João Calvino - Galatas PDF

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SERIE

COMENTÁRIOS
BÍBLICOS
SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS

JOÃO CALVINO

IF IEL
Editora Fiel
Título do Original: Calvin’s Commentaries
Edição publicada por © Baker Book House

Copyright © 2007 Editora Fiel


Primeira Edição em Português

Todos os direitos em língua portuguesa


reservados por Editora Fiel da Missão
Evangélica Literária

P r o ib id a a r e p r o d u ç ã o d e s t e l iv r o p o r q u a is q u e r

M EIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA DOS EDITORES,

SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e


Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)

a
F IEL
Editora Fiel
Editor: Pr. Richard Denham
Coordenação Editorial: Tiago Santos
Tradução: Rev. Valter Graciano Martins
Av. Cidade Jardim, 3978 Revisão: Pr. Wellington Ferreira e Tiago Santos
Bosque dos Eucaliptos
Capa e diagramação: Edvânio Silva
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3936-2529 Direção de arte: Rick Denham
www.editorafiel.com.br ISBN: 978-85-99145-28-9
Sumário

Prefácio à edição em português................................................. 7


Dedicatória................................................................................... 9
0 Tema da Epístola aos Gálatas................................................. 11

Capítulo 1
Versículos 1 a 5 ................................................................ 19
Versículos 6 a 9 ................................................................26
Versículos 10 a 14...........................................................32
Versículos 15 a 2 4 ...........................................................35

Capítulo 2
Versículos 1 a 5 ................................................................43
Versículos 6 a 10.............................................................. 49
Versículos 11 a 16...........................................................56
Versículos 17 a 2 1 ...........................................................65

Capítulo 3
Versículos 1 a 5 ................................................................ 73
Versículos 6 a 9 ................................................................ 77
Versículos 10 a 14...........................................................82
Versículos 15 a 18...........................................................87
Versículos 19 a 2 2 ...........................................................92
Versículos 23 a 2 9 ...........................................................99
Capítulo 4
Versículos 1 a 5 ...............................................................107
Versículos 6 a 11.............................................................113
Versículos 12 a 2 0 ...........................................................119
Versículos 21 a 2 6 ...........................................................126
Versículos 27 a 3 1 ...........................................................132

Capítulo 5
Versículos 1 a 6 .............................................................. 137
Versículos 7 a 12.............................................................144
Versículos 13 a 18...........................................................148
Versículos 19 a 2 1 ...........................................................153
Versículos 22 a 2 6 ...........................................................155

Capítulo 6
Versículos 1 a 5 ...............................................................159
Versículos 6 a 10.............................................................164
Versículos 11 a 13...........................................................169
Versículos 14 a 18........................................................... 171
Prefácio à edição em português

A epístola de Paulo aos Gálatas é um dos mais extraordinários livros


da Bíblia. Esta epístola já havia ocupado um lugar de importância na prega-
ção de João Crisóstomo, que nos legou um comentário em Gálatas, escrito
em cerca de 390, assim como na ruptura de Martinho Lutero com a igreja
católica, quando este publicou dois comentários sobre esta carta, em 1519
e 1535. Lutero afirmou que esta “é a minha epístola; casei-me com ela; é
minha epístola” - 0 que enfatiza a importância deste escrito do apóstolo
da Reforma do século XVI.
Considerada 0 grande tratado da liberdade cristã, 0 apóstolo Paulo
nos mostra a doutrina vital da graciosa justificação recebida pela fé so-
mente, que une, num só povo, israelitas e gentios, pobres e ricos, homens
e mulheres. Esta epístola, que lida com uma doutrina “tanto tempo escon-
dida, mas ainda hoje ignorada”, é um ataque frontal contra toda arrogância
moralista que supõe que 0 homem pode chegar a Deus por suas próprias
obras. E ainda enfoca a questão central de nossa existência: como pode
um homem pecador ser aceito por um Deus santo?
Por conta da centralidade da doutrina da justificação e da urgência
da luta que se travou em torno da mesma, a carta aos Gálatas tem um
8 · Prefácio à Edição em Português

estilo distintam ente peculiar; nela se vê muitos contrastes e afirmações


fortes. E, surpreendentem ente, não contém elogios ou palavras de apre-
ciação aos cristãos das igrejas da Galácia. Isto porque Paulo considerou
a perversão da mensagem cristã que estava em processo entre os cris-
tãos daquela região como uma completa e radical traição do evangelho,
uma traição que modificava 0 próprio significado de ser cristão, com
graves implicações não apenas para a salvação, mas também para a
vida cristã. Daí a ênfase de Paulo: os que tentam alterar 0 evangelho es-
tão debaixo da maldição divina. Por isso, como já se afirmou, podemos
ouvir trovões e relâmpagos ao lê-la.
Da mesma forma que na época de Paulo, e também na época de João
Calvino, em nossa época as pessoas mais uma vez supõem que podem
cooperar com a graça de Deus, através de suas obras, para alcançar a sal-
vação. De forma trágica, este se tornou 0 credo não-escrito mesmo entre
as igrejas que se percebem oriundas da Reforma do século XVI. Então,
num contexto em que a graça de Deus foi barateada, dissimulada e por
fim abandonada e onde 0 triste legalismo prevalece, Gálatas se torna uma
epístola vital para a igreja hoje, pois lida justamente com “0 artigo pelo
qual a igreja se mantém de pé ou cai”.
João Calvino, então, presta sua mui grande contribuição a leitores de
todas as épocas, ao dissecar as palavras do apóstolo e explicá-las de forma
tão genial, piedosa, acurada e com clareza cristalina.
Assim, é com alegria que a Editora Fiel oferece aos cristãos brasileiros
uma segunda edição desse comentário clássico, escrito originalmente em
1548, agora traduzido para 0 português com apuro pelo Rev. Valter Gracia-
no Martins. Esta nova edição foi totalmente revisada e, como os leitores
rapidamente perceberão, conta com um novo projeto gráfico e editorial.

Pr. Franklin Ferreira


Membro da equipe editorial da Editora Fiel
São José dos Campos, Agosto de 2007.
Dedicatória

Ao ilustríssimo Príncipe e Soberano,


Senhor Christopher, Duque de Wirtemberg,
Conde de Montbellard etc.,
João Calvino envia saudações

Ainda que para contigo eu não passe de um desconhecido, mui ilustre


Príncipe, não temo dedicar-te esta obra. É possível que alguém me censure
por tal ousadia, como sendo este um ato precipitado e carente de justifi-
cativa. Mas isso é tão simples que me permite ser breve. As razões que me
levam a reportar-me a ti são primordialmente duas. Conquanto tens segui-
do o curso certo, de boa vontade e com muito vigor, cheguei ã conclusão
de não ser perda de tempo apelar para ti diretamente para que examines
uma obra por meio da qual poderás ser muitíssimo abençoado. Pois Deus
te agraciou com uma bênção da qual a maioria dos príncipes de nossos
dias carece, a saber: tiveste desde a infância uma educação liberal no co-
nhecimento do latim, e assim pudeste empregar teu lazer em leitura de
livros úteis e religiosos. Se tem havido um tempo quando se faz necessário
extrair consolação da sã doutrina, esse tempo é agora, quando a presente
tensão da igreja, e os mais volumosos e graves problemas, tudo indica, são
iminentes, não restando nenhum conforto mesmo nos espíritos mais he-
róicos. Portanto, quem quer que deseje permanecer firme até 0 fim, deve
depositar sua total confiança nesse apoio. Quem quiser contar com uma
proteção segura, deve aprender a procurar refúgio, por assim dizer, nes-
10 · Dedicatória

te santuário. Demais, nessas quatro epístolas [Gálatas, Efésios, Filipenses


e Colossenses], minhas exposições sobre as quais ora te apresento, mui
eminente Príncipe, encontrarás muitos recursos para consolação, os quais
são mui eficazes para estes tempos; todavia não os mencionarei agora,
senão quando se me deparar melhor ocasião e lugar mais oportuno.
Chego agora à segunda razão para dedicar-te esta obra. Na confusão
do presente momento, alguns se sentem aturdidos, e outros, totalmente
sucumbidos. Tu, porém, tens preservado uma inusitada serenidade e mo-
deração, seguidas de uma extraordinária firmeza em meio a todo gênero
de tormentas. Considero, pois, que será em extremo proveitoso a toda a
Igreja que demonstres em ti mesmo, como num espelho de imagem nítida,
um exemplo a que todos possam imitar. O Filho de Deus convoca a todos
seus seguidores, sem qualquer exceção, a que decidam combater sob 0
brasão de sua cruz, em vez de escolher 0 triunfo junto ao mundo. Toda-
via, mui poucos se sentem preparados para travar esse gênero de batalha.
Portanto, é urgentemente necessário que todos se sintam estimulados e
adestrados por exemplos tão raros, como é o teu, a fim de que corrijam
sua vacilação.
De meus comentários, direi apenas que, provavelmente, contenham
mais do que devo em minha modéstia reconhecer. Neste ponto, porém,
prefiro que tu mesmo os leias e julgues. Adeus, mui ilustre Príncipe! Que
0 Senhor Jesus te preserve por longo tempo, para ele mesmo e para sua
Igreja, e te guie através de seu Espírito!

Genebra, 1 de fevereiro de 1548


0 Tema da Epístola aos Gálatas

É bem sabido em que partes da Ásia viviam os gálatas e quais eram as


fronteiras de seu país. Os historiadores, porém, não concordam quanto ao
lugar de sua origem. É unânime a opinião de que eram galli, de onde veio seu
nome gallos-gregos; mas de que parte da Gália vieram é ainda menos claro.
Estrabo pensava que os tectosages tinham vindo da Gallia Narbonenses,
e que os demais eram celtas; e quase todos seguiram essa direção. Mas, como
Plínio coloca os ambiani entre os tectosages, e concorda-se que eram aliados
aos tolistobogi, que viviam nas proximidades do Reno, penso ser mais provável
serem eles belgas da parte superior do Reno para quem olha para o Canal In-
glês. Os tolistobogi habitavam a parte que agora se chama Cleves e Brabant.
Acredito que 0 equívoco originou-se do seguinte: um grupo de tectosages,
que empreendera uma invasão na Gallia Narbonenses, conservou seu próprio
nome e 0 deu ao país que ocuparam. Isso é sugerido por Ausonius, que diz: “Ain-
da para os teutosages, cujo nome original era belgas”. Pois ele os chama belgas
e diz que foram primeiramente chamados teutosages e mais tarde tectosages.
Quando César coloca os tectosages na Floresta Hercyniana, considero tal fato
como um resultado de sua migração, e isso, de fato, transparece do contexto.
Mas, 0 que agora foi dito é mais que suficiente para 0 nosso presente
propósito em torno da origem desse povo. Plínio nos diz que os gálatas, que
12 · 0 Tema da Epístola aos Efésios

habitavam a parte da Ásia que recebeu 0 seu nome, foram divididos em três
principais nações, a saber: os tectosages, os tolistobogi e os trocmi, e conse-
qüentem ente ocupavam três cidades que exerciam hegemonia. Houve um
tem po em que exerceram tanto poder sobre seus pacíficos vizinhos que uma
grande parte da Ásia Menor se lhes tornou tributária. Por fim, perderam muito
de sua herança valorosa e varonil, e se entregaram ao prazer e à luxúria. E as-
sim foram derrotados na guerra e facilmente subjugados pelo cônsul romano
Cnaeus Manhus.
Nos dias de Paulo, os gálatas encontravam-se sob 0 domínio romano.
Ele os instruíra fielmente no genuíno evangelho, mas, em sua ausência, falsos
apóstolos penetraram entre os gálatas e corrom peram a verdadeira sem ente
do evangelho por meio de dogmas falsos doutrinas erradas. Ensinavam que a
observância de cerimônias ainda era indispensável. Isso pode aparentar tri-
vialidade; mas Paulo luta por essa tese como por um artigo fundamental da fé
cristã. E na verdade 0 é, pois nem 0 mal mais aparentem ente inofensivo não
haverá de extinguir 0 resplendor do evangelho, arm ar cilada às consciências e
remover a distinção entre a antiga e a nova aliança. Ele percebeu que tais erros
estavam tam bém relacionados com uma opinião ímpia e destrutiva sobre 0

merecimento de justiça. E essa é a razão por que ele batalha com tam anho vi-
gor e veemência. Quando tivermos com preendido quão significativa e séria é a
natureza desta controvérsia, então haverem os de estudá-la com uma atenção
muito mais aguçada.
Se alguém avaliar o tem a como ele se apresenta nos comentários de
Orígenes e Jerônimo, então se adm irará de Paulo ter feito tanto rebuliço em
torno de alguns ritos externos. Mas quem quer que busque a fonte de tais
ensinos haverá de reconhecer que houve razões de sobra para reprovações
tão veementes. Os gálatas, levados por sua excessiva credulidade, ou, antes,
por sua volubilidade e insensatez, haviam se desviado do curso certo. Por
isso são censurados tão severam ente pelo apóstolo. Assim, não concordo com
aqueles que pensam que Paulo os tratara mais rispidam ente em virtude da
m orosidade dos gálatas para apreender a estas coisas. Os efésios e os colos-
senses haviam sido subm etidos às mesmas tentações. Se houvessem cedido
tão facilmente ao conto desses vigaristas, concluiremos que Paulo os teria
tratado mais gentilmente? Não era propriam ente a natureza daquelas pessoas
que tornava o apóstolo tão pronto a repreendê-las, e sim a ignomínia da ques­
0 Tema da Epístola aos Efésios · 13

tão em si mesma.
Agora que descobrim os a razão porque 0 apóstolo escreveu a epístola,
vejamos agora a forma como ele a organizou. Nos primeiros dois capítulos,
ele defende a autoridade de seu apostolado, ainda que mais para 0 final do
segundo capítulo ele toque incidentalmente em seu principal ponto, a saber, a
questão da justificação do homem, embora só no terceiro capítulo ele comece
a discussão direta e completa deste tema. Nesses dois capítulos, aparente-
mente ele trata de muitos temas, mas na verdade seu único objetivo é provar
que ele é igual aos apóstolos mais proem inentes, e que não há qualquer razão
plausível para que não seja ele considerado no mesmo pé de igualdade com
eles.
Mas, é im portante que saibamos porque ele labutava tão arduam ente em
prol de sua própria reputação. Pois, desde que Cristo reine e a pureza da dou-
trina perm aneça incontaminada, o que im porta se ele está acima ou abaixo de
Pedro, ou se ambos são iguais? Se todos devem diminuir para que unicamente
Cristo cresça (Jo 3.30), é algo indigno existir disputa entre os homens posição.
Pode-se igualmente perguntar por que ele se com para com os outros após-
tolos. Que rixa tinha ele com Pedro, Tiago e João? O que houve para que se
pusesse em oposição àqueles que eram de uma só mente e aliados íntimos?
Minha resposta é a seguinte: os falsos apóstolos, que haviam iludido os
gálatas a promoverem suas reivindicações pessoais, pretendiam obter favor
ao fingirem haverem sido comissionados pelos próprios apóstolos. Sua gran-
de influência junto aos gálatas, surgiu justam ente do fato de insinuarem que
representavam os apóstolos e comunicavam uma mensagem da parte deles.
Eles, porém, afirmaram que Paulo não deveria deter 0 nome e nem a autorida-
de de apóstolo. Objetavam que ele não fora escolhido por nosso Senhor como
um dentre os doze, que jamais fora reconhecido pelo colégio [apostólico]
como apóstolo e que não havia recebido sua doutrina diretam ente de Cristo
ou mesmo dos apóstolos. O alvo de tudo isso era não só minar ao máximo a
autoridade de Paulo, mas ainda colocá-lo como simples membro do rebanho,
muito abaixo até mesmo daqueles que fizeram tais insinuações.
Se esta situação houvesse m eram ente perm anecido na esfera pessoal,
não haveria dificuldade para Paulo ser reconhecido como um discípulo ordiná-
rio. Mas quando percebeu que sua doutrina começava a perder credibilidade
e autoridade, não lhe era mais possível perm anecer em silêncio. Ele tinha
14 · 0 Tema da Epístola aos Efésios

agora o dever de resisti-los com ousadia. Quando Satanás não ousa atacar
abertam ente a doutrina, seu próximo estratagem a é diminuir sua autoridade
através de ataques indiretos. Portanto, lembremos que, ao atacarem a Paulo,
estavam realmente atacando a veracidade do evangelho. Se ele perm itisse ser
despojado das honras do apostolado, seguir‫־‬se‫־‬ia que reivindicara 0 que não
lhe pertencia de fato e de verdade, e essa falsa ostentação torna-lo-ia suspeito
em outras áreas. Desse fato tam bém teria dependido a confiabilidade de sua
doutrina; pois tão pronto a teriam considerado como provinda de um discípu-
10 ordinário e não de um apóstolo de Cristo.
Em contrapartida, ele estava sendo lançado nas som bras pelo brilhan-
tismo de grandes nomes. Aqueles que reivindicavam 0 patrocínio de Pedro,
Tiago e João reivindicavam tam bém autoridade apostólica [para si]. Não ti-
vesse Paulo vigorosamente resistido a essa ostentação, ele teria se rendido à
falsidade, deixando que a verdade fosse tripudiada em sua pessoa. Ele, pois,
reage energicamente, de duas maneiras: ele era um apóstolo designado pelo
Senhor; e não era em nada inferior aos demais, senão que se equiparava a
eles em direito e dignidade, assim como participava de seu título ‫ ־‬apóstolo.
Ele poderia, na verdade, ter negado que aqueles im postores fossem enviados
ou comissionados por Pedro e seus colegas. Mas apresenta uma defesa mui-
to mais séria, dizendo que ele nem mesmo havia se subm etido aos próprios
apóstolos. Pois se tivesse divergido, te 1‫־‬-se-ia suspeitado que punha em dúvida
sua própria causa.
Jerusalém era a mãe de todas as igrejas. Pois 0 evangelho fluíra dali para
o mundo inteiro, e com justiça poderia ser chamada de a principal sede (pri-
marias sedes) do reino de Cristo. Qualquer um que chegasse em outras igrejas,
vindo de lá, era recebido com 0 devido respeito. Muitos, porém, se enchiam
de vão orgulho por se terem familiarizado com os apóstolos, ou, ao menos,
por terem aprendido em sua escola. Portanto, nada lhes satisfazia senão 0 que
haviam visto em Jerusalém. Não só rejeitavam, mas im prudentem ente conde-
navam, cada costum e que não estivesse em vigor ali. Esse com portam ento
insolente torna-se ainda mais pernicioso, quando se pretende que a prática de
uma igreja local se faça lei universal. Às vezes nos tornam os tão afeiçoados a
um mestre ou a um lugar, que, sem qualquer senso crítico, passam os a impor
a opinião dessa única pessoa ou os costum es desse único lugar a todas as pes-
soas e a todos os lugares, como se fossem universais. E tal atitude é ridícula
0 Tema da Epístola aos Efésios · 15

além de que, muitas vezes há tam bém alguma dose de ambição nela presente;
aliás, um espírito excessivam ente crítico é sem pre ambicioso.
Retornemos a esses falsos apóstolos. Se tivessem simplesmente, movi-
dos por sua pervertida rivalidade, tentado estabelecer por toda parte 0 uso
daquelas cerimônias, como haviam sido observadas em Jerusalém, já estariam
pecando gravemente, porquanto é injusto transform ar um costum e diretamen-
te numa regra. O pior mal, porém, era a sua im piedosa e perigosa doutrina, a
qual aprisionava as consciências humanas por meio da religião; e faziam a
justificação depender de sua observância. E assim descobrim os por que Paulo
defendia seu apostolado com tanta tenacidade, e por que ele se contrastava
com os demais apóstolos.
Ele segue este tem a até ao final do segundo capítulo, onde ele passa a
argum entar em torno de seu principal assunto, ou seja: que somos justificados
gratuitam ente aos olhos de Deus, e não mediante as obras da lei. E extrai sua
defesa do seguinte argumento: se as cerimônias não têm qualquer poder de
justificar, então a sua observância é desnecessária. Ele, contudo, não trata só
de cerimônias, mas discute as obras em geral; de outra forma, o argumento
como um todo seria inconsistente.
Se alguém sentir que isso é um tanto forçado, então que 0 mesmo con-
sidere duas coisas. Primeiramente, a questão não pode ser estabelecida sem
que se admita 0 princípio geral de que somos justificados unicam ente pela
graça de Deus; e este princípio põe de lado não apenas as cerimônias, mas
igualmente outras obras. Em segundo lugar, Paulo não estava tão preocupado
com a questão das cerimônias, mas com a im piedosa noção de que obtem os a
salvação pelas obras. Observemos, portanto, que ele começa de forma apro-
priada, trazendo à luz, de pronto, os princípios apropriados para a defesa de
seu argumento. Era indispensável indicar a fonte, para que seus leitores sou-
bessem que a controvérsia não visava a questões sem importância, e, sim, se
preocupava com a matéria mais im portante de todas, a saber: a forma como
obtem os a salvação.
Equivoca-se, portanto, quem supõe que o apóstolo limitou-se tão-so-
m ente à questão que envolvia cerimônias, pois esse assunto, por si só, não
se sustentaria. Temos um exemplo similar em Atos 15.2. Surgiram disputas
e contendas se a observância de cerimônias era necessária. Na discussão, 0

apóstolo fala do fardo insuportável da lei e do gracioso perdão dos pecados.


16 · 0 Tema da Epístola aos Efésios

Qual foi seu propósito nisso? Parece uma digressão absurda; mas na verdade
não 0 era, pois um erro particular não pode ser refutado satisfatoriam ente a
menos que um princípio universal seja admitido. Por exemplo, se tenho de
debater acerca da ingestão de carne proibida, não falarei som ente acerca de
alimentação, mas também me municiarei com a doutrina geral, ou seja: que
autoridade têm as tradições humanas de obrigar a consciência? Citarei 0 ver-
sículo que revela que só existe um Legislador que tem 0 poder de salvar e de
destruir (Tg 4.12). Em suma, Paulo, aqui, argumenta negativamente do geral
para 0 particular, que é 0 m étodo comum e mais natural em controvérsias. Por
meio de quais evidências e argumentos ele prova a afirmação de que somos
justificados unicam ente pela graça de Cristo, verem os em seu devido lugar.
Isso ele segue até ao final do terceiro capítulo.
No início do quarto capítulo, ele trata do uso correto das cerimônias,
e porque elas foram designadas, dem onstrando, ao mesmo tempo, que elas
estão agora abolidas. Para rem ediar 0 absurdo que poderia ocorrer em cer-
tas mentes sobre qual era a essência das cerimônias, e que as mesmas eram
sem qualquer préstim o, bem como 0 fato de que os pais desperdiçaram seu
tem po observando-as, 0 apóstolo apresenta duas afirmações: em seu devido
tempo, elas não eram supérfluas; e agora, com a vinda de Cristo, foram aboli-
das, porquanto ele é sua Verdade e seu Fim. E assim ele m ostra que devemos
perm anecer nEle [Cristo]. Também faz breve menção da diferença entre nossa
própria condição e a dos [antigos] pais. Segue-se que o ensino dos falsos após-
tolos é ímpio e perigoso, visto que ele obscurece a clareza do evangelho com
velhas som bras. Com este ensino, Paulo abranda algumas exortações a fim de
comover os sentim entos deles. Mais para 0 final do capítulo, ele adorna seu
argumento com uma bela alegoria.
No quinto capítulo, ele os exorta a m anter inabalável a liberdade obtida
pelo sangue de Cristo e a não deixar que suas consciências fossem enleadas
pelas opiniões humanas. Ao mesmo tempo, porém, lembra-lhes qual é 0 le-
gítimo limite da liberdade. Ele então aproveita a ocasião para realçar a real
ocupação dos cristãos, para que não viessem a desperdiçar seu tem po com
cerimônias e a negligenciar questões de real importância.
Capítulo 1

1. Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem por intermé-


dio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai,
que 0 ressuscitou dentre os mortos,
2. e todos os irmãos meus companheiros, às igrejas da Ga-
lácia,
3. graça a vós e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do [nos-
so] Senhor Jesus Cristo,
4. 0 qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para
nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade
de nosso Deus e Pai,
5. a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!

1. Paulo, apóstolo. Nas saudações de suas epístolas, Paulo costumava


usar 0 título apóstolo. Seu propósito em fazer isso era (como 0 dissemos
anteriormente -1 Coríntios 1.1) empregar a autoridade de seu ofício. Essa
autoridade não dependia do julgamento ou opinião dos homens, e sim,
exclusivamente, da chamada divina. Por isso, Paulo exigia a atenção dos
leitores com base no fato de que era um apóstolo. Lembremo-nos sempre de
que, na igreja, devemos ouvir somente a Deus e a Jesus Cristo, a quem Ele
designou para ser 0 nosso Mestre. Portanto, qualquer pessoa que presuma-
ter 0 direito de nos instruir deve falar em nome de Deus ou de Cristo.
Visto, porém, que a chamada de Paulo era questionada com veemên-
cia entre os crentes da Galácia, ele, ao dirigir-se a essa igreja, afirma a sua
18 · Comentário de Gálatas

chamada com maior vigor do que 0 faz em outras epístolas. Paulo não so-
mente declara que fora chamado por Deus, mas também afirma com muita
clareza que a chamada ocorrera não da parte de homens, nem por inter-
médio de homem algum. Esta afirmação, devemos observar, não se aplica
ao ofício que ele tinha em comum com os outros pastores (de communi
pastorum officio), e sim aoapostolado. Os autores das calúnias que Paulo
tinha diante de si não ousavam despojá-lo completamente da dignidade do
ministério cristão. Recusavam-se apenas a dar-lhe 0 título de apóstolo e a
colocá-lo nessa categoria.
Estamos falando do apostolado em si mesmo, pois a palavra após-
tolo é usada de duas maneiras. Às vezes, denota os pregadores do
evangelho, sem im portar-se com a classe a que pertenciam. Mas, nesta
passagem, apóstolo tem uma referência distinta à mais elevada ordem
na igreja (primarium in Ecclesia ordinem). Por conseguinte, Paulo é igual
a Pedro e aos outros doze.
A primeira cláusula - que ele fora chamado não da parte de homens
- declara algo que Paulo tinha em comum com todos os verdadeiros mi-
nistros de Cristo. Assim como nenhum homem deve tomar “esta honra
para si mesmo” (cf. Hb 5.4), assim também não está no poder dos homens
0concedê-la a quem quer que a queira. O governo da igreja pertence so-
mente a Deus. Portanto, a chamada não é legítima, se não procede dEle. No
que concerne à igreja, um homem que chegou ao ministério não por uma
boa consciência, mas por motivos ímpios, talvez foi vocacionado de modo
regular. Mas, nesta passagem, Paulo fala de uma chamada comprovada de
modo tão perfeito, que nada lhe faltava.
Alguém pode alegar: “Os falsos apóstolos não faziam, com freqüência,
essa mesma reivindicação?” Admito que sim. Aliás, eles faziam isso com
um estilo exaltado e desdenhoso, um estilo que os servos do Senhor não
ousavam empregar. Todavia, os falsos apóstolos não tinham aquela cha-
mada proveniente do céu, que Paulo tinha 0 direito de reivindicar.
A segunda cláusula, a de que fora chamado não por intermédio de
homem algum, se aplicava de modo particular aos apóstolos. Isso não era
0 que ocorria no caso de um pastor comum. Paulo mesmo, quando via­
Capítulo 1 · 19

jou por várias cidades em companhia de Barnabé, promoveu “a eleição de


presbíteros, em cada igreja” (At 14.23). E ordenou a Tito e a Timóteo que
fizessem a mesma coisa (1 Tm 5.17; Tt 1.5). Este é o método de escolher
pastores. Pois não temos 0 direito de esperar que Deus revele do céu os
nomes daqueles a quem ele escolheu.
No entanto, se a instrumentalidade humana não era incorreta, e
mesmo recomendável, por que Paulo a rejeitou em seu próprio caso? Já
mencionei que algo mais era necessário para provar que Paulo não era
apenas um pastor ou algum tipo de ministro do evangelho, visto que 0 as-
sunto em questão era seu apostolado. Era indispensável que os apóstolos
não fossem escolhidos da mesma maneira que os outros pastores, mas
pela ação direta do próprio Senhor. Foi assim que Cristo chamou os Doze
(Mt 10.1). E, quando um sucessor foi designado para preencher a vaga
deixada por Judas, a igreja não se aventurou a escolher um sucessor por
meio de votos, mas recorreu ao método de lançar sortes (At 1.26). Estamos
certos de que esse método não foi utilizado na escolha dos pastores. Por
que o método de lançar sortes foi usado na designação de Matias? Para
deixar evidente a ação de Deus, pois 0 apostolado tinha de ser distinguido
dos demais ministérios. Assim, para mostrar que não pertencia à ordem
comum de ministros (a vulgari ordine ministrorum), Paulo argumenta que
sua chamada procedia diretamente de Deus.
Então, por que 0 apóstolo afirma que não fora chamado por intermé-
dio de homens, enquanto Lucas registra que ele, Paulo, e Barnabé foram
chamados pela igreja de Antioquia? Alguns respondem que Paulo havia
desincumbido anteriormente os deveres de um apóstolo e que, por con-
seqüência, seu apostolado não se baseava em sua designação por parte
dessa igreja. Mas também pode ser objetado que esta foi a sua primeira
identificação como apóstolo dos gentios (entre os quais encontravam-se
os gálatas). A resposta mais correta e óbvia é que, nesta passagem, Paulo
não pretendia excluir totalmente a chamada por parte da igreja de Antio-
quia. Pretendia apenas mostrar que seu apostolado se fundamentava em
um direito mais elevado. Isto é verdade, pois aqueles que impuseram as
mãos sobre Paulo, em Antioquia, fizeram isso não por vontade própria,
20 · Comentário de Gálatas

mas em obediência a uma revelação divina.


“E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse 0 Espírito Santo: Se-
parai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado.
Então, jejuando, e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram”
(Atos 13.2,3).
Visto que Paulo fora chamado por revelação divina, indicado e desig-
nado pelo Espírito Santo, para ser apóstolo dos gentios, concluímos que
ele não foi apresentado por homens à igreja, embora a cerimônia de orde-
nação tenha sido acrescentada posteriormente.
Talvez alguém pretenda sugerir que este versículo tencionava
expressar um contraste entre Paulo e os falsos apóstolos. Não tenho
qualquer objeção a esta opinião. Pois os falsos apóstolos tinham 0 há-
bito de gloriarem-se no nome de homens. Se esse era 0 caso, Paulo
estaria dizendo: “Não im porta os nomes nos quais outros se gloriam
de haverem sido enviados, serei superior a eles, pois a minha comissão
veio da parte de Deus e de Cristo”.
Mas por Jesus Cristo e por Deus Pai. Paulo declara que Deus Pai
e Jesus Cristo lhe outorgaram 0 apostolado. Cristo é mencionado em
primeiro lugar, porque a sua prerrogativa é enviar e porque somos embai-
xadores dEle. Mas, para tornar a afirmação mais completa, 0 Pai é também
mencionado, como se Paulo estivesse dizendo: “Se existe alguém que não
considera 0 nome de Cristo suficiente para inspirar-lhe reverência, então
saiba que também recebi meu ofício da parte de Deus Pai.”
Que o ressuscitou dentre os mortos. A ressurreição de Jesus Cris-
to é o começo de seu reino e está intimamente ligada a este assunto. Os
gálatas traziam contra Paulo a censura de que ele não tivera comunicação
pessoal com Cristo, enquanto Ele esteve na terra. Por outro lado, Paulo ar-
gumenta que, como Cristo foi glorificado por meio de sua ressurreição, Ele
exerce sua autoridade no governo da igreja. Portanto, a chamada de Paulo
era mais nobre do que se tivesse ocorrido quando Cristo, ainda em exis-
tência mortal, 0 comissionasse para 0 ofício apostólico. Este fato merece
atenção. Paulo insinua que a tentativa de rejeitar sua autoridade envolvia
uma oposição maligna ao maravilhoso poder de Deus, demonstrado na
Capítulo 1 · 21

ressurreição de Cristo; visto que 0 próprio Pai celestial, que ressuscitara


a Cristo dentre os mortos, havia designado a Paulo para tornar conhecida
essa manifestação do seu poder.
2. E todos os irmãos meus companheiros. Tudo indica que Paulo cos-
tumava escrever em nome de muitos outros, julgando que, se os leitores
dessem menos importância a um único indivíduo, poderiam ouvir um gru-
po de pessoas e, assim, não desprezariam toda a igreja. 0 procedimento
habitual de Paulo era inserir as saudações dos irmãos no final da carta, em
vez de mencioná-los no início como co-autores da epístola. Pelo menos,
ele nunca menciona mais do que dois nomes - e nomes de pessoas bem
conhecidas. Mas, nesta passagem, Paulo inclui todos os irmãos. Assim, ele
0 adota 0 método contrário, ainda que com bons motivos. 0 consenso de
tantos irmão piedosos deve ter exercido grande influência em abrandar a
mente dos gálatas e em torná-los mais receptivos à instrução.
Às igrejas da Galácia. Esta era uma região extensa e, por isso, tinha
muitas igrejas espalhadas em sua área. Não é surpreendente 0 fato de que
0termo igreja, que implica unidade de fé, tenha sido atribuído aos crentes
da Galácia, os quais quase apostataram totalmente de Cristo? Eu respondo:
visto que professavam ser cristãos, adoravam 0 Deus único, observavam
as ordenanças e desfrutavam de ministério evangélico, eles tinham as mar-
cas externas de uma igreja (Ecclesiae insignia). Nem sempre encontramos
nas igrejas a medida de pureza desejada. Até as igrejas mais puras têm
suas máculas. E algumas são caracterizadas não por algumas poucas man-
chas, e sim por deformidade completa. Embora as doutrinas e práticas de
uma comunidade talvez não satisfaçam, em todos os aspectos, os nossos
desejos, não devemos afirmar imediatamente que seus defeitos são moti-
vo suficiente para retirarmos dela 0 nome de igreja. Paulo manifesta uma
ternura de disposição que está longe dessa atitude. No entanto, 0 nosso
reconhecimento de certas comunidades como igrejas de Cristo tem de ser
acompanhado por uma condenação de tudo que é impróprio e defeituoso
nelas. Mas não devemos imaginar que, onde existe uma igreja, tudo nessa
igreja tem de ser perfeito.
Digo isso porque os papistas, apropriando-se da palavra igreja, acham
22 · Comentário de Gálatas

que tudo quanto decidem impor-nos tem de ser considerado como defi-
nitivo. Mas a condição e a forma da Igreja de Roma são muito diferentes
do que existia nas igrejas da Galácia. Se Paulo vivesse hoje, veria as mi-
serãveis e horríveis ruínas de uma igreja, e não um edifício. Em suma, 0

vocábulo igreja é aplicado a qualquer porção da igreja, como uma figura


de linguagem na qual a parte é tomada pelo todo, mesmo quando a porção
referida não corresponde exatamente ao nome igreja.
3. Graça a vós outros e paz. Esta forma de saudação também ocorre
em outras epístolas. Paulo desejava que os gálatas desfrutassem de ami-
zade com Deus e, com esta amizade, de todas as coisas boas; pois 0 favor
de Deus é a fonte de todo tipo de prosperidade. Paulo apresenta as suas
orações tanto a Cristo quanto ao Pai, porque sem Cristo não pode haver
nem graça nem verdadeira prosperidade.
4. O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados. Paulo co-
meça esta carta enaltecendo a graça de Cristo, para atrair a atenção dos
gálatas e fixá-la em Cristo. Porque, se tivessem apreciado corretamente
0 benefício da redenção, jamais teriam caído em opiniões contrárias ao
cristianismo. Aquele que conhece a Cristo de maneira apropriada, con-
templa-0 com sinceridade e apega-se a Ele com afeições intensas, esse é
absorvido na contemplação dEle e não deseja qualquer outro objeto. 0
melhor antídoto para purificar nossa mente de quaisquer erros ou supers-
tições é guardar na lembrança o nosso relacionamento com Cristo e os
benefícios que Ele nos outorgou.
As palavras “0 qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados”
tinham 0 propósito de transmitir aos crentes da Galácia uma doutrina so-
bremodo importante: o sacrifício de Si mesmo, que Cristo ofereceu ao Pai,
não pode ser comparado com nenhum outro tipo de satisfação dos peca-
dos; por isso, em Cristo, e somente nEle, devem ser buscadas a expiação
dos pecados e a justiça perfeita; e a maneira pela qual somos redimidos
nEle deve estimular nossa mais elevada admiração. 0 que Paulo atribui a
Cristo nesses versículos, ele 0 atribui, com igual propriedade, a Deus Pai
em outras partes da Escritura. Por um lado, o Pai decretou esta expiação,
de conformidade com 0 seu eterno propósito, e deu esta prova de seu
Capítulo 1 · 23

amor para conosco: não poupou 0 seu Filho unigênito, antes, por todos
nós O entregou (Rm 8.32). Cristo, por outro lado, ofereceu-se a Si mesmo
em sacrifício, para reconciliar-nos com Deus. Logo, concluímos que a mor-
te de Cristo é a satisfação pelos pecados.
Para nos desarraigar. De modo semelhante, 0 apóstolo declara o pro-
pósito de nossa redenção, ou seja: que Cristo, por meio de sua morte, nos
comprasse para sermos sua propriedade peculiar. Isto acontece quando
somos separados do mundo. Pois, enquanto somos do mundo, não perten-
cemos a Cristo. A palavra mundo é usada como substituto da corrupção
que existe no mundo, da mesma maneira como é empregada em 1 João
(bem como em muitos outros lugares), que diz: “0 mundo inteiro jaz no
maligno” (1 Jo 5.19). João também a usa de modo idêntico em seu evange-
lho, quando recorda estas palavras do Salvador “Não peço que os tires do
mundo, e sim que os guardes do mal” (Jo 17.15). Neste versículo, a palavra
mundo significa a vida presente.
0 que significa mundo nesta passagem? Significa os homens separa-
dos do reino de Deus e da graça de Cristo. Pois, enquanto 0 homem vive
para si mesmo, está completamente condenado. 0 mundo é, portanto,
contrastado com a regeneração, assim como a natureza humana é con-
trastada com a graça, e a carne, com 0 Espírito. Os que nascem do mundo
nada possuem, exceto pecado e perversidade, não por criação, e sim por
corrupção. Cristo morreu pelos nossos pecados, a fim de remir-nos ou se-
parar-nos do mundo.
Deste mundo perverso. Ao acrescentar 0 adjetivo perverso, 0 apósto-
10 tencionavamostrar que falava da corrupção ou depravação que procede
do pecado, e não das criaturas de Deus ou da vida física. No entanto, pelo
uso desta mesma palavra, Paulo destrói todo orgulho humano. Ele declara
que, sem a renovação da natureza humana que é realizada pela graça de
Cristo, em nós há somente perversidade. Pertencemos ao mundo; e en-
quanto Cristo não nos redime do mundo, este nos domina e vivemos para
ele. Entretanto, embora os homens se deleitem em sua suposta excelência,
eles são indignos e depravados, não segundo a sua própria opinião, mas
conforme 0 julgamento do Senhor, declarado nesta passagem pelas pala­
24 · Comentário de Gálatas

vras do apóstolo.
Segundo a vontade. Paulo indica a fonte original da graça: 0 propó-
sito de Deus. “Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu 0 seu Filho
unigênito” (Jo 3.16). Mas devemos observar que Paulo costumava expor
0 propósito de Deus como algo que excluía toda compensação ou mérito
humanos. Assim, neste versículo, “vontade” denota aquilo que é chamado
de beneplácito. O significado é que Cristo sofreu por nós, não porque éra-
mos dignos ou porque fizemos algo que exige a reação dEle. Cristo sofreu
porque esse era 0 propósito de Deus.
De nosso Deus e Pai eqüivale a “de Deus, que é nosso Pai”.
5. A quem seja a glória. Com esta repentina ação de graças, 0
apóstolo tencionava despertar, poderosamente, os seus leitores a consi-
derarem aquele dom inestimável que haviam recebido de Deus e, desta
maneira, prepararem sua mente para receber instrução. Mas também
pode ser considerada uma exortação geral. Toda ocasião que nos traz à
mente a misericórdia de Deus deve ser aceita como uma oportunidade
para darmos glória ao Senhor.

6. Admira-me que estejais passando tão depressa daquele


que vos chamou na graça de Cristo para outro evangelho,
7. 0 qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam
e querem perverter 0 evangelho de Cristo.
8. Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo vindo do céu vos
pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado,
seja anátema.
9. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos
prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja
anátema.

6. Admira-me. 0 apóstolo começa com uma repreensão, embora


um tanto mais branda do que os leitores mereciam. Ele prefere dirigir
sua ira contra os falsos apóstolos, como veremos. Paulo acusa os gála-
Capítulo 1 · 25

tas de apostasia, não som ente em relação ao ensino do apóstolo, mas


em relação ao próprio Cristo. Pois lhes seria impossível preservar seu
compromisso com Cristo sem 0 reconhecimento de que Ele os havia
resgatado, graciosamente, da escravidão da lei. Mas essa crença não
pode ser harm onizada com as idéias concernetes à obrigação de guar-
dar as cerimônias, idéias que os falsos apóstolos haviam incutido neles.
Por isso, os crentes gálatas estavam afastados de Cristo, não porque
rejeitassem totalm ente o cristianismo, e sim porque a corrupção das
doutrina do cristianismo ocorrera em tal proporção, que só lhes resta-
va um Cristo imaginário.
De modo semelhante, em nossos dias, os papistas decidiram ter um
Cristo dividido e mutilado - e nada mais. Estão, portanto, separados de
Cristo. Estão saturados de superstições que são diretamente contrárias à
natureza de Cristo. Devemos observar atentamente que estamos separa-
dos de Cristo quando aceitamos opiniões incoerentes com seu ofício de
Mediador; porque a luz não tem comunhão com as trevas.
Com base neste mesmo princípio, 0 apóstolo chama isso de outro
evangelho, ou seja, um evangelho diferente do verdadeiro. Os falsos
apóstolos alegavam pregar 0 evangelho de Cristo. Todavia, ao mesclá-
10 com suas próprias invenções, que destruíam a força do evangelho,
eles tinham um evangelho falso, corrompido e espúrio. Ao usar 0 verbo
no tempo presente (“estais passando”), o apóstolo parecia dizer que os
crentes estavam apenas no processo de queda. Era como se ele estives-
se afirmando: “Ora, não digo que já estais completamente separados de
Cristo. Se esse fosse 0 caso, seria muito difícil retornardes ao caminho.
Agora, porém, neste momento crítico, não deis nenhum passo adiante;
retrocedei imediatamente”.
Daquele que vos chamou na graça de Cristo. Outras versões di-
zem: “De Cristo, que vos chamou pela graça”. Essa tradução, com a
qual concordamos, é mais simples. Ao dizer que foram chamados por
Cristo por meio da graça, o apóstolo tencionava ressaltar a malignidade
da ingratidão dos leitores. Separar-se do Filho de Deus, sob quaisquer
circunstâncias, é indigno e desonroso. Mas separar-se de Cristo, depois
26 · Comentário de Gálatas

de haver sido gratuitamente convidado a participar da salvação é uma


atitude ainda mais indigna. A bondade de Cristo para conosco torna ex-
tremamente abominável a nossa ingratidão para com Ele.
Tão depressa. Considerando quão depressa os crentes da Galácia
descobriram a sua carência de firmeza, percebemos que a sua culpa é
muito mais enfatizada. Não existe uma situação conveniente que justifi-
que 0 separarmo-nos de Cristo. Mas 0 fato de que os gálatas se afastaram
da verdade, logo que Paulo os deixou, inferia uma culpa mais profunda.
Assim como a ingratidão foi ressaltada mediante a sua comparação com
a graça do chamamento, assim também a circunstância de tempo é refe-
rida para magnificar a leviandade dos gálatas.
7 .0 qual não é outro. Alguns explicam assim esta afirmação: “Embora
não exista outro evangelho”; como se estivessem corrigindo a linguagem
do apóstolo, a fim de prevenir contra a suposição de que havia mais do
que um evangelho. No que concerne à explicação destas palavras, tenho
um ponto de vista simples a respeito delas; pois 0 apóstolo falava desde-
nhosamente sobre 0 ensino dos falsos apóstolos, considerando-o nada
mais do que um conjunto de confusão e destruição. Era como se Paulo
estivesse dizendo: “O que eles alegam? Com que bases atacam a doutrina
que tenho anunciado? Apenas vos perturbam e destroem o evangelho.
Isto é tudo que eles fazem”. Mas isso tem 0 mesmo significado, pois admi-
to que a expressão corrige 0 que Paulo dissera sobre 0 outro evangelho.
Paulo declarou que esse outro ensino não era 0 evangelho, e sim uma
distorção. Tudo 0 que eu queria dizer era que, em minha opinião, “outro”
significa “outra coisa”. Parece muito com a expressão de uso comum:
“Isto não significa nada, senão que você deseja enganar".
E querem perverter. Paulo os culpa de outro erro: praticar injúria
contra Cristo, ao se empenharem por perverter 0 evangelho. Este é um
erro sobremodo grave. A perversão é pior do que a corrupção. O apóstolo
acusa aqueles crentes com boas razões. Quando a glória da justificação
é atribuída a outrem, uma armadilha para a consciência das pessoas é
preparada e 0 Salvador não tem mais 0 seu lugar ali; e a doutrina do
evangelho é arruinada.
Capítulo 1 · 27

O evangelho de Cristo. Conhecer as principais doutrinas do evan-


gelho é uma questão de importância permanente. Quando estas são
atacadas, 0 evangelho é destruído. O acréscimo das palavras de Cristo
pode ser explicado de duas maneiras: ou que 0 evangelho veio de Cris-
to, como seu Autor, ou que simplesmente revela a Cristo. Sem dúvida, a
razão por que o apóstolo empregou estas palavras era descrever 0 verda-
deiro e genuíno evangelho, 0 único que é digno desse nome.
8. Mas, ainda que nós. À medida que apóstolo prossegue para defen-
der a autoridade de seu ensino, a sua confiança transparece. Em primeiro
lugar, Paulo afirma que a doutrina pregada por ele era 0 único evangelho
e que tentar subvertê-lo é uma atitude ímpia. Mas Paulo estava ciente de
que os falsos apóstolos poderiam argumentar: “Não nos sujeitaremos a
você em nosso desejo de manter 0 evangelho ou naqueles sentimentos de
respeito que costumamos nutrir pelo evangelho”. De modo semelhante,
em nossos dias, os papistas descrevem, com palavras fortes, a sacrali-
dade que atribuem ao evangelho e até beijam a Palavra com profunda
reverência; mas, quando trazidos à prova, eles se revelam como pessoas
que perseguem ferozmente a doutrina pura e simples do evangelho. Por
essa razão, Paulo não se satisfez com esta declaração geral, mas definiu 0
que é 0 evangelho e 0 que ele contém, afirmando que seu ensino é 0 evan-
gelho autêntico, capaz de resistir a qualquer investigação posterior.
Que proveito havia em professar respeito pelo evangelho e não sa-
ber 0 que ele significa? Para os papistas, que estão obrigados a confessar
a fé implícita, tal coisa poderia ser suficiente. Mas, para os verdadeiros
cristãos, não há fé onde não há conhecimento. A fim de que os gálatas, os
quais, ao contrário dos papistas, estavam dispostos a obedecer ao evan-
gelho, não vagueassem para lá e para cá, sem achar um fundamento em
que podiam se firmar, Paulo ordenou que permanecessem firmes em sua
doutrina. Ele exigiu uma confiança tão inabalável em sua pregação, que
pronunciou uma maldição sobre aqueles que ousassem contradizê-la.
Neste ponto, devemos observar que Paulo começa falando sobre si
mesmo, pois antecipa a calúnia que seus opositores lançariam sobre ele:
“Você deseja que tudo que fala seja recebido de modo inquestionável, tão
28 · Comentário de Gálatas

somente porque você mesmo 0 disse”. Para mostrar que não havia fun-
damento para essa calúnia, 0 apóstolo renuncia imediatamente 0 direito
de promover qualquer coisa contrária ao seu próprio ensino. Ele não
reivindica superioridade sobre os outros homens; apenas exige de todos,
que são iguais a ele mesmo, sujeição à Palavra de Deus.
Ou mesmo um anjo vindo do céu. Para destruir mais completamen-
te as pretensões dos falsos apóstolos, Paulo evoca os próprios anjos. Ele
disse que os anjos não deviam ser ouvidos, caso anunciassem algo dife-
rente, e que deviam ser considerados anátemas. Alguém pode imaginar
que era absurdo envolver os anjos numa controvérsia acerca da doutrina
de Paulo. Um ponto de vista correto a respeito do assunto nos capaci-
tará a perceber que este procedimento do apóstolo era conveniente e
necessário. Com toda certeza, é impossível os anjos do céu ensinarem
qualquer coisa além da pura verdade de Deus. Mas, quando havia con-
trovérsia a respeito da fé na doutrina que Deus revelara sobre a salvação
dos homens, Paulo não achava suficiente refutar a opinião dos homens,
sem refutar, ao mesmo tempo, a autoridade dos anjos.
Assim, não é supérfluo que 0 apóstolo pronuncie uma maldição
sobre os anjos, caso ensinassem outra doutrina, embora seu argumento
tenha por base uma impossibilidade. Essa linguagem exagerada deve
ter contribuído para fortalecer a confiança na pregação de Paulo. Seus
oponentes, mediante 0 uso de nomes famosos, tentavam atacar seu en-
sino e caráter. Ele os responde afirmando com ousadia que nem mesmo
os anjos são capazes de abalar sua autoridade. Isto não é, de modo al-
gum, uma ofensa aos anjos. Eles foram criados para promover, mediante
todos os meios possíveis, a glória de Deus. Aquele que se esforça, de
maneira piedosa, para cumprir esse mesmo objetivo, embora por meio
de uma citação aparentem ente desrespeitosa dos anjos, não prejudica a
dignidade deles. Esta linguagem não só expressa, de maneira impressio-
nante, a majestade da Palavra de Deus, mas também transm ite à nossa
fé uma extraordinária confirmação, enquanto, confiando na Palavra de
Deus, nos sentimos à vontade para tratar os anjos com desdém e me-
nosprezo.
Capítulo 1 · 29

As palavras “seja anátema” têm de significar “considerem-no aná-


tem a”. Quando fizemos a exposição de 1 Coríntios 12.3, falamos sobre a
palavra ( ανάθεμα). Nesta passagem, ela denota amaldiçoar e corresponde
ao termo hebraico ‫ ( ה]־ם‬hhêrèm ).
9. Como já dissemos. Deixando de lado, agora, a menção de si mes-
mo e dos anjos, Paulo repete a afirmação anterior: que não era lícito a
qualquer crente transmitir alguma coisa contrária ao que havia aprendi-
do. Observe a expressão “daquele que recebestes”. O apóstolo insiste
uniformemente que os crentes da Galácia não deviam considerar 0 evan-
gelho como algo desconhecido, que existia apenas na imaginação deles.
Paulo os exorta a nutrir a convicção inabalável e séria de que a doutrina
que haviam recebido e aceitado era 0 verdadeiro evangelho de Cristo.
Nada pode ser mais incoerente com a natureza da fé do que um aceitação
débil e vacilante. Qual será a conseqüência, se 0 desconhecimento da na-
tureza e caráter do evangelho levar à hesitação? Por isso, 0 apóstolo lhes
ordena que considerem como demônios aqueles que ousam apresentar
evangelho diferente do seu - isto é expresso no termo “outro evangelho”
- um evangelho ao qual são acrescentadas invenções dos homens. Pois
a doutrina dos falsos apóstolos não era totalmente contrária ou mesmo
diferente da doutrina de Paulo; era corrompida por falsos acréscimos.
Quão pobres os subterfúgios aos quais recorrem os papistas, a fim
de esquivarem-se dessa afirmação de Paulo! Primeiramente, eles nos di-
zem que não temos mais, em nosso poder, todo 0 ensino de Paulo e que
não podemos saber 0 que esse ensino continha, exceto se esses crentes,
que 0 ouviram, ressuscitassem dos mortos e aparecessem como teste-
munhas. Em segundo lugar, os papistas afirmam que nem todo acréscimo
é proibido e que somente os outros evangelhos são condenados. Se nos
interessa conhecer a doutrina de Paulo, ela pode ser aprendida com mui-
tas clareza em seus escritos. À luz desse evangelho, torna-se evidente
que todo 0 papado é uma perversão terrível. E, observamos em conclu-
são, a natureza do caso demonstra que toda doutrina espúria está em
desarmonia com a pregação de Paulo. Portanto, esses sofismas não aju-
darão em nada os papistas.
30 * Comentário de Gálatas

10. Porventura, procuro eu, agora, 0 favor dos homens ou 0 de


Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda
a homens, não seria servo de Cristo.
11. Faço-vos, porém, saber, irmãos, que 0 evangelho por mim
anunciado não é segundo 0 homem,
12. porque não 0 recebi, nem 0 aprendi de homem algum, mas
mediante revelação da parte de Jesus Cristo.
13. Porque ouvistes qual foi 0 meu proceder outrora no juda-
ísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e
a devastava.
14. E, na minha nação, quanto ao judaísmo, avantajava-me a
muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das
tradições de meus pais.

Depois de enaltecer, com profunda confiança, a sua pregação, 0 após-


tolo mostra, agora, que isso não era uma exaltação inconveniente e fútil.
Paulo usa dois argumentos a fim de provar isso. O primeiro é que ele não
era motivado por ambição, ou por bajulação, ou pela paixão de acomodar-
se à opinião dos homens. O segundo argumento, bem mais forte, é que ele
mesmo, Paulo, não era 0 autor do evangelho e que pregava com fidelidade
0 que recebera de Deus.
10. Porventura, procuro eu, agora, 0 favor dos homens ou o de
Deus? A ambigüidade da construção grega, nesta passagem, causou diver-
sas explicações. Alguns a traduzem assim: “Estou, agora, buscando 0 favor
dos homens ou 0 de Deus?” Outros consideram “Deus” e “homens” como
que signifcando interesses divinos e humanos. Este sentido concordaria
bem com o contexto, se não fosse um grande afastamento do sentido das
palavras. Prefiro 0 ponto de vista que é mais natural, pois era comum ao
idioma grego deixar subtendida a preposição ukata”, de acordo com.
Paulo falava não sobre 0 assunto de sua pregação, mas sobre 0 propó-
sito de sua mente, que poderia se referir mais convenientemente a Deus, e
não aos homens. A disposição do pregador pode exercer alguma influência
em sua doutrina. Assim como a corrupção da doutrina resulta de ambição,
Capítulo 1 · 31

de avareza ou de outro desejo pecaminoso, assim também a verdade é


mantida em sua pureza pela instrumentalide de uma consciência limpa.
Por isso, 0 apóstolo contende afirmando que sua doutrina é pura, porque
não é modificada para satisfazer os homens.
Ou procuro agradar a homens? Esta segunda cláusula é um pouco
diferente da primeira, pois 0 desejo de obter favor é uma das razões para
alguém “agradar a homens”. Quando essa ambição reina em nosso cora-
ção, de modo que desejamos regular nossa linguagem, para obter 0 favor
dos homens, nosso ensino não é sincero.
Paulo declara que estava limpo desse erro. E, para repelir com mais
ousadia a insinuação caluniosa, ele emprega a forma interrogativa de dis-
curso. Pois as interrogativas têm maior importância, quando damos aos
nossos oponentes uma chance de resposta, se tiverem algo a dizer. Isto
expressa a grande ousadia que Paulo extraía do testemunho de uma boa
consciência; ele sabia que cumprira seu dever de tal modo que não estava
sujeito a reprovações daquele tipo (At 23.1,2; 2 Co 1.12).
Se agradasse ainda a homens. Que afirmação extraordinária! Ho-
mens ambiciosos (ou seja, aqueles que buscam o aplauso dos homens)
não podem servir a Cristo. Paulo disse a respeito de si mesmo que renun-
ciara espontaneamente a estima dos homens, a fim de consagrar-se por
completo ao serviço de Cristo. E, neste aspecto, ele contrasta sua posição
presente com a que ocupara em uma época anterior de sua vida. Paulo
fora considerado com a mais elevada estima, recebera elogios em todos
os lugares; e, por isso, se houvesse resolvido agradar a homens, não teria
achado necessário mudar de condição.
A palavra homens é empregada aqui em um sentido restrito; porque
os ministros de Cristo não devem agir com o propósito de desagradar
os homens. Mas há diferentes classes de homens. Aqueles para os quais
Cristo “é a preciosidade” (1 Pe 2.7) são os homens a quem devemos
nos esforçar para agradar em Cristo (1 Pe 2.7). Aqueles que resolvem
colocar suas próprias paixões no lugar da verdadeira doutrina, a esses
não devemos agradar de modo algum. E os pastores piedosos e ínte-
gros sem pre acharão necessário lutar contra as ofensas daqueles que
32 · Comentário de Gálatas

resolvem satisfazer, em todos os aspectos, as suas paixões. Pois a igreja


sempre terá hipócritas e ímpios, que preferem suas próprias cobiças
à Palavra de Deus. E mesmo as pessoas boas são tentadas pelo dia-
bo, quer por meio de ignorância, quer por meio de alguma fraqueza, a
sentirem-se insatisfeitas com as advertências fiéis de seu pastor. Nosso
dever, portanto, é não ficarmos alarmados diante de qualquer tipo de
ofensa, contanto que, ao mesmo tempo, não estimulemos, em mentes
frágeis, preconceito contra 0 próprio Cristo.
Muitos interpretam esta passagem de maneira diferente, como se
ela significasse: “Se eu agradasse aos homens, não seria servo de Cristo.
Admito isso, mas quem me acusará disso? Quem não percebe que não
estou pleiteando 0 favor dos homens?” Prefiro 0 primeiro sentido, ou
seja, que Paulo estava mostrando quanta estima humana ele renuncia-
ra, para dedicar-se a Cristo.
11. Faço-vos, porém, saber. Este é 0 argumento mais poderoso, 0 eixo
principal, por assim dizer, em torno do qual gira toda a questão, a saber,
que ele não recebeu 0 seu evangelho da parte de homens, mas lhe foi reve-
lado por Deus mesmo. E uma vez que isto podia ser negado, Paulo oferece
uma prova fundamentada em um relato dos acontecimentos. Para trans-
mitir maior autoridade à sua afirmação, ele declara que não está falando
sobre um assunto duvidoso, mas sobre um assunto que está disposto a
comprovar. Assim, Paulo se apresenta de maneira bem adequada a essa
questão bastante séria. Ele afirma que seu evangelho “não é segundo o
homem”, não tem qualquer sabor humano ou não provém de iniciativa
humana. E para comprovar isso, acrescenta que não fora instruído por
qualquer mestre humano.
12. Porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum. 0
quê? A autoridade da mensagem diminui, quando alguém que é instruído
pela instrumentalidade de homens se torna um mestre? Temos de levar em
conta as armas com que os falsos apóstolos atacavam a Paulo, alegando
que seu evangelho era deficiente e espúrio; que 0 obtivera de um mestre
inferior ou incompetente e que sua instrução imperfeita o levava a fazer
asseverações imprudentes. Orgulhavam-se, por outro lado, de que haviam
Capítulo 1 · 33

sido instruídos pelos mais preeminentes apóstolos, cujos pontos de vistas


eles, os falsos apóstolos, conheciam muito bem. Era, portanto, necessário
que Paulo expusesse sua doutrina em oposição a todo o mundo e a alicer-
çasse no fato de que não 0 aprendera nas escolas de qualquer homem, e
sim mediante revelação da parte de Deus. De nenhuma outra maneira ele
poderia ter repelido as calúnias dos falsos apóstolos.
A objeção de que Ananias (At 9.10) fora mestre de Paulo pode ser
facilmente respondida. A instrução divina que Paulo recebera, por inspira-
ção direta, não tornava impróprio que outro homem fosse empregado para
instrui-lo, se isso trouxesse importância ao seu ministério público. Como
já dissemos, Paulo teve uma chamada direta da parte de Deus, por meio
de revelação, e foi ordenado pelos votos e aprovação solene de homens.
Estas afirmações não se contradizem.
13. Porque ouvistes qual foi o meu proceder. Toda esta narrativa
foi introduzida como parte do argumento de Paulo. Ele relata que, durante
toda a sua vida, nutrira tão profunda rejeição pelo evangelho, que se tor-
nara um inimigo mortal e um destruidor do cristianismo. Isso nos leva a
inferir que a conversão de Paulo foi divina. E, de fato, ele convoca os gála-
tas a serem testemunhas de um assunto indubitável, para remover toda
controvérsia concernente ao que ele diria.
Paulo se igualou aos que eram de sua idade, pois comparar-se aos de
idade superior teria sido inadequado. Quando ele falou sobre as tradições
de meus pais, referiu-se não aos acréscimos que haviam corrompido a lei de
Deus, e sim à própria lei de Deus, na qual fora educado desde sua infância
e que recebera pelas mãos de seus pais e ancestrais. Paulo vivera apegado
firmemente aos costumes de seus pais, e não teria sido fácil separá-lo desses
costumes, se 0 Senhor não o tivesse atraído por meio de um milagre.

15. Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e


me chamou pela sua graça, aprouve
16. revelar seu Filho em mim, para que eu 0 pregasse entre os
gentios, sem detença, não consultei carne e sangue,
34 · Comentário de Gálatas

17. nem subi a Jerusalém para os que já eram apóstolos antes


de mim, mas parti para as regiões da Arábia e voltei, outra
vez, para Damasco.
18. Decorridos três anos, então, subi a Jerusalém para avisitar-
me com Cefas e permaneci com ele quinze dias;
19. e não vi outro dos apóstolos, senão Tiago, 0 irmão do
Senhor.
20. Ora, acerca do que vos escrevo, eis que diante de Deus
testifico que não minto.
21. Depois, fui para as regiões da Síria e da Cilícia.
22. E não era conhecido de vista das igrejas da Judéia, que
estavam em Cristo.
23. Ouviam somente dizer: Aquele que, antes, nos perseguia,
agora, prega a fé que, outrora, procurava destruir.
24. E glorificavam a Deus a meu respeito.

15. Quando... ao que me separou... aprouve... Esta é a segunda parte


da narrativa da miraculosa conversão de Paulo. Ele diz, primeiramente,
que havia sido chamado pela graça de Deus para pregar a Cristo entre os
gentios. Em seguida, Paulo diz que, tão logo fora chamado, prosseguiu,
sem hesitação e sem consultar os apóstolos, à realização de sua obra,
sentindo-se convicto de que a obra lhe havia sido designada por Deus.
Na construção das palavras, Esrasmo difere da Vulgata. Ele as une assim:
“Quando aprouve a Deus que eu pregasse a Cristo entre os gentios, 0 Deus
que me chamou com 0 propósito de revelar a Cristo por meu intermédio”.
Mas prefiro a tradução antiga, porque Cristo havia se revelado a Paulo,
antes que este recebesse a ordem de pregar. Admitindo que a tradução de
Erasmo é correta, traduzindo (ένέμοι) com 0 sentido de “por meu intermé-
dio”, teríamos de dizer que a cláusula para que eu 0 pregasse é introduzida
para descrever o modo da revelação.
À primeira vista, a argumentação de Paulo não parece muito convincen-
te. Logo que se converteu ao cristianismo, ele assumiu 0 ofício da pregação
do evangelho, sem consultar os apóstolos; mas isso não significa que ha­
Capítulo 1 · 35

via sido designado para esse ofício mediante revelação de Jesus Cristo. No
entanto, Paulo usa vários argumentos, que, considerados juntos, são reco-
nhecidos como suficientemente fortes para estabelecer a sua conclusão.
Paulo argumenta, em primeiro lugar, que fora chamado pela graça de Deus;
em seguida, que seu apostolado fora reconhecido pelos demais apóstolos;
e os demais argumentos são apresentados no restante da epístola. 0 leitor
deve, portanto, lembrar-se de apreciar a narrativa como um todo e de ex-
trair a inferência não de partes isoladas, mas de toda a epístola.
Que me separou. Esta separação era 0 propósito de Deus pelo qual
Paulo foi designado ao ofício apostólico, antes mesmo de nascer. A chama-
da ocorreu depois, no tempo certo, quando o Senhor tornou conhecida a
sua vontade a respeito do apóstolo e lhe ordenou que realizasse a obra.
Sem dúvida alguma, Deus havia decretado, antes da fundação do mundo,
0 que faria a respeito de cada um de nós e destinado a cada um, mediante

seu conselho secreto, 0 devido lugar na vida. Mas os escritores sagrados


referem-se com freqüência a estes três passos: a predestinação divina e
eterna; a destinação desde 0 ventre; e a chamada, que é 0 efeito e 0 cum-
primento de ambas.
A palavra do Senhor vinda a Jeremias, embora tenha sido expressa
de modo um pouco diferente do que Paulo disse nesta passagem, tem 0
mesmo sentido: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te co-
nheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constitui profeta às
nações” (Jr 1.5). Antes mesmo de existirem, Jeremias e Paulo foram sepa-
rados: aquele, para 0 ofício de profeta; este, para 0 ofício de apóstolo. Mas
Deus é revelado como quem nos separa desde 0 ventre materno, visto que
0 propósito de sermos enviados ao mundo é que Ele realize em nós 0 que
já decretou. A chamada é adiada até ao tempo próprio, quando Deus nos
tiver preparado para a tarefa que nos manda realizar.
Então, as palavras de Paulo podem ser entendidas assim: “Quando
aprouve a Deus revelar, por meu intermédio, o seu Filho, Ele me chamou,
porque já me havia separado”. Paulo quis mostrar que sua chamada depen-
dia da eleição secreta de Deus e que fora ordenado apóstolo, não porque,
por esforço próprio, se preparara para desempenhar esse nobre ofício ou
36 * Comentário de Gálatas

porque Deus 0 considerara digno de perfazê-lo, e sim porque, antes mes-


mo de nascer, ele já havia sido separado pelo desígnio secreto de Deus.
Em sua maneira habitual, Paulo costumava dizer que a causa de sua
chamada era o beneplácito de Deus. Isso merece a nossa atenção, pois nos
mostra que devemos nossa chamada à graça de Deus; que fomos eleitos e
adotados para a vida eterna e que Ele tem 0 desígnio de usar nossos ser-
viços. Mostra-nos que, de outro modo, seriamos completamente inúteis e
que Ele determina para nós uma chamada legítima, na qual podemos ser
usados. O que Paulo possuía antes de nascer, para ter direito a tão elevada
honra? De modo semelhante, devemos crer que é inteiramente pelo dom
de Deus, e não pelo fruto de nossos próprios esforços, que temos sido
chamados para administrar a sua igreja.
As distinções sutis nas quais têm entrado alguns comentadores, ao
explicar a palavra ‘separou’ são completamente estranhas ao assunto. Eles
dizem que Deus nos separou não porque nos infundiu qualquer disposição
mental peculiar que nos distingue das outras pessoas, e sim porque Ele
nos designou por intermédio de seu propósito. Paulo atribuiu, com muita
clareza, sua chamada à livre graça de Deus, quando declarou que a sepa-
ração espontânea desde 0 ventre materno foi a origem da chamada; mas,
apesar disso, repetiu a afirmação direta de que, ao exaltar a graça de Deus,
podia excluir todos os motivos de vangloria e testificar sua própria grati-
dão a Deus. Sobre este assunto, Paulo costumava falar livremente, mesmo
quando não tinha qualquer controvérsia com os falsos apóstolos.
16. Revelar seu Filho em mim. Se lermos: “Revelar... por meu intermé-
dio”, teremos 0 propósito do apostolado, ou seja: tornar Cristo conhecido.
Como isso devia ser realizado? Por pregá-lo entre os gentios, 0 que os falsos
apóstolos consideravam uma ofensa. Mas creio que έν έμοι corresponde a
uma expressão idiomática hebraica que significa “a mim”, pois a partícula
hebraica “X (beth) é, às vezes, redundante, como 0 sabem todos os que co-
nhecem essa língua. Portanto, 0 significado é que Cristo foi revelado a Paulo,
não com 0 propósito de que desfrutasse sozinho do conhecimento de Cristo
e retivesse esse conhecimento silenciosamente em seu coração, mas para
que pregasse entre os gentios 0 Salvador que ele mesmo conhecera.
Capítulo 2 · 37

Sem detença, não consultei. Consultar carne e sangue significa tomar


conselho de carne e sangue. No que concerne ao significado das palavras, a
intenção de Paulo era excluir todos os conselhos humanos. Esta expressão
geral, conforme transparecerá do contexto, envolve todos os homens, com
toda a prudência e a sabedoria que possuem. Paulo menciona os apóstolos
a fim de exibir, com bastante ênfase, a chamada direta da parte de Deus.
Confiando somente na autoridade de Deus e não recorrendo a nada mais, 0
apóstolo prosseguiu ao cumprimento do dever de pregar 0 evangelho.
17. Nem subi a Jerusalém. Ele explica e amplia sua afirmação ante-
rior, como se estivesse dizendo: “Não busquei a autoridade de homem
algum”, nem mesmo dos apóstolos. É um erro supor que, por serem
agora mencionados separadam ente, os apóstolos não estavam incluí-
dos nas palavras carne e sangue. Paulo não acrescenta nada novo ou
diferente aqui; apenas explica com mais clareza o que já havia dito. Esta
expressão também não implicava num insulto aos apóstolos. O propó-
sito era m ostrar que ele não devia sua comissão a qualquer homem. A
vangloria de homens inescrupulosos colocaram-no sob a necessidade
de contrastar a autoridade dos apóstolos com a autoridade de Deus.
Quando uma criatura é contrastada com Deus, não im portando quão
humilhante e desprezível seja a linguagem empregada no contraste, a
criatura não tem motivos para queixar-se.
Mas parti para as regiões da Arábia. Em Atos dos Apóstolos, Lucas
omitiu esses três anos. Há outros acontecimentos que ele também não
menciona. Por isso, era ridícula a calúnia daqueles que tentavam elaborar
uma acusação de incoerência nessas palavras de Paulo. Os leitores pie-
dosos devem considerar a provação severa que Paulo teve de enfrentar
no início de sua jornada. Aquele que, por amor à honra de Cristo, fora
enviado, poucos dias antes, a Damasco, acompanhado por uma escolta
formidável, agora é obrigado a vaguear como um exilado em terra estra-
nha. Mas ele não perdeu o ânimo.
18. Decorridos três anos. Paulo subiu a Jerusalém três anos depois
de começar a cumprir seu ofício apostólico. Portanto, no início de seu
apostolado, ele não recebeu uma chamada da parte de homens. Mas, para
38 * Comentário de Gálatas

que não imaginassem que ele tinha interesses diferentes dos interesses
dos outros apóstolos e que desejava afastar-se deles, Paulo nos diz que
subiu a Jerusalém a fim de avistar-se com Cefas. Embora Paulo não tenha
esperado pela aprovação dos apóstolos, para começar seu ofício, não foi
contra a vontade deles, e sim com 0 pleno consentimento e aprovação
deles, que entrou na classe de apóstolo. Paulo desejava mostrar que nun-
ca estivera em desarmonia com os apóstolos e que, nesta altura, estava
em plena harmonia com todas as opiniões deles. Ao mencionar 0 tempo
que permanecera na Arábia, Paulo demonstra que viera não para aprender,
mas apenas para ter comunhão mútua.
19. E não vi a outro dos apóstolos. Isto foi acrescentado para eviden-
ciar que Paulo não tinha outro propósito em sua viagem; e não atendeu a
qualquer outra coisa.
Senão Tiago. É oportuno perguntarmos quem era esse Tiago. Quase
todos os antigos pais concordam que ele era um dos discípulos, cujo so-
brenome era Oblias e “o Justo”, que presidia a igreja de Jerusalém. Outros
pensam que ele era filho de José, com outra esposa. E outros acham que Tia-
go era primo de Cristo, por parte de mãe. (Esta é a idéia mais provável.) Mas,
como ele é mencionado entre os apóstolos, não concordo com essa opinião.
Também não existe sustentação para 0 argumento de Jerônimo, afirmando
que 0 título apóstolo é aplicado a outros além dos Doze. Nestes versículos,
0 assunto em consideração é a mais elevada classe de apóstolos; e veremos
que Tiago era considerado uma das principais colunas da igreja (G12.9). Pa-
rece mais provável que Paulo falava sobre 0 filho de Alfeu.
É mais provável que os demais dos apóstolos estivessem espalhados
pelos vários países; visto que não permaneciam em um único lugar. Lucas
relata que Barnabé trouxera Paulo aos apóstolos (At 9.27). Isto não deve
ser entendido como uma referência aos Doze, e sim aos dois que estavam
sozinhos em Jerusalém.
20. Ora, acerca do que vos escrevo. Esta afirmação se estende a toda
a epístola. A profunda seriedade de Paulo neste assunto é mostrada pelo
fato de que ele recorreu a um juramento, algo que só deve ser usado em
ocasiões sérias e importantes. Não devemos estranhar que Paulo tenha in-
Capítulo 1 · 39

sistido tão energicamente neste ponto, pois já vimos como os impostores


faziam tudo para despojá-lo do nome e das honras de apóstolo. Ora, é mis-
ter que observemos as formas de juramento que os santos usavam, pois
aprendemos deles a ver os juramentos apenas como um apelo ao trono de
Deus, para confirmar a verdade e a fidelidade de nossas palavras e ações.
A reverência e 0 temor de Deus devem orientar esse apelo.
22. E não era conhecido de vista. Parece que isso foi acrescentado
para enfatizar, com vigor, a perversidade e a malícia dos caluniadores de
Paulo. Se as igrejas da Judéia, que apenas “ouviam” falar a respeito dele,
foram levadas a render glória a Deus por causa da maravilhosa mudança
que Ele realizara em Paulo, quão infame era 0 fato de que aqueles a quem
haviam sido demonstrado os frutos de seus admiráveis esforços não agi-
ram da mesma maneira! Se apenas a notícia fora suficiente para produzir
glória a Deus no primeiro grupo, por que os fatos que estavam ante os
olhos do segundo grupo não 0 satisfez?
23. A fé que, outrora, procurava destruir. Isto não significa que a fé
pode realmente ser destruída. Significa que Paulo enfraqueceu a influência
da fé na mente de homens fracos. Além disso, é a vontade, e não os atos,
que está expressa nestas palavras.
24. E glorificavam a Deus a meu respeito. Isso era um sinal evidente
de que 0 ministério de Paulo era aprovado por todas as igrejas da Judéia,
de tal modo que irromperam em louvor e admiração do maravilhoso poder
de Deus. Assim, Paulo reprova indiretamente a malícia daqueles crentes,
por mostrar que sua malevolência e
Capítulo 2

1. Catorze anos depois, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé,


levando também a Tito.
2. Subi em obediência a uma revelação; e lhes expus 0 evangelho
que prego entre os gentios, mas em particular aos que pareciam
de maior influência, para, de algum modo, não correr ou ter cor-
rido em vão.
3. Contudo, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi
constrangido a circuncidar-se.
4. E isto por causa dos falsos irmãos que se entremeteram com 0
fim de espreitar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus e
reduzir-nos à escravidão;
5. aos quais nem ainda por uma hora nos submetemos, para que a
verdade do evangelho permanecesse entre vós.

1. Catorze anos depois. Com certeza, podem os dizer que esta não foi
a mesma viagem mencionada por Lucas (At 15.2). A conexão da história
nos leva ã conclusão contrária. Descobrimos que Paulo fez quatro viagens
a Jerusalém. Já falamos sobre a primeira dessas viagens. A segunda aconte-
ceu quando, em com panhia de Barnabé, Paulo levou as ofertas de caridade
das igrejas gregas e asiáticas (At 12.25 ). Minha opinião de que esta pas-
sagem refere-se a esta segunda viagem se fundam enta em várias razões. E
qualquer outra suposição tornaria irreconciliáveis as afirmações de Paulo
e Lucas. Além disso, há boas razões para conjecturarm os que Paulo repre­
42 · Comentário de Gálatas

endeu a Pedro em Antioquia, enquanto vivia ali. Mas isso aconteceu antes
de Paulo ser enviado, pelas igrejas, a Jerusalém, para resolver 0 proble-
ma a respeito da observância de cerimônias (At 15.2). É ilógico imaginar
que Pedro teria usado tal dissimulação, se a controvérsia já houvesse sido
resolvida e o decreto apostólico, publicado. Mas, nesta passagem, Paulo
escreve que viera a Jerusalém e, somente depois, acrescenta que repre-
endera a Pedro, por causa de um ato de dissimulação, um ato que, com
certeza, Pedro não teria cometido, exceto em questões duvidosas.
Além disso, Paulo jamais teria mencionado essa viagem, realizada
com a concordância de todos os crentes, sem referir-se ã ocasião e à me-
morável decisão tomada pelos apóstolos. Não se têm certeza quanto ao
tempo em que a epístola foi escrita; sabe-se apenas que as igrejas gregas
conjecturam que ela foi enviada de Roma; e as igrejas latinas presumem
que a epístola procedeu de Éfeso. Quanto a mim, creio que ela foi escrita
não somente antes de Paulo ter chegado a Roma, mas também antes de 0

concilio ser instalado e de os apóstolos tomarem a decisão final a respeito


de observâncias cerimoniais. Enquanto seus oponentes reivindicavam fal-
samente o nome de apóstolos e se esforçavam para estragar a reputação
de Paulo, quão negligente ele teria sido se houvesse negligenciado os de-
eretos que circulavam entre eles e minimizava a posição deles! Sem dúvida,
esta palavra lhes teria fechado a boca: “Vocês trazem contra mim a autori-
dade dos apóstolos. Mas, quem não conhece a decisão deles? Portanto, eu
os vejo convencidos de mentira descarada. Em nome dos apóstolos, vocês
colocam sobre os gentios a necessidade de guardar a lei; mas apelo aos
escritos deles, que colocam em liberdade a consciência humana”.
Também podemos observar que, no início da epístola, Paulo repre-
endeu os gálatas por haverem se afastado tão depressa do evangelho que
lhes havia sido entregue. Mas podemos concluir imediatamente que, de-
pois de haverem sido trazidos à fé, algum tempo deve ter passado, antes
de surgir a controvérsia a respeito da lei cerimonial. Creio, portanto, que
os catorze anos devem ser contados, não a partir de uma viagem à outra,
mas a partir da conversão de Paulo. 0 espaço de tempo entre uma viagem
e outra foi onze anos.
Capítulo 2 · 43

Subi em obediência a uma revelação. Agora, Paulo confirma seu


apostolado e doutrina, não somente por meio de obras, mas também de
revelação divina. Visto que Deus conduzira aquela viagem, que tinha como
objetivo a confirmação da doutrina de Paulo, a doutrina foi confirmada,
não somente pela aprovação dos homens, mas também pela autoridade de
Deus. Isso teria sido mais do que suficiente para vencer a obstinação da-
queles que atacavam a Paulo, usando 0 nome de apóstolos. Pois, embora
houvesse até então espaço para 0 debate, a comunicação da mente divina
traria um fim à discussão.
E lhes expus 0 evangelho. A palavra expus demanda nossa atenção.
Os apóstolos não detalharam para Paulo o que ele deveria ensinar. Mas,
depois de ouvirem a Paulo descrevendo sua própria doutrina, os apóstolos
deram sua anuência e aprovação. Visto que seus oponentes podiam alegar
que, por dissimulação e sutileza em vários pontos, ele havia conquistado
0 favor dos apóstolos, Paulo declara expressamente que lhes havia comu-

nicado 0 mesmo evangelho que proclamara entre os gentios. E isso remove


toda suspeita de hipocrisia e impostura. Veremos 0 que aconteceu depois
disso. Os apóstolos não acharam errado 0 fato de que Paulo não esperara
para obter a aprovação deles. Pelo contrário, sem disputas ou repreensão,
aprovaram os labores de Paulo; e fizeram isso seguindo a orientação do
mesmo Espírito que conduziu a Paulo em sua viagem até Jerusalém. Por
conseguinte, ele não foi colocado no ofício apostólico por determinação
dos outros apóstolos; ele foi reconhecido como um apóstolo. Adiante, con-
sideraremos mais amplamente este assunto.
Para, de algum modo, não. A palavra de Deus falhará, por não ser
apoiada pelo testemunho de homens? Ainda que 0 mundo inteiro fosse in-
crédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável. E aqueles
que ensinam 0 evangelho, por mandado de Deus, são instrumentos úteis,
mesmo quando 0 seu trabalho não produz fruto. Mas não era isso que Pau-
10 queria dizer. A consciência dos homens, enquanto duvida e hesita, não
tira qualquer proveito do ministério da Palavra. Por isso, no que concerne
ao homem, 0 apóstolo usa a expressão correr em vão no sentido de traba-
lhar inutilmente, quando não ocorre a edificação esperada.
44 · Comentário de Gálatas

Criava-se, portanto, uma arma formidável para estremecer consciên-


cias frágeis, quando os impostores declaravam falsamente que a doutrina
ensinada por Paulo era contrária à dos apóstolos. Deste modo, muitos
apostataram. A certeza da fé não depende de opiniões humanas; mas, ao
contrário, é nosso dever confiar na verdade revelada de Deus, de modo
que nem os homens nem todos os anjos juntos abalem a nossa fé. Todavia,
os ignorantes, que entendem de modo imperfeito e nunca aceitam com
amor a sã doutrina, acham a tentação quase irresistível, quando os mes-
tres de eminência reconhecida fomentam opiniões contrárias. Às vezes,
os crentes fortes são atingidos poderosamente por esse estratagema de
Satanás, quando introduz em seus pontos de vistas os “ciúmes e conten-
das” (1 Co 3.3) daqueles que deveriam ser “inteiramente unidos, na mesma
disposição mental e no mesmo parecer” (1 Co 1.10).
É difícil dizer quantos já se afastaram do evangelho e quantos já tive-
ram sua fé abalada pelas contendas desastrosas e públicas a respeito da
presença física de Cristo na Ceia do Senhor; porque em um assunto tão
relevante, vários homens distintos assumiram lados opostos.
Em contrapartida, a concordância entre todos os mestres da igreja é
um poderoso auxílio para a confirmação da fé. Portanto, visto que Satanás
labutava insidiosamente para obstruir 0 progresso do evangelho, Paulo
resolveu enfrentá-lo. Se fosse bem sucedido em demonstrar que tinham
os mesmos pontos de vistas dos outros apóstolos, todos os obstáculos
seriam removidos. Os discípulos fracos não ficariam mais perplexos com
a dúvida a respeito de quem deveriam seguir. Eis 0 que Paulo estava real-
mente dizendo: “Para que meus labores passados não sejam desprezados
e se tornem inúteis, esclareci a dúvida que aflige a muitos: quem merece
a confiança de vocês: eu ou Pedro? Pois, em tudo que tenho ensinado, ele
e eu estamos de pleno acordo”. Se muitos dos ensinadores de nossos dias
fossem tão sinceramente desejosos de edificar a igreja, como Paulo 0 foi,
seriam mais diligentes em cultivar a harmonia entre eles mesmos.
3. Nem mesmo Tito. Este é um argumento adicional para provar que
os apóstolos sustentavam os mesmos pontos de vista ensinados por Pau-
10. Ele lhes trouxera um homem incircunciso, o qual não hesitaram em
Capítulo 2 · 45

reconhecer como irmão. A razão por que esse homem era incircunciso
foi apresentada: a circuncisão, sendo algo indiferente, podia ser negligen-
ciada ou praticada, conforme 0 exigisse a edificação. A regra que deve
sempre ser observada é esta: embora todas as coisas nos sejam lícitas (1
Co 10.23), devemos exigir apenas 0 que é conveniente. Paulo circuncidou
a Timóteo (At 16.3), para que a incircuncisão não causasse escândalo às
mentes fracas; pois, naquela ocasião, ele estava lidando com os fracos,
aos quais ele tinha 0 dever de tratar com ternura. E teria feito 0 mesmo
com Tito, porque era incansável em seus esforços de suportar os fra-
cos. Mas este caso era diferente. Alguns falsos irmãos estavam à espera
de uma chance para caluniar a doutrina de Paulo e teriam espalhado
imediatamente 0 rumor: “Vejam como o campeão da liberdade deixa de
lado, quando está na presença dos apóstolos, aquele caráter ousado
e fervoroso que costuma assumir quando está entre os ignorantes!” Ora,
assim como “devemos suportar as debilidades dos fracos” (Rm 15.1),
assim também precisamos resistir, com vigor, aos inimigos astutos que
espreitam deliberadamente a nossa liberdade. As obrigações vinculadas
ao amor ao próximo não devem ser prejudiciais à fé. Portanto, em assun-
tos indiferentes, 0 amor ao próximo será 0 melhor guia, contanto que a fé
sempre receba a nossa primeira consideração.
4. E isto por causa dos falsos irmãos. O sentido pode ser duplo: ou
que os falsos irmãos usaram isso como um motivo de acusação perversa e
se empenharam para constranger Paulo ou que o apóstolo não circuncidou
propositadamente a Tito, porque discernia que os falsos irmãos usariam
isso de imediato para caluniá-lo. Haviam se introduzido sutilmente na com-
panhia de Paulo, esperando conseguir um destes objetivos: despertar a
indignação dos judeus contra ele, caso desprezasse as leis cerimônias; ou,
se Paulo tivesse deixado de usar sua liberdade em Cristo, eles exultariam a
respeito de Paulo, diante dos gentios, considerando-no um homem derrota-
do que havia abandonado a sua doutrina. Prefiro a segunda interpretação,
ou seja: Paulo estava ciente da trama e resolveu não circuncidar a Tito.
Quando ele disse que Tito não fora “constrangido”, seus leitores pu-
deram entender que a circuncisão não é condenada como algo ruim em
46 · Comentário de Gálatas

si mesmo e que o assunto da disputa era a obrigação de praticá-la. Era


como se Paulo dissesse: “Estaria pronto para circuncidá-10, se questões
mais relevantes não estivessem envolvidas”. Os falsos irmãos pretendiam
estabelecer uma lei, e Paulo não se renderia a essa compulsão.
5. Aos quais nem ainda por uma hora nos submetemos. Essa firmeza
é o selo da doutrina de Paulo. Pois, quando os falsos irmãos, que deseja-
vam tão-somente um motivo para acusá-lo, se empenharam ao máximo e
Paulo continuou firme, não houve mais lugar para a dúvida. Agora, nin-
guém podia insinuar que ele enganara os apóstolos. Paulo dissera que nem
ainda por um hora se submetera a eles, ou seja, esse tipo de submissão
teria implicado que sua liberdade fora destruída. Em todos os outros as-
pectos, Paulo estava preparado, até ao fim de sua vida, a mostrar brandura
e tolerância a todos os homens.
A verdade do evangelho. Não havia o risco de que Paulo perdesse
a sua liberdade, nem mesmo por submeter-se a eles. Mas 0 seu exemplo
teria prejudicado a outras pessoas. Portanto, ele ponderou, com sabedo-
ria, 0 que era conveniente. Isto nos mostra até que ponto devemos evitar
escândalos; também nos ensina que a edificação é o que devemos focalizar
em todos os assuntos menos importantes. 0 significado é este: “Somos
servos dos irmãos, mas temos em mente que todos servimos ao Senhor
e que a liberdade de nossa consciência permanecerá inalterada”. Quando
os falsos irmãos desejavam trazer os santos à escravidão, estes tinham 0

dever de não submeter-se àqueles.


“A verdade do evangelho” denota a pureza do evangelho ou a sua
doutrina pura e consistente. Os falsos apóstolos não aboliam totalmente
0 evangelho, mas o adulteravam com opiniões pessoais, de modo que ele
se tornava falso e mascarado. Isto sempre ocorre quando nos apartamos,
mesmo em grau mínimo, da simplicidade de Cristo (2 Co 11.3).
Com que arrogância os papistas se vangloriam de possuir 0 evange-
lho que não somente é corrompido por inúmeras invenções, mas também
é adulterado por muitas doutrinas perversas! Lembremo-nos de que não
basta ter 0 nome de evangelho e algum tipo de resumo das suas doutri-
nas, se a sua pureza não permanece inalterada. Onde estão os homens
Capítulo 2 · 47

que, por meio de falsa moderação, tentam reconciliar-nos com os papistas,


imaginando que a doutrina do cristianismo pode ser com prom etida à se-
melhança de assuntos referentes a dinheiro e propriedades? Com que ódio
Paulo teria considerado essa mudança, pois ele afirma que, se não tem
pureza, não é o verdadeiro evangelho.

6. E, quanto àqueles que pareciam ser de maior influência (quais


tenham sido, outrora, não me interessa; Deus não aceita a apa-
rência do homem), esses, digo, que pareciam ser alguma coisa
nada me acrescentaram;
7. antes, pelo contrário, quando viram que 0 evangelho da incir-
cuncisão me fora confiado, como a Pedro 0 da circuncisão 8.
(pois aquele que operou eficazmente em Pedro para 0 aposto-
lado da circuncisão também operou eficazmente em mim para
com os gentios)
9. e, quando conheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e
João, que eram reputados colunas, me estenderam, a mim e a
Barnabé, a destra de comunhão, a fim de que nós fôssemos para
os gentios, e eles, para a circuncisão;
10.recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, 0
que também me esforcei por fazer.

6. Àqueles que pareciam ser de maior influência. Paulo não estava


satisfeito até que fizesse os gálatas com preenderem que ele nada aprende-
ra de Pedro e dos outros apóstolos. Porfírio e Juliano acusam de soberba
este homem santo, porque declarou, quanto a si mesmo, que não podia
suportar aprender algo de outrem; porque se orgulhava de haver se torna-
do um m estre sem qualquer instrução ou ajuda e se esforçou muito para
não aparentar inferioridade em relação a qualquer outro. Mas aqueles que
acham quão necessário era esse orgulhar-se, reconhecerão que essa era
uma atitude santa e digna de louvor. Se Paulo se tivesse rendido aos seus
oponentes, afirmando que se beneficiara dos apóstolos, ele lhes teria dado
48 · Comentário de Gálatas

dois motivos de acusação. Eles teriam dito imediatamente: “Você fez algum
progresso; corrigiu seus erros passados e não repetiu sua antiga impru-
dência”. Assim, em primeiro lugar, toda a doutrina que Paulo ensinara até
essa altura cairia em suspeita. Em segundo lugar, ele sempre possuiria,
doravante, menos autoridade, uma vez que seria reconhecido como um
discípulo comum. Vemos, pois, que a razão desta jactãncia santa não era a
consideração por sua própria pessoa, e sim a necessidade de proteger sua
doutrina. A controvérsia não se referia a indivíduos; portanto, não era um
conflito de ambições. Contudo, Paulo determinara que nenhum homem,
por mais eminente que fosse, obscureceria seu apostolado, do qual depen-
dia a autoridade de seu ensino. Se isso não bastasse para silenciar aqueles
cães, seus latidos seriam suficientemente reprimidos.
Quais tenham sido. Estas palavras devem ser lidas como uma cláusu-
la separada, pois 0 parêntese foi introduzido para assegurar aos inimigos
que Paulo não se preocupava com opiniões de homens. Esta passagem é
interpretada de várias maneiras. Ambrósio pensa que ela é uma referência à
tolice de tentar minimizar Paulo exaltando os apóstolos, como se ele tivesse
dito: “Se não me sentisse igualmente à vontade para argumentar que eles
eram apenas pobres analfabetos que nada sabiam, exceto pescar, enquanto
eu fui bem educado, desde a minha juventude, sob os cuidados de Gamaliel.
Mas ignoro tudo isso, porquanto sei que para com Deus não existe qualquer
discriminação de pessoas”. Crisóstomo e Jerônimo assumiram um ponto
de vista mais radical; era como se Paulo ameaçasse indiretamente até os
mais notáveis apóstolos, com as seguintes palavras: “Quem quer que sejam
eles, não escaparão ao juízo divino, se, porventura, não cumprirem seus
deveres. Nem a dignidade de seu ofício, nem a estima dos homens os poupa-
rá”. No entanto, a outra interpretação parece mais simples e mais concorde
com a intenção de Paulo. Ele admite que os apóstolos eram os primeiros
quanto ao tempo, mas argumenta que isso não 0 impede de ser igual a eles
em dignidade. Paulo não diz que a condição presente dos apóstolos não
lhe interessava, mas se refere a uma época já passada, quando eles eram
apóstolos e ele, Paulo, se opunha à fé em Cristo. Em suma, ele não pretendia
que 0 assunto fosse decidido em termos de passado e recusa-se a admitir 0
Capítulo 2 · 49

provérbio: aquele que chega primeiro tem a primazia.


Deus não aceita a aparência do homem. Além das interpretações que
mencionei, há uma terceira que parece digna de menção: no governo do
mundo, há lugar para distinção de classes; mas, no reino espiritual de Cris-
to, essa distinção não deve ter lugar. Isto é plausível, mas é em relação ao
governo do mundo que 0 Senhor diz: “Não sereis parciais no juízo, ouvireis
tanto 0 pequeno como o grande” [Dt 1.17]. Contudo, não entrarei nesse ar-
gumento, porque ele não tem qualquer relação com a passagem que agora
consideramos. Paulo pretendia apenas dizer que a nobre posição da qual
os apóstolos desfrutavam não impedia que ele fosse chamado por Deus
e exaltado, imediatamente, de uma condição baixa para tornar-se igual a
eles. A diferença entre eles, embora fosse grande, não era nada aos olhos
de Deus, visto que Ele não faz acepção de pessoas e chama sem deixar-se
influenciar por qualquer preconceito. Mas esta opinião pode sofrer obje-
ções; pois, admitindo ser verdade (e uma verdade que deve ser preservada
com todo vigor) que em nosso relacionamento com Deus não deve haver
acepção de pessoas, como isto se aplica a Pedro e a seus colegas de apos-
tolado, que deviam ser reverenciados não somente por causa da posição
que ocupavam, mas também por causa da santidade e dos dons espirituais
que possuíam?
0 vocábulo “pessoas” é apresentado em contraste com 0 temor a
Deus e uma boa consciência. Este é 0 seu uso comum na Escritura (At
10.34, 35; 1 Pe 1.17). Mas a piedade, 0 zelo, a santidade e outras virtudes
semelhantes eram 0 principais fundamentos da estima e do respeito man-
tidos em relação aos apóstolos. Aqui, Paulo fala com desdém sobre eles,
como se nada possuíssem, exceto aparência exterior.
Eis a minha resposta: Paulo não está discutindo a dignidade dos
apóstolos, e sim a vangloria indolente de seus adversários. A fim de apoiar
pretensões indignas, eles enalteciam a Pedro, Tiago e João, tirando provei-
to da veneração que a igreja lhes tributava, para satisfazerem seu desejo
intenso de prejudicar Paulo. A intenção de Paulo, nesta passagem, não era
esclarecer 0 que eram os apóstolos ou 0 que opinião deve ser formada a
respeito deles, quando a controvérsia é deixada de lado. O objetivo de
50 * Comentário de Gálatas

Paulo era desmascarar os falsos apóstolos. Assim como em outra parte


da epístola ele aborda 0 assunto da circuncisão, não focalizando 0 seu
verdadeiro caráter, e sim a noção perversa e falsa que esses impostores
atrelaram à circuncisão, assim também aqui Paulo declara que, aos olhos
de Deus, os apóstolos eram disfarces com os quais os impostores tenta-
vam resplandecer no mundo. E isto é evidente nestas palavras. Por que
preferiam os apóstolos, e não Paulo? Porque aqueles precederam a este
no ofício. Isso não passava de pretexto. De qualquer outro ponto de vista,
os apóstolos teriam sido altamente estimados, e os dons de Deus manifes-
tados neles teriam sido calorosamente admirados por um homem simples
e modesto como 0 apóstolo Paulo, que reconhece, em outra epístola, ser
“o menor dos apóstolos” e indigno dessa posição tão elevada. “Eu sou o
menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo,
pois persegui a igreja de Deus” (1 Co 15.9).
Nada me acrescentaram. Pode-se também ler assim: “Eles não co-
municaram nada a mim”, pois é a mesma palavra que Paulo usara duas
vezes antes. Mas 0 significado é 0 mesmo. Quando os apóstolos ouviram
0 evangelho de Paulo, não apresentaram 0 seu próprio evangelho (como

geralmente se faz com algo que é considerado melhor e mais perfeito),


mas se contentaram com a explicação de Paulo e, sem hesitação, aceita-
ram a sua doutrina. Assim, nem mesmo 0 ponto mais duvidoso causou um
debate entre eles. Tampouco devemos supor que Paulo tomou a liderança
na discussão, como se fosse aquele que ditava a forma de debate para os
outros. Ele explicou a sua fé, acerca da qual haviam sido espalhados rumo-
res sinistros; e os apóstolos a sancionaram mediante a sua aprovação.
7. Antes, pelo contrário. Os apóstolos estenderam-lhe, imediatamen-
te, a destra de comunhão (v. 9). Conseqüentemente, deram seu testemunho
irrestrito ao ensino de Paulo, visto que não apresentaram nada em contrá-
rio, como se faz geralmente em debates. Em vez disso, reconheceram que
Paulo e eles defendiam o mesmo evangelho. E, por isso, deram-lhe a honra
e a condição de um colega. Ora, uma das condições deste coleguismo era
que as províncias fossem distribuídas entre eles como campos de traba-
lho. Eram, pois, iguais, e não houve qualquer sujeição da parte de Paulo.
Capítulo 2 · 51

Estender a destra de comunhão significa ter um companheirismo estabe-


lecido por acordo mútuo.
Quando viram que 0 evangelho da incircuncisão me fora confiado.
Paulo nega que estivesse em dívida com os apóstolos por causa do fa-
vor de haver sido constituído um apóstolo mediante 0 consentimento e a
aprovação deles. E afirma que consentiram-lhe a honra do apostolado para
que não roubassem 0 que Deus havia dado. Paulo sempre insistia em que
fora constituído apóstolo pelo dom e designação de Deus. Mas, nestes ver-
sículos, ele acrescenta que os próprios apóstolos 0 reconheceram como
tal. Portanto, concluímos que os impostores tentavam fazer aquilo que os
apóstolos não ousaram fazer, para não se oporem à eleição divina.
Nestes versículos, Paulo começa a reivindicar 0 que possuía acima
dos demais: 0 apostolado da incircuncisão. Paulo e Barnabé diferiam dos
demais neste aspecto: haviam sido designados para serem apóstolos dos
gentios. Isso ocorrera por revelação divina, à qual os apóstolos não se
opuseram e determinaram ratificar, visto que desobedecer a essa revela-
ção seria uma atitude ímpia. Vemos, portanto, como distribuíram entre si
os ofícios, em harmonia com a revelação divina: Paulo e Barnabé seriam
apóstolos dos gentios, e os demais, apóstolos dos judeus.
Mas isso parece estar em conflito com 0 mandamento de Cristo, que
ordenou aos doze: “Ide por todo 0 mundo e pregai 0 evangelho a toda
criatura” (Mc 16.15). Respondo que esse mandamento não tencionava
ser aplicado especificamente a cada apóstolo, mas descreve, em termos
gerais, 0 propósito do ofício: que a salvação seja proclamada a todas as
nações, mediante o ensino do evangelho. Os apóstolos, com toda certeza,
não viajaram pelo mundo inteiro. De fato, é provável que nenhum dos doze
jamais penetrou a Europa, pois 0 que se alega sobre Pedro talvez seja, por
tudo 0 que sei, uma fábula e, em qualquer caso, bastante incerto.
No entanto, pode ser objetado que todos eles ainda detinham um
ministério tanto para os gentios como para os judeus. Admito que sim, à
medida que lhes surgisse ocasião. Admito que cada apóstolo foi incumbi-
do da tarefa de proclamar 0 evangelho tanto entre os gentios como entre
os judeus, pois a divisão não lhes fixava fronteiras rígidas que eles não po­
52 · Comentário de Gálatas

deriam ultrapassar, como as fronteiras de reinos, principados e províncias.


Vemos que Paulo, aonde quer que ia, tinha 0 hábito de oferecer seus labores
e ministério primeiramente aos judeus. Ora, quando ele tinha oportunidade,
entre os gentios, de oferecer-se como apóstolo e mestre para os judeus, os
outros apóstolos ficavam livres para trazer 0 máximo de gentios a Cristo. E
Pedro exerceu esse direito em relação a Cornélio e a outros (At 10.1). Mas,
como havia outros apóstolos naquele distrito, quase completamente habi-
tado por judeus, Paulo viajou pela Ásia, Grécia e outras regiões distantes.
Assim, ele foi ordenado, de modo especial, para ser 0 apóstolo dos gentios.
De fato, quando 0 Senhor ordenou que Paulo fosse separado, orientou-o a
deixar a Antioquia e a Síria e realizar viagens a lugares distantes por amor
aos gentios. Em ocasiões regulares, ele era apóstolo dos gentios; em ocasiões
extraordinárias, apóstolo dos judeus. Os outros apóstolos tinham os judeus
sob sua responsabilidade, mas com o entendimento de que, ao surgir-lhes
oportunidade, estenderiam seu ministério aos gentios. Mas esse ministério,
por assim dizer, era uma atividade extraordinária para eles.
Se 0 apostolado de Pedro dirigia-se peculiarmente aos judeus, os
romanistas deveriam se perguntar que bases encontram para derivarem
de Pedro a sucessão apostólica, chegando até à primazia. Se o papa de
Roma reivindica a primazia, por ser ele 0 sucessor de Pedro, que a exerça
sobre os judeus. Nesta passagem, Paulo se declara 0 principal apóstolo
dos gentios; no entanto, os romanistas negam que Paulo foi 0 bispo de
Roma. Portanto, se o papa deve tomar posse de sua primazia, que con-
voque as igrejas dos judeus. Devemos reconhecer como apóstolo aquele
que, mediante 0 decreto do Espírito Santo e 0 consenso de todo 0 colé-
gio apostólico, foi proclamado solenemente como apóstolo. Aqueles que
transferem para Pedro esse direito transtornam tanto a ordenação humana
como a divina. Não precisamos explicar a metáfora evidente nas palavras
circuncisão e incircuncisão.
8. Aquele que operou eficazmente. O âmbito de ação que fora de-
signado a Paulo era verdadeiramente dele; e isso é provado pela operação
eficaz do poder de Deus durante 0 ministério de Paulo. Ora, essa mani-
festação do poder divino, como temos visto com freqüência, era 0 selo
Capítulo 2 · 53

pelo qual a doutrina de Paulo foi confirmada, e seu ofício como mestre,
aprovado. É duvidoso se Paulo relaciona a operação eficaz de Deus com 0
sucesso de sua pregação ou com as graças do Espírito Santo outorgadas
aos crentes. Não entendo a operação eficaz de Deus como que denotando
0 sucesso da pregação de Paulo, e sim como uma referência ao poder e à
eficácia espiritual que ele mencionou em outro lugar (1 Co 2.4). O sentido
de todo 0 versículo é que não houve uma barganha frívola arranjada ente
os apóstolos, e sim uma decisão que Deus mesmo selou.
9. E, quando conheceram a graça. Paulo revela, em suas verdadei-
ras cores, 0 desdém arrogante daqueles que menosprezavam a graça
de Deus naquele que conquistara a admiração e o respeito dos primei-
ros apóstolos. Pois fingir que ignoravam aquilo que os apóstolos viam
desde o começo teria sido insuportável para esses arrogantes. Isso nos
exorta a render-nos à graça de Deus, onde quer que seja percebida, a
menos que desejemos lutar contra o Espírito Santo, cuja vontade é que
seus dons não permaneçam ociosos. A graça que os apóstolos perce-
beram ter sido outorgada a Paulo e a Barnabé os moveu a confirmar o
ministério deles, ao recebê-los como seus associados.
Tiago e Cefas. Já afirmei que Tiago era 0 filho de Alfeu. Não po-
dia ser 0 irmão de João, a quem Herodes m atara pouco antes. E supor
que ele era um dos discípulos elevado acima dos apóstolos seria um
absurdo. Lucas m ostra que ele tinha a primazia entre os apóstolos e
atribui-lhe o resumo e a decisão do assunto abordado no Concilio (At
15.13). Depois, Lucas menciona que “todos os presbíteros” da igreja em
Jerusalém reuniram-se com esse Tiago (At 21.18). Ao dizer que eram
reputados colunas, Paulo não está falando desdenhosam ente, mas ci-
tando a opinião geral e argumentando, com base neste fato, que os atos
desses homens não deviam ser rejeitados negligentemente.
No que concerne à questão de posição, é surpreendente que Tiago
seja apresentado antes de Pedro. Mas a razão talvez esteja no fato de que
ele presidia a igreja de Jerusalém. Quanto à palavra coluna, sabemos que,
à luz da natureza das coisas, àqueles que excedem os outros em talentos,
sabedoria ou dons possuem maior autoridade. Na igreja de Deus, aquele
54 · Comentário de Gálatas

que desfruta de maior graça deve receber maior honra. E não adorar o
Espírito Santo onde quer que Ele se manifeste, por meio de seus dons,
constitui ingratidão, bem como impiedade. Assim como um povo não deve
ficar sem um pastor, assim também uma assembléia de pastores requer
um moderador. Contudo, a seguinte regra deve ser sempre observada: “0
maior dentre vós será vosso servo” (Mt 23.11).
10. Que nos lembrássemos dos pobres. É evidente que os irmãos
na Judéia labutavam sob extrema pobreza; do contrário, não teriam so-
brecarregado as outras igrejas. Isso talvez foi causado, em parte, pelas
várias calamidades que sobrevieram a toda a nação e, em parte, pela fú-
ria de seus próprios patrícios, por quem eram espoliados diariamente de
seus bens. Era justo que recebessem ajuda dos gentios, que lhes deviam o
evangelho, uma bênção incomparável! Paulo diz que cumprira fielmente 0

que os apóstolos lhe recomendaram. Assim, ele tira de seus adversários o


pretexto que desejavam encontrar.

11. Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face,


porque se tornara repreensível.
12. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia
com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim,
veio a apartar-se, temendo os da circuncisão.
13. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de 0
próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles.
14. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a
verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se,
sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que
obrigas os gentios a viverem como judeus? 15. Nós, judeus por
natureza e não pecadores dentre os gentios,
16. sabendo, contudo, que 0 homem não é justificado por obras da lei,
e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo
Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por
obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado.
Capítulo 2 · 55

11. Quando, porém, Cefas veio a Antioquia. Aquele que examinar


atentamente todas as circunstâncias concordará comigo, espero, crendo
que isso aconteceu antes de os apóstolos decidirem que os gentios não re-
ceberiam qualquer imposição a respeito da observância de cerimônias (At
15.28); pois, uma vez aprovada a decisão, Pedro não teria sentido nenhum
temor de ofender a Tiago ou seus enviados. Mas a dissimulação de Pedro
fora tal, que, no opor-se a ela, Paulo foi motivado a defender “a verdade
do evangelho”. Em primeiro lugar, ele disse que a veracidade de seu evan-
gelho não dependia de Pedro ou dos apóstolos, para que permanecesse
firme ou caísse pelo discernimento deles. Em segundo, Paulo disse que seu
evangelho havia sido aprovado por todos, sem exceção ou contradição, e,
em especial, por aqueles que eram reconhecidos por todos como homens
que ocupavam os lugares mais preeminentes. Ora, como já disse, Paulo vai
mais além e afirma que repreendera a Pedro porque este se inclinara para
0 outro lado. E aproveita a oportunidade para explicar a causa da conten-

da. Disto podemos ver quão firme era a doutrina de Paulo: ele não somente
obteve a aprovação espontânea dos apóstolos, mas também a defendeu
com firmeza no debate com Pedro, e saiu vitorioso. Que razão haveria para
alguém hesitar em recebê-la como a verdade segura e inquestionável?
Ao mesmo tempo, Paulo aborda outra calúnia: que ele era apenas um
discípulo comum, muito aquém da categoria de apóstolo; pois a repro-
vação que ministrara era um sinal de igualdade. Reconheço que os mais
preeminentes são, às vezes, repreendidos adequadamente pelos mais hu-
mildes; e essa liberdade de repreensão da parte do inferior em relação
ao superior é permitida por Deus. Mas isso não nos leva a concluir que
0 repreensor tem de ser igual ao repreendido. Contudo, a natureza da re-

preensão merece ser observada. Paulo não reprovou a Pedro de um modo


simples, como 0 crente pode fazê-lo a outro crente. Paulo 0 repreendeu
oficialmente, conforme transparece no texto bíblico; ou seja, com base no
direito do ofício apostólico, que ele mantinha.
Aqui o papado romano sofre outro golpe. Isso expõe em particular a
imprudência do anticristo de Roma, quando alega que não precisa apre-
sentar quaisquer justificativas para seus atos, desafiando assim 0 juízo de
56 * Comentário de Gálatas

toda a igreja. Sem grosseria, sem ousadia indevida, mas no exercício do


poder que lhe fora outorgado por Deus, Paulo reprova, sozinho, a Pedro,
na presença de toda a igreja. E Pedro se rende, obedientemente, à corre-
ção. Todo 0 debate a respeito desses dois pontos não é nada mais do que
uma evidente destruição daquela primazia tirânica que os romanistas afir-
mam, com loquacidade, estar fundada sobre 0 direito divino. Se desejam
ter Deus ao seu lado, eles têm de escrever uma nova Bíblia. Se não desejam
tê-Lo como um franco oponente, têm de excluir esses dois capítulos das
Escrituras Sagradas.
Porque se tornara repreensível. 0 particípio grego κατεγνωσμενος
significa “culpado”. Mas não tenho dúvida de que a palavra tencionava
expressar “alguém que merece culpa justa”. É muito frágil a interpretação
de Crisóstomo, afirmando que a acusação e a queixa haviam sido levan-
tadas, anteriormente, por outros. Era costume dos gregos dar aos seus
particípios a função de substantivos, e todos devem perceber que isto
concorda com esta passagem. Isto nos capacita a perceber quão absurda
é a interpretação dada por Jerônimo e Crisóstomo, os quais apresentavam
0 incidente como um debate fingido que os apóstolos haviam combinado

aconteceria diante do povo. Mas eles não tem 0 apoio da expressão κατά
πρύσωπον, a qual nos diz que Pedro foi repreendido e silenciado “face a
face” ou “na presença”. É frívola a idéia de Crisóstomo no sentido de que
Paulo e Pedro, a fim de evitar escândalo, teriam conversado em particular,
se tivessem alguma diferença. 0 menos importante tinha de ser ignorado,
se comparado ao pior de todos os escândalos: aquele que dividia a igreja,
colocava em risco a liberdade cristã e menosprezava a doutrina da graça
de Cristo. Portanto, este pecado público tinha de ser corrigido.
0 argumento do qual Jerônimo depende é extremamente frágil. Ele
pergunta: “Por que Paulo condenaria em outro o que louvava em si mesmo,
visto que se orgulhava de que, em relação aos judeus, procedia como ju-
deu (1 Co 9.20)? Minha resposta é que Pedro fez algo bem diferente. Paulo
se acomodava aos judeus somente até onde essa atitude era coerente com
a doutrina da liberdade. Por isso, ele não permitiu que Tito fosse circunci-
dado, para que a verdade do evangelho não fosse prejudicada. Mas Pedro
Capítulo 2 · 57

se judaizou de tal modo a obrigar os gentios à servidão e, ao mesmo tem-


po, a arruinar a doutrina de Paulo. Portanto, ele não se manteve dentro
dos limites adequados, visto que desejava mais agradar do que edificar,
procurando saber 0 que agradaria aos judeus e não o que seria proveitoso
à igreja. Agostinho foi mais correto em afirmar que isso não foi um plano
elaborado previamente e que Paulo, motivado por zelo cristão, se opôs à
dissimulação pecaminosa e inconveniente de Pedro, porque viu que tal
dissimulação seria prejudicial à igreja.
12. Antes de chegarem alguns da parte de Tiago. 0 antecedente do
caso é agora descrito. Por causa dos judeus, Pedro se afastara dos gen-
tios, para tirá-los da comunhão da igreja, se renunciassem a liberdade do
evangelho e se submetessem ao jugo da lei. Tivesse Paulo mantido silên-
cio nessa altura, toda a sua doutrina teria fracassado e toda a edificação
que seu ministério produzira teria sido destruída. Era necessário que ele
se levantasse varonilmente e lutasse com coragem. Isto nos mostra quão
atentamente devemos nos guardar de ceder às opiniões dos homens, para
que um desejo impróprio de agradar-lhes ou um receio indevido de provo-
car escândalo não nos desvie do caminho reto. Se isso aconteceu a Pedro,
quão facilmente poderá acontecer conosco, se não formos cuidadosos!
14. Quando, porém, vi que não procediam corretamente. Alguns
aplicam estas palavras aos gentios, os quais ficaram perplexos ante 0
exemplo de Pedro e começaram a ceder. Todavia, é mais natural entender-
mos a cláusula como um referência a Pedro, Barnabé e seus seguidores.
Expor a união de judeus e gentios de um modo que a verdadeira doutrina
não fosse prejudicada era a maneira correta de se chegar à verdade do
evangelho. Escravizar a consciência dos santos à obrigação de guardar a
lei e silenciar a doutrina da liberdade era pagar um preço muito elevado
em troca de unidade.
A verdade do evangelho. Paulo usa esta expressão no mesmo senti-
do com que já a usara, contrastando-a com o disfarce com 0 qual Pedro e
os outros deformavam 0 evangelho. Portanto, a luta era indubitavelmente
séria para Paulo. Eles estavam em perfeita harmonia em relação à doutri-
na; mas, visto que Pedro agora desconsiderava a doutrina e se rendia tão
58 · Comentário de Gálatas

submissamente aos judeus, ele é acusado de inconstância. Há alguns que


justificam a Pedro usando outro fundamento: como apóstolo da circunci-
são, ele era obrigado a preocupar-se de modo peculiar com a salvação dos
judeus; enquanto, ao mesmo tempo, admitem que Paulo estava certo em
defender a causa dos gentios. Mas é tolice defender 0 que 0 Espírito Santo
condenou pelos lábios de Paulo. Essa não era uma questão de assuntos
humanos; envolvia a pureza do evangelho, que corria 0 risco de ser conta-
minada pelo fermento do judaísmo.
Na presença de todos. Este exemplo nos ensina que os que come-
tem pecados notórios a todos devem ser repreendidos publicamente, no
âmbito da igreja. O propósito é que 0 pecado de tais pessoas não se torne
um exemplo perigoso, ao ser deixado impune. Em outra epístola (1 Tm
5.20), Paulo diz expressamente que isto deve ser observado em referên-
cia aos presbíteros, porque 0 ofício que exercem torna o mau exemplo
deles muito mais prejudicial. Era especialmente proveitoso que a boa
causa, que interessava a todos, fosse defendida com franqueza na pre-
sença das pessoas. Por isso, Paulo deixou bem claro que não evitava o
falar na presença de todos
Se, sendo tu judeu. O diálogo de Paulo com Pedro consiste de duas
partes. Na primeira, Paulo 0 culpa de sua injustiça feita aos gentios, forçan-
do-os a guardar a lei, da qual ele mesmo desejava eximir-se. Porque, não
levando em conta o fato de que todo homem está obrigado a guardar a lei
que estabelece para os outros, Pedro pecava mais gravemente em obrigar
os gentios a sujeitarem-se ao judaísmo, enquanto ele, um judeu, dava-se
à liberdade. A lei fora dada aos judeus, e não aos gentios. Assim, Paulo
argumenta do menor para 0 maior.
Além disso, a maneira de coerção de Pedro era rude e severa, pois ele
se recusava a manter comunhão com os gentios, a menos que aceitassem
espontaneamente 0 jugo da lei. E esta era uma condição injusta. Aliás, todo
0 vigor da reprovação está nesta palavra, fato esse que nem Crisóstomo
nem Jerônimo observaram. O uso de cerimônias para a edificação era li-
vre, contanto que os crentes não fossem destituídos de sua liberdade ou
ficassem sob qualquer restrição da qual 0 evangelho os libertara.
Capítulo 2 · 59

15. Nós, judeus por natureza. Alguns acham que isto é uma contra-
alegação, como se Paulo, falando em lugar de seu oponente, antecipasse a
objeção de que os judeus tinham privilégios mais elevados. Mas isso não
significa que estavam isentos da lei. Pois teria sido bastante absurdo que
eles, a quem a lei fora dada, reivindicassem tal coisa; embora fosse certo
que havia algumas marcas distintivas entre eles e os gentios. Não rejeito
nem adoto totalmente essa interpretação, como logo se evidenciará. Ou-
tros a entendem como que representando a própria afirmação de Paulo,
nestes termos: “Se vocês pusessem 0 fardo da lei sobre os judeus, isso se-
ria mais razoável, já que a lei lhes pertence por herança”. Esta explicação
também não satisfaz.
Portanto, passemos à segunda parte do discurso de Paulo, que co-
meça com uma antecipação. Os gentios diferiam dos judeus neste aspecto:
eram “ímpios e profanos” (1 Tm 1.9), enquanto os judeus eram santos, pois
Deus os escolhera para que fossem seu povo. E os judeus podiam lutar por
essa superioridade. Por meio de antecipação sábia, Paulo faz a objeção
mudar em direção à conclusão oposta. Se os judeus, com toda a sua dis-
tinção, viram-se forçados a correr à fé em Cristo, muito mais necessário é
que os gentios busquem a salvação pela fé. Portanto, 0 significado destas
palavras de Paulo é: “Nós, que parecemos exceder aos outros e que, pelo
benefício da aliança, temos sempre desfrutado do privilégio de estar perto
de Deus, não encontramos qualquer outra maneira de obter a salvação,
exceto por meio do crer em Cristo. Por que, então, devemos estabelecer
outra maneira para os gentios? Porque, se a lei fosse necessária ou pro-
veitosa à salvação daqueles que cumpriam seus preceitos, ela o teria sido
especialmente para nós, a quem foi outorgada. Mas, se a abandonamos e
nos voltamos para Cristo, não devemos, de modo algum, exigir dos gentios
submissão a ela”.
0 vocábulo pecadores significa, neste versículo, como em muitas ou-
tras passagens, uma pessoa “profana” (Hb 12.16) ou alguém que se encontra
perdido e alienado de Deus. Assim eram os gentios, que não desfrutavam
de comunhão com Deus, enquanto os judeus eram, por meio da adoção,
os filhos de Deus e, portanto, separados para a santidade. A expressão por
60 * Comentário de Gálatas

natureza não significa que os judeus estavam naturalmente isentos da cor-


rupção da raça humana; pois Davi, um descendente de Abraão, confessou
que fora gerado de semente impura (SI 51.5). Mas a corrupção da natureza
à qual estavam sujeitos fora curada pelo remédio da graça santificadora.
Ora, assim como a promessa tornou a bênção hereditária, assim também
este benefício é denominado natural·, tal como Paulo disse que eles proce-
diam de uma raiz santa (Rm 11.16).
Quando Paulo disse: “Somos judeus por natureza”, 0 significado
destas palavras era: “Nascemos santos; com certeza, não devido ao nosso
próprio mérito, mas porque Deus nos escolheu para sermos 0 seu povo.
Nós, que éramos por natureza judeus, 0 que fizemos? Cremos em Cristo.
Qual foi 0 propósito de crermos? Para que fôssemos justificados mediante
a fé em Cristo. Por qual razão? Porque sabemos que um homem não é
justificado pelas obras da lei”. Partindo da natureza e do efeito da fé, Paulo
argumenta que os judeus não são justificados pela lei, nem mesmo no me-
nor grau. Pois, assim como eles, querendo estabelecer a sua própria justiça,
não se submeteram à de Deus (Rm 10.3), assim também, do ponto de vista
contrário, os que crêem em Cristo confessam que são pecadores e, assim,
renunciam a justificação pelas obras. Isto envolve a principal questão; ou,
melhor, nesta única proposição está contida quase toda a controvérsia.
Devemos, portanto, examinar esta passagem com mais atenção.
O primeiro elemento a ser observado é que devemos buscar a justifi-
cação pela fé em Cristo, porque não podemos ser justificados pelas obras.
A pergunta agora é: 0 que significa a expressão as obras da lei? Os papistas,
confundidos por Orígenes e Jerônimo, acreditam e, de fato, asseveram em
termos absolutos que a disputa se relaciona a sombras, interpretando, de
acordo com isso, as obras da lei como cerimônias. Entendem que Paulo não
estava argumentando sobre a justiça gratuita outorgada a nós por Cristo.
Eles não vêem absurdo em sustentar que “nenhum homem é justificado
pelas obras da lei” e, apesar disso, que somos considerados justos aos
olhos de Deus pelos méritos das obras. Em suma, sustentam que essa não
é uma referência às obras da lei moral. Mas 0 contexto revela claramente
que a lei moral também está compreendida nestas palavras, pois quase
Capítulo 2 · 61

tudo 0 que Paulo afirma depois se refere à lei moral, e não à lei cerimonial.
E, novamente, ele contrasta a justiça da lei com a graciosa aceitação com
a qual Deus se apraz favorecer-nos.
Nossos oponentes objetam que o termo “obras” teria sido usado sem
qualquer adição, como se Paulo não pretendesse limitá-lo a uma categoria
particular. Mas respondo que há uma excelente razão para esse tipo de ex-
pressão; pois, se uma pessoa excedesse aos anjos em santidade, nenhum
galardão se deveria às obras, e sim ao fato de que Deus o prometera. A
perfeita obediência à lei é justiça e tem uma promessa de eterna vida ane-
xada a si. Mas 0 seu caráter procede de Deus, que declara: Aquele que a
cumprir a viverá (cf. Lv 18.5). Trataremos deste ponto mais plenamente
em seu devido lugar. Além disso, a controvérsia com os judeus se referia
à lei. Por essa razão, Paulo prefere lutar corpo a corpo e levar 0 ataque ao
campo deles, em vez de fugir de um lado para outro, aparentando evasão
ou falta de confiança em sua causa. Conseqüentemente, ele resolve enfren-
tar a controvérsia a respeito da lei.
A segunda objeção deles é que todo 0 problema não se referia a ce-
rimônias. Admitimos isso. Por que, então, indagam eles, Paulo passaria
repentinamente de um aspecto particular do assunto para 0 assunto como
um todo? Esta foi a única causa do equívoco de Orígenes e Jerônimo. Eles
não pensaram que, enquanto os falsos apóstolos contendiam apenas a
respeito de cerimônias, Paulo tratava do assunto de forma mais abran-
gente. Orígenes e Jerônimo não consideravam que a própria razão por
que Paulo lutava com tanta paixão era que a doutrina tinha conseqüên-
cias mais sérias do que parecia à primeira. Paulo não se preocupava tanto
com a observância das cerimônias, e sim com o fato de que a confiança e
a glória da salvação estavam sendo transferidas para as obras. De modo
semelhante, nas disputas sobre a proibição de certas carnes e dias, nos
importamos não tanto com a proibição em si mesma, e sim com as arma-
dilhas preparadas para a consciência. Paulo não estava se afastando do
tema, ao começar a discussão sobre a lei como um todo, embora os falsos
apóstolos argumentassem restritamente sobre as cerimônias. 0 objetivo
deles em impor as cerimônias era que os homens buscassem a salvação na
62 · Comentário de Gálatas

obediência à lei, que, conforme afirmavam de modo errôneo, era meritória.


Por isso, Paulo colocou diante dos olhos deles somente a graça de Cristo,
e não a lei moral. Contudo, esta discussão ampla não ocupa toda a epís-
tola. Paulo aborda com abrangência 0 assunto específico das cerimônias.
Mas, como o âmago do problema era se a justiça tem de ser obtida por
meio das obras ou por meio da fé, era conveniente que este assunto fosse
resolvido em primeiro lugar. Os papistas de hoje ficam desconcertados
quando extraímos deles 0 reconhecimento de que os homens são justifica-
dos somente pela fé. Por isso, admitem, com relutância, que as obras da lei
incluem as obras morais. Todavia, muitos deles imaginam que apresentam
uma boa defesa quando citam a interpretação de Jerônimo; mas 0 contexto
demonstrará que as palavras também se referem à lei moral.
16. Mediante a fé em Cristo Jesus. Paulo não somente afirma que
as cerimônias ou qualquer tipo de obra são insuficientes sem 0 auxílio da
fé, mas também rebate a negação deles com uma afirmação que denota
exclusividade, como se dissesse: “Não pelas obras, mas unicamente pela fé
em Cristo”. Do contrário, sua afirmação teria sido trivial e irrelevante. Pois
os falsos apóstolos não rejeitavam a Cristo nem a fé, mas exigiam que as
cerimônias fossem juntadas a ambos (a Cristo e à fé). Se Paulo tivesse ad-
mitido essa junção, eles estariam perfeitamente de acordo, e não haveria
necessidade de perturbar a igreja com esse debate desagradável. Portan-
to, deve ficar estabelecido que essa proposição denota exclusividade, ou
seja: não somos justificados de alguma outra forma, senão pela fé; ou o que
significa a mesma coisa: somos justificados somente por meio da fé.
Disso se torna evidente quão insensatos são os papistas de nossos
dias, lutando contra nós acerca do termo “som ente”, como se 0 tivésse-
mos inventado. Paulo desconhecia essa teologia dos papistas, os quais
afirmam que uma pessoa é justificada mediante a fé, mas atribuem às
obras uma parte da justiça. Paulo nada sabia a respeito dessa semi-jus-
tificação. Pois, quando nos diz que somos justificados por meio da fé,
visto não poderm os ser justificados por meio das obras, ele tem certeza
daquilo que é verdadeiro, ou seja: não podemos ser justificados pela
justiça de Cristo, a menos que sejamos pobres e destituídos de nossa
Capítulo 2 · 63

própria justiça. Conseqüentemente, temos de atribuir ou tudo ou nada


à fé ou às obras. Quanto à palavra “justificação” e a maneira como a fé
é a sua causa, veremos isso mais adiante.
Ninguém será justificado. Paulo já havia feito um apelo à consciência
de Pedro e dos demais. Agora ele confirma mais plenamente seu apelo,
dizendo que esta é a verdade: pelas obras da lei nenhum mortal obterá jus-
tificação. A justiça gratuita se concretiza em nós quando nos despimos de
nossa justiça própria. Além do mais, quando Paulo assevera que nenhum
mortal é justificado pela justiça da lei, isto significa que todos os mortais
estão excluídos desse tipo de justificação e ninguém pode alcançá-la.

17. Mas se, procurando ser justificados em Cristo, fomos nós mesmos
também achados pecadores, dar-se-á 0 caso de ser Cristo minis-
tro do pecado? Certo que não!
18. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me
constituo transgressor.
19. Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver
para Deus. Estou crucificado com Cristo;
20. logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse
viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus,
que me amou e a si mesmo se entregou por mim.
21. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei,
segue-se que morreu Cristo em vão.

17. Mas se, procurando ser justificados. Paulo agora se volve aos gála-
tas. Temos de evitar a conexão desta cláusula com a anterior, como se ela
fizesse parte do discurso dirigido a Pedro. Que necessidade havia de falar
deste modo a Pedro? No entanto, esse fato tem pouca ou nenhuma relevân-
cia para 0 problema. Portanto, que cada um formule sua própria opinião.
Além disso, alguns (entre eles, Crisóstomo) a lêem afirmativamente
e a entendem neste sentido: “Se, enquanto buscamos ser justificados em
Cristo, não somos plenamente justos e continuamos impuros; e se Cristo
64 · Comentário de Gálatas

não é suficiente para nossa justiça, segue-se que Cristo é 0 ministro de um


ensino que deixa os homens no pecado”. É como se, por meio dessa pro-
posição absurda, Paulo acusasse de blasfêmia os que atribuíam à lei uma
parte da justificação. Mas, visto que logo depois Paulo usa uma expressão
incomum de grande admiração, uma expressão que ele empregava sempre
depois de perguntas, inclino-me a pensar que Paulo disse as palavras deste
versículo com 0 propósito de remover a conclusão absurda. Portanto, em
seu modo costumeiro, ele coloca uma pergunta nos lábios de seus antago-
nistas: “Se, em conseqüência da justiça procedente da fé, nós, que somos
judeus e éramos santificados desde 0 ventre, somos considerados culpa-
dos e poluídos, diremos que Cristo é o autor do pecado, no sentido de que
Ele torna 0 poder do pecado vigoroso em seu povo?
Essa dúvida resulta do fato de que Paulo havia afirmado que os ju-
deus, ao crerem em Cristo, renunciam a justiça procedente da lei. Pois,
mesmo separados de Cristo, os judeus, devido ao fato de estarem separa-
dos da corrupção geral dos gentios, parecem, em alguns aspectos, estar
excluídos do número dos pecadores. A graça de Cristo os coloca no mes-
mo nível com os gentios; e o remédio que lhes é comum revela que ambos
tinham a mesma doença. Esta é a força da palavra também. “Nós mesmos
também”, disse Paulo, significando não apenas qualquer tipo de homem,
mas também os judeus, que estavam numa posição mais elevada.
Certo que não! Paulo rejeita com toda a razão a idéia. Cristo, ao trazer
à luz 0 pecado que estava oculto, não é ministro do pecado, como se Ele,
destituindo-nos de justiça, abrisse as portas do pecado ou estabelecesse
0 seu domínio. Os judeus estavam errados em reivindicar para si mesmos

qualquer santidade à parte de Cristo, pois não tinham nenhuma. Por isso,
a censura: “Cristo veio para tirar-nos da justiça procedente da lei, para
transformar santos em pecadores, para sujeitar-nos ao pecado e à culpa?”
Paulo nega isso, repelindo, com horror, a blasfêmia. Cristo não introduziu
0 pecado; pelo contrário, Ele 0 revelou. Cristo não removeu a justiça, mas
despojou dos judeus a sua falsa pretensão.
18. Porque, se torno a edificar. A resposta tem duas partes. Esta é a
primeira parte e nos diz que tal suposição está em desarmonia com todo 0
Capítulo 2 · 65

ensino de Paulo, porque ele havia pregado a fé de Cristo de um modo que a


vinculava com a ruína e a destruição do pecado. João nos ensina que Cristo
veio não para edificar 0 reino do pecado, e sim para destruí-lo (1 Jo 3.8). Por
isso, Paulo também declara que, ao pregar 0 evangelho, ele havia restaurado
a verdadeira justiça, a fim de que 0 pecado fosse destruído. Portanto, era
altamente improvável que a mesma pessoa que destruíra 0 pecado restaura-
ria a sua força. Ao demonstrar esse absurdo, Paulo repele a calúnia.
19. Porque eu, mediante a própria lei. Agora, temos a resposta dire-
ta, ou seja, que não devemos atribuir a Cristo 0 que é uma tarefa peculiar
da lei. Não era necessário que Cristo destruísse a justiça procedente da lei,
visto que a própria a lei mata seus discípulos. Parafraseando: “Vocês enga-
nam pessoas infelizes com a falsa noção de que devem viver pela lei; mas,
com esse mesmo pretexto, vocês as mantêm debaixo da lei. No entanto,
vocês trazem uma acusação contra 0 evangelho, a de que ele aniquila a
justiça que temos pela lei. Mas é a lei que nos força a morrer para ela mes-
ma; pois, ao ameaçar a nossa destruição, ela não nos deixa nada, senão
desespero, e assim nos impede de confiar nela”.
Esta passagem será melhor entendida pela confrontação com Ro-
manos 7. Ali, Paulo descreve elegantemente como não é possível que
alguém viva para a lei, exceto aquele para quem a lei está morta, ou
seja, ineficaz e sem efeito. Pois tão logo a lei começa a viver em nós, ela
inflige um golpe fatal, pelo qual morremos, e ao mesmo tempo traz vida
à pessoa que já se encontra morta para 0 pecado. Aqueles que vivem
para a lei nunca sentiram 0 poder da lei nem provaram 0 que ela signi-
fica; pois a lei, quando verdadeiram ente entendida, nos faz morrer para
si mesma. Esta, e não Cristo, é a fonte do pecado.
Morri para a lei é renunciá-la e libertar-se de seu domínio, de modo
que não mais confiamos nela, e ela não mais nos mantém cativos sob o
jugo de escravidão. Ou pode significar que, visto que ela entregou todos
nós à destruição, não encontramos nela vida alguma. Esse último ponto de
vista é preferível. Pois ele nega que Cristo seja 0 autor do mal, por que a lei
é mais prejudicial do que útil. A lei traz em seu próprio âmago a maldição
que nos mata. Daí, segue-se que a morte efetuada pela lei é verdadeiramen­
66 · Comentário de Gálatas

te letal. Paulo contrasta essa morte efetuada pela lei com outro tipo de
morte, ou seja: a morte na comunhão vivificante da cruz de Cristo. Ele diz
que, por estar crucificado juntamente com Cristo, pode começar a viver. A
pontuação comum desta passagem obscurece seu significado. Lê-se: “Por
meio da lei morri para a lei, a fim de viver para Deus”. Mas 0 contexto flui
mais polidamente assim: “Mediante a lei, morri para a lei” e, então, separa-
damente: “A fim de que eu viva para Deus, estou crucificado com Cristo”.
A fim de viver para Deus. O apóstolo mostra que 0 tipo de morte ao
qual os falsos apóstolos se apegavam como fundamento de contenda era
desejável. Pois ele disse que estamos mortos para a lei, a fim de vivermos
não para 0 pecado, e sim para Deus. Viver para Deus significa, às vezes,
regular nossa vida segundo a vontade dEle, de modo que, em toda a nossa
vida, não cogitamos em nada mais além de sermos aprovados por Ele. Mas
aqui significa viver, se podemos usar esta expressão, a vida de Deus. Deste
modo, são preservados os vários pontos de contraste; pois, seja qual for
0 sentido em que estamos mortos para 0 pecado, neste mesmo sentido
vivemos para Deus. Em suma, Paulo nos diz que essa morte não é 0 fim
de tudo, e sim a origem de uma vida melhor; porque Deus nos resgata do
naufrágio da lei e, mediante sua graça, nos restaura para outra vida. Nada
direi a respeito das outras interpretações. Este me parece ser 0 verdadeiro
significado do apóstolo.
“Estou crucificado com Cristo” explica a maneira como nós, que esta-
mos mortos para a lei, vivemos para Deus. Enxertados na morte de Cristo,
extraímos dessa morte uma energia secreta, assim como os brotos extra-
em vigor da raiz. Novamente, 0 escrito de dívida da lei, “que era contra
nós”, Cristo 0 cravou em sua cruz (Cl 2 . 14). Portanto, crucificados com Ele,
estamos livres de toda a maldição e culpa provenientes da lei. Aquele que
despreza esse livramento anula a cruz de Cristo. Lembremo-nos, porém,
de que somos libertos do jugo da lei somente por nos tornarmos um com
Cristo, assim como os brotos extraem das raízes a seiva somente por se
desenvolverem em uma única natureza.
20. Já não sou eu quem vive. O termo morte é sempre odioso ao espí-
rito humano. Havendo dito que estamos crucificados “com Cristo”, Paulo
Capítulo 2 · 67

acrescenta que esse fato nos torna vivos.


Mas Cristo vive em mim. Isto explica 0 que significa “viver para
Deus”. Paulo não vivia mediante a sua própria vida; era animado pelo
poder secreto de Cristo. Assim, pode ser dito que Cristo vivia e crescia
nele. Porque, como a alma energiza 0 corpo, também Cristo transm ite
vida a seus membros. Eis uma afirmação notável: os crentes vivem fora
de si mesmos, ou seja, vivem em Cristo. Isso só pode acontecer se man-
tiverem genuína e verdadeira comunhão com Ele. Cristo vive em nós de
duas maneiras: uma consiste em governar-nos por meio de seu Espírito
e dirigir todas as nossas ações; a outra, em tornar-nos participantes
de sua justiça, de modo que, embora nada possamos fazer por nós
mesmos, somos aceitos aos olhos de Deus. A primeira se relaciona ã
regeneração; a segunda, à justificação pela livre graça. Este é 0 sentido
em que entendo esta passagem. Mas, se alguém achar melhor aplicá-la
a ambas as maneiras, concordarei de boa vontade.
E esse viver que, agora, tenho na carne. Não existe uma cláusula
deste versículo que não tenha sido distorcida por uma variedade de in-
terpretações. Alguns explicam 0 termo “carne” como a depravação da
natureza pecaminosa. Todavia, Paulo se referia apenas à uida no corpo.
E contra isto se levanta a seguinte objeção: “Você vive uma vida no cor-
po. Mas, enquanto este corpo corruptível exerce suas funções, enquanto
é sustentado por comida e bebida, ele não está vivendo a vida celestial de
Cristo. Portanto, é um paradoxo irracional asseverar que, enquanto você
está vivendo uma vida humana normal, sua vida não é propriamente sua”.
Paulo replica que essa vida consiste de fé, e isso implica que ela é um
segredo oculto dos sentidos humanos. A vida, pois, que obtemos pela fé,
não é visível aos olhos, mas é percebida interiormente, na consciência,
pelo poder do Espírito. Assim, a vida no corpo não impede que desfrute-
mos, pela fé, a vida celestial. “E nos fez assentar nos lugares celestiais em
Cristo Jesus” (Ef 2.6). Além disso: “Já não sois estrangeiros e peregrinos,
mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus” (Ef 2.19). E, uma
vez mais: “A nossa pátria está nos céus” (Fp 3.20). Os escritos de Pau-
10 estão saturados de afirmações como essas, mostrando que, enquanto
68 * Comentário de Gálatas

vivemos no mundo, vivemos ao mesmo tem po no céu; não som ente por-
que nosso Cabeça está no céu, mas tam bém porque, em virtude de nossa
união, tem os uma vida em comum com Ele (Jo 14.23).
Que me amou. Esta cláusula é adicionada para expressar 0 poder da
fé, pois esta indagação poderia ocorrer imediatamente a alguém: “Quando
a fé recebe esse poder de comunicar à nossa alma a vida de Cristo?” De
acordo com isso, 0 apóstolo nos informa que 0 amor e a m orte de Cristo
são os objetos sobre os quais a fé repousa. É desta maneira que 0 efeito da
fé deve ser julgado. Por que razão vivemos pela fé de Cristo? Porque Ele
nos “amou e a si mesmo se entregou” por nós. O am or de Cristo O levou a
unir-se a nós. Ele completou a união por meio de sua m orte. Ao dar-se por
nós, Cristo sofreu em nossa própria pessoa. Além do mais, a fé nos torna
participantes de tudo 0 que ela encontra em Cristo. A m enção do amor
significa 0 mesmo que João disse: “Não que tenham os amado a Deus, mas
ele nos antecipou por seu am or” (1 Jo 4.10). Se algum mérito nosso tivesse
compelido a Deus a redimir-nos, este mérito teria sido declarado. Agora,
Paulo atribui tudo ao amor; portanto, resulta da graça gratuita. Observe-
mos a ordem: Ele nos “amou e a si mesmo se entregou” por nós. Era como
se Paulo dissesse: “Ele não teve outra razão para morrer, exceto 0 fato de
que nos am ou”. E isso se deu quando éram os “inimigos”, segundo Paulo
mesmo declara em Romanos 5.20.
A si mesmo se entregou. Não há palavras que expressem perfeita-
mente o que isto significa. Pois, quem pode encontrar linguagem capaz
de declarar a excelência do Filho de Deus? Todavia, foi Ele mesmo que
se entregou como preço de nossa redenção. A expiação, a purificação, a
satisfação e todos os benefícios que recebem os da m orte de Cristo estão
incluídos nas palavras “a si mesmo se entregou”.
Por mim é m uito enfático. Não é suficiente contem plar a Cristo
com o Aquele que m orreu pela salvação do m undo, se não experim enta
as conseqüências desta m orte e não é capacitado a reivindicá-la como
a sua própria m orte.
21. Não anulo . Há grande peso nestas palavras, pois quão terrível
é a ingratidão m anifestada no d esp rezar a graça de Deus, tão im ensu­
Capítulo 2 · 69

rável em si mesma e obtida a preço tão elevado! Todavia, o apóstolo


acusou os falsos apóstolos desse sacrilégio; eles não ficaram satisfeitos
em ter apenas a Cristo, mas introduziram outros meios exteriores de
obter a salvação. Pois, a não ser que renunciemos todas as outras espe-
ranças e nos apeguemos somente a Cristo, rejeitamos a graça de Deus.
E 0 que resta à pessoa que rejeita a graça de Deus e a si mesma se julga
indigna da vida eterna (At 13.46)?
Morreu Cristo em vão. Não teria havido nenhum valor na morte de
Cristo ou Ele teria morrido sem qualquer recompensa, pois a recompen-
sa de sua morte consiste em que Ele nos reconciliou com o Pai, ao fazer
expiação por nossos pecados. Segue-se que somos justificados mediante
a sua graça e, portanto, não mediante nossas obras. Os papistas interpre-
tam isso em referência à lei cerimonial. Mas quem não percebe que isto
se aplica a toda a toda a lei? Se fôssemos capazes de produzir uma justi-
ça propriamente nossa, Cristo sofreu em vão; porquanto Ele sofreu a fim
de obtê-la para nós. E por que haveríamos de buscar em outra fonte o
que poderíamos realizar por nós mesmos? Se a morte de Cristo é a nossa
redenção, então, éramos cativos; se ela é 0 pagamento, então, éramos de-
vedores; se é a expiação, então, éramos culpados; se é a purificação, então,
éramos imundos. No sentido contrário, aquele que atribui às obras a sua
purificação, 0 seu perdão, a sua expiação, a sua justiça ou 0 seu livramen-
to, torna inútil a morte de Cristo.
Talvez alguém diga que este argumento não possui nenhum valor
contra aqueles que unem a graça de Cristo às obras. E isso, conforme
muitos admitem, era 0 que os falsos apóstolos faziam. Alegava-se que
estas duas doutrinas são coexistentes, ou seja: a justiça é mediante a lei;
somos redimidos pela morte de Cristo. Concordaríamos, se fosse certo
que uma parte da justiça é obtida pelas obras e a outra parte procede
da graça. Mas essa teologia era desconhecida por Paulo, como pode ser
facilmente provado. Seu argumento contra os oponentes ou é conclusi-
vo ou não 0 é. Se algum blasfemo ousar acusá-lo de má argumentação,
uma poderosa defesa logo se apresentará, pois ser considerado justo aos
olhos de Deus (o assunto que Paulo abordava) não é 0 que os homens
70 · Comentário de Gálatas

imaginam, e sim 0 que é absolutamente perfeito.


Não somos, agora, chamados a defender Paulo diante dos blasfemos
que ousam falar contra 0 Espírito Santo. Estamos preocupados com os
papistas. Eles nos ridicularizam quando seguimos 0 raciocínio de Paulo,
a saber: se a justiça é procedente de obras, então Cristo morreu em vão.
Acreditam que possuem uma excelente réplica, com a qual seus sofistas
os têm munido, ou seja: que Cristo mereceu por nós a primeira graça,
isto é, a oportunidade para 0 merecimento, e que 0 mérito de sua morte
concorre com as satisfações das obras para 0 perdão diário dos pecados.
Que ridicularizem a Paulo, de cujo ensinamento somos seguidores. Devem
antes refutá-lo para então poderem refutar-nos. Sabemos que ele lidava
com homens que não excluíam inteiramente a graça de Cristo, senão que
atribuíam a metade da salvação às obras. Em oposição a eles, 0 apóstolo
argumenta que, se a justiça é mediante a lei, então Cristo morreu em vão,
e assim Ele não concede nem sequer uma gota de justiça às obras. Os pa-
pistas não diferem deles nem um pouquinho; e assim estamos livres para
assumir 0 argumento de Paulo e com ele refutá-los.
Capítulo 3

1. Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos


olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?
2. Quero apenas saber isto de vós: recebestes 0 Espírito pelas obras
da lei ou pela pregação da fé?
3. Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais,
agora, vos aperfeiçoando na carne?
4. Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes? Se, na verdae, fo-
ram em vão.
5. Aquele, pois, que vos concede 0 Espírito e que opera milagres entre
vós, porventura, 0 faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé?

1. Ó g álatas insensatos. 0 apóstolo m istura, ou melhor, insere,


um a reprim enda às suas afirm ações doutrinárias. Talvez alguns se sin-
tam adm irados porque ele não esperou até fim da epístola para fazer a
reprim enda. Mas a p ró p ria natureza dos erro s que ele expôs 0 compe-
liu inevitavelm ente a um a explosão das em oções. Quando ouvim os que
0 Filho de Deus, com to d as as suas bênçãos, é rejeitado e sua m orte,
estim ada em nada, qual o cren te piedoso que não se sen te indignado?
Portanto, 0 apóstolo declara que são in sen sato s άνόητοι - ou seja, “men-
tes d eso rd en ad as” ‫ ־‬os que se envolvem em tal sacrilégio. Ele os acusa
não só de perm itirem ser enganados, mas tam bém de se deixarem levar
por algum tipo de encantam ento, 0 que era extrem am ente sério. Paulo
insinua que 0 trop eço deles era mais um a q u estão de dem ência do que
de ingenuidade.
72 · Comentário de Gálatas

Alguns pensam que Paulo se reíeria ao caráter deles como povo,


que, originado dos bárbaros, era difícil de ser treinado. Ao contrário dis-
so, penso que 0 apóstolo se referia ao próprio ato de serem enganados.
Parece algo sobrenatural: depois de desfrutarem do evangelho com tal
clareza, os gálatas foram afetados pelo engano de Satanás. Paulo diz que
estavam fascinados e com “mentes desordenadas” não somente porque
desobedeciam à verdade, mas também porque, depois de receberem um
ensino tão claro, tão completo, tão amável e tão poderoso, eles apos-
tataram imediatamente. Erasmo preferiu interpretar “obedecer” com 0

sentido de “crer”. Não estou preparado para rejeitar essa tradução, mas
prefiro a palavra “obedecer”, visto que Paulo não os acusou de haverem
rejeitado o evangelho desde o princípio, e sim de não haverem perseve-
rado na obediência.
Ante cujos olhos. Como eu já havia sugerido, estas palavras visavam
expressar um agravamento; pois, quanto mais Cristo era conhecido, tanto
mais grave era 0 erro de abandoná-Lo. Paulo lhes diz que a clareza de seu
ensino era tal, que não era uma doutrina obscura, e sim uma imagem nítida
e vivida de Cristo. Eles conheceram a Cristo de tal maneira, que podiam
afirmar tê-Lo visto.
Foi Jesus Cristo exposto. A interpretação de Agostinho referente à
palavra προεγράφη (foi exposto) é abrupta e incoerente com a intenção do
apóstolo. Ele faz este vocábulo significar que Cristo seria excluído das posses
de alguém. Outros propõem uma palavra diferente: proscriptus, que, usada
no sentido de “proclamado publicamente”, não seria incoerente. Os gregos
tomaram por empréstimo do verbo προγράφο a palavra προγράμματα, para
denotar as tabuletas em que se faziam anúncios de propriedade destinada
à venda e que eram expostas à vista de todos. Mas 0 particípio retratado é
menos ambíguo e, a meu ver, 0 mais apropriado. Para mostrar quão vigorosa
havia sido a sua pregação, Paulo a compara, primeiramente, a um quadro
que exibia, de modo vivido, 0 retrato de Cristo àqueles crentes.
Assim, não satisfeito com esta comparação, Paulo acrescenta: foi
Jesus Cristo exposto como crucificado. Com isso, Paulo sugere que a
verdadeira visão da morte de Cristo não poderia tê-los afetado mais
Capítulo 3 · 73

do que a própria pregação de Paulo. A opinião de alguns no sentido


de que os gálatas tinham crucificado novamente o Senhor (Hb 6.6) e
O haviam transformado em objeto de escárnio, afastando-se da pureza
do evangelho; ou de que deram ouvidos e ofereceram sua confiança a
impostores que crucificaram 0 Senhor, essa opinião me parece bastante
forçada. Portanto, 0 significado é que a doutrina que Paulo os instruíra
a respeito de Cristo de tal maneira que era como se houvesse posto
diante deles um quadro, ou seja, “Cristo... crucificado”. Esse tipo de
representação não podia ter sido realizada por eloqüência ou “palavras
persuasivas de sabedoria humana” (1 Co 2.4), se não tivesse sido acom-
panhada do poder do Espírito, sobre 0 qual Paulo falou em ambas as
epístolas aos crentes de Corinto.
Os que desejam cumprir corretamente 0 ministério do evangelho de-
vem aprender não apenas a falar e a citar textos, mas também a penetrar a
consciência das pessoas, de modo que os homens vejam Cristo crucifica-
do e 0 derramamento de seu sangue. Quando a igreja tem pintores como
estes, ela não precisa mais de imagens mortas feitas de madeira e pedra,
nem de de quaisquer pinturas. Com certeza, as imagens e pinturas foram
inicialmente admitidas nos templos cristãos quando os pastores se tor-
naram mudos e se tornaram meras sombras ou quando passaram a falar
poucas palavras do púlpito, de modo tão frio e negligente, que 0 poder e
eficácia do ministério foram completamente extintos.
2. Quero apenas saber isto de vós. Paulo agora confirma sua causa
com argumentos vigorosos. 0 primeiro é extraído da própria experiên-
cia deles, ao lembrar-lhes de que maneira 0 evangelho foi introduzido
entre eles. Quando ouviram 0 evangelho, receberam 0 Espírito. Portan-
to, deviam à fé, e não à lei, a recepção desta bênção. Pedro usa este
mesmo argumento em sua defesa perante irmãos por haverem batizado
pessoas incircuncisas (At 10.47). Paulo e Barnabé fizeram 0 mesmo no
debate que travaram em Jerusalém sobre este assunto (At 15.2,12). Ma-
nifestaram, pois, evidente ingratidão em não se submeterem à doutrina
pela qual receberam 0 Espírito. A oportunidade que Paulo lhes deu de
responderem era uma expressão de confiança, e não de dúvida; porque
74 · Comentário de Gálatas

as suas convicções, baseadas em sua própria experiência, forçavam-


nos a reconhecer 0 que era verdade.
Fé, neste versículo, é usada, em figura de linguagem, como um
substituto do evangelho, chamado de "a lei da fé ”, em outra epístola
(Rm 3.27), porque nos m ostra a graça gratuita de Deus em Cristo, sem
os méritos das obras. Creio que 0 Espírito, neste versículo, significa a
graça da regeneração, que é comum a todos os crentes; embora eu não
tenha qualquer objeção, se alguém 0 entender como uma referência aos
dons peculiares com que 0 Senhor, naquele tempo, honrava a pregação
do evangelho.
Talvez seja argumentado que, neste aspecto, 0 Espírito não era dado
a todos. Eu respondo: era suficiente ao propósito de Paulo que os gálatas
soubessem que 0 poder do Espírito Santo em sua igreja acompanhara a dou-
trina de Paulo e que os crentes eram individualmente capacitados com os
dons do Espírito para a edificação comum. De modo semelhante, pode-se
objetar que esses dons não eram sinais infalíveis da adoção e, portanto,
não se aplicam à presente questão. Eu respondo: era suficiente que 0 Se-
nhor confirmasse a doutrina de Paulo por meio dos dons visíveis do seu
Espírito. Uma opinião ainda mais simples é que eles haviam sido distingui-
dos pela bênção comum da adoção, antes que os impostores introduzissem
seus acréscimos. Paulo disse em Efésios: “Em quem também vós, depois que
ouvistes a palavra da verdade, 0 evangelho da vossa salvação, tendo nele
também crido, fostes selados com 0 Santo Espírito da promessa”.
3. Sois assim insensatos...? Os expositores não se mostram concor-
des no que diz respeito ao significado de no Espírito e na carne. Em minha
opinião, Paulo faz alusão ao que havia dito a respeito do Espírito. Era como
se estivesse dizendo: “Visto que 0 ensino do evangelho lhes trouxe 0 Espí-
rito Santo, o início da carreira cristã de vocês foi espiritual. Agora, porém,
caíram numa péssima condição, e pode ser dito que caíram do Espírito à
carne”. O termo carne denota as coisas externas e momentâneas, como
cerimônias (particularmente quando separadas de Cristo) ou a doutrina
morta e inconsistente. Havia uma estranha incoerência entre 0 esplêndido
começo da vida cristã deles e 0 seu futuro progresso.
Capítulo 3 · 75

4. Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes? Este é um argumento


diferente. Havendo sofrido tanto por amor ao evangelho, perderiam tudo
agora, de uma só vez? Ele lhes pergunta em tom de repreensão se estavam
dispostos a perder as vantagens de tantas e maravilhosas batalhas que ha-
viam realizado pela fé. Se 0 que Paulo lhes havia comunicado não era a fé
genuína, então, era precipitado sofrer em defesa de uma causa má. Todavia,
eles haviam experimentado a presença de Deus em meio às perseguições.
Por isso, Paulo acusa de malícia os falsos apóstolos, ao privarem os gálatas
de honras tão valiosas. No entanto, ele ameniza a severidade de sua queixa,
acrescentando: “Se, na verdade, foram em vão”. Assim, o apóstolo inspira
a alma daqueles crentes com a expectativa de algo melhor, incitando-os ao
arrependimento. Pois o propósito de toda correção não é levar as pessoas
ao desespero, e sim encorajá-las a trilharem um caminho melhor.
5. Aquele, pois, que vos concede. Paulo agora não está falando sobre
a graça da regeneração, mas sobre os outros dons do Espírito, pois um as-
sunto diferente do anterior é introduzido. Ele adverte aos gálatas que todos
os dons do Espírito Santo, nos quais eles excediam, eram os frutos do evan-
gelho, daquele evangelho que fora proclamado entre eles pelos lábios do
próprio apóstolo. Os novos mestres lhes roubavam esses dons, quando eles
deixavam 0 evangelho e se submetiam a outra doutrina. Em proporção ao
valor que atribuíam a esses dons, aos quais 0 apóstolo acrescenta os mila-
gres, eles deveriam se apegar mais resoluta e atentamente ao evangelho.

6. É 0 caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado


para justiça.
7. Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão.
8. Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os
gentios, preanunciou 0 evangelho a Abraão: Em ti, serão abenço-
ados todos os povos.
9. De modo que os da fé são abençoados com 0 crente Abraão.

Depois de apelar aos fatos e às experiências, Paulo agora cita as


76 · Comentário de Gálatas

Escrituras. Em primeiro lugar, ele traz a lume 0 exemplo de Abraão. Argu-


mentos extraídos de exemplos nem sempre são conclusivos, mas este é
um dos mais poderosos, visto que não há exceções, quer na pessoa, quer
no assunto. Não há diversos caminhos para a justiça; por isso, Abraão
é chamado “0 pai de todos os que crêem” e um padrão comum a todos
eles. De fato, a regra universal para se obter a justiça nos foi prescrita na
pessoa de Abraão.
6. É 0 caso de Abraão. A expressão “assim como” dever ser suben-
tendida no início deste versículo, pois havendo Paulo formulado uma
pergunta, decidiu remover imediatamente toda base para hesitação. Pelo
menos, a expressão “assim como” (καθώς) refere-se somente ao versículo
anterior, à recepção do “Espírito” e à operação de milagres “pela pregação
da fé”. Era como se Paulo estivesse dizendo que, na graça outorgada a eles,
podia se achar uma similaridade com 0 caso de Abraão.
Creu em Deus. Com esta citação, Paulo comprova, tanto aqui como
em Romanos 4, que os homens são justificados pela fé, porque a fé de
Abraão lhe foi imputada para justiça. É mister indagar, primeiramente,
0 que Paulo pretendia dizer com 0 vocábulo fé; em segundo lugar, 0 que

significa justiça; e, em terceiro lugar, por que a fé é representada como a


causa da justificação. Fé, neste versículo, não deve ser entendida como
um tipo de convicção que os homens podem ter a respeito da verdade
de Deus. Embora Caim tenha exercido, inúmeras vezes, fé no Deus que
pronunciou castigo contra ele, essa mesma fé não lhe foi de qualquer
proveito para obtenção da justiça. Abraão foi justificado mediante 0
crer, porque, ao receber de Deus uma prom essa de bondade paternal,
ele a aceitou como infalível. A fé tem uma relação e um respeito tal pela
Palavra de Deus que pode capacitar os homens a descansar e a confiar
em Deus.
No tocante à palavra justiça, é preciso observar a fraseologia de Moisés.
Ao afirmar que Abraão “creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”
(Gn 15.6), ele queria dizer que 0 justo é aquele indivíduo reputado como tal
aos olhos de Deus. Ora, visto que os homens não possuem qualquer justiça
em si mesmos, só podem obtê-la por imputação, porque Deus reputa como
Capítulo 3 · 77

justiça a fé dos que crêem. Somos, pois, informados de que nossa justifica-
ção é mediante a fé (Rm 3.21; 5.1), não porque a fé infunde em nós um hábito
ou uma qualidade, mas porque somos aceitos por Deus.
Mas, por que à fé recebe tamanha honra, a ponto de ser chamada
a causa de nossa justificação? Primeiramente, temos de observar que a
fé é apenas uma causa instrumental. Falando de modo restrito, a nossa
justiça não é nada mais do que a nossa aceitação graciosa por parte de
Deus, a aceitação sobre a qual está alicerçada a nossa salvação. Mas,
visto que o Senhor testifica seu amor e sua graça no evangelho, por nos
oferecer a justiça sobre a qual temos falado, nós a recebemos por meio
da fé. Assim, ao atribuirmos à fé a justificação do homem, não estamos
tratando da causa principal, mas apenas indicando 0 caminho pelo qual
os homens podem chegar à verdadeira justiça. Portanto, esta justiça não
é uma qualidade inerente nos homens, e sim 0 dom de Deus. Esta justiça
só pode ser desfrutada por meio da fé. Tampouco é uma recompensa
justa devida à fé, porque recebemos por meio da fé 0 que Deus nos dá
gratuitamente. Todas as expressões semelhantes à que agora citamos
têm o mesmo sentido: somos “justificados gratuitamente por sua graça”
(Rm 3.24); Cristo é a nossa justiça. A misericórdia de Deus é a causa de
nossa justiça. A morte e a ressurreição de Cristo obtiveram a justiça por
nós. A justiça é outorgada por meio do evangelho. Obtemos a justiça pela
instrumentalidade da fé.
Isto revela 0 ridículo do erro de tentar reconciliar as duas proposi-
ções: que somos justificados pela fé e, ao mesmo tempo, pelas obras. Pois
aquele é justo “pela fé” (Hc 2.14; Hb 10.38) é pobre e destituído de justiça
pessoal, descansando tão-somente na graça de Deus. Esta é a razão por
que Paulo conclui, na Epístola aos Romanos, que Abraão, tendo obtido a
justiça pela fé, não tinha qualquer direito de se gloriar diante de Deus (Rm
4.2). Pois não se diz que a fé lhe foi imputada como parte da justiça, mas
simplesmente como justiça, de modo que a sua fé era verdadeiramente a
sua justiça. Além disso, a fé não olha para qualquer outra coisa, a não ser
para a misericórdia de Deus e para 0 Cristo morto e ressurreto. Todo o
mérito das obras é excluído como causa da justificação, quando a justiça é
78 · Comentário de Gálatas

atribuída à fé. Pois, embora a fé se aproprie da imerecida bondade de Deus,


de Cristo com todas os seus benefícios, do testemunho de nossa adoção
contido no evangelho, ela é universalmente contrastada com a lei, com
0 mérito das obras e com a dignidade humana. A noção dos sofistas (de
que a fé é contrastada somente com as cerimônias) pode ser reprovada,
imediatamente e sem dificuldades, com base no contexto desta passagem.
Portanto, lembremo-nos de que aqueles que são justos mediante a fé são
justos fora de si mesmos, ou seja, em Cristo.
Isto também serve como refutação do ardiloso sofisma de pessoas
que evitam 0 raciocínio de Paulo. Moisés, dizem eles, dá à bondade o
nome de justiça; assim, a sua intenção era apenas dizer que Abraão
foi reputado um homem bom, em virtude de ter crido em Deus. Hoje,
espíritos levianos, levantados por Satanás, esforçam-se para minar, por
meio de calúnias indiretas, a infalibilidade da Escritura. Paulo sabia
que Moisés não estava ministrando a rapazes lições de gramática, e
sim falando sobre a decisão pronunciada por Deus. Paulo entendeu mui
adequadam ente 0 termo justiça em seu sentido teológico. Pois não é no
sentido de bondade aprovada entre os homens que somos justos aos
olhos de Deus, mas somente onde prestamos obediência perfeita à lei.
A justiça é contrastada com a transgressão da lei, mesmo em seus me-
nores mandamentos. E, visto que não temos nada em nós mesmo, Deus
no-la outorga gratuitamente.
Aqui, porém, os judeus objetavam que Paulo torcia as palavras de
Moisés para adequá-las ao seu propósito pessoal; porquanto Moisés não
estava falando de Cristo ou da vida eterna, mas apenas de uma promessa
terrena. Os papistas não diferem muito dos judeus, pois, ainda que não
ousem atacar a pessoa de Paulo, destroem totalmente o significado de
suas palavras. Respondo que Paulo toma por inquestionável 0 que cons-
titui um axioma para os crentes: quaisquer promessas que 0 Senhor fez a
Abraão eram complementos da primeira promessa: “Eu sou o teu escudo,
e teu galardão será sobremodo grande” (Gn 15.1). Quando Abraão ouviu
a promessa: “Multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e
como a areia da praia no mar” (Gn 22.17), ele não limitou a sua visão a
Capítulo 3 · 79

essa palavra, mas a incluiu na graça da adoção, como parte de um todo.


E, de modo semelhante, todas as outras promessas foram vistas por ele
como um testemunho da bondade paternal de Deus, que fortaleceu sua
esperança de salvação. Os incrédulos diferem dos filhos de Deus neste as-
pecto: enquanto também desfrutam dos benefícios divinos, devoram tais
benefícios como animais e não olham para 0 alto. Os filhos de Deus, por
outro lado, conscientes de que todos os seus benefícios são santificados
pelas promessas, vêem nos benefícios a providência de Deus como 0 Pai
deles. A sua atenção é sempre dirigida à esperança de vida eterna, pois
começam do fundamento, ou seja, a fé em sua adoção. Abraão foi justifica-
do não meramente porque creu que Deus multiplicaria sua descendência
(Gn 22.17), mas porque recebeu a graça de Deus, confiando no Mediador
prometido, em quem, como Paulo declara em outra epístola: “Quantas são
as promessas de Deus, tantas têm nele 0 sim; porquanto também por ele é
0 amém para glória de Deus” (2 Co 1.20).
7. Sabei, pois. Ou: “Vós sabeis”, pois ambas as traduções se ajustam
à construção grega. Pouco importa qual delas 0 leitor prefere, pois 0 signi-
ficado é 0 mesmo; mas a antiga tradução “sabei, pois”, que tenho seguido,
é mais enérgica. Paulo afirma que “os da fé” renunciaram a confiança nas
obras e descansam somente na promessa de Deus. É fundamentado na
autoridade de Paulo que damos esta interpretação, pois ele mesmo es-
creveu na Epístola aos Romanos: “Ora, ao que trabalha, 0 salário não é
considerado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha,
porém crê naquele que justifica 0 ímpio, a sua fé lhe é atribuída como
justiça” (Rm 4.4-5). Ser da fé, portanto, é colocar a justiça e esperança de
salvação na misericórdia divina. Esses são os filhos de Deus, Paulo conclui
da afirmação precedente. Pois, se Abraão foi justificado pela fé, aqueles
que desejam ser filhos de Deus têm, igualmente, de permanecer firmes na
fé. Ele omitiu uma observação, que pode ser facilmente suprida, ou seja:
que na igreja não há lugar para alguém que não seja filho de Abraão.
8. Ora, tendo a Escritura previsto. Paulo agora aplica expressamente
aos gentios 0 que havia dito em termos gerais. A chamada dos gentios
constituía um fato novo e extraordinário. Houve dúvidas quanto ao modo
80 * Comentário de Gálatas

como seriam chamados. Alguns achavam que “era necessário circunci-


dá-los e determinar-lhes que observassem a lei” (At 15.5); e que, se não
fizessem isso, estavam excluídos da participação na aliança. Mas Paulo
mostra, em contrapartida, que mediante a fé eles também alcançaram essa
bênção; e, mediante a fé, devem ser enxertados (Rm 11.17, 24) na famí-
lia de Abraão. Como 0 apóstolo prova este fato? Ele disse: “Em ti, serão
abençoados todos os povos”. Estas palavras significam indubitavelmente
que todos têm de ser abençoados como 0 foi Abraão, porquanto ele é o
modelo, sim, a norma. Ora, foi pela fé que Abraão obteve a bênção; e todos
devem obtê-la dessa maneira.
9 .0 crente Abraão. Esta expressão é muito enfática. Eles são abenço-
ados, não com o Abraão circuncidado, não com pessoas que têm o direito
de se gloriar nas obras da lei, não com os hebreus, não com pessoas que
confiam em sua própria dignidade, mas com 0 Abraão que, pela fé somen-
te, obteve a bênção. Nenhuma qualidade pessoal é levada em conta aqui;
somente a fé. A palavra “abençoados” é usada de forma variada nas Escri-
turas; aqui, porém, ela significa adoção à herança da vida eterna.

10. Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldi-
ção; porquanto está escrito:
Maldito todo aquele que não permanece em todas as
coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las.
11. E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus,
porque
0justo viverá pela fé.
12. Ora, a lei não procede da fé, mas: Aquele que observar os seus
preceitos por eles viverá.
13. Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio
maldição em nosso lugar (porque está escrito:
Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro),
14. para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cris-
to, a fim de que recebêssemos, pela fé, 0 Espírito prometido.
Capítulo 3 · 81

10. Todos quantos, pois, sáo das obras da lei. Eis um argumento ex-
traído da natureza contraditória de dois sistemas, pois a mesma fonte não
pode produzir calor e frio. A lei mantém toda a raça humana debaixo de sua
maldição. Portanto, é inútil esperar uma bênção da lei. Paulo declara que
são das obras da lei aqueles que põem sua confiança nas obras da lei para
a salvação. Essas formas de expressão devem sempre ser interpretadas à
luz do estado da questão. Ora, sabemos que a controvérsia abordada nesta
epístola se relaciona com a causa da justiça. Todos quantos desejam ser
justificados pelas obras da lei são declarados que estão sujeitos a maldição.
Mas, como Paulo prova isso? A sentença da lei é que todos quantos trans-
gridem qualquer parte da lei são malditos. Vejamos agora se existe alguma
pessoa que cumpre a lei. Nunca houve tal pessoa, e jamais haverá alguém
que 0 faça. Nestas palavras, todo homem é condenado. A premissa menor e
a conclusão estão faltando, para que o silogismo se formule assim:
Quem transgride 0 menor dos mandamentos da lei é maldito.
Todos são culpados desta transgressão.
Logo, todos são malditos.
Este argumento de Paulo não seria coerente caso tivéssemos força
suficiente para cumprir a lei, pois haveria uma objeção fatal à a premissa
menor. Ou Paulo raciocina de maneira errada ou é impossível alguém cum-
prir a lei.
Um oponente talvez argumente: “Admito que todos os transgresso-
res são malditos. E daí? É possível encontrar alguém que cumpre a lei.
Pois 0 ser humano pode escolher livremente 0 bem ou 0 mal”. Mas, nesta
passagem, Paulo apresenta com muita clareza aquilo que os papistas hoje
consideram como doutrina detestável, ou seja: que os homens estão des-
tituídos do poder de guardar a lei. Assim, ele conclui, com ousadia, que
todos são malditos, visto que a todos foi ordenado guardar a lei perfeita-
mente. Isto significa que na atual corrupção de nossa natureza não existe 0
poder de guardar a lei perfeitamente. Por isso, concluímos que a maldição
pronunciada pela lei, embora seja acidental, é perpetua e inseparável de
sua natureza. A bênção que a lei nos oferece é excluída por nossa deprava-
ção, de modo que só permanece a maldição.
82 · Comentário de Gálatas

11. E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado. Uma vez mais,
Paulo argumenta com base em uma comparação de sistemas opostos,
assim: “Se somos justificados pela fé, não pode ser pela lei. Mas somos
justificados pela fé. Portanto, não pode ser pela lei”.
Ele prova a premissa menor usando uma passagem de Habacuque,
que também é citada na Epístola aos Romanos (Hc 2.4; Rm 1.17). A pre-
missa maior é provada pela diferença nos métodos de justificação. A lei
justifica aquele que cumpre todos os seus mandamentos, enquanto a fé
justifica aqueles que são destituídos do mérito das obras e confiam ex-
clusivamente em Cristo. Ser justificado pelos seus próprios méritos e ser
justificado pela graça de outrem são sistemas irreconciliáveis: um é anula-
do pelo outro. Este é o significado do argumento. Consideremos agora as
cláusulas em separado.
O justo viverá pela fé. Como já expusemos esta passagem na Epís-
tola aos Romanos, é desnecessário repetir sua exposição aqui. 0 profeta
certamente apresenta a orgulhosa confiança da carne em oposição à fé
genuína. Ele declara que “0 justo viverá pela fé”; e com isso pretendia di-
zer não que o justo suportará por algum tempo e ficará sujeito à derrota
por intempéries repentinas, e sim que 0 justo continuará vivendo e que,
mesmo diante do perigo iminente, a sua vida será preservada. Não há, por-
tanto, consistência nas censuras desdenhosas de nossos adversários, os
quais alegam que 0 profeta usou a palavra fé num sentido mais amplo do
que 0 sentido empregado por Paulo nesta passagem. Ao usar a palavra fé,
Paulo se referia evidentemente ao exercício de uma consciência tranqüila
e firme que confia somente em Deus. Portanto, Paulo usa corretamente a
sua citação de Habacuque.
12. Ora, a lei não procede da fé. Indubitavelmente, a lei não é contrá-
ria à fé; pois, se 0 fosse, Deus seria incoerente consigo mesmo. Mas temos
de retornar ao princípio já considerado: que a linguagem de Paulo é adap-
tada a este caso particular. A contradição entre a lei e a fé está no tema da
justificação. É mais fácil 0 leitor unir 0 fogo e a água do que conciliar estas
duas afirmações: os homens são justificados pela fé e são justificados pela
lei. “A lei não procede da fé”, ou seja, a lei possui um método de justificar
Capítulo 3 · 83

uma pessoa que é estranho à fé.


Aquele que observar os seus preceitos por eles viverá. A diferença
está no fato de que, quando alguém cumpre a lei, ele é declarado justo por
uma justiça legal. 0 apóstolo prova isso citando Moisés (Lv 18.5). Ora,
qual é a justiça da fé? Paulo a definiu em Romanos 10.9: “Se, com a tua
boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus
0 ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”.

Apesar disso, não concluímos que a fé é ociosa ou que ela isenta os


os crentes da prática das boas obras. Pois a presente questão não é se os
crentes devem cumprir a lei até onde o puderem (isto é indubitável), mas
se obterão justiça por praticar obras; tal coisa é impossível. Contudo,
visto que Deus promete vida aos praticantes da lei, por que Paulo nega
que tais pessoas são justas?” A resposta é fácil. Ninguém é justo por meio
das obras da lei, porque não existe alguém que realize estas obras. Ad-
mitimos que os praticantes da lei, se houvesse um, são justos. Mas, visto
que há uma conformidade condicional, todos estão excluídos da vida,
porque ninguém pratica a justiça que deveria ser praticada. Precisamos
ter em mente 0 que eu já disse, ou seja, que praticar a lei não é obedecê-la
em parte, mas cumprir tudo 0 que pertence à justiça. E todos estão longe
demais dessa perfeição.
13. Cristo nos resgatou. O apóstolo colocou sob maldição todos
os que se acham debaixo da lei. Disso surgiu esta grande dificuldade: os
judeus não podiam livrar-se da maldição da lei. Depois de afirmar esta di-
ficuldade, Paulo apresenta 0 remédio, mostrando que Cristo nos tornou
livres. E isso confirma ainda mais 0 seu propósito. Se somos salvos porque
fomos libertos da maldição da lei, então, a justiça não pode ser procedente
da lei. Em seguida, Paulo acrescenta 0 modo como somos libertados.
Está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro.
Cristo foi pendurado na cruz. Portanto, Ele caiu nessa maldição. Mas é
certo que Cristo não sofeu aquele castigo por sua própria culpa. Segue-
se, pois, ou que Ele foi crucificado em vão, ou que a nossa maldição foi
lançada sobre Ele, para que ficássemos livres dela. Ora, o apóstolo não diz
que Cristo era maldito; diz algo ainda mais importante: Ele se fez maldição,
84 · Comentário de Gálatas

significando que a maldição de todos nós caiu “sobre ele” (Is 53.6). Se al-
guém acha severa esta linguagem, que tal pessoa se envergonhe da cruz
de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus não ignorava 0 tipo de
morte que seu Filho morreria, quando pronunciou: “O que for pendurado
em madeiro é maldito de Deus” (Dt 21.23).
Mas, como é possível, alguém perguntaria, que 0 Filho amado fosse
amaldiçoado por seu Pai? Respondemos: há duas coisas que têm de ser
consideradas não só na pessoa de Cristo, mas também em sua natureza
humana. Uma é que Ele era 0 Cordeiro de Deus imaculado, cheio de bênção
e de graça. A outra é que Ele assumiu 0 nosso lugar, tornando-se assim um
pecador, sujeito à maldição, não em Si mesmo, mas em nós, de tal maneira
que Lhe era indispensável ocupar 0 nosso lugar. Cristo não podia deixar
de ser o objeto do amor de Deus, mas, apesar disso, suportou a sua ira.
Pois, como poderia Ele reconciliar conosco 0 Pai, se o Pai fosse um de seus
inimigos e O odiasse? Concluímos que Cristo sempre fazia 0 que agrada-
va ao Pai (Jo 8.29). Novamente, como poderia Ele nos ter livrado da ira
de Deus, se não a houvesse transferido de nós para Si mesmo? Portanto,
Ele foi “traspassados pela nossas trangressões” (Is 53.5) e lidou com Deus
como um Juiz irado. Esta é a loucura da cruz (1 Co 1.18) e a admiração dos
anjos (1 Pe 1.12), que não somente excede, mas também aniquila toda a
sabedoria do mundo.
14. Para que a bênção de Abraão. Depois de haver dito que “Cristo
nos resgatou da maldição da lei”, 0 apóstolo aplica, agora, essa afirmação
ao seu propósito. A bênção prometida a Abraão se encontra nisso e da-
qui flui aos gentios. Se os judeus têm de ser libertados da lei para serem
herdeiros de Abraão, 0 que impedirá os gentios de obterem 0 mesmo be-
nefício? E, se esta bênção está somente em Cristo, é a fé somente em Cristo
que nos faz possuir essa bênção.
O Espírito prometido parece significar, de conformidade com 0 idio-
ma hebreu, “uma promessa espiritual”. Embora esta promessa se relacione
ao Novo Testamento: “Derramarei 0 meu Espírito sobre toda a carne” (J1
2.28), nesta passagem Paulo refere a outro assunto. 0 Espírito, aqui, deve
ser contrastado com as coisas exteriores, não apenas com cerimônias,
Capítulo 3 · 85

mas tam bém com descendência física, de modo a não deixar lugar para
diversidade de categoria. Com base na natureza da prom essa, Paulo mos-
tra que os judeus não diferem dos gentios; pois, se a prom essa é espiritual,
tem de ser recebida unicam ente pela fé.

15. Irmãos, falo como homem. Ainda que uma aliança seja
meramente humana, uma vez ratificada, ninguém a revoga ou lhe
acrescenta alguma coisa.
16. Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente.
Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos, porém
como de um só: E ao teu descendente, que é Cristo.
17. E digo isto: uma aliança já anteriormente confirmada por Deus,
a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-
rogar, de forma que venha a desfazer a promessa.
18. Porque, se a herança provém de lei, já não decorre de promes-
sa; mas foi pela promessa que Deus a concedeu gratuitamente a
Abraão.

15. Falo como homem. Paulo tencionava, com esta expressão, deixá-
los envergonhados. É ignominioso e desprezível imaginar que Deus tenha
menos im portância do que 0 homem mortal. Ao exigir que a aliança sagra-
da de Deus não recebesse menos deferência do que a deferência atribuída
geralmente às transações humanas, Paulo não põe Deus no mesmo nível
com os homens. A im ensa distância que existe entre Deus e os homens é
deixada à consideração humana.
A inda que uma aliança seja m eram ente humana. Este é um argu-
mento construído a partir do menos im portante para o mais im portante.
Se os contratos humanos são tidos como obrigatórios, quanto mais obriga-
tória é a aliança que Deus estabeleceu? O term o grego é διαθήκη, que Paulo
usa neste versículo, significa mais freqüentem ente 0 que a versão latina 0

traduziu - testamentum, (um testam ento). Mas, às vezes, tam bém signifi-
cava uma aliança, em bora neste sentido a forma plural é usada com mais
86 * Comentário de Gálatas

freqüência. Pouco importa, nesta passagem, se a explicamos no sentido de


aliança ou de testamento. Na epístola aos Hebreus, 0 caso é diferente, onde
0 apóstolo indubitavelmente se refere a testamentos (Hb 9.16, 17). Aqui,

porém, prefiro entendê-la apenas como a aliança que Deus fez. A analogia
com base na qual o apóstolo argumenta não se aplica estritamente a um
testamento, e sim a uma aliança. Paulo parece raciocinar a partir de tran-
sações humanas para chegar àquela aliança solene que Deus estabeleceu
com Abraão. Se as transações humanas são tão sólidas que nada lhe pode
ser acrescentado, quanto mais inviolável deve permanecer esta aliança!
16. Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente.
Antes de prosseguir com 0 seu argumento, Paulo introduz uma observa-
ção a respeito da substância da aliança: a aliança repousa exclusivamente
em Cristo. Mas, se Cristo é 0 fundamento da aliança, segue-se que esta é
gratuita. Este é 0 significado da palavra promessa. A lei tomava em con-
sideração os homens e as suas obras; a promessa leva em conta a graça
de Deus e a fé.
Não diz: E aos descendentes. Para provar que nessa ocasião Deus
falava a respeito de Cristo, Paulo chama a atenção à forma singular, deno-
tando um descendente específico. Tenho ficado surpreso com 0 fato de
que os crentes, quando vêem esta passagem ser tão imprudentemente dis-
torcida pelos judeus, não lhes oferecem resistência mais determinada; em
vez disso, esgueiram-se do assunto como se 0 mesmo fosse um território
indisputável. No entanto, a objeção deles é bastante plausível. Visto que a
palavra “descendente” é um substantivo coletivo, Paulo parece raciocinar
de modo incoerente, ao argumentando que um único homem é indicado
por essa palavra, à luz da qual todos os descendentes de Abraão estão
compreendidos na passagem que já citamos: “Multiplicarei a tua descen-
dência ‫[ ז ד ע‬hebraico - zerang] ou ‫[ ז ד ע ך‬hebraico - zargnacha] como as
estrelas do céu e como a areia na praia do mar” (Gn 22.17). Assim, como
eles imaginam, detectada a falácia do argumento, eles nos tratam com
triunfo insolente.
Fico ainda mais surpreso com 0 fato de que nossos escritores se man-
tenham em silêncio quanto a este assunto, uma vez que não nos faltam
Capítulo 3 · 87

meios para refutar a calúnia dos judeus. Entre os próprios filhos de Abraão
começara certa divisão, pois um deles foi excluído da família. “Por Isaque
será chamada a tua descendência” (Gn 21.12). Conseqüentemente, Ismael
não é incluído no reconhecimento. Avancemos para 0 segundo passo. Os
judeus admitiam que a posteridade de Esaú era a descendência bendita?
Não! Argumentam que a descendência de Esaú, embora fosse ele 0 primo-
gênito, foi excluída. E quantas nações surgidas de Abraão não têm parte
nessa “chamada”? Os doze patriarcas eram os doze cabeças, não porque
pertenciam à linhagem de Abraão, e sim porque foram designados pela
eleição particular de Deus. Visto que as dez tribos foram dispersas (Os
9.17), quantos milhares deles ficaram tão degenerados, que não tinham
mais lugar entre a descendência de Abraão? Finalmente, a tribo de Judá foi
submetida a uma grande prova, para que a verdadeira sucessão à bênção
fosse transmitida entre um pequeno povo. E isto havia sido predito pelo
profeta Isaías: “Os restantes se converterão ao Deus forte, sim, os restan-
tes de Jacó” (Is 10.21).
Até aqui, eu não disse nada que os judeus mesmos não reconheçam.
Respondam-me, então: como as treze tribos que surgiram dos doze pa-
triarcas se tornaram a descendência de Abraão, e não os ismaelitas ou
os edomitas? Por que somente eles se gloriam neste nome, rejeitando os
demais como uma semente espúria? Indubitavelmente, eles se gloriarão
de que 0 obtiveram por seu próprio mérito. Ao contrário disso, a Escritura
assevera que todos dependem da chamada de Deus. Pois temos sempre de
voltar ao privilégio transmitido nestas palavras: “Por Isaque será chamada
a tua descendência” (Gn 21.12). A sucessão ininterrupta que conduziria
a este privilégio teria de vigorar até Cristo; pois, na pessoa de Davi, 0 Se-
nhor reiterou mais tarde (poderíamos dizer) a promessa feita a Abraão.
Ao provar que esta profecia não se aplica a um único homem, Paulo não
faz seu argumento alicerçar-se no uso do singular. Ele apenas mostra que
a palavra “descendente” denota alguém que não era somente nascido de
Abraão segundo a carne, mas também indicado para este propósito, pela
chamada divina. Se os judeus negarem isso, eles simplesmente se tornarão
ridículos por sua obstinação.
88 * Comentário de Gálatas

Visto que Paulo argumenta, com base nestas palavras, que uma alian-
ça foi estabelecida em Cristo, ou com Cristo, investiguemos a força desta
expressão: “Nela serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22.18). Os
judeus zombavam do apóstolo fazendo uma comparação, como se a des-
cendência de Abraão tivesse de ser usada como exemplo em todos os
desastrosos presságios e orações; enquanto, pelo contrário, para amaldi-
çoar alguém ou em Sodoma ou em Israel, devia-se usar a palavra “Sodoma”
ou “Israel” na forma de maldição. Admito que, às vezes, isto acontece, mas
nem sempre. Porque, abençoar alguém em Deus tem um sentido muito
diferente, como os próprios judeus admitem. Portanto, visto que a frase
é ambígua, denotando, às vezes, uma causa e, às vezes, uma comparação,
ela deve ser explicada pelo contexto. Já verificamos que todos somos
malditos por natureza e que a bênção de Abraão foi prometida a todas
as nações. Todos a alcançam indiscriminadamente? É claro que não, mas
somente aqueles que são congregados no Messias (Is 56.8); pois, quando
são reunidos num só corpo, sob o governo e direção do Messias, eles se
tornam um só povo. Aquele que, deixando de lado toda controvérsia, in-
vestigam a verdade, esses reconhecerão prontamente estas palavras não
constituem uma mera comparação, e sim uma causa. Concluímos, pois,
que 0 apóstolo tinha boas razões para dizer que a aliança foi estabelecida
em Cristo ou em referência a Cristo.
17. A lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois. Se ouvirmos a
Orígenes, Jerônimo e todos os papistas, haverá pouca dificuldade em refu-
tar esse argumento. Paulo arrazoa assim: uma promessa foi dada a Abraão
quatrocentos e trinta anos antes que a lei fosse promulgada. Por isso, a lei,
que veio depois, não poderia anular a promessa. Disso, Paulo conclui que
as cerimônias não são necessárias. Alguém pode objetar que os sacramen-
tos foram dados a fim de preservarem a fé; por que, então, ele os separaria
da promessa? Paulo realmente os separa e continua a argumentar sobre 0
assunto. Ele considera as cerimônias em relação a algo mais elevado, ou
seja, 0 efeito da justificação que os falsos apóstolos atribuíam às cerimô-
nias e à obrigação que estas impunham à consciência. De acordo com isso,
Paulo usa as cerimônias como oportunidade para discutir todo 0 assunto
Capítulo 3 · 89

da fé e das obras. Se o ponto em questão não tinha conexão com a obten-


ção da justiça, com o mérito das obras ou com 0 enredar a consciência, as
cerimônias seriam compatíveis com a promessa.
O que significa essa ab-rogação da promessa que 0 apóstolo ataca? Os
impostores negavam que a salvação é oferecida gratuitamente aos homens
e recebida pela fé; e, conforme logo veremos, insistiam na necessidade de
obras a fim de merecermos a salvação. Retorno às palavras de Paulo. “A
lei”, disse ele, “é posterior à promessa e, portanto, não a revoga; pois uma
aliança, uma vez ratificada, deve permanecer sempre irrevogável”. Repi-
to, novamente: se não você não entende que a promessa é gratuita, esta
afirmação não terá qualquer sentido, pois a lei e a promessa não se harmo-
nizam neste único aspecto: a lei justifica uma pessoa pelo mérito das obras;
a promessa outorga gratuitamente a justiça. Este fato se torna muitíssimo
evidente quando Paulo afirma que a aliança se fundamenta em Cristo.
Neste assunto, os papistas se opõem a nós, achando um método de
evitar este argumento. Eles dizem: “Não exigimos mais que as velhas ceri-
mônias sejam obrigatórias. Sejam elas deixadas de lado. No entanto, uma
pessoa é justificada pela lei moral. Pois essa lei, criada juntamente com 0
homem, precedeu a aliança divina feita com Abraão. Portanto, ou 0 raciocí-
nio de Paulo é frívolo, ou se refere apenas às cerimônias”. Respondo: Paulo
levou em conta 0 que era certamente verdadeiro, ou seja, que nenhuma
recompensa se deve às obras, exceto por meio da aliança com Deus. Admi-
tindo que a lei justifica, mesmo antes da lei 0 homem não podia merecer a
salvação por meio das obras, porque não havia aliança. Tudo 0 que estou
afirmando é confirmado pelos teólogos escolásticos; pois eles ensinam
que as obras são meritórias da salvação, não por seu valor intrínseco, e
sim pela aceitação diante de Deus (usando a expressão deles mesmos),
com base na aliança. Conseqüentemente, onde não há nenhuma aliança
divina e onde não se acha nenhuma declaração de aceitação, ali nenhuma
obra será suficiente para obtenção da justiça. Portanto, 0 argumento de
Paulo é perfeitamente lógico. Ele nos diz que Deus fez duas alianças com
os homens: a primeira, por meio de Abraão; a segunda, por meio de Moi-
sés. A primeira se fundamentava em Cristo e, portanto, era gratuita. E a lei,
90 · Comentário de Gálatas

que veio depois, não podia capacitar os homens a obter a salvação, exceto
pela graça, pois, do contrário, desfaria a promessa. Que este é 0 significa-
do evidencia-se no que Paulo diz em seguida.
18. Porque, se a herança provém da lei. Os oponentes de Paulo po-
deriam argumentar que enfraquecer ou anular a aliança de Deus não era o
intento deles. A fim de privá-los de todos os subterfúgios, Paulo se antecipa
com a afirmação de que a salvação pela lei e a salvação pela promessa de
Deus são completamente incoerentes. Quem ousará explicar que o termo
“a lei” se aplica somente às cerimônias, quando Paulo compreende que ele
inclui tudo que interfere na promessa gratuita? Sem dúvida alguma, ele ex-
clui todos os tipos de obras. Ele disse aos crentes de Roma: “Pois, se os da
lei é que são os herdeiros, anula-se a fé e cancela-se a promessa” (Rm 4.14).
Por quê? Porque a salvação dependeria da condição de se satisfazer a lei.
Portanto, ele conclui imediatamente: “Essa é a razão por que provém da fé,
para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa a toda a
descendência...” (Rm 4.16). Lembremos cuidadosamente a razão por que,
ao compararmos a promessa com a lei, 0 estabelecimento de uma destrói a
outra. A razão é que a promessa diz respeito à fé, e a lei, às obras. A fé recebe
0 que é dado gratuitamente; mas às obras, paga-se uma recompensa.
E Paulo prontamente acrescenta: “Deus a concedeu gratuitamente a
promessa a Abraão”, não por exigir algum tipo de compensação da par-
te de Abraão, e sim pela promessa gratuita. Pois, se você entendesse a
promessa como condicional, 0 vocábulo concedeu (κεχάρισται) seria total-
mente inaplicável.

19. Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das
transgressões, até que viesse 0 descendente a quem se fez a pro-
messa, e foi promulgada por meio de anjos, pela mão de um
mediador.
20. Ora, 0 mediador não é de um, mas Deus é um.
21. É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo
nenhum! Porque, se fosse promulgada uma lei que pudesse dar
Capítulo 3 · 91

vida, a justiça, na verdade, seria procedente de lei.


22. Mas a Escritura encerrou tudo sob 0 pecado, para que, mediante a
fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que crêem.

Ao ouvirmos que a lei não tem influência na obtenção da justificação,


vários pensamentos surgem imediatamente: ou que ela é inútil, ou que é
contrária à aliança divina, ou algo dessa natureza. Aliás, é possível que nos
ocorra: “Por que não dizermos sobre a lei o que disse 0 profeta Jeremias
sobre a nova aliança (Jr 31.31): que esta foi dada para corrigir a deficiên-
cia do ensino anterior?” Objeções dessa espécie tinham de ser explicadas,
se Paulo desejasse satisfazer aos gálatas. Em primeiro lugar, ele pergunta
qual é a utilidade da lei. Visto que ela veio depois da promessa, parece ter
sido destinada a suprir suas deficiências. E certamente havia dúvida se a
promessa teria sido ineficaz, se não houvesse recebido a ajuda da lei. Mas
devemos observar que Paulo não fala apenas a respeito da lei moral, e sim
de todo 0 ministério de Moisés. O ofício peculiar de Moisés consistia em
prescrever uma norma de vida e as cerimônias que seriam observadas
na adoração a Deus, bem como em acrescentar as promessas e ameaças
vinculadas à lei. Nos escritos de Moisés, achamos muitas promessas re-
lacionadas a Cristo e à graciosa misericórdia de Deus; e estas promessas
pertencem à fé. Mas isso deve ser entendido como acidental e completa-
mente estranho à análise, quando comparamos a lei com a doutrina da
graça. Temos de lembrar que 0 significado da pergunta é este: depois de
haver sido feita a promessa, por que Moisés acrescentou uma nova condi-
ção: “Cumprindo-os, o homem viverá por eles”; “Maldito aquele que não
confirmar as palavras desta lei, não as cumprindo” (Lv 18.5; Dt 27.26)? Foi
para produzir algo melhor e mais perfeito?
19. Por causa das transgressões. A lei tinha muitas utilidades, mas
Paulo se limita a apenas àquela que serve a este assunto. Ele não se propôs
a investigar em que maneiras a lei é vantajosa aos homens. Os leitores de-
vem acautelar-se neste ponto, visto que percebo que muitos erram ao não
reconhecer outra utilidade da lei, exceto 0 que é expresso nesta passagem.
Mas em outra epístola Paulo mesmo aplica os preceitos da lei ao ensino
92 · Comentário de Gálatas

e à exortação (2 Tm 3.16). Portanto, a definição sobre a utilidade da lei


apresentada neste versículo não é completa; e estão errados aqueles que
não reconhecem outra utilidade na lei.
Ora, qual é 0 significado da expressão “por causa das transgressões”?
Até os filósofos falam desta maneira: a lei foi criada para refrear os malfei-
tores. Também existe 0 antigo provérbio: “As boas leis são provenientes
de más condutas”. Mas 0 significado de Paulo é mais abrangente do que as
palavras parecem comunicar. Ele quer dizer que a lei foi promulgada para
tornar conhecidas as transgressões e, desse modo, compelir os homens a
reconhecerem sua culpa. Os homens são naturalmente muito propensos a
desculparem-se a si mesmos, e a consciência deles permanece dormente,
enquanto a lei não a desperta. Paulo disse: “Até ao regime da lei havia pe-
cado no mundo, mas 0 pecado não é levado em conta quando não há lei”
(Rm 5.13). A lei chegou e despertou os que dormiam. Esta é a verdadeira
preparação que leva alguém a Cristo. “Pela lei vem 0 pleno conhecimento
do pecado” (Rm 3.20). Por quê? “A fim de que, pelo mandamento, 0 pe-
cado se mostrasse sobremaneira maligno” (Rm 7.13). Portanto, a lei “foi
adicionada por causa das transgressões”, para expor 0 verdadeiro caráter
das transgressões ou, como Paulo disse em Romanos, para torná-las abun-
dantes (Rm 5.20).
Esta passagem torturou a ingenuidade de Orígenes, sem qualquer ob-
jetivo. Se Deus convoca a consciência dos homens ao seu tribunal, para
que as qualidades existentes nas transgressões deles (as quais, de outro
modo, lhes traria prazer) sejam humilhadas por uma convicção de culpa;
se Ele rompe o torpor que domina os homens e se traz à luz 0 pecado, que
espreita como um ladrão no covil da hipocrisia - 0 que há em tudo isso
que pode ser considerado absurdo? Alguém pode objetar: “A lei é a norma
de uma vida piedosa e santa, então, por que a Bíblia nos diz que a lei foi
promulgada por causa das transgressões, e não por causa da obediência?”
Respondo: por mais que a lei realce a verdadeira justiça, a instrução da lei,
devido à corrupção de nossa natureza, tende apenas a avultar as trans-
gressões, até que o Espírito de regeneração venha e a escreva no coração.
E 0 Espírito não é dado mediante a lei; é recebido pela fé. Essa afirmação,
Capítulo 3 · 93

0 leitor deve lembrar, não é filosófica nem política; ela expressa aquele
propósito da lei, que o mundo jamais conheceu.
Até que viesse o descendente. 0 descendente mencionado é Aque-
le sobre 0 qual a bênção foi pronunciada; portanto, isso nada interfere
na promessa. A expressão até que (άχρις ού) significa “enquanto” 0 des-
cendente era esperado. Disso concluímos que a lei tinha de ocupar não a
posição mais elevada, e sim uma posição subordinada. Ela foi promulgada
para estimular os homens a esperarem por Cristo. Mas era necessário que
a lei permanecesse até à vinda de Cristo? Pois, se isto é verdade, segue-se
que ela está agora abolida. Respondo que toda a administração da lei era
temporária e foi instituída com 0 propósito de preservar entre as pessoas
do Antigo Testamento um apego à fé em Cristo. No entanto, não concordo
que, com a vinda de Cristo, toda a lei foi abolida. 0 apóstolo não quis dizer
isso, mas somente que 0 modo de administração, instituído por um tempo,
teve de receber sua consumação em Cristo, que é 0 cumprimento da pro-
messa. Posteriormente, falaremos mais sobre este assunto.
Foi promulgada por meio de anjos. Esta circunstância tende a reco-
mendar a lei. Isto também foi declarado por Estêvão (At 7.53), que disse:
“Vós que recebestes a lei por ministério de anjos [εις διαταγάς άγγέλων]”
(At 7.53). A interpretação apresentada por alguns, com o sentido de que
Moisés, Arão e os sacerdotes eram os anjos subentendidos neste versícu-
10 contém mais ingenuidade do que coerência. Além disso, não deve nos
surpreender 0 fato de que os anjos, por meio de quem Deus nos outorga
algumas das bênçãos menores, tenham recebido a incumbência de agir
como testemunhas na promulgação da lei.
Pela mão de um mediador. Mão geralmente denota ministração; mas,
visto que os anjos eram ministros na promulgação da lei, penso que “pela
mão de um mediador” denota a mais elevada categoria de ministério. 0 Me-
diador estava à frente da embaixada, e os anjos eram seus companheiros.
Alguns aplicam esta expressão a Moisés, visando fazer uma comparação
entre Moisés e Cristo. Quanto a mim, porém, concordo mais com os anti-
gos expositores, que a aplicam ao próprio Cristo. Pode-se perceber que
este ponto de vista concorda melhor com 0 contexto, embora eu discorde
94 · Comentário de Gálatas

dos antigos expositores quanto ao significado de Mediador. Esta palavra


não significa, como eles imaginavam, alguém que promove a reconciliação,
como em 1 Timóteo 2.5: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador en-
tre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem”; ela significa um embaixador
encarregado de promulgar a lei.
É mister que entendamos 0 seguinte: desde 0 princípio do mundo,
Deus não manteve qualquer comunicação com os homens, exceto por
meio de sua eterna Sabedoria ou Filho. Por isso, Pedro disse que os santos
profetas falaram por meio do “Espírito de Cristo” (1 Pe 1.12); e Paulo 0
tornou Líder do povo no deserto (1 Co 10.4). E com certeza 0 Anjo que
apareceu a Moisés não pode ser outra pessoa, porque Ele reivindica para
si mesmo 0 nome peculiar e essencial de Deus, 0 nome que jamais foi atri-
buído a criaturas. Assim como Ele é o Mediador da reconciliação, por meio
de quem somos aceitos por Deus, e 0 Mediador da intercessão, por meio
de quem 0 caminho está aberto para que invoquemos 0 Pai, assim também
Ele tem sido sempre 0 Mediador de toda a doutrina, visto que por meio
dele Deus sempre se revelou aos homens. E Paulo quis expressar isso com
clareza, para ensinar aos gálatas que Aquele que é o fundamento da alian-
ça da graça mantinha a primazia na promulgação da lei.
20. Ora, o mediador não é de um. Alguns usam esta cláusula para
filosofar, como se Paulo estivesse dizendo que as duas naturezas de Cristo
não são uma em essência. Mas, neste versículo Paulo está falando sobre as
partes de uma aliança; e nenhuma pessoa que tenha bom discernimento
duvida disso. Assim, freqüentemente, explicam este versículo dizendo que
não há espaço para um Mediador, a menos que uma das partes tenha algo
para negociar com a outra. Mas deixam indeterminada a razão por que
Paulo disse estas palavras, embora a passagem mereça atenção especial.
Talvez haja a antecipação (πρόληψις) de um pensamento ímpio que pode
ter surgido quanto à mudança no propósito divino. Alguém poderia dizer:
“Assim como os homens, quando mudam de opinião a respeito de con-
tratos, costumam retratar-se, assim também ocorreu com as alianças de
Deus.” Se 0 leitor aceitar que este é 0 significado da cláusula, então, na
primeira cláusula, Paulo reconhecia que os homens, que são uma uma das
Capítulo 3 · 95

partes deste contrato, são mutáveis e inconstantes, enquanto Deus, que


permanece o mesmo, é coerente consigo mesmo, não se deixando mudar
pela instabilidade humana.
Mas quando visualizo mais detidamente todo 0 assunto, penso, an-
tes, que essa mediação marca uma distinção entre judeus e gentios. Cristo
não é 0 Mediador de um só, visto que, nos aspectos externos, há uma
diversidade de condição entre aqueles com quem, por meio de sua instru-
mentalidade, Deus entra em aliança. Paulo afirma que não temos 0 direito
de julgar desta maneira a aliança de Deus, como se esta se contradissesse
ou variasse de acordo com as diversidades humanas. Ora, as palavras são
claras. Assim como Cristo já havia reconciliado Deus com os judeus, ao
fazer com eles uma aliança, assim também agora ele é 0 Mediador dos
gentios. Os judeus são muito diferentes dos gentios, pois a circuncisão e as
cerimônias erigiram “a parede de separação que estava no meio” (Ef 2.14).
Os judeus estavam “perto” de Deus, quando os gentios estavam “longe”
(Ef 2.13). Mas Deus é coerente consigo mesmo. E isto se torna evidente
quando Cristo traz ao Deus único aqueles que costumavam ser distintos e
os une em um só corpo. Deus é um porque sempre permanece Ele mesmo,
mantendo com regularidade invariável 0 propósito fixo e inalterável que
Ele mesmo estabeleceu.
21. É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? Admitidas a
certeza e a segurança do propósito de Deus, somos igualmente obrigados
a concluir que os resultados desse propósito não são contrários entre si.
Contudo, havia uma dificuldade que demandava solução, um dificuldade
que surgiu da aparente contradição entre a lei e a aliança da graça. Esta
cláusula talvez seja uma exclamação. Não temendo mais qualquer con-
tradição, agora que a questão está estabelecida, Paulo conclui, à luz do
argumento anterior, que a dúvida foi removida e exclama: “Quem ousa ima-
ginar uma discordância entre a lei e a promessa?” Mas isto não impede que
Paulo continue a remover as dificuldades que ainda podem surgir.
Antes de responder à pergunta, ele expressa, em sua maneira usual,
grande desdém por essa tolice, mostrando, assim, a forte aversão que os
piedosos devem sentir em relação a qualquer insulto contra 0 caráter de
96 * Comentário de Gálatas

Deus. Mas há outra ocorrência, de linguagem vigorosa, que nos chama a


atenção. Paulo acusa seus adversários de fazerem Deus contradizer a si
mesmo. Pois é óbvio que a lei e as promessas procederam dEle. Portanto,
quem alega qualquer contradição entre elas blasfema contra Deus. No en-
tanto, elas contradizem uma à outra somente se a lei justifica. Assim, Paulo
devolve, com bastante destreza, a seus adversários a acusação que falsa e
caluniosamente lançaram contra ele.
Porque, se fosse promulgada uma lei que pudesse dar vida. A res-
posta é, como se diz, indireta; não afirma claramente uma concordância
entre a lei e as promessas, mas contém 0 suficiente para remover a contra-
dição. A primeira vista, talvez você diga que esta sentença é estranha ao
contexto e não oferece qualquer argumento à solução da questão. Mas isto
não é verdade. A lei seria oposta às promessas, se tivesse o poder de jus-
tificar; pois haveria dois métodos opostos de justificar uma pessoa, dois
caminhos contrários para a obtenção da justiça. Mas Paulo nega à lei esse
poder. Assim, a contradição é removida. “Admito”, disse ele, “que a justiça
seria obtida pela lei, se a salvação se achasse nela.
22. Mas a Escritura encerrou. 0 vocábulo Escritura significa, prin-
cipalmente, a própria lei. Ela encerra todos os homens “sob 0 pecado”.
Portanto, ao invés de dar a justiça, a lei a tira de todo os homens. 0 racio-
cínio é muito poderoso. “Vocês buscam a justiça na lei. Mas a lei, por si
mesma, com toda a Escritura, não deixa nada aos homens, exceto conde-
nação; pois todos os homens e suas obras são declarados injustos. Quem,
pois, viverá pela lei?” Paulo se referia a estas palavras: “Cumprindo-os, 0
homem viverá por eles” (Lv 18.5). Excluídos da vida, disse Paulo, por meio
da culpa, buscamos em vão a salvação pela lei. A palavra tudo (τά πάντα)
significa todas as coisas, comunicando mais do que se ele estivesse dizen-
do “todos os homens”; pois ela abrange não só os homens, mas tudo 0 que
eles possuem ou realizam.
Para que, mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa. Não há
outro remédio, exceto 0 despir-se da justiça das obras e recorrer à fé em
Cristo. 0 resultado é certo. Se as obras são levadas em conta no juízo,
estamos todos condenados. Portanto, obtemos pela fé em Cristo a justi­
Capítulo 3 · 97

ça gratuita. Esta sentença está saturada de sublime consolação. Ela nos


ensina que, quando ouvimos na Escritura que estam os condenados, há so-
corro para nós em Cristo, se recorrerm os a Ele. Estaríamos perdidos, ainda
que Deus não 0 dissesse. Então, por que Ele proclama freqüentem ente que
estam os perdidos? Deus faz isso para que não pereçam os na destruição
eterna; e para que, tocados e confundidos por essas sentenças terríveis,
recorram os a Cristo pela fé, por meio de Quem passam os da m orte para a
vida (1 Jo 3.14). Por meio de uma figura de linguagem (metonímia), a pala-
vra promessa denota aquilo que é prometido.

23. Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela
encerrados, para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se.
24. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzira Cristo,
a fim de que fôssemos justificados por fé.
25. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao
aio.
26. Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus;
27. porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos
revestistes.
28. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em
Cristo Jesus.
29. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e her-
deiros segundo a promessa.

23. Antes que viesse a fé. A questão proposta é agora mais plenamen-
te definida. Paulo explica com grande clareza tanto a utilidade da lei como
a razão por que ela havia sido tem porária; pois, se a lei não fosse temporá-
ria, sem pre pareceria ilógico que os judeus tivessem recebido uma lei da
qual os gentios estavam excluídos. Se há apenas uma igreja, constituída de
judeus e gentios, por que existe uma diversidade em seu governo? De onde
se deriva essa nova liberdade e em que autoridade ela se baseia, visto que
98 · Comentário de Gálatas

os pais estiveram em sujeição ã lei? Por isso, Paulo nos diz que a distinção
não interrompe a união e harmonia da igreja.
Temos de lembrar novamente ao leitor que Paulo não estava falando
apenas de cerimônias ou da lei moral. Ele falava sobre toda a economia
pela qual Deus governou seu povo na época do Antigo Testamento. Se
a forma de governo instituído por Moisés tinha alguma influência na ob-
tenção da justiça tornou-se um assunto de debates. Paulo compara a lei
primeiramente a uma prisão e, em segundo lugar, a um aio. A nautreza
da lei era tal que, conforme o demonstra ambas as metáforas, só poderia
estar em vigor durante certo tempo.
0 vocábulo fé denota a plena revelação daquelas coisas que estiveram
ocultas durante a obscuridade e as sombras da lei. Paulo não tencionava
dizer que os pais, que viveram sob a lei, não possuíam fé. Já consideramos
a fé de Abraão. Outros exemplos são citados pelo autor da Epístola aos He-
breus (Hb 11). Em resumo, a doutrina da fé é atestada por Moisés e todos
os profetas. Visto, porém, que a fé não havia sido manifestada em toda a
sua clareza, 0 tempo da fé, subentendido neste versículo, é um designativo
usado não em sentido absoluto, e sim relativo, para expressar 0 tempo do
Novo Testamento. O que ele diz em seguida confirma que este era 0 senti-
do de suas palavras: eles foram encerrados para a fé que, de futuro, haveria
de se revelar. Isto implica que aqueles que estiveram sob a custódia da lei
foram participantes da mesma fé. A lei não os afastou da fé. Mas, para que
não vagueassem fora do âmbito da fé, esta se apropriou deles. Também
há uma elegante alusão ao que ele já havia dito: que “a Escritura encerrou
tudo sob 0 pecado”. Foram cercados de todos os lados pela maldição. Mas
este cerco foi neutralizado pelo encerramento que os protegia da maldi-
ção; de modo que o encerramento promovido pela lei se mostrou bastante
generoso em seu caráter.
Mas a fé não fora revelada, não que aos pais faltasse luz, e sim porque
tinham menos luz do que nós. Pode-se dizer que as cerimônias refletiam
um Cristo ausente; todavia, para nós Ele é representado como presente.
Assim, eles viam através de um espelho, enquanto nós vemos a essência.
Por maior que fosse 0 obscurecimento no regime da lei, os pais não eram
Capítulo 3 · 99

ignorantes da estrada em que tinham de andar. Ainda que a aurora não


seja semelhante ao esplendor do meio-dia, ela é suficiente para 0 pros-
seguimento da jornada, e os viajantes não esperam até que 0 sol esteja
totalmente levantado. A porção de luz dos crentes do Antigo Testamento
era como a aurora: suficiente para preservá-los de todo erro e guiá-los à
eterna bem-aventurança.
24. De maneira que a lei nos serviu de aio. Eis a segunda metáfora,
que expressa com mais clareza o propósito de Paulo. Um aio não era de-
signado para a toda a vida de uma pessoa, somente para a infância, como
a etimologia da palavra grega (παιδαγωγός) 0 revela. Além disso, ao treinar
uma criança, 0 objetivo era prepará-la, por meio de instruções peculiares da
infância, para as coisas mais excelentes. A comparação se aplica a ambos
os aspectos da lei, pois a autoridade da lei se limitava a determinada época;
e seu propósito era preparar seus alunos de tal modo que, ao findarem as
instruções elementares, eles fariam progressos dignos da maturidade.
Assim, Paulo diz que a lei era 0 aio para nos conduzir a Cristo (εις
χριστόν). Os gramáticos, quando terminavam de instruir um garoto, entre-
gavam-no a outro mestre, que conduzia 0 garoto através dos aspectos mais
nobres de uma educação requintada. De modo semelhante, a lei era 0 gra-
mático da teologia, 0 qual, depois de conduzir seus alunos até certo ponto,
os entregava à fé, para que completassem a graduação. Deste modo, Paulo
compara os judeus a crianças e nós, a jovens em progresso.
Mas pode surgir a pergunta: em que consistia a instrução ou educa-
ção ministrada por esse pedagogo. Em primeiro lugar, a lei, ao revelar a
justiça de Deus, convenceu os homens de sua própria injustiça; pois, nos
mandamentos de Deus, como que através de um espelho, podiam ver quão
longe estavam da verdadeira justiça. Assim, eram lembrados que a jus-
tiça tem de ser buscada em outro lugar. As promessas da lei serviam ao
mesmo propósito e podiam levar ao seguinte raciocínio: “Se vocês não
podem obter a vida por meio das obras, mas somente pelo cumprimento
da lei, algum método novo e diferente tem de ser buscado. A debilidade de
vocês jamais permitirá que alcancem essa justiça. Por mais que desejem
e se esforcem, vocês ficarão muito aquém do alvo”. Em contrapartida, as
100 · Comentário de Gálatas

ameaças compeliam e pressionavam os homens a refugiarem-se da ira e da


maldição de Deus. Aliás, ela não lhes deu descanso, enquanto não foram
constrangidos a buscar a graça de Cristo.
Esse era 0 alvo de todas as cerimônias; pois, qual a razão da exis-
tência de sacrifícios e abluções, senão 0 conservar a m ente dos homens,
constantem ente fixas na corrupção e condenação? Quando a impureza de
uma pessoa era colocada diante de sues olhos, ao contem plar a m orte de
um animal oferecido como figura da m orte da própria pessoa, como podia
ela mesma manter-se indiferente? Não seria levada ao clamor sincero por
livramento? Com toda certeza, as cerimônias atingiram seu objetivo, não
som ente por alarm ar e humilhar a consciência das pessoas, mas tam bém
por despertá-las à fé no Redentor vindouro. Nas solenidades do ritual mo-
saico, tudo que era apresentado aos olhos tinha uma im pressão de Cristo.
Em resumo, a lei não era mais do que uma imensa variedade de exercícios
nos quais os adoradores eram guiados a Cristo.
A fim de que fôssemos justificados por fé. Paulo já havia dito que
a lei não era perfeita, ao compará-la à educação de uma criança. Mas a
lei tornaria os homens perfeitos, se lhes outorgasse justiça. O que resta,
senão que a fé tom e 0 lugar da lei? E isso acontece quando nós, que som os
destituídos de justiça pessoal, som os vestidos com a justiça de Cristo. As-
sim, concretiza-se a profecia: “Encheu de bens os famintos” (Lc 1.53).
25. Mas, tendo vindo a fé. Já consideramos esta frase. Ela denota a
revelação mais plena da graça, depois que “o véu do santuário se rasgou em
duas partes” (Mt 27.51). E sabem os que isso foi realizado pela manifestação
de Cristo. Ele afirma que, sob 0 reino de Cristo, não há mais infância que
necessite de ser colocada sob a tutela de um pedagogo e que, em conseqü-
ência, a lei resignou de seu ofício - esta é outra aplicação da comparação.
Paulo tencionava provar duas coisas: que a lei era uma preparação para
Cristo e que a lei era temporária. Mas, neste versículo, surge novamente
a pergunta: a lei está tão completamente abolida, que não temos qualquer
relação com ela? Respondo que a lei, como norma de vida, é um freio que
nos mantém no tem or do Senhor, uma espora que corrige a indolência de
nossa carne. E, visto que a lei é “útil para 0 ensino, para a repreensão, para
Capítulo 3 · 101

a correção, para a educação na justiça, a fim de que 0 homem de Deus seja


perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3.16,17), nes-
te sentido ela sempre está em vigor e permanece inalterável.
Em que sentido, pois, ela foi abolida? Temos afirmado que Paulo vi-
sualiza a lei como dotada de certas qualidades; e desejamos citar estas
qualidades. A lei vincula a recompensa ou 0 castigo às obras; ou seja,
promete vida àqueles que a cumprem e maldição a todos os que a trans-
gridem. Enquanto isso, a lei exige do homem a mais elevada perfeição e a
mais exata obediência. A lei não faz qualquer concessão, não oferece per-
dão, mas chama os transgressores a um sério reconhecimento da menor
ofensa. A lei não mostra com clareza a Cristo e a sua graça; ela aponta para
Ele de modo distante, encoberto no véu das cerimônias. Todas essas qua-
lidades da lei, Paulo nos diz, foram abolidas. Portanto, o ofício de Moisés
terminou, visto que, no aspecto externo, difere da aliança da graça.
26. Pois todos vós sois filhos de Deus. Seria injusto e bastante irracio-
nal se a lei mantivesse os crentes em escravidão perpétua. Isto é provado
pelo argumento que Paulo acrescentou: os crentes são filhos de Deus. Não
seria suficiente dizer que já saímos do período da infância, a menos que ele
dissesse também que somos homens livres, pois, na condição de escravos,
a idade não produz qualquer modificação. O fato de que eles são filhos de
Deus prova sua liberdade. Como? Pela fé em Cristo; pois “a todos quantos
0 receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos
que crêem no seu nome” (Jo 1.12). Visto que pela fé obtivemos a adoção,
pela fé obtivemos igualmente a liberdade.
27. Todos quantos fostes batizados em Cristo. Quanto mais intensa
e mais sublime é a idéia de sermos filhos de Deus, tanto mais distante
ela fica de nossa compreensão e mais difícil se torna 0 crermos nela. Por
isso, o apóstolo explica resumidamente 0 que significa 0 sermos unidos,
ou melhor, 0 sermos tornados um com 0 Filho de Deus, para remover toda
a dúvida de que o que pertence a Cristo é comunicado a nós. Ele emprega
a metáfora de uma vestimenta, quando diz que os gálatas se revestiram de
Cristo. Paulo queria dizer que os crentes estavam tão unidos a Cristo, que,
na presença de Deus, eles possuíam 0 nome e 0 caráter de Cristo e eram
102 · Comentário de Gálatas

vistos nEle, antes que se vissem em si mesmos. Esta metáfora ou similitude


ocorre freqüentemente; e já a abordamos em outros lugares.
Entretanto, 0 argumento de que se revestiram de Cristo porque foram
batizados parece fraco, pois o batismo está longe de ser eficaz em todos.
Pois, é razoável afirmar que a graça do Espírito Santo esteja tão vinculada
a um sinal externo? A doutrina uniforme da Escritura, bem como a própria
experiência, não parece refutar esta afirmação? Minha resposta consiste no
fato de que é costumeiro a Paulo falar dos sacramentos sob dois pontos de
vista. Ao lidar com os hipócritas, nos quais 0 símbolo despertava orgulho,
Paulo proclamou em voz alta a inutilidade do sinal externo e denunciou,
com palavras fortes, a sua confiança insensata. Nestes casos, Paulo foca-
lizou não a ordenança de Deus, e sim a corrupção dos ímpios. Quando,
por outro lado, Paulo se dirigiu aos crentes, que utilizam corretamente
os símbolos, ele os vê em conexão com a verdade - que eles representam.
Neste caso, Paulo Por quê? Porque 0 apóstolo não se orgulha de qualquer
falso esplendor que existe nos sacramentos, mas chama a atenção ao fato
representado pela cerimônia exterior. Portanto, em concordância com a
designação divina, a verdade está associada aos sinais.
Talvez alguém pergunte se é possível que, por meio dos erros hu-
manos, a ordenança deixe de ser 0 que ela representa. A resposta é fácil.
Embora os ímpios não obtenham qualquer proveito das ordenanças, elas
ainda mantém sua natureza e importância. Os sacramentos apresentam
a graça de Deus tanto aos homens bons quanto a os maus. Nas promes-
sa da lei que exibem a graça do Espírito Santo, que a lei expõe, não há
nenhuma falsidade. Os crentes recebem o que é oferecido. E, se homens
ímpios, por rejeitarem a lei, tornam a oferta inconveniente para si mesmos,
a sua atitude não pode destruir a fidelidade de Deus nem o verdadeiro
significado da ordenança. Portanto, ao dirigir-se aos crentes, Paulo diz mui
apropriadamente que, no batismo, os crentes se revestem de Cristo, assim
como na Epístola aos Romanos Paulo disse: “ Se fomos unidos com ele na
semelhança da sua morte, certamente, 0 seremos também na semelhan-
ça da sua ressurreição” (Rm 6.5). Assim, 0 símbolo e a realização divina
são mantidos distintos, e 0 significado dos sacramentos é manifestado, de
Capítulo 3 · 103

modo que não podem ser considerados como exibições vazias e triviais.
Isto nos lembra a vil ingratidão de que são culpados os que, por abusarem
das preciosas ordenanças de Deus, não só as tornam infrutíferas para si
mesmos, mas também as transformam em sua própria destruição.
28. Não pode haver judeu nem grego. O significado é este: não há dis-
tinção de pessoas; assim não importa a que nação ou a que classe alguém
pertença. Nem a circuncisão é mais importante do que 0 sexo ou 0 estado
civil. Por quê? Porque Cristo toma a todos e os transforma em um só povo.
Quaisquer que sejam as outras diferenças, Cristo sozinho é suficiente para
unir todos eles.
Todos vós sois um. Agora a distinção é removida. O objetivo de Paulo
era mostrar que a graça da adoção e da esperança de salvação não depen-
dem da lei, mas estão contidas em Cristo, que, portanto, é tudo. O termo
Grego é usado neste versículo, conforme seu uso habitual, significando
gentios: um gênero representando toda a espécie.
29. Também sois descendentes de Abraão. Isto não tinha a intenção
de comunicar a idéia de que ser filho de Abraão é melhor do que ser um
membro de Cristo, e sim de reprimir 0 orgulho dos judeus, que se gloria-
vam de seu privilégio, como se apenas eles fossem 0 povo de Deus. Eles
não reconheciam nenhuma distinção maior do que 0 pertencer à raça de
Abraão. E 0 apóstolo faz que esta mesma distinção seja comum a todos
os que crêem em Cristo. A conclusão se baseia neste argumento: Cristo
é 0 descendente bendito, no qual, como já dissemos, todos os filhos de
Abraão se acham unidos. Paulo prova isso com a oferta universal da heran-
ça a todos eles. Disso concluímos que a promessa inclui os gentios entre
os filhos de Deus. Note-se, porém, que a fé sempre é mencionada em rela-
ção à promessa.
Capítulo 4

1. Digo, pois, que, durante 0 tempo em que 0 herdeiro é menor, em


nada difere de escravo, posto que é ele senhor de tudo.
2. Mas está sob tutores e curadores até ao tempo predeterminado
pelo pai.
3. Assim, também nós, quando éramos menores, estávamos servil-
mente sujeitos aos rudimentos do mundo;
4. vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nas-
cido de mulher, nascido sob a lei,
5. para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebesse-
mos a adoção de filhos.

1. Digo, pois. Quem dividiu esta epístola em capítulos, separou inade-


quadam ente este parágrafo do anterior, como se não fosse nada mais do
que a seção conclusiva (επεξεργασία) na qual Paulo explica e ilustra a dife-
rença que existe entre nós e 0 povo antigo. Ele faz isso por introduzir uma
terceira comparação, extraída do relacionam ento de um menor para com
seu tutor. 0 menino, ainda que seja livre e senhor de toda a família de seu
pai, ainda é considerado um escravo, porque vive em sujeição ao governo
de tutores. Mas 0 período de tutela dura som ente até “ao tem po predeter-
minado pelo pai”; depois disso, 0 menino desfruta de sua liberdade. Neste
aspecto, os pais que viviam sob 0 regime do Antigo Testamento, sendo
filhos de Deus, eram livres. Não estavam, porém, na posse da liberdade,
enquanto a lei, como tutor, os mantinha sob 0 seu jugo. Essa escravidão da
06‫ו‬ · Comentário de Gálatas

lei durou o quanto agradou a Deus, que a encerrou com a vinda de Cristo.
Advogados enumeram vários métodos pelos quais a tutela era encerrada;
mas, de todos eles, 0 único que se adequa a esta comparação é aquele que
Paulo indica aqui: a designação feita pelo pai.
Examinemos agora cada uma das cláusulas. Alguns aplicam a com-
paração a qualquer pessoa em particular, enquanto Paulo está falando de
duas nações. Reconheço que essa opinião é correta, mas ela nada tem a
ver com esta passagem. Os eleitos, embora sejam filhos de Deus desde o
ventre materno, ainda se mantêm sujeitos à lei como escravos, até que,
pela fé, se apropriam da liberdade. Assim, no momento em que conhecem
a Cristo, não dependem mais desse tipo de tutela. Admitindo tudo isso,
não acredito que Paulo estava falando de indivíduos ou que traçou uma
distinção entre 0 tempo de incredulidade e a chamada pela fé. O ponto em
questão era este: visto que a igreja de Deus é uma só, como é possível que
nossa condição seja diferente da dos israelitas? Visto que somos livres
pela fé, por que eles, que tinham a mesma fé que nós temos, não eram
participantes da mesma liberdade? Visto que somos igualmente filhos de
Deus, como podemos estar livres de um fardo que eles foram obrigados a
suportar? A controvérsia girava em torno destas questões, e não em torno
da maneira pela qual a lei reina sobre cada um de nós, antes de sermos,
pela fé, libertos da sua servidão. Antes de qualquer outra coisa, deve ficar
estabelecido que Paulo compara a igreja israelita, que existia sob 0 regime
da Antigo Testamento, com a igreja cristã, para que, assim, percebamos
em que pontos concordamos e em que pontos diferimos. Esta comparação
produz instrução abundante e proveitosa.
Primeiramente, aprendemos disso que nossa esperança e a dos pais
que viviam na época do Antigo Testamento é direcionada à mesma heran-
ça; pois eles eram participantes da mesma adoção.
De acordo com os sonhos de alguns fanáticos (entre estes, Serveto)
os pais foram eleitos por Deus tendo em vista o propósito único de prefi-
gurarem para nós 0 povo de Deus. Por outro lado, Paulo declara que eles
foram eleitos a fim de serem, juntamente conosco, os filhos de Deus. Ele
atesta particularmente que a eles, não menos do que a nós, pertencia a
Capítulo 4 · 107

bênção prometida a Abraão.


Em segundo lugar, aprendemos que, a despeito da servidão exterior,
a consciência deles era livre. A obrigação de guardar a lei não impedia
que Moisés e Daniel, todos os reis piedosos, sacerdotes e profetas, bem
como a toda a companhia de crentes, fossem livres no espírito. Levaram
sobre os ombros 0 jugo da lei, porém, com um espírito livre, adoraram
a Deus. Mais particularmente, foram instruídos sobre 0 perdão gratuito
dos pecados, e sua consciência foi libertada da tirania do pecado e da
morte. Disso, devemos concluir que eles sustentavam a mesma doutrina
que sustentamos, estavam unidos conosco na verdadeira unidade da fé,
colocaram a confiança no único Mediador, invocaram a Deus como seu Pai
e foram guiados pelo mesmo Espírito. Tudo isso nos leva à conclusão de
que a diferença entre nós e os antigos pais está não na substância, e sim
nos incidentes. Concordamos com eles em todas as principais caracterís-
ticas da aliança ou do testamento: as cerimônias e a forma de governo,
nas quais diferimos, são apenas apêndices. Além disso, aquela época era
a infância da igreja; mas agora, com a vinda de Cristo, a igreja chegou ao
estado de varonilidade.
O significado das palavras de Paulo é claro. Mas, ele não manifesta
aparente contradição? Em Efésios 4.13, ele nos exorta a buscarmos diaria-
mente 0 progresso, até que cheguemos “à perfeita varonilidade, à medida
da estatura da plenitude de Cristo”. Em 1 Coríntios 3.2, Paulo disse àqueles
crentes: “ Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda
não podíeis suportá-lo”. E aqui, na Epístola aos Gálatas, logo depois deste
versículo ele compara aqueles crentes a bebês (G1 4.19). Minha resposta
é que nas outras duas epístolas ele falava de pessoas particulares e da fé
individual. Mas em Gálatas Paulo falava em termos gerais a respeito de
dois corpos sem levar em conta indivíduos. Esta resposta nos ajudará a
resolver uma dificuldade maior. Quando consideramos a fé incomparável
de Abraão e a grande inteligência dos santos profetas, com que insolência
ousamos falar sobre esses homens como inferiores a nós? Porventura, não
eram eles os heróis, e nós, as crianças? Deixando de lado a nós mesmos,
quem dentre os gálatas seria igual a qualquer desses homens?
108 · Comentário de Gálatas

Neste versículo, como já 0 disse antes, Paulo não descrevia pessoas


em particular, e sim a condição geral de ambos os povos. Alguns homens
possuíam dons extraordinários; mas eram poucos homens, e não todo o
corpo, que possuíam esses dons. Além disso, ainda que fossem numero-
sos, devemos perguntar não 0 que eles eram interiormente, e sim qual era
0 tipo de governo sob 0 qual Deus os havia colocado. Sem dúvida alguma,
esse tipo de governo era uma escola, uma παιδαγωγία, ou seja, um sistema
de instrução para crianças. E o que somos agora? Deus quebrou aquelas
algemas, governa a sua igreja mais graciosamente e não colocou sobre nós
uma restrição mais severa. Ao mesmo tempo, é preciso observar, de passa-
gem, que, por mais conhecimento que tivessem, este fazia parte da natureza
do período, porquanto uma nuvem obscura repousava continuamente so-
bre a revelação que eles possuíam. Esta é a razão por que Jesus disse:
“Bem-aventurados os olhos que vêem as coisas que vós vedes. Pois eu vos
afirmo que muitos profetas e reis quiseram ver 0 que vedes, e não 0 viram;
e ouvir 0 que ouvis e não o ouviram” (Lc 10.23-24). Agora entendemos em
que aspecto somos preferidos àqueles que eram mais proeminentes que
nós; porque estas afirmações de Paulo não se aplicam a pessoas; elas se
relacionam totalmente à economia da administração divina.
Esta passagem é um poderoso aríete para destruir todas as pompas
cerimoniais que constituem toda a glória do sistema papal. Pois, o que
mais ofusca os olhos das pessoas simples e leva-as a honrar 0 governo
do papa, com admiração ou, pelo menos, certo grau de reverência, senão
a magnificência das cerimônias, ritos, gestos e todo tipo de aparato, in-
ventados com 0 propósito de extasiar os indoutos? À luz desta passagem,
parece que essas coisas não passam de dissimulação, por meio da qual a
beleza da igreja é deformada. Não falo agora sobre as maiores e mais amai-
diçoadas corrupções, tais como as que pretendem que essas coisas sejam
0 culto a Deus, imaginam que elas têm 0 poder de merecer a salvação e as

impõem com mais severidade do que toda a lei de Deus. Apenas chamo-
lhes a atenção aos subterfúgios ilusórios de que se valem os enganadores
de nossos dias para justificarem tantas abominações. Objetam, eu sei, que
as multidões são mais ignorantes do que 0 eram na época dos israelitas e
Capítulo 4 · 109

que, por isso, muitos auxílios são exigidos. Jamais serão capazes de pro-
var com esse argumento que as pessoas devem ser colocadas sob uma
disciplina de uma escola semelhante à que existia entre 0 povo de Israel.
Pois sempre os confrontarei com a afirmação de que a designação divina
é totalmente diferente.
Se eles apelarem à conveniência, pergunto: eles são melhores do que
Deus no julgar 0 que é conveniente? Tenhamos a firme convicção de que
0 que Deus determinou é o mais correto e 0 mais proveitoso. Portanto,
ao ajudar os ignorantes, não devemos empregar aqueles métodos que a
imaginação dos homens se deleita em inventar, e sim aqueles que foram
determinados por Deus mesmo, que não nos deixou sem nada que seja
adequado para assistir os ignorantes em sua fraqueza. Que este escudo
seja suficiente para repelir quaisquer objeções: “O Senhor decidiu de outra
maneira, e o seu propósito nos supre todos os argumentos; a menos que
suponhamos serem os homens capazes de inventar auxílios melhores do
que os que Deus mesmo providenciou... e mais tarde colocou de lado como
inúteis!” Observe-se cuidadosamente: Paulo não diz apenas que o jugo
colocado sobre os judeus é removido de nós; ele estabelece com clareza
uma distinção no governo que Deus nos ordenou observar. Reconheço que
agora somos livres no tocante a todas as questões externas; mas essa li-
berdade não deve sobrecarregar a igreja com uma multidão de cerimônias,
nem permitir que 0 cristianismo seja identificado com 0 judaísmo. A razão
para isso consideraremos adiante, em seu devido lugar.
3. Estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo. “Ru-
dimentos” pode significar, literalmente, as coisas externas e físicas ou, na
linguagem metafórica, os rudimentos. Prefiro esta última idéia. Mas, por
que ele diz que aquelas coisas que tinham significação espiritual eram do
mundo? Não desfrutamos, disse Paulo, da verdade em uma forma simples,
mas envolta em figuras terrenas. Portanto, 0 que era exterior tinha de ser
do mundo, embora ocultasse um mistério celestial.
4. Vindo, porém, a plenitude do tempo. Ele prossegue a compara-
ção à qual já havia se referido e aplica ao seu propósito a expressão “o
tempo predeterminado pelo Pai”; mostrando que 0 tempo ordenado pela
110 · Comentário de Gálatas

providência de Deus era oportuno e adequado. Aquela foi a época certa e


a melhor maneira de agir; foi a época que a providência de Deus orientou.
Portanto, pertencia somente a Deus 0 julgar e 0 determinar 0 tempo certo
para 0 Filho de Deus revelar-se ao mundo. Esta consideração deve res-
tringir toda curiosidade. Ninguém deve ficar insatisfeito com 0 propósito
secreto de Deus e questionar por que Cristo não apareceu antes desse
tempo. Se o leitor deseja informação mais completa sobre este assunto,
pode consultar 0 que escrevi na conclusão do comentário sobre a Epístola
aos Romanos (16.25-26).
Deus enviou seu Filho. Estas poucas palavras contêm muita instru-
ção. O Filho, que foi enviado, existia muito antes de ser enviado; e isto
prova sua eterna divindade. Cristo, portanto, é 0 Filho de Deus, enviado do
céu. No entanto, esta mesma Pessoa foi nascido de mulher, porquanto as-
sumiu nossa natureza. Isto mostra que Ele possui duas naturezas. Algumas
cópias de manuscritos dizem nascido, em lugar de filho. Esta é redação
mais seguida e, em minha opinião, a preferível. Mas a linguagem também
visava expressamente distinguir Cristo dos outros homens, como se Ele
houvesse sido formado da substância de sua mãe, e não por geração natu-
ral. Em qualquer outro sentido, isso teria sido fútil e estranho ao tema. A
palavra mulher expressa aqui 0 sexo feminino em geral.
Nascido sob a lei. A tradução literal é: “Feito sob a lei”. Mas, em mi-
nha tradução, prefiro outra palavra que expressa, com mais clareza, o fato
de que Ele foi colocado em sujeição à lei. Cristo, 0 Filho de Deus, que por
direito era isento de toda sujeição tornou-se sujeito à lei. Por quê? Ele fez
isso em nosso lugar, a fim de obter a liberdade para nós. Um homem livre,
ao constituir-se fiador, redime o escravo; ao pôr em si mesmo as algemas,
ele as tira do outro. De modo semelhante, Cristo decidiu tornar-se obri-
gado a cumprir a lei, a fim de obter isenção para nós. Do contrário, Ele
teria se submetido ao jugo da lei inutilmente, pois, com certeza, não foi em
benefício de Si mesmo que Ele fez isso.
5. Para resgatar os que estavam sob a lei. Temos de observar que a
isenção da lei obtida para nós por Cristo não significa que não devemos
mais obediência ao ensino da lei e podemos fazer 0 que nos agrada; pois
Capítulo4 · ‫ווו‬

a lei é a norma eterna de uma vida agradável e santa. Mas Paulo estava se
referindo à lei com todos os seus apêndices. Somos redimidos da sujeição a
essa lei, visto que ela não é mais 0 que era antes. Agora, “rasgou-se 0 véu”, e
a liberdade é proclamada abertamente. É isto que Paulo logo acrescenta.
A fim de que recebêssemos a adoção de filhos. Os pais, no regime do
Antigo Testamento, tinham certeza de sua adoção, mas não desfrutavam
tão plenam ente de seus privilégios. A adoção, à sem elhança de “a reden-
ção de nosso corpo” (Rm 8.23), é aqui apresentada como uma possessão
atual. Assim como receberem os, no último dia, 0 fruto de nossa redenção,
assim tam bém agora recebem os o fruto de nossa adoção, do qual os san-
tos pais não participaram antes da vinda de Cristo. Portanto, aqueles que
agora sobrecarregam a igreja com excesso de cerimônias, defraudam-na
do justo direito de adoção.

6. E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração 0 Espírito


de seu Filho, que clama: Aba, Pai!
1. De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo filho, tam-
bém herdeiro por Deus.
8. Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que,
por natureza, não 0 são;
9. mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por
Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e
pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos?
10. Guardais dias, e meses, e tempos, e anos.
11. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco.

6. E, porque vós sois filhos. A adoção que Paulo acabara de mencio-


nar pertence aos gálatas. E isso é provado com 0 seguinte argumento: esta
adoção precedeu 0 testem unho de adoção dado pelo Espírito Santo. 0 efei-
to, porém, é 0 sinal da causa. Ao ousarem cham ar a Deus de Pai, vocês têm
0 conselho e a orientação do Espírito de Cristo. Portanto, é incontestável
que vocês são filhos de Deus. Isto concorda com 0 que Paulo ensina em
112 · Comentário de Gálatas

outra epístola: que 0 Espírito é 0 penhor e garantia de nossa adoção e nos


dá a inabalável confiança de que Deus cuida de nós com amor paternal.
“Que também nos selou e nos deu 0 penhor do Espírito em nosso coração”
(2 Co 1.22). “Ora, foi o próprio Deus quem nos preparou para isto, outor-
gando-nos o penhor do Espírito” (2 Co 5.5).
Talvez alguém argumente: os homens perversos também não pra-
ticam suas impiedades enquanto reivindicam que Deus é seu Pai? Não
proclamam, com maior confiança do que os outros, a sua falsa vangloria?
Respondo que a linguagem de Paulo não se relaciona à falsa vangloria ou à
opinião arrogante que alguém possa nutrir a respeito de si mesmo. Paulo
falava sobre 0 testemunho de uma consciência piedosa que acompanha 0
novo nascimento. Este argumento só tem valor quando se aplica aos cren-
tes; pois os incrédulos não têm qualquer experiência desta certeza, como
0 disse nosso Senhor. Ele afirmou: “O Espírito da verdade, que 0 mundo

não pode conhecer, porque não 0 vê, nem 0 conhece” (Jo 14.17). Isso está
implícito nestas palavras de Paulo: “Enviou Deus ao nosso coração 0 Es-
pírito de seu Filho”. O que acontecia não era que as próprias pessoas se
arriscavam a crer, mas recebiam o testemunho do Espírito Santo em seu
coração. O Espírito de seu Filho é um título adaptado estritamente à oca-
sião presente, e nenhum outro poderia ter sido usado. Somos filhos de
Deus porque recebemos 0 mesmo Espírito de seu Filho.
Devemos observar que Paulo atribui isto a todos os crentes; pois, onde
está ausente 0 penhor do amor divino para conosco, ali certamente não
há fé. Disso torna-se evidente que tipo de cristianismo há no papado, que
acusa de impiedosa presunção qualquer pessoa que confesse ter 0 Espírito
de Deus. Nem o Espírito de Deus, nem certeza alguma fazem parte de noção
de fé do papado. Esse único dogma sustentado por eles prova que 0 diabo,
0 pai da incredulidade, reina em todas as escolas dos papistas. Reconheço
que os teólogos escolásticos, quando recomendavam a dúvida perpétua à
consciência das pessoas, estão em perfeita harmonia com 0 que ditariam os
sentimentos naturais dos homens. É mais necessário fixar em nossa mente
esta doutrina de Paulo: não é um verdadeiro cristão aquele que ainda não
aprendeu, pelo ensino do Espírito Santo, a chamar a Deus de seu Pai.
Capítulo 4 · 113

Que clama. Creio que este particípio é usado para expressar maior
ousadia. A incerteza não nos permite falar livremente, e mantém a nossa
boca quase fechada, enquanto as palavras semi-obstruídas saem com difi-
culdade de uma língua trôpega. Por outro lado, “clama” expressa certeza
e confiança inabalável. “Porque não recebestes 0 espírito de escravidão,
para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes 0 espírito de ado-
ção” (Rm 8.15).
Aba, Pai! 0 significado destas palavras, não tenho dúvida, consiste
em que invocar a Deus é um costume comum a todas as línguas. Um fato
que influência 0 assunto presente é que 0 título Pai é atribuído a Deus
mesmo tanto pelos hebreus como pelos gregos. E isso foi predito por
Isaías: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (Is
45.23). Todo este assunto é abordado em mais amplitude em sua Epístola
aos Romanos. Julguei desnecessário repetir aqui as observações que já fiz
na exposição daquela epístola, as quais 0 leitor pode consultar. Uma vez,
portanto, que os gentios são contados entre os filhos de Deus, é evidente
que a adoção procede não do mérito da lei, mas da graça da fé.
7. De sorte que já não és escravo. Na igreja cristã, não existe mais
escravidão, e sim a condição de filhos. Já investigamos em que aspecto os
pais que viviam sob a lei eram escravos. A liberdade deles ainda não fora
revelada; estava oculta sob 0 véu e o jugo da lei. Uma vez mais, nossa aten-
ção é dirigida à distinção entre 0 Antigo e 0 Novo Testamento. Os antigos
pais eram também filhos de Deus e herdeiros por intermédio de Cristo.
Mas possuímos 0 mesmo caráter, de maneira diferente, pois temos Cristo
presente conosco, e, assim, desfrutamos de suas bênçãos.
8. Outrora, porém, não conhecendo a Deus. Estas palavras não fo-
ram escritas como um argumento adicional; e, de fato, Paulo já havia
provado sua tese tão cabalmente, que não permanecera qualquer dúvida,
e os gálatas não podiam escapar à reprovação que ele agora ministrava. 0
objetivo do apóstolo era fazer com que o erro dos gálatas parecesse mais
grave, ao compará-lo com os acontecimentos passados. Não devemos
admirar, disse Paulo, que antes vocês serviam “a deuses que, por natu-
reza, não 0 são”; pois, onde existe ignorância, ali tem de haver cegueira
114 · Comentário de Gálatas

terrível. “Vocês vagueavam nas trevas. Todavia, quão triste é o fato de


que agora, em meio à luz, caíram em erros tão grosseiros!” A principal
inferência é que os gálatas eram menos desculpáveis, por corromperem
0 evangelho, do que os antigos pais, por se envelvorem na idolatria. Aqui,
porém, devemos observar: até que sejamos iluminados no verdadeiro
conhecimento do Deus único, sempre serviremos aos ídolos, não impor-
tando 0 pretexto que usemos para encobrir a falsa religião. A verdadeira
adoração a Deus tem de ser precedida por pontos de vista corretos a
respeito do caráter dEle.
Por natureza, ou seja, eles não são realmente deuses. Todo objeto de
adoração que 0 homem inventa é um produto de sua própria imaginação.
Na opinião dos homens, os ídolos podem ser deuses, mas, na realidade,
eles não são nada.
9. Mas agora que conheceis a Deus. Não há palavras que expressem
a perversa ingratidão de alguém apartar-se de Deus, depois de havê-lo co-
nhecido. O que significa essa atitude, senão 0 abandonar voluntariamente
a luz, a vida, a fonte de todas as bênçãos? Ou, o abandonar, como protestou
Jeremias, “o manancial de águas vivas” e cavar “cisternas, cisternas rotas,
que não retêm as águas” (Jr 2.13). Para intensificar ainda mais a culpa, 0

apóstolo corrige a sua linguagem, dizendo: “Ou, antes, sendo conhecidos


por Deus”. Pois, quanto mais intensa é a manifestação da graça de Deus
para conosco, tanto maior é a nossa culpa em desprezá-la. Paulo lembra
aos gálatas 0 tempo em que o conhecimento de Deus chegou até eles. Diz-
lhes que não 0 obtiveram por seu próprio empenho, nem pela perspicácia
ou habilidade de sua mente, e sim porque, quando se encontravam na mais
completa impossibilidade de pensar sobre Deus, Ele os visitou com sua mi-
sericórdia. 0 que é dito a respeito dos gálatas pode ser estendido a todos,
pois as palavras de Isaías cumprem-se em todos: “Fui buscado pelos que
não perguntavam por mim; fui achado daqueles que não me buscavam”
(Is 65.1). A origem de nossa chamada é a eleição divina gratuita, que nos
predestinou para a vida antes mesmo de nascermos. Desse fato depende a
nossa chamada, a nossa fé e toda a nossa salvação.
Como estais voltando, outra vez.‫ ?״‬Eles não podiam voltar novamen­
Capítulo 4 · 115

te às cerimônias que nunca haviam praticado. A expressão é figurativa


e denota apenas que retornar às perversas superstições, como se nun-
ca houvessem recebido a verdade de Deus, era 0 cúmulo da loucura. Ao
chamar as cerimônias de rudimentos fracos e pobres, Paulo os vê fora
de Cristo e, 0 que é pior, em oposição a Ele. Para os pais, as cerimônias
eram não somente exercícios e auxílios saudáveis que contribuíam ao
desenvolvimento da piedade, mas também meios eficazes de graça. No
entanto, toda a eficácia deles se encontrava em Cristo e na determinação
divina. Por outro lado, os falsos apóstolos negligenciavam as promessas e
se esforçavam para colocar esses rudimentos em oposição a Cristo, como
se Cristo sozinho não fosse suficiente. Não nos surpreende 0 fato de que
Paulo tenha considerado as cerimônias como trivialidades indignas; mas
já falei sobre isso. 0 termo escravizar-vos transmite uma reprovação por
se submeterem como escravos.
10. Guardais dias. Paulo cita a observância de dias como um dos
exemplos dos “rudimentos”. Devemos, porém, observar que ele não está
condenando a observância de datas civis nas disposições da sociedade.
A ordem da natureza, da qual surge esta prática, é fixa e constante. Como
são contados os meses e os anos, senão pelos movimentos do sol e da
lua? O que distingue 0 verão do inverno, a primavera do outono, senão
a ordenação de Deus - uma ordenação que Ele prometeu continuar até
ao fim do mundo (Gn 8.22)? Essa observância civil de dias serve não
somente para a agricultura, aos afazeres públicos e à vida comum, mas
também ao governo da igreja. Que tipo de observância Paulo censurava?
Era aquela observância que cegava a consciência, por motivos religiosos,
como se tal observância fosse indispensável à adoração a Deus, e que,
conforme ele mesmo nos diz na Epístola aos Romanos, faria distinção
entre um e outro dia (Rm 14.5).
Quando certos dias são representados como santos em si mesmos;
quando um dia é distinguido de outro por motivos religiosos; quando
dias santos são considerados parte da adoração a Deus, então, os dias
são observados de maneira incorreta. Os falsos apóstolos advogavam
veementemente 0 sábado, as luas novas e outras festas, visto que eram
116 · Comentário de Gálatas

observâncias da lei. Hoje, ao fazermos distinção de dias, não os repre-


sentamos como necessários e, deste modo, não forjamos um ardil para a
consciência. Não consideramos um dia mais santo do que o outro. Não os
tornamos equivalentes à religião e à adoração a Deus. Simplesmente aten-
tamos à preservação da ordem e da harmonia. Entre nós, a observância de
dias é livre e destituída de toda superstição.
11. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco. A ex-
pressão é severa e deve ter enchido os gálatas de preocupação. Pois, que
esperança lhes restaria, se 0 labor de Paulo tivesse sido em vão? Alguns
se sentem surpresos ante 0 fato de que Paulo tenha sido tão afetado pela
observância de dias, quase a ponto de designá-la como uma subversão de
todo o evangelho. Mas, se avaliarmos cuidadosamente o assunto, veremos
que Paulo tinha razão e que os falsos apóstolos não somente pretendiam
colocar sobre a igreja 0 jugo de servidão judaica, mas também enchiam
a mente daqueles crentes com superstições perversas! Trazer 0 cristia-
nismo de volta ao judaísmo era, em si mesmo, um grande mal. Contudo,
um erro ainda mais grave ocorria quando, em oposição à graça de Cristo,
eles estabeleciam os rituais como meritórios e pretendiam que esse tipo
de adoração granjeasse o favor de Deus. Quando essas doutrinas eram
aceitas, a adoração a Deus era corrompida, a graça de Cristo, anulada, e a
liberdade de consciência, oprimida.
Admiramo-nos de que Paulo receou haver labutado em vão e de que,
conseqüentemente, o evangelho não teria qualquer proveito? Visto que
essa mesma descrição de impiedade é agora apoiada pelo papado, que sor-
te de Cristo ou de evangelho eles mantêm? No que concerne à obrigação
da consciência, eles impõem a observância de dias com não menos ser-
veriedade do que a imposta por Moisés. Consideram os dias santos como
parte do culto divino, tal como 0 fizeram os falsos apóstolos, unindo-os
ao diabólico conceito de mérito. Portanto, os papistas também devem ser
considerados culpados, como os falsos apóstolos. Aliás, são ainda piores.
Os falsos apóstolos pretendiam observar dias que haviam sido designados
pela lei de Deus; mas os papistas ordenam que certos dias, determinados
por eles mesmos, sejam guardados como santos .
Capítulo 4 · 117

12. Sede qual eu sou; pois também eu sou como vós. Irmãos, assim
vos suplico. Em nada me ofendestes.
13. E vós sabeis que vos preguei 0 evangelho a primeira vez por
causa de uma enfermidade física.
14. E, posto que a minha enfermidade na carne vos foi uma tentação,
contudo, não me revelastes desprezo nem desgosto; antes, me
recebestes como anjo de Deus, como 0 próprio Cristo Jesus.
15. Que é feito, pois, da vossa exultação? Pois vos dou testemunho
de que, se possível fora, teríeis arrancado os próprios olhos para
mos dar.
16. Tornei-me, porventura, vosso inimigo, por vos dizer a verdade?
17. Os que vos obsequiam não 0 fazem sinceramente, mas querem
afastar-vos de mim, para que 0 vosso zelo seja em favor deles.
18. É bom ser sempre zeloso pelo bem e não apenas quando estou
presente convosco,
19. meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser
Cristo formado em vós;
20. pudera eu estar presente, agora, convosco e falar-vos em outro
tom de voz; porque me vejo perplexo a vosso respeito.

12. Sede qual eu sou. Depois de falar com aspereza até este ponto,
Paulo começa a adotar uma forma mais gentil. A aspereza que ele havia
dem onstrado se justificava pela im piedade da ofensa; pois, como Paulo de-
sejava fazer 0 bem, ele resolve adotar um estilo de conciliação. Um pastor
sábio considera não 0 que merecem com justiça aqueles que se afastaram
do caminho correto, e sim qual seria 0 melhor m étodo de trazê-los de vol-
ta. Ele tem de, “quer seja oportuno, quer não”, corrigir, repreender, exortar
“com toda a longanimidade e d outrina” (2 Tm 4.2). Seguindo esse método,
0 p astor sábio deixa de lado a repreensão e começa a usar súplicas. Assim,
vos suplico, diz ele, e os chama de irmãos, a fim de assegurar-lhes que não
havia qualquer amargura em suas reprovações.
As palavras sede qual eu sou referem-se às afeições da mente. Visto
que Paulo se esforça para acomodar-se a eles, deseja que façam 0 mesmo
118 · Comentário de Gálatas

em relação a ele. Pois também eu sou como vós, ou seja: “Não tenho outro
objetivo, exceto promover 0 bem de vocês; portanto, é justo que sejam
persuadidos a adotar pontos de vistas moderados e a atentar, com disposi-
ção e obediência, às minhas instruções”. Aqui, novamente, os pastores são
relembrados de seu dever de descer ao nível do povo, até onde puderem,
e de estudar as várias disposições daqueles com quem precisam lidar, se
querem obter concordância com a sua mensagem. O provérbio sempre
será verdadeiro: “Para ser amado, você tem de ser amável”.
Em nada me ofendestes. Paulo tencionava remover a suspeita que
poderia ter tornado as suas primeiras reprovações desagradáveis. Pois, se
imaginamos que alguém está falando sob um senso de injúria ou vingando-se
de uma contenda pessoal, desviamos completamente dele 0 nosso coração e
torcemos tudo que ele diz, para que adquira um sentido desfavorável. Paulo
enfrenta essa injúria, dizendo: “No que diz respeito a mim mesmo, não tenho
nenhuma queixa de vocês. Não estou zangado por uma questão pessoal,
nem por qualquer hostilidade de vocês. Portanto, se uso uma linguagem
incisiva, ela provém de outra causa, não de ódio, nem de ira”.
13. Por causa de uma enfermidade física. Paulo recorda aos gálatas
a maneira amiga e respeitável com a qual 0 haviam recebido. E faz isso por
duas razões. A primeira, para que soubessem que ele os amava e, assim,
obtivesse a prontidão deles em ouvir tudo que lhes tinha a dizer. A segun-
da, para encorajá-los a que, como haviam começado bem, continuassem
no mesmo rumo. Esta menção de fatos passados, conquanto fosse uma
expressão da afabilidade de Paulo, também era uma exortação para que
agissem da mesma maneira como o tinham feito no passado.
Com a expressão “enfermidade física” Paulo se referia, como em ou-
tras passagens, 0 que tinha a tendência de fazê-lo parecer insignificante e
desprezível. “Carne” denota sua aparência exterior, que a palavra “enfermi-
dade” descreve como sendo abjeto. Assim era Paulo quando teve ingresso
entre eles: sem pompa, sem grandeza, sem honras ou distinção mundanas,
sem tudo que poderia obter-lhe respeito e estima aos olhos dos homens.
No entanto, tudo isso não impediu os gálatas de recebê-lo com a maior dig-
nidade. Isto contribui poderosamente ao seu argumento? 0 que havia em
Capítulo 4 · 119

Paulo que despertasse a estima ou reverencia, senão o poder do Espírito


Santo? Com que pretexto, então, os gálatas começariam a desprezar esse
poder? Em seguida, eles são acusados de incoerência, visto que nenhum
acontecimento subseqüente na vida de Paulo poderia lhes dar motivo para
estimá-lo agora menos do que antes. Mas Paulo deixa que os gálatas pen-
sem nisso, contentando-se apenas em sugeri-lo, indiretamente, como um
assunto de consideração.
14. A... enfermidade na carne vos foi uma tentação. Ou seja: “Embora
me tenham visto, sob um ponto de vista do mundo, como uma pessoa des-
prezível, vocês não me rejeitaram”. Ele a chama de “tentação” ou “provação”,
porque era algo desconhecido ou obscuro, e não conseguia ocultá-lo, como
as pessoas ambiciosas costumam íazer, quando se sentem envergonhadas
de algo que as diminua na estimativa das pessoas. Freqüentemente, os indig-
nos são aplaudidos antes que seu verdadeiro caráter seja descoberto, mas
logo depois são rejeitados em meio à vergonha e ao descrédito. Mas 0 caso
de Paulo era bem diferente: ele não usara qualquer disfarce para se impor
aos gálatas; pelo contrário, dissera-lhes com franqueza 0 que ele era.
Como anjo de Deus. É assim que todo ministro de Deus deve ser consi-
derado. Assim como Deus emprega 0 serviço dos anjos para nos conceder
seus favores, assim também mestres piedosos são levantados por Deus
para ministrar-nos a mais excelente de todas as bênçãos, ou seja: a dou-
trina da salvação eterna. Não é sem razão que eles, por cujas mãos Deus
nos dispensa esse tesouro, são comparados a anjos; pois esses ministros
piedosos também são mensageiros de Deus, que nos fala por intermédio
dos lábios deles. Esse argumento foi usado por Malaquias: “Porque os lá-
bios do sacerdote devem guardar 0 conhecimento, e da sua boca devem
os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do SENHOR dos
Exércitos” (Ml 2.7).
Mas 0 apóstolo eleva a sua apreciação e acrescenta: “Como 0 pró-
prio Cristo Jesus”; pois 0 Senhor Jesus mesmo ordena que seus ministros
sejam considerados assim como Ele é: “Quem vos der ouvidos ouve-me a
mim; e quem vos rejeitar a mim me rejeita” (Lc 10.16). E isto não é admi-
rável? Porque é em nome dEle que esses ministros cumprem seu papel
120 · Comentário de Gálatas

como embaixadores! Assim, eles possuem a mesma categoria dAquele


em lugar de quem agem. Essa é a linguagem altamente recomendatória
que nos revela a majestade do evangelho e 0 caráter honrável dos seus
ministros. Se Cristo nos ordena honrar os seus ministros, é indubitável
que 0 desprezá-los procede da instigação do diabo. E, de fato, eles nunca
serão desprezados onde a Palavra de Deus é estimada. Em vão os papistas
tentam usar esse argumento em benefício de suas arrogantes pretensões.
Uma vez que eles são claramente inimigos de Cristo, quão absurdo é que
se revistam da roupagem de Cristo e se disfarcem como servos dEle! Se
desejam obter as honras dos anjos, devem cumprir 0 dever de anjos. Se
querem ser ouvidos como Cristo, então, transmitam-nos com fidelidade a
verdadeira Palavra de Deus.
15. Que é feito, pois, da vossa exultação? Paulo os tornara feli-
zes e insinua que a piedosa afeição com que o tinha considerado antes
era uma expressão de sua felicidade. Agora, porém, ao se permitirem
ser destituídos da adoração Àquele a quem deviam ter atribuído todo
0 conhecimento de Cristo que possuíam, deram evidência de que eram
infelizes. Isto tencionava produzir reflexão perspicaz. “0 quê? Tudo isto
será perdido? Vocês desperdiçarão toda a vantagem de ter ouvido a Cris-
to falando por meu intermédio? Terá sido em vão que fostes alicerçados
na fé por meu intermédio? O afastamento de vocês destruirá a glória de
sua obediência, na presença de Deus? Em resumo, ao renunciarem a pura
doutrina que haviam uma vez abraçado, eles lançaram fora, espontane-
amente, a bem-aventurança que haviam conquistado, trazendo sobre si
mesmos a destruição na qual sua jornada infeliz terminaria.
Pois vos dou testemunho. Não basta que os pastores sejam respei-
tados, se eles não são amados. Ambas as coisas são necessárias para
que apreciem plenamente a doutrina que eles pregam. E 0 apóstolo
declara que ambas existiam entre os gálatas. Paulo já falara sobre 0 res-
peito que os gálatas lhe dem onstraram e agora fala sobre 0 amor deles.
Estarem dispostos a arrancar os próprios olhos, se necessário fosse,
era uma evidência de amor extraordinário, um amor mais forte do que
a disposição de desistir da própria vida.
Capítulo 4 · 121

16. Tornei-me, porventura, vosso inimigo? Agora Paulo volta a falar


de si mesmo. E diz que era por culpa deles mesmos que haviam mudado
de mentalidade. É um fato comumente aceito que a verdade gera a raiva.
Contudo, a verdade nunca é odiável, exceto em face da perversidade e
malícia daqueles que não suportam ouvi-la. Enquanto Paulo se exime de
alguma culpa nessa discussão, ele censura indiretamente a ingratidão dos
gálatas. No entanto, 0 conselho amável de Paulo foi que eles não rejei-
tassem, por motivos levianos e imprudentes, 0 apostolado daquele que
outrora haviam considerado digno do seu mais terno amor. 0 que pode
ser mais inconveniente do que 0 ódio pela verdade transformar amigos
em inimigos? Portanto, 0 alvo de Paulo não era tanto o censurá-los, e sim
0 incitá-los ao arrependimento.
17. Os que vos obsequiam. Ele chega, afinal, aos falsos apóstolos e os
torna mais odiosos pelo seu silêncio do que se os houvesse citado antes;
pois geralmente evitamos fazer menção daquelas pessoas cujos nomes
produzem em nós desgosto e aversão. Paulo se refere à ambição imode-
rada desses homens e adverte os gálatas a que não sejam enganados pelo
seu zelo aparente. A comparação é emprestada do amor digno de honra,
contrastado com aquelas confissões de estima que provêm de desejos im-
puros. O zelo da parte dos falsos apóstolos não deve se impor sobre eles,
porque não procedia do zelo correto, e sim do desejo de obter reputação
- um desejo bem diferente daquele zelo santo a respeito do qual Paulo
fala aos crentes de Corinto: “Porque zelo por vós com zelo de Deus; visto
que vos tenho preparado para vos apresentar como virgem pura a um só
esposo, que é Cristo. Mas receio que, assim como a serpente enganou a
Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se
aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo” (2 Co 11.2,3).
Querem afastar-vos de mim. A fim de expor mais plenamente a sa-
gacidade dos falsos apóstolo, Paulo corrige a sua linguagem. “Eles não
somente tentam ganhar as afeições de vocês, mas também, visto que não
podem conquistá-los por outros meios, se esforçam para provocar intriga
entre nós. Quando vocês forem, por assim dizer, abandonados, esperam
que vocês se rendam a eles; pois sabem que, enquanto existir entre nós
122 · Comentário de Gálatas

harmonia espiritual, não podem exercer qualquer influência”. Esse es-


tratagema é comum a todos os ministros de Satanás. Ao produzirem nas
pessoas um desgosto por seu pastor, esperam, depois, atraí-las para si
mesmos. E, deposto 0 rival, assumem 0 seu lugar. Uma análise atenta e
criteriosa revelará que eles sempre começam desta maneira.
18. É bom ser sempre zeloso pelo bem. É incerto se Paulo se referia
a si mesmo ou aos gálatas. Os bons ministros são exortados a nutrir zelo
santo no cuidar das igrejas, a fim de apresentá-las “como virgem pura a um
só esposo, que é Cristo” (2 Co 11.2). Se isto se refere a Paulo, 0 significado
será: “Confesso que também sou zeloso por vós, mas com um propósito di-
ferente. E faço isso quando estou ausente e quando estou presente, porque
não busco meu próprio proveito”. Contudo, estou mais inclinado a pensar
que isto se refere aos gálatas, embora este caso admita mais do que uma
interpretação. Pode significar: “Eles, na verdade, tentam afastar de mim
as afeições de vocês, para que, ao ficarem desamparados, voltem-se para
eles. Mas vocês, que me amaram quando eu estava presente, continuam a
demonstrar a mesma consideração por mim, quando estou ausente”. No
entanto, uma explicação mais correta é sugerida pelo sentido que a palavra
ζηλούσται transmite. Assim como no versículo anterior Paulo usara a pala-
vra zelo em um sentido mau, denotando a maneira imprópria de conseguir
um objetivo, assim também agora ele a emprega em um sentido bom, de-
notando uma zelosa imitação das boas virtudes de outrem. Ao condenar 0
zelo impróprio, Paulo exorta os gálatas a se engajarem num tipo diferente
de competição, fazendo isso, também, enquanto ele estava ausente.
19. Meus filhos. A palavra filhos é muito mais branda e afetuosa do
que irmãos. Expressa ternura, embora, ao mesmo tempo, sugira os anos
tenros daqueles que já deviam ter chegado à idade adulta. 0 estilo é
abrupto; e isso ocorre freqüentemente em passagens altamente emotivas.
Sentimentos intensos, quando não podem se expressar adequadamente,
interrompem as nossas palavras mal proferidas, enquanto as emoções for-
tíssimas abalam a nossa pronúncia.
Por quem, de novo, sofro as dores de parto. Esta frase é acrescenta-
da para comunicar mais plenamente sua afeição veemente, que suportava,
Capítulo 4 · 123

por causa deles, a aflição e dores de uma mãe. Denota, igualmente, a ansie-
dade do apóstolo; pois “a mulher, quando está para dar à luz, tem tristeza,
porque a sua hora é chegada; mas, depois de nascido 0 menino, já não
se lembra da aflição, pelo prazer que tem de ter nascido ao mundo um
homem” (Jo 16.21). Os gálatas já haviam sido concebidos e trazidos à luz;
mas, depois de sua rebeldia, tinham de ser gerados pela segunda vez.
Até ser Cristo formado em vós. Com estas palavras, 0 apóstolo
abranda a ira dos gálatas, pois não menospreza 0 primeiro nascimentos
deles, mas diz que eles precisam ser outra vez nutridos no ventre, como
se ainda não estivessem plenamente formados. Ser Cristo formado em
nós é 0 mesmo que sermos formados em Cristo; porque nascemos para
que sejamos novas criaturas nEle. Por outro lado, Ele nasce em nós
para que vivamos sua vida. Visto que a genuína imagem de Cristo foi de-
formada por meio de superstições introduzidas pelos falsos apóstolos,
Paulo se esforça para restaurá-la em toda a sua perfeição e esplendor.
Isto é feito pelos ministros do evangelho, quando eles dão leite às
crianças e alimento sólido aos adultos (Hb 5.13, 14). Aliás, eles devem
realizar essa atividade durante todo 0 seu ministério de pregação. Mas
Paulo, neste versículo, se compara a uma mulher nos labores de parto,
porque os gálatas ainda não haviam nascido completamente.
Esta é uma passagem notável que ilustra a eficácia do ministério. É
verdade que somos nascidos de Deus (1 Jo 3.9). Mas, visto que Deus em-
prega um ministro do evangelho e a pregação como instrumentos para
atingir esse propósito, Ele se agrada em atribuir-lhes aquela obra que Ele
mesmo realiza, pelo poder do seu Espírito, em cooperação com os labores
de um homem. Atentemos sempre a esta distinção, ou seja: quando um
ministro é contrastado com Deus, ele não é nada e não pode fazer nada; é
completamente inútil. Mas, devido ao fato de que 0 Espírito Santo opera
eficazmente por meio dele, a fama e 0 louvor da ação é transferida para ele.
No entanto, o que Paulo descreve aqui não é 0 que o ministro do evangelho
pode fazer por si mesmo ou sem a operação de Deus, e sim 0 que Deus faz
por intermédio dele. Se os ministros do evangelho querem fazer alguma
coisa, devem esforçar-se para formar a Cristo, e não eles próprios, em seus
124 · Comentário de Gálatas

ouvintes. Neste ponto Paulo se sente tão abatido pela tristeza, que chega
quase a desanim ar de exaustão, sem sequer term inar a sentença.
20. Pudera eu estar presente, agora, convosco. Isto é uma repreen-
são fortíssima, a queixa de um pai tão perplexo à vista da má conduta
de seus filhos, que precisa de conselhos e não sabe a quem recorrer. Ele
anseia por uma oportunidade de conversar pessoalm ente com eles. Assim
podem os obter uma idéia nítida do que é conveniente às circunstâncias;
pois, à medida que 0 ouvinte é afetado, subm isso ou obstinado, podemos
adaptar nosso discurso. Contudo, o apóstolo queria expressar algo mais
do que isso, ao dizer: “Falar-vos em outro tom”. Ele estava disposto a usar
uma variedade de discurso e, se 0 caso 0 exigisse, formular uma nova lin-
guagem. Este é um procedim ento que os pastores têm de seguir com muita
dedicação. Eles não devem ser guiados totalm ente por suas próprias incli-
nações, ou pelas tendências de seu tem peram ento, e sim acom odarem -se,
enquanto 0 caso permitir, à capacidade das pessoas, lem brando -se de não
ir além do que a consciência lhes ditar e de não abandonar a integridade,
a fim de granjear o favor do povo.

21. Dizei-me vós, os que quereis estar sob a lei: acaso, não ouvis a lei?
22. Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da mulher escra-
va e outro da livre.
23. Mas 0 da escrava nasceu segundo a carne; 0 da livre, mediante
a promessa.
24. Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas
alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera
para escravidão; esta é Agar.
25. Ora, Agar é 0 monte Sinai, na Arábia, e corresponde à Jerusalém
atual, que está em escravidão com seus filhos.
26. Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe;

21. Dizei-me. Após ter apresentado exortações que visavam comover


os sentimentos, Paulo dá seguimento à sua doutrina inicial, lançando mão
Capítulo 4 · 125

de uma excelente ilustração. Vista apenas como argumento, a ilustração não


é muito forte; mas, encarada como uma confirmação acrescentada a uma
cadeia de raciocínio satisfatória, a ilustração é digna de nossa atenção.
Estar sob a lei significa colocar-se debaixo do jugo da lei, na condição
de que Deus lidará com você de acordo com a aliança da lei e que você, por
sua vez, se obriga a guardar a lei. Em outro sentido bem diferente deste, to-
dos os crentes estão sob a lei; aqui, porém, como já 0 dissemos, o apóstolo
se refere à lei com seus apêndices.
22. Pois está escrito. Nenhuma pessoa que receba a oportunidade de
escolha será tão louca, a ponto de desprezar a liberdade e preferir a escra-
vidão. Infelizes são as pessoas que escolhem voluntariamente esse estado,
quando Deus quer torná-las livres! O apóstolo evoca a imagem desse pano-
rama referindo-se aos dois filhos de Abraão: um, mantendo a condição de
sua mãe, nasceu escravo; o outro, 0 filho da mulher livre, recebeu a heran-
ça. Em seguida, Paulo aplica toda a história ao seu propósito, ilustrando-o
de maneira graciosa.
Em primeiro lugar, Paulo cita a lei, visto que seus adversários se arma-
ram com a autoridade da lei. A lei era 0 nome aplicado aos cinco livros de
Moisés. Além disso, como a história que ele cita parece não ter qualquer
vínculo com a questão, Paulo lhe dá uma interpretação alegórica. Contudo,
uma vez que estas coisas são alegóricas ( άλλεγορούμενα), Orígenes e muitos
outros com ele aproveitaram-se desta ocasião para afastar, de toda maneira
possível, as Escrituras de seu verdadeiro sentido. Eles concluem que 0 senti-
do literal é muito fraco e pobre e que, sob a casca da letra, existem mistérios
mais profundos que não podem ser extraídos senão por meio de alegorias. E
fizeram isso sem dificuldade; pois as especulações que aparentam engenho-
sidade, e não a doutrina sólida, sempre foi e será preferida pelo mundo.
Com essa aprovação, o sistema licencioso atingiu gradualmente tal
dimensão, que todo aquele que usava as Escrituras para seu próprio en-
tretenimento não somente deixou de ser punido, como também obteve o
mais prolongado aplauso. Por muitos séculos, nenhum homem era consi-
derado arguto, se não tinha astúcia e ousadia para, com engenhosidade
e destreza, mudar em diversos significados a Sagrada Palavra de Deus.
126 · Comentário de Gálatas

Isso, indubitavelmente, não passava de uma trama de Satanás, para en-


fraquecer a autoridade da Escritura e remover de sua leitura qualquer
vantagem autêntica. Deus vingou esta profanação com um juízo justo, ao
permitir que 0 significado puro das Escrituras fosse sepultado debaixo
de falsas interpretações.
A Escritura, dizem eles, é fértil e produz uma diversidade de signi-
ficados. Reconheço que a Escritura é a mais rica e inexaurível fonte de
toda a sabedoria. Nego, porém, que sua fertilidade consiste na diversidade
de significados que alguém atribui à sua vontade. Saibamos, pois, que 0

verdadeiro significado da Escritura é 0 natural e 0 óbvio (verum sensum


scripturae, qui germanus est et simplex). Devemos aceitá-lo e viver resolu-
tamente por ele. Quanto àquelas falsas explicações que nos afastam do
sentido natural das Escrituras, temos não somente de rejeitá-las como
duvidosas, mas também lança-las fora com ousadia, considerando-as cor-
rupções letais (a literali sensu).
Mas, 0 que devemos fazer com as palavras de Paulo: “Estas coisas
são alegóricas”? Com certeza, ele não quis dizer que Moisés escreveu a
história para que ela fosse transformada em uma alegoria. Paulo realça
a maneira como história pode ser usada para lidar com este assunto. Ele
faz isso por observar uma representação figurada da igreja ali delineada. E
uma interpretação mística desse tipo (αναγωγή) não era incoerente com 0
significado genuíno e literal, quando uma comparação foi traçada entre a
Igreja e a família de Abraão. Assim como a família de Abraão era, naquela
época, a verdadeira igreja, assim também é indubitável que os principais e
mais memoráveis eventos ocorridos com aquela família são, muitos deles,
figuras para nós. Na circuncisão, nos sacrifícios e em todo 0 sacerdócio
levítico, havia uma alegoria; em nossas ordenanças, também há uma ale-
goria; e, igualmente, na família de Abraão. Mas esse fato não envolve um
afastamento do significado literal. Em resumo, Paulo citou a história como
que contendo, nas duas esposas de Abraão, uma figura das duas alianças;
e nos dois filhos, uma figura dos dois povos. Aliás, Crisóstomo reconhece
que a palavra alegoria indica que a aplicação presente difere do significado
natural; e isto é correto.
Capítulo 4 · 127

23. Mas o da escrava. Ambos nasceram de Abraão segundo a carne.


Mas Isaque era diferente: ele tinha a promessa da graça. Em Ismael, nada
havia além da natureza; em Isaque, estava a eleição divina, significada, em
parte, pela maneira de seu nascimento, que não ocorreu de modo normal,
e sim miraculoso. No entanto, há uma inferência indireta à chamada dos
gentios e à rejeição dos judeus. Pois estes se gloriavam de seus ancestrais,
enquanto aqueles, sem qualquer interferência humana, têm se tornado a
descendência espiritual de Abraão.
24. Estas mulheres são duas alianças. Tenho preferido adotar esta tra-
dução, para não perder de vista a beleza da comparação. Paulo compara os
duas alianças (διαθήκω) às duas mulheres. Usar a palavra testamento, que,
no grego, é um substantivo neutro, para denotar uma mulher, seria grossei-
ro. A palavra aliança (pactio), portanto, é mais apropriada; e 0 desejo de
obter mais perspicácia, bem como elegância, levou-me a fazer esta escolha.
A comparação é agora formalmente introduzida. Na família de Abraão
havia duas mulheres; isso também é verdade na igreja de Deus. A doutrina é
a mãe por meio da qual Deus nos gera. E a doutrina tem dois aspectos distin-
tos: a lei e 0 evangelho. A lei, tipificada por Agar, gera para a escravidão. Sara
representa a segunda mãe, que gera para a liberdade. Paulo faz do monte
Sinai a nossa primeira mãe e de Jerusalém, a nossa segunda mãe. As duas
alianças são as mães das quais os filhos dissemelhantes são nascidos. Pois a
aliança da lei gera escravos, e a aliança do evangelho gera homens livres.
Tudo isso, porém, talvez pareça absurdo, à primeira vista, porque
nenhum dos filhos de Deus nasce para a liberdade; portanto, a compara-
ção não se aplica. Respondo: 0 que Paulo diz é verdade em dois aspectos.
Anteriormente, a lei gerou discípulos (entre os quais se incluem os santos
profetas e outros crentes) para a escravidão, mas não para uma escravi-
dão permanente, visto que Deus os colocou por algum tempo sob a lei,
como um “aio” (G1 3.25) . A liberdade deles estava oculta sob 0 véu das
cerimônias e de toda a economia pela qual foram governados. Aos olhos
exteriores, não parecia outra coisa, senão escravidão. “Não recebestes”,
disse Paulo aos romanos, “0 espírito de escravidão, para viverdes, outra
vez, atemorizados” (Rm 8.15). Aqueles santos pais, ainda que interiormen­
128 · Comentário de Gálatas

te eram livres aos olhos de Deus, na aparência externa, não eram diferentes
dos escravos. Assim, refletiam a condição de sua mãe. Mas a doutrina do
evangelho outorga aos seus filhos perfeita liberdade, tão logo sejam nasci-
dos, e os cria em liberdade.
Admito que Paulo não fala deste tipo de filhos, conforme 0 demons-
trará o contexto. Os fihos do Sinai, explicaremos depois, significam os
hipócritas, que por fim são expulsos da igreja de Deus e destituídos da
herança. Então, 0 que significa gerar filhos para a escravidão, que constitui
0 assunto da presente discussão? Denota aqueles que abusam perversa-
mente da lei, achando nela somente 0 que tende à escravidão. Mas este
não é 0 caso dos santos pais que viveram na época do Antigo Testamento;
pois 0 nascimento deles sob a escravidão da lei não os impediu de ter
Jerusalém como sua mãe, no espírito. Todavia, aqueles que se apegam à
mera lei e não a conhecem como um aio que os conduz a Cristo (G13.24),
fazendo dela uma barreira que os impede de vir a Ele, esse são ismaelitas,
nascidos para a escravidão.
Alguém objetará novamente: por que 0 apóstolo diz que os tais são
nascidos da aliança divina e pertencentes à igreja? Falando estritamente,
respondo que não são filhos de Deus, e sim pessoas degeneradas e espú-
rias, rejeitadas por Deus, a quem falsamente chamam de Pai. Recebem este
nome na igreja, não porque são realmente membros dela, mas porque, por
algum tempo, fingem ocupar aquele lugar e enganam os homens com os
disfarces que usam. 0 apóstolo aqui considera a Igreja como ela é vista
neste mundo. Mas falaremos sobre isso mais adiante.
25. Ora, Agar é o monte Sinai. Não gastarei tempo refutando as
exposições de outros escritores. Porquanto é frívola a conjectura de Jerô-
nimo no sentido de que 0 monte Sinai tinha dois nomes. E a discussão de
Crisóstomo acerca da concordância dos nomes é igualmente indigna de
consideração. O Sinai é chamado Agar porque é um tipo ou figura; assim
como a Páscoa era Cristo. A localização do monte expressa menosprezo.
Encontra-se na Arábia, além das fronteiras da Terra Santa, que é símbolo
da herança eterna. O fato admirável é que num assunto tão familiar os
gálatas erravam clamorosamente.
Capítulo 4 · 129

E corresponde à Jerusalém. A Vulgata traduz por “está ligada” ( con-


junctus est). Erasmo a traduz: “Toca em” (conünis). Prefiro adotar a tradução
“corresponde, por outro lado, a ”(ex adverso), para evitar obscuridade. Pois
0 apóstolo certamente não se refere à proximidade ou à posição relativa,
e sim ã semelhança no que concerne a esta comparação. A palavra σύστοι-
χα, traduzida como corresponde a, denota coisas tão bem organizadas que
mantêm uma relação mútua. E a palavra similar συστοιχία, quando aplicada
a árvores e outros objetos, transmite a idéia de seguir em ordem regular. 0
monte Sinai é dito corresponder (συστοιχειν) à Jerusalém, no mesmo sen-
tido em que Aristóteles disse que a Retórica é a contraparte (άντίσφοφοα)
da Lógica, por meio de uma metáfora emprestada de composições líricas,
que eram geralmente arranjadas em duas partes, adaptadas de tal modo
a serem cantadas em harmonia. Em resumo, a palavra συστοιχεΐν significa
nada mais do que pertencer à mesma classe.
Por que, então, Paulo compara a Jerusalém atual com 0 monte Sinai?
Embora antes eu tivesse opinião diferente, agora concordo com Crisós-
tomo e Ambrósio, que explicam a comparação como que se referindo à
Jerusalém terrena e interpretam as palavras “Jerusalém atual” (τή νύν
Ιερουσαλήμ) como que indicando a doutrina e adoração nas quais ela ha-
via se degenerado. Ela devia ter sido uma imagem vivida da Jerusalém
celestial e uma expressão do seu caráter. Mas, tal como existe agora, disse
Paulo, está relacionada com 0 monte Sinai. Embora estejam bem distan-
tes uma da outra, ambas são perfeitamente semelhantes em todas as suas
principais características. Esta é uma repreensão severa lançada contra os
judeus, cuja verdadeira mãe não era Sara, e sim a Jerusalém espúria, irmã
gêmea de Agar. Eles eram, portanto, escravos nascidos de uma escrava,
ainda que se vangloriassem, soberbamente, que eram filhos de Abraão.
26. Mas a Jerusalém lá de cima. A Jerusalém que Paulo chama “/á
de cima", ou celestial, não está contida no céu, nem devemos procurá-la
fora deste mundo; pois a igreja está espalhada por todo 0 mundo, sendo
peregrina e estrangeira na terra (Hb 11.13). Então, por que Paulo diz que
ela é do céu? Porque tem a sua origem na graça celestial; pois os filhos de
Deus “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade
130 · Comentário de Gálatas

do homem” (Jo 1.13), mas pelo poder do Espírito de Deus. A Jerusalém


celestial, que deriva sua origem do céu e pela fé habita em cima, é a mãe
dos crentes. À igreja, pela operação de Deus, devemos 0 fato de que fo-
mos “regenerados não de sem ente corruptível, mas de incorruptível” (1
Pe 1.23); e dela obtem os 0 leite e o alimento pelos quais som os continua-
mente nutridos.
Estas são as razões por que a Igreja é cham ada a mãe dos crentes.
E, certam ente, aquele que se recusa ser filho da igreja em vão deseja ter
a Deus como seu Pai; pois é som ente pelo ministério da igreja que som os
nascidos de Deus (1 Jo 3.9), conduzidos através dos vários estágios da
infância e da juventude, até que cheguemos à maturidade. A designação
“a qual é nossa m ãe” reflete a mais elevada estim a e a mais sublime honra
a respeito da igreja. Mas os papistas são tolos e infantis, ao reivindicar
para sua igreja esse título, a fim de embaraçar-nos. Pois sua mãe é uma
adúltera, a qual dá à luz filhos do diabo, para a morte. Quão louca é a
alegação de que os filhos de Deus devem sujeitar-se a ela, para que sejam
cruelm ente mortos! Não poderia a sinagoga de Jerusalém, naquele tempo,
ter assum ido essas pretensões arrogantes, com maior plausibilidade do
que 0 faz Roma em nossos dias? No entanto, vemos como essas palavras
de Paulo despojam-na de toda e qualquer distinção honrosa, consignando-
lhe 0 quinhão de Agar.

27. porque está escrito: Alegra-te, ó estéril, que não dás à luz, exulta e
clama, tu que não estás de parto; porque são mais numerosos os
filhos da abandonada que os da que tem marido.
28. Vós, porém, irmãos, sois filhos da promessa, como Isaque.
29. Como, porém, outrora, 0 que nascera segundo a carne perseguia
ao que nasceu segundo 0 Espírito, assim também agora.
30. Contudo, que diz a Escritura? Lança fora a escrava e seu filho,
porque de modo algum 0 filho da escrava será herdeiro com 0
filho da livre.
31. E, assim, irmãos, somos filhos não da escrava, e sim da livre.
Capítulo 4 · 131

27. Porque está escrito. O apóstolo prova, com uma citação de Isaías,
que os filhos legítimos da igreja nascem segundo a promessa. A passagem
é Isaías 54, onde 0 profeta fala sobre 0 reino de Cristo e a chamada dos
gentios. E promete à mulher estéril e à viúva uma prole numerosa. É com
base nisso que ele exorta a igreja a cantar e exultar. 0 objetivo do apóstolo,
devemos observar com atenção, consistia remover dos judeus qualquer
direito àquela Jerusalém espiritual sobre a qual Isaías falava. O profeta
anuncia que os filhos dessa Jerusalém serão reunidos de todas as nações,
não mediante qualquer preparação da parte daquela Jerusalém, e isso me-
diante a graça e a bênção gratuitas de Deus.
Em seguida, 0 apóstolo conclui que nos tornamos filhos de Deus por
meio da promessa, segundo 0 padrão de Isaque (κατά Ισαάκ), e que não
há outra maneira de obtermos essa honra. Para os leitores menos hábeis
e pouco exercitados no manuseio da Escritura, essa argumentação talvez
pareça inconclusiva, visto que não se apropriam do mais indubitável de
todos os princípios, ou seja: todas as promessas, fundamentadas no Mes-
sias, provêm da livre graça. Visto que 0 apóstolo tomou isso como algo
inquestionável, ele pôde contrastar ousadamente a promessa com a lei.
29. Como, porém, outrora, o que nascera segundo a carne. Pau-
10 denuncia a crueldade dos dos falsos apóstolos, os quais insultavam
atrevidamente as pessoas piedosas que colocavam toda a sua confiança
em Cristo. Havia uma necessidade abundante de que essa inquietação
dos oprimidos fosse aliviada por consolação e de que a crueldade dos
opressores fosse reprimida com severidade. Não devemos nos admirar,
disse Paulo, de que os filhos da lei, no presente, fazem 0 que Ismael, 0
pai deles, fazia na antiguidade, o qual, confiando que era 0 primogênito,
perseguiu a Isaque, 0 herdeiro legítimo. Com 0 mesmo desdém arrogan-
te, por conta das cerimônias externas, da circuncisão e dos diversos
serviços da lei, a posteridade de Ismael molesta os legítimos filhos de
Deus e se gloria contra eles.
0 Espírito é novamente contrastado com a carne, isto é, a chamada
de Deus com a aparência humana (cf. 1 Sm 16.7). Assim, admite-se que
os seguidores da lei e das obras usavam um disfarce, mas a realidade é
132 · Comentário de Gálatas

atribuída àqueles que confiam somente na chamada de Deus e dependem


de sua graça.
Perseguia. Em parte alguma se menciona a perseguição, exceto 0 fato
de que Moisés disse que Ismael (‫ מצהיץ‬- mêtzãhêk) caçoava; e, com essa
forma verbal, Paulo quis dizer que Ismael ridicularizava seu irmão Isaque.
A explicação oferecida por alguns judeus, de que a zombaria era um sim-
pies sorriso, é totalmente inadmissível. Pois, que crueldade teria exigido
que um sorriso inofensivo recebesse uma vingança tão cruel? Não há dú-
vida de que Ismael se esforçou maliciosamente para provocar 0 pequeno
Isaque, com uma linguagem imprópria.
Quão longe, porém, isso está de perseguição! No entanto, não é fútil
nem imprudente que Paulo tenha se estendido sobre este assunto. Ne-
nhuma perseguição nos aflige mais do que vermos nossa vocação sendo
minada pelos zombarias de pessoas ímpias. Nem as bofetadas, nem os
açoites, nem os cravos, nem os espinhos causaram tanto sofrimento a nos-
so Senhor como aquela blasfêmia: “Confiou em Deus; pois venha livrá-lo
agora, se, de fato, lhe quer bem” (Mt 27.43). Nestas palavras, há mais vene-
no do que em todas as perseguições. Banalizar a graça divina da adoração
é muito mais grave do que perdermos esta vida frágil. Ismael não perse-
guiu a seu irmão usando a espada. Mas, 0 que é pior, ele 0 ameaçou com
desdém arrogante, ao pisotear a promessa de Deus. Todas as perseguições
surgem quando os homens ímpios desprezam e odeiam, nos eleitos, a gra-
ça de Deus. Temos em Caim e Abel um exemplo memorável desse fato.
Isso nos mostra que devemos encher-nos de horror não somente
diante das perseguições externas, quando os inimigos do cristianismo nos
destroem com fogo e espada; quando nos aprisionam, torturam, açoitam;
mas também quando tentam, com blasfêmias, subverter a nossa confiança,
que descansam nas promessas de Deus; quando ridicularizam nossa salva-
ção, quando lançam cinicamente escárnio contra todo 0 evangelho. Nada
deve ferir nosso espírito tão profundamente como o menosprezo para com
Deus e as reprovações dirigidas contra a sua graça. Tampouco existe um
tipo de perseguição mais mortal do que aquela que investe contra a salva-
ção da alma. Nós, que fomos libertados da tirania do papado, não somos
Capítulo 4 · 133

chamados a enfrentar a espada dos ímpios. Mas, quão admirados devemos


ficar, se não somos atacados por aquela perseguição espiritual com a qual
eles se esforçam, usando vários métodos, para extinguir a doutrina da qual
extraímos 0 fôlego de vida; quando atacam nossa fé com suas blasfêmias
e deixam abalados aqueles que são menos informados. De minha parte,
sinto-me muito mais preocupado com a fúria dos epicureus do que com
os papistas. Aqueles não nos atacam com violência aberta. Amo 0 nome
de Deus mais do que a própria vida; por isso, a conspiração diabólica que
vejo em operação com 0 propósito de extinguir todo 0 temor e adoração a
Deus, de desarraigar a recordação de Cristo ou abandoná-la aos escárnios
dos ímpios, aflige minha mente com inquietação maior do que se todo 0
país estivesse em um grande incêndio.
30. Contudo, que diz a Escritura? Havia certa consolação no
exemplo de nosso pai Isaque que ficou em evidência; mas essa conso-
lação é ainda mais forte quando ele acrescenta que os hipócritas, com
toda a sua ostentação, nada podem granjear da família espiritual de
Abraão, senão ser dela extirpados ; e que, por mais que insolentemen-
te nos molestem por algum tempo, a herança, com toda certeza, nos
será reservada. Que os crentes, pois, se alegrem com a consolação de
que a tirania dos ismaelitas não durará para sempre. Parecem ter se
apropriado da primazia; e, ensoberbecidos de serem os primogênitos,
nos desprezam. Mas um dia serão declarados como abortivos agaritas,
filhos de uma escrava e indignos da herança.
Eis uma passagem muitíssimo bela para impedir-nos de nos sentir-
mos confusos pelo orgulho dos hipócritas ou invejarmos sua sorte, quando
mantêm uma habitação e posição temporárias na Igreja. Ao contrário,
olhemos pacientemente para 0 fim que os aguarda. Muitos são os filhos
ilegítimos ou estranhos que usurpam um espaço na Igreja, mas que não
perseveram confessando a fé; justamente como Ismael se orgulhava de sua
primogenitura; e a princípio a dominara, mas foi mais tarde lançado fora
como estranho, juntamente com sua posteridade. Certas pessoas sagazes
se riem da simploriedade de Paulo em comparar 0 rancor de uma mulher
que surgiu em cena de uma rixa vil para 0 tribunal de Deus. Esses tais,
134 · Comentário de Gálatas

porém, ignoram os decretos divinos, pelos quais se fez manifesto que to-
dos eram governados pela providência celestial. Que Abraão teria cedido
completamente aos caprichos de sua esposa é certamente algo excepcio-
nal, mas isso prova que Deus usou os serviços de Sara para confirmar sua
promessa. Em suma, a expulsão de Ismael nada era senão a conseqüência
e consolidação deste oráculo: “Em Isaque será chamada a tua descendên-
cia” - não em Ismael! Portanto, ainda que fosse a represália de uma mulher
rancorosa, Deus não deixou por menos fazendo sua sentença conhecida
pelos lábios de uma mulher, como tipo da Igreja.
31. E, assim, irmãos. Ele agora exorta os gálatas a preferirem ser
filhos de Sara do que de Agar; e lembra-lhes que, pela graça de Cristo,
haviam nascido para a liberdade, portanto que continuassem no mesmo
estado. Se porventura chamarmos os papistas de ismaelitas e agaritas, e
reivindicarmos que somos os filhos legítimos, eles se rirão de nós. Mas que
os dois temas em questão sejam honestamente comparados, e as pessoas
mais ignorantes não se sintam embaraçadas em decidir.
Capítulo 5

1. Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois,


firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão.
2. Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de
nada vos aproveitará.
3. De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está
obrigado a guardar toda a lei.
4. De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei;
da graça decaístes.
5. Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a esperança da justiça que
provém da fé.
6. Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão
tem valor algum, mas a fé que atua pelo amor.

1. Perm anecei, pois, firmes. Depois de dizer aos gálatas que eles são
filhos da mulher livre, 0 apóstolo agora os recorda que não devem menos-
prezar essa liberdade tão preciosa. Essa liberdade é certamente uma bênção
inestimável, pela qual devemos lutar até à morte; visto que são interesses
eternos, e não somente as mais elevadas considerações temporais, que
nos motivam a lutar. Muitas pessoas, que nunca avaliam 0 assunto sob
este prisma, nos acusam de zelo excessivo, quando nos vêem contenden-
do tão impetuosa e seriamente pela liberdade da fé aplicada aos assuntos
exteriores, em oposição à tirania do papa. Usando este disfarce, nossos
adversários criam um preconceito contra nós entre as pessoas ignorantes,
136 · Comentário de Gálatas

como se tudo 0 que buscamos fosse a licenciosidade, que é 0 relaxamento


de toda disciplina. Mas as pessoas sábias e experientes sabem que essa é
uma das doutrinas mais importantes ligadas à doutrina da salvação. Não é
uma questão de comer este ou aquele alimento, de observar ou negligenciar
um dia específico (como muitos pensam insensatamente e do que alguns
nos acusam). Esta é uma questão referente ao que é permitido diante de
Deus, 0 que é necessário para a salvação e 0 que não podemos omitir, sem
pecar. Em suma, a controvérsia se relaciona com a liberdade de consciência,
colocada diante do tribunal de Deus.
A liberdade sobre a qual Paulo falava, nesta passagem, é a isenção de
cerimônias da lei, cuja observância era exigida, como necessária, pelos
falsos apóstolos. O leitor deve lembrar, ao mesmo tempo, que essa liberda-
de era apenas uma parte do que Cristo havia conquistado para nós. Pois,
quão pequena bênção desfrutaríamos, se Ele nos tivesse livrado apenas
das cerimônias? Isto é apenas um córrego que tem sua origem em uma
fonte mais elevada! Somos livres porque “Cristo nos resgatou da maldição
da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G1 3.13); porque
Ele anulou 0 poder da lei, até onde ela nos mantinha sujeitos ao juízo de
Deus, sob pena de morte eterna; também porque, numa palavra, Ele nos
resgatou da tirania do pecado, de Satanás e da morte. Assim, sob um só
aspecto, Paulo inclui toda a doutrina. Sobre isso, porém, falaremos mais
completamente no comentário da Epístola aos Colossenses.
Esta liberdade foi obtida por Cristo, na cruz, para nós. 0 fruto e a posse
dessa liberdade nos são outorgados por meio do evangelho. Paulo tinha ra-
zão em advertir os gálatas a não se sujeitarem, de novo, a jugo de escravidão,
ou seja, a não permitirem que uma rede fosse lançada para apanhar a sua
consciência. Pois, se os homens puserem em nossos ombros um fardo injus-
to, esse fardo pode ser suportado; mas, se eles se esforçam para ter a nossa
consciência em escravidão, devemos resisti-lhes varonilmente, até à mor-
te. Se permitirmos que os homens escravizem nossa consciência, seremos
despojados de uma bênção inestimável e, ao mesmo tempo, insultaremos
a Cristo, 0 Autor da liberdade. Mas qual é a força das palavras de novo,
na exortação: “Não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão”? Pois os
Capítulo 5 · 137

gálatas jamais haviam vivido sob a lei? Significa apenas que eles não deviam
ser enganados, como se não houvessem sido redimidos pela graça de Cristo.
Embora a lei tenha sido dada aos judeus, e não aos gentios, ambos não têm
qualquer liberdade ã parte de Cristo; têm somente escravidão.
2. Eu, Paulo. Ele não podia ter pronunciado uma ameaça mais severa
do que a de excluí-los inteiramente da graça de Cristo. Mas, 0 que isto
significa? Que Cristo de nada aproveita a todos os circuncidados? Cristo de
nada aproveitou a Abraão? É claro que Cristo lhe foi proveitoso, pois, para
que isso acontecesse, Abraão recebeu a circuncisão. Se dissermos que a
lei estava em vigor somente até à vinda de Cristo, 0 que falaremos a res-
peito de Timóteo? Temos de observar que a argumentação de Paulo não se
dirigia propriamente ao rito ou cerimônia exterior, e sim à perversa doutri-
na dos falsos apóstolos, os quais pretendiam que sua doutrina fosse uma
parte indispensável da adoração a Deus e, ao mesmo tempo, tornavam-na
um motivo de confiança, uma obra meritória. Essas invenções diabólicas
faziam que Cristo de nada aproveitasse. Os falsos apóstolos não negavam
a Cristo, nem desejavam que ele fosse totalmente colocado de lado; mas
eles faziam tal distinção entre a graça de Cristo e as obras da lei, que não
deixavam mais do que uma meia salvação por meio de Cristo. 0 apóstolo
argumenta que Cristo não pode ser dividido desse modo e que Ele “de
nada... aproveitará”, a menos que seja aceito em sua totalidade.
0 que os papistas modernos tentam nos fazer aceitar em lugar da cir-
cuncisão? A tendência de todo 0 ensino deles consiste em mesclar a graça
de Cristo com os méritos das obras; e isso é impossível. Quem deseja ter
apenas um meio Cristo, perde 0 Cristo todo. No entanto, os papistas se
acham bastante astutos, quando nos dizem que nada atribuem às obras,
exceto por meio da influência da graça de Cristo, como se isso fosse um
erro diferente do erro dos gálatas. Eles não criam que tivessem se separa-
do de Cristo ou abandonado a sua graça. Mas perderam a Cristo quando
corromperam a principal parte da doutrina do evangelho.
A expressão eu, Paulo é muito enfática. Ele se coloca diante dos gálatas
e menciona seu próprio nome, para que remover toda aparência de hesita-
ção. E, embora sua autoridade começasse a ser menosprezada entre aqueles
138 · Comentário de Gálatas

crentes, Paulo afirma que ela era suficiente para eliminar cada adversário.
3. De novo, testifico. O que ele introduz agora é confirmado pela
contradição envolvida na sentença seguinte. Aquele que “está obrigado a
guardar toda a lei” jamais escapará à morte, mas será sempre considerado
culpado, pois jamais se encontrará um homem capaz de satisfazer à lei.
Sendo esta a obrigação, 0 homem tem de ser condenado, e Cristo de nada
lhe aproveita. Vemos, pois, a natureza contraditória das duas proposições:
somos participantes da graça de Cristo e obrigados a cumprir toda a lei.
Concluímos, então, que nenhum dos patriarcas foi salvo? E que Timóteo
se perdeu, visto que Paulo 0 circuncidou? Somos desaventurados, até que
estejamos livres da lei; porque a sujeição é inseparável da circuncisão.
Temos de observar que Paulo tinha por costume falar da circuncisão
em dois sentidos, como facilmente 0 perceberá qualquer pessoa que der
atenção moderada aos seus escritos. Em Romanos 4.11, Paulo chama a cir-
cuncisão de “selo da justiça da fé”; e, sob 0 regime da circuncisão, ele inclui a
Cristo e a promessa gratuita da salvação. Mas, neste versículo, ele contrasta
a circuncisão com Cristo, com a fé, com 0 evangelho e com a graça, conside-
rando-a apenas um acordo legal fundamentado no mérito das obras.
A conseqüência, como eu já disse, é que ele nem sempre fala da mes-
ma maneira sobre a circuncisão. E a razão para essa diferença tem de ser
levada em conta. Quando Paulo via a circuncisão em sua própria natureza,
ele a usava, apropriadamente, como símbolo da graça, porque essa era a
designação de Deus. Mas, quando estava lidando com os falsos apóstolos,
que abusavam da circuncisão, tornando-a um instrumento para destruir 0
evangelho, Paulo não considerava o propósito para 0 qual ela havia sido de-
signada pelo Senhor, mas atacava a corrupção que procedia dos homens.
Um exemplo admirável ocorre aqui. Quando Abraão recebeu uma
promessa referente a Cristo, bem como a justiça pela livre graça e a sal-
vação eterna, a circuncisão foi acrescentada para confirmar a promessa.
Assim, a circuncisão se tornou, por designação de Deus, um sacramento
que era subserviente à fé. Posteriormente, surgem os falsos apóstolos,
que pretendem seja a circuncisão uma obra meritória e recomendam a
observância da lei, transformando a circuncisão, como rito iniciatório,
Capítulo 5 · 139

em um símbolo de confissão de obediência à lei. Neste versículo, 0 após-


tolo não se referia ã designação divina, mas atacava 0 ponto de vista
antibíblico dos falsos apóstolos.
Pode-se objetar que os abusos dos ímpios, sejam quais forem tais
abusos, não invalidam as sagradas ordenanças de Deus. Após a vinda
de Cristo, a circuncisão deixou de ser uma instituição divina, porque 0
batismo tomou 0 seu lugar. Então, por que Timóteo foi circuncidado? Cer-
tamente, não foi por causa dele mesmo, mas por causa dos irmãos fracos,
a quem isso foi permitido.
Para mostrar mais claramente quão semelhantes são a doutrina dos
papistas e aquelas que Paulo combatia, devemos notar que os sacramentos,
quando os recebemos com sinceridade, não são obras dos homens, e sim
de Deus. No batismo ou na Ceia do Senhor nada fazemos, apenas chegamos
à presença de Deus, a fim de recebermos sua graça. 0 batismo, visto sob
0 aspecto humano, é uma obra passiva: nada trazemos a ele, exceto a fé; e
tudo 0 que concerne à fé é colocado em Cristo. Mas, qual é a opinião dos
papistas? Inventam a opus operatum, pela qual os homens merecem a graça
de Deus. 0 que significa isto, senão 0 extinguir completamente a verdade do
sacramento? Preservamos 0 batismo e a Ceia do Senhor porque Cristo quis
que fossem usados perpetuamente. Mas rejeitamos, com a firme repugnân-
cia, que elas mereçam aquelas noções ímpias e insensatas.
4. De Cristo vos desligastes. Eis 0 significado do versículo: “Se vocês
buscarem alguma parte da justiça nas obras da lei, Cristo não terá qual-
quer interesse por vocês, e estarão decaídos da graça”. Os gálatas não
estavam tão insensatamente equivocados, a ponto de crer que eram justifi-
cados tão-somente pela observância da lei; 0 que pretendiam era associar
Cristo à lei. Se nutrissem qualquer outro ponto de vista, as ameaças de
Paulo teriam falhado em deixá-los alarmados. “0 que vocês estão fazendo?
Privando-se de qualquer benefício que há em Cristo e considerando a sua
graça como algo sem valor.” Vemos, pois, que nem mesmo a menor parte
da justiça pode ser atribuída à lei, sem rejeitar a Cristo e sua graça.
5. Porque nós, pelo Espírito. Paulo antecipa uma objeção que po-
deria surgir. “A circuncisão não tem qualquer utilidade?” Paulo responde:
40‫ו‬ · Comentário de Gálatas

“Em Cristo, a circuncisão não tem qualquer valor”. A justiça, portanto, de-
pende da fé; é obtida no Espírito, sem as cerimônias.
Aguardar a esperança da justiça é colocar nossa confiança neste ou
naquele objeto ou decidir de onde a justiça deve ser esperada. Mas as pa-
lavras talvez contenham uma exortação: “Continuemos intrepidamente na
esperança da justiça que é obtida pela fé”. Ao dizer que obtemos a justiça
pela fé, isto se aplica tanto a nós como aos patriarcas. Todos eles, conforme
0 testem unho da Escritura (Hb 11.5), agradaram a Deus pela fé; mas a sua
fé foi ocultada pelo véu das cerimônias. Por isso, Paulo faz distinção entre
nós e eles, usando a palavra “Espírito”, que é contrastada com as som bras
exteriores. Portanto, ele queria dizer que a fé simples é a única coisa neces-
sária para obtermos a justiça; a fé que não precisa da ajuda de cerimônias
esplêndidas e se satisfaz com a adoração espiritual prestada a Deus.
6. Porque, em Cristo Jesus. A razão por que os crentes esperam ago-
ra pela justiça no Espírito é que em Cristo, isto é, no reino de Cristo ou
na igreja cristã, a circuncisão, com seus apêndices, está abolida. Porque,
usando uma figura de linguagem em que uma parte é tom ada em lugar
do todo, a palavra “circuncisão” é colocada em lugar de “cerimônias”. Ao
mesmo tem po que Paulo declara que as cerimônias não possuem mais
qualquer influência, ele não admite que elas sem pre foram inúteis. Paulo
diz que as cerimônias foram repelidas som ente depois da revelação de
Cristo. Isso nos capacita a resolver outra questão: por que, nesta passa-
gem, Paulo fala de modo tão desdenhoso a respeito da circuncisão, como
se ela não tivesse nenhum valor? O ponto agora considerado é a classe a
que pertencia a circuncisão como um sacram ento. A questão não é que
valor ela tinha antes de ser abolida. No reino de Cristo, 0 apóstolo declara
que a circuncisão está no mesmo nível da incircuncisão, porque a vinda de
Cristo pôs fim às cerimônias legais.
Mas a fé que atua pelo amor. Paulo contrasta cerimônias com 0
exercício do amor, para im pedir que os judeus pensassem elevadamente
a respeito de si mesmos, imaginando que tinham direito a algum tipo de
superioridade. Pois, quase no final da epístola, em vez desta expressão,
ele usa as palavras uma nova criatura (G16.15). Era como se Paulo estives­
Capítulo 5 · 141

se dizendo: “As cerimônias não são mais recomendadas pela autoridade


de Deus; basta-nos ser abundantes no exercício do amor”. Mas isso não
descarta os nossos sacramentos, os quais são auxílios à fé. Era apenas
uma confirmação do que ele ensinara antes a respeito do culto espiritual
prestado a Deus.
Não haveria dificuldade nesta passagem, se os papistas não a tives-
sem distorcido desonestamente, a fim de defenderem a justiça das obras.
Quando eles tentam refutar a nossa doutrina de que somos justificados
somente pela fé, lançam mão deste argumento: “Se a fé que nos justifica
é aquela que atua pelo amor, então, a fé não justifica sozinha”. Eis minha
resposta: eles não entendem nem seu próprio sofisma e, menos ainda,
0 que ensinamos. Não é nossa a doutrina de que a fé justifica sozinha.
Sustentamos que a fé está, invariavelmente, acompanhada de boas obras,
mas contendemos sobre o ensino de que ela sozinha é suficiente para a
justificação. Os próprios papistas estão acostumados a despedaçar a fé,
segundo um padrão injurioso, apresentando-a, às vezes, sem forma e des-
tituída de amor e, outras vezes, em seu verdadeiro caráter. Recusamos,
porém, admitir, em qualquer caso, que a fé verdadeira possa ser separada
do Espírito de regeneração. Entretanto, quando debatemos acerca da ma-
neira como somos justificados, excluímos todas as obras.
Nesta passagem, Paulo não discute se o amor coopera com a fé na jus-
tificação; mas, a fim de evitar que parecesse estar representando os crentes
como pessoas ociosas e inertes, Paulo indica as verdadeiras funções dos
crentes. Quando discutimos sobre a justificação, devemos acautelar-nos
de fazer menção do amor ou das boas obras e deter-nos resolutamente à
partícula exclusiva. Mas, neste versículo, Paulo não está tratando da jus-
tificação ou atribuindo parte do crédito ao amor. Se ele tivesse feito isso,
0 mesmo argumento provaria que a circuncisão e as cerimônias, em uma
época anterior, tinham uma parte na justificação do pecador. Assim como
em Cristo Jesus ele recomenda fé com amor, assim também antes da vinda
de Cristo as cerimônias eram exigidas. Mas isso não tem qualquer relação
com 0 obter a justiça, como os próprios papistas concordam. Também não
devemos supor que amor possui essa influência.
142 · Comentário de Gálatas

7. Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a obedecer


à verdade?
8. Esta persuasão não vem daquele que vos chama.
9. Um pouco de fermento leveda toda a massa.
10. Confio de vós, no Senhor, que não alimentareis nenhum outro
sentimento; mas aquele que vos perturba, seja ele quem for, so-
frerá a condenação.
11. Eu, porém, irmãos, se ainda prego a circuncisão, porque continuo
sendo perseguido? Logo, está desfeito 0 escândalo da cruz.
12. Tomara até se mutilassem os que vos incitam à rebeldia.

7. Vós corríeis bem. A censura que 0 apóstolo ministrou aos gálatas


por que se afastaram da verdade é mesclada com a aprovação de sua
carreira anterior. 0 propósito era que, ao trazê-los a um senso de vergo-
nha, retornassem imediatamente ao caminho. O espanto transmitido na
pergunta: “Quem vos impediu...?” tinha a intenção de fazê-los enrubescer.
Prefiro traduzir πείθεσθαι pelo verbo obedecer, em vez de crer, porque,
depois de abraçarem a pureza do evangelho, foram desviados de um ca-
minho de obediência.
8. Esta persuasão nào vem daquele que vos chama. Antes, Paulo
lutara com eles usando argumentos; agora, lhes anuncia , com voz de
autoridade, que a sua persuasão não procedia de Deus. Esse tipo de admo-
estação não receberia muita atenção, se não fosse apoiada por autoridade
pessoal. Paulo, a quem os gálatas deviam a proclamação da chamada di-
vina, tinha 0 direito de lhes falar com esta linguagem confiante. Esta é a
razão porque ele não disse diretamente: “de Deus”, mas 0 expressou com
uma circunlocução: “Daquele que vos chama”. Era como se Paulo estives-
se dizendo: “Deus jamais é inconsistente consigo mesmo; foi ele que, por
meio da minha pregação, vos chamou à salvação. Esta nova persuasão
vem de uma outra fonte. Se querem ter certeza de que a chamada de vocês
procede dEle, cuidem para não dar ouvidos àqueles que lhes impõem suas
novas invenções”. Embora 0 particípio grego καλού ντος esteja, naturalmen-
te, no tempo presente, preferi traduzi-lo “aquele que vos chamou”, para
Capítulo 5 · 143

remover a ambigüidade.
9. Um pouco de fermento. Isto se referia, eu creio, à doutrina, e não
a homens. E protegia os gálatas contra as conseqüências perniciosas que
emanam da corrupção da doutrina, advertindo-os a não achar (como fre-
qüentemente as pessoas 0 fazem) que essa doutrina corrompida envolvia
pouco ou nenhum risco. A estratégia de Satanás não é tentar uma destrui-
ção aberta de todo 0 evangelho, e sim macular a sua pureza introduzindo
opiniões falsas e corruptas. Muitos são levados a ignorar a seriedade
da injúria causada e, por isso, fazem uma resistência menos resoluta. 0
apóstolo protesta, dizendo que, uma vez corrompida a verdade de Deus,
não estamos mais seguros. Ele usa a metáfora do fermento; e este, por
menor que seja a quantidade, transmite sua acidez a toda a massa. Deve-
mos ser muito cautelosos, não permitindo que uma imitação substitua a
sã doutrina do evangelho.
10. Confio de vós. Toda a indignação de Paulo é agora dirigida contra
os falsos apóstolos. O mal é rastreado até eles, sobre os quais 0 castigo é
lançado. O apóstolo declara que alimenta boa esperança de que os gálatas
se voltarão, imediata e diligentemente, à crença sincera. Isso nos encoraja
a aprender que boas esperanças são alimentadas a nosso respeito, por-
que consideramos vergonhoso 0 desapontar aqueles que sentem ternura e
amizade por nós. Mas trazê-los de volta à sã doutrina da fé, da qual haviam
se desviado, era obra de Deus. O apóstolo diz que confiava neles, ενΚυριω,
no Senhor, com isso, Paulo lhes recorda que 0 arrependimento é um dom
celestial e que deviam pedi-lo a Deus.
Aquele que vos perturba. O sentimento que Paulo acabara de expres-
sar é confirmado por esta imputação indireta de grande parte da culpa
aos impostores pelos quais os gálatas haviam sido enganados. Os gálatas
estavam quase eximidos da punição denunciada contra os impostores. To-
dos os que introduzem confusão nas igrejas, que quebram a unidade da fé,
que destroem a harmonia, ouçam esta advertência de Paulo; e, se possuem
algum sentimento correto, tremam diante destas palavras. Deus declara,
pelos lábios de Paulo, que nenhum “homem pelo qual vem 0 escândalo”
(Mt 18.7; Lc 17.1) ficará sem punição.
144 · Comentário de Gálatas

A frase seja ele quem for é enfática; porque a linguagem impressio-


nante dos falsos apóstolos havia terrificado a multidão ignorante. Era
necessário que Paulo defendesse sua doutrina com ardor e energia corres-
pondentes, não poupando ninguém que ousasse erguer sua voz contra ela,
por mais eminente que fosse tal pessoa.
11. Eu, porém, irmãos. Esse argumento é extraído da causa final. Pau-
10 disse: “Eu evitaria o desprazer dos homens, bem como todo perigo e
perseguição, se tivesse apenas de associar as cerimônias a Cristo. 0 zelo
com que os enfrento não é manifestado por minha própria causa, tam-
pouco em meu próprio benefício”. Mas isso nos faz concluir que 0 ensino
de Paulo é verdadeiro? Respondo que sentimentos corretos e uma consci-
ência pura, manifestadas por um mestre, contribuem para a obtenção da
confiança. Além disso, seria ilógico que alguém fosse tão insensato, que
trouxesse voluntariamente aflição sobre si mesmo. Por fim, Paulo lança
sobre seus oponentes a suspeita de que, ao pregar a circuncisão, estavam
mais interessados em seu próprio bem-estar do que em servir fielmente a
Cristo. Em suma, Paulo era completamente isento de ambição, de avareza
ou de interesse pessoal, visto que desprezava o favor e os aplausos dos ho-
mens, expondo-se publicamente às perseguições e à fúria das multidões, e
não tinha 0 menor desejo de afastar-se da pureza do evangelho.
Logo, está desfeito 0 escândalo da cruz. Paulo chama, francamente,
0 evangelho de a Cruz ou a Palavra da Cruz, quando quer contrastar sua
profunda simplicidade com as “grandes arrogâncias” (Jd 16) da sabedo-
ria ou da justiça dos homens. Pois os judeus, ensoberbecidos com uma
confiança infundada em sua própria justiça, e os gregos, com uma cren-
ça insensata em sua própria sabedoria, desprezavam a insignificância do
evangelho. Quando Paulo diz agora que, se a pregação da circuncisão for
admitida, o escândalo da cruz não mais existe; a sua intenção é afirmar que
0 evangelho não sofrerá qualquer importunação da parte dos judeus e que
será ensinado com a total anuência deles. Por quê? Porque eles não mais
se sentirão ofendidos com um evangelho falso e espúrio, constituído dos
ensinos de Moisés e de Cristo. Este evangelho misturado é por eles tolera-
do, pois recupera-lhes a posse de sua superioridade anterior.
Capítulo 5 · 145

12. Tomara até se mutilassem os que vos incitam. A indignação de


Paulo aumenta, levando-o a rogar que a destruição sobrevenha aos impos-
tores que haviam enganado aos gálatas. A palavra “mutilar” parece uma
alusão ã circuncisão que eles impunham. Crisóstomo se inclina a este pon-
to de vista: “Eles despedaçam a igreja por causa da circuncisão; desejo que
sejam totalmente mutilados”. Mas, como essa imprecação pode ser conci-
liada com a ternura de um apóstolo que deveria anelar que todos fossem
salvos e ninguém perecesse? No que concerne aos homens, admito a força
deste argumento; pois é a vontade de Deus que busquemos a salvação
de todo os homens, sem exceção, porque Cristo sofreu pelos pecados do
mundo inteiro. Mas as pessoas piedosas são levadas, às vezes, para além
da consideração dos homens, fixando seus olhos na glória de Deus e no
reino de Cristo. A glória de Cristo, a qual é, em si mesma, mais excelente do
que a salvação dos homens, precisa receber de nós um grau mais elevado
de estima e consideração. Os crentes sinceramente desejosos de que a
glória de Deus seja promovida esquecem os homens e 0 mundo, preferindo
que todo 0 mundo pereça, mas que a glória de Deus não seja ofuscada.
Lembremo-nos, porém, de que uma oração como essa resulta da
completa omissão dos homens em buscar e olhar somente para Deus.
Paulo não pode ser acusado de crueldade, como se fosse contrário à
lei do amor. Além disso, se compararmos um único homem ou algumas
poucas pessoas com a igreja, quão imensamente deve preponderar a
igreja. É uma misericórdia cruel a que prefere um único homem do que
toda a igreja. Por um lado, vejo 0 rebanho de Deus em perigo. Por outro
lado, vejo um lobo, como Satanás, “procurando alguém para devorar”
(1 Pe 5.8). 0 meu cuidado pela igreja não deve aniquilar todos os meus
pensamentos e levar-me a desejar que a salvação seja adquirida pela des-
truição do lobo? Apesar disso, não devo desejar que alguém pereça desta
maneira; mas o meu amor pela igreja e a minha ansiedade a respeito dos
interesses da igreja podem me levar a um tipo de êxtase, de modo que
eu não pense em nenhuma outra coisa. Tal zelo deveria arder no coração
de todo verdadeiro pastor da igreja de Cristo. A palavra grega traduzida
por que incitam à rebeldia significa remover de certa classe ou posição.
146 · Comentário de Gálatas

Ao usar 0 term o και (até), Paulo expressa mais fortem ente seu desejo de
que os im postores fossem não som ente degradados, mas tam bém intei-
ram ente separados e excluídos.

13. Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não


useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos
uns dos outros, pelo amor.
14. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás
0 teu próximo como a ti mesmo.
15. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que
não sejais mutuamente destruídos.
16. Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupis-
cência da carne.
17. Porque a carne milita contra 0 Espírito, e 0 Espírito, contra a
carne, porque são opostos entre si; para que não façais 0 que,
porventura, seja do vosso querer.
18. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.

13. Fostes chamados à liberdade. Agora, Paulo m ostra como a li-


berdade deve ser usada. Na exposição de 1 Coríntios, enfatizamos que a
liberdade e 0 seu uso são duas coisas distintas. A liberdade está na cons-
ciência e olha para Deus. O seu uso é externo e não lida apenas com Deus,
mas tam bém com os homens. Depois de exortar os gálatas a não permiti-
rem qualquer detrim ento de sua liberdade, Paulo agora lhes recom enda
que sejam m oderados em usá-la. Ele estabelece uma norm a para 0 seu uso
lícito, para que não se converta num pretexto ou ocasião para licenciosida-
de. Não devemos dar liberdade à carne, que deve, antes, ser mantida sob
jugo; mas a liberdade é um benefício espiritual que som ente os espíritos
piedosos são capazes de desfrutar.
Sede, antes, servos uns dos outros pelo amor. Aqui, Paulo explica
que 0 método de im pedir a liberdade de irrom per em abuso im oderado e
licencioso é regulá-la pelo amor. Tenhamos sem pre em mente que a ques­
Capítulo 5 · 147

tão não é de que maneira tem os liberdade diante de Deus, e sim como
podem os usar a nossa liberdade entre os homens. Uma boa consciência
não se subm ete a nenhum a servidão; mas praticar a servidão exterior e
abster-se do uso da liberdade não é perigoso. Em resumo, se servimos uns
aos outros pelo amor, terem os sem pre nossa atenção voltada para a edifi-
cação; e, desse modo, não crescerem os libertinos, mas usarem os a graça
de Deus para a sua honra e a salvação de nosso próximo.
14. Porque toda a lei. Neste versículo, há uma antítese - não afir-
m ada com clareza, mas facilmente subentendida - entre a exortação de
Paulo e a doutrina dos falsos apóstolos. Enquanto estes insistiam apenas
nas cerimônias, Paulo descreve em poucas palavras os deveres e práticas
dos crentes. Esta recom endação concernente ao am or visava ensinar aos
gálatas que 0 am or é a principal p arte da perfeição cristã. Mas devemos
indagar por que razão todos os preceitos da lei estão incluídos no manda-
mento do amor. A lei consiste de duas tábuas: a primeira nos ensina sobre
a adoração a Deus e os deveres da piedade; e a segunda, sobre os deve-
res do amor ao próximo. Pois é absurdo tom ar uma parte como se fosse
0 todo. Alguns evitam esta dificuldade, relembrando-nos que a primeira
tábua não contém nada mais do que o amar a Deus com todo o nosso co-
ração. Mas Paulo menciona expressam ente 0 amor ao próximo; por isso,
devemos buscar uma solução mais satisfatória.
Reconheço que a piedade para com Deus é mais eminente do que
0 amor aos irmãos. Assim, a observância da primeira tábua é, aos olhos
de Deus, mais valiosa do que a da segunda. Mas, visto que Deus mesmo
é invisível, a piedade é algo oculto à percepção dos homens. Embora as
cerimônias tenham sido designadas para evidenciar a piedade, elas não
constituem provas seguras da existência da piedade. Às vezes, acontece
que ninguém é mais zeloso e sistem ático em observar as cerimônias do
que os hipócritas. Portanto, Deus resolve provar 0 nosso amor para com
Ele por meio do am or ao nosso irmão, 0 am or que Deus nos recomenda. Eis
a razão por que não som ente aqui, mas tam bém na epístola aos Romanos
(13.8,10) 0 am or é cham ado “0 cumprim ento da lei”, não porque seja su-
perior à adoração a Deus, e sim porque é a prova dessa adoração. Como já
148 · Comentário de Gálatas

disse, Deus é invisível, mas Ele se representa nos irmãos e na pessoa deles
exige 0 que Lhe é devido. O amor para com os homens flui do temor e do
amor a Deus. Portanto, não devemos ficar admirados com 0 fato de que, se
por meio de uma figura de linguagem, em que a parte é tomada pelo todo, 0
efeito inclua a causa da qual ele é 0 sinal. Contudo, seria errôneo qualquer
pessoa separar 0 amor a Deus do amor aos homens.
Amarás o teu próximo. Aquele que ama dará a cada pessoa 0 que é seu
direito, não injuriará, nem fará dano a ninguém; e, quanto lhe for possível,
fará o bem a todos. Haveria algo mais a ser incluído na segunda tábua da
lei? Este é 0 mesmo argumento que Paulo usa em Romanos (13.10). A pa-
lavra próximo inclui todas as pessoas vivas; pois estamos unidos por uma
natureza comum, conforme Isaías nos recorda: “Não te escondas do teu se-
melhante” (Is 58.7). A imagem de Deus deve ser reputada como um vínculo
sagrado de união. Por essa razão, não se faz qualquer distinção entre amigo
e inimigo, nem a impiedade dos homens pode anular 0 direito natural.
O amor que os homens fomentam naturalmente em relação a si mes-
mos deve regular nosso amor ao próximo. Todos os doutores de Sorbonne
têm 0 hábito de argumentar que, como a regra é superior àquilo que ela
direciona, 0 amor por nós mesmos deve sempre vir em primeiro lugar
(regulatum inferius sitsua regula). Isto é uma subversão, e não uma inter-
pretação, das palavras de nosso Senhor. Esses doutores são uns asnos e
não possuem a menor fagulha de amor ao próximo; pois, se 0 amor por
nós mesmos fosse a norma, concluiríamos que ele é santo e correto, um
objeto de aprovação divina. Mas nunca amaremos nosso próximo com sin-
ceridade, conforme a intenção de nosso Senhor, enquanto não tivermos
corrigido 0 amor por nós mesmos. Estas duas afeições são opostas e con-
traditórias; pois 0 amor por nós mesmos nos faz negligenciar e desprezar
os outros - produz somente crueldade, ambição, violência, engano e erros
semelhantes - nos induz à impaciência e nos arma com 0 desejo de vin-
gança. O Senhor, portanto, recomenda que 0 amor por nós mesmos seja
transformado em amor ao próximo (charitatem).
15. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros. Com base
na natureza do assunto, bem como na linguagem empregada, podemos
Capítulo 5 · 149

conjecturar que os gálatas tinham disputas entre si, pois diferiam em re-
ferência à doutrina. 0 apóstolo agora demonstra, à luz do resultado, quão
destrutivo é esse tipo de mal na igreja. A falsa doutrina pode ter sido um
julgamento do céu contra a ambição, 0 orgulho e outras ofensas daqueles
crentes. Isso pode ser deduzido do que ocorre com freqüência nas dispen-
sações divinas, bem como da declaração feita por Moisés: “Não ouvirás as
palavras desse profeta ou sonhador; porquanto 0 SENHOR, vosso Deus,
vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo 0 vosso
coração e de toda a vossa alma” (Dt 13.3).
Ao usar os termos morder e devorar, acho que 0 apóstolo tinha em
mente as calúnias, as acusações, as censuras e outros tipos de linguagem
ofensiva, bem como atos de injustiça provenientes da fraude ou da vio-
lência. E qual é 0 fim deles? Ser destruído, enquanto a tendência do amor
fraternal é produzir bondade e proteção mútua. Recordemos sempre:
quando o diabo nos tentar às controvérsias, as desavenças dos membros
da igreja não leva a parte alguma, exceto à ruína e destruição de todo 0

corpo. Quão infeliz, quão insensato é o fato de que membros do mesmo


corpo se unam, de comum acordo, para a mútua destruição!
16. Digo, porém. Agora vem o remédio. A ruína da igreja não é um
mal irrelevante; e tudo 0 que a ameaça deve ser enfrentado com resistên-
cia obstinada. Como isto pode ser feito? Não permitindo que a carne nos
governe e rendendo-nos à direção do Espírito de Deus. 0 apóstolo insinua
que os gálatas eram carnais, destituídos do Espírito de Deus, e tinham
uma vida indigna de cristãos. Pois, de onde procedia a conduta violenta
para com os outros, senão de serem guiados pelas concupiscências da
carne? Isto, diz 0 apóstolo, é uma evidência concreta de que não andavam
segundo 0 Espírito.
Jamais satisfareis. Devemos atentar à palavra satisfareis, pois, em-
bora os filhos de Deus estejam sujeitos a pecar, enquanto gemem sob 0
fardo da carne, eles não são súditos ou escravos do pecado, mas devem
fazer oposição habitual ao poder do pecado. O homem espiritual pode ser
freqüentemente atacado pelas concupiscências da carne, mas ele não as
satisfaz; não permite que reinem sobre ele. Quanto a este assunto, seria
150 · Comentário de Gálatas

conveniente consultar a exposição de Romanos 8.


17. Porque a carne milita. A vida espiritual não será mantida sem lu-
tas. Aqui, somos informados sobre a natureza da dificuldade, provenientes
de nossas inclinações naturais que se opõem ao Espírito. O termo “carne”,
como já dissemos na exposição da Epístola aos Romanos, denota a natureza
do homem. Pois a aplicação limitada da palavra “carne”, que os sofistas apli-
cavam somente aos sentimentos mais vis, é refutada por muitas passagens.
E 0 contraste entre as duas palavras remove toda dúvida. Espírito significa
a nova natureza ou a graça da regeneração. E 0 que mais significa a palavra
carne, senão “0 velho homem” (Rm 6.6; Ef 4.22; Cl 3.9)? Desobediência e
rebelião contra 0 Espírito de Deus permeiam toda a natureza do homem. Se
quisermos obedecer ao Espírito, temos de trabalhar, e lutar e aplicar nesse
propósito toda a nossa energia; e temos de começar com a auto-renúncia.
O elogio que 0 Senhor tributou às inclinações naturais do homem significa
isto: não há concordância entre elas e a justiça, assim como não há con-
cordância entre 0 fogo e a água. Ora, encontraremos alguma bondade no
livre-arbítrio do homem? Somente se declararmos bom aquilo que se opõe
ao Espírito de Deus! “Por isso, 0 pendor da carne é inimizade contra Deus,
pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rm 8.7). Todos
os pensamentos da carne são atos de inimizade contra Deus.
Para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer. Isto se
refere, indubitavelmente, ao regenerado. Os homens carnais não lutam con-
tra os impulsos depravados e não têm desejo de obter a justiça divina. Paulo
está se dirigindo aos crentes. O que, porventura, seja do vosso querer deve
significar não as nossas inclinações naturais, e sim as afeições santas que
Deus nos outorga por sua graça. Portanto, Paulo declara que os crentes, en-
quanto permanecem nesta vida, por mais que se esforcem, não obtêm uma
medida de sucesso que os leva a servir a Deus com perfeição. Os melhores
resultados não correspondem aos desejos e anelos dos crentes. Tenho de
recomendar, novamente, ao leitor que consulte a exposição da Epístola aos
Romanos (7.15), para conhecer opinião mais detalhada sobre este assunto.
18. Mas, se sois guiados pelo Espírito. Os crentes são propensos a
tropeçar no caminho do Senhor, mas não devem sentir-se desencorajados,
Capítulo 5 · 151

por serem incapazes de satisfazer às exigências da lei. Ouçam a declaração


consoladora proferida pelo apóstolo e que se encontra em outras partes
de seus escritos (Rm 6.14): “Não estais sob a lei”. Disso concluímos que o
cumprim ento de seus deveres não é rejeitado por conta de suas imperfei-
ções presentes, e sim aceito, aos olhos de Deus, como se fosse perfeito e
completo em cada aspecto. Paulo ainda está abordando a controvérsia a
respeito da liberdade. 0 Espírito é chamado, em o utra passagem, de “Espí-
rito de adoção” (Rm 8.15); e, quando o Espírito torna os homens livres, Ele
os emancipa do jugo da lei. Era como se Paulo estivesse dizendo: “Vocês
desejam acabar instantaneam ente com a controvérsia em que se envolve-
ram? Andai segundo 0 Espírito. Então, sereis livres do domínio da lei, que
agirá apenas na capacidade de conselheiro e não mais jogará restrições
sobre a consciência de vocês”. Além disso, quando a condenação é re-
movida, a conseqüência inevitável é o ficar livre das cerimônias, pois as
cerimônias marcam a condição de escravo.

19. Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impu-


reza, lascívia,
20. idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias,
dissensões, facções,
21. invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a
respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni,
que não herdarão 0 reino de Deus os que tais coisas praticam.

19. Ora, as obras da carne são conhecidas. Obedecer ao Espírito e re-


sistir à carne era 0 grande alvo que Paulo havia colocado diante dos crentes,
que, para atingi-lo, haviam sido exortados a exercer todo esforço possível.
De acordo com isso, agora Paulo pinta um quadro tanto da carne como do
Espírito. Se os homens conhecessem a si mesmos, não precisariam desta
afirmação inspirada, pois eles são apenas carne. Mas, essa é a hipocrisia
inerente ao nosso estado natural. Nunca percebemos nossa vileza, até que a
árvore não se faça conhecida pelos seus frutos (Mt 7.16; Lc 6.44).
152 · Comentário de Gálatas

O apóstolo agora nos mostra aqueles pecados contra os quais temos


de lutar, para que não vivamos segundo a carne. Ele não os enumera todos,
como 0 declara no final; mas, à luz dos pecados mostrados, os demais
poderão ser facilmente determinados. Em primeiro lugar, ele apresenta
adultério e prostituição; em seguida, impureza, que se aplica a todo tipo
de devassidão. Lascívia é, por assim dizer, um termo subsidiário, pois 0
vocábulo grego άσέλγεια, assim traduzido, se aplica aos que têm vidas li-
bertinas e dissolutas. Estas quatro palavras denotam pecados proibidos
no Sétimo Mandamento. Ele acrescenta idolatria, aqui usada como um ter-
mo geral que se referia a cultos supersticiosos praticados abertamente.
As sete classes mencionadas em seguida se acham estreitamente rela-
cionadas; depois, mais uma é acrescentada. Ira e inimizades se distinguem
neste aspecto: ira é breve, e inimizade, duradoura. Ciúmes e invejas são
expressões de ódio. E Aristóteles fez a seguinte distinção entre elas, no se-
gundo livro da Retórica: “O ciumento se ofende porque outro 0 excede; não
porque a virtude ou a dignidade de tal pessoa, considerada em si mesma,
0 deixa inquieto, e sim porque ele deseja muito lhe ser superior. O invejoso

não tem desejo de exceder, mas se ofende com a excelência de outrem”.


Portanto, 0 apóstolo nos diz que as pessoas de nível baixo e insignifican-
tes se envolvem em inveja, enquanto 0 ciúme habita mentes heróicas e
proeminentes. Paulo declara que ambas as atitudes são enfermidades da
carne. A inimizade e a ira suscitam porfias, pelejas e dissensões. E tra-
ça as conseqüências até à menção de homicídios e feitiçarias. Ao usar o
termo glutonarias, Paulo queria dizer uma vida dissoluta e todo tipo de
intemperança na satisfação dos apetites. Deve-se notar que ele inclui he-
resias entre as obras da carne, pois isso mostra claramente que a palavra
carne não está confinada, como imaginam os sofistas, à sensualidade. 0
que produz heresias, exceto a ambição que lida com as faculdades mais
elevadas da mente, e não os sentidos inferiores? Ele disse que essas obras
são manifestas, para que ninguém concluísse que teria proveito em evitar
a questão. Que proveito haveria em negar que a carne reina em nós, se 0

fruto denuncia a qualidade da árvore?


21. A respeito das quais eu vos declaro. Com esta solene ameaça,
Capítulo 5 · 153

Paulo tencionava não somente alarmar os gálatas, mas também repre-


ender indiretamente os falsos apóstolos, que deixavam de lado as mais
valiosas instruções e gastavam seu tempo em discussões sobre as cerimô-
nias. Paulo nos instrui, por meio de seu exemplo, a instar com exortações e
ameaças, de acordo com as palavras do profeta: “Clama a plenos pulmões,
não te detenhas, ergue a voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a
sua transgressão” (Is 58.1). 0 que pode ser imaginado como mais terrível
do que os homens andarem segundo a carne e excluírem-se do reino de
Deus? Quem ousa considerar insignificantes as coisas abomináveis que
Deus aborrece (Jr 44.4)?
Mas, deste modo, alguns dizem, todos são excluídos da esperança da
salvação; pois quem não é culpado de algum desses pecados? Eis minha
resposta: Paulo não ameaça todos os que têm pecado, e sim todos os que
permanecem impenitentes. Às vezes, os próprios santos caem em pecados
sérios, mas retornam ao caminho da justiça, pois fazem 0 que não prefe-
rem (Rm 7.15). Portanto, eles não estão incluídos neste catálogo. Todas as
ameaças de juízo da parte de Deus nos chamam ao arrependimento. São
acompanhadas de uma promessa: aqueles que se arrependem obtêm per-
dão. Mas, se continuarmos obstinados, essas ameaças permanecem como
um testemunho do céu contra nós.
Não herdarão 0 reino de Deus os que tais coisas praticam. 0 vocábu-
10 κλερονομείν significa possuir por direito de hereditariedade. Pois, como
já vimos em outras passagens, é somente mediante 0 direito de adoção
que obtemos a vida eterna.

22. Mas 0 fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, be-


nignidade, bondade, fidelidade,
23. mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.
24. E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas
paixões e concupiscências.
25. Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito.
26. Não nos deixemos possuir de vangloria, provocando uns aos ou-
tros, tendo inveja uns dos outros.
54‫ו‬ · Comentário de Gálatas

22. Mas 0 fruto do Espírito. Na parte anterior da descrição, Paulo


havia condenado toda a natureza humana como que produzindo apenas
frutos nocivos e indignos. Agora ele nos diz que todas as afeições exce-
lentes e bem reguladas procedem do Espírito, ou seja, da graça de Deus e
da natureza renovada que recebemos de Cristo. Era como se ele dissesse
: “Nada, senão 0 mal, procede do homem; e nada, exceto o bem, procede
do Espírito Santo”. No homem não-regenerado aparecem, freqüentemente,
expressões de gentileza, integridade, moderação e generosidade; mas é
certo que todas estas expressões são disfarces ilusórios. Cúrius e Fabrí-
cius eram famosos por sua coragem; Cato, por sua temperança; Scípio,
por sua bondade e generosidade; Fabius, por sua paciência. Mas todos
eles eram vistos assim apenas aos olhos dos homens, como membros da
sociedade. Aos olhos de Deus, nada é puro, exceto o que procede da fonte
de toda a pureza.
Penso que, nesta passagem, alegria não denota a “alegria no Espírito
Santo” (Rm 14.17), e sim aquele comportamento alegre para com nossos
companheiros, 0 qual é o oposto da melancolia. Fé significa verdade; é con-
trastada com a astúcia, 0 engano e a falsidade. Paz contrasta com rixas e
contendas. Longanimidade é a ternura de mente, que nos dispõe a aceitar
tudo com bondade e não ser facilmente ofendidos. Os demais termos não
precisam de explicação, pois as disposições da mente têm de ser observa-
das na conduta exterior.
Mas, se os homens espirituais são conhecidos por suas obras, al-
guém talvez pergunte que juízo formaremos dos perversos e idólatras
que demonstram extraordinária semelhança de todas essas virtudes.
Pois, à luz de suas obras, é evidente que eles parecem espirituais. Eis a
minha resposta: nem todas as obras da carne se manifestam abertamente
em uma pessoa carnal; mas a sua carnalidade é revelada por um ou outro
pecado, de modo que uma simples virtude não nos dá 0 direito de con-
cluir que alguém é espiritual. Às vezes, ficará evidente, à luz de outros
pecados, que a carne reina em tal pessoa. E esta observação pode ser
facilmente aplicada a todos os casos que mencionei.
23. Contra estas coisas não há lei. Alguns entendem que isso significa
Capítulo 5 · 155

apenas que a lei não é dirigida contra as boas obras, visto que “do mau
comportamento procedem boas leis”. Mas 0 verdadeiro significado do que
Paulo diz é mais profundo e menos óbvio, a saber: onde o Espírito reina,
a lei não exerce mais qualquer domínio. Ao moldarmos 0 nosso coração à
justiça de Deus, o Senhor nos liberta da severidade da lei, para que nosso
relacionamento com Ele mesmo não seja regulado pela aliança da lei, e
nossa consciência não seja dominada por sua sentença de condenação.
Apesar disso, a lei continua a exercer seu ofício de ensinar e exortar. Mas
0 Espírito de adoção nos livra da sujeição devida à lei. Assim, Paulo ridi-
culariza os falsos apóstolos, os quais, embora insistissem na sujeição à
lei, estavam bastante desejosos de livrarem-se do jugo da lei. Paulo nos
diz que esse livramento só acontece quando 0 Espírito de Deus assume
0 domínio; e disso somos levados a concluir que os falsos apóstolos não

tinham qualquer consideração à justiça espiritual.


24. E os que são de Cristo. Paulo acrescenta isso para mostrar que
todos os crentes renunciaram a carne e, por isso, desfrutam de liberdade.
Ao mesmo tempo que faz esta afirmação, 0 apóstolo lembra aos gálatas o
que é 0 verdadeiro cristianismo em relação à vida, guardando-os de uma
falsa confissão de serem cristãos. 0 termo crucificaram é usado para indi-
car que a mortificação da carne é o efeito da cruz de Cristo. Esta obra não
pertence ao homem. Pela graça de Cristo, “fomos unidos com ele na seme-
lhança da sua morte” (Rm 6.5), para que não vivamos para nós mesmos.
Se fomos sepultados com Cristo, pela verdadeira auto-renúncia e pela des-
truição do velho homem, desfrutaremos do privilégio de filhos de Deus. A
carne ainda não foi completamente destruída, mas ela não tem 0 direito de
exercer domínio e deve sujeitar-se ao Espírito.
A carne e as suas concupiscências são uma figura de linguagem que
eqüivalem à árvore e aos seus frutos. A carne, propriamente dita, é a depra-
vação da natureza corrompida, da qual procedem todos os atos maus (Mt
15.19; Mc 7.21). Conseqüentemente, os membros de Cristo têm motivo de
queixar-se, se são mantidos em servidão à lei, da qual estão livres todos os
que foram regenerados pelo Espírito de Cristo.
25. Se vivemos no Espírito. Paulo agora, em sua maneira usual, extrai
156 · Comentário de Gálatas

da doutrina uma exortação prática. A morte da carne é a vida do Espírito.


Se 0 Espírito de Deus vive em nós, ele deve governar as nossas ações.
Sempre haverá muitos que se gabarão de viver no Espírito. Paulo os de-
safia a provarem sua alegação. Como a alma não vive ociosa no corpo,
mas proporciona movimento e vigor a cada membro e a cada parte, assim
0 também Espírito de Deus não pode habitar em nós sem manifestar-se
por meio dos efeitos externos. 0 termo vivemos, aqui, se refere ao poder
interior; e 0 vocábulo andemos, às ações exteriores. O uso metafórico do
verbo andar, que ocorre freqüentemente, descreve as obra como evidên-
cia da vida espiritual.
26. Não nos deixemos possuir de vangloria. As exortações especiais
dirigidas aos gálatas não lhes eram menos necessárias do que 0 são ao
nosso próprio tempo. Dos muitos males existentes em nossa sociedade e,
particularmente, na igreja, a ambição é a mãe de todos eles. Por isso, Paulo
nos exorta a nos precavermos desse erro; pois a vangloria (κενοδοξία), não
é nada mais do que ambição (φιλοτιμία) ou 0 anelo por honras, pelo qual
cada pessoa deseja exceder as demais. Os filósofos pagãos não condenam
0 anelo por glória. Mas, entre os crentes, aquele que deseja glória humana

se aparta da verdadeira glória; e, portanto, é acusado, com justa razão,


de ambição insensata e fútil. Não é lícito nos gloriarmos, exceto em Deus.
Qualquer outro tipo de gloria é pura vaidade. Provocar uns aos outros e
ter inveja uns dos outros são atitudes filhas da ambição. Aquele que aspira
uma posição elevada tem de necessariamente invejar os demais. E a conse-
qüência inevitável é uma linguagem desrespeitosa, sarcástica e agressiva.
Capítulo 6

1. Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois


espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para
que não sejas também tentado.
2. Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo.
3. Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si
mesmo se engana.
4. Mas prove cada um 0 seu labore, então, terá motivo de gloriar-se
unicamente em si e não em outro.
5. Porque cada um levará 0 seu próprio fardo.

1. Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta. A ambição é


um mal sério e alarmante. Contudo, a severidade excessiva e insensata
também causa, freqüentemente, muitos danos. Sob o plausível disfarce
de zelo, esta severidade resulta, muitas vezes, do orgulho, da antipatia
e do menosprezo aos irmãos. Muitos lançam mão dos erros dos irmãos,
usando-os como ocasião para insultá-los e atingi-los com linguagem rude e
censuradora. Se 0 prazer que encontram em repreender fosse igualado ao
desejo de produzir aprimoramento, eles agiriam de outra maneira. Repre-
ensão penetrante e severa têm de ser ministrada aos ofensores. Todavia,
enquanto não devemos nos esquivar de um testemunho fiel contra o peca-
do; também não devemos esquecer de aplicar 0 óleo depois do vinagre.
Somos aqui ensinados a m ostrar brandura, ao corrigir os erros dos
irmãos. E Paulo nos diz que nenhuma repreensão deve ser considerada
158 · Comentário de Gálatas

piedosa e cristã, se não manifesta um espírito de mansidão. Para alcan-


çar esse objetivo, ele explica 0 propósito das repreensões piedosas, ou
seja: restaurar 0 irmão caído, trazê-lo à condição anterior. Esse desígnio
nunca será realizado pela violência, ou por uma disposição de acusar,
ou ferocidade nas atitudes e na linguagem. Conseqüentemente, temos
de m ostrar um espírito gentil e calmo, se desejamos restaurar nosso ir-
mão. E, para que ninguém se contente em assumir uma forma externa de
bondade, Paulo exige 0 espírito de brandura; pois nenhum homem está
preparado para repreender um irmão, se ainda não foi bem-sucedido em
obter um espírito gentil.
Outro argumento em favor do uso de brandura ao corrigir um irmão
encontra-se na expressão “se alguém for surpreendido”. Se ele caiu por fal-
ta de consideração ou por causa da astúcia de um enganador, seria cruel
tratá-lo asperamente. Ora, sabemos que o diabo está sempre espreitando e
tem inúmeras maneiras de fazer-nos cair. Ao perceber que um irmão trans-
grediu, consideremos que ele caiu nas armadilhas de Satanás. Sejamos
movidos por compaixão e preparemo-nos para perdoá-lo. Contudo, ofen-
sas e quedas desse tipo devem ser distinguidas de pecados inveterados,
que são acompanhados por desprezo espontâneo e obstinado da autori-
dade de Deus. Essa demonstração de desobediência ímpia e perversa para
com Deus tem de ser tratada com grande severidade; pois, fosse esse o
caso, que proveito obteríamos com um tratamento brando? A partícula se
(εαν) implica que não somente o fraco, mas também aqueles que cedem à
tentação, receberão perdão.
Vós, que sois espirituais. Isto não é expresso com ironia. Por mais
espirituais que fossem, eles não eram plenamente cheios do Espírito.
Cumpre aos espirituais erguer aqueles que caem. Que melhor propósito a
superioridade deles pode atingir, senão 0 de ser usado em promover a sal-
vação dos irmãos? Quanto mais uma pessoa é dotada com graça de Deus,
tanto mais ela está obrigada a dedicar-se à edificação dos irmãos menos fa-
vorecidos. Mas a nossa insensatez é tal, que tendemos a falhar em nossos
melhores deveres. Por isso, necessitamos da exortação do apóstolo para
nos guardarmos das influências de pontos de vistas carnais.
Capítulo 6 · 159

Guarda-te. Não é sem razão que o apóstolo muda do plural para 0

singular. Ele dá vigor à sua exortação, quando se dirige individualmente a


cada crente, instando a que cuidem de si mesmo. “Quem quer que sejas”,
disse Paulo, “se criticas a outrem, cuida também de ti mesmo”. Nada é mais
difícil do que reconhecermos ou examinarmos nossas próprias fraquezas.
Por mais perspicazes que sejamos em detectar os erros alheios, não conse-
guimos ver, como disse alguém, “a mochila pendurada às nossas costas”.
Assim, para nos estimularmos a grande atividade, ele usa 0 singular.
Admitimos que estas palavras poderiam ter duplo significado. Quando
reconhecemos que somos sujeitos a pecar, admitimos mais prontamente
que 0 perdão concedido a outrem pode, quando pecarmos, ser estendido a
nós mesmos. Alguns entendem as palavras de Paulo neste sentido: “Você,
que é pecador e necessitado da compaixão de seus irmãos, não deve se
mostrar cruel ou implacável para com outrem”. Quanto a mim, porém, pre-
firo explicá-las como uma advertência, dada pelo apóstolo, no sentido de
que, ao corrigir os outros, não devemos, nós mesmos, pecar. Neste versí-
culo, há um perigo que merece nossa atenção diligente e contra 0 qual é
difícil nos guardarmos; pois nada é mais fácil do que ultrapassarmos os
limites permitidos. A palavra tentado pode ser entendida, mui apropriada-
mente, como que se referindo a toda a vida. Sempre que tivermos ocasião
de criticar, comecemos conosco mesmo e, lembrando nossa própria fra-
queza, sejamos compassivos em relação a outrem.
2. Levai as cargas uns dos outros. As fraquezas ou os pecados, sob os
quais lamentamos, são aqui chamados de cargas. Esta sentença é singular-
mente apropriada em uma exortação concernente a um comportamento
gentil, pois a natureza nos prescreve que devem ser aliviados aqueles
que sofrem sob 0 peso de um fardo. Paulo nos exorta a levar as cargas.
Não devemos omitir ou ceder aos pecados pelos quais nossos irmãos são
afligidos. Antes, devemos aliviá-los; e isto só pode ser feito por meio de
correção amável e branda. Há muitos adúlteros e ladrões, muitos ímpios
e pessoas de caráter perverso que fariam de Cristo um comparsa em seus
crimes. Todos gostariam de lançar sobre os crentes a tarefa de levar suas
cargas. Mas, visto que 0 apóstolo exortou, poucos momentos antes, a res­
60‫ו‬ · Comentário de Gálatas

taurar o irmão, a maneira como o crente deve levar as cargas um dos outros
não pode ser mal compreendida.
Assim, cumprireis a lei de Cristo. A palavra “lei”, quando aplicada
a Cristo, serve para introduzir um argumento. Há um contraste implícito
entre a lei de Cristo e a lei de Moisés, como se Paulo dissesse: “Se vocês
têm um grande desejo de guardar uma lei, Cristo lhes recomenda uma lei
que vocês preferirão a todas as outras, qual seja: exercer benevolência uns
para com os outros. Aquele que não tem isto não tem nada. Por outro lado,
quando alguém socorre compassivamente a seu próximo, está cumprindo
a lei de Cristo. Com isso, Paulo nos diz que tudo que não procede do amor
é inútil; pois a composição do vocábulo termo grego άναηλτρώσατε ex-
pressa a idéia daquilo que é absolutamente perfeito. Mas, como ninguém
cumpre em todos os aspectos 0 que Paulo exige, ficamos sempre aquém da
perfeição. Por mais que alguém se aproxime dessa perfeição em referência
aos outros, em relação a Deus, está ainda muito distante.
3. Porque, se alguém julga ser alguma coisa. Existe uma ambigüidade
nesta construção, mas o significado de Paulo é muito óbvio. A cláusula não
sendo nada parece, à primeira vista, significar: “Se alguém alega ser algo,
quando na realidade não é nada”; pois existem muitas pessoas destituídas
de dignidade que se enlevam pela admiração de si mesmas. Mas 0 sentido
é mais geral e pode ser expresso assim: “Visto que todos os homens são
nada, aquele que deseja aparentar alguma coisa e se convence de que é al-
guém, engana-se a si mesmo”. Em primeiro lugar, Paulo declara que somos
nada, e, com isso, pretendia dizer que de nós mesmos nada possuímos so-
bre o que devemos nos gloriar e que somos destituídos de todas as coisas
boas; de sorte que todo o gloriar-nos é mera vaidade. Em segundo lugar,
Paulo conclui que aqueles que reivindicam ser algo enganam-se a si mes-
mos. Ora, visto que nada estimula tanto a nossa indignação como 0 sermos
enganados pelos outros, é um completo absurdo que voluntariamente en-
ganemos a nós mesmos. Essa reflexão nos tornará muito mais justos para
com os outros. Donde procede 0 insulto feroz ou a austeridade insolente,
senão de alguém que se exalta em sua própria avaliação e despreza orgu-
lhosamente os demais? Desvencilhemo-nos da arrogância; e busquemos
Capítulo 6 · 161

todos maior modéstia em nossa conduta para com os outros.


4. Mas prove cada um 0 seu labor. Com um poderoso golpe, Paulo
atingiu o orgulho humano. Mas, ocorre com freqüência que, ao comparar-
mo-nos com outros, a opinião mesquinha que formulamos nos leva a nutrir
um conceito elevado a respeito de nós mesmos. 0 apóstolo diz que não
devemos permitir esse tipo de comparação. “Que ninguém”, disse Paulo,
“avalie-se pelo padrão de outrem ou se deleite em si mesmo com 0 pensa-
mento de que outros lhe parecem menos digno de aprovação. Que esse
crente ponha de lado qualquer consideração em relação a outros, examine
sua própria consciência e pergunte qual é sua própria obra”. 0 que é ver-
dadeiramente louvável não é 0 que ganhamos por prejudicar a outrem, e
sim o que temos à parte de qualquer comparação.
Alguns acham que Paulo falava com ironia, como se estivesse dizendo:
“Vocês lisonjeiam a si mesmos, ao se compararem com os erros alheios.
Mas, se considerassem 0 que realmente são, desfrutariam 0 louvor que
lhes é devido”. Em outras palavras, nenhum louvor jamais será de vocês
mesmos, porque não existe homem algum que mereça menor quantidade
de louvor! De conformidade com este ponto de vista, as palavras seguin-
tes: “Cada um levará 0 seu próprio fardo” significam que é habitual a cada
homem suportar 0 seu próprio fardo. Mas 0 sentido claro e direto das pa-
lavras de Paulo concorda melhor com 0 seu raciocínio. “Somente levando
em conta a si mesmo, e não comparando-se com os outros, você receberá
0 louvor.” Estou bem cônscio de que a próxima cláusula, que anula toda a
glória homem, tem sido considerada uma justificativa da interpretação irô-
nica. Mas 0 “gloriar-se” tratado nesta passagem é 0 gloriar-se de uma boa
consciência, na qual o Senhor permite seu povo satisfazer-se e que Paulo
expressou em linguagem vivida. “Fitando Paulo os olhos no Sinédrio, disse:
Varões, irmãos, tenho andado diante de Deus com toda a boa consciência
até ao dia de hoje” (At 23.1). Isto é apenas um reconhecimento da graça de
Deus, a qual não reflete qualquer louvor sobre o homem, mas 0 estimula
a glorificar a Deus. Essa é razão que os piedosos acham em si mesmos
para gloriarem-se, em que nada atribuem a seus próprios méritos, e sim
à graça de Deus. “Porque a nossa glória é esta: 0 testemunho da nossa
162 · Comentário de Gálatas

consciência, de que, com santidade e sinceridade de Deus, não com sabe-


doria humana, mas, na graça divina, tem os vivido no m undo” (2 Co 1.12). E
nosso Senhor mesmo nos instrui: “Tu, porém, quando orares, entra no teu
quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai,
que vê em secreto, te recom pensará” (Mt 6.6). Estritam ente falando, Paulo
nos leva concluir que, quando um homem é avaliado por sua própria dig-
nidade, e não pela inferioridade dos outros, 0 louvor é justo e substancial.
Portanto, a afirmação é condicional e significa que ninguém tem 0 direito
de ser considerado uma pessoa boa à parte da avaliação dos outros.
5. Porque cada um levará 0 seu próprio fardo. Com 0 fim de destruir
nossa indolência e orgulho, Paulo nos traz perante 0 tribunal de Deus, no
qual todo indivíduo, por si mesmo e sem comparar-se com os outros, pres-
tará contas de sua vida. É assim que som os enganados; pois, se um homem
que tem apenas um olho é colocado entre os cegos, considera perfeita a
sua visão; e, se um homem moreno estiver entre os negros, ele se achará
branco. 0 apóstolo afirma que as falsas conclusões às quais chegamos
não terão lugar no Juízo de Deus; porque ali cada um levará seu próprio
fardo, e ninguém inocentará a outrem de seu pecado. Este é o verdadeiro
significado das palavras.

6. Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça participante


de todas as coisas boas aquele que 0 instrui.
7. Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que 0 ho-
mem semear, isso também ceifará.
8. Porque 0 que semeia para a sua própria carne da carne colherá
corrupção; mas 0 que semeia para 0 Espírito do Espírito colherá
vida eterna.
9. E não nos cansemos de fazer 0 bem, porque a seu tempo ceifare-
mos, se não desfalecermos.
10. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos 0 bem a to-
dos, mas principalmente aos da família da fé.
Capítulo 6 · 163

6. Aquele que está sendo instruído. É provável que os mestres e


ministros da Palavra eram, naquele tempo, negligenciados. Isso refletia a
mais vil ingratidão. Quão desditoso é defraudar dos meios de sobrevivência
àqueles por cuja instrumentalidade nossa alma é alimentada; e recusar uma
recompensa terrena àqueles de quem recebemos bênçãos celestiais! Mas a
disposição do mundo é, e sempre tem sido, a de oferecer espontaneamente
aos ministros de Satanás até a luxúria e raramente suprir aos bons pastores
0 alimento necessário. Embora não devamos ser demasiadamente queixosos

ou muito persistentes em favor de nossos direitos, Paulo sentiu-se chamado


a exortar os gálatas a cumprirem esta parte de seu dever. Ele se mostrou
bastante disposto a agir assim, não porque tinha qualquer interesse pes-
soai no assunto, e sim porque levava em conta 0 bem-estar geral da igreja,
menosprezando as vantagens pessoais. Ele percebeu que os ministros da
Palavra eram negligenciados, porque a própria Palavra era desprezada. Se a
Palavra for verdadeiramente estimada, os seus ministros sempre receberão
tratamento amável e honroso. Um dos artifícios de Satanás é privar de sus-
tento os ministros piedosos, de modo que a igreja fique destituída de desse
tipo de ministro. Um desejo solícito de preservar 0 ministério do evangelho
levou Paulo a recomendar 0 sustento dos pastores bons e fiéis.
A expressão “a palavra” é usada neste versículo, à guisa de eminência
(κατ εξοχήν), para 0 ensino da piedade. Paulo diz que devem ser sustentados
aqueles por quem somos instruídos na Palavra. Usando esta designação,
0 sistema papal sustenta ventres ociosos de homens estúpidos e bestas
selvagens, que nada têm em comum com a doutrina de Cristo.
De todas as coisas boas. Paulo não propôs que os ministros não
deviam ter limite no gozo das coisas terrenas ou que se deleitassem na
abundância supérflua. Ele estava apenas propondo que não lhes faltasse 0
suficiente para 0 sustento necessário da vida. Os ministros do evangelho
devem viver contentes com uma mesa frugal, evitando 0 perigo da pompa
e do luxo. Até onde as necessidades deles 0 exigem, os crentes devem
consagrar com alegria parte de sua prosperidade ao serviço de mestres
piedosos e santos. Que compensação eles podem fazer ao inestimável te-
souro de vida eterna, que recebem por meio da pregação desses homens?
164 · Comentário de Gálatas

7. De Deus não se zomba. O desígnio desta observação é responder


às desculpas insinceras às quais as pessoas recorrem. Alguém alega que
tem uma família para sustentar; outro afirma que não tem excesso de ri-
queza para gastar com liberalidade ou abundância. A conseqüência é que
muitos retêm a sua ajuda, enquanto poucas pessoas que cumprem seu
dever são incapazes de contribuir ao sustento necessário. Paulo rejeita
essas desculpas fúteis, por uma razão que 0 mundo desconsidera: isto é
uma transação com Deus. O suprimento das necessidades físicas de um
homem não é toda a questão nesta passagem; a questão envolve o quanto
estimamos a Cristo e o seu evangelho. Esta passagem contém evidência
de que 0 costume de menosprezar os ministros fiéis não surgiu em nossos
dias. Mas esse menosprezo não ficará impune.
Aquilo que 0 homem semear. Nossa liberalidade é restringida pela su-
posição de que tudo 0 que passamos às mãos de outrem significa perda para
nós mesmos, bem como pela inquietação que sentimos quanto às perspec-
tivas da vida. Paulo confronta essas idéias com uma comparação extraída
do tempo de semeadura, o qual, conforme ele afirma, é uma representação
adequada de atos de beneficência. Quanto a este assunto, já falamos na ex-
posição de 2 Coríntios, onde a mesma metáfora foi usada. Felizes seriamos
nós, se esta verdade ficasse gravada em nossa mente! Quão prontamente
nos gastaríamos e nos deixaríamos “gastar” (2 Co 12.15) em favor do bem de
nosso próximo, encorajados pela esperança da colheita vindoura! Os agri-
cultores não têm maior alegria do que a de plantar as sementes no solo. A
expectativa de uma colheita, mesmo sendo esta corruptível, os capacita a
esperar com paciência durante alguns meses; mas a nossa mente não se
mostra afetada pela esperança de uma imortalidade bendita.
8. Porque o que semeia para a sua própria carne. Depois de expres-
sar um sentimento de caráter geral, Paulo o divide em duas partes. Semear
para a própria carne (seminare in carne) significa buscar a satisfação das
necessidades desta vida, sem qualquer consideração pela vida futura. Os
que fazem isso colherão frutos correspondentes ao que semearam; e acu-
mularão aquilo que perecerá. Alguns interpretam “semear para a própria
carne” com 0 sentido de satisfazer às concupiscências da carne; e corrup­
Capítulo 6 · 165

ção, com 0 sentido de destruição. Mas a explicação anterior se adequa


melhor ao contexto. Não agi precipitadamente ao afastar-me da Vulgata
e de Erasmo. As palavras gregas ò απείρων εις την σάρκα έαυτού significam,
literalmente, “aquele que semeia para a sua carne”. E 0 que é isso, senão
entregar-se completamente à carne, para que todos os nossos pensamen-
tos sejam dirigidos aos interesses e conveniências da carne?
Mas o que semeia para o Espírito. 0 termo Espírito, eu 0 entendo no
sentido de vida espiritual, para a qual semeiam aqueles cujos pensamentos
estão mais direcionados ao céu do que à terra; aqueles que têm uma vida
regulada pelo desejo de alcançar 0 reino de Deus. Portanto, colherão no
céu 0 fruto incorruptível de suas realizações espirituais. Essas realizações
são chamadas de espirituais por causa da sua finalidade, embora em al-
guns aspectos sejam externas e relacionadas com 0 corpo, tal como neste
caso que se refere ao sustento dos pastores. Se os papistas se empenham,
à sua maneira habitual, para construir, sobre estas palavras, uma justiça
de obras, já mostramos quão facilmente se pode denunciar este absurdo.
Embora a vida eterna seja um galardão, não devemos concluir que somos
justificados por obras ou que as obras mereçam a salvação. A imerecida
bondade de Deus se evidencia no que Ele honra as obras que a sua graça
nos capacita a realizar, prometendo recompensas por tais obras, ainda que
elas não sejam dignas de merecê-las.
Uma solução mais completa desta questão é exigida? 1. Não temos
qualquer boa obra que Deus recompensa, mas somente aquelas que resul-
tam de sua graça. 2. A s boas obras que realizamos por orientação e direção
do Espírito Santo são os frutos daquela adoção que é um ato da livre graça
de Deus. 3. As boas obras são indignas do menor e mais desprezível ga-
lardão; e merecem total condenação, porque estão sempre contaminadas
com muitos defeitos. E que harmonia há entre a contaminação e a presen-
ça de Deus? 4. Ainda que um galardão tenha sido mil vezes prometido às
obras, esta promessa se deve ao cumprimento da condição de obedecer
perfeitamente a lei. E como estamos sobremodo distantes dessa perfeição!
Ora, os papistas devem seguir em frente e tentar abrir um caminho que
os conduz ao céu pelos méritos de suas próprias obras. De bom grado,
166 · Comentário de Gálatas

concordamos com Paulo e com toda a Escritura, reconhecendo que nada


podemos fazer, exceto pela livre graça de Deus, ainda que os benefícios
resultantes de nossas obras recebam o nome de galardão.
9. E não nos cansemos de fazer 0 bem. Bem ( τό καλόν) não significa
apenas cumprir 0 nosso dever, mas também a realização de atos de bonda-
de, e refere-se a homens. Somos instruídos a não nos cansarmos de assistir
ao nosso próximo, de praticar boas ações e de exercer a generosidade. Este
preceito é extremamente necessário, visto que, por natureza, relutamos em
cumprir os deveres do amor fraternal; e surgem muitos incidentes desagradá-
veis que tendem a esfriar 0 ardor das pessoas mais dispostas. Deparamo-nos
com muitas pessoas indignas e ingratas. 0 vasto número de necessitados
nos sucumbe; e os pedidos que se acumulam sobre nós, vindos de todos os
lados, exaurem a nossa paciência. Nosso fervor é abrandado pela frieza de
outras pessoas. Em suma, 0 mundo nos apresenta inúmeros obstáculos que
tendem a nos afastar do caminho correto. Mui convenientemente, Paulo nos
admoesta a não relaxarmos por meio do cansaço.
Se não desfalecermos. Ou seja, só colheremos 0 fruto que Deus pro-
mete, se perseverarmos até ao fim (Mt 10.22). Aqueles que não perseveram
são como a figura do agricultor indolente, que, depois de lavrar e semear,
deixa 0 trabalho inacabado, não se importando com as precauções ne-
cessárias para proteger a semente de ser comida pelas aves, ou crestada
pelo sol, ou destruída pela geada. É inútil começar a fazer 0 bem, se não
avançarmos rumo ao alvo.
A seu tempo. Que ninguém, motivado pelo desejo de colher os frutos
desta vida, ou antes do tempo exato, seja privado da colheita espiritual. Os
desejos dos crentes devem ser suportados e refreados pelo exercício da
esperança e da paciência.
10. Enquanto tivermos oportunidade. Paulo prossegue em sua me-
táfora. Nem toda estação é própria para lavrar e semear. Os agricultores
ativos e prudentes observarão 0 tempo apropriado e não permitirão in-
dolentemente que esse tempo se torne inútil. Portanto, visto que Deus
separou esta vida para ararmos e semearmos, aproveitemos a oportuni-
dade, a fim de que ela não nos seja tirada, por causa de nossa negligência.
Capítulo 6 · 167

Começando com a liberalidade devida aos ministros do evangelho, Paulo


agora faz uma aplicação mais ampla de sua doutrina e nos exorta a fazer 0
bem a todos, mas recom enda à nossa consideração a família da fé, ou seja,
os crentes, porque eles e nós pertencem os à mesma família. Esta seme-
lhança tem 0 propósito de estimular-nos ao tipo de comunicação que deve
ser mantida entre os mem bros de uma família. Há deveres que tem os de
cum prir em relação a todos os homens, mas 0 vínculo de um dever mais
sagrado, estabelecido por Deus mesmo, nos une aos crentes.

11. Vede com que letras grandes vos escrevi de meu próprio punho.
12. Todos os que querem ostentar-se na carne, esses vos constrangem
a vos circuncidardes, somente para não serem perseguidos por
causa da cruz de Cristo.
13. Pois nem mesmo aqueles que se deixam circuncidar guardam
a lei; antes, querem que vos circuncideis, para se gloriarem na
vossa carne.

11. Vede. 0 significado do verbo grego ϊδετε é tão ambíguo que pode
ser considerado no modo imperativo ou no indicativo. Mas 0 significado da
passagem é pouco ou em nada afetado. Para convencer os gálatas mais ple-
nam ente de sua ansiedade a respeito deles e, ao mesmo tempo, conquistar
sua profunda atenção, Paulo menciona que esta longa epístola havia sido
escrita por sua própria mão. Quanto maior 0 esforço empregado em favor
deles, tanto maior seria 0 interesse deles em lê-la, não de modo superficial,
e sim com atenção minuciosa.
12. Todos os que querem ostentar-se na carne. Esses homens não
se importavam com a edificação dos crentes; eram guiados por desejos
ambiciosos de conquistar 0 aplauso popular. 0 verbo grego ευπροσωπήσαι é
muito expressivo; denota os olhares e linguagem graciosos assum idos com
0 propósito de agradar. Paulo acusa os falsos apóstolos de ambição. Era
como se estivesse dizendo: “Quando esses homens lhes impõem a circun-
cisão como um fardo necessário, vocês querem saber que tipo de pessoas
168 · Comentário de Gálatas

eles são? Quais os objetivos do interesse ou da preocupação deles? Estão


enganados, se pensam que estão completamente motivados por zelo san-
to. Ganhar e preservar 0 favor dos homens é 0 objetivo que eles têm em
vista, quando lhes oferecem esta isca”. Visto que eram judeus, adotavam
este método de reter a boa disposição ou, pelo menos, de acalmar 0 res-
sentimento de seu próprio povo. Os ambiciosos têm a prática habitual de
adular torpemente aqueles de cujo favor esperam obter vantagens e de se
recomendarem às boas graças dos bajulados, para que, quando os homens
melhores tiverem sido destituídos, desfrutem sozinhos do poder. Paulo
desvenda aos gálatas esse desígnio ímpio, a fim de deixá-los em alerta.
Para não serem perseguidos. A verdadeira pregação do evangelho é
novamente designada a cruz de Cristo. Mas existe também uma alusão ao mé-
todo favorito deles, ou seja, pregar a Cristo sem a cruz. 0 terrível furor que os
judeus nutriam contra Paulo surgia de serem incapazes de suportar 0 negli-
genciar as cerimônias. Para não serem perseguidos, esses homens bajulavam
os judeus. Afinal de contas, se eles mesmos tivessem guardado a lei, a sua
conduta teria sido tolerada. Mas perturbavam a igreja toda em favor de seu
próprio ensino e não sentiam qualquer escrúpulo em colocar um jugo tirâni-
co sobre a consciência das pessoas, para que ficassem livres de inquietações
físicas. 0 medo da cruz os levou a corromperem a genuína pregação da cruz.
13. Pois nem mesmo aqueles que se deixam circuncidar guardam a
lei. A Vulgata e Erasmo traduzem assim: “Os que são circuncidados”. Mas
creio que Paulo estava se referindo apenas aos mestres. Por essa razão,
prefiro traduzi-lo: “Aqueles que se deixam circuncidar”, que não incluiria
todos os circuncidados e evitaria ambigüidade. 0 significado, portanto, é
este: “Não é por causa de um forte apego à lei que eles vos prendem com
0 jugo das cerimônias; pois, mesmo em sua própria circuncisão, eles não
guardam a lei. Indubitavelmente, sob o pretexto da lei, eles exigem que
vocês sejam circuncidados. Contudo, embora eles mesmos tenham sido
circuncidados, não praticam 0 que recomendam aos outros”.
Ao dizer que não guardavam a lei, é incerto se Paulo falava sobre
toda a lei ou apenas sobre as cerimônias. Alguns entendem que Paulo esta-
va afirmando que a lei é um fardo insuportável e, por isso, não satisfazem
Capítulo 6 · 169

a suas exigências. Mas 0 apóstolo insinua contra eles uma acusação de


insinceridade, porque, quando as coisas eram convenientes aos desígnios
deles, sentiam-se em liberdade para desprezar a lei.
Ainda hoje essa enfermidade virulenta prevalece em todos os luga-
res. Você encontrará muitos que, motivados mais por ambição do que por
consciência, defendem a tirania do sistema papal. Refiro-me aos nossos
apóstolos palacianos que se acham atraídos pelo aroma de uma cozinha
e que proclamam, com ar de autoridade, que os decretos da santa Igreja
de Roma têm de ser observados com reverência. E, enquanto isso, qual é
a prática deles em todo 0 tempo? Prestam tanta atenção às decisões de
Roma como 0 fazem ao zurro de um asno; mas têm 0 cuidado de evitar 0
risco pessoal. Em suma, Paulo teve com aqueles impostores 0 mesmo tipo
de controvérsia que temos hoje com os falsos mestres do evangelho, os
quais nos oferecem uma monstruosa união entre Cristo e 0 papa. Por essa
razão, Paulo afirma que eles agiam com insinceridade e que, ao recomen-
darem a circuncisão, tinham apenas 0 objetivo de orgulhar-se perante os
judeus dos conversos que haviam feito. Este é 0 significado das palavras
para se gloriarem na vossa carne. “Eles querem triunfar sobre vocês e satis-
fazer seu próprio desejo de aplauso, por oferecerem vossa carne mutilada
ao falsos zelotes da lei, como um sinal de paz e harmonia.”

14. Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Se-
nhor Jesus Cristo, pela qual 0 mundo está crucificado para mim,
e eu, para 0 mundo.
15. Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas
0 ser nova criatura.
16. E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz
e misericórdia sejam sobre eles e sobre 0 Israel de Deus.
17. Quanto ao mais, ninguém me moleste; porque eu tivgo no corpo
as marcas de Jesus.
18. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja, irmãos, com 0 vosso
espírito. Amém!
170 · Comentário de Gálatas

14. Mas longe esteja de mim. Os desígnios dos falsos apóstolos são
agora contrastados com a própria sinceridade de Paulo. Era como se ele
estivesse dizendo: “Para não serem compelidos a levar a cruz, eles negam
a cruz de Cristo, compram com a carne de vocês 0 aplauso dos homens
e, no final, triunfam sobre vocês. Mas 0 meu triunfo e a minha glória se
encontram na cruz do Filho de Deus”. Se os gálatas ainda possuíam bom
senso, não deveriam ter odiado aqueles a quem viam se deleitar com a sua
perigosa condição?
Gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo é 0 mesmo
que gloriar-me no Cristo crucificado, embora algo mais esteja implícito.
Naquela morte, tão cheia de miséria e ignomínia, a morte em que Deus
mesmo foi declarado maldito, a morte que os homens contemplaram com
aversão e vergonha - nessa morte eu me gloriarei, disse Paulo, porque ob-
teve nela felicidade perfeita. Onde 0 bem mais excelente existe, aí está a
sua glória. Mas, por que ele não a buscava em outros lugares? Ainda que
a salvação nos seja revelada na cruz de Cristo, 0 que Paulo pensa sobre a
ressurreição? Eis a minha resposta: na cruz se encontra a redenção em to-
dos os seus aspectos, mas a ressurreição de Cristo não nos afasta da cruz.
E devemos observar atentamente que Paulo rejeita todas as outras formas
de gloriar-se, considerando-as uma terrível ofensa. “Que Deus nos proteja
dessa monstruosa calamidade!” Esta é a força da expressão negativa que
Paulo utiliza constantemente - “se não”.
Pela qual o mundo está crucificado para mim. Visto que a palavra
grega que significa cruz (σταυρός) é masculina, 0 pronome relativo pode
referir-se ou a Cristo ou à cruz. Em minha opinião, é mais correto aplicá-la
à cruz; porque, por meio dela, morremos para 0 mundo. Mas, 0 que signi-
fica “0 mundo”? Indubitavelmente, “0 mundo” é contrastado com a nova
criatura. Tudo que se opõe ao reino espiritual de Cristo é 0 mundo, visto
que ele pertence ao velho homem; ou, numa palavra, 0 mundo é 0 objeto e
0 alvo do velho homem.
Isto concorda exatamente com a linguagem que Paulo usou em outra
epístola. “Mas 0 que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa
de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da subli­
Capítulo 6 · 171

midade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual


perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo”
(Fp 3.8). Crucificar o mundo é tratá-lo com menosprezo e desdém.
Paulo acrescenta: E eu, para 0 mundo. Com esta expressão, Paulo
queria dizer que se achava indigno de ser levado em conta e, de fato,
completamente aniquilado; porque 0 mundo era um assunto com 0 qual
um homem morto não tinha de lidar. De qualquer forma, ele tencionava
dizer que, por meio da mortificação do velho homem, havia renunciado
ao mundo. Alguns 0 entendem assim: “Se 0 mundo me considera amai-
diçoado e excomungado, eu considero 0 mundo condenado e maldito”.
Isto, a meu ver, parece um tanto estranho ao pensamento de Paulo, po-
rém deixo os leitores julgarem.
15. Pois nem a circuncisão. A razão por que ele estava crucificado
para 0 mundo, e o mundo, para ele, era esta: em Cristo, a quem o apóstolo

estava espiritualmente unido, 0 que tem valor é ser uma nova criatura.
Todas as outras coisas têm de ser descartadas; têm de perecer! Estou me
referindo às coisas que obstruem a regeneração por parte do Espírito. Isso
é 0 que Paulo diz em 2 Coríntios: “Se alguém está em Cristo, é nova criatu-
ra” (5.17). Ou seja, se alguém deseja ser considerado pertencente ao reino
de Cristo, seja nascido de novo pelo Espírito de Deus; não viva mais para si
mesmo, nem para 0 mundo; seja ressuscitado para “novidade de vida” (Rm
6.4). Já consideramos as razões que levaram Paulo a concluir que nem a
circuncisão nem a incircuncisão têm algum valor. A verdade do evangelho
absorve e desfaz todas as sombras da lei.
16. E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra.
“Que desfrutem de paz e felicidade!” Isto é não somente uma oração em
favor dos crentes, mas também um sinal de aprovação. Portanto, 0 sig-
nificado é este: aqueles que ensinam esta doutrina são dignos de toda
estima e consideração, e aqueles que a rejeitam não merecem ser ouvidos.
A palavra regra expressa 0 curso regular e habitual que todos os ministros
piedosos do evangelho devem seguir. Os arquitetos empregam modelos na
construção de edifícios, a fim de ajudá-los a preservar a forma correta e as
justas proporções. 0 apóstolo prescreve esse modelo (κανόνα) aos minis-
172 · Comentário de Gálatas

tros da Palavra, os quais devem edificar a igreja “de acordo com 0 modelo”
que lhes foi mostrado (Hb 8.5).
Ministros fiéis e íntegros, bem como todos os que se conformam a esta
regra, devem extrair encorajamento singular desta passagem. Por meio do
apóstolo, Deus pronuncia uma bênção sobre eles. Não temos motivo para
temer as ameaças do papa, se Deus nos promete paz e misericórdia. O ver-
bo andar pode aplicar-se tanto ao ministro quanto ao seu povo, embora se
refira primordialmente aos ministros. O tempo futuro do verbo (σοι στοιχ
σουσιν) — todos quantos andarem — é usado para expressar perseverança.
E sobre o Israel de Deus. Esta cláusula é um motejo indireto ã vã
ostentação dos falsos apóstolos, os quais se gloriavam de ser os des-
cendentes de Abraão segundo a carne. Há duas classes de pessoas que
usam este nome: um pretenso Israel, que parece sê-lo de fato aos olhos
dos homens, e 0 Israel de Deus. A circuncisão era um disfarce aos olhos
dos homens, mas a regeneração é a verdade aos olhos de Deus. Em suma,
Paulo atribui o título de 0 Israel de Deus àqueles que antes ele denominou
filhos de Abraão pela fé (G1 3.29). Portanto, ele incluiu todos os crentes,
judeus ou gentios, que foram unidos na mesma igreja. Em contrapartida,
0 nome e a raça eram os únicos motivos dos quais se orgulhava 0 Israel
segundo a carne. E isso levou Paulo a argumentar, na Epístola aos Roma-
nos, que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem
descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9.6, 7).
17. Ninguém me moleste. Paulo fala agora com voz de autorida-
de, para restringir seus adversários, e emprega uma linguagem que sua
elevada posição autorizava plenamente. “Parem de lançar obstáculos à
minha pregação.” Por amor à igreja, ele estava preparado para enfrentar
dificuldades, mas não queria ser obstruído pela oposição. Ninguém me
moleste significa: ninguém faça oposição tendo em vista obstruir 0 pro-
gresso de minha obra.
Quanto ao mais ( τού λοιπού), ou seja, quanto a todas as outras coi-
sas, além do ser uma nova criatura. “Esta única coisa é bastante para mim.
Outros assuntos não têm importância, nem me interessam. Que ninguém
me aborreça com elas.” Assim, Paulo se coloca acima de todos os homens,
Capítulo 6 · 173

não dando a ninguém 0 direito de atacar 0 seu ministério. Literalmente,


esta expressão significa quanto ao resto ou ao restante. Em minha opinião,
Erasmo estava errado ao aplicá-la em referência ao tempo.
Porque eu trago no corpo as marcas de Jesus. Isto justifica a lingua-
gem de autoridade de Paulo. E quais eram essas marcas? Prisões, cadeias,
açoites, apedrejamentos e muitos tipos de tratamento injurioso que ele
sofreu por testemunhar 0 evangelho. As guerras terrenas têm as condeco-
rações, com as quais os generais honram publicamente os soldados por
sua bravura. Cristo, nosso Guia, tem as suas marcas pessoais, das quais
Ele faz uso abundante, conferindo a alguns de seus seguidores elevada dis-
tinção. Mas estas marcas diferem das outras em um aspecto importante:
aos olhos do mundo não passam de ignomínia, pois participam da nature-
za da cruz. Isto é sugerido pela palavra traduzida por marcas (στίγματα),
que denota, literalmente, as marcas com as quais eram identificados os es-
cravos estrangeiros, ou fugitivos, ou malfeitores. Portanto, não podemos
dizer que Paulo estava usando uma figura quando se gloriou de refletir as
marcas com as quais Cristo costumava honrar seus mais distintos solda-
dos. Aos olhos do mundo, essas marcas eram vergonhosas e infames, mas
diante de Deus e dos anjos elas excedem todas as honras do mundo.
18. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja, irmãos, com 0 vosso
espírito. A súplica de Paulo é não somente que Deus lhes dê a sua graça
em grande medida, mas também que tenham a respeito dela um sentimen-
to correto em seu coração. Esta graça só pode ser realmente desfrutada
quando atinge o nosso espírito. Portanto, devemos pedir a Deus que prepa-
re em nossa alma uma habitação para sua graça. Amém.
Esta obra foi composta em Cheltenham, corpo 10,5 e impressa
por Imprensa da Fé sobre 0 papel Chamois Bulk Dunas 90g/m2,
para Editora Fiel, em agosto de 2007.
SERIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS

Em seu comentário aos Galátas, é perceptí-


vel 0 mesmo espírito piedoso e erudito que
marcou de forma definitiva todos os de-
mais escritos de João Calvino. Aqui ele nos
oferece uma percepção bem aguda e acurada da preo-
cupação central do apóstolo ao redigir, em tom grave e
urgente, a epístola aos Gálatas. O cerne do evangelho, a
doutrina da justificação, estava sob ataque, e requeria
uma defesa incontestável.

Da mesma forma que na época de Paulo, e também na


época de João Calvino, em nossa época as pessoas mais
uma vez supõem que podem cooperar com a graça de
Deus, através de suas obras, para alcançar a salvação. De
forma trágica, este se tornou 0 credo não-escrito mesmo
entre as igrejas que se percebem oriundas da Reforma
do século XVI. Então, num contexto em que a graça de
Deus foi barateada, dissimulada e por fim abandonada e
onde 0 triste legalismo prevalece, Gálatas se torna uma
epístola vital para a igreja hoje, pois lida justam ente com
“ 0 artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai”.

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FIEL Categoria: Comentários Bíblicos

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