgidas de Abraão não têm parte
nessa “chamada”? Os doze patriarcas eram os doze cabeças, não porque
pertenciam à linhagem de Abraão, e sim porque foram designados pela
eleição particular de Deus. Visto que as dez tribos foram dispersas (Os
9.17), quantos milhares deles ficaram tão degenerados, que não tinham
mais lugar entre a descendência de Abraão? Finalmente, a tribo de Judá foi
submetida a uma grande prova, para que a verdadeira sucessão à bênção
fosse transmitida entre um pequeno povo. E isto havia sido predito pelo
profeta Isaías: “Os restantes se converterão ao Deus forte, sim, os restan-
tes de Jacó” (Is 10.21).
Até aqui, eu não disse nada que os judeus mesmos não reconheçam.
Respondam-me, então: como as treze tribos que surgiram dos doze pa-
triarcas se tornaram a descendência de Abraão, e não os ismaelitas ou
os edomitas? Por que somente eles se gloriam neste nome, rejeitando os
demais como uma semente espúria? Indubitavelmente, eles se gloriarão
de que 0 obtiveram por seu próprio mérito. Ao contrário disso, a Escritura
assevera que todos dependem da chamada de Deus. Pois temos sempre de
voltar ao privilégio transmitido nestas palavras: “Por Isaque será chamada
a tua descendência” (Gn 21.12). A sucessão ininterrupta que conduziria
a este privilégio teria de vigorar até Cristo; pois, na pessoa de Davi, 0 Se-
nhor reiterou mais tarde (poderíamos dizer) a promessa feita a Abraão.
Ao provar que esta profecia não se aplica a um único homem, Paulo não
faz seu argumento alicerçar-se no uso do singular. Ele apenas mostra que
a palavra “descendente” denota alguém que não era somente nascido de
Abraão segundo a carne, mas também indicado para este propósito, pela
chamada divina. Se os judeus negarem isso, eles simplesmente se tornarão
ridículos por sua obstinação.
88 * Comentário de Gálatas
Visto que Paulo argumenta, com base nestas palavras, que uma alian-
ça foi estabelecida em Cristo, ou com Cristo, investiguemos a força desta
expressão: “Nela serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22.18). Os
judeus zombavam do apóstolo fazendo uma comparação, como se a des-
cendência de Abraão tivesse de ser usada como exemplo em todos os
desastrosos presságios e orações; enquanto, pelo contrário, para amaldi-
çoar alguém ou em Sodoma ou em Israel, devia-se usar a palavra “Sodoma”
ou “Israel” na forma de maldição. Admito que, às vezes, isto acontece, mas
nem sempre. Porque, abençoar alguém em Deus tem um sentido muito
diferente, como os próprios judeus admitem. Portanto, visto que a frase
é ambígua, denotando, às vezes, uma causa e, às vezes, uma comparação,
ela deve ser explicada pelo contexto. Já verificamos que todos somos
malditos por natureza e que a bênção de Abraão foi prometida a todas
as nações. Todos a alcançam indiscriminadamente? É claro que não, mas
somente aqueles que são congregados no Messias (Is 56.8); pois, quando
são reunidos num só corpo, sob o governo e direção do Messias, eles se
tornam um só povo. Aquele que, deixando de lado toda controvérsia, in-
vestigam a verdade, esses reconhecerão prontamente estas palavras não
constituem uma mera comparação, e sim uma causa. Concluímos, pois,
que 0 apóstolo tinha boas razões para dizer que a aliança foi estabelecida
em Cristo ou em referência a Cristo.
17. A lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois. Se ouvirmos a
Orígenes, Jerônimo e todos os papistas, haverá pouca dificuldade em refu-
tar esse argumento. Paulo arrazoa assim: uma promessa foi dada a Abraão
quatrocentos e trinta anos antes que a lei fosse promulgada. Por isso, a lei,
que veio depois, não poderia anular a promessa. Disso, Paulo conclui que
as cerimônias não são necessárias. Alguém pode objetar que os sacramen-
tos foram dados a fim de preservarem a fé; por que, então, ele os separaria
da promessa? Paulo realmente os separa e continua a argumentar sobre 0
assunto. Ele considera as cerimônias em relação a algo mais elevado, ou
seja, 0 efeito da justificação que os falsos apóstolos atribuíam às cerimô-
nias e à obrigação que estas impunham à consciência. De acordo com isso,
Paulo usa as cerimônias como oportunidade para discutir todo 0 assunto
Capítulo 3 · 89
que veio depois, não podia capacitar os homens a obter a salvação, exceto
pela graça, pois, do contrário, desfaria a promessa. Que este é 0 significa-
do evidencia-se no que Paulo diz em seguida.
18. Porque, se a herança provém da lei. Os oponentes de Paulo po-
deriam argumentar que enfraquecer ou anular a aliança de Deus não era o
intento deles. A fim de privá-los de todos os subterfúgios, Paulo se antecipa
com a afirmação de que a salvação pela lei e a salvação pela promessa de
Deus são completamente incoerentes. Quem ousará explicar que o termo
“a lei” se aplica somente às cerimônias, quando Paulo compreende que ele
inclui tudo que interfere na promessa gratuita? Sem dúvida alguma, ele ex-
clui todos os tipos de obras. Ele disse aos crentes de Roma: “Pois, se os da
lei é que são os herdeiros, anula-se a fé e cancela-se a promessa” (Rm 4.14).
Por quê? Porque a salvação dependeria da condição de se satisfazer a lei.
Portanto, ele conclui imediatamente: “Essa é a razão por que provém da fé,
para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa a toda a
descendência...” (Rm 4.16). Lembremos cuidadosamente a razão por que,
ao compararmos a promessa com a lei, 0 estabelecimento de uma destrói a
outra. A razão é que a promessa diz respeito à fé, e a lei, às obras. A fé recebe
0 que é dado gratuitamente; mas às obras, paga-se uma recompensa.
E Paulo prontamente acrescenta: “Deus a concedeu gratuitamente a
promessa a Abraão”, não por exigir algum tipo de compensação da par-
te de Abraão, e sim pela promessa gratuita. Pois, se você entendesse a
promessa como condicional, 0 vocábulo concedeu (κεχάρισται) seria total-
mente inaplicável.
19. Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das
transgressões, até que viesse 0 descendente a quem se fez a pro-
messa, e foi promulgada por meio de anjos, pela mão de um
mediador.
20. Ora, 0 mediador não é de um, mas Deus é um.
21. É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo
nenhum! Porque, se fosse promulgada uma lei que pudesse dar
Capítulo 3 · 91
0 leitor deve lembrar, não é filosófica nem política; ela expressa aquele
propósito da lei, que o mundo jamais conheceu.
Até que viesse o descendente. 0 descendente mencionado é Aque-
le sobre 0 qual a bênção foi pronunciada; portanto, isso nada interfere
na promessa. A expressão até que (άχρις ού) significa “enquanto” 0 des-
cendente era esperado. Disso concluímos que a lei tinha de ocupar não a
posição mais elevada, e sim uma posição subordinada. Ela foi promulgada
para estimular os homens a esperarem por Cristo. Mas era necessário que
a lei permanecesse até à vinda de Cristo? Pois, se isto é verdade, segue-se
que ela está agora abolida. Respondo que toda a administração da lei era
temporária e foi instituída com 0 propósito de preservar entre as pessoas
do Antigo Testamento um apego à fé em Cristo. No entanto, não concordo
que, com a vinda de Cristo, toda a lei foi abolida. 0 apóstolo não quis dizer
isso, mas somente que 0 modo de administração, instituído por um tempo,
teve de receber sua consumação em Cristo, que é 0 cumprimento da pro-
messa. Posteriormente, falaremos mais sobre este assunto.
Foi promulgada por meio de anjos. Esta circunstância tende a reco-
mendar a lei. Isto também foi declarado por Estêvão (At 7.53), que disse:
“Vós que recebestes a lei por ministério de anjos [εις διαταγάς άγγέλων]”
(At 7.53). A interpretação apresentada por alguns, com o sentido de que
Moisés, Arão e os sacerdotes eram os anjos subentendidos neste versícu-
10 contém mais ingenuidade do que coerência. Além disso, não deve nos
surpreender 0 fato de que os anjos, por meio de quem Deus nos outorga
algumas das bênçãos menores, tenham recebido a incumbência de agir
como testemunhas na promulgação da lei.
Pela mão de um mediador. Mão geralmente denota ministração; mas,
visto que os anjos eram ministros na promulgação da lei, penso que “pela
mão de um mediador” denota a mais elevada categoria de ministério. 0 Me-
diador estava à frente da embaixada, e os anjos eram seus companheiros.
Alguns aplicam esta expressão a Moisés, visando fazer uma comparação
entre Moisés e Cristo. Quanto a mim, porém, concordo mais com os anti-
gos expositores, que a aplicam ao próprio Cristo. Pode-se perceber que
este ponto de vista concorda melhor com 0 contexto, embora eu discorde
94 · Comentário de Gálatas
23. Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela
encerrados, para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se.
24. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzira Cristo,
a fim de que fôssemos justificados por fé.
25. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao
aio.
26. Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus;
27. porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos
revestistes.
28. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em
Cristo Jesus.
29. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e her-
deiros segundo a promessa.
23. Antes que viesse a fé. A questão proposta é agora mais plenamen-
te definida. Paulo explica com grande clareza tanto a utilidade da lei como
a razão por que ela havia sido tem porária; pois, se a lei não fosse temporá-
ria, sem pre pareceria ilógico que os judeus tivessem recebido uma lei da
qual os gentios estavam excluídos. Se há apenas uma igreja, constituída de
judeus e gentios, por que existe uma diversidade em seu governo? De onde
se deriva essa nova liberdade e em que autoridade ela se baseia, visto que
98 · Comentário de Gálatas
os pais estiveram em sujeição ã lei? Por isso, Paulo nos diz que a distinção
não interrompe a união e harmonia da igreja.
Temos de lembrar novamente ao leitor que Paulo não estava falando
apenas de cerimônias ou da lei moral. Ele falava sobre toda a economia
pela qual Deus governou seu povo na época do Antigo Testamento. Se
a forma de governo instituído por Moisés tinha alguma influência na ob-
tenção da justiça tornou-se um assunto de debates. Paulo compara a lei
primeiramente a uma prisão e, em segundo lugar, a um aio. A nautreza
da lei era tal que, conforme o demonstra ambas as metáforas, só poderia
estar em vigor durante certo tempo.
0 vocábulo fé denota a plena revelação daquelas coisas que estiveram
ocultas durante a obscuridade e as sombras da lei. Paulo não tencionava
dizer que os pais, que viveram sob a lei, não possuíam fé. Já consideramos
a fé de Abraão. Outros exemplos são citados pelo autor da Epístola aos He-
breus (Hb 11). Em resumo, a doutrina da fé é atestada por Moisés e todos
os profetas. Visto, porém, que a fé não havia sido manifestada em toda a
sua clareza, 0 tempo da fé, subentendido neste versículo, é um designativo
usado não em sentido absoluto, e sim relativo, para expressar 0 tempo do
Novo Testamento. O que ele diz em seguida confirma que este era 0 senti-
do de suas palavras: eles foram encerrados para a fé que, de futuro, haveria
de se revelar. Isto implica que aqueles que estiveram sob a custódia da lei
foram participantes da mesma fé. A lei não os afastou da fé. Mas, para que
não vagueassem fora do âmbito da fé, esta se apropriou deles. Também
há uma elegante alusão ao que ele já havia dito: que “a Escritura encerrou
tudo sob 0 pecado”. Foram cercados de todos os lados pela maldição. Mas
este cerco foi neutralizado pelo encerramento que os protegia da maldi-
ção; de modo que o encerramento promovido pela lei se mostrou bastante
generoso em seu caráter.
Mas a fé não fora revelada, não que aos pais faltasse luz, e sim porque
tinham menos luz do que nós. Pode-se dizer que as cerimônias refletiam
um Cristo ausente; todavia, para nós Ele é representado como presente.
Assim, eles viam através de um espelho, enquanto nós vemos a essência.
Por maior que fosse 0 obscurecimento no regime da lei, os pais não eram
Capítulo 3 · 99
modo que não podem ser considerados como exibições vazias e triviais.
Isto nos lembra a vil ingratidão de que são culpados os que, por abusarem
das preciosas ordenanças de Deus, não só as tornam infrutíferas para si
mesmos, mas também as transformam em sua própria destruição.
28. Não pode haver judeu nem grego. O significado é este: não há dis-
tinção de pessoas; assim não importa a que nação ou a que classe alguém
pertença. Nem a circuncisão é mais importante do que 0 sexo ou 0 estado
civil. Por quê? Porque Cristo toma a todos e os transforma em um só povo.
Quaisquer que sejam as outras diferenças, Cristo sozinho é suficiente para
unir todos eles.
Todos vós sois um. Agora a distinção é removida. O objetivo de Paulo
era mostrar que a graça da adoção e da esperança de salvação não depen-
dem da lei, mas estão contidas em Cristo, que, portanto, é tudo. O termo
Grego é usado neste versículo, conforme seu uso habitual, significando
gentios: um gênero representando toda a espécie.
29. Também sois descendentes de Abraão. Isto não tinha a intenção
de comunicar a idéia de que ser filho de Abraão é melhor do que ser um
membro de Cristo, e sim de reprimir 0 orgulho dos judeus, que se gloria-
vam de seu privilégio, como se apenas eles fossem 0 povo de Deus. Eles
não reconheciam nenhuma distinção maior do que 0 pertencer à raça de
Abraão. E 0 apóstolo faz que esta mesma distinção seja comum a todos
os que crêem em Cristo. A conclusão se baseia neste argumento: Cristo
é 0 descendente bendito, no qual, como já dissemos, todos os filhos de
Abraão se acham unidos. Paulo prova isso com a oferta universal da heran-
ça a todos eles. Disso concluímos que a promessa inclui os gentios entre
os filhos de Deus. Note-se, porém, que a fé sempre é mencionada em rela-
ção à promessa.
Capítulo 4
lei durou o quanto agradou a Deus, que a encerrou com a vinda de Cristo.
Advogados enumeram vários métodos pelos quais a tutela era encerrada;
mas, de todos eles, 0 único que se adequa a esta comparação é aquele que
Paulo indica aqui: a designação feita pelo pai.
Examinemos agora cada uma das cláusulas. Alguns aplicam a com-
paração a qualquer pessoa em particular, enquanto Paulo está falando de
duas nações. Reconheço que essa opinião é correta, mas ela nada tem a
ver com esta passagem. Os eleitos, embora sejam filhos de Deus desde o
ventre materno, ainda se mantêm sujeitos à lei como escravos, até que,
pela fé, se apropriam da liberdade. Assim, no momento em que conhecem
a Cristo, não dependem mais desse tipo de tutela. Admitindo tudo isso,
não acredito que Paulo estava falando de indivíduos ou que traçou uma
distinção entre 0 tempo de incredulidade e a chamada pela fé. O ponto em
questão era este: visto que a igreja de Deus é uma só, como é possível que
nossa condição seja diferente da dos israelitas? Visto que somos livres
pela fé, por que eles, que tinham a mesma fé que nós temos, não eram
participantes da mesma liberdade? Visto que somos igualmente filhos de
Deus, como podemos estar livres de um fardo que eles foram obrigados a
suportar? A controvérsia girava em torno destas questões, e não em torno
da maneira pela qual a lei reina sobre cada um de nós, antes de sermos,
pela fé, libertos da sua servidão. Antes de qualquer outra coisa, deve ficar
estabelecido que Paulo compara a igreja israelita, que existia sob 0 regime
da Antigo Testamento, com a igreja cristã, para que, assim, percebamos
em que pontos concordamos e em que pontos diferimos. Esta comparação
produz instrução abundante e proveitosa.
Primeiramente, aprendemos disso que nossa esperança e a dos pais
que viviam na época do Antigo Testamento é direcionada à mesma heran-
ça; pois eles eram participantes da mesma adoção.
De acordo com os sonhos de alguns fanáticos (entre estes, Serveto)
os pais foram eleitos por Deus tendo em vista o propósito único de prefi-
gurarem para nós 0 povo de Deus. Por outro lado, Paulo declara que eles
foram eleitos a fim de serem, juntamente conosco, os filhos de Deus. Ele
atesta particularmente que a eles, não menos do que a nós, pertencia a
Capítulo 4 · 107
impõem com mais severidade do que toda a lei de Deus. Apenas chamo-
lhes a atenção aos subterfúgios ilusórios de que se valem os enganadores
de nossos dias para justificarem tantas abominações. Objetam, eu sei, que
as multidões são mais ignorantes do que 0 eram na época dos israelitas e
Capítulo 4 · 109
que, por isso, muitos auxílios são exigidos. Jamais serão capazes de pro-
var com esse argumento que as pessoas devem ser colocadas sob uma
disciplina de uma escola semelhante à que existia entre 0 povo de Israel.
Pois sempre os confrontarei com a afirmação de que a designação divina
é totalmente diferente.
Se eles apelarem à conveniência, pergunto: eles são melhores do que
Deus no julgar 0 que é conveniente? Tenhamos a firme convicção de que
0 que Deus determinou é o mais correto e 0 mais proveitoso. Portanto,
ao ajudar os ignorantes, não devemos empregar aqueles métodos que a
imaginação dos homens se deleita em inventar, e sim aqueles que foram
determinados por Deus mesmo, que não nos deixou sem nada que seja
adequado para assistir os ignorantes em sua fraqueza. Que este escudo
seja suficiente para repelir quaisquer objeções: “O Senhor decidiu de outra
maneira, e o seu propósito nos supre todos os argumentos; a menos que
suponhamos serem os homens capazes de inventar auxílios melhores do
que os que Deus mesmo providenciou... e mais tarde colocou de lado como
inúteis!” Observe-se cuidadosamente: Paulo não diz apenas que o jugo
colocado sobre os judeus é removido de nós; ele estabelece com clareza
uma distinção no governo que Deus nos ordenou observar. Reconheço que
agora somos livres no tocante a todas as questões externas; mas essa li-
berdade não deve sobrecarregar a igreja com uma multidão de cerimônias,
nem permitir que 0 cristianismo seja identificado com 0 judaísmo. A razão
para isso consideraremos adiante, em seu devido lugar.
3. Estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo. “Ru-
dimentos” pode significar, literalmente, as coisas externas e físicas ou, na
linguagem metafórica, os rudimentos. Prefiro esta última idéia. Mas, por
que ele diz que aquelas coisas que tinham significação espiritual eram do
mundo? Não desfrutamos, disse Paulo, da verdade em uma forma simples,
mas envolta em figuras terrenas. Portanto, 0 que era exterior tinha de ser
do mundo, embora ocultasse um mistério celestial.
4. Vindo, porém, a plenitude do tempo. Ele prossegue a compara-
ção à qual já havia se referido e aplica ao seu propósito a expressão “o
tempo predeterminado pelo Pai”; mostrando que 0 tempo ordenado pela
110 · Comentário de Gálatas
a lei é a norma eterna de uma vida agradável e santa. Mas Paulo estava se
referindo à lei com todos os seus apêndices. Somos redimidos da sujeição a
essa lei, visto que ela não é mais 0 que era antes. Agora, “rasgou-se 0 véu”, e
a liberdade é proclamada abertamente. É isto que Paulo logo acrescenta.
A fim de que recebêssemos a adoção de filhos. Os pais, no regime do
Antigo Testamento, tinham certeza de sua adoção, mas não desfrutavam
tão plenam ente de seus privilégios. A adoção, à sem elhança de “a reden-
ção de nosso corpo” (Rm 8.23), é aqui apresentada como uma possessão
atual. Assim como receberem os, no último dia, 0 fruto de nossa redenção,
assim tam bém agora recebem os o fruto de nossa adoção, do qual os san-
tos pais não participaram antes da vinda de Cristo. Portanto, aqueles que
agora sobrecarregam a igreja com excesso de cerimônias, defraudam-na
do justo direito de adoção.
não pode conhecer, porque não 0 vê, nem 0 conhece” (Jo 14.17). Isso está
implícito nestas palavras de Paulo: “Enviou Deus ao nosso coração 0 Es-
pírito de seu Filho”. O que acontecia não era que as próprias pessoas se
arriscavam a crer, mas recebiam o testemunho do Espírito Santo em seu
coração. O Espírito de seu Filho é um título adaptado estritamente à oca-
sião presente, e nenhum outro poderia ter sido usado. Somos filhos de
Deus porque recebemos 0 mesmo Espírito de seu Filho.
Devemos observar que Paulo atribui isto a todos os crentes; pois, onde
está ausente 0 penhor do amor divino para conosco, ali certamente não
há fé. Disso torna-se evidente que tipo de cristianismo há no papado, que
acusa de impiedosa presunção qualquer pessoa que confesse ter 0 Espírito
de Deus. Nem o Espírito de Deus, nem certeza alguma fazem parte de noção
de fé do papado. Esse único dogma sustentado por eles prova que 0 diabo,
0 pai da incredulidade, reina em todas as escolas dos papistas. Reconheço
que os teólogos escolásticos, quando recomendavam a dúvida perpétua à
consciência das pessoas, estão em perfeita harmonia com 0 que ditariam os
sentimentos naturais dos homens. É mais necessário fixar em nossa mente
esta doutrina de Paulo: não é um verdadeiro cristão aquele que ainda não
aprendeu, pelo ensino do Espírito Santo, a chamar a Deus de seu Pai.
Capítulo 4 · 113
Que clama. Creio que este particípio é usado para expressar maior
ousadia. A incerteza não nos permite falar livremente, e mantém a nossa
boca quase fechada, enquanto as palavras semi-obstruídas saem com difi-
culdade de uma língua trôpega. Por outro lado, “clama” expressa certeza
e confiança inabalável. “Porque não recebestes 0 espírito de escravidão,
para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes 0 espírito de ado-
ção” (Rm 8.15).
Aba, Pai! 0 significado destas palavras, não tenho dúvida, consiste
em que invocar a Deus é um costume comum a todas as línguas. Um fato
que influência 0 assunto presente é que 0 título Pai é atribuído a Deus
mesmo tanto pelos hebreus como pelos gregos. E isso foi predito por
Isaías: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (Is
45.23). Todo este assunto é abordado em mais amplitude em sua Epístola
aos Romanos. Julguei desnecessário repetir aqui as observações que já fiz
na exposição daquela epístola, as quais 0 leitor pode consultar. Uma vez,
portanto, que os gentios são contados entre os filhos de Deus, é evidente
que a adoção procede não do mérito da lei, mas da graça da fé.
7. De sorte que já não és escravo. Na igreja cristã, não existe mais
escravidão, e sim a condição de filhos. Já investigamos em que aspecto os
pais que viviam sob a lei eram escravos. A liberdade deles ainda não fora
revelada; estava oculta sob 0 véu e o jugo da lei. Uma vez mais, nossa aten-
ção é dirigida à distinção entre 0 Antigo e 0 Novo Testamento. Os antigos
pais eram também filhos de Deus e herdeiros por intermédio de Cristo.
Mas possuímos 0 mesmo caráter, de maneira diferente, pois temos Cristo
presente conosco, e, assim, desfrutamos de suas bênçãos.
8. Outrora, porém, não conhecendo a Deus. Estas palavras não fo-
ram escritas como um argumento adicional; e, de fato, Paulo já havia
provado sua tese tão cabalmente, que não permanecera qualquer dúvida,
e os gálatas não podiam escapar à reprovação que ele agora ministrava. 0
objetivo do apóstolo era fazer com que o erro dos gálatas parecesse mais
grave, ao compará-lo com os acontecimentos passados. Não devemos
admirar, disse Paulo, que antes vocês serviam “a deuses que, por natu-
reza, não 0 são”; pois, onde existe ignorância, ali tem de haver cegueira
114 · Comentário de Gálatas
12. Sede qual eu sou; pois também eu sou como vós. Irmãos, assim
vos suplico. Em nada me ofendestes.
13. E vós sabeis que vos preguei 0 evangelho a primeira vez por
causa de uma enfermidade física.
14. E, posto que a minha enfermidade na carne vos foi uma tentação,
contudo, não me revelastes desprezo nem desgosto; antes, me
recebestes como anjo de Deus, como 0 próprio Cristo Jesus.
15. Que é feito, pois, da vossa exultação? Pois vos dou testemunho
de que, se possível fora, teríeis arrancado os próprios olhos para
mos dar.
16. Tornei-me, porventura, vosso inimigo, por vos dizer a verdade?
17. Os que vos obsequiam não 0 fazem sinceramente, mas querem
afastar-vos de mim, para que 0 vosso zelo seja em favor deles.
18. É bom ser sempre zeloso pelo bem e não apenas quando estou
presente convosco,
19. meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser
Cristo formado em vós;
20. pudera eu estar presente, agora, convosco e falar-vos em outro
tom de voz; porque me vejo perplexo a vosso respeito.
12. Sede qual eu sou. Depois de falar com aspereza até este ponto,
Paulo começa a adotar uma forma mais gentil. A aspereza que ele havia
dem onstrado se justificava pela im piedade da ofensa; pois, como Paulo de-
sejava fazer 0 bem, ele resolve adotar um estilo de conciliação. Um pastor
sábio considera não 0 que merecem com justiça aqueles que se afastaram
do caminho correto, e sim qual seria 0 melhor m étodo de trazê-los de vol-
ta. Ele tem de, “quer seja oportuno, quer não”, corrigir, repreender, exortar
“com toda a longanimidade e d outrina” (2 Tm 4.2). Seguindo esse método,
0 p astor sábio deixa de lado a repreensão e começa a usar súplicas. Assim,
vos suplico, diz ele, e os chama de irmãos, a fim de assegurar-lhes que não
havia qualquer amargura em suas reprovações.
As palavras sede qual eu sou referem-se às afeições da mente. Visto
que Paulo se esforça para acomodar-se a eles, deseja que façam 0 mesmo
118 · Comentário de Gálatas
em relação a ele. Pois também eu sou como vós, ou seja: “Não tenho outro
objetivo, exceto promover 0 bem de vocês; portanto, é justo que sejam
persuadidos a adotar pontos de vistas moderados e a atentar, com disposi-
ção e obediência, às minhas instruções”. Aqui, novamente, os pastores são
relembrados de seu dever de descer ao nível do povo, até onde puderem,
e de estudar as várias disposições daqueles com quem precisam lidar, se
querem obter concordância com a sua mensagem. O provérbio sempre
será verdadeiro: “Para ser amado, você tem de ser amável”.
Em nada me ofendestes. Paulo tencionava remover a suspeita que
poderia ter tornado as suas primeiras reprovações desagradáveis. Pois, se
imaginamos que alguém está falando sob um senso de injúria ou vingando-se
de uma contenda pessoal, desviamos completamente dele 0 nosso coração e
torcemos tudo que ele diz, para que adquira um sentido desfavorável. Paulo
enfrenta essa injúria, dizendo: “No que diz respeito a mim mesmo, não tenho
nenhuma queixa de vocês. Não estou zangado por uma questão pessoal,
nem por qualquer hostilidade de vocês. Portanto, se uso uma linguagem
incisiva, ela provém de outra causa, não de ódio, nem de ira”.
13. Por causa de uma enfermidade física. Paulo recorda aos gálatas
a maneira amiga e respeitável com a qual 0 haviam recebido. E faz isso por
duas razões. A primeira, para que soubessem que ele os amava e, assim,
obtivesse a prontidão deles em ouvir tudo que lhes tinha a dizer. A segun-
da, para encorajá-los a que, como haviam começado bem, continuassem
no mesmo rumo. Esta menção de fatos passados, conquanto fosse uma
expressão da afabilidade de Paulo, também era uma exortação para que
agissem da mesma maneira como o tinham feito no passado.
Com a expressão “enfermidade física” Paulo se referia, como em ou-
tras passagens, 0 que tinha a tendência de fazê-lo parecer insignificante e
desprezível. “Carne” denota sua aparência exterior, que a palavra “enfermi-
dade” descreve como sendo abjeto. Assim era Paulo quando teve ingresso
entre eles: sem pompa, sem grandeza, sem honras ou distinção mundanas,
sem tudo que poderia obter-lhe respeito e estima aos olhos dos homens.
No entanto, tudo isso não impediu os gálatas de recebê-lo com a maior dig-
nidade. Isto contribui poderosamente ao seu argumento? 0 que havia em
Capítulo 4 · 119
por causa deles, a aflição e dores de uma mãe. Denota, igualmente, a ansie-
dade do apóstolo; pois “a mulher, quando está para dar à luz, tem tristeza,
porque a sua hora é chegada; mas, depois de nascido 0 menino, já não
se lembra da aflição, pelo prazer que tem de ter nascido ao mundo um
homem” (Jo 16.21). Os gálatas já haviam sido concebidos e trazidos à luz;
mas, depois de sua rebeldia, tinham de ser gerados pela segunda vez.
Até ser Cristo formado em vós. Com estas palavras, 0 apóstolo
abranda a ira dos gálatas, pois não menospreza 0 primeiro nascimentos
deles, mas diz que eles precisam ser outra vez nutridos no ventre, como
se ainda não estivessem plenamente formados. Ser Cristo formado em
nós é 0 mesmo que sermos formados em Cristo; porque nascemos para
que sejamos novas criaturas nEle. Por outro lado, Ele nasce em nós
para que vivamos sua vida. Visto que a genuína imagem de Cristo foi de-
formada por meio de superstições introduzidas pelos falsos apóstolos,
Paulo se esforça para restaurá-la em toda a sua perfeição e esplendor.
Isto é feito pelos ministros do evangelho, quando eles dão leite às
crianças e alimento sólido aos adultos (Hb 5.13, 14). Aliás, eles devem
realizar essa atividade durante todo 0 seu ministério de pregação. Mas
Paulo, neste versículo, se compara a uma mulher nos labores de parto,
porque os gálatas ainda não haviam nascido completamente.
Esta é uma passagem notável que ilustra a eficácia do ministério. É
verdade que somos nascidos de Deus (1 Jo 3.9). Mas, visto que Deus em-
prega um ministro do evangelho e a pregação como instrumentos para
atingir esse propósito, Ele se agrada em atribuir-lhes aquela obra que Ele
mesmo realiza, pelo poder do seu Espírito, em cooperação com os labores
de um homem. Atentemos sempre a esta distinção, ou seja: quando um
ministro é contrastado com Deus, ele não é nada e não pode fazer nada; é
completamente inútil. Mas, devido ao fato de que 0 Espírito Santo opera
eficazmente por meio dele, a fama e 0 louvor da ação é transferida para ele.
No entanto, o que Paulo descreve aqui não é 0 que o ministro do evangelho
pode fazer por si mesmo ou sem a operação de Deus, e sim 0 que Deus faz
por intermédio dele. Se os ministros do evangelho querem fazer alguma
coisa, devem esforçar-se para formar a Cristo, e não eles próprios, em seus
124 · Comentário de Gálatas
ouvintes. Neste ponto Paulo se sente tão abatido pela tristeza, que chega
quase a desanim ar de exaustão, sem sequer term inar a sentença.
20. Pudera eu estar presente, agora, convosco. Isto é uma repreen-
são fortíssima, a queixa de um pai tão perplexo à vista da má conduta
de seus filhos, que precisa de conselhos e não sabe a quem recorrer. Ele
anseia por uma oportunidade de conversar pessoalm ente com eles. Assim
podem os obter uma idéia nítida do que é conveniente às circunstâncias;
pois, à medida que 0 ouvinte é afetado, subm isso ou obstinado, podemos
adaptar nosso discurso. Contudo, o apóstolo queria expressar algo mais
do que isso, ao dizer: “Falar-vos em outro tom”. Ele estava disposto a usar
uma variedade de discurso e, se 0 caso 0 exigisse, formular uma nova lin-
guagem. Este é um procedim ento que os pastores têm de seguir com muita
dedicação. Eles não devem ser guiados totalm ente por suas próprias incli-
nações, ou pelas tendências de seu tem peram ento, e sim acom odarem -se,
enquanto 0 caso permitir, à capacidade das pessoas, lem brando -se de não
ir além do que a consciência lhes ditar e de não abandonar a integridade,
a fim de granjear o favor do povo.
21. Dizei-me vós, os que quereis estar sob a lei: acaso, não ouvis a lei?
22. Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da mulher escra-
va e outro da livre.
23. Mas 0 da escrava nasceu segundo a carne; 0 da livre, mediante
a promessa.
24. Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas
alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera
para escravidão; esta é Agar.
25. Ora, Agar é 0 monte Sinai, na Arábia, e corresponde à Jerusalém
atual, que está em escravidão com seus filhos.
26. Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe;
te eram livres aos olhos de Deus, na aparência externa, não eram diferentes
dos escravos. Assim, refletiam a condição de sua mãe. Mas a doutrina do
evangelho outorga aos seus filhos perfeita liberdade, tão logo sejam nasci-
dos, e os cria em liberdade.
Admito que Paulo não fala deste tipo de filhos, conforme 0 demons-
trará o contexto. Os fihos do Sinai, explicaremos depois, significam os
hipócritas, que por fim são expulsos da igreja de Deus e destituídos da
herança. Então, 0 que significa gerar filhos para a escravidão, que constitui
0 assunto da presente discussão? Denota aqueles que abusam perversa-
mente da lei, achando nela somente 0 que tende à escravidão. Mas este
não é 0 caso dos santos pais que viveram na época do Antigo Testamento;
pois 0 nascimento deles sob a escravidão da lei não os impediu de ter
Jerusalém como sua mãe, no espírito. Todavia, aqueles que se apegam à
mera lei e não a conhecem como um aio que os conduz a Cristo (G13.24),
fazendo dela uma barreira que os impede de vir a Ele, esse são ismaelitas,
nascidos para a escravidão.
Alguém objetará novamente: por que 0 apóstolo diz que os tais são
nascidos da aliança divina e pertencentes à igreja? Falando estritamente,
respondo que não são filhos de Deus, e sim pessoas degeneradas e espú-
rias, rejeitadas por Deus, a quem falsamente chamam de Pai. Recebem este
nome na igreja, não porque são realmente membros dela, mas porque, por
algum tempo, fingem ocupar aquele lugar e enganam os homens com os
disfarces que usam. 0 apóstolo aqui considera a Igreja como ela é vista
neste mundo. Mas falaremos sobre isso mais adiante.
25. Ora, Agar é o monte Sinai. Não gastarei tempo refutando as
exposições de outros escritores. Porquanto é frívola a conjectura de Jerô-
nimo no sentido de que 0 monte Sinai tinha dois nomes. E a discussão de
Crisóstomo acerca da concordância dos nomes é igualmente indigna de
consideração. O Sinai é chamado Agar porque é um tipo ou figura; assim
como a Páscoa era Cristo. A localização do monte expressa menosprezo.
Encontra-se na Arábia, além das fronteiras da Terra Santa, que é símbolo
da herança eterna. O fato admirável é que num assunto tão familiar os
gálatas erravam clamorosamente.
Capítulo 4 · 129
27. porque está escrito: Alegra-te, ó estéril, que não dás à luz, exulta e
clama, tu que não estás de parto; porque são mais numerosos os
filhos da abandonada que os da que tem marido.
28. Vós, porém, irmãos, sois filhos da promessa, como Isaque.
29. Como, porém, outrora, 0 que nascera segundo a carne perseguia
ao que nasceu segundo 0 Espírito, assim também agora.
30. Contudo, que diz a Escritura? Lança fora a escrava e seu filho,
porque de modo algum 0 filho da escrava será herdeiro com 0
filho da livre.
31. E, assim, irmãos, somos filhos não da escrava, e sim da livre.
Capítulo 4 · 131
27. Porque está escrito. O apóstolo prova, com uma citação de Isaías,
que os filhos legítimos da igreja nascem segundo a promessa. A passagem
é Isaías 54, onde 0 profeta fala sobre 0 reino de Cristo e a chamada dos
gentios. E promete à mulher estéril e à viúva uma prole numerosa. É com
base nisso que ele exorta a igreja a cantar e exultar. 0 objetivo do apóstolo,
devemos observar com atenção, consistia remover dos judeus qualquer
direito àquela Jerusalém espiritual sobre a qual Isaías falava. O profeta
anuncia que os filhos dessa Jerusalém serão reunidos de todas as nações,
não mediante qualquer preparação da parte daquela Jerusalém, e isso me-
diante a graça e a bênção gratuitas de Deus.
Em seguida, 0 apóstolo conclui que nos tornamos filhos de Deus por
meio da promessa, segundo 0 padrão de Isaque (κατά Ισαάκ), e que não
há outra maneira de obtermos essa honra. Para os leitores menos hábeis
e pouco exercitados no manuseio da Escritura, essa argumentação talvez
pareça inconclusiva, visto que não se apropriam do mais indubitável de
todos os princípios, ou seja: todas as promessas, fundamentadas no Mes-
sias, provêm da livre graça. Visto que 0 apóstolo tomou isso como algo
inquestionável, ele pôde contrastar ousadamente a promessa com a lei.
29. Como, porém, outrora, o que nascera segundo a carne. Pau-
10 denuncia a crueldade dos dos falsos apóstolos, os quais insultavam
atrevidamente as pessoas piedosas que colocavam toda a sua confiança
em Cristo. Havia uma necessidade abundante de que essa inquietação
dos oprimidos fosse aliviada por consolação e de que a crueldade dos
opressores fosse reprimida com severidade. Não devemos nos admirar,
disse Paulo, de que os filhos da lei, no presente, fazem 0 que Ismael, 0
pai deles, fazia na antiguidade, o qual, confiando que era 0 primogênito,
perseguiu a Isaque, 0 herdeiro legítimo. Com 0 mesmo desdém arrogan-
te, por conta das cerimônias externas, da circuncisão e dos diversos
serviços da lei, a posteridade de Ismael molesta os legítimos filhos de
Deus e se gloria contra eles.
0 Espírito é novamente contrastado com a carne, isto é, a chamada
de Deus com a aparência humana (cf. 1 Sm 16.7). Assim, admite-se que
os seguidores da lei e das obras usavam um disfarce, mas a realidade é
132 · Comentário de Gálatas
porém, ignoram os decretos divinos, pelos quais se fez manifesto que to-
dos eram governados pela providência celestial. Que Abraão teria cedido
completamente aos caprichos de sua esposa é certamente algo excepcio-
nal, mas isso prova que Deus usou os serviços de Sara para confirmar sua
promessa. Em suma, a expulsão de Ismael nada era senão a conseqüência
e consolidação deste oráculo: “Em Isaque será chamada a tua descendên-
cia” - não em Ismael! Portanto, ainda que fosse a represália de uma mulher
rancorosa, Deus não deixou por menos fazendo sua sentença conhecida
pelos lábios de uma mulher, como tipo da Igreja.
31. E, assim, irmãos. Ele agora exorta os gálatas a preferirem ser
filhos de Sara do que de Agar; e lembra-lhes que, pela graça de Cristo,
haviam nascido para a liberdade, portanto que continuassem no mesmo
estado. Se porventura chamarmos os papistas de ismaelitas e agaritas, e
reivindicarmos que somos os filhos legítimos, eles se rirão de nós. Mas que
os dois temas em questão sejam honestamente comparados, e as pessoas
mais ignorantes não se sintam embaraçadas em decidir.
Capítulo 5
1. Perm anecei, pois, firmes. Depois de dizer aos gálatas que eles são
filhos da mulher livre, 0 apóstolo agora os recorda que não devem menos-
prezar essa liberdade tão preciosa. Essa liberdade é certamente uma bênção
inestimável, pela qual devemos lutar até à morte; visto que são interesses
eternos, e não somente as mais elevadas considerações temporais, que
nos motivam a lutar. Muitas pessoas, que nunca avaliam 0 assunto sob
este prisma, nos acusam de zelo excessivo, quando nos vêem contenden-
do tão impetuosa e seriamente pela liberdade da fé aplicada aos assuntos
exteriores, em oposição à tirania do papa. Usando este disfarce, nossos
adversários criam um preconceito contra nós entre as pessoas ignorantes,
136 · Comentário de Gálatas
gálatas jamais haviam vivido sob a lei? Significa apenas que eles não deviam
ser enganados, como se não houvessem sido redimidos pela graça de Cristo.
Embora a lei tenha sido dada aos judeus, e não aos gentios, ambos não têm
qualquer liberdade ã parte de Cristo; têm somente escravidão.
2. Eu, Paulo. Ele não podia ter pronunciado uma ameaça mais severa
do que a de excluí-los inteiramente da graça de Cristo. Mas, 0 que isto
significa? Que Cristo de nada aproveita a todos os circuncidados? Cristo de
nada aproveitou a Abraão? É claro que Cristo lhe foi proveitoso, pois, para
que isso acontecesse, Abraão recebeu a circuncisão. Se dissermos que a
lei estava em vigor somente até à vinda de Cristo, 0 que falaremos a res-
peito de Timóteo? Temos de observar que a argumentação de Paulo não se
dirigia propriamente ao rito ou cerimônia exterior, e sim à perversa doutri-
na dos falsos apóstolos, os quais pretendiam que sua doutrina fosse uma
parte indispensável da adoração a Deus e, ao mesmo tempo, tornavam-na
um motivo de confiança, uma obra meritória. Essas invenções diabólicas
faziam que Cristo de nada aproveitasse. Os falsos apóstolos não negavam
a Cristo, nem desejavam que ele fosse totalmente colocado de lado; mas
eles faziam tal distinção entre a graça de Cristo e as obras da lei, que não
deixavam mais do que uma meia salvação por meio de Cristo. 0 apóstolo
argumenta que Cristo não pode ser dividido desse modo e que Ele “de
nada... aproveitará”, a menos que seja aceito em sua totalidade.
0 que os papistas modernos tentam nos fazer aceitar em lugar da cir-
cuncisão? A tendência de todo 0 ensino deles consiste em mesclar a graça
de Cristo com os méritos das obras; e isso é impossível. Quem deseja ter
apenas um meio Cristo, perde 0 Cristo todo. No entanto, os papistas se
acham bastante astutos, quando nos dizem que nada atribuem às obras,
exceto por meio da influência da graça de Cristo, como se isso fosse um
erro diferente do erro dos gálatas. Eles não criam que tivessem se separa-
do de Cristo ou abandonado a sua graça. Mas perderam a Cristo quando
corromperam a principal parte da doutrina do evangelho.
A expressão eu, Paulo é muito enfática. Ele se coloca diante dos gálatas
e menciona seu próprio nome, para que remover toda aparência de hesita-
ção. E, embora sua autoridade começasse a ser menosprezada entre aqueles
138 · Comentário de Gálatas
crentes, Paulo afirma que ela era suficiente para eliminar cada adversário.
3. De novo, testifico. O que ele introduz agora é confirmado pela
contradição envolvida na sentença seguinte. Aquele que “está obrigado a
guardar toda a lei” jamais escapará à morte, mas será sempre considerado
culpado, pois jamais se encontrará um homem capaz de satisfazer à lei.
Sendo esta a obrigação, 0 homem tem de ser condenado, e Cristo de nada
lhe aproveita. Vemos, pois, a natureza contraditória das duas proposições:
somos participantes da graça de Cristo e obrigados a cumprir toda a lei.
Concluímos, então, que nenhum dos patriarcas foi salvo? E que Timóteo
se perdeu, visto que Paulo 0 circuncidou? Somos desaventurados, até que
estejamos livres da lei; porque a sujeição é inseparável da circuncisão.
Temos de observar que Paulo tinha por costume falar da circuncisão
em dois sentidos, como facilmente 0 perceberá qualquer pessoa que der
atenção moderada aos seus escritos. Em Romanos 4.11, Paulo chama a cir-
cuncisão de “selo da justiça da fé”; e, sob 0 regime da circuncisão, ele inclui a
Cristo e a promessa gratuita da salvação. Mas, neste versículo, ele contrasta
a circuncisão com Cristo, com a fé, com 0 evangelho e com a graça, conside-
rando-a apenas um acordo legal fundamentado no mérito das obras.
A conseqüência, como eu já disse, é que ele nem sempre fala da mes-
ma maneira sobre a circuncisão. E a razão para essa diferença tem de ser
levada em conta. Quando Paulo via a circuncisão em sua própria natureza,
ele a usava, apropriadamente, como símbolo da graça, porque essa era a
designação de Deus. Mas, quando estava lidando com os falsos apóstolos,
que abusavam da circuncisão, tornando-a um instrumento para destruir 0
evangelho, Paulo não considerava o propósito para 0 qual ela havia sido de-
signada pelo Senhor, mas atacava a corrupção que procedia dos homens.
Um exemplo admirável ocorre aqui. Quando Abraão recebeu uma
promessa referente a Cristo, bem como a justiça pela livre graça e a sal-
vação eterna, a circuncisão foi acrescentada para confirmar a promessa.
Assim, a circuncisão se tornou, por designação de Deus, um sacramento
que era subserviente à fé. Posteriormente, surgem os falsos apóstolos,
que pretendem seja a circuncisão uma obra meritória e recomendam a
observância da lei, transformando a circuncisão, como rito iniciatório,
Capítulo 5 · 139
“Em Cristo, a circuncisão não tem qualquer valor”. A justiça, portanto, de-
pende da fé; é obtida no Espírito, sem as cerimônias.
Aguardar a esperança da justiça é colocar nossa confiança neste ou
naquele objeto ou decidir de onde a justiça deve ser esperada. Mas as pa-
lavras talvez contenham uma exortação: “Continuemos intrepidamente na
esperança da justiça que é obtida pela fé”. Ao dizer que obtemos a justiça
pela fé, isto se aplica tanto a nós como aos patriarcas. Todos eles, conforme
0 testem unho da Escritura (Hb 11.5), agradaram a Deus pela fé; mas a sua
fé foi ocultada pelo véu das cerimônias. Por isso, Paulo faz distinção entre
nós e eles, usando a palavra “Espírito”, que é contrastada com as som bras
exteriores. Portanto, ele queria dizer que a fé simples é a única coisa neces-
sária para obtermos a justiça; a fé que não precisa da ajuda de cerimônias
esplêndidas e se satisfaz com a adoração espiritual prestada a Deus.
6. Porque, em Cristo Jesus. A razão por que os crentes esperam ago-
ra pela justiça no Espírito é que em Cristo, isto é, no reino de Cristo ou
na igreja cristã, a circuncisão, com seus apêndices, está abolida. Porque,
usando uma figura de linguagem em que uma parte é tom ada em lugar
do todo, a palavra “circuncisão” é colocada em lugar de “cerimônias”. Ao
mesmo tem po que Paulo declara que as cerimônias não possuem mais
qualquer influência, ele não admite que elas sem pre foram inúteis. Paulo
diz que as cerimônias foram repelidas som ente depois da revelação de
Cristo. Isso nos capacita a resolver outra questão: por que, nesta passa-
gem, Paulo fala de modo tão desdenhoso a respeito da circuncisão, como
se ela não tivesse nenhum valor? O ponto agora considerado é a classe a
que pertencia a circuncisão como um sacram ento. A questão não é que
valor ela tinha antes de ser abolida. No reino de Cristo, 0 apóstolo declara
que a circuncisão está no mesmo nível da incircuncisão, porque a vinda de
Cristo pôs fim às cerimônias legais.
Mas a fé que atua pelo amor. Paulo contrasta cerimônias com 0
exercício do amor, para im pedir que os judeus pensassem elevadamente
a respeito de si mesmos, imaginando que tinham direito a algum tipo de
superioridade. Pois, quase no final da epístola, em vez desta expressão,
ele usa as palavras uma nova criatura (G16.15). Era como se Paulo estives
Capítulo 5 · 141
remover a ambigüidade.
9. Um pouco de fermento. Isto se referia, eu creio, à doutrina, e não
a homens. E protegia os gálatas contra as conseqüências perniciosas que
emanam da corrupção da doutrina, advertindo-os a não achar (como fre-
qüentemente as pessoas 0 fazem) que essa doutrina corrompida envolvia
pouco ou nenhum risco. A estratégia de Satanás não é tentar uma destrui-
ção aberta de todo 0 evangelho, e sim macular a sua pureza introduzindo
opiniões falsas e corruptas. Muitos são levados a ignorar a seriedade
da injúria causada e, por isso, fazem uma resistência menos resoluta. 0
apóstolo protesta, dizendo que, uma vez corrompida a verdade de Deus,
não estamos mais seguros. Ele usa a metáfora do fermento; e este, por
menor que seja a quantidade, transmite sua acidez a toda a massa. Deve-
mos ser muito cautelosos, não permitindo que uma imitação substitua a
sã doutrina do evangelho.
10. Confio de vós. Toda a indignação de Paulo é agora dirigida contra
os falsos apóstolos. O mal é rastreado até eles, sobre os quais 0 castigo é
lançado. O apóstolo declara que alimenta boa esperança de que os gálatas
se voltarão, imediata e diligentemente, à crença sincera. Isso nos encoraja
a aprender que boas esperanças são alimentadas a nosso respeito, por-
que consideramos vergonhoso 0 desapontar aqueles que sentem ternura e
amizade por nós. Mas trazê-los de volta à sã doutrina da fé, da qual haviam
se desviado, era obra de Deus. O apóstolo diz que confiava neles, ενΚυριω,
no Senhor, com isso, Paulo lhes recorda que 0 arrependimento é um dom
celestial e que deviam pedi-lo a Deus.
Aquele que vos perturba. O sentimento que Paulo acabara de expres-
sar é confirmado por esta imputação indireta de grande parte da culpa
aos impostores pelos quais os gálatas haviam sido enganados. Os gálatas
estavam quase eximidos da punição denunciada contra os impostores. To-
dos os que introduzem confusão nas igrejas, que quebram a unidade da fé,
que destroem a harmonia, ouçam esta advertência de Paulo; e, se possuem
algum sentimento correto, tremam diante destas palavras. Deus declara,
pelos lábios de Paulo, que nenhum “homem pelo qual vem 0 escândalo”
(Mt 18.7; Lc 17.1) ficará sem punição.
144 · Comentário de Gálatas
Ao usar 0 term o και (até), Paulo expressa mais fortem ente seu desejo de
que os im postores fossem não som ente degradados, mas tam bém intei-
ram ente separados e excluídos.
tão não é de que maneira tem os liberdade diante de Deus, e sim como
podem os usar a nossa liberdade entre os homens. Uma boa consciência
não se subm ete a nenhum a servidão; mas praticar a servidão exterior e
abster-se do uso da liberdade não é perigoso. Em resumo, se servimos uns
aos outros pelo amor, terem os sem pre nossa atenção voltada para a edifi-
cação; e, desse modo, não crescerem os libertinos, mas usarem os a graça
de Deus para a sua honra e a salvação de nosso próximo.
14. Porque toda a lei. Neste versículo, há uma antítese - não afir-
m ada com clareza, mas facilmente subentendida - entre a exortação de
Paulo e a doutrina dos falsos apóstolos. Enquanto estes insistiam apenas
nas cerimônias, Paulo descreve em poucas palavras os deveres e práticas
dos crentes. Esta recom endação concernente ao am or visava ensinar aos
gálatas que 0 am or é a principal p arte da perfeição cristã. Mas devemos
indagar por que razão todos os preceitos da lei estão incluídos no manda-
mento do amor. A lei consiste de duas tábuas: a primeira nos ensina sobre
a adoração a Deus e os deveres da piedade; e a segunda, sobre os deve-
res do amor ao próximo. Pois é absurdo tom ar uma parte como se fosse
0 todo. Alguns evitam esta dificuldade, relembrando-nos que a primeira
tábua não contém nada mais do que o amar a Deus com todo o nosso co-
ração. Mas Paulo menciona expressam ente 0 amor ao próximo; por isso,
devemos buscar uma solução mais satisfatória.
Reconheço que a piedade para com Deus é mais eminente do que
0 amor aos irmãos. Assim, a observância da primeira tábua é, aos olhos
de Deus, mais valiosa do que a da segunda. Mas, visto que Deus mesmo
é invisível, a piedade é algo oculto à percepção dos homens. Embora as
cerimônias tenham sido designadas para evidenciar a piedade, elas não
constituem provas seguras da existência da piedade. Às vezes, acontece
que ninguém é mais zeloso e sistem ático em observar as cerimônias do
que os hipócritas. Portanto, Deus resolve provar 0 nosso amor para com
Ele por meio do am or ao nosso irmão, 0 am or que Deus nos recomenda. Eis
a razão por que não som ente aqui, mas tam bém na epístola aos Romanos
(13.8,10) 0 am or é cham ado “0 cumprim ento da lei”, não porque seja su-
perior à adoração a Deus, e sim porque é a prova dessa adoração. Como já
148 · Comentário de Gálatas
disse, Deus é invisível, mas Ele se representa nos irmãos e na pessoa deles
exige 0 que Lhe é devido. O amor para com os homens flui do temor e do
amor a Deus. Portanto, não devemos ficar admirados com 0 fato de que, se
por meio de uma figura de linguagem, em que a parte é tomada pelo todo, 0
efeito inclua a causa da qual ele é 0 sinal. Contudo, seria errôneo qualquer
pessoa separar 0 amor a Deus do amor aos homens.
Amarás o teu próximo. Aquele que ama dará a cada pessoa 0 que é seu
direito, não injuriará, nem fará dano a ninguém; e, quanto lhe for possível,
fará o bem a todos. Haveria algo mais a ser incluído na segunda tábua da
lei? Este é 0 mesmo argumento que Paulo usa em Romanos (13.10). A pa-
lavra próximo inclui todas as pessoas vivas; pois estamos unidos por uma
natureza comum, conforme Isaías nos recorda: “Não te escondas do teu se-
melhante” (Is 58.7). A imagem de Deus deve ser reputada como um vínculo
sagrado de união. Por essa razão, não se faz qualquer distinção entre amigo
e inimigo, nem a impiedade dos homens pode anular 0 direito natural.
O amor que os homens fomentam naturalmente em relação a si mes-
mos deve regular nosso amor ao próximo. Todos os doutores de Sorbonne
têm 0 hábito de argumentar que, como a regra é superior àquilo que ela
direciona, 0 amor por nós mesmos deve sempre vir em primeiro lugar
(regulatum inferius sitsua regula). Isto é uma subversão, e não uma inter-
pretação, das palavras de nosso Senhor. Esses doutores são uns asnos e
não possuem a menor fagulha de amor ao próximo; pois, se 0 amor por
nós mesmos fosse a norma, concluiríamos que ele é santo e correto, um
objeto de aprovação divina. Mas nunca amaremos nosso próximo com sin-
ceridade, conforme a intenção de nosso Senhor, enquanto não tivermos
corrigido 0 amor por nós mesmos. Estas duas afeições são opostas e con-
traditórias; pois 0 amor por nós mesmos nos faz negligenciar e desprezar
os outros - produz somente crueldade, ambição, violência, engano e erros
semelhantes - nos induz à impaciência e nos arma com 0 desejo de vin-
gança. O Senhor, portanto, recomenda que 0 amor por nós mesmos seja
transformado em amor ao próximo (charitatem).
15. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros. Com base
na natureza do assunto, bem como na linguagem empregada, podemos
Capítulo 5 · 149
conjecturar que os gálatas tinham disputas entre si, pois diferiam em re-
ferência à doutrina. 0 apóstolo agora demonstra, à luz do resultado, quão
destrutivo é esse tipo de mal na igreja. A falsa doutrina pode ter sido um
julgamento do céu contra a ambição, 0 orgulho e outras ofensas daqueles
crentes. Isso pode ser deduzido do que ocorre com freqüência nas dispen-
sações divinas, bem como da declaração feita por Moisés: “Não ouvirás as
palavras desse profeta ou sonhador; porquanto 0 SENHOR, vosso Deus,
vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo 0 vosso
coração e de toda a vossa alma” (Dt 13.3).
Ao usar os termos morder e devorar, acho que 0 apóstolo tinha em
mente as calúnias, as acusações, as censuras e outros tipos de linguagem
ofensiva, bem como atos de injustiça provenientes da fraude ou da vio-
lência. E qual é 0 fim deles? Ser destruído, enquanto a tendência do amor
fraternal é produzir bondade e proteção mútua. Recordemos sempre:
quando o diabo nos tentar às controvérsias, as desavenças dos membros
da igreja não leva a parte alguma, exceto à ruína e destruição de todo 0
apenas que a lei não é dirigida contra as boas obras, visto que “do mau
comportamento procedem boas leis”. Mas 0 verdadeiro significado do que
Paulo diz é mais profundo e menos óbvio, a saber: onde o Espírito reina,
a lei não exerce mais qualquer domínio. Ao moldarmos 0 nosso coração à
justiça de Deus, o Senhor nos liberta da severidade da lei, para que nosso
relacionamento com Ele mesmo não seja regulado pela aliança da lei, e
nossa consciência não seja dominada por sua sentença de condenação.
Apesar disso, a lei continua a exercer seu ofício de ensinar e exortar. Mas
0 Espírito de adoção nos livra da sujeição devida à lei. Assim, Paulo ridi-
culariza os falsos apóstolos, os quais, embora insistissem na sujeição à
lei, estavam bastante desejosos de livrarem-se do jugo da lei. Paulo nos
diz que esse livramento só acontece quando 0 Espírito de Deus assume
0 domínio; e disso somos levados a concluir que os falsos apóstolos não
taurar o irmão, a maneira como o crente deve levar as cargas um dos outros
não pode ser mal compreendida.
Assim, cumprireis a lei de Cristo. A palavra “lei”, quando aplicada
a Cristo, serve para introduzir um argumento. Há um contraste implícito
entre a lei de Cristo e a lei de Moisés, como se Paulo dissesse: “Se vocês
têm um grande desejo de guardar uma lei, Cristo lhes recomenda uma lei
que vocês preferirão a todas as outras, qual seja: exercer benevolência uns
para com os outros. Aquele que não tem isto não tem nada. Por outro lado,
quando alguém socorre compassivamente a seu próximo, está cumprindo
a lei de Cristo. Com isso, Paulo nos diz que tudo que não procede do amor
é inútil; pois a composição do vocábulo termo grego άναηλτρώσατε ex-
pressa a idéia daquilo que é absolutamente perfeito. Mas, como ninguém
cumpre em todos os aspectos 0 que Paulo exige, ficamos sempre aquém da
perfeição. Por mais que alguém se aproxime dessa perfeição em referência
aos outros, em relação a Deus, está ainda muito distante.
3. Porque, se alguém julga ser alguma coisa. Existe uma ambigüidade
nesta construção, mas o significado de Paulo é muito óbvio. A cláusula não
sendo nada parece, à primeira vista, significar: “Se alguém alega ser algo,
quando na realidade não é nada”; pois existem muitas pessoas destituídas
de dignidade que se enlevam pela admiração de si mesmas. Mas 0 sentido
é mais geral e pode ser expresso assim: “Visto que todos os homens são
nada, aquele que deseja aparentar alguma coisa e se convence de que é al-
guém, engana-se a si mesmo”. Em primeiro lugar, Paulo declara que somos
nada, e, com isso, pretendia dizer que de nós mesmos nada possuímos so-
bre o que devemos nos gloriar e que somos destituídos de todas as coisas
boas; de sorte que todo o gloriar-nos é mera vaidade. Em segundo lugar,
Paulo conclui que aqueles que reivindicam ser algo enganam-se a si mes-
mos. Ora, visto que nada estimula tanto a nossa indignação como 0 sermos
enganados pelos outros, é um completo absurdo que voluntariamente en-
ganemos a nós mesmos. Essa reflexão nos tornará muito mais justos para
com os outros. Donde procede 0 insulto feroz ou a austeridade insolente,
senão de alguém que se exalta em sua própria avaliação e despreza orgu-
lhosamente os demais? Desvencilhemo-nos da arrogância; e busquemos
Capítulo 6 · 161
11. Vede com que letras grandes vos escrevi de meu próprio punho.
12. Todos os que querem ostentar-se na carne, esses vos constrangem
a vos circuncidardes, somente para não serem perseguidos por
causa da cruz de Cristo.
13. Pois nem mesmo aqueles que se deixam circuncidar guardam
a lei; antes, querem que vos circuncideis, para se gloriarem na
vossa carne.
11. Vede. 0 significado do verbo grego ϊδετε é tão ambíguo que pode
ser considerado no modo imperativo ou no indicativo. Mas 0 significado da
passagem é pouco ou em nada afetado. Para convencer os gálatas mais ple-
nam ente de sua ansiedade a respeito deles e, ao mesmo tempo, conquistar
sua profunda atenção, Paulo menciona que esta longa epístola havia sido
escrita por sua própria mão. Quanto maior 0 esforço empregado em favor
deles, tanto maior seria 0 interesse deles em lê-la, não de modo superficial,
e sim com atenção minuciosa.
12. Todos os que querem ostentar-se na carne. Esses homens não
se importavam com a edificação dos crentes; eram guiados por desejos
ambiciosos de conquistar 0 aplauso popular. 0 verbo grego ευπροσωπήσαι é
muito expressivo; denota os olhares e linguagem graciosos assum idos com
0 propósito de agradar. Paulo acusa os falsos apóstolos de ambição. Era
como se estivesse dizendo: “Quando esses homens lhes impõem a circun-
cisão como um fardo necessário, vocês querem saber que tipo de pessoas
168 · Comentário de Gálatas
14. Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Se-
nhor Jesus Cristo, pela qual 0 mundo está crucificado para mim,
e eu, para 0 mundo.
15. Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas
0 ser nova criatura.
16. E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz
e misericórdia sejam sobre eles e sobre 0 Israel de Deus.
17. Quanto ao mais, ninguém me moleste; porque eu tivgo no corpo
as marcas de Jesus.
18. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja, irmãos, com 0 vosso
espírito. Amém!
170 · Comentário de Gálatas
14. Mas longe esteja de mim. Os desígnios dos falsos apóstolos são
agora contrastados com a própria sinceridade de Paulo. Era como se ele
estivesse dizendo: “Para não serem compelidos a levar a cruz, eles negam
a cruz de Cristo, compram com a carne de vocês 0 aplauso dos homens
e, no final, triunfam sobre vocês. Mas 0 meu triunfo e a minha glória se
encontram na cruz do Filho de Deus”. Se os gálatas ainda possuíam bom
senso, não deveriam ter odiado aqueles a quem viam se deleitar com a sua
perigosa condição?
Gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo é 0 mesmo
que gloriar-me no Cristo crucificado, embora algo mais esteja implícito.
Naquela morte, tão cheia de miséria e ignomínia, a morte em que Deus
mesmo foi declarado maldito, a morte que os homens contemplaram com
aversão e vergonha - nessa morte eu me gloriarei, disse Paulo, porque ob-
teve nela felicidade perfeita. Onde 0 bem mais excelente existe, aí está a
sua glória. Mas, por que ele não a buscava em outros lugares? Ainda que
a salvação nos seja revelada na cruz de Cristo, 0 que Paulo pensa sobre a
ressurreição? Eis a minha resposta: na cruz se encontra a redenção em to-
dos os seus aspectos, mas a ressurreição de Cristo não nos afasta da cruz.
E devemos observar atentamente que Paulo rejeita todas as outras formas
de gloriar-se, considerando-as uma terrível ofensa. “Que Deus nos proteja
dessa monstruosa calamidade!” Esta é a força da expressão negativa que
Paulo utiliza constantemente - “se não”.
Pela qual o mundo está crucificado para mim. Visto que a palavra
grega que significa cruz (σταυρός) é masculina, 0 pronome relativo pode
referir-se ou a Cristo ou à cruz. Em minha opinião, é mais correto aplicá-la
à cruz; porque, por meio dela, morremos para 0 mundo. Mas, 0 que signi-
fica “0 mundo”? Indubitavelmente, “0 mundo” é contrastado com a nova
criatura. Tudo que se opõe ao reino espiritual de Cristo é 0 mundo, visto
que ele pertence ao velho homem; ou, numa palavra, 0 mundo é 0 objeto e
0 alvo do velho homem.
Isto concorda exatamente com a linguagem que Paulo usou em outra
epístola. “Mas 0 que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa
de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da subli
Capítulo 6 · 171
estava espiritualmente unido, 0 que tem valor é ser uma nova criatura.
Todas as outras coisas têm de ser descartadas; têm de perecer! Estou me
referindo às coisas que obstruem a regeneração por parte do Espírito. Isso
é 0 que Paulo diz em 2 Coríntios: “Se alguém está em Cristo, é nova criatu-
ra” (5.17). Ou seja, se alguém deseja ser considerado pertencente ao reino
de Cristo, seja nascido de novo pelo Espírito de Deus; não viva mais para si
mesmo, nem para 0 mundo; seja ressuscitado para “novidade de vida” (Rm
6.4). Já consideramos as razões que levaram Paulo a concluir que nem a
circuncisão nem a incircuncisão têm algum valor. A verdade do evangelho
absorve e desfaz todas as sombras da lei.
16. E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra.
“Que desfrutem de paz e felicidade!” Isto é não somente uma oração em
favor dos crentes, mas também um sinal de aprovação. Portanto, 0 sig-
nificado é este: aqueles que ensinam esta doutrina são dignos de toda
estima e consideração, e aqueles que a rejeitam não merecem ser ouvidos.
A palavra regra expressa 0 curso regular e habitual que todos os ministros
piedosos do evangelho devem seguir. Os arquitetos empregam modelos na
construção de edifícios, a fim de ajudá-los a preservar a forma correta e as
justas proporções. 0 apóstolo prescreve esse modelo (κανόνα) aos minis-
172 · Comentário de Gálatas
tros da Palavra, os quais devem edificar a igreja “de acordo com 0 modelo”
que lhes foi mostrado (Hb 8.5).
Ministros fiéis e íntegros, bem como todos os que se conformam a esta
regra, devem extrair encorajamento singular desta passagem. Por meio do
apóstolo, Deus pronuncia uma bênção sobre eles. Não temos motivo para
temer as ameaças do papa, se Deus nos promete paz e misericórdia. O ver-
bo andar pode aplicar-se tanto ao ministro quanto ao seu povo, embora se
refira primordialmente aos ministros. O tempo futuro do verbo (σοι στοιχ
σουσιν) — todos quantos andarem — é usado para expressar perseverança.
E sobre o Israel de Deus. Esta cláusula é um motejo indireto ã vã
ostentação dos falsos apóstolos, os quais se gloriavam de ser os des-
cendentes de Abraão segundo a carne. Há duas classes de pessoas que
usam este nome: um pretenso Israel, que parece sê-lo de fato aos olhos
dos homens, e 0 Israel de Deus. A circuncisão era um disfarce aos olhos
dos homens, mas a regeneração é a verdade aos olhos de Deus. Em suma,
Paulo atribui o título de 0 Israel de Deus àqueles que antes ele denominou
filhos de Abraão pela fé (G1 3.29). Portanto, ele incluiu todos os crentes,
judeus ou gentios, que foram unidos na mesma igreja. Em contrapartida,
0 nome e a raça eram os únicos motivos dos quais se orgulhava 0 Israel
segundo a carne. E isso levou Paulo a argumentar, na Epístola aos Roma-
nos, que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem
descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9.6, 7).
17. Ninguém me moleste. Paulo fala agora com voz de autorida-
de, para restringir seus adversários, e emprega uma linguagem que sua
elevada posição autorizava plenamente. “Parem de lançar obstáculos à
minha pregação.” Por amor à igreja, ele estava preparado para enfrentar
dificuldades, mas não queria ser obstruído pela oposição. Ninguém me
moleste significa: ninguém faça oposição tendo em vista obstruir 0 pro-
gresso de minha obra.
Quanto ao mais ( τού λοιπού), ou seja, quanto a todas as outras coi-
sas, além do ser uma nova criatura. “Esta única coisa é bastante para mim.
Outros assuntos não têm importância, nem me interessam. Que ninguém
me aborreça com elas.” Assim, Paulo se coloca acima de todos os homens,
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