Relações de Gênero e Os Games

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RELAÇÕES DE GÊNERO E OS GAMES: espaço de estabelecidos e de

outsiders

Filomena M ª Gonçalves da Silva Cordeiro MOITA 1

O jogo é uma atividade característica da espécie humana, primeiramente entendida


como atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que definem perda ou
ganho. Os historiadores do jogo têm mostrado a existência de atividades lúdicas nas mais
diversas culturas. Então, o jogo não só é uma atividade universal, mas é possível encontrar o
mesmo jogo em países distintos. Os jogos são em número variadissimo e de múltiplos tipos:
jogos de sociedade, de azar, jogos de ar livre, de destreza etc.
Segundo Huizinga (1999), é pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve. Tudo
isso se dá devido ao fascínio e as atrações provocadas pelo jogo no homem. Até ao final do
século XIX, a ação de jogar era associada a entretenimento e diversão. Com o movimento da
Escola Nova, o jogo passou a ser um importante recurso de ensino: foi introduzido como algo
mais do que diversão pelo seu importante potencial educativo. Eles não só motivam como
através deles se pode aprender, desenvolver habilidades, estratégias. Podemos dizer então que
os jogos constituem um recurso pedagógico valioso que não pode ser desperdiçado.
No entanto, o ritmo imposto pelo desenvolvimento tecnológico -tem alterado o uso dos
sentidos, exigindo outros movimentos de corpos, gestos, linguagens por isso os jogos
tradicionais vêm sendo substituídos pelos games. Vive-se numa sociedade audiovisual, e, nessa
aventura tecnológica jovens e crianças iniciam-se através dos games. Assim, pode-se entender
este como um dos motivos pelos quais observar crianças brincando nas ruas de amarelinha, bola
de gude, pega-pega, queimado tornou-se uma cena rara.
Com a tecnologia colocada em nossa vida, o que se presencia, tanto na zona urbana
quanto na rural, são cenas de jovens atraídos pelos games, por seus efeitos, seus botões, sua
música, enfim, trocando a rua pelos games.
Assim, em busca de respostas o objetivo deste texto é analisar a questão das relações de
gênero nos games, tendo como eixo a relação colocada na obra de Elias e Scotson (2000), Os
Estabelecidos e os Outsiders.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação- UFPB/ professora da Universidade Estadual da Paraíba
–UEPB:[email protected]

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Games: que mundo é esse?

Bastante recentes, os games vêm sendo pouco estudados e as pesquisas ainda são pouco
divulgadas. De acordo com (ROSA, 2000), o ano zero dos jogos eletrônicos é 1962, quando
Steve Russel e alguns colegas colocaram o jogo Spacewar no PDP-1 da Digital, o primeiro
computador a usar a tela e um teclado, seria também o primeiro computador a acolher um jogo.
No inicio da década de 70, os jogos ainda não tinham a euforia dos dias de hoje, eram
apenas um passatempo bastante restrito. Já na década de 80, a Nintendo lança o conhecido
Gameboy: o percurso histórico dos jogos eletrônicos revela um crescente interesse das grandes
empresas por essa atividade, que hoje se constitui nu setor econômico lucrativo, promovendo,
inclusive repercussões em toda a evolução tecnológica no mundo da Informática com aplicações
na Fórmula 1, simuladores de vôo e nos efeitos especiais para o cinema.
Embora com uma história curta, verifica-se que muita coisa mudou, o que torna cada
vez mais urgente tentar desvendar o que há de realmente diferente, de novo, nos games. Razão
porque pesquisadores ou não, nenhum, de nós pode ficar indiferente a sua história e a seus
reflexos em nosso cotidiano.
Os games, aparentemente, inauguram uma nova tradição, na medida em que buscam
uma padronização definida em escala global, que parece pôr fim às antigas formas lúdicas de
brincadeiras de fundo de quintal.
Eles representam novidade que encanta e fascina. Todavia, podem ser também
considerados “modernos”? Segundo Octavio Paz (1974) a novidade, para ser moderna, precisa
de duas cargas explosivas: ser negação do passado e ser afirmação de algo diferente, entendido
este como aquilo que se opõe aos gostos tradicionais, - estranheza polêmica, oposição ativa.
O conteúdo de alguns games, por sua vez, não parece sugerir nenhum estranhamento,
negação, crítica, nada de inesperado se comparados com os conteúdos dos velhos contos de
fadas, neles podemos enxergar: cinderelas, torres, dragões e cavaleiros que se arriscam para
salvar a princesa ou a sua própria honra; às vezes é necessário astúcia para desvendar enigmas.
Por outro lado, indica regras de conduta e de comportamento. Passaporte para mundos
fantásticos que reproduzem a realidade de uma sociedade patriarcal onde os heróis (cavaleiros),
na sua maioria são do sexo masculino que arriscam suas vidas para salvar as “desprotegidas
princesas”.
Na verdade, tais jogos parecem oferecer àqueles que os manipulam a possibilidade de se
inserirem, pela via da fantasia, em uma “realidade” mais rica de emoção do que aquela que
poderiam encontrar em suas próprias experiências, particularmente quando estas não
correspondem as suas potencialidades criadoras.
Os games parecem possibilitar uma inserção cultural, ainda que virtual, não muito
diferente das experiências vividas com os jogos “tradicionais” e com as antigas competições,

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aqui incluídas na mesma categoria do jogo. Na maioria das vezes, as competições aconteciam
exatamente para demonstrar a superioridade dos homens, de grupos, de comunidades ou de
países. Impulsionados pelo imperativo da honra, da fidelidade ou justa causa, sua relação com a
cultura era objetiva, simbólica e seu resultado notadamente importante para o grupo.
No entanto, apesar do aspecto competitivo e das relações de poder, tendo muitas
semelhanças com os jogos considerados “tradicionais”, os games se constituem tanto para
adultos quanto para jovens e crianças num artefato audiovisual que veio introduzir uma nova
linguagem, novas formas de pensar, de agir e que veio mediar uma nova forma de conhecer,
comunicar, aprender. Portanto um novo conjunto de saberes, numa arena onde estão as
diferentes visões de mundo de quem joga, às quais se juntam as representações, as narrativas e
os significados que cada um atribui.
O universo dos videogames é algo que se incorporou ao dia-a-dia de uma parcela
considerável dos jovens do país. De acordo com a pesquisa Target Group Index, mais de metade
do público de 12 a 19 anos nos onze maiores mercados possui jogos do gênero em casa. Porém,
assim como acontece em relação aos videogames em geral, lan houses2 não são freqüentadas da
mesma forma por meninos e meninas. Embora se verifique nos últimos tempos mais meninas
aparecendo naqueles espaços, que segundo a pesquisa: “vão para acompanhar os namorados ou
paquerar”, representando apenas 13% do público.
Tais números ao mesmo tempo em que permitem delinear uma primeira imagem, das
relações de gênero naquele espaço, permitem afirmar que os videogames enquanto universo
predominantemente masculino, ajudam a reproduzir o modelo patriarcal de sociedade,
estabelecendo quem sabe, ou não, jogar e é o dono do poder naquele espaço. Desta forma, os
games contribuem para a experiência formativa vivenciada pela juventude com informações,
valores e saberes que, via audiovisual, neste caso os games, interferem em suas formas de
aprender, de ver, de pensar, de sentir e de agir.

Games: espaço de estabelecidos?

A expressão que parece melhor definir essa relação gênero no espaço dos games seria
de estabelecidos e de outsiders. Refiro-me à expressão utilizada por Elias e Scotson (2000), que
em pesquisa realizada na cidade Winston Parva após numerosas observações, concluíram que
em grupos sociais muito próximos e homogêneos, como é o caso dos dois estudados, se criam
diferenças, largamente idealizadas, que os dividem internamente e os colocam em luta pelo
controle social, gerando, no plano das relações, estereótipos e preconceitos sociais recíprocos.

2
Pesquisa publicada pela Revista Veja, edição Especial Jovens, no. 32, ano 37. Disponível site: www.veja.com.br
em jun/2004.

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Por mais que sejam “iguais”, quando vistos desde os critérios da sociologia mais
clássica funcionalista ou dialética, eles não logram explicar de maneira satisfatória o que
acontece no plano das imagens sociais que modelam as reais relações de
dominação/subordinação que se fundam de fato nas representações, crenças e valores que cada
grupo julga possuir, diferentemente do outro, sentido como de nível inferior. Penso não ser
difícil se perceber a importância dessa constatação para o estudo das relações de gênero no
espaço dos games.
Diante da tela, os jovens comandam personagens com o simples toque dos dedos. O
videogame fascina, absorve e encanta os jovens. Mas não é só isso, o desafio de realizar mais e
melhor em menos tempo exige deles o desenvolvimento de habilidades, que lhes confere
agilidade e permite fazer alguma coisa com mais perfeição, motivada pelo reconhecimento da
ação heróica no ambiente virtual, de haver vencido a dificuldade personificada no inimigo, de
geralmente ser o herói que faz o bem, mas também de ter sua capacidade reconhecida no mundo
real, entre os colegas. A necessidade de sentir-se reconhecido pelo grupo predominante
masculino.
Assim, ao tentar vencer este desafio, ele não só desenvolve habilidades como também
aprende conteúdos que reafirmam a divisão sexual imposta na nossa sociedade. Um dia ao
perguntar a um grupo de jovens sobre quem freqüenta o espaço dos games, um deles
prontamente respondeu: “só vem menino” e continuou, “aqui só tem conversa para homem” e
mais, “elas não vêm porque não sabem jogar”.
Ou seja, eles treinam e ao treinarem para vencer no jogo, certas habilidades são
desenvolvidas: a observação, a atenção, a memória, a coordenação motora fina e a lógica além
da troca de conhecimentos entre pares por ser um espaço de socialização.
Por outro lado ao analisar as respostas dos alunos da Escola Pedra do Reino, para a
pergunta “quem joga mais meninos ou meninas” obtivemos como respostas: “Eu acho quem
joga mais são os meninos”, “tem menina que joga no shopping, mas elas são sapato”, “Eles
sabem mais que as meninas”, “só vejo meninos jogando no playstation”. Constatamos que
aquele espaço é reafirmador do conceito de masculinidade traduzido pela diferença entre os
comportamentos de meninas e meninas.
Mais do que isso, onde quer que sejam jogados os games parecem ser um espaço de
relações de poder que são justificadas pelas diferenças entre homens e mulheres atribuindo
aqueles habilidades diferenciadas, ao mesmo tempo em que valorizam um grupo, menosprezam
o outro, levando este a sua própria desqualificação. Segundo Carvalho (2000, p.17) as relações
de gênero são relações de poder: “as diferenças construídas entre homens e mulheres
transformam-se em hierarquias, justificadas pela maior valorização das qualidades masculinas,
atribuídas exclusivamente aos homens”. Relações que se reproduzem também no espaço de
socialização dos games.

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Elias mostra esse processo na sua afirmação: “Vez por outra podemos observar que os
membros dos grupos mais poderoso que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos
(se auto-representam) como humanamente superiores”(2000, p.19). E o autor dá como
exemplos: “os senhores feudais em relação aos vilões, ‘os brancos’ em relação aos ‘negros’,...
os homens em relação às mulheres...”(idem, p.19). Ou seja, os meninos como estabelecidos se
auto-intitulam como os que jogam melhor, como os que sabem, defendem aquele espaço como
só deles. As meninas são constituídas pelo grupo novo que está entrando naquele espaço que se
constitui como ameaça ao poder dos já estabelecidos. Considerados como “melhores” se sentem
dotados de uma espécie de virtude que é compartilhada pelos membros de seu grupo e que falta
aos outros. No caso, às meninas. Por outro lado as meninas afirmam que “ a mãe não deixa”, ali
é um espaço “só para homem, porque menina não é para jogar”.
As meninas se menosprezam, considerando-se com menos habilidade para jogar. Neste
sentido Elias e Scotson (2000, p.20) afirmam: “os indivíduos ‘superiores’ podem fazer com que
os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se
humanamente inferiores”.
A atenção dos dois pesquisadores em Winston Parva, não esquece o nível macro-
teórico, mas se volta em especial àquele micro, das relações entre as pessoas e grupos. Esse é
para eles o ‘ubi’ gerador da subjetividade, especialmente em culturas de corte fortemente
individualista como as da sociedade neoliberal globalizada. O comportamento e a vivência das
pessoas nasce é aí, embora – evidentemente - possam sofrer e sofram as influências de outras
matrizes contextualizadoras. As crenças, valores e pattern de comportamento vigentes em
Winston Parva não se devem seguramente a diferenças de classe social, salário ou religião ou à
maior ou menor fatia de poder que cada um dos dois segmentos daquela população possui,
reivindica ou se atribui. Ela serve de base tanto para a colaboração - em alguns pontos bem
delimitados - quanto para a discriminação e a conflitividade, na maioria dos outros aspectos da
convivência social. Ponto que é comum ao grupo que aqui analisamos, os jovens que se
consideram “antigos” nas Lan Houses ou em outros locais de games e que cultivam o mito de
seu passado e o têm como a diferença decisiva entre eles e os "outsiders" as meninas que
começam a aparecer para jogar.

Games: como se estabelecem as relações de poder naquele espaço?

A análise das relações de gênero no espaço dos games, a partir de um estudo de caso em
uma escola Municipal da Cidade de João Pessoa apoiada principalmente nas lentes teóricas de
Elias e Scotson, leva-me a concluir que a lógica nessa relação apresenta sinais, elementos que se
assemelham aos estudos de Elias notadamente os realizados na pequena cidade de Winston

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Parva. No espaço dos games a construção do sentido social do poder obedece a critérios-chave:
de afirmação da superioridade ao mesmo tempo em que estigmatização e de subalternidade.
Primeiro, o da afirmação da superioridade e excelência "psicológica", "humana" e
‘social" dos que chegaram antes ao local. A esses cabe mais, o primado natural quanto ao status,
à dignidade grupal e à legitimidade dos direitos adquiridos. Nas relações de gênero que se
estabelecem no espaço dos games, eles são os jogadores de primeira classe, os que sabem jogar.
Do outro lado faz valer-se a estigmatização dos chegados por último, tidos como inferiores que
na nossa pesquisa são as meninas.
Essas, naturalmente, no início não se conhecem, precisam ir acompanhadas de
namorado, vão devagarzinho ocupando o espaço e parecem incomodar. Como são poucas, sem
grupo coeso não dispõem ainda das habilidades, não dominam o vocabulário, o movimento, no
primeiro momento tudo é estranho. Ao mesmo tempo, se constituem numa ameaça e sua
chegada provoca um desequilíbrio tal como os outsiders provocavam com sua chegada a
Winston Parva.
O segundo critério é uma posição de subalternidade3, sentimento que as recém-chegadas
aceitam, interiorizam e passam a aceitar nas relações com os mesmos. Passam a avaliar-se
segundo o juízo dos detentores do poder local.
Considerando-se como inferiores, frente ao poder dos estabelecidos se
autodesqualificam. Um poder invisível que nas palavras de Bourdieu (1989) impõe coerção que
se constitui por intermédio do reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de
outorgar ao dominante quando somente dispõe, para pensá-lo e para pensar a si mesmo, de
instrumentos de conhecimento que tem em comum com o dominante e que constituem a forma
incorporada da relação de dominação.
Um poder que está introjetado na socialização primária, naturalizado pela tradição
cultural numa sociedade patriarcal e que produz uma generalização da parte para o todo. Ou
seja, conduzem os outsiders e a ter uma imagem de si como a “das piores”, enquanto fazem dos
estabelecidos uma imagem “dos melhores”. É possível afirmar que a imagem que os
estabelecidos fazem de si enquanto grupo contribui para a construção da imagem que os
outsiders têm de si e vice-versa. Existe umainternalização da crença depreciativa do grupo
socialmente dominante superior pelo socialmente inferior, como parte da consciência e da
imagem que têm de si, reforça vigorosamente a superioridade e a dominação do grupo
estabelecido.
Nesses termos, os games são espaços de configuração de relações de poder
compartilhados por crianças, jovens e adultos que precisam um estudo mais aprofundado. A

3
Sobre o que pensam os brasileiros pobres dos detentores do poder é estudado por Caldeira, Tereza P.R., A política
dos outros. Cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder dos poderosos, São Paulo, Brasiliense,
1984.

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semelhança entre as relações de gênero nos games e as comunidades proletárias de Winston
Parva aponta para a necessidade de uma tipologia mais detalhada das configurações sociais, de
forma a compreender as novas formas de relação, as novas formas de vida social,para que seja
possível traçar medidas capazes de contribuir para a formação de uma sociedade mais
humanizada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Rio de janeiro: Difel/Bertrand,


1989.

CALDEIRA, Tereza P.R.. A política dos outros. Cotidiano dos moradores da periferia e o que
pensam do poder dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CARVALHO, Ma. E. P. (Org.). Consciência de gênero na escola. João Pessoa: Editora


Universitária, 2000.

ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

HUIZINGA, J. O jogo como elemento da cultura. 4 ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PAZ, Octavio. “A Tradição da Ruptura” e “A Revolta do Futuro”, in Os Filhos do Barro. Do


Romantismo à Vanguarda. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

ROSA, J. M. No reino da Ilusão: a experiência lúdica das novas tecnologias. Lisboa: Veja,
2000.

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