04 - Muito Alem Do Amor - Camila Moreira PDF
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Sumário
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Epílogo I
Epílogo II
Agradecimentos
Nota da autora
Para todas as vozes que um dia foram caladas.
aceite que você merece mais
do que amor doloroso
a vida nos move
a decisão mais justa
com o seu coração
é se mover junto
Rupi Kaur
Diego
Diego
Insônia.
Um intervalo de tempo de que nossa mente acha que precisamos
para divagar sobre a vida. É claro que não pedimos por isso, e muitas
vezes não queremos horas e horas de olhos abertos, quando, na verdade,
eles deveriam estar fechados e descansando, principalmente depois de um
dia bastante cansativo.
Mas ela veio.
De novo.
Olhei o celular sobre a mesa de cabeceira e ele mostrava que ainda
eram duas da manhã. Esperava algo assim, já que não via nem um raio
de sol sequer serpenteando entre as persianas do quarto. Joguei as pernas
para fora da cama e esfreguei as mãos no rosto. A ideia era acordar
relaxado, e não mais cansado do que quando me deitara. Entretanto,
mais uma vez meu sono fazia questão de me deixar na mão, fugindo de
mim. Tinha sido sempre assim, principalmente nos últimos meses.
Estava atolado de trabalho e isso interferia demais na minha
tranquilidade fora do Ministério Público. Por mais que eu tentasse me
desligar, minha mente insistia em continuar trabalhando vinte e quatro
horas por dia.
“Exausto” era uma palavra que me definia muito bem.
Nunca imaginara que seria promotor de justiça. Advogar estava no
meu sangue e achei que isso nunca mudaria, mas mudou, e hoje não me
vejo fazendo outra coisa. Experimentei um lado do direito que acabou
se tornando um vício. Amava o que fazia, e talvez essa entrega total fosse
uma das razões para a minha maldita insônia. Caí na cama mais uma
vez e pus o travesseiro sobre a cabeça, tentando não pensar no trabalho,
mas não consegui, como sempre. Então desisti e levantei.
Aproveitei que não voltaria a dormir tão cedo e fui para o
escritório. Mesmo com a mente dizendo que não era hora de trabalhar,
acabei não resistindo e peguei alguns depoimentos para analisar. Fazia
algumas semanas que estava trabalhando em processos de violência
doméstica, e um caso específico me chamara muito a atenção. Assustei-
me com as condições em que se encontravam as vítimas. Claro que eu
lidava com inúmeros tipos de crimes, mas esse, em especial, mexia com
um lado meu que eu não conseguia ignorar. Ser um cara muito família
dava nisso. Nunca entenderia como alguém podia machucar outro em
nome do amor. E era exatamente isso que a vítima relatava em seu
depoimento. Chegava a me causar asco.
Estava lendo as declarações, fazendo uma pausa entre uma linha e
outra para não perder nenhum detalhe, quando ouvi o toque do celular.
Uma mensagem.
Sofie.
A única coisa que ainda me frustrava sobre o acidente que sofrera
alguns anos atrás era o fato de ter perdido parte da minha memória.
Estava praticamente recuperado e me sentia muito bem, a não ser pelo
buraco que se formara no meu cérebro, engolindo algumas pessoas e
determinados momentos que eu vivera. Colegas de faculdade que me
visitavam cujos nomes eu sequer conseguia lembrar. Os primeiros casos
em que trabalhei como advogado. Alguns clientes. Várias coisas que vivi
enquanto frequentava o curso de direito. Tudo foi deletado sem mais
nem menos do meu subconsciente. E Sofie fazia parte dessas lembranças
que ficaram no passado.
Alexandre me contara sobre meu namoro com ela. Eu também
tinha vários objetos que confirmavam que Sofie era muito importante
para mim. Fotos, cartões, cartas, presentes, tudo remetia a uma excelente
relação, e era uma luta diária entender por que justamente ela se perdera
na minha memória.
Essas perguntas me assombraram quase todos os dias dos meses
seguintes ao coma. Relutando em reconhecer que havia esquecido uma
parte tão especial da minha vida, levei um bom tempo para procurá-la.
Quando percebi que não progredia, decidi que a hora havia chegado.
Depois de falar com Sofie, passei a me sentir ainda mais perdido,
lutando com uma confusão de sentimentos dentro de mim. Mesmo que
nossas conversas soassem tão íntimas, eu não conseguia deixar de sentir
um abismo nos separando. Sem falar na distância geográfica. Depois de
passar por vários países trabalhando como modelo, ela se estabelecera na
Itália. Uma das poucas coisas de que me lembrava era que tínhamos
terminado o namoro porque ela ia começar a carreira no Japão. Eu havia
acabado de sair da faculdade e ainda era muito jovem. Ela foi meu
primeiro relacionamento sério.
Abri a mensagem e foi impossível não sentir uma pitada de
ansiedade antes de começar a ler.
São três da manhã aí e tenho quase certeza de que o senhor Não-
consigo-me-afastar-do-trabalho deve estar acordado.
Sorri com suas palavras e não contive a vontade de responder.
Coisas assim me surpreendiam, pois ela parecia me conhecer muito
bem.
Acertou na mosca, senhora Sabe-de-tudo-e-de-todos.
Ela respondeu com uma carinha feliz antes de me enviar uma
foto. A saudade inundou meu peito enquanto observava a imagem.
Ainda me recordava dos seus cabelos ruivos, do sorriso de moleca, do
rosto angelical e dos olhos expressivos. Sofie tinha feições de adolescente,
mas na verdade era uma linda mulher.
Na foto, ela tinha um passaporte na mão e estava ao lado de uma
mala enorme. Ao fundo, havia algumas pessoas, e eu podia ver o painel
informativo do aeroporto.
Para onde a senhorita vai viajar agora? China, Dubai, Londres? Me
leva na mala?
Brinquei, mas a resposta a seguir me pegou desprevenido de
verdade.
Brasil.
Digitei rápido.
Você está vindo passar um tempo aqui?
A possibilidade de vê-la outra vez era algo que não esperava tão
cedo. Sofie me dissera que demoraria um tempo para visitar o Brasil por
causa da sua agenda de trabalho. Ela era uma modelo famosa e com
muitos contratos. Não falávamos sobre isso desde a última vez que
tocamos no assunto, há um mês. Pelo visto ela mudou de ideia.
Não, meu Príncipe. Tô voltando para casa. Eu amo você, Diego.
Nunca deixei de te amar. E não vou me perdoar se não tiver certeza de que
lutei com todas as minhas forças pelo seu amor. Quero você, e vou fazer de
tudo para te reconquistar. Só preciso de uma chance.
Depois de olhar fixamente para a mensagem, como se ela pudesse
me explicar algo além do óbvio, senti o coração disparar, com um medo
que não costumava ter. Ainda estava pondo minha vida nos trilhos, e
talvez Sofie tivesse esperanças de um futuro que eu não estava preparado
para lhe entregar.
Diego
Antes de sair, encaminhei algumas denúncias e revisei vários
relatórios que estavam pendentes. Por mais que me esforçasse, o volume
de processos era muito superior ao tempo que eu dedicava ao trabalho.
Quando deu a hora do almoço, peguei todos os documentos e as
anotações que usaria no júri e saí apressado, para não me atrasar.
Sorri ao avistar de imediato uma vaga no estacionamento do
shopping. Era mesmo meu dia de sorte e desejei que se estendesse até a
tarde, quando estaria em ação. Procurei uma mesa no restaurante que eu
adorava. Alexandre me apresentou o lugar e caí de amores pela comida
mineira que eles serviam. Não almoçava mais ali por pura falta de
tempo. Por isso, assim que cheguei, o cheiro de comida caseira invadiu
minhas narinas, fazendo meu estômago vergonhosamente rosnar de
fome.
Sentei e aproveitei os minutos livres para enviar alguns e-mails.
Concentrado no celular, nem vi a garçonete me entregar o cardápio. O
que foi uma falta de educação imensa da minha parte, tinha certeza de
que havia ignorado seu bom-dia. Quando ia me virar para responder e
pedir desculpa pelo comportamento, ouvi uma voz que sabia muito bem
de quem era me chamando e tomando totalmente minha atenção.
— Tio Di! Tio Di! — Vitória gritou a plenos pulmões quando
me viu. Fiquei de pé para esperá-la de braços abertos. Puta merda! Eu
me tornava um perfeito idiota quando se tratava dos meus sobrinhos.
Agarrada à mão da Clara, que tentava acompanhá-la, minha
pequena praticamente arrastou a mãe por todo o restaurante, ainda
gritando meu nome. Faltando algumas mesas para chegar à minha, Clara
desistiu e a soltou. Vitória correu para os meus braços e eu a peguei,
rodopiando seu corpo no ar. Sua gargalhada enchia meus ouvidos,
tornando meu dia esplêndido. Um amor incondicional e tão grande que
transbordava do meu peito.
— Quem é a princesa do tio? — perguntei, já sabendo o que ela
diria a seguir.
Minha sobrinha levantou dois dedinhos, fazendo um sinal de “V”.
Era o nosso código secreto — que de secreto não tinha muita coisa.
— Vitória — respondeu, com brilho no olhar e um sorriso
genuíno no rosto.
Dei um beijo na sua bochecha e outro na cabeça, deslizando os
dedos pelos cachos brilhantes que se formavam logo abaixo do ombro.
— Isso mesmo, lindinha. Agora senta aqui que o tio Di vai dar
um beijo na mamãe antes que ela fique com ciúme — expliquei,
enquanto a colocava em uma cadeira.
— Mamãe gosta muito de beijos. Ela vive beijando o papai.
— Ah, é?
Arregalei os olhos, sorrindo, e dei alguns passos para chegar até
Clara. Ela estava com uma expressão séria e a respiração ofegante, como
se tivesse corrido uma maratona. Não riu do que Vitória acabara de
falar, mas ainda assim estava linda, usando um vestido longo em tons de
verde que realçavam seus olhos quase da mesma cor. Clara era elegante
sem deixar de ser ela mesma. Tão natural quanto seu modo de levar a
vida. O cabelo estava preso em uma trança lateral que a deixava com cara
de… de… menina. Era assim que meu irmão a chamava. E era assim
que eu a via.
— Tudo bem, meu anjo? — questionei o motivo da sua cara
fechada.
Clara me puxou para um abraço e eu retribuí.
— Está sim, Di. Só a Vitória que me arrastou por todo o
shopping para chegar logo até você. Não tenho mais dezoito anos. Ainda
bem que chegamos, ou eu estaria estirada no chão e com a língua de
fora.
Esboçou um sorriso amarelo.
Desviou o olhar assim que terminou de se explicar, e algo em sua
resposta não me convenceu. Mas eu aprendera a lidar com Clara ao longo
dos últimos anos, e sabia que insistir no assunto seria pior. Ela falaria
quando estivesse preparada, fosse lá o que a estivesse incomodando.
— E o Alexandre? Não falei com ele hoje.
Ela revirou os olhos.
— Seu irmão vai me fazer enfartar antes dos trinta — disse, um
pouco irritada.
Ouvi Vitória conversando com alguém do meu lado, mas queria
saber o que deixara Clara chateada. Na verdade, eu tinha uma ideia do
que estava acontecendo, mas queria ouvir dela. Também sentia que ela
tinha uma facilidade grande de se abrir comigo, por isso eu me mostrava
sempre disponível. Sem dar conselhos ou dizer que ia ficar tudo bem. Às
vezes, tudo que ela precisava era desabafar.
— Ainda é sobre a Ferraz?
Ela apenas assentiu.
Meu irmão queria que Clara deixasse o atual emprego para voltar a
trabalhar no escritório da família. Ele até havia desistido quando ela
deixou claro que não daria certo trabalharem juntos. Mas, depois que
saí, Alexandre voltou a insistir no assunto, o que deixava Clara
extremamente irritada. Até parecia que meu irmão não conhecia a
mulher que tinha. Ela não era do tipo que aceitava ser amarrada por
homem nenhum, e isso incluía o marido. Acho que o grande Alexandre
Ferraz enfim encontrara uma adversária à altura. Eu tinha que confessar
que era divertido ver o embate dos dois. Não sabia quem era mais
cabeça-dura.
— Mamãe, tô com fome — Vitória nos interrompeu.
— E o que você vai querer?
— Cocó e batatinha.
Como se pudesse ser diferente.
Chamei o garçom e pedi um peixe grelhado e salada. Clara me
acompanhou no pedido, enquanto tentava explicar ao garçom que o cocó
que Vitória tanto pedia era frango.
— Além do suco da garotinha, pode trazer um de uva pra mim e
uma Coca Zero pra ela, por favor. — Sabia que era o refrigerante que ela
tomava, então me adiantei. — Com limão, Clarinha?
— A mamãe não tá tomando “gelante”, tio — Vitória me avisou.
— Ué, e por que não?
— Por causa do meu irmãozinho.
Fiquei mudo. Levei um tempo até absorver o que ouvira, mas a
sensação ainda era de profunda surpresa. Depois de alguns segundos
petrificado, um sorriso surgiu devagar no meu rosto, e tudo o que
conseguia fazer era encarar Clara, que desviou o olhar para a filha.
Vitória se encolheu na cadeira, sabendo que falara um pouco demais.
Tampou a boca com as duas mãos, olhando para a mãe como se pedisse
desculpas.
— Vitória, o que a mamãe disse antes de sairmos de casa?
Clara mantinha os olhos na filha, tentando escondê-los de mim.
Minha sobrinha, por sua vez, ficou quieta, encolhendo-se cada vez mais
na cadeira, provavelmente pensando no que dizer. Mais um pouco e ela
escorregaria para o chão.
De repente sua voz saiu tão baixa que quase não podia ser ouvida.
— Que eu não podia contar pro papai que fomos ao médico e
que você tá esperando um irmãozinho. Mas o tio Di não é o papai,
mamãe. Então tá tudo bem — explicou. — Tio Di, não pode contar
pro papai, tá? — Apontou o dedo para mim, sacudindo-o. — É
segredo.
— É verdade? — perguntei, enfim, com o coração já acelerado e
os olhos marejados. Eu sempre fui um merda de um chorão. Clara
confirmou com um aceno de cabeça e eu levantei, puxando-a da cadeira.
— Isso é ótimo. Parabéns! Meu Deus. Essa notícia é maravilhosa,
Clarinha. — Abracei-a, dominado pela emoção. — O Alexandre vai
ficar nas nuvens.
— Claro que vai, por ele teríamos um time de futebol.
Apesar da brincadeira, eu sentia a preocupação em sua voz. A
gravidez de Vitória não fora fácil, e agora Clara estava com medo de
passar por tudo aquilo de novo. Por baixo da armadura de Mulher-
Maravilha, existia uma menina que agora me encarava com um olhar
temeroso. Apertei forte sua mão e a levei à boca para dar um beijo,
depois a abracei, não me importando nem um pouco que metade do
restaurante estivesse olhando para nós.
— Vai dar tudo certo — tentei acalmá-la, sussurrando em seu
ouvido. — Você é a mulher mais incrível que já conheci. Não tem nada
nessa vida que você não seja capaz de superar. Vitória é a prova disso.
Ela sorriu gentilmente ao ouvir o meu elogio.
Não falei da boca para fora. Conhecia a garra de Clara e
acreditava que ela seria capaz de vencer mais essa batalha, assim como
saíra vitoriosa de todas que ameaçaram destruir seu caminho.
— Cristo, mais um sobrinho para me deixar de cabelo branco.
Ela riu com doçura, o que me deixou um pouco mais tranquilo.
— Chegou meu “cocó”. Mamãe, mamãe, tô com fome —
Vitória dizia sem parar.
Sentamos novamente, Clara visivelmente mais calma, e recebemos
o almoço com sorrisos no rosto. Sabia que ela queria ser mãe
novamente, ou não concordaria com a ideia do meu irmão. Clara nunca
era obrigada a nada e, se resolvera fazer isso, fora completamente por ela,
e não para agradar o Alexandre. Mas também tinha certeza de que meu
irmão não se importaria em ter apenas Vitória. O medo que ele sentira
durante a gravidez fora aterrorizante o suficiente. Mas isso não importava
mais. Um bebê estava a caminho e ele seria extremamente amado por
toda a nossa família.
— A garçonete vai trazer as bebidas — o garçom avisou, depois
de deixar todos os pratos na mesa.
Clara encarou sua refeição e começou a remexer a comida, como
se o peixe fosse a coisa mais importante daquela mesa. Tentava se
esconder e camuflar mais uma vez os sentimentos e medos, evitando
tocar no assunto comigo. Mas, quando respirou fundo, eu sabia que me
deixaria entrar.
— Estou grávida de dois meses. — Levantou o rosto e me olhou.
— Decidi junto com o Alexandre que tentaria de novo, mas não achei
que aconteceria tão cedo. Sabe, por causa das minhas condições.
Eu entendia perfeitamente sua explicação e, em parte, achava
maravilhoso. Depois de quase ter morrido, as chances de Clara
engravidar haviam caído drasticamente. Mas, contrariando tudo e todos,
ela estava indo para o segundo filho. Lembro de toda a confusão quando
ela descobriu a primeira gravidez. Alexandre teve que ir buscá-la nos
Estados Unidos depois de um desentendimento deles. Quase
enlouqueceu e me levou junto. Enfim… Quando eles voltaram, meu
irmão passou a dedicar a vida a fazer as duas felizes. Clara brigava
comigo por eu mimar nossa menina, mas Alê era muito pior. Ele beirava
o exagero. Meu irmão era um pai maravilhoso. Sempre dedicando seu
tempo, dando atenção, ajudando, brincando… Cansei de chegar ao
apartamento deles e encontrar aquele homem de quase dois metros
mergulhado entre dezenas de brinquedos de todos os tipos, ou manchado
com as mais diversas cores de tinta guache.
Mas isso não me surpreendia. Ele era pai. E agia como um
verdadeiro pai tinha que ser. Pelo menos os de verdade.
— Seu suco, senhor. E, para essa mocinha linda, um suco de
laranja em um copo de princesa. — A garçonete entregou nossas bebidas,
mas eu estava tão focado na Clara e na notícia que ela me dera que só
me virei para a garota quando Vitória chamou a minha atenção,
puxando a manga da minha camisa.
— Ela também é muito linda, né? — perguntou Vitória.
— Claro, meu amor, ela é… — Engasguei ao virar e senti todo o
chão sumir debaixo dos pés.
Eu a conhecia.
Olhos castanhos me encaravam, e era como se todos os meus
sonhos se concretizassem ali na minha frente. A garganta secou e os olhos
não mudaram de direção, fixados na garota. Escutei ao longe a voz de
Clara me perguntar alguma coisa, mas não consegui desviar o olhar nem
mesmo para respondê-la. O da menina também ficou congelado no
meu, e meu coração acelerou de forma absurda dentro do peito.
—… linda — enfim consegui completar a frase que iniciara. —
Qual é o seu nome mesmo?
A garota me encarou, um pouco constrangida pelo meu súbito
interesse. Podia ver o movimento de puro nervosismo em sua garganta.
Os olhos desviaram dos meus por poucos segundos enquanto ela esfregava
as mãos no avental escuro. Quando voltou a me encarar, a sensação de
que a conhecia voltou com ainda mais força. Eu só não sabia de onde.
Devia ser mais uma das pessoas que deixara para trás depois do maldito
acidente.
Quando ela conseguiu me responder, eu já não escutava mais nada
a não ser sua doce voz pronunciando um nome que lhe caía com
perfeição.
— Meu nome é Larissa — disse.
Larissa.
Parecia nome de princesa.
3
Larissa
Eu não sabia o que estava acontecendo, mas o que mais desejava
naquele momento era que ele desviasse os olhos dos meus. Era assustador
o jeito como me olhava, e meu coração disparou, avisando que fora uma
péssima ideia dizer meu nome. Acontece que eu estava tentando agir da
forma mais natural possível. Não queria sentir medo o tempo inteiro, ser
dominada por ele, então decidi que não fazia mal dizer meu nome. Era
só um cliente querendo saber o nome da garçonete que o estava atendendo.
Era o que minha mente repetia, tentando me convencer de que não
havia motivo para pânico. Apenas um cliente.
Mas o homem continuou me encarando como se me conhecesse
de algum lugar, tornando as coisas mais difíceis do que já eram.
Impossível! Com certeza me lembraria de alguém como ele. Parecia mais
um galã de novela, de tão lindo. O cabelo não tinha um fio fora do lugar
e chegava a ser perfeito demais. O paletó escuro jogado sobre a cadeira
ao lado e a camisa social que vestia me faziam imaginar se era um
empresário ou algo assim. Até a forma como se movia era sofisticada. Eu
o vi assim que chegou, chamando a atenção de muitas mulheres que
estavam no restaurante. Recebeu diversos olhares enquanto mexia em seu
celular, mas não correspondeu a nenhum, parecendo não ter consciência
de quão atraente poderia ser.
Ele era lindo, mas muito esquisito.
Fiquei desconfortável diante do silêncio e fitei o bloco de pedidos
nas minhas mãos, tentando fugir dos seus olhos, que, aliás, nunca vira
iguais. Eram de um tom forte de azul, que dava a sensação de mergulhar
nas águas profundas de um mar calmo. Uma contradição, porque calmo
era tudo que esse homem não parecia ser. Tinha uma espécie de
confiança arrogante.
A garotinha continuou falando, mas eu estava tão nervosa que não
compreendi nenhuma palavra. Não gostava de ser encarada assim. Eu me
acostumei a fugir de todos os olhares durante anos e, mesmo agora,
qualquer um que me olhasse por mais tempo do que o necessário fazia
meu coração acelerar de uma forma quase impossível de controlar.
— Você pode me trazer uma água sem gás, por favor?
Virei para a mulher que estava na frente dele enquanto ela fazia o
pedido. Os cabelos eram castanhos, com algumas mechas claras. Os olhos
esverdeados sobressaíam no rosto, que mais parecia de porcelana.
Sacudi a cabeça, fazendo que sim, e caminhei em direção à
cozinha.
— O que foi aquilo, Di? — ouvi a pergunta, e ele respondeu algo
que não consegui entender. — Você tava comendo a menina com os
olhos.
Deus do céu! Será que a mulher achou que eu estava dando em
cima do marido dela?
Óbvio, né, Larissa!
Suspirei, envergonhada, depositando a água e o copo na bandeja e
me ajeitando para voltar à mesa. Queria dizer que não era nada do que
ela estava pensando. Ele que me encarou primeiro, eu apenas olhei de
volta, tentando entender por que me observava daquela maneira tão
familiar, se nem ao menos me conhecia. Uma súbita raiva surgiu dentro
de mim. O cara estava sentado com a família — que mais parecia ter
saído de um comercial de televisão, de tão linda — e mesmo assim não
parava de me encarar.
Assim que cheguei à mesa, tive certeza de que a mulher percebera
os olhares dele em minha direção, pois o observava de um jeito estranho,
desviando os olhos para mim logo em seguida. Mas entendi que ela era
elegante demais para fazer um barraco no meio do restaurante. Mesmo
assim, também não parecia o tipo de mulher que aceitava traição. Deu
para ver nos olhos dela, pois em nenhum momento disfarçou que notara
que o cara me olhava sem ao menos se importar com a filha ao lado
dele.
Idiota! Idiota! Idiota!
Em silêncio, enquanto deixava a água na frente dela, rezei para
que não reclamasse com a gerência, ou eu seria demitida, e não podia
me dar ao luxo de perder o emprego. Então, praticamente saí correndo
depois de lhe entregar o copo, tentando disfarçar o máximo possível o
meu comportamento nada normal.
Já na cozinha, senti como se sufocasse. Levei as mãos aos dedos
invisíveis que pareciam apertar minha garganta, e tive que respirar fundo
até voltar a controlar o corpo e ter a consciência de que estava bem. Uma
afirmação que não era totalmente verdadeira. Talvez eu nunca vá ficar
bem.
Odiava aquele tipo de homem.
Odiava o que eles faziam com as mulheres.
Odiava que eles não soubessem o significado da palavra respeito.
Busquei o ar no fundo dos pulmões, tentando me acalmar. Ainda
repetia que ele era apenas um cliente, mesmo agindo de forma tão
estranha.
— O que está fazendo aqui, menina? — A voz me fez saltar no
lugar. — As mesas estão cheias. Vamos, ainda não é hora pra descanso.
Droga!
Recebi uma bronca da minha gerente e imediatamente saí,
cumprindo sua ordem. Por sorte, a mesa deles não pediu mais nada,
então me concentrei em atender os demais clientes. Depois de alguns
minutos, estava mais calma, apesar de ter a sensação de que ainda me
encaravam. Não olhei para conferir. Tudo bem viver com essa dúvida.
Depois de atender vários clientes, voltei para a cozinha, mas meus
olhos me traíram e buscaram aquelas pessoas. A menina de cabelos
cacheados e olhos azuis como os do pai levantou os bracinhos, brincando
com o homem, que agora lhe dava toda a atenção possível. A mulher
sorria para os dois, e era como se eu estivesse presa em uma cena de
filme romântico. Até via tudo se desenrolar em câmera lenta. Suspirei ao
imaginar quão perfeitos eles eram, mas também não deixei de pensar que
o cara podia ser lindo e ter uma família de conto de fadas, e mesmo
assim ser um babaca.
Ele levantou o braço, chamando pelo garçom, e me afastei,
fugindo das suas vistas mais uma vez. Carlos passou por mim e foi até
eles. O cara pediu a conta e, uns cinco minutos depois, todos levantaram
para ir embora. Observei enquanto a mulher se afastava, segurando a
filha nos braços. Antes de saírem do restaurante, ela deu um beijo no
rosto do homem, o que me intrigou. Devia ter ficado brava com ele por
minha causa. Mas então ele fez um carinho em seu cabelo e beijou a
menina, e ambos sorriram.
Não podia julgá-la.
Aliás, tudo que não podia fazer nessa vida era julgar alguém.
Antes de desaparecer por entre as portas, o homem olhou na
minha direção mais uma vez. Seus olhos me fitaram como se ele
soubesse exatamente quem eu era.
Não, você não sabe. Seu mundinho não conhece o meu. Não faz a
mínima ideia de quanta dor eu senti. Das cicatrizes que carrego. Ninguém
faz.
Tive vontade de abraçar meu corpo ou me esconder dele.
Qualquer uma das opções valia para que esse homem misterioso parasse
de me encarar. Algo gritava dentro de mim, implorando para sair, mas
não havia ninguém que pudesse escutar. Os fantasmas eram meus e eu
tinha que aprender a conviver com cada um deles.
Diego
Na minha frente estavam sete jurados. Homens e mulheres que eu
nunca vira na vida e que poderiam decidir o futuro de várias pessoas. Do
réu, de uma de suas vítimas, e das famílias de todos os envolvidos.
Pessoas comuns, com uma responsabilidade incomum: tinham a vida de
alguém nas mãos.
Olhei para eles e, por longos segundos, encarei um a um. Se havia
aprendido uma coisa com meu irmão era que a maioria das pessoas
acreditava no que seus olhos diziam, por isso comecei minhas alegações
finais buscando os daqueles que eu precisava convencer com a minha
verdade.
Observei cada um deles. Esperei que vissem estampada em minha
face a veracidade de tudo que defendera durante o dia. Rezei para que o
amor tocasse seus corações e a justiça fosse feita. Desejei que olhassem
no fundo dos meus olhos e acreditassem que as minhas palavras eram as
únicas que realmente mereciam ser ouvidas.
Que o réu cometera o crime, era inquestionável. Mas a defesa
ardilosamente tentara desconstruir a moral de uma das vítimas, jogando
para ela a responsabilidade dos atos dele. Segundo eles, tudo acontecera
porque a menina provocara o ex-namorado ao iniciar um novo
relacionamento com um de seus amigos.
Vinícius foi morto na frente da namorada, na porta da faculdade
onde estudavam, quando levou o tiro que era direcionado a ela. Um
crime tão bárbaro quanto a justificativa absurda. Não conseguia acreditar
que alguém pudesse usar um sentimento tão nobre quanto o amor para
justificar atos tão brutais quanto o daquele fatídico dia.
Com o microfone nas mãos, continuei olhando diretamente para
os jurados e mantive uma postura segura, de quem sabia o que estava
prestes a dizer.
E eu estava.
Não brincava com o destino de ninguém.
Era para isso que me preparara: para que a justiça fosse feita.
Respirei fundo, certificando-me de que a voz sairia com a entonação
perfeita.
— Senhoras e senhores, vocês presenciaram um embate durante
todo o dia de hoje. De um lado, a justiça, lutando para ser cumprida.
Do outro, um jovem desprovido de todo e qualquer tipo de sentimento,
tentando alegar que tudo vale em nome do amor. Eu acredito no amor,
e como acredito. E é por crer nesse sentimento tão nobre que me recuso
a aceitar que um jovem de apenas vinte anos tenha tido seus sonhos
destruídos em nome dele. É por acreditar nesse sentimento que bate em
meu peito que luto para que casos como esse se tornem inadmissíveis. O
amor não causa dor. Não machuca. Não destrói. Não mata.
“Este jovem que se apresenta perante a sociedade hoje planejou
friamente o assassinato de sua ex-namorada. Foi atrás dela com o único
intuito de tirar sua vida, que, felizmente ou infelizmente, foi protegida
por Vinícius, que hoje não está aqui. Um rapaz que não teve o direito
de viver esse amor e que pagou um preço alto demais por seguir o
coração. E é por isso que peço a vocês hoje, senhores, que pensem em
suas filhas, mães, amigas ou em vocês mesmas. Permitir que a mulher
continue sendo tratada como objeto e propriedade é permitir que a
sociedade regrida a tempos obscuros. Hoje poderíamos estar julgando o
assassinato de Beatriz, mas, devido a um ato heroico de alguém que
conhecia o verdadeiro significado do amor, podemos vê-la sentada aqui,
assistindo a esse julgamento. Vinícius foi morto a sangue-frio enquanto
defendia a namorada, e o único culpado por esse ato monstruoso está
aqui, apenas esperando a decisão de vocês para que possa pagar pelo
crime que cometeu.”
Os jurados me encararam com atenção e alguns com expressões
indecifráveis, mas não havia mais nada que pudesse ser feito. Dera tudo
de mim, e esperava que aquelas pessoas fizessem o mesmo.
Voltei para o meu lugar e guardei todos os documentos que levara
comigo. Depois de sete horas de julgamento, o cansaço já era visível no
semblante de todos.
Escutei o advogado de defesa fazer suas alegações finais,
zombando de mim por citar o amor, o que o contradisse, já que ele
mesmo usara os sentimentos de seu cliente para justificar o crime. Tive
vontade de levantar e questioná-lo, mas não o fiz. Apenas aguardei em
silêncio a decisão.
E ela veio.
Veio como eu esperava e pelo que havia lutado. Nada mais que
sua condenação seria permitido, e me senti vitorioso quando ouvi o juiz
anunciá-la.
O condenado começou a chorar, sua família gritou indignada e eu
apenas levantei e o encarei. Quem comete um crime deve saber que
nunca estará sozinho. Mais cedo ou mais tarde, a vida ou a morte
cobrará sua parte. E elas podem ser cruéis.
Juntei todo o meu material e, antes de sair do fórum, fui
abraçado por Beatriz. Praticamente uma menina, que me agradecia com
fervor e lágrimas nos olhos. Tantos sonhos destruídos em apenas um
olhar, que me fazia acreditar que o mal do mundo era o ser humano. Ao
seu redor, familiares e amigos de Vinícius se reuniam. Suas camisetas
estampavam o rosto do jovem que eu acabara de defender, mesmo que
ele não estivesse mais aqui, mesmo que nada o trouxesse de volta. Mas
pelo menos honramos a sua morte. Respeitamos o amor que um dia ele
sentira.
— Dr. Diego. — Beatriz me chamou, antes que eu chegasse à
porta. Virei em sua direção e, em meio às lágrimas que escorriam por
sua face, percebi um sorriso tímido despontar. — Obrigada por acreditar
no amor.
Voltei para casa com uma sensação de dever cumprido, mas com
algo martelando em minha mente. Depois que saí do fórum e me
desliguei completamente do caso em que trabalhara, os olhos da garota
do restaurante voltaram a me perturbar.
Não podia ser ela, seria muita coincidência.
Tentei ignorar a voz que martelava em minha mente, mas o
restante da noite passou como um borrão, sem que eu conseguisse me
concentrar em qualquer outra coisa. Fiz tudo no automático, o
pensamento sempre voltando àquela garota. Eu enlouqueceria se não
descobrisse logo quem era ela.
Durante o banho, escutei o celular tocar e decidi não atender. Eu
sabia que poderia ser a Sofie, e a verdade era que não estava preparado
para falar com ela. Não podia lidar com sua chegada quando mal dava
conta dos pensamentos insistentes. Saí do banheiro enrolado na toalha e
atravessava o quarto a passos largos quando finalmente cedi à voz que
praticamente gritava comigo.
Só podia ser ela!
No dia em que peguei seu processo, senti raiva do mundo. Um
canalha como seu ex-marido não poderia estar à solta na sociedade. Era
doentio, asqueroso e desumano praticar algo semelhante ao que ele
fizera. Meu estômago embrulhava e todos os músculos do meu corpo
enrijeciam ao lembrar de tudo o que aquela pobre garota fora obrigada a
passar. Uma menina de apenas vinte e três anos, que tivera seus sonhos
visceralmente arrancados e destruídos pelas mãos daquele que um dia lhe
jurara amor.
Ainda não tinha conversado com Larissa, não a encontrara. Isso
aconteceria em breve, mas eu já estava impregnado de um sentimento de
proteção em relação àquela menina. Também tinha Maria Luiza, que
transformava esse desejo em praticamente obrigação. A filha de Larissa
era a segunda vítima do animal, que além de tudo era seu pai — se é
que podíamos chamar um ser daquele de pai.
Como pode alguém praticar um ato tão violento com um ser tão
indefeso? Queria entender, mas era humanamente impossível para mim.
A garotinha apenas tentara proteger a mãe do monstro que lhe agredia.
Quando vi as fotos do processo, passei mal praticamente o dia
todo, pois me lembrei dos meus sobrinhos; Antônio e Vitória. Acho que
se alguém apenas pensasse em fazer uma barbaridade daquela com
qualquer um dos dois, eu não responderia por mim. Era o tipo de cara
que evitava confusão, mas isso não se aplicava quando minha família e
amigos estavam em perigo. Calma não podia ser confundida com
passividade. Se as pessoas que amava precisassem de mim, eu estaria lá,
nem que para isso tivesse que mover céu e terra.
Lembrando da garota no restaurante, cada detalhe das fotos que
vira em seu processo voltou à tona. A primeira imagem do inquérito
mostrava uma menina que estampava um sorriso meigo e olhos castanhos
sonhadores. O cabelo preto estava mais curto, na altura dos ombros.
Hoje, no almoço, eles estavam amarrados em um rabo de cavalo,
deixando todo o rosto à mostra. Se eu tinha alguma dúvida de quem ela
era, as cicatrizes ao longo do supercílio e no lábio superior confirmavam
minhas suspeitas. Na segunda foto, um olho mal se abria devido ao
inchaço que havia tomado conta dele. A pele clara estava cheia de
hematomas e havia um longo corte acima da sobrancelha.
Recordei-me do pavor que tomou conta dos seus olhos assim que
vi a imagem. Então amaldiçoei o responsável por aquela barbaridade, e
imediatamente fiz uma promessa silenciosa de que ela nunca mais teria
que sentir medo. Me entregaria de cabeça àquele caso, e jamais
conseguiria abandoná-las. Tinha plena consciência de que não era certo
me envolver emocionalmente em um processo, mas era mais forte que
eu. Estava pronto para defender Larissa, e faria de tudo para que ela e
sua filha voltassem a ser felizes.
Abri minha pasta e retirei o mandado de prisão que Fabrício me
entregara pela manhã.
Indiciado: Dennis Pereira do Nascimento.
Vítimas: Larissa Marques e Maria Luiza Marques do Nascimento.
— Larissa, nome de princesa.
Minha voz ressoou no silêncio do apartamento, mas foi abafada
pelas batidas que ecoavam do meu coração.
5
PASSADO
Larissa
— Droga! Estou atrasada.
Assim que passei pela porta de casa, senti alguma coisa me segurando.
Depois de dar dois puxões na mochila, percebi que a alça ficara presa. Abri a
porta mais uma vez, com plena consciência de que esse minuto a mais poderia
me fazer perder o ônibus. Comecei a correr desesperada na direção do ponto.
Ainda bem que não era muito longe de casa. O clima estava seco e fiquei sem
ar antes do esperado. Avistei o ônibus ao dobrar a esquina e fui obrigada a
gritar:
— Pede pra esperar. Preciso pegar esse ônibus.
O último passageiro ainda não havia entrado. Não vi seu rosto, mas
sabia que ele me escutara. Ele pôs o pé no primeiro degrau do ônibus, mas o
outro ainda ficou na calçada. Quando me aproximei, já sem fôlego, ele
entrou.
— O-bri-ga-da — gaguejei, enquanto tentava me recuperar.
— Quer ajuda com a mochila?
Mal tive tempo de processar a oferta quando o ônibus arrancou e fui
derrubada na direção da porta que se fechara atrás de mim. Antes de me
chocar contra o vidro, uma mão segurou a minha e me puxou para a frente.
Apoiei-me na barra lateral do corredor e só depois consegui levantar a cabeça
para saber quem era o meu salvador. Estava pronta para agradecer mais uma
vez quando meu sorriso congelou e fiquei muda. Era o Dennis. Deus, que
vergonha. Eu simplesmente paguei dois micos seguidos na frente do menino
mais bonito da minha sala.
Sua mão ainda segurava a minha, e não pude deixar de reparar no
tamanho dela. Dennis tinha mãos grandes. Na verdade, ele era um pouco
maior do que a maioria dos meninos da sua idade, e por isso chamava tanta
atenção. Também era muito forte. Era como se eu olhasse para o meu pai — é
lógico que meu pai não era tão bonito assim. Dennis tinha um rosto muito
bem desenhado, como se cada detalhe tivesse sido traçado por um artista bem
habilidoso. Os olhos castanhos brilhavam quando ele sorria. Os cabelos
encaracolados caíam pela testa e envolviam todo o rosto, parando um pouco
abaixo da nuca. Ele parecia um anjo toda vez que balançava a cabeça e os
cachos sacudiam junto.
— Você é a Larissa, né?
Confirmei.
— Estudamos juntos. Não sabia que morava nesse bairro.
— Nasci aqui.
— Maneiro. Me mudei no fim de semana. Acho que seremos
vizinhos.
O.k.! Algumas coisas naquele diálogo acabavam de me elevar a um
patamar diferente na vida.
Dennis se lembrava do meu nome.
Ele sabia que estávamos na mesma sala.
Seríamos vizinhos.
Um gemido baixinho escapou dos meus lábios, o terceiro mico do dia.
Dennis sorriu quando tapei a boca com a mão, e duas covinhas enfeitaram
seu rosto, me fazendo encará-lo como uma lunática.
Era oficial. As borboletas que tanto ouvia falar existiam e, naquele
exato momento, faziam uma festa no meu estômago. Não ficava nervosa assim
desde que Janaína, minha melhor amiga, contara que estava ficando com
nosso professor de educação física e pedira segredo. Tudo bem que éramos
melhores amigas, mas esse era o tipo de coisa que não se conta para as pessoas
— nem para melhores amigas. Toda vez que via o sr. Átila, tinha a súbita
sensação de que ele sabia que eu guardava o segredo do seu caso com uma
garota sei lá quantos anos mais nova. Qual era o problema dele? Jana tinha
dezesseis anos.
— Querem dar o fora do corredor? — Dei um pulo quando o
motorista gritou, enraivecido.
O que acontecia com as pessoas para ter esse mau humor logo pela
manhã? Imagina quando chegassem ao fim do dia!
— Você ouviu, garota bonita, vamos lá.
Dennis foi o primeiro a passar pela catraca, mas não sentou. O ônibus
estava relativamente vazio e comecei a me perguntar por que não tinha
escolhido um lugar. Passei pela catraca ainda sem acreditar que ele tinha me
chamado de bonita, e encontrei um banco próximo à janela. Deslizei por ele e
larguei a mochila entre as pernas. Aproveitei para dar uma boa olhada no meu
All Star azul, que conseguia ser mais surrado que minha velha mochila.
Algumas estrelas já haviam se apagado, e eu sentia muitíssimo, porque amava
aquele tênis.
Senti alguém muito próximo e olhei para o banco do lado apenas para
confirmar que Dennis se juntara a mim. Ele fez o mesmo que eu e deixou a
mochila no chão, entre os pés. Os tênis que usava eram parecidos com os meus
— com a diferença de serem pelo menos alguns anos mais novos.
Observei seu rosto mais uma vez, pois nunca estivera tão perto dele.
Limpei a garganta, chamando sua atenção. Devia um agradecimento um
pouco melhor que um simples obrigado sussurrado.
— Obrigada de novo. Temos prova no primeiro horário e minha mãe
me mataria se soubesse que perdi aula porque fiquei até tarde lendo.
— Então você gosta de ler?
Arregalei os olhos com seu interesse, e minha vontade era fazer uma
lista com todos os livros que amava, mas algo me dizia que ele não estava a
fim de saber sobre feitiços ou vampiros que brilhavam, então apenas balancei
a cabeça, confirmando.
— Que livro você estava lendo? — perguntou com curiosidade.
— Crepúsculo. — Pela décima vez, mas omiti essa informação
enquanto respondia quase sussurrando, com medo de ser motivo de piada.
Ele deu de ombros e olhou para a frente.
— O filme foi legal. Mas não sei por que vocês, meninas, gostam
tanto desse vampirinho aí.
— Ah, é romântico, e meninas são românticas. É como se fosse um
conto de fadas moderno.
Ele voltou a me encarar e seus lábios se torceram em um sorriso de
canto. Talvez esse sorriso fosse ainda mais bonito do que o que ele havia me
dado um pouco antes. Já olhara tanto para o Dennis durante as aulas que
podia categorizar cada sorriso dele. Esse, por exemplo, era o sorriso que ele
dava para as meninas que sentavam no fundão e faziam parte da sua turma.
Óbvio que eu não era uma delas. Estava mais para a garota que sentava no
canto esquerdo e não se misturava com nenhum grupo específico. Mas não
podia reclamar. Tinha Janaína e Matheus e eles, além de serem irmãos, eram
também meus melhores amigos.
— Nem todas as garotas são românticas.
Pensei em algumas meninas da nossa escola e senti meu rosto corar de
imediato. Sim, com certeza, nem todas as garotas eram tão românticas quanto
eu, a ponto de sonhar com o cara certo e aguardar com muita expectativa o dia
em que ele iria chegar.
— Mas acho que você não é como todas as garotas — ele continuou, e
meu coração começou a bater tão forte que quase não conseguia respirar.
Dennis piscou, e o gesto tornou tudo ainda pior. A sensação era de que ele
estava me paquerando. Seria possível?
Tá maluca, garota?! Uma vozinha gritou no fundo da minha mente.
Levantei a cabeça e o garoto ainda me encarava com o mesmo sorriso.
Tentei pensar em alguma coisa para responder, mas não consegui raciocinar
rápido o suficiente. Logo o ônibus parou e três garotos entraram fazendo
algazarra e chamando nossa atenção. Amigos do Dennis, que assim que
entraram, foram até ele, puxaram-no do assento em que estava e o levaram
para trás. Apenas fiquei sentada, vendo ele se afastar. Seus olhos ainda
estavam presos aos meus e, antes de virar, ele piscou mais uma vez.
Ótimo. A comunidade de borboletas que morava no meu estômago
agradecia.
Larissa
Depois de almoçar, me sentei entre as caixas no depósito e
aproveitei o restante do tempo livre para descansar as pernas. O dia havia
sido estressante, e me sentia prestes a desabar sobre uma mesa a qualquer
momento, de tanto cansaço. Estremeci só de pensar que ainda tinha que
enfrentar um longo tempo para chegar em casa. Queria ter encontrado
algo mais perto, mas foi o primeiro trabalho que apareceu, e eu não
podia recusar.
Tirei o celular do bolso do avental para verificar as horas, mas
tudo que consegui fazer foi olhar para a foto do descanso de tela. Malu
estava tão sorridente que imediatamente meus olhos se encheram de
lágrimas. Momentos assim eram raros em nossas vidas nos últimos
tempos. Tirara essa foto dias antes de tudo acontecer. Estava confiante
de que, depois de duas tentativas, dessa vez ele realmente me deixaria em
paz. Engano meu. Assim como me enganara quando, na primeira vez,
ele prometeu que nunca mais gritaria comigo ou me impediria de fazer
alguma coisa. Assim como me enganara na segunda vez, quando ele disse
que havia sido um acesso de fúria e que nunca mais tocaria em mim.
Minha vida podia ser resumida em um monte de enganos.
Ainda olhava para o celular quando Carlos apontou a cara na
porta, me chamou e entrou. Meu primeiro instinto foi de dar dois
passos para trás, por medo de ficar sozinha com um homem de novo,
mesmo ele sendo meu colega de trabalho. Carlos ainda era um garoto,
mesmo assim eu não conseguia controlar o pavor que parecia nascer dos
meus ossos e correr pelas minhas veias.
Ele parou a poucos metros de mim antes de avisar: — Larissa,
tem alguém procurando por você.
No mesmo instante, meu corpo inteiro se retesou. O pavor que
tentava diariamente trancar dentro de mim aflorou, e sabia que qualquer
pessoa que me visse naquele momento pensaria que eu estava tendo uma
crise de pânico. Os olhos de Carlos se arregalaram e não me preocupei
mais com sua presença, mas sim com quem poderia estar me
procurando.
— Ele disse o nome?
Demorei longos segundos para fazer a pergunta e me surpreendi
por conseguir formar uma frase completa, pois só conseguia pensar nas
alternativas de fuga, mesmo sentindo como se as minhas pernas fossem
de gelatina.
O problema do medo é este: é incontrolável. É algo que nasce no
seu interior e simplesmente explode, sem que você consiga raciocinar a
coerência disso tudo. Primeiro você sente, e só depois descobre por que
está sentindo.
— É um oficial de justiça.
A sensação de alívio que sua resposta causou foi inevitável. Às
vezes acreditava que nunca sairia desse limbo de sofrimento. Mesmo
depois do inferno, continuava amargando as consequências dos meus
enganos.
Carlos continuou me encarando e eu agradeci antes de segui-lo
para fora. Meu colega mostrou a mesa um pouco afastada, e pude ver o
homem que me aguardava. Ele usava um terno escuro, carregava uma
pasta nas mãos e eu tinha uma leve ideia do que estava fazendo ali.
Cumprimentei-o assim que me aproximei o suficiente, e ele estendeu
um papel na minha direção.
— A senhora está sendo intimada a comparecer ao fórum na data
citada, para uma audiência de instrução e julgamento.
Assinei, e o oficial saiu sem olhar para trás. Fiquei me
perguntando se ele guardava todos os rostos das pessoas que visitava, ou
se conhecia o problema de cada uma delas. Olhei para o papel que
continha data e hora marcadas e tremi apenas ao imaginar que ele
pudesse estar lá. Não! Isso não ia acontecer. Ele era covarde demais e
com certeza ia continuar se escondendo. Guardei a intimação na bolsa,
junto com outros papéis que tinha que manter comigo. Um deles
atestava as medidas protetivas que conquistara dias depois de ter
registrado o boletim de ocorrência. Lembrei da reação que tive assim
que li o documento. Sorri e depois chorei. Sorri porque era patético
imaginar que estava depositando toda a minha segurança em um pedaço
de papel, e chorei porque era apenas um pedaço de papel. Manter-se a
quinhentos metros de distância. Não entrar em contato comigo ou com
qualquer pessoa da minha família. Não frequentar os mesmos locais que eu.
Manter-se afastado da nossa casa. Muito bonito na teoria, mas
completamente inútil para quem vivia com um medo constante, assim
como eu.
Ainda assim, confiava na justiça porque era tudo que me restava.
Se não acreditasse que ela poderia fazer algo por mim, minha única
opção seria desistir.
Meus minutos de descanso acabaram e voltei a trabalhar, ainda
pensando que, em três semanas, as feridas que estavam começando a
cicatrizar seriam expostas diante de pessoas que nunca vira na vida. Um
juiz, um promotor, um advogado… Gente que sequer sabia quem eu
era, ou o que eu sentia. Gente que lidava todos os dias com pessoas tão
machucadas quanto eu e minha filha.
Olhei para a sala à minha volta e me senti sufocada. Hoje era pior
ainda. Fazia dois dias que recebera a intimação e não conseguia parar de
pensar na audiência.
O lugar em que estávamos era o mais aconchegante possível, e
mesmo assim eu sentia como se enfrentasse o frio mais terrível cada vez
que atravessava a porta. Sabia com exatidão o que as cores, os quadros e
os desenhos escondiam. Se essas paredes sentissem toda a dor das pessoas
que passavam por ali, estariam sangrando.
Minha filha se mexeu em meus braços e soube que sua vontade
também era de não estar ali, mas esse era o nosso ritual havia dois meses.
Duas vezes por semana, trazia Malu para conversar com a psicóloga
indicada pelo juiz, na esperança de que ela se abrisse e resolvesse voltar a
falar.
Todos os dias, quando abria os olhos, tinha esperança de que a
minha menina pudesse sair do casulo em que se escondera. Todos os
dias, quando ela sorria para mim, eu me imaginava ouvindo sua doce
voz me chamar de mamãe. Porém, tudo que recebia era um punhado de
frustração. Mas em dias como aqueles, minhas expectativas dobravam.
Quando íamos ao Creas,* ignorava o que aquelas paredes escondiam e
me concentrava na esperança que insistia em permanecer em meu peito.
— Maria Luiza.
Respirei fundo quando o nome da minha filha foi chamado e me
obriguei a sorrir para a psicóloga quando ela abriu a porta para
passarmos, porque era uma tristeza dolorida ter que estar ali.
Sonhava todos os dias com o fim desse pesadelo.
As duas horas seguintes foram repletas de nada. Comecei a me
desesperar quando saí mais uma vez do consultório sem que Malu
dissesse uma palavra. Todos os esforços terminavam com lágrimas da
minha filha.
Mais um dia se passara e tudo que conseguia pensar era que eu
mesma destruíra a minha vida.
Em dias assim, tinha certeza de que Dennis me preparara para
aquele momento. Para aquele sofrimento. A sensação era de que ainda
podia ouvir suas palavras estalando em meus ouvidos e matando cada vez
mais a Larissa dentro de mim. Estar sozinha e completamente perdida
não aconteceu por acaso. Tudo isso era fruto das várias escolhas que fora
obrigada a fazer ao longo dos anos. Os amigos que deixara, a família que
nunca mais vira, os lugares que parara de frequentar, as ordens que
aceitara. Caminhos que me trouxeram à solidão que vivia agora.
É engraçado como as pessoas julgam relacionamentos como o que
tive. Para elas, terminar seria a solução mágica. Depois disso, tudo
ficaria bem, não é mesmo? Acontece que elas não sabem que somos
envenenadas durante anos. Pequenas doses de abusos e agressões que
demoram para fazer efeito, mas que nos matam para o mundo. Depois
do fim, ainda temos que lidar com nossa mente fragmentada e um
coração doente. Aprendemos a viver cercadas por medo, insegurança,
desconfiança e todos os outros sentimentos negativos que existem. Não
nos recuperamos depois do fim. A verdade é que continuamos, por um
bom tempo, reféns de todo o terror que um dia vivemos.
E o que mais dói é saber que acabamos aprendendo a conviver
com tudo isso, que passa a ser parte do nosso dia a dia. E tinha absoluta
certeza de que, mesmo longe, ele sabia que ainda controlava a minha
vida como se fosse sua.
Diego
Sofie chegara havia dois dias, mas minha agenda de trabalho só
permitiu que nos encontrássemos hoje. Ela também tinha que dar
atenção para a sua família, já que fazia um bom tempo que não os via.
No entanto, nos falamos por mensagens e ela me ligou de manhã
pedindo esse encontro. Claro que aceitei. Um lado meu passou o dia
ansiando por isso, na esperança de ter minhas memórias de volta ao revê-
la. Porém, a outra parte só conseguia imaginar que eu a magoaria. Não
sabia bem o porquê, afinal passamos meses trocando mensagens, mas,
mesmo assim, sentia que ela esperava muito mais de mim do que eu
podia oferecer.
Cheguei adiantado por motivos óbvios: viera direto do fórum.
Era isso, ou nada. Fui levado até a mesa que havia reservado e pedi uma
taça de vinho enquanto aguardava o horário combinado. O local tinha
um ar sofisticado e, ao mesmo tempo, aconchegante. O som do piano
era uma atração à parte. Fazia muito tempo que não me permitia uma
noite como aquela. Fora Manu quem me indicara, e imediatamente
peguei o celular para agradecê-la, porque dessa vez ela realmente tinha
acertado.
Boa noite, minha médica preferida. Obrigado pela dica do restaurante.
Ela respondeu em seguida: A garota já chegou?
Sorri por sua falta de gentileza de sequer me cumprimentar.
Boa noite pra você também. Estou bem, obrigado. Está aprendendo a
ser grossa com seu homem?
Dereck não é grosso, ele é direto. São coisas diferentes. Além do mais,
não sei se essa garota merece ser levada em um lugar tão bacana.
Recostei na cadeira ainda sorrindo e larguei o celular sobre a mesa
para receber minha bebida. O garçom acenou e saiu logo em seguida,
então voltei para meu diálogo com Manuela.
Você nem a conhece.
Justamente por isso. Já faz quase quatro anos do seu acidente e essa
garota só esteve aqui uma vez. Essa história de “te amo e vou lutar pelo seu
amor” não cola pra mim. Ela não te merece.
Depois do meu acidente, eu me apegara muito a Manuela. Ela
havia sido muito mais que uma médica, e nossa relação acabou se
estendendo para fora do hospital. Por um tempo, achei que engataríamos
um romance, mas então acabamos percebendo que nossa amizade valia
muito mais do que a possibilidade de nos magoarmos caso a relação não
desse certo. Seguimos como amigos e Manu agora era a mulher de um
astro do rock. Dereck Mayer e minha Manuela… Quem diria? Eu não.
Ainda mais porque ele era ex-namorado da minha cunhada e o terror da
vida do Alexandre. Sabia que meu irmão tentava disfarçar, mas toda vez
que ele e Dereck estavam no mesmo ambiente, Alê se retraía. Óbvio que
ele sabia que não havia a mínima chance de alguma coisa acontecer.
Clara era completamente apaixonada por meu irmão, e eu acompanhei
de perto toda a luta pessoal do Dereck para conquistar Manu e provar
seu amor por ela. Mesmo assim, achava que Alexandre nunca iria
esquecer que foi para os braços do Dereck que Clara correu quando as
coisas ficaram difíceis. Esse era um lado do Alexandre que nunca iria
mudar.
Digitei minha resposta.
Você tem que parar de me tratar como se eu fosse alguém perfeito.
A réplica veio segundos depois.
Você não é perfeito, mas é quase. E vem cá… já contou para a Clara?
Não. Pelo simples fato de que basta você enchendo meu saco.
Imediatamente me arrependi do que escrevi e emendei outra
mensagem.
Desculpa.
Viu? Quase perfeito. Por favor, não deixa essa garota te magoar. Você é
importante pra mim. Volto em algumas semanas. Dereck vai fazer uma pausa
depois do show em Londres.
Estava pronto para responder quando alguém chamou minha
atenção. Impossível ser diferente, todas as pessoas que Sofie encontrava
pelo caminho também eram atraídas por ela. Devolvi o celular para a
mesa sem que meus olhos deixassem os seus. Sofie sorriu assim que me
viu e meu coração disparou, enquanto uma onda de sentimentos me
atingia. A sensação era de voltar para anos atrás. Lembrei de quando a
vira pela primeira vez. Pelo menos essa lembrança não se fora. Um amigo
em comum nos apresentara em uma festa. Depois de eu beber um
pouco demais, Sofie me levara para casa. Uma atitude que claramente
me surpreendera. Passamos uma semana conversando e só ficamos depois
desse tempo. O primeiro beijo… Eu havia levado Sofie a um show e,
antes mesmo da primeira música tocar, meus lábios estavam grudados
nos dela. Um beijo quente e envolvente que me fizera ficar apaixonado
pela ruiva mais linda que havia conhecido.
Porra, como tinha podido esquecer de tanta coisa?!
Não tive tempo de me sentir frustrado, pois Sofie estava cada vez
mais perto. O sorriso se alargou e, quando ela estava quase na minha
frente, percebi os olhos marejados. Agindo por instinto, apenas abri os
braços e a recebi com um abraço cheio de saudade. Ela me apertou com
força e ouvi seu choro baixinho.
— Está tudo bem, linda. Já passou. Por favor, não chora — pedi,
na esperança de acalmá-la. Sofie não me soltava e agora algumas pessoas
começavam a nos olhar com curiosidade.
Deixei minha ex-namorada desafogar suas emoções e, quando ela
se afastou, me encarou com uma expressão saudosa que me deixou
rendido. Levou as mãos à boca, enquanto seus olhos faziam uma
varredura em mim, de cima a baixo.
— Tô me sentindo um frango de padaria — brinquei.
— Você não mudou nada.
— É pra ser um elogio?
— Senti tanto a sua falta, Di.
As palavras de Manu voltaram à minha mente assim que Sofie
terminou de falar. Quatro anos… Será que ela realmente sentira?
— Você também tá linda — respondi, dispensando as dúvidas
que se formavam na minha cabeça. — Vem… — Segurei sua mão,
conduzindo-a até a mesa e soltando apenas para puxar a cadeira para ela.
— E o mesmo cavaleiro de sempre — sussurrou.
Assim que sentei, seus olhos castanhos me buscaram e pude ver
com clareza a tristeza que passou por eles.
Ficamos em silêncio, apenas nos olhando, ambos com medo de
dar o primeiro passo.
Havia certo constrangimento entre nós, e considerei isso normal.
Afinal, a situação não era tão simples. Sofie atravessara o continente para
vir atrás de mim, e eu não sabia se isso era uma boa ideia. Aliás, não
sabia se eu valia todo esse esforço. Essa mania das pessoas acharem que
sou perfeito às vezes me irrita.
— Esse lugar é lindo — elogiou. — Obrigada pelo convite.
Sorri em agradecimento.
— Achei o mesmo. Uma amiga me recomendou.
— Amiga? — perguntou, não escondendo certa decepção.
— Sim. Ela foi minha médica depois do acidente, mas está em
turnê com o marido. Ele é cantor.
— E você tem alguém?
— Não — fui sucinto.
— Ahhhh! Hmmm… — ela hesitou. — É bom saber que você
ainda não encontrou uma namorada. Fica um pouco mais fácil tentar.
— Sofie… — não sabia o que dizer depois da sua declaração. As
coisas estavam indo mais depressa do que eu esperava.
Ela estendeu o braço sobre a mesa e alcançou a minha mão.
— Por favor, Diego. Eu preciso de uma chance pra te contar tudo
que vivi nos últimos anos. Eu quero recomeçar a vida aqui no Brasil.
Tanta coisa aconteceu, e talvez ser modelo no exterior não tenha sido
uma boa decisão. Mas agora estou de volta, e eu quero muito retomar as
coisas com você. Te deixar foi a pior estupidez que já fiz.
Engoli em seco e demorei um pouco para pensar em algo para
dizer. Mas, antes que pudesse falar qualquer coisa, o garçom se
aproximou. Fiz um gesto para que ele parasse, e então voltei minha
atenção para Sofie. Lágrimas rolavam por sua face, e o desespero
evidente em sua voz partiu meu coração. Respirei fundo, analisando seu
rosto, todas as lembranças que guardara dela voltando. Quando estava
pronto para falar, virei sua mão para cima, meu indicador fazendo
carinhos circulares em sua palma. Sorri, ainda de cabeça baixa,
encarando as linhas de sua mão, e depois mirei o fundo dos seus olhos.
— Uma coisa de cada vez, Sofi. — Ela sorriu quando a chamei
pelo apelido. — Temos todo o tempo do mundo para conversar. A
gente vai jantar, tomar um bom vinho, você vai me contar sobre as suas
viagens, sua vida e, com calma, vamos nos conhecer de novo. Tudo bem
assim?
Ela assentiu e soltei sua mão para chamar o garçom, que ainda
estava parado, aguardando meu sinal. Fiz meu pedido, Sofie o dela. Um
pouco mais calma, ela começou a falar sobre sua chegada e também de
como a família a recebera. Expliquei sobre minha carreira, por que
decidira me tornar promotor, e então pedi desculpa por não conseguir
vê-la antes. Também falei sobre minha família, claro. E era impossível
não sorrir quando o assunto eram meus sobrinhos.
— Vitória é um doce, mas muito geniosa. Assim como a mãe.
— Alexandre também não tem uma personalidade muito fácil de
lidar, se lembro bem.
Levei a taça de vinho à boca e em seguida a depositei na mesa.
Sofie imitou o gesto enquanto me observava, coisa que faria durante
toda a noite.
— Você acha isso porque ainda não conheceu a Clara. Ela
realmente consegue derrubar meu irmão.
— Espero poder conhecê-la — respondeu, enquanto espetava de
maneira indelicada o salmão. Sua frase foi uma espécie de indireta para a
situação que enfrentávamos. Um pedido.
Não sabia bem como agir. Sentia muitas coisas, e tinha que
confessar que saudade era uma delas. O passado e o presente se
misturavam, dando um nó em minha mente. Ela era linda, bem-
humorada e inteligente. Mesmo assim, achava que talvez tivesse mais
sentimentos por mim do que eu por ela. E isso talvez fosse um grande
problema.
Estava na hora de abrir o jogo.
— Sofi, por que você voltou?
Ouvi sua respiração pesada antes de ela começar: — Primeiro eu
preciso que você entenda por que eu não voltei. — Recostei na cadeira,
dando-lhe total atenção. Ela estava nervosa, remexendo-se, olhos
inquietos, até que eles pararam em mim. — Eu tinha alguns contratos
horríveis. Multas altíssimas. E acabei me afundando em dívidas. Não foi
a vida de glamour que sonhei. Quando você sofreu o acidente, decidi
que estava na hora de deixar aquela vida para trás. Não suportei ver você
passando por tudo aquilo. Me matou a culpa de ter te deixado pra
perseguir um sonho que no fim acabou se tornando um pesadelo. Sim,
ainda posso me considerar uma modelo de sucesso, mas por trás disso
existiram anos em que estive mergulhada em uma tristeza que achei que
não seria capaz de suportar. Depois de te ver naquela cama, voltei pro
Japão e rompi meu contrato. O que posso dizer é que só agora consegui
pagar a multa imposta por eles. Todos os trabalhos que consegui, cada
desfile, fotos, eventos… tudo que fiz foi para voltar pro Brasil. Voltar
pra você.
Meu coração acelerou com suas confissões, e segurei sua mão
novamente, em um gesto protetor. Não acreditava que ela passara por
tudo aquilo sozinha.
— Por que você não me procurou? Ou sua família? Eu te
ajudaria.
— Vergonha. Não queria admitir que tinha errado nas minhas
escolhas, e que por causa delas havia perdido você.
— Sofi…
— Diego — ela me interrompeu —, eu nunca deixei de te amar.
Tudo que fiz nos últimos anos foi pensar em você. Cada hora, cada
minuto do meu dia. Eu dormia pensando em você e, quando acordava,
você era a primeira pessoa que vinha em meus pensamentos. No início,
achei que seria mais fácil manter distância. Estava focada no que queria
conquistar lá fora. Mas depois vieram os erros, e quando soube que você
havia perdido a memória, fiquei com muito medo de ter esquecido de
mim. Eu suportaria qualquer coisa, menos não fazer mais parte da sua
vida. Então, quando você me procurou, eu sabia que tinha que fazer
alguma coisa ou te perderia para sempre. — Ela fez uma pausa,
retomando o fôlego. — Tudo que te peço é só mais uma chance. Sinto
tanta a sua falta que dói.
Sentia como se tivesse sido bombardeado. Muitas palavras que
precisavam ser absorvidas, mas só conseguia prestar atenção nas lágrimas
que rolavam pela face da garota à minha frente. Apertei os dedos sobre os
dela. As palavras já estavam em minha garganta, prontas para sair, mas,
quando Sofie me encarou, os olhos tão esperançosos, simplesmente não
consegui dizer a ela que nossa história ficara no passado. Ela enfrentara
tantas coisas para estar ali, que eu começava a considerar o seu pedido.
Não queria magoá-la. Tudo que menos queria era carregar a culpa por
partir o coração de alguém.
Mesmo não sendo o que meu coração mandava, acabei cedendo
ao pedido.
— Vamos começar como amigos e ver como as coisas evoluem.
Não estava preparado para a sua chegada, e um relacionamento não se
desenvolve assim, do dia para a noite. Sei que o que tivemos foi
especial, mas nós dois vivemos muitas coisas desde então. Também sei
que meu coração ainda reconhece você, mesmo diante de tantas lacunas
que o acidente deixou.
Ela deu um sorriso doce e seus olhos brilharam com as minhas
palavras. Nossas mãos ainda estavam envolvidas uma na outra, e o toque,
acima de todas as outras coisas, era íntimo e reconfortante. Sofie chegou
a soltar um suspiro de alívio antes de me responder: — É tudo que mais
quero. Voltar a ser sua amiga e de novo ter um espaço especial no seu
coração. Vou fazer de tudo pra te reconquistar.
Depois do constrangimento inicial, o jantar transcorreu de forma
mais tranquila. Nos divertimos relembrando coisas do passado. Notei
que Sofie fazia muito isto: trazer à tona pequenas lembranças de nós
dois. Algumas eu recordava, outras me esforçava para lembrar e me sentia
frustrado quando não conseguia.
Quando o jantar terminou, ficamos do lado de fora do restaurante
aguardando um táxi. A noite estava bonita, apesar de fria e com um
pouco de vento, o que não impediu de apreciarmos um céu estrelado.
Ficamos olhando para ele por um tempo, buscando naqueles pontos de
luz coragem para dizer algo ou, simplesmente, para não dizer.
— Continua morando no mesmo lugar? — ela questionou,
chamando minha atenção.
— Não. Mudei há um ano. Mas não fica tão longe do antigo
apartamento.
— Adorava te ver cozinhar.
— Hoje não tenho muito tempo, mas de vez em quando invento
algumas coisas.
— Isso é um convite? — Ela ergueu uma sobrancelha.
Alcancei seu rosto e toquei a ponta do seu pequeno nariz.
— Comporte-se, mocinha.
Sofie era alta, e começava a me recordar de como era fissurado em
suas sardas. Ela tinha várias salpicando o rosto, e isso, junto com o
cabelo cor de fogo, resultava em uma beleza incomum.
Nos encaramos por alguns longos segundos. Não sabia por quê,
mas não conseguia me afastar dela. Continuei tão próximo do seu corpo
que podia sentir seu cheiro.
— Esqueci como o tempo pode mudar rápido por aqui — disse
ela, quando uma rajada de ar frio passou por nós.
Retirei meu paletó e pus sobre ela, deixando minhas mãos
pesarem sobre seus ombros. Quase cobriu todo seu bonito vestido, que
abraçava o corpo e ia até os joelhos. Meus olhos passearam por sua nuca,
observando seu pescoço nu. Respirei fundo algumas vezes e tive certeza
de que ela sentira o ar em sua pele, pois se arrepiou.
Caramba, o que estou fazendo?
Me afastei e Sofie suspirou alto.
Ela abaixou a cabeça, ajeitando a roupa, e me lançou um olhar
quente e cheio de desejo. Enfiei as mãos no bolso, sem saber o que fazer
depois das minhas atitudes, e desviei o olhar. Temia por esse momento,
pois não sabia como lidar com a despedida.
— Você usa o mesmo perfume de antes.
Voltei a encará-la.
— Não sei muito bem quando comecei a usar, mas não abro
mão.
Sorri, mas ela não fez o mesmo. Pelo contrário, seus olhos ficaram
cheios de lágrimas.
— Te dei no dia dos namorados.
— Sofie…
A frase ficou pela metade quando ela colidiu com a boca na
minha. Pego de surpresa, demorei alguns segundos para reagir, meu
corpo ainda estático pelo beijo inesperado. Mas assim que consegui
sentir seus lábios macios, soube bem o que fazer. Passei um braço por
dentro do paletó e pousei a mão na base da coluna. A outra mão foi para
o rosto, segurando-o enquanto assumia o controle do momento.
Movimentei contra sua boca com vontade. O tipo de beijo que envolvia
tudo. Ela mordiscava meu lábio inferior, fazendo com que uma onda de
calor fosse enviada ao meu estômago. Deslizei a língua para dentro de
sua boca, e Sofie gemeu contra meus lábios. Suas mãos seguravam com
força meu pescoço, como que para me impedir de me soltar. Envolvi sua
cintura com os dedos, meu polegar massageando sua pele por cima do
tecido. Não podia dizer que não me sentia atraído por ela. Merda! Sofie
era uma das mulheres mais lindas que já havia visto. Seu rosto
transbordava doçura ao mesmo tempo que seus gemidos eram um
convite ao pecado. Estava muito excitado. Tão excitado que não me
importei com o fato de que estávamos nos agarrando quase no meio da
rua.
— Meu Deus! — gemi ofegante quando nos afastamos, mas não
por completo. Encostei minha testa na dela, tentando controlar a
respiração e a ereção, que pulsava descontrolada. Seu cheiro estava ainda
mais forte, e parecia se impregnar em mim de tal forma que não sentia
mais nada a não ser o seu perfume.
— Senti tanta falta disso. — Sofie deslizou o nariz pela minha
pele, traçando meu rosto e chegando ao pescoço. O corpo colado ao
meu, encaixado em mim. — Seu cheiro, o gosto maravilhoso da sua
boca, a maneira como fica ofegante quando está excitado. Ainda me
lembro de como seus olhos fecham quando você está gozando. Nunca
esqueci como é delicioso te ter dentro de mim. Se eu fechar os olhos,
posso sentir o peso do seu corpo sobre o meu, seus lábios em torno dos
meus seios.
Caralho!
Estava com as mãos em sua cintura, e meus dedos afundaram em
sua pele. Mantive os olhos fechados enquanto ela falava, buscando
controle, tentando manter as coisas devagar, mas estava sendo mais difícil
do que pensara.
Muito mais difícil.
— Posso te provar que ainda consigo te enlouquecer —
murmurou em meu ouvido, antes de prender a ponta da minha orelha
entre os dentes.
Não tinha dúvidas!
Foi a cartada final, e a certeza de que eu ia perder a porra do meu
juízo. Eu me afastei mais uma vez, com dois passos para trás, e vi a
decepção brilhar em seus olhos.
— Sei que consegue, mas também sei que você quer mais de
mim. Muito mais do que ir pro meu apartamento, ou uma noite só. E
pra isso precisamos ir com calma.
— Desculpa — pediu, envergonhada.
— Não peça desculpa. Eu adorei te beijar. Seria louco se não
tivesse gostado.
Toquei seu rosto, acariciando sua bochecha, e Sofie se
desmanchou ao meu toque.
— Acho que eu preciso ir — disse, quando seu táxi estacionou ao
nosso lado. — Obrigada pela noite maravilhosa.
Beijei seu rosto com delicadeza, deixando a boca tocar levemente
o canto dos seus lábios.
— Obrigado pela companhia.
Abri a porta do carro e ela entrou, sorrindo com meu gesto.
— O mesmo Diego — murmurou, antes de eu fechar a porta e o
carro ganhar a rua.
Larissa
As semanas passaram e o dia que temia finalmente chegou. Estava
sentada em uma das salas do fórum, esperando o julgamento que
decidiria o destino do homem que um dia amara, mas que tornara
minha vida um inferno.
Estava sozinha e olhava fixamente para um cartaz pendurado na
parede. Queria desviar o olhar, buscar outro ponto que segurasse minha
ansiedade, mas não conseguia. A imagem no pedaço de papel me
machucava. Era como se fosse eu naquela parede. Uma mulher com um
hematoma no rosto e a boca sangrando. Havia uma mensagem pedindo
para que as mulheres não se calassem. Sua boca estava tapada com uma
espécie de mordaça, e os olhos esbugalhados encaravam o que eu
imaginava ser seu pesadelo particular.
Eu tivera o meu.
O problema do abuso doméstico era o amor. Engraçado chegar a
essa conclusão, pois ele deveria ser a solução. Mas não era. Não quando
você acreditava que o amor podia tudo. Que as pessoas mudavam em
nome dele e que qualquer ferida poderia ser curada quando se amava. A
verdade era que a realidade estava bem distante desse conto de fadas.
Você podia mudar o caminho que desejava seguir, mas não podia mudar
o que estava em seu coração. As raízes de que você era feito. O amor
podia te guiar, sim, apontar os erros, mostrar suas escolhas, mas era
apenas isso quando não havia coragem. Ele te estendia a mão, mas era
inútil quando você lhe dava as costas.
Eu acreditara com força no amor, e fora esse sentimento que me
trouxera até ali.
Continuei encarando o cartaz e me perguntando se a modelo que
fizera a foto conseguira sentir pelo menos uma fração da dor que sua
imagem carregava. Era dolorido saber que algumas pessoas se pintavam
para mostrar algo que estava tatuado em nossa alma.
Eu não quero chorar. Pensei, assim que meus olhos arderam e
minha garganta se fechou. Eu não posso chorar.
Uma movimentação chamou minha atenção e olhei para a porta
de entrada, por onde passava uma das minhas antigas vizinhas. Ela sorriu
calorosa assim que me viu, e caminhou até mim. Levantei e ela me
abraçou antes de beijar meu rosto.
— A justiça será feita, menina. O que o monstro do Dennis fez
não vai ficar impune.
— Obrigada por tudo — agradeci, e ela juntou minhas mãos
entre as suas e deu dois tapinhas para me confortar.
Continuei olhando para ela, seu semblante preocupado em meio
às rugas que se formavam na testa. O cabelo grisalho preso em um coque
me trazia lembranças. No mesmo instante, minha mãe surgiu em minha
mente, e meu peito ardeu de saudade. Não a via havia algum tempo.
Evitava contato com meus pais pelo simples fato de que eles não podiam
fazer muito por mim, já que tinham seus próprios problemas. Não ter
tido a aprovação deles quando decidira me casar também me impediu de
procurá-los quando precisei. Não queria desistir e voltar para casa
carregando um atestado de fracasso na bolsa. Quando saí de casa para
morar com Dennis, aos dezessete anos, fiz com a mesma coragem que
me movia hoje.
— Larissa Marques.
Minha mão ainda era sustentada por alguém que eu podia dizer
que salvara a minha vida. Fora a dona Vânia que chamara a polícia ao
ouvir meus gritos de socorro. E era ela que me acalentava quando meu
nome ecoou pelo fórum.
— Que Deus esteja com você.
Não respondi.
Até a fé Dennis tirara de mim.
A cada passo que dava, sentia como se pedaços de mim ficassem
para trás.
A Larissa que amava ler.
A que adorava dançar.
A Larissa que sonhava.
A que tinha amigos.
A Larissa que amava.
Todas elas ficaram pelo corredor enquanto me preparava para
enfrentar as consequências das minhas escolhas. Uma parte de mim ainda
queimava de culpa, mesmo sabendo que Dennis era o único responsável
pelas cicatrizes que carregava. O julgamento de Dennis não seria o fim
da minha dor. Pelo contrário, seria o dedo que reabriria a ferida em meu
coração.
Entrei na sala de cabeça baixa e meu corpo inteiro tremeu com a
energia que recebia do lugar. As lágrimas ameaçaram voltar e tive que
respirar fundo para evitar chorar mais uma vez. Eu já havia aprendido a
chorar em silêncio. A sofrer calada. E a gritar sem ser ouvida.
Alguém me indicou o lugar em que eu deveria sentar e senti como
se agisse no automático. Na minha cabeça, tudo que desejava era que
aquilo acabasse de uma vez por todas, para poder voltar para a minha
filha. Por sorte, Malu havia sido liberada desse tormento.
O juiz se apresentou e me pediu para dizer meu nome. Sua voz
era grossa, imponente, daquelas que mostravam autoridade pelo simples
dizer das palavras. Ainda de cabeça baixa, respondi e aguardei. Toda a
sala ficou em silêncio e me senti como um animal sendo observado no
zoológico. Era estranho demais ter pessoas decidindo a minha vida,
analisando se acreditavam em mim ou não e, o mais importante,
definindo meu futuro.
— Sra. Larissa, essa audiência será gravada e eu gostaria de pedir
que olhe para a câmera enquanto responde às perguntas.
Balancei a cabeça, fazendo que sim, e levantei os olhos, mas não
consegui olhar para o juiz. O azul que me recebeu esmagou de imediato
meu coração. Não poderia esquecer aqueles olhos e, assim que ele me
encarou de volta, sentime invadida, como se ele enxergasse dentro de
mim e despisse minha alma. Ele me olhou como na primeira vez, com
intensidade e confiança.
O cara do restaurante.
Fiquei confusa e incomodada. Mas não conseguia olhar para mais
nada, e era como se uma linha imaginária nos ligasse. Tudo que fiz foi
fitar seus olhos azuis enquanto tentava de todas as formas entender por
que, mais uma vez, ele me encarava daquela forma.
— Passo a palavra ao membro do Ministério Público. Dr.
Diego…
Ele sacudiu a cabeça depois de ouvir as palavras do juiz, e meu
queixo caiu alguns centímetros ao descobrir que era o promotor do meu
caso. Fora por isso que me encarara no restaurante. Só podia ser!
— Boa tarde, srta. Larissa. Sou o dr. Diego e gostaria de lhe fazer
algumas perguntas.
Respondi com um aceno de cabeça.
Então ele começou, fazendo várias perguntas simples: quantos
anos eu estivera casada, havia quanto tempo morava na cidade, por que
me divorciara e como era a relação com meu ex-marido. A cada palavra
que pronunciava, sua voz penetrava em meus ouvidos e me prendia a ele.
Falar era um sacrifício, e o nervosismo trancava minha garganta e
roubava meu ar. As coisas já estavam difíceis e ficaram ainda piores com
a presença daquele homem. Olhei para o juiz, encarei o promotor, e só
depois que ele acenou com a cabeça, para me incentivar, encontrei
coragem para relatar o calvário que vivera. Lembrei de todas as palavras
da psicóloga dizendo que não precisava ter medo de pôr para fora o que
sentia.
E foi isso que eu fiz.
— Dennis foi meu primeiro namorado e casamos quando eu
tinha dezessete anos. Nunca achei que ele seria capaz de me machucar
ou machucar minha filha. Acreditei no amor que ele dizia sentir por
mim e me escondi no medo de perdê-lo. Fazer suas vontades estava no
topo da minha lista de prioridades, mas com o tempo percebi que nada
que eu fazia era suficiente para um homem como ele.
— Como ele? — questionou o promotor.
— Bonito, inteligente, de família tradicional e bem-sucedido em
tudo que fazia. Eu não era boa o bastante.
Um sorriso despontou em meus lábios, e tive que segurá-lo para
não sucumbir ao sarcasmo que tomara conta dos meus dias.
O homem sentado do lado direito do juiz abriu uma pasta e
folheou algumas páginas antes de me encarar novamente.
— Foi a primeira vez que ele te agrediu?
Engoli em seco.
— Não!
— Quando foi?
Demorei um tempo para assimilar o que ele perguntava, e mais
ainda tentando recordar exatamente quando fora a primeira vez que fora
agredida.
— Pode nos dizer, Larissa? — ele insistiu.
— O primeiro roxo surgiu aos dezesseis anos.
Fechei os olhos, recordando o primeiro degrau que desci com
destino ao inferno.
PASSADO
Ainda não acreditava que comprara o vestido dos meus sonhos. Ele era
de um tom de rosa tão delicado que me fazia suspirar. Um fino tecido
bordado com brilho cobria todo o vestido e, assim que o vesti, me senti uma
princesa. Ele reluzia o brilho estampado em meus olhos. Dei uma volta em
torno do meu próprio corpo enquanto sorria como uma boba.
— Lari, seu pai já tirou o carro.
— Estou indo — gritei de volta para minha mãe. Peguei uma
pequena bolsa que Janaína me emprestara e encontrei meus pais na sala.
Minha mãe repetiu pela décima vez toda a “cartilha” escrita para a
noite. Tantas recomendações que, se fosse seguir todas, podia trocar o vestido
por um hábito. Meus pais eram um casal de idade um pouco avançada.
Podia me considerar um verdadeiro milagre, já que todos os médicos haviam
dito que minha mãe não poderia ter filhos. Eu os amava muito por não terem
desistido, mas me sentia sufocada com tanta proteção. Praticamente vivia em
uma bolha. E esse era o motivo por não ter contado a eles sobre o Dennis.
Meu pai surtaria se soubesse que estava namorando.
O pensamento em Dennis me fez sorrir, uma onda de ansiedade me
atingindo em cheio.
Dei um beijo na minha mãe e conferi, a pedido do meu pai, se meu
documento estava na bolsa. Depois de mostrar a ele minha identidade, saímos
com destino à escola. Era a festa de formatura do ensino médio, e eu não via
a hora de chegar a minha.
No caminho, pensei no meu namorado. Seria a primeira vez que
ficaríamos juntos na frente de todos os nossos amigos, pois, até então, nosso
relacionamento se desenrolara às escondidas. Não me importara quando
Dennis propusera assim. Afinal, ele era o cara mais perfeito que já vira na
vida. Mas agora tudo seria diferente.
Despedi-me do meu pai quando chegamos, e ele me olhou com
intensidade antes de eu sair do carro.
— Temos muito orgulho de você. Não nos decepcione.
— Nunca, papai — disse, antes de lhe beijar a bochecha.
Respirei fundo assim que saí do carro. Tinha bastante gente e estava
muito animada, pois quase nunca ia a festas. Passei as mãos pelo vestido,
desfazendo qualquer dobrinha que pudesse ter ficado nele. Caminhei pelo
tapete vermelho que estenderam na entrada, um pouco deslumbrada com tudo
que via. A maioria dos formandos chegava com seus pares, e isso me trouxe
uma pontinha de frustração. Dennis poderia ter me esperado na porta, pelo
menos.
Cheguei, amor.
Enviei uma mensagem antes de entrar. Pronto. Agora ele sabia que eu
havia chegado.
Observei cada foto pendurada no hall de entrada e sorri para várias
delas. Comecei a escutar a música no interior do salão, e meu coração passou a
bater no mesmo ritmo que os sons que ouvia. Quando entrei, fui tomada por
uma alegria que me fez querer dar pulinhos. Só não dei porque já destoava
demais sendo a CDF da sala.
— Larissa. Larissa. — Virei na direção do chamado e vi Janaína e
Matheus se aproximando. — Ainda bem que você chegou. Estou entediada.
Esse povo parece estar morto. Ninguém dança.
Minha amiga estava linda em seu vestido preto… Como posso dizer?
Desenhado em seu corpo. Os saltos das sandálias eram quase o dobro dos
meus, e seu longo cabelo preto estava preso em uma trança lateral. Jana ficaria
linda até vestida de saco de arroz. Produzida, então, estava deslumbrante.
Assim como Matheus. Tive que prender a respiração por um segundo quando
o vi. Ele não usava terno, apenas camisa, uma gravata escura e calça social.
— Uau! — exclamei, o queixo se reerguendo de uma queda
catastrófica. — Jana fez um bom trabalho com você.
Seus olhos se prenderam aos meus, e a primeira reação que tive foi
desviar do seu olhar.
— Você também está linda, Lari.
— Você viu o Dennis? — perguntei a Janaína, mal dando atenção
para meu amigo.
— Aquele idiota… — Matheus bufou, mas eu o interrompi.
— Por favor. — Voltei a encará-lo. — Hoje, não, Matheus.
Ele fechou a cara imediatamente, sacudindo a cabeça de um lado para
o outro.
— Eu tentei avisar — resmungou antes de sair.
Olhei para Jana, que deu de ombros, mas logo seu semblante mudou e
ela sorriu, grudando em meu braço. Meus olhos buscaram Matheus. Por mais
que ele estivesse sendo um idiota, eu não queria perder sua amizade.
Janaína me levou para o meio da pista de dança. Nos juntamos a um
grupinho e começamos a dançar. Passei quase metade da noite verificando o
celular e olhando para todos os cantos do salão à procura do Dennis. Nenhum
sinal dele. Quando uma música mais romântica começou a tocar, me afastei
dos casais que tomavam conta da pista e fui em direção a um canto menos
barulhento para tentar fazer uma ligação. Meu coração se apertou dentro do
peito quando vi a hora. Ele estava muito atrasado. Comecei a me preocupar
que alguma coisa tivesse acontecido.
Caminhava de cabeça baixa quando trombei com algo duro. Olhei
para cima e vi Matheus parado na minha frente e me encarando com um
olhar triste.
— Podemos dançar essa música?
Ainda tinha o celular na mão, mas a voz do meu amigo soava tão
convidativa que não consegui recusar seu pedido. Guardei o aparelho na bolsa
e o segui. Ele sorriu para mim e fiz o mesmo quando seus dedos se
entrelaçaram aos meus e juntos voltamos para o centro da festa. Levantei o
braço direito para que ele pegasse minha mão, mas Matheus ignorou,
pousando as duas mãos na minha cintura. Deixei que ele fizesse aquilo,
mesmo sabendo que era um gesto muito íntimo para quem tinha um
namorado — ou para quem achava que tinha, já que praticamente fora
abandonada. A decepção que estava sentindo me fez jogar os braços no pescoço
de Matheus e deixar o rosto descansar em seu peito. Ele tinha um cheiro tão
bom e me segurava com tanta delicadeza que algumas lágrimas começaram a
rolar pelo meu rosto. Tentei secá-las antes que manchassem minha
maquiagem, mas Matheus percebeu e se afastou para me encarar. Seus lindos
olhos emanavam decepção.
— Aquele babaca não te merece, Lari. Eu só queria que você
entendesse isso.
— Você só diz isso porque ele namorou a sua ex.
Ele me olhou com espanto enquanto seu peito subia e descia com um
suspiro profundo.
— Foi ele quem te disse isso?
Dei de ombros, sem querer responder, mas confirmando.
— Lari… Lari… Você é tão ingênua, minha linda. — Matheus
segurou uma das minhas mãos e apertou sobre seu peito. — Queria poder te
contar tudo sem partir seu coração, pois sei que isso vai acontecer.
— Contar o quê?
Fomos interrompidos.
Antes que pudesse questionar sobre o que ele estava falando, me
surpreendi com uma voz que conhecia muito bem fazendo a mesma pergunta.
Empurrei Matheus e nos separamos rapidamente quando Dennis se pôs
na nossa frente. Ele olhou para mim e depois para o homem ao meu lado, que
ainda segurava minha mão.
— Que porra é essa, Larissa? — gritou Dennis.
Abri a boca, mas fechei quando escutei mais gritos.
— Você é um merda se acha que vai gritar com ela na minha frente.
— Cai, fora, porra! — Dennis gritou ainda mais alto, fazendo com
que as pessoas se aglomerassem à nossa volta. Meu rosto imediatamente
esquentou, tamanha a vergonha que sentia. Procurei por Janaína, mas não a
vi em nenhum lugar e tremi por ter que enfrentar a situação sozinha.
Ele estufou o peito e Matheus fez o mesmo ao me empurrar para o
lado, como se estivesse me defendendo. Precisava fazer alguma coisa. Era só
um mal-entendido. Soltei a mão do meu amigo e fiquei no meio dos dois,
meus olhos grudados no meu namorado.
— Não foi nada. A gente só estava dançando.
— Dançando? — Dennis me encarou com os olhos cheios de cólera. —
Esse filho da puta estava com as mãos na sua bunda.
— Nãããão! — foi a minha vez de gritar. — Foi só uma dança. Só
isso. Matheus é meu amigo.
— Amigo de merda.
— Você é um babaca — Matheus xingou.
— Que merda, Matheus — esbravejei. Ele não estava tornando as
coisas mais fáceis. Muito pelo contrário. Dennis estava prestes a partir para a
briga.
— Lari, escuta… — Meu amigo buscou meus olhos antes de
continuar. — Vem comigo? Por favor?
Não entendi a súplica em sua voz e tentei ignorar seus olhos, que
imploravam por uma resposta. Virei, olhando Dennis, e decidi ficar. Sacudi a
cabeça para Matheus e ele se afastou.
— Que se foda! — disse, antes de desaparecer, abrindo espaço entre a
multidão.
— Matheus…
As pessoas começaram a se afastar e, quando achei que tudo estava
resolvido, senti um forte aperto no braço, que me fez gemer de dor. Dennis me
arrastava em direção a um canto escuro.
— Eu vou cair — protestei, os saltos das sandálias me
desequilibrando, mas Dennis ignorou, bravo demais para escutar qualquer
coisa que eu dissesse.
Ele me pressionou contra a parede assim que chegamos ao destino que
ele escolhera. Soltou meu braço e suspirei aliviada, mas logo suas mãos estavam
no meu rosto, segurando forte, me obrigando a encará-lo.
— Você é minha, menina bonita?
Não consegui mover a cabeça sob suas fortes mãos, que me seguravam.
Ele cheirava a álcool.
— Diz Larissa. Fala que não estou perdendo meu tempo com você?
Diz que você não é como as outras meninas. Que nunca teria coragem de me
trair com aquele babaca.
— Ele é meu amigo. Só isso.
Dennis sorriu de uma forma esquisita.
— Não é mais — sentenciou, autoritário. — Se quiser ficar comigo,
vai se afastar dele.
Não podia acreditar no que ele me pedia. Meus olhos se arregalaram de
puro espanto. Tentei me mover, mas Dennis não deixou.
— Eu te quero, menina bonita. Mas você é só minha, entendeu?
Antes de responder, fui surpreendida por um beijo inesperado. Dennis
prendeu meu lábio inferior entre os dentes e, por um segundo, achei que o
gosto que sentia misturado ao álcool dos seus lábios era sangue. Ele me
mordeu com tanto desejo que não se deu conta da força que tinha. Depois
acariciou minha bochecha, me fazendo suspirar.
— Dennis, eu…
— Shhhhhhh… não precisa dizer nada, gatinha. Eu sei que você não
quer me perder. Sei que nunca mais fará isso comigo.
Apenas assenti.
Não continuei na festa, Dennis logo deu um jeito de me levar para
casa. Fiquei na esquina, para que meus pais não o vissem, e antes de me
deixar, ele me beijou novamente. Os beijos dele eram tão bons.
Entrei em casa com cuidado, para não acordar meus pais. Eles
achavam que eu ia voltar com a Janaína. Fui direto para o quarto dormir.
No dia seguinte, quando tirei a camisola, algo chamou minha
atenção. Havia uma mancha roxa, e tinha quase certeza de que era de
quando Dennis me puxara. Corri para o banheiro e passei base no braço, na
esperança de fazer a marca desaparecer. Lembrei das palavras do meu pai, sobre
não os decepcionar.
Se meus pais vissem aquilo, eu estaria em apuros.
— Então ele te agrediu pela primeira vez quando você tinha
dezesseis anos? — Agora era o advogado de Dennis que fazia as
perguntas. — Por que continuou o namoro? Por que não se afastou?
Eu o encarei sem espanto. Aquela era uma pergunta comum. Na
verdade, deveria ser o contrário: por que ele me agrediu? Por que
continuou me machucando?
Ignorei por completo o advogado, procurando a única pessoa que
ainda conseguia me segurar naquela realidade. Olhei para o promotor
antes de responder: — Porque achei que era amor.
9
Diego
Aquele era um dos julgamentos mais difíceis que enfrentara desde
que me tornara promotor. Claro que me empenhava em todos eles, dava
o máximo de mim. Mas, daquela vez, era diferente. Não conseguia
desviar os olhos da menina na minha frente. Podia ver seu sofrimento e
enxergar suas tristezas. Havia apenas algumas cicatrizes evidentes em seu
corpo, mas sentia que sua alma estava manchada, e seu coração,
dilacerado. Isso era o que mais me deixava puto. O desgraçado matara
sua alegria e apagara o brilho dos seus olhos. E fizera tudo isso usando o
amor como desculpa. Ficou bem claro em seu depoimento que, antes da
agressão covarde que julgávamos, Larissa fora submetida a um intenso e
duradouro abuso psicológico. Por anos, ela sucumbira ao poder de outra
pessoa, deixando de lado seus planos, sonhos e desejos, apenas para
satisfazer alguém que se aproveitara do amor em seu coração.
Isso se chamava crueldade. Ele matara sua alma usando o amor.
Larissa terminou de falar, com os olhos sempre procurando os
meus, como se isso a deixasse mais confortável. Retribuí, desejando que
fosse verdade. Que eu pudesse de alguma forma acalentar seu coração.
Ela contou, munida de uma coragem inacreditável, detalhes de tudo que
acontecera. Relatou com lágrimas nos olhos os detalhes do sofrimento de
sua filha nas mãos do homem que devia protegê-la. E cada palavra em
sua boca queimou em meu coração.
Assim que seu depoimento se encerrou, ela levantou em direção à
porta. Antes de sair, eu sorri, o coração pulando dentro do peito,
quando vi um brilho tímido surgir em seus olhos.
Ainda havia esperança.
Concentrei-me nos outros depoimentos. Testemunhas,
contradições, fatos inquestionáveis, um advogado tentando justificar o
injustificável e as alegações finais.
— Não há nem o que considerar. Agressão covarde contra uma
mulher e uma criança. Requintes de crueldade. A violência doméstica
não está só caracterizada no crime apurado aqui, mas também em toda a
narrativa da vítima. Anos sofrendo as agressões do seu algoz. Seus relatos
verossímeis não deixam espaço para dúvidas. Além disso, temos a fuga
do réu. Não caracteriza culpabilidade, mas demonstra sua personalidade
covarde. É um retrocesso qualquer decisão que não seja a condenação.
Tirá-lo do convívio social é um serviço essencial para a sociedade.
Respirei fundo quando terminei de falar. Estava exausto
psicologicamente. Tivera que me manter firme no restante do
julgamento, quando tudo que queria era saber se ela estava bem. Uma
vontade incontrolável que surgira do nada e estava me deixando cada vez
mais confuso. Mal ouvia o que o advogado de defesa expunha,
observando o processo em minha mesa. Abri na página exata que
continha uma foto da vítima. Deus! Era dolorido pensar nela assim,
como uma peça no jogo doentio que alguém criara. Observei
atentamente seus olhos, as feridas ainda tão aparentes, e o brilho apagado
de um olhar que só deveria refletir alegria.
Quando a voz do juiz se elevou, fechei a pasta e voltei a atenção
para sua decisão. Estava um pouco nervoso, mas muito confiante em
mais uma vitória. O protocolo da decisão foi seguido, e fiquei muito
ansioso para ouvir a parte mais importante, o motivo de estarmos ali.
— Condenado…
Comemorei em silêncio quando ouvi a palavra ressoar pela sala.
Talvez não fosse o suficiente para restaurar a vida daquela menina, mas
com certeza a condenação do agressor seria o primeiro degrau para que
ela voltasse a ter fé. Agora, tudo que precisávamos fazer era esperar que
Dennis se entregasse ou que a polícia o encontrasse, fosse lá onde
estivesse escondido. Só assim conseguiríamos devolver um pouco da paz
que Larissa perdera e, talvez, a esperança de um futuro melhor.
Deixei a sala de audiência com a sensação de dever cumprido,
mesmo que não tivesse visto o desgraçado saindo dali algemado. Eu
acreditava na justiça, e sabia que mais cedo ou mais tarde ela chegaria
para Dennis.
Segui para o estacionamento correndo, pois alguns pingos de
chuva desabavam de um céu escuro. Joguei a pasta no banco de trás do
carro assim que cheguei até ele. Era a última audiência do dia, por isso,
assim que sentei, retirei a gravata e o paletó, abrindo também os
primeiros botões da camisa. Ainda era cedo, por incrível que parecesse.
Em geral, nunca saía do fórum antes das sete da noite. Pelo menos teria
tempo de passar em casa antes do jantar na casa do meu irmão. Clara
daria a notícia a ele, e não via a hora de ver a reação do Alexandre
quando descobrisse que seria pai mais uma vez.
Porém, quando virei a esquina, meus olhos imediatamente se
fixaram no ponto de ônibus que ficava um pouco depois do fórum.
Era ela.
Em um ímpeto, parei o carro e abri a janela. A chuva já estava
mais forte e tinha certeza de que em minutos ela estaria encharcada.
Abaixei a cabeça para que pudesse me ver.
— Quer uma carona?
Larissa olhou de um lado para o outro, confirmando se eu estava
falando mesmo com ela. O vento soprou, levando alguns pingos de chuva
até seu rosto, e ela levou a mão à testa, afastando os fios de cabelo
molhados. Seus olhos me encararam assustados e, mesmo que ela
trouxesse uma doçura no olhar, ainda podia enxergar o medo no fundo
deles. Confiar talvez fosse a parte mais difícil para quem tivera parte do
seu mundo destruído.
— Não precisa, dr. Diego.
Não sei por que me senti diferente quando ela pronunciou meu
nome. Seus braços abraçaram o próprio corpo enquanto eu ainda estava
parado no mesmo lugar, à espera de que talvez ela mudasse de ideia.
Quando não me olhou mais, eu insisti, mesmo sabendo que era um
caminho que não deveria percorrer.
— Eu posso te deixar em algum ponto mais seguro, a chuva está
aumentando.
O que eu estava fazendo? Não sabia, mas era errado pra caralho!
Ela me olhou mais uma vez com um pouco de raiva, não se
importando nem um pouco com o fato de que estava começando a ficar
molhada. Seus olhos se semicerraram, buscando os meus com uma
intensidade inédita até então. Em todas as vezes em que eu a encarara,
ela sempre se escondera, baixando os olhos ou desviando o olhar. Mas
daquela vez não. Era como se quisesse capturar toda a minha atenção. E
acertou. Pois só tinha olhos para ela.
— Eu já disse que não precisa. Obrigada.
Engoli em seco.
Sua voz era autoritária e não restavam dúvidas de que ela me
queria longe. Seu agradecimento final foi apenas um protocolo bem-
educado para alguém que acabara de me ensinar qual era o meu lugar.
Apenas assenti, envergonhado, pois sabia bem que minha conduta não
era a mais adequada. Muito longe disso. Ela era uma garota marcada por
um homem, e eu era um desconhecido oferecendo uma carona.
Olha, Diego, mais burro, impossível.
Fechei o vidro no mesmo momento em que o ônibus estacionou
atrás do meu carro. Larissa correu até ele e entrou. Observei o veículo
pelo retrovisor, apenas para ter certeza de que ela sequer olhara para
mim.
Larissa
Fazia duas semanas desde o julgamento e ainda não recebera a
notícia da prisão do Dennis.
O final de semana chegou e com ele a expectativa do que fazer
com a folga do trabalho. Desde o acontecido e da fuga do Dennis,
evitava sair de casa para fazer coisas desnecessárias. Vivia uma rotina
muito bem elaborada, que não permitia erros ou acasos. Minha vida se
tornara um emaranhado de regras que eu mesma impusera a mim e à
minha filha. Engraçado, deveria ser ele a se esconder de mim, e não o
contrário. Afinal, eu tinha um papel dizendo que podia seguir minha
vida como se nada tivesse ocorrido. Mas não era o que acontecia. Era eu
que andava pelas ruas observando todos os rostos que passavam por mim.
Era eu que verificava portas e janelas pelo menos duas vezes além do
normal. Era eu que não tinha amigos… que não tinha vida social… que
não tinha sequer um futuro. E era por isso que, em dias como aquele,
me sentia suspensa em um mundo do qual parecia não mais fazer parte.
A sensação de não ter ideia do que fazer era aterrorizante.
Olhei para o lado oposto da cama e Malu ainda dormia agarrada
ao seu bicho de pelúcia favorito. Ela o segurava com força e eu apenas
observava minha filha em seu sono inocente, sabendo que em minutos
ela acordaria para o pesadelo que vivíamos. Desde a noite em que
chamara por mim, Malu não dissera mais nada. Tentei conversar com
ela pela manhã, mas foi em vão. Entretanto, o que acontecera não
deixava de ser uma centelha de esperança que voltava a se acender dentro
de mim. Sua voz estava lá. Minha filha ainda estava lá. Em algum lugar,
se protegendo. Não podia culpá-la por querer se isolar do mundo através
do silêncio. Eu mesma passara anos engolindo minhas próprias palavras.
Talvez ela tivesse aprendido isso comigo. Um mecanismo de defesa. Se
você não fala, não pode dizer nada de errado, não é mesmo?
Foi olhando para Malu que uma ideia surgiu, e por mais que fosse
uma péssima ideia, ignorei a luzinha de alerta que começava a piscar sem
parar na minha cabeça. Não podia mais deixar que ela sofresse as
consequências das minhas escolhas. Levantei devagar da cama, fui até a
mesinha de cabeceira e peguei o celular. Escrevi a mensagem, mas, ainda
insegura do que estava fazendo, hesitei em enviar. Foram longos
segundos ponderando prós e contras, mas quando meus olhos desviaram
para a cama de novo, apertei enviar com um sorriso no rosto.
Rezei para ser atendida e fiquei extremamente aliviada quando,
segundos depois, o bip da mensagem soou em meus ouvidos. Meu
sorriso se alargou e, no mesmo instante, fui até Malu. Passando as mãos
em suas costas e cabelos, eu a despertei com um beijo na testa.
Preguiçosa, ela abriu os olhos, me fitando com ternura. Era tão bom vê-
la acordar. Seus cabelos estavam bagunçados, formando quase um ninho
de passarinho no topo da cabeça. Ela se espreguiçou um pouco antes de
me dar meu sorriso de bom-dia. Um sorriso que transformava minhas
manhãs. A melhor injeção de ânimo que eu poderia receber. Quando
finalmente terminou de acordar, dei a notícia.
— Vamos passear?
Os olhos ficaram grandes demais em seu rosto infantil. Sabia que
ela estava surpresa com a minha pergunta. Ainda me encarou como se
analisasse se era realmente verdade o que eu estava dizendo. Então fez
um gesto, balançando a cabeça para cima e para baixo com rapidez.
Minha filha ficou de pé na cama e começou a pular e sacudir os braços,
sem largar seu fiel companheiro azul de orelhas compridas. Queria chorar
com a cena que assistia, mas decidi que era um dia de alegria e só por
hoje aquele desgraçado não ia arrancar nada de mim.
— Então vamos para o banho rápido porque a gente vai sair
depois do café da manhã.
Malu pulou da cama para o chão e, com passinhos rápidos,
atravessou o quarto a caminho do banheiro. Quase chegando à porta,
parou e me encarou. Levantou sua pelúcia e pude enxergar a pergunta em
seus olhos.
— Sim, meu amor, vamos levar o Nemo.
Ela voltou na mesma velocidade que tinha chegado ao banheiro e
se jogou em meu colo, em um abraço apertado. Deixou Nemo do meu
lado e enfim foi para o banho. Peguei o urso que ela ganhara da bisavó
quando ainda era bebê e sorri ao acariciar as orelhas. Urso com nome de
peixe. Esse era o mundo da minha menina.
Enquanto Malu tomava banho, organizei todas as coisas que
iríamos precisar na nossa pequena aventura. Preparei uma mochila com
todos os tipos de lanches que consegui fazer em casa. Tirei da geladeira
algo que fizera no dia anterior, imaginando que passaria mais um fim de
semana enfurnada dentro de casa. Brigadeiros. De vários tipos.
Recheados com frutas, castanhas e o tradicional. Arrumei-os em uma
vasilha e pus por baixo de todos os outros lanches. Sabia que se Malu a
achasse, não ia sobrar um para depois do almoço.
Quando terminei, fiquei impressionada com a naturalidade com
que preparara tudo. Eram momentos como aquele que me faziam
acreditar que talvez um dia tudo mudaria. E, para pessoas como eu,
acreditar no talvez já era um grande começo.
Depois que a Malu terminou de se arrumar, pus um desenho para
ela assistir e foi a minha vez de tomar banho. Não demorei muito. Mais
uma coisa que abrira mão: banhos demorados. De água caindo enquanto
simplesmente pensava na vida. Quando voltei para o quarto, Malu estava
no mesmo lugar, e isso me alegrou, pois significava que me obedecera
quando disse para não sair do quarto. Procurei uma roupa confortável e
acabei escolhendo um vestido amarelo que havia muito tempo não
usava. Era simples, mas meus olhos se encheram de lágrimas quando o
vesti e me analisei no espelho. Ele terminava cerca de cinco dedos acima
dos joelhos, e aquele era o motivo de tê-lo esquecido no fundo do
guarda-roupa.
Não era um vestido adequado.
— Mamãe está bonita? — perguntei, quando vi pelo espelho
Malu me encarando. Mais uma vez, ela acenou com a cabeça enquanto
me olhava com admiração. — Que tal dizer pra mamãe então?
Seus olhos baixaram até encarar o chão. Deixei o espelho e fui até
ela, apoiando o dedo em seu queixo, fazendo com que olhasse para
mim.
— Não precisa ficar assim, meu amor. Mamãe sabe. Tudo bem?
Ela parecia envergonhada, mas não deixou de me olhar. Fui
surpreendida por um abraço duplo. Malu e Nemo. Agarrei os dois em
meus braços, sentindo o melhor e mais sincero carinho que poderia
existir.
Diego
— Dr. Diego, o senhor tem visita — disse Sol, depois de bater
na porta.
Ergui uma sobrancelha, surpreso, porque não estava esperando
ninguém e não fazia ideia de quem poderia ser. Vendo meu espanto, Sol
pôs um sorriso no rosto e se adiantou.
— É a Manuela. Posso pedir pra ela entrar?
— Claro, por favor! — respondi, enquanto levantava para esperar
minha doutora.
Salvei depressa o documento que estava escrevendo e, quando
levantei a cabeça, vi Manu na porta. Fui até ela e a envolvi em um
abraço. Levantei-a do chão e ela sorriu com o meu gesto. Seu cheiro era
muito familiar, e só naquele momento me dei conta do quanto estava
com saudade.
— Quando vocês voltaram? — perguntei, assim que a soltei.
— Ontem à tarde. Ainda estou exausta, mas queria muito ver
meu melhor amigo.
— Amigo esse que você fingiu que não existia enquanto viajava
pelo mundo na cola daquele roqueiro metido a besta.
Ela fez beicinho e isso já foi suficiente para me ganhar.
Dei a volta na mesa e Manu sentou na minha frente.
— É óbvio que não esqueci de você. Até trouxe um presente.
Ela levantou uma sacola de papel e vi a bandeira da Inglaterra
estampada. Abri, um pouco ansioso, parecendo um menino diante de
um brinquedo, e sorri para a caneca que retirei lá de dentro. Era branca,
com vários pontos turísticos de Londres desenhados com finos traços
escuros. Girei-a entre os dedos e vi a bandeira da Inglaterra, uma roda-
gigante, o Big Ben, uma xícara de chá, um ônibus de turismo daqueles
de dois andares, a Tower Bridge — a mais famosa ponte de Londres —
e um guarda-chuva, além da frase “Deus salve a rainha”.
— Pra te fazer companhia durante as madrugadas. Enche esse
troço de café e vai conseguir ficar acordado por algumas horas. Já cansei
mesmo de falar que você precisa relaxar.
Minha amiga deu de ombros, tentando parecer brava, mas eu a
conhecia muito bem para saber que ela estava com tanta saudade quanto
eu.
— É perfeito! — provoquei, e ela revirou os olhos. — E, para o
seu governo, eu ando relaxando sim. Até fui a um jantar. — Terminei
de cutucar a onça com vara curta. — Sofie é uma boa pessoa. Você e a
Clara têm que parar com essa implicância gratuita.
— Não é implicância. — Remexeu-se na cadeira e pousou os
braços cruzados sobre a mesa. — Só não acredito nessa historinha pra
boi dormir que ela te contou. Ela poderia muito bem ter pedido ajuda
pra alguém e voltado pro Brasil. Já que te ama tanto assim — finalizou,
soando totalmente sarcástica.
— Não é assim que as coisas funcionam, Manu. Cada pessoa age
de uma forma diante do medo e do perigo, e nem todas encontram
força suficiente para admitir que não conseguirão sozinhas.
Sorri para ela, e Manu ficou tensa.
— Por que tá me olhando assim? — perguntou.
— Porque você sabe exatamente como pode ser difícil pra alguém
lidar com erros.
Ela desviou os olhos, triste, e comecei a me arrepender do que
dissera. Por anos ela guardara um segredo que poderia ter acabado com
sua carreira médica. Tudo em nome do amor.
— Você gosta dela?
Surpreso com a pergunta, levei um momento para responder.
— Ainda é cedo pra falar em sentimentos. Eu sei que fomos
felizes no passado, mas é complicado pensar no futuro. Mas ela é uma
garota ótima, que você vai adorar conhecer.
O sorriso no rosto de Manu se alargou e ela andou até mim.
Levantei, e ela parou em meus braços.
— Se você ficar feliz, eu também fico. É que… você é
importante demais pra mim, príncipe. Se essa garota te magoar, sou
capaz de ir atrás dela com um bisturi.
Gargalhei, pois sua ameaça era tão infantil quanto a carinha de
brava que fez assim que nos separamos. Ela piscou para mim, pegou sua
bolsa sobre a cadeira e, depois de jogá-la no ombro, saiu em direção à
porta.
— Preciso ir — despediu-se. — Vamos marcar logo um jantar,
então. Aproveita que estou dando uma chance da modelete me
convencer. Vou combinar tudo com a Clara e te aviso.
Balancei a cabeça de um lado para o outro, sem acreditar que ela
ainda tinha dado uma cartada final, mas caí na cadeira, derrotado,
quando Manu assoprou um beijo e saiu sorrindo, sem ao menos se
despedir.
Parte de mim ficou feliz que duas das pessoas mais importantes
para mim tivessem aceitado dar uma chance a Sofie. Mas a outra parte
questionava se eu realmente estava dando essa chance. Depois do jantar,
havia três semanas, eu e Sofie saíramos mais algumas vezes. Tínhamos
ido ao cinema, a um parque e ao teatro. Este último encontro, no
sábado, quase evoluíra para algo mais quando resolvi ir até o apartamento
onde ela estava morando. Se não fosse a chamada de emergência de um
amigo delegado, com certeza teríamos transado. Eu já estava sem camisa
e Sofie sem a parte de cima da lingerie. Enquanto era solicitado para
acompanhar um caso surreal, em que uma suspeita de furto havia dado à
luz dentro da sala provisória da delegacia, observava Sofie encobrir seus
lindos seios. Tinha que confessar que pensara duas vezes antes de deixá-
la, mas não havia escolha.
Os pensamentos sobre Sofie haviam se tornado bem constantes
nas duas últimas semanas, e me perguntava se não havia outra explicação
para minha repentina vontade de ficar com ela. No fundo eu sabia que
algo me incomodava, mas não me permitia sequer pensar na
possibilidade.
Respirando fundo, forcei meu corpo a levantar da cadeira e peguei
um dos processos para levar até a sala do Fabrício.
— Preciso que este inquérito volte com cota para a delegacia de
roubos e furtos.
— O que faltou dessa vez? — ele perguntou, me olhando por
cima do notebook.
— Não tem avaliação dos bens subtraídos.
— Merda! — exclamou. Dei as costas, saindo, mas sua voz me
deteve. — Verdade que uma grávida teve bebê na delegacia ontem? —
Recordando do chamado do delegado, balancei a cabeça, confirmando.
— Que loucura. E quem fez o parto?
— Dois investigadores. Fui lá pra ver as condições do lugar.
— Essa história foi parar no jornal hoje de manhã — comentou
Sol, depois de deixar uma pilha enorme de processos em cima da mesa
do meu assessor. — Audiências da semana.
Fabrício levou as mãos à cabeça, e Sol sorriu com seu desespero.
— Ainda quer ser promotor? — perguntei, apontando para o
amontoado de papel que quase não me deixava enxergá-lo.
Ele se inclinou, desviando-se do trabalho, e me encarou.
— Acho que vou pedir exílio no escritório do dr. Ferraz.
— Sinto lhe dizer, mas meu irmão te faria trabalhar ainda mais
— disse, e ele sorriu.
Arqueei uma sobrancelha assim que vi minha caneta sobre sua
mesa. Misteriosamente, ela sempre desaparecia da minha sala, e, mais
misteriosamente ainda, sempre aparecia na sala do Fabrício. Bati com ela
na cabeça dele só para que se recordasse que a caneta era minha. Ele
esfregou a testa de forma bem dramática, mas continuou sorrindo.
— E quem é o irmão bonzinho dessa história?
— Eu — respondi, ao passar pela porta.
— Tô muito ferrado — ainda o escutei dizer, enquanto
caminhava de volta para a minha sala.
Larissa
PASSADO
Diego
Por mais que Manuela estivesse disposta a organizar o jantar, eu
não cometeria a loucura de deixar aquelas duas mexendo na comida que
eu serviria a Sofie. Do jeito que elas estavam lidando com a volta da
minha ex-namorada, era bem capaz de um vidro de laxante virar molho
para o carré que fora preparado especialmente para a noite.
— Eu disse que já está tudo pronto. Vocês duas alguma vez vão
me escutar?
— Foi você quem cozinhou? — perguntou Clara, abrindo a
tampa da panela sobre o fogão, sentindo o aroma que saía dela e
ignorando completamente minha pergunta. — Parece bom. Aliás, esse
cheiro é meio conhecido.
— Marta veio aqui hoje.
— Sabia — disse com entusiasmo e sorrindo, ao se dar conta de
que estava certa. — Sempre soube que você queria roubá-la de mim.
— É só às vezes — respondi, e daquela vez não me senti nem um
pouco culpado pela cozinheira de anos do meu irmão vir me visitar de
vez em quando. Ela era maravilhosa.
Tentei ignorar Clara, mas era impossível, pois ela era um furacão
ambulante. Aliás, meu apartamento parecia ter sido tomado por furacões
e tornados. Manu fazia o mesmo que a amiga, abrindo tampa por
tampa, não deixando nada intacto e fazendo algumas caretas enquanto
isso. Eu devia ter feito algo de muito errado no passado para ter duas
ciumentas no meu pé.
Clara fez bico, como se não fosse culpada de nada.
— Alexandre… — gritei.
— Não tenho nada com isso — respondeu ele, ignorando meu
pedido de socorro. — E me dá logo uma cerveja.
— Valeu, mano — agradeci com sarcasmo, dando ênfase ao fato
de que meu irmão me abandonara.
Ele sorriu, dando de ombros.
— Às ordens.
Fui até a geladeira, passando por Manuela e Clara, que agora
conversavam entre si, peguei uma cerveja, além de uma garrafinha de
água. Joguei a long neck para o meu irmão, errando sua cabeça apenas
porque isso estragaria a noite, e entreguei a água nas mãos do Dereck.
— Valeu, bro. — Alexandre arregalou os olhos na direção dele e
eu entendi o que se passava por sua cabeça. Acho que Dereck também,
pois logo emendou. — Relaxa, cara, já faz muito tempo.
Meu irmão assentiu, abriu a garrafa e sorveu um gole da bebida.
Ainda parecia envergonhado por beber álcool na frente de um
dependente químico. Dereck, por sua vez, não se importava nem um
pouco, os olhos vidrados na cozinha, onde Manuela estava, a única que
tinha sua atenção por completo. Observei os dois e sorri. Muitas vezes o
destino era algo que não podíamos cultivar, esperando colher exatamente
aquilo que plantáramos. Ele era folha ao vento. Não sabia aonde ia parar
e muito menos o que encontraria no caminho. Ele apenas seguia. Em
geral, as pessoas não concordavam comigo, mas acreditava que, quando
tinha que acontecer, acontecia. E fora assim com Manuela e Dereck. No
meio do caminho, eles haviam sido pegos de surpresa pelo destino.
Sabendo que não havia mais nada a ser feito, peguei a louça e os
talheres e entreguei nas mãos de Manuela.
— A mesa é sua. — Ela não ficou muito satisfeita e eu a olhei
sem muita piedade. — O que foi? Não queria ajudar? — Manu me deu
um sorriso forçado e começou a pôr a mesa. Clara inventou uma
desculpa do tipo estou grávida e cansada e foi sentar ao lado de Alexandre.
Ela era bem dissimulada, isso sim. Nem barriga a peste ostentava.
Realmente… Ali estava a outra metade do meu irmão. Certinho!
Quinze minutos depois, tudo estava pronto e, por incrível que
pudesse parecer, não me sentia nervoso. E isso me incomodava. Não
agia como um cara que estava prestes a apresentar alguém importante
para a família. Meu coração batia no mesmo ritmo e minhas mãos não
suavam. Não estava com um nó na garganta e com medo de dizer
alguma coisa errada. Não! Eu estava… normal.
Ontem tudo havia sido diferente.
A voz dentro da minha cabeça, que insistia em não se calar, mais
uma vez deu o ar de sua graça. Mesmo eu querendo que ela
simplesmente desaparecesse, porque era inimaginável continuar pensando
nela.
O interfone tocou e avisei ao porteiro que Sofie podia subir. Em
poucos minutos, ela estaria em minha casa mais uma vez e eu não sabia
como me sentiria com isso. Talvez tudo mudasse quando ela chegasse, e
meu coração voltasse a agir como o maldito apaixonado que um dia eu
fora.
Caminhei até a entrada e parei. Não precisei secar as mãos na
calça e nem respirar fundo. Apenas abri a porta.
— Oi, amor.
— Sofie… — disse, ainda consternado com tanta beleza.
Observei seu rosto, encantado com o longo cabelo caindo pelos ombros.
Olhei em seus olhos sedutores e sorri quando meu olhar pousou nas
sardas. — Você está linda.
Beijei delicadamente sua bochecha e segurei sua mão.
Mas nada.
Não havia nada de diferente.
E nada não era o que eu esperava sentir.
Ela era apenas uma bela mulher parada na porta do meu
apartamento, esperando que eu a convidasse para entrar.
Cada vez mais constrangido com meus pensamentos, eu a conduzi
até a sala, onde ninguém percebia a minha indiferença. Sofie manteve
um sorriso empolgado no rosto, mas logo se transformou em uma
expressão de espanto, ao mesmo tempo que os olhos ficavam grandes
demais no rosto, mesmo que tentasse esconder a reação. Tudo isso
porque acabava de encontrar o ganhador de um Grammy e a sensação do
último Rock in Rio sentado no sofá da minha sala.
— Esse é o Dereck Mayer? — Inclinou o rosto para mim e
sussurrou a pergunta que praticamente gritava em seus olhos.
E eu? Revirei os meus.
É isso que dava ser amigo de roqueiro metido a bad boy.
— Prazer, eu sou a Manuela.
Sei lá de onde Manu saiu, mas agora estava parada na frente da
Sofie, com a mão estendida em sua direção e os olhos que pareciam de
um falcão analisando sua presa. Eu queria muito rir.
— Olá, Manuela — Sofie deu um sorriso tão sincero que até
Manu recuou. — Diego fala tanto de você que sinto como se a
conhecesse.
— Espero que bem — disse minha amiga, e olhou para mim. —
Odiaria ter que matá-lo com um bisturi.
Engasguei, pois fora exatamente o tipo de morte que ela
prometera a Sofie caso eu saísse machucado daquela história. Levei a
mão à boca e tossi para que Manu mudasse de assunto. Ela sorriu, não
parecendo nem um pouco a homicida em potencial de segundos antes.
Sofie, alheia a tudo, respondeu: — Só coisas boas. E obrigada pela
indicação daquele restaurante maravilhoso. Diego prometeu me levar lá
outras vezes.
— Foi um prazer.
Assim que Manu respondeu, segurei de novo a mão de Sofie e a
levei até o restante dos convidados. Clara se comportou com um pouco
mais de naturalidade e Alexandre agiu com a educação de sempre.
Quando chegou a vez de Dereck, Sofie disse, demonstrando uma leve
emoção na voz: — Há quatro anos estive em um show seu. Canadá.
Dereck tentou ser educado, mas a expressão em seu rosto mudou
por completo, tornando-se muito mais sombria do que antes. Como se
ele mergulhasse no passado. Manu segurou sua mão e os dois se olharam,
completamente imersos um no outro.
— Deveria devolver seu dinheiro. Foi um show horrível.
Ela sacudiu a cabeça, em negativa.
— Foi um dos melhores que já assisti.
Dereck apenas assentiu, agradecendo. Manu sorriu para mim, os
olhos dizendo que estava começando a gostar de Sofie.
Servi mais uma rodada de bebidas a todos e deixei que
conversassem enquanto terminava de organizar o jantar.
Tudo saiu melhor do que eu imaginava. A conversa fluiu com
naturalidade e todo mundo parecia ter algum assunto em comum.
Manuela e Clara já haviam largado as pedras e tratavam Sofie com
atenção e gentileza. Eu sabia que seria assim a partir do momento em
que elas se conhecessem. Sofie não estava sendo falsa, disso eu tinha
certeza. Ela nunca me magoaria de propósito. O que acontecera era mais
um dos tantos acasos do destino. No fim, quando voltamos para a sala,
Dereck até cantou um pedacinho da música que havia feito para Manu,
“Minha melodia”.
Todos bateram palmas, menos meu irmão, que apenas assentia.
As meninas começaram um diálogo sobre como seus maridos
eram românticos, e me surpreendi quando Sofie olhou para mim,
sorrindo.
— O Diego também é. Quando fui embora para o Japão, ele
preparou um jantar tão maravilhoso quanto o de hoje, a única diferença
é que tinha tantas flores que eu não podia nem contar.
Houve um suspiro coletivo e, apesar de não ter vergonha de sua
revelação, eu me senti estranho, como se ela contasse algo que não fazia
mais parte das nossas vidas.
Sorri de volta mesmo assim, e seus olhos brilharam em resposta.
— Di, tem sobremesa? — Clara interrompeu. — Você sabe
como é… tem um devorador de açúcar dentro de mim.
No mesmo instante, Alexandre pousou a mão sobre a barriga de
Clara, e outro suspiro coletivo pôde ser ouvido.
— Pudim de leite condensado.
Ela deu um soquinho no ar.
— Sabia que Marta não ia me abandonar.
E, mais uma vez, ela conseguiu pôr um sorriso no rosto de todo
mundo. Não pelo que havia dito, mas sim pelo entusiasmo que nunca a
abandonava.
Clara era a pessoa mais espirituosa que eu conhecia, e eu agradecia
por ela ser o oposto do meu irmão no quesito comunicação.
Deixei todos na sala e fui até a geladeira buscar a bendita dose de
glicose da minha cunhada. Porém, quando abri, algo diferente chamou
minha atenção. Havia jogado o pacote no lixo, mas a caixa ainda estava
lá. Peguei, traçando o dedo sobre o recipiente de plástico enquanto
encarava seu interior.
Meu coração disparou.
Brigadeiros.
Os brigadeiros dela.
14
Diego
Sofie ainda ficou depois que todos foram embora. O restante da
noite foi uma sucessão de erros que não conseguia sequer relembrar. Eu
ainda pensava nela. Ainda pensava na garota dos brigadeiros e de olhos
castanhos quando Sofie tirou a roupa. Quando deitei na cama, meu
coração ainda batia descompassado ao recordar do rosto dela e de suas
feições delicadas, carregadas de tantos sentimentos. Naquele dia, eu vira
tristeza, mágoa, culpa e esperança… Enxergara todos eles. Suas aflições
transpunham o olhar e alcançavam qualquer pessoa que apenas parasse
para olhá-la. Bastava mergulhar em seus olhos. A verdadeira menina
estava ali, escondida debaixo das várias camadas que o medo construíra
em torno dela.
Ainda ouvia sua voz envergonhada ao falar comigo quando Sofie
encaixou o corpo sobre o meu. E então, quando meu nome foi dito,
voltei para a realidade, envergonhado demais porque a mulher nua na
minha frente se entregava para mim. Não foi difícil me concentrar em
Sofie. Meus olhos a encaravam porque não havia como não a desejar,
tudo nela era desejável. Cada parte do seu corpo. A pele macia, os
cabelos caindo sobre mim. A forma como a boca vermelha gemia e
pronunciava meu nome. Os lábios que tomavam os meu com avidez e
desejo. E permiti o sexo porque no fundo eu também queria. Mas
percebi, quando o prazer passou, tão rápido quanto os meus próprios
pensamentos, que era apenas isso. Sexo!
Saí do banheiro vestindo uma bermuda e camiseta e Sofie não
estava mais na cama. Passei as mãos pelos cabelos ainda molhados, fechei
os olhos e desejei que a noite passada não tivesse acontecido, pois ela me
envergonhava profundamente. Eu não era assim. Nunca fora.
— Preparei o café. Sabia que você continua falando enquanto
dorme? Quem é…
Ainda estava de olhos fechados quando a voz de Sofie chamou
minha atenção. Abri-os devagar e a encarei. Usava uma das minhas
camisetas e estava linda envolta pelo tecido cinza, mesmo com o cabelo
amarrado de forma bagunçada no topo da cabeça e carregando duas
xícaras de café. Em poucos segundos, consegui trazer à tona tudo que
recordava dela e, quando continuei em silêncio, ela se adiantou, soltando
um suspiro frustrado.
— Você nunca conseguiu esconder o que sente. Tá estampado em
seus olhos que a noite passada foi um erro.
— Sofi…
— Diego, eu não sou burra — ela levantou um pouco o tom de
voz. — Acha que eu não sei que o jantar de ontem foi apenas porque eu
pedi? E que só estava se esforçando para algo acontecer entre a gente
porque eu abandonei tudo para vir atrás de você?
Sofie estava errada se achava que o único motivo para estar com
ela era pena ou culpa. Por mais que eu tivesse sido um merda na noite
anterior, jamais faria isso.
— Tentei tudo que podia, mas as coisas não funcionam como
queremos. Infelizmente, porque você é incrível — argumentei, ficando
um pouco perdido quando ela sorriu de volta para mim.
— Eu sei. E eu desejei tanto você que ignorei o fato de que não
me olha mais nos olhos. Eu quis tanto que desse certo de novo que
esqueci o quanto você é intenso. Desde que voltei, você tem sido apenas
uma chama, mas eu já conheci o verdadeiro fogo. — Uma lágrima rolou
por sua face e, quando voltou a falar, a voz de Sofie estava embolada. As
palavras saíam em forma de soluços. — E eu te amo ainda mais, você
fez tudo isso porque tem um coração tão grande que é capaz de pôr os
sentimentos de todo mundo na frente dos seus.
Caminhei até ela e meus braços envolveram seu corpo, que
sacudia desesperado conforme suas lágrimas molhavam minha camiseta.
— Sinto muito.
— Sei que sente.
— Me perdoa? — pedi.
— Te perdoar por tentar voltar a me amar? — disse, depois de
levantar a cabeça e me dar um sorriso que escondia certa melancolia. —
Você não existe.
Ficamos em silêncio por um tempo e ela me abraçou mais uma
vez, despedindo-se. Sim, a noite havia sido um erro, sentira isso no
momento em que abrira os olhos e vira Sofie na minha frente. Mas não
precisávamos insistir nele. Ela continuaria sendo tão especial quanto
vinha sendo em todos esses anos. Sofie merecia o melhor de mim. E
agora eu sabia como poderia ser o melhor para ela. Beijei sua testa com
todo o carinho que sentia e ela se afastou, secando as lágrimas e juntando
as roupas jogadas pelo chão. Antes de dar as costas e sair do quarto, ela
me encarou com profunda tristeza, mas um sorriso no rosto.
— Você devia ir até ela.
Estreitei os olhos, observando sem entender o que queria dizer.
— Quem?
— A garota dos seus sonhos.
Fiquei mudo e meu coração parou de bater por alguns segundos.
Sofie saiu e não disse mais nada, e nem precisava.
Eu sabia exatamente de quem ela estava falando.
Larissa
Não vou entrar em pânico!
Não vou entrar em pânico!
Minhas pernas balançavam para cima e para baixo e, mesmo que
minhas mãos segurassem firme o cinto de segurança, não conseguia parar
de tremer. Um abismo se abrira dentro de mim e era impossível me
livrar das lembranças que me engoliam. Respirei fundo, contei os carros à
minha frente, observei as placas que deixava para trás, mas era inútil. A
voz dele ainda estava na minha cabeça.
Vou acabar com sua vida.
Você só vai se livrar de mim no inferno.
— Por favor! Por favor! Por favor!
Você é minha.
Se não for minha, não será de mais ninguém.
— Não! Não! Não!
Queria gritar, mas o medo crescia tão veloz dentro de mim,
envolvendo cada célula do meu corpo, que eu abria a boca e nada saía
além do silêncio com o qual tanto me acostumara. A sensação era de
afogamento. Estava me afogando em minhas próprias palavras. Elas
estavam ali, aos montes, nadando contra a correnteza, mas cada vez mais
eu afundava no meio delas, me deixando levar e esquecendo que bastava
um respirar para que tudo mudasse. E eu tentava. Forçava meus
pulmões, mas o ar sumia cada vez que meu peito estufava.
Não falar.
Não respirar.
Naquele momento, eu era feita de medo e só ele foi capaz de me
fazer entrar no carro com um homem quase desconhecido. Segui meu
coração, mesmo sabendo que ele não era muito confiável. Encarei os
olhos de Diego só para me dar conta de que emanavam segurança. Malu
precisava de mim e havia um homem ao meu lado que estava disposto a
fazer justiça por nós. Desde o julgamento, havia feito algumas pesquisas
sobre ele. Diego Ferraz, conhecido como promotor da sociedade pela sua
excelência, humildade e disponibilidade em ajudar quem necessitava.
Não havia nada que combinasse melhor com ele.
Eu o observei rapidamente enquanto dirigia e, nos breves
segundos que meus olhos pousaram nele, senti meu coração afundar
dentro do peito. Havia alguma coisa diferente e tinha medo de perguntar
o que era, porque, na verdade, tinha medo de ouvir a resposta. Então
fiquei calada, submersa mais uma vez.
Durante todo o trajeto, ele conversou comigo, mesmo eu não
emitindo uma palavra em resposta. Quando pegou uma saída com a qual
não estava acostumada, meus olhos se arregalaram e ele notou minha
reação de imediato. Foi então que senti sua mão sobre a minha. Apenas
apertou meus dedos e disse que eu podia confiar nele. Logo depois a
afastou, voltando a observar o trânsito. Quando percebi que o fluxo de
veículos naquele local era bem menor do que o que eu costumava
enfrentar, ele me deu um sorriso tímido.
— Vamos chegar mais rápido por aqui — disse ele com
convicção, e assenti.
Diego estava certo, e eu imaginava se seria sempre assim: perfeito
em suas escolhas. Tão diferente de mim.
Mal esperei que estacionasse o carro. Passei pelo portão e me
indignei porque não havia ninguém na portaria da escolinha. Sabia que
estava sendo seguida, pois seu cheiro me acompanhava e, mesmo
achando que poderia sentir aquele aroma por muitos dias, naquele
momento era tão forte que eu apenas sabia que ele estava muito
próximo. Passei direto pela diretoria e entrei no pequeno corredor que
dava acesso à sala da minha filha. Escutei vozes atrás de mim, mas não
conseguia me concentrar em mais nada que não fosse Maria Luiza. Eu
precisava vê-la, necessitava verificar seus braços, pernas, rosto e saber que
ela estava bem e segura. Lágrimas desciam dos meus olhos e tudo que
queria era minha filha nos braços.
Parei estática quando a vi, a poucos metros de mim, sentada em
uma roda de crianças. De longe, enxerguei o sorriso em seu rosto
enquanto batia palmas com animação. Meu corpo ficou inerte, como se
flutuasse, e minha mente se perdeu entre o que sentia e o que via. Os
olhos de Malu brilhavam para a professora e os coleguinhas, que
cantavam uma música que eu não conhecia, mas que minha filha parecia
dominar muito bem, pois, mesmo não cantando, fazia toda a
coreografia, acompanhando o restante da turma.
Tudo em meu estômago se revirou e eu queria vomitar até que
todo aquele medo saísse de mim, antes que eu pudesse contaminar
minha filha. Virei e notei que Diego também observava as crianças. Vi
em seus olhos que ele a reconhecera e, depois de olhar para ela, veio até
mim. Seus braços me seguraram, e agradeci pela primeira vez por ele
estar ali, ou desmoronaria no chão.
— Me tira daqui — implorei. — Me leva daqui antes que ela me
veja.
— Vem comigo.
Um dos seus braços passou pelo meu ombro, me puxando contra
ele, e eu cedi, porque naquele momento eu queria apenas não estar ali.
Caminhei sendo amparada por suas mãos. Não olhei para cima, não me
importei com seu tamanho, não lutei. Se ele quisesse me ferir, iria
encontrar apenas alguns pedaços intactos, já que o resto havia sido
destruído.
— Eu disse que ela estava segura — a voz de uma mulher entrou
em meus ouvidos. Queria responder, mas não consegui.
— A senhora pode conseguir um copo com água, por favor?
Escutei passos se afastando, mas sequer levantei a cabeça para ver
quem era. Não tinha forças para mais nada, e saber disso me fazia ainda
mais derrotada.
— Senta aqui, Larissa.
— Malu está bem? — perguntei, olhando para trás apenas mais
uma vez.
— Ela está ótima. Dennis não esteve aqui.
Suspirei fundo, chorando ainda mais. Raiva por ter que sentir
alívio. Aquele era um dos piores sentimentos que poderia existir. Se
existia alívio, existia medo.
Sentei onde ele mostrava, deixando as mãos sobre as pernas. Elas
ainda tremiam e eu não conseguia parar de chorar. Diego não disse
nada. Não tentou me acalmar. Não disse o que eu deveria fazer. Não
chamou minha atenção. Ele apenas ficou ali. Abaixado na minha frente.
De terno e gravata e com um olhar que poderia aquecer até uma alma
fria. Depois de alguns minutos, um copo de água surgiu em sua mão e
eu sequer notei quem entregara a ele. Só conseguia me ver através dos
seus olhos. Ele estendeu o copo com um aceno de cabeça e nada mais.
Bebi alguns goles da água e segurei o vidro com as duas mãos.
— Sinto muito — sussurrei. — Sinto por tudo. Não sou maluca,
eu só preciso protegê-la. Você me entende, não é mesmo? Quer dizer…
você vê isso todos os dias.
Diego não desviou os olhos dos meus.
— Se permita sentir. Não sentir é deixar que ele mate o que tem
dentro de você. Mas não sinta por mim, ou por ele. Sinta por você.
Apenas por você.
Acenei com a cabeça, buscando compreender o que ele dizia com
tanta convicção. Sem querer, comparei a maneira que Diego falava com
a de Dennis. A mesma confiança e certeza. Mas Diego não parecia
querer me ver de joelhos, como eu sempre me sentia havia alguns anos.
— Obrigada — agradeci, devolvendo o copo. Ele pegou e
levantou.
Respirei fundo, sequei os olhos com as costas das mãos e também
levantei. Minhas pernas ainda estavam bambas, mas o pior havia
passado, tinha certeza. Vi a coordenadora da escola parada ao lado dele,
os olhos me analisando.
— Estou melhor. Agora posso vê-la.
Diego balançou a cabeça e encarou a mulher, que parecia estar
mais preocupada com os olhos dele do que com o fato de que um
psicopata poderia estar a caminho da sua escola naquele exato momento.
— Poderia trazer a menina, por favor? — pediu, e no mesmo
instante ela sorriu.
O telefone dele tocou e sua voz encheu meus ouvidos.
— Eu sei. Sei. Quando voltar a gente conversa. Guy esteve aí? —
Diego fez uma pausa e eu ouvia sua respiração. — Já disse que sei,
mano.
Foi a primeira vez que sua voz saiu mais alta do que o normal.
Comecei a me perguntar o que poderia estar acontecendo, mas percebi
que não era da minha conta, porque nada do que estava acontecendo era
normal. Mesmo não conhecendo todas as funções de um promotor,
sabia que eles não andavam por aí avisando vítimas de possíveis perigos,
e nem mesmo dando carona para pessoas em pânico. Então, por que
estava ali? Por que batera na porta do restaurante antes mesmo de abrir?
Por que seus olhos me buscavam?
Tinha poucos minutos antes de Malu chegar, e muito para saber.
Virei e procurei seu olhar.
— Por que você fez tudo isso?
Ele arregalou os olhos, surpreso com a pergunta, mas não tanto
que o impedisse de responder.
— Tenho dois sobrinhos e mais um a caminho. Eu os amo mais
do que minha própria vida. — Suspirei, sabendo aonde ele queria
chegar. — Fiz pela Maria Luiza. Desde que peguei o caso de vocês que
não consigo parar de pensar nela. Te conhecer no restaurante apenas me
fez ter certeza de que eu precisava me esforçar um pouco mais para trazer
a vida de vocês de volta.
Engoli em seco. Era difícil acreditar que um estranho se
importava mais com a minha filha do que o próprio pai dela.
Inexplicável pensar que ele fizera tudo aquilo porque também queria
Malu em segurança.
— Não sei como agradecer.
Ele sorriu.
Não consegui sorrir de volta.
Tive a impressão de que ele iria abrir a boca para dizer alguma
coisa quando fomos interrompidos. Malu corria até mim, mas quando
viu Diego tão perto, parou no lugar, estática. Fui até ela, me joguei de
joelhos no chão e a abracei, levantando-a junto comigo. Passei as mãos
pelos seus cabelos e beijei seu rosto. Ela me observava com olhos aflitos,
e eu agradeci por não ter me visto antes, mas logo sua atenção foi mais
uma vez para o homem parado atrás de nós.
— Lembra aquele dia em que conversamos sobre as pessoas boas
que ajudam mamães e filhinhas? — Malu pareceu pensar um pouco, e
depois assentiu. — Aquele moço ali — sussurrei —, é uma dessas
pessoas. Ele é um policial que ajuda mamães que estão com problemas.
Ela olhou para Diego, e depois para mim. Ele manteve a
distância, sabendo muito bem como agir. Então Malu me abraçou,
fugindo do olhar dele. Não podia culpá-la. Ela também conhecia o
medo.
Conversei um pouco mais com a minha filha, e Diego se ofereceu
para nos levar para casa. Respondi que não havia necessidade. Depois do
desespero, pensei melhor. Não tinha como Dennis saber onde
estávamos. Ninguém sabia. Nem mesmo sua família. Diego insistiu,
dizendo que poderia verificar a residência antes de entrarmos, mas
neguei mais uma vez. Ele já havia feito muito por mim.
— Aqui estão os meus contatos. Ligue se precisar. — Peguei o
cartão que ele me estendia e analisei seu nome desenhado em prata em
um papel preto. Pisquei algumas vezes, sem entender por que ele ainda
insistia em cuidar de nós. — Entendo que é difícil confiar em alguém
que você só viu algumas vezes.
Era exatamente assim que me sentia.
Decidi guardar o cartão mesmo assim.
— Você sempre ajuda mulheres como eu?
Primeiro ele reagiu ao meu comentário com uma careta, depois
sorriu. Dessa vez, sorri de volta, porque era o tipo de sorriso que
antecedia alguma coisa boa.
— Só as que fazem os melhores brigadeiros do mundo.
Abaixei a cabeça, envergonhada, mas levantei no momento em
que também escutei Malu rindo.
Levei mais tempo do que o necessário para caminhar as poucas
quadras até a minha casa. Mesmo sabendo que ele não estava ali, uma
parte de mim ainda temia que fosse surgir a qualquer momento para
cumprir as inúmeras promessas que fizera. Segurava na mão da Malu
com força, ela sempre acompanhando meu olhar. Quando chegamos,
pedi que ficasse com dona Rosa, a vizinha, por alguns minutos e fiz o
que Diego havia se oferecido para fazer pouco antes. Verifiquei toda a
casa e só busquei minha filha quando me certifiquei de que estávamos
em segurança. A primeira coisa que fiz quando entramos foi tirar nossas
roupas para entrarmos juntas no banho. Meu silêncio se misturou com o
dela, e ficamos ali por muito tempo, sem nos importar com nada.
Apenas decidi que aquele seria o nosso momento, porque não havia nada
no mundo mais importante que a menina dos meus olhos.
PASSADO
Sempre sonhara em ser mãe, mas nunca havia pensado nas dificuldades
da maternidade. Ninguém me avisara que eu teria vontade de sumir alguns
dias. Ninguém me contara que eu iria sofrer, chorar e sorrir em um espaço tão
curto de tempo que mal poderia assimilar o que estava sentindo. Que
amamentar talvez fosse mais difícil que o parto. Que eu iria me sentir
cansada, e choraria por isso, e depois me culparia por ter me sentido assim.
Uma contradição de sentimentos enlouquecedora.
Mas eu estava ali. Com minha filha nos braços e pensando que nunca
sentira um amor tão forte como o que habitava em meu peito. Sabia que
amaria Malu, mas não imaginava que esse amor seria tão grande a ponto de
ser capaz de dar minha vida por ela.
Passei o dedo por uma mecha de seu cabelo preto e ela resmungou, com
os lábios ainda em torno do meu seio. A sensação mais completa que
vivenciara na vida. Sorri com lágrimas nos olhos.
Queria que Dennis sentisse pelo menos parte desse amor. Desejava
ardentemente que ele olhasse para nossa filha com os mesmos olhos amorosos
que um dia olharam para mim. Sabia que levaria um tempo para ele entender
que era pai, mas as semanas passavam e sentia ele se afastar de mim cada vez
mais. Nosso casamento já caminhava para o fracasso antes mesmo de eu
descobrir que esperava minha menina, mas acreditava que tudo mudaria.
Afinal, ela era nossa.
Mas nada mudara.
Pelo contrário, tudo havia desmoronado. Passara a ficar ainda mais
sozinha. Apenas eu e ela e toda uma responsabilidade que sonhara em dividir
com alguém, mas que se amontoava em minhas costas.
Assim como hoje.
Onze da noite e Dennis ainda não havia voltado.
Tinha medo de como chegaria em casa e torcia para estar bêbado a
ponto de não conseguir falar ou fazer qualquer coisa. Fazia algum tempo que
ele começara a quebrar as coisas em casa, e eu sabia que descontava suas
frustrações nos móveis e objetos. No dia seguinte, ele sempre dizia que isso era
bom, pois assim não machucava ninguém. Eu não acreditava que ele seria
capaz de me ferir. Dennis nunca faria isso. Sua personalidade era um pouco
explosiva, mas nunca passara de alguns gritos ou apertões. Coisa de casal.
Eu o escutei acelerar a moto com força quando pus Malu no berço.
Ainda a ajeitava quando ele bateu a porta e entrou. Fechei devagar a porta do
quarto e fui até a sala sem fazer barulho. Dennis estava sentado no sofá e,
assim que me viu, caminhou cambaleante em minha direção. O odor de álcool
fez meu estômago embrulhar. Assim que virei o rosto, sentindo nojo, ele
segurou meu queixo e me fez encará-lo. O dedo deslizou por meu lábio,
pescoço, e sua mão parou no meu seio. Dennis enfiou a mão pelos botões
abertos do vestido e me apertou até eu gemer de dor.
— Já faz muito tempo, não é mesmo, minha gatinha?
— Você sabe que não posso.
— Besteira — resmungou ele, tentando me arrastar para o sofá. —
Porra nenhuma. Vamos transar agora. Não vou esperar mais nada.
Estagnei no lugar e ele me puxou com mais força, me fazendo tropeçar.
Dennis me segurou em seus braços e eu não conseguia acreditar que o menino
por quem me apaixonara havia se tornado o homem que eu via agora. Puxei
meu braço, decidida a não acreditar em nenhuma de suas palavras. Ele
semicerrou os olhos, o semblante se fechou, e eu recuei.
— Tô começando a achar que você tem outro. É isso?
Tive que sorrir. Não tinha o menor cabimento o que ele dizia.
— Você só pode estar maluco.
No momento em que disse isso, ele me encurralou na parede, prendendo
meu corpo contra ela com tanta força que eu mal conseguia respirar.
— É você que me deixa assim, sua maldita. Você me provoca —
desceu a mão até o meio das minhas pernas —, e depois nega o que é meu por
direito. Acha que vou te esperar pra sempre? — gritou.
Quando suas palavras ecoaram pela sala, a raiva reverberou por todo
meu corpo. Eu o empurrei, mas ele segurou meu braço. Não cedi e encarei seus
olhos.
— Sua filha está dormindo, seu babaca, então faça o favor de deixar
suas maluquices para outra hora.
Grande erro. Dennis ficou ainda mais descontrolado e me segurou pelos
dois braços e me sacudiu com violência.
— A culpa é sua.
— Para com isso.
— Você só pensa nessa menina agora. Esqueceu que tem marido, que
tem um homem em casa.
— Ela é sua filha — gritei.
— Será mesmo?
Fiquei cega. Ódio e remorso explodiram dentro de mim e me debati,
tentando me soltar dele o mais rápido possível. Não havia explicação para
palavras tão detestáveis. Ele voltou a me sacudir enquanto mandava eu me
acalmar, mas era impossível, porque eu o odiava tanto naquele momento que
só queria pegar minha filha e ir para o mais longe possível. Quando gritei
uma última vez para ele me soltar, senti o impacto. Minha cabeça bateu com
violência na parede e caí para trás. Com o estrondo da batida, Malu começou
a chorar e, por mais que eu tentasse levantar, não conseguia. Tudo girava e o
gosto de sangue começava a subir para a minha boca.
— Malu…
Ela chorava ainda mais, e imaginei seu desespero com a minha
demora. Tentei levantar mais uma vez. O rosto do Dennis apareceu na minha
frente e ele me olhava com profunda tristeza e arrependimento. Eu já não
conseguia pensar em mais nada. Só precisava chegar até a minha filha.
Caí de novo, perdendo todos os sentidos, mas ainda fui capaz de ouvir
suas palavras antes de apagar por completo.
— Olha o que você fez.
Diego
Nunca, em toda a minha vida, fora tão irresponsável quanto havia
sido na última semana. Quando acordei e abri os olhos no dia seguinte,
tive certeza de que alguma coisa de muito errado estava acontecendo
comigo. Como podia ter sido tão impulsivo?
Não tinha que ter ido atrás dela.
Não tinha que ter dado carona a ela.
Não tinha que ter feito nada daquilo.
Não tinha.
Mas havia feito.
E faria tudo de novo.
Havia feito e estava fodido por isso. Porque agora não parava de
pensar no seu cheiro, em seus olhos, nas lágrimas, no sorriso triste, na
voz desesperada… Tudo! Larissa se apossara da minha mente e eu não
poderia estar mais ferrado.
Almoçara no restaurante a semana toda. Ela me atendia quase
sempre, e quando não o fazia, eu a olhava de longe, com a certeza de
que estava consciente dos meus olhos sobre ela. Todas as vezes
perguntava como ela estava, e Larissa respondia com um sorriso no rosto
e tristeza no olhar que tudo ia bem. Me agradecera mais de uma vez pelo
que havia feito naquele dia, e eu me certificara de prometer que faria de
tudo para pôr o desgraçado na cadeia. No fim, saía de lá com um sorriso
no rosto e uma embalagem de brigadeiros nas mãos. Nos últimos dias,
ela nem perguntava mais se eu queria a sobremesa, apenas trazia, e eu
aceitava.
Durante muitas noites, imaginara como seria se as circunstâncias
fossem diferentes. Talvez eu a visse naquele restaurante, sorrisse para ela,
e ela sorriria de volta. Levaria alguns dias para demonstrar interesse, e
com certeza eu jogaria uma indireta ou diria o quanto o sorriso dela era
lindo. Iria elogiar seus brigadeiros, mas também diria que a dona deles
era quem realmente me interessava. Eu a convidaria para um cinema, ou
jantar. Passaria a noite elogiando sua beleza e simplicidade. E a beijaria
antes de o filme acabar, ignorando os créditos subindo na tela, porque o
gosto dela seria tão maravilhoso que me faria esquecer qualquer coisa à
nossa volta.
Mas isso não iria acontecer.
Porque eu era um promotor e ela a vítima de um dos monstros
que eu lutava para pôr na cadeia.
Eu tentava trazer pessoas como ela de volta à vida, mas não era
essa a sensação que tinha quando estávamos no mesmo lugar. Seu sorriso
era capaz de queimar tudo dentro de mim, me fazendo consciente de
cada grama de ar que entrava em meus pulmões.
Eu me apaixonara por uma mulher que tinha todos os motivos
para odiar o amor.
Não sabia o que era mais terrível naquela afirmação. O fato de
pensar que estava apaixonado, ou o de ter certeza de que meu coração
iria se partir mais cedo ou mais tarde.
Era sexta à noite e conseguira ignorar ligações e mensagens de
todos que tentavam sugerir que eu não ficasse em casa no fim de
semana. Engraçado isso: conseguia me afastar de tudo, menos das
lembranças que sempre me levavam de volta para ela.
— É melhor parar por aqui — murmurei, enquanto caminhava
até a cozinha. Servi um copo de uísque e levei alguns segundos para
decidir se beberia ou não. Resolvi que seria bom para relaxar, ainda mais
depois de uma semana de cão, em que passara quase três dias em um
júri popular.
Quinze minutos e três doses depois, abri a porta para o meu
irmão, que resolvera aparecer de surpresa. Torci para que Clara não
estivesse com ele, pois não conseguiria esconder nada dela, e era provável
que desabafasse toda uma história que sequer poderia ser contada. Clara
enxergava lá no fundo, e eu sempre me perguntava se isso era um grande
defeito meu: deixar as pessoas entrarem fácil demais. Acreditar mesmo
quando o universo dizia que ia dar merda.
Alexandre afrouxou a gravata assim que pôs os pés na sala, jogou o
paletó no sofá e caiu ao meu lado. Eu vestia calça de moletom e
camiseta branca e, naquele momento, nem parecíamos irmãos.
Ele olhou para o copo na minha mão, para a garrafa na mesa de
centro e depois para mim.
Um vinco se formou entre seus olhos, confundindo-se com
algumas rugas que já apareciam na testa. Alê sacudiu a cabeça e
perguntou: — Desde quando você bebe?
— Eu sempre bebi.
Servi outra dose e ele arqueou uma sobrancelha.
— Sempre?
— Só não costumo ficar completamente bêbado e chorando
como uma criancinha quando percebo que minha garota deu no pé com
um roqueiro fodão.
Dei mais um gole no uísque. Ele arregalou os olhos, surpreso com
a minha indireta, e a verdade era que nem eu acreditava no que acabara
de dizer.
— Foi mal — pedi desculpas. — Semana difícil.
Esperei que ele respondesse alguma coisa envolvendo a palavra
“moleque”, porque era sempre assim que se referia a mim quando queria
chamar minha atenção. Mas ele não disse nada. Apenas levantou, foi até
a cozinha e voltou segurando um copo, pronto para me fazer
companhia.
— E a pergunta de um milhão de dólares é — sorveu um gole de
uísque e ficou brincando com o restante que sobrara no copo, fazendo o
líquido viajar de uma extremidade à outra — que porra deu em você?
Apoiei os cotovelos nas pernas e segurei o copo com muita força,
como se ele fosse capaz de responder por mim.
— Não sei!
— Isso não é resposta.
— O que você quer ouvir? — respondi, enraivecido.
Assustei-me com o tom da minha voz e levantei, dando as costas
para o meu irmão. Pude ouvir Alexandre fazendo o mesmo.
— Quero ouvir que meu irmão não está apaixonado por uma
mulher que foi vítima de um desgraçado psicótico que é capaz de
qualquer coisa, inclusive machucar uma criança.
Meus dedos apertaram o copo, e eu queria que ele se quebrasse
em minhas mãos, porque a dor de ter a pele rasgada talvez fosse menor
do que a raiva que as palavras do Alexandre haviam causado.
Fiquei em silêncio.
E ele entendeu.
— Puta merda! — exclamou. — Você está mesmo apaixonado?
Tá maluco, moleque? Tem noção do que aquele cara pode fazer com
você?
Virei, olhando para ele, e ri. Um riso sarcástico e carregado de
raiva, porque sabia exatamente do que Dennis era capaz: estuprar uma
mulher e ferir uma criança.
— E se fosse a Clara? — perguntei, sabendo que ele iria recuar.
— Essa não é a questão. Ela não é como a Clara.
Sorri de novo, mas dessa vez pela ingenuidade do Alexandre.
— O coração aperta e sua vontade é de estar lá com ela, mesmo
que ela não queira, porque você sabe que por fora há uma fortaleza, mas
lá dentro os pedaços estão se partindo um a um. Você deseja juntá-los,
mesmo que não haja maneira de colá-los. Você. Apenas. Quer. Estar. Lá
— sibilei. — Eu tô apaixonado por uma garota que não vai se abrir para
o mundo porque tudo que ela recebeu dele foi dor. Isso soa familiar para
você?
Alexandre ficou mudo, e eu sentia que um caminhão havia
passado por cima de mim. Confessar o que sentia não me trouxe alívio.
Pelo contrário, me deixou ainda mais em pânico, porque eu sabia que
seria um sentimento não correspondido. Aliás, eu sequer tinha o direito
de esperar isso dela.
Pelo amor de Deus! Quem se apaixonava assim? Do nada!
— Só não quero que você saia ferido dessa história. De nenhuma
forma.
— Eu sei o que eu tô fazendo. — Alexandre continuou me
encarando. — Não, não sei — confessei, e ele sorriu.
Voltamos a sentar no sofá, e tornei a encher nossos copos. Nem
perguntei se Alexandre estava dirigindo, pois a resposta era óbvia. Ele
acabou me contando sobre como as coisas haviam chegado ao ponto em
que chegaram. Falou sobre a visita de Dennis e de como ele o queria
como advogado. Trabalhara tanto durante a semana que mal
conversáramos sobre o assunto. Eu também tentara adiar a conversa o
máximo possível, porque ainda não estava preparado para falar qualquer
coisa sobre Larissa. Abaixei a cabeça, envergonhado, quando me contou
que nunca pegaria um caso como aquele.
— Na hora não pensei em nada — justifiquei.
— Se você não diz… — brincou, mas, segundos depois, voltou a
ficar sério. — Como ela está lidando com um novo relacionamento? Sei
que já faz mais de ano que eles se divorciaram, mesmo assim deve ser
difícil pra ela confiar em alguém. Mesmo que esse alguém seja você —
provocou.
Desviei os olhos do meu irmão, sem saber como responder. Não
tinha uma forma coerente de contar a ele que eu estava sozinho nesse
barco, e sem noção nenhuma de onde ele iria aportar.
O silêncio mais uma vez falou por mim, ou foi o lado advogado
do meu irmão que pescou todas as referências no ar.
— Diego, até onde vocês… Quer dizer… Em que nível essa
relação de vocês está?
— Dei uma carona pra ela e gosto de comer seus brigadeiros —
respondi sem jeito, e dei de ombros.
Alexandre levou as mãos ao rosto e depois enterrou os dedos nos
cabelos. Respirou fundo antes de me encarar mais uma vez.
— Eu não acredito que… — Ele soltou um suspiro resignado. —
Por que será que não estou surpreso?
— Ahn?
— É a sua cara se apaixonar platonicamente.
— Se eu bem me lembro, você caiu de quatro pela Clara no
primeiro dia.
— Não. — Ele sorriu com malícia. — Primeiro a gente transou.
Fiz uma careta.
— Não preciso de detalhes, babaca.
— É sério, Diego. — Meu irmão voltou a ficar concentrado
enquanto mexia no celular. Devia estar pedindo um táxi. Quando
terminou, olhou para mim. — Pula fora se achar que essa garota vai
trazer problemas pra você. Eu sei que ela não mereceu nada daquilo, mas
é impossível ignorar toda a bagagem que ela traz. E você é meu irmão.
Aconteça o que acontecer, sempre irei escolher você.
Queria ficar bravo com ele, mas entendi o que meu irmão estava
dizendo, porque seria capaz de fazer o mesmo se soubesse que ele estava
em perigo. Alexandre não conhecia a Larissa. Tecnicamente, eu também
não, mas sabia, bem lá no fundo, que ela era muito mais do que tudo
que estava escrito em um punhado de papel.
Larissa
Eu o observei de longe.
Usava um terno escuro com uma camisa no mesmo tom.
Somente a gravata era de um azul que se assemelhava à cor dos seus
olhos. Meu Deus, como era lindo! Sua beleza era única e, acompanhada
de sua elegância, Diego ficava ainda mais impressionante.
Vi quando passou pelas pessoas com uma pressa fora do normal.
Mesmo assim, não deixou de chamar atenção, atraindo olhares, colhendo
elogios. Mas ele, alheio a tudo isso, parecia desesperado, e isso me
preocupou. Meu coração batia acelerado enquanto meus olhos o
seguiram até o restaurante. Ele entrou, olhou para todos os lados e
pareceu decepcionado quando abaixou a cabeça e ficou parado por
alguns segundos. Só levantou os olhos de novo quando Daniela falou
com ele.
Ela sorriu. Claro que ela sorriu.
Mas Diego não sorriu de volta.
Depois de conversarem alguma coisa, ele saiu.
Senti vontade de ir atrás. Um desejo absurdo que me deixava
apavorada. Mesmo assim, ainda cogitava a ideia de ir até lá e dizer
qualquer coisa. Eu nunca o agradecera o suficiente por aquele dia. Todas
as vezes em que estivera no restaurante nas últimas semanas, eu tentara
falar, mas as palavras sempre eram escassas. No entanto, ele parecia me
entender. No início, havia ficado com medo. Ele sempre chegava no
mesmo horário, sentava na mesma mesa, e sorria o mesmo sorriso. Sabia
que estava indo lá por mim. Até comentários sobre isso eu ouvi. Fiquei
assustada. Medo de ele estar se aproveitando de tudo que eu vivera para
me machucar. Afinal, mulher gosta de sofrer, não é mesmo? Mas, no fundo,
algo dentro de mim dizia que ele tinha um bom coração, então comecei
a sorrir de volta.
Quando passou de volta por mim, eu me escondi atrás de uma
pilastra.
Levei as mãos ao peito e o apertei com força, com a sensação de
que meu coração queria saltar para fora. Tentei acalmar a respiração,
procurando entender por que estava agindo daquela forma.
Meus olhos se inundaram de lágrimas.
Eu sabia o porquê.
Medo!
Diego despertara algo em mim. Não sabia como e por quê, mas
simplesmente não conseguia parar de pensar em uma vida diferente. Se
fechasse os olhos, ainda podia sentir seu cheiro e ouvir sua voz dizendo
que tudo ia ficar bem. Ele havia feito promessas que eu sabia que não
poderia cumprir, mas Deus sabia o quanto meu coração machucado
queria acreditar em cada palavra que ele dissera. Uma vontade enorme de
substituir a dor por algo que me fizesse sorrir.
Cada vez que ele estivera no restaurante, cada sorriso que tinha me
dado, cada promessa que me fizera acordaram uma parte de mim que
havia muito adormecera. Quando o via lá, sentado, a única coisa que eu
sentia era vontade de abraçá-lo como naquele dia na escola, porque havia
sido o abraço mais acolhedor que eu recebera nos últimos anos. Ainda
sentia o seu calor… Suas palavras, a forma como me olhava, como se eu
fosse tudo. Na hora, não havia percebido, mas sabia que ele fizera por
mim o que mais ninguém fizera: ficara ao meu lado.
Mas eu já tinha vivido isso antes. Já tinha queimado de amor e
me jogado em uma relação que apenas me deixara aos pedaços.
Eu era uma idiota, e cada lágrima que descia dos meus olhos
confirmava isso. Idiota!
Não podia ser verdade. Eu não podia… Não… A vontade era de
gritar, porque eu apenas fechava os olhos e a primeira coisa que via era o
sorriso dele.
Deus.
EU. NÃO. PODIA.
Havia um abismo separando nós dois. Mundos totalmente
diferentes, que só haviam se cruzado porque ele estava acostumado a
descer até o inferno. Mas o contrário nunca aconteceria. Eu não sabia o
que era estar no céu. Mesmo assim, ainda pensava nele. Em como as
coisas poderiam ser diferentes se…
NÃO!
Respirei fundo, tentando me acalmar e convencer meu coração de
que não era nada daquilo. Repeti a frase em minha cabeça até que
comecei a acreditar em minha própria mentira. Isso era fácil. Acreditar
em mentiras era tudo que fizera nos últimos anos.
Você não pode pensar nele, Larissa.
O amor dói.
Machuca.
Destrói.
Você não pode amar.
Quando você tem um coração em ruínas, é fácil arrancar qualquer
coisa boa que pode vir a crescer dentro dele. Senti-me decepcionada
quando me dei conta de que minha vida se resumiria a isto: medo,
chances perdidas e o passado sempre voltando à tona. Uma coisa que
aprendera com a dor é que você acabava se acostumando. No fim,
Dennis tirara até a capacidade que eu tinha de sentir. Estava anestesiada.
Corpo e alma ainda perdidos naqueles malditos momentos.
Não podia ir até Diego ou qualquer outra pessoa sem antes
descobrir como voltar a viver. E eu tinha que fazer isso sozinha. Por
mim. Ninguém podia me curar quando nem eu sabia onde realmente
doía.
Fui até o restaurante e Daniela sorriu agradecida assim que me
aproximei.
— Vim pegar algumas coisas que deixei aqui — avisei.
Seus olhos me encararam como se eu fosse sua salvadora.
— Muito obrigada de novo, Larissa.
— Já disse que não tem por que agradecer.
— Tem sim — suspirou. — Esse emprego vai salvar a minha
vida.
Segurei sua mão.
— Espero que sim.
Sabia muito bem do que ela estava falando. Conhecera Dani em
uma das reuniões que frequentara depois que tudo acontecera. Ela estava
tentando largar o namorado abusivo havia alguns meses, mas ainda não
sabia como conseguir sua independência. Quando decidi pedir
demissão, ela foi a primeira pessoa em que pensei para me substituir, e
fiquei muito feliz quando a gerência aceitou a sugestão.
Sorri, acenando com a cabeça, e passei por ela, mas parei depois
de alguns passos.
— Dani? — Ela virou para mim quando a chamei. — O que
aquele moço queria?
Ouvi um longo suspiro apaixonado, e sua reação queimou alguma
coisa dentro de mim. Seus olhos brilharam e, por um instante, ela
pareceu apenas uma menina sonhando com um príncipe encantado.
— Ele queria brigadeiros — respondeu, e eu recuei, como se algo
tivesse me atingido em cheio. Meu coração parou por alguns segundos e
tive vontade de chorar e sorrir ao mesmo tempo.
Não. Ele não queria brigadeiros.
18
QUATRO MESES DEPOIS…
Diego
Olhava para a mulher sentada na minha frente e, enquanto ela
despejava todas as suas angústias, eu só conseguia pensar que, naquele
caso, não podia fazer nada. Não podia tirar das drogas seu filho
adolescente. Não podia trazer a paz de volta para a sua família. Não
podia afastá-lo da morte iminente e do horror que é viver como um
fantasma, vagando sobre a terra em busca de um prazer mortal.
Ela secou as lágrimas que rolavam pela face e respirou fundo, a voz
ainda tremendo, mas confiante de que eu podia fazer alguma coisa.
— O senhor é minha última esperança, dr. Diego. Não sei mais
o que fazer. Ele levou tudo que eu tinha em casa. Não posso comer
porque até o pacote de arroz que tinha sobrado ele tirou de mim.
Botijão, panelas, televisão… Um dia eu cheguei do trabalho e minha
cama não estava mais lá — sussurrou, e senti vontade de abraçá-la e dizer
que tudo ficaria bem, mas não o fiz. A última vez que abraçara alguém,
ela levara meu coração.
— Posso tentar conseguir algumas doações para a senhora —
propus, mas ela balançou a cabeça em negativa, e depois sorriu. Um riso
triste e derrotado.
— O senhor não entende. Prefiro dormir no chão e comer em
botecos do que ajudar a sustentar o vício dele. Por isso prefiro uma casa
vazia, de onde ele não possa levar mais nada.
O que via era o desespero de uma mãe que sabia não ser capaz de
fazer nada, mesmo que lutasse todas as batalhas para isso.
Quando alguém entrava no mundo das drogas, ele não destruía
apenas sua vida. Sua família desmoronava sem ninguém nunca ter posto
um cigarro na boca. Aquela mãe estava tão magra quanto o filho, mesmo
sem nunca ter cheirado cocaína. O pai estava destruído, e ele nunca
experimentara ecstasy. A irmã estava perdida, mesmo que nunca tivesse
tocado em heroína. O corpo que usava era o dele, mas todos à sua volta
sofriam as consequências junto.
— Vamos tentar uma internação, dona Elisa. É difícil, ainda
mais na idade dele. Precisamos de todo o apoio da família, e mesmo
que vocês estejam cansados, é necessário que sejam fortes mais uma vez.
Não adianta nada interná-lo em uma clínica sozinho e sem o apoio de
todos. Vai por mim, sem família é muito mais difícil.
Ela sorriu em meio a mais lágrimas que desciam pelo rosto, uma
atrás da outra. Lágrimas de esperança, de alívio. Lágrimas de alguém que
enxergou uma luz no fim do túnel.
Levantei e ela fez o mesmo. Ia pedir para que falasse com o
Fabrício, mas ela me impediu, vindo até mim.
— Posso te dar um abraço, doutor?
— Claro.
Ela se aproximou e me envolveu em seus braços.
— Que Deus te abençoe e cuide do seu coração.
Quando se afastou, eu a olhei nos olhos.
— Só fiz o meu trabalho.
— Não — balançou a cabeça —, o amor nos teus olhos não faz
parte da tua profissão. Faz parte de quem o senhor é. — Respirou fundo
antes de continuar. — Dr. Diego, nós vamos te apoiar, mas saiba que
eu também entregaria ele pra vocês. Lutarei por meu menino, mas se ele
desviar ainda mais do caminho, vou rasgar meu coração, mas vou
entregar ele pra vocês.
Assenti, sabendo o que ela queria dizer. Nem todas as famílias
eram assim, conscientes do que deviam fazer. Muitas escolhiam
mergulhar em uma falsa ignorância e fingir que nada estava acontecendo.
Mas estava. E precisávamos falar sobre drogas, ou um dia elas nos
destruiriam.
Expliquei para dona Elisa quais seriam os próximos passos e a
encaminhei para a sala do Fabrício. Ele a recebeu com a competência de
sempre, e voltei para minha sala sabendo que fizera o que estava ao meu
alcance.
Sol apareceu logo depois que sentei, ainda pensando no filho da
dona Elisa. Onde ele estaria agora?
— Vai almoçar? — perguntou ela, me tirando do transe.
O relógio no canto do computador marcava meio-dia e sequer
vira o tempo passar.
— Pode trazer algo pra mim, por favor?
— Posso, mas… — Eu já imaginei Sol dizendo que trazer meu
almoço não era seu trabalho e o pedido de desculpa parou na ponta da
língua quando ela continuou. — Devia sair daqui um pouco mais,
doutor. Pelo menos na hora do almoço. Nos últimos meses, o senhor
tem chegado ainda mais cedo e saído muito mais tarde. Precisa se
desvincular um pouco do MP.
— Eu tô bem, é sério — menti.
— Péssimo mentiroso. Tem certeza de que já foi advogado? —
provocou ela.
Sorri envergonhado.
— Acho que foi por isso que mudei de profissão.
Ela também sorriu, mas logo o gesto morreu e o rosto voltou a
ficar sério.
— Não limite sua vida a isso aqui, ou isso aqui vai acabar com
você. — Sol balançou a cabeça de um lado para o outro. — Desculpe a
intromissão, mas gosto muito do senhor para concordar com essa sua
vontade de fazer parte da decoração da sala.
O pedido de desculpas foi sincero, mas ela não se arrependeu.
— Você também é minha amiga. E amigos têm liberdade pra um
puxão de orelha de vez em quando.
— Por favor — disse com entusiasmo. — Já sou intrometida
demais sem esse tipo de liberdade. Não dê asas a cobra.
Balancei a cabeça, rindo.
— Só você mesmo, dona Sol. E, para o seu governo, vou sair
com Fabrício hoje depois do expediente.
— Ele disse que o senhor não tinha aceitado.
— Bem — inclinei a cabeça —, acabei de mudar de ideia.
Ela manteve uma expressão satisfeita e saiu sem dizer mais nada.
Porém, antes de chegar à porta, perguntou, virando-se para mim: — Foi
uma mulher?
Confirmei com um aceno de cabeça.
— Caminhos opostos.
Ela assentiu.
— Já pensou em apenas seguir na mesma direção? Às vezes
funciona.
Piscou e saiu.
Sentei, recostando na cadeira, pensando em suas palavras e sobre
como elas pareciam trazer uma solução simples para os meus problemas.
Abri a gaveta e a foto dela estava lá. Eu a encontrara no banco de trás do
carro um tempo depois do julgamento. Devia ter se soltado do processo.
E eu deveria tê-la devolvido, mas não o fiz. Gostava de olhar para ela e
imaginar que estaria vivendo uma vida bem melhor, longe de todo o seu
passado. Passei o dedo pelo seu rosto, como se a tocasse. Como desejava
tocá-la.
Eu ainda pensava em Larissa.
E o pensamento nela ainda fazia meu coração acelerar.
Larissa
Quatro meses.
Cento e vinte e dois dias de uma nova vida.
Era bom contar. Ver que um dia viera depois do outro e que
agora tinha muitos para me orgulhar. Ainda havia cicatrizes, mas elas
tinham se tornado menores do que meus sonhos. Deixara para trás a
bagagem ruim e me preocupara apenas com aquilo que era bom: minha
filha e a vontade de vencer.
Um dia antes de Dennis ser preso, eu me olhara no espelho e
chorara uma última vez ao ver a mulher que me encarava de volta.
Aquela não era eu.
Não havia resquícios da Larissa que um dia eu fora. Gritei, me
debati e caí de joelhos no chão da minúscula casa que me abrigara nos
últimos meses. Fui tomada pelo desespero e o medo de ficar para sempre
naquele limbo.
Aquela não era eu.
Quando Malu me encontrou no chão e eu captei o pânico em sua
expressão, decidi que seria a última vez que deixaria a tristeza tomar os
olhos da minha filha. Decidi que ela merecia muito mais do que apenas
sobreviver.
Então levantei.
Pela minha filha, fiquei de pé naquele dia, determinada a não
mais cair.
Uma batalha. Um dia depois do outro. Como um dependente. E
talvez eu fosse realmente isso, alguém tentando se livrar de um maldito
vício. Retomar as rédeas da minha vida foi mais difícil do que pedir o
divórcio. Naquele dia eu agi impulsionada pela raiva que sentia daquele
desgraçado. Mas depois não. Depois tive que juntar os cacos e seguir em
uma caminhada que era apenas minha. Por isso muitas voltavam. Por
isso eu voltava. Sentíamos que as coisas não faziam sentindo aqui fora
porque havíamos sido programadas para isso. A verdade é que um
relacionamento abusivo não difere muito de uma lavagem cerebral. E, no
meio do caos, é difícil encontrar sua própria sanidade.
Ajeitei o avental cor-de-rosa, pronta para mais um dia de trabalho,
enquanto pensava em Dennis. Sim, ainda pensava nele. Gostava de
imaginar que ele ficaria preso para sempre, mesmo sabendo que não era
verdade. Ele havia sido capturado enquanto tentava embarcar em um voo
para sair do país. Quando o delegado me ligou, não consegui responder.
Apenas desliguei o telefone quando as lágrimas se formaram em meus
olhos. Caí de joelhos, desejando que o inferno tivesse chegado ao fim.
Pensar me ajudava a focar. Era um passado que não dava para
apagar da minha vida, pois ele destruíra boa parte do que um dia eu
fora. Por isso, pensar nele era inevitável. Assim como pensar em qual
teria sido meu futuro se tivesse me atrasado mais dois minutos naquele
dia. Se tivesse perdido o ônibus… Se Dennis não tivesse se mudado para
o mesmo bairro que eu… Se eu tivesse dito não na primeira vez... Se eu
tivesse…
Talvez eu tivesse entrado na faculdade. Ou viajado pelo mundo
com Janaína. Quem sabe tivesse dado uma chance para o meu amigo.
Com certeza teria ficado com Matheus até o fim e não carregaria essa
culpa que nunca deixaria de esmagar meu peito. Cada vez que olho para
Jana, eu me lembro dele. Do seu sorriso e de quantas vezes tentou me
avisar que eu estava caindo em uma armadilha.
Eu poderia ter encontrado outro amor. Na faculdade, em um
barzinho, correndo pela manhã no parque — se eu corresse, é claro —,
ou até mesmo em um… um… restaurante.
Pensar nele ainda fazia um sorriso despontar em meu rosto.
Lembrar dos seus olhos tão confiantes me acalmava, mesmo que
tudo estivesse apenas em minha mente. Quando sentia que ia cair,
pensava em suas palavras. Sonhara com ele certa noite. Vestindo seu
bonito terno e com os braços abertos, ele me recebia em um abraço
protetor que me fazia esquecer todas as vezes em que fora machucada.
Eu me perguntava se algum dia voltaria a me apaixonar por
alguém. A ideia havia começado com uma fagulha. Uma pontinha de
vontade de ser amada de verdade. Imaginava como seria estar em um
relacionamento saudável. Será que ele se interessaria pelas minhas
palavras? Será que me tocaria com delicadeza? Olharia para mim como se
eu fosse tudo para ele? No fim do dia, perguntaria como eu estava?
Deixar outra pessoa entrar em minha vida ainda me causava
pânico, mas fazia de tudo para acreditar que essa parte do meu coração,
um dia, iria se curar. E, quando sonhava com alguém, um amor, a
personificação dos meus pensamentos era ele.
Mas isso realmente não importava, pois eu nunca mais o veria de
novo.
— Mamãe! — Meu coração deu um salto como se fosse a
primeira vez. Não me virei depressa, desejando que ela me chamasse
mais uma vez. E foi o que fez, trazendo lágrimas para meus olhos. —
Mamãe? — Malu sussurrou.
Dei as costas para a mesa à minha frente e fixei os olhos em
minha filha. Seu uniforme estava sujo de terra e o cabelo nem de longe
se parecia com as belas tranças que eu havia feito pela manhã. Mas não
me importava. Significava que ela aproveitara o dia.
Fiz sinal com a mão, chamando-a, e ela correu até mim e se
jogou em meus braços.
— Como foi a escola? — perguntei, o coração batendo forte.
Malu olhou para trás e, depois de se certificar que não havia mais
ninguém, murmurou pertinho do meu ouvido.
— Foi boa.
Duas palavras sussurradas que faziam meu coração querer saltar
pela boca. Duas palavrinhas que carregavam uma tonelada de esperança.
Abracei-a ainda mais forte.
— Que maravilha, meu amor. A mamãe tá muito feliz.
Dessa vez ela apenas balançou a cabeça, mas depois de olhar a
colher em minha mão, piscou os olhinhos pidões para mim.
— Brigadeiro? — pediu.
— Só uma colher.
Malu sacudiu a cabeça, dizendo que não.
— Bolinha.
Fingi estar um pouco brava, mas não conseguia lidar com aquele
olhar. Fui até a geladeira e retirei um dos brigadeiros que já estavam
dentro da forminha. Entreguei para Malu e ela saiu saltitante até a sala.
De onde estava, eu podia observá-la e ficar atenta a tudo que fazia. Ela
afastou a mochila para o lado e sentou na frente da televisão. Fui até lá e
pus um dos seus desenhos favoritos, e ela sorriu para mim com os
dentinhos cheios de brigadeiro. Sorri de volta e beijei sua testa.
Ainda olhei para a janela antes de voltar para a cozinha. Estava
fechada.
— Desculpa, Lari, fui pegar a correspondência. Malu tá bem? —
Janaína caminhou, mancando com o pé engessado, esticou o corpo até
enxergar a sala e sorriu quando viu nossa menina com os olhinhos
grudados na televisão.
— Ela disse alguma coisa pra você? — perguntei, esperançosa.
Jana sacudiu a cabeça.
— Ainda nada.
Malu voltara a falar havia dois meses. De repente, do nada, me
pedira brigadeiro. Olhei para todos os lados achando que estava ouvindo
coisas, mas então ela repetiu: Mamãe. Brigadeiro. Não consegui
responder. Apenas chorei tanto que Janaína correu até nós, achando que
havia acontecido alguma coisa. Abaixei até ela e pedi que repetisse. Malu
olhou para Janaína e se calou mais uma vez.
Um tempo depois, a psicóloga explicara o que havia acontecido.
Você me disse que, quando Dennis abusava de você de alguma forma,
principalmente na frente da Malu, ele sempre dizia que ela não podia dizer
nada às pessoas, e que deveria ser uma boa menina, ficando calada. O trauma
dela está aí. Ela sente que se conversar com alguém, ele poderá voltar a fazer
algum mal para você e também para ela. Um enorme passo foi dado, mas
agora devemos ter ainda mais paciência.
Paciência. Era tudo que eu poderia fazer pela minha filha além de
lhe dar um lar seguro e saudável. Todas as minhas decisões haviam sido
tomadas colocando ela em primeiro lugar. Mudara para uma casa maior,
mas apenas a poucas quadras de onde morávamos. Malu continuava na
mesma escola, frequentando a mesma psicóloga e brincando com os
mesmos amiguinhos. Não tinha a menor chance de mudar sua rotina
sem afetar tudo que já havíamos conquistado. Então eu me adaptara às
suas necessidades e engolira o orgulho. Ligara para Odete e contara meus
planos. Ela havia me apoiado incondicionalmente, e não apenas com
palavras. Havia resolvido aceitar o dinheiro que ela oferecera aquele dia
no parque.
Olhei em volta.
Ele me ajudou a recomeçar.
— Você já não tinha terminado?
Janaína me trouxe de volta à realidade.
— Alguns não estavam bem enrolados. Resolvi fazer outra receita
para substituir os defeituosos.
— Pelo amor de Deus, Lari. Estão perfeitos — ela disse, depois
de abrir e verificar tudo que estava na geladeira. — Bolinhas
perfeitamente enroladas por mãos talentosas. Amiga, os meus brigadeiros
parecem ovos ou ficam finos e pontudos.
Não consegui sorrir.
— Você não entende. — Fiz uma pausa apenas para pôr o doce
na embalagem rosa. Só voltei a falar depois de ajeitá-lo com perfeição.
— Esta é nossa maior encomenda em três meses. Tem ideia da
divulgação que essa gente chique pode fazer? O melhor marketing ainda
é o boca a boca. Tudo precisa estar perfeito.
— Mas está — rebateu ela.
Pus seis brigadeiros dentro da caixa em forma de coroa e apontei
o dedo para eles, contando.
— Dois de morango, dois de amêndoa e dois de framboesa. —
Olhei para Janaína e ela sorriu. — Agora sim, está perfeito.
— Você é maluca.
— E você é uma péssima sócia. Tudo pra você está ótimo.
— Gata, seus brigadeiros são os melhores do mundo. Não tenho
com o que me preocupar.
Mostrei a língua, mas no fundo estava orgulhosa de mim, do que
ela dissera. Abri a geladeira, que estava abarrotada de caixas de papelão.
Dentro havia diversas caixas pequenas, como a que eu segurava nas mãos.
Por fora estava escrito o nome da nossa empresa: DELíCIAS DA MALU.
Fora por isso que pedira demissão. Meus sonhos haviam ficado
grandes demais para aquele restaurante e, depois de anos, pela primeira
vez eu havia acreditado que eles poderiam se tornar reais.
Pela primeira vez eu acreditara em mim.
— Vocês vão ficar bem? — questionei pela décima vez.
Jana revirou os olhos pela nona vez.
— Você quer que eu vá no seu lugar?
Fiquei envergonhada quando me lançou um olhar ríspido.
— Claro que não. Você quebrou o pé. É só que… — Mordi o
polegar, nervosa. — É a primeira vez.
Escutei o gesso de Janaína bater no piso da cozinha até ela chegar
aonde eu estava. Quando nos reencontráramos, havia alguns meses, temia
que nossa amizade tivesse acabado, mas estava enganada. Ela nunca
morrera. E agora, além de minha sócia, Janaína fazia parte da nossa
família. Quando decidíramos morar juntas, eu havia ficado com medo
da reação da minha filha, mas Janaína era tão alegre e animada que logo
Malu se acostumara com a presença da tia Naná em nossa casa. Era
assim que ela chamava Janaína. Minha amiga se emocionou quando lhe
contei seu novo apelido.
Um alívio poder confiar em alguém outra vez. Era como tirar o
peso do mundo das minhas costas. Primeiro Odete, depois Janaína. As
únicas pessoas a quem eu confiava minha filha e nossa segurança.
Mesmo assim, não deixava de me sentir aflita. Era a primeira vez
que os papéis se invertiam. Por causa da queda de moto em que
quebrara o pé, Janaína ficaria em casa enquanto eu serviria os doces em
uma importante festa. Eu sempre ficava na cozinha e, por esse emotivo,
minha aflição era quase aceitável.
— Vai se sair bem, amiga. Relaxa.
— Espero que sim — disse, mais para mim do que para ela.
Eu conhecia a mãe da aniversariante. Assim que meus olhos
pousaram nela, voltei ao dia em que a vira no restaurante. O cabelo
continuava o mesmo. Os fios castanhos descendo pelas costas em forma
de lindos e perfeitos cachos. Usava um vestido longo, branco, com
pequenos detalhes em rosa. Na cabeça, uma tiara de princesa e uma
maquiagem que a deixava parecida com uma das bonecas da minha
filha.
— Ah, meu Deus! — Ela suspirou entusiasmada assim que me
viu. — Não via a hora de você chegar. Por favor, pode me dar uma das
caixas? Se eu não comer um agora, meu filho vai nascer com cara de
brigadeiro — pediu, passando a mão pela barriga redonda. Meu Deus!
Aquela mulher estava prestes a dar à luz.
Vendo meu olhar e a boca aberta em uma expressão de surpresa,
ela se adiantou em esclarecer.
— Não se preocupe. É para daqui alguns meses — disse, com a
boca cheia de brigadeiro, e eu sorri. — A propósito, sou a Clara.
— Larissa
— Vamos, Larissa, vou te mostrar a mesa de doces. Meu Deus,
isso aqui — gemeu — é simplesmente divino.
Eu a segui. No caminho, Clara comeu seis brigadeiros. Todos
que estavam na caixa. Era muito simpática e educada. Acho que não me
reconheceu, pois não disse nada, então resolvi não tocar no assunto, até
porque eu a vira apenas uma vez com…
Parei, estática.
— Tá tudo bem?
Balancei a cabeça, sem saber como responder sua pergunta. As
borboletas no meu estômago ficaram atordoadas, voando de um lado
para o outro e me fazendo sentir uma sensação muito, muito estranha.
Ansiedade?
Medo?
Alegria?
Meu Deus do céu! Eu iria vê-lo mais uma vez.
Diego estaria naquela festa. A forma como falara da cunhada e da
sobrinha… Ele estaria aqui. E agora, o que eu faria? As caixas em
minhas mãos tremiam e eu tive que segurá-las com força para não deixar
nenhum doce cair. Queria sorrir. Meu coração deu um salto dentro do
peito só de pensar na possibilidade de estar outra vez no mesmo lugar
que ele.
— Querida, estou ficando preocupada.
Encarei Clara, e ela parecia mesmo agitada. Seus olhos me
observavam apreensivos, então forcei minha mente a voltar para a
realidade.
— Está tudo bem. Desculpa — pedi, e o vinco em sua testa se
suavizou. — Só um pouco preocupada com a minha filha. Ela nunca
ficou sem mim. Geralmente é minha sócia quem cuida dessa parte
externa.
Tecnicamente, não havia mentido. Realmente estava preocupada
com Malu. Ela tinha chorado quando eu saíra.
Clara abriu um amplo sorriso. Um que iluminava ainda mais seu
rosto.
— Quantos anos ela tem?
— Vai fazer quatro.
— Podemos resolver esse problema — disse, batendo palmas de
animação e me deixando confusa. — Vamos mandar buscar sua
garotinha. Teremos algumas crianças aqui, e com certeza Vitória vai
amar mais uma amiguinha pra brincar.
— Não sei.
— Mandamos o motorista, ele é de confiança.
— Motorista? — Não queria parecer deslumbrada, mas com
certeza foi como soei.
Estava com três caixas repletas de brigadeiros nas mãos e ainda
havia muitas para retirar de dentro do carro de Janaína.
— Humpf! — bufou ela. — O marido da minha melhor amiga é
um cantor famoso e eles chegaram agora há pouco. Lá embaixo deve ter
um motorista e um segurança, pelo menos. Dereck nunca sai sem eles.
Eu não fazia a menor ideia de quem ela estava falando, então só
balancei a cabeça.
— Isso é um sim?
— Não… quer dizer… — Abaixei a cabeça, minhas bochechas
pegando fogo de tanta vergonha. — Não quero incomodar. Estou aqui
pra trabalhar.
Clara me deu um sorriso tão cheio de carinho que era como se
me conhecesse. Seus olhos encontraram os meus e juro que brilharam de
forma diferente. Esse tipo de pessoa existia mesmo? Que oferecia carona
com motorista e sorria como se enxergasse apenas o lado bom da nossa
alma?
— Você está aqui porque tem os melhores brigadeiros do mundo.
Não faz ideia do quanto te procurei, Larissa. Fui ao restaurante duas
vezes até sua amiga me dar o telefone do seu bufê.
Meu queixo caiu e não houve tempo para devolvê-lo ao lugar. Ela
tinha me procurado. Lembrei que, na primeira vez, Diego dissera que
levaria os doces para ela. Ele me ajudara tanto e nem ao menos sabia.
— Vamos. Me dá o endereço que vou pedir esse favorzinho pro
Dereck.
Considerei todas as opções. Ela me parecia alguém em quem eu
podia confiar. Mesmo assim, pediria para Jana vir junto. Ela poderia
ficar sentada cuidando da Malu, ou voltar de táxi para casa.
Assenti, as caixas pesando mais do que o normal em meus braços.
— Onde eu posso…?
— Ah, desculpa. A ilha de doces vai ficar na outra sala.
Acompanhei Clara até o local que ela apontara. Tudo era tão
lindo, mas a simplicidade era o ponto forte da decoração. Havia alguns
balões, flores, luzes piscando e um castelo em tamanho gigante. Era a
única coisa extravagante de verdade naquela festa. Deixei as caixas em
uma cadeira e comecei a montar a ilha de doces. Meus olhos vaguearam
até o castelo mais uma vez.
— Ideia do meu cunhado. — Engoli em seco com seu
comentário. — Aliás, toda essa baboseira de princesa é coisa do Diego.
Nunca mais vou deixar aquele filho da mãe me convencer de alguma
coisa.
— Você não gosta de contos de fadas?
O olhar dela pousou em um ponto específico da sala. Um homem
lhe encarava de volta e pude ver o amor envolvendo os dois. Tinha uma
beleza inconfundível. Rosto másculo, barba por fazer, cabelo bem
cortado e uma expressão inabalável. Senti um pouco de medo dele. Mas
seus olhos? Hummm… Em segundos me dei conta de que era o irmão
do Diego. Os mesmos olhos.
— Nunca quis ser princesa — deu de ombros. — Prefiro a
história do Lobo Mau.
Sorri, sem graça, pois não entendi muito bem do que ela estava
falando. Clara fez o mesmo, mas sem desviar o olhar do homem do
outro lado da sala. Ele também parecia não enxergar mais ninguém. Meu
peito se apertou e minha fé se abalou por um instante. Eu não sabia
como era ser olhada daquela forma. Como se fosse tudo para alguém.
— Só um minuto — pediu, e me deixou sozinha.
A festa ainda não havia começado, mas algumas pessoas já estavam
no local. Foi inevitável procurar por ele. Vasculhei todos os lugares que
meus olhos alcançavam e só me acalmei quando tive certeza de que ainda
não estava ali.
Mas logo vai chegar, meu subconsciente gritou.
Um brigadeiro quase caiu da forminha e tive que respirar fundo
para continuar o trabalho sem deixar que nada desabasse. Era tudo um
pouco demais para mim. A ideia de ele estar ali, a quantidade de pessoas
estranhas à minha volta, a novidade de sair da cozinha. Meus nervos
estavam à flor da pele.
Clara voltou alguns minutos depois e eu já havia montado as
primeiras caixas. Um homem todo tatuado e com brincos por todos os
lados veio atrás dela.
— Você pode dar o endereço pro Dereck.
Recuei.
Eles riram.
— Tá tudo bem. Eu o conheço há anos. Ele só tem cara de mau.
O coração é tão mole quanto o nosso.
— Como é que é? — Ele pareceu bravo, mas quando Clara deu
de ombros, ignorando-o, ele sorriu.
O constrangimento se abateu sobre mim. Quis pedir desculpa,
mas achei que ficaria ainda pior. Passei o endereço para eles e avisei que
Janaína viria junto. Clara não se opôs. Ela já conhecia a Jana e sabia que
havia se machucado em um acidente. Dereck saiu, ao telefone, e deu
para perceber que não falava em português.
Durante a meia hora seguinte, fiquei com o coração na mão.
Queria me convencer de que não havia feito uma besteira, mas sabia que
Janaína deixaria Malu tranquila durante a viagem. Ela já havia pegado
táxis outras vezes, então não se assustaria com a chegada de um carro em
casa.
Mesmo assim, não aguentei a espera e mandei uma mensagem.
Estão bem?
Guardei o celular no bolso, mas ele apitou poucos minutos
depois.
Relaxa. Estamos chegando. Malu está empolgada. Amiga, que carro.
Puta merda.
Ignorei seu deslumbramento.
O.k.
Fiquei ali, ao lado dos doces. Nosso serviço de bufê de brigadeiros
incluía atender os convidados e repor a mesa durante a festa, além de
rechear brigadeiros na hora. Eu usava um vestido rosa-claro até os
joelhos, um avental preto e um chapeuzinho também cor-de-rosa. Havia
amarrado o cabelo em um rabo de cavalo e passara apenas um batom
nude nos lábios.
Malu entrou pela porta dos fundos quase arrastando a coitada do
pé quebrado. Seus olhinhos observavam tudo e ela sorriu assim que me
viu. Soltou da mão de Janaína e correu até mim, se jogando em meus
braços.
— Obrigada, mamãe.
Quis chorar.
— Deixa eu ver você. Que vestido lindo!
Minha filha olhou para Janaína e sorriu. Era sua forma de
agradecer.
— Ela escolheu o azul. Eu queria o amarelo.
Malu fechou a cara, fazendo biquinho.
— O azul está lindo — disse.
Seu cabelo estava solto, os cachinhos escuros caindo pelos ombros,
e ela usava a tiara que a bisa havia dado. Logo uma menina se
aproximou. Tímida, mas com os olhinhos tão ansiosos quanto os da
minha filha. Quando Malu não disse nada, ela deu mais alguns passos.
— Oi, sou a Vitória. É meu aniversário. Também tenho uma
tiara de princesa — disparou.
Malu segurou minha mão.
Olhei para Clara, que chegara logo em seguida, e me apressei a
explicar o que estava acontecendo.
— Malu não fala com quem ela ainda não conhece.
— Ah, sim.
Esperei que fosse me perguntar o motivo, e o arrependimento de
ter levado minha filha até ali começou a surgir. Porém, fui surpreendida.
Clara se abaixou até a filha, disse algo em seu ouvido, e depois se
afastou. A garotinha sorriu, balançou a cabeça e estendeu a mão para a
minha pequena.
— Malu, quer conhecer meu castelo?
Mais uma vez ela olhou para mim.
— Vai lá, tá tudo bem. Mamãe tá bem aqui se você precisar.
Devagar, ela soltou da minha mão. Sentia toda a sua indecisão em
me deixar. Mas ela o fez. Minha garotinha saiu segurando na mão de
uma menina desconhecida, confiando nela, assim como eu havia
confiado em sua mãe. Isso poderia ser besteira para muita gente, mas
não para nós duas. Era mais uma batalha que vencíamos.
Chorei vendo-a se afastar e Clara pousou a mão em meu ombro.
— Obrigada — agradeci, secando as lágrimas e com um sorriso
bobo no rosto.
Ela passou a mão pela barriga.
— Filhos — disse, apenas.
— Filhos — repeti.
A tarde começou a passar muito rápido. Cada vez que a porta
abria, eu imaginava que era ele. E cada vez que outras pessoas entravam,
algo se revirava no meu peito.
— Tia Lari, pode me dar mais um docinho, pufavô?
Era a terceira vez que Vitória vinha até mim. Sempre pedindo por
favor e agradecendo depois. Perguntei a Clara se a filha podia comer os
doces antes do parabéns, e ela autorizou, então peguei um brigadeiro de
morango e dei para ela. Logo ele desapareceu em sua pequena boca,
enquanto ela fazia ruídos de quem estava gostando.
— Esse é gostoso?
— Muito. — Ela balançou a cabeça. Malu estava com ela, e as
duas não se desgrudavam. Só isso já fazia todo aquele trabalho valer a
pena. Vitória fez menção de dizer mais alguma coisa quando a porta se
abriu outra vez. Não olhei, concentrada no que estava fazendo. Mas,
quando ela saiu gritando pelo salão, meu peito se apertou. — Tio Di.
Tio Di. Tio Di.
Segurei na mão da minha filha, que ainda estava ao meu lado,
enquanto observávamos Vitória pular no homem que acabara de entrar.
Seu vestido rosa bufante quase o encobriu, mas assim que ele a rodopiou
no ar, consegui ver seu rosto.
Assim como me lembrava.
Assim como sonhara.
Vitória o abraçou com força e, depois que ele a pôs no chão,
pude olhá-lo melhor.
Sorri.
Diego usava uma fantasia.
Príncipe.
Ainda olhava para ele quando escutei a menina dizer: — Tio Di,
come os doces da tia Lari. Eles são os melhores do mundo inteiro. —
Puxou a mão dele na minha direção, arrastando o homem com ela. Meu
coração quase explodiu.
Seus olhos me encontraram. O mesmo azul em que eu mergulhara
na primeira vez. Suspirei, sem saber como agir, porque no fundo estava
apavorada. Malu ainda segurava minha mão e eu agradeci em silêncio
por ela estar ali.
Quando eles chegaram, Vitória me pediu: — Tia, pode dar um
brigadeiro para o tio Di? Ele é o meu príncipe.
Meus olhos se fixaram nos dele e eu podia sentir o calor que ele
emanava. Ficou difícil respirar. A música tornou-se incoerente e tudo
que eu conseguia enxergar era o homem à minha frente.
A garotinha ainda me encarava, esperando que eu atendesse seu
pedido.
Peguei um brigadeiro e entreguei a Diego. Nossos dedos se
tocaram e, mais uma vez, meu corpo inteiro se acendeu. Mas não da
maneira que a maioria poderia imaginar. Era minha alma que voltava a
se iluminar. Um coração que havia aprendido apenas a apanhar, resolveu,
enfim, bater.
Ele ainda não havia dito nada, então abri a boca, forçando as
palavras.
— São os melhores.
Ele sorriu o sorriso que havia me encantado. Um sorriso que
iluminava seu rosto, alcançava os olhos e me fazia querer acreditar no
mundo.
Quando abriu a boca para falar, sua voz alcançou um ponto
escondido dentro de mim.
— Eu sei que são.
20
Diego
Estava parado na frente dela. Um brigadeiro na mão e Vitória me
puxando pela outra. Não podia acreditar que aquilo estava acontecendo.
Meu coração batia tão forte dentro do peito que tive medo de que ela
pudesse ouvir todo o meu nervosismo. Tentei me acalmar, juro que
tentei. Mas porra! Meu sonho estava na minha frente. A mulher que
simplesmente roubara todos os meus dias de mim — porque tudo que
consegui fazer nos últimos meses foi pensar nela — estava ali.
O sorriso tímido e os olhos amedrontados ainda estavam lá, como
se o tempo não houvesse passado. Mas se olhasse melhor — e eu olhei
— ela estava diferente. Prova disso foi sua voz saindo antes da minha.
Confiante. Estava confiante.
Ela olhou para os lados, inquieta, e eu sabia que precisava dizer
alguma coisa antes que se afastasse.
— Como está? — perguntei, controlando o máximo possível a
emoção em minha voz.
Ela não baixou os olhos como de costume.
— Bem. — Achei que não falaria mais nada, mas então mudou
de assunto. — Essa é uma parte da minha nova vida. Delícias da Malu.
Olhou para o lado, para a garotinha que segurava sua mão. Malu
trazia a mesma doçura no olhar, capaz de alcançar o fundo da nossa
alma. Ela me encarava o tempo todo, e tive uma leve impressão de que
sabia o motivo. Eu quase poderia ter saído de uma história infantil
qualquer. Desde que Clara perguntara a Vitória sobre seu aniversário, ela
vinha dizendo que queria que eu fosse seu príncipe. Eu, óbvio, dissera
sim. Por isso, estava na frente da mulher por quem me apaixonara
vestindo uma roupa com mangas bufantes e um chapéu que carregava
uma pena na ponta. E claro que havia uma espada. Um príncipe nunca
sairia de casa sem ela.
— Oi, princesa. Você já viu nosso castelo? — Maria Luiza olhou
para Larissa, depois para mim, e balançou a cabeça. Ela ainda não falava.
— Vamos voltar lá? — interrompeu Vitória, me deixando e
pegando na mão da outra garotinha. Para minha surpresa, ela seguiu
minha sobrinha sem titubear.
Larissa acompanhou meu olhar enquanto as duas corriam até as
outras crianças. Quando chegaram lá, Vitória não soltou a mão de Malu,
e as duas foram juntas até o castelo.
— Sua sobrinha é um encanto.
Sua voz me chamou de volta. Eu mal conseguia responder, porque
era difícil acreditar que a ouvia mais uma vez.
— Ela é.
— Malu está se divertindo com ela.
— Isso é muito bom. Estou realmente feliz em ver que ela está
bem.
— Preciso voltar a trabalhar.
Ela me deu as costas.
— E você, está bem? — As palavras pularam da minha boca.
Larissa me olhou de novo e sorriu.
— Eu fico bem quando minha filha está bem. Então sim, estou
mais do que bem.
Apenas balancei a cabeça, decidindo me afastar um pouco, mas
ela me chamou.
— Dr. Diego. É… Obrigada por tudo. Nem sei como agradecer.
Resolvi brincar com ela e retirei o chapéu, fazendo uma
reverência. Quando me levantei, busquei seus olhos. Ela estava de boca
aberta.
— Príncipe Diego à disposição — disse, fazendo-a rir baixinho.
— E tem uma coisa que você pode fazer, Larissa. — Ela me olhou
apreensiva. — Me chamar de Diego. Não sou mais um promotor de
justiça e nem você alguém que precisa dos meus serviços. Somos duas
pessoas comuns que se encontraram por acaso em uma festa. Um
homem e uma mulher… Apenas isso.
Queria que ela entendesse minhas palavras.
Sou apenas um homem que te deseja muito. Que achou que era um
encantamento passageiro, mas que acaba de perceber que está apaixonado de
verdade. Muito apaixonado.
— Eu…
— Aí está você. — Clara interrompeu. — Você realmente se
superou, Di. Está ridículo. Só não mais do que o Bruno quando se
vestiu de Tigrão para pedir Laís em casamento.
Mal processei as palavras que ela dizia. Larissa se afastou assim que
Clara chegou, e eu me senti mal por ela ter ido para longe. Queria falar
mais com ela. Desejava mais dela. Qualquer coisa que pudesse me dar
seria o suficiente para matar a saudade que crescera dentro de mim.
— Aquele dia realmente foi memorável. — Clara continuava
falando, como se uma lembrança surgisse em sua mente. — Diego, você
está me ouvindo?
— Aham.
— Olha lá, a Vitória acabou de se pendurar do lado de fora da
janela.
— Que bom.
— Diego! — gritou ela.
— A Vitória o quê? — Foi minha vez de gritar, enquanto meus
olhos procuravam a janela. Meu coração só se acalmou quando vi minha
sobrinha sentada no chão, abrindo um presente.
Fuzilei Clara com o olhar.
Ela deu de ombros.
— Você não estava me ouvindo.
— Precisa enfiar minha princesa no meio?
Ela deu de ombros outra vez. Que diabos!
— Se ela não chamasse sua atenção, mais ninguém faria. Quer
dizer… — murmurou, olhando para a mesa de doces. — Acho que só a
docinho ali seria capaz de tal proeza, não é mesmo?
Pigarreei.
Ajeitei o chapéu na cabeça e virei as costas. As coisas com Larissa
já eram difíceis por si só. Não havia nenhuma necessidade de Clara se
meter e torná-las ainda piores.
— Não faço a menor ideia do que você tá falando — disse, com
falsidade.
Clara me seguiu, parando na minha frente.
— Você é um péssimo mentiroso, Diego Mendes Ferraz. —
Sorriu e me deixou seguir, ficando para trás, mas ainda ouvi sua voz
murmurar algo como eu estava certa. Tinha até medo de perguntar do
que falava, então apenas continuei caminhando.
Tinha tudo para me distrair naquela festa. Todos pegavam no
meu pé pela minha fantasia — menos minha mãe. Santa mãezinha. A
conversa alternava entre assuntos jurídicos, shows de rock, prédios em
construção, cirurgias de emergência, crianças, partos… Mas eu não
prestava atenção em nada do que eles falavam. Vitória me puxava para
dançar com ela de vez em quando, e esse era o tempo que usava para
procurar Larissa. Quando meus olhos a encontravam, era inevitável sorrir
como um adolescente apaixonado. Ela, por sua vez, apenas baixava a
cabeça e seguia mexendo em qualquer outra coisa. Não me importava.
Eu conhecia todos os seus medos, mas agora também sabia de suas
conquistas. E a admirava cada vez mais.
Deixei Vitória mais uma vez e decidi ir até ela, mas me
interceptaram no meio do caminho. Alexandre apenas sacudiu a cabeça,
mostrando um canto afastado do salão.
Olhei para trás, vi Larissa, mas acabei seguindo meu irmão.
— Posso saber o que aquela garota está fazendo aqui?
— Não entendi.
— A vítima daquele caso — esclareceu.
— Qual caso? — perguntei entre dentes.
— Não se faça de desentendido, moleque. Você sabe muito de
quem estou falando.
— Eu sei muito bem de quem você está falando — repeti. — Só
não sei por que você está falando.
Alexandre estava irritado. Os olhos semicerraram e as sobrancelhas
se juntaram no meio da testa, como de costume.
— Quero saber como essa garota veio parar dentro da minha casa,
junto da minha família?
A raiva dele já estava me contagiando.
— Foi sua mulher que trouxe aquela garota. Nem sabia que a
Larissa estaria aqui. Agora o que eu não entendo é por que você está
agindo como um babaca — rebati, alterando a voz, mas ainda falando
no mesmo volume.
Ele passou a mão pelos cabelos, dando as costas para mim e
voltando a me encarar logo em seguida.
— Eles voltam, Diego. Você sabe que voltam. E eu não quero
minha família, e isso incluiu você, nesse fogo cruzado. Sei que a garota
não tem nada com isso, mas se aquele desgraçado chegar perto de um de
vocês…
— Não vai.
Ele riu, irônico.
— Para de agir como se pudesse mudar o mundo, moleque. —
Seu olhar seguiu até onde Larissa estava e depois voltou para mim. —
Vai adiantar eu te avisar que isso vai dar merda?
Balancei a cabeça.
— Gosto dela.
— Jura? Realmente eu não conseguiria chegar a essa conclusão
sozinho. — O sarcasmo pingava das suas palavras, e eu sorri. Alexandre
deu as costas, saindo, mas virou para me dizer algo mais. — Porra! Tira
esse chapéu ridículo.
Segurei o chapéu na mão, analisando-o. De repente, até aquela
pena pareceu mais interessante do que as palavras do meu irmão.
Larissa
Uma parte de mim olhava para o Diego e pensava Uau!, mas a
outra parte olhava para o homem e pensava que ele era alguém que um
dia poderia vir a me machucar. Era insano imaginar que sempre olharia
as pessoas assim, classificando-as em graus de periculosidade.
Eu não era burra. Estava na cara que ele havia dito mais do que
eu esperava ouvir. No entanto, o que eu iria fazer com essa informação
me apavorava. Entrava em pânico só de pensar em entregar minha vida,
meu corpo e meu coração para outra pessoa. Mesmo que essa pessoa
fosse um homem que lutava por pessoas como eu. Não confiava em
ninguém. A maldade não vinha com um aviso. Então, não importava se
era um maltrapilho ou alguém usando um terno caro. O que ele trazia
em sua alma era a única coisa que iria defini-lo.
Foi por isso que deixei aquela festa sem falar com ele mais uma
vez. Aproveitei um momento em que estava distraído, falei com Clara e
fui embora levando minha filha. A maneira como ela me olhou, e depois
para o cunhado, foi estranha. Como se soubesse dos meus pensamentos.
Fiquei envergonhada. Primeiro porque havia sido paga para servir na
festa, e não para admirar os homens da sua família. Segundo, por
constatar que eu realmente estava admirando um homem da sua família.
Entrei com Malu no carro e partimos depressa para casa. Janaína
não ficara nem meia hora na festa e havia ido embora inventando uma
desculpa, mas eu sabia que ela estava de caso com um carinha, por isso
aproveitava cada momento que não estava comigo para ficar com ele.
No caminho, pensei ter ouvido coisas, e jurei que ficara maluca.
Mas não estava. Malu estava mesmo cantando “Livre estou” bem
baixinho. Ela cantarolava o refrão enquanto brincava com a boneca que
Clara dera como lembrança do aniversário. Comecei a cantar também,
sem desviar os olhos da rua. Não queria intimidá-la. Minha filha parou
por um instante, e quando percebeu que eu não a encarava, continuou
cantando. Repetimos o refrão umas vinte vezes até chegar em casa, e a
música tornou-se a minha favorita de todos os tempos.
Como havia previsto, Janaína não estava em casa. Pus Malu para
dormir e, depois de um longo banho, aproveitei o silêncio total para ler
um livro novo que comprara. Tinha me interessado pela sinopse, mas o
que me impulsionara a trazê-lo comigo fora a capa. Havia um homem
seminu nela. Quando peguei o exemplar, minha primeira reação foi
devolver à prateleira. Mas então percebi que a Larissa que eu fora não se
limitaria tanto assim. Então fiz um exercício que passei a repetir com
frequência. Cada vez que tinha que tomar uma decisão, imaginava uma
Larissa sem o Dennis decidindo por mim. Foi assim que peguei o livro
de volta. Eu era livre para fazer aquilo e muito mais. Uma liberdade que
eu conquistara. Não havia sido nenhum juiz que me dera. Fora eu,
apenas eu, que decidira sair do inferno. Eram méritos meus e ninguém
nunca tiraria isso de mim.
O livro era bom. Na página setenta minhas bochechas começaram
a pegar fogo. Partes do meu corpo começaram a esquentar quando li
tudo que o mocinho estava fazendo com a mocinha. Desejo insano de
estar no lugar dela e ser tocada daquela forma, com tanta devoção,
respeito e amor. Fechei os olhos e imaginei exatamente isso, que era eu
dentro daquelas páginas. Então me toquei. Coisa que voltara a fazer nos
últimos tempos.
Você precisa conhecer seu corpo. Estar em paz com ele.
Nos últimos dois meses, resolvera me abrir com a psicóloga sobre
sexo. Infelizmente, o trauma deixado por Dennis não surgira depois
daquele maldito dia. Durante o casamento, era proibida de me
masturbar. Afinal, eu tinha um marido em casa que me satisfazia, não
havia necessidade de buscar prazer sozinha. Fora privada de tantas coisas
ao longo dos anos que me sentia uma virgem.
Não mais…
Abri as pernas, afastei o short que usava e meus dedos se
esgueiraram para dentro dela. O tecido era leve, convidativo, e roçava em
minha pele quente, causando arrepios. Afastei os grandes lábios até
encontrar o ponto que agora pulsava desesperado. Eu o toquei, e fiquei
impressionada com como sabia com exatidão onde tocar. Fiz um pouco
de pressão, mexendo o clitóris para os lados, esfregando o dedo nele.
Pensei no que acabara de ler, imaginei a cena, o sexo, os gemidos…
Pressionei mais o dedo, tocando a parte interna da minha boceta. Meu
coração passou a bater acelerado e minha testa começou a suar.
Contorci-me sobre a cama, temendo fazer algum barulho, enquanto
sentia o orgasmo se aproximando. Girei o quadril sobre meu dedo,
encontrando outro ponto em meu interior que nem sabia que podia me
dar tanto prazer. E deu. No momento em que o pressionei, o orgasmo
veio rápido e forte. Durou apenas alguns segundos, mas tempo suficiente
para me fazer delirar. Joguei a cabeça para trás e fechei os olhos. Pensei
no mocinho do livro, mas nenhum rosto concreto veio à minha mente.
Eu imaginava apenas seus olhos.
“… mergulhei em seus olhos azuis e desejei nunca mais sair dali.
Sentia-me protegida, segura e amada.”
Eu conhecia olhos assim.
Larissa
— Você vai mesmo?
Janaína estava encostada no batente da porta da sala e ainda me
encarava com um olhar desacreditado.
— Eu disse que ia, não disse? Então — respondi, enquanto
preenchia uma planilha que me dava mais dor de cabeça do que
informação. Precisava de um curso, faculdade, ou pelo menos um
treinamento que me desse um pouco mais de conhecimento. E rápido…
— Quer que eu faça? — perguntou ela.
— Não. Eu consigo.
— Tudo bem — deu de ombros, sem insistir. Jana sabia que eu
estava me esforçando para aprender cada vez mais, por isso deixava que
eu me virasse sozinha de vez em quando. — E a Malu?
Foi a única coisa que fez minha atenção se desviar para ela.
Janaína havia me chamado para sair e eu tinha aceitado. Fizera
isso por mim e por ela. Hoje fazia quatro anos que Matheus se fora.
Durante a semana inteira, ela andara cabisbaixa e chorando pelos cantos,
mas eu a conhecia muito bem, sabia que hoje, no dia mais difícil,
minha amiga iria querer sair e ocupar a cabeça com qualquer outra coisa
que não fossem as lembranças do irmão. Era doloroso demais.
Eu também queria sair e ver outras pessoas. Queria testar minha
capacidade de estar com gente desconhecida. Fazia uma semana desde o
aniversário de Vitória. Gostara de como me sentira naquele lugar,
interagindo com tantas pessoas. Eu me sentira viva de novo. E isso nada
tinha a ver com o Diego. Mas era óbvio que ele acendera algo dentro de
mim, e eu começava a sentir que poderia fazer muito mais do que vinha
fazendo.
— Pedi à Odete que ficasse com ela — falei baixinho, palavras
ainda incertas.
Essa era a parte que duelava dentro de mim: deixar minha filha
com outra pessoa. Mesmo que confiasse em Odete, sabia que ninguém
cuidaria tão bem de Malu quanto eu. Mesmo assim, precisava tentar dar
esse passo. Essa dependência não podia durar muito tempo, ou faria mal
para nós duas. Tinha consciência disso, mas a mente não parecia mandar
tais informações para o coração, que era esmagado apenas com a
possibilidade de me separar da minha filha, mesmo que por poucas
horas.
— Você está bem? — perguntou ela, preocupada.
Balancei a cabeça, sorrindo.
— Vai ficar tudo bem.
Janaína andou até mim e me envolveu em um abraço desajeitado,
meio de lado, meio de costas, que culminou em risadas. Eu a olhei e vi
algumas lágrimas rolando por seu rosto. Ela se parecia tanto com
Matheus.
— Vai ficar, porque você é a melhor! — Ela beijou meu rosto e
saiu. Talvez não quisesse compartilhar as lágrimas que revelavam sua dor.
Eu a entendia muito bem. E como.
A semana havia sido agitada. Depois de aceitar a ideia da Jana,
começamos a trabalhar duro para o festival de food trucks. Investimos
em uma embalagem especial, adesivos para o caminhão que ela tinha
alugado e divulgação. Inclusive, acabara de publicar no nosso site um
banner lindo, feito especialmente para o evento. Jana tinha razão, o
festival seria uma forma diferente de divulgar nossos doces. Sem falar que
também iríamos nos divertir.
Devido à festa do final de semana, as encomendas também
haviam aumentado. Mas uma delas fora especial. Um pedido singelo e
cheio de segundas intenções. Depois da troca de mensagens no domingo,
não falara mais com Diego. Até o dia anterior, quando ele havia ligado e
pedido uma caixa grande de brigadeiros para comemorar o aniversário de
uma funcionária do Ministério Público. Janaína atendera o telefone, mas
ele pedira para falar comigo. Sua voz fez meu coração bater forte e
minhas mãos tremerem. Quase não consegui falar quando ele perguntou
se eu iria fazer a entrega. Queria muito dizer sim, mas não podia. Diego
se disponibilizou a vir buscar, mas aquele medo ainda em brasa que vivia
dentro de mim fez com que eu evitasse o encontro. Mandei um
entregador até ele.
Se ele tivesse ficado tão decepcionado quanto eu, sua frustração
seria grande. Tudo que recebi dele depois foi uma mensagem.
Os melhores. J
Ele também me entregara seu sorriso.
Diego
Fechei o notebook sabendo exatamente o que iria fazer. A
excitação tomou conta de mim apenas pela possibilidade do que poderia
acontecer naquela noite. Tomei um banho demorado, sonhando
acordado o tempo todo, como um adolescente apaixonado. Sentia-me
assim. As mesmas sensações. Foi uma das únicas vezes em que parei na
frente do guarda-roupa sem saber o que vestir. Optei por jeans e
camiseta. Tinha que me desvincular o máximo possível da figura do
promotor que ela sempre vira. Queria que enxergasse apenas o Diego, o
cara que não parava de pensar nela um segundo sequer.
Depois do aniversário de Vitória, eu havia enlouquecido. Não
vira Larissa sair e isso me frustrara em um nível que não sabia explicar. A
vontade que crescia dentro de mim era de ir atrás dela, mas não podia.
Larissa era diferente. Pela primeira vez, eu tinha que agir com a cabeça,
e não com o coração. Controlar minha impulsividade era algo que
tentara trabalhar durante toda a semana. Mas fora inútil. Explodi quando
vi sua mensagem. Não só pela foto com a menina, mas pelo fato de ela
ter tido a confiança necessária para estabelecer o primeiro contato. Eu
podia imaginar a luta que travara para escrever aquelas poucas palavras e,
meu Deus, como eu tinha orgulho disso. Larissa poderia se chamar
“recomeço”. Ela inspirava esse ato, puro e singelo.
Colocava o relógio quando o interfone tocou. Fui até lá correndo.
Quem quer que fosse, teria que voltar depois.
Manuela.
Bem, o que havia pensado não se aplicava a ela.
Pedi que o porteiro liberasse sua entrada e logo ela tocou minha
campainha. Quando vi Manu na minha frente, sabia que ela não estava
em seu melhor dia. O rosto transparecia cansaço e eram visíveis as
olheiras abaixo dos olhos. O cabelo cacheado estava preso em um coque
e ela deixou os ombros caírem assim que me viu. Seus olhos estavam
marejados, então apenas me calei, esperando que me contasse o que
estava acontecendo. Desejei que não fosse o Dereck, ou teria que chutar
a bunda dele.
— Perdi um paciente.
Sua voz saiu embargada.
Devia ter imaginado.
Puxei Manu para dentro do apartamento e a abracei. Ela envolveu
minhas costas com os braços e descansou a cabeça em meu ombro.
Fungava como uma criança, e meu coração sempre se apertava quando a
via assim. Manuela amava sua profissão. Ser médica era tudo que ela
sabia fazer de melhor, mas nunca conseguira ser apenas razão, por isso
sempre ficava arrasada quando perdia alguém.
— Tenho certeza de que você fez de tudo — tentei acalmá-la.
Ela fungou mais uma vez, afastou-se e limpou as lágrimas com a
manga da camisa.
— Meningite. Rápida e cruel. Um menininho.
Sentia toda dor em seus olhos, por isso não pensei duas vezes.
— Quer companhia?
Ela apenas balançou a cabeça.
Fiquei dividido, mas sabia que Manu precisava de mim naquele
momento. Eu a levei para o sofá e a escutei contar toda a história do
garoto. De vez em quando sorria ao se lembrar dele, mas logo lágrimas
voltavam a enfeitar seus lindos olhos tristes. Fiz de tudo para acompanhar
suas palavras e envolvê-la com meu carinho, mas a verdade era que meu
coração não estava ali, e muito menos meus pensamentos.
— Está com fome? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— Talvez. — Suspirou e mudou de assunto. — A banda resolveu
fazer um show extra na Irlanda. Os ingressos para as duas datas esgotaram
em poucas horas. Dereck vai ficar lá por mais dois dias.
— Isso é bom, ué. A carreira dele nunca esteve tão no auge
quanto agora.
— Estou com saudade — choramingou ela, e eu ri. — O quê?
Você nunca sentiu saudade de alguém? Poxa, é meu marido.
Saudade. Quanto tempo era necessário para sentir a falta de
alguém? Seria possível sentir saudade de uma pessoa que nunca estivera
com você? Não sabia responder, mas sabia dizer que sentia falta da
Larissa. Do seu sorriso tímido e olhar envergonhado. Sentia falta de
como ela fazia eu me sentir quando sua voz delicada chamava meu nome
ou apenas perguntava se eu queria algo mais.
Se saudade era ausência, havia um grande vazio dentro de mim.
— Você quer comer alguma coisa? — perguntei, insistindo.
— Qual o seu problema com comida, Diego? Até parece que
passou fome. Não estou com tanta fome assim.
— Mas a gente vai sair para comer — afirmei, puxando sua mão
e fazendo com que levantasse do sofá.
Manu me seguiu reclamando e xingando alguns palavrões. Ri
quando soltou um fuck, mas, assim que chegamos à porta, fui eu quem
teve vontade de gritar merda.
Sofie estava parada do lado de fora.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei, antes de
cumprimentá-la.
— O porteiro não estava lá embaixo, então subi — respondeu,
constrangida. — Mas tudo bem, eu posso voltar outra hora.
No mesmo momento me arrependi do que havia dito. A
ansiedade de sair logo de casa me deixou nervoso e acabei descontando
em uma garota que não tinha nada a ver com tudo que estava
acontecendo.
— Desculpa, é que estávamos de saída.
— Tudo bem, eu volto outra hora. Na verdade, só queria saber se
você queria sair, comer alguma coisa, ver um filme.
— Que ótimo — Manu interrompeu a conversa. — O Diego tá
faminto e eu não tô nem um pouco a fim de sair pra comer. Bem —
deu dois tapinhas em meu ombro —, sua companhia chegou.
Manu deu apenas dois passos, mas eu a fuzilei com o olhar, então
ela parou, entendendo meu pedido desesperado, e voltou.
— Pensando bem. Por que não vamos nós três? — reconsiderou.
Sofie sorriu e Manu fez o mesmo.
Eu estava muito ferrado.
Larissa
Fiquei estática, e Malu parecia tão surpresa quanto eu. Havia duas
mulheres na minha frente. Uma delas eu reconheci, e, pelo seu olhar, ela
também sabia quem eu era.
— Você… — Bateu o dedo no queixo. — Conheço você.
— Minha empresa serviu os doces no aniversário da filha da
Clara.
— É isso… Você é a garota dos brigadeiros. — Ela olhou de um
lado para o outro. — Vocês estão aqui?
Eu sorri ao ouvi-la me chamar daquela forma. É, parece que
brigadeiro virara meu segundo nome.
— Ali… — Apontei para onde o food truck estava. Odete e
Janaína estavam lá, assim como Heitor, que fizera questão de nos ajudar
a montar tudo. Fred apareceu no começo da noite e eu fiquei feliz em
vê-lo. Ainda mais porque trazia a loira do bar grudada em seu braço. Eles
ficaram um tempo e depois foram embora. Acabou que virei cupido.
— Será minha primeira parada — disse a morena que eu não
sabia o nome. — Sempre gostei de sobremesa antes do jantar mesmo.
Você vem, Sofie? — perguntou para a ruiva ao seu lado. A garota não
parava de me encarar desde a hora em que abri a boca. Me analisava,
medindo cada centímetro do meu corpo. Sentime acuada diante de sua
beleza exótica. Parecia ter saído direto da TV com aqueles cabelos ruivos
e olhos expressivos.
— Tudo bem. Vou esperar o Diego — respondeu ela.
Escutar o nome dele em sua boca fez alguma coisa sacudir dentro
de mim. Sua voz pronunciava o nome de uma forma que transbordava
intimidade. Ela era algo dele. Foi a única coisa em que eu me fixei.
A outra mulher deu de ombros e saiu em direção ao Delícias da
Malu. Deveria ter ido com ela, mas ainda podia escutar a voz do Diego
avisando que voltaria logo, quase pedindo que eu o esperasse. E foi o
que fiz. Mesmo com essa garota me encarando. Observei seus olhos por
um tempo e ela ia… ia… chorar?! A garota estava prestes a desabar na
minha frente.
— Então você é a Larissa?
Não soube o que responder, ainda mais quando ela secou a
lágrima que escorria pelo rosto. Fiquei imaginando se Diego havia falado
de mim. Ainda pior: se ele tinha contado toda a minha história. Meu
rosto esquentou e de repente senti uma enorme vontade de sair dali,
querendo me esconder de seus olhares julgadores. Não precisava mais
daquilo. Porém, minhas pernas não me obedeciam, ainda paradas na
frente daquela garota. Olhei além dela e vi Diego se aproximar, ainda
falando ao telefone e com um sorriso largo no rosto. A garota levou a
mão ao rosto mais uma vez. Olhou para trás antes de se afastar. Antes
que eu dissesse alguma coisa, ela voltou um passo e me encarou.
— Ele disse seu nome enquanto dormia — sussurrou, em um
tom quase inaudível. — Assim que ele te viu, eu soube quem você era…
Larissa. — Meu nome estalou em sua boca. — Ele nunca me olhou
como olha pra você. Espero que saiba que ele é o melhor homem do
mundo.
E foi embora.
Ela apenas foi embora.
Estava desnorteada.
Eram tantas informações na minha cabeça que eu não conseguia
assimilar todas elas. Como bombas, uma a uma foram explodindo
dentro de mim. Não sabia o que pensar ou como agir. Mas precisava
descobrir porque Diego estava vindo em minha direção e eu não
conseguia mais sorrir. Aquela garota tinha me quebrado mais um pouco.
Minha paixão. Minha esperança. Com poucas palavras, destruíra o laço
que me ligava àquele homem.
Enquanto dormia.
De tudo que ela dissera, era a única coisa em que conseguia
pensar. Eles dormiam juntos.
— Plíncipe. Plíncipe — sussurrou Malu, e eu só queria sair dali o
mais rápido possível. Eu a peguei no colo e comecei a caminhar. Antes,
vi o sorriso no rosto do Diego morrer.
— Larissa — chamou ele.
— Plíncipe — repetia Malu.
— Ele não é um príncipe, meu amor. — Elevei o tom de voz e
senti raiva de mim mesma. O que disse para Malu me magoou, pois,
assim como ela, eu acreditava no que ele parecia ser.
— Larissa, por favor.
Ouvi sua voz mais perto. Senti seu cheiro. E as lágrimas arderam
em meus olhos. Respirei fundo antes de me virar. Ele não me veria
chorar. Porém, quando encarei seus olhos azuis tão perturbados, foi
exatamente isso que fiz, deixei uma lágrima cair.
— Mamãe, chola não.
Foi Malu quem secou minha bochecha. Meu coração se apertou e
eu queria que o mundo inteiro não ficasse contra mim só uma vez. Para
alguém que estava cansada de ouvir não, não era pedir muito.
— Sua namorada foi embora.
— Quem?
— A garota ruiva. Ela foi embora.
Ele arregalou os olhos.
— Sofie disse que era minha namorada?
Queria odiá-lo por me fazer aquela pergunta. Por jogar toda a
responsabilidade em cima da pobre garota. Virei as costas para ele sem
dizer nada e voltei a caminhar.
— Por favor, me escuta.
— Acho que não tenho nada pra ouvir, dr. Diego.
Continuei andando. Malu em meus braços, virada para trás. Ela
ainda sussurrou a palavra príncipe pelo menos três vezes antes de
chegarmos ao nosso truck.
— Oi, princesinha. — Eu ainda o ignorava, mas ele respondeu à
minha filha. Aquilo me fez ficar com mais ódio. Ele também a envolvia
em sua teia de mentiras. Malu não podia sofrer de novo, e era
exatamente isso que aconteceria se eu deixasse Diego se aproximar ainda
mais.
— Vai embora.
— Larissa, me deixa explicar?
Diego ainda estava atrás de mim e, pelo seu olhar, não ia sair dali.
A cabeça mandava eu me afastar, mas meu coração batia tão pesado
dentro do peito que deixei que ele ganhasse aquela batalha.
— Vai com a bisa, meu amor. — Odete me olhou confusa. —
Está tudo bem — tentei acalmá-la quando seu olhar pousou em Diego
atrás de mim.
— Podemos conversar? — insistiu ele, a voz quase implorando.
Não ia ter aquela discussão na frente da minha família, mas
também não queria ir para muito longe, então caminhei até perto do
palco. Uma distância razoável para que a música não atrapalhasse. Parei
de frente para ele, mas quando Diego abriu a boca, não deixei que
falasse. Não seria ele quem conduziria a conversa. Não haveria espaço
para mentiras.
— Você me enganou. Mentiu pra mim — disparei, mesmo
sabendo que aquilo era loucura. Ele não me devia nada. Mas um homem
não deveria fazer promessas que não poderia cumprir. E Diego me fizera
várias, e muitas vezes sem dizer uma única palavra.
— Você… O que está dizendo? Eu nunca menti pra você.
Minha garganta estava seca. Era horrível me sentir daquele jeito,
dominada pelos meus sentimentos. Eu tinha que voltar à razão.
Prometera que nunca mais o amor me cegaria, e por mais que estivesse
disposta a abrir meu coração mais uma vez, faria com a consciência de
que o amor-próprio era inegociável. Nunca mais deixaria minha
felicidade nas mãos de outra pessoa. Então respirei fundo, para dizer as
palavras que precisavam ser ditas.
— Você ficou dizendo aquelas coisas. Insinuando que a gente…
— Respirei fundo. — Que estava…
— Interessado em você? — interrompeu. Fiquei em silêncio,
apenas encarando o homem que parecia tão perdido em minhas palavras
e, ao mesmo tempo, tão confiante em suas próprias. — É porque estou,
Larissa. E eu tentei. Juro que tentei afastar o que estava sentindo, porque
não era ético me envolver dessa forma. Mas eu falhei. Cada dia que
passava, você tomava um espaço diferente dentro de mim, e hoje eu vivo
cheio de você.
— Eu não entendo…
Meu coração batia muito forte e rápido. Uma sensação única de
estar viva.
Ele sorriu com tanta gentileza que me derreti.
— É simples de explicar. — Diego se aproximou. Recuei dois
passos, então ele parou. — Eu tô apaixonado por você desde a primeira
vez que te vi. E eu planejei mil maneiras de te dizer isso sem te assustar,
mas agora o assustado sou eu. — Ele riu de maneira nervosa. — Meu
coração está em pânico por pensar que você pode virar as costas para
mim antes que eu possa dizer qualquer coisa.
Era exatamente isso que eu ia fazer antes de suas palavras me
deterem, mas ainda queria uma explicação. Na verdade, queria que ele
explicasse o que aquela garota havia dito. Que ele reconstruísse o castelo
que havia sido destruído com aquelas palavras.
— Pode dizer — pedi.
— Podemos sair daqui?
— Não. A gente vai conversar bem aqui.
Ele passou as mãos pelos cabelos, arrastando os fios e parando na
nuca. A camiseta que vestia apertava seus braços, e ele parecia muito
diferente de todas as vezes em que o vira, como se fossem homens
completamente distintos. No tribunal, seus olhos me acalmaram. Foi
neles que busquei forças para voltar àquele dia em que estivera no
inferno. Mas hoje não. Seus olhos eram inquietantes, como se não
conseguisse controlar os próprios sentimentos. Não me acalmavam. Me
faziam ferver.
Ele respirou fundo e aguardou alguns segundos antes de começar a
falar. Odiava o fato de estar escolhendo as palavras, como se eu fosse
quebrar na sua frente.
— Eu e Sofie namoramos por muito tempo, mas acabou.
Meu coração pulou uma batida e engoli em seco.
— Não quero ser responsável por isso.
— E não é. Terminamos há muito tempo. Há anos…
— Ela disse que você fala enquanto dorme. Isso quer dizer que
não acabou completamente.
Diego respirou fundo, parecendo ainda mais nervoso. Nunca o
vira agir assim. Sempre era tão calmo, gentil, que o fogo nos seus olhos
começou a me assustar. Era intenso e devastador.
— Nunca mentiria para você. E espero que acredite que não sou
esse tipo de cara. Quando estou com alguém, eu me entrego por
completo. Você precisa entender que não há mais ninguém na minha
vida. Sofie passou por ela e, depois de muitos anos, voltou. A gente
achou que podia continuar, mas percebi que o passado era uma fenda
grande demais para ultrapassar, então ficamos apenas com as lembranças
boas do que vivemos. — Ele parou apenas para recuperar o fôlego.
Respirei junto com ele. — Eu nunca a traria comigo. Principalmente
porque você foi a única pessoa capaz de me fazer atravessar a cidade para
estar aqui. Foi uma coincidência.
A confusão duelava com a vontade de acreditar nele. Fiquei com
medo. Vira como aquela garota havia sido arrasada pelo que sentia por
Diego. A forma como ficara. A tristeza em seus olhos. Eu não
sobreviveria àquilo. Mas então o encarei. A forma carinhosa como me
olhava de volta. Como me pedia para acreditar nele. Eu não queria, mas
meu coração ignorava os sinais e eu apenas quis acreditar que seria
possível. Que contos de fadas ainda poderiam acontecer comigo. Então
sorri. As lágrimas descendo com insistência, porque tudo em mim
transbordava, querendo encontrar tudo dele. A outra Larissa gritava,
implorando para ser ouvida, pedindo uma única chance.
Não podia matá-la dentro de mim. Ainda havia vida, e eu
poderia vivê-la.
Passei as mãos pelo rosto e ergui a cabeça, respirando fundo e
buscando por coragem. Coragem para dizer sim. Não ao Diego, mas a
mim. Ao que eu ainda podia ser, sentir.
Encarei o homem à minha frente e deixei o sorriso surgir.
— Achei que tinha vindo por causa dos brigadeiros.
Ele piscou, sacudindo a cabeça em um sinal negativo.
— Dessa vez não. Eu vim por você. Apenas por você. Todo por
você.
— Isso é loucura! — exclamei. — Como e por que estamos
sentindo isso?
Ele se aproximou, e dessa vez não recuei. Então, ele ficou muito
próximo de mim. Seu cheiro confundia os meus sentidos. Era um
aroma tão acolhedor, tão Diego. Fechei os olhos, escutando sua
respiração cada vez mais próxima, e me concentrei nela. Em como
parecia desregular à medida em que se aproximava. Senti quando roçou
os dedos nos meus, tão devagar que me perguntei quando por fim iria
me tocar. Mas ele ficou ali, brincando, sentindo minha pele, até que
nossos dedos se enroscaram. Abri os olhos para ver nossas mãos unidas e
engasguei com o nó que se desfazia em minha garganta.
— Você acredita em Deus? — perguntou, encarando o fundo dos
meus olhos. Balancei a cabeça, confirmando. — Pode explicar sua
existência? — Respirei fundo e, mais uma vez, balancei a cabeça,
negando. — Porque é amor. Não se explica. Se sente. E eu sinto. — Ele
levantou nossas mãos até seu coração. Estava disparado, assim como o
meu. — Bem aqui.
Eu já não sabia mais o que sentir ou pensar. Havia esquecido por
completo onde estávamos. Tudo ficou em silêncio à nossa volta. Em
minha cabeça, existíamos apenas nós dois e a música que tocava,
embalando nosso momento como se fosse um sonho. Um sonho que eu
queria viver.
Larissa
— Mas o que foi aquilo?
— O quê?
— O quê?! — questionou Jana, perplexa. Não ousei responder
porque sabia que qualquer coisa que dissesse seria usada contra mim.
Mas ela continuou. — O.k.! Vou fingir que você não está se fazendo de
desentendida e reformular minha pergunta: Quem é o bonitão? O que
está acontecendo? E puta merda! Que beijo foi aquele?
Ignorei suas perguntas e vesti o avental mais uma vez, tentando
agir como se nada tivesse acontecido. O que era uma besteira, porque
tudo tinha acontecido. A intenção era levar Malu ao banheiro, mas as
surpresas no caminho de volta ainda me deixavam sem fôlego. Apoiei as
mãos no balcão enquanto tentava inutilmente acalmar a respiração.
Ainda podia sentir seu gosto, e meus lábios formigavam só de lembrar
que eu não havia vivido um sonho. Diego realmente me beijou. Quer
dizer… Tecnicamente, eu o beijei.
Meu Deus! Eu o beijei.
Fui eu quem o convidou para tomar minha boca. Nunca esperaria
que um simples beijo mexesse tanto comigo, mas foi exatamente o que
aconteceu. A sensação era de que todas as células do meu corpo haviam
despertado depois de um longo tempo adormecidas. Naquele momento,
sentia minhas pernas bambas, o coração disparado, e minha pele
queimava. Cada parte minha sentia aquele beijo, e eu tinha a impressão
de que o sentiria por um longo tempo. E, mesmo que o momento não
ficasse marcado em meu coração e mente, Janaína faria questão de me
lembrar a cada maldito segundo, pois era isso que ela estava fazendo
agora. Parada ao meu lado e me encarando, na esperança de que eu
respondesse o mais rápido possível.
— Malu viu? — Era a minha grande preocupação.
— Não. Odete começou a contar uma história e logo ela dormiu.
Está lá na frente.
Isso era bom! O que não aliviava minha culpa de quase ter
confundido a cabecinha dela. Se Malu me visse beijando Diego assim,
do nada, com certeza ficaria confusa a ponto de regredir em tudo que já
havíamos conquistado. E isso era inaceitável. Esse era um dos motivos
por que saíra correndo. Precisava de um tempo. Tempo para que todas
as feridas cicatrizassem. Tempo para me reerguer por completo. Tempo
para descobrir o que realmente estava sentindo e o que estava
acontecendo.
Tempo…
Olhei para Janaína e respirei fundo, tomando ar como se fosse
coragem.
— Nos beijamos — disse, não sabia se para ela ou para mim.
— Óbvio que vocês se beijaram. Sé é que podemos chamar
aquilo de beijo. Foi mais para algo cinematográfico. Nunca vi nada
igual.
— Ei! — Heitor estava do lado de fora do truck e chamou nossa
atenção. — Está desdenhando dos nossos beijos?
— Ah, por favor! — Jana revirou os olhos para o namorado. — A
gente foi pra cama antes mesmo das nossas línguas se conhecerem.
Pronto. Era tudo que eu precisava para me arrastar para debaixo
da mesa, deitar em posição fetal e morrer de vergonha.
Heitor sorriu e eu o olhei.
— Você também viu? — perguntei, e ele balançou a cabeça,
confirmando. — Ai meu Deus, que vergonha!
De repente, parecia que todas as pessoas à minha volta me
encaravam. Eu sabia que era coisa da minha cabeça, mesmo assim tinha
a sensação de estar sendo julgada pelo que havia feito. Ouvi alguns
risinhos e, mesmo que eles não fossem para mim, estavam fazendo meu
estômago embrulhar. Minha respiração acelerou e novamente grudei as
mãos na bancada de atendimento, fazendo força para não entrar em
pânico.
Senti uma mão em meu ombro e aos poucos fui relaxando sob
seu toque tão reconfortante e cheio de carinho. Ela só falou quando
percebeu que eu estava preparada para ouvir.
— Tá tudo bem, Lari. Você tá bem, amiga. Sei que foi um
passo grande se abrir de novo, mas você chegou aqui com um brilho
diferente nos olhos e um sorriso bobo no rosto. Não tem nada a temer.
Queria acreditar nela, mas sabia que essa afirmação não era de
todo correta, pois eu tinha sim, muito a temer. Se é que um dia eu
realmente conseguiria me abrir de novo, entregar meu coração mais uma
vez seria a coisa mais difícil em todo o meu processo de recuperação.
Mesmo que a pessoa a recebê-lo fosse o Diego.
— Ele é promotor… — comecei a explicar. — Cuidou do caso
contra o Dennis, e depois começou a frequentar o restaurante em que eu
trabalhava, e acabamos nos reencontrando na festa da filha dos
advogados.
— É claro. — Jana bateu a palma da mão aberta na testa. —
Sabia que eu o conhecia de algum lugar. Nos encontramos na portaria
do prédio naquele dia. Fiquei olhando por um bom tempo porque ele
estava fantasiado de…
— Príncipe — dissemos juntas, antes de ela soltar um longo
suspiro dramático e bater seus cílios sonhadores.
— Não acredito, amiga! — Ela se aproximou e juntou minhas
mãos entre as dela. — Estou tão feliz por você.
Fiquei sem saber o que responder, porque na verdade eu não sabia
muito bem o que estava acontecendo. O.k.! Eu o beijara, ele me beijara
de volta, e a gente meio que se perdera no momento. Mas e agora?
Estávamos em mundos diferentes, posições distintas na linha do destino.
E nem dizia isso por causa da nossa diferença social. Era por causa do
que ele fazia e de quem eu era.
Não seria ético me envolver com você.
Alguns pensamentos começaram a passar pela minha cabeça e,
mesmo que eu não entendesse bulhufas de direito, sabia muito bem do
que ele estava falando. Eu poderia pôr toda a sua gloriosa carreira em
perigo.
— Não sei o que fazer — disse à minha amiga. Detestava o
tremor que saía em minha voz, pois ele pertencia à Larissa que ainda
sentia medo. A que eu tentava esconder embaixo de centenas de camadas
de força de vontade, mas que emergia cada vez que eu tinha que tomar
grandes decisões que poderiam mudar a minha vida e a da minha filha.
— Pedi um tempo a ele. Não tenho certeza do que é certo e de como
vou enfrentar isso.
— Lari, não interessa o que vai acontecer. — Jana usava sua voz
mais doce, a que destoava de tudo que ela era, mas que sempre sabia
exatamente o que dizer nos últimos meses. — O que importa é o agora.
É o que você fez ao seguir seu coração. Desamarrou mais um fio que te
mantinha ligada ao passado. Me orgulho da mulher corajosa que você é,
e não de ter conquistado um cara gatíssimo que, inclusive, está vindo na
nossa direção.
Arregalei os olhos e esperei em silêncio que me dissesse que estava
brincando, mas as palavras não vieram. Janaína levantou as mãos e saiu
sorrindo. Eu apenas me virei devagar para dar de cara com o homem que
fazia meu coração bater descontrolado dentro do peito. Diego parecia
inabalável, e tirando um leve rosado em seus lábios, causado pelo meu
batom, poderia jurar que aquele beijo sequer havia acontecido. Abri a
boca para falar, mas senti medo. E se ele não tivesse sentido o mesmo
que eu?
— Você quer brigadeiro?
Sua boca se ergueu em um meio sorriso. Diego encarou a
embalagem que eu agora segurava e, segundos depois, sua mão envolvia a
minha.
— Quero saber quanto tempo seu tempo vai durar. — Apenas
balancei a cabeça. — Não deixe o medo arrancar essa semente que foi
plantada. Só te peço isso. Apenas me diga que está disposta a tentar que
eu espero o tempo que precisar.
Suspirei fundo, absorvendo suas palavras.
Deus! Homens assim não existiam!
Existiam?
Diego abaixou a cabeça, escondendo os olhos cheios de
expectativas.
Puta merda! Eles realmente existiam.
— Eu quero isso — afirmei com tudo que havia restado do meu
coração.
— É tudo que precisava ouvir.
— Não posso te dar uma data.
Ele deu de ombros.
— Não preciso saber mais. Os dias não vão importar, porque sei
que ao final desse tempo estaremos juntos. Eu vi você, Larissa. Aquele
dia no shopping você disse que era muito mais do que apenas um
processo. E eu sei que é, porque eu vi quem você é, e não quem um dia
foi. Consigo sentir a vida que tem dentro de você.
Senti sua mão pesar sobre a minha. Seus dedos enroscaram nos
meus, assim como ele estava fazendo com a minha vida: se entranhando
em cada espaço vazio. Queria dizer que sentia a mesma ansiedade que
ele, mas antes que pudesse pronunciar as palavras, fomos interrompidos.
— Tá tudo muito lindo, Romeu e Julieta, mas a fila tá grande
atrás de você, bonitão.
Meus olhos foram para além dele e sorri orgulhosa quando vi a
quantidade de pessoas que aguardavam em frente ao Delícias da Malu.
Diego fez o mesmo, depois movimentou os lábios para me dizer um
silencioso parabéns, e senti minhas bochechas queimarem.
— Preciso trabalhar.
— É claro — assentiu. — Te vejo em breve.
Quando o vi se afastar, meu coração se apertou e senti um medo
absurdo de nunca mais encontrá-lo. Pensei no que fazer, em tudo que já
havia perdido e em todo o tempo em que deixara a escuridão me guiar.
— Diego — gritei, antes mesmo de atender à primeira cliente.
Ele virou e um sorriso iluminou seus olhos e meu coração. Enfiou as
mãos nos bolsos do jeans que vestia e eu sorri de volta. — A última coisa
que me disse lá atrás, é verdade?
Seu sorriso se alargou, alcançando os olhos, e ele piscou, fazendo
algo dentro de mim desejá-lo para sempre.
— Cada parte de mim.
E saiu me deixando com um sabor doce diferente nos lábios. Algo
a ver com esperança.
Larissa
Malu fora passar o fim de semana com o pai, assim como determinara
o juiz. Mesmo depois de tudo que ele me fizera, ainda tinha que concordar
com as malditas visitas sem poder fazer nada. Dennis me batera, me
ameaçara, tirara meus sonhos e matara minhas esperanças, e mesmo assim um
juiz me obrigara a entregar Malu uma vez por semana a ele. Nos primeiros
meses, havia feito de tudo para me manter calma, mas rompia em lágrimas
toda vez que ele a tirava de mim. Então me convencera de que, por mais que
meu casamento não tivesse dado certo, Dennis nunca seria capaz de fazer
qualquer coisa contra a filha. O problema dele era comigo. Era eu que
despertava sua ira, transformando-o em um homem que não conhecia.
E fora pensando nisso, repetindo todos os dias que ela estava segura
com ele, e tentando voltar a levar uma vida normal, que aceitara sair com
alguns colegas do escritório em que estava trabalhando. Não seria nada
demais, apenas comemorar o aniversário de uma das meninas da
contabilidade em um barzinho.
Me arrumei cedo, ansiosa por voltar a sair desde a separação. Um ano
sem o Dennis e não havia posto o pé para fora de casa. O que não mudara
muito, já que era a mesma coisa quando ainda estava com ele.
Antes mesmo de sair de casa, recebi uma ligação dele. Ignorei, mesmo
sabendo que era a pior coisa a ser feita. Dennis ainda não havia se
conformado com a separação. Seu mundo havia ruído quando eu pedira o
divórcio e fizera as malas. Uma semana depois, ele me buscara na quitinete
que havia alugado e me deixara ficar na nossa antiga casa com Malu. Mas o
fato de ter feito isso fez com que pensasse que ainda tinha algum controle
sobre a minha vida. Ligações fora de horário e insistentes, visitas não
programadas… Ele fazia tudo isso com a desculpa de que era quem pagava o
aluguel. Eu aceitava apenas por saber que nunca teria condições de alugar uma
casa como aquela para minha filha com o salário que ganhava. Dennis não
fazia mais do que a obrigação, mas, em sua cabeça, ele estava me fazendo um
favor.
Peguei o ônibus e no caminho até o bar já haviam sido dez ligações.
Ele não lidava bem com o “não”.
Poderia, por favor, verificar se a Malu está bem?
Mandei uma mensagem para Odete, na esperança de que ela me
respondesse, pois tinha quase certeza de que Dennis seria capaz de usar minha
filha para que eu o atendesse. Alguns minutos depois ela me respondeu, me
tranquilizando um pouco mais. Mas não foi o suficiente. Comecei a andar
em direção a saída quando ouvi uma voz chamando meu nome.
— Aonde você vai, mocinha?
Era a aniversariante.
— Preciso voltar. Minha filha está com o pai, e logo eu terei que
buscá-la — menti. Dennis nunca me deixaria pegar Malu quando o dia era
dele.
— Não sem antes tomar um drinque comigo. Também acabei de
chegar, e parece que somos as primeiras. Por favor, não me deixa sozinha
aqui.
Olhei e vi as mesas que estavam reservadas para a comemoração.
Realmente não havia ninguém ainda.
— Tudo bem, eu fico, mas só até outra pessoa chegar. Realmente
preciso ir.
— Obaaa! — disse ela, com entusiasmo.
Sentamos e pedimos um drinque. Ângela ria muito contando histórias
de balada, e eu me sentia um ET diante de tantas coisas que sequer tinha
experimentado. Fiz um esforço tremendo para não a deixar falando sozinha,
mas a sensação de estar deslocada nunca saía de mim.
Alguns colegas chegaram e decidi ficar um pouco mais para não parecer
indelicada. Eles eram gentis, tentavam ao máximo me envolver na conversa,
mas era nítido o desconforto que tinham na minha presença. Também
pudera. Em um ano que estava trabalhando, quase não falara com ninguém.
Nem sabia o motivo ao certo de eles terem me convidado para o aniversário.
Começara a trabalhar pouco antes de me separar do Dennis. Na
verdade, fora exatamente por isso que procurara um trabalho: a vontade de
deixá-lo para trás. Nos meses anteriores, ele estava cada vez mais irritado com
tudo, e sempre perdia a cabeça em atitudes totalmente explosivas. Eu tentara
de todas as formas possíveis manter nosso relacionamento, mas quanto mais
tentava, mais ele se afastava. Vivia um looping eterno com ele. Dennis me
maltratava, se arrependia e pedia perdão. E eu sempre o perdoava porque
achava que ele iria mudar, mas não mudava, então desisti do nosso amor.
Havia doído. Eu ainda o amava, sentia que podia fazer algo por ele, mas já
estava cansada demais para tentar.
— Larissa… — Nem sei quanto tempo fiquei perdida nos meus
pensamentos, mas a voz que ouvia me despertou depressa. Ergui os olhos e o
vi se aproximando. Levantei no mesmo instante. Seu rosto estava vermelho, a
mandíbula travada e os punhos cerrados ao lado do corpo. — Vamos embora
agora.
Seu tom de voz indicava animosidade. Todos que o viam sabiam que
algo errado estava acontecendo. E foi por isso que um colega se levantou,
pondo-se entre Dennis e mim. Mal sabia o nome dele e duvidava que soubesse
o meu, mas ele estava ali, na frente do meu ex-marido, usando o próprio corpo
como um escudo para mim.
— Quem você pensa que é, camarada? Baixa a bola.
Dennis se aproximou mais, seu corpo musculoso tentando intimidar o
rapaz bem menor do que ele. Porém, o garoto não se moveu, e isso me fez
tremer. Meu ex-marido ficou rente ao rosto do meu colega e bufou.
— Sou marido dela. Por quê? Vai fazer alguma coisa a respeito?
E o olhou de cima a baixo.
O garoto ainda não se movia.
— Tu… tudo bem — eu disse, gaguejando.
Ângela pousou as mãos nos meus ombros e sussurrou.
— Não precisa ir, Larissa. Nós ficamos com você.
Olhei em volta enquanto ela dizia aquelas palavras. Todo o bar olhava
para a nossa mesa e um segurança já se aproximava. Senti mais vergonha do
que medo. Queria me esconder e não deixar as pessoas verem a Larissa que
havia me tornado. Meus olhos buscaram os da menina ao meu lado. Ela
tinha a mesma idade que eu, mas parecia muito mais decidida.
— Tudo bem. Foi um mal-entendido. Eu resolvo isso.
Ela olhou para Dennis, que ainda estava atrás do garoto, e depois para
mim.
— Tem certeza?
Balancei a cabeça e ela me abraçou de repente.
— Obrigada e feliz aniversário.
— Ligue para a polícia — murmurou, antes de se afastar.
Balancei a cabeça em negativa.
Polícia? Não. Isso não adiantava. Eu já tentara.
Dei a volta na mesa e o garoto ainda me olhou antes que eu seguisse
Dennis. Seu ar preocupado me dizia tudo, e fiquei extremamente comovida
com seu gesto. Ainda existiam pessoas boas no mundo.
Dennis segurou meu braço e eu fiz de tudo para acompanhá-lo, mas
caí de joelhos assim que chegamos próximo ao carro. Fiquei prostrada no
chão, tentando levantar, enquanto lágrimas rolavam pelo meu rosto. Levantei
sozinha e entrei em seu carro. Dennis dirigiu por diversas ruas até entrar em
uma totalmente escura. Comecei a tremer.
— Aonde você tá indo? — perguntei, a voz trêmula.
— Vamos conversar, meu amor. — A calma na sua voz fazia meu
coração acelerar. Minhas mãos estavam geladas e o pânico voltou a me
dominar.
— Por favor, Dennis, me leva pra casa.
— Acha que eu vou te machucar? — Parou o carro de forma abrupta.
Tentei sair, mas ele havia trancado as portas. Grudei meu corpo na porta, me
afastando dele o máximo que pude. — Não vou te machucar de novo,
Larissa, mesmo que você mereça. Deveria ferir você da mesma forma que você
faz comigo.
— Nunca fiz nada com você. Por favor, vamos? — supliquei.
Ele riu. Uma risada sarcástica, fria. O som ecoou no carro e fez cada
osso do meu corpo temer o que viria a seguir.
— Você destruiu a minha vida. — A risada deu lugar a um choro
descontrolado, doentio. — Tudo que eu tinha era você e Malu, e agora não
tenho mais nada. Minha filha nem me reconhece. Eu te amo, meu amor. Te
liguei tantas vezes. Sei que me pediu um tempo para pensar, mas não sei viver
sem você, preciso de você. Te dei o tempo que queria, agora volta pra casa.
— Você me ligou duzentas vezes, Dennis, isso não é me dar espaço pra
pensar. E eu já tinha dado minha resposta. Não vou voltar. Você tem que
seguir sua vida e me deixar seguir a minha. Já faz um ano.
— Nunca! — gritou, socando o volante com violência. Mais uma vez
ele mudou de expressão. Seu rosto, que antes se contorcia pelo choro, agora
dava lugar a um ranger de dentes que inspirava ódio. — Deixou a menina
comigo para ser uma vadia não foi? Se esfregar com esses machos que
trabalham com você.
Sua mão agarrou meu braço.
— Dennis, me solta ou eu grito.
— Grita, vagabunda, e eu acabo com você. Eu te mato, Larissa. Se
vir outro homem tocando em você, mato você e ele. Me entendeu? E a culpa
será sua. Toda sua.
— Vou chamar a polícia — falei, chorando.
Dennis estava possuído.
— Faz isso e eu transformo sua vida num inferno. Você vai se
arrepender do dia em que me conheceu. Você não vai conseguir trabalhar,
estudar, e até a Malu eu tiro de você. Vai ficar sozinha e sem nada, do
mesmo jeito que era quando nos casamos. Agora desce.
Olhei de um lado para o outro. Mal sabia onde estava. O escuro
dominava o lugar e não havia ninguém passando por aquela ruela.
— Vai me deixar aqui?
— Não queria ficar sem mim? Então desce.
E eu desci. Acompanhada apenas pelo medo e pelo arrependimento de
ter entregado meu coração ao anjo que definitivamente se tornara um
demônio.
Não era a primeira vez que Dennis me ameaçava, e nem seria a última.
27
Diego
Peguei o celular, escrevi a mensagem, apaguei e joguei o telefone
na gaveta de novo. Assim como de manhã, igual a ontem e ao dia
anterior, e ao outro… Desde o momento em que saíra daquele festival.
Tudo que tinha feito era lutar contra a vontade de mandar o maldito
tempo para os ares apenas para ouvir sua voz mais uma vez. Mas não
podia. Prometera a Larissa que a esperaria e era isso que estava fazendo,
mesmo que custasse minhas noites de sono, minha tranquilidade, e até
minha capacidade de respirar. Estava existindo para esperar aquele
maldito telefone tocar.
E ele tocou.
— Oi, Di, tá livre pra almoçar?
Era ótimo ouvir a voz da Clara, mesmo não sendo ela quem eu
esperava ansioso.
— Claro. Mas não tenho muito tempo — avisei.
— Tô chegando. Te encontro no shopping, pode ser?
— Chego em dez minutos.
Seria bom conversar com alguém depois de quase uma semana
recluso. Avisei Sol de que não seria necessário mandar entregar meu
almoço e ela sorriu, feliz por me ver sair do MP por livre e espontânea
vontade. Caminhei até o restaurante com uma sensação de déjà-vu, o
coração revivendo todas as vezes em que estivera ali apenas para vê-la,
com a sensação de que veria seu sorriso assim que sentasse. Cheguei antes
da Clara, escolhi uma mesa, e meu coração afundou quando a garçonete
veio me atender. Mesmo sabendo que ela não estaria, era impossível
controlar as lembranças que me remetiam a Larissa.
A única coisa que me fazia sorrir era ver Clara andando na minha
direção, um barrigão lindo e um brilho nos olhos que só ela tinha. A
envolvi com um abraço assim que se aproximou, e sua voz foi como um
bálsamo me trazendo mais fé.
— Senti sua falta — murmurou ela.
Beijei sua cabeça e ela sentou, me encarando.
— Também. Foi uma semana difícil.
Ela me olhava como se tivesse algo a dizer.
— Alexandre está preocupado — disse ela, angustiada.
É. Pelo visto ela nem ia disfarçar ou me enrolar um pouco antes
de falar o que de fato a levara a se abalar até ali.
— Alexandre está sempre preocupado — falei, buscando amenizar
o clima. — Vai querer o quê?
Clara não respondeu. Apenas me olhou como se dissesse que negar
o que estava acontecendo era errado. Eu sabia que sim, mas não queria
ter aquela conversa com ela. Alexandre estava sendo um babaca, mesmo
que no fundo ele tivesse um pouco de razão.
Cobri sua mão com a minha e apertei meus dedos sobre os dela.
Clara sorriu com o gesto e a senti relaxar um pouco mais.
— Meu irmão está exagerando.
— Não quero que nada de ruim te aconteça, Di. Ele disse que o
ex-marido da Larissa é perigoso. É óbvio que ele não me contou
detalhes. Ele nunca conta. Mas é nítida a preocupação dele com você.
Não acreditei que Alexandre tinha envolvido Clara em sua
maluquice. Eu não era um moleque, sabia muito bem o que estava
fazendo.
— Clarinha, eu quero que me escute com atenção. — Ela
assentiu, os olhos presos aos meus. — Está tudo bem, Alexandre ficou
um pouco paranoico, e eu não posso culpá-lo por se sentir assim, ainda
mais depois de tudo que vocês viveram na mão da Ana. Mas posso te
garantir que vai ficar tudo bem. Dennis está preso e ele não vai chegar
perto de mim ou da Larissa de novo.
— Tudo bem. É só que… me preocupo com você.
— Eu sei. Mas quero que esqueça esse assunto e apenas me escute
contar como foi o primeiro beijo mais maravilhoso de todos os tempos.
O sorriso se alargou no seu rosto e ela fez uma careta de desprezo
em seguida.
— Aposto que teve uma música romântica ao fundo, promessas
de amor e corações explodindo pelos ares.
Gargalhei. Recostei na cadeira e cruzei os braços na frente do
peito, observando a menina sentada do outro lado e imaginando Clara e
Larissa sendo ótimas amigas. Algumas coisas uniam as pessoas, e o medo
era uma delas. Ambas tiveram que lidar com seus fantasmas, e tinha
certeza de que minha princesa se sairia tão bem quanto nossa menina.
Contei para Clara como tudo aconteceu. Precisava compartilhar
com alguém que entendesse o momento mágico que vivera. Apesar de
nada romântica, Clara entendia de amor. Ela sabia muito bem que o
sentimento que batia no meu peito era sincero, quando a maioria das
pessoas poderia achar que eu estava maluco por me apaixonar por alguém
assim, tão platonicamente. Clara me conhecia tão bem que não
questionou nada que eu disse, apenas ficou ali, escutando cada palavra e
sorrindo como se estivesse revivendo cada passo junto comigo. Acho que
uma amizade verdadeira era isto: viver junto com você todas as coisas,
boas ou ruins. E eu tinha os melhores amigos que poderiam existir.
— Acho que me apaixonei por ela aqui, enquanto a via esconder
seus medos pra sorrir pra cada cliente que atendia. E quando ela sorria
pra mim, parecia que era diferente. Fiquei imaginando diversas vezes
que aquele era o meu sorriso, um que ela entregava só pra mim. Dia
após dia, meu encantamento foi crescendo, e a vontade de conhecê-la
mais também. — Sorri, balançando a cabeça. — Vai me chamar de
idiota, né? Posso ver isso escrito nos seus olhos.
Ela fez um gesto com a cabeça, em negativa.
— Vou te chamar de Diego. — Uma lágrima escorreu pelo seu
rosto e ela secou, antes que mais alguém pudesse enxergar a menina doce
que a guerreira Clara escondia. — Você me salvou, Diego. E não apenas
no dia em que se jogou na frente daquele carro. Você me salvou muito
antes, quando esteve naquele cemitério e amparou minha dor. E eu não
poderia desejar um amor menos bonito pra você. Por isso não, você não
é um idiota, você é um homem apaixonado que não tem vergonha de
dizer isso, e que vai lutar para manter aquela garota ao seu lado pra
sempre.
Ficamos em silêncio, muito sendo dito sem nenhuma palavra
pronunciada.
Então ela levantou, encaixando a bolsa no ombro e sorrindo para
mim com olhos ainda marejados.
— Você não vai almoçar? — perguntei, vendo-a se preparar para
ir embora.
— Não! — piscou. — Acabei de almoçar com o seu irmão. Só
precisava tirar você daquele mausoléu que é o MP. Comida sempre
funciona, ainda mais se for ao lado de uma companhia maravilhosa
como a minha.
Atrevida, ela saiu. Observei-a até sumir do meu campo de visão,
com a certeza de que Clara não mudara apenas a vida do meu irmão.
Essa garota, que odiava contos de fadas e amava um Lobo Mau,
bagunçara o nosso mundo.
Larissa
Um cinema.
Era só um cinema e estava tão nervosa que mal conseguia andar.
Desci do táxi uma quadra antes, porque não queria que ele me visse no
estado em que estava. Precisava me recuperar antes de finalmente pôr os
olhos no Diego. Ai meu Deus! Respirei fundo diversas vezes, o coração
querendo saltar pela boca. Mais uma vez, murmurei para mim mesma
que era apenas um cinema. Levantei o corpo e respirei outra vez. Passei
as mãos na calça e me questionei pela décima vez se escolhera a roupa
certa. Olhei para minhas sapatilhas com um pouco de dúvida, que se
dissipou depressa, pois elas realmente ficaram ótimas com o jeans e a
blusa de renda ombro a ombro. Assim como Janaína havia sugerido no
outro dia, deixei os cabelos soltos, cacheados e caindo pelos ombros.
Sorri ao me dar conta de que estava bem porque eu voltara a ser
eu mesma. Foi essa confiança que me fez caminhar até a entrada
principal do shopping, onde havia combinado de encontrar com ele. Eu
o vi antes que Diego me enxergasse, e por isso pude observá-lo melhor.
Também usava jeans, uma camiseta azul e tênis. Estava parado, o olhar
no horizonte, enquanto mantinha as mãos no bolso da calça. Era tão
lindo, tão hipnotizante, e estava ali, à minha espera. Quando ele me viu,
sorriu. Um sorriso lindo, escandaloso, de quem não tinha a menor
vergonha de ser pego sorrindo para uma mulher. Imediatamente
caminhou até mim.
— Oi, princesa. Não vi você chegando.
— Desci do táxi um pouco antes.
Ele sacudiu a cabeça, entendendo minhas palavras. Era tão fácil
falar com Diego, tão natural, porque ele parecia entender cada decisão
minha e compreender meus motivos para tomá-las.
Ele se aproximou devagar, os lábios tocando meu rosto, e prendi a
respiração. Se me movesse apenas um milímetro, nossas bocas se
encontrariam e eu estaria perdida. Por mais que fosse exatamente o que
eu queria, havia decidido que só aconteceria depois que conversássemos.
Foi ótimo ver que Diego também pensava o mesmo, visto a maneira
como me cumprimentara.
Sem dizer nada, ele me estendeu a mão. Um pedido silencioso
para que o acompanhasse, e foi o que fiz. Sentir nossos dedos
entrelaçados serviu para me mostrar a realidade que estava vivendo. Um
símbolo de que não estava mais sozinha. A solidão nem sempre era de
todo ruim. Às vezes, o silêncio se fazia necessário para que pudéssemos
encontrar nossa alma. Mas quando o coração transbordava sentimentos,
era nosso dever compartilhá-los. Não se aprisionava o amor. Não se
detinha a esperança, e muito menos se matava a fé. E era tudo isso que
eu compartilhava com Diego naquele simples gesto de aceitar sua mão e
caminhar ao seu lado. Não atrás. Não à frente. Nem antes e nem
depois. Exatamente ao seu lado. Acabara de aprender, naquele momento,
a grande diferença entre entregar meus sentimentos e compartilhá-los
com alguém. Não havia subtração, apenas soma.
— Espero que você goste do filme.
— Que filme?
— O que vou fingir assistir enquanto olho pra garota mais linda
do mundo, que estará ao meu lado.
— Ahhhh, esse filme.
Ele riu, balançando a cabeça. Diego nunca sorria apenas com os
lábios. Seu corpo inteiro parecia se iluminar com o gesto. Mesmo
quando a boca não se movia, eu sabia que ele estava sorrindo. O tipo de
pessoa que sorria com a alma.
Ficamos alguns minutos aguardando na fila, e por sorte eu tinha o
nosso balde de pipoca nas mãos — claro que dividiríamos —, para
descontar minha ansiedade. Diego tinha a mão aberta nas minhas costas,
sempre mostrando que estava ali.
— Como foi sua semana? — perguntou.
Mas eu não consegui responder.
Tudo que sentia era que sua mão havia saído das minhas costas
para afastar uma mecha de cabelo do meu rosto. Com o gesto, seus
dedos tocaram a pele nua do meu ombro, e tive que me segurar para
manter o controle com a explosão que isso causou dentro de mim. Fazia
muito tempo que não sentia um toque tão íntimo, e ao mesmo tempo
tão inocente. Busquei os olhos do Diego. Minha boca estava aberta
porque o ar parecia denso, difícil de respirar. Ele também parecia
nervoso, pois soltou um longo suspiro. Abaixei a cabeça, um pouco
envergonhada, mas logo senti seus dedos em meu queixo, me fazendo
olhá-lo. Olhos flamejantes que queimavam tudo dentro de mim.
— Quer saber como foi a minha? — sussurrou, a voz grossa e
sensual penetrando meus ouvidos. Balancei a cabeça, dizendo sim, e ele
se aproximou mais. Sua boca estava perto do meu rosto, e achei que ele
ia me beijar, mas Diego se inclinou um pouco mais, alcançando meu
ouvido. — Não consegui parar de pensar no nosso beijo. Na sua voz
dizendo meu nome. No seu cheiro, que me acompanhou durante o
sono. No gosto da sua boca. Nos seus olhos, que me fitavam com
desejo. Em nossas promessas.
Quando se afastou, acariciou meu rosto, o polegar deslizando pela
minha bochecha.
— Eu também — murmurei, sem ao menos pensar no que estava
dizendo, porque fora exatamente assim que me sentira após aquele dia.
— Pensar em você é a melhor parte do meu dia, e estar com você
é ver essa pequena parte se transformar em tudo. Porque estar aqui, te
sentir, ouvir sua voz, faz cada segundo valer a pena.
— Você parece ter saído de um conto de fadas! — exclamei.
Ele deu de ombros.
— É o que dizem.
Nos encaramos e, no instante em que nossos olhos ficaram presos
um no outro, a fila andou. E o beijo? Bem, o beijo teria que ficar para
depois.
Foi exatamente como Diego havia dito. Fingimos muito bem. A
gente se encarava enquanto as pessoas riam, e nos tocávamos enquanto
elas suspiravam. Nossas mãos brincavam enquanto as pessoas torciam
pelo casal protagonista. Eu e Diego estávamos mais preocupados em
sentir um ao outro, provando a realidade de estarmos juntos. Pensei em
tudo que vivera até chegar àquele momento, e as lembranças surgiram
com mais emoção do que eu esperava. Meus olhos ficaram rasos de
lágrimas e encostei o rosto em seu ombro, aproveitando a escuridão para
que não me visse tão vulnerável.
— Não se preocupe. — Eu ouvi sua voz me confortando. — Eles
vão ficar juntos no final. Ele está apaixonado, ela também, então nada
pode separá-los.
Segurei em seu braço, apertando-o mais ainda. Não era sobre o
filme. Essa era mais uma de suas promessas. Uma das tantas em que eu
começava a acreditar.
Diego
Algumas semanas haviam se passado desde o nosso primeiro
encontro e eu sentia o quanto havíamos desenvolvido nosso
relacionamento durante esses dias. Nos falávamos sempre, mas fiz
questão de dar a Larissa o espaço que sentia que ela ainda precisava.
Quando me dizia que seu dia seria cheio, eu mandava uma mensagem
prometendo que estaria à sua espera. Quando ela me respondia, fosse de
imediato ou cinco horas depois, eu ainda estava do outro lado…
Esperando por ela. Confesso que estava vivendo sobre um campo
minado, escolhendo cada palavra, cada toque e cada atitude para que
Larissa confiasse em mim. Não estava agindo como outra pessoa.
Continuava sendo eu, mas com a certeza de que agora tinha um coração
extremamente frágil em minhas mãos. Um que eu morreria para
proteger.
No entanto, estava experimentando um dia especial. Faltava
pouco para o Natal e prometera levar Larissa e Malu para assistir a uma
cantata. Era a primeira vez que sairíamos nós três, e com certeza estava
mais nervoso do que no dia do cinema. Conquistar Malu fazia parte do
processo para ter Larissa em definitivo na minha vida. E não fazia isso
apenas pela minha namorada, fazia pela imensa vontade de estar presente
na vida de uma criança tão especial. Com cuidado e da forma mais
natural possível, começara a me inserir em seu mundo. Era incrível ver a
forma como Malu vinha desabrochando na minha presença. Uma flor
regada todos os dias com amor e carinho. Sua recuperação estava indo
muito bem, falava mais a cada dia. Mas eu ainda tinha alguns obstáculos
para enfrentar e contava com um furacãozinho para me ajudar.
Liguei o som do carro, “Dois rios” do Skank tocando, e aliviei a
mente de todas as coisas que poderiam me impedir de ter uma bela
noite com a minha família.
Larissa
Diego passou quase a noite toda comigo. Depois de pormos Malu
na cama, sentamos na sala e ficamos assistindo a um filme qualquer que
passava na televisão. Ainda estava apavorada com tudo que tinha
acontecido.
Quando saí do banheiro e vi Malu e Vitória conversando com um
homem de cabelos pretos e cacheados, não pensei duas vezes em ir até
minha filha e quase arrastá-la comigo. Malu ainda segurava a mãozinha
de Vitória quando a forcei a me acompanhar pelos corredores daquele
teatro.
Além de medo, sentia raiva. Raiva porque deixara mais uma vez
aquela sensação me dominar. E mais ainda por ter estragado uma noite
tão especial como aquela. Minha filha não merecia. Ela estava feliz, se
comunicando bem, à sua maneira, mas ainda assim era mais do que
qualquer progresso que já havíamos feito. Quase não acreditei quando
ela andou pelas pessoas sem recuar. A verdade era que Vitória fazia
muito bem à Malu, e agora, depois do meu surto, eu imaginava que
Clara iria manter a filha bem longe de mim.
Pensando naquela família, segurei a caneca de chá que tinha
preparado havia pouco. Diego saíra para falar ao telefone e sequer me
importei com quem ele estava conversando já quase de madrugada.
Ele guardou o celular no bolso da calça e voltou até mim. Estava
tão lindo, vestindo uma roupa social. Assim que o vira parado em minha
porta, sentira que estava caminhando para uma noite de sonhos. Pena
que ela se tornara um pesadelo.
— Clara te mandou um beijo. Disse que vai te ligar para
combinar um programa com as meninas.
Tive que sorrir. Parecia que eu estava errada, afinal.
Sentou-se ao meu lado e puxou minha mão com delicadeza,
apertando seus dedos sobre ela.
— Preciso ir e você tem que descansar.
Assenti.
— Vou ficar bem — disse, não sabendo se para ele ou para mim.
— Eu sei que vai.
— Você tem muita fé em mim. Talvez mais do que eu mesma.
— Porque eu vejo algo que você não vê.
— E o que seria? — perguntei com desdém.
Vi seu peito subir e descer em uma respiração profunda.
— Eu vejo você. — Seu dedo fazia pequenos círculos na minha
mão. — Vejo uma mãe maravilhosa que protege e cuida da Malu com
toda a força que existe. Vejo a mulher que não precisou de ninguém
para reconstruir a vida. Larissa, você não precisou me conhecer, ou a
qualquer outra pessoa, para seguir em frente. Você buscou seu caminho
por você mesma, e mais ninguém. Tudo isso — ele levantou o corpo,
acenando com a cabeça para a minha casa, que também era o Delícias
da Malu — foi feito por você, suas mãos e a força que existe em você.
— Você vê tudo isso? — perguntei, sorrindo.
Diego se aproximou e em poucos segundos nossos lábios se
encontraram de leve. As bocas entreabertas e um toque gentil me fizeram
suspirar alto.
— E também vejo uma mulher linda e sensual. Cada vez que me
aproximo de você, tenho que segurar meus desejos. — Quando levantei
o rosto para encará-lo, vi seus olhos queimarem, inflamados pelo
sentimento de que falava. Cada palavra ardia em minha pele e pulsava
em meu peito. — Desejo sua boca e anseio o dia em que tocarei sua
pele. — Sua mão acariciou a base do meu pescoço e engoli em seco. —
Desejo o dia em que seremos um só.
Olhava sua boca entreaberta, os olhos que me fitavam
profundamente escuros de desejo, e me faziam sentir coisas que havia
muito tempo não sentia. Sua mão ainda estava em meu pescoço, os
dedos roçando minha pele, fazendo-a se arrepiar.
Em uma atitude impensada, me joguei sobre ele e sentei em seu
colo.
Diego soltou um gemido quando segurei seu rosto.
— Eu quero isso — pedi.
O medo que sentira naquela noite dava lugar a um sentimento
desconhecido. Eu queria tanto aquele homem que doía. Meu peito se
esmagava em uma sensação que me deixava completamente sem ar. Suas
mãos se arrastaram por baixo da saia do vestido, tocando a pele exposta,
e de repente eu queria que ele me tomasse ali, no sofá. Algo batia dentro
do meu peito, exigindo que ele fizesse toda aquela escuridão desaparecer.
Com Diego eu poderia deixar para trás toda a vergonha, medo e dor.
Beijei sua boca com malícia. Chupei seus lábios com tanta força
que achei que se rasgariam em minha boca. Deslizei minha língua para
dentro dele, sentindo sua dureza crescer embaixo de mim. Meu corpo
queria alívio, eu queria alívio. Soltei seu rosto e abri sua camisa, não me
importando de arrancar alguns botões. Meu Deus, como ele era gostoso.
Arranhei sua pele, desejando ter mais dele, amando sentir os músculos
rígidos sob meu toque, e como ele reagia a isso. Um gemido rouco
escapou da minha garganta quando Diego me inclinou para trás, beijou
meu pescoço e colo e desceu a boca até os seios.
— Por favor — implorei, quando ele abaixou a parte de cima do
vestido, expondo meus seios. Senti sua língua, molhada e excitante,
contra meu mamilo. Ele fechou os lábios ali, chupando e mordiscando.
Me esfreguei em seu colo, sem me importar com nada. Tudo que queria
era que ele arrancasse aquele sentimento de dentro de mim. Queria que
ele iluminasse minha alma escura.
— Princesa — choramingou, parando e me deixando frustrada.
— Não quero ser princesa. Hoje não.
Eu só quero que você faça o medo ir embora.
Diego prendeu meu rosto entre as mãos, meu quadril ainda se
movimentando contra ele, mas parei assim que vi a intensidade no
fundo dos seus olhos.
— Você é minha princesa, e sempre vai ser, mas também será
minha mulher. E eu juro por Deus que essa decisão é a mais difícil que
já tomei na vida. — Ele me abraçou, segurando-me forte contra ele, e
descansei o rosto em seu ombro. — Sinta, Larissa, meu corpo pedindo
o seu, meu pau implorando para estar dentro de você. Estou tão duro
que não consigo pensar em outra coisa a não ser te deixar nua e te amar
aqui e agora. Mas não posso. — Afastou-se, colando a testa na minha.
— Quando eu entrar em você, não vou conseguir parar até te escutar
gritando meu nome. Essas paredes não vão segurar todos os meus
gemidos quando eu enfim conhecer seu corpo. Vamos fazer amor a
noite toda e quero que acorde comigo enterrado em você, porque tenho
certeza de que não há melhor lugar no mundo para estar. Quero me
perder em você, Larissa.
Arfei, pois suas palavras não me traziam alívio. Pelo contrário,
estava ainda mais excitada. Mas ele tinha razão.
— Me desculpe. — Sentime envergonhada por tudo.
— Porra! Não faz isso. Nunca se desculpe por desejar. Ouça
sempre seu corpo, o que ele pede. Mas me deixa fazer isso ser perfeito.
Não vou conseguir ser de outra forma, porque quero muito mais do que
sexo. E você não poderia receber nada menos do que isso.
Balancei a cabeça, compreendendo suas palavras. Só então percebi
que usaria o sexo com ele para esquecer o que estava sentindo. Nem eu,
nem Diego merecíamos aquilo. O que a gente estava compartilhando ia
muito além de uma simples transa. E aquilo já era uma certeza para o
meu coração.
31
Larissa
A semana do Natal se aproximava. Eu tentava focar em todo
trabalho que tinha e esquecer de tudo que acontecera havia alguns dias.
Levei Malu à psicóloga, e ela ficou encantada com a evolução da minha
pequena. Queríamos muito que ela voltasse a falar, mas no último mês
ela havia surpreendido todo mundo, inclusive a profissional que a
acompanhava. Também tirei algumas dúvidas em relação à entrada do
Diego em nossas vidas. Dúvidas que envolviam minha filha e eu. Ainda
não acreditava que agira daquela forma, praticamente me jogando nele.
Sempre achara que seria imensamente difícil me entregar para outro
homem, mas não havia sido isso que acontecera: se Diego não tivesse
parado, teríamos transado no sofá da minha sala.
As palavras da psicóloga ainda estavam frescas na minha cabeça.
A maioria das vítimas tende a se fechar para o sexo, mas há uma parte
que se põe na posição de reviver o trauma sofrido. Foi o que aconteceu com
você. O medo abriu uma comporta de sentimentos e você se permitiu se
entregar naquele momento apenas para ter algo para substituir o que estava
sentindo.
Eu não era uma compulsiva sexual, não tinha me tornado uma,
mas no momento de tensão, havia sido a primeira coisa que procurara
para ter algum alívio. Isso e o fato de ser Diego, já que nunca havia
sentido aquilo antes.
Era mais uma consequência que enfrentava. Saíra do inferno, mas
parecia que ele ainda insistia em queimar dentro de mim.
Malu também sentira o peso do que eu havia causado, mas, quase
uma semana depois, isso parecia ter mudado. Achava que uma certa
menina de cachinhos dourados e que falava pelos cotovelos tinha algo a
ver com a transição.
—Vamos pra piscina de bolinhas?
Malu não respondeu de imediato, e eu a incentivei.
— Vai com a Vitória, meu amor. A mamãe vai ficar aqui com a
tia Clara.
Quando ela puxou forte minha mão, me forçando a abaixar, sabia
o que queria. Dei um beijo em cada lado do seu rosto e um último na
testa. Só depois é que Malu seguiu em direção ao brinquedo, de mãos
dadas com a amiguinha. Cruzei os braços, observando as duas se
afastarem com um aperto diferente no peito. A independência da minha
filha era algo com o qual estava me acostumando.
— Vitória mal dormiu essa noite de tanta ansiedade.
A voz da Clara chamou minha atenção.
Virei para ela e sorri ao vê-la acariciando a própria barriga. Diego
havia dito que ela tinha que tomar alguns cuidados na gravidez, mas
parecia que nada se comparava ao que ela havia sofrido na gestação de
Vitória. Ficava feliz em vê-la bem, o pouco que conhecia dela já me
inspirava confiança.
— Um menino. Parabéns!
Ela olhou para a barriga e sorriu, confirmando.
— Diego te contou?
— Desculpa se fui indelicada.
— Não foi nada — balançou a mão —, não era nenhum segredo.
Eu só fico feliz em ver Diego compartilhando coisas da família com
você. Significa que é importante para ele. Bom, isso eu sabia, mas é
bom confirmar.
Virei meu corpo e fiquei de frente para ela.
— Quero pedir desculpa por aquele dia. Assustei vocês sem
motivo algum. Pelo menos não o que eu imaginava. Acho que você
conhece parte da minha história, então sabe que estou me reerguendo,
por isso saí correndo. Achei que tinha visto meu ex-marido.
Clara me lançou um sorriso reconfortante e segurou minha mão.
— Não precisava me explicar nada. Eu sei como é viver à sombra
de um passado que, às vezes, parece querer nos engolir. Mas aprendi a
conviver com tudo que tenho, inclusive com o que o passado me
deixou. Eu sei que Malu é uma parte do que você deixou para trás, e ela
é tão maravilhosa que tenho certeza de que você não se arrepende de tê-
la. Igual a você, existe algo dentro de mim que me lembra dos dias mais
tristes que já vivi, e essa mesma coisa é o que me mantém viva e aquilo
que me deu a oportunidade de ter uma família e um futuro. O passado
pode ser ruim, mas com jeitinho a gente consegue transformar a tristeza
em amor.
Enxergando o que ela me falava, vendo em seus olhos a tristeza
que parecia ter vivido em algum momento da sua vida, eu me perguntei
como ela se mantinha de pé.
— Como você fez? — sussurrei. — Como conseguiu?
Ela olhou para Vitória, que jogava algumas bolinhas para cima e
ria, acompanhada pela minha filha.
— Começou com Alexandre, quando ele me mostrou que eu
podia amar novamente. Mas eu só deixei tudo pra trás quando Vitória
nasceu. Era ela que me trazia de volta cada vez que minha mente se
perdia. O homem que eu amo e que me ama, minha família e meus
amigos. Foram eles que nunca me deixaram chegar ao fim. — Clara
abaixou a cabeça e sorriu, como se soubesse de algo que eu não sabia. —
Você já tem um homem que te ama. — Acenou para o outro lado, me
mostrando Diego caminhando em nossa direção. — Tem uma família e
agora tem amigos. Não tem por que não conseguir.
Observei Diego chegando mais próximo, escutei sua voz me
cumprimentando, senti seus lábios nos meus e vi quando ele envolveu
Clara em um abraço. Malu e Vitória correram até nós, e as duas se
jogaram nos braços do homem que vinha sendo parte da minha vida. Ele
fez um carinho em cada uma, e apenas assisti à cena, que com certeza
mudaria minha vida.
Eu estava amando.
Clara me olhou de soslaio, como se quisesse confirmar o que
acabara de dizer.
Ela tinha razão.
Não havia por que não conseguir.
Depois de almoçarmos juntos, Diego nos deixou em casa. Ele
estava de plantão naquele fim de semana e, mesmo atolado de trabalho,
tinha conseguido um tempo para ficar com a gente. Nos despedimos
com um beijo rápido e ele saiu. Ainda fiquei observando seu carro virar
a rua, se afastando, e só despertei quando Malu puxou a barra da minha
saia, chamando minha atenção.
— Desenho, mamãe. Por favor.
— Claro. — Puxei-a para os meus braços. — Você está ficando
grande, hein, mocinha?
Ela riu, mas também encarou a rua pela qual Diego tinha saído.
Assim como eu, minha filha também não via a hora de ele voltar. A
verdade é que ele tinha ganhado as duas ao se doar por inteiro para nós.
O resto do dia foi dedicado a Malu e suas bonecas. Passamos
várias horas no meio delas, e eu nunca me senti tão próxima da minha
filha. No fim da tarde, quando ela tirava uma soneca, aproveitei para
tomar um banho. Ouvi a campainha tocar quando saí do banheiro e
vesti uma roupa qualquer antes de atender a porta. Confesso que fiquei
petrificada quando o vi parado do outro lado. Por mais que soubesse que
ele era uma pessoa boa, ainda sentia medo, pela postura que mantinha.
O marido da Clara me olhava como se pudesse enxergar cada segredo
dentro de mim, e isso fazia com que eu me encolhesse diante dele.
— Desculpa incomodá-la. — Ele se adiantou, já que eu não
conseguia esboçar nenhuma reação. Afinal, não fazia ideia de por que
Alexandre Ferraz estava na minha casa. — Queria saber se tem alguns
minutinhos pra conversar. Serei rápido.
Balancei a cabeça devagar, como se estivesse hipnotizada. Eu não
sabia o que aquele homem queria e, mesmo assim, não me opus a
atender o seu pedido.
Abri espaço e deixei que ele entrasse.
— A Clara não está com você?
— Não.
Ele não era muito de falar, e eu começava a imaginar o que queria
comigo.
— Então suponho que não veio buscar brigadeiros.
Ferraz parou no meio da minha sala e não olhou para mais nada
além de mim.
— Não. Mas pensando bem, Clara me mata se souber que estive
aqui e não levei nada pra ela. — Tive que sorrir, mas Alexandre não fez
o mesmo. — Estou aqui por outro motivo, Larissa. Meu irmão.
Eu sabia!
Clara e Diego entenderam bem meu surto, mas Alexandre não
parecia ser um homem que aceitava expor sua família ao perigo. Com
certeza ele estava ali para pedir que eu me afastasse de todos eles.
— Diego sabe que está aqui?
— Não — respondeu, sucinto. Enfiou as mãos no bolso da calça
jeans que vestia e, agindo daquele jeito, já não parecia mais tão atraente.
— E acho que ele vai querer me matar quando souber que tivemos essa
conversa. Mas não me importo. Sempre fui a razão da família, e Diego
o idiota que acha que vai mudar o mundo. E ele fica ainda pior quando
está apaixonado.
— Por favor, não fale assim dele.
— Acredite, menina, eu fiz um elogio ao moleque.
Confusa, pensei em pedir desculpas pela outra noite, mas algo
naqueles olhos que me fuzilavam dizia que não era isso que o levara até
ali. Várias coisas começaram a passar pela minha cabeça e a conclusão à
qual cheguei me fez ter náuseas. Alexandre queria que eu me afastasse do
seu irmão, era óbvio. Comecei a pensar em tudo que havia vivido com
Diego nos últimos dias e em suas promessas. Pensei em cada dia que
sonhara com ele e na forma como ele olhava minha filha, como se fosse
dele. Meu peito se encheu de coragem e me preparei para enfrentar um
homem que seria capaz de me destruir.
— Se está aqui para pedir que eu me afaste do Diego, perdeu seu
tempo. Não vou fazer isso, a não ser que ele me peça. Então, o senhor
pode sair da minha casa.
Alexandre não se moveu. Seus olhos demonstraram confusão
depois das minhas palavras, e eu fiquei ainda mais confusa com sua
reação.
— Eu nunca interferiria na vida do Diego assim, pelo menos não
dessa forma. Não foi isso que vim te pedir. O moleque te ama, e jamais
faria esse pedido sabendo que o destruiria. Diego é um idiota sim, mas
não porque se apaixonou por você, e sim porque está deixando uma
parte importante dessa relação de lado. Dennis é perigoso, Larissa, e você
sabe disso.
Imaginei que Diego devia ter contato algo a ele, mas ouvindo
Alexandre falar, me senti doente de vergonha.
— Não estou te julgando. E sei o que deve estar pensando, mas a
resposta é não. Diego nunca me disse nada.
— Então… Como sabe?
— Dennis me procurou antes de ser preso. Acho que ele não
estava muito feliz com seu advogado. Mas, como você deve imaginar, eu
recusei.
Desabei no sofá e segurei o rosto com as mãos, repetindo para
mim mesma que aquele inferno, um dia, iria acabar.
Alexandre fez o mesmo, sentando de frente para mim.
— Eu só quero proteger minha família, Larissa. Diego gosta de
enxergar o lado bom das pessoas, mesmo convivendo diariamente com
todo mal que pode existir. Para isso, preciso saber de tudo, do que
Dennis seria capaz, e assim me preparar para quando ele sair. Preciso me
certificar de que vocês vão ficar bem.
— Nós? — perguntei, sem entender.
— Eu disse que vou proteger minha família. E agora você e sua
filha fazem parte dela. Não vim te pedir para se afastar do Diego. Pelo
contrário, vim dizer que eu estarei com vocês.
Eu o observei, sem acreditar no que dizia. Durante bons minutos,
minha mente vagou pelo desconhecido, até que enfim entendi porque
Clara vencera o passado. O homem que estava à minha frente seria capaz
de ir ao inferno pelas pessoas que amava. Disso eu tinha certeza. Meu
coração dizia que eu podia acreditar nele, e eu escutei.
— Conheci Dennis quando tinha dezesseis anos…
Comecei a falar e, por cerca de uma hora, resumi tudo que meu
ex-marido me fizera. Cada ofensa, agressão, ameaça. Cada vez em que
machucara meu coração e todas as vezes em que ferira minha alma.
Contei sobre os tapas, socos e mordidas. Falei sobre o terror psicológico
e também sobre o estupro. Contei tudo a Alexandre e ele assentia a cada
palavra que irrompia em minha garganta. Quando terminei, ele levantou
e apenas me encarou.
— Obrigado por confiar em mim. — Estendeu a mão e eu
apertei de volta. — Pode apostar que farei de tudo para deixá-los em
segurança.
Não sabia o que ele podia fazer, mas acreditei nele.
— Muito obrigada — agradeci.
Não consegui dizer mais nada. Eu simplesmente precisava de um
tempo para assimilar tudo que Alexandre dissera. Ele então se despediu,
mas, antes de sair, disse, sorrindo: — É… O moleque está ferrado.
Sorri de volta.
Parecia que os irmãos Ferraz tinham o dom de arrancar sorrisos
das pessoas. Primeiro Diego e depois Alexandre.
Que Deus abençoe essa família.
Diego
— Princesa…
Foi a única coisa que consegui dizer, pois o restante das palavras
parou em minha garganta. Eu te amo! Era o que eu ia dizer. Eu te amo…
Porque não havia outra forma de explicar o que estava sentindo. Afinal,
amar era querer bem, não é mesmo? Sonhar acordado, ouvir a voz da
pessoa mesmo a quilômetros de distância. Amar era dormir e acordar
com o mesmo pensamento. Sentir saudade antes mesmo de se afastar.
Amar era sorrir com o coração apertado. Viver com um único propósito:
fazê-la feliz.
E era exatamente isso que sentia pela garota em meus braços.
Cada parte de tudo que formava o amor batia em meu peito.
Sentia o despertar de seu coração através dos dedos. A forma
como batia alto e rápido. Queria que as horas não passassem, ao mesmo
tempo que desejava viver outros momentos ao seu lado. Amar também
era contradição. Era querer e não querer.
— Desculpa ter vindo sem avisar. — Larissa sorriu envergonhada,
baixando a cabeça e olhando para onde nossas mãos se encontravam. —
Queria fazer uma surpresa.
— Não poderia esperar nada melhor pra esta noite. Vem, entra.
Fechei a porta atrás de nós e vi Larissa andar até a sala, observando
tudo à sua volta. Seus olhos iam de um ponto a outro e, de repente, eu
estava nervoso. Era a primeira vez que me sentia assim, inseguro e com
medo do que ela poderia achar do meu mundo. Parei, esperando que
terminasse sua pequena exploração. Larissa caminhou até um quadro
pendurado na parede acima do sofá e me olhou sorrindo.
SEUS MAIORES BENS SÃO SEUS SONHOS
Nietzsche
— Belo pensamento — disse ela. — E quais são os seus sonhos?
Senti que estava me testando. Procurando saber se realmente se
encaixava naquilo que eu sonhava.
Ah, minha linda, se você soubesse que você faz parte de todos os meus
sonhos.
Comecei a caminhar em sua direção enquanto falava.
— Sonho em continuar fazendo um bom trabalho como
promotor, levar um pouco de paz a quem precisa. Sonho com minha
família e amigos sempre unidos. Sonho com um mundo melhor pros
meus sobrinhos. — Alcancei-a, meu corpo tão próximo a ela que podia
sentir seu calor. Devagar, ela levantou a mão na altura do meu peito,
mas, antes de tocá-lo, parou no ar, como se algo duelasse dentro dela,
impedindo-a de seguir seus desejos. — Sonho em me casar com uma
mulher maravilhosa, ter filhos, viver pra fazê-la feliz. Sonho em ver uma
garotinha crescendo sob os meus cuidados e poder fazer parte da vida
dela como um verdadeiro pai.
Larissa soltou um suspiro. Mesmo sabendo que ela estava
mergulhada em uma emoção que era só dela, continuei. Se me calasse,
sufocaria com o amor que ela necessitava saber que eu sentia.
— Sonho em amar você todos os dias e poder estar ao seu lado a
cada nova transformação. Sonho em ser aquele que te fará acreditar mais
uma vez no amor, e sonho em poder te dar momentos que se
transformarão em boas lembranças.
Larissa levantou o rosto, encarando meus olhos, e enfim tocou
minha pele. Senti queimar, ardendo na paixão que ela me fazia sentir.
— Por favor — murmurou, lágrimas se misturando ao sorriso que
surgia em seus lábios. — Nunca deixe de sonhar.
— Só quando eu parar de respirar.
As palavras mal chegaram ao destino e seu gosto já me invadia. Ela
trazia uma doçura nos lábios que era só dela, e eu nunca me sentiria
saciado do seu sabor. Suas mãos deslizaram pelos meus ombros,
deixando um rastro de desejo por onde tocava, e minha mente implorou
que seus dedos cobrissem cada centímetro de pele que existia em mim,
porque a sensação de ser tocado por ela era sublime. Já fora tocado por
várias mulheres, mas nenhuma delas fizera eu me sentir daquela forma:
como se existisse apenas aquele momento. Pousei a mão na base de suas
costas e a inclinei para trás, aprofundando o beijo, mas com a certeza de
que nunca seria suficiente. Senti seus seios enrijecerem sob o fino tecido
da roupa que usava. Gemi em sua boca com a expectativa de que
faríamos amor. Quando Larissa deslizou a língua pelos meus lábios, eu a
segurei ainda com mais força, distribuindo beijos pelo pescoço, até
mordiscar o lóbulo da orelha. Eu já estava duro, meu pau crescendo,
regido pelos pequenos gemidos que ela dava.
— Ahhh... — Ela gemeu alto quando deslizei uma alça do
macacão. Queria ver seus seios de novo. Não conseguia parar de pensar
em como eles eram deliciosos e o quanto haviam ficado excitados sob o
toque da minha língua. Eu ia saboreá-los de uma maneira que Larissa
jamais esqueceria. Ia desvendar seu corpo a ponto de conhecê-lo mais do
que o meu próprio. — Só… Por favor… Calma.
Demorei um tempo para entender o que ela pedia, a adrenalina
viajando pelo meu corpo e me deixando em êxtase de tanto tesão. Me
afastei, encarando-a. Seus lábios estavam inchados e os cabelos
bagunçados, mas nada a deixava tão sexy quanto seus olhos flamejantes.
Larissa queimava com o mesmo desejo que me incendiara.
— Eu quero isso. Quero você mais que tudo, mas eu… eu…
só…
Segurei seu rosto em minhas mãos e a beijei com delicadeza.
— Tudo bem. Eu sei. — Sorri, tentando tranquilizá-la, porque
eu realmente sabia, o que não evitava que me sentisse frustrado. —
Espera só um pouquinho?
Ela assentiu.
Deixei-a na sala e fui até o quarto. Joguei uma água no rosto,
tentando me acalmar, e esperei alguns minutos até poder andar de novo.
Vesti uma camiseta, troquei a bermuda e ajeitei o cabelo. Comecei a
pensar em um plano para a noite, o sorriso nunca abandonando meu
rosto, pois sabia que o passo que estava prestes a dar mudaria nossas
vidas. Mais ainda, já que eu não me reconhecia desde que Larissa
cruzara meu caminho.
Quando voltei, ela observava uma foto sobre a estante. Eu e
Alexandre. Quando sentiu minha presença, pôs a foto no lugar e virou
para mim.
— Que tal pedirmos comida? — Levantei o celular e ela assentiu.
— O que você prefere? Comida italiana? Pizza? Portuguesa?
— Você pode escolher.
— Tenho gostos simples — avisei, sem tirar os olhos da tela do
celular.
— Duvido.
Parei, surpreso com suas palavras. Levantei a cabeça e a peguei
observando a sala mais uma vez. Pude ver em seus olhos que ela se sentia
deslocada.
— Não faz isso, por favor.
— Isso o quê? — perguntou, irônica.
— Agir como se fôssemos diferentes.
— E somos.
— Não! — disse, consternado.
— Olha pra isso, Diego. — Ela abriu os braços. — Olha pra
mim. Eu vim aqui hoje porque sinto que meu coração vai explodir de
tanta saudade quando você está longe. Vim porque estar ao seu lado é
tudo que mais desejo. Mas chegar aqui e ver esse abismo que nos separa
é como um aviso pra eu parar de brincar com uma vida que não é
minha. Você está além dos meus sonhos.
O pânico começou a me invadir quando a vi caminhando para a
porta. Um sentimento de angústia apertou meu peito, e eu sabia que se
a deixasse sair, ela nunca mais voltaria, mas também tinha consciência de
que não podia obrigá-la a ficar.
— Você tem razão — falei alto, e ela parou com a mão na porta.
— Somos diferentes sim. Eu tive oportunidades em minha vida que
você sequer sonhou em ter. Sempre estudei em excelentes escolas e
frequentei os mais diversos cursos que você pode imaginar. Inglês,
francês, espanhol, posso falar em todos esses idiomas. Tive pais e irmãos
que acreditaram em mim e me deram todo o apoio que eu poderia ter.
— Está dizendo que não me esforcei? Que tudo que sou foi
porque eu não quis ser diferente?
Aproximei-me um pouco mais, ignorando sua raiva.
— Não. E você sabe disso. E eu também tive que me empenhar.
A única coisa que nos diferencia são as oportunidades, Larissa. Você não
pode se sentir inferior a ninguém quando as condições não foram as
mesmas. Você conquistou o mundo com as ferramentas que te deram. E
isso é mais do que muitos podem conseguir. Mesmo com
oportunidades.
Eliminei a distância entre nós e fiquei aliviado quando ela não
recuou.
— O que eu vou dizer agora pode parecer ter saído de um livro, e
eu não duvido que alguém já tenha escrito sobre essa verdade: eu sei o
que é errado, Larissa. E isso aqui — balancei o dedo entre nós dois — é
a única coisa que não é errada. O resto pode ser uma merda, mas isso
que meu coração está gritando como um louco, isso não pode ser errado.
E eu sei que você sente isso.
Ela ainda tinha uma mão sobre meu coração e podia senti-lo bater
sob seus dedos. Me aproximei mais, e ela não recuou. Estava tão
próximo que sentia sua respiração acelerada. Levantei a mão devagar,
quase em câmera lenta. Não podia deixar que ela ficasse assustada
comigo. Seus olhos estavam grudados nos meus dedos, observando a
minha aproximação. Eles faiscavam, mas não era medo. Deus do céu.
Ela não tinha medo de mim, isso era a maior prova de confiança que
poderia receber. Ela olhou para mim e segurei a respiração, pois não
sabia se seria capaz de me controlar agora que sabia o gosto da sua boca.
Mas precisava. Toquei seu rosto. A face que já abrigara tantas marcas e
dores. Queria poder extrair cada lembrança ruim do seu coração, porque
me doía saber que ela já sofrera por amor. Deslizei o polegar sobre sua
pele macia e absorvi a sensação incrível que era tocá-la. Fechei os olhos e,
quando enfim abri mais uma vez, Larissa deixou um sorriso escapar
entre seus doces lábios enquanto lágrimas surgiam em seus olhos. Sorri
também, o coração batendo forte no peito, implorando para ser aceito
por ela. Porque ela me tinha tão forte em suas mãos e sequer tinha
noção. Respirei fundo, pois sabia que o que iria dizer poderia assustá-la.
— Esperei muito tempo para entregar meu coração a alguém, e
sempre ansiei por esse dia. O dia em que poderia dizer que encontrei a
minha única certeza. A maior delas. E a que quero ao meu lado. Minha
alma ama a sua mais do que eu posso suportar. Então, por favor, não me
deixe amar sozinho. — Puxei sua mão, fazendo-a caminhar de volta para
mim. — Ame comigo. — Ela começou a chorar, colocando para fora
tudo que a impedia de dizer sim. Queria abraçá-la, mas senti que ela
precisava daquele momento, para deixar para trás o medo de amar de
novo.
— Eu fiquei tão machucada que tenho medo das feridas nunca
cicatrizarem. O que aconteceu naquele dia. O que acabou de acontecer.
Eu sempre terei dúvidas.
— Diga pra mim — pedi. — Quando sentir que algo não está
certo, fale comigo, mas não se afaste.
Ela assentiu, fazendo meu coração pular de alegria. Levei a mão
até seu rosto e acariciei sua pele macia.
— Acho que podemos pedir pizza — disse Larissa, sorrindo,
ainda um pouco tímida.
— Excelente ideia.
33
Larissa
— E a Malu?
Sorvi o último gole do líquido que descia queimando pela minha
garganta. Tomei duas taças de vinho e era muito mais do que estava
acostumada. Ainda estava atordoada pelas palavras do Diego e me
perguntava se ele sempre me conduziria dessa forma, fazendo com que
acreditasse que era possível. Não parava de pensar no quanto eles eram
diferentes. Enquanto Dennis me subjugava, Diego me fazia olhar para
dentro de mim mesma até descobrir o que era real. Enquanto um gritava
palavras que me calavam, o outro me pedia para falar. Um roubara
minha voz, o outro me dera um coração.
— Janaína ficou com ela — respondi à pergunta que me fizera.
— É surpreendente vê-la com a Vitória. As duas se deram tão bem.
— Acho que vai ser aquele tipo de amizade que você leva pra vida
inteira.
Balancei a cabeça, concordando.
Ele estendeu a garrafa em minha direção.
— Mais?
— Não. Obrigada. Bebi o suficiente. Posso usar o banheiro?
— Claro. Vou te mostrar onde fica.
Diego me conduziu pelos corredores até um lugar que, pela
decoração, parecia ser seu quarto. Entrei, tentando não reparar na
grandeza de tudo. Apenas apreciei seu bom gosto enquanto sentia sua
mão entrelaçada à minha. Ele me soltou, mostrou a porta, e eu dei um
sorriso agradecido. Antes de me afastar, o peguei de surpresa, dando um
selinho rápido. Senti minhas bochechas queimarem com o gesto. Ele,
por sua vez, me deu um sorriso largo, que o deixava mais jovem, mais
simples e natural. Fui direto até a pia, lavei as mãos e levei um pouco de
água até a nuca. Sabia que a noite estava se encaminhando para algo
maior, e isso me assustava a ponto de me fazer suar. A diferença entre
hoje e o dia em que quase transamos no meu sofá era nítida. Eu não
tinha nenhum outro sentimento me guiando, como raiva ou vergonha.
Eu tinha apenas o desejo de estar com ele, e era mais difícil lidar com
isso do que com a adrenalina que vivera.
Segurei na bancada, abaixando a cabeça, e respirei fundo diversas
vezes, buscando coragem para ouvir meu coração e seguir em frente. Mas
quando levantei e o vi, não consegui mais raciocinar, eu era só
sentimentos. Diego me observava pela fresta da porta. Seus olhos
encontraram os meus através do espelho e vacilei sobre minhas pernas.
Tive que segurar aquele maldito granito entre meus dedos ainda com
mais força, porque, se ele esboçasse qualquer movimento, eu ia desabar
ali mesmo, no chão do banheiro. Porém, nenhum de nós se moveu,
apenas ficamos perdidos no momento enquanto a tensão se espalhava
pelo ar. Meu peito subia e descia visivelmente com a intensidade da
respiração. Diego também parecia tão afetado quanto eu. A música que
ele pusera minutos antes havia acabado, e outra tão romântica quanto a
anterior embalava aquele momento. “All of Me”! Me perguntei se ele
havia escolhido a canção para mim, ou se fora um acaso. Gostei de
imaginar que ele a escolhera enquanto preparava esse momento.
Movida pelo desejo de descobrir mais sobre nós, virei, quebrando
a conexão em que mergulháramos.
— Diego… — engasguei, e ele me deu um sorriso apaixonado.
Sim, era amor o que via em seu rosto naquele momento, só podia ser
amor, e isso fazia meu peito querer explodir. Ele me estendeu a mão,
não imaginando o quanto aquele gesto significava para mim. Ele a
erguera para mim quando eu achara que nunca mais teria alguém.
— Estou aqui.
— E você vai ficar?
— Até quando você quiser.
Então deixei o banheiro para trás e dentro dele também deixei o
medo, a vergonha, a falta de esperança e tudo de ruim. Joguei-me nos
braços daquele homem tão lindo e gentil. Diego me segurou, me
levantou, e eu envolvi sua cintura com as pernas. Beijei sua boca
enquanto sorria como uma descontrolada, porque estava feliz demais
para me conter. Eu era minha, mas naquele momento eu também era
dele, e isso me completava de uma forma que nunca achara possível. Ele
segurou minha nuca, movimentando minha boca contra a sua, enquanto
meu corpo implorava que ele me desse mais, que preenchesse um vazio
que eu sabia que ele seria capaz de suprir. Um vazio de alma. O gosto da
sua boca era o sabor mais delicioso que eu provara. Nenhum brigadeiro
se comparava aos lábios do Diego. Viciante era a palavra que o definia.
Eu poderia beijá-lo para sempre. Seu beijo rasgava tudo dentro de mim,
e gemi quando chupou meu lábio inferior, prendendo-o entre os dentes.
Segurei seus ombros com força, procurando algo que me trouxesse para a
realidade, mas não consegui. Aquele momento era pura magia. Senti o
calor da sua boca em minha bochecha e sua voz sussurrou em meu
ouvido.
— Quero muito fazer amor com você, princesa. Quero isso mais
do que quis qualquer coisa na vida. Quero conhecer seu corpo e te dar o
prazer que você merece, mas antes disso preciso que saiba de uma coisa.
Afastei-me um pouco, observando seu rosto. Fiquei assustada,
pois Diego estava com os olhos cheios de lágrimas, e minha primeira
reação foi querer me afastar, mas ele me impediu, segurando forte minha
cintura contra ele.
— Eu te amo, Larissa — confessou, olhando no fundo dos meus
olhos. Meu coração parou. — Te amo, e eu sei que talvez isso te assuste,
mas eu precisava dizer, porque sei que vou dizer quando estiver dentro
de você, e não queria que achasse que é por causa do sexo. Te amo.
Amo seu coração. Amo sua alma. Amo você — repetiu.
— Eu… eu… — Minha voz travou.
Diga, Larissa! Diga! Você não estaria aqui se não o amasse. Diga!
— Não precisa dizer nada. Apenas me ame.
Te amo!
Meu coração gritava enquanto o beijava mais uma vez.
Te amo!
Meus olhos disseram, quando ele me pôs com delicadeza na beira
da cama.
Te amo!
Disse para mim mesma, quando seus olhos me observaram.
— Diego. — Eu entoava seu nome como uma canção. Dizer seu
nome era como dizer eu te amo, pois nunca achara que voltaria a
derramar amor em minhas palavras. Diego. Cinco letras. Um sonho.
— Meu Deus, como você é linda.
— Quero tanto você.
— Não mais do que eu.
Ele sorriu.
Diego desceu a alça do macacão pelo meu ombro, os dedos
sempre acariciando minha pele. Meus olhos seguiam suas mãos e ele fez
o mesmo do outro lado, deixando um rastro de desejo por onde passava.
O medo ainda estava lá, e quando ele abaixou totalmente a parte de
cima da roupa e me deixou apenas de sutiã, um sentimento ruim
ameaçou acabar com tudo.
— Diego — repeti seu nome como um mantra. Apenas para me
certificar de que era ele que estava ali.
— Sou eu, amor, e estou bem aqui com você.
Balancei a cabeça, dando permissão para que continuasse. Seus
dedos foram para a lateral do meu corpo, deslizando o zíper para baixo.
Fechei os olhos. Bem ali havia uma cicatriz. Dennis me queimara com
um ferro. Passava suas roupas quando chegara em casa e, no meio de
uma briga, ele o usara contra mim. Lágrimas escorreram pelo meu rosto
quando Diego a beijou. Seus lábios tocaram delicadamente a prova da
dor que um dia eu sentira.
— Vou amar tudo em você, inclusive isso. — Acariciou o local
que beijara. — Não vai haver canto em seu corpo que não receberá
meus beijos. Não haverá lágrimas que eu não vá secar, e não terá um dia
sequer que não te farei sorrir. Eu te prometo o meu mundo.
Ele me deixou nua enquanto eu viajava em suas palavras. Não
tinha tempo para sentir vergonha, ou me esconder. Diego seguiu com
sua promessa, ficando de joelhos e beijando cada centímetro da minha
pele. Ele não beijou meus seios, pescoço ou boceta. Diego primeiro
acariciou as cicatrizes, as estrias que a gravidez da Malu causara, minhas
mãos, dedos e olhos. Só então continuou, tomando minha boca
enquanto me deitava sobre a cama. Mal sentia o peso do seu corpo sobre
o meu e isso foi muito bom. Era surreal. Eu estava na cama de um
homem e prestes a me entregar para ele.
Sua mão acariciou meu rosto, passando pelo pescoço e parando
no limite do sutiã. Ele só tinha que abaixá-lo, e a expectativa deixava
meus seios doloridos de tanto tesão.
— Você é a mulher mais linda que já vi — dizia, enquanto
desnudava meus seios devagar. Diego não deixava meus olhos, enquanto
sua mão trabalhava um pouco mais abaixo. — Seus olhos, sua boca, seu
corpo. Eu amo tudo isso e enlouqueço de desejo cada vez que te toco.
Seu polegar roçou meu mamilo intumescido pela excitação e eu
arqueei na cama, cravando as unhas em seu ombro, com seus olhos ainda
presos nos meus.
— Ahhhh! — gemi. — Por favor… só… faz isso de novo.
Então ele me tocou de novo, rodeando meus seios com as mãos.
Não conseguia manter os olhos abertos, porque a cada toque dele algo
explodia dentro de mim. Quando senti sua língua molhada lamber meus
mamilos, achei que ia desmanchar. Diego me levou às nuvens chupando
e mordiscando meus seios. Um, depois o outro, os dedos acariciando
ambos, juntando-os e passando a língua no meu colo. Eu já esfregava
uma perna contra a outra quando ele correu a boca pela minha pele,
distribuindo beijos até chegar à cintura. Ele abaixou, beijou minha
calcinha, a renda que envolvia a parte do meu corpo que agora pulsava,
implorando por um toque apenas.
— Diego.
— Estou aqui.
— Por favor.
— Sim, meu amor.
Minhas pernas foram abertas e seus dedos se esgueiraram pelo
tecido, tocando delicadamente minha boceta.
— Quero te fazer gozar — disse ele.
— Sim. Sim.
Quando achei que ia me deixar completamente nua, Diego
afastou a calcinha. Tudo duelava dentro de mim, e lutei para não sair
correndo quando me senti totalmente exposta naquela cama. Diego
deslizou a língua pela minha entrada e tudo se apagou da minha mente.
Eu só sentia.
— Caralho! — soltou ele.
— Meu Deus! — Eu gemi.
— Você é deliciosa, princesa. Mais do que achei que seria. —
Continuou brincando com as palavras, próximo à minha boceta. —
Porra! Você está toda molhada.
Não era fácil imaginá-lo dizendo palavras como aquelas, e muito
menos achei que me sentiria tão calma ao ouvi-las, mas quando ele
dizia, era como se estivesse me conduzindo para a beira de um
precipício. E eu ia ansiosa para me jogar.
Não foi rápido. Ele esperava a reação do meu corpo, lendo meus
desejos e os saciando. Ia devagar, depois depressa, beijando,
mordiscando, deslizando a língua pela pele sensível. Quando chegou ao
clitóris, eu estava pronta para explodir. Diego bateu a língua no ponto
pulsante e eu gemi seu nome com desespero.
— Geme de novo, princesa.
Ele me prendeu com os dentes e chupou com a destreza de quem
sabia o que estava fazendo. Agarrei o lençol entre os dedos e segurei o
mais forte que pude. Diego enfiou um dedo dentro de mim. A calcinha
que eu ainda vestia friccionava a pele onde ele não alcançava. Quando
me arqueei novamente, ele murmurou palavras que não consegui
compreender.
Dois dedos, e eu me senti tão sedenta que choraminguei,
implorando para que me fizesse gozar. Não aguentava mais quando ele
atendeu minha súplica e juntou a boca aos dedos. A sensação era de que
eu podia ver estrelas.
— Diego… Diego… — gritei, enquanto gozava em sua boca. Ele
manteve minhas pernas abertas, saboreando tudo o que eu entregava.
Segurei seus cabelos para afastá-lo de mim, porque a sensação era
grandiosa demais para suportar. Mas minhas mãos não obedeceram a
mente e o trouxeram para mais perto, como se fosse possível puxá-lo
ainda mais fundo.
Quando meu corpo parou de tremer, Diego levantou, lambendo
os lábios. Os olhos me encararam com fome, e eu me senti tão faminta
quanto ele. Quando tirou a camisa, suspirei.
— Posso te tocar?
Ele me deu um sorriso malicioso. Aproximou-se da cama e
segurou minha mão, fazendo-a deslizar por seu abdômen. Diego fechou
os olhos e eu não conseguia parar de olhar para os músculos que
tensionavam sob meu toque. Sua boca emitia murmúrios quase
inaudíveis e, quando soltei minha mão da dele para abrir a bermuda, seu
gemido ecoou alto. Eu não conseguia parar. Não queria parar. Abri o
botão e deslizei o zíper para baixo. Quando a bermuda caiu, meu
coração saltou disparado. Ele vestia uma cueca boxer preta, e a ereção me
deixou mais uma vez com tesão. Queria muito tocá-lo e beijá-lo, mas
meu corpo não obedecia à minha cabeça. Parecendo entender meu
receio, Diego se afastou e abriu uma gaveta. Imaginei o que ele tinha nas
mãos. Ele ficou completamente nu e desenrolou o preservativo pela
extensão do seu membro. Eu continuava travada no lugar. De repente, o
medo parecia avançar. Diego segurou minha mão e me fez levantar.
Tirou meu sutiã e jogou no chão, em cima da sua camiseta. Então
deitou na cama. A visão era tão erótica que eu mal conseguia processar.
Aquele homem lindo, de pau duro, esperando por mim.
— O poder é seu. Sempre foi. Desde quando olhei aquela foto e
me apaixonei perdidamente pela dona dos olhos mais doces que já havia
visto. Desde que a vi sentada naquela cadeira, munida de uma coragem
que me deixou de joelhos. O poder é sempre seu, sempre será.
Sabia o que ele estava fazendo. Diego percebera minha hesitação,
sabia o que eu sentia, e por isso me deixava controlar. E eu seria a
Larissa corajosa de que tanto falava. Respirei fundo antes de subir nele,
uma perna de cada lado da sua cintura.
— Você já controla meu coração, agora vai fazer o mesmo com o
meu corpo. Rápido, devagar, fundo. É você quem decide.
Senti o medo dando lugar ao desejo. Espalmei as mãos em seu
abdômen, me deliciando com os músculos esculpidos que o tornavam
tão belo e másculo. Então era isso que seus ternos elegantes cobriam. Um
homem extremamente sexy.
— Porra! — exclamou, quando me posicionei sobre ele. — Posso
sentir você me apertando. Caralho. Você tá quente e molhada… muito
molhada. — Continuei descendo, observando seus olhos se fecharem e a
excitação tomar seu rosto. Mantinha os meus abertos. Queria ver como
ele reagia a mim, se seu corpo ansiava pelo meu assim como eu desejava
o dele.
Tive que me acostumar com seu tamanho e grossura, então fui
devagar. Quando ele estava inteiro dentro de mim, tentei me mexer, mas
Diego segurou minha cintura com as duas mãos, me mantendo imóvel.
Ele grunhiu um palavrão, levantando as costas da cama e ficando
praticamente sentado comigo em seu colo.
— Gostosa.
Ele enfiou a mão por baixo do meu cabelo, puxando-o de leve,
pegou um mamilo com a boca e começou a chupar. Foi bom ver que eu
o descontrolava a ponto de deixar sua promessa de lado por alguns
segundos. Afinal, ele não era perfeito o tempo todo.
Empurrei seu peito, fazendo-o deitar de novo, e ele arqueou as
sobrancelhas, surpreso com a minha reação. Segurei seus ombros, me
inclinando sobre ele, e comecei a me mexer. Devagar, experimentando o
prazer de tê-lo dentro de mim. Sentia todo o seu comprimento me
invadindo e depois me deixando, apenas para entrar fundo mais uma
vez. Ditei o ritmo e fui devagar até o momento em que não consegui
mais me conter, necessitando de muito mais. Passei a cavalgá-lo. Meu
corpo livre para subir e descer. Sem cordas, sem gritos, sem tapas. Não
havia ninguém me prendendo sobre a cama. Ninguém me machucando
ou me apertando. Não havia ninguém sobre mim. Eu estava livre. Eu
estava amando.
Fechei os olhos quando suas mãos seguraram meus seios e seu pau
passou a estocar cada vez mais rápido e fundo. Não imaginava que podia
sentir tanto tesão por alguém. Diego me levou a um patamar de prazer
que eu nem sequer sabia que existia.
— Linda, goza comigo. Eu não aguento mais essa boceta
apertando meu pau. Vem comigo, princesa.
O apelido em sua boca. A forma carinhosa como me tratava ao
mesmo tempo que me possuía. Seus olhos tão amorosos enquanto seus
dedos em meus mamilos me faziam explodir de tanto tesão. Deus. Esse
homem era uma contradição deliciosa.
Senti o orgasmo se formando e, quando sua mão desceu do seio
para estimular o clitóris, não consegui me segurar. Entreguei a ele não
somente meu orgasmo. Naquele momento, compartilhei a dor, a mágoa
e todo o sofrimento que eu um dia sentira. Enquanto dizia seu nome,
perdida no prazer ao qual ele me levava, dividi com ele todos os socos,
tapas e gritos. E por fim entreguei meu corpo, aquilo que um dia
tomaram de mim.
— Ahhhh, Diego, ah…
Ele me segurou pela cintura, mantendo-me no ar, e meteu fundo
uma última vez, gozando enquanto me olhava nos olhos.
— Eu te amo — disse ele, como havia previsto. Eu sorri e ele me
beijou. — E vou te amar enquanto houver tempo para amar.
34
Larissa
Fazia um tempo que estava acordada, mas fiquei com medo de
abrir os olhos e descobrir que tudo tinha sido um sonho. Não me movi,
não respirei, sequer conseguia pensar.
— Está acordada?
Sua voz penetrou em meus ouvidos.
Ainda de olhos fechados, sorri. Ele me tocava; os dedos
acariciando minha coluna e traçando uma linha imaginária de cima a
baixo, provocando arrepios. Virei o rosto, abri os olhos e perdi o fôlego
ao vê-lo deitado de lado, me encarando com tanta paixão que eu senti
minha pele queimar.
— Que horas são? — murmurei.
— Ainda é cedo.
— Foi tão perfeito. Como você disse que seria.
Ele abriu um sorriso orgulhoso e seu olhar percorreu meu corpo.
Senti minhas bochechas esquentarem. Nunca achara que o sexo poderia
ser assim… completo. Foi tão intenso que ainda sentia seus toques em
minha pele. Minha boca ainda saboreava o seu gosto. Podia ouvir sua
voz dizendo eu te amo.
Virei, deixando os seios à mostra. Pensei em me cobrir com o
lençol, mas que diferença faria para quem havia feito um sexo tão
maravilhoso quanto o nosso? Diego não conseguia desviar os olhos deles
e, quando viu que eu percebi, sorriu.
— Você foi perfeita.
— Dizem que a segunda vez é ainda melhor.
Puxei sua mão para que viesse até mim.
— Disso eu tenho certeza.
Ao contrário da primeira vez, ele abriu minhas pernas e se
encaixou no meio delas. Podia sentir seu pau me tocando, mas estava
mais focada em sua boca se movendo contra a minha. Eu o beijei de
volta quando ele ameaçou parar, e comecei a sentir a necessidade
pulsante de tê-lo dentro de mim. Diego parecia ter sido tomado pelo
mesmo desejo que eu. Ele saiu e voltou segundos depois vestindo o
preservativo. Depois de voltar para o meio das minhas pernas, segurou o
meu rosto entre as mãos.
— Eu preciso que você saiba que, a qualquer momento, basta
uma palavra sua e eu paro.
Parar? Como? Por quê?
— Não quero que você pare.
Puxei seu pescoço para beijá-lo e senti que ele me invadia
conforme nosso beijo se aprofundava. Ele metia fundo, o quadril se
movendo sem descanso. Diferente da primeira vez, Diego estava mais
intenso. Como se o desejo o dominasse.
— Que bocetinha gostosa! Caralho… Caralho… — disse ele,
mordiscando minha orelha. — Deliciosa demais.
Meu quadril subia de encontro ao dele, tamanha a necessidade de
tê-lo mais fundo. Eu o queria tanto que não suportava sentir qualquer
espaço nos separando. Ele estocava cada vez mais forte, mais rápido,
mais fundo, mais delicioso.
— Definitivamente — sussurrei ofegante —, não pare.
Ele não parou.
Eu não parei.
Entre gemidos, sussurros e promessas, Diego me levou a um lugar
aonde jamais imaginara que chegaria: ao céu.
Diego
Quando meu telefone tocou e vi o nome da minha princesa,
percebi que não existia no mundo um homem mais feliz do que eu.
Atendi sem fazer questão de esconder a empolgação por ouvir sua voz.
Haviam se passado três dias e eu ainda sentia como se ela estivesse aqui,
no meu apartamento. Eu não conseguia esquecer a nossa primeira vez.
Lembranças da Larissa em minha cama, embaixo do meu corpo,
beijando minha boca, me deixando entrar nela. Deus, eu era um
maldito pervertido, porque cada vez que lembrava dela, ficava duro. Até
isso ela controlava.
— Preciso de um favor — disse ela, depois de me cumprimentar.
— Diga o que queres e eu te darei um preço.
— Uau! Que mercenário! — Sua risada mexia com cada pedaço
do meu corpo. Era um privilégio fazê-la sorrir. — Acabei de criar uma
receita nova de brigadeiro. Deu empate técnico aqui. Malu não gostou
muito. — “É azedo”, escutei uma vozinha se explicando, e sorri. — Eu,
particularmente, amo menta. Então, que tal você dar um pulinho aqui e
dar seu voto?
Ela não precisava pedir duas vezes.
— Chego rapidinho. E já vou avisando: se for azedo, vou ficar no
time da princesinha.
Escutei muitas risadas e desliguei o telefone sem a menor dúvida
de que era o homem mais feliz do mundo.
Quando cheguei, Malu me deu um abraço, mas não falou
comigo. Era normal. Tinha dias em que ela estava mais falante, e em
outros se expressava de outras formas. Como o desenho que segurava nas
mãos e me entregou assim que se afastou. Minha primeira reação foi
elogiar, mas só depois que realmente vi o que estava desenhado ali que a
emoção me dominou. Era sua família. Eu, Larissa e ela.
Levantei a folha e vi minha namorada visivelmente emocionada.
— Alguma dúvida de que é você? — perguntou ao se aproximar.
— Nenhuma.
Havia um príncipe e duas princesas naquele papel. Eu só pedia a
Deus que não me deixasse falhar com elas. Eu tinha que ser a porra do
melhor príncipe que já existira.
— Posso ficar com o desenho? — perguntei. Larissa balançou a
cabeça, fazendo que sim. — Obrigado.
Eu a puxei e encostei de leve meus lábios nos dela.
O restante da noite passou voando. Depois de ter conseguido me
arrastar para o time dos que não gostavam de brigadeiro de menta, Malu
adormeceu no sofá. Fiz questão de levá-la para a cama. Acariciei seus
cabelos depois de cobri-la e dei um beijo em sua testa. Eu ainda não
conseguia entender como aquela garotinha podia provocar em mim uma
onda de amor tão grande. Ela me conquistara com os mesmos olhos da
mãe.
Quando voltava para a sala, esperançoso para fazer amor com a
Larissa, uma mensagem no celular me levou do céu ao inferno em
questão de segundos. A sensação era de que meu coração estava sendo
esmagado dentro do peito. Olhei para Larissa, que recolhia os lápis e
papéis de Malu da sala, e aquilo só fez o pânico aumentar ainda mais. A
verdade era que eu não podia protegê-las como pensara que conseguiria.
Fiquei puto com a impotência que me dominava naquele momento. A
mulher que eu amava e a menininha que tinha meu coração corriam
perigo, e não sabia como poderia mantê-las seguras.
Li a mensagem mais uma vez e senti raiva do mundo.
A maldade do ser humano não tinha limites.
— Ela não queria dormir antes do final do filme. Pus pra gravar.
Tá tudo bem, amor? — Eu não conseguia ouvi-la direito. — Diego,
tudo bem?
Ao chamar meu nome, ela me despertou.
— Preciso ir.
Não conseguia raciocinar. Tudo o que eu fazia era imaginar
Larissa e Malu em perigo. Abri a porta sem olhar para trás. Ouvia seus
passos e sentia seu cheiro, mas, porra, eu não conseguia imaginar uma
vida sem ela. Meu peito doía só de pensar nele… nela… Deus. O que
eu ia fazer?
— Diego…
— Por favor, entra.
— Você tá me assustando.
— Larissa… Entra em casa.
Minha voz saiu mais alta do que de costume. Aliás, eu nunca
havia falado daquela forma com ela. Larissa se sobressaltou. Pude ver que
estava assustada pela forma como seu corpo encolheu e pelas lágrimas que
surgiram em seus olhos. Amaldiçoei meu descontrole, mas estava tão
apavorado que não conseguia agir com coerência. Eu era só emoção.
Arranquei com o carro e dirigi tão rápido quanto pude. Quando
cheguei à delegacia, Guy estava na recepção, falando com alguns
jornalistas. Fiquei afastado, esperando o momento em que ele poderia
me explicar o que estava acontecendo. Eu escutava frases entrecortadas
enquanto minha mente viajava.
“Obrigada por acreditar no amor.”
Eu ainda não aceitava que aquela garota tinha morrido. Eu não
conseguia acreditar que aquele desgraçado conseguira o que queria.
Facadas… corpo… irreconhecível… estupro… vingança…
Guy dava os detalhes para a impressa e eu estava prestes a vomitar.
De repente, havia um microfone perto do meu rosto e dezenas de
pessoas na minha frente.
— Dr. Diego Ferraz, o que o senhor tem a falar sobre o caso da
Beatriz?
Olhava de um lado para o outro, sem saber o que dizer.
Ela tinha morrido.
Apenas ignorei todos e segui o delegado.
— Você soube? O cara fugiu e foi atrás dela.
— Como?
— Pergunta isso pro diretor do presídio. — Guy riu, sarcástico.
— Que porra, Guy! — gritei. — Que merda de resposta a gente
pode dar pra sociedade desse jeito? Me diz. O que vamos dizer? “Sinto
muito, mas todo mundo tá fodido.”
Guy me olhava como se eu estivesse maluco. E a verdade era que
eu agia exatamente como um.
— Mano, se acalma. Foi um crime brutal. Mas infelizmente não
foi o primeiro e nem será o último. O mundo tá cheio de pessoas
podres. Você sabe disso.
Meus olhos pousaram naquele homem que mais parecia um
armário. Guy tinha quase dois metros de altura e, naquele momento,
tentava me acalmar, porque tudo que eu conseguia fazer era andar de um
lado para o outro, imaginando o dia em que Dennis seria posto em
liberdade. Se ele fosse atrás dela, não sei do que seria capaz.
— Eu tô apaixonado. Minha namorada foi vítima de um desses
desgraçados. E agora eu tenho certeza de que nossa justiça não protege
porra nenhuma. Quando sair de lá, ele vai atrás dela. Agora você me diz,
Guy. O que eu faço? Espero ele matar a mulher que eu amo? Que porra
eu tenho que fazer?
Ele abaixou a cabeça, tão perdido naquela merda quanto eu.
— Eu amo uma garota que mal reconheço. É difícil enxergá-la
quando está tão drogada que sequer sabe o próprio nome. Eu, um
delegado, sou completamente apaixonado por uma viciada. Todos os
dias, faço a mesma pergunta que você: que porra eu tenho que fazer?
Não tenho uma resposta, Diego. Nem pra você e muito menos pra
mim. O único conselho que posso te dar é: vai embora e cuida da sua
garota. Você ainda a tem. Você sabe que nem todos os casos são iguais.
— Então, você quer que eu volte pra casa e conte com a sorte?
Que eu torça para que Dennis se arrependa?
— Não. Eu quero que você vá pra casa, ame sua mulher, viva e
não deixe o medo tomar conta de você.
Eu conhecia o discurso dele de cor e salteado. Sabia que tentava
me acalmar com palavras positivas, mas também tinha consciência de
que ele estava certo. Eu não podia parar a vida na expectativa de que
alguma coisa ruim viesse a acontecer. Eu ia amar Larissa todos os dias,
até depois que meu coração parasse de bater. Respirei fundo e, antes de
sair, não pude deixar de dizer: — Sinto muito.
Ele assentiu.
— Eu também.
Guy e eu erámos dois fodidos, com a fé na justiça abalada.
Minha vontade era dirigir de volta para minha casa, mas não
consegui. Quando percebi, já estava na frente do portão dela de novo.
Toquei a campainha e, quando Larissa surgiu na porta, tive que me
segurar para não chorar. A verdade era que a notícia da morte da Beatriz
me desestabilizara de uma forma que eu não conseguia lidar. Na minha
cabeça, só conseguia ver minha princesa no lugar daquela menina que
defendera havia alguns meses.
Caminhei até ela sem saber como explicar minha atitude. Foi só
quando me aproximei mais e ela sorriu que percebi que me entendia,
mesmo sem realmente saber o que estava acontecendo.
— Eu te amo — disse, assim que a alcancei. Eu a puxei para os
meus braços e ergui seu corpo. Larissa envolveu minha cintura com as
pernas e fechou a porta atrás de nós. Enterrei a cabeça no seu pescoço e
inalei seu cheiro, deixando o aroma de chocolate me acalmar.
— Fiz brigadeiros… Sem menta — concluiu, sorrindo.
Eu ainda tinha o rosto enterrado em seus cabelos.
— Faz amor comigo? — perguntei.
Me afastei, observando seus olhos. Ela balançou a cabeça para
cima e para baixo, dizendo sim. Meu peito explodiu de tanto amor
quando ela segurou meu rosto entre as mãos e me beijou. Caminhei pelo
corredor com ela em meus braços, desejando ter forças suficientes para
segurá-la assim para sempre. Larissa parou de me beijar apenas para
sussurrar onde eu deveria entrar. Então a pus delicadamente na cama e
me afastei para olhá-la. Seus cabelos estavam espalhados pelo lençol e seu
corpo chamava pelo meu, mas tudo que eu conseguia fazer era olhá-la. O
quanto ela era perfeita. Eu ia amá-la com todo meu coração. No meu
apartamento, fizéramos amor, mas também sexo. Mas o que queria
naquele momento, o que eu ia dar a ela, ia muito além do amor. Daria
a ela tudo que tinha e tudo que eu era.
Tirei a camiseta, sempre seguido por seu olhar cheio de desejo.
Me arrastei sobre ela, cobrindo seu corpo com o meu e, quando alcancei
sua boca, quando minha pele tocou a dela, tudo fugiu da minha mente.
Éramos somente nós e um amor que transbordava de mim. Tirei a blusa
que ela vestia apenas para descobrir que minha princesa não usava mais
nada por baixo. Meu pau já estava duro, mas, naquele momento, o que
eu sentia transcendia o tesão.
— São lindos — murmurei, enquanto acariciava os dois cumes
rosados. Minha língua implorou para lambê-los. Minha boca ansiava por
sentir seus mamilos em meus lábios, mas queria que Larissa pedisse.
Rocei o polegar no mamilo intumescido e ela arfou, jogando a cabeça
para trás. — O que você quer, princesa?
Sabia que ela tinha dificuldade de verbalizar seus desejos, e não
era para menos, depois de tudo que sofrera. Não queria envergonhá-la,
fazendo-a pedir. Não, não. Tudo que eu queria era que tivesse plena
consciência de que eu estava ali para ela. Queria que confiasse em mim a
ponto de me entregar seus mais íntimos desejos. Que me desse seu
coração da mesma forma que eu entregara o meu a ela. Completamente.
Abaixei a cabeça e passei o nariz entre os seus seios, respirando
contra sua pele quente. Ela se arrepiou e mais uma vez gemeu enquanto
eu a beijava.
— Diego…
— Diga.
— Por favor.
— O quê?
Mais beijos.
— Quero sua boca em mim — sussurrou.
E ela teve. Cada canto do seu lindo corpo recebeu meus lábios.
Eu a beijei desde o pescoço até o meio das pernas. Eu a toquei com a
minha alma, porque o que eu tinha até então não era suficiente. Eu a
deixei nua, exposta para mim, e ela não recuou, entregando-se ao
momento com uma paixão visceral. Abri suas pernas e saboreei o gosto
de sua boceta deliciosa. Os pelos ralos escondendo o objeto do meu
desejo. Lambi, deixando-a toda melada. Chupei, fazendo-a se contorcer
sobre a cama. Sentir sua boceta lambuzando meu rosto me deixou
incontrolável. A ideia era ir devagar, mas agora tudo que eu queria era
meter gostoso nela. Mas eu precisava vê-la gozar. Precisava tê-la em
minha boca. Então pus um dedo em sua entrada e deslizei para dentro,
enquanto brincava com seu clitóris.
— Ah, Diego… Sim.
Não demorou muito. Excitada demais, Larissa puxou meus
cabelos, me fazendo aumentar o ritmo do toque. Meu Deus! Enquanto
ela gozava, eu só conseguia me lembrar da maravilha que sentira ao estar
dentro dela, e que em poucos segundos ia me perder nesse prazer mais
uma vez.
— Diego, ahhh, isso.
Suas unhas cravaram em meus ombros, rasgando minha pele.
— Preciso entrar em você.
Ela apenas murmurou.
Afastei-me, tirando depressa a calça. Quando peguei a camisinha,
sua mão me deteve.
— Eu tomo pílula.
Puta merda! Eu não acreditava no que estava ouvindo.
— Eu nunca fiz sem.
— Nem com a Sofie?
Fiquei sério, ela ainda tinha dúvidas em relação ao meu passado.
— Nunca.
Ela sorriu.
Olhei para o preservativo em minhas mãos. Era verdade. Eu
nunca havia transado sem camisinha. E também nunca amara ninguém
como amava a mulher à minha frente. Deixei o pacote de plástico no
chão e fiz o que meu coração mandou.
Cobri o corpo dela com o meu, já sentindo a diferença de não ter
nada entre nós. Sentia sua pele nua enquanto encostava meu pau em sua
boceta. Achei que ia morrer quando enfiei a cabecinha. Quando deslizei
e senti o quanto ela estava molhada, tive certeza.
— Caralho — soltei.
Eu mal conseguia me mexer, sentindo que a qualquer momento
iria explodir.
— Você é tão lindo. — Larissa levantou o corpo, apoiando-se nas
mãos, para sussurrar em meu ouvido. — Quero você todinho.
Porra!
Porra!
Ela realmente queria me matar.
Comecei a me mover, dando o que ela pediu, me enterrando
inteiro naquela bocetinha gostosa.
— Assim?
Arremeti dentro dela.
— Ahhhh… Assim. Mais fundo.
Segurei seus seios e meti fundo, meti gostoso, meti incontáveis
vezes. Sua boceta gulosa sugava meu pau e eu queria me afundar cada vez
mais nela enquanto apertava seus seios maravilhosos.
— Porra… Ahhh… Cacete… — sussurrei, incoerente, quando a
senti se contraindo e apertando a cabeça do meu pau. Enfiei um mamilo
na boca, chupando aquele peito gostoso que me deixava com um puta
tesão. — Quero comer essa boceta todo dia. Caralho de bocetinha
gostosa. — Assim que as palavras saíram, eu me arrependi de tê-las dito.
Deveria ter me segurado, mas era difícil quando estava comendo a
mulher mais gostosa que já estivera em meus braços. Parei por alguns
segundos e busquei seus olhos. — Amor, diz pra mim quando for
demais. Se minhas palavras te machucarem, eu me calo. Se meu corpo te
pressionar além do suportável, eu me afasto. Eu faço tudo pra você
nunca mais sair da minha vida.
— Não me trate diferente. Não me olhe com pena, não procure
curar as feridas que ainda existem. Me trate como uma mulher normal.
Apenas faça amor comigo como se ninguém mais tivesse existido. Me dê
uma vida nova. Eu só vou seguir em frente se deixar o passado pra trás.
Entendendo o que ela pedia, voltei a tocá-la. Isso despertou ainda
mais minha princesa, pois senti o momento em que agarrou meu pau
com mais força. Senti sua boceta ficar ainda mais molhada. Ela estava
gozando.
— Vem comigo, amor? — pediu ela.
Caralho. Ela pedia para eu gozar nela. Dentro da sua boceta.
Encontrei suas mãos e entrelacei nossos dedos.
— Diego, olha pra mim.
Ela tinha o controle de tudo. Puta merda! Ela me tinha em suas
mãos.
Olhei no fundo dos seus olhos e o que vi fez as lágrimas surgirem.
Não tive vergonha de chorar, porque vi o amor me olhando de volta.
— Eu amo você — declarou ela, em meio a um sorriso, enquanto
eu simplesmente chorava. Enfiei uma última vez e ela gritou enquanto
gozávamos juntos. — Eu amo você. Eu amo você.
Naquele momento, eu sabia. Nunca existira e jamais existiria
alguém como ela. Havia encontrado minha alma gêmea. A que teria para
sempre meu coração.
36
Larissa
— Você quer conversar?
Ele sacudiu a cabeça em negativa.
Eu me abrira com ele. Dissera que o amava. Não conseguia mais
segurar aquele sentimento dentro de mim, então as palavras saíram com
uma naturalidade que me assustara. Na verdade, tudo naquela noite me
assustava. O rompante inexplicável que o fizera ir embora. Sua volta
misteriosa e a maneira como fez amor comigo, como se aquele
momento fosse o nosso último. Me assustei inclusive com as minhas
atitudes, mas a verdade era que nossa relação nunca seria diferente se eu
continuasse presa ao que vivera, se continuasse deixando o medo me
guiar. Diego era diferente, e tudo com ele tinha que ser assim. Por isso
tomara a iniciativa de não usar o preservativo. Eu sabia que ele nunca
pediria. Diego era perfeito demais para pensar nisso. E isso era bom.
Sentia-me viva tomando decisões por nós dois, e a nova Larissa crescia
cada vez mais.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei.
Diego estava tão silencioso que comecei a ficar preocupada.
— Coisas do trabalho — murmurou.
Deitados na cama ainda abraçados, comecei a pensar no quanto a
vida podia nos pregar peças. E fora na dor que eu encontrara o amor.
— Quer dormir aqui?
— Posso? — Ele afastou uma mecha do meu cabelo e se inclinou
para beijar meu rosto.
— Uhummm… — gemi em resposta, pois seus carinhos me
deixavam mole.
— Então vem aqui.
Ele me puxou para ele, deitei a cabeça em seu peito e adormeci
escutando as batidas do seu coração. Um coração que eu tinha certeza
que batia por mim.
Diego
Os dias seguintes foram menos tensos. Tudo que acontecera
naquela manhã servira para fortalecer ainda mais nossa relação. Não dava
para dizer que todos os dias eram perfeitos, mas pelo menos havia amor
em todos eles.
— Eu achei que era um jantar simples.
Larissa protestou, quando viu a mesa posta. Ela encarou um dos
pratos, lagosta, e seu olhar para mim foi de quem estava extremamente
deslocada.
— Não sei como usar essas coisas. — Seus olhos pousaram sobre
os talheres e senti um ódio de mim mesmo por fazê-la passar por aquela
situação. Eu tinha que ter previsto que aquilo seria um pouco demais
para ela. Larissa ainda estava se reerguendo e tentando conquistar tudo de
que o desgraçado a privara. Me remexi na mesa, desconfortável, sem
saber o que fazer ou como agir. Foi então que notei Clara me
encarando. Ela deu um sorriso de garota que estava aprontando e seguiu
com uma piscadela.
— Meu amor! Não estou me sentindo bem. — Levou a mão à
testa e de imediato Alexandre parou tudo que fazia e voltou sua atenção
para a esposa.
Sua mão pousou sobre a barriga da Clara.
— Algo com o bebê, minha menina? — perguntou, preocupado.
— Não. Acho que foi uma queda de pressão.
— O.k.! Vamos pra casa — disse Alexandre, sem pensar duas
vezes.
Ele se despediu de todos os convidados, que não reclamaram da
súbita partida. Levantei, levando Larissa comigo.
— Com licença, senhores. Vou acompanhar meu irmão. Em se
tratando da esposa, ele fica muito nervoso pra tomar qualquer decisão
necessária.
Também me despedi.
Saindo do restaurante, vi Alexandre andar a passos largos para
alcançar Clara, que quase corria na sua frente.
— Está tudo bem com ela? — A voz suave da Larissa chamou
minha atenção.
Entrelacei nossos dedos e levei à boca, beijando sua mão.
— Está sim, princesa — tranquilizei-a.
Caminhamos atrás deles e vimos quando Clara, depois de andar
um quarteirão, entrou em uma pizzaria pequena, porém aconchegante.
Da porta eu podia ouvir Alexandre exasperado, chamando-a para ir para
casa.
Assim que sentamos, o garçom se pôs ao lado da nossa mesa.
— Por favor, uma pizza grande de bacon e calabresa — pediu
Clara.
A expressão do meu irmão era impagável e Larissa também estava
totalmente perdida. Porra! Só eu entendia o que Clara havia feito.
— Ah… — ela chamou o garçom de volta —, uma porção de
batata frita também.
— Maria Clara Gomes Bueno Ferraz. — Alexandre chamou sua
atenção, mas ela o ignorou.
Virou para Larissa e sorriu.
— Também odeio aqueles bichos com bigodes. E odeio jantares
chatos.
Minha garota abriu um sorriso do tamanho do mundo. Olhei
para Clara, que sorria para mim. Agradeci com o olhar pelo que tinha
feito, e tive a certeza de que Clara entendeu.
Larissa
Diego
Larissa
— O que você tá fazendo aqui, Dennis?
— Foi difícil achar vocês. Pensei que ainda estivessem morando
naquela espelunca que você chamava de casa. Fui até lá. Vi vocês algumas
vezes, mas ainda não era a hora certa.
Fui andando devagar para trás e empurrei a porta com toda a
minha força, mas Dennis a segurou, mantendo-a aberta. Ele tinha uma
expressão sádica no rosto, um sorriso de quem não tinha aprendido nada
no tempo em que passara preso.
— Estou diferente, não é mesmo? Eles cortam nosso cabelo na
cadeia. Você amava aqueles cachinhos. O tempo todo eu fiquei
pensando em todas as vezes que você passava as mãos neles enquanto
dizia que me amava.
— Por favor, Dennis, não se esqueça de que você não pode se
aproximar de mim.
Eu não ia conseguir fechar a porta, mas também não ia deixá-lo
entrar, então parei entre ele e a sala. Meu corpo tremia e eu fazia de
tudo para esconder o medo que ele ainda despertava em mim. Fechei os
olhos pensando em Malu.
Por favor, filha, se esconda. Minha mente implorava.
Dennis estendeu a mão na minha direção. Olhei confusa, até que
entendi o que ele queria.
— Vamos pra nossa casa, meu amor.
Sacudi a cabeça de um lado para o outro.
— Não existe mais a nossa casa. Não existe mais amor. Por favor,
eu te imploro, vai embora daqui.
— Cadê nossa filha? — Ele deu dois passos para dentro. Fiquei na
frente dele. — Chama a Malu e arruma as malas dela.
— Ela não está — menti. — Está com a Odete. Sua avó ama
ficar com a Malu.
Ele riu, orgulhoso.
— Sabia que você não ia me virar as costas. Largar nossa família.
Agora arruma as suas coisas e vem. Vamos voltar pra nossa casa. Depois
pegamos a Malu.
Não me movi.
Ele deu mais dois passos.
Recuei.
— Você nunca me escutou, não é mesmo? Sempre zombando de
mim. O.k.! Eu até ia te deixar juntar os trapinhos que agora anda
usando. — Olhou para o meu vestido com desdém. Um que eu tinha
escolhido a dedo para aquela noite. Minha noite com o Diego. Meu
Deus! Onde ele estava? — Mas já que você quer do jeito mais difícil…
Dennis deu de ombros, como se estivesse dizendo algo banal, e
não fazendo uma ameaça velada. Quando caminhou determinado até
mim, eliminando a distância entre nós, gritei, me escondendo atrás do
sofá.
— Vai embora. Eu vou chamar a polícia.
Cogitei as hipóteses, mas não conseguiria alcançar o celular sem
que ele me pegasse antes. Ele riu. Uma risada tão descontrolada que fez
todo o meu corpo tremer. Depois o sorriso morreu, como se duas
pessoas habitassem nele. Dennis pôs a mão atrás do corpo e, segundos
depois, eu estava diante do meu maior medo.
— O que é isso?
— Contatos que a gente faz na cadeia. Você não tem ideia das
coisas que aprendemos por lá. Agora me escuta com atenção. Você vai
vir comigo já. Nós vamos voltar pra casa. Eu, você e a nossa filha. Tá
me entendendo, Larissa?
Ele se aproximou ainda mais e pude sentir o metal frio tocando
meu rosto. Bastava uma respiração mais forte e Dennis atiraria. Meu
coração estava em pânico, e ficou ainda pior quando vi o rostinho da
Malu na porta do quarto. Quando Dennis seguiu meu olhar, ela se
escondeu.
O medo de ele ir atrás dela me dominou, então tive uma ideia
estúpida, mas que talvez pudesse salvar a vida da minha filha.
— Eu vou com você. — Ele voltou o olhar para mim e o sorriso
que deu me fez querer vomitar. — Eu só preciso pegar algumas coisas e
a gente pode ir.
Por favor, me deixe ir sozinha.
Por favor.
Eu rezava, ou tudo iria por água abaixo.
Dennis afastou o revólver e passou o cano da arma no próprio
rosto, para cima e para baixo. Eu não conseguia acreditar no que estava
acontecendo. Por mais que conhecesse minha situação, sempre sonhara
com o dia em que teria paz. Eu acreditara.
Quando dei as costas para ele, sua voz me chamando me fez
paralisar.
Por favor, me deixa ir sozinha.
— Não vai fugir, hein?
Olhei para ele e fiz de tudo para segurar minhas lágrimas.
— Não vou. Você venceu. Eu sou sua.
— Ahhh, menina bonita, você não sabe quantas vezes eu sonhei
com isso. Com você dizendo que era minha. Só minha e de mais
ninguém.
Fui até o quarto me controlando para não correr durante o
caminho. Quando cheguei, meus olhos procuraram Malu e eu já não
podia segurar o choro. Ela não estava em nenhum lugar e comecei a me
desesperar. Dennis poderia ter um comparsa. Não! Não! Ele estava
sozinho. Foi então que escutei um suspiro choroso. Abri a porta do
guarda-roupa e lá estava ela. Encolhida embaixo dos meus vestidos
enquanto segurava o Nemo. Ela o apertava com muita força, como se
aquele urso de pelúcia pudesse lhe dar a segurança que eu não conseguira.
Sequei as lágrimas depressa. Não tinha muito tempo. Entreguei a ela a
folha com o desenho que havia feito da nossa família.
— Minha princesinha, escuta a mamãe. Você não vai sair daqui.
Entendeu?
Ela balançou a cabeça e começou a chorar sem emitir um único
som. Meu peito se afundou com a hipótese de ela ter escolhido o
silêncio outra vez. — Você só vai sair daqui se escutar a voz do tio
Diego. Tudo bem? Só abra a porta se for ele que estiver aqui. Promete
pra mamãe? — sussurrei, passando as mãos pelos seus cabelos, enquanto
minha alma era rasgada mais uma vez pela dor de ver o sofrimento da
minha filha. — Mamãe vem te buscar, eu prometo. — Beijei seu rosto
e, quando me afastei, sequei as lágrimas que seus olhos não conseguiam
segurar. — Mamãe te ama e você vai ficar bem.
Fechei a porta do guarda-roupa, escondendo minha filha no
mesmo instante em que Dennis entrou no quarto. Meu coração parou
dentro do peito e nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
— Você demorou. Cadê suas coisas?
— Não estava achando a mochila.
Abri a porta do guarda-roupa novamente e meus olhos pousaram
em Malu segundos suficientes para um pedaço de mim morrer naquele
quarto. Peguei algumas roupas, sem consciência nenhuma do que estava
enfiando naquela bolsa. Eu só queria tempo. Talvez, se o enrolasse um
pouco mais, Diego chegasse.
Não seja idiota!
A voz voltou a me perturbar. Pelo jeito ela nunca me abandonara
e agora vinha para dizer que a minha história não teria final feliz. Eu
não era uma princesa e Diego não conseguiria me salvar.
Quando me virei, Dennis pôs novamente a arma nas costas e
caminhou até mim. Senti repulsa quando suas mãos tocaram meu rosto
enquanto ainda segurava aquela arma. Desejei morrer quando sua boca
encostou na minha. Seu beijo me causava asco. Naquele momento,
soube que preferiria morrer a viver ao lado daquele monstro.
— Comprei duas passagens de ônibus pra casa. Depois voltamos
pra pegar nossa filha e você vai ver como tudo vai ser diferente agora. Eu
juro que eu vou te amar pra sempre, menina bonita. Como eu te amei a
vida inteira. Você pode não entender agora, mas tudo que estou fazendo
é para o nosso bem. O bem da nossa família.
Meu Deus, Dennis estava louco!
Assenti a cada palavra sem sentindo que ele dizia e obriguei meus
pés a seguirem-no quando ele puxou minha mão. Antes de sair pela
porta, ainda olhei para o quarto e meus olhos buscaram aquela porta que
escondia o maior tesouro que eu tinha na vida. Malu.
41
Diego
Parei derrapando em frente à casa da Larissa. Desci desesperado
quando vi a porta aberta, com a certeza de que tudo que desejara no
caminho até ali não havia se tornado realidade. Ela não estava a salvo.
Larissa nunca deixaria a porta aberta. Não pensei duas vezes antes de
entrar. A voz do Alexandre ainda ecoava na minha cabeça me pedindo
para não fazer nenhuma besteira. O certo era esperar a polícia. Tudo que
eu aprendera a vida inteira, tudo que explicara para as vítimas dos casos
em que trabalhara foi posto em xeque quando fiquei frente a frente com
o medo. Eu não ia esperar porra nenhuma. Ia entrar e fazer o possível
para salvar minha princesa.
Afastei a porta para entrar. Fui o mais cauteloso possível. Chamei
por ela, mas, naquele momento, só havia silêncio.
— Larissa, Malu. Princesas.
Por favor, Deus!
A cada cômodo por onde eu passava, um nó se formava em
minha garganta. Quando cheguei ao quarto, tive que respirar fundo antes
de abrir a porta, temendo o que poderia encontrar atrás dela. Não iria
suportar.
Não havia nada. Apenas algumas roupas espalhadas pela cama. O
convite para o concerto ainda estava na mesa de cabeceira. Caí de
joelhos no chão e irrompi em lágrimas. Um choro que me rasgou por
dentro e destruiu minha alma. Foi só quando silenciei que escutei um
pranto tão triste quanto o meu. Segui o som que fazia meu coração
disparar e, quando abri as portas do guarda-roupa, foi como se algo
pesado me golpeasse. Malu estava deitada entre as roupas, seu corpinho
curvado enquanto ela se agarrava a uma pelúcia. Eu a peguei nos braços,
chorando junto com ela. O alívio de vê-la se misturava à dor de não
saber onde Larissa estava.
— Vai ficar tudo bem, minha princesinha. Cadê a mamãe?
Ela escondeu o rosto em meu pescoço e me abraçou forte. Sabia o
que isso significava. Ele a levara. Meu Deus. Dennis a levara de nós. Eu
precisava achá-la.
— Malu, você pode me contar o que aconteceu? — Ela afastou o
rosto e me encarou confusa. — Seu papai esteve aqui? — Ela balançou a
cabeça. — Ele levou a mamãe? — Outro aceno, e tudo que eu queria
era que aquilo fosse um pesadelo. — Você ouviu pra onde eles iam?
Ela não respondeu, engolindo as palavras mais uma vez.
— Tudo bem, meu amor, eu vou achá-la. Vou trazer a mamãe de
volta. Mas preciso que você fale com o tio Di... O seu papai veio aqui?
Ele levou a mamãe? — insisti.
— Casa! — Ela falara comigo. Eu era puro sentimento naquele
momento, pois Malu escolheu justamente o dia em que mais precisava
para se abrir comigo. Suas palavras eram esperança. — Papai. Casa.
Ônibus.
Meus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez e abracei Malu,
munido da força que ela me dera. O desgraçado estava levando Larissa
para casa.
— Diego.
Era o Guy.
Saí apressado, segurando a garotinha em meus braços.
— Ele a levou — disse para o meu amigo.
— Ele comprou três passagens hoje à tarde. — Olhei para Malu.
Uma era dela. Larissa a protegera. De alguma forma, minha princesa
conseguira deixar a filha em segurança. Ela sabia que eu viria. — Mandei
uma equipe para a rodoviária. Tenho quase certeza de que ele vai estar
lá.
— Precisamos ir. — Tentei passar por ele, mas Guy segurou meu
ombro.
— Tem alguém que precisa de você.
Como se escutasse meu coração, um carro parou na porta.
Manuela e Dereck desceram e logo outro carro parou atrás, com mais
três seguranças armados. Passei pelo Guy e fui até Manu.
— Alexandre ligou para o Dereck. Viemos ajudar. Onde ela está?
— O desgraçado a levou.
— Meu Deus! — Manu levou as mãos à boca. — Sinto muito,
Di.
— Preciso que cuide da Malu. — Manuela assentiu. —
Princesinha, olha aqui. — Ela relutou. — Tá vendo essa tia aqui? Ela
tem um nome parecido com o seu. Tia Manu. Ela vai levar você pra
brincar com a Vitória enquanto o tio vai buscar sua mamãe.
A garotinha afastou o rosto e me lançou um olhar cheio de
esperança.
— Eu prometo.
Então ela balançou a cabeça e deu os braços para minha amiga.
Beijei as duas e, quando dei as costas, ouvi a voz do Dereck.
— Vou com você, bro.
— Não. — Parei ao lado da viatura do Guy. — Não sei se
Dennis está sozinho nessa. Eu preciso que você cuide delas pra mim. —
Olhei para o carro em que as meninas acabavam de entrar. — Você vai
protegê-las. Ninguém se aproxima da minha família. Alexandre está indo
para a rodoviária e eu preciso de você para deixá-las em segurança.
Dereck assentiu, entendendo perfeitamente o que eu queria dizer.
No mesmo instante, ele se virou e gritou algumas ordens em inglês
para os guarda-costas. Pelo menos eu sabia que Malu estaria em
segurança.
42
PASSADO
Larissa
Ele pediu, implorou para que eu o deixasse ver a Malu. Disse que
estava com saudade da filha e, mesmo contra a orientação que havia recebido,
eu deixei que viesse até nossa casa. Casa essa que ele cedera bondosamente para
que eu e nossa filha morássemos. Ele chegou já bêbado, dizendo que eu tinha
outro, que estava sendo traído. Disse que não aceitaria o fim, mesmo depois
de quase dois anos da separação. Tentou me agarrar e, quando neguei, a mão
que tanto conhecia caiu em meu rosto.
Uma.
Duas.
Três vezes…
— Vagabunda… Vadia… Vai dar pra mim sim — xingava,
exigindo meu corpo.
Até que resolveu que bater de mão aberta não adiantava mais. O
primeiro soco veio enquanto Malu ainda dormia. Fiquei zonza, caí no sofá,
muda diante da dor, não querendo que minha filha visse o horror que
experimentava mais uma vez. Eu a protegeria, mesmo que isso significasse ter
de apanhar calada.
Depois que caí quase desmaiada, ele teve o que quis. Não precisou de
muito, já que sua força, misturada à coragem fornecida pelo álcool, o tornava
incontrolável. Apenas levantou meu vestido, aprisionou meu corpo já inerte e
me tomou. Olhei o tempo inteiro para a porta do quarto, desejando com ardor
que os anjos velassem o sono de Malu para que ela não acordasse. A cada
investida, eu implorava que ele parasse, mas minhas palavras pareciam excitá-
lo ainda mais, como uma espécie de jogo doentio. Cometi o erro de cuspir em
seu rosto.
— Tenho nojo de você — disse, com asco.
O soco veio mais pesado, mais forte, mais potente.
Desmaiei.
Quando recobrei a consciência senti nojo, quis morrer.
Ele me machucara, não só fisicamente, mas de uma maneira da qual
eu talvez nunca mais me curasse. Quando se satisfez, olhei em seus olhos
opacos e procurei pelo homem que conhecia desde a adolescência. Busquei pelo
homem que amara. Para quem entregara não só meu corpo, mas também meu
coração.
Ele não estava lá.
Talvez nunca tivesse estado.
Talvez eu nunca tivesse percebido.
Achei que me soltaria, mas me enganei, pois meu celular tocou no exato
momento em que ele levantava o jeans. Seu rosto se contorceu de raiva e ele
alcançou o aparelho em cima da mesa. Eu não tinha forças sequer para
levantar do sofá, então permaneci ali, encolhida como um animal acuado,
ferido. A presa fácil de um homem descontrolado e sem limites.
Quando viu a mensagem que acabara de chegar, voltou a me fitar com
ainda mais fúria. Achei que o fim estava próximo, pois ele me segurou,
levantando meu corpo do sofá, e passou a me sacudir com violência. Seus
gritos ecoavam por toda a casa, e com certeza podiam ser ouvidos pelos
vizinhos. Desejei que sim, implorei por ajuda e, dessa vez, gritei por socorro.
Suas mãos acertavam tapas onde conseguiam alcançar, e eu podia ver o brilho
da morte em seus olhos.
A minha morte.
Comecei a me sentir mal.
Tudo foi ficando escuro, o ar desaparecendo, me deixando zonza,
perdida. Ele repetia, incansável, que eu era dele e que, se não fosse assim, não
seria de mais ninguém.
— Você acabou com a minha vida. Por quê, meu amor?
Tive vontade de rir. Meu amor.
Tinha sido sempre assim.
Tapas, beijos, tapas, carinhos, abuso, amor, dor.
Havia muito tempo não sabia mais o que esperar dele.
Por um momento, cheguei a desejar esse fim. Por um momento, achei
que seria melhor.
Nós dois mortos.
Enfim não sentiria mais medo.
Mas então Malu surgiu do quarto. Lágrimas escorreram quando a vi
tão assustada, carregando seu ursinho nas mãos. Queria mandar que corresse,
mas já estava sem ar.
— Malu… — A única coisa que consegui murmurar foi seu nome.
Por favor, Deus.
Mas Deus havia se esquecido de mim.
Não pude impedir quando veio correndo em nossa direção e pulou no
braço do pai, e, pela primeira vez em meses, gritou:
— Solta minha mamãe! Solta! Solta a mamãe!
Uma menina, uma princesa, três anos de vida e muito sofrimento em
seu coração. Ele a empurrou com tanta força que Malu caiu de lado em uma
mesa de madeira. Ela chorou e o monstro me soltou. Rastejei até ela, que se
contorcia no chão. Alcancei seu corpo frágil e a abracei. Ouvi barulhos, a
porta abrindo, alguém gritando, e tudo ficou escuro de novo, enquanto ouvia
minha filha chorar de dor.
43
Diego
Um dos piores sentimentos é a incerteza. Quando o coração
anseia por alguma coisa, mas a cabeça insiste em dizer o contrário. Algo
dentro de mim dizia que ela estava na rodoviária. Queria muito
acreditar nisso, porque seria muito mais fácil tirá-la das garras daquele
desgraçado. Mas a razão me apontava que era muito óbvio. Se Dennis
estivesse planejando isso havia muito tempo, ele não iria levá-la para o
primeiro lugar em que a polícia procuraria.
Mesmo assim, eu precisava acreditar.
Guy fez todo o caminho em silêncio. Agradeci, pois com certeza
ele não ia mentir, dizendo que tudo terminaria bem, quando nós dois
sabíamos que a situação era delicada. Assim que estacionou a viatura,
desci do carro, mas ele segurou meu braço e me impediu de caminhar.
— Não vai fazer besteira.
— Ela precisa de mim — rosnei.
— Ela precisa de um cara vivo, e não de um herói morto. Esfria a
cabeça e deixa que eu cuido dessa merda.
Não respondi. Não sabia mentir. E meu amigo também sabia
que o que estava me pedindo era impossível.
Guy deu diversas ordens para sua equipe e os policiais se
espalharam pela rodoviária. Depois me obrigou a segui-lo, porque nem a
merda de uma arma eu tinha. Nunca quisera, mesmo que me fosse
permitido.
As pessoas olhavam assustadas, abrindo caminho para os policiais
enquanto meus olhos vasculhavam cada canto daquele local em busca
dela. Sua voz me acompanhava o tempo inteiro, como se fosse um
pedido para não a abandonar. O “eu te amo” que tanto custara a me
dizer ecoava pela minha mente e me guiava mesmo quando minhas
pernas vacilavam.
Parei, escutando Guy atender o celular.
— Aham… Sei… O.k.… Plataforma 5L.
Não ouvi mais nada e saí correndo em disparada, ignorando os
avisos do delegado. Não escutei os gritos. Não processei seus pedidos.
Apenas corri como se minha vida dependesse do quão rápido eu pudesse
chegar ao meu destino. E talvez dependesse. Porque Larissa se tornara tão
parte de mim que não havia como nos separar. Quando vi a placa, parei
já sem ar. Olhei para trás e vi Guy e parte da sua equipe um pouco
afastados. Todos eles estavam paramentados e poderiam ser reconhecidos
de longe. Seria um perigo se Dennis descobrisse que a polícia já estava
atrás dele. Guy balançou a cabeça em negativa, pedindo que eu não
fizesse o que estava prestes a fazer.
Abordei o agente da empresa de ônibus e mostrei minha
identificação.
— Sou promotor de justiça. Não entre em pânico, mas está
acontecendo um sequestro neste ônibus. Não deixe mais ninguém entrar
e mantenha a calma.
— E os passageiros?
— Vamos tirar todos de lá — afirmei.
Ninguém morreria, não na minha frente, e eu só sairia de dentro
daquele ônibus depois que todos estivessem seguros, principalmente
Larissa.
Eu entrei no ônibus antes que Guy pudesse se aproximar. Subi os
degraus respirando fundo e tentando imaginar a situação que encontraria
e todas as opções que eu tinha para resolvê-la. Olhei todas as poltronas,
havia várias famílias, crianças, pessoas que nem sequer imaginavam que
tinha um psicopata armado tão próximo delas. Um homem se levantou
na minha frente e eu me assustei, dando um passo brusco para trás.
— Desculpa, cara, só queria pôr a mochila no bagageiro.
— Tudo bem — respondi.
Imediatamente, quando olhei para a frente, meus olhos
encontraram os dela. Larissa ouviu minha voz e me encarou com uma
expressão de medo. Ela estava ao lado da janela e Dennis tinha um braço
sobre seu ombro, como se fosse um namorado amoroso e não um
desgraçado que só trouxera sofrimento para minha princesa. Ela sacudiu
a cabeça de leve, quase imperceptível, em negativa, e os olhos se
encheram de lágrimas. Aproveitei que Dennis olhava preocupado pela
janela e disse em silêncio que a amava.
Encontrei uma poltrona vazia dois bancos à frente e então sentei.
Meu celular tocou e o peguei apenas para ler a mensagem de um
Alexandre furioso. Olhei para fora e ele estava ao lado do Guy. Virei e
Larissa olhava para a mesma direção. Podia imaginar o que estava
pensando naquele momento. Assim como protegera Malu, tinha certeza
de que ela não concordava com o que eu estava fazendo.
De repente Dennis se levantou, furioso, batendo as mãos na
janela.
— Foi você, não foi, vagabunda? — gritou, fazendo o sangue
ferver em minhas veias. — Você chamou a polícia! Todo mundo pra
fora — esbravejou, segurando Larissa pelos cabelos e fazendo com que
levantasse, o rosto contorcendo-se de dor. Algumas pessoas demoraram a
entender o que estava acontecendo.
— Pra fora agora ou eu meto uma bala nela!
Houve uma histeria generalizada. Tentei me manter calmo, ainda
sentado enquanto as pessoas se empurravam para sair do ônibus. Não
podia correr o risco de me revelar e pôr mais gente em risco. Quando
todas as pessoas saíram, levantei.
— Você é surdo, cara? Eu mandei sair.
— Solta ela.
— O que você falou, merdinha?
— Diego, por favor — implorou Larissa.
— Vai ficar tudo bem — tentei acalmá-la.
Dennis nos olhava, tentando entender a troca que estava
acontecendo. Eu não conseguia desviar os olhos dela. Larissa estava
apavorada. As lágrimas rolavam por sua face e ela mal conseguia se segurar
quando Dennis balançava bruscamente sua cabeça. Meu Deus! Eu nunca
me sentira tão perdido em toda a minha vida. Tudo que eu queria era ir
até aquele infeliz e arrancar minha mulher dos braços dele.
— O ônibus está cercado, Dennis. Solta ela e garanto sua
segurança. Caso contrário, eles vão invadir com tudo.
— Mas o que… — Ele puxava Larissa ainda mais enquanto
levantava a arma, totalmente desorientado. Então, apontou para mim.
Senti um frio na barriga, mas era de alívio. Era melhor assim. Eu estava
na mira dele, não ela. — Quem é você?
Levantei as mãos sem movimentos bruscos.
— Sou promotor. Estou desarmado. Agora abaixa a arma e vamos
conversar.
Ele não me ouviu e fez exatamente o contrário, voltando a pistola
para a cabeça da Larissa.
— Desce ou eu mato ela.
— Vamos conversar. Fica calmo. Aponta a arma pra mim. — Fiz
de tudo para que minha voz não saísse desesperada, mas foi inútil, pois
queria trocar de lugar com ela. — Deixa a Larissa ir e eu fico no lugar
dela até as negociações terminarem. Por favor, aponta a arma pra mim.
Ele foi até a janela de novo. A formação policial do lado de fora
era grande. Alexandre estava ao telefone e Guy apontava uma arma para a
janela, mirando em Dennis e esperando o momento em que Larissa
estivesse fora do alcance para poder atirar.
Quando ele endireitou o corpo, sua mão largou o cabelo dela e
segurou seu queixo com tanta força que me fez dar dois passos à frente.
Mas parei assim que ele pôs a arma rente à cabeça de Larissa.
— Sua vagabunda. Você ligou pra polícia. Você fez isso. — Eu
queria matá-lo. — Diz, Larissa.
— Por favor, Dennis. Você está me machucando.
A dor dela era a minha. Como se nossa ligação fosse muito além
do amor. Tinha que fazer alguma coisa. Precisava salvá-la.
— Não abaixa as mãos — gritou ele. — Vem aqui, meu amor.
Tinha nojo de escutar sua voz chamando Larissa daquela forma.
Ele a arrastou para o último banco e escutei os estampidos das balas
perfurando e quebrando as janelas. Larissa gritou e ambos se abaixaram,
mas antes que eu pudesse me aproximar, ele levantou, arrastando-a mais
uma vez para a janela e colocando a arma para fora. Dennis pressionou
Larissa entre ele e a abertura causada pelas balas, fazendo dela um escudo.
O que ele fez não foi apenas quebrar uma janela. Ele mostrou que toda a
maldade que prometia era real.
— Quero minha filha aqui — exigiu. As palavras mal saíram de
sua boca e o grito de Larissa ecoou pelo ônibus, partindo mais um
pedaço do meu coração. — Agora.
— Seu desgraçado, você não vai ver a Malu. Não vou deixar tocar
nela de novo. Você é um monstro. Um monstro. — Larissa gritava e se
debatia enquanto Dennis a apertava cada vez mais. — Você a
machucou.
— Foi um acidente — gritou ele.
— Mentira. Por favor, Diego, não traz a Malu. Não traz a minha
filha, por favor.
— Para de falar com ele!
Dennis acertou um tapa em seu rosto.
— Não toca nela, seu desgraçado, ou eu mato você — gritei com
toda a raiva que nunca achara que poderia sentir. — Toca nela de novo
e eu vou arrancar essa porra da sua mão.
Ele riu. E eu nunca ouvira um riso tão doentio quanto aquele.
— Pensando bem, não quero mais que você desça. Agora pega o
seu telefone, liga pros canas lá fora e manda trazer minha filha aqui. Eu
só negocio se vir a Malu.
Fiz o que ele mandou, mesmo contra os protestos da Larissa.
Claro que não ia trazer Malu para aquele inferno, mas precisava avisar
Guy sobre as condições de Dennis. Era um começo.
— Guy…
— Põe no viva-voz.
— Guy, ele exige que a filha esteja aqui pra uma negociação.
— Não podemos.
— Ela é minha filha — gritou Dennis.
— Dennis, aqui é Guy Vasconcelos, sou delegado da polícia civil
e vou conduzir a negociação. Sua filha está muito abalada com a
ausência da mãe e não vamos conseguir trazê-la aqui.
Eu mal podia respirar, uma mão para o alto e a outra segurando o
maldito telefone.
— Solta a Larissa e vamos conversar — insistiu Guy.
— Quero falar com a Malu. Põe ela no telefone — exigiu Dennis.
Assim que Larissa me olhou, pude ler seus pensamentos. Malu não ia
falar. Ela jamais conseguiria pronunciar uma única palavra sob a
influência do medo que o pai lhe causava. Ela mal conseguiu falar
comigo. — Vocês têm dez minutos pra pôr minha filha no telefone.
Desliga essa merda.
Deslizei o dedo pela tela do celular e finalizei a chamada. Dennis
ainda estava no controle e eu não podia enfrentá-lo. Não ainda.
Larissa começou a chorar em desespero, e eu daria tudo para
segurar seu rosto e beijar cada uma de suas lágrimas, como havia feito no
dia em que fizéramos amor.
Não sabia o que ia acontecer a seguir, e o medo só cresceu
quando Dennis jogou uma mochila no banco e ordenou que Larissa
abrisse. De onde estava, podia ver o que ela tirava lá de dentro e sabia o
que aquilo significava.
Álcool e fogo.
44
Alexandre
Ninguém era mais estúpido que meu irmão. Diego com certeza
estava no topo das pessoas que não pensavam duas vezes antes de fazer
merda. Quando eu achei que se jogar na frente de um carro tinha sido
seu ato mais heroico, o moleque se meteu dentro de um ônibus com um
psicopata armado.
Era para foder com a minha cabeça.
Olhar o meu irmão através daquela janela, sob a mira do maluco
do Dennis, era uma das piores coisas que eu já vivera. Era como se
experimentasse um déjà-vu. A mesma história que vivera com Ana havia
alguns anos, com a diferença de que agora mais pessoas estavam
envolvidas. Eu tinha que tirar Diego e Larissa de dentro daquele ônibus
o mais rápido possível.
Guy explicou os riscos de trazer a menina para o pai e
imediatamente dei minha posição sobre o assunto. Ela não viria. Tinha
certeza de que isso era o que Diego gostaria que eu fizesse, e a mãe da
garota também. Não ia pôr mais um inocente em perigo.
Pensa, Alexandre, pensa.
Uma ideia surgiu e comecei a achar que idiotice pegava, porque
nem Diego faria uma coisa como aquela.
Liguei para Clara e ela atendeu no mesmo instante.
— Como eles estão? Estou vendo na internet, Alê. Alguém está
filmando e transmitindo tudo.
— Guy, tem alguém filmando essa merda — avisei, antes de dizer
para Clara o real motivo da minha ligação. Não era para dar notícias, e
sim encontrar a solução. — Onde está a garotinha?
— Com a Vitória. Manu disse que ela saiu do estado de choque,
mas ainda não disse uma única palavra.
Foi o que imaginei.
— Dennis exige falar com ela.
— Impossível.
— Eu sei.
— E agora?
Levei alguns segundos para avaliar se aquela era a decisão mais
acertada. Olhei para o ônibus, Diego me encarava de volta, na esperança
de que eu pudesse fazer alguma coisa. E eu iria fazer. Meu irmão
precisava de mim.
Me afastei um pouco para que ninguém pudesse me ouvir e
respirei fundo, criando coragem.
— Agora você vai fazer tudo que eu disser. Eu tenho um plano.
— Eu faço — concordou Clara, sem qualquer hesitação.
Não podia esperar menos da minha menina. Ela amava o maldito
fedelho tanto quanto eu.
Olhei para o ônibus mais uma vez. O perigo iminente rondava
uma das pessoas que eu mais amava no mundo. Se pudesse, trocaria de
lugar com ele. Daria minha vida pelo Diego, e sabia que podia esperar o
mesmo do meu irmão. Eu não ia deixá-lo morrer por amor, justo ele, a
pessoa que mais acreditava em finais felizes. Justo ele, que era puro
coração. Esse sentimento não ia matá-lo, nem que para isso eu tivesse
que pôr minha própria família no olho do furacão.
45
Larissa
Não conseguia reagir. Mal escutava o que ele dizia. A dor me
entorpecera no momento em que Dennis exigira ver Malu. Meu corpo já
não correspondia ao pânico que dominava meu coração. Era como se eu
estivesse sob efeito de um sedativo. Por dentro, eu me debatia e gritava.
Por fora, estava imóvel, os olhos grudados na janela, esperando o
momento em que tudo aquilo acabaria e eu finalmente encontraria paz.
Se eu pudesse ao menos olhar nos olhos dele.
Se ao menos tivesse a chance de ver os lindos olhos do Diego
refletindo o amor que sentia por mim.
Uma lágrima desceu pelo meu rosto. Toda a angústia que eu
sentia se resumiu em uma simples lágrima.
Não era difícil descobrir o que meu ex-marido estava planejando.
Ele queria tornar real o meu inferno. Na sua mão havia um isqueiro. Ele
ficava o tempo todo acendendo e apagando, uma espécie de jogo
doentio. Diego não se movia, talvez sabendo que um passo em falso
faria Dennis cumprir sua promessa. Talvez isso não fosse de todo ruim.
Eu ainda poderia salvar minha filha e o homem que eu aprendera a
amar. Pelo menos eu morreria por um propósito. Nem todas as pessoas
poderiam dizer o mesmo.
Fechei os olhos por um instante, a esperança dando lugar ao
cansaço. Dennis murmurava palavras incoerentes e eu fazia de tudo para
que meu subconsciente bloqueasse sua voz, porque apenas ouvi-lo dizer
meu nome me causava nojo. Não fazia a menor ideia de que horas eram
e, mesmo que tivessem se passado apenas minutos, era uma vida inteira
para mim. Afinal, ela poderia terminar a qualquer momento.
Levei um susto quando escutei o celular do Diego tocar. Tentei
virar, mas Dennis apertou meu cabelo, impedindo que eu me movesse.
Podia sentir o cano da arma tocar meu couro cabeludo. Ele usava a
mesma mão para me segurar e me punir.
— No viva-voz — gritou ele, mais uma vez, depois que Diego
sussurrou algumas coisas no telefone.
— Malu quer falar com você.
Meu coração parou. Não havia a menor chance de aquilo dar
certo. Malu mal reconhecia o pai, ela não iria falar com Dennis.
— Não! Não! Por favor. — Ele iria machucá-la ainda mais.
— Malu, você pode falar com seu pai agora.
Comecei a gritar, mas Dennis tapou minha boca. Diego levou o
telefone mais perto e a voz ressoou por todo o ônibus. Dennis sorriu e
eu senti como se o ar tivesse sido roubado dos meus pulmões.
— Oi, papai. Você está com a mamãe?
Dennis começou a chorar e eu ainda não conseguia entender o
que estava acontecendo.
— Tô sim, minha filha. Vamos buscar você. Tudo bem? Papai
vai buscar você.
Uma longa pausa.
Eu ia sufocar.
— Papai, deixa a mamãe ir embora, por favor? Eu amo minha
mamãe, deixa ela vir me ver, papai.
Não havia hesitação ou confusão de palavras. As frases eram claras,
e os pedidos, dolorosos de ouvir.
Não era a Malu.
Olhei para Diego e ele parecia tão surpreso quanto eu.
Senti a mão de Dennis ceder, aos poucos, conforme ele ia
falando. Senti um alívio enorme, como se minha cabeça voltasse ao
normal depois de pesar cem quilos.
— Filhinha… — Dennis chorava copiosamente. Eu não esperava
uma reação tão emocional quanto aquela. — Papai vai levar a mamãe
pra você.
— Por favor, papai. Eu amo a mamãe e vou te amar também se
você soltar ela.
Naquele momento, a ligação caiu.
— Cadê ela? — gritou Dennis, transtornado, apontando a arma
para o Diego. — Quero minha filha.
— Você pode voltar a vê-la se fizer o certo. Solta a arma e deixa a
Larissa ir. Prometo ficar aqui com você.
— Vocês vão me matar.
— Não — disse Diego, com firmeza. — Nunca faria justiça com
as próprias mãos. Vou assegurar que você volte para a prisão em
segurança e, quando o tempo chegar, você poderá ver sua filha de novo.
Podia ver nos olhos do Diego quanto aquelas palavras estavam
custando a ele. Dizer que Dennis voltaria a ver a Malu pôs um brilho
diferente em seus olhos. Um que eu nunca tinha visto. Ódio!
Dennis passou o braço pela frente do meu corpo, me abraçando, a
arma pendendo de lado. Ele cheirou meus cabelos e enterrou o rosto na
curva do meu pescoço.
— Eu não ia te machucar de verdade, meu amor. Só queria que
você percebesse que ainda me ama. A gente podia tentar uma última vez.
Eu prometo que aquelas coisas nunca mais vão acontecer. Eu aprendi,
Larissa.
A ironia do que ele dizia quase me fez rir. Suas promessas sempre
haviam sido vazias, mas fazê-las enquanto ameaçava tacar fogo em mim
era insano.
— Me dê a arma, Dennis — pediu Diego, com calma. —
Depois solta a Larissa.
Eu estava muda, a dificuldade de respirar me impedindo inclusive
de chorar. Meu peito se apertou assim que Dennis se afastou e olhou
para Diego. Naquele momento, ou ele me deixaria ir, ou me mataria.
Meu coração parou.
Diego tinha uma mão aberta em nossa direção. A mesma mão
que um dia ele estendera para mim. Seus olhos estavam em Dennis e eu
vi seu rosto suavizar quando a arma bateu no chão, quebrando o silêncio
que nos engolia. Não acreditei quando Dennis me soltou, e levei alguns
segundos até que minhas pernas se movessem. Corri até Diego. Tudo ao
meu redor sumiu e a única coisa que eu via era o homem que eu amava
na minha frente, com a mão ainda estendida. Me joguei em seus braços
e só então desabei, e comecei a chorar. Diego me abraçou e eu podia
ouvir as batidas frenéticas do seu coração e sentir sua respiração
acelerada.
— Você tá comigo.
Foi a única coisa que ele sussurrou.
— Larissa — disse Dennis.
Mesmo com Diego me puxando, virei. Seus olhos estavam
vidrados nos meus dedos, que agora se entrelaçavam aos do Diego. Vi
quando seu rosto se iluminou e ele por fim entendeu que o homem que
havia ficado o tempo todo ao meu lado era o que eu tinha escolhido
para amar o resto da minha vida.
— Princesa, vamos… — chamou Diego.
— Eu sempre te amei — declarou Dennis.
— Nunca foi amor, Dennis.
Ele nunca havia me amado. Hoje eu conhecia o amor, e esperava
que Dennis um dia conhecesse também. Mas, quando ele levantou o
isqueiro, eu tive plena certeza de que ele não achava o mesmo. Sua mão
caiu e imediatamente o fogo subiu.
— Nãããããão! — gritei desesperada.
O fogo crescia cada vez mais, o calor alcançando meu corpo. O
pai da minha filha estava queimando, e desabei, porque, na verdade,
sempre achara que ele poderia mudar. Acreditara até o final que ele
poderia ser diferente.
Fui arrastada para fora e, assim que saí, Diego me pegou nos
braços. Enquanto ainda olhava para as chamas destruindo tudo, a única
coisa em que pensava era na ironia no destino.
— Pede pra esperar. Preciso pegar esse ônibus.
A cena voltava à minha cabeça enquanto pessoas gritavam ao
redor. Diego dizia alguma coisa, mas não consegui ouvir. Na minha
mente só havia a imagem do menino de cabelos cacheados que um dia
eu amara.
— Você é a Larissa, né?
Não consegui controlar a dor que rasgava meu peito.
Por quê, Dennis?
Por quê?
— Querem dar o fora do corredor?
— Você ouviu, garota bonita, vamos lá.
Minha história com o Dennis terminava no mesmo cenário onde
começara.
46
Larissa
Acordei um pouco desorientada, mas logo senti uma mão delicada
tocar meu braço. Meu coração imediatamente se acalmou quando vi o
rosto da Janaína.
— Jurei que nunca mais pisaria em um hospital — disse ela, com
o rosto banhado em lágrimas. — E olha eu aqui.
Eu tinha um grande nó na garganta e, depois de segundos em
silêncio, rompi em um choro desesperado. Naquele momento, chorei
toda a minha dor. Tudo que um dia me fizera mal e toda a incerteza
que eu ainda tinha sobre o futuro.
Chorei por mim.
Chorei por minha filha.
Chorei por Dennis.
Chorei.
— Obrigada — disse, quando finalmente consegui achar minha
voz.
Um dia havia passado e eu ainda podia sentir o frio da arma no
meu rosto. A voz do Dennis ainda ecoava em minha cabeça, e o calor
do fogo parecia tão real que eu temia me queimar. Havia entrado em
estado de choque assim que saíra daquele ônibus, e a última coisa de que
me lembrava eram as labaredas consumindo tudo. Pensar em Dennis era
reviver o inferno que vivera em suas mãos, e ainda não sabia o que sentir
em relação a sua morte. Eu vivia um ciclo de dor. Algumas feridas
cicatrizavam enquanto novas eram abertas.
— Precisa que eu chame uma enfermeira? — perguntou ela.
— Preciso da minha filha.
— Foi o que pensei. — Jana levantou da cama, sorrindo. — Vou
chamar o bonitão pra ele te explicar tudo. Ele não arredou o pé daqui
nem pra comer, mas você sabe como posso ser persuasiva. — Piscou,
maliciosa. — Ele foi tomar um café.
Ouvi-la falar sobre Diego fez meu coração se apertar. Ele estava lá.
O tempo todo. Diego não saíra do meu lado um minuto sequer, e
foram seus braços que me ampararam quando desmoronei.
— Ele está bem? — gaguejei.
— Mais perfeito impossível.
Quando ela saiu e fiquei sozinha no quarto, refleti pela primeira
vez sobre tudo que tinha acontecido. Eu quase morrera nas mãos do
Dennis. Estivera tão perto do fim que sequer sabia como faria para me
reerguer. Mas não tive muito tempo para pensar. Minutos depois de
Janaína sair, a porta se abriu e eu o vi. Ele sorriu seu sorriso mais lindo e
me olhou como se eu realmente fosse uma…
— Princesa… — A palavra saiu de sua boca naturalmente, como
se o apelido tivesse substituído meu nome. — Você está bem?
Eu estava?
Balancei a cabeça fazendo que não e chorei quando ele me
abraçou. Pela primeira vez tive coragem de dizer o que estava sentindo
de verdade. Não. Eu não estava bem.
— Malu?
— Ela tá com a Clara. Achei melhor que ela não viesse pro
hospital.
Balancei a cabeça em concordância.
Respirei fundo, porque a segunda pergunta me fazia tremer.
— O Dennis… Ele…? Ele…?
— Não. Ele tá vivo. A equipe da polícia conseguiu tirá-lo de lá.
Está internado em outro hospital e vai voltar pra cadeia assim que se
recuperar.
Suspirei, sem saber se me sentia aliviada ou amedrontada. Parte de
mim nunca desejara a morte de Dennis, mas a outra temia por um
futuro em que ele ainda existisse.
— Foi tudo muito rápido. Não consegui impedi-lo.
— Diego — chamei —, a culpa não é sua.
— E nem sua. — A sua mão acariciou meu rosto e me permiti
descansar sob seu toque tão reconfortante. Minha mente era inundada
por cenas do que havia acontecido, e meu coração quase parou quando
por fim entendi quem havia me salvado.
— Foi a Vitória, não foi?
Ele se afastou e me encarou com os olhos brilhantes de orgulho.
— Sim, foi a Vitória.
Se anjos realmente existissem, aquela garotinha com certeza era
um. Talvez ela ainda não tivesse consciência do que fizera por mim e
minha filha, mas um dia Vitória saberia que salvara a minha vida.
Diego ainda não havia tirado a mão do meu rosto e a segurei,
pousando-a bem acima do coração. Ele sorriu mais uma vez e senti a
ferida se fechando. Dessa vez eu não estava sozinha.
— Podemos ir pra casa? — pedi, e ele balançou a cabeça,
sorrindo.
— Eu vou com você pra onde você quiser me levar, minha
princesa.
Eu o queria para sempre comigo.
Larissa
Novamente estávamos no hospital. As pessoas passavam por mim,
andando de um lado para o outro, e me perguntei se entendiam a
grandiosidade do que faziam. Será que, ao dormir, elas pensavam nas
vidas que salvavam, nas que traziam ao mundo, e naquelas que não
conseguiam impedir de chegar ao fim?
Não pensava mais em Dennis. Não queria saber o que
aconteceria. Talvez ele se recuperasse, talvez ele ainda viesse atrás de
mim. O fato era que esquecê-lo dera paz para a minha vida. Sua mãe
me procurara alguns dias depois do incidente com o ônibus e pedira
perdão. Dissera que Dennis havia se candidatado para participar de um
projeto que ajudava na ressocialização de agressores condenados por
violência doméstica. Pensei no que havia dito para Diego: que nada
adiantaria se Dennis não mudasse. E desejei isso. Que ele encontrasse
em seu coração o verdadeiro amor. Perdoar era uma palavra forte demais,
mas talvez um dia eu o fizesse. Por enquanto, queria apenas esquecer
Dennis e toda a dor que um dia ele me causara.
Manuela parou na nossa frente e imediatamente meus olhos
buscaram os do Diego. Ele apertou minha mão e, depois de me olhar
com carinho, encarou a amiga.
— Clara acabou de ir para o centro cirúrgico. Alexandre está com
ela e nossa menina está calma e bem.
— Graças a Deus! — O homem ao meu lado suspirou aliviado, e
a emoção se instalou naquela sala de espera.
Além das pessoas que eu já conhecia, estavam também os pais da
Clara e Priscilla, a irmã mais nova do Diego, acompanhada do marido
Lorenzo.
Luís Felipe estava nascendo.
Manuela olhou para todos até que seus olhos pousaram em
Dereck. Ele sorriu e ela fez o mesmo antes de entrar mais uma vez para
acompanhar o parto da melhor amiga.
— Ai, minha nossa senhora. — Foi a vez da Laís expressar seu
nervosismo. — Dereck, vamos lá, canta uma música pra gente.
— What? — perguntou ele, totalmente surpreso.
Laís revirou os olhos.
— Para de falar em inglês comigo, sr. Rockstar. E canta uma
música logo, porque eu não tô me aguentando mais de tanta ansiedade.
— Pantera… — O marido tentou intervir, mas foi em vão.
— Agora não, Bruno.
— Acho uma excelente ideia — completou Priscilla. Lorenzo até
tentou dizer algo, mas desistiu, dando de ombros assim que viu seu
olhar.
Diego fez um carinho em minha mão enquanto eu observava
Dereck pegar o violão e dedilhar algumas notas, dando-se por vencido.
Não queria, mas era impossível não sorrir diante de todo o amor que
envolvia aquela família. Uma família da qual eu também fazia parte.
Não sei quantas músicas Dereck cantou, mas sei que só parou
quando Alexandre entrou na sala ostentando um sorriso que seria capaz
de iluminar todo o hospital.
— Meu filho nasceu — disse, enquanto seus olhos se inundavam
de lágrimas. — Minha menina conseguiu. Luís Felipe nasceu.
Diego soltou minha mão, correu até o irmão e o puxou para um
abraço. Ninguém se moveu. Ninguém ousaria interromper os irmãos
Ferraz. Eles eram o complemento um do outro.
* Eu poderia pôr fogo nesta canção, fazê-la virar fumaça/ Eu poderia jogá-la no rio e vê-la
afundar devagar/ Amarrar as páginas a um avião e enviá-las para a Lua/ Poderia tocá-la para o
mundo, mas não significa nada/ A menos que eu cante esta canção para você. “ Song on Fire”,
Nickelback.
48
UM ANO DEPOIS
Larissa
Larissa
A porta do quarto se abriu e Clara entrou segurando Luís Felipe
em seus braços. Fui até ela e dei um beijo no rosto, fazendo o mesmo
na testa do meu sobrinho. Eu também havia me transformado na tia
Lari. Afastei-me e, sob o olhar atento da minha amiga, segurei a saia do
vestido e rodopiei. Quando me casei com Dennis, não tive festa, não
usei um vestido bonito e nem fomos abençoados em uma igreja. E agora
eu estava ali, me sentindo noiva pela primeira vez.
— Você está linda, Lari. Meu Deus! Diego vai mergulhar dentro
dos melhores sonhos dele. — Respirei fundo, tentando acalmar todo o
nervosismo que sentia. — O.k.! Tenho um presente para você.
Sorri.
Abri a caixa que ela segurava enquanto Luís Felipe batia palminhas
animadas.
— Eu ganhei do Felipe no dia do meu casamento — disse ela,
assim que puxei a correntinha. Era tão delicada e tinha um pingente azul
de Nossa Senhora Aparecida. — Eu mandei pôr um coração. — Meus
olhos se encheram de lágrimas por seu gesto. — E pelo amor de Deus,
não vai chorar e borrar essa maquiagem maravilhosa.
Como se fosse fácil falar. A própria Clara secava uma lágrima
fujona.
— Obrigada, Clara. Você é uma mulher incrível.
Ela me deu um abraço rápido e depois se afastou.
— Somos.
Assenti.
— As meninas estão prontas?
— Deixei as duas sentadas para não amassarem o vestido. Estão só
esperando você. Então vamos lá, futura sra. Ferraz.
Ela estava certa. Eu ia ser do Diego de uma maneira em que
nunca deixaria de ser de mim mesma. Duas peças que se completavam.
Clara me deixou sozinha e me olhei no espelho uma última vez,
acreditando que a Larissa que eu via era a única que poderia existir. Não
havia mais espaço para tristeza. Amar não podia inspirar dor. E hoje eu
sabia disso.
Quando saí do quarto, Vitória e Malu me esperavam. Usavam um
vestido muito parecido com o meu. As tiaras de flores no cabelo
também eram iguais. Ambas sorriam e meu coração se aqueceu.
— Mamãe tá linda.
— Verdade, tia Lari. Você tá linda.
Malu veio até mim e segurou minha mão, olhando para cima até
encontrar meu rosto.
— Parecendo uma princesa.
— É, meu amor? — Eu a peguei nos braços, sem me importar se
meu vestido iria amassar. — Nunca se esqueça, minha garotinha. Você é
o amor da minha vida. Te amo mais que tudo nesse mundo.
Malu me abraçou e foi inevitável não chorar.
— Também te amo, mamãe. Muito, muito, muito.
Diego
Diego
Eu segurava a mão da Clara.
Sempre iria segurá-la.
A brisa fria que nos envolvia tornava o momento ainda mais
melancólico. O vento soprava através das árvores em um canto triste,
como se o universo também sentisse a nossa dor.
Senti Clara vacilar quando o padre finalizou suas palavras. Ela
apertou minha mão o mais forte que pôde. Não consegui segurar o
soluço que se formou em meu peito e escapou pela garganta. Eu tinha
uma porra de uma dor esmagando meu coração e a certeza de que ela
nunca passaria, porque não havia nenhuma forma de essa ferida
cicatrizar. Não quando eu acabava de perder o meu maior exemplo de
vida.
Meu irmão.
Ele se fora.
Alexandre nos deixou em um mundo que não faria mais o mesmo
sentido sem ele.
Olhei para a mulher ao meu lado e no mesmo instante senti toda
a força que seus olhos emanavam. O rosto coberto por rugas e expressões
que o tempo lhe dera ainda transmitia a mesma beleza de quando tinha
vinte e três anos. Seus olhos traziam a mesma doçura do primeiro dia
em que a vira.
Ajudei Clara a levantar da cadeira e ela caminhou até onde estava
o caixão. A mão trêmula segurava uma rosa vermelha e, com lágrimas nos
olhos, ela sussurrou algo que não consegui ouvir antes de jogar a flor
sobre a madeira, despedindo-se do homem que fora seu grande amor.
Clara sorriu, um sorriso que mais ninguém no mundo tinha. Minha
cunhada chorou, mas a fortaleza que existia dentro dela e a certeza de
que amara meu irmão como ele merecia faziam com que não se
desesperasse. Ela apenas chorou sua saudade.
Clara respirou fundo, dando as costas para o caixão e virando-se
para mim.
— Obrigada, Di — agradeceu com a voz enfraquecida. Vitória e
Luís Felipe se aproximaram da mãe, que se dirigiu mais uma vez a mim
antes de sair com os filhos. — Você sempre esteve aqui.
— E sempre estarei.
Então ela olhou para o caixão afundando e depois me encarou
com mais lágrimas em seus olhos profundos.
— Até mais, Clarinha.
— Adeus, Di.
Todos se foram e eu ainda olhava para aquele maldito buraco. A
sensação que tinha era de que um pedaço de mim havia sido enterrado
junto com meu irmão. O homem a quem eu devia tudo. Alexandre fora
melhor em tudo. O melhor homem, advogado, pai, marido, avô e,
principalmente, o melhor irmão que poderia existir. Depois que Clara
saiu, eu me permiti chorar. Chorei porque eu devia tudo o que era ao
homem que acabara de enterrar.
Senti uma mão delicada em meu ombro e não precisei olhar para
saber que era ela. Meu coração a reconhecia sem que meus olhos
precisassem vê-la.
— Vamos, amor? — disse Larissa, descansando o rosto em
minhas costas. Segurei sua mão e o toque em sua pele acalmou minha
alma.
Puxei Larissa, fazendo-a ficar de frente para mim. Os cabelos
brancos dos quais ela tanto reclamava haviam se tornado seu charme
particular. Seus olhos ainda me faziam mergulhar na calma que ela me
proporcionava, e eu a amava todos os dias, porque era impossível não
amar.
Sorri e ela fez o mesmo.
Entrelaçamos os dedos e caminhamos juntos.
— Sim, minha princesa, vamos para casa.
Clara
Assim que pus os pés dentro de casa, senti que as paredes daquele
lugar iam me engolir. Dentro do peito havia um buraco do tamanho do
meu coração, porque na verdade ele fora enterrado junto com o homem
que eu amava. Ouvi vozes, enxerguei pessoas, mas minha mente não
conseguia acompanhar meu corpo.
— Mãe, mãe, está tudo bem?
— Oi?
— A senhora está bem?
Vi Vitória ao meu lado e observei seus olhos, azuis como os do
meu Alê. Senti um orgulho imenso da mulher maravilhosa em que ela se
transformara, a profissional incrível e a mãe extraordinária. Toquei seu
rosto, fazendo um carinho, mas não consegui manter a mão levantada
por muito tempo. Sentia-me cansada, perdida, como se a vida tivesse
saído de mim.
— Precisa de ajuda, mamãe? — Meu menino que já não era mais
tão menino perguntou, e eu apenas sorri. Fisicamente, ele era muito
parecido com o pai, a mesma beleza e porte imponente de Alexandre,
mas sempre com os mesmos ideais que eu.
— Só preciso dormir — menti com um sorriso no rosto. Dormir
não iria curar a ferida que rasgava a minha alma e me machucava cada
vez que lembrava dos olhos dele.
Eles me ajudaram a chegar ao quarto e, depois de muita
insistência, me deixaram sozinha. Tomei um banho demorado. Fazia
um tempo que meu corpo deixara de ser ágil. Olhei para as mãos
debaixo d’água e minha mente voltou a um tempo em que eu era jovem.
Um tempo em que eu tinha a vida inteira pela frente. Não me
arrependia da caminhada que fizera. Cometera erros, acertos e tropeçara
algumas vezes, mas conseguira me reerguer. Enrolei-me na toalha, deitei
sobre a cama sem me importar com nada e me permiti chorar. Meus
dedos acariciaram o travesseiro de Alexandre e ainda podia sentir seu
cheiro.
Senti o cansaço chegar e foi inútil lutar para manter os olhos
abertos. Adormeci devagar, as pálpebras se fechando aos poucos enquanto
as imagens surgiam, alegrando meu coração e acalmando minha alma.
Como uma espectadora da minha própria vida, observei a menina
que um dia eu fora se arrumar para uma entrevista de emprego. Ela
escolhia com cuidado a roupa que iria usar, amarrava os longos cabelos
castanhos e se maquiava com delicadeza.
Ela entrou no escritório, observando tudo, analisando e se
sentindo deslumbrada com a elegância do lugar. Ela sentou na poltrona,
sem saber que em poucos minutos estaria de frente para o homem da sua
vida.
Quando as portas abriram, meu coração disparou, porque fora
assim que me sentira naquele dia.
Ela não desviou os olhos dele, sentado atrás daquela cadeira,
vestindo seu lindo terno e a encarando com os olhos azuis mais lindos do
mundo. Ela se aproximou, analisando sua beleza, encantada com sua
postura, sem se dar conta de que, naquele momento, o amor a
encontrara. Ele não falou nada e ela sorriu, pois sabia que ele estava tão
afetado quanto ela.
— Bom dia, dr. Ferraz. Meu nome é Maria Clara…
Então sua voz pronunciou meu nome pela primeira vez.
— Bom dia, Maria!…
Eu não sabia e levei a vida inteira para admitir, mas, naquele
momento, enquanto estava sentada de frente para um dos advogados
criminalistas mais importantes do Brasil, eu dava início ao meu próprio
conto de fadas.
Diego
Ela nos deixou naquela mesma noite, depois de adormecer. Não
me espantei nem me senti triste, pois compreendi o que o destino havia
preparado para os dois.
Clara seguiu sua alma e Alexandre reencontraria seu coração.
A menina que não sonhava com conto de fadas.
Ela preferiu o Lobo Mau.
LIGA LITERÁRIA
Agradecimentos
À minha família, que sempre está ao meu lado.
Ao meu marido, pelo apoio incondicional.
Ao meu filho, Apollo, que eu sempre soube que amaria, mas que
não imaginava que seria a ponto de dar minha vida por ele.
Às minhas betas: Gisah, Virgínia, Luzi, Renata, Karol, Carol
Rabello, Carol Nonato, Manu, Luana, Débora e Vanessa. Obrigada por
caminharem lado a lado comigo na construção dessa história.
Às autoras Cinthia Freire, LM Gomes e Julianna Costa, muito
obrigada pelos conselhos e por me deixarem compartilhar com vocês os
surtos de ansiedade. Que a literatura nacional cresça cada vez mais.
À minha agente Roberta Pantoja, por continuar me ajudando a
tornar reais meus sonhos.
Aos leitores… Sem vocês esta história não teria se concretizado.
Obrigada por me apoiarem e torcerem por esse personagem, por amarem
Diego e enxergarem no irmão de Ferraz potencial para viver uma grande
história de amor.
A Diego e Larissa, por me ensinarem que um relacionamento vai
Muito além do amor.
Com carinho,
Camila Moreira
Nota da autora
A cada oito segundos uma mulher é vítima de violência doméstica
no Brasil.* Em 2016, 12 milhões de mulheres sofreram abuso verbal.
Cinco milhões foram ameaçadas fisicamente. Quase 4 milhões sofreram
ofensa sexual. Quase 2 milhões foram ameaçadas com faca ou arma de
fogo. Um milhão e meio foram espancadas. Duzentos e cinquenta mil
levaram um tiro.
De acordo com a ONU, o Brasil é o quinto país que mais mata
mulheres. São treze mortes a cada 24 horas. Quarenta e três por cento
dos casos acontecem dentro de casa. Cinquenta e dois por cento das
mulheres não denunciam nem buscam a ajuda de família e amigos.
Entre as três principais causas da violência estão álcool, brigas e ciúme.
São números assustadores, que continuarão sendo apenas números
se a sociedade não reagir.
Estão nos matando.
Isto é um pedido de socorro…
Capa
Thiago de Barros
Foto de capa
IVASHstudio/ Shutterstock
P reparação
Natalia Engler
Revisão
Renato Potenza Rodrigues
Érica Borges Correa
Jane Pessoa
ISBN 978-85-545-1197-5