Ebook Educação e Pesquisa Dialogando Com A Pluralidade
Ebook Educação e Pesquisa Dialogando Com A Pluralidade
Ebook Educação e Pesquisa Dialogando Com A Pluralidade
1
2
Augusto Kessai Agostinho Chicava
Jenerton Arlan Schütz
(Organizadores)
EDUCAÇÃO E PESQUISA:
DIALOGANDO COM A PLURALIDADE
3
Copyright © dos autores e das autoras
CDD – 370
4
SUMÁRIO
Prefácio 9
Adelino Chissale
5
A CAPOEIRA NO CONTEÚDO DA DISCIPLINA DE EDUCAÇÃO 127
FÍSICA EM ESCOLAS MUNICIPAIS DO INTERIOR DA BAHIA
Fabrim Atil da Silva
Juliana Barros Ferreira
Nayara Alves de Sousa
6
A AVALIAÇÃO DE TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO: 225
UMA POSSÍVEL FERRAMENTA DE REORGANIZAÇÃO
COGNITIVA DO ALUNO
Adriana Paz Nunes
7
AVALIAÇÕES MATERIALIZADAS EM UMA REPORTAGEM 341
ACERCA DO INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR
POR MEIO DE COTAS SOCIAIS E RACIAIS
Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi
Maria Aparecida Resende Ottoni
8
Prefácio
9
A leitura deste livro desafia-nos a despirmo-nos do que nos
apegamos (teorias, metodologias e práticas educativas) para
experimentarmos algo diferente. O livro é um convite a tornarmos a
educação num instrumento de mudança social construindo pontes
sobre a diversidade.
Adelino Chissale
Doutor em Educação
Professor da Universidade São Tomás de Moçambique
Janeiro de 2020
10
UNIVERSIDADE, PESQUISA E DOCÊNCIA:
REFLEXÕES SOBRE O (DES)CONHECIMENTO DO ATUAL GOVERNO
INTRODUÇÃO
11
relativismo das pesquisas e dos conhecimentos científicos; iii) o de
tornar as universidades em espaços de (suposta) balbúrdia e de
produção/pesquisa irrelevante.
Nessa direção, para dar de tal empreitada, o estudo analisará, no
primeiro momento, os ataques endereçados contemporaneamente à
educação brasileira, isso, com o intuito de elucidar o enorme desprezo
que o governo tem para com o conhecimento e o professor; por
conseguinte, o estudo apresentará alguns argumentos do presidente,
Jair Bolsonaro, e do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, sobre
a “balbúrdia” e a irrelevância das pesquisas que ocorrem nas
universidades brasileiras, isso, a fim de demonstrar que tais
argumentos não condizem com a veracidade dos fatos e a realidade da
pesquisa científica realizada nas universidades; por fim, tematizar-se-á
a importância da dimensão da pesquisa na universidade e seus
desdobramentos para a sociedade, considerando que as universidades
de pesquisa possuem um papel crucial, elas não só fornecem um
ensino gratuito de qualidade e formam bons profissionais, mas
principalmente atuam como locais de elaboração de conhecimento, de
pensamento, impulsionando o desenvolvimento científico,
tecnológico e intelectual de qualquer país.
12
desprezo do governo pelo conhecimento, pela ciência, pelo
pensamento. Nesse sentido, o governo, com apelo moral, concentra
seus ataques às ciências humanas e sociais, na filosofia, história e
sociologia, justificando que essas áreas não dão um retorno imediato
para a sociedade e nem melhoram a mesma, diferentemente das
Engenharias e outras áreas mais.
Outrossim, refletir profundamente sobre a quase total abolição
desses cursos deveria ser uma preocupação primária de todos. Uma
vez que o desconhecimento filosófico, histórico, sociológico causa um
efeito social muito negativo, a saber, os cidadãos não se reconhecem
como membros de uma comunidade porque perderam as suas
referências comuns.
Parece-nos, diante desse contexto, que os cidadãos dos países
democráticos (por exemplo, o Brasil) não possuem a menor noção da
longa luta de seus antepassados para conseguir este tipo de sistema,
enquanto que, sob os presentes ataques à educação e docência, os
imigrantes poderão desconhecer, ao mesmo tempo, a história de seu
país e a do de adoção. É por isso que todos aqueles que adentram o
mundo humano devem (ao menos deveriam) aprender que o mundo
não nasceu democrático e republicano, ou seja, a democracia e a
república não são algo dado ou espontâneo, mas que se conquistou a
duras penas, com rupturas revolucionárias.
Além disso, o que pode vir a acontecer em um país quando os
cidadãos não têm em comum nenhum acervo cultural? Já não se
poderá viver em uma sociedade coerente e organizada, mas sim em
uma de vários “grupinhos justapostos”. Por isso, deve-se recordar que
todos os regimes autoritários se destacaram por querer impor a
amnésia histórica a seus súditos. Convém-lhes, por exemplo, que a
história comece com eles e que seja transmitida a sua versão do
passado, uma bela analogia à proposta do atual governo.
Não bastasse, para o atual governo, os professores são
denominados de doutrinadores e que apenas satisfazem e impõem as
suas visões político-ideológicas em sala de aula, tal como é
apresentado no Projeto da Escola sem partido.
Para o atual governo, as denominadas “práticas de doutrinação
política e ideológica nas escolas” seriam decorrentes da base teórica
marxista, gramsciana e, principalmente, a freireana seria a que teria
influenciada a pedagogia brasileira. Em um artigo presente no site do
13
Programa da Escola sem Partido4, o colaborador Rodrigo Constantino
acusa “a educação contemporânea” de ser “uma máquina de formar
alienados, aqueles que vão depois defender o PT e o PSOL”. Sem
distinção, transfere a responsabilidade por todos os problemas da
educação à esquerda brasileira. E quando não há o que ser transferido,
os defensores/adeptos os criam. É o caso da distorção do conceito de
ideologia que promovem, revelando a incapacidade de seus
defensores de reconhecerem que o projeto em vigor se coloca,
também ele, sob perspectiva ideológica. Semelhante absurdo ocorre
com a equivocada expressão “ideologia de gênero”, cunhada para
subverter as discussões sobre gênero e atribuir a elas uma conotação
pejorativa.
Na mesma direção, em entrevista à repórter Ingrid Fagundes5, o
advogado Miguel Nagib afirma que, no Brasil, quem promove, de
forma sistemática e organizada, a doutrinação político-ideológica em
sala de aula, com apoio teórico (Gramsci, Althusser, Freire, Saviani,
etc.), político (governos e partidos de esquerda, PT à frente),
burocrático (MEC e secretarias de educação), editorial (indústria do
livro didático) e sindical é de esquerda.
Estas e outras entrevistas, além de artigos de opinião,
definição de objetivos e justificativas do Programa – considerados
todos isentos de qualquer ideologia – encontram-se disponíveis no site
do movimento. Na seção sobre os objetivos, aliás, além de instruir os
pais e alunos sobre os procedimentos que devem ser seguidos para
denunciar os professores, os idealizadores reforçam que o site foi
criado “para dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a
imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a
instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários. E o modo de fazê-lo é divulgar o testemunho das vítimas,
ou seja, dos próprios alunos”. Afirmam que a luta é “pela
descontaminação e desmonopolização política e ideológica das
escolas”.
Convém destacar, ainda, a crítica que os defensores do
movimento Escola sem Partido endereçam ao documento da Base
14
Nacional Comum Curricular (BNCC), para os quais novamente a marca
da esquerda brasileira aí é invocada. O Deputado Rogério Marinho, o
mesmo que criou o Projeto de Lei n. 1411/20156, “tipifica o crime de
Assédio Ideológico e dá outras providências”, entre elas a “pena-
detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa”.
Além disso, em seu § 1°, acrescenta que “se o agente for
professor, coordenador, educador, orientador educacional, psicólogo
escolar, ou praticar o crime no âmbito de estabelecimento de ensino,
público ou privado, a pena será aumentada em 1/3” e, no § 2º, que “se
da prática criminosa resultar reprovação, diminuição de nota,
abandono do curso ou qualquer resultado que afete negativamente a
vida acadêmica da vítima, a pena será aumentada em 1/2”. Outro ponto
que merece destaque é a opção de acesso no site do “Escola sem
Partido” denominada de “Síndrome de Estocolmo7”. Nela, os
idealizadores alegam que os alunos são vítimas de um “sequestro
intelectual” que os tornariam reféns de seus professores/
doutrinadores.
Numa linguagem bastante simples, o projeto “Escola sem
partido” apresenta objetivos claros que se valem – ao mesmo tempo
que expressam – a polarização da política brasileira, acirrada com as
eleições presidenciais de 2018. Desse modo, difunde, no âmbito
educacional, uma nova concepção de escolarização, um novo discurso
sobre o lugar e ofício do professor, inclusive com a possibilidade de
delação.
Além disso, como lembra Bittencourt (2017), trata-se do
cerceamento da liberdade de cátedra do professor na realidade
educacional brasileira mediante o projeto ideológico da Escola sem
Partido, que apregoa o fim do partidarismo político na atuação
docente em sala de aula. Contudo, o citado projeto mascara suas reais
intenções, que é a de eliminar da atuação do professor o seu papel de
estimulador da reflexão crítica sobre os problemas sociais de nossa
realidade política, auxiliando assim os estudantes a compreenderem
as nossas contradições estruturais. A ideologia da Escola sem Partido
defende a neutralidade pedagógica, mas a própria construção
15
curricular já denota ausência de neutralidade, pois diversos critérios e
interesses ocultos se encontram subjacentes no currículo pedagógico.
Na mesma direção, podemos considerar que é preocupante a
declaração do ministro da educação, Weintraub, que aparentemente
pretende criar condições para a liberdade de expressão. Para ele, as
universidades têm logicamente o direito de se expressar, desde que o
desempenho acadêmico esteja bom. “Só tomaremos medidas dentro
da lei. Posso cortar e, infelizmente, preciso cortar de algum lugar” 8,
afirmou. “Para cantar de galo, tem de ter vida perfeita”. Contudo, com
esse tipo de fala e ato, pretende-se, unicamente, restringir a liberdade
de pensamento e promover o patrulhamento ideológico dentro dessas
instituições de ensino.
Ademais, os sucessivos cortes nas políticas educacionais – seja na
educação básica ou no ensino superior – e a ameaça de acabar com a
vinculação constitucional que assegura os recursos para a educação
evidenciam o fidedigno desejo pelo viés privatista do governo. Trata-
se de um governo que quer entregar aos grandes empresários a
educação conquistada pelo povo brasileiro. É exatamente por isso que
fomenta as políticas de vouchers, a educação domiciliar, o projeto
escola sem partido, incentiva a agressão à gestão democrática e à
autonomia das escolas/universidades, defende a militarização escolar;
sustenta a inoperância inescrupulosa do Ministério da Educação, que
afeta a qualidade do atendimento público nas escolas, institutos
federais e universidades; defende a revogação de inúmeros conselhos
de acompanhamento social, impondo inúmeros retrocessos à gestão
democrática.
Percebe-se, a partir do contexto supracitado, que tudo não passa
de um pacote de ideias, projetos e concepções “bem articulado”, que
visa atingir todos os níveis da educação, além de desprezar o
conhecimento produzido pelas instituições, sem elas, não há ciência,
sem a escola a ciência seria impossível. Desprezar a autoridade
docente também está neste pacote do governo, denunciar os
professores, vigiá-los, puni-los, considerá-los doutrinadores e
16
disseminadores de práticas político partidárias ou ideológicas é
lamentável.
Não bastasse, em recente fala do Ministro da Educação,
Weintraub confirmou que o corte (e não mais contingenciamento) na
educação de R$ 926 milhões foi para ser utilizado no pagamento das
emendas parlamentares. Isso mostra mais a ligação entre a reforma da
previdência e os ataques à educação básica e superior9. Esse
remanejamento atinge, na área da Educação, ações como o apoio à
manutenção da educação infantil, concessão de bolsas na educação
superior e básica, valorização docente, investimento na educação
pública e apoio ao funcionamento de instituições federais de ensino.
Ademais, no dia 17 de agosto de 2019, inúmeros meios de
comunicação vincularam a notícia de que o MEC irá utilizar o IDH, a
nota de curso e a área prioritária para conceder bolsas de pós-
graduação. Conforme o jornal “Estadão”, o novo sistema de escolha
levará em conta o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos
municípios onde as universidades estão localizadas, além do teor das
pesquisas e a nota obtida pelos cursos nos últimos anos. Terão
prioridade aquelas que se encaixarem em áreas consideradas
estratégicas pela gestão Jair Bolsonaro, como cursos de Saúde e
Engenharias. Bolsas de doutorado terão preferência em relação às de
mestrado10.
Ainda na mesma notícia, para o presidente da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Anderson
Correia, cursos como Medicina, Odontologia, Engenharias e
Computação devem estar no grupo considerado prioritário. Já as
pesquisas que ele classifica como de “humanas puras” serão menos
beneficiadas. Nesse grupo, estão Filosofia e Ciências Sociais, para o
presidente, “priorizar uma área não é matar outra”.
O problema que daí decorre é favorecer apenas cidades em que o
indicador do IDH seja mais alto e desfavorecer áreas e regiões em que
o IDH é menor. Além disso, a área das ciências humanas pode ser muito
9 Notícia divulgada pela Folha de São Paulo no dia 16 de agosto de 2019. Ver mais em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/weintraub-admite-ser-corte-r-926-
milhoes-do-orcamento-da-educacao-remanejados-para-pagar-emendas.shtml.
10 A notícia completa está disponível em: https://educacao.estadao.com.br/
noticias/geral,mec-usara-idh-nota-de-curso-e-area-prioritaria-para-conceder-bolsas-
de-pos,70002971476?fbclid=IwAR2lsVP6-10YjcjU_DGuKMX4edzIntYsWNDHA8
WLp2ODoIQH45W5ZcpjM00.
17
prejudicada com o direcionamento de bolsas para outras áreas. Na sua
conta de Twitter, no dia 26 de abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro
postou a seguinte mensagem: “O Ministro da Educação
@abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades
de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão
afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao
contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina” (grifo
nosso).
Decorrem daí três fatores importantes e que são
desconsiderados pelo governo: Em primeiro lugar, a educação em
todos os seus níveis não pode e não gera retorno imediato de seu
investimento: trata-se de um investimento nacional para as gerações
futuras, um investimento a longo prazo; por conseguinte, o mundo
contemporâneo requer não apenas competências técnicas e
especializadas, mas uma ampla formação intelectual e generalizada
para os cidadãos, somente assim terão condições plenas para
participares, futuramente, da esfera decisória de poder; por fim, não
cabe aos políticos, em sociedades democráticas e republicanas, decidir
o que constitui um bom ou um mau, melhor ou pior saber. A avaliação
dos conhecimentos e de sua utilidade não deve ser submetida à bitola
da conformidade a uma ideologia dominante e única.
Não é por acaso que ideias como a da Terra Plana tem ganhado
número cada vez maior de adeptos. Os “anti-intelectuais” questionam
a eficácia de vacinas e rejeitam veemente a Teoria da Evolução de
Darwin. No campo pedagógico, os “anti-intelectuais” (que nunca
pisaram em uma sala de aula, exceto como alunos) querem erradicar
as ideias de Paulo Freire das escolas, uma vez que acreditam que as
escolas brasileiras não respeitam os valores tradicionais da família
(umbigo familiar/convicções familiares), e que as instituições de ensino
são responsáveis por promover a “ideologia de gênero”, o
“cientificismo” e a “doutrinação comunista”. Se não bastasse, entre
os “anti-intelectuais” está na moda ser “politicamente incorreto”, por
isso chegam a negar fatos como o massacre de indígenas durante o
período colonial, a escravidão e o golpe militar de 1964.
Portanto, a trajetória histórica da educação no Brasil mostra que
ela nunca foi prioridade no País, ela apenas é bem destacada nos
discursos e slogans políticos, contudo, como vimos, o atual governo
está abusando dela. A multifacetada realidade brasileira e os
18
problemas que a educação brasileira enfrenta, desde o sucateamento
das escolas públicas, a precariedade da formação e valorização dos
professores que nelas atuam, à desigualdade social, econômica e
cultural dos alunos, demonstra o descaso e desprezo para com a
educação pública no País. A glória de todo país está no modo de como
o governo trata a escola pública, as universidades e os seus
professores.
19
grande parte tá na iniciativa privada, como a Mackenzie em São Paulo,
quando trata do grafeno”.
Percebe-se, a grosso modo, a crítica de que nada de bom se
produz nas universidades brasileiras, que as universidades brasileiras
não possuem pesquisa de ponta. Ou então, que nelas só se produz
balbúrdias e coisas desinteressantes (de segundo plano/secundárias).
Tais críticas fazem com que a pesquisa, a ciência e a tecnologia fiquem
à mercê de investimentos públicos, inclusive, desamparadas para
qualquer continuação e melhoria.
Em outra notícia divulgada pelo “El País”, intitulada: “Não tenho
dinheiro para um tubinho de plástico: os cientistas que estão saindo do
Brasil12”, afirma-se que existe uma crescente fuga de cérebros do
Brasil, ou seja, é um dos impactos mais imediatos e visíveis dos cortes
no orçamento em ciência e tecnologia promovidos pelo Governo
Federal nos últimos anos, algo que vem congelando pesquisas e
bolsas, ameaçando laboratórios de fechar.
Para se ter uma ideia da imensidão do problema, só em 2017,
conforme a mesma notícia supracitada, o Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), responsável por
dezenas de unidades de pesquisa, laboratórios em universidades e
bolsas de estudos cedidas pelo CNPQ, sofreu um corte de 44% do
orçamento que estava previsto para este ano. A previsão era de 5,8
bilhões de reais, mas apenas 3,3 bilhões foram liberados pelo Governo
de Michel Temer (PMDB). A perspectiva é de que em 2018 haja um
corte de mais 25%. Em 2010, quando a pasta de Comunicações ainda
não estava incorporada ao ministério, o orçamento teve um pico de
aproximadamente 8,6 bilhões de reais — corrigido pela inflação, o
equivalente a 10 bilhões de reais hoje.
Outrossim, importa destacar que tirar o dinheiro de ciência e
tecnologia não resolve o problema financeiro do País. Analogamente,
é como se alguém tivesse um problema financeiro em casa e decidisse
parar de tomar o remédio para o coração que custa um real, ao invés
de cortar as contas com viagem, restaurante ou compras
desnecessárias para o momento. Esta é a sensação e momento que
vive a ciência brasileira, infelizmente.
20
No dia 30 de Abril, o “Estadão” publicou na versão digital, uma
notícia com as falas do ministro da educação em relação às
universidades, professores, pesquisa e ciência no País13. Contudo, na
mesma semana, o “Estadão” mostrou que as universidades acusadas
de “balbúrdia” pelo atual governo tiveram melhora significativa no
principal ranking universitário internacional, o Times Higher Education
(THE).
Conforme o documento “Pesquisa no Brasil: um relatório para a
CAPES da Clarivate Analytics14” (tradução nossa), o Brasil produz
trabalhos muito citados e conseguiu bons índices no top 1% do mundo.
the average citation impact we can assess the extent to which Brazilian researchers have
published very high-impact research. This is done by analyzing the percentage of Brazilian
papers in the world’s top 1% and top 10% of most highly-cited papers”.
“Remarkably, between 2011 and 2016 the percentage of Brazilian papers in the world’s
top 1% of most highly-cited papers has increased rapidly to reach the world average
(Figure 4). In absolute terms Brazil’s output of papers that exceed this threshold has
more than doubled from 206 in 2011 to 483 in 2016. Over the same period Brazilian papers
in the top 10% has only shown modest increases, roughly proportional to the increase in
the total number of Brazilian papers published (Figure 5)”.
21
conhecimento por parte do atual governo quando este se refere às
pesquisas e produções realizadas no País e a importância das mesmas
em escala mundial.
22
áreas do conhecimento, correspondendo à 13ª posição na produção
científica global, num total de mais de 190 países.
Para o presidente da Academia Brasileira de Ciência, Luiz
Davidovich, físico e professor da UFRJ, “Mais de 95% das publicações
referem-se às universidades públicas, federais e estaduais. O artigo
lista as 20 universidades que mais publicam (5 estaduais e 15 federais),
das quais 5 estão na região Sul, 11 na região Sudeste, 2 na região
Nordeste e 2 na Centro-Oeste16”. Além disso, para o Coordenador do
projeto Métricas, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp), o professor Jacques Marcovich, ex-reitor da USP
(1997-2001), das 20 universidades que mais publicam no Brasil, não há
nenhuma privada17, contrapondo, justamente, a fala do presidente de
que há pouca produção nas universidades públicas e pesquisas “boas”
em instituições privadas.
Nessa direção, podemos considerar que as razões apresentadas
pelo ministro para os cortes na pasta da educação, além de não
corresponderem à veracidade dos fatos, como vimos no tocante ao
desempenho acadêmico, não se qualificam como razões legítimas. A
despeito de não ter o ministro detalhado exatamente os eventos que
interpreta como “balbúrdia” e “ridículos”, temos duas indicações: as
menções a eventos com presença de “sem-terras” e de “gente
pelada”.
Por extrapolação, digamos, o ministro se referia a eventos com
uma natureza de reflexão e expressão política, num caso, e artística,
no outro. Se essa interpretação é razoável, então de duas uma: ou o
ministro só quer eliminar da universidade o seu caráter de espaço do
pensamento crítico, da experimentação livre – das ciências às artes, da
mecatrônica à antropologia -, reduzindo-a à função escolar de mero
local de transmissão de informação, ou então ele se arvora a função de
supervisor ideológico.
O que a ciência brasileira precisa não é de uma imposição de
pensamento único, nem de ódio, nem de perseguição e difamações
das mais diferentes origens. O que a ciência brasileira precisa é de
investimento público e de possibilidades de avanço, aperfeiçoamento
por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/.
23
e aprofundamento de pesquisas, inclusive para difundir a diversidade
e a pluralidade de pensamentos, para o bem da universidade, da
ciência, da tecnologia e da sociedade como um todo.
24
indissociáveis: a pesquisa, o ensino e a extensão. Pelo fato do presente
escrito focar nas críticas endereçados à dimensão da pesquisa, iremos
dar ênfase apenas a essa dimensão, tomando-a como aspecto
fundamental para as sociedades democráticas e republicanas.
Um professor de universidade, envolvido com as atividades de
pesquisa é, necessariamente, um especialista e atualizado em sua área
de conhecimento/formação, por isso, está constantemente sendo
avaliado e questionado pelos seus pares da comunidade científica em
que está inserido. Não obstante, podemos afirmar que a própria
validação do conhecimento científico depende de uma certificação no
âmbito da comunidade científica. Ou seja, não se produz qualquer
coisa e de qualquer jeito nas universidades, tal como supõe o atual
governo.
Sendo a universidade um espaço de constituição e construção do
pensamento livre, reflexivo e crítico, ela tem o dever e o desafio de
contextualizar e indagar-se sobre os rumos do desenvolvimento
científico e tecnológico, a fim de evitar, como lembra Santos (2003),
de reforçar as visões parciais, unilaterais e comprometedoras de um
diagnóstico mais acurado.
Nesse sentido, diante dos inúmeros ataques provenientes do
atual governo, a passagem de Dalbosco e Fávero (2017) elucida as
consequências para o âmbito universitário, a saber, a perda da
autonomia e da liberdade se faz sentir na forma como está sendo
(re)organizada a racionalidade instrumental da universidade, a saber,
a implementação de uma estrutura vertical e centralizada de
administração, substituindo as estruturas democráticas de gestão; o
fim da estabilidade dos docentes e demais funcionários; o
estabelecimento de mecanismos de controle e de avaliação da
produtividade; a eliminação ou reorganização das atividades que não
agregam valor econômico, ou imediato; a desqualificação e posterior
eliminação das áreas de conhecimento que não estão alinhas às
demandas do mercado; a progressiva eliminação da liberdade de
produção acadêmica e da liberdade de investigação; o direcionamento
da pesquisa para as demandas de interesse das empresas e do
mercado; o enxugamento e flexibilização dos currículos de acordo
com as exigências da clientela; enfim, a transformação da educação
superior em um negócio e consequente mercantilização das
universidades.
25
Ademais,
26
Desse modo, a pesquisa é um conjunto de ações, propostas para
encontrar a solução de um ou mais problemas. A pesquisa se realiza
quando temos um problema e não temos informações suficientes para
solucioná-lo de imediato. Na esteira do pensamento freireano, “[...]
pesquiso para constatar, contatando intervenho, intervindo educo e
me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e
comunicar ou anunciar a novidade” (FREIRE, 1999, p. 32).
É por meio da pesquisa que professores e pesquisadores
produzem referenciais de objetividade para o mundo humano, é por
meio dela que se conserva a preocupação com a validade e a
veracidade, com o rigor e a consistência metodológica. É a pesquisa
que possibilita validar os conhecimentos e submetê-los à avaliações e
questionamentos de determinada comunidade científica. Da
universidade espera-se, mormente, que consiga formar profissionais e
pesquisadores com sólidos valores éticos e de cidadania e que gere
conhecimento – ciência, tecnologia, humanidades e artes – voltado à
solução de problemas relevantes para a humanidade e para a
sociedade que a financia.
As universidades de pesquisa possuem um papel crucial na
sociedade, elas não só fornecem um ensino de qualidade e formam
bons profissionais, mas principalmente por atuarem como locais de
elaboração do pensamento e de conhecimento, impulsionando o
desenvolvimento científico, tecnológico e intelectual de qualquer país.
Lembramos que toda pesquisa realizada nas universidades se
torna um produto. Esse mesmo produto vai ser destinado para a
sociedade de maneiras diversas, ou seja, pode ser na forma de recursos
humanos, de trabalhos científicos, de tecnologias, de inovações, de
serviços. Contudo, tudo provém de uma dimensão: a pesquisa. Não
obstante, nem todos os produtos da pesquisa são entregues
imediatamente, alguns duram décadas para estarem prontos e
disponíveis de forma segura e ética para toda a sociedade usufruir.
Importa dizer que no Jornal da USP há uma reportagem completa
sobre a pesquisa no Brasil, publicada em 5 de abril de 2019. O título da
reportagem é: “Fábricas de conhecimento: o que são, como
funcionam e para que servem as universidades públicas de pesquisa”.
Nela são apresentados dados, informações relevantes, pesquisas
realizadas e elementos essenciais para se compreender o que
27
realmente acontece em uma universidade de pesquisa18. Dessa forma,
o conteúdo do jornal contradiz todas as afirmações feitas pelo atual
governo e expõe a veracidade sobre a pesquisa no Brasil.
Não existem países socialmente equitativos sem uma educação
republicana, laica, universal e de qualidade. O Brasil, apesar de todas
as vicissitudes, conseguiu, a duras penas, construir um sistema público
de ensino superior. Algumas de suas universidades estão entre as
melhores do mundo. Foram elas que ajudaram, à sua maneira, a
superar as amarras do subdesenvolvimento, da tirania e a
discriminação social presente na sua história. Indagamos: Que
vantagem o atual governo enxerga ao tentar destruí-la (a
universidade)?
Portanto, é a pesquisa que permite o alargamento de horizontes
compreensivos e interpretativos, afinal, é isso que faz uma
universidade ser universidade, e não outra coisa, deve ser por este fato
que o atual governo a despreza tanto. Ademais, por uma questão de
dever e de ofício, os acusadores dos professores, das universidades e
da pesquisa, se estiverem realmente preocupados com a educação e
com o problema da suposta balbúrdia e da irrelevância e falta de
pesquisa “de ponta”, poderiam começar tomando, com retidão,
partido pela educação, pela universidade, pelos seus professores e
pela pesquisa, para o bem de todos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
28
Por este motivo, o pensamento crítico, para o atual governo, é
insuportável, – assim como lhe são insuportáveis o espírito
republicano e as práticas democráticas de governo. É preciso
concordar que os gestos de força e de perversidade do governo são os
gestos que trazem à luz a absoluta incompetência para compreender
e manter o que define o ambiente universitário e a própria política
democrática ao menos desde a modernidade, ou seja, a liberdade de
pensamento, de pesquisa e de crítica.
A razão do governo encontrará nas universidades brasileiras uma
profecia autorrealizável, as instituições brasileiras foram forjadas
pelos exemplos de resistência e defesa das liberdades democráticas
durante as décadas mais sombrias da ditadura civil-militar brasileira, e
continuarão resistindo contra as investidas do autoritarismo. Nenhum
país se desenvolveu sem autonomia científica. Não há país sem ciência!
REFERÊNCIAS
29
SANTOS, C. R. A. de. Apresentação. In: APPEL, E. (Org.). A universidade
numa encruzilhada: seminário sobre universidade. Brasília: UNESCO,
2003, p. 9-20.
SEVERINO, António Joaquim. Pesquisa, pós-graduação e universidade.
Revista da Faculdade Salesiana, Lorena, v. 24, n. 34, p. 60-68, 1996.
TSALLIS, Constantino. Por que pesquisa na Universidade? Ciência e
Cultura, v. 37, n. 4, p. 570-572, 1985.
30
A FORMAÇÃO TEÓRICA-EPISTEMOLÓGICA NA PESQUISA
EDUCACIONAL: DESAFIOS1
Odair Neitzel2
1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentado na 1ª Mostra de Pesquisa da Pós-
Graduação e Mostra de Extensão em Educação realizado nos dias 19 à 21 de agosto de
2015.
2 Doutor em Educação (Linha de Fundamentos da Educação) na UPF; Docente na UFFS
31
qualificação da pesquisa educacional tornou-se uma exigência que se
assenta entre outras questões, sob a formação teórico-epistemológica
do pesquisador e seu preparo para lidar com a pesquisa no contexto
de complexificação do fenômeno educacional.
As dificuldades presentes nesta temática se estendem à
discussão e à defesa de um campo próprio da investigação
educacional, dissolvida em uma considerável quantidade de teorias,
abordagens e discursos sobre aquilo que é próprio à educação(GATTI,
2006, p. 14). Soma-se a estas incertezas a discussão sobre o estatuto
da Pedagogia como área de conhecimento da educação. Ou seja, as
dificuldades de um campo científico próprio da investigação
educacional, de algum modo está integrada com a problemática da
identidade estatutária da Pedagogia, que por sua vez, liga-se a
precariedade da formação teórica-epistemológica de seus pares, além
das dificuldades de compreensão do fenômeno educacional no
contexto da complexidade e pluralidade da sociedade
contemporânea.
Urge assim o enfrentamento e a problematização dos processos
e modelos formativos daqueles que se pretendem como
pesquisadores em educação, que insistimos ter sua referência na
pessoa do pedagogo. Da mesma forma é preciso enfrentar os
discursos empunhados nos espaços educacionais que relativizam a
formação qualificada do pesquisador e profissional da educação. A
questão da baixa densidade teórica-epistemológica na pesquisa
educacional segundo Charlot, diz respeito justamente a “passar do Eu
empírico ao Eu epistêmico, ou seja, do indivíduo preso no movimento
da vida cotidiana ao indivíduo intelectualmente mobilizado, atento ao
saber” (2006, p. 11).
Para a nosso propósito, de defesa de uma formação teórica-
epistemológica qualificada do pesquisador em educação,
encontramos subsídios em Gatti e sua definição de Pedagogia como “a
educação que pensa a si mesma, ou seja, que fala para si, se avalia e se
imagina”, e portanto, é “o espaço das grandes reflexões em educação,
das teorizações integrantes”. Já a Didática é entendida por Gatti como
“ação qualificada do ato de educar, vivências e reflexões de, sobre e
para as relações educativas intencionais, um campo de conhecimento
sobre o ensino” (2006, p. 16).
32
Esta definição de Gatti nos leva a duas constatações: em primeiro
lugar, de que é preciso mudar o modo com concebemos a Pedagogia.
Esta não pode ser reduzida a um curso de formação de profissionais da
educação. Em segundo lugar, não sendo a Pedagogia um didatismo,
sendo a ciência da investigação e teorização do fenômeno
educacional, a Pedagogia exige do seu pesquisador – o pedagogo -
uma formação teórica consistente. O pedagogo, entre outras coisas,
deve assumir uma postura investigativa. Postura que, como defende
Charlot, exige qualificação do pesquisador em seu ofício: “Um discurso
científico sobre a educação não deve ser um discurso de opinião; ele
não é científico se não controla seus conceitos e não se apoia em
dados. A pesquisa em educação (ou sobre a educação) produz um
saber, rigoroso como o é todo saber científico” (2006, p. 10).
Defender um campo de investigação próprio para a educação é
pensar em uma ciência da educação, e no nosso caso, é defender que
a Pedagogia deva de alguma forma assumir esse estatuto. Isso não
significa seu isolamento ou fechamento em si mesma. Em primeiro
lugar, porque a defesa da Pedagogia como ciência da educação tem a
pretensão de lhe conferir o estatuto, a autoridade da ciência com
propriedade teórico-epistemológica para se manifestar sobre o tema
da educação.
Em segundo lugar, porque a Pedagogia como outras áreas do
saber, dialoga e é atravessada pelos saberes de outras ciências de
conhecimento, não sendo somente o caso da Pedagogia, mas da
maioria das ciências humanas, como a sociologia por exemplo, que se
apoia em pesquisas da antropologia, da psicologia, da matemática, da
informática entre outras3. Porém, precisa constituir uma
epistemologia própria, delimitar seu campo, que ao nosso ver, é um
dos problemas de maior urgência para esta área de saber.
Admitir o problema de identidade estatutária da Pedagogia é
também de alguma forma constatar o problema do campo de
investigação da pesquisa educacional. Isso significa entre outras
coisas, que a Pedagogia carece de resolver um problema a princípio
interno e fazer frente a perspectiva que levou a mesma a se entender
33
de modo reduzido, como curso de formação de professores ou
confundida como didatismo4.
A definição de um campo epistêmico científico próprio para a
educação implica, portanto, em pensar a Pedagogia para além de um
curso de formação ou um didatismo, mas como ciência da educação,
um campo da pesquisa educacional, o que significa por sua vez, pensar
a Pedagogia para além dos problemas da ação pedagógica, pensar na
qualificação do pedagogo como o cientista do fenômeno educacional
em sentido amplo.
4 Essa questão somente citada aqui, carece de um aprofundamento maior. Isso por
que o problema é: sendo a Pedagogia um curso que pretende formar gestores
educacionais, como poderia a Pedagogia por exemplo, orientar e gerir cursos de
formação de áreas diversas? Será que o pedagogo está habilitado de modo tão
abrangente e profundo capaz de ditar os pressupostos formativos das diversas áreas
de formação profissional? O curso de Pedagogia como está estruturado, seus
entendimentos sobre processos formativos e pedagógicos, pode ser generalizado a
outros processos de formação? Possui base teórica para compreender os processos
sociais, éticos, políticos e culturais presentes nestes espaços?
5 Para um compreensão maior da temática da complexidade e pluralidade das
34
A pesquisa educacional neste contexto, precisa estar atenta para
não ser tragadas e submergir aos diversos discursos e ideologias que
buscam tomar a educação como um instrumento de seus interesses. A
pesquisa educacional é desafiada a identificar com vigilância
epistêmica, sem querer dizer verdades últimas, os princípios e
fundamentos que possam nortear os processos formativos neste
contexto social. Precisa insistir em buscar princípios norteadores
generalizáveis sem abrir mão de raciocinar criticamente.
Se tratando de sociedades múltiplas e complexas, é preciso
reconhecer que esta é marcada pela individualidade exacerbada, pela
intoxicação informacional, que entre outras coisas, implica no
abandono do sujeito a si mesmo. A falta de aportes seguros para o
sujeito se pensar, a crise de legitimidade das instituições tradicionais
provocada principalmente ideologia neoliberal e a defesa de uma
sociedade do consumo, tem levado as pessoas a se abrigar sob
posturas neoconservadoras e fundamentalistas. Essa conjuntura traz
riscos e inseguranças para tudo que se relaciona aos processos
formativos e educacionais. Assim, é preciso redobrar a atenção e a
vigilância ao buscar compreender e estabelecer nortes para pensar
educação, evitando assumir razões ideológicas que colocam em risco
os direitos humanos e a luta por uma sociedade democrática, justa e
pacífica.
Diante destas dificuldades e problemáticas que incidem
diretamente na investigação educacional, há de se reconhecer o
momento positivo de reflexão e reconstrução. Exige, porém, olhar
com profundidade teórica e epistemológica para o objeto de
investigação, no caso da pesquisa educacional, para o fenômeno
educativo e formativo em suas diversas instâncias. Isso significa entre
outras coisas, a necessidade de revisitar atentamente as concepções
de ciência e os modelos investigativos em que se apoiam as pesquisas
educacionais.
Com isso acreditamos ter evidenciado como a pesquisa se apoia
em uma base teórica-epistemológica para o enfrentamento problemas
e questões que são objetos da investigação educacional. Insiste
Dalbosco(2014) de que a pesquisa educacional é afetada justamente
por uma fragilidade epistêmica ou por uma falta de densidade teórica.
Entre as possíveis razões para tal estão a falta de uma tradição
epistemológica própria na investigação. A ciência da educação,
35
basicamente sobreviveu se apropriando da investigação de áreas
correlacionadas, que investigam a educação sob a perspectiva
sociológica, psicológica, etc. A ciência da educação, que insisto em
apontar como Pedagogia, toma emprestada de outras ciências os
fundamentos epistêmicos de sua investigação. Ou seja, a educação
carece de uma ciência da educação ativa e com propriedade, para
tomar para si, a responsabilidade de dizer os fundamentos da
educação.
Essas declarações acima, sobre as transformação sociais
contemporâneas, sobre o estatuto da Pedagogia e sobre a formação
teórico-epistemológica do pedagogo, não se apresentam sem uma
dose de confusão e embaraço como demonstra Charlot (2006, p. 7):
Quando imaginamos um pedagogo fazendo pesquisa educacional, é
comum pensar em alguém que pesquisa sobre como “cuidar de
crianças”, como se as ciências da educação se preocupassem
exclusivamente com uma espécie de treinamento de educadores para
a práxis pedagógica. Provavelmente muitos de nós já se sentiu
incomodado com esse reducionismo. A Pedagogia precisa tomar para
si a investigação do fenômeno educacional, não somente alguns de
seus fragmentos. Essa é mais uma das razões que leva pesquisadores
da área da educação como Charlot (2006, p. 8) a defender um modelo
epistêmico próprio para a educação.
Ainda para além das dificuldades macros ligadas a um contexto
mais geral e social, há outras dificuldades intrínsecas ao campo de
atuação do profissional da educação. Um primeiro, como já
sinalizamos acima, está no fato dos (1) programas de pesquisa em
educação serem permeadas por investigadores de outras áreas de
formação específica. Assim, “As ciências da Educação possuem uma
realidade institucional, administrativa, organizacional, mas não têm
existência epistemológica específica” (CHARLOT, 2006, p. 8). Como a
pesquisa tem um de seus pilares no processo de constituição e
formação do investigador, a dificuldade está em não ter transitado
pelas discussões e investigações que dizem respeito especificamente
a educação6.
6 É preciso
dizer que o contrário também é válido. De certo modo, a Pedagogia, circula
em outras áreas de saber e pretende orientar os processos formativos a partir de uma
concepção reduzida de pedagogia. Isso traz sério problema e conflitos
epistemológicos para a própria Pedagogia, que se vê rejeitada e relativizada pela
36
Um segundo fator, conectado ao primeiro, (2) está no fato de,
sendo a educação permeada por várias áreas de conhecimento, a
pesquisa tender a ser vista sob um outro prisma que não é
especificamente da educação. São filósofos, sociólogos entre outros
que dirigem seu olhar investigativo para a educação. Geralmente são
primeiro filósofos ou sociólogos e depois se ocupam da educação. Ora,
o resultado disso segundo Charlot, é que a educação se apresenta
como “uma área na qual circulam, ao mesmo tempo, conhecimentos,
práticas e políticas” diversas, constituindo-se como, “uma disciplina
epistemologicamente fraca: mal definida, de fronteiras tênues, de
conceitos fluidos” (2006, p. 9).
Isso nos leva a um terceiro fator (3), que consiste na defesa no
espaço acadêmico, de uma “ciência da educação” como viemos
empregando neste ensaio7, e pensar a educação e a sua investigação a
partir de uma especificidade epistemológica mais forte. Além das
condições para pensar uma epistemologia forte em educação, que a
Pedagogia assuma para si a tarefa de pensar o fenômeno educacional
legada historicamente a outras áreas de saber.
Isso, porém, não significa negar as contribuições das outras áreas de
saber, nem o seu isolamento. Mas significa que a Pedagogia tome uma
posição ativa. É assumir o caminho em que as contribuições de outras
áreas de saber contribuam para a investigação na educação a partir de um
capo epistêmico próprio. É pensar a educação, considerando que ela não
se reduz a instrução, que é um fenômeno que é condição do humano, e,
portanto, é um fenômeno primordial, essencial e intrínseco a evolução
cultural da vida humana. Ou seja, reconhecer que não há história humana
sem educação das novas gerações (BOTTER, 2012).
Isso demonstra que as dificuldades inerentes a um campo de
pesquisa em educação possuem fatores intrínsecos e extrínsecos, que
37
tem razões sociais, históricas, epistêmicas entre outras. Constatação
essa que tem implicações e se estende para muito além do que possa
parecer. Sua dificuldade, que se caracteriza como relativismo, como
falta de consideração com a própria educação, pode ser desastrosa na
definição de políticas públicas, tecnológicas e científicas para a
educação de modo geral.
38
formativa do pesquisador. Torna-se importante que o pesquisador
transite por leituras em outros campos de investigação por exemplo.
A leitura de diferentes áreas se põem como condição para a mesma.
Há sempre o risco de recair em uma endogenia, ou seja, uma busca
“intradisciplinar” para a definição termos.
Isso tudo nos remete novamente a preocupação com a formação
teórico-epistemológica do pesquisador em educação. As diversas
abordagens e as lacunas apontadas na pesquisa educacional e
apresentadas acima, justificam o esforço em trazer para uma ciência
da educação a responsabilidade de investigar o fenômeno
investigativo.
Se tratando da pesquisa educacional, fica evidente a dificuldades
implícitas no problema da formação teórico-epistemológica dos
pesquisadores. É preciso considerar que a pesquisa qualitativa não parte
de hipóteses fechadas, que apontam a priori o resultado, o que significa
que a formação do pesquisador é fundamental à medida que necessita da
habilidade teórica que antecede a própria investigação (como veremos
mais adiante com fundamentação em Popper), para quando imerso no
contexto da pesquisa, reconheça os saberes, reconstrua questões e
variáveis, e desenvolva com propriedade sua investigação.
A necessidade de uma constituição formativa teórico-
epistemológica do pesquisador, se apresenta como forte
condicionante, por exemplo, em estratégias de investigação da
observação participante e da entrevista em profundidade. No caso a
entrevista em profundidade por exemplo, por ser uma abordagem
aberta, não estruturada, não-diretiva, carece da capacidade e a
perspicácia para o controle da investigação por seu caráter
extremamente dinâmica. Pela grande flexibilidade de respostas em
uma pesquisa qualitativa, o sucesso da pesquisa depende do
investigador, que acaba se tornando o instrumento central da
investigação.
39
pessoas que se ocupam com o fenômeno educacional. (1) Um primeiro
discurso é o que nega o interesse ou a cientificidade da educação. (a)
Dentro deste discurso, temos o discurso espontâneo, utilizado por
educadores que pensam que sabem por terem alguma experiência
com a educação de seus próprios filhos por exemplo. Esquecem que
“Um discurso científico sobre a educação não deve ser um discurso de
opinião; ele não é científico se não controla seus conceitos e não se
apoia em dados” (CHARLOT, 2006, p. 10). A pesquisa não se dá de
modo espontâneo, precisa seguir métodos, regras.
Pertencente ainda a esse primeiro tipo de discurso, o (b)discurso
do prático, muito conhecido na área da educação, opõem prática e
teoria, afirmando que a prática apresenta resultados e o teórico só
pode especular. Isso é caracterizado por Charlot como uma
pseudoposição. Mais adequado seria neste caso, reconhecer que a
teoria tem interpelações com a prática e vice-versa. Neste discurso
afirma-se que o teórico não tem noção das condições e da realidade
do chão da sala de aula. Defende Charlot que o professor precisa de
qualidade formativa e não tão somente de uma espécie de santidade
ou militância.
Ainda pertencendo ao primeiro tipo de discurso está o (c)discurso
dos antipedagogos, que defendem que não há a necessidade de um
saber pedagógico, bastando apresentar o conhecimento e pronto.
Acusam a Pedagogia de afastar a juventude do esforço e do saber e
seu efeito é bastante elitista. O equívoco neste discurso está em
pensar que simplesmente apresentar o saber põem a inteligência em
movimento, não reconhecendo assim um dos maiores problemas
pedagógicos - a mobilização intelectual do aluno. O primeiro discurso,
portanto, nega a cientificidade da ação pedagógica e a necessidade da
teoria para a prática pedagógica.
Um segundo tipo de discurso que perpassa a educação é o (2)
discurso pedagógico que confunde educação com ciências da
educação. Há várias teorias pedagógicas, inspiradas em um conjunto
de pressupostos filosóficos e em diversas práticas. Mas o que perpassa
todas elas são princípios que se ligam aos fins da existência humana.
Assim, a Pedagogia essencialmente seria segundo Charlot (2006, p. 12),
a conexão dos diversos discursos e não os diversos modelos
pedagógicos dela decorrentes.
40
Em um terceiro grupo estão os (3) discursos políticos sobre a
educação. O discurso militante, por exemplo, pretende explicar o micro
pelo macro e vice-versa. Esse tipo de discurso se pautam em
fundamentos como os da sociologia da reprodução, que entre outras
coisas afirma que os problemas da educação se ligam a ascensão do
neoliberalismo, mercantilização da educação e o processo de
globalização. A violência na escola estaria ligada a pobreza por
exemplo (A violência implica na educação segundo Charlot, mas não é
regra geral estar ligada a pobreza, pois há escolas em locais pobres
com bons resultados). Tudo isso não pretende desconsiderar as
contribuições destes discursos, porém, um campo de investigação se
constrói com “apostas epistemológicas” afirma Charlot (2006).
41
de entrar em conflito com observações possíveis ou concebíveis".
(Ibid, p. 68).
Mas o que nos interessa nas considerações de Popper e que nos
auxiliam a entender a necessidade de uma formação teórico-
epistemológica do pesquisador, é o fato de Popper defender que há
sempre uma hipótese que antecede a observação e a pesquisa em si.
No caso do ovo e da galinha, o ovo é anterior. Se esse argumento for
feito em regresso, voltaremos a teorias e mitos, cada vez mais
primitivos, chegando finalmente a “expectativas inconscientes e
inatas" (Ibid, p. 77).
Segundo Popper, defender "ideias inatas " é algo absurdo.
Porém, não é absurdo defender que os organismos possuem uma
antecipação de "reações ou respostas inatas", que se antecedem aos
acontecimentos. Encontramos uma argumentação semelhante em
MEAD(1973), quando este apresenta a tese da passagem da interação
por gestos para a interação simbólica9. O que queremos mostrar com
Popper, é que os saberes são incorporados pela cultura humana e que
por sua vez, são internalizados pelos seus membros. Em outras
palavras, há sempre uma teoria que orienta o pesquisador e que
antecede um projeto de pesquisa10.
Isso mostra de certo modo, que ao observar, há uma expectativa,
no caso do pesquisador, um saber ou uma teoria. Vale salientar ainda,
que a ciência surge com os mitos e a crítica aos mesmos, portanto, não
da observação e da invenção dos mesmos11. Assim, de acordo com
Popper, e com base nas afirmações de Charlot (2006, p. 17), as ciências
progridem a partir de seus pontos de partida ou terias que as
antecedem. A pesquisa sempre é antecipada por uma base teórica-
epistemológica, no caso da pesquisa qualitativa, está na constituição
formativa do pesquisador. O que precisamos na pesquisa educacional
é que esta tenha uma base epistemológica e teórica forte e
42
pesquisadores bem formados, pois esta base será sua antecipação
investigativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS...
REFERÊNCIAS
43
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políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber.
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na perspectiva hermenêutica. Caderno de Pesquisa v. 44, n. 154, p.
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142820>.
ESTEBAN, M. P. Pesquisa qualitativa em Educação: fundamentos e
tradições. Porto Alegre: AMGH, 2010. .
FLICKINGER, Hans-georg. A educação diante da complexidade da
sociedade contemporânea. Espaço Pedagógico v. 21, n. 1, p. 11–22,
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GATTI, Bernardete Angelina. A construção metodológica da pesquisa
em educação: desafios. RBPAE v. 28, n. 1, p. 13–34, 2006.
GOERGEN, Pedro. Formação humana e sociedades plurais. Espaço
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razão funcionalista. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. II v. 978-85-7827-461-0.
HOFMANN, Franz; EBERT, Berthold. Johann Friedrich Herbart:
ausgewählte Schriften zur Pädagogik. Berlin: Volk und Wissen
Volkseigener Verlag, 1976.
MEAD, Georg Herbert. Espíritu, persona y sociedad: desde el punto de
vista del conductismo social. Barcelona: Paidós, 1973.
POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações. Brasília: UNB, 2008. 63-94
p.
44
DA ÉTICA DO DISCURSO À ÉTICA DA RAZÃO CORDIAL: DUAS
AMPLIAÇÕES DA ÉTICA KANTIANA1
INTRODUÇÃO
1 Parte do conteúdo deste artigo foi apresentado por Francisco Valente Fumo como
dissertação para obtenção do grau acadêmico de Mestre em Educação/Ensino de
Filosofia na Universidade Pedagógica de Maputo no ano 2014.
2 Doutorando em Migrações Internacionais e Cooperação ao Desenvolvimento (IUEM
45
mínima de Kant. As diferenças estão no método filosófico empregue
e, em consequência, do tipo de fundamentação a que chegam. Estes
constituem os aspectos que apresentaremos em seguida.
A Ética do Discurso ou comunicativa é um fenómeno
especificamente alemão, do fim dos anos 60 e dos anos 70. Ela
constitui o que nós, no contexto desta dissertação, concebemos como
primeira ampliação da ética kantiana. Habermas defende uma ética
cognitivista, universalista e deontológica; na qual questões morais
devem ser decididas através de um consenso, na medida em que os
princípios morais não têm conteúdos, mas sim através da participação
nos discursos públicos, cria-se a possibilidade de avaliação dos
conteúdos morais provenientes do mundo da vida.
Adela Cortina, nas suas investigações na Universidade de Munich,
entrou em contacto com racionalismo crítico, o pragmatismo e a ética
marxista e, mais concretamente, com a filosofia de Jurgen Habermas
e Karl-Otto Apel. Ela tomou o conceito de Ética do Discurso, para fazê-
lo centro das suas próprias teorias. Ela é a responsável pela
disseminação da Ética do Discurso no mundo hispânico; no entanto,
ela não só a tornou conhecida, como também a ampliou para uma ética
cordial.
Por isso, uma comparação entre a Ética do Discurso e a Ética da
Razão Cordial é importante, já que as duas têm em vista a dar uma
resposta à maneira como as sociedades pluralistas podem conviver de
forma harmoniosa.
Entretanto, Cortina descobre na Ética do Discurso algumas
lacunas; pois na visão da autora, aquela ética não explora o vínculo
comunicativo na sua globalidade. Desta feita, Adela Cortina faz uma
segunda ampliação da ética kantiana, tendo como base a Ética do
Discurso. Sendo que:
“A degradação da sociedade, dos costumes, do indivíduo
contemporâneo da época do consumo de massa”,4 o relativismo
universal, a decadência dos valores, o hedonismo sem limites, o
pluralismo a que estão sujeitas várias sociedades postulam uma
urgência na reflexão ética. No entanto, este mundo está marcado
pelas morais religiosas, em que a fundamentação da norma moral é
transcendente, dependente da fé e de morais tradicionais, onde o
46
conceito do bem não é compreendido numa perspectiva
verdadeiramente universal, a partir da perspectiva de todos os seres
humanos. Por isso, recorremos a Habermas e Adela Cortina para
fundamentar uma moral universal, considerando que os dois partem
da moral kantiana, defendemos que eles fazem ampliações a ética de
Kant.
O presente trabalho tem o seguinte problema de pesquisa: em
que medida é possível a fundamentação de uma ética universal nas
sociedades pluralistas nos tempos pós-modernos?
As perspectivas que apresentamos, como possibilidade de
fundamentação de uma ética universal nas sociedades pluralistas, são
a de Habermas com a Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial de
Adela Cortina. Habermas, para construir sua Ética do Discurso, parte
duma razão comunicativa; Adela Cortina amplia o conceito de Ética do
Discurso com a ética cordial, pois não basta a razão é necessária a
compaixão. Ora, a razão e o coração são universais. É a segunda
ampliação da ética kantiana.
O nosso objetivo é fazer uma análise comparativa entre a Ética do
Discurso (ética da razão comunicativa) de Jurgen Habermas e da ethica
cordis (ética da razão cordial) de Adela Cortina. A razão comunicativa
e a razão cordial situam-se no contexto da ampliação da razão
monológica kantiana, por um lado. Por outro, os dois modelos éticos
encontram a sua fundamentação no descobrimento ético da
intersubjectividade, exploram de modo particular o vínculo
comunicativo como portador duma dimensão ética. Os dois defendem
que, nas sociedades pluralistas, a acção comunicativa é importante na
busca do agir moral, visto que o vínculo comunicativo expressa o
reconhecimento recíproco. No entanto, Adela Cortina acha que este
vínculo carrega consigo, também, sentimentos sociais, a capacidade
de estimar valores e a compaixão, por isso é necessário ir além da
razão argumentativa, é necessária uma razão cordial.
Consideramos que esta vertente comunicativa, dialógica,
presente nas duas visões éticas, pode servir de base para a construção
de uma ética universal, na linha de Kant, própria para as sociedades
pluralistas, como é a moçambicana. Depois de apresentar e comparar
os autores, demonstraremos como as duas éticas constituem duas
ampliações da ética kantiana e a contribuição para as sociedades
multiculturais.
47
Habermas, influenciado pela guinada linguística do séc. XIX,
descobre que, nas sociedades multiculturais, a comunicação é o lugar
existencial de busca de convivência, reconhecimento e entendimento.
Habermas, fazendo um comentário à proposta de Tugendhat sobre
uma moral pós-convencional cognitiva, defende que:
48
racionalmente tudo o que foi destruído pela racionalidade
instrumental. Posto que coloca no centro as duas questões
fundamentais da moralidade, a justiça e a solidariedade.
Ao recorrer a acção comunicativa, baseando-se nas investigações
sobre o desenvolvimento do juízo moral, feitas por Kohlberg8,
Habermas defende que o entendimento, entre os participantes numa
argumentação, deriva da aprovação racionalmente motivada, que
obedece o princípio da universalidade. Assim, a Ética do Discurso é por
essência ética dos procedimentos, pois aponta apenas para os modos
de aprovação de uma norma dentro de uma comunidade de falantes.
Na segunda parte do texto, demonstramos que esta posição que
afirma que toda a humanidade está ligada por um vínculo
comunicativo é defendida também por Adela Cortina, que compartilha
com Habermas a Ética do Discurso, identificando esta com a ética
cívica. Adela Cortina, não negando o caminho da ética procedimental,
propõe que devemos actualizar os seus delineamentos numa ética que
não é já só da razão procedimental, senão da razão humana íntegra, a
razão cordial.9
Já a terceira abordagem, destina-se a comparar as duas
perspectivas éticas, a Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial. Num
primeiro momento, sublinhamos as semelhanças existentes, cientes
de que os dois autores, Habermas e Cortina, partem do vínculo
comunicativo. A similitude revela-se como primeira ampliação
kantiana. A segunda ampliação ocorre quando Adela Cortina distancia-
se da Ética do Discurso, e introduz a dimensão cordial para superar o
procedimentalismo de Habermas.
A metodologia, que seguimos neste trabalho, é
fundamentalmente de pesquisa bibliográfica, as obras que serviram-
nos de referências básicas foram “Consciência moral e agir
comunicativo” de Habermas e “Ética de le razón cordial, educar en la
Cuidadania en el siglo XXI” de Adela Cortina.
Além da interpretação e dissertação, foi necessária uma
metodologia correlacional, onde estabelecemos a relação em três
níveis, entre Habermas e Adela Cortina, e, entre estes dois e Kant.
49
A ÉTICA MÍNIMA COMO CONVERGÊNCIA ENTRE HABERMAS E ADELA
CORTINA: A PRIMEIRA AMPLIAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA
50
a referência ética da consciência moral solitária, reflexiva, para a
comunidade dos sujeitos de diálogo 13.
Esta razão comunicativa diz que o homem já não decide
individualmente se deve seguir certas normas morais, mas, antes,
entre num diálogo, e, consequentemente, numa comunidade de
interlocutores afectada pelas normas decidas dialogicamente o que
deve ser. Para compreendermos isto é necessário esboçarmos em
linhas gerais o que é a ética kantiana.
Deste modo, é evidente que a Ética do Discurso é uma ampliação
da Ética de Kant, porque vai mais além, tratando de superar os limites
monológicos implícitos nela, e procurar mediante o diálogo, o
intersubjectivamente justificável ou desempenhável, a
fundamentação da universalidade das normas correctas, e a
justificação que se dá às normas, é em todo caso transcendental, mas
sempre mediante uma situação ideal do diálogo.
O método transcendental filosófico, presente na Ética do
Discurso, pode aceder às entranhas da racionalidade humana e
descobrir nelas que não existe apenas uma racionalidade estratégica,
esta considera os demais interlocutores como meios para conseguir os
próprios fins e procura tirar um proveito próprio no diálogo (CORTINA,
1994), existe também uma racionalidade comunicativa, que sustenta
uma moral cívica dialógica.
Deste modo, com Habermas, descobrimos o carácter dialógico da
razão humana, que para descobrir a correcção das normas morais
precisa de entabular diálogo presidido por regras lógicas e por um
princípio ético procedimental, que preconiza que uma norma só é
válida se todos os interlocutores afectados por ela estão dispostos a
dar o seu consentimento através de um diálogo, celebrado em
condições de simetria.
O carácter monológico da razão prática kantiana é reformulado
pela pragmática-discursiva da Ética do Discurso. Posto que Kant
consubstancia a ideia de uma autonomia individual, que se submete a
uma norma que ele (Kant) mesmo estabeleceu, considerando uma
legislação interna.
51
Com Habermas, passamos do formalismo ético ao
procedimentalismo que supõe o passo do monólogo ao diálogo. O
sujeito já não chega de modo independente à descoberta de que
normas são correctas, senão que a sua decisão passa do
estabelecimento do diálogo com todos os sujeitos que serão afectados
pela norma posta em questão. Assim, Habermas, demonstra o carácter
dialógico da racionalidade humana. Esta ética é procedimental porque
se preocupa em trazer à luz as condições que fazem do diálogo um
discurso racional, que acha a verdade das proposições teóricas e a
correcção das normas práticas.
De Kant que perguntava como eu devo agir, passamos para
Habermas que pergunta como nós devemos agir, assim a ética passa,
com Habermas, a ter como referência, não já o indivíduo autónomo,
mas a colectividade de falantes. Para Kant, o homem precisa da lei
moral para fazer a ligação entre a vontade e a razão, para a vontade
não perfeitamente boa põe-se o dever. As acções são praticadas pelo
dever. Este dever é imposto por uma máxima universal “age só
segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal”, que torna a acção moral num sentido universal. A
este princípio objectivo, que é um mandamento para a razão chama-se
imperativo categórico. Ele não é limitado por nenhuma condição, é um
mandamento absoluto, por ser o princípio supremo da moralidade e
por ser independente da experiência e fundar-se na razão pura,
portanto, é a priori.
Na ética kantiana, a autonomia coloca-se ao nível do sujeito. Esta
significa escolher de modo a que, as máximas de agir estejam incluídas
no próprio querer, como lei universal. No entanto, esta autonomia está
ao nível do sujeito monológico, que procura conformar a sua vontade
com o dever interior universal, tal procedimento é modificado em
Habermas (1989), pois às normas chega-se por uma interacção na qual
os sujeitos afectados coordenam os seus planos de acção, o acordo
alcançado em cada caso mediando-se pelo reconhecimento
intersubjectivo das pretensões de validez. Por isso, o imperativo a
priori de Kant, na Ética do Discurso, que permite estabelecer a lei
moral, transforma-se no princípio de universalização: “só podem
reclamar validez as normas que encontram (ou possam encontrar) o
assentimento de todos os concernidos enquanto participantes num
discurso prático” (HABERMAS, 1989, p. 116).
52
As duas éticas possuem um carácter impessoal, este é dado na
ética kantiana pelo imperativo categórico, enquanto na ética de
Habermas é dado pelo princípio da universalidade. O carácter
linguístico estabelece a demarcação, pois enquanto na ética de Kant o
sujeito orienta a sua acção pelo dever contido no imperativo
categórico, Habermas advoga que falantes e ouvintes discursam, de
forma argumentativa, entre eles os respectivos planos através dos
processos de entendimento. Então, percebemos que a força já não
está no imperativo, nas forças ilocutórias das acções de fala; a razão
comunicativa é possibilidade da acção porque possui um conteúdo
normativo (1989a).
A Ética do Discurso é procedimental, no sentido em que não
oferece conteúdo normativo, mas, sim, coloca o discurso como critério
para testar a validade das normas, sem oferecer ou não oferecendo
modelos para a acção. Daí que Hamel, no seu artigo “Da ética kantiana
à ética habermasiana: implicações sociojurídicas da reconfiguração
discursiva do imperativo categórico”, distinguiu a razão prática da
razão comunicativa deste modo:
53
iguales, frente a un consenso contingente o forzado” (CORTINA, 2006,
p. 167-168).
A Ética Mínima, como Ética do Discurso, baseia-se na
intersubjectividade. Esta permite uma articulação entre as éticas dos
máximos para descobrir aquilo que é comum, o conjunto de valores e
princípios partilháveis. Assim, compreendida a Ética Mínima é
procedimental, pois indica a forma que os afectados devem seguir
para decidir sobre as normas. Por isso, podemos dizer que Adela
Cortina coincide com Habermas, ao considerar que “la racionalidad del
procedimiento ha de garantizar la validez de los resultados que se
obtienen con él” (CORTINA, 2006, p. 177).
Adela Cortina, depois do contacto com os iniciadores da Ética do
Discurso, Apel e Habermas, retoma a Ética do Discurso nas suas formas
elementares, embora depois apresente propostas de ampliação, como
veremos na próxima subsecção, e, influência de modo particular os
países da América Latina.
O ponto de partida de Cortina e de Habermas não é a consciência,
como nas éticas kantianas, mas a linguagem. Assume o giro linguístico
da filosofia e considera a linguagem na sua tríplice dimensão: - de
signo, semântica e pragmática -, finalmente considera a dimensão
pragmática desde uma situação ideal de diálogo. Para a decisão moral
possa ser racional, argumentável, não dogmática, o único
procedimento moralmente certo para alcançá-la será o diálogo, que
deve culminar em um consenso entre os envolvidos.
Podemos perceber a convergência entre Habermas e Cortina,
através desta concepção de Adela Cortina, onde se conjuga a ética
deontológica e a teleológica, o diálogo é que franqueia a distância
entre a felicidade e o dever, como confirma a assertiva a seguir:
54
porque se abstrai das questões de vida boa, limita-se ao que é obrigado
ou devido em termos de justiça das normas e formas de acção.
Brevemente, podemos dizer que Cortina sustenta com Apel e
Habermas a racionalidade do âmbito prático, o carácter
necessariamente universalista da ética, a diferenciação entre o justo e
o bom, a representação de um procedimento legitimador das normas
e a fundamentação das normas correntes mediante o diálogo (em
sentido transcendental forte com Apel).
É evidente que na Ética do Discurso, a razão humana não é uma
razão pura, dado que não é possível sustentar uma razão meramente
objectiva, imparcial e desinteressada, como se fosse possível uma
racionalidade alheia aos interesses humanos (CORTINA, 2001, p.63).
Adela Cortina (2001) é da opinião de que a razão humana se move
a partir dos interesses pessoais e colectivos, bem como a partir das
circunstâncias históricas, com as suas tradições, valores e costumes.
Não existe razão desinteressada. Aristóteles já havia indicado, desde a
Antiguidade, que a natureza humana é uma unidade entre inteligência
e desejo, que só pode ser descrita como inteligência desejosa.
Por isso, Adela Cortina explorou de modo fecundo o vínculo
comunicativo, deu atenção a alguns aspectos ignorados por Habermas
e Apel, não se limitou-se à dimensão racional deste vínculo, assumiu
que o coração é que pode falar melhor dos valores e das normas,
revestiu a Ética Mínima de uma dimensão cordial, distanciando-se
desse modo de Habermas. Cunhou uma nova racionalidade, a
racionalidade cordial, que além da lógica, considera os sentimentos.
Esta constituiu a divergência com Habermas e a segunda ampliação da
Ética de Kant. Demonstrar isso é o móbil da próxima subsecção.
“Yo soy totalmente kantiana y en los últimos tiempos he trabajado con Apel en el
ámbito de la ética del discurso. También es verdad que he tenido muy buena
amistad con José Luis Aranguren. Pero, dentro de la línea filosófica yo soy más
kantiana y partidaria de la ética del discurso que la línea de Aranguren” (Entrevista
55
conduzida por L. Hooft publicada no Suplemento do Diário La Capital de Mar del
Plata, 11/03/2001).
56
inicia um discurso, deve-se ter em conta as circunstâncias sociais,
históricas e culturais.
Para Adela Cortina, prescindir da dimensão valorativa e só apelar
à dimensão racional do homem, é tirar o cerne da moralidade e não é
suficiente para o indivíduo seguir um princípio. Ademais, assim, a ética,
fica circunscrita ao mundo das ideias porque se ignora os motivos da
acção, as virtudes. Então, na racionalidade comunicativa, deve-se
enxertar a dimensão volitiva, a cordialidade (a cordura), é preciso o
querer e a compaixão.
Por isso, podemos defender, com Victoria Camps14 (2010), que
não há razão prática sem sentimentos. A ética não pode prescindir da
parte afectiva ou emotiva do ser humano, porque uma das suas
funções é ordenar e organizar o mundo da afectividade e emoções. A
ética é uma inteligência emocional. Levar uma vida digna, conduzir-se
bem na vida, saber discernir, significa não só ter um intelecto afeito à
racionalidade, senão sentir emoções adequadas em cada caso.
Na vida em comum, nas sociedades pluralistas, é importante a
capacidade de argumentar segundo as normas e o reconhecimento
mútuo como interlocutores válidos, mas também é fundamental a
capacidade de estimar valores e de compadecer-se. Só a estima dos
valores e a compaixão revelam a injustiça com que os homens se
tratam uns aos outros, e fazem sentir as necessidades asseguradas
apenas pela gratuidade. Procedendo desta maneira, Cortina
desenvolve a dimensão cordial da comunicação, fazendo com que a
Ética do Discurso catapulte os limites da razão lógica, para a razão
cordial que engloba sentimentos, compaixão e estima.
Assim, a filósofa valenciana assegura não podermos fundar a
moral na pura razão, nenhum fim se imporá como obrigatório,
enquanto apenas proposto pela razão.
Transparece, no pensamento da Professora Cortina, aquela visão
de Bergson,
57
A intuição, compreendida como espécie de simpatia equipara-se
à compaixão. Deste modo, vemos que não basta, para a filósofa
valenciana, apelar a uma ética do dever, é necessário irmos à ética das
virtudes; aqui, a autora faz uma síntese fecunda entre o kantismo
(ética do dever) e o aristotelismo (ética da virtude). O agir humano
deve ser consoante o dever moral, considerando a intersubjectividade,
mas deve ter como fim a formação do carácter e a busca da virtude.
Cortina afasta-se do puro procedimentalismo, pois o diálogo
dever ter como referencial primordial os valores. A razão deste
posicionamento da filósofa espanhola é que “quien sepa mostrar de
algo que es un valor positivo no necesita después intentar argumentar
acerca de porqué hay que realizarlo: los valores llevan ya una fuerza
dinamizadora, en virtud de la cual nos incitan a realizarlos” (CORTINA,
2007, p. 143).
O ser humano além da dimensão racional, deverá ensinar-se a
degustar os valores e a estimá-los. Uma ética de atitudes deve cultivar
um conjunto de valores para incorporar um princípio ético, por isso,
uma ética de virtudes e atitudes ocupa-se dos modos adequados para
enfrentar a vida de acordo com princípios éticos. Daí que Adela Cortina
amplia o fundamento da cidadania (ética mínima, na vertente dialógica
de puros procedimentos) e desemboca na razão cordial, na qual a
virtude da prudência é substituída pela virtude da cordialidade que
integra por sua vez a inteligência, o sentimento e a coragem.
A Ética do Discurso, reformulada pela Professora Cortina, pode
contar também não só com um procedimento, senão também com
atitudes, disposições e virtudes, motivadas pela percepção de um
valor, com um ethos, em suma universalizável. Assim, podemos
integrar o teleologismo e deontologismo, pois a acção racional tende
a um fim, este télos faz com que a acção seja maximamente valiosa por
si mesma, e isso conduz ao deontologismo.
Adela Cortina explora os direitos humanos, já presentes na Ética
do Discurso, na sua perspectiva a fundamentação dos mesmos deve
ter em conta o âmbito ético e a sua promulgação nos códigos jurídicos
vigentes. Os direitos humanos são um tipo de exigências cuja
satisfação deve ser obrigada legalmente e portanto protegida pelos
organismos correspondentes, e, o respeito por estes direitos
humanos, é a condição de possibilidade para se poder falar de homens
no verdadeiro sentido.
58
Enfatiza o carácter autónomo e autobiográfico do sujeito, sem
deixar de reconhecer o sujeito interlocutor da Ética do Discurso.
Portanto, diante da supremacia da consciência kantiana, da
supremacia da racionalidade transcendental apeliana e da supremacia
da pragmática universal habermasiana na moralidade do agir humano,
ela introduz a cordialidade e leva a Ética do Discurso que ora estava
presa à racionalidade formal até à racionalidade emotiva pelo facto de
a dignidade do ser humano situar-se para além do determinável. Trata-
se de uma conciliação entre a razão e a vontade que se traduz na
humanização da racionalidade.
59
Recorrer ao vínculo comunicativo permite fortalecer os laços
fragmentados (recordemos que vivemos em sociedades liquidas, onde
as relações são fragmentadas), e resgatar o reconhecimento
intersubjectivo de todos os membros da sociedade, tendo em conta
que são interlocutores válidos na busca da aprovação das normas
procedentes do mundo e da vida, pelos interlocutores capazes de
argumentar racionalmente.
Habermas e Cortina defendem a necessidade de uma ética
universal que não exclui nenhuma visão sobre o bem, nem as morais
religiosas que têm um fundamento transcendental, isso só é possível
através de uma ética baseada na comunicação. Apesar desses valores
universais, não podemos menosprezar a influência das religiões e da
moral tradicional na vida das pessoas. Hoje, depois da quebra da
unidade religiosa, é necessário, através do diálogo intersubjectivo,
buscar os princípios e valores que permitem a convivência. Em
Moçambique, é necessário um diálogo intersubjectivo que possa
tornar possível a convivência entre as diversas religiões existentes,
entre as pessoas que vieram das diferentes partes do mundo, com
destaque para as crescentes comunidades asiáticas, africanas
provenientes dos Grandes Lagos e os de origem nativa aqueles que
podiam chamar de nativo. A sociedade moçambicana é hoje
multicultural.
No entanto, este diálogo só é possível se cada grupo cultural e
religioso não se fechar na sua concepção de “vida boa” ou “felicidade”
(ética de máximos), mas sim abrir-se ao mundo partilhável de valores
e princípios que formam uma moral cívica. Ademais, é preciso dar um
passo em frente, não considerar os valores e princípios de modo
puramente racional, mas chegar a uma dimensão cordial da razão
humana.
CONCLUSÃO
60
do ter e pela fragmentação das relações humanas. Para nós,
inspirando-nos em Habermas e Cortina, considerar o “outro” como
interlocutor válido, é respeitar a sua dignidade, ter sempre em conta a
igualdade e defender a sua liberdade.
A descoberta do vínculo comunicativo desautoriza qualquer
pretensão de individualismo atomista, e vê o “outro” como uma lei
para mim. Esta perspectiva de ser um legislador universal, onde as
minhas acções entram numa ética universal, já estava presente em
Kant. Porém, Habermas e Cortina vieram fortalecer os laços humanos
pela razão comunicativa e pela compaixão.
A Ética do Discurso, na vertente de Jürgen Habermas, e, a Ética da
Razão Cordial– ethica cordis -, desenvolvida por Adela Cortina, são duas
éticas que, na nossa opinião, se complementam e constituem
ampliações distintas à ética kantiana.
Para reconstruir o mundo partilhado destruído pela razão
instrumental, própria da técnica e da ciência, Habermas convida-nos a
superar a razão monológica da ética kantiana, em busca do mundo da
vida, onde os sujeitos intervenientes aderem a um conjunto de valores
recorrendo à argumentação.
A razão monológica é substituída por uma ética que se baseia na
acção comunicativa. Esta última é compreendida como “situação em
que os actores aceitam coordenar de modo interno seus planos e
alcançar seus objectivos, unicamente, à condição de que há ou se
alcance mediante negociação um acordo sobre a situação e as
consequências que cabe esperar” (HABERMAS, 2008, p. 138).
As duas teorias éticas têm em vista (como objectivo) a superar o
vazio moral criado pela razão instrumental. Habermas aponta para os
procedimentos formais que visam a produzir um compromisso de um
agir coordenado, ao passo que Cortina pensa que é necessário ir mais
além, buscando uma ética que, além de apontar para uma razão
procedimental, assenta no coração, uma ethica cordis.
Adela Cortina considera a Ética do Discurso como o modelo por
excelência de uma ética cívica – conjunto dos princípios e valores que
tornam possível a convivência. Por isso, a filósofa valenciana defende
que a Ética do Discurso “pretende encarnar na sociedade os valores de
liberdade, da justiça e da solidariedade por meio do diálogo como
único procedimento capaz de respeitar tanto a individualidade das
61
pessoas como a sua dimensão solidária” (CORTINA; MARTÍNEZ, 1998,
p. 15).
Habermas indicou, tendo como base a acção comunicativa, os
procedimentos necessários para se chegar a esses valores dentro de
uma sociedade pluralista. Entretanto, não saiu da pura racionalidade,
como Kant. Por isso, com Cortina, acontece a segunda ampliação, ao
inserir na dimensão cordial, a compaixão, as virtudes na ética kantiana.
Aqui, a autora faz uma síntese fecunda entre o kantismo (ética do
dever) e o aristotelismo (ética da virtude). O agir humano deve ser
consoante o dever moral, considerando a intersubjectividade, mas
depende da formação do carácter e da busca da virtude. O diálogo
dever ter como referencial primordial os valores.
A Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial colocam desafios às
sociedades em que vivemos; visto que defendem a buscar coordenada
do agir social e moral. Neste sentido, à pessoa humana é sempre
reconhecida e respeitada a sua dignidade a partir do vínculo
comunicativo. Esses princípios exigem das sociedades pluralistas uma
superação dos laços fragmentados, do individualismo, do consumismo
que muitas vezes torna o outro instrumento para a consecução dos
desejos pessoais.
Mas, Adela Cortina chama-nos atenção de que este caminho não
pode ser trilhado apenas pelos procedimentos da pura racionalidade,
o homem da pós-modernidade deve cultivar o seu carácter, vivendo
segundo virtudes e compadecer-se sobretudo com a dor dos outros,
estamos assim numa ética cordial, onde o coração e a razão agem
juntos.
Ao resgatarem o vínculo comunicativo, os dois filósofos abrem
espaço para repensarmos como o crescimento do mundo das redes de
informação pode ser uma forma de a humanidade estar unida por uma
ética universal, que permita uma convivência sem excepções.
REFERÊNCIAS
62
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siglo XXI. Oviedo (Espanha), Ediciones Nobel, 2007.
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CORTINA, A. (Org.). 10 Palavras Chaves em Ética. Gráfica de Coimbra,
1997.
CORTINA, A.; MARTINEZ, E. Ética. Madrid, Akal, 1998.
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no Suplemento do Diário La Capital de Mar del Plata, 11/03/2001.
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y
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HAMEL, Marcio Renan. Da ética kantiana à ética habermasiana:
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categórico, Florianópolis v. 14. n. 2, p. 164-171, Jul./dez, 2011.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad.
Paulo Quintela, Lisboa, Edições 70, 1995.
LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos
tempos democráticos. São Paulo, Editora Morale, 2005.
RAWLS, John, O liberalismo político. São Paulo, Ática, 2000.
63
64
A ACÇÃO COMUNICATIVA E A RAZÃO CORDIAL:
DOIS FUNDAMENTOS DA DIDÁCTICA DE FILOSOFIA
NA HIPERMODERNIDADE MOÇAMBICANA
INTRODUÇÃO
65
Na perspectiva de Lipovetsky e Charles, não é que as instituções
tenham perdido seu sentido de ser, mas sim estão a ser reutilizadas a
favor da soberania do sujeito (LIPOVETSKY; CHARLES, 2014, p.103). O
individuo da hipermodernidade não só é autocrítico dos saberes
tradicionais, se não que reactiva as crenças tradicionais através de
uma hibridação do passado e da hipermodernidade. Constitui-se
como um ser absoluto nas suas decisões. Não só se institucionaliza a
moral individualista, mas se sacraliza também o individuo de modo
que o homem se converte um ser que dita suas próprias normas
(BECK, 2009, p. 104).
Em Moçambique, ultimamente, já se fala do vazio de sentido,
como crise de identidade e crise ética. Castiano e Ngoenha (2011, p.
83) elucidaram o aspecto da crise de identidade de seguinte modo:
“em tudo o que pretendemos fazer, como o desenvolvimento, fazemo-
lo à imagem e a semelhança do Ocidente como horizonte, como
justificação, como legitimação”.
Fazer tudo em função do Ocidente é negação da própria
identidade de moçambicanos, como também é negar que o homem
moçambicano seja um projecto que deve construir a sua essência. No
sentido existencialista, o ser humano deve ser considerado como
centro do seu próprio desenvolvimento, neste caso o
desenvolvimento nunca será imitar o outro. Os moçambicanos
deverão compreender que cada um é único e irrepetível e pelas
escolhas pessoais, vai construindo a sua essência.
No campo da educação, em particular, com a difusão dos meios
de comunicação social e electrónicos; com a criação de extensas redes
sociais; com a emergência de uma sociedade multi-cultural, multi-
etnica e multi-religiosa; com a massificação do acesso ao Ensino
Superior, o pessimismo ocidental difunde-se por Moçambique.
Confrontado com o desenvolvimiento acelerado dos países europeus,
americanos e asiáticos, o estudante moçambicano sente encanto pelo
Ocidente e desencanto por Moçambique. Perdeu os sentidos de
referência tradicionais, primeiro com a introdução de religiões
estrangeiras, o cristianismo (uma religião de raiz hebraica-grega e
latina) e o islamismo (uma religião de raiz árabe); e, depois, com a
adopção de uma política importada desde as remotas terras do
Império Soviético. Alterou a sua relação com a terra, com a
comunidade, com o seu povo ou tribo. Identificou-se com um Estado
66
Moçambicano, criado artificialmente pela vontade humana, e, com
uma língua oficial herdada de uma potência estrangeira e europeia.
A hipermodernidade em Moçambique se manifesta como crise
ética. Na visão de Gonçalves (2011), esta deveu-se a negação da
tradição para a construção de um futuro socialista e à reversão
repentina do país ao capitalismo. Em outras palavras, os jovens, em
particular, são confortados com passado revolucionário socialista e
com a ilusão neoliberal, em que a realização do futuro melhor se
mostra cada vez mais distante, por isso cairam no vazio de sentido,
que se evidencia através do individualismo personalizado. Isso se
pode ver nas atitudes de busca dos interesses individuais.
Este capítulo tem por objectivo analisar como a razão
comunicativa de Habermas e a razão cordial de Adela Cortina podem
fundamentar a Didáctica de Filosofia no contexto de um Moçambique
da hipermoderidade. Para atingir este objectivo seguimos uma
pesquisa qualitativa, baseada na recolha bibliográfica. O método
correlacional, o qual seguimos, relaciona em primeiro lugar os dois
autores e procura trazer à luz que métodos podem beneficiar a
Didáctica de Filosofia, partindo da acção comunicativa e da razão
cordial.
O capítulo se constitui de duas partes. Exploramos, em primeiro
lugar, os conceitos de acção comunicativa e razão cordial; depois,
passamos a indicar os possíveis métodos didácticos que podem ser
consequências da acção comunicativa e da razão cordial e por fim
indicaremos, em forma de conclusão, as possíveis perspectivas para
una didáctica de filosofia no contexto moçambicano.
67
discurso sobre a tecnologia. Para reformular a racionalização de
Weber, Habermas toma a distinção entre trabalho e interacção; como
também distingue a racionalidade instrumental e a racionalidade
comunicativa.
Enquanto a racionalidade instrumental defende uma acção
orientada a fins concretos; no entanto, Habermas chega à
racionalidade comunicativa e a distingue da racionalidade epistémica
e da teleológica, uma vez que a comunicativa “exprime-se na força
unificadora da fala orientada ao entendimento mútuo, discurso que
assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida
intersubjectivamente partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte no
interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo mundo
objectivo” (HABERMAS, 2004a, p. 107).
A acção comunicativa, sendo uma interacção simbolicamente
mediada, é uma crítica ao progresso científico-técnico, dado que este
não oferecia uma distinção entre trabalho e interacção, tal fez com
que “perdessem a consciência do dualismo trabalho e interacção”
(SPECTER, 2013, p. 208).
Diferentemente do individualismo protagonizado pelo
progresso tecnológico-científico, a acção comunicativa governa-se
por normas consensuais vinculantes, que definem as recíprocas
expectativas respeito a condutas e que devem ser entendidas e
reconhecidas ao menos por dois sujeitos actuantes.
A nova tecnologia, desenvolvida pela razão instrumental, na
visão de Habermas, viola duas condições fundamentais da nossa
existencial cultural. Destrói, por um lado, a linguagem na forma de
individualização e socialização determinada pela comunicação na
linguagem ordinária, e por outro lado, viola a manutenção da
intersubjectividade da compreensão mútua, assim como a criação da
comunicação sem dominação (SPECTER, 2013, p. 209).
Com a teoria da acção comunicativa, Habermas defende uma
comunicação livre como fundamento normativo para a teoria social,
onde a pragmática universal da língua é a pedra fundamental para o
edifício da mesma teoria. Este conceito combate a ideologia como
comunicação sistematicamente distorcida.
A acção comunicativa é ponto de chegada da crítica feita por
Habermas à razão instrumental ou finalista na versão de Weber e
Popper, que se atêm ao modelo dedutivo da justificação. Não
68
esqueçamos que a teoria da Acção comunicativa esboça-se na
tentativa de ampliar o conceito de razão pela razão comunicativa, e
um novo conceito de sociedade, que integrasse o sistema ao mundo
vivido. Habermas defende, através da acção comunicativa, uma
racionalidade abrangente,
69
A este nível da nossa argumentação, fazemos uma distinção
entre a acção estratégica e as acções comunicativas, visto que, para
compreender o pensamento de Habermas sobre a passagem de uma
racionalidade científica e tecnológica para racionalidade comunicativa
é fundamental.
Muito antes de escrever um ensaio sobre a acção comunicativa,
Habermas diferenciou a acção comunicativa da acção estratégica
deste modo: “A acção estratégica distingue-se das acções
comunicativas que ocorrem sob tradições comuns, em virtude de a
decisão entre possibilidades alternativas de escolha, poder e ter de
tomar-se de forma fundamentalmente monológica, isto é, sem um
entendimento ad hoc” (HABERMAS, 1968, p. 22).
Na acção estratégica, o agente solitário pretende influenciar as
acções dos outros, de acordo com seus interesses particulares não
generalizáveis; enquanto o agir comunicativo é uma acção orientada
para o entendimento, por isso os intervenientes mantém uma atitude
cooperativa. Pelo contrário, a acção estratégica, seja ela evidente ou
latente (manipulação e comunicação distorcida), os agentes não
buscam o entendimento nem reconhecem as bases universais de
validade.
Na acção comunicativa, como Habermas defende, “os
participantes unem-se através da validade pretendida de suas acções de
fala ou tomam em consideração as dissensões constatadas. Através das
acções de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, os quais
apontam para um reconhecimento intersubjectivo” (HABERMAS, 1990,
p. 72).
Esta distinção que Habermas faz é importante, pois trata-se de
dois níveis de comunicação bem distintas. A acção comunicativa
assenta numa racionalidade que se manifesta nas condições
requeridas para um acordo obtido comunicativamente, enquanto a
acção estratégica apoia-se na racionalidade teleológica dos planos
individuais.
Dado que acção comunicativa está baseada na racionalidade
comunicativa, que tem em vista o consenso, ela desemboca nos actos
ilocutórios, como escreve o próprio autor, “eu caracterizei o
compreender e o aceitar de acções de fala, como sucessos
ilocucionários” (HABERMAS, 1990, p. 72).
70
No agir comunicativo, tem-se a certeza de que o télos do
entendimento habita na linguagem e por força é de per se normativo.
Habermas ilustra esse pensamento ao escrever; “o conceito
entendimento possui conteúdo normativo, que ultrapassa o nível da
compreensão de uma expressão gramatical” (HABERMAS, 1990, p. 77).
A explicação que se pode dar a esta assertiva de Habermas é que
sempre que dois falantes se entendem sobre alguma coisa, no fundo
aceitam antes os proferimentos válidos sobre a mesma coisa; daí que
há sempre, por trás do consenso, um conhecimento intersubjectivo
de validade de um proferimento. Então, na linguagem não só estão
ligadas as dimensões do significado e de validez, mas encontramos
também a dimensão normativa.
Acção comunicativa é fundamentalmente domínio de situações,
assim ela contém dois aspectos, “o aspecto teleológico de execução de
um plano de acção e o aspecto comunicativo da interpretação da
situação e obtenção de um acordo” (HABERMAS, 2011, p. 493).
Habermas defende que para ocorrer o aspecto teleológico da acção,
temos que ver o actor como uma pessoa capaz de adoptar duas
relações com o mundo objectivo, pode conhecer estados de coisas
existentes e trazer à existência estados de coisas desejadas.
Agindo em busca do consenso, os participantes, na acção
comunicativa, realizam acções definidas em comum, e procuram
assim um consenso não falhado e sem desentendimentos, nem mal-
entendidos. Acção comunicativa ocorre dentro daquilo que Habermas
denomina mundo da vida, este é “o contexto formador do horizonte
dos processos de entendimento que delimita a acção moral”
(HABERMAS, 2011, p. 494).
Assim, o mundo vivido é um conceito complementar do agir
comunicativo, na medida em que o primeiro representa o background
social da acção orientada ao entendimento mútuo, e o entendimento
é o segundo médium da reprodução simbólica do mundo da vida.
A racionalidade comunicativa unifica o discurso orientado ao
entendimento e assegura aos participantes um mundo
intersubjectivamente partilhado. Na racionalidade comunicativa, o
agente, “com seu acto de fala, procura atingir o seu objectivo de
conseguir a comunicação com o ouvinte a respeito de algo”
(HABERMAS, 1996, p. 193).
71
A racionalidade comunicativa tem como objectivos ilocutórios
conseguir entendimento entre os falantes. Como o próprio Habermas
atesta:
72
A RAZÃO CORDIAL EM ADELA CORTINA
73
argumentativa, pois no vínculo comunicativo sobressai a dimensão
cordial. Por outro lado, o vínculo comunicativo já existe nas pessoas,
o que pode acontecer é recusá-lo, mas nunca ignorá-lo. De facto, esta
autora está convencida de que o verdadeiro tem algo de
comunicativo, porque “nadie es capaz de descubrir en solitario qué es
lo verdadero o qué es lo conveniente, sino que necesita entrar en un
diálogo con otros para ir descubriéndolo conjuntamente” (CORTINA,
2013, p. 33).
O vínculo comunicativo oferece muitas dimensões que
ultrapassam de longe a dimensão lógica. Aqui encontramos uma
superação da ética do discurso que buscou no vínculo comunicativo
apenas procedimentos para validação das normas. É necessário ir
mais além, descobrir que o vínculo comunicativo esconde uma
dimensão cordial, porque para descobrir o que é justo, o agente deve
cultivar o seu carácter, estimar os valores a justiça e “nuestra ética de
la razón cordial ha encontrado la fuente de la obligación moral en el
reconocimiento recíproco de seres que se saben y siente
interlocutores válidos por compartir el bagaje de una razón cordial”
(CORTINA, 2007, p. 240).
Por um lado, estimar os valores implica de certo modo unir a
razão e os sentimentos, pois o reconhecimento cordial radica dos
valores morais na compreensão de que os seres humanos são seres
de dignidade e de grandeza, e são igualmente, seres vulneráveis que
obrigam ao respeito e à compaixão.
Adela Cortina chama a este modo de proceder o cultivo da
virtude de cordura, que é um enxerto da prudência no coração da
justiça. Assim, os projectos racionais têm força se não perdem a sua
base que é o coração. A compaixão leva a aproximar-se a quem sofre
e a tratar de eliminar as causas do sofrimento, sentindo o respeito por
sua inegável dignidade. O vínculo que nos une é o reconhecimento da
nossa dignidade e, ao mesmo tempo, da nossa situação de
vulnerabilidade.
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Esta arte de ensiná-la chama-se Didáctica de Filosofia. Ao tentarmos
entrar no conceito de Didáctica de Filosofia, um problema se coloca
porque a Filosofia é de per si uma disciplina didáctica, então ela, em
princípio não necessitaria de uma Didáctica a partir das ciências de
educação. Esta nossa asserção é confirmada pelo pensamento de
Dantas, que escreveu:
a Filosofia não é apenas mais uma disciplina a ser ensinada e aprendida, mas nela
se define, se pratica e se põe em jogo a essência e a própria natureza de ensinar
e aprender […], não como simples transferência de conteúdos, ou mera
aquisição de habilidades específicas, sejam elas técnicas, comportamentais ou
cognitivas, mas na verdade como toda uma prática, todo um processo
essencialmente emancipatório de educar, de formação de homens e mulheres
efectivamente capazes de pensar, questionar e elucidar dialogicamente as
condições de realização de suas vidas, de sua própria história, do próprio mundo
em que existem (DANTAS, 2002, p. 61-62).
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Na hipermodernidade, o estudante deve sentir-se um sujeito no
processo de ensino e aprendizagem, como se buscara
individualmente o que aprende. De facto, a Filosofia ajuda os seus
amantes a construirem um pensamento lógico, a serem criativos até
mesmo a serem capazes de produzir um pensamento crítico.
Ademais, a Filosofia tem a capacidade de conduzir os seus amantes
aos valores (entendamos valores morais que se podem inculcar
através da Ética).
Colocar a razão comunicativa e a razão cordial como
instrumentos que possibilitam uma Didáctica da Filosofia é superar a
dicotomia que a educação muitas vezes coloca entre a razão e os
sentimentos. É recolocar o verdadeiro sentido da razão, refutando a
razão instrumental e a acção estratégica. Neste contexto, é mister
recorrer à visão de Rios que sustenta que:
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no seu meio social, ajudar o aluno apreciar valores e a ter sentimentos
de compaixão.
Nesta perspectiva, o primeiro método que se coloca é o dialógico
(diálogo como meio de interacção na sala de aula). Este resulta do
trânsito que Habermas e Adela Cortina fazem, da razão monológica
de Kant à razão comunicativa ou dialógica que nasce da consideração
do vínculo comunicativo entre o professor e o aluno, como acontece
no mundo social.
O fundamento deste método está na própria natureza do
filosofar, que se nutre do intercâmbio e da oposição das consciências
reflexivas. Supõe que os sujeitos (professores e alunos) na sala de aula
são obrigados a agir comunicativamente, isto é procuram o
entendimento – neste método, o professor faz perguntas a fim de
estimular a crítica, cativa a atenção dos alunos e penetra no território
da sua emoção para cativar dúvida.
A educação para liberdade usa-se do diálogo como ferramenta
principal. Pois, como dizia Freire, “o diálogo é a essência da educação e
é o meio de superação da contradição entre o educador e o educando”
(FREIRE, 1977, p. 22) O diálogo constroí a liberdade porque respeita a
curiosidade e o questionamento do educando em relação ao mundo,
às pessoas, ao seu sentido de vida.
O diálogo é fundamental na educação, porque no fundo ninguém
educa ninguém, os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo. Por isso, a dialogicidade deve ser base da educação. Pois,
dentro da educação mediada pelo diálogo, acontece aquele contacto
profundo inter-humano; na qual, para Martin Buber (1974), se dá a
confirmação da pessoa; ou melhor confirma-se que o aluno é um
parceiro na busca do conhecimento. Logo, a Didáctica da Filosofia
deve estar marcada pelo diálogo, racionalidade intersubjectiva
(CORTINA, 1996).
O diálogo possibilita a participação activa do aluno na busca do
saber. Por isso, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou sua construção” (FREIRE,
1999, p. 52). Não obstante, a característica da hipermodernidade ser a
autonomia do individuo, esta é realizável através de diálogos
intersubjectivos (CORTINA, 2000, p. 23). A dialogicidade, para usar a
expressão de Freire, ajuda o professor a reconhecer a unicidade e as
potencialidades do educando, para se tornar pessoa única. Aliás, para
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pedagogia existencialista, o sujeito (neste caso o educando), como
centro de referimento, no diálogo, descobre a sua real capacidade de
auto-afirmação, como via de buscar a autenticidade.
Não se pode compreender a educação sem o diálogo, pois “a
educação é, por excelência, o lugar do diálogo, portanto, o lugar da
palavra e da reflexão, que ultrapassa a apropriação dos conhecimentos
para nos conduzir à formação pessoal. Desde que podemos dizer a
palavra, estamos em constante conversação com o mundo, instaurando
a própria possibilidade de educar” (HERMANN, 2003, p. 95). Aliás,
como escreveu Izquierdo Moreno “a vida é um diálogo permanente.
Não existe vida sem diálogo, uma vez que a vida é fundamentalmente
diálogo” (MORENO, 2005, p. 183).
O segundo é o método da crítica social, fundamenta-se na
docência que é um processo complexo que pressupõe uma
compreensão da realidade concreta da sociedade, o que Habermas
chama o mundo da vida. Deste modo, o ensino e aprendizagem da
Filosofia implicam sempre uma crítica sobre a realidade social. Por
isso, Ngoenha (1993) defende que a missão do filósofo é produzir
utopias para o seu povo. A educação tem sempre a dimensão social.
Para Habermas, acção comunicativa ocorre dentro daquilo que
denomina mundo da vida, este é “o contexto formador do horizonte
dos processos de entendimento que delimita a acção moral”
(HABERMAS, 2011, p. 494).
Deste modo, o docente de Filosofia fará da sala de aula um lugar
de debate sobre temas sociais. Neste vertente, ele usará da exposição
interrogada. O professor procurar interrogar as verdades sociais, para
isso ele coloca a dúvida como crivo de informação. Visto que educar é
sobretudo provocar a inteligência, é a arte do desafio.
A docência, como nos ensinou Sócrates, é uma maiêutica.
Sócrates, nas suas interlocuções, começava por fazer perguntas aos
seus alunos e como estes dessem respostas segundo a opinião
comum (entenda-se aquelas respostas dadas pela sociedade), ele
apresentava argumentos com vista a derrubar as respostas dadas
pelo senso comum (LEANG, 1995).
O docente deve usar, no ensino de filosofia, a dúvida porque
“a dúvida provoca-os mais do que a resposta” (CURY, 2008, p. 126). A
dúvida expande o mundo das ideias dos alunos, ajuda-os a
questionarem o mundo à sua volta. Por isso, Habermas conseguiu ser
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um crítico social. Trouxe-nos a racionalidade comunicativa como
resposta à racionalidade instrumental e Cortina veio ampliá-la com a
razão cordial.
O terceiro método é educar aos valores. Adela Cortina coloca no
reconhecimento cordial os valores. É importante que os professores
eduquem aos alunos a estimar os valores como autonomia, liberdade
e igualdade; bem como a serem tolerantes. Ademais, a educação tem
que ser algo que mexe com os sentimentos das pessoas. Assim, os
professores deverão humanizar o conhecimento. Não devem
transmiti-lo de modo cru, mas sim apresentá-lo cheio de valores.
Como escreveu Adela Cortina: “no hay enseñanza neutral, sino siempre
cargada de valores, por eso más vale explicitarlos y tratra
serenamente sobre ellos para no caer en la indoctrinación (CORTINA,
2007, p. 142).
Adela Cortina esta ciente de que toda a educação é
acompanhada pela transmissão de valores. Portanto, “por de trás de
qualquer pedagogia existem valores, crenças e suposições calcadas
numa visão de mundo particular” (GIROUX, 1997, p. 72).
Por último, colocamos a educação à compaixão para com os
seres humanos que sofrem e ao cuidado dos seres não humanos. Tal
educação pode ser fomentada pela participação dos alunos em
projectos sociais. Este procedimento ajuda os alunos a superarem o
individualismo, o egoísmo e o desejo de dominar aos outros e tornam-
se mais sensíveis à dor alheia. O outro campo importante é educar
para eles não possam causar dor aos seres infra-humanos, pois eles
sentem também a dor. Ademais, deverão cuidar da natureza em geral,
para que o nosso habitat seja sempre habitável.
CONCLUSÃO
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um consenso. Aqui, se encontra a dignidade humana como centro do
ensino e aprendizagem.
O saber é fruto de um entendimento intersubjectivo. A
linguagem é a condição de possibilidade da experiência educativa.
Deste modo, os agentes educativos sujeitos efectivos no processo
educativo. Então, valoriza-se, no processo de educação, as relações
humanas. A educação dirige-se para os valores como a liberdade,
igualdade, autonomia, justiça e procura incutir nos alunos a
compaixão pelos que sofrem e o cuidado dos seres não humanos.
A acção comunicativa e a razão cordial trazem consigo os
seguintes princípios didácticos: a dialogicidade, a crítica social, o
educar aos valores e a educação à compaixão. Os princípios acima
indicados não esgotam aquilo que são a acção comunicativa e a razão
cordial, mas constituem uma boa base para mais aprofundamento.
REFERÊNCIAS
80
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SPECTER, M. G. (2013). Habermas: una biografía intelectual. Madrid:
Avarigani Editores.
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82
PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY NO SISTEMA
NACIONAL DE EDUCAÇÃO MOÇAMBICANA
INTRODUÇÃO
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sociedade que não pode gozar dos seus direito pela imposição dos
mais fortes. Em tudo faz-se sob uma ordem alheia a sua vontade. A
mesma ideia é apresentada por Dewey quando fala da Europa bárbara:
Com efeito, tinha que ir à escola para obter a civilização grego-romana; com isto,
também sua cultura era mais de empréstimo do que desenvolvida por ela
própria. Não somente suas ideias gerais e educação artística, senão também os
modelos de suas leis, provinham dos trabalhos escritos de outros povos. E sua
dependência aumentou ainda com os dominantes interesses teológicos desse
período (DEWEY, 1979, p. 308).
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dois tipos de educação tinham programas curriculares diferentes,
assim como condições materiais das escolas, estímulos e castigos
aplicados eram diferentes. Ao branco era ensinado todo o saber
pensar e ao indígena era ensinado o saber fazer e obedecer, como
aponta Golias: “os indígenas não eram sujeitos de direito mas sim
objetos de uma política determinada longe do seu consentimento”
(GOLIAS, 1993, p.33). Trazendo esse posicionamento no debate, põe-
se em crise a hipótese da Educação Democrática desenhada por
Dewey, aquela na qual centra a atenção na figura do aluno e na
igualdade de oportunidades. No ponto de vista de Dewey, a escola
assim como as oportunidade de ensino devem ser iguais para todos
sem diferenças de classes e, cada aluno deve-se enriquecer com as
experiências dos outros, entrando numa relação de interajuda.
A educação colonial colocou ainda a barreira da língua aos
moçambicanos para não desenvolver educacionalmente uma vez que
o indígena devia aprender não na sua própria língua, mas na língua do
colono. Isso criou imensas dificuldades às crianças nas classes iniciais.
Adicionado à barreira da língua, estavam também os conteúdos
curriculares onde o colono impôs ao indígenas a aprendizagem da
história e geografia de Portugal assim como a ética do colono como
afirma Mondlane (1977); “a análise do conteúdo dos livros de estudo
indica que em tudo se foca a cultura portuguesa; a história e a
geografia africanas são totalmente ignoradas, toda a atenção incide
sobre a língua portuguesa, a geografia das descobertas e conquistas
dos Portugueses; moralidade cristã; artesanato e agricultura” (p. 63).
Nota-se, assim, que as políticas educativas coloniais obrigaram o
indígena a esquecer sua própria condição africana através de uma
pedagogia alienante.
Mas como a escola não é apenas arma para a dominação, mas
também para a libertação dos dominados e, considerando que a
escolarização é a chave do desenvolvimento intelectual, e
consequentemente do progresso social, foi assim que a FRELIMO4, já
durante da Luta Armada de Libertação Nacional e até a independência,
empenhou-se em elaborar os primeiros documentos criticando
fundamentalmente os conteúdos da educação colonial e empenhou-
se ainda a desenvolver currículos adequados para os moçambicanos
com o objetivo de formar um homem que se identifica com a realidade
85
como o afirma Mazula (1995): “Homem Novo, com plena consciência
do poder da sua inteligência e da força transformadora do seu trabalho
na sociedade e na Natureza; o Homem Novo, livre de concepções
supersticiosas e subjetivas” (p. 110).
86
Moçambique. Logo no seu primeiro parágrafo, a Lei 4/83 cita que “o
sistema de educação é o processo organizado por cada sociedade para
transmitir às novas gerações as suas experiências, conhecimentos e
valores culturais, desenvolvendo as capacidades e aptidões do
individuo, de modo a assegurar a reprodução da sua ideologia e das
suas instituições econômicas e sociais”. Uma vez que cada tempo tem
suas necessidades e, as respostas dadas a uma determinada
necessidade numa dada época, podem ser ultrapassadas com o surgir
das novas necessidades, havia necessidade de se reformular a
educação desenhada no período pós-independência, visto que esta já
não dava repostas às inquietações da época.
Esta reforma curricular de 1983 define, pela primeira vez, uma
nova filosofia onde todo o projeto da educação se submetia a um
projeto de sociedade socialista, como única via do desenvolvimento
econômico e social de Moçambique. A filosofia da Formação dum
Homem Novo a fim de harmonizar o desenvolvimento da sua
personalidade com a formação científica, prática e política. Nesta
mesma filosofia, os conteúdos curriculares são concebidos para que a
aquisição de conhecimentos científicos e técnicos, sirvam de alicerce
na ideologia socialista.
Com a Lei 4/83 que criou o SNE, a educação fica dividida não só
em níveis (Primário, Secundário, Médio e Superior), como era entre
1975 e 1983, mas também em subsistemas (de Educação Geral, de
Educação de Adultos, de Educação Técnica, de Formação de
Professores e de Educação Superior, com vista a oferecer a todos as
melhores oportunidades de desenvolver as suas aptidões, mas essas
devisões tinha uma estrutura lógica, ou seja, “toda importancia recai
pois, nas subdivisões lógicas e no encadeamento da matéria a estudar.
O problema de instrução consiste em obter textos que apresentem
essas divisões e sequências lógicas, e em ministrar, em classe, essas
porções no mesmo sistema gradativo e lógico” (DEWEY, 1971, p. 46).
Nesta Lei 4/83 está claro no seu quarto parágrafo que “a
dominação colonial em Moçambique impôs uma educação que visava
à reprodução da exploração e da opressão e a continuidade das
estruturas colonial-capitalista de dominação”. Mais adiante a mesma
Lei afirma que “a luta armada de libertação colonial representa a
expressão mais alta da negação e ruptura com o colonialismo e as
concepções negativas da educação tradicional”. Ora, para que o aluno
87
construa competências cognitivas precisa de uma mobilização
intelectual da qual, “é preciso que a situação de aprendizagem tenha
sentido para ele, que possa produzir prazer, responder a um desejo. É
uma primeira condição para que o aluno se aproprie do saber. A
segunda condição é que esta mobilização intelectual induza a uma
actividade intelectual eficaz” (CHARLOT, 2005, p. 54).
Portanto, acreditou-se, conforme o mesmo suplemento que na
sociedade moçambicana empenhada na construção do socialismo, a
educação constituía o direito fundamental de cada cidadão e era o
instrumento central para a formação e para a elevação do nível
técnico-científico dos trabalhadores. Ela era um meio básico para a
aquisição da consciência social requerida para as transformações
revolucionarias e para as tarefas do desenvolvimento socialista (Lei
4/83). Nesta mesma linha Dewey já anunciara que somente com uma
educação democrática é que se
88
homens que queremos que sejam os moçambicanos amanhã; e este é um
problema filosófico” (NGOENHA, 1993: 8).
Homem Novo é “aquele que constrói o socialismo e mobiliza as massas pela sua
dedicação, disciplina e entusiasmo” (FRELIMO, 1977, p. 94). Segundo Graça Machel
(Ministra da Educação e da Cultura no primeiro governo moçambicano, durante 14
anos) homem socialista implicava uma nova concepção de mundo – sem exploração
do homem pelo homem, uma sociedade sem fome e nudez – de nação, de povo, no
cultivo de valores (MAZULA, 1995).
89
necessário a adaptação dos instintos de comunicação e os hábitos de
sociabilidade.
No Art. 4o da Lei 4/83 do SNE, são apresentados os objetivos deste
sistema como sendo para a “formação do Homem Novo, um homem
livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e
colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista,
nomeadamente”. Aqui é apresentada a negação do tradicional. Neste
Artigo esqueceu-se, no entanto da necessidade da experiência para o
sucesso do processo educativo. Dewey por exemplo não descarta
totalmente as experiências passadas, mas sim as usa para perspectivar
o futuro. Isso se pode aferir quando ele diz que “não podemos
conceber um mundo em que o conhecimento de seu passado não seja
útil para prever seu futuro e dar-lhe significação. Deixamos de ver as
relações com o futuro exatamente porque estas se acham tão
inevitavelmente implícitas” (DEWEY, 1979, p. 375).
No 2o ponto do Art. 4o fala-se de “formar o professor como
educador e profissional consciente com a profunda preparação
política e ideologia, científica e pedagógica, capaz de educar os jovens
e adultos nos valores da sociedade socialista”. Como teoria, ficou sim
desenhado um bom princípio, mas observa-se que ficou apenas na
teoria. Faltou no entanto a sua praticidade. Já ao falar das escola,
apresenta-se como necessidade o “fazer das instituições de ensino
bases evolucionárias para a consolidação do Poder Popular,
profundamente inseridas na comunidade”. Aqui se recorda Dewey
quando escreveu que,
Isto é:
90
passo, essas partes isoladas, até que, ao fim da jornada, tenha vencido todo
programa (DEWEY, 1971, p. 45, grifos nossos).
91
projectos, na construção de um futuro na elaboração do qual não tínhamos
participado (NGOENHA, 1993, p. 11).
92
[...] a estrutura e o conteúdo do currículo, desenvolvido nos princípios da década
80, têm-se mostrado cada vez mais inadequados para uma economia em rápida
mudança e para as exigências sociais. A atual estrutura curricular é demasiado
rígida e prescritiva, deixando pouca margem para adaptações aos níveis regional
e local. A maior parte dos conteúdos, que se lecciona na escola, é de uma
relevância ou utilidade prática insignificante (MINED, 2003, p. 15).
Por outra:
93
adequado e na competência dos professores; formar cientístas e
especialistas devidamente qualificados que permitam o
desenvolvimento da produção e da investigação científica;
desenvolver a sensibilidade estética e capacidade artística das
crianças, jovens e adultos, educando-os no amor pelas artes e no gosto
pelo belo, ou seja;
94
Portanto, em Dewey, “é característica da verdadeira aprendizagem ser
consciente, dinâmica e permeada de novos padrões de
comportamento, de novos modos de ver, perceber, sentir, julgar, ser
e agir” (DEWEY, 1975, p. 22).
Pela dinâmica do processo de ensino-aprendizagem, o Ministerio
de Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) obriga-se cada
vez mais a organizar consultas às bases para definir políticas
educativas. Pela tomada de consciência das diferenças culturais ou
políticas entre moçambicanos, o MINEDH ganha maior consciência da
questão do meio em que estão, para o sucesso de seus programas. A
partir desses pressupostos introduz-se línguas locais no ensino.
Segundo Mazula (2000), “a confiança no outro é uma atitude
fundamentalmente cirúrgica, que supõe a eliminação dos medos,
preconceitos e estereótipos” (p. 39). Mais adiante acrescenta “por
isso que a democracia implica necessariamente a descentralização do
poder, das instituições e a descentralização das atividades
administrativas, se se quiser que o povo participe realmente na
governação do país no processo do seu desenvolvimento” (Idem).
Desde o ano 2000, o MINEDH começa a descentralizar-se. O MINEDH,
como entidade central do processo educativo passa a ser somente um
organismo de definição e supervisão de politicas de educação. No
entanto, como visão do MINEDH definem-se as novas formas para
garantir e promover o sistema educativo que responda às
necessidades e expectativas dos moçambicanos. Voltamos a relação
das ideias deweyanas na crença de que “somos como pessoas aquilo
que nos mostramos ser quando associados a outras pessoas, numa
livre reciprocidade de dar e receber. Isto transcende a esfera de
eficiência, que consista em fornecer produtos aos outros - a da cultura,
que seja um solitário requinte e polimento” (DEWEY, 1979, p. 133).
Assim, o MINEDH aposta em aumentar o acesso às oportunidades
educativas a todos os moçambicanos e em particular às mulheres e
melhorar a qualidade de educação, assim como planeja desenvolver
um quadro institucional e financeiro sustentável.
À luz dessas propostas, em 2003 faz-se a reforma do Ensino
Básico e estende-se mais tarde para o ensino secundário Geral.
Aparecem as inovações como a criação dos ciclos de aprendizagem (1°
95
ciclo de 1ª a 2ª classe, 2° ciclo de 3ª a 5ª classe e 3° ciclo de 6ª a 7ª classe)6;
o ensino básico integrado (EPC); promoção semi-automática; avaliação
sumativa e formativa; distribuição de professores na qual, um
professor é formado para 3 disciplinas; currículo local7 que é a
integração dos saberes locais na crença de que, segundo Dewey, “a
tarefa especial da educação nos tempos atuais é lutar em prol de uma
finalidade em que a eficiência social e a cultura pessoal sejam coisas
idênticas e, não, antagônicas” (DEWEY, 1979, p. 134); e a introdução de
línguas moçambicanas.
Para Basílio, “o novo currículo do Ensino Básico, fruto da
transformação curricular de 2002 trás a preocupação de envolver a
comunidade na produção dos saberes locais para a prática
pedagógica” (BASÍLIO, 2006, p.16). Isto significa não apenas a
presença da comunidade em reuniões, mas sim a participação
contribuindo nas tomadas de decisões. Na perspectiva desta
participação da comunidade introduz-se o currículo local no qual os
conteúdos provém da cultura local. Quanto a esta matéria, Dewey é de
opinião de que,
96
aprendente e, por conseguinte, o seu desenquadramento cultural”
(BASÍLIO, 2006 p. 17). É neste sentido que mais adiante, Basílio vai
propor que “para posicionar os saberes locais, o conhecimento escolar
dado às crianças deve atender as culturas locais e os grupos sociais
eliminando a distância entre o local e o universal” (BASÍLIO, 2006, p. 29).
E de acordo com Dewey (1975), verifica-se que a aprendizagem é
necessária ao homem a fim de construir a sua personalidade e afirmar-
se como pessoa humana. Pela educação, o homem define claramente
suas características individuais, na medida em que toma consciência de
sua realidade, das suas limitações, daquilo que precisa adquirir para ser
mais homem, das suas potencialidades e possibilidades, ele ganha o
desejo de aprender. Vista nesse ângulo, a aprendizagem é entendida
como uma modificação profunda, consciente e permanente até certo
ponto, de toda a estrutura humana. Mas a verdadeira aprendizagem
não é algo que se realiza de uma vez por todas, permanecendo
imutável. Nesta mesma linha, Basílio diz que,
97
Depois da introdução do novo currículo do ensino básico em
2003, houve necessidade de reajustar a lei nº 6/92, com a nova Lei nº
18/2018 de 28 de Dezembro8, que estabelece os seguintes subsistemas
da educação moçambicana:
a) educação pré-escolar, que se realiza em creches e jardins de
infância para crianças com idades inferiores a 6 anos;
b) educação geral, concebida como eixo central do sistema
nacional de educação de Moçambique; corresponde ao ensino
primário e secundário;
c) educação de adultos, que é o subsistema em que se realiza a
alfabetização e a educação de adultos;
d) educação profissional e formação de professores, que
constitui o principal instrumento para a formação profissional da
força de trabalho qualificada, necessária para o desenvolvimento
econômico e social do país, compreendendo ensino técnico
profissional, formação profissional, formação extra-instituicional
e ensino superior profissional;
e) por último, o ensino superior que tem a função de assegurar a
formação ao nível mais alto nos diversos domínios do
conhecimento técnico, cientítico e tecnólogico necessarários ao
desenvolvimento do país (MOÇAMBIQUE, 2018).
E segundo a mesma lei, estabelece que a educação básica:
98
levaram a mesma entidade a iniciar um processo de “revisão pontual
do plano curricular e dos programas de ensino, com vista a
incrementar a qualidade de ensino” (INDE, 2015, p. 1).
Nessa perspectiva, a revisão pontual do plano curricular do ensino
básico em Moçambique cingiu-se mais sobre “alteração da designação
do plano curricular do ensino básico, passando a designar-se plano
curricular do ensino primário. Alteração do plano de estudos, que
compreendeu a redução do número de disciplinas através da
integração de competências e de conteúdos” (INDE, 2015, p. 1).
À GUISA DE CONCLUSÃO
99
serviço da mesma sociedade (moçambicana). É claro que o desejo da
educação para todos até hoje ainda não tem a sua praticidade na
medida em que ainda em Moçambique existe escolas para certa classe
socialmente alta (que na maior parte das vezes são privadas) e outras
(estatais) para os pobres e, mesmo assim nem todos os pobres tem
acesso. Um passo positivo a ressaltar é o da escola gratuita que a
maioria tem acesso (ensino básico). Mas ainda há muito por fazer.
Cada vez que se sobe de nível de escolaridade as oportunidades
diminuem de forma acentuada para a maioria da população
moçambicana, devido à falta de condições financeiras.
Hoje em Moçambique, cada vez mais vai-se aproximando a ideia
de fazer com que a educação leve os indivíduos, não só na teorização
dos conhecimentos, mas sua praticidade. Esta era a preocupação de
Dewey ao acreditar que o individuo que não deve estar isolado do
mundo. Desse modo, é preciso que a educação moçambicana leve em
conta os dados concretos oriundos das condições atuais da sociedade
em transformação e não basear-se simplesmente numa visão politica
e ideológica. A educação moçambicana precisa abrir-se mais para um
ideal que não seja dogmático e acabado.
Portanto, com a introdução do novo currículo (Lei nº 18/2018 de
28 de Dezembro) o objetivo central é fazer com que o moçambicano
seja formado na sua integridade; não apenas na quantidade, mas
acima de tudo em qualidade. As ideias deweyanas até hoje são válidas
para o contexto educação moçambicana, na medida em que a escola
deveria atuar como um instrumento edificador da sociedade. Pois, é
missão da escola empenhar-se para o desenvolvimento das atividades
que tematizam os direitos humanos e despertam o respeito para com
o meio ambiente.
REFERÊNCIAS
100
CASTIANO, J. P. Educar Para Quê?: As transformações no Sistema de
Educação em Moçambique. Maputo: INDE, 2005.
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101
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NGOENHA, Severino Elias. Estatuto e Axiologia da Educação. Maputo:
Livraria Universitária, 2000.
102
A PRÁTICA DOCENTE NA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA SOCIEDADE
BRASILEIRA: REFLEXÕES EM RELAÇÃO AO CONTEXTO ATUAL
Pâmela Pongan1
INTRODUÇÃO
103
O ENSINO DE HISTÓRIA
104
O professor tem de desenvolver uma atividade questionadora
para conhecer aquilo que o aluno já sabe e desafiá-lo e acompanhá-lo
na construção de sua aprendizagem. Seu trabalho de investigação se
baseia sobre a utilização de diferentes fontes e narrativas históricas
com o objetivo de promover nos alunos a competência histórica de
compreender que a História é construída com diversas perspectivas.
105
História, dando a estas competências básicas que lhe permitam
compreender locais e momentos de reflexão, principalmente em torno
da cognição histórica situada, para que esta realize uma real interação
dos conhecimentos teóricos e o desenvolvimento da prática docente.
106
A consciência histórica, portanto, emerge do encontro do
pensamento histórico científico com o pensamento histórico geral.
Dessa formatemos uma historiografia que colaborou para
construirmos uma determinada consciência. Aqui está o papel da
Educação Histórica.
O grande desafio que se apresenta neste novo milênio é adequar nosso olhar às
exigências do mundo real sem sermos sugados pela onda neoliberal que parece
estar empolgando corações e mentes. É preciso, nesse momento, mostrar que é
possível desenvolver uma prática de ensino de História adequada aos novos
tempos (e alunos): rica de conteúdo, socialmente responsável e sem
ingenuidade e nostalgia. Historiador/professor sem utopia é cronista e, sem
conteúdo, nem cronista pode ser. (PINSKY, 2010, p. 19).
107
como a situação das mulheres na Idade Média, a insatisfação dos
plebeus na Roma Antiga, as aspirações ambíguas dos burgueses no
século XVIII, conceitos de democracia, cidadania, práticas como a
manifestação da religiosidade, reconheçam o preconceito, até mesmo
o uso e abuso da história a longo do tempo como poder emanado por
grupos políticos, nações e facções.
Para vencer esses novos desafios, Pinsky (2010), sugere o
trabalho integrado entre a História social e a História das Mentalidades
e do Cotidiano, onde a primeira buscaria a percepção das relações
sociais a outra privilegiaria cortes temáticos. Para que o aluno possa
sentir a História como algo próximo a ele.
Assim, não vemos uma incompatibilidade entre a História Social e a História das
Mentalidades e do Cotidiano. Na verdade, as duas abordagens não apenas não
se opõem necessariamente, como se complementam. A abordagem da corrente
da História Social busca a percepção das relações sociais, do papel histórico dos
indivíduos e dos limites e possibilidades de cada contexto e processo histórico.
A das Mentalidades privilegia cortes temáticos. Frequentemente, a primeira
busca a floresta; a segunda, a árvore; uma, o telescópio; a outra, o microscópio.
Bem utilizados, ambos os procedimentos são recomendáveis. Se trabalhados de
forma integrada, chega-se ao melhor dos mundos, olha-se a partir de diferentes
pontos de vista. Além disso, por meio desses olhares, poderá o professor (re)
aproximar os alunos do estudo da História (PINSK, 2010, p. 27).
108
gravado na pedra ou sepultado debaixo da terra as atitudes e os
comportamentos humanos perante a doença, o sofrimento, a morte, as idades
da vida não são eternos. Pertencem à temporalidade, têm um princípio e um fim.
A história é a arte de aprender que o que é nem sempre foi, que que o que não
existe pôde alguma vez existir; que o novo não o é forçosamente e que, ao
contrário, o que consideramos por vezes eterno é muito recente. Esta noção
permite situarmo-nos no tempo, relativizar o acontecimento, descobrir as linhas
de continuidade e identificar as rupturas. (WINOCK apud MATTOZZI, 1998, p. 26).
[...] todo estudo histórico, portanto, implica uma seleção minúscula, de algumas
coisas da infinidade de atividades humanas do passado, e aquilo que afetou essas
atividades. Mas não há nenhum critério geral aceito para se fazer tal seleção.
109
Entretanto, não se pode esquecer que mesmo o livro sendo um
propagador de conhecimento legitimo e autorizado pela ciência
histórica, também é visto como formador de ideias. Pois além de
conter os conteúdos apresentados em programas e currículos, já os
traz selecionados e ordenados na sequência didática sugestiva. Porém,
não possui nada a respeito da história local e como trabalha-la.
A história loca tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar
a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente
nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho, lazer –
e igualmente por situar os problemas significativos da história do presente.
(BITTENCOURT, 2004, p.168).
110
Especificamente por isso, o professor não deve deixar suas aulas
serem resumidas e orientadas exclusivamente pelo livro didático e
pelos currículo e programas, que visam apenas desenvolver
habilidades didáticas ao invés de construir o pensamento histórico
consciente, pois se resumem a selecionar, sintetizar, resumir e
comparar. Enquanto a aprendizagem relacionada ao desenvolvimento
do pensamento histórico permite e exige deduções, levantamento de
hipóteses, narrativas e uma compreensão total. Desta maneira, o
ensino de história tem muito a melhorar nas salas de aula brasileiras, a
partir da construção do pensamento histórico primeiramente nos
professores, para depois, consequentemente, nos alunos.
111
É dever do Estado repensar o papel da escola, assim como lhe
cabe a produção e difusão do conhecimento. No Brasil, isso gerou uma
a massificação do ensino, como consequência da alta demanda por
vagas na rede escolar pública, principalmente nos anos 60 e 70. Assim,
o Estado acabou fomentando a indústria cultural, associando-a
diretamente “[...] ao processo de democratização, ampliação ou
massificação do ensino” (FONSECA, 2003, p.50).
Ao observarmos os currículos de História, constatamos que a
partir de 1970, eles se materializaram nos livros didáticos. Neste
período, verificou-se uma admissão em massa de livros, impulsionadas
pelo Estado e pela indústria editorial brasileira, que estava em
crescimento por conta dos incentivos estatais que recebia. “O livro
didático assumiu, assim, a forma do currículo e do saber nas escolas”
(FONSECA, 2003, p.50).
Com o grande apoio estatal à indústria editorial, iniciada nos
governos pós-1964, o livro passou a ser uma das mercadorias mais
vendidas, resultando em sua massificação.
112
políticos. Na academia, o trabalho do historiador pode tanto excluir como
recuperar ou resgatar “atos” excluídos; no livro didático o processo de exclusão
de ações e sujeitos faz parte da lógica da didatização. (FONSECA, 2003, p. 53).
113
constantemente e permanentemente a produção já disponível no
mercado.
114
destaca, como principais renovações, “[...] a introdução de novos
temas, ligados à história das mentalidades do cotidiano. O livro
didático deixou de se dedicar quase que exclusivamente aos fatos da
política institucional e alargou o campo do conhecimento histórico
ensinado nas escolas. Segundo, a tendência de não mais organizar os
conteúdos de história do Brasil, história da América e história geral
isoladamente, mas articulados ao longo de quatro séries, sem recorrer
às categorias dos ‘modos de produção’ como articuladores”
Com esse processo de mudanças e renovações na produção de
livros didáticos e paradidáticos fica nítido que, nos últimos anos, foi a
indústria editorial que definiu o que ensinar e como ensinar em história
nas escolas brasileiras. Por isso, cabe ao professor de história
estabelecer diversas abordagens que contribuam para a formação de
alunos com pensamento crítico e reflexivo, buscando construir uma
concepção e prática de cidadania e democracia. Pois é o exercício da
crítica a principal ferramenta da história.
115
ensino de História. Pluralidade essa, permitida pelas novas pesquisas
historiográficas, pelas renovações nos currículos, nos PCNs, assim
como, pelas experiências dos próprios professores, que vieram para
contrapor a história tradicional.
Entretanto, é nítido que tudo que o aluno aprende ou não, bem
como aquilo que o professor ensina ou deixa de ensinar, vai além do
que é apresentado pelos currículos e livros didáticos. Por isso, é muito
importante um diálogo baseado na criticidade entre os sujeitos ligados
a construção dos saberes históricos em todos os espaços, sejam
educativos, sociais e culturais.
116
Isso requer assumir o ofício de professor como uma forma de luta política e
cultural. A relação entre ensino e aprendizagem deve ser um convite e um
desafio para alunos e professores cruzarem, ou mesmo subverterem as
fronteiras impostas entre os diferentes grupos sociais e culturas, entre a teoria
e a prática, a política e o cotidiano, a história, a arte e a vida. Como? Certamente
um dos caminhos é buscar renovar, cotidianamente, nossas práticas dentro de
fora da escola. É procurando agir como cidadãos, sujeitos da história e do
conhecimento. É criando possibilidades de mudanças. (FONSECA, 2003, p. 245).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
117
a formação de uma cidadania crítica e atuante. Para assim, auxiliar o
aluno a se sentir um sujeito histórico, que tem um papel ativo na
sociedade.
É fundamental que o professor, durante todo o processo de
ensino-aprendizagem, leve em consideração os saberes históricos que
o aluno adquiriu através de suas relações familiares, sociais e
escolares. Mesmo estes conhecimentos não sistematizados são
importantes para a aprendizagem do aluno, através da relação que ele
mesmo fará entre esses conhecimentos e os novos que irá adquirindo
na escola, buscando reformular esses conceitos, além de buscar
aperfeiçoar, adquirir e descobrir novas habilidades.
Para efetivar isso, é necessário que o professor busque conhecer
a história de cada aluno, além de saber suas dificuldades. Isso se fará
através da relação professor-aluno durante o ano letivo, onde o
professor criará situações que oportunizem a construção desse
conhecimento.
Assim o professor pode transpor as atividades e conteúdos
abordados em sala de aula com a realidade dos alunos, pois
conhecendo seus alunos, poderá interagir e dialogar com eles de
forma clara e segura quanto ao êxito de sua metodologia. Enquanto
cabe a escola “buscar viabilizar, socializar e sistematizar os
conhecimentos dos alunos, ampliando suas potencialidades de manejo
e aquisição do saber elaborado” (BRODBECK, 2012, p. 18).
Pois, assim como em outras áreas do conhecimento, aprender
História é construir e dominar conceitos, que se ampliam e ganham
novos significados através de uma relação dinâmica com outros
conceitos que são apresentados, afim de desenvolver um pensamento
crítico acerca dos acontecimentos passados e presentes.
REFERÊNCIAS
118
CAINELLI, Marlene. História. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o Ensino)
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vida. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997.
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1998.
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THEOBALD, Henrique R. A experiência de professores com ideias
históricas: o caso do “Grupo Araucária”. Curitiba: UFPR, 2007.
119
120
CRIMINALIZAÇÃO POLÍTICA NO ESTADO NOVO: O CASO DO
CÔNEGO CÉSAR ROSSI, O “PARTIDÁRIO DO NAZI-FASCISMO”
Leandro Mayer1
NOTAS INTRODUTÓRIAS
121
vozes para Rosemberg (2009) se cruzam, esbarram e se
complementam.
que os americanos não sairiam mais do Brasil, e que nas fortificações do norte
do país, guarnecidos por oficiais ingleses e americanos, não era permitida a
entrada de oficiais brasileiros, e que nestas fortificações guarnecidas por oficiais
brasileiros, os ingleses e americanos entravam e saíam a hora que bem
entendessem, e que por este motivo, havia quase sempre muitas bofetadas
entre oficiais estrangeiros e brasileiros (P. C. 4.405, 1943, p. 6).
Duilio José Pizani ainda fez outra acusação grave, dando conta
que o cônego teria, na mesma ocasião dos fatos narrados
anteriormente, dito que “os brasileiros eram incivilizados e que povos
civilizados só existiam três: alemães, italianos e japoneses e que a raça
inferior tinha que desaparecer, isto se referindo aos brasileiros”.
Finalizando, o depoente falou que soube que o cônego teria convidado
o juiz de paz do distrito de Mirim para “organizar um partido e que
depois deste partido vitorioso, eliminariam os maus elementos” (P. C.
4.405, 1943, p. 6).
122
Diante das acusações de Duilio José Pizani, inquérito foi
instaurado pela delegacia especial de polícia de Laguna para apurar as
declarações, sendo intimados para depor o acusado César Rossi e
testemunhas.
O acusado, cônego César Rossi foi o primeiro interrogado, em 29
de setembro de 1943. Descrito como sendo de nacionalidade Italiana2,
vigário da paróquia de Mirim, 64 anos. Interrogado sobre as denúncias
feitas pelo telegrafista Duilio José Pizani contra ele, o cônego
confirmou que em certa ocasião fez uma visita ao telegrafista, o qual
“atacou e insultou as potências do Eixo, principalmente a Alemanha,
dizendo coisas injuriosas contra aquele povo”. Afirmou que se
incomodou com a atitude do telegrafista, retirando-se em seguida e
dizendo ao telegrafista “que não tinha nada com as potências do
Eixo”. O acusado afirma que nada mais aconteceu além do fato
narrado, “negando o depoente ter se referido ao nosso país com
relação aos afundamentos de navios, declaração de guerra e mesmo
sobre as fortificações do norte, nem mesmo com relação a esta ou
outra raça” (P. C. 4.405, 1943, p. 9).
Na mesma data também foram ouvidas as testemunhas. Olimpio
Soares da Rosa, 53 anos, guarda-fios3 do telégrafo, relatou que em
certa ocasião o cônego César Rossi esteve na agência de correios e
telégrafos do distrito de Mirim onde o depoente é funcionário e ouviu
o cônego dizer “que não tinha ficado provado que os cinco navios
brasileiros, fossem torpedeados por submarinos do Eixo, mas que se
tivessem os mesmos sido torpedeados por navios ingleses ou
americanos, o governo brasileiro não teria declarado guerra a estes”.
O cônego também teria se referido às fortificações do norte do país,
afirmando que “os oficiais ingleses e americanos entravam nas
fortificações brasileiras, mas, aos oficiais brasileiros não era permitido
a sua entrada nas fortificações americanas”. Confirmou também que o
religioso teria afirmado “que só existiam três povos civilizados,
italianos, almães e japosenes, e que os demais povos eram incivilizados
e por este motivo deveriam desaparecer” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).
123
Questionado se o depoente conhece o cônego e quais as suas
atitudes face o conflito mundial, a testemunha respondeu que “o
cônego é francamente favorável ao Eixo e já tendo o mesmo feito uma
aposta como a Alemanha venceria a guerra” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).
Disse finalmente o depoente, que sabe que no tempo na extinta Ação
Integralista Brasileira, o cônego César Rossi era adepto do partido.
Avelino Bilherva Soares, operário, 29 anos, em depoimento
afirmou que é intendente do distrito de Mirim e que conhece a muitos
anos o cônego César Rossi, sabendo que o mesmo “é partidário das
potências do Eixo”. Afirmou que soube que o religioso fez inclusive uma
aposta que a Alemanha venceria a guerra. O depoente afirmou que “é
público e notório ser o cônego César Rossi, partidário das potências do
Eixo, como também já foi parte integrante da extinta Ação Integralista,
que o referido Cônego é italiano nato” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).
Teodoro Machado de Souza, lavrador, 67 anos, juiz de paz do
distrito de Mirim, relatou que conhece o acusado há muitos anos e que
o cônego vive se envolvendo em conflitos com as autoridades. O
depoente informou que em 19304 foi procurado pelo cônego para
formar “um partido político nas normas do partido que Mussolini
organizou na Itália”, explicando que o objetivo seria “juntar todos os
elementos, separando então os maus, e com o resto derrubar as
autoridades do lugar” (P. C. 4.405, 1943, p. 11). Por fim, afirmou que é
voz corrente no distrito de Mirim que o cônego é torcedor das
potências do Eixo.
Josina Mário Teixeira, 24 anos, professora municipal, declarou
que há algum tempo o cônego fôra afastado da paróquia por ser
italiano, e depois de sua volta teria falado na igreja que “na prática
tinha voltado para Mirim para mostrar ao povo que ele tinha poder, e
que ali achava-se vivo e verde” (P. C. 4.405, 1943, p. 11).
Aristotilino Quirino da Silva, guarda-fios, 42 anos, declarou que é
funcionário da agência de correios e telégrafos no distrito de Mirim.
Em seu depoimento confirmou na íntegra as declarações constantes
na denúncia de Duilio José Pizani, na condição de testemunha ocular
dos fatos que teriam ocorrido no interior da agência, enaltecendo que
o cônego manifestou-se a favor das potências do Eixo, sendo voz
recorrente no distrito wue o cônego é um “fervoroso adepto do nazi-
fascismo” (P. C. 4.405, 1943, p. 12).
4 Lembrar que nesta época a associação a partidos políticos não era criminalizada.
124
Ouvidas as testemunhas e o acusado, em relatório, o delegado
especial da delegacia especial de polícia de Laguna José Atanazio de
Freitas, considerou que no inquérito “ficou francamente provado que
o cônego César Rossi, vigário da paróquia de Mirim, é um ardoso
partidário do nazi-fascismo, parecendo-me ter o mesmo incidido nas
sanções do decreto-lei nº 4285 de 16 de maio de 1938[...] e outros
dispositivos da Lei de Segurança Nacional” (P. C. 4.405, 1943, p. 12). Por
fim, solicitou a remessa dos autos à Delegacia da Ordem Política e
Social em Florianópolis, onde foram recebidos em 12 de outubro de
1943. Na mesma data, o delegado em exercício do DOPS, Arnaldo
Martins Xavier, ordenou a remessa do inquérito ao Egrégio Tribunal
Superior de Segurança Nacional do Rio de Janeiro, onde consta a data
de recebimento do processo em 7 de dezembro de 1943.
Os autos receberam vistas pelo procurador do Tribunal de
Segurança Nacional Eduardo Jara em 31 de dezembro, o qual opinou
pelo arquivamento do processo, considerando que
5 Dispõe sobre o processo dos crimes definidos nas leis nºs. 38 e 136, de 4 de abril a 14
de dezembro de 1935. “Por divulgar em público notícias falsas, sabendo ou devendo
saber, que o são e que possam gerar na população desassossego ou temor” (P. C.
4.405, 1943, p. 12).
6 Define crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do
125
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTE PRIMÁRIA
126
A CAPOEIRA NO CONTEÚDO DA DISCIPLINA DE EDUCAÇÃO FÍSICA
EM ESCOLAS MUNICIPAIS DO INTERIOR DA BAHIA
INTRODUÇÃO
127
questões técnicas do jogo e estrutura hierárquica dos grupos (REIS,
2000).
Portanto, considerando o valor educativo da capoeira e sua
contribuição como prática pedagógica na escola, surge à inquietação
dessa pesquisa, no intuito de verificar a importância da capoeira no
conteúdo da disciplina de Educação Física para os professores de
escolas municipais de um interior da Bahia.
Essa pesquisa é relevante, pois a Capoeira pode e deve ser
utilizada como conteúdo nas aulas de Educação Física escolar, pois
além de ter um rico conteúdo histórico, desenvolver o aspecto físico-
motor, cognitivo e afetivo, é um excelente facilitador da aprendizagem
escolar.
128
pernadas e cabeçadas e movimentos improvisados), criada pelo Mestre
Pastinha; e a Capoeira Regional (jogo mais acrobático, com movimentos de
pernadas e esquivas rápidas), criada pelo Mestre Bimba (D’AMORIN; ATIL, 2007).
129
modalidade de esporte, jogo, folclore, arte e cultura com legitimação
(NATIVIDADE, 2006).
A capoeira é um conteúdo que pode ser contemplado na escola
pelos seus múltiplos enfoques, que possibilitam a luta, a dança, a arte,
o folclore, o esporte, a educação, o lazer e o jogo. A mesma deve ser
ensinada globalizadamente, deixando que o aluno se identifique com
os aspectos que mais lhe convier (SOUZA; OLIVEIRA, 2011).
Para D’Amorim e Atil (2007), a capoeira é extremamente
organizada, hierárquica, disciplinada e disciplinadora, com quadros a
quem se pede imenso respeito pelos mais velhos, criando uma relação
muito forte entre discípulo e Mestre. Ela por sua vez, se aprimora como
instrumento educacional e deve estar presente em diversos espaços
educacionais, pois pode contribuir para o desenvolvimento do
educando, transformando a escola em um espaço mais prazeroso para
todos.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
130
Como sujeitos, inicialmente foram escolhidos 14 professores de
Educação Física. Porém, como critério de inclusão deveria possuir a
capoeira inserida no conteúdo das suas disciplinas. Todos os
participantes disponibilizaram voluntariamente, via e-mail seus planos
anuais da disciplina do ano de 2018, para verificação da existência ou
não, da capoeira no conteúdo. Com isso, foram selecionados 3
professores que trabalhavam com o tema.
O professor da Escola 1, possuía formação em pedagogia, atuava
como professor da disciplina Educação Física desde o ano de 2015 e
lecionava no ensino Fundamental II.
O professor da Escola 2 era bacharel em Educação Física, atuava
enquanto professor dessa disciplina desde o ano de 2013 e lecionava
no ensino Fundamental I e Fundamental II. Além disso, também era
professor de capoeira pela Escola de Desenvolvimento e Apoio da Arte
Capoeira (ABADA- Capoeira), e realizava trabalhos sociais com
capoeira na comunidade.
O professor da Escola 3 era licenciado em Educação Física, atuava
nessa escola desde o ano de 2016, lecionava no ensino Fundamental II
e praticava capoeira a mais de doze anos.
Todos foram previamente esclarecidos sobre o estudo e
assinaram o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido, sendo
assegurado o direito de interromper sua participação em qualquer
etapa da pesquisa, sem nenhuma penalização ou prejuízo, bem como
sigilo e anonimato quanto aos dados coletados.
Adotou-se como instrumento da pesquisa um formulário que
constava perguntas abertas sobre a importância da capoeira nas aulas,
a forma como os professores abordavam pedagogicamente a capoeira
na aula de educação física e a experiência extracurricular com a
capoeira. Como técnica de pesquisa foi aplicado o questionário
presencialmente, em uma semana de aula, no período vespertino e
com duração total de duas horas.
A partir daí surgiram três categorias: I. Percepção do professor de
Educação Física em relação à capoeira; II. Abordagem pedagógica da
capoeira na aula de Educação Física; III. Experiência extracurricular do
professor em relação à capoeira. Todas essas categorias foram
analisadas através da análise descritiva.
131
RESULTADOS E DISCUSSÃO
132
crianças. Para Silva (1993) são os aspectos lúdicos presentes na
capoeira e ao mesmo tempo seu caráter combativo é que a faz tão
interessante. Além disso, o lúdico não deve ser entendido como um
passatempo ou simplesmente para divertir-se, mas para a contribuição
do ensino-aprendizagem, influenciando as dimensões cognitivas
afetivas e sociais do aluno, este internaliza novos conhecimentos,
apropria da cultura dando novos significados ampliando sua visão
sobre o mundo (MIRANDA, 2002; COSTA et al, 2018; NASCIMENTO,
2019).
Quanto à relevância do conteúdo da capoeira, o professor A
afirma que: “[...] ela não direciona somente à prática de movimentos
corporais. Faz uma ponte com a história, da forma como um povo
resistiu a uma imposição cultural diferente, sendo a capoeira uma peça
fundamental dessa resistência, portando a introdução dos conteúdos
da capoeira deve-se também a uma desmistificação de somente
enxergar como apresentação e espetáculo”.
O professor B diz ser: “[...] uma excelente ferramenta
pedagógica dentro de ambiente escolar, sua história e
desenvolvimento, vão além do desenvolvimento do componente
físico ou da defesa pessoal”. O professor C afirma que: “[...] a
educação física escolar deve-se apropriar do que foi produzido no
Brasil, sobretudo quanto às manifestações corporais. A capoeira é um
componente com muitas possibilidades, não pode ser negado aos
nossos alunos, estaríamos negando nossa própria história”.
Nessa mesma direção, Darido (2001) destaca a importância da
inclusão dos jogos, da dança, das lutas, da capoeira nas aulas de
educação física escolar entendendo este componente curricular como
um campo para se trabalhar com os elementos da cultura corporal.
Quando perguntados se a capoeira precisa ocorrer como nas
academias e se precisaria de uma formação continuada em capoeira, o
professor A salienta que: “[...] é importante em todas as áreas e não
seria diferente em Educação Física. Nas aulas os conteúdos de capoeira
devem seguir um curso diferente, não é somente a fruição dos
movimentos como fim em si mesmo, mas como um meio para alcançar
outras dimensões do conhecimento e com isto aproximar o estudante
destes conteúdos que talvez em outros contextos não acontecesse”.
O professor B enfatiza que “[...] é imprescindível à formação
continuada para uma melhor compreensão da capoeira, já que possui
133
nuances que são despercebidas de quem não o pratica. Além disso, o
ambiente escolar é um espaço para apropriação crítica do
conhecimento, não devendo estar restrito a aplicação da técnica,
portanto, a capoeira deve ser adaptada às diversas realidades
encontradas na escola”.
O professor C, diz que “[...] a formação continuada é importante,
não significando que será necessário ingressar em uma academia de
capoeira, pois isto é questão de gosto pessoal, cabe ao professor o
contato com livros, professores e mestres, a fim de ampliar suas
percepções a cerca desta prática”. Neste contexto Bahia et. al (2018)
afirmam que a formação continuada deve-se da mobilização dos
conhecimentos científicos, pedagógicos e as reflexões individuais e
coletivas dos docentes aproximando seus saberes da realidade
escolar, afim de melhorar o fazer pedagógico em todos os momentos
de atuação profissional, na busca de avanços qualitativos no ensino e
no exercício docente.
134
Silva (2018), portanto, falando sobre a “capoeirização” da escola,
ressalta que a capoeira possibilita novas abordagens e metodologias,
rompendo com o modelo reducionista de transmissão oral do
conhecimento, centrando, por exemplo, no “aprender fazendo”, num
aprendizado que envolve o “tato-cinestésico”, na valorização das
diferenças, da cooperação superando barreiras competitivas.
Quanto às facilidades e dificuldades no trato da capoeira nas aulas
de educação física o professor cita que: “a aula pode ocorrer na
própria sala de aula, e que muitos alunos já conhecem, facilitando o
processo de ensino”. O Professor B enfatiza que “os instrumentos de
capoeira podem ser confeccionados pelos próprios alunos e as aulas
poderão acontecer na própria sala de aula”. O professor C diz que “a
facilidade se encontra da própria liberdade dos gestos motores da
capoeira, não necessitando de um padrão rígido de movimento, como
ocorre em outras lutas”. Isto significa que os alunos podem
experimentar vários gestos motores e golpes, visando sempre
aumentar a eficiência de execução.
Quanto às dificuldades o professor A respondeu que: “por não ter
formação prática em capoeira e nem formação em educação física,
tenho dificuldade com o ensino dos movimentos e os alunos ficam às
vezes desmotivados e dispersos”. O professor B disse que: “a principal
dificuldade é o ensino para alunos evangélicos, muitos têm resistência,
sobretudo das músicas e do ritmo”, mas no geral não ver como
obstáculo e sim como possibilidade para o diálogo e buscar o
entendimento. O professor C disse que: “[...] não há dificuldades nas
aulas práticas e que os alunos assimilam bem, no entanto, alguns
alunos não se sentem motivados em função do ritmo e de muitas letras
musicais cantadas na roda se aproximarem de religiões de matrizes
africanas”.
Um estudo de Moura et.al (2012) sobre as dificuldades e
facilidades de inserção dos conteúdos da capoeira em escolas da
Rocinha, uma comunidade da cidade do Rio de Janeiro, apontou que
mesmo sabendo da importância destes conteúdos em sala de aula, os
professores optaram por não trabalhar, alegando formação deficitária
nos cursos de formação. Como facilidades destacaram não precisam
de espaços nem roupas apropriadas e que os instrumentos são de fácil
aquisição se comparado a outras lutas.
135
Quanto à estruturação deste conteúdo durante o calendário
letivo, o professor A respondeu que: “[...] opta por trabalhar somente
na última unidade de ensino, pois aproxima do período da data de
comemoração ao Dia da Consciência Negra”. O professor B disse que:
“[...] estrutura os conteúdos de modo que as lutas e capoeira ficam
para a quarta unidade”. O professor C também trabalha com este
conteúdo na última unidade letiva e ressalta ainda que: “[...] nesse
período é mais fácil fazer um paralelo com outros temas como ética,
cidadania e diversidade cultural”.
Quando foram perguntados se utilizavam alguma abordagem
pedagógica específica para introdução da capoeira nas aulas, o
professor A disse que: “não”. O professor B disse que: “não, mas é
crucial correlacionar estes elementos problematizando com os
problemas sociais, não devendo ser uma prática desvinculada deste
contexto”. O professor C disse que: “utilizo de várias abordagens
pedagógicas visando sempre despertar o senso crítico dos alunos
frente a estes conteúdos”.
Quanto ao que priorizavam na capoeira para incentivar os alunos,
o professor A afirma que: “[...] deve-se evidenciar o contexto social, a
formação de valores respeitando sempre as diferenças”. O professor
B diz que: “[...] nas séries iniciais do ensino fundamental, opta por usar
imagens e vídeos com acrobacias, pois ficam entusiasmados para
conseguirem executar tais movimentos e nas turmas subsequentes
prefere valorizar o contexto social valorizando as diferenças e a
pluralidade cultural”.
O professor C relata que: “[...] opta por uma abordagem lúdica,
explorando a criatividade e curiosidade dos alunos, mas sem perder o
foco”. Corroborando com as afirmativas dos professores, Bomfim
(2000) diz que a capoeira não restringe a mais uma atividade física
dentro da escola, que é necessário o debate político, socializador e
também, da promoção da igualdade racial.
136
“participo de grupos de capoeira mantendo uma rotina de treinos”. O
professor C disse que: “[...] atua também como professor de capoeira
fora do ambiente escolar, sendo subordinado a professores e mestres
dentro da hierarquia do grupo de capoeira”.
Segundo Silva (2011) esse contato com mestres de capoeira para
o aprimoramento de seus conhecimentos é muito importante, pois
possibilita a estes ampliar suas capacidades gestuais, a musicalidade e
inseri-los na sua prática pedagógica de forma prazerosa.
Quanto ao que fazem para ficarem informados sobre a capoeira,
o professor A respondeu que: “a principal fonte de pesquisa é a
internet”. O professor B disse que: “[...] a prática constante já o
mantêm atualizado, porque há sempre discussões nos grupos sobre
capoeira de modo geral”. O Professor C disse que: “a literatura deste
conteudo é bastante rica, tanto artigos na internet, livros e também o
contato com outros professores e mestres em rodas de capoeira e
cursos promovidos com o intuito de disseminação das práticas da
capoeira”.
Professores que se mantêm atualizados tornam-se mais
reflexivos em suas práticas docentes, reformulando e aprimorando os
saberes já adquiridos (MILEO, 2009). Além disso, o contato com
profissionais especialistas, segundo Silva (2011) possibilita a
compreensão das diferentes linguagens que compõe o acervo da
cultura corporal, riquíssimo no processo de ensino-aprendizado da
capoeira para os professores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
137
Além disso, como os próprios professores disseram, não é
necessária uma formação específica em capoeira para inserirem estes
conteúdos na sala de aula, não é a busca pela técnica ou a formação
do guerreiro que está em pauta, mas a capacidade de possibilitar
acesso a outras práticas, respeitando os limites e valorizando as
diversidades encontradas.
Quanto ao questionamento dessa pesquisa, os resultados
corroboram com a hipótese levantada quando ressalta que a presença
da capoeira no conteúdo da disciplina de Educação Física é importante,
segundo as percepções dos professores das escolas municipais
localizadas em um município do interior da Bahia.
No entanto, faz-se importante e recomenda-se a realização de
novas pesquisas, com um número maior de sujeitos, e em outras
instituições de ensino, para que possam almejar contribuições
importantes relacionadas à Capoeira e a Educação Física, a partir do
respaldo e valoração de outros professores.
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138
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140
DA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS ÀS PRÁTICAS DE FUTSAL
DISSEMINADAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA:
UMA NOVA ABORDAGEM
INTRODUÇÃO
minhas vivências dos tempos de menino o que me faz ressaltar as experiências vividas
na prática do futsal na área da educação física.
141
desde a infância, onde implementei regras para as brincadeiras, ainda
no fundo do quintal. Esse caminho trouxe-me outras ideias que hoje,
se fixam na educação física ao trabalhar com o futsal.
A referida obra não versa somente a infância, como trata da
criatividade e experiência acompanhada pela imaginação, o que me
faz colocar em cena novas compreensões enquanto educador. Assim,
diz o grande poeta: “Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gene brincava de brincar com as palavras tipo assim: hoje eu vi
uma formiga ajoelhada na pedra!” (BARROS, 2010, p. 449).
Essa é uma maneira única que o autor nos conta sobre a magia
das palavras e a beleza da natureza, recordando-me a figura de
menino, onde por muitas vezes, pude agraciar o verde que nos cerca
e nesse instante, recriar imagens para o contexto da educação física.
Ao tratar da infância recorro a Kuhlmann Júnior (2001), onde o
mesmo me faz relembrar os tempos e lugares, experiências vividas,
sendo produtores de histórias:
142
A educação física no Brasil surge ligada intimamente à formação e educação
corporal disciplinadora, com objetivos dos mais variados: militares, de saúde,
estéticos, esportivos de alto rendimento ou não, recreativos, servindo, muitas
vezes, a mecanismos de alienação ou propósitos políticos, valendo-se da prática
ou de eventos esportivos para desviar a atenção das tensões políticas e das lutas
ideológicas. Exemplos desses mecanismos encontram-se no jovem do final da
década de 60, que o governo militar buscava para formação de um exército forte
para desmobilizar correntes opositoras ao regime que vigorava, como também
no futebol, personificado na seleção brasileira, marcava o tom vitorioso de um
governo autoritário e ditatorial (JÚNIOR; TASSONI, 2013, p. 34).
143
UM OLHAR À LITERATURA: ENCONRO COM AS TEORIAS
144
envolve essa condição de ser professor, suas funções sociais, suas
reproduções, suas contradições e seus valores, para uma melhor
leitura de mundo e ensinamentos. Nesta perspectiva é preciso que se
tenha uma visão crítica sobre a Prática como um Componente
Curricular (PCC) e, como afirmam Souza Neto e Silva (2014, p. 891),
“não se trata de negar os esforços de interpretação e de aplicação da
lei que se têm realizado, mas de colocar em foco a questão sobre se os
caminhos adotados têm sido os mais promissores”.
Para Freire (1991, p.117), “o jogo de regras” é uma característica
do ser suficientemente socializado, que pode, portanto, compreender
uma vida de relações mais amplas. Enquanto joga, o aluno representa
e apresenta habilidades e condutas a que os adultos se submetem
quando vivem em sociedade, mas que para a criança, livre de pressões,
servirá de suporte para atingir habilidades de nível mais alto, quando
necessário. São as regras impostas pelo grupo na qual ele pertencerá
quando for para a escola.
145
serão previamente esclarecidos sobre o estudo e após, solicitado a
assinatura do termo de consentimento e livre esclarecido (TCLE) e
quando for o caso o termo de assentimento e livre esclarecido.
Para a coleta de dados, optamos pela realização de estudos a
partir da composição de quantos alunos e egressos. Assim, foi utilizada
a técnica de Grupo Focal, realizada em dois momentos, um
representado pelos discentes atuais e o outro pelos alunos egressos, o
que objetivou compreender a Prática como um Componente Curricular
(PCC) nos cursos de Educação Física e entender como os discentes
desses cursos visualizam a disciplina em questão, nos dias atuais.
Para uma melhor compreensão e abordagem do que seja um
grupo focal e como ele trabalha, Tanaka e Melo (2001, p. 41) destacam:
“É uma técnica de pesquisa ou de avaliação qualitativa, não-diretiva,
que coleta dados por meio das interações grupais ao se discutir um
tópico sugerido pelo pesquisador”.
A partir das abordagens desses autores, destaco os principais
passos metodológicos por eles mencionados que deram evasão ao
tema e guiaram o referido estudo a ser desenvolvido, a saber: definir
claramente o problema a ser avaliado; escolher um bom facilitador e
de preferência dois relatores para anotar a discussão; o grupo deve ter
uma composição homogênea, preservando certas características
heterogêneas - um balanço entre uniformidade e diversidade do
grupo; e a escolha das variáveis vai depender do que se avalia e do para
quê da avaliação.
Os procedimentos para a análise dos dados partiram do método
interpretativo. Eles partem do pressuposto de que a realidade social é
subjetiva e instável e os dados são resultados de uma construção dos
participantes mediante a interação com outros sujeitos. Sendo assim,
a interpretação dos dados qualitativos surge do entendimento da
realidade social e dos modos como essa realidade é percebida pelos
próprios participantes (FLORES, 1994).
Para tanto, o referido estudo auxiliará as aulas de Educação Física,
onde os alunos serão beneficiados indiretamente com informações
necessárias para o desenvolvimento das atividades físicas envolvendo
o futsal. Cabe aos participantes descobrir as potencialidades e/ou
possibilidades desta modalidade esportiva tão praticada nos últimos
tempos, como também é pretensão propor um equilíbrio de forças e
uma harmonização entre discentes praticantes de futsal, uma vez que
146
há muita reclamação dos alunos dos primeiros anos em relação às
disparidades de tamanho comparados aos discentes de segundo e
terceiros anos do Ensino Médio.
Nesse caminho recorro a Barros (2010, p. 452), quando afirma:
“Sua maior alegria era de ver uma garça descoberta no alto do rio. Ele
queria ser sonhado pelas garças”. Enquanto aqui, sonho com um
contexto mais inspirador para as aulas de Educação Física, talvez, mais
ousado. Deste modo, foram analisadas as respostas das 05 questões
restantes (Quadro 1) para a concretização do presente trabalho.
Aluno 01 – Sim, me sinto motivado sim, porque com essa nova maneira a gente tem
mais possibilidade de jogar sem levar pancadaria, não prevalece a força e sim a
habilidade e o pensar no jogo.
Aluna 02 - A mudança já estamos fazendo com essa nova maneira de ver o futsal aqui
na escola, na nossa escola, no CELEM, pois agora tanto nós do 1º ano, quanto o pessoal
do segundo do terceiro, todo mundo joga de igual para igual, sem ter aquela de que
só os terceiros anos são os mais fortes. Todos nós podemos participar com igualdade
de condições graças ao trabalho do professor Ademilton.
Aluno 03 - Olha eu só gostava de futsal, mas agora estou gostando mais de outras
atividades como o basquete, o vôlei, o handebol que é muito interessante a gente joga
com as mãos. Quem tem habilidade com os pés, com as mãos também tem. Mas que
não tem habilidade com os pés como diz o professor: “se sabe jogar pedra em galinha,
sabe arremessar a bola de handebol.”.
Aluno 04 - Ah, é muito bom, pois a gente se ver respeitado, participa das atividades.
Tem os eventos da escola como os jogos que acontecem todo ano, em Julho, quando
agente retornar das férias. Já é uma data certa, então isso é muito bom, tem os jogos
também que a gente participa, o JERP/BA, isso é interessante, isso faz a escola ficar
interessante e o professor sempre está com a gente ajudando e orientando. Então
estamos sempre participando, eu gosto muito, já estou no terceiro ano e essa é minha
terceira vez que vou participar dos jogos lá em Conquista.
147
Aluno 05 - Essa é fácil, aqui no CELEM é fácil responder, pois a aula de educação física
é legal. A aula aqui no CELEM é maravilhosa. Pena que já estou no segundo ano e o
terceiro ano só tem uma aula de educação física, mas tenho que passar para o terceiro
ano. Mas vamos fazer dessa aula, também, uma boa aula. Então o que seria bom de
uma aula aqui? Aula que é boa então é a que acontece, é a aula que está acontecendo.
Essa é a boa, então a gente faz ficar melhor ainda, apesar de não termos uma quadra
coberta. O sol é muito quente, mas a gente desenvolve nosso trabalho, o professor
ajuda demais a gente.
RESULTADOS
148
necessária aquela mudança. Então o que podemos observar é que os
alunos abraçaram essa nova maneira de disputa. Tanto homens quanto
mulheres abraçaram a ideia.
Assim sendo entendemos que essa proposta de adaptação de
regra tem ajudado e, muito na formação do caráter dos alunos
enquanto pessoas éticas para viver em sociedade.
Muitas vezes, nos jogos em quadra os alunos acabam colocando
em disputa, talvez até diferenças familiares que existam. Diferenças de
adolescentes que é disputa pelo espaço e aí a partida deixa de ser
prazerosa e acaba se tornando uma guerra entre aspas.
Então o que podemos concluir é que a adaptação de regras
proposta pelo CELEM de Caraíbas - BA, nesses últimos anos tem
contribuído em muito para o desenvolvimento de jovens e futuros
cidadãos, os pais de famílias inseridos numa sociedade cada vez mais
excludente onde os valores éticos nem sempre são observados como
deveriam ser.
Retomando a literatura Menino do Mato, vale lembrar que, a
narrativa faz parte do 20º livro, sendo um dos últimos trabalhos de
Manoel de Barros que nesse enredo vem deslumbrar como via de
aproximação e embelezamento para discutir a pesquisa e fazer-me
regressar a pureza na figura de menino, de um empo que implantava
regras nas brincadeiras da infância.
Na orelha do livro emanam-se as palavras, a vida colorida do
poeta:
[...] Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem
comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um
orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.
Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das
coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda
a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter
sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e
comunhão com ela. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as
árvores (BARROS, 2010, p. 450).
149
de reinventarmos sempre as nossas práticas educativas e, por fim a
história que me acompanha desde os tempos de menino.
150
6. Cada equipe começará o jogo com 100 (cem) pontos, uma vez
que o resultado definidor da agremiação vencedora ao final da
partida se dará por meio da soma dos pontos obtidos observando
critérios de adaptação das regras dispostos acima.
A seguir, apresenta-se o modelo de uma ficha/ súmula de uma
partida jogada durante realização dos Jogos Internos do CELEM –
edição 2019:
151
CHEGUEI VAZEI GOL = 20 FALTAS BOLA NO CHAPÉ SAIN C C
PONTOS – TRAVESSÃO U = 5 H A V
10 = PONTO A = 5
PONTO 15 PONTOS S PONT
S OS
01 XXXXXX I
FERREIRA
03 YYYYYY CHAVES I I I
08 WWWWWW III I I
ALMEIDA
10 XXXXXXX PATEZ I
11 HHHHHHH LIMA
07 KKKKKKK I
MELLO
13 ZZZZZZZZZZ I
CARLOS
02 JJJJJJJJ SILVA
12 ZXZXZXZX
ARAGÃO
Nº TODAS AS 100+80 10 + 30 + 15 + 10 TOTA
JOG EQUIPES = - 120 = L
O JOGARÃO A 180 110 165
MODALIDADE
FUTSAL
A CADA GOL SOFRID
SOFRIDO O
SERÁ SUTRAIDO - 60 =
10 120
PONTOS
Fonte: Elaboração própria da pesquisadora, 2019.
Logo, a educação deve caminhar para a vida afetiva, intelectiva, corporal, social
e espiritual do aluno, sem as divisões tão usadas nas escolas. Sabemos hoje que
educar não é apenas estar preparado para o mercado de trabalho e acumular
informações e conhecimento. Pelo contrário, o mundo exige pessoas com uma
visão ampla, o que engloba autoconhecimento, desejo de aprender, capacidade
de tratar com o imprevisível e a mudança, capacidade de resolver problemas
152
criativamente, aprender a vencer na vida sem derrotar os demais, aprender a
gostar de progredir como pessoal total e crescer até o limite de nossas
possibilidades, que são infinitas (MARINHO et al., 2007, p. 45).
153
limitações, na possibilidade de aceitar regras visando o respeito para
com o outro, através da construção do conhecimento e das vivencias
do dia a dia. Logo, investigo quais os procedimentos metodológicos
possíveis e adequados para ensinar o futsal na escola. E como não
voltarmos ao grande poeta (BARROS, 2010, p. 452), já que falamos de
lugares bonitos e de criação! Assim, diz o autor: “Lugar mais bonito de
um passarinho ficar é a palavra. Nas minhas palavras ainda vivíamos
meninos do mato, um tonto e mim”.
A adaptação de regras implantadas no Colégio Estadual Luis
Eduardo Magalhães também apresentada como tese de defesa de
conclusão de curso em licenciatura em educação física na UESB de
Vitória da Conquista, surge da necessidade de buscar um equilíbrio
entre partidas de futsal realizadas na unidade de ensino CELEM em
caraíbas. Há 19 anos ou mais precisamente a partir 2000 quando
implantado ensino médio em Caraíbas a disciplina educação física
sempre era relegada a segundo plano, ou seja, qualquer professor de
qualquer formação, muitos sem formação nenhuma, atuavam como
regente de turmas. No ano de 2006, me foi ofertada a disciplina
educação física, aceitei o desafio com uma condicionante, que o
trabalho seria feito com todas as turmas e não como era feito. Antes
era fracionada, cada turma tinha um professor.
Logo percebi que alguns alunos, mais precisamente os dos
primeiros anos evitavam jogar contra os alunos mais experientes da
unidade de ensino. Essa recusa como já fora relatada acima de dava
por se considerarem inferiores em ralação aos outros alunos dos
segundos e terceiros
CONCLUSÃO
154
ensinamentos que a vida traz. E assim cada sujeito constrói sua cultura,
seu saber num universo de sonhos, através do exercício constante de
retroalimentação da aprendizagem. Assim, fortaleço meus
ensinamentos sobre a literatura Menino do Mato: “É a voz de Deus que
habita nas crianças, nos passarinhos e nos tontos. A infância da
palavra” (BARROS, 2010, p. 455).
A partir dessa pesquisa tenho a plena consciência de que estou
contribuindo para o melhoramento das aulas de educação física no
tocante ao futsal, mas a contribuição se deu devido a muitas
contribuições e estudos de artigos científicos publicados nesses
últimos anos.
Com esta adaptação de regras tem-se observados que os alunos
têm absorvido e entendido a proposta de uma parte dessa pesquisa
terei a oportunidade de difundir essa proposta a proposta pensada em
prol do bem-estar do alunado.
Ao final desse trabalho estarei com uma bagagem maior para
trabalhar e desenvolver as minhas atividades não só no Colégio
Estadual Luís Eduardo Magalhães, mas também em outras unidades de
ensino, haja vista que trabalho, também, na rede Municipal de
Caraíbas. Recentemente fizemos um trabalho de intervenção lá nesta
Unidade Escolar onde aplicamos essa adaptação de regras com alunos
do ensino fundamental 1, mais precisamente alunos do 4º e 5º anos e
foi bem aceito. Os alunos entenderam o trabalho, principalmente
começando com as crianças de menor idade vai surtir um efeito. Não
que o efeito que vem sendo obtido junto aos adolescentes do ensino
médio não seja satisfatório, mas vai dar uma contribuição. Então, o
objetivo principal agora com a conclusão dessa pesquisa é que ela seja
publicada e seja difundida para outros colegas professores adapte,
entenda e leve para suas escolas.
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156
DANÇA FOLCLÓRICA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E A
INCLUSÃO DE UM ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL EM UMA
ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA
Introdução
157
possibilidades que surge no espaço das aulas, e pode ser um fator de
inclusão para pessoas com deficiência em seus mais amplos aspectos.
Nesse contexto, Vieira (2014) ressalta que dançar é uma das maneiras
mais divertidas e adequadas para ensinar na prática todo o potencial
de expressão do corpo.
Ao considerar que a dança leva o indivíduo a desenvolver sua
capacidade criativa, em uma descoberta pessoal de suas habilidades,
surgiu à necessidade de realizar essa pesquisa, com o objetivo de
analisar a importância da dança folclórica nas aulas de Educação Física
para a inclusão do aluno com deficiência intelectual.
Portanto, tomando como referência estas argumentações, este
estudo aponta a dança folclórica como uma atividade inclusiva para o
aluno com deficiência intelectual na participação e no interesse das
aulas de Educação Física.
158
professores se deparam com esses alunos, muitas vezes não sabem
como lidar com a situação.
Assim, cabe à escola buscar formas de tornar esses espaços
inclusivos, a fim de que os alunos possam interagir independe das
limitações. Como enfatiza a Declaração de Salamanca (1994), o
princípio fundamental das escolas inclusivas consiste em que todos os
alunos aprendem juntos, sempre que possível, independentemente
das dificuldades e das diferenças.
As escolas devem reconhecer as necessidades diversas dos seus
alunos adaptando-se aos vários ritmos de aprendizagem, garantindo
um bom nível de educação para todos, através dos currículos
adequados, de uma boa organização escolar, de estratégias
pedagógicas e de utilização de recursos. Segundo Garcia (2012) o
educador deve ter uma atitude consciente na busca de uma prática
pedagógica mais coerente com a realidade. A dança leva o indivíduo a
desenvolver sua capacidade criativa, numa descoberta pessoal de suas
habilidades, podendo contribuir de maneira decisiva para a formação
de cidadãos críticos, autônomos e conscientes de seus atos, visando a
uma transformação social. Assim, uma das possibilidades de incluir os
alunos com deficiência intelectual nas aulas de EDF certamente seria
por meio da dança.
159
Assim, atrelar a dança, especificamente à dança folclórica nas
aulas de EDF, pode ser não só prazerosa para os alunos com
deficiência intelectual, mas também para os professores apreciarem
a riqueza que possam ser apresentadas. Há um mundo de infinitas
possibilidades que podem contemplar este trabalho, além do
resgate cultural que venha a ser proporcionado.
A EDF por sua vez, recebe constantemente este desafio para lidar
com essa prática no cotidiano, no entanto, a dança, se apresenta como
excelente oferta de inclusão dos alunos com deficiência intelectual
nessas aulas, de uma forma inovadora, que desperta de fato a atenção
e participação desse alunado que, muitas vezes se percebe meio que
ignorado ou incapaz de socializar-se com os demais.
Lauar e Mattos (2014) nos dizem que a inserção da dança como
componente curricular nas aulas de EDF é um desafio que deve ser
assumido pelos educadores, especialmente quanto à constituição de
práticas pedagógicas de caráter lúdico, com definição de percursos
metodológicos específicos, conectando o conjunto de experiências
discentes e os saberes trabalhados pela escola. Assim, a aceitação é
um passo primordial para que as relações em sala de aula se
efetivem. Aceitar o ritmo, o espaço e o tempo do aluno, poderá vir a
fazer diferença em quaisquer trabalhos que tenham como meta
proporcionar a inclusão escolar do aluno com deficiência intelectual.
CAMINHOS MetodolÓGICOS
160
A inserção desse aluno na escola só aconteceu quando ele
completou 18 anos de idade, após recomendações médicas e
encontrou dificuldades a partir do momento em que foi inserido, entre
elas: momentos de comportamento agressivo, dificuldade de lidar
quando não tem posse do medicamento, a falta de interação com
outras pessoas e o mais comprometedor foi o fato de ter agredido
fisicamente a diretora da escola anterior onde estudou.
Trata-se de um estudo observacional, descritivo e com uma
abordagem qualitativa. Como instrumentos foram utilizados o diário
de campo e o formulário de observação que objetivou descrever como
é realizada a dança folclórica na aula de EDF, e demonstrar o
comportamento do aluno com deficiência intelectual, durante a dança
e sua inter-relação com a professora e com os colegas.
O estudo teve como técnica a observação, que foi realizada em 7
semanas de aulas, no período vespertino, no período de 09 de outubro
de 2018 à 20 de novembro de 2018. Os dados foram analisados através
da análise descritiva, onde, segundo Gil (1999) esse tipo de pesquisa
tem como objetivo primordial a descrição das características de
determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de
relações entre variáveis.
Resultados e Discussão
161
A escola anualmente desenvolve vários projetos, inclusive sobre
o folclore. Foi decidido experimentar uma atividade diferenciada de
acordo o que já estava previsto no plano de curso, porém de uma
forma nunca realizada antes. Então, pensou-se em trabalhar a temática
das danças folclóricas e analisar mais profundamente como ocorreria
à participação do aluno com deficiência intelectual, da turma do 6º ano
nesta atividade.
Como destaca o Coletivo de Autores (1992), a dança é uma
expressão representativa da linguagem social que permite a
transmissão de sentimentos, emoções, afetividade vivida e dimensões
da religiosidade, do trabalho, dos costumes, hábitos e da saúde.
Na realização da atividade o aluno com deficiência intelectual
manteve-se participante, feliz e tinha um papel importante. Nessa
direção Lauar e Mattos (2014), ressaltam que a dança produz uma
sensação de alegria, sendo essas atividades fundamentais para a
expressão dos sujeitos, pois se vincula às expressões francas e diretas
de sentimentos em um contexto social que conectada cognição,
afetividade e motricidade.
O início da atividade se deu de forma muito bem sistematizada. A
princípio, o conteúdo foi discutido por meio de uma apostila elaborada
e levada para discussão em sala de aula. Como destaca os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998), quando realizar-se o contato com estas
danças é necessário aprofundar-se, buscar conhecê-las, situá-las e
ressaltar a importância de sua prática e significado. Não se trata
apenas do dançar por dançar. Faz-se necessário também conhecer o
seu contexto histórico diante da temática apresentada.
Assim, a professora demonstrou imagens das danças folclóricas
mais comuns no Brasil e especificamente da nossa região onde foram
destacadas: a quadrilha e o samba de roda. Em seguida, vários vídeos
foram demonstrados para que os alunos percebessem como eram
realizadas cada tipo de dança. Foi lançada a proposta de em grupos,
apresentarem uma atividade do tipo de dança folclórica, ao qual fosse
obtido o tema por sorteio e os ensaios aconteceriam no decorrer das
aulas.
Com isso, as aulas seguiram por 7 semanas, nas 2 horas das aulas
de EDF, para que pudessem montar suas apresentações na escola. A
professora ficava revezando nos espaços para acompanhar o
andamento e o comportamento dos alunos, bem como obtinha ajuda
162
dos meninos do Programa Mais Educação e da secretaria da escola na
tentativa de manter a ordem nos ensaios, priorizando também a
segurança dos alunos.
Esses ensaios também aconteceram nas aulas de outros
professores que se sensibilizaram com a proposta e em alguns
momentos cediam o horário ou parte dele para garantir assim uma
melhor apresentação, porém, sempre atentos, principalmente ao
grupo do aluno com deficiência, pois todos já conheciam suas
limitações.
O aluno com deficiência por sua vez, era muito ativo e
participante e, por muitas vezes se dirigia a professora para reclamar
quando seus colegas ficavam dispersos e se desconectavam por
instantes dos ensaios.
A culminância da atividade se deu no mês de novembro com as
apresentações de cada dança folclórica. A pedido dos alunos cada
turma apresentou apenas para sua turma, porém os pais autorizaram
a filmagem e fotografia, bem como sua divulgação.
Os alunos, mesmo em sua maioria sendo carentes,
providenciaram o figurino da dança, de acordo com suas condições,
confeccionaram instrumentos musicais fictícios para incrementar a
apresentação e o aluno com deficiência foi um destaque no samba de
roda. Mesmo com seu jeitinho tímido, se sentiu muito a vontade e suas
limitações por causa da deficiência não o impediram de participar e se
destacar.
Foi enaltecedor poder ver numa escola pública, uma ação simples,
voltado para a dança folclórica por meio do ensino de EDF, agregar
expressões de felicidade, ao mesmo passo em que inclui o aluno com
deficiência intelectual e resgata valores. Neste contexto:
163
do aluno com deficiência atuando em cada momento da atividade.
Segundo Lauar e Mattos (2014) a dança produz a sensação de alegria,
sendo essas atividades fundamentais para a expressão dos sujeitos. O
trabalho com a dança vincula-se às expressões francas e diretas de
sentimentos em um contexto social que conectada cognição,
afetividade e motricidade.
164
culpa da agressividade do aluno com deficiência intelectual à sua
condição, o que, geralmente ocorre em espaços escolares.
Em relação às aulas, nem tudo chamava a atenção desse aluno, e,
muitas vezes se ausentava por horas. Porém, quando foi lançada a
temática: Folclore, ele fazia questão de participar dos ensaios e até
sugeriu ideias de roupas para os componentes do grupo nas primeiras
reuniões da apresentação. Com isso, apesar de não costumeiramente
participar de tudo o que era proposto, com esta proposta, se percebeu
como parte importante da atividade.
Perceber o aluno com deficiência intelectual na atividade com a
dança folclórica nos remete à ideia proposta por Mantoan (2011) que
destaca a preocupação da escola inclusiva em oferecer condições para
que todos possam aprender, como sendo aquela escola que busca
construir no coletivo um contexto pedagógico que atenda todos os
alunos e que compreenda a diversidade humana como um fator
impulsionador das novas formas de organizar o ensino.
É gratificante ver a interação, participação e assiduidade do aluno
com deficiência intelectual, especialmente nos dias de aula de EDF,
pois, durante o período de ensaios até o dia da apresentação, ele não
se ausentou e manteve sempre presente.
No dia da apresentação seu grupo realizou o samba de roda,
adotaram como método a roda em casal. O aluno com deficiência
intelectual se sentiu à vontade e sua presença foi muito importante no
processo. De acordo com Lehnhard e Antunes (2012) atividades
realizadas em conjunto ressaltam a capacidade de conviver,
comunicar-se ou relacionar-se com as pessoas, além disso, pode ser
entendido como uma ligação de amizade ou de afeição que depende
de uma gama de atitudes em nível de reciprocidade.
165
na sala de aula, que a prática pedagógica, entrelaçada por valores,
conceitos, preconceitos e estereótipos, se efetiva.
No momento da observação percebeu-se que na turma há
aceitação e respeito com o colega que apresenta deficiência
intelectual e nenhum tipo evidente de preconceito, em apenas um
momento, foi observado um tratamento diferenciado por parte de um
dos colegas, mas que foi imediatamente contido pela intervenção da
professora de EDF e pela equipe gestora da Unidade Escolar.
Portanto, o respeito se sobressaia e facilitava o trabalho com as
danças. Se a criança com deficiência for aceita pelo grupo e for
estimulada para realizar as mesmas atividades que os colegas sem
deficiência, ela terá seu sentimento de capacidade aumentada o que,
consequentemente, melhorará sua aceitação (LEHNHARD; ANTUNES,
2012).
Na culminância do trabalho que foi apresentado somente para a
turma, no final do mês de novembro do ano letivo de 2018, o aluno com
deficiência se mostrou muito entrosado com todos os colegas e com o
grupo de trabalho ao qual foi designado. Participou da apresentação
da dança “Samba de Roda”, onde, extremamente feliz, pôde
contribuir com a demonstração de um tipo de samba regional. Nessa
direção Oliveira e Reia (2017) destacam que as pessoas com deficiência
intelectual necessitam de atenção e credibilidade, e quando
incentivadas, elas nos mostram aprendizagens e desenvolvimentos
surpreendentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
166
Assim, vale ressaltar que uma atividade tão importante e
realizada com êxito, não pode acontecer apenas uma vez no ano e nem
somente nas aulas de EDF. A escola pode vislumbrar da ideia para
programar um projeto mais sistematizado e bem mais amplo, haja
vistas que tem a capacidade de instigar e aguçar o lado artístico e
participativo, principalmente do aluno com deficiência intelectual.
Além disso, faz-se importante a realização de novas pesquisas,
com alunos que apresentem outras deficiências, na própria e em
outras instituições de ensino enfatizando a dança folclórica como
atividade inclusiva nas aulas de EDF.
REFERÊNCIAS
167
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Editora Atlas, 2006.
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http://www.efdeportes.com/>. Acesso em 29 de maio de 2019.
168
NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL:
UM COMPROMISSO COM A EDUCAÇÃO FÍSICA
INTRODUÇÃO
169
marcou nossa vivência. Nesse cenário ficam acordados os objetivos de
compartilhar momentos que consideramos importantes nas
experiências docentes e escolares, por exemplo: o que aprenderam e
aprendem na escola e nas aulas; o que é importante na escola e o que
pode ser melhorado, bem como, conhecer a construção da identidade
que ocorre no processo em que o sujeito está inserido e na
apropriação dos significados de sua trajetória tanto pessoal como
profissional, que se apresentam como ferramentas pedagógicas.
Na obra Memória e Sociedade: lembranças de velhos, Bosi (1994)
articula as vivências ao olhar das memórias que vêm mostrar não
apenas lembranças, mas também silêncios e esquecimentos. Dessa
maneira, nascem as narrativas como formas de falar sobre a sociedade
e a cultura dos sujeitos que atravessam gerações. Destacamos então,
essas memórias que podem ser compreendidas como possibilidades
formativas. Souza (2006), afirma:
170
gestores mais compreensivos, sensíveis e próximos da realidade social
dos alunos o que difere da minha época.
Como objetivo geral apresentamos: Analisar de que forma é
trabalhada a Educação Física das séries finais do Ensino Fundamental
II e quais fatores contribuíram para a formação profissional de alguns
professores. Em se tratando dos objetivos secundários abordamos: 1-
Conhecer a construção da identidade que ocorre no processo em que
o sujeito está inserido e na apropriação dos significados de sua
trajetória tanto pessoal como profissional, que se apresentam como
ferramentas pedagógicas; 2- Entender a importância das experiências
escolares para uma formação docente.
Para isso, buscamos um pequeno grupo de trabalho que
consideramos comprometidos, teoricamente e na prática, importante
para os conhecimentos estratégicos dessa pesquisa e socializadores,
compartilhando experiências e sustentando esse discurso. No que
tange à formação profissional, procura-se debater acerca das
formações nos espaços formais questionando as dificuldades e
diferenças. Formação que, ao se situar no tempo tem uma ação de
caráter educativo teórico/prático, confronta-se com a constante
tomada de decisões em contextos de incertezas ao exercício da
docência. Nessa direção Libâneo (2004), ressalta:
171
recolhimento da história, de modo a refletir sobre os lugares de onde
se fala, se narra. Acredita-se serem essas, as principais condições para
que o narrador possa aproveitar desse momento e, a partir dele,
produzir novas elaborações sobre o tempo presente, enquanto
pesquisador, já que carregamos uma riqueza de linguagens e do
contexto vivido, abrindo espaços para uma nova pesquisa.
172
espaços formadores nos alertando para uma história compreendida
como as experiências passadas, que é a construção de um novo
conhecimento, de um novo saber. Nesse trabalho, busca-se acenar
uma visão reflexiva sobre o processo ensino e aprendizagem na
Educação Física, para refletirmos sobre a prática desenvolvida nos
estabelecimentos de ensino, onde por vezes, algumas instituições,
ainda prega o rigor em suas práticas educativas. Dessa forma,
propomos uma efetivação de práticas narrativas coerentes com os
princípios do respeito ao bem comum, formando cidadãos
conscientes, sadios e felizes cumprindo seu papel no mundo.
CAMINHO METODOLÓGICO
173
Cristina Piana (2009, p. 169), ao mencionar Gonsalves (2001, p.67),
afirma:
174
conteúdo das mensagens, indicativos que possibilitem a inferência de
conhecimentos relativos às condições de reais destas mensagens.
A terceira parte do trabalho é constituída por narrativas oriundas
dos três profissionais escolhidos do Centro Educacional Getúlio
Vargas, no município de Cândido Sales, Bahia. Nesta etapa, intercruzo
memórias e narrativas dos respectivos docentes, numa breve
caracterização e formação profissional, onde, por questões éticas sua
identidade é preservada, sendo substituídos por nomes de flores (Flor
de Lis, Flor de Cheiro e Flor do Campo), o que me faz colocar em cena o
tópico chamado: Um Canteiro de narrativas e formação profissional.
Vale ressaltar que, os participantes da pesquisa foram previamente
comunicados e esclarecidos sobre o artigo em questão, sendo,
posteriormente, solicitadas as assinaturas do termo de
consentimento e livre esclarecido (TCLE).
PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO
175
pesquisa lugares de histórias e memórias, desafios e reconstruções no
processo ensino e aprendizagem, discutindo distanciamentos e
aproximações entre a prática e teoria. Assim, anuncia Laurence
Bardin: “Por detrás do discurso aparente geralmente simbólico e
polissêmico esconde-se um sentido que convém desvendar”
(BARDIN, 1977, p. 14).
Aqui, trilhamos pelas categorias apresentadas pela autora,
primeiramente houve uma pré-análise, considerando os discursos dos
participantes e suas ideias iniciais. Depois a exploração do material,
para um melhor contato e conhecimento das abordagens. Por fim, o
tratamento dos resultados, por meio da transcrição que aparecem na
pesquisa através dos discursos, o que contribuiu significativamente,
para o refinamento da pesquisa. As três etapas apresentadas foram
cumpridas aproximadamente no período de 6 meses, o que procurou
garantir a integridade do processo.
176
Educação Física acontecessem de maneira lúdica, alegre e descontraída
no contexto da escola. Humm, lembro-me como hoje... Era como se fosse
um doce que tirando da nossa boca, (risos). Ali, todo o encanto acabava,
pois, essa era a melhor e a mais esperada aula (Flor de Lis, 25/07/2019).
Para o pensamento de Foucault (1971, p. 7), o homem propaga
sua história lançando uma compreensão para as mudanças
necessárias. Assim, diz o autor: “Ao invés de tomar a palavra, eu
gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo
possível”.
Aqui, percebemos um acento sobre a condição histórica que por,
muitas vezes, afetam o processo ensino e aprendizagem e,
consequentemente as pessoas. Quanto ao discurso o filósofo nos
presenteia dizendo:
177
É através da análise discursiva que percebemos os sentidos fincados
nas trajetórias de vida e formação profissional, sejam nas palavras, nas
imagens ou, até mesmo durante os momentos de recordação, esses que
apresentam como marcas para interpretar o entendimento do lugar
marcados pela História. Neste momento, Foucault busca compreender o
discurso pela análise do saber, pois “[...] não há saber sem uma prática
discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber
que ela forma” (FOUCAULT, 2005, p. 205).
Ao dialogar com Flor do campo percebemos seus pensamentos de
análise para o processo ensino e aprendizagem, ao afirmar: À medida que
fui conhecendo a Educação Física fui sendo fisgado por ela e transformando
os meus hábitos e a minha vida de forma que mantenho hoje, hábitos
saudáveis associado à atividade física. Aqui, enfatizou o discurso como
portador de histórias, lugares e compreensão das ideias permanentes na
memória, possibilitando o que Foucault chama de formação discursiva e,
assim aborda o discurso como uma descontinuidade.
178
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
179
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Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
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180
AVANÇOS DAS POLÍTICAS DE ENSINO TÉCNICO-PROFISSIONAL
EM MOÇAMBIQUE
INTRODUÇÃO
Em Agosto de 1995, foi aprovada pelo Governo uma nova política nacional de
educação, reconfirmada pelo “Plano Nacional de Desenvolvimento do Sistema
Educativo”, discutido com os doadores em Setembro de 1997, em que se
definiram as grandes orientações para os anos vindouros, a saber: melhorar o
acesso à educação e a qualidade do ensino. Já nesse momento, foi atribuído ao
Ensino Técnico-Profissional um papel muito significativo, afirmando-se como
prioridade reabrir e criar escolas de artes e ofícios e elementares de agricultura
e pecuária, e incentivar outras iniciativas neste domínio, por forma a promover o
autoemprego (AZEVEDO; ABREU, 2007, p. 25).
As EAO eram escolas-oficinas e tinham por finalidade principal dar aos seus
alunos, quase sempre população autóctone, uma preparação profissional
prática, a que se juntava alguma formação académica, bastante elementar,
181
equivalente ao primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária. Os
oficiais deles saídos, viam em geral melhorada a sua situação económica,
diferenciando-se mesmo dos trabalhadores rurais, socialmente mais
desfavorecidos. A primeira escola foi criada em 1907, na Ilha de Moçambique,
pelos padres Salesianos, e oferecia formação nas áreas das artes gráficas e da
carpintaria. Desta escola-oficina saía boa parte do material impresso que
circulava, ao tempo, em Moçambique (AZEVEDO; ABREU, 2007, p. 26).
182
respeito da questão da educação moçambicana, em diversos âmbitos.
Valeu-se ainda da pesquisa bibliográfica, mediante consultas a estudos
já publicados, com o intuito de também proceder a uma abordagem
sobre atual cenário ensino técnico-profissional da educação
moçambicana.
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola
única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo
o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente,
industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual.
(GRAMSCI, 2004, p. 33).
183
para criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na
iniciativa (GRAMSCI, 2004, p. 36).
184
do sistema de educação profissional é a introdução de métodos, currículo e
modalidades de formação que respondem às necessidades do mercado de
trabalho (MOÇAMBIQUE, 2018, p. 1, grifo nosso).
185
definidos pela Política Nacional de Educação, quais sejam: aumento do
acesso e equidade; melhoria da qualidade e relevância do ensino;
reforço da capacidade institucional do Ministério da Educação. O Plano
Estratégico de Educação (PEE) propõe três principais objetivos para o
sistema educativo: aumentar o acesso às oportunidades educativas
para todos os moçambicanos e em todos os níveis do sistema; manter
e melhorar a qualidade da educação, e por último desenvolver um
quadro institucional e financeiro que possa no futuro, sustentar as
escolas e os alunos (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1998).
Ainda no mesmo ano de 2005, surge outra mudança. Houve
extinção dos Ministérios da Educação e da Cultura e foi criado o
Ministério da Educação e Cultura, mantendo na sua gênese a estrutura
Direção Nacional de Educação Técnico-Profissional e Vocacional
(DINET). Por sua vez, a DINET teve a responsabilidade de elaborar o
segundo Plano Estratégico da Educação 2005/2009 (PEE II), que tinha
como objetivo redução da pobreza absoluta; assegurar a justiça e a
equidade do gênero e a luta contra a propagação do HIV/SIDA e a
mitigação do seu impacto.
Como parte integrante do PEE I e do Plano de Ação para a
Redução da Pobreza Absoluta (2001-2005), a estratégia do Ensino
Técnico-Profissional em Moçambique (2002-2011), “Mais técnicos,
novas profissões, melhor qualidade”, identifica as opções e ações
prioritárias a serem implementadas visando ajustar o ETP aos desafios
do desenvolvimento econômico de Moçambique.
Assim, esse documento destaca que o ETP tem como missão
garantir aos cidadãos o acesso a uma formação científico-técnica
altamente qualificada, para responder às necessidades do
desenvolvimento econômico e social. Diz também que esse ensino
técnico tem como visão a transformação num subsistema mais
flexível, articulado, inovador, dinâmico, autônomo e sustentável,
reconhecido, valorizado, comparticipado por todos os parceiros
sociais, com capacidade de adaptação e com respostas às mudanças,
acessível a todos, com oferta de programas de formação flexíveis, que
promovam competências profissionais, relevantes, que preparem os
indivíduos para o mundo de mercado e para a vida, que contribua para
o Desenvolvimento dos Recursos Humanos de Moçambique e com um
sistema de Avaliação e Certificação. E segundo Pinto (2010), os
186
objetivos estratégicos vão ao encontro aos do Plano Estratégico da
Educação 2012-2016 (PEE III).
Neste caso, realiza-se o segundo seminário Nacional do Ensino
Técnico-Profissional, isto entre os dias 24 a 28 de maio de 2004, o
mesmo tinha como objetivo de avançar na implementação da
Estratégia do ETP (2002-2011). E que se pretendia lançar um debate
estratégico sobre a reforma do Ensino Técnico-Profissional e conhecer
possíveis opções para essa mesma reforma. Daqui resultou a discussão
de uma nova visão mais abrangente do ETP e Formação Profissional,
de uma busca de consenso sobre a reforma do sistema de ETP entre as
entidades envolvidas (PINTO, 2010). Posteriormente, iremos discutir
sobre esta reforma do ETP.
De acordo com a Política Nacional de Educação e Estratégias de
Implementação, promulgada pelo Conselho de Ministros da República
de Moçambique (Resolução nº 8/95, de 22 de agosto de 1995), o Ensino
Técnico tem a responsabilidade de formar os operários e técnicos
necessários devidamente qualificados, para responder às
necessidades de mão de obra qualificada para os diferentes setores
econômicos e sociais do país.
Nessa ordem de ideia e perante a Resolução nº 8/95, de 22 de
agosto de 1995, esse ensino encontra-se subdividido em três níveis:
Ensino Técnico Elementar (ETE), Ensino Técnico Básico (ETB) e o
Ensino Técnico Médio (ETM). O ETE faz-se após a conclusão do 1º Grau
do Ensino Primário Geral ou para adultos, inclui disciplinas de formação
geral e técnica, conferindo um nível escolar correspondente ao Ensino
Primário Geral ou para adultos.
Ao contrário dos antigos Planos (PEE I e PEE II), o Plano
Estratégico da Educação 2012-2016 subdivide-se em dois níveis: o nível
básico e nível médio, cada um com duração de três anos. Assim está
expresso no PEE (2012-2016):
187
nível médio, que vai resultar em diferentes tipos de certificados (MINISTÉRIO DE
EDUCAÇÃO, 2012, p. 13).
A Educação Profissional inclui o ETP, sob tutela do MINED e liderado pela DINET,
e abrange os níveis básico (após a 7a classe) e médio (após a 10a classe). Os
provedores deste tipo de ensino são públicos e privados. A Educação Profissional
inclui também a Formação Profissional de curta duração, em primeiro lugar sob
tutela do Ministério de Trabalho e liderada pelo INEFP. Os seus provedores são
públicos e privados (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 2012, p. 90).
188
educação Geral e oportunizando o ingresso no Subsistema de
Educação Superior ou no nível Superior do Subsistema de Formação
de Professores (AFRIMAP, 2012).
Contudo, há que ter em conta que a educação profissional
ancorada em competências e de qualidade implica uma série de
mudanças e de investimentos radicais em relação à situação atual
deste subsistema de educação. Essa reforma requer grandes
investimentos, tendo em conta que a situação orçamental do país é de
dependência externa, pelo menos em 50% do seu orçamento total.
Esse fator alia-se ao fato de o Governo não disponibilizar de meios para
investir num tipo de educação adequada para o seu povo. Ficando a
critério dos investidores externos o poder de imposição.
Na tentativa de dar resposta aos desafios da competitividade de
Moçambique, tomando também em consideração o processo de
integração regional na Comunidade para o Desenvolvimento da África
Austral (SADC), o governo, por meio do Ministério da Educação,
iniciou, em 2006, a Reforma da Educação Profissional (REP). O objetivo
dessa reforma é de instruir cidadãos profissionalmente competentes,
de modo a desenvolver uma economia competitiva, isto é, “criar uma
Educação profissional orientada pela demanda do mercado de
trabalho, através de uma formação baseada em padrões de
competência e cursos modulares, flexíveis, providenciados por
instituições de formação acreditadas para o efeito” (MCTESTP, 2018,
p. 6).
E uma das caracteristicas da REP é:
Num mundo cada vez mais global e com o país melhor integrado na Região
Austral, os graduados da educação profissional moçambicanos de Mavago têm
189
de competir, em pé de igualdade, pelos postos de trabalho não só com os
graduados da Cidade de Maputo, mas também com os graduados do Botswana,
África do Sul, China ou de qualquer outro país do mundo. Só assim poderemos
desenvolver o país de forma sustentável e quebrar, de uma vez por todas, o ciclo
da pobreza através da criação de emprego, incremento da atividade produtiva e
inovação, bem como da criação da riqueza para o bem-estar dos moçambicanos
(BROUWER; BRITO, 2010, p. 12).
Esta mudança da tutela não foi uma mera transferência de tutela institucional,
mas tem como pressupostos dois aspectos interligados: integrar o ETP com as
outras áreas tecnológicas e científicas geridas pelo mesmo Ministério e criar
melhores condições para responder aos crescentes desafios da demanda de
competências profissionais requeridas pelo mercado de trabalho, em expansão
e mais aberto à internacionalização. Por razões acima referidas, foi necessário
elaborar um novo Plano Estratégico de referência para o período de 2018 a 2024
(MCTESTP, 2018, p. 4-5).
190
incentivar aos empregadores a: proporcionar aos trabalhadores a oportunidade
de adquirirem novas competências; fornecer oportunidade aos recém-formados
para adquirem experiência laboral; [...] garantir a qualidade e relevância da
educação profissional no mercado de trabalho (MOÇAMBIQUE, 2016, p. 2).
191
do número de estudantes, dos 42165 que existiam em 2015, em 2017
existiam em 85313 estudantes efetivos, como ilustra a tabela acima.
Nessa mesma senda, é de referir que no campo contratação,
formação e capacitação de professores houve melhorias, ou seja, em
2013 existiam 152 professores, e atualmente o ensino ETP possui mais
de 5493 professores, “as instituições públicas têm o maior número de
docentes perfazendo cerca de 52,7% do total dos docentes no
subsistema do ETP” (MCTESTP, 2018, p. 8).
À GUISA DE CONCLUSÃO
192
política (empregabilidade) do que responder ao insucesso
escolar. Pois, atualmente, o governo moçambicano está
preocupado com a escassez de mão de obra especializada para
satisfazer a demanda dos grandes projetos envolvidos na
exploração de recursos minerais, sobretudo gás natural e carvão
mineral na região Norte do país. Em outras palavras, podemos
dizer que a persistência na formação técnico-profissional é vista
como uma saída para colmatar déficit da empregabilidade.
Nesse novo contexto do ensino técnico-profissional é preciso
com muita urgência revitalizar para que transforme no ensino credível,
mas isso passa necessariamente pela capacitação dos professores e
dos gestores. Como diz Brouwer e Brito (2010), é necessário que o
ensino técnico-profissional recupere o prestígio e a credibilidade, de
forma que a sociedade veja, nesta formação, uma alternativa viável ao
Ensino Geral.
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193
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195
196
A TEORIA QUEER E A SALA DE AULA: APRENDER COM O DIFERENTE
INTRODUÇÃO
197
de comunicação em massa, com um espírito mais libertário, criticando
a cultura dominante e propondo uma cultura alternativa ou cultura
marginal (LOURO, 2001).
No Brasil, uma das primeiras produções acadêmicas a discutir
sobre o queer foi um artigo “Teoria Queer: uma política pós-identitária
para a educação”, publicado na Revista Estudos Feministas, de Guacira
Lopes Louro, no ano de 2001. Neste, a autora nos convoca a refletir
que a sexualidade ao longo dos tempos tem tomado espaço em
diversas áreas do conhecimento, “desde então, ela vem sendo
descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada,
normatizada, a partir das mais diversas perspectivas” (LOURO, 2001,
p. 541-553). Na contemporaneidade, ela continua sendo algo que ainda
incomoda, perturba e regula/normatiza a vida de muita gente dentro
do campo social.
Partindo do pressuposto, é que este texto objetiva compreender,
provocar e discutir acerca da Teoria Queer e como esta poderá se fazer
presente na nossa prática pedagógica de sala de aula, propondo uma
aprendizagem interconectada com o diferente. Por tratar-se de uma
abordagem eminentemente teórica, não houve a necessidade de um
campo empírico. A metodologia consistiu em fontes bibliográficas
acerca do tema em estudo.
198
reivindicada como marca de transgressão por pessoas que antes
chamavam a si mesmas de lésbicas ou gays” (SPARGO, 2017, p. 9).
Um insulto, que equivale no nosso cotidiano brasileiro a:
veadinho, bicha, sapatão, afeminados, travestis, boiola, mulherzinha,
mona, baitola, dentre outros adjetivos de baixo calão, usados para
ofender as pessoas que têm sua orientação sexual diferente da que
está posta socialmente, que é a heterossexualidade.
3 Temos odireito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito de ser
diferente, quando a igualdade nos descaracteriza. Estas regras são, provavelmente,
fundamentais para entender o momento em que vivemos e ver que essa nova forma
de identidade nacional tem de coexistir com formas de identidades locais mais fortes
(SANTOS, 2007, p. 34, tradução nossa).
199
comportamento da sociedade é que entre as décadas de 1960 e 1980
surge a Teoria Queer, que é desenvolvida por uma série de
pesquisadores e ativistas bastante diversificados, principalmente nos
Estados Unidos, quando surge uma das epidemias mais temidas do
século XX que foi a AIDS, o que gerou um dos maiores pânicos sexuais
de todos os tempos (MISKOLCI, 2016) e associando o tal vírus como se
fosse uma “peste gay”, ou seja, causada por homossexuais. Essa ideia
equivocada acabou levando a um aumento do preconceito contra
essas minorias sexuais, por acharem que a epidemia da AIDS seria
transmitida por estes. Onde para muitos, seria um castigo divino.
Então, a aids foi um choque, e da forma como foi compreendida tornou-se uma
resposta conservadora à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela
então conhecida ‘geração do desbunde’. No mundo todo, essa reação teve
consequências políticas jamais superadas e também na forma como as pessoas
aprenderam sobre si próprias, sobre a sexualidade, e na maneira como vivenciam
seus afetos e suas vidas sexuais até hoje (MISKOLCI, 2016, p. 23).
200
Com o movimento queer, essa ideia começa a ser questionada e
desconstruída, com o seguinte pensamento: mesmo os respeitados e
supostamente admirados serão em um dado momento histórico
atacados e transformados em abjetos. Ou seja, o preconceito é para
todos, é democratizado, independentemente de você ser ou não uma
pessoa “discreta” com formação acadêmica e com poder aquisitivo.
Miskolci (2016) ainda nos chama atenção dizendo que a Teoria
Queer não é uma defesa da homossexualidade e sim a recusa de
violentos valores morais que instituem e fazem valer a linha da
abjeção, uma fronteira extremamente enrijecida, calcada numa divisão
entre os relegados à humilhação, os socialmente aceitos e ao desprezo
coletivo. Para Batler (2003), o queer é uma política de gênero que tem
como objetivo contestar a norma social imposta por uma sociedade
estruturada na sua maioria por indivíduos heteros, brancos, e de classe
média e média alta. É um chamado para que todos os excluídos,
marginalizados façam parte da luta e se sintam representados.
A teoria em análise lida com o gênero como algo cultural, algo que
é construído socialmente, para esta, o masculino e o feminino estão
em homens e mulheres, nos dois. Cada indivíduo tem gestuais, formas
de fazer e pensar que a sociedade qualifica como masculinos ou
femininos independentemente do nosso sexo biológico. Nesta
concepção, gênero está intrinsecamente relacionado ás normas e
convenções construídas socialmente. Tendo estas, uma variação de
acordo com o tempo e de sociedade para sociedade. Ou seja, a nossa
postura enquanto homens e mulheres é um constructo social. “O
gênero é performativo porque é resultante de um regime que regula
as diferenças do mesmo. Neste regime os gêneros se dividem e se
hierarquizam de forma coercitiva” (BUTLER, 2003, p. 64).
201
Um olhar queer sobre a cultura posta socialmente, nos instiga,
nos convida a uma perspectiva mais crítica em relação às normas e
convenções de gênero e sexualidade estabelecidas. Portanto, Pierre
Bourdieu nos diz que:
202
esta é tradicionalmente um campo que prima pela normalidade, pelo
ajustamento social de seres humanos?
A escola como ela se encontra estruturada desde o seu
surgimento tem o papel de “enquadrar” todo aquele ou aquela que
estiver fora das normas sociais vigentes, ela existe enquanto um
campo disciplinador, onde ideias são inculcadas nas cabeças dos
futuros cidadãos que gerenciarão a nossa sociedade. Afinal, a escola
serve para formar cidadãos de bem, nunca para a transgressão ou para
a contestação.
Para Bourdieu (1998) a escola não apenas transmite e constrói
conhecimentos, mas, também, reproduz padrões sociais, deturpando
valores e “fabricando sujeitos”. A escola foi feita para o binarismo, a
começar pela sua arquitetura, banheiros para meninos e banheiros
para meninas, em alguns casos mais remotos, filas de meninos e filas
de meninas. Nunca nos seus espaços nem físicos e nem pedagógicos
existem lugar para um outro ou para uma outra que não se encaixe em
uma das situações descritas acima.
São questões inquietantes, que muitas das vezes não temos uma
resposta, Louro (2001) nos dá algumas pistas de possíveis e prováveis
respostas:
Para ensaiar respostas a tais questões é preciso ter em mente não apenas o alvo
mais imediato e direto da teoria queer – o regime de poder-saber que, assentado
na oposição heterossexualidade/homossexualidade, dar sentido às sociedades
contemporâneas - mas também considerar as estratégias, os procedimentos e
as atitudes nela implicados. A teoria queer permite pensar a ambiguidade, a
multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas, além disso,
também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a
educação (LOURO, 2001, p. 541-553).
203
Hoje, as representações que as históricas “minorias” assumem no
contexto social são resultados tanto do discurso dominante, quanto
das próprias representações oriundas do interior dos seus
movimentos que, pela visibilidade, gozam ora da aceitação, ora do
recrudescimento da rejeição social de setores tradicionais (LOURO,
2001).
Neste caso, a Teoria Queer pode ser compreendia como “uma
política de conhecimento cultural”, pois pode “provocar outro modo
de conhecer e de pensar” (LOURO, 2004b, p. 60). Para Jimena Furlani:
204
com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a
dominação e a exclusão”.
Parece que a inclusão curricular das representações de gays,
lésbicas e outras categorias, pode ser vista como uma possível
estratégia de uma ação contra a homofobia nos ambientes escolares,
da mesma forma que pode ser visto como uma estratégia de
subversão.
205
Ainda tomando como base o pensamento de Louro (1999, p. 136),
até “[...] mesmo o texto mais radical e contestador pode ser
‘domesticado’ e pode perder sua força dependendo da forma como é
tratado”. Mais do que isso, talvez devamos pensar como os
significados daquilo que vemos, lemos e ouvimos a partir dos recursos
didáticos escolares “tocam” e “marcam” os sujeitos da educação.
Para Furlani (2009) os métodos e os artefatos escolares, as
linguagens envolvidas nos processos de comunicação, as atitudes
pessoais diante do que é dito e do que não é dito na escola, tudo isso
nos constitui: meninas e meninos, mulheres e homens, negros e
brancos, indígenas, gays, heterossexuais, lésbicas etc. essa construção
das identidades culturais é um processo permanente, articulado por
inúmeras instancias sociais, dentre elas, está à escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
206
para que ocorra uma discussão mais livre em sala de aula, desprovida
de preconceitos e ideias heteronormativas na sociedade como um
todo. Este discurso preconcebido pode ser percebido pelo veto da
bancada evangélica do Congresso Nacional sobre a cartilha que trata
da orientação sexual nas escolas, com indicativo de que se tratava de
um “kit gay” em que as escolas iriam ensinar ao seu alunado como ser
“veado”, incentivar a prática do sexo livre, promovendo o
despudoramento e a degeneração social. O que é lamentável.
Práticas pedagógicas que não consideram o afeto, a
representatividade, o corpo e a experiência são potencializadoras das
exclusões de minorias políticas, sobretudo em relação ao cruzamento
das identidades de gênero, classe, raciais e sexuais. Precisamos pensar
numa pedagogia embasada na práxis libertadora que venha
transgredir normatizações, subverter as opressões e produzir
conhecimentos e sujeitos emancipados. Precisamos sair da zona de
conforto, permitindo outras visões, outras experiências subjetivas e
corporais.
É nesse diapasão de subversão e disputa que precisamos
reconhecer a potência política de algumas ações para enfrentar, em
especial, a nova era fascista-cisheteronormativa-machista-racista que
estamos a viver.
REFERÊNCIAS
207
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homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
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208
INCLUSÃO DE UMA CRIANÇA COM ENCEFALOPATIA CRÔNICA NÃO
PROGRESSIVA DA INFÂNCIA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA EM
UMA ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA
INTRODUÇÃO
209
(STAINBACK; STAINBACK, 1999). Assim, incluir o indivíduo com ECNPI
dentro do âmbito escolar, e nas atividades preconizadas pelos
componentes curriculares, faz com que exista ampliação das relações
sociais, além da melhoria social e cognitiva destas crianças
(CARVALHO, 2013).
Por esta razão, Paula e Baleotti (2011) e Carvalho (2013), ressaltam
em seus estudos, a importância da qualificação e capacitação dos
professores, com o intuito de promover a socialização, e
principalmente a presença destas crianças na sequência e finalização
de cada fase do processo escolar.
Como ressalta Freire (1996), é fundamental que o professor leve
a sério a sua formação e que busque a competência profissional para
que se sinta seguro no exercício da função. O sucesso da prática
docente está diretamente ligado à postura do professor que deve ter
o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das formas de
intervenção (SILVA, MARTINEZ, SANTOS, 2012).
Nesse sentido, objetiva-se nessa pesquisa verificar a inclusão de
alunos com encefalopatia crônica não progressiva nas aulas de
Educação Física, bem como as estratégias que vem sendo utilizadas
para a inclusão em uma escola localizada na zona rural no município de
Cândido Sales na Bahia.
Para tanto a pesquisa torna-se relevante, pois propõe trazer
contribuições importantes relacionadas à inclusão de alunos com
ECNPI nas aulas de Educação Física, a partir da prática pedagógica e
das adaptações curriculares.
A PARALISIA CEREBRAL
210
Atualmente, numa perspectiva da Associação Brasileira de
Paralisia Cerebral (ABPC), considera-se a ECNPI ou PC, como uma lesão
de uma ou mais partes do cérebro que pode ocorrer durante a
gestação, o parto ou após o nascimento, ainda no processo de
amadurecimento do cérebro da criança (ABPC, 2001).
Na maioria das vezes é uma lesão provocada pela falta de
oxigenação das células cerebrais. Essas células por sua vez são
consideradas como um grupo de desordens do desenvolvimento
motor e da postura, causando limitações em algumas atividades e
geralmente acompanham de alterações na sensação, percepção,
cognição, comunicação e comportamento, podendo também incidir
de crises convulsivas (ABPC, 2001).
De acordo com o ponto de vista de Leitão (1983), essa deficiência
é caracterizada como um grupo de distúrbios motores ocorrentes no
período pré e peri-natal, sendo impossível defini-lo com exatidão. A
Paralisia Cerebral, como um termo bastante confuso, amplo, e não
específico, resumindo-o como conjunto de distúrbios da função
motora, de início na primeira infância, caracterizados por paralisia,
espasticidade e/ou movimentos involuntários dos membros,
raramente hipotonia e ataxia, frequentemente acompanhados de
déficit mental e epilepsia (LEITÃO, 1983).
Rosenbaum et al. (2007) destaca que na paralisia cerebral o
processo cognitivo global e específico pode ser afetado, tanto por
distúrbios primários, bem como em consequência secundária a
limitações neuromotoras restringindo assim as experiências da criança
nos contextos de referência e o processo de aprendizagem.
Nessa mesma perspectiva Bottcher, Flachs e Uldall (2010)
corroboram que uma pessoa com quadro clínico de PC, as alterações
cerebrais presentes representam uma restrição biológica que
predispõem consequência na trajetória típica de desenvolvimento
cognitivo, acarretando muitas vezes, em deficiência intelectual ou
problemas cognitivos específicos.
Segundo Gouveia (2011), a criança com essa deficiência poderá
apresentar um atraso intelectual em vista das lesões cerebrais
sofridas, mais um fator imprescindível a isso, será a falta de
experiências ofertadas a ela, podendo então, ser extinta de uma gama
de vivências que certamente facilitaria significativamente à diminuição
deste atraso. Embora isso seja uma constante, o contrário também se
211
aplica, sendo que uma criança com paralisia cerebral poderá ter uma
inteligência normal ou em muitos casos acima da média, a partir dos
estímulos que lhe forem oferecidos.
212
seleção de uma forma de ensino, sendo que todo professor apresenta
um conjunto diferente de traços de personalidade para o ensino.
Neste sentido, Freire (1994) salienta que o profissional de
Educação Física exerce uma influencia considerável sobre seu aluno a
ponto de moldar o seu caráter, isso mostra que o professor consegue
tocar de forma especial na raiz formativa do aluno. O educador físico
torna-se responsável por experiências e descobrimentos que podem
ser agradáveis ou não.
Como ressalta Freire (1996) é fundamental que o professor leve a
sério a sua formação e que busque a competência profissional para
que se sinta seguro no exercício da função. O sucesso da prática
docente está diretamente ligado à postura do professor que deve ter
o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das formas de
intervenção.
213
educacionais como prova de trabalho realizado da conclusão de um
objetivo, mas que ele deva ser vivenciado em todos os momentos e
por todos os envolvidos com o processo educativo da escola. Sendo
um compromisso definido coletivamente, pela comunidade escolar na
busca da sua identidade, ficando assim compreendido como plano
primordial da instituição ou o projeto educativo, um instrumento
teórico-metodológico, cuja finalidade é construir para a organização
do conhecimento escolar.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
214
O instrumento para esta técnica foi uma ficha de observação das
aulas de EDF seguindo o estabelecido por Lehnhard et al. (2009),
contendo itens referentes a: como foi a inclusão deste discente, como
o aluno com a deficiência participa das atividades preconizadas, e a
relação entre os alunos durante as atividades. Durante as observações
o pesquisador estava presente no ambiente, porém não interferiu no
objeto de estudo.
Por meio de observação e análise, foi descrito o cotidiano de
inclusão da criança com ECNPI, nas aulas de educação física, sua
inserção nas práticas cotidianas da escola, formas de participação e a
construção de estratégias pedagógicas pelos educadores.
Foi aplicado o questionário com o professor, objetivando
identificar os elementos do discurso pedagógico sobre o processo de
ensino aprendizagem, quais os conhecimentos sobre inclusão escolar
e ECNPI e as bases teóricas que fundamentam a suas práticas
pedagógicas, bem como sua formação e atuação docente. A partir da
análise dos resultados, gerou-se 3 categorias, das quais foram
representadas por meio do registro das falas.
RESULTADOS E DISCUSSõES
215
P: [...] Considerando a importância da EDF na ampla formação dos estudantes,
no geral, sei que a mesma se faz imprescindível para os alunos com necessidades
educativas especiais, pois são muitos os benefícios proporcionados a esses
sujeitos na escola.
R: [...] Não acredito de fato que a EDF esteja sendo cumprida no ambiente
escolar, pois não percebo a prática da EDF na turma do meu filho, mesmo sendo
uma disciplina obrigatória e que compõe a grade curricular.
P: [...] Vejo a adaptação das atividades como uma possibilidade efetiva para a
aprendizagem do estudante com deficiência, pois é uma que favorece a ação,
reflexão sobre esse estudante, seus limites e possibilidades, inclusive no
momento de avaliar a sua aprendizagem. Tudo é desafio!
216
R: [...] A adaptação é o primeiro passo para que a inclusão aconteça, crianças
com encefalopatia ou outra deficiência, na maioria das vezes não consegue
acompanhar os conteúdos como os demais, no caso de meu filho que o
comprometimento cognitivo é muito grande, é essencial a adaptação, sendo
formas de adaptação, repetir por muitas vezes o conteúdo a ele, como ele é uma
criança não verbal, trabalhar com formas alternativas, onde ele possa se
expressar por gestos.
217
Freire (1996) trouxe a importância de o professor entender que a
formação profissional e a competência profissional, são peças
fundamentais para a segurança no exercício profissional. O sucesso da
prática docente está diretamente ligado à postura do professor que
deve ter o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das
formas de intervenção.
A colocação da responsável diz que:
R: [...] Como não há de fato a prática da disciplina na turma do meu filho, posso
relatar o que observo no grupo de capoeira a qual ele participa, aqui em minha
localidade. De todas as atividades que meu filho participa a capoeira é a que ele
mais gosta, ele gosta da movimentação mesmo sendo na cadeira, gosta dos sons
dos instrumentos se alegra quando está no treino, acredito que a pratica da
Educação Física na vida dele traria a mesma satisfação se de fato existissem as
aulas e se houvesse uma verdadeira inclusão.
218
conteúdos disciplinares. Ou somente mais um documento, que será
engavetado, sendo apenas uma mera formalidade.
Outro fator importante a ser destacado é a importância da
formação do docente, pois a professora não apresentava subsídios
para que suas aulas contemplassem a inclusão de forma significativa.
De acordo com Negrine (2002), o docente precisa ter um domínio de
conhecimento na área onde atua como também ter uma boa conduta
de ensino para não correr o risco de tornar-se despreparado, relapso e
desmotivado para exercer sua função.
Nesta mesma perspectiva Mantoan (2006), destaca que a
formação dos professores deve possuir programas e conteúdo, que
possibilitem formar um profissional capaz de desenvolver habilidades
para agir nas mais variadas situações, levando em conta a diversidade
dos alunos e a complexidade da prática pedagógica. Nesse mesmo
sentido ela ainda afirma, que a formação é um processo contínuo em
constante desenvolvimento, em que o professor deve ter
disponibilidade para a aprendizagem.
Nas observações junto ao campo de pesquisa foi perceptível que
há uma relação positiva entre o discente, a docente e os colegas da
turma. Estes demostraram ter consciência da importância de estudar
com um aluno com necessidades educativas especiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
219
têm sido requisitados para atender as mais variadas demandas da
sociedade, o que requer conhecimentos e metodologias próprias para
a intervenção com cada aluno, especificamente no caso de alunos com
deficiência nas aulas de EDF. Será salientada também, a importância da
elaboração e planejamento do PPP, pois este irá contemplar todo o
trabalho desenvolvido na instituição ao longo do ano letivo.
Assim, faz-se importante a realização de novas pesquisas
relacionadas à inclusão de alunos com encefalopatia crônica não
progressiva nas aulas de Educação Física, com um número maior de
sujeitos e em outras instituições de ensino, objetivando incentivar
estratégias que realmente favoreçam a inclusão desse público.
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223
224
A AVALIAÇÃO DE TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO:
UMA POSSÍVEL FERRAMENTA DE REORGANIZAÇÃO
COGNITIVA DO ALUNO
INTRODUÇÃO
trabalho do aluno.
225
Na atividade de avaliação realizada por pareceristas não há
relação de proximidade entre este com o aluno, o ato de avaliar
restringe-se, especificamente, ao trabalho escrito pelo aluno e enviado
aos pareceristas. Neste sentido, é possível afirmar que os elementos
que os profissionais têm para considerar são distintos se comparado à
avaliação feita pelo professor, pois este acompanha o processo de
aprendizagem do aluno ao longo do semestre, o desempenho, o
interesse, a atenção do educando. Estes são alguns elementos que
compõem a relação do professor e seu aluno e não é contemplado na
avaliação realizada pelo parecerista.
Neste tocante, acredita-se que esta discussão seja um terreno
fértil para reflexões acerca de como pensar e/ou repensar a prática
avaliativa realizada por pareceristas. No mundo contemporâneo o
processo de avaliar necessita ser uma análise constante, porém, não é
uma tarefa fácil. Para Sant’Anna (1995, p. 29-30) a avaliação é:
226
Fonte: Octógono de Perrenoud (2007)
227
conhecimento não seja finalizado nesta atividade, ou seja, que o
feedback sirva como instrumento de reorganização cognitiva.
TIPOS DE AVALIAÇÃO
A AVALIAÇÃO TRADICIONAL
A AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA
228
e, em certos casos, de resolver situações presentes. Em consonância,
Luckesi (2000, p. 09) complementa que “[...] para avaliar, o primeiro
ato básico é o de diagnosticar, que implica, como seu primeiro passo,
coletar dados relevantes, que configurem o estado de aprendizagem
do educando ou dos educandos”. Ainda neste sentido:
A AVALIAÇÃO FORMATIVA
229
aprendizagens (FERNANDES, 2006). Assim, a avaliação formativa tem
como finalidade principal melhorar as aprendizagens dos alunos a
partir de uma criteriosa utilização da informação recolhida para que se
possam perspectivar e planejar os passos seguintes.
Para Kraemer (2010) o objetivo da avaliação formativa é repensar
uma proposta de avaliação que oportunize a aprendizagem do aluno,
contribuindo assim para fornecer dados para aperfeiçoar o processo
de aprendizagem do aluno. Na visão de Hadji (2001, p. 20), a avaliação
é formativa na medida em que “[...] se inscreve em um projeto
educativo específico, e que favoreça o desenvolvimento daquele que
aprende, deixando de lado qualquer outra preocupação”.
Segundo Rabelo (1998, p. 73), uma avaliação formativa tem a
finalidade de “[...] proporcionar informações acerca do
desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem”. Avaliar
formativamente é entender que cada aluno possui seu próprio ritmo
de aprendizagem e, sendo assim, possui cargas de conhecimentos
diferentes entre si. Para Nunes, a avaliação formativa ultrapassa o
limite de decorar e propõe ao aluno um exercício de “pensar sobre”,
seja a forma de avaliar empregada uma prova seja qualquer outro
método pedagógico (2018, p. 70).
A AVALIAÇÃO SOMATIVA
[...] pretende ajuizar do progresso realizado pelo aluno no final de uma unidade
de aprendizagem, no sentido de aferir resultados já colhidos por avaliação do
tipo formativa e obter indicadores que permitem aperfeiçoar o processo de
ensino.
230
[...] a avaliação somativa, com função classificatória, realiza-se ao final de um
curso, período letivo ou unidade de ensino, e consiste em classificar os alunos de
acordo com níveis de aproveitamento previamente estabelecidos, geralmente
tendo em vista sua promoção de uma série para outra, ou de um grau para outro.
5 TCC’s.
231
da formação do educando. Faz-se necessário acrescentar que esta
avaliação deve dar ao aluno um feedback que possibilite a este
autorregular-se, ou seja, que o educando possa reorganizar suas
conclusões a partir do que foi proposto pelo parecerista.
Para Piaget a equilibração consiste no processo de
autorregulação interna do organismo, que se constitui na busca
sucessiva de reequilíbrio. O indivíduo aprende basicamente através de
suas próprias ações sobre os objetos do mundo e constrói suas
próprias categorias de pensamento. Piaget define a como um
processo de autorregulação, que é fundamental no desenvolvimento
(1972, p. 4).
Nesse diapasão o feedback claro, objetivo e consistente auxilia o
aluno neste processo de reequilibrar-se internamente com relação ao
seu aprendizado a partir de seu trabalho. A avaliação realizada pelo
parecerista deve favorecer a construção do conhecimento, ou seja, da
atividade cognitiva.
Outro ponto importante já anunciado refere-se ao planejamento
elaborado previamente para que a avaliação traga resultados positivos
para avaliador e avaliado. Uma prática importante ao parecerista é
definir critérios de avaliação, estes critérios são estabelecidos na etapa
de planejamento e têm por objetivo manter um padrão de avaliação,
ou seja, considerar elementos que são importantes a serem avaliados
em todos os trabalhos. A seguir, apresenta-se um exemplo de critérios
que são utilizados pela autora deste capítulo em avaliação de trabalhos
de conclusão de curso e artigos.
6Nesta coluna o parecerista anota suas observações que será dado ao aluno, ou seja,
o feedback da avaliação.
232
Os objetivos geral e específicos são
coerentes com a pesquisa proposta pelo
aluno?
Há justificativa do estudo no texto?
Se sim, está de acordo com a proposta do
aluno?
Foi realizada revisão de literatura?
A fundamentação teórica está de acordo
com a proposta da pesquisa?
A metodologia define com clareza como
será realizada a pesquisa?
Abordagem; natureza; campo;
instrumentos utilizados; cuidados éticos
A discussão de resultados foi realizada?
Os resultados são apresentados?
As conclusões e considerações finais
São apresentadas de acordo com a
proposta da pesquisa?
Todos os autores citados estão nas
referências?
Foi detectado plágio no trabalho? (parcial
ou total)
Fonte: a autora (2019)
233
critério que não foram sinalizadas nas fortalezas ou fragilidades. Dado
o exposto, espera-se que estas linhas possam auxiliar no processo e
avaliação de trabalhos acadêmicos contribuindo com o
desenvolvimento dos educandos.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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235
236
O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA EM MOÇAMBIQUE
NA IMPLEMENTAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL
E A EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO
237
podemos aferir que a Educação e a Evangelização devem ter um papel
importante no empreendedorismo, na componente da preparação. A
Educação dá-se a conhecer pelo ensino e a Igreja fá-lo pela doutrinação.
Assim, tentaremos perceber o papel da ação da Educação e da Igreja, no
geral, e no empreendedorismo em particular, com especial incidência em
Moçambique.
PROBLEMA
JUSTIFICATIVA
238
ducere (conduzir, levar), e significa literalmente ‘conduzir para fora’,
ou seja, preparar o indivíduo para o mundo.
A sociedade é formada por pessoas. E somente estes devem ser
educados e incutidos de valores morais e éticos: “qualquer família sabe
que não há educação sem valores, em e com valores” (CLARK,
ARNOLD; HALSEY, 1974). O mesmo autor acrescenta que: “ educar
uma criança ou um jovem é dar-lhe recursos físicos, espirituais,
intelectuais e emocionais que lhe permitam realizar-se plenamente
como pessoa” (CLARK, ARNOLD; HALSEY, 1974, p. 149). Educar é dar
ferramentas comportamentais ao ser humano que permitam que se
desenvolva e se relacione com toda a existência. O ser humano,
diversamente dos animais, que são seres adaptados a todas as
circunstâncias da natureza, é um ser inadaptado, isto é, precisa
adaptar-se para cada situação. Esta adaptação é feita segundo os
valores que o ser humano vai recebendo e deve ser feita em função
dele próprio. Não deixa de ser importante saber o que deve transmitir
e como transmitir.
As metodologias de ensino conjugadas com o currículo,
entendendo como conteúdo ganham capital importância no caminho
pelo qual queremos enveredar ou transmitir na nossa educação ou
quiçá na nossa sociedade. Esta acessão é defendida por Bastos e
Ribeiro no seu artigo intitulado “Educação e empreendedorismo
social: um encontro que (trans)forma cidadãos” ao afirmar que:
“Supõe-se que a tarefa educativa continua a exigir novos caminhos de
perceber e pensar, novas imagens do homem e da sociedade, novas
conceções éticas e axiológicas, novos rumos por onde enveredar”
(BASTOS; RIBEIRO, 2011, p. 578). Os mesmos autores, citando Jacques
Filion, percebem o empreendedorismo como aprendizagem, supondo
programas que se direcionam nesse sentido:
“No entendimento de Jacques Filion, “o empreendedorismo se
aprende”, pois o autor considera que é possível conceber programas
e cursos que adotem sistemas de aprendizados adaptados à lógica
desse campo de estudo, numa abordagem em que o aluno é levado a
definir e estruturar contexto e a entender as várias etapas de sua
evolução (FILION, 1999)”. Esta afirmação mostra como a educação
pode ter um papel importante no empreendedorismo. Atente-se que,
há uma tendência generalizada de se exigir aquilo que nuca se deu.
Apresento dois debates em Moçambique neste âmbito, o primeiro tem
239
a ver com axiologia em que se afirma categoricamente que os jovens
não têm valores.
O filósofo moçambicano António Cipriano, no seu livro Educação,
modernidade e crise ética em Moçambique questiona se são os jovens
que não têm valor ou nasceram numa sociedade sem valores, pois
Moçambique sempre foi um país em transição política: foi o
colonialismo, veio a independência em que a Frelimo assumiu o
marxismo – leninismo e antes que se consolidasse teve que abandonar
para aderir ao capitalismo. Pelo que somos um País em consolidação e
esta situação tem reflexo na educação e moralização da sociedade
(CIPRIANO, 2011). O segundo debate tem a ver com as metodologias
de ensino – a aprendizagem, partindo da constatação em que os
graduados moçambicanos são do ensino médio técnico profissional e
do ensino superior, com a agravante de serem nas áreas técnicas mais
teóricos que práticos. A título de exemplo, segundo a nossa
Constituição da República no seu Art. 103, diz: a agricultura é a base de
desenvolvimento do País. Mas, a terra não está sendo agricultada. Se
até antes da independência e um pouco depois deste facto histórico
só tínhamos uma Instituição do Ensino Superior, Universidade Eduardo
Mondlane, hoje já não se pode dizer a mesma coisa. Pois, Moçambique
possui além das Universidades Estaduais, muitas outras Universidades
privadas, num total de 53 (http://www.mctestp.gov.mz/por/Ultimas-
Noticias/Noticias/MCTESTP-destaca-evolucao-do-ensino-superior).
Ademais, temos também muitas escolas de Ensino Técnico. Por
outro lado, a terra não nos falta. Em princípio, quem deve ensinar a
cultivar as machambas, as terras são os nossos agrónomos. Se não o
fazem, poder-se-á concluir que há um défice na sua formação? Não
necessariamente, pois há outros fatores envolvidos, como a Educação,
a Ética e a Moral ancestral que, na generalidade, atribuía à mulher os
trabalhos agrícolas. Assim, podemos questionar com Bertrand no seu
livro Teorias Contemporâneas da Educação que nos diz que a nossa
análise deve partir do que é preciso ensinar? Como ensinar? Quais
devem ser os objetivos da educação? (BERTRAND, 2001).
Estas duas colocações acima conduzem-nos ao debate de sempre
sobre os métodos tradicionais e participativos da Educação. Enquanto
a Educação se focou nos métodos participativos a teologia salientou-
se no que é chamado de teologia prática. Este discurso assenta no
facto que tanto a educação como a teologia devem ser proactivas, isto
240
é, não fiquem somente no aspeto teórico ou prático, mas sempre
iluminados pela ética e pela moral. Sendo que teóricos como John
Dewey com o seu instrumentalismo, Habermas com a sua ação
comunicativa e Paulo Freire com a sua educação democrática e
libertária assente essencialmente no diálogo que se estabelece entre
o formador e o formando pode ajudar a construir uma educação que
seja proactiva. Estas abordagens deram aquilo que hoje se chama de
aprendizagem em pares ou na designação inglesa peer instruction, que
é uma educação participativa, em que o aluno já não é “tábua rasa”
como na educação tradicional, mas como o fazedor do seu
aprendizado na chamada sala invertida onde o professor é um mero
facilitador. Esta tentativa de abordagem duma educação participativa
e proactiva não passou despercebida pela teologia que sentiu a
necessidade de criar uma teologia que não se baseasse somente na
esperança, que até foi acusada pelos marxistas como “ópio do povo”
por prometer uma vida melhor para a vida futura, perceba-se para
além da morte e não neste mundo. Então, a teologia prática segundo
Richard Osmer que se aplica na vida quotidiana do homem, como
também tenta fazer a teologia da libertação, sobretudo na América
latina. Afirmamos que tanto a educação como a teologia estão no
processo de transformação contínuo com vista a responder aos
problemas concretos do homem. Achamos que não estaríamos a
forçar, se afirmássemos que a Educação e a Teologia (Evangelização)
podem jogar um papel importante no empreendedorismo, que é o de
responder aos problemas concretos do homem na sua vida quotidiana.
EVANGELIZAÇÃO
241
por Cristo do Pai e, por sua vez, transmitido aos apóstolos (Jo.3, 16).
“A missão cristã é tão antiga como a Igreja mesma; a Igreja que nasce,
sacramentalmente, da Páscoa e do Pentecostes” (Otaduy, Viana e
Sedano, 2012)
Por sua vez, o Decreto Ad Gentes que trata da atividade
missionária da Igreja, emanado pelo Papa Paulo VI, em 7 de dezembro
de 1965, afirma que “O nome de ‘missões’ dá-se geralmente àquelas
actividade características com que os pregoeiros do Evangelho, indo
pelo mundo inteiro enviados pela Igreja, realizam o encargo de pregar
o Evangelho e de implantar a mesma Igreja entre os povos ou grupos
que ainda não crêem em Cristo”. Essas “missões” são levadas a efeito
pela atividade missionária e exercem-se ordinariamente em certos
territórios reconhecidos pela Santa Sé. O fim próprio desta atividade
missionária é a evangelização e a implantação da Igreja nos povos ou
grupos em que ainda não está radicada (AG, 34).
A Constituição LG (17), promulgada em novembro do ano
anterior, destacou a teologia da missão, ou seja, a missão eclesial à luz
da atividade de Jesus ou como definido no parágrafo 17, “A índole
missionária da Igreja”, e este Decreto AG visa efetivar esta índole,
apontando para as reflexões ‘pastorais’ da atividade missionária. Sob
a perspetiva do conjunto dos documentos conciliares - Constituições
(LG, GS, DV e SC - com destaque para a Lumen Gentium que trata da
missão universal da Igreja); Declarações (NA e DH) e Decretos (UR, AA)
- que propiciaram amplas reflexões sobre a Missão da Igreja, às portas
da passagem para o segundo milénio este Decreto AG, visto
separadamente dos outros, pode parecer restritivo à missão ad gentes,
ou seja, voltada apenas aos povos estrangeiros, e contrário ao espírito
do Concílio. Porém, visto como parte integrante do conjunto, percebe-
se que ele faz a ligação entre as reflexões teológicas e pastorais
relacionadas à missão, em geral. Sem abandonar ou diminuir a
necessária e tradicional missão ad gentes, de ir ao encontro dos povos
estrangeiros, este documento, embasado nos textos conciliares,
acima citados, enfatiza que não são somente os povos distantes ou
isolados geograficamente que precisam ser evangelizados, mas que
toda a Igreja precisa passar por uma metanoia (conversão), por um
profundo processo de revisão eclesial para ser uma presença efetiva
no mundo.
242
Esta contextualização e breve revisão literária permite-nos
perceber que a missão Cristã é tão antiga como a própria Igreja
Católica, ou melhor dito, já está na origem da Igreja e sempre foi
preocupação desta manter, expandir a Boa Nova, cumprindo o
mandato de Jesus Cristo. A atividade missionária merece destaque nos
estudos acadêmicos, tendo-se criado uma cadeira com o nome de
Missiologia que visa encontrar os fundamentos e os meios para levar
avante o mandato de Jesus Cristo.
EMPREENDEDORISMO
243
proactivo diante de questões que precisam ser resolvidas (BAGGIO;
BAGGIO, 2014).
Empreendedorismo, segundo Schumpeter, é um processo de
“destruição criativa”, através do qual produtos ou métodos de
produção existentes são destruídos e substituídos por novos
(SCHUMPETER, 1997). Já para Dolabela (2010), corresponde a um
processo de transformar sonhos em realidade e em riqueza. Para
Barreto (1998, p. 190) “empreendedorismo é habilidade de criar e
constituir algo a partir de muito pouco ou de quase nada”. É o
desenvolver de uma organização em oposição a observá-la, analisá-la
ou descrevê-la.
Segundo Dornelas empreendedor é aquele que deteta uma
oportunidade e cria um negócio para capitalizar sobre, ele, assumindo
riscos calculados. Em qualquer definição de empreendedorismo,
encontra-se, pelo menos, os seguintes aspetos referentes ao
empreendedor: 1) tem iniciativa para criar um novo negócio e paixão
pelo que faz; 2) utiliza os recursos disponíveis de forma criativa,
transformando o ambiente social e económico onde vive; 3) aceita
assumir os riscos calculados e a possibilidade de fracassar (DORNELAS,
2008).
Para Chiavenato (2004) o espírito empreendedor é a energia da
economia, a alavanca de recursos, o impulso de talentos, a dinâmica
de ideias. Mais ainda: ele é quem fareja as oportunidades e precisa ser
muito rápido, aproveitando as oportunidades fortuitas, antes que
outros aventureiros o façam. O empreendedor é a pessoa que inicia e/
ou opera um negócio para realizar uma ideia ou projeto pessoal
assumindo riscos e responsabilidades e inovando continuamente
(CHIAVENATO, 2004).
“Pode-se dizer que os empreendedores dividem-se igualmente
em dois times: aqueles para os quais o sucesso é definido pela
sociedade e aqueles que têm uma noção interna de sucesso”
(DOLABELA, 2006, p. 44). Ser empreendedor significa possuir, acima
de tudo, o impulso de materializar coisas novas, concretizar ideias e
sonhos próprios e vivenciar caraterísticas de personalidade e
comportamento não muito comuns nas pessoas.
A nosso ver, os componentes comuns em todas as definições de
empreendedor: tem iniciativa para criar um novo negócio e paixão
pelo que faz; utiliza os recursos disponíveis de forma criativa
244
transformando o ambiente social e económico onde vive; aceita
assumir os riscos e a possibilidade de fracassar. “O empreendedor é
alguém que sonha e busca transformar seu sonho em realidade”
(DOLABELA, 2010, p. 25). A pessoa de qualquer idade pode ser
empreendedora (BAGGIO; BAGGIO, 2014, p. 27).
Chegados aqui, há que distinguir, a meu ver, o
empreendedorismo do empreendedorismo social. Percebe-se que o
empreendedorismo por si visa o lucro, ou mais ainda, o
empreendedorismo por si só, pode ser individual enquanto o
empreendedorismo social é mais amplo como afirma Baggio citando
Odara (2008, p. 3), os Empreendedores sociais visam o bem-estar
coletivo, com a capacidade empreendedora e criadora na promoção
de mudanças sociais capazes de alcançar grandes distâncias nas suas
atividades. São inovadores que deixarão a sua marca na história da
humanidade. Esta visão do emprendedorismo social coincide com a
visão da Igreja Católica que é de criar o homem novo, o Homem
redimido, que nem sempre coincidiu com o homem novo que o
capitalismo e o (ou) regime da Frelimo, no caso de Moçambique,
apreguou pretender criar. Baggio (2014) traça algumas características
do emprendedorismo social:
É coletivo e integrado;
Produz bens e serviços para a comunidade, local e global;
Sua medida de desempenho é o impacto e a transformação
social. Visa satisfazer necessidades dos clientes e ampliar as
potencialidades do negócio;
Tem o foco na busca de soluções para os problemas sociais e
necessidades da comunidade;
Visa resgatar pessoas da situação de risco social e promovê-las
gerar capital social, inclusão e emancipação social.
245
salários, que os colocavam numa situação de miséria imerecida.
Podemos afirmar que a sociedade fez uma tentativa de posicionar-se,
infelizmente a Igreja chegou atrasada,com a publicação da Enciclica
Rerum Novarum, 1891. Mesmo assim, ainda que seja correr contra o
prejuízo, a Igreja criou a doutrina social da Igreja. O Papa Leão XIII
enfrentou a questão operária numa época em que começavam a
distinguir-se duas classes antagônicas: a dos capitalistas e a do
operariado.
Na Rerum Novarum, define-se o trabalho como a atividade
humana destinada a prover às necessidades da vida, especialmente a
sua conservação (RN, 6). Ele tem uma dignidade e não se deve ter
vergonha de trabalhar para ganhar o pão do dia-a- dia, uma vez que o
próprio Jesus quis ser trabalhador (RN, 15).
O trabalho é pessoal e necessário: pessoal porque a força ativa é
inerente às pessoas e porque é propriedade daquele que a exerce e a
recebeu para a sua utilidade; é necessário porque o homem precisa
dele para sobreviver. O trabalho tem uma prioridade sobre o capital. O
magistério posterior (Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI) seguiu
basicamente estas indicações deixadas por Leão XIII.
Sendo que, podemos afirmar que a sociedade posiciona-se com o
manifesto do partido comunista social e político e a Igreja com a
Doutrina Social da Igreja. Ao longo do tempo, a Sociedade tem-se
posicionado com o empreendedorismo social que tem na sua génese
movimentos sociais característicos de determinados momentos da
história das sociedades, como por exemplo o associativismo, o
mutualismo e o cooperativismo, e que, ainda hoje, são a base
organizativa de alguns movimentos sociais. Atente-se que, a revolução
industrial criou o capitalismo em que o poder estava nas mãos de
algumas pessoas, a Igreja ao posicionar-se com a doutrina social,
recorda o princípio do bem comum. Tudo o que existe no mundo é
para todos e todos devem ter iguais oportunidades.
246
Administrativos e localidades, numa extensão de 799,380 km², com
uma população de 28,8 milhões de habitantes: 15,061 milhões de
mulheres e 13,800 milhões de homens, segundo o último
recenseamento de 2017, lembrar que em 1997 eram 16,1 milhões e 2007
eram 20, 5 milhões (http://www.ine.gov.mz). Faz fronteira a norte com
a Tanzânia, a oeste com o Malawi, Zâmbia, Zimbabwe e Suazilândia, a
sul com a África do Sul e a este é banhado pelo Oceano Índico, numa
extensão de costa marítima cerca de 2.770 Km.
São identificáveis três fórmulas principais da Lei fundamental de
Moçambique. A Constituição fundadora, datada de 1975 e as versões
que se lhe seguiram, a de 1990 e a atual, de 2004. Cada uma espelha
contextos políticos diferentes correspondendo a fases que marcaram
a evolução do país.
O Empreendedorismo em Moçambique deve ser visto neste
contexto da construção do Estado Moçambicano.
O ESTADO MOÇAMBICANO
247
do Norte: Cabo Delgado e Nampula. Na prática, tratava-se de grandes
acampamentos para onde eram enviados “marginais”, “suspeitos” ou
inimigos políticos (como Urias Simango). Nas machambas, todos
teriam que trabalhar na lavoura durante o dia, construir as suas
palhotas e, ao final da jornada, assistir a cursos de marxismo-leninismo.
A IGREJA CATÓLICA
248
manifesta no campo social a fim de promover a justiça social. Os
Fundamentos bíblicos são: O Antigo Testamento, que propõe romper
os grilhões da iniquidade, soltar as ataduras do jugo, pôr em liberdade
os oprimidos, desperdiçar toda espécie de jugo, repartir o pão com o
faminto, abrigar os desabrigados, vestir o nu; enfim, agir com amor
concreto ao próximo (Is 58). O Novo Testamento enfatiza a comunhão
de bens, a solidariedade e a fraternidade entre os cristãos (At 2, 44ss).
A Caritas Moçambicana foi fundada em 1976. E no ano seguinte
1977, no mês de novembro, em Assembleia Ordinária da CEM decide-
se a implantação da Cáritas Diocesana. Fazendo jus à decisão tomada
sua Eminência Reverendíssima Senhor Cardeal Dom Alexandre Maria
dos Santos, OFM, criou a Caritas Arquidiocesana de Maputo.
Por trás da decisão da CEM estava todo o contexto triste da
bárbara guerra civil que vitimou muitos moçambicanos, fazendo surgir
um número elevado de refugiados, desabrigados e necessitados. A par
deste cenário estavam também as situações calamitosas, provocadas
pelas intempéries naturais, para citar alguns exemplos, 1976 e 1977
cheias da bacia do Incomáti. 1980, grande seca no país, que também
originou deslocados. 1984, chuvas torrenciais que fazem
transbordarem o Umbeluzi e Incomáti. Nos anos 2000, cheias que
afetaram quase todo o país.
Neste contexto foram surgindo apoios externos vindos de todos
os quadrantes do mundo. Chegavam bens e consumíveis de todos os
tipos para ajudar as vítimas de Moçambique que estavam numa
situação de carestia quase total. Por causa disto este tempo foi
chamado da época dos contentores. Só se falavam de contentores,
constantemente. Neste âmbito de ajudas, é bom frisar que também
surgem congregações religiosas que entram neste ritmo filantrópico,
recebem doações e canalizam-nas para as vítimas.
Depois disto, surge outra fase, a fase de projetos na tentativa de
se criar uma autossustentabilidade. E quase todos procuram fazer
projetos para manter as suas atividades pastorais. É neste cenário em
que nos encontramos, fase de projetos autossustentáveis que
procurem criar sustentabilidade a partir das bases.
Então, é neste histórico contexto que a imagem da Caritas é
criada, a sua identidade é rotulada: Caritas instituição de doações que
só dá. Todos os que precisarem, mesmo que não sejam necessitados
para lá se devem dirigir.
249
Infelizmente, esta imagem ainda continua, mesmo depois de ter
passado o período de guerras e das frequentes emergências. Os
nossos fiéis estão habituados a receberem e o Padre que não dá é mau;
o setor de caridade que não distribui alimentos, não presta. É assim
que uma das nossas batalhas atuais é combater esta mentalidade e
criar uma mentalidade nova e diferente; uma caritas que parta da base,
das comunidades e de todos os fiéis e não do estrangeiro.
Estar neste combate dando origem a muitos Projetos de
autossustentabilidade e de empreendedorismo em todo o país, é a
missão da Igreja e da sociedade. Há um slogan moçambicano que diz:
há duas coisas que chegam a todas as partes do país: coca – cola e a
Igreja Católica. Há que acrescentar o da autossuficiência e o
empreendedorismo do Homem novo.
CONCLUSÃO
250
sociedade. Uma renovação da educação e da teologia só pode ser
benéfico para o homem individual, social e coletivo. Por isso, a aposta
na formação do homem, no sentido de se despojar da atitude da
submissão das filhas, dos filhos e de mulher-esposa, a todos níveis,
criará na sociedade mais respeito e sobretudo dará a dignidade
necessária a quem mais precisa.
REFERÊNCIAS
251
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252
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REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Lei nº 8/91 de 18 de Julho do
Associativismo: Boletim da República.
253
254
AS PAISAGENS NOSTÁLGICAS E O ETERNO RETORNO NO POEMA
SÚPLICA, DE NOÉMIA DE SOUSA
INTRODUÇÃO
E-mail: [email protected]
255
Jankélévitch (1974) e Vecchi (2017), sobre o conceito de nostalgia,
Gusdorf (1980), Hesíodo (2007) e Eliade (1991, 2012), sobre o mito.
Os procedimentos metodológicos foram realizados mediante
pesquisa descritiva, de base bibliográfica e análise qualitativa. O corpus
de análise é um poema intitulado Súplica, da poetiza moçambicana
Noémia de Sousa. Essa escolha se deu pela forte presença de nostalgia
nas paisagens percebidas nessa obra.
Assim, na segunda seção, serão abordados os conceitos de
fenomenologia da paisagem e da percepção. Na segunda seção,
haverá uma explanação a respeito do conceito de nostalgia. Na
terceira seção, será enfocado o conceito de nostalgia na música. Na
quarta, e última seção, será feita a análise do poema proposto,
dividindo-se as estrofes e versos, para uma melhor demonstração das
paisagens nostálgicas e, por fim, o mito do eterno retorno presente na
obra.
A FENOMENOLOGIA DA PAISAGEM
256
diferenciada de refletir sobre o mundo, pois, segundo esse autor, o
visível se estrutura ao sujeito em forma de uma paisagem em
potencial, que não se enquadra como construção contingente, mas
como estrutura fundamental da percepção do homem.
O horizonte da paisagem se confunde com o campo visual do
sujeito que observa, e este se confunde com o horizonte da paisagem;
ao assimilar uma paisagem, o sujeito lança mão de experiências pré-
existentes em sua vida, por meio de recordações, visto que a
percepção responde aos estímulos externos, por meio dos fenômenos
(COLLOT (2013). O sujeito estende-se para o mundo por meio desse
sentimento, e muito do que apreende está ligado aos valores
biológicos e culturais. Portanto, para evocar sentido em uma paisagem
observada é necessário que o indivíduo traga à tona lembranças e
recordações, sejam por experiências pessoais ou pela cultura implícita,
adquirida socialmente (TUAN, 1980).
Segundo Merleau-Ponty (1999), para que o sujeito possa
completar a percepção, antes mesmo da contribuição da memória, o
que é observado deve formar um quadro que possibilita ao sujeito o
reconhecimento de experiências anteriores. É preciso que os dados
apreendidos tornem possíveis recordações. Assim, o caos sensível é
organizado pelo sujeito, que impõe sentido ao quadro observado,
como um apelo a essas recordações. Por meio da visão, tem-se o
espetáculo do mundo, cabe ao sujeito reorganizar os dados e
preencher as lacunas para dar sentido ao caos.
257
não é limitada a nenhuma cultura. Quando o homem se familiariza com
o espaço, percebe características do passado e assim reconhece um
lar, pois o lar fornece uma imagem do passado, um centro que leva ao
significado de origem (TUAN, 1983). Assim é o sentimento intenso que
o homem tem pela pátria, pois é um tipo de lugar importante.
Por meio da sensibilidade do nostálgico, é possível entender que
a verdadeira pátria de todos os homens não é deste mundo, mas de
além do mundo, e que a verdadeira pátria de todos os homens não se
encontra em nenhum mapa, é uma pátria escatológica, uma espécie
de jesuíta celestial, situada no horizonte de toda a esperança
(JANKÉLÉVITCH, 1974). O nostálgico é aquele que, estando longe,
sofre. De acordo com Tuan (1980), esse sentimento caracteriza a
topofilia, que se refere à relação afetiva entre o sujeito e o espaço
físico, refletida na experiência pessoal.
Starobinski (1966), afirma que a nostalgia é uma turbulência
íntima ligada a um fenômeno temperamental, capaz de desencadear
uma hipermídia emocional que relaciona a ilusão apaixonada do
passado com o sentimento doloroso de separação. Portanto, o
conceito de nostalgia é o habitante de um país distante, cujos usos e
língua são diferentes dos seus e devem ser apreendidos
sensivelmente.
A nostalgia se funda em algo trágico, o retorno, pois, mesmo que
se retorne ao lugar familiar, este não será mais o mesmo, pois a ação
do tempo e da natureza modificam constantemente o espaço
percebido pelo sujeito. O regresso, então, torna-se uma outra partida.
O retorno é impossível, é um erro infinito. Mas a nostalgia alimenta a
ilusão do retorno, tornando-se em um ciclo infinito de retorno, o mito
do eterno retorno (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Sob esse contexto, há a irreversibilidade do tempo e do espaço.
O sujeito nostálgico recusa o presente, porém alimenta uma ilusão de
retorno que não existe. O retorno, assim, é uma panacéia. A
impossibilidade do regresso é o que faz o nostálgico (VECCHI, 2017).
Saudade, nostalgia e melancolia são posturas diferentes em
relação ao tempo e permitem interseção entre elas. Há uma
ambiguidade entre nostalgia e saudade. A saudade é a mistura de dois
termos: passado e presente ou, ainda, memória e esquecimento.
Assim, a saudade implica o retorno, o ficcionaliza, mas a nostalgia é a
impossibilidade de retornar. A saudade se configura como passado
258
reinventado, recuperado, portanto, é uma agência. A saudade possui
acumulação de tempo e é a invenção do retorno, enquanto que a
nostalgia é a ilusão do retorno, isso é o que distingue esses dois termos
(VECCHI (2017).
Já a melancolia é uma situação patológica, referente ao luto
(trauma). Refere-se à impossibilidade de terminar um processo – o de
luto. Esses dois conceitos fazem parte do mesmo processo. Porém, o
luto é positivo, uma vez que tem o objetivo de finalizar a dor daquilo
que se perde. Já a melancolia é negativa, pois mantém a dor do que se
perdeu. Assim, por estar fixado numa idea, o sujeito acaba por
assimilar representações errôneas (STAROBINSKI, 1966). No processo
de luto: é preciso enterrar o morto para completar o processo de luto,
de outro modo, vem à tona o sentimento de melancolia em forma de
espectros, elemento fantasmagórico, que são as relações com
fantasmas do passado. Na fantasmagoria, a verdade é uma ilusão
(VECCHI (2017).
De acordo com Jankélévitch (1974), a nostalgia é uma melancolia
humana tornada possível pela consciência, que é a consciência de
outra coisa, um contraste entre passado e presente, entre presente e
futuro. O exílio, portanto, tem uma vida dupla, como uma
superposição de vidas, a do passado e a atual. Os lugares distantes
tornam-se para o nostálgico a representação de uma segunda vida,
uma vida poética e sonhadora, uma vida fantasmagórica que ocorre à
margem da primeira. O exilado tenta ouvir as vozes internas através
do ruído estridente da vida cotidiana, mas essas vozes interiores são
as vozes do passado e da cidade distante, elas sussurram um segredo
nostálgico na linguagem da música e da poesia (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Sendo condições universais, as três palavras: nostalgia,
melancolia e saudade têm cabo na memória. A saudade é o elemento
que une os outros dois termos. No entanto, esses três elementos
constituem o tripé das perdas. Com o colonialismo e ditaduras, houve
a fantasmagorização do passado, pois não houve o processo completo
de luto (VECCHI (2017). Tem-se, então, o mito do eterno retorno. A
nostalgia depende do ponto de vista do sujeito, pois é uma posição no
presente em relação ao passado, o manifestante reivindica o retorno
às fontes originais de tudo o que constitui uma linguagem natural,
fabular, nacional encanto popular, que afirma o direito imprescritível
das origens históricas e geográficas. O protesto da nacionalidade
259
oprimida, frustrada e alienada prontamente toma uma forma musical
(JANKÉLÉVITCH, 1974).
260
que fez parte do passado, desperta memórias, que, em conjunto com
o som, desperta uma presença floreada de sentimento, mesmo que a
causa primitiva desse sentimento não seja lembrada. Esses efeitos são
derivados dos hábitos da infância ou de um antigo modo de vida e
despertam, nos sujeitos deslocados, uma dor amarga por ter perdido
tudo. O aqui age não como música, mas como uma lembrança.
De acordo com Jankélévitch (1974), a música é
imperceptivelmente nostálgica na sua essência. Diante da
impossibilidade de retornar ao país familiar, o homem, desesperado de
milagres, começa a cantar. Na música e na poesia, o homem nostálgico
encontra sua língua. A música, uma linguagem ambígua, não usa
palavras unívocas para transmitir um significado predefinido, também
é feita para expressar, e até mesmo para inspirar, sentimentos não
motivados. A música, por outro lado, que não age diretamente sobre
as coisas para transformá-las, mas dá voz ao impotente passado e
infeliz irreversibilidade. No entanto, o contrário da vida, o trabalho
musical é repetível, pode-se reproduzi-lo infinitamente.
Assim, de acordo com Starobinski (1966), o sinal mnemônico é
uma presença parcial que faz sentir, com dor e prazer, a iminência e a
impossibilidade do retorno total do universo familiar, que emerge tão
facilmente do esquecimento. É a gentil melancolia do passado em
geral que se exala nas cantigas. É o arrependimento incurável da
felicidade que já passou, da felicidade sem lugar ou data. A casa da
lembrança é, por excelência, a música (JANKÉLÉVITCH, 1974).
A teoria acústica da nostalgia, conforme Starobinski (1966), vem
da junção dos temas: exílio, música, memória dolorosa e terna,
imagens douradas da infância; e contribuem, também, para a
formação da teoria romântica da música. Segundo esse autor, é por
meio da sensação de audição que pode tornar sensíveis lugares e
coisas extraordinárias. Os sons provenientes de lugares sublimes
promoverão uma impressão mais profunda do que as formas
apreendidas.
Começa uma espécie de retorno infinito. São as formas
retrospectivas de desejo, a esperança de um passado por vir e o retorno
a um futuro que já ocorreu, são formas paradoxalmente recíprocas da
mesma nostalgia. Neste ponto, a idade de ouro do passado mais distante
é um futuro quimérico. O homem que retorna à sua origem, à sua
inocência, retorna para onde ele nunca mais voltou, volta a ver o que ele
261
não viu e esse falso reconhecimento é mais verdadeiro do que o homem
verdadeiro, guiado por verdadeiro falso reconhecimento, retorna a um
lugar desconhecido (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Nesse sentido, Eliade (1991), afirma que, por ser um acontecimento
primordial, o mito narra sempre uma criação, de que forma algo passou a
existir. Conta uma realidade absoluta de algo que se revelou plenamente
no mundo. Dessa maneira, o círculo não fecha. Há a eterna peregrinação
em busca das fontes do verdadeiro objeto que causa a nostalgia. O tempo
nostálgico não é a ausência em oposição à presença, mas o passado em
relação ao presente, o verdadeiro remédio, mas a parte de trás na
retrocessão do espaço para o passado no tempo, não é novo, mas o
eterno retorno (JANKÉLÉVITCH, 1974).
262
A partir da segunda estrofe, a poeta utiliza recursos estilísticos para
a construção das imagens de Moçambique, paisagens percebidas pelo
eu poético como enraizamento de uma terra natal: “(1) Tirem-nos a terra
em que nascemos,/ (2) onde crescemos/ e onde descobrimos pela
primeira vez que o mundo é assim:/ um tabuleiro de xadrez...” (SOUSA,
1988, p. 37-38). Esses versos remetem à infância do sujeito poético, pois
há a referência do local de nascimento, expressando o que Tuan (1980)
chama de topofilia, uma afetividade ao seu lugar de origem, o lugar
familiar. Nos dois últimos versos dessa estrofe há a melancolia presente
no fato de descobrir que a vida “é um tabuleiro de xadrez”, esse
sentimento remete ao pensamento de que a vida é um jogo, cujas peças,
as pessoas, podem ser lançadas para diversas direções, inclusive, para
longe de casa. As reticências utilizadas no final do último verso indicam
incerteza e lamento ao se descobrir adulto, idade em que se vive a
experiência dos percalços da vida, pois, conforme afirma Starobinski
(1966), o nostálgico não quer o lugar de sua juventude tanto quanto a
juventude em si. Seu desejo não é de algo que ele possa encontrar, mas
de um tempo que é eternamente irreparável.
Na terceira estrofe do poema, há doze versos, que configuram
uma paisagem mais tradicional de Moçambique, com elementos
típicos da cultura desse país, enfatizando a nostalgia sentida pelo eu
lírio:
263
separado do seu ideal é resultado da experiência dolorosa da
consciência arrancada de seu ambiente familiar (STAROBINSKI, 1966).
Nos versos quatro (4), cinco (5) e seis (6) há a paisagem percebida pelo
eu poético como encantamento pelo local e experiência vividos. A
paisagem, segundo Collot (2013), é uma extensão de região que se
abre ao observador. Sendo um espaço percebido, ela é apreendida por
um sujeito, a uma perspectiva do olhar. A poetisa descreve uma dança,
em noite de luar, na selva de Moçambique, ou seja, descreve a
paisagem percebida como memórias reminiscentes de um tempo mais
primitivo. Xingombela é uma dança típica moçambicana antiga,
praticada em terreiro, no início da noite, por isso “a lua lírica do
xingombela”. Essa dança é acompanhada de batuques, apitos e
xipalapala, que são chifres de gazela. Os dançarinos, meninos e
meninas jovens, praticamente da mesma idade, usam peles de animais,
palhas e pulseiras para dançar. Conforme afirma Jankélévitch (1974), a
música, às vezes, deixa as pernas intermitentes no passado e nas
profundidades da memória, nas canções, as velhas lembranças surgem
da sombra, seguidas por seu próprio eco, se eleva como uma
reminiscência distante, o passado, ao chamar de encantamento, de
repente levanta, no local, para a luz do presente. Esse encantamento
vem, a seguir, nos próximos versos, como uma explicação, que a
autora coloca entre parênteses, desse sentimento: (7) “(essa lua que
nos semeou no coração/ (8) a poesia que encontramos na vida)”.
Os versos seguintes também configuram a paisagem
moçambicana nostálgica de moradia. Nos versos “(9) tirem-nos a
palhota – a humilde cubata/ (10) onde vivemos e amamos” (SOUSA,
1988, p. 37-38), palhota e cubata são descrições de cabanas
vernaculares e casas cobertas por folhas, típica choupana de negros
africanos. Mais uma vez, o eu lírico expressa sentimento de amor pelo
local: “vivemos e amamos”.
Há, novamente, referência ao local amado pelo sujeito, mas,
desta vez revelando a dificuldade e pobreza, como nas condições de
subsistência do indivíduo? “(11) tirem-nos a machamba que nos dá o
pão,/ (12) tirem-nos o calor do lume/ (13) (que nos é quase tudo). Aqui,
a machamba é o quintal, a horta onde se plantam vegetais. Lume é
característico a fogo, chama, ou seja, o que aquece o corpo e a vida e
o que, para o eu lírico “é quase tudo”. Mesmo se tratando de alimento
e do conforto do calor, ainda assim, o sujeito poético expressa a
264
submissão da ausência desses elementos, no entanto, reafirma: “(14) -
mas não nos tirem a música!”. A música, nesse sentido, é mais
importante do que o próprio alimento, visto que ela não alimenta o
corpo, mas a alma. Para Jankélévitch (1974), a música encontra seus
acentos mais profundos e desperta nos corações o eco mais fraterno.
Há, nos versos, a junção do exílio, música, memória dolorosa e terna,
que são imagens do passado, conforme aponta Starobinski (1966),
pois é pela sensação de audição tornam-se sensíveis lugares e coisas
extraordinárias.
265
existentes e de recordações, visto que a percepção responde aos
estímulos externos, por meio dos fenômenos (COLLOT (2013). Na
música, o eu lírico nostálgico encontra sua língua, sua terra natal, seu
tempo original, por meio da contemplação meditativa: “(35) E o nosso
queixume/ (36) será uma libertação/ (37) derramada em nosso canto!”
(SOUSA, 1988, p. 37-38). O mais doloroso é a nostalgia do exílio na terra
estrangeira, a voz do país distante é ouvida através das lágrimas da
vida cotidiana (JANKÉLÉVITCH, 1974) .
Há a reiteração do mito do eterno retorno na última estrofe do
poema: “(40) Tirem-nos tudo.../ (41) mas não nos tirem a vida,/ (42)
não nos levem a música!” (SOUSA, 1988, p. 37-38). A música cantada
garante o retorno abstrato ao tempo de origem, mesmo que esse
tempo nunca mais volte, através da música o sujeito se reatualiza no
tempo, volta ao tempo original, garantindo a realidade absoluta
(ELIADE, 2012). Dessa maneira, o círculo não fecha. Há a eterna
peregrinação em busca das fontes do verdadeiro objeto que causa a
nostalgia. (JANKÉLÉVITCH, 1974).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
266
Considera-se que todo sujeito pensa-paisagem, portanto, essa teoria
pode ser aplicada a qualquer texto literário, pois é centrada em torno
da perspectiva do sujeito e do horizonte fenomenológico que ele
observa.
REFERÊNCIAS
267
268
AS MELODIAS DAS SEREIAS: LEITURAS, TRAVESSIAS E SENTIDOS
ARIA INICIAL
269
desconhecidas. Aqui não se pretende enquadrar um horizonte, e sim,
construir nossa visão a partir ótica cartográfica.
E assim, no horizonte vislumbra o olhar de um devir-outro
(DELEUZE, 2011) entre o admirar e pensar o movimento, um
“movimento de diáspora que nunca deve ser reprimido, mas
preservado e acolhido como tal [...]” (BLANCHOT, 2013, p. 345), assim,
teremos um livro (leitura) “sempre em movimento, sempre no limite
do esparso, será também sempre reunido em todas as direções, pela
própria dispersão [...]” (BLANCHOT, 2013, pp. 345-346), um livro
(leitura) que pela dispersão se renova por descolamentos e desvios, “e
todo o desvio é devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas, nem
na linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 12), nem na leitura.
Os tons proféticos, os oráculos, o futuro... não apreende o
movimento por vir da leitura, tons vindouros nos levam a um lugar
distante, ainda vago de infinito alcance talvez. O movimento por vir
habita os deslocamentos, os devires, ora habita ora se transfigura em
marés de metamorfoses entre sensações e experiências plurais. Em
meio às experiências plurais, a leitura por vir dança a palavra por “um
movimento rítmico”, “escapando ao acaso por sua estrutura e sua
delimitação, realiza a essência da linguagem, que desgasta as coisas
transformando-as em sua ausência ao devir rítmico, que é o
movimento puro das relações” (BLANCHOT, 2013, p. 331). Um
movimento da leitura que convida a ausência a bailar as
metamorfoses, os abismos e incertezas.
Uma leitura por vir caminha longe da experiência da linguagem
fria e funcional para que a leitura não se torne epitáfios,
necromânticos, sem renovação, assim, uma leitura “por vir” cavalga
“no dorso da leitura” (COSTA, 2016), pois, “cavalgar no dorso da
leitura, produz, duplamente ao pensamento, euforia e embriaguez,
espanto e consternação” (COSTA, 2016, p. 140) e nos enlaça por entre
sensações, metamorfoses e transfigurações dos sentidos, em um
caminho outro que segue por veredas sem direção.
Uma leitura por vir segue “para além do futuro e não cessa de vir
quando está ali” (BLANCHOT, 2013, p. 352), continua a seguir o
movimento seguinte, impulsionado pelo desejo. Assim, a leitura por vir
transporta o leitor a habitar uma “dimensão temporal” (Ibidem, p.
352), “diferente daquela que o tempo do mundo nos fez mestres, está
em jogo em suas palavras, quando estas põem a descoberto, pela
270
escansão rítmica do ser, o espaço de seu desdobramento” (Ibidem p.
352). É valido ressaltar que foco aqui não é criar um perfil de “leitor
ideal” ou “prática pedagógica ideal”, pelo contrário, é (re)pensar a
leitura como um movimento por vir, tecido no limiar entre texto-
leitura, entre descolamentos, abismos e incertezas, para que
possamos vislumbrar a relação das sensações, metamorfoses e
experiência de sentidos oriundas das ressonâncias da leitura.
271
O canto anseia o “sulco prateado no mar, oco da onda, grota
aberta entre os rochedos, praia de brancura” (FOUCAULT, 2009
p.234), lugares onde o encanto começa, e aventura ressona, talvez, o
caminho é aberto, e se transforma, são as melodias vindouras uma
abertura ao horizonte do infinito do mar, e ao navegar pelas espumas
de sedução, as correntes seguem os movimentos das ondas e
penetram direções sombrias e gélidas do mar. É o movimento das
ondas uma possibilidade a se arremessar às incertezas das águas.
As espumas cortam os mares sem direção, são as correntes do
mar rumo às cartografias e rizomas entoando “a promessa de um
canto futuro” (FOUCAULT, 2009, p. 234) que percorre a melodia. É o
tom que dita os sentidos sensórias e faz perder a razão. E seguir guiado
pelo desejo do íntimo. O canto da Sereia aqui, nasce como uma nova
aurora. Aurora que tece o amanhã e “as Sereias prometem cantar para
Ulisses, é o passado de suas proezas, transformadas para o futuro em
poema (...)” (FOUCAULT, 2009, p. 234). O futuro poetiza as vozes que
ressonam em um movimento por vir... onde as veredas se estabelecem
por um passo inicial.
Ao pensar na aurora por vir, as águas transcorrem fluxos por
entre igapós, riachos, ribanceiras, igarapés, pequenos furos, acima e
abaixo, vazante ou enchentes as águas levam histórias, memórias,
lendas, o mítico... arrastam pela correnteza verdades preciosas. E ao
poente do Sol, o silêncio vai adentrando as matas, e repousando nas
sombras. Aos poucos o brilho da lua entoa transfiguração, e sons
renascem em um mundo repleto de magia, o curupira, a mula sem
cabeça, as matinhas, anhangas afloram sua natureza, é noite de lua
cheia. As feras começam a poetizar.
O brilho da lua ilumina o rio, e Iara começa a cantar, é o
movimento de sua voz uma “promessa ao mesmo tempo falaciosa e
verídica” (FOUCAULT, 2009, p.234). O tom do seu canto emana
desejos íntimos de aportar suas certezas em um momento presente, é
a precipitação um caminho à morte, tendo em vista que “todos
aqueles que se deixarão seduzir e apontarão seus navios para a praia
encontrarão apenas a morte” (FOUCAULT, 2009, p.234). Entretanto, a
realidade do canto se expressa “através da morte que o canto poderá
se elevar e contar infinitamente a aventura dos heróis” (FOUCAULT,
2009, p.234).
272
Uma aventura de herói travada entre riscos e desafios. O canto da
Sereia é “tão puro que ele nada mais fala que não seja do seu refúgio
devorador” (FOUCAULT, 2009, p.234), sentidos que precisavam ser
acolhidos pela devoração (COSTA, 2008), um instinto canibal
antropofágico que perpassa o desejo. “Desejo que é força, apetite,
vontade, fluxo descontínuo, potência vibratória (para além da carência
do objeto ausente, da falta, da culpa, do luto, do duplo rebatimento do
sujeito sobre si mesmo). Desejo como fluxo, corrente, devir” (COSTA,
2008, p.71). Fluxo do desejo que flui pela veia, é o desejo apetite e
carne, pão e vinho... O fluxo por vir.
Um movimento do desejo que impulsiona tons de sedução.
“Desejo como adjacência, passagem, prosseguir. Desejo como deriva,
decurso, fugir” (COSTA, 2008, p.71). Desejo latente, desejo por vir em
meio ao caos que cria transfigurações pelo caminho, riscos e desvios.
“Desejo como irrupção, acontecimento, fremir. Desejo que excede,
que escapa, que escorre, que não é lugar, apenas posição” (COSTA,
2008, p. 71). Desejo como movimento do corpo, da alma, das
metamorfoses, são os traços da trajetória que despertam no íntimo...
Ritos de acolhimento.
Então “[...] é preciso renunciar a ouvi-lo, tapar os ouvidos,
transpô-lo como se fosse surdo, para continuar a viver e então
começar a cantar” (FOUCAULT, 2009, p. 234). É preciso cantar
melodias novas, habitar ares desconhecidos, alçar voos leves, rumo ao
devir. É a possibilidade um caminho à perversão e à descoberta. Um
mundo possível que se cria e ora habita provisoriamente... São os
lugares de descobertas, de afirmação do desejo, momento de lançar
mão das incertezas e pertencer aos abismos, a fim de que:
[...] Nasça a narrativa que não morrerá, é preciso estar à escuta, mas permanecer
ao pé do mastro, pés e mãos atados, vencer qualquer desejo de uma astúcia que
se violenta a si mesma, sofrer todo sofrimento permanecendo no limiar do
abismo que atrai, e se reencontrar finalmente além do canto, como se tivesse em
vida atravessado a morte, mas para restituí-la em uma segunda linguagem.
(FOUCAULT, 2009, p. 234)
273
desejo instaurando uma linguagem a ser acolhida em tempestade e
desejo. E à deriva os desejos percorrem o mar em suas profundezas,
esconde os anseios por vir, uma confusão por assim dizer, um
sentimento arrebatador que arranca as entranhas da alma e a põe a
poetizar.
Em tempo inverso de cachoeira, ideias que fluem em um fluxo
contínuo que regressa ao passado. Mas em tempos de cachoeira a vida
quer apenas se renovar, e seguir a revolução por um barulho seguinte,
em movimento por vir e libertação. Cante o novo! Cante as verdades!
Cante o amor! Cante ao mundo! Cante melodias inauditas, e as
propaguem em mundo onde as vozes se reinventem e se retorçam.
Às margens do rio, a lua entoa, Iara sentada está, são as águas
escuras, que a beleza encantou, ao longe, olha a lua e canta, canta uma
melodia fina, saudosa, quem sabe. A voz ecoa no lugar como em
espírito livre selvagem que a escuridão nos faz relembrar, são os
barulhos seguintes que as águas do rio permeiam. Um pouco de fera,
um pouco de mítico, um pouco de transfiguração, a Iara retorna ao rio,
e sua visão a faz duvidar, o espelho negro do rio, embora hostil, em seu
seio começou a poetizar, talvez o belo venha à noite, quando o céu é
repleto de estrelas. A ti conto pelo encontro da voz da sereia, ame a
luz da lua, o rio hostil que a escuridão incendeia.
As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia,
que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a
verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não
passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele
espaço onde o cantar começava de fato. (BLANCHOT, 2013, p.3)
A sereia canta uma melodia por vir. Uma melodia por vir conduz o
navegante a pertencer ao gélido azul da tormenta das águas. Não há
assim, razão funcional a qual seguir, apenas é dragado pelo tom
desconhecido que emana do canto. É o canto um caminho a desbravar
direções desconhecidas, entretanto, “de que natureza era o canto? Em
que consistia seu defeito? Por que seu defeito o tornava tão
poderoso?” (BLANCHOT, 2013, p.3). O canto poderia ter tom inumano,
ou mesmo ser igual aos outros, porém a melodia latente propagava
tons de sedução, e em meio ao turbilhão o navegante seguia o tom
embriagado que ecoara do canto da sereia. Não mais mundo
mundano, e sim, o amor, a entrega, a sedução.
274
O canto lanceava os navegadores, “homens do risco e do
movimento ousado” (BLANCHOT, 2013, p.4). No mar o navegante
anseia um destino, uma rota, um porto seguro. O canto da sereia
desnorteia o navegador, e o faz aportar suas incertezas, não mais um
único caminho a seguir. Ao lançar a âncora em meio à melodia da sereia
é preciso ter cuidado, pois “todos aqueles que dele se aproximaram
apenas chegaram perto, e morreram por impaciência, por haver
prematuramente afirmado: é aqui; aqui lançarei âncora” (BLANCHOT,
2013, p.4).
O belo e enigmático canto da sereia ecoa pelo momento presente
em transfiguração do momento agora ao passado que ainda se
desenha no íntimo do navegador. Navegador embriaga-se, assim
como leitor, na melodia que se põe a bailar ritos de metamorfoses em
meio ao presente que não quer sossegar. Ao bailar com a tormenta da
água e o canto da Iara em um salão cheio de ventos de tempestade por
vir o navegador leitor aspira um caminho entre traços e novas
direções, tendo cuidado de voltar a si, em giro que passa pela
autocompreensão, a fim de vislumbrar um horizonte enigmático do
desconhecido que ressona metamorfoses.
A metáfora do canto da sereia de Blanchot faz pensar a leitura em
movimento e transfiguração, dando-nos pistas que nos convidem a
repensar a leitura em seu campo enigmático, tendo assim, o cuidado
de não pertencer às brevidades ou precipitações de sentidos e
cometer o erro de lançar âncora por uma ação impensada, afirmando
verdades ilusórias. Assim, buscamos um mundo que caminhe em um
horizonte sem cegueira ou surdez, pelo caminho entre apetite e
ruminação, espreitando a leitura em seus perigos e desvios, a fim de
que a navegação (leitura), suporte fortes tormentas imprevisíveis e
enigmas mortais.
Iara reverbera ao mundo maneiras de pensar as sensações por
meio do “desconhecido”, talvez. Iara lanceia desassossego, pois, põe
a escuridão em poesia e canta um novo caminho. Não é a objetividade
da ação que se julga aqui, e sim, o conhecer o íntimo dos abismos e
caminhos desconhecidos. Iara transforma, assim, a singularidade em
pluralidade e dispersão e põe-se a cantar melodias novas, caos e
tempestade.
275
LEITURAS, TRAVESSIAS E SENTIDOS
276
aqui jaz a imaginação, a liberdade e a criação, deveis então fazer do
mundo, ou nosso mundo, um lugar de descolamentos e renovação.
O tempo nos apresenta turbilhões de vozes que ecoam pela
realidade administrada, quebrando assim a relação espiritual com o
livro. “A convivência entre poeta e leitor, só no silêncio da leitura a sós.
A sós os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiro, não
quer que interpretem, [...]” (QUINTANA, 2012, p. 150), o leitor ama em
silêncio, acolhe e rumina. O leitor não segue fixando o sentido, e sim,
pluraliza e o retorce em castidade, obscuridade e dispersão. O silêncio
o envolve no “desconhecido”, talvez cantem e dancem um poema,
mas “o verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”
(QUINTANA, 2012, p. 150).
O silêncio provoca sensações, entorpece. São os movimentos do
silêncio que nos retiram o desassossego e nos leva ao mundo em
lugares que não se pode habitar, o silêncio é aqui não como ausência
de movimento, mas como o giro em torno de si, entre confusão e luta,
uma luta que se trava no íntimo, no movimento de ruminação, assim,
“ruminar é preciso”, é preciso ruminar, (e para a arte da ruminação é
preciso ter) “bons dentes e bom estômago – Eis que lhe desejo”
(NIETZSCHE, 2012, p. 45).
O leitor devora e recusa em desejo latente entre acolhimento e
evacuação, entre saciedade e vazio. O “Erudito” que lê em demasia,
doentio está pela produção e acúmulo, pois a criança brinca entre as
rodas, os giros as levam sem rumo, não há caminho, não há
apropriação, a criança lê e esquece, “[...] agora sim, creio que está são:
Pois sadio é quem esquece” (NIETZSCHE, 2012, p.19).
A linguagem é viva, e sua vivacidade requer da leitura uma
vivência múltipla, desvios e travessias. A leitura enquanto travessia
“perde seu destino porque não tem meta, não é finalidade. É a duração
da continuidade” (SKLIAR, 2004, p.26). E o leitor atravessa a trajetória
rumo à viagem que se apresenta em uma infância que “atravessa.
Passa entre suas travessuras. E assim, ela (criança) entra na pausa sem
saber que está na pausa” (SKLIAR, 2004, p.27). A criança é inocente e
lê pelo gosto da viajem... E foge das leituras que não alçam voos. A
criança então julga leitura em fruição e desejo, assim caminha “os
primeiros passos não são os primeiros passos, pois ela já caminhou
várias vezes, passando através de sonhos e trevas” (SKLIAR, 2004,
277
p.27). Caminhou por direções não funcionais e habitou inocência e
leveza da leitura, abrigando os livros pela fruição.
A criança lê em poesia, pois “o poeta viaja. Atravessa. Passa. De
uma palavra a outra. De uma palavra à voz. Do corpo à escrita. Da
escrita à palavra, à voz e ao corpo de quem lê” (SKLIAR, 2004, p.27). E
o poeta entorpece a alma e poesia perdura e passa como o bater das
asas de uma borboleta, é um movimento rápido e intenso que criar
travessias que “nunca mais saberemos seus limites” (SKLIAR, 2004,
p.27). O poeta (leitor) caminha ao encontro da duração. “A travessia é
uma duração” (SKLIAR, 2004, p.27). E o poeta (leitor) encontre-se no
entre-lugar, na duração da travessia.
O sol põe ao longe, entretanto é possível sentir o calor que emana
dos raios, um calor que abraça o corpo com um tom familiar. Ao redor,
olhe o mundo que o cerca, e aspire nele um sentimento de
estranhamento, como se o sol posasse no mar pela primeira vez, feche
os olhos, e imagine as janelas que se abrem ao vento e esqueça. Ao
“ler como um entardecer: luz fraca, a sós, porque já não importa as
maneiras de pensar, mas todos os contornos: o perfil de uma terra
estranha e nossa, a infância na largura de suas águas, o passeio ao
longo das margens de uma história alheia, a ponto de ser nossa”
(SKLIAR, 2004, p.58).
O sol repousava no mar, a escuridão trazia consigo um novo luar,
lua nova, talvez? Transfigurações talvez? Há algo de novo, um
sentimento de renovação se revela pelo desconhecido. Assim, leia
“como não ter lido antes” (SKLIAR, 2004, p.62), leia por uma sensação
de renovação que invade o corpo e transmuta. São os tremores novos
caminhos para habitar que se constroem “de parágrafo em parágrafo,
aquilo que parecia alheio começa a existir em mim, como se fosse
possível habitar um corpo que não é meu, um corpo diferente do meu,
uma voz incógnita” (SKLIAR, 2004, p.62).
Uma voz que busca espaço entre lutas e modificações. Voz
contraditória, sem face ou destino, uma voz que canta a beleza da
natureza das coisas. A voz que emana uma paixão, que entorpece os
sentidos e nos faz mudar de destinos, verdades e certezas. A voz da
leitura que nos retira do mundo e propõe a viajem que pressupõe
descolamentos. Desta forma, a leitura engendra “o corpo em tempo
que não vivemos para tentar vivê-lo” (SKLIAR, 2004, p.63).
278
O mundo caminha em passos lentos, direções imprevisíveis,
temperatura, sons, almas, vozes transfiguradas pelo desconhecido,
um mundo encoberto de sensações, digressões, horizontes a se
desenhar, em um devir contínuo de renovação. É possível, ouvir os
passos, as direções, as certezas, entretanto, qual caminho nos levará
ao por vir? A cada passo as transfigurações mudam o tempo, em outro,
o tempo muda a rota, todavia, não há linha reta ou caminho, apenas
segue, “[...] pelo infinito, pela chuva que nunca deixará de recolher-se,
pelo tempo inventado em outro tempo, pelo um que é sempre
outro...” (SKLIAR, 2004, p.60). Segue rumo às melodias saudosas, da
aurora doce do amanhecer, da chuva da tarde, do horário em que o
café abrevia a viagem à leitura.
O convite a viajar segue o tempo, mas não há nada para ser
mensurado, capturado e/ou apreendido. O convite por vir viaja à frete
do tempo e da realidade. E direciona a leitura para além do “deter o
tempo que nos atribui este mundo e impedir que a máquina utilitária
do universo siga seu caminho de massacres” (SKLIAR, 2004, p.63). O
tempo o vilão dos sentidos, das brevidades, das certezas, dos
desentendimentos... “do turbilhão, que é um gesto que não reconhece
nem seu passado nem seu porvir” (SKLIAR, 2004, p.66). O turbilhão, o
movimento de travessia que ora angustia ora desvela um caminho
possível, uma verdade momentânea.
As tempestades são os movimentos dos ventos e a beleza da chuva,
as tardes de descanso, a beleza da aurora, os movimentos das águas, das
transfigurações. Em meio ao mundo das transfigurações, “os olhos veem
o quê? Não, não veem, são vistos. São vistos sem pressa, sem ostentação,
porém sem respiro” (SKLIAR, 2004, p.59). Os olhos são as janelas da alma
da leitura que se abre ao horizonte, e olhar a alma aspira memórias,
sensações, lembranças e imaginação. E os olhos...
Não dizem a você com se deve ver, mas sopram no seu ouvido o que querem que
você veja. Seria melhor não fazê-lo? Não indicar, não sugerir, não insinuar o que
ver? Não, não vale a pena ensinar. Esse ensinar enquanto ato de indicação, como
um signo que aponta para algum lugar. Talvez, ensinar o modo pelo qual você
eleja ser visto por outros outros. (SKLIAR, 2004, p.59)
279
alheios, inalcançáveis” (SKLIAR, 2004, p.60). O olhar avista lugares,
outros abismos, outras pessoas, outros desejos e ao olhar o outro
vislumbra transfiguração dos estados da alma, uma mudança que ocorre
no íntimo... E o olhar muda ao passo da imaginação, uma viagem que
apresenta transfigurações das verdades, da realidade, do livro, do leitor.
Uma viagem que apresenta múltiplos olhares e múltiplos sons.
O olhar lança ao mundo, real ou da imaginação, verdades que
habitam aos íntimos das pessoas, uma voz inaudita e confusa. E ao
olhar o livro a leitura perpassa as vozes racionais que viajam ao fluxo
imaginativo da leitura, vozes que se retorcem no leitor, e diz “[...] por
tudo aquilo que não terá nome, mas poderá, algum dia, dizer-se com
sua própria voz, na sua vez, em seu ritmo” (SKLIAR, 2004, p.60). Ritmo
que dita o movimento da leitura e do leitor e o coloca a dançar uma
nova música e entre ritos de acolhimento e transformação.
O mundo por vir da leitura desperta: viajantes, andarilhos,
homens de passo lentos e ruminação constante, homens que seguem
longe do arquétipo da razão fria e funcional, entretanto, o leitor
moderno, o que vive na inércia do mundo real, precisa “decidir entre o
livro e o mundo? Seria necessário deixar o livro para estar no mundo?
Seria necessário abandonar qualquer pretensão de um mundo para
manter-se no livro?” (SKLIAR, 2004, p.60). Seria necessário abrir mão
da sua razão? Da sua cultura? Status? Arrogância? Das suas certezas?
Verdades? O mundo por vir abre horizontes imaginativos, livres da
opressão utilitarista, livre da razão que cega o leitor por vozes que não
sabe acolher em ruminação... O leitor por vir precisa “cruzar um
mundo desconhecido, um tempo desconhecido, gestos
desconhecidos” (SKLIAR, 2004, p.62).
Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como
a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes
penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas
faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente
amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase
lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: “Mas
é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!” (LISPECTOR, 1999, p.233)
280
íntimo. O leitor anseia o livro desconhecido que se transmuta em várias
faces, um livro que envolva o leitor por sensações inesperadas, aquele
livro que entorpece a alma e dá aos olhos lágrimas de libertação, em
dizer “sim!” ao desconhecido como um convite ao por vir.
O leitor por vir “espera os livros. Na espera do livro, o buscava
como (perdão por assim dizê-lo) um animal que tem fome” (SKLIAR,
2014, p. 53-54), no baquete anseia aventuras, romances, um encontro
com imaginativo que a leitura emana, deseja sensações,
metamorfoses, embriaguez. O livro apresenta-se como gesto, um
convite! O leitor por vir “se abre, é aberto, o aberto, como seu livro
está aberto, abre-se como uma ferida está aberta, abre e abre-se, abre-
se totalmente sobre o que transborda do todo, e abre” (SKLIAR, 2014,
p. 53-54) abre-se e acolhe o leitor pela leitura.
No tempo em que as palavras flutuam em margens vazantes e o
espírito quer dançar ritmos interpretativos. Assim, a leitura apresenta
forças “dançantes, estranhos turbilhões que não arrasam: dançam”
(SKLIAR, 2014, p.59). Nessa dança os sentidos recobrem o salão e se
põem a bailar, ritmos de transfigurações, em meio ao ir e vir dos korpus
a dançar aspira e transpira renovação.
À meia noite os sinos batem quebrando o silêncio, e as horas
insistem em regressar à realidade. O silêncio enreda o leitor em
amabilidade, e o faz seguir um barulho seguinte rumo ao labirinto do
mundo por vir, e caminha, onde os sentidos são transgressores das
objetividades, das verdades absolutas, dos caminhos frios e
infrutíferos. O mundo por vir aspira andarilhos, ande andarilho para
além do mundo, e pelo mundo, entre ensejos espirituais. Diga sim às
verdades e às mentiras pelo caminho. Andarilho por vir caminha entre
lentidão e ruminação, afinal? Qual sentido se pretende habitar se não
for pela dispersão? Desejo move o passo seguinte e faz desenhar
horizonte em multiplicidade.
A incerteza, deslocamentos, desvios são caminhos sempre
possíveis ao leitor por vir, este que caminha subvertendo as margens
interpretativas, a fim de renovação e metamorfoses dos signos.
Andarilho, jovem de barriga jovial, criança inocente, Dionísio.
Andarilho, seu corpo de areia, de muitas faces, plural e desviante;
homem linguagem, andarilho por vir. (NIETZSCHE, 2001)
“Leitor moderno” ande perdido pela inércia do mundo prático e
funcional, tateará assim, cego, cego por sua cultura, cego por suas
281
verdades, cego por sua arrogância e falsa erudição. Nesse mundo
objetivo e taxinômico ser cego é está fadado a ler o mundo em seu
limite. “Leitor moderno” abandone sua falsa erudição e ande perdido
em um mundo por vir entre piruetas, transfigurações, (des) formas,
assim livre andará das suas certezas, da sua razão totalizante, livre das
suas dicotomias, das formas enquadradas e imutáveis, e abrace a
escuridão em busca do desconhecido.
Meu bom homem, por onde andaste? Que bagagens carregas
pelo caminho? Que sentidos trazes? Ou perdido estás? Nobre confrade,
de que terras vens? De que água há de beber? Quais histórias subjazem
no seu rosto cansado? Com quais adversários lutaste? Grandes feras?
Ou monstros interiores? Meu bom homem, deite, pois, mais jornada
terás amanhã. Descanse a alma que essas cicatrizes logo
desparecerão. Serás um novo homem se aprender a esquecer, uma vez
que, perdido sempre estarás enquanto regressares ao labirinto da
leitura (SKLIAR, 2014).
Em solidão caminhou lentamente, seu olhar se perdia em meio as
cores, e sol que o aquecia, o levou em todas as direções com um
acolhimento leve, põe-se a caminhar na estrada rumo ao desconhecido
da leitura...
O som das águas era abafado pelo barulho do motor, o barco seguia
viagem, e o andarilho outro caminho, o convite emanava do livro com
uma experiência a ser vivida e pertencida em outro lugar, as horas
transcorriam jocosas. O corpo era envolvido lentamente por desejo
embriagado, era levado a habitar um sorriso doce pela leitura, seus
sentidos eram metamorfoseados, transfigurados, lançados à dispersão e
multiplicidade. O barco seguia e as tramas e dramas continuavam a se
misturar com o verde da mata e o azul do céu, os sons pareciam se
abrandar ao ritmo da leitura, o olhar que lançava pintava aos quadros que
se retorciam ao redor. O mundo não era o real, o inteligível, o palpável,
era um mundo só pertencido à leitura. Ande!
282
dispersão, multiplicidade. A fim de alçar voos interpretativos leves e
inocentes rumo às melodias inauditas, talvez.
À leitura pertenceu descolamentos, não mais ideias pré-
concebidas, ou sentidos pré-prontos. O leitor aqui foi convidado a
transbordar suas margens sensoriais, com intuito de adentrar no
mundo desconhecido da leitura, entre contaminação e experiências
plurais. Para se desapropriar dos conceitos e verdades fixas e
irredutíveis, e lançar-se ao sonoro canto das sereias. Desta forma,
buscou-se as sensações submersas no contato com a leitura, dando a
ler, em embriaguez e metamorfose.
Caminhar, sim! Andarilho. Passos lentos e ruminação. Zaratustra,
talvez? Afinal qual caminho alcançou? Quais vitórias celebrou? O fim se
aproxima e as respostas habitam em ti leitor, pois nossas tentativas
não objetivaram instaurar verdades absolutas ou criar guias para o
ensino de leitura, pois a leitura por vir caminha rumo ao passo
seguinte, sempre em processo de renovação e esquecimento,
subvertendo assim qualquer ideia de leitura dogmática, colonial
presente na sociedade atual, propondo assim, uma leitura em
movimento contínuo onde os sentidos são desconstruídos e
construídos na incerteza, onde o canto entoa melodias inauditas em
um narrar imprevisível, o leitor assim, submerso em seu estado de
solidão valora o papel salutar que a leitura desenvolve no limiar da vida
espiritual, uma leitura ao encontro do prazer por entre as memórias do
leitor.
O movimento das águas revela o por vir, um barulho seguinte, o
mesmo rio, o mesmo lugar, porém outras vozes, outras experiências,
águas novas para se banhar, um novo caminho e lugar para
experimentar e viver. A leitura é esse estado de renovação infinita que
produz no leitor sensações e transfigurações...
Entretanto, é valido ressaltar que este texto não pretendeu
instaurar verdades ou juízos morais em torno do tema da leitura, nem
dizer que este é “o caminho”, não! não queremos ser profetas, pois
quem crê se prende novamente, e sim buscou pensar no por vir da
leitura pelas dimensões poético-filosóficas, com o recorte das
sensações e metamorfoses, sentidos corpóreos, canibais, ditos e não
ditos, silêncios e ruminação da leitura, desta forma, ensejamos que o
gesto da leitura gere renovações dos sentidos (sentidos educacionais
e da vida cotidiana), onde nosso espírito possa ser preenchido por uma
283
experiência salutar, destarte, a alma deseja habitar uma experiência
salutar, em busca do “tempo perdido”, em que as leituras excitem o
desejo e a fruição “rumo ao desconhecido”.
REFERÊNCIAS
284
O LUGAR DA IDENTIDADE NA SALA DE AULA: BEYONCÉ, RACISMO,
ENSINO DE INGLÊS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
‘YOU KNOW YOU THAT BITCH WHEN YOU CAUSE ALL THIS
CONVERSATION’: INTRODUÇÃO
285
do álbum, mas as performances da cantora durante o Super Bowl,
evento nacional da liga de futebol americano.
Em 2019, trinta anos depois do surgimento da Lei de nº 7.716 4 de
1989 sobre crimes de (2) racismo e discriminação (raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional), a sociedade brasileira está distante
de superar as polêmicas sobre preconceito, tendo em vista dados
recentes que apontam como a desigualdade de condições de vida e
oportunidades continuam latentes (cf. MENDONÇA, 2019). Tomando o
processo educativo pautado pela interculturalidade (BRASIL, 2017), ou
seja, não apenas reconhecendo, mas respeitando as diferenças,
observa-se que questões marcantes na sociedade como racismo e
discriminação precisam ser debatidos cada vez mais em sala de aula e
encontramos aqui uma temática possível para o (3) ensino de inglês,
nosso campo de atuação, proposto em parceria entre escola e
universidade a partir do projeto PIBID, centrado na (4) formação de
professores.
A partir dessa rápida contextualização que conecta os quatro
termos, o objetivo deste capítulo é apresentar os resultados
desenvolvidos dentro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência (PIBID), mais especificamente no subprojeto Língua
Inglesa. Este será um texto escrito em três vozes, sendo elas a do
coordenador do projeto, a de um futuro professor e bolsista, bem
como a professora supervisora na escola pública. A primeira seção que
segue este preâmbulo apresenta algumas reflexões sobre linguagem,
identidade e ensino de línguas. Esses são alguns conceitos norteadores
para entendermos as próximas seções que trarão uma
contextualização da proposta interventiva em sala de aula para
discutir racismo e identidade racial a partir da música Formation da
cantora Beyoncé e do vídeo comentado ao início desse texto.
Posteriormente, o texto toma a forma narrativa do futuro professor,
de forma a trazer uma perspectiva bastante próxima da experiência de
trabalhar questões tão sensíveis em uma aula de língua inglesa,
analisando a dinâmica da interação professor-aluno. Somado a isso,
temos a perspectiva da professora supervisora que além do suporte,
esteve presente durante toda a proposta observando como o futuro
professor concretizava as atividades que planejou. Por fim,
4A lei foi assinada em cinco de janeiro de 1989. Ficou conhecida como Lei Caó, em
homenagem ao ex-deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira.
286
retomamos nossa voz coletiva para oferecermos algumas
ponderações acerca do que aprendemos com essa experiência em sala
de aula, no anseio de que mais pesquisas focalizem essas parcerias
entre escola e universidade.
287
representam. Retomando a ideia de contradição, é importante
considerarmos que, de acordo com Hall (2006) as identidades se
empurram para diferentes direções, resultando no que o autor chama
de deslocamento (uma mudança de centro) e dependendo dos
diferentes sistemas de significações e representação cultural, várias
são as possibilidades que o sujeito tem de se identificar.
Enquanto uma ciência de caráter transdisciplinar (MOITA LOPES,
2006) e transgressivo (PENNYCOOK, 2006), a Linguística Aplicada (LA)
estabelece o diálogo com as ciências humanas para compreender o
conceito de identidade, assim como apresentado por Stuart Hall. O seu
diferencial, no entanto, enquanto ciência autônoma, é o de tomar a
linguagem em seu uso pelo sujeito (o falante), de forma a
compreender como ser e estar na vida social se constrói pela
linguagem, ou seja, os problemas e as inquietações que surgem dessa
relação entre linguagem e identidade.
Em LA, a questão da identidade tem sido tratada também em
relação ao desenvolvimento profissional, mais uma das facetas da
identidade humana. Pesquisas com foco no processo de formação de
professores de línguas (CELANI, 2006, LIMA, 2017, 2019a, 2019b; LIMA;
MAPA; JESUS, 2019) e seus processos identitários (BOHN, 2005; SOL;
NEVES, 2012). Para linguistas aplicados, essa relação vai além da
relação que o sujeito desenvolve com sua primeira língua (língua
materna), atentando assim para os trações distintos da identidade dos
sujeitos que aprendem outras línguas e como isso atravessa seu
próprio processo de aprendizagem como aluno e até mesmo como
futuro professor (cf. BOHN, 2005). De acordo com Norton (2013), a
compreensão contemporânea de identidade como algo mais
maleável, unifica e conecta o sujeito com sua realidade social e não
trata a identidade como algo descontextualizado. Nessa perspectiva,
os teóricos atuais têm desafiado e questionado...
288
se constitui apenas como aluno, mas como filho, irmão e cidadão. Esse
aluno vem para a sala de aula e ao interagir revela diferentes traços
identitários acerca do que entende e como compreende as coisas. Ela
ou ele aprende inglês no formato típico de escola pública: geralmente
duas aulas semanais de cinquenta minutos, em turmas numerosas.
Além disso, pode ter suas próprias expectativas e opiniões sobre a
necessidade ou até mesmo a possibilidade de aprender essa língua
naquele contexto. Sua identidade, no entanto, não se esgota no perfil
de estudante, mas de sujeito que faz parte de um grupo social e que
busca pertencimento.
Por mais complexo que isso já se revela, não podemos
desconsiderar que esse sujeito não está sozinho em sala, portanto,
todos os seus colegas se revelam pelos mesmos traços de
subjetividade. Soma-se a isso a identidade do professor ou professora
de inglês, que tentará lidar com as condições adversas aqui
brevemente citadas para oportunizar a aprendizagem da nova língua.
E como pesquisas em LA tem mostrado (CELANI, 2006; LIMA, 2017;
LIMA; MAPA; JESUS, 2019), as condições disponíveis tem afetado um
ensino de qualidade, apesar dos esforços de professores e alunos.
Retomando Norton (2013), os critérios binários falham no momento de
representar um aluno, pois não dão conta de apreender a dinâmica da
vida e da aprendizagem humana: mesmo em condições adversas é
possível aprender, e até nas melhores condições é possível que a
aprendizagem encontre seus entraves. Tais questões não se limitam
apenas, por exemplo, aos traços individuais do aluno (se está
motivado e cognitivamente preparado) e é por isso que autores como
Norton (2013) e Pennycook (2006) ressaltam a importância de
considerar as relações de poder que atravessam o acesso que os
aprendizes tem à língua alvo e a comunidade que fala essa língua,
questões de proficiência da nova língua (cf. KNAPP, 2017; MORENO,
2017, para estatísticas sobre o desempenho brasileiro), dentre outros.
Em resposta a esse desafio, Norton (2013) pontua dois aspectos
centrais. Primeiro, é necessário considerar que as identidades se
relacionam às práticas institucionais. A escola, por exemplo, padroniza
e compartilha suas formas de ensino e estabelece atividades em que
os alunos constroem suas identidades tendo em vista a maneira como
o ensino se organiza, ou como explica Bohn (2005, p.103) na relação
com as “vozes das instituições”. Vale lembrar que todas essas práticas
289
são norteadas a partir de documentos nacionais como a Base Nacional
Curricular Comum - BNCC (BRASIL, 2017). Tanto no formato tradicional
de transmissão de conhecimento, a conhecida educação bancária na
visão freiriana, quanto nos formatos interacionistas que concebem o
aluno com sujeito ativo, participativo e consciente de sua posição
como sujeito (FREIRE, 2001), essas práticas institucionais atravessam a
identidade dos nossos alunos. Sob este aspecto, vale ponderar se a
aula de inglês oferecida aos alunos se revela como algo mais bancário
ou mais interativo. Esses diferentes formatos trazem diferentes
implicações para a vida dos alunos, e consequentemente a identidade
que eles constroem no mundo contemporâneo que exige o
conhecimento dessa língua internacional, um cenário onde apenas 5%
da população total do Brasil pode ser considerada fluente em inglês
(KNAPP, 2017; MORENO, 2017).
Outro aspecto importante a ser considerado na relação entre
língua e identidade é o conceito de investimento, proposto por Norton
(2013). Para essa autora, o termo surgiu entre as lacunas dos estudos
de motivação que tratavam desse fenômeno como algo estritamente
psicológico e ligado à individualidade do alunos. A respeito desse
conceito a autora explica que...
290
não favorecem seu pensamento crítico e sua posição como sujeito,
pelo contrário, desfavorecem suas chances de investir no próprio
processo de aprender. Em cenários ainda mais hostis, racistas e
homofóbicos, por exemplo, a possibilidade de construir novos
conhecimentos é atravessada pela impossibilidade de respeito e
tolerância às diferenças, de tentar situar-se entre identidades que
atacam outras identidades. Em contextos dessa natureza, antes de
aprender o aluno precisa aprender a se proteger.
O que se deseja é o contrário de um cenário polarizado em que o
diálogo não acontece. Considerando que as identidades são variadas,
o que se espera é que tantos os ambientes quanto as instituições
respeitem as diferenças. Neste cenário controverso, pensar o papel de
discutir as identidades em sala de aula pode vir a ser algo igualmente
controverso. No entanto, vale lembrar que importantes documentos
nacionais respaldam a necessidade de promover a formação humana
do aluno em sala de aula em todas as disciplinas. Observe o que diz a
Base Nacional Curricular Comum (BNCC):
291
‘NOW LET’S GET IN FORMATION’: CRIANDO AULAS PARA O PIBID
INGLÊS
Descrição procedimental
Introdução Os alunos ouvirão a música Formation, da cantora Beyoncé. Eles
contarão com o auxílio da letra da música para acompanhar em
uma versão impressa. A letra será analisada e discutida junto ao
grupo, tendo em vista seu conteúdo, referências culturais e
discurso. (10 minutos)
292
Atividade Os conceitos de paródia, ironia e do movimento Black Lives Matter5
Principal serão apresentados para que os alunos discutam o que conhecem
sobre o assunto e como eles se fazem presentes na proposta do
vídeo. Os alunos assistirão ao vídeo The day Beyoncé turned black,
do programa Saturday Night Live. O vídeo é uma paródia de um
trailer de filme de terror que satiriza as reações exageradas de
parte da sociedade americana após a apresentação de Beyoncé na
final do Super Bowl de 2016.
293
educação e possuo um projeto de pesquisa voltado para essa área.
Minha motivação para essas aulas veio dos pensamentos sobre os
alunos da turma para a qual iria aplicar a intervenção. Quando me
surgiu a inspiração de trabalhar algo relacionado à cantora Beyoncé,
automaticamente me vieram os pensamentos do empoderamento
dela em relação às pessoas negras e às mulheres. Por coincidência,
quando estava em um simpósio, tomei conhecimento de um texto
sobre a música Formation. Nele, as autoras conseguiram trabalhar em
uma turma de universitários o conceito de empoderamento feminino
com a música Formation e o vídeo do SNL. Como eu já conhecia o vídeo,
pensei em trabalha-lo em uma vertente diferente, focando as questões
de identidade étnico-racial com os meus alunos e sobre discriminação
e racismo.
Por ser uma turma bastante heterogênea, pensei que essa
temática seria bem recebida pelos alunos por ter observado eles desde
o início do ano e saber como eles reagem a esse tipo de coisa, nesse
caso, os discursos de ódio. Portanto, imaginei que essa proposta seria
acolhida e favoreceria o engajamento da turma. A princípio pensei que
poderiam ficar encabulados com a temática, mas acredito que duas
questões favoreceram a liberdade para se expressar: a primeira é a
música de uma cantora pop que faz parte do cotidiano deles; a
segunda é o vídeo que contém um tipo de comédia que faz muito
sucesso: o uso do humor com o exagero e a ironia. O humor estabelece
um ambiente mais favorável e confortável para a aula de inglês.
O tema do racismo, apesar de incomodar, como também
acontece com outros temais, (homofobia, saúde mental, machismo,
bullying) continuava em bastante evidência, especialmente por ser o
mês de novembro, período em que as escolas normalmente organizam
eventos a respeito do dia da consciência negra. O grande desafio para
quem vai ser professor é saber abordar um tema tão delicado e
complexo desses, mas com objetivos claros de que esse é um
problema que precisa ser discutido, as atividades foram se
organizando de maneira mais clara.
Inicialmente, conversei com o coordenador do projeto sobre a
ideia e ele pediu que eu a desenvolvesse e mostrasse meu esboço de
plano de aula (Quadro 1). A partir disso, comecei a rabiscar ideias e
pensar em formas de trabalhar essas questões com o nono ano. Ao
longo desse processo, encaminhei três versões diferentes do plano de
294
aula para o coordenador até que chegássemos no resultado final.
Foram várias sessões de perguntas e respostas sobre dúvidas de como
trabalhar esse assunto da melhor forma na sala de aula e entre trocas
de e-mails e orientações as atividades foram se concretizando.
Perguntei sobre jeitos de lidar com as questões étnico-raciais na sala
de aula, sobre como organizar os debates e como articular essas
propostas com a aula de inglês. Por fim, os materiais finais elaborados
resultaram em uma atividade com a letra da música, outra com
questões de debate sobre o vídeo paródia, uma apresentação de slides
com imagens e referências da música para mediar toda a discussão, o
vídeo e os materiais de papelaria para realizarem a atividade prática
dos cartazes.
Então, chegou o dia de realizar a aula que tanto planejei. De
imediato, ela teve um atraso de vinte minutos, uma vez que o projetor
da sala do nono ano não estava funcionando. Tivemos que mudar eles
de sala de última hora, porém, apesar do primeiro imprevisto, consegui
realizar a atividade. Fiz uma breve introdução sobre o assunto a ser
tratado. Depois disso, entreguei as folhas da letra da música para eles
e escutamos juntos algumas vezes. Após isso, perguntei o que já
sabiam sobre a letra. Até então só responderam que haviam gostado
e que não tinham percebido nada de diferente no clipe da música, pois
já o conheciam.
Em seguida, introduzi o outro vídeo que iria mostrar e pedi que
prestassem bastante atenção na composição dele, assim, mostrei a
apresentação que a cantora fez no Super Bowl. Fiz a mesma pergunta e
um aluno comentou ter percebido que a cantora só estava acompanhada
de dançarinas negras no palco. Prossegui com a apresentação,
mostrando a foto de personalidades negras: Barack Obama, Willow Smith
e Machado de Assis, perguntando se eles conheciam essas pessoas e o
que sabiam sobre a vida delas. Dentre as três imagens, os alunos
discutiram por mais tempo sobre Machado de Assis, resgatando debates
naquele ano sobre a identidade étnico-racial do autor brasileiro. Após isso,
ressaltei um verso em específico da música de Beyoncé: “I like my negro
nose with Jackson Five nostrils”. Expliquei o contexto desse trecho, as
referências ao cantor Michael Jackson e percebi que, apesar de saberem
quem era o cantor, pouco sabiam das questões raciais presentes em sua
vida e carreira: seu início no grupo Jackson Five, o vitiligo e as cirurgias
plásticas, dentre outros exemplos.
295
Depois, comentamos sobre a apresentação de Formation no
Super Bowl e eu mostrei a eles as reações de algumas pessoas que se
sentiram incomodadas. Mostrei fotos da apresentação, manchetes de
jornais internacionais falando dos protestos anti-Beyoncé e fotos dos
cartazes que foram feitos nessas manifestações. Discutimos sobre as
reações da mídia, em especial os memes e as piadas que viralizaram na
internet sobre essa parcela da sociedade que criticou a performance
no evento da liga de futebol americano. Em seguida, eles assistiram ao
vídeo The day Beyoncé turned black (SATURDAY NIGHT LIVE, 20016)
pela primeira vez.
No começo, eles ficaram meio confusos com a ideia do vídeo,
mesmo sabendo o que era uma paródia. Acredito que focaram muito
no conceito e características do trailer de suspense que se esqueceram
de levar em conta a noção de paródia, sátira. Retomamos a noção de
paródia e assistimos novamente. Desta vez, várias gargalhadas
puderam ser ouvidas pela sala, pois aos poucos foram percebendo
como o discurso de humor estava construído. Posteriormente, dei
início ao debate. Retomei a questão do título do vídeo, perguntando
se sabiam o significado de “to turn”. Um aluno respondeu que sim e
deu a sua tradução literal (virar, no sentido de fazer uma conversão).
Assenti com a cabeça, mas expliquei que o significado desse verbo, no
contexto do vídeo, era outro, que era o fato das pessoas se darem
conta de algo (virar, no sentido de tornar-se). Nesse caso, o fato de se
darem conta, de descobrirem que a Beyoncé é negra e celebra sua
origem e sua identidade, conforme os versos da música em questão.
Em seguida, discutimos as questões para analisar a letra e seu contexto
de referência.
Na aula seguinte, mostrei novamente o vídeo e retomei o que
havíamos discutido e iniciei a atividade prática. Mostrei para eles duas
questões para reflexão e debate: “when did you ‘turn’ black?” e “how
can you turn into an ally?”. Na primeira questão (quando você “se
tornou” negro?), discutimos sobre racismo e preconceito e vários
alunos negros compartilharam histórias pessoais ilustrando
momentos em que se perceberam vivenciando o racismo. A segunda
questão (como tornar-se um aliado?) considerou o exercício de pensar
em alternativas para combater o preconceito em práticas cotidianas
que nem sempre são reconhecidas como racistas (tomando os
exemplos da questão anterior como norteador do debate).
296
Após as trocas de experiência, enfatizei que cada aluno deveria
elaborar uma resposta aos questionamentos anteriores sob a forma
de uma expressão artística, e que poderiam escolher qual questão
responder. Por fim, depois de explicar toda a proposta, enquanto os
alunos começaram a produzir seus cartazes, exibi outros slides com
imagens de pessoas negras que foram fotografadas em ensaios,
campanhas publicitárias em favor da população negra, fotos de
artistas negros e fotos de cartazes em protestos contra o racismo e a
discriminação para que pudessem se inspirar enquanto faziam a
atividade.
Com isso, entreguei uma folha de papel para cada um, bem como
lápis de cor, canetinhas, pincéis e outros materiais, enquanto
conversava com os alunos que iniciavam as produções artísticas.
Durante esse processo, vários alunos me surpreenderam com esboços
já pensados desde o início da aula, como desenhos, trechos de músicas
e poesias que eles conectaram com o que estávamos trabalhando. Me
surpreendi com uma aluna, que me pediu para traduzir um texto para
ela colocar em sua arte. No texto estava escrito:
“Me vi como pessoa negra quando precisei falar sobre cotas. Me vi como pessoa
negra quando me chamaram de “cabelo duro”. Triste como eu fui a última pessoa
a descobrir a minha cor, e pelos brancos, ainda…”.
(Texto produzido em sala por uma das alunas do nono ano)
Aquilo me impactou de tal forma que tudo que eu queria era ver
o resultado final. Enquanto isso acontecia, eu olhava os esboços das
atividades e as respostas na folha de atividades da aula anterior sobre
o vídeo paródia. Enquanto o clipe da música era reproduzido ao fundo,
eu percebia a expressão no rosto deles de admiração, tanto na parte
musical do vídeo quanto na parte de estética, coreografia etc.
Começaram a surgir ilustrações de referências, gírias da letra da
música, como “hot sauce in my bag swag”. Uma vez terminados, os
trabalhos estavam prontos para uma exposição nas paredes da escola
e os alunos socializaram algumas de suas ideias durante a aula.
Em relação à minha formação como futuro professor, essa proposta
foi essencial para que eu (re)afirmasse o meu desejo de ser professor de
inglês. Quero contribuir com a maneira como meus alunos interagem com
diferentes textos e olham para a própria história de vida, quero que eles
saibam onde estão como sujeitos no mundo e que possam vivenciar
297
novos conhecimentos a partir da língua inglesa. A vida em sociedade
coloca desafios que atravessam a identidade desses alunos e como essas
questões mais controversas também afetam como meus alunos olham
para si mesmos, pensei em uma proposta pedagógica que considerasse a
perspectiva dos alunos e das alunas
A participação deles me agradou como professor, mas não posso
deixar de lado que apesar do envolvimento e da produção dos cartazes, a
indisciplina de alguns alunos atrapalhou um pouco proposta, pois afetou
a questão do tempo e prejudicou alguns momentos da aula. Apesar de
tudo, minhas expectativas foram atendidas e percebi que as ideias que
pensei foram bem aceitas e a turma participou de uma forma que em
geral me deixou satisfeito. Poder estar ali observando o investimento
(NORTON, 2013) dos alunos fez toda a diferença. Tive alunos que me
perguntaram o tempo todo se o que eles estavam fazendo estava certo,
alunos que escreveram textos e me mostraram para dizer se podiam dizer
o que queriam dizer. A aula de inglês se organizou pelo senso de
possibilidade: sim, em inglês e sim, eles podiam. Muitos estavam ao
mesmo tempo interessados na temática e interessados em produzir
aqueles cartazes em inglês. A identidade tinha seu espaço na aula e estava
sendo contemplada nas atividades dos alunos. Como futuro professor,
vejo que o papel deles para essa aula dar certo foi fundamental. Eu não
teria alcançado meus objetivos se não tivesse lido o que eles escreveram
ou visto os desenhos/pinturas que fizeram. Eles que fizeram essa aula
acontecer, não eu.
298
a proposta ficou muito interessante por articular o diálogo com
questões raciais presentes em outras países e pelos textos e materiais
trabalhados na língua alvo.
Conhecendo meus alunos, o engajamento deles com as atividades
do pibidiano a partir dessa temática foi muito interessante. A proposta foi
desenvolvida com uma turma do nono ano (alunos entre 14 e 15 anos) e
que formam um perfil único: ora não se envolvem com as propostas
desenvolvidas em sala, ora acreditam já saber de tudo o que será
proposto nas aulas. Eles concretizam a ideia de que trabalhar com
adolescentes é uma constante surpresa, mas na aula planejada pelo
professor em formação, a atividade proposta conseguiu o engajamento
de quase toda a turma. Os cartazes finais retrataram desde histórias
pessoais até poemas e isso foi motivado pelas discussões que o professor
pibidianos promoveu. Durante a aula, chamei a coordenadora da escola
para ver a discussão que os alunos fizeram com o professor Ícaro e como
os adolescentes se mostraram interessados.
O trabalho de questões sociais enquanto se ensina inglês é
imprescindível, pois como temos a linguagem como aspecto central,
todas as temáticas são possíveis. São importantes e essenciais, já que por
meio delas é possível analisar os diferentes discursos presentes em nossa
sociedade e essas diferentes vozes que nos atravessam (BOHN, 2005).
Essas questões devem ser trabalhadas não apenas nas aulas de inglês
mas, em diferentes Componentes Curriculares. A participação dos
pibidianos nas minhas aulas trouxe mudanças inclusive como olho para a
minha própria aula. Por meio da inserção dos bolsistas na rotina escolar
foi possível elevar a qualidade das abordagens metodológicas, não
apenas dos futuros professores, mas dos profissionais que como eu,
estão em sala há mais tempo, mas que sempre tem algo novo a aprender.
299
conhecimentos, os relatos mostraram que mesmo os temas mais
sensíveis atingem a os alunos e engajam a participação tendo em vista
o investimento (NORTON, 2013) para aprender, que vai muito além
apenas de estar motivado. A temática gerou interesse e foi promovido
em língua inglesa e por meio dela. É necessário ter em mente que o
desenvolvimento linguístico do aluno no novo idioma é uma
possibilidade a ser alcançada, ainda que as condições de trabalho
estejam aquém daquelas necessárias.
O PIBID6 se diferencia de outros projetos de formação pelas
parcerias que promove entre a tríade: coordenador, futuro professor
e professor supervisor. As ideias não contemplam apenas o estudo
científico e o preparo para a docência, elas abrem espaço para o
trabalho criativo do professor em formação e o diálogo com
professores já atuantes que ensinam e aprendem também. A
construção do conhecimento extrapola a tríade. No contexto escolar,
os alunos têm a possibilidade de participar de outras aulas e outras
atividades que se voltam à aprendizagem de inglês. Experiências dessa
natureza já na formação inicial fortalecem a construção de uma
identidade do professor de línguas que se pauta não apenas pelo
ensino do idioma, mas na formação humana do aluno, uma forma de
mudança social (FREIRE, 2001). Precisamos de mais experiências que
fomentem alternativas que busquem fazer a diferença pelo ensino de
inglês na escola pública.
Do ponto de vista dos estudos de identidade e língua, a proposta
se revelou importante por favorecer o diálogo e a construção de
sentidos sobre as identidades em sala de aula: tanto as identidades
negras e suas experiências com o racismo, quanto as identidades dos
aliados, que apesar de não vivenciarem a mesma experiência
diretamente, têm papel importante em combater a discriminação. De
maneira geral, a identidade nunca sai da sala de aula, pois os sujeitos
não deixam elas em casa antes de ir para a escola. Todavia, nem todos
os espaços educacionais possibilitam momentos ou oportunidades
300
para que elas sejam contempladas como parte da prática pedagógica.
Dito de outra forma, a identidade encontra seu lugar na sala de aula e
as questões mais polêmicas e sensíveis também. Professores
iniciantes, já experientes ou formadores de professores, independente
dessas nomenclaturas, todos de alguma forma temos sempre algo
novo a aprender. Aprender não apenas uma nova língua que nos
conecta as pessoas, mas aprender também a sermos pessoas
melhores!
REFERÊNCIAS
301
LIMA, F.S. "Aprender inglês nunca foi meu interesse: passado,
presente e futuro de um aluno de Letras escrevendo a própria história.
In: OLIVEIRA, A.L.; SCHÜTZ, J.A.; AMARAL, M.A.F; LIMA, M.C. (Orgs.).
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Pedro e João Editores, 2019a. p.181-195.
LIMA, F.S. Percorrendo o caminho das pedras: grupos focais na
pesquisa de formação de professores de línguas. In: SCHÜTZ, J.A.;
DERING, R.O. (Orgs.). Entremeios Educacionais: perspectivas teórico-
metodológicas na/da formação do sujeito. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2019b. p.259-278.
LIMA, F.S.; MAPA, T.A.P.; JESUS, C.A. PIBID em cena: relatos de
professores em formação no ensino de inglês a partir de resenhas de
filmes. In: SANTOS, F.A.; SCHÜTZ, J.A. (Orgs.). Educação Escolar:
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162.
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o parto. El País Brasil. São Paulo, 19 de nov. 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/19/politica/1574195977_206027
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interrogando o campo como linguista Aplicado. Em: MOITA LOPES, L.
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em-ingles-e-atras-de-todos-os-brics.ghtml> Acesso em: 27 de dez, de
2019.
NORTON, B. Identity and Language Learning: Extending the
Conversation. 2nd ed. Bristol: Multilingual Matters, 2013.
PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada Transgressiva. Tradução de
Luiz Paulo da Moita Lopes. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma
Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
pp. 67 - 84.
302
SATURDAY NIGHT LIVE. The Day Beyoncé Turned Black. 2016.
(03m24s). Season 41. NBC/Universal, 2016. Disponível em:
<https://youtu.be/ociMBfkDG1w>. Acesso em: 27 de dez. 2019.
SÓL, V.S.A; NEVES, M. S. Representações de professores de inglês da
escola pública: o olhar sobre o aluno e o espaço escolar. Gláuks, v. 12,
p. 205-226, 2012.
303
304
A IMPORTÂNCIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA NA
APRENDIZAGEM DE CONTEÚDOS DA MATEMÁTICA NO
ENSINO FUNDAMENTAL II: EXPERIÊNCIA EM ESCOLA PÚBLICA
NA CIDADE DE NATAL
INTRODUÇÃO
305
Durante o primeiro semestre de 2018 desenvolvemos em uma
escola da rede pública da cidade de Natal – Rio Grande do Norte,
especificamente em duas turmas de 6º e 9º ano, atividades
interdisciplinares entre as disciplinas de Matemática e História,
utilizando-se da contextualização histórica como elemento essencial à
introdução de novos conhecimentos matemáticos.
Essa proposta interdisciplinar partiu de uma análise da
problemática enfrentada pelos estudantes dos anos supracitados, os
quais apresentavam grandes dificuldades em compreender e aplicar os
saberes matemáticos trabalhados em sala de aula, tais como:
geometria plana, funções do primeiro grau e frações. Além disso,
muitos relatavam que não reconheciam a importância da disciplina em
suas vidas.
Destarte, esse estudo tem como objetivo geral, refletir sobre a
importância da contextualização histórica na aprendizagem de
conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II, além de relatar
experiências na docência em uma escola pública na cidade de Natal, na
qual utilizamos de atividades interdisciplinares entre as disciplinas de
Matemática e História com o intuito de colaborar na aprendizagem dos
educandos
Neste sentido, a fim de alcançar os nossos objetivos de pesquisa,
analisamos essa prática pedagógica à luz do pensamento de teóricos
tais quais: Curtis (2016), Gonçalves e Pires (2014), D’Ambrósio (2012),
Miguel e Morim (2011) e Freire (2005; 1996), além disso, matutamos
sobre os principais apontamentos referente a temática presentes nas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013) e nos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental II
(1998).
Além dessa revisão bibliográfica e documental, de natureza
qualitativa, utilizamos da pesquisa ação, a qual segundo Minayo (2014)
é um tipo de investigação social com base empírica, concebida e
realizada em estreita associação com uma ação voltada à resolução de
problemas comunitários e sociais. Nessa modalidade, os
pesquisadores e participantes representativos da situação ou do
problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Desse modo, acreditamos que essa investigação contribuirá não
somente com os atuais educadores, mas também com os futuros
professores, promovendo uma reflexão acerca da essencialidade de
306
desenvolver práticas interdisciplinares que trabalhem o contexto
histórico nas aulas de Matemática.
Tendo como prováveis consequências, aos sujeitos envolvidos na
construção do conhecimento, um novo olhar sobre a Matemática e a
possibilidade de associar os conceitos apreendidos em sala de aula
com suas atividades do cotidiano e com as demais disciplinas,
desenvolvendo assim, uma aprendizagem significativa.
Logo, este artigo científico está estruturado em quatro (4) partes:
a primeira é essa breve introdução, contendo a problemática, os
objetivos, a metodologia e a justificativa da pesquisa. Posteriormente,
discutimos a contextualização histórica como prática essencial à
aprendizagem de conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II.
Na terceira parte, narramos algumas experiências na docência em uma
escola pública em Natal, na qual utilizamos de práticas
interdisciplinares. Por fim, expressamos as nossas considerações
finais.
307
a contextualização histórica da Matemática. Sobre a qual (MIGUEL;
MORIM, 2011, p. 52) afirmam que:
308
desmistificar o pensamento de que a Matemática é complicada e/ou
desnecessária; colaborar para uma interdisciplinaridade entre as
disciplinas de História e Matemática; proporcionar um novo olhar
sobre essa ciência, identificando suas aplicações no cotidiano; e
finalmente motivar os alunos ao prazer em aprender Matemática e
consequentemente melhorar seus desempenhos em atividades e
avaliações.
Outrossim, notamos que a interdisciplinaridade é
constantemente desenvolvida durante essa atividade de
contextualização histórica. De modo que se torna fluente pensar
práticas pedagógicas que envolvam não somente assuntos da
Matemática com a História, como também a Geografia, Sociologia e
Filosofia. Essa interdisciplinaridade, segundo Gonçalves e Pires (2014),
é pensada de modo a promover a interação entre as diversas ciências.
Os autores complementam que:
309
A respeito do incentivo à curiosidade, Freire (1996, p. 88)
assegura que “o exercício da curiosidade convoca a imaginação, a
intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na
busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser”.
Assim, compreendemos que esses momentos de excitação à
curiosidade e criatividade são valiosos na apreensão do conhecimento
matemático. Numa relação de ensino bidirecional, em que ambos
aprendem por meio do compartilhamento de saberes. Como esclarece
Freire (2005), em Pedagogia do Oprimido:
O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado,
em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim,
se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos
de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade,
se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora
ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os
homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. (FREIRE, 2005, p.
79).
310
para suas atividades do dia a dia e até mesmo (re) construírem suas
realidades.
Destarte, infere-se que o contexto histórico é apresentado como
uma estratégia pedagógica que contribui no ensino e aprendizagem
de conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II, permitindo que
os alunos apreendam os saberes inerentes dessa ciência e exercitem a
criticidade, a criatividade e a curiosidade.
A seguir, relataremos uma experiência na docência em uma
escola da rede pública na cidade de Natal, durante o primeiro semestre
de 2018, na qual utilizamos a contextualização histórica como prática
pedagógica, a fim de promover um novo olhar dos educandos sobre
essa ciência, melhorando consequentemente seus resultados em
testes e avaliações, e desenvolvendo a interdisciplinaridade entre as
disciplinas de Matemática e História.
311
biblioteca organizada e com bom acervo de literatura disponível, as
salas de aulas todas possuíam ventiladores, quadro branco e carteiras
em bons estados, apenas com alguns rabiscos feitos pelos próprios
alunos.
Todavia, em nossa segunda visita a escola ouvimos dos
estudantes que não gostavam de Matemática, que não compreendiam
seus conceitos, muito menos sua utilidade na vida profissional e social.
Outros afirmavam que somente os alunos denominados “nerds”
conseguiam obter bons resultados nas atividades e avaliações da
disciplina.
Diante dessas queixas, conversamos com os dois professores de
Matemática da escola, os quais alegaram que os alunos apresentam
um bloqueio para com a disciplina, o que vem acarretando notas
baixas nas avaliações, conversas paralelas durante as explicações e
consequentemente reclamações sobre os conteúdos trabalhados em
sala de aula.
Diante dessa problemática que emergiu, imediatamente
repensamos nossos objetivos iniciais e como educadores de
Matemática e História refletimos sobre o que poderíamos desenvolver
na escola com o intuito de ajudar a solucionar essa questão. Pois,
durante nossa formação como licenciados aprendemos que o
professor tem como principal missão colaborar no processo de
construção social e educacional dos alunos e promover através de suas
práticas pedagógicas a interiorização do conhecimento.
Na semana seguinte, dialogamos com a supervisão pedagógica,
direção e professores da instituição sobre a problemática e em seguida
apresentamos uma estratégia pedagógica com o intuito de
desenvolver no contraturno oficinas interdisciplinares de Matemática
e História, as quais trabalhariam a contextualização histórica dos
conteúdos matemáticos ensinados em sala de aula, além de reforçar a
aprendizagem desses conceitos.
A ideia foi prontamente abraçada pela instituição e na mesma
semana foi disponibilizada uma sala de aula para realizarmos as
oficinas. As quais seriam ofertadas aos estudantes do 6º e 9º ano,
tendo em vista que estes, segundo os próprios professores,
expressavam maiores dificuldades no que tange a compreensão e
aplicação dos conceitos matemáticos. Assim, ficou determinado o
312
público alvo das oficinas interdisciplinares de contextualização
histórica e reforço matemático.
Vale salientar, que em diálogo com a supervisão pedagógica ficou
estabelecido que os encontros ocorreriam as quartas-feiras, sendo das
13h até as 14h com os alunos do 6º ano, e das 14h até as 15h com a turma
do 9º ano. Essa divisão fez-se necessária pois, os conteúdos
trabalhados em sala de aula eram diferentes, ou seja, a grade curricular
não era semelhante. Logo, identificamos que as turmas necessitavam
de um olhar e uma metodologia diferente, pois os estudantes do 9º
ano tinham mais experiências, de certo modo, tinham uma base
matemática maior do que as crianças do 6º ano.
Em nosso primeiro encontro ficamos surpresos com a quantidade
de jovens e crianças presentes nas oficinas, não tivemos nenhuma
ausência de alunos. Estes demonstravam por meio de seus olhares a
curiosidade e o interesse em descobrir o que iríamos desenvolver
naquele momento.
Em conversa com o professor de Matemática fomos informados
que os alunos apresentavam maior dificuldade em geometria plana,
não conseguiam resolver problemas matemáticos e identificar as
propriedades das formas geométricas. Diante disso, organizamos um
ambiente interativo e lúdico com sólidos geométricos e tangrams, a
fim de que os alunos pudessem manipular os objetos e brincando
aprendessem as propriedades e conceitos da geometria.
Inicialmente, o professor de História solicitou que os alunos
fizessem um grande círculo e relatou que a geometria plana foi
essencial nas grandes construções históricas, tais como: as pirâmides
do Egito, o coliseu romano, o partenon grego e os incríveis
monumentos erguidos pelos povos maias e astecas. Por meio de fotos
apresentadas via slides, os alunos pareciam encantados com as novas
informações, era como se aquele conteúdo matemático começasse a
fazer sentido em suas vidas.
Em seguida, desafiamos os educandos a citarem exemplos de
construções atuais, as quais eles enxergavam a presença da
geometria. Prontamente, empolgadas as crianças responderam “os
estádios de futebol”, “os grandes prédios de nossa cidade”, etc. Foi
um momento gratificante perceber que nossos alunos estavam
apreendendo o conhecimento matemático e relacionando-o com suas
vidas.
313
Na quarta-feira seguinte, retornamos à escola e imediatamente
fomos informados pela direção escolar que os estudantes estavam
apaixonados pela oficina, que durante toda a semana só falavam dos
fatos ocorrido no primeiro encontro. Diante do exposto, ficamos
maravilhados pela aceitação e pela vontade dos alunos em participar e
aprender, ou seja, em construírem seus conhecimentos.
A aula interdisciplinar inicialmente ocorreu por meio de slides, os
quais apresentamos as propriedades inerentes das formas
geométricos, tais como: quadrado, triângulo, círculo, retângulo e
trapézio. Durante as explicações, relembrávamos as aplicações desses
conceitos nas civilizações antigas e na atualidade.
Pós-explanação, as crianças realizaram atividades lúdicas
manuseando os sólidos geométricos, com o objetivo de melhor
compreender os conceitos de arestas, vértices, faces e as
propriedades das formas geométricas. Como educadores sabemos
que é essencial que os alunos tenham esses saberes geométricos
interiorizados, para que possam ser corretamente aplicados nas
situações do cotidiano.
A esse respeito Nascimento (1998, p. 40) esclarece que:
314
Abaixo apresentamos imagens da atividade desenvolvida com os
alunos do 6º e 9º ano.
315
Figura 2: materiais utilizados na oficina interdisciplinar.
316
Ao decorrer da oficina, percebemos que os alunos que possuíam
maior facilidade em aprender, ajudavam aos demais, ou seja, havia o
compartilhamento do saber. Os estudantes trabalhavam em grupos, o
que permitia uma socialização dos indivíduos e a aprendizagem de
forma divertida e interativa por meio de desafios utilizando o tangram.
Na imagem 4, captamos um momento que tocou nossos
corações, uma das crianças do 6º ano, fez um pequeno resumo da
contextualização histórica trabalhada em sala de aula. Ela relembrou
as pirâmides do Egito e os triângulos presentes em suas laterais,
destacou os edifícios da cidade, os quais possuíam retângulos em suas
estruturas, ainda pontuou que em seu bairro possuía uma praça em
formato de círculo.
317
muitas vezes foram respondidas pelos próprios colegas. Em processo
que chamamos de aprendizagem compartilhada.
Nas semanas seguintes, continuamos a trabalhar a
contextualização histórica nas oficinas, desta vez referente ao
conceito de funções de primeiro grau. Semelhante a oficina anterior,
realizamos o círculo de debate e discussão histórica, e nas semanas
seguintes aplicamos outras atividades interdisciplinares com material
lúdico.
Ao final do mês de maio, conversamos com a supervisão
pedagógica e com os professores de Matemática e História da
instituição, referente ao desempenho dos alunos em sala de aula e nas
atividades e avaliações bimestrais. Como devolutiva, recebemos
sorrisos e agradecimentos dos mesmos, os quais afirmaram ambas as
turmas melhoram o desempenho nas atividades, a conversa paralela
diminuiu significativamente e muitos alunos apresentavam uma
evolução cognitiva no que tange ao questionamento em sala de aula e
a criatividade em resolver problemas matemáticos.
Os professores mencionaram também, que estavam utilizando
dessa estratégia pedagógica em sala de aula, antes de introduzir os
conceitos de Matemática, realizavam a contextualização histórica,
explicavam a importância do conteúdo ser aprendido e suas aplicações
no cotidiano do estudante.
Diante dos comentários feitos pelos professores e pela
supervisão pedagógica, concluímos nossa missão, a qual iniciou-se
diante de uma problemática identificada na instituição de ensino e que
nos sensibilizou como educadores. Acreditamos ter deixado na escola
uma semente plantada, não somente nos alunos, mas também nos
professores e nos seus colaboradores, e esperamos que essa semente
seja frequentemente regada e que gere frutos, os quais serão
essenciais para o processo de ensino e aprendizagem, como também
à formação humana e social dos educandos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
318
curiosidade, a criatividade, o pensamento crítico e (re) conhecer a
essencialidade dessa ciência em suas vidas sociais e profissionais.
Ainda, constatamos que essa prática pedagógica permitiu ao
professor desenvolver atividades por meio do círculo de debate, da
utilização do material lúdico, além da interação com os jogos. Desse
modo, os alunos apreenderam não somente os conteúdos inerentes
da Matemática, como também da História, aprenderam também
princípios da Sociologia como por exemplo, o trabalho coletivo, a
ética, além de desenvolver o raciocínio lógico.
Além disso, destacamos que os alunos conseguiram
compreender que a Matemática é uma ciência que pode ser
apreendida por todos, não somente por uma minoria denominados
“nerds”. Finalmente, eles puderam relacionar a presença desses
conceitos trabalhados em sala de aula, com suas atividades diárias.
Acreditamos que, assim, ocorreu uma aprendizagem significativa, pois
os estudantes compreenderam os motivos de se aprender
Matemática.
Esperamos que essa pesquisa científica possa contribuir para que
atuais e futuros educadores matemáticos reflitam suas práticas
pedagógicas e busquem por meio de estratégias interdisciplinares
caminhos para que seus alunos interiorizem o conhecimento
matemático e assim os utilizem em suas vidas.
REFERÊNCIAS
319
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 40. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005.
GONÇALVES, H. J. L. e PIRES, C. M. C. Educação Matemática na
Educação Profissional de Nível Médio: análise sobre possibilidades de
abordagens interdisciplinares. São Paulo: Revista Bolema, v.28, n.48,
2014.
MIGUEL, A.; MORIM, M. Â. História na Educação Matemática:
propostas e desafios. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2011.
MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa
em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.
NASCIMENTO, Heitor Guerra do. Licenciatura em Matemática:
metodologia e didática do ensino de Matemática. Salvador; FTC/EAD,
1998.
320
SER-SENDO PEDAGÓGICO: O BRINCAR NA PERSPECTIVA DE
PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM UM MUNICÍPIO DO
INTERIOR DA BAHIA
INTRODUÇÃO
321
em que está inserida, das pessoas com as quais convive, mas quando a
criança ingressa na instituição escolar o professor é de fundamental
importância, haja visto o tempo que a criança passa com ele no seu dia-
a-dia. Assim as possibilidades de progresso no desenvolvimento
podem aumentar a depender do processo de ensino oferecido na
instituição e da intervenção do profissional por meio da sua práxis
pedagógica (QUEIROZ; MACIEL; BRANCO, 2006; SUZUKI et al., 2012).
Corroborando Gomes e Mello (2010, p. 684) nos mostram quanto
o meio se faz sensível ao mundo emocional a partir do modo como o
outro nos olha, nos percebe, uma vez que, “afeto diz respeito àquilo
que afeta, ao que mobiliza, por isso reporta à sensibilidade, às
sensações. Podemos, ainda, referir afeto como ser tomado por
atravessado, perpassado, quer dizer: afetado. Esse atravessar,
perpassar é o que propriamente dá o caráter de afecção”.
Nessa vertente, lança-se o olhar sob o brincar que traz a práxis
pedagógica um caminho para se relacionar com a criança,
possibilitando por meio deste que ela seja afetada, mas também, como
aponta Deleuze (1978) que se crie a partir das vivencias e
experienciação de afeto um regime de variação. Nesse caso, cabe à
instituição, por meio do planejamento pedagógico institucional, o
entendimento da importância do brincar, do desenvolvimento de
atividades lúdicas, de forma que sensibilize o professor para que
envolva o afeto na execução de tais ações planejadas, pois contribuirá
com a construção da personalidade da criança.
Neste contexto, para dialogar como a práxis pedagógica que utiliza
o brincar como ferramenta de ensino aprendizagem, é que inserimos a
filosofia galeffiana do ser-sendo, a qual “oferece uma compreensão
poemático-pedagógica para o aprendizado. Preconiza a construção
cognoscente própria mobilizada pelo esforço do sujeito em suas
circunstâncias significativas. Aprender a ser é aprender a pensar como
exercício do conhecimento de si mesmo e dos outros, um constante
aprender e apreender o mundo” (FERNANDES, 2019, p. 14).
Partindo dessas argumentações, a pesquisa traz como objetivo
geral: Analisar a importância do brincar na perspectiva de duas
professoras da Educação Infantil, à luz da reflexão filosófica de Dante
322
Augusto Galeffi, o “SER-SENDO”, que nos influi “poemáticamente”4
sobre a nossa compreensão pedagógica para o fazer e aprender-fazer.
A escolha do tema justifica-se pelo fato que o brincar fazer parte
das minhas práxis educacional, bem como por ser relevante como
recurso pedagógico que contribuir na formação da criança e no
exercício do educador em ser-sendo, o que torna necessária
compreensão e afeto, principalmente nos dias atuais, já que vivemos
uma realidade difícil dentro das salas.
[...] nos direcionam para pensar os processos formativos sob duas dimensões do
campo educacional: A dimensão constitutiva do ser, ou seja, o que tem sido o
indivíduo como processo de subjetivação em acordo com as demandas que lhe
impõem as formas de socialização determinantes; [...] A dimensão do dever ser,
323
entendida aqui como o lugar das intencionalidades e do que há de potencial para
afirmar sobre a constituição de outros processos de subjetivação.
[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender
a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24, grifo nosso).
324
Assim, é necessário que o professor de Educação Infantil se
aproprie das experiências da criança para entender como a afetividade
a auxilia na aprendizagem, na interatividade, na sua atitude e
relacionamento com o outro para a sua construção enquanto sujeito
social.
A ligação entre educador e educando está relacionada com o fim
do autoritarismo que era permitido há muito tempo nos ideais
educativos, em que a diferença entre educar e lecionar está no
comportamento do professor como educador, que usa o afeto como
instrumento fundamental na sua ação educacional (ANDRADE, 2014).
Ainda dialogando com Andrade (2014), o professor dever refletir
sobre as aulas, considerar seus alunos enquanto faz a reflexão,
fazendo o possível para que se torne um processo cheio de
descobertas; o processo de avaliação, que seja analisado de forma a
examinar todas as necessidades de cada discente, para que eles
percebam o erro como um componente referente ao seu preparo.
Segundo Andrade (2014) o desafio da sala de aula se torna uma
carga pesada ou não, a depender dos professores que possuem amor
pelo que fazem ou não, no primeiro caso têm como pretensão tornar
a prática educacional sempre melhor, identificando as dificuldades em
sala de aula e sua realidade. A sala de aula em si é repleta de desafios
que precisam ser encarados e vencidos, mas sempre por meio das
relações.
325
dando-lhe um caráter cognitivo, onde por práticas pedagógicas
permeadas por ações afetivas levam a um desenvolvimento cognitivo,
também mais efetivo. É nesse contexto que, a brincadeira tem uma
enorme função social, pois oferece a criança a criar oportunidades
para vivenciar situações emocionais e significados de sentidos no dia a
dia, realizando descobertas sobre o mundo. Nas palavras de Cunha
(2010):
326
racionalista, nenhum deles passa pelos alunos sem deixar sua marca (FREIRE,
1996, p. 73).
327
Isto, por que enquanto a criança brinca constituem experiências
que vão somando aprendizagens como processo de desenvolvimento
nos seus aspectos social, cultural e histórico. Segundo Silva Jr. (2005,
p. 25) “a socialização na escola poderá ser melhor exercida nas aulas
de recreação, pois as atividades são desenvolvidas em ambiente de
cooperação, respeito mútuo, levando a criança a ter autoconfiança e
autocontrole”, o que leva a autonomia. Assim, o ato de brincar não é
só uma distração, conforme Emmel (1996):
METODOLOGIA
328
abordagem qualitativa, descritiva e bibliográfica. Esse tipo de pesquisa
tem a finalidade de propiciar a familiaridade do aluno com a área de
estudo no qual está interessado, visto que ela possibilita a construção
de respostas ao problema de pesquisa (GIL, 2002).
Para o desenvolvimento da revisão sistemática, utilizou-se da
pesquisa bibliográfica em livros e artigos científicos, o que nos deu
base para o desenvolvimento da fase de observação realizada em uma
Creche Municipal do interior da Bahia, tendo como participantes da
pesquisa 02 professores, com formação em Pedagogia e
especialização na área de Educação Infantil. Atuam entre sete e quinze
anos na Educação Infantil. O que favoreceu o levantamento de
conceitos que nos fazem refletir sobre a práxis pedagógica voltada ao
ser-sendo.
Ainda como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista
aberta, a qual segundo Minayo (1993) é empregada quando o
pesquisador deseja obter o maior número possível de informações
sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e também
para obter um maior detalhamento do assunto em questão. Como
também, ela auxilia na compreensão de especificidades culturais para
determinados grupos e para comparabilidade de diversos casos. Já a
análise e interpretação dos dados utilizou-se dos estudos de Galeffi
(2001) e Andrade (2014) na busca de elucidar a experiência profissional
de cada participante
Todos os participantes foram devidamente esclarecidos sobre os
aspectos da pesquisa, de que não seriam identificados em nenhum
momento e que a participação não geraria custos, a seguir os
participantes voluntários assinaram o Termo Consentimento e Livre
Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
329
objetivos e ter autoria sobre suas ideias, refletir e produzir para si
mesmo condições de fazer o seu percurso investigativo.
Traçando um perfil dos participantes da pesquisa, tem formação
em Pedagogia e especialização na área de Educação Infantil. Atuam
entre sete e quinze anos na Educação Infantil. Quando questionadas
sobre a importância das brincadeiras para a aprendizagem infantil,
obtivemos os seguintes registros:
330
Provavelmente a criança enfrentará dificuldades uma vez que ad brincadeiras,
jogos, histórias, fazem parte do desenvolvimento imaginário das crianças
(Professora 2).
Não haveria, porque é através dos jogos e brincadeiras, que são ferramentas ao
sucesso no processo de desenvolvimento de ensino e aprendizagem da criança
(Professora 1).
Haveria, sim, mas acredito que de maneira mais lenta, porque as brincadeiras e
jogos despertam nas crianças sentimentos, criatividades (Professora 2).
331
São elaboradas brincadeiras que despertam o desenvolvimento motor,
cognitivo, sensório-motor de acordo as habilidades e competências propostas
pelo eixo temático por cada faixa etária (Professora 2).
Sim, contribui muito, pois desperta nas crianças uma curiosidade e através dos
brinquedos estimula o conhecimento. O brincar faz parte da vida da criança, do
seu dia-a-dia e suas vivências, tendo como resultado uma interação natural e ao
mesmo tempo estimulada, visando um melhor convívio entre colegas
(Professora 2).
[...] é para mim, a melhor etapa de ensino e aprendizagem. É nela que observo
que a aprendizagem ocorre com certa espontaneidade na criança e para isso
basta que o professor saiba lidar com os recursos que envolvem as situações de
afeto e do brincar na infância (Professora 1).
332
[...] o professor deve [...] conhecer seu aluno individualmente, ouvir suas
histórias, para saber o quanto a ausência da educação familiar pode prejudicar a
aprendizagem e desenvolvimento da criança. A perspectiva do professor está
em usar da afetividade para lidar com o comportamento diferente do aluno para
que ao vivenciar uma situação de afetividade, a criança retribua os sentimentos e
evite conflitos negativos no ambiente escolar e também familiar (Professora 2).
333
Observar o processo de ensino e aprendizagem no espaço de
Educação Infantil permite ao observador pensar as inúmeras
possibilidades de poder proporcionar o ensino por variadas
metodologias, mas com foco na individualidade da criança.
[...] a noção de individualidade, modos de ser do sujeito, vai sendo traçada numa
proposta pedagógica que privilegia a formação humana como principal ponto de
partida seu contínuo desenvolvimento, buscando dialogar com outro, olhar
sobre os educandos, reconhecendo-os como sujeito de direitos (ALMEIDA;
CESTARI, 2015, p. 3839, grifo nosso).
334
[...], nos dias de hoje, é uma necessidade para aproximar professor e aluno, uma
esperança no resgate dos que vivem sendo rejeitados pela sociedade, uma força
para levantar os ânimos daqueles que acham que a vida não lhes reserva boas
surpresas e que não há condições de melhorar a sua sobrevivência (ANDRADE,
2014, p. 11).
335
4) Linguagem Verbal: proporcionar atividades de estímulo da
linguagem. A criança geralmente quando chega no ambiente escolar
pela primeira vez, tem receio e insegurança. Neste momento o
professor precisa ajudá-las a sentir-se segura e soltar a fala
naturalmente.
5) Conversa: promoção de atividades que permita a interação das
crianças e a sua participação nas rodinhas de conversa. O momento
mais relaxante na aula é o momento de jogar conversa fora, assim as
crianças se soltam naturalmente, começam a contar tudo que fazem
durante o dia e no final de semana. Isso favorece a integração junto ao
grupo.
6) Conhecimento sobre o aluno e sua família: proporcionar uma
melhor convivência entre alunos e professores. É importante que o
professor tenha um bom relacionamento com a família do aluno, isso
pode estreitar o laço familiar e o professor conhecerá através da
conversa um pouco mais da vida do seu aluno, podendo ajudar no
surgimento de algum problema que possa acontecer.
7) Valorizar as diferenças dos alunos: planejamento de
estratégias. Neste caso, o professor poderá ensinar, o respeito sobre
as diferenças, trabalhando na prevenção ou no combate ao bullying e
ainda poderá possibilitar a construção do conhecimento do aluno.
8) Utilização do trabalho que tenha uma referência visual
marcante: cartazes, murais, etc. O professor poderá recortar imagens
de revistas e colar no caderno do aluno, juntamente com ele,
destacando as imagens com a sua vivência diária, pedindo pra ele falar
o que vê.
9) Trabalhar o cognitivo: identificação de objetos preferidos e
pessoas próximas por meio de imagens, por exemplo - o uso de
objetos facilita a concentração por meio de dramatizações de histórias
infantis, fantoches, brinquedos sonoros etc.
10) Aplicar atividades com objetos: tamanhos, formas, cores para
desenvolver noções de tamanho e permanência. Fortalecer a
motricidade fina-manusear, sustentar e transferir objetos nas mãos,
guardar objetos e classificá-los por meio de recipientes de diversos
tamanhos e cores, brincar com objetos de encaixe de diferentes
tamanhos e espessuras etc.
336
Dessa forma, essas metas propostas durante o planejamento vão
contribuir de uma forma prazerosa para o desenvolvimento
psicológico, cognitivo e social do aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
337
ALVES, Á. M. P.; GNOATO, G. O brincar e a cultura: jogos e brincadeiras
na cidade de Morretes na década de 1960. Psicol. Estud., Maringá, v.
8, n. 1, p. 111-117, jun. 2003. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.
Php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722003000100014&lng=en&nrm
=iso. Acesso: 25 ago. 2018.
ANDRADE, F. A pedagogia do afeto na sala de aula. 2. ed. Recife:
Prazer de Ler, 2014.
BOURDIEU, P. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
CACHEFFO, V. A. F. F.; GARMS, G. M. Z. Afetividade nas práticas
educativas da educação Infantil. Nuances: Estudos sobre Educação,
Presidente Prudente, SP, v. 26, n. especial 1, jan. 2015. Disponível:
http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/2814/2915
CUNHA, A. E. Afeto e aprendizagem: relação de amorosidade e saber
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DELEUZE, G. Aula sobre Espinosa. 1978. Disponível em:
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FERNANDES, Z. Aprendizagem filosófica no ensino médio: uma
contribuição da poemática-pedagógica de Dante Galeffi. 2019.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual do Sudoeste do
Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, BA, 2019.
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339
340
AVALIAÇÕES MATERIALIZADAS EM UMA REPORTAGEM ACERCA
DO INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR POR MEIO DE
COTAS SOCIAIS E RACIAIS
341
constrói significados mediante escolhas linguísticas realizadas dentro
de um sistema que irá se materializar nos textos (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014).
Dito isso, é importante lembrar que o produtor de um texto tem,
à sua disposição, vários recursos linguísticos para poder posicionar-se,
realizar avaliações sobre objetos, eventos, pessoas, comportamentos.
Dessa forma, concordamos Vian Jr (2010, p. 25), quando ele defende
que “a avaliatividade está relacionada a todo o potencial que a língua
oferece para realizarmos significados avaliativos”.
Em relação à escolha do tema desse capítulo, trata-se do mesmo
da pesquisa de doutorado3, de uma das autoras, que versa sobre a
prática social de ingresso no ensino superior por meio de cotas sociais
e raciais. Importa destacar que ingressar em uma universidade por
meio de cotas sociais e raciais é direito de todo brasileiro,
considerando o que versa na Lei 12.711, que foi sancionada em 2012 e
regulamentada pelo decreto 7.824, desse mesmo ano. A Lei 12.711/12
garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas
universidades federais e institutos federais para alunos que são
oriundos do ensino médio da educação pública do país. 50% das vagas
são destinados para ampla concorrência (BRASIL, 2012). Apesar de o
direito ao ingresso no ensino superior, por meio de cotas, ser uma
garantia prevista em lei, os estudantes, que ingressam, por esse meio,
são avaliados o tempo todo, sendo julgados como incapazes de
ocuparem vagas em um espaço que por muito tempo era destinado
apenas à elite brasileira. Além dessa avaliação desses atores sociais,
que conquistam uma vaga na universidade, o próprio ingresso por
meio de sistema de cotas é avaliado, de forma negativa. E é possível
perceber essas avaliações materializadas em vários textos que
circulam na mídia. E foi pensando nessas questões, que apresentamos
uma análise da reportagem que aborda sobre a revolução silenciosa
das cotas no Brasil, porque ela apresenta uma quantidade significativa
de avaliações positivas e não negativas, acerca das cotas. A categoria
analítica escolhida, do SA, foi a Apreciação, que é aquela que se refere
ao campo dos significados usados para atribuir valores positivos ou
negativos acerca de objetos, animais, fenômenos, eventos e produtos
3A tese orientada pela prof. Dra. Maria Aparecida Resende Ottoni (UFU), será
defendida até julho de 2021. Serão realizadas entrevistas com alunos cotistas da
Universidade de Brasília e da Universidade Federal de Uberlândia.
342
do trabalho humano. Por fim, com o intuito de apresentar um estudo
que fosse coerente e coeso em termos teórico-metodológicos,
buscamos responder, no presente capítulo, um dos objetivos da
pesquisa maior de doutorado: investigar como é avaliado o ingresso
no ensino superior, por meio de cotas sociais e raciais, em textos que
circulam na mídia. Acreditamos que, com isso, seja possível incitar uma
reflexão acerca da importância do sistema de cotas no Brasil.
343
organização simbólica do texto[...]” (HASAN, 1989, p.12). Em suma, é
por meio do contexto de situação, que é possível perceber a função da
linguagem, que é aquela de criar e trocar significados (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014).
E considerando as maneiras como a linguagem é usada por nós,
nos diferentes contextos comunicativos, contamos com três
metafunções, que são materializadas pelas variáveis do contexto de
situação: a ideacional, responsável por nossas experiências na e pela
linguagem, pela forma como compreendemos o mundo (oração como
representação); a interpessoal refere-se às nossas relações com os
outros e às atitudes expressas pelos diferentes atores sociais na
linguagem (oração como troca) e, por fim, a textual, que é aquela
encarregada da organização da informação (oração como
mensagem). Assim, a primeira metafunção, a ideacional, está ligada ao
Sistema da Transitividade; a segunda, a interpessoal, relacionada ao
Sistema de Modo e, por último, a textual que está relacionada ao
Sistema de Tema e Rema.
O Sistema da Transitividade é aquele que permite analisar
participantes (por meio de grupos nominais); processos (por meio de
grupos verbais) e circunstâncias (por meio de grupos adverbiais ou
frases preposicionais). Na Gramática Sistêmica- Funcional, “os
conceitos de processo, participante e circunstância são categorias
semânticas que explicam de modo mais geral como fenômenos de
nossas experiências do mundo são construídos na estrutura
linguística” (FUZER; CABRAL, 2014, P.41).
Os participantes são aqueles realizados principalmente por
grupos nominais, podendo ser classificados como: Ator, Meta, Escopo,
Beneficiário (Recebedor, Cliente), Atributo, Experenciador Fenômeno,
Portador, Atributo, Identificado, Identificador, Comportante,
Comportamento, Dizente, Verbiagem, Receptor, Alvo e Existente4. e
as circunstâncias são aquelas realizadas por grupos adverbiais. Em
relação às circunstâncias, elas podem ser classificadas em:
344
TABELA 1 - Circunstâncias e exemplos
CIRCUNSTÂNCIAS EXEMPLOS
1. EXTENSÃO 1. Distância (a que Viajar por 1000 km.
distância?) Estudou (por) 10 anos.
2. Duração (Há quanto Escreveu várias vezes.
tempo?)
3. Frequência (Quantas
vezes?)
2. LOCALIZAÇÃO 1. Lugar (Onde?) Estudar na Universidade.
2. Tempo (Quando?) Entrar às 08h.
3. MODO 1. Meio (Como? Com o Ingressar na universidade
quê?) por meio decotas.
2. Qualidade (Como?) O acesso à universidade
3. Comparação (Como cresce rapidamente.
é?) Lutar por justiça social como
4. Grau (Quanto?) Paulo Freire.
Cresceu muito o acesso ao
ensino superior.
4. CAUSA 1. Razão (por quê?) Lutar por causa da vaga na
2. Finalidade (Para quê?) universidade.
3. Lutar para manter as cotas
Benefício/representação sociais e raciais na
(Por quem?) universidade.
Discursar por alunos negros
e pobres.
5. CONTINGÊNCIA 1. Condição (por quê?) Acionar a justiça, em caso de
2. Falta/Omissão fraude no ingresso por
3. Concessão cotas.
Na falta de alunos, convocar
os do cadastro de reserva.
Lutar, apesar das críticas ao
sistema de cotas.
345
8. ASSUNTO 1. Sobre o quê? Falar sobre cotas sociais e
raciais na UFU e na UNB.
9. ÂNGULO 1. Fonte De acordo com a Lei
2. Ponto de vista 12711/12, 50% das vagas são
garantidas a alunos do
ensino médio de escolas
públicas.
Na opinião da professora, as
cotas são necessárias.
346
circunstanciais são aquelas que estabelecem relação de tempo, lugar,
modo, causa, acompanhamento, dentre outras, conforme
discriminadas na tabela 1. Em outras palavras, são as orações
relacionais que permitem representar seres no mundo em termos de
características e identidades.
Quanto ao processo existencial, ele representa a existência de
algo, sem necessariamente relacionar nenhum predicativo a esse algo,
conforme defende Thompson (2004). O processo verbal é aquele que
está ligado a uma ação. As orações verbais têm como núcleo os
processos do dizer. Esse processo contribui de forma significa na
construção de narrativas, nas reportagens, nos trabalhos acadêmicos,
pois são as orações verbais que permitem que o produtor do texto
traga a voz do outro, que garanta o dialogismo. Por último, temos o
processo comportamental, que é aquele muito próximo dos processos
mentais e materiais, causando, muitas vezes, confusão, já que ele se
encontra em posição intermediária entre os dois. E, por último, o os
processos são aqueles de caráter “(tipicamente humano) fisiológico e
psicológico, tal como respirar, tossir, sorrir, sonhar e
olhar”(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 248).
O Sistema de Modo (no qual a metafunção interpessoal está
relacionado) é responsável por estabelecer relações entre os
indivíduos, é um sistema gramatical que permite organizar o evento
comunicativo, considerando os modos declarativo, interrogativo,
exclamativo e imperativo. Na situação interativa, recorremos aos
papéis de fala, que são o dar e demandar, que segundo Halliday e
Matthiessen (2014, p. 107), “envolvem noções complexas em que
“dar” significa convidar a receber e demandar convidar a dar.
De acordo com Cabral (2007, p. 46):
347
O Sistema de Tema e Rema (no qual a metafunção textual está
relacionado) garante a organização da oração como mensagem. O
tema é a primeira parte da oração, ele quem situa a oração dentro de
um contexto. Todo o restante da oração é denominado como rema.
Em relação à informação do significado presente no texto, ele é
dividido em dado e novo e isso vai interferir na construção de sentido
do enunciado. O dado é a informação que está no nível da nossa
consciência, e só conseguimos recuperá-lo ao acessarmos o contexto.
É a partir desse ponto que conseguimos compreender o novo, a
informação nova.
Apesar de o SA ter sido criado pautado na metafunção
interpessoal, não significa que não se pode recorrer a outras
metafunções para conseguirmos empreender nossas análises. Por
exemplo, os processos, as circunstâncias e atributos da metafunção
ideacional são potentes escolhas para que seja possível identificar
marcas de Afeto, de Julgamento, de Apreciação. Isso só mostra o
quanto as metafunções estão em constante diálogo.
348
aos usuários possibilidades de utilizar itens em suas interações
cotidianas”. Esse sistema é formado por três grandes subsistemas: a
Atitude, a Gradação e o Engajamento. A Atitude apresenta as
seguintes categorias: Afeto, Julgamento e Apreciação. De acordo com
os estudos desenvolvidos por Martin e White (2005), o Afeto está
ligado à emoção; o Julgamento está ligado à ética e a Apreciação está
ligada à estética. Em outras palavras, por meio de recursos
lexicogramaticais, podemos materializar: o Afeto, para expressar
emoção; o Julgamento, para avaliações de caráter, e, por fim, a
apreciação, para atribuir valor às coisas, eventos, livros, cds, etc. A
Gradação apresenta a força e o foco, como categorias e o
Engajamento é o subsistema que se pauta no dialogismo bakhtiniano,
sendo dividido em monoglossia e heteroglossia. A figura a seguir
representa a divisão do SA.
ATITUDE:
- Afeto
- Julgamento
- Apreciação
SISTEMA DA
AVALIATIVIDADE
GRADAÇÃO ENGAJAMENTO
- Força - Monoglossia
- Foco - Heteroglossia
349
aspectos dialógicos. E o Subsistema Gradação é aquele responsável por
moldar o grau da avaliação. Para Martin (2000, p. 148, tradução nossa),
“é a faculdade de mudar o grau de intensidade da Atitude, aumentando-
lhe o volume”.
Para a análise apresentada neste capítulo, focamos no Subsistema
Atitude, mais especificamente na categoria Apreciação. Se fôssemos
analisar como os cotistas são avaliados, seria coerente escolher a
categoria julgamento, mas como empreendemos uma análise acerca
do ingresso por cotas, ou o próprio Sistema de Cotas, a categoria
utilizada foi a Apreciação. Essa categoria “diz respeito às avaliações de
shows, filmes, livros, CDs, obras de arte, casas, prédios, parques,
recitais, espetáculos ou performances de qualquer tipo, fenômenos da
natureza, relacionamentos e qualidades de vida” (MARTIN; ROSE,
2003, p.37). Por fim, considerando as pressupostos teórico-
metodológicos da LSF e do SA, partimos para análise do nosso corpus.
350
negros em cursos de graduação. Em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram
feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último Censo, o percentual de negros
matriculados subiu para 30%. “A política de cotas foi a grande revolução silenciosa
implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos, quadruplicou o
ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez isso com o povo negro.
Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a comunidade negra”, comemorou frei
David Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de negros e
pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo. O professor Nelson Inocêncio,
que integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB),
pioneira na adoção das cotas raciais, também destaca o crescimento, mas pondera que é
preciso pensar outras políticas para garantir uma aproximação real entre o nível de
educação de negros e brancos: "Eu sou esperançoso de que a política de cotas, mesmo
com seus problemas, ao final consiga um êxito. Que a gente consiga tornar a presença
negra um pouco mais significativa nesses espaços tão historicamente embranquecidos",
disse Nelson Inocêncio - Marcelo Camargo/Agência Brasil: “Antes de falar em igualdade
racial, temos que pensar em equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a
política de cotas não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros,
a gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país continue, depois de
130 anos de abolição da escravatura, com essa imensa lacuna entre negros e brancos”,
destacou Inocêncio.
351
como universalistas, não tinha ideia de políticas regionais, por gênero e raça. O recorte
de renda era o único indicador reconhecido como legítimo para ações pontuais. Uma
política de ação afirmativa exclusiva para a população negra brasileira foi colocar o dedo
na ferida, causou um grande rebuliço”, lembrou Dione, uma das poucas professoras
negras da universidade. Outras resistências foram quebradas, como a ideia de que o
negro de alta renda não deveria ser beneficiado, de que os cotistas abandonariam a
graduação ou que teriam desempenho inferior aos de alunos não cotistas. “Já se verifica
que esses estudantes são tão capazes quanto os demais ou ainda têm um
desenvolvimento muito melhor. Nesse sentido, não há dúvida da capacidade dos cotistas,
porque eles já demonstraram isso e pesquisas também têm revelado”, destacou o
professor Manoel Neres, coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB. “O
resultado social negou os preconceitos. A UnB abriu as portas para que outras
universidades se abrissem para o jovem negro e o jovem indígena e que depois o próprio
governo federal abrisse uma política nacional para discutir as cotas no sistema público
universitário”, completou Dione Moura.
Frutos
352
que nossa presença ainda seja diminuta no espaço acadêmico, é emocionante ver muito
mais cores e formas, corpos, estéticas, símbolos e culturas diversos. A universidade se
tornou um espaço muito mais rico e instigante”, completou.
Mudanças
Longa trajetória
UnB reserva vagas para negros desde o vestibular de 2004 - Marcello Casal
Jr/Agência Brasil
A aprovação do projeto que instituiu o sistema de cotas raciais na UnB foi resultado
de um longo processo de articulação de integrantes do movimento negro, com
especialistas e representantes do Poder Público. Um dos marcos que precederam a
adoção das cotas no Brasil foi a 1ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em Durban, na África
do Sul, em 2001. A conferência motivou as personalidades negras brasileiras a reforçarem
353
o debate das ações afirmativas para negros no Brasil, que se tornou, na ocasião,
signatário do compromisso de combate a todo tipo de discriminação racial.
[...]
Presença
UnB foi a primeira universidade federal a adotar sistema de cotas raciais - Marcello
Casal Jr/Agência Brasil
A partir de 2013, já sob a vigência da lei federal de cotas, a UnB mudou a distribuição
da reserva de vagas. Para obedecer ao percentual estabelecido pelo Ministério da
Educação para as cotas sociais, a UnB reduziu as cotas raciais. A universidade reserva,
atualmente, 50% das vagas para alunos de escolas públicas e mais 5% exclusivamente para
negros, independentemente da sua condição econômica. Atualmente, o sistema passa
pelo desafio de aperfeiçoar o processo de seleção baseado na autodeclaração. A UnB tem
investigado ao menos 100 casos de possíveis fraudes. Em âmbito nacional, o Judiciário já
se manifestou de forma favorável ao estabelecimento de comissões para averiguar a
veracidade das declarações dos candidatos.
“Nesses 15 anos a avaliação que nós temos é muito positiva. Pelos dados dá para
ver o crescimento da quantidade de negros”, disse o decano de Ensino de Graduação da
UnB, Sérgio Andrade de Freitas - Marcello Casal Jr/Agência Brasil. O decano Sérgio
Andrade acredita que as denúncias não afetarão o sistema, mas poderá contribuir para
ajustes.“Todo processo exige um aperfeiçoamento, qualquer mudança que nós temos na
sociedade demanda um processo de amadurecimento entre as pessoas”, avalia Sérgio
Andrade [...]
354
TABELA 2: Categoria Apreciação
TIPOS DE AVALIAÇÃO PERGUNTAS QUE PODEM SER REALIZADAS
DEAPRECIAÇÃO
REAÇÃO Reação de qualidade: Avaliação do impacto e da
Representa a reação que as qualidade de coisas, objetos.
coisas, os objetos provocam Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
nas pessoas. a) Despertou a atenção?
b) Proporcionou prazer?
Reação de impacto: Avaliação do impacto que as
coisas, objetos provocam nas pessoas.
Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
a) Correspondeu às minhas expectativas?
b) É bem aceito?
c) Mexeu comigo?
COMPOSIÇÃO Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
Representa o equilíbrio e a a) Foi bem elaborado?
complexidade. b) Foi fácil ou de difícil compreensão?
VALORAÇÃO Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
Representa a inovação, o a) Valeu a pena?
ineditismo e a relevância de
uma coisa, um objeto, um
evento.
Fonte: As autoras. Inspirado em Martin e White (2005).
355
Legenda:
circunstâncias
Processos
356
Para - circunstância de causa -
finalidade (para quê?)
Fortemente - circunstância de modo -
qualidade (como?)
357
7. Dados da UnB mostram que, no mostram - processo verbal
primeiro ano do sistema, ingressaram no primeiro ano - circunstância de
na universidade 376 negros cotistas. A localização (quando?)
quantidade de pretos e pardos a ingressaram - processo material
entrar na instituição por meio de cotas transformativo
foi crescendo ano a ano. Em 2011, por entrar – processo material
exemplo, 911 negros cotistas puderam transformativo
fazer a matrícula na graduação. No foi – processo relacional
acumulado de 2004 a 2018, ingressaram ano a ano - circunstância de extensão
na universidade 7.648 negros pelo - duração (Há quanto tempo?)
sistema de cotas raciais. Em 2011 - circunstância de localização
- tempo (quando?)
No acumulado de 2004 a 2018 -
circunstância de extensão - (há quanto
tempo?)
Pelo - circunstância de modo – meio
(como, com o quê?).
Fonte: As autoras.
358
linguísticas do produtor da reportagem permitem compreender que
houve uma transformação no sistema de cotas, gerando um aumento
de negros na universidade. É possível afirmar isso, devido ao uso do
processo material transformativo aumentou. O uso desse processo e
de outros recursos lexicogramaticais revela uma avaliação positiva de
como está ocorrendo a implantação das cotas nas universidades,
desde o surgimento da lei 12.711/12. Dessa forma, notamos uma
apreciação, reação de impacto, apesar de haver universidades que
ainda não conseguiram apresentar um número significativo de cotistas
matriculados; com isso muitas delas permanecem majoritariamente
brancas e com um público elitizado. No excerto em 17 anos,
quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no
mundo fez isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há
mudanças reais para a comunidade negra”, comemorou frei David
Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de
negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo, é
possível identificar circunstâncias de extensão/duração (em 17 anos),
de localização (onde). Além disso, foram usados processos verbal,
existencial e mental, para avaliar as mudanças ocorridas em benefício
da comunidade negra e pobre. A apreciação de valoração é bem
evidenciada, pois o sistema de cotas representa, em nosso país, uma
inovação, um ineditismo. Isso pode ser comprovado por meio do
processo fez e de outras escolhas linguísticas, quando o produtor do
texto traz a voz do Frei David, usando os seguintes recursos
lexicogramaticais: “já que país nenhum no mundo fez isso com o povo
negro”,
Para dar destaque mais uma vez, em todo o processo de
transformação que está acontecendo desde a criação das cotas, que
tem o intuito de atender as minorias brasileiras, tais como negros e
pobres, identificamos, no excerto 2, processos material
transformativo e relacional circunstancial; além de circunstâncias de
contingência/concessão (ainda); de extensão/duração (depois de 130
anos) e de modo/grau (imensa), que corroboram outra avaliação de
apreciação: “Antes de falar em igualdade racial, temos que pensar em
equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a política de cotas
não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros, a
gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país
continue, depois de 130 anos de abolição da escravatura, com essa
359
imensa lacuna entre negros e brancos”. A voz de Nelson Inocêncio é que
dá destaque para a necessidade de garantir uma equidade racial, que
deve prevalecer antes da igualdade social. A avaliação do sistema de
cotas se deu por meio de um processo relacional circunstancial, ou
seja, isso ocorre quando a relação entre os dois termos é de tempo,
lugar, modo, causa, acompanhamento, papel, ângulo, grau,
contingência (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2014). Em suma, o processo
for é relacional e as circunstâncias são de contingência (ainda), de
tempo (quando) e de grau (imensa). O que foi avaliado, no excerto 2,
direciona para a confusão feita, por parte dos diferentes atores sociais,
acerca dos termos igualdade e equidade. É preciso entender que há
uma complexidade na organização do Sistema de Cotas, afinal muitos
brasileiros não compreendem que há um distanciamento entre o que
está escrito na lei, o que reza a constituição federal e o que acontece
na prática. É urgente repensarmos essa complexidade, as cercanias
que envolvem o contexto da escravidão em nosso país, as
desigualdades sociais, a falta de investimento na educação, para,
então, ser possível pensar na diferença existente entre igualdade e
equidade; sendo que se essa primeira for considerada como produtora
de justiça, estaremos nos referindo, de fato, à equidade.
Para reforçar o que já mencionamos sobre o processo de criação
e transformação do Sistema de Cotas, apresentamos o excerto 3: "Há
15 anos, o conceito de ações afirmativas para inclusão de negros na
educação superior motivou intenso debate no meio universitário. Em
junho de 2003, decisão tomada pela Universidade de Brasília (UnB) de
adotar o sistema de cotas raciais em seu processo de seleção abriu
caminho para uma mudança no paradigma de acesso à universidade,
antes fortemente baseado na meritocracia”. Há, nesse excerto, a
materialização de circunstâncias, tais como: de extensão/duração, em
Há 15 anos; de localização/tempo, em junho de 2003; de modo/grau, em
intenso; de causa/finalidade, em para; de modo/grau, em fortemente.
Além disso, há a presença, no excerto 3, de processo material
transformativo, em motivou, adotar e processo material criativo, em
abrir. Essas escolhas linguísticas, além de indicarem uma avaliação
positiva da adoção de cotas, tomando como referência a UNB, revela
a necessidade de uma reflexão, pois não ocorreu ainda uma justiça
social de tal forma que colabore de maneira significativa para que as
minorias “ocupem” espaços que pertencem a elas e que são
360
garantidos por lei. Não podemos exigir que um estudante de escola
pública, sem oportunidade de fazer um curso pré-vestibular, por
exemplo, concorra em iguais condições com estudantes da rede de
ensino privado. Mais uma vez, é evidenciada uma avaliação positiva,
uma valoração do sistema de cotas, tomando como base a atitude da
UNB, realçando que tem valido a pena, já que sua implantação “abriu
caminho para uma mudança no paradigma de acesso à universidade,
antes fortemente baseado na meritocracia”.
No excerto 4, o projeto das cotas é avaliado como eficiente, como
algo que desperta atenção. Esse projeto é avaliado como desafiador,
porque muitas vezes quem pertence/pertenceu a um contexto de
minoria é quem costuma lutar por essas causas sociais, como podemos
comprovar em: “O projeto das cotas na UnB foi um dos mais desafiantes
que eu trabalhei como profissional, cidadã, mulher e negra”, diz a
professora Dione Moura, do departamento de Comunicação Social -
Marcelo Camargo/Agência Brasil. Um dos principais desafios, segundo a
professora, foi convencer os veículos de imprensa, a sociedade e a
própria academia de que era necessária uma política pública específica
para negros e não para a população pobre de forma geral. Mesmo diante
dos números de desigualdade racial na educação e no mercado de
trabalho, questionamentos e dúvidas emergiram, principalmente com
relação à forma de identificação dos negros e ao reconhecimento do
problema do racismo. O processo relacional (foi), juntamente com
intensificador (mais) - circunstância de modo/grau e da circunstância
de modo/comparação (principalmente) apontam como foi significativo
para a participante do texto, Dione Moura, participar do projeto de
cotas. Além disso, a circunstância de causa/benefício revela o quanto
essa atitude da UNB favoreceu/beneficiou a população negra e pobre.
A voz da professora é trazida com o objetivo de relatar a importância
dessa luta pelas cotas, sendo marcada pelo processo verbal (diz). Os
recursos lexicogramaticais utilizados denotam realmente valor para o
sistema de cotas, é algo que vale a pena, pois como explica a
professora Dione Moura, no excerto 5: “O resultado social negou os
preconceitos. A UnB abriu as portas para que outras universidades se
abrissem para o jovem negro e o jovem indígena e que depois o próprio
governo federal abrisse uma política nacional para discutir as cotas no
sistema público universitário”. Nesse excerto, o processo verbal
(negou) e os processos materiais criativos (abriu, abrissem, abrisse) dão
361
destaque para a importância da negação de preconceitos, por meio da
atitude da UnB, em investir nessa luta social. A atuação do governo
também é motivada, a fim de que sejam discutidas as cotas no sistema
de ensino superior. Isso é muito relevante, porque a circunstância de
localização/tempo (depois) marca que a UNB é que abriu as portas e
que só foi criada uma política nacional, após ações dessa universidade.
A UNB deixa de ser um espaço pautado na meritocracia, a partir do
momento que abre suas portas para as minorias, gerando assim uma
transformação na universidade. Isso é bastante ressaltado pelo uso do
processo material transformacional (passou) que colabora para que a
UNB seja avaliada, de forma positiva.
Compreendemos que a lei que versa sobre o Sistema de Cotas é
bem elaborada, talvez o que ocorre é uma difícil compreensão dela,
por parte de alguns atores sociais que acreditam que as cotas estão
privilegiando uns estudantes em detrimento de outros e que essas não
deveriam existir. No entanto, várias universidades do país têm
apresentado um aumento de alunos cotistas, conforme podemos
comprovar em: Dados da UnB mostram que, no primeiro ano do sistema,
ingressaram na universidade 376 negros cotistas. A quantidade de pretos
e pardos a entrar na instituição por meio de cotas foi crescendo ano a
ano. Em 2011, por exemplo, 911 negros cotistas puderam fazer a matrícula
na graduação. No acumulado de 2004 a 2018, ingressaram na
universidade 7.648 negros pelo sistema de cotas raciais. Esse trecho da
reportagem é construído por meio do uso de diferentes processos, tais
como: verbal (mostram), processo material transformativo
(ingressaram, entrar) e processo relacional (foi). A predominância do
processo material transformativo dá destaque para uma avaliação
positiva, já que aponta o aumento de alunos cotistas na UNB. Assim,
ressaltamos que não se trata de criar as cotas, mas de transformar
ações sempre que necessário, a fim de garantir justiça social a minorias
que intentam ingressar em um ensino superior. Esse aumento de
alunos cotistas é reforçado pelo uso de circunstâncias de
localização/tempo (primeiro ano, em 2011); de extensão/duração (ano a
ano, no acumulado de 2004 a 2018); de modo/meio (pelo). Esses
recursos léxico-gramaticais dão destaque para um avanço na
implantação das cotas nas universidades, permitindo, mais uma vez,
uma avaliação positiva, apontada pelo aumento das minorias nas
universidades.
362
Em toda a reportagem, foi percebida uma frequência significativa
de avaliações positivas sobre o ingresso no ensino superior por cotas.
As vozes articuladas são de diferentes atores sociais que possuem
autoridade para discutirem sobre o assunto, já que estão engajados
em ações que garantam que as minorias, tais como pobres e negros,
ingressem em uma universidade, tais como aparece no excerto 7:
“Nesses 15 anos a avaliação que nós temos é muito positiva. Pelos dados
dá para ver o crescimento da quantidade de negros”, disse o decano de
Ensino de Graduação da UnB, Sérgio Andrade de Freitas - Marcello Casal
Jr/Agência Brasil. O decano Sérgio Andrade acredita que as denúncias
não afetarão o sistema, mas poderá contribuir para ajustes. Nesse
último excerto, escolhido para análise, é possível perceber mais
circunstâncias (nesses 15 anos, muito, pelos dados) e processos (disse,
acredita, contribuir) que corroboram as várias avaliações presentes no
corpus. A apreciação ocorre também em termos de composição da lei,
pois ela precisa ser aperfeiçoada, sempre inovada, bem elaborada, e
de fácil compreensão para que quem tem direito a cotas não seja
prejudicado: “Todo processo exige um aperfeiçoamento, qualquer
mudança que nós temos na sociedade demanda um processo de
amadurecimento entre as pessoas”, avalia Sérgio Andrade.
Por fim, não se pode negar que apesar das avaliações positivas
sobre as cotas, há um cenário mastodôntico de desigualdades no
cenário educacional brasileiro. Isso direciona para o alerta de Santos
(2002), quando ele afirma que não devemos seguir a lógica que
envolve o mito da democracia social, ou seja, a ideia de que todos nós
estamos no mesmo nível de igualdade sócio racial e que tivemos as
mesmas oportunidades, desde o processo de colonização do Brasil.
Esse autor defende que, se pensarmos dessa forma, podemos ser
levados a acreditar que as desigualdades na posição hierárquica e as
relações de poder são dessa forma devido a uma incapacidade própria
de grupos que estão em situação de desvantagem. Ademais, vivemos
um processo de exclusão social, marcada pelo contexto da
globalização. De acordo com Camino (2011, p. 7), “para entender as
formas dos processos de exclusão social, devemos, portanto, analisar
o contexto contemporâneo onde se desenvolvem. E esse contexto é
dominado pela globalização, que deve ser entendida como um
conjunto de processos que se estruturam em níveis diferentes
(cultural, econômico e social)”. Por assim ser, acredito que um dos
363
caminhos para garantir a democratização da educação, de forma a
assegurar o acesso ao ensino superior, é o sistema de cotas sociais e
raciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
364
“geralmente terem pouco ou nenhum acesso aos contextos
comunicativos cruciais” (VAN DIJK, 2018, p. 97). Para van Dijk (2018),
as minorias não têm acesso aos seguintes contextos comunicativos: a)
discursos governamentais e legislativos de tomada de decisões,
informação, persuasão e legitimação; b) discursos burocráticos de
implementação de políticas públicas; c) discurso da mídia de massa de
grandes veículos jornalísticos; d) discurso acadêmico ou científico; e)
discursos empresariais. Por assim ser, compreendemos a importância
de analisar textos da mídia e acreditamos que a LSF e o SA
contribuíram muito para percebermos os efeitos sociais do corpus
analítico, como para possíveis mudanças sociais. As ações afirmativas
sobre cotas podem permitir que estudantes ingressem no ensino
superior com equidade, ou seja, seguir o que reza a constituição
federal, tratar os desiguais de forma desigual, isto é, oferecer
incentivos a todos aqueles que não tiveram oportunidades, devido a
qualquer forma de discriminação ou de racismo. Enfim, acreditamos
que essa análise pode contribuir, ainda que em menor medida, para
que ocorra uma reflexão acerca das cercanias da ação afirmativa
conhecida como Sistema de Cotas.
REFERÊNCIAS
365
VIAN JR, O. O Sistema de Avaliatividade e a linguagem da avaliação. In:
VIAN JR, O; SOUZA, A. A; ALMEIDA, F. S. D. P. A linguagem da avaliação
em língua portuguesa. Estudos sistêmico-funcionais com base o
sistema da avaliatividade. SãoCarlos: Pedro & João Editores, 2010.
366
O PROJETO MÃO AMIGA CAPES/PIBID COMO BENEFÍCIO
PEDAGÓGICO NO PROCESSO DA CONSTRUÇÃO DO PERFIL
PROFISSIOGRÁFICO DO CURSO DE PEDAGOGIA DA UNESPAR/UV
INTRODUÇÃO
367
para a formação inicial e continuada de professores. Ansai (2013, p. 147)
explicita
368
DESENVOLVIMENTO
369
c) Comprometer-se com a formação integral dos educandos, considerando
aspectos psicológicos, sociais, culturais e políticos.
d) Exercer a profissão de forma consciente e ética, compreendendo a
diversidade e a dimensão humana da educação. (COLPED, 2018, p. 34)
370
Assim evidenciamos que ao participar do projeto, o acadêmico
bolsista do curso de Pedagogia da UNESPAR/UV tem uma profícua
oportunidade de vivenciar uma formação docente inicial intensa uma
vez que no projeto se prioriza a elaboração da identidade do docente
a partir da prática reflexiva docente assistida por professoras
supervisoras bolsistas e coordenadoras de área do projeto, fato ímpar
nos cursos de licenciatura até então. Neste sentido Ansai (2013, p. 148)
enfatiza que
[...] Para além da pedagogia tradicional, optamos por uma metodologia que tem
como viés o lúdico na sala de aula. Para o entendimento e domínio dessa
competência por parte do futuro profissional docente, optamos por uma
metodologia de ensino aplicada a crianças/alunos que apresentam dificuldades
de aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. (ANSAI, 2013, p. 150).
371
De outra forma, a participação no projeto se reveste de
importância pelo fato de que as bolsistas acadêmicas ao atenderem os
alunos que possuem dificuldades de aprendizagem através do lúdico,
podem constatar que a evolução do nível de aprendizagem do aluno
aumenta em grande escala, uma vez que as atividades são mais
prazerosas.
Portanto, evidenciamos que o bolsista acadêmico e os alunos das
escolas parceiras do projeto acabam fazendo uma rica troca de
conhecimentos e experiências interpessoais a partir da utilização do
lúdico em sala de aula. E são essas trocas uma das principais
experiências práticas de contato com o educando que permite a
construção do perfil profissiográfico do professor pedagogo
possivelmente capacitado para atuar de fato em sala de aula de forma
a promover a superação das reais dificuldades dos alunos. Esta
dinâmica permite que ao mesmo tempo em que se estabelecem as
relações do par educativo, se consolide a construção do perfil
profissional do pedagogo. Reside aí:
372
O instrumento de coleta dos dados é um questionário misto
contendo 05 perguntas, e que foi aplicado pessoalmente pelas
pesquisadoras durante a hora do trabalho coletivo do projeto.
Sobre as características do perfil dos respondentes os dados
revelam que são todos experientes nas vivências oferecidas pelo
projeto uma vez que têm mais de dois anos de atuação como bolsistas.
No universo de respondentes 100% dos bolsistas acadêmicos é
composto pelo sexo feminino. As bolsistas respondentes selecionadas
intencionalmente para a pesquisa são formandas que possuem mais
de dois anos de experiência de estudos no Projeto, fato que contribui
de forma significativa para a coleta dos dados de pesquisa.
A pergunta inicial do questionário arguiu sobre quais os motivos
que levaram as bolsistas respondentes a ingressar no Projeto Mão
Amiga CAPES/PIBID. O quadro A revela o pensamento–ação das
respondentes:
373
BR4 “O que motivou foi a possibilidade de entrar em contato
ainda no processo de formação docente inicial, com o chão da
escola, adquirir conhecimento prático, conviver com
docentes mais experientes, troca ideias, compreender a
realidade escolar e as dificuldades encontradas na profissão
docente.”(atuou no Projeto durante os 4 anos da graduação
- 2014 a 2017)
BR5 “A ótima referência a despeito[sic] do Projeto, dada por
colegas acadêmicas, acerca das experiências na carreira
docente habilidades aprendidas, oportunidades únicas tanto
no aspecto acadêmico como profissional.”(atuou no Projeto
durante 2 anos e 06 meses)
BR6 “Queria muito estar em sala de aula, e assim unir a teoria
juntamente com a prática. Tinha ouvido falar muito bem
sobre o Projeto e que com certeza iria fazer a diferença na
minha vida acadêmica.”(atuou no Projeto durante 3 anos e 11
meses)
BR7 “Buscava me inteirar do ambiente docente, pois não tinha
nenhuma experiência no âmbito da educação e o Projeto foi
meu primeiro contato com a escola enquanto docente e
sentia a necessidade de interagir com outros
profissionais.”(atuou no Projeto durante 3 anos e 05 meses)
BR8 “A propaganda era encantadora, falavam muito bem do
Projeto, as aprendizagens e experiências e exemplos das
bolsistas eram verdadeiros e a parte financeira que ajudava
muito. ” (atuou no Projeto durante 3 anos e 07 meses)
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017
374
QUADRO B: O pensamento-ação das bolsistas respondentes sobre as
atividades lúdicas como prática pedagógica diferenciada para
arrefecer as dificuldades dos alunos.
Respondente Resposta
BR1 “Sim, pois a ludicidade está totalmente interligada à
assimilação dos conteúdos que são desenvolvidos em sala, de
maneira que a criança compreenda e se expresse diante
daquilo que está sendo proposto na atividade lúdica.”
BR2 “Com toda certeza que sim, a metodologia lúdica favorece a
aprendizagem, pois o educando aprende brincando sem que a
aprendizagem seja algo penoso e rotineiro.”
BR3 “Com toda certeza sim. Durante o desenvolvimento das
atividades e nos momentos de reflexão acerca do trabalho,
seja com a equipe bolsista, ou com os profissionais atuantes
na escola parceira, era visível o quanto as propostas
diferenciadas melhoravam o desempenho dos estudantes.”
BR4 “Contribui grandemente, pois no mundo da tecnologia a escola
e os conteúdos escolar não são atrativos, e através da
ludicidade conseguimos despertar o interesse dos alunos.”
BR5 “Sim, através dos jogos e atividades lúdicas nos meus
planejamentos, trabalhei em matemática com o jogo da
adição, e também o jogo da joaninha, o jogo do dado da
adição, boliche da adição, para que desta maneira os
educandos desenvolverem a alfabetização matemática.”
BR6 “Sim, o aluno M. não conseguia resolver uma questão de
multiplicação, e através da tabuada lúdica, onde o mesmo
com auxílio de palitos colocava nos copinhos e após contar
quantos palitos havia em cada copinho, conseguiu resolver
todas as multiplicações.”
BR7 “Sim, a utilização de material lúdico no Projeto para ensinar
as operações básicas da matemática auxiliou o aluno a
compreender o processo. Na sala de aula, o aluno não
conseguia realizar as operações por falta de compreensão,
enquanto nas aulas do Projeto conseguiu sanar suas dúvidas
utilizando material lúdico e concreto.”
BR8 “Sim, os jogos lúdicos na alfabetização dão um grande
suporte como por exemplo o bingo das letras e sílabas
auxiliam na alfabetização das crianças, memorizando e
compreendendo o conteúdo através do brincar que é o que a
criança mais gosta de fazer.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017
375
A pergunta 03 apresentou às bolsistas respondentes o seguinte
conteúdo: Ao vivenciar à docência no âmbito do projeto, como
bolsista, você experienciou uma prática docente crítica em um
movimento dialético entre o “fazer e o pensar sobre fazer”. Neste
sentido, com relação a sua formação em curso e o que o projeto lhe
ofereceu enquanto lócus de formação docente, você considera:
Excelente; Ótimo; Bom; Regular ou Péssimo? Deste modo no gráfico 1
se encontra a avaliação dos bolsistas respondentes:
376
QUADRO C: Percepções das bolsistas respondentes sobre as
contribuições das experiências vivenciadas e saberes obtidos no
cotidiano escolar para a formação docente inicial
Resposta
Respondente
BR1 “Ótimo, a vivência escolar é algo que constrói pontes, tendo
como alicerce o professor enquanto mediador do
conhecimento, assim no período em que estive no Projeto
como graduando de Pedagogia enriqueceu os saberes
enquanto docente inicial e também contribuiu na minha
formação enquanto pesquisador.”
BR2 “Ótimo.”
377
BR8 “Durante o Curso de Pedagogia nos 4 anos em nenhum
momento recebemos orientações sobre como proceder com
alunos com dificuldades de aprendizagem. No entanto, no
Projeto as dificuldades de aprendizagem é o foco principal.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017
378
BR6 “Através de pesquisas, fichamentos, artigos, somos
instigadas a construção e busca de conhecimentos.
Permitindo saciar aprendizagens construídas no coletivo.
Assim, para o desenvolvimento profissional do educador.
Nóvoa (1995, p.27).” afirma que: A formação pode estimular
o desenvolvimento profissional dos professores, no quadro
de autonomia contextualizada da profissão docente.
Imposta valorizar paradigmas de formação que promovam a
preparação de professores reflexivos, que assumam a
responsabilidade do seu próprio desenvolvimento
profissional e que participem como protagonistas na
implementação de políticas educativas.
BR7 “Vejo que as teorias vistas nas aulas da faculdade se
apresentam nas práticas de sala de aula. Algumas delas estão
de acordo com a realidade das escolas, outras parecem estar
distantes. No Projeto, o que é estudado nas pesquisas, muitas
delas podem ser colocadas em prática no dia a dia do projeto,
buscando sempre o melhor para o desenvolvimento dos
alunos.”
BR8 “Na prática quando estamos com os alunos no momento que
planejamos uma aula podemos observar o quanto a teoria é
importante para a nossa formação.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017
379
BR2 “A oportunidade de estar atuando nas escolas em contato
com docentes mais experientes, a exigência das Supervisoras
com as quais atuei me tornou uma profissional mais
capacitada e autocrítica na realização de minhas funções.”
BR3 “Inúmeras foram as experiências positivas durantes meus
anos de atuação enquanto bolsista mão amiguense,
acompanhar o crescimento e o desenvolvimento das crianças
é algo incrível. Uma das experiências mais relevantes foi a
gincana do dia dos pais, organizada na Escola Municipal Padre
João Piamarta, oportunidade na qual foi possível perceber o
envolvimento não só das crianças, mas também dos pais,
visto que para um bom andamento das atividades é de
fundamental importância a presença da família.”
BR4 “Experiência de publicar um artigo sobre o PIBID em um
congresso internacional.”
BR5 “Aspecto relevante a ser citado é a liberdade de criatividade
por parte dos bolsistas, sempre busquei atividades
diferenciadas que despertassem o imaginário dos educandos,
com essa dedicação alcançava o êxito na ensino
aprendizagem.”
BR6 “Vivenciei uma experiência que me marcou muito, onde um
aluno tinha muitas dificuldades tanto na aprendizagem
quanto na socialização com os colegas. Consegui me
aproximar dele e aos poucos ter sua confiança. Posso dizer
que a superação em todos os sentidos foi nítida, que todos ao
redor
perceberam. O aluno não queria mais se desligar do Projeto,
mesmo quando já tinha evoluído muito. Foi gratificante para
mim.”
BR7 “O cotidiano com os alunos e outros profissionais nos ensina
muito, e cada detalhe tem sua importância. Não há um só
momento ou experiência, acredito que tudo que foi vivido é
válido e deve ser reconhecido.”
BR8 “Gostei muito das correções dos meus planos de aula e
relatórios, percebi que ainda não sei muito, mas preciso estar
disposta a vivenciar novas aprendizagens, sabendo distinguir
as críticas e as correções como parte importante da minha
formação.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017
380
A partir dos dados expostos anteriormente, algumas análises são
possíveis de serem tecidas, no qual apresentamos a seguir.
Observamos que com relação aos motivos que levaram as
bolsistas a ingressar no Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, os dados da
pesquisa revelam a busca por experiências educacionais significativas
e voltadas para o auxílio na compreensão melhor como acontece o
fenômeno educativo, a partir das vivências docentes ofertadas pelo
projeto. (Vide Quadro A)
Com relação ao pensamento-ação das bolsistas respondentes
sobre as atividades lúdicas que utilizaram nos seus planejamentos
apontadas como prática pedagógica diferenciada para arrefecer as
dificuldades dos alunos, elas sinalizam a compreensão da necessidade
de se utilizar uma metodologia didática prazerosa e significativa para a
promoção do processo de ensino e aprendizagem dos alunos. O
apontamento da bolsista RB2 que possui três anos de experiências de
estudos no projeto é bastante significativa ao afirmar que: “Com toda
certeza que sim, a metodologia lúdica favorece a aprendizagem, pois o
educando aprende brincando sem que a aprendizagem seja algo penoso
e rotineiro. ” (vide Quadro B)
Neste sentido, a proposta do trabalho pedagógico a partir da
ludicidade se apresenta como um lócus colaborativo para se firmar o
processo de construção do perfil profissional do estudante de
Pedagogia a partir das experiências vivenciadas no projeto e da
construção de novas percepções a respeito do processo de
organização do trabalho pedagógico em sala de aula. Como alerta
Rabello (2009, p. 107) em sua análise contundente,
Sabemos que a tarefa de transmitir o conteúdo pode ser cansativa tanto para o
aluno como para o professor, sobretudo quando este tem dificuldade em
organizar o trabalho pedagógico e gerir a sala de aula. O professor tem a função
de mediar a aprendizagem do aluno e prover a estrutura necessária para que o
educando assuma o estudo de maneira responsável e autônoma [...].
381
A respeito dos olhares dos respondentes sobre as experiências
vivenciadas e saberes compartilhados no cotidiano escolar e a
contribuição deste fenômeno para sua formação docente, as mesmas
apontam para a constatação de que as bolsistas receberam uma
formação teórica e prática significativa ao participarem do projeto, o
que corrobora nossa assertiva de que o projeto colabora para a
formação do perfil do graduado em Pedagogia, uma vez que apontam,
conforme o Quadro C, uma aquisição de diversos conhecimentos e
experiências basilares para a formação docente inicial.
Sobre a opinião dos bolsistas respondentes sobre a relação entre
os conhecimentos teórico/acadêmicos e o campo de atuação docente
a partir das vivências no projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, verificamos
que as bolsistas respondentes, apontam uma compreensão sobre a
Educação em sua amplitude e a prática educativa que ocorre em
diferentes âmbitos, muito embora apontem para a necessidade de se
realizar mais estudos para se atingir a plenitude profissional. (Vide
Quadro D)
As respostas a última questão que se encontram no Quadro E
apontam de forma consistente que o Projeto Mão Amiga contribui
para a consolidação do perfil profissiográfico do graduando do curso
de Pedagogia da UNESPAR/UV, que muito auxilia as bolsistas a
compreender o fenômeno educativo em sua plenitude, por meio da
produção de conhecimento científico e do comprometimento com a
educação dos seus alunos de forma ética e competente. A bolsista
responde BR4 resume estas experiências vivenciadas no projeto ao
relatar que publicou os estudos e pesquisas em um congresso
internacional.
CONCLUSÕES
382
no Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, os dados da pesquisa revelaram
que:
- Os bolsistas construíram, a partir das vivências da docência
assistida e dos estudos realizados, a compreensão de que é
necessária uma formação teórica consistente para se atuar
profissionalmente;
- O Projeto Mão Amiga contribui para a formação de um
pedagogo apto para trabalhar com crianças nos anos iniciais do
Ensino Fundamental;
- Os bolsistas aprenderam a produzir o conhecimento e a
difundi-lo ao participarem de eventos científicos;
- O Projeto proporciona experiências docentes que fazem com
que os acadêmicos se comprometam com a formação integral dos
seus alunos, característica importante da competência
profissional.
- Os bolsistas aprenderam a partir de uma prática docente
reflexiva, quais são as características de um professor ético,
consciente e comprometido com a formação integral humanizada
dos seus alunos.
Assim, os dados da pesquisa revelaram que os estudos realizados
no Projeto Mão Amiga estão em consonância com a proposta do
perfil do profissional que se deseja formar no Curso de Pedagogia
da UNESPAR/UV.
REFERÊNCIAS
383
ANSAI, Rosana Beatriz; JUNGES, Kelen dos Santos. A contribuição do
Projeto Mão Amiga Capes/PIBID e a qualidade das ações acadêmicas
na formação docente inicial no Curso de Pedagogia da UNESPAR/UV.
In: STENTZLER, Márcia Marlene; CAMARGO SILVA, Sandra Salete de
(Orgs.). Iniciação à docência: PIBID e a formação de professores pelos
campi da UNESPAR. Curitiba: Íthala. 2016. p.30-45. (Volume União da
Vitória). Disponível em: <http://www.pibidunespar.com.br/index.php/
livros>.
COLPED – Colegiado Pedagogia. Projeto Pedagógico do Curso de
Pedagogia. Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual do
Paraná. União da Vitória-PR: UNESPAR/Campus de União da Vitória,
março. 2018
RABELLO, Roberto Sanches. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o
que é: arte e ludicidade na formação do professor. IN: D’AVILA, Crisitna
(org). Ser professor na contemporaneidade. Curitiba: CRV, 2009.
SOARES, Maria Inês Bizzotto et al. Alfabetização Linguistíca: da teoria
à prática. Belo Horizonte: Dimensão, 2010.
384
A EXPERIÊNCIA INICIAL DO OUTRO NA PEDAGOGIA
LATINO-AMERICANA: UMA LEITURA À LUZ DE
ENRIQUE DUSSEL E PAULO FREIRE
INTRODUÇÃO
Comum Curricular.
4 Dentre as quais podemos citar: Fundação Lemann; Instituto Unibanco; Fundação
Itaú; Instituto Inspirare; Todos pela Educação; Instituto Natura; Instituto de Co-
responsabilidade pela Educação (ICE).
385
de deficiência com laudo médico ou psiquiátrico, em um viés em que não
faz sentido falar de inclusão social nos seus diferentes aspectos
econômicos, étnico-racial ou de gênero. Tratar de outro tipo de inclusão
que não seja da educação especial é carregada de sentido ideológico
considerado imoral nos tempos atuais. No caso brasileiro, temos a obra
de Paulo Freire, que aborda de forma mais radical a exclusão/inclusão na
escola. A sua luta contra a opressão a partir da educação, levou-o a ser
considerado como um dos grandes responsáveis pelo suposto fracasso
da educação formal no País. Sua obra inicial, que culmina com a
Pedagogia do Oprimido (1969), constitui-se em uma pedagogia da
libertação tratando-se de uma forma típica na/da América Latina, dentro
de um movimento filosófico e teológico em que surge a “questão da
libertação” (DUSSEL, 1995, p. 22). Nesse sentido, a Pedagogia da
Libertação de Freire está introduzida no movimento pedagógico
brasileiro em diálogo com a América Latina. O conceito de educação
inclusiva parece não comportar mais a luta contra a opressão no sentido
mais amplo da inclusão, mas passa a se restringir a um certo tipo de
sentido de educação especial. Com isso, emancipar o estudante é, de
certo modo, um tipo de adaptação à sociedade através das
competências e habilidades.
O texto se move na perspectiva de indagar se ainda faz sentido
falar em educação libertadora, ou então, dito de forma mais vasta,
pode a educação escolar ser considerada uma prática de liberdade na
América Latina, levando-se em consideração um mundo globalizado e
o esfacelamento do mundo comum? Assim sendo, faz sentido analisar
a lógica de fundo que se estabelece contra o que está posto, no
momento em que a história caminha em direção ao progresso e, nesse
sentido, se um grupo social, uma instituição ou os sujeitos não
acompanharem o desenvolvimento posto, isso significa que os casos
omissos que não se adaptarem e acomodarem ao sistema devem ser
tratados particularmente, sendo sucessivamente considerados como
problemas localizados que precisam ser combatidos ou adequados ao
já estabelecido.
No caso de pessoas ou estudantes, isso seria (é) feito por meio de
alguma terapia, algum coach ou pela indicação de algum remédio, a fim
de se “descobrir” qual o problema que o sujeito possui pelo fato de
não conseguir se adequar/adaptar; no caso das instituições, as
mudanças seriam (são) realizadas nas formas de gestão e
386
administração, do mesmo modo que as economias de países
periféricos precisam seguir as cartilhas dos países centrais. Desta
forma, desenvolver melhor os objetivos, capacitar melhor os sujeitos,
aprimorar as competências e habilidades passa a ser a função nuclear
da educação escolar. Em suma, o sistema é bom, os indivíduos que não
são competentes o suficiente para se adequar às mudanças e situações
exigidas pelos processos decorrentes da globalização.
O discurso de questionar a globalização como um sistema mundial
pode ser considerado como um tanto ultrapassado, e somente faz
sentido falar em libertação se há opressão. Se considerarmos a lógica
posta como inadequada, então significa que necessitamos fazer uma
mudança estrutural, ou ainda, transformações de situações que
julgamos serem excludentes e aniquiladoras. Se não pretendermos
somente legitimar o que está posto, mas abordar uma educação para
além do que está posto, para além da adequação e mesmidade, então
significa que precisamos pensar em uma educação que transforme a
realidade dada como naturalmente “justa” e “adequada”. Contudo,
essa transformação pode ser considerada como uma ameaça ao sistema
vigente, podendo-se, inclusive, reagir de forma violenta para a
manutenção do status quo.
Com isso, podemos aferir que o problema que aqui enfrentamos
está diretamente ligado com a forma pela qual fazemos a educação
escolar, ou seja, passamos a legitimar o sistema se considerarmos que
as diferenças ou as limitações dos sujeitos (alunos) são somente
“problemas subjetivos”, isto é, do “próprio eu”, e nada para além
disso.
Nessa direção, o capítulo se baseia na análise bibliográfica e na
perspectiva hermenêutica de interpretação crítica da questão do outro
na educação escolar. Ademais, acreditamos que somente faz sentido
falar em uma pedagogia da libertação se há uma experiência de
opressão ou, no mínimo, a necessidade de libertação, muito ofuscada
atualmente pelo que chamamos de globalização.
Em primeiro lugar, analisamos no que implica, historicamente, ser
e pensar a partir da América Latina – a inauguração do América como
produto da modernidade europeia – o surgimento da “questão da
libertação”. Por conseguinte, aborda-se o surgimento da questão da
libertação e o aparecimento do Outro a partir de Enrique Dussel, isso,
com o intuito de compreender as características da globalização e da
387
sociedade hodierna, além de suas implicações para pensar o Outro
diferente e, ao mesmo tempo, igual. Por fim, diante do contexto
brasileiro, tematiza-se, a partir de Paulo Freire e Enrique Dussel (e
alguns de autores contemporâneos), a dificuldade de se constituir
pressupostos para pensar uma pedagogia da libertação na
contemporaneidade.
388
corremos um sério risco de torná-lo inabitável e, quiçá, supérfluo para as
novas gerações. As questões ecológicas põem sob suspeita a
modernização enquanto sinônimo de progresso.
Não obstante e de forma específica, os países latino-americanos
nascem sob o processo de modernização europeia, como colônias das
sociedades tidas como “civilizadas e modernas”. Assim sendo, “[...] a
cultura ameríndia, porque difere da europeia, é considerada como
bárbara, desprezível, sem valor” (BOUFLEUER, 1991, p. 79). Além disso,
constituem um processo de integração muito efêmero, “[...] ou melhor,
apenas foi possível uma integração perversa sob o signo do espólio,
exploração ou exclusão” (ZAMORA, 2008, p. 20). Este processo da
história latino-americana permite um estranho ethos como forma de
normalidade deste processo de marginalização mundial. Em síntese, é
normal que a modernidade produza este processo de exclusão devido a
cronologia histórica. Enigmaticamente, legitima-se o processo de
exclusão como sendo característico da própria constituição da América
(exceção feita no norte do continente).
A histórica linear e evolutiva coloca frente a frente sociedades
“desenvolvidas” e “civilizadas” com sociedades “tradicionais” e
“atrasadas”. Sob esta lógica, temos como padrão de análise as
sociedades modernas que apresentam e consideram numa escala de
inferioridade as sociedades que não seguem este curso. O diferente,
em termos de sociedade, é a civilização contra a barbárie.
Conforme Baudrillard e Guillaume (2000, p. 113, tradução nossa):
389
perspectiva como parte integrante e “natural” do processo. Os modos
de vida diferentes podem até persistir no interior de uma sociedade,
contanto, desde que não afetem a marcha para o progresso.
Todavia, quando estes grupos sociais se organizam para lutar
pelos seus direitos para além do status quo, significa que estes devem
ser combatidos com uma ideologia perversa e abafadora. Além disso,
passam a ser considerados como resquícios da barbárie, para Sennett
(1988, p. 325), tais evidências se aprofundam nas sociedades modernas
onde “[...] forasteiros, desconhecidos, dessemelhantes, tornam-se
criaturas a serem evitadas” e combatidas. Todo movimento que se
pautar na luta por direitos contra a marcha do progresso deve ser
descaracterizado, por isso, formas de vida diferentes das consideradas
ideais ou condizentes deverão sempre ser combatidas.
Não será necessário grande esforço para reconhecer os múltiplos
serviços prestados por esta estratégia. De um lado, serviu para tornar
invisíveis formas de barbárie inerentes à Modernidade ou, inclusive, para
identificar e estigmatizar grupos sociais dentro das sociedades
industrializadas, objetos de processo de exclusão, exploração ou
extermínio; e, de outro, permitiu legitimar a luta, em muitos casos
exterminadora, contra formas definidas previamente como bárbaras,
empregando meios e conduzindo para efeitos que ultrapassam em muito
a barbárie atribuída aos supostos incivilizados. (ZAMORA, 2008, p. 21).
No tocante à educação escolar, esta estratégia que, de um lado, visa
mostrar certos grupos sociais como inadequados e, de outro, combatê-
los sistematicamente, tem se mostrada de alguma forma eficiente no
sistema de ensino formal, tanto que passamos por um movimento
nacional de combater qualquer tomada de posição que não seja
adequada com a estrutura vigente, no viés de caminhar sob a perspectiva
de desideologização da educação, abrindo, grosso modo, o leque para
qualquer tipo de tema transversal que tome uma posição contrária ao
desenvolvimento e formação humana. Chegamos ao extremo de
questionar uma república, a democracia e os direitos humanos que não
estejam vinculados para o progresso da sociedade capitalista.
A América Latina, desde a sua fundação, é um produto da
modernidade. A história é marcada por uma dizimação de muitos
povos e culturas, inúmeros povos que viviam neste território foram
silenciados, em um movimento tipicamente caracterizado de
genocídio, enquanto forma de assassinato praticado pelo estado ou
390
autoridade contra um determinado grupo ou etnia que não se
adequava às exigências da civilidade “boa”. (ZAMORA, 2008). No caso
dos americanos, estes se caracterizam por uma pseudo-europeização,
pois legam a língua e a cultura europeia, agregando os elementos
nativos e africanos mesmo que estes não sejam aceitos formalmente.
Nessa direção, podemos considerar que a formação educacional
latino-americana possui algum vínculo com o colonizador, uma boa
educação é feita no velho continente, “[...] os jovens ameríndios
devem deixar o seu ‘mundo’ para serem educados com a base nos
fundamentos da cultura europeia, conforme o sistema da
Cristandade”. (BOUFLEUER, 1991, p. 79).
Dentro do contexto mundial, após 1929, surge um nacionalismo
popular nos países latinos, que reflete no Brasil com o surgimento da
Escola Nova, nesta, há um manifesto contra o domínio e exploração,
citamos ainda outro movimento significativo, o dos anos 60,
especialmente quando a juventude se manifestou contra o
consumismo multinacional, expresso pedagogicamente com o
advento de reação ao capitalismo a partir dos movimentos
reacionários. É nesse período que surge a questão da libertação, que
se impõe como possibilidade outra de tensionar a globalização e a
educação escolar. É esta questão que será abordada doravante.
391
Enrique Dussel, ao retornar para Argentina em 1969, nota uma
situação em que o Outro é continuamente oprimido, para ele: “[...] a
experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o
‘fato’ opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem
‘senhores’ e outros sujeitos [...]” (DUSSEL, 1995, p. 18). Este fenômeno
do Outro enquanto oprimido é o que despertou a necessidade de se
pensar em modos e maneira de se libertar este Outro, que passa a ser
considerada como uma libertação do pobre.
Para Dussel, a capacidade de perceber o fato da opressão é o
despertar de uma filosofia da libertação. Sem a capacidade de
indignação e inquietação frente a uma realidade que se apresenta
como injusta, bárbara, inconveniente e desumana, não há como e nem
motivos para se pensar em libertação. A filosofia da libertação, que
parte do oprimido e da realidade desumana, é a única que não tem
privilégio nenhum para defender, pois, segundo Dussel, “A inteligência
filosófica nunca é tão verídica, límpida, tão precisa como quando parte
da opressão, e não tem privilégio nenhum para defender, porque não
tem nenhum” (DUSSEL, 1977, p. 10-11). Trata-se, portanto, de um
movimento em oposição a modernidade europeia que havia se
instalada e instaurada no mundo: “Nós estávamos conscientes de que
éramos ‘a outra face’ da Modernidade” (DUSSEL, 1995, p. 47).
Em meados do século XX, a América Latina estava em pleno efeito
do macarthismo, com o caso Cuba, todo movimento intelectual que
defendesse o oprimido era ideologicamente, na Guerra Fria,
considerado comunista, não foi diferente ocorreu com o movimento
libertador. Em períodos binários, tecer qualquer crítica a um certo
sistema, insere o sujeito na condição de oposição, exatamente o que
aconteceu (e continua acontecendo) com a questão da libertação do
oprimido e com a necessidade de se compreender o tempo presente,
isto é, fazer o movimento de compreensão e, geralmente, de crítica,
enquadra o sujeito à oposição e não como alguém que pode,
excepcionalmente, aperfeiçoar as relações humanas.
A partir desse contexto, indagamos sobre o que constitui fazer
uma experiência inicial contra a opressão e as condições
desumanas/injustas? De onde emerge essa questão da libertação?
Afirmamos, previamente, que ambas as questões aparecem na
perspectiva hermenêutica da experiência dusseliana. A experiência
inicial que aqui assumimos, deve produzir efeitos de provocar, no
392
sujeito, alterações e transformações. Para alcançar este desígnio nos
aproximaremos da palavra experiência, que deve resistir à definição ou
conceituação da experiência, e simplesmente fazer soar a palavra
experiência, para que “possa causar certo ‘desassossego’, e disso dizer
mais outra coisa, para além do que diz, uma causa, uma abertura para
o real” (LARROSA, 2016, p. 43). Uma experiência, que segundo
Larrosa, deve fugir aos padrões de experiência, causar desassossego,
fugir da normalidade.
Neste marco, tenho a impressão de que a palavras experiência ou,
melhor ainda, o par experiência/sentido, permita pensar a educação a
partir de outro ponto de vista, de outras maneira. Nem melhor, nem
pior, de outra maneira. Talvez chamando a atenção sobre aspectos
que outras palavras não permitem pensar, não permitem dizer, não
permitem ver. Talvez configurando outras gramáticas e outros
esquemas de pensamento. Talvez produzindo outros efeitos de
verdade e outros efeitos de sentido (LARROSA, 2016, p. 38).
Manter a experiência num nível de estranhamento provoca a
abertura, a emersão de uma nova perspectiva de realidade, que tem
um efeito inovador no sujeito em formação. Em todos casos, iremos
nos deter a este aspecto formativo da experiência, principalmente no
modo de o estudante se constituir a partir de sua experiência. Para
Larrosa, quase nenhuma experiência nos acontece, o que há é uma
“destruição da experiência”, quase ninguém faz experiência, ninguém
se aventura a algo novo, falamos de lugares, de instituições e de
discursos padronizados, não se “ex-põe”: “É incapaz de experiência
aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada
lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre” (LARROSA, 2016, p. 26). Por isso,
para Larrosa (2009, p. 14, tradução nossa), “[...] a experiência é ‘isso
que me passa’. Não aquilo que passa, mas ‘isso que me passa’”.
Nessa direção, a experiência tem a ver, etimologicamente, com
um “caminho perigoso”, caminho que nos tira do lugar e nos expõe.
Exatamente o que para Dussel tem a ver com a experiência inicial, isto
é, envolver o Outro tratado como completamente Outro, como pobre,
é uma experiência inicial de todo o latino-americano. Este pobre é o
oprimido: “O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída a sua carne
sofredora”, que não consegue simplesmente manifestar a sua
opressão, através de uma luta consciente para a libertação, “eles
393
simplesmente gritam” (DUSSEL, 1995, p. 19). Muitas destas situações
estão completamente aniquiladas na história “sem deixar rastro e nem
eco delas” (ZAMORA, 2008, p. 22).
Esta experiência inicial, o thaumazein da filosofia da libertação é a
capacidade da experiência do Outro, do pobre, do excluído, da mulher,
do índio, do escravo e de tantos outros:
A origem radical de tudo não é, aqui, afirmação de si (do eu
próprio); para isso é preciso poder refletir, aceitar-se como valor,
descobrir-se como pessoa. Achamo-nos bem antes de tudo isso.
Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe
que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito – enquanto ruído,
rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de
acordo com seu sentido apenas por quem ‘tem ouvidos para ouvir’ –
indica simplesmente que alguém está sofrendo e que no íntimo de sua
dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica (DUSSEL, 1995, p. 19).
A presença do Outro, que não se entende, que não reflete sobre
a sua situação, mas que, constantemente sofre, precisa receber a
origem radical da experiência que assombra, que exige do sujeito uma
mudança de postura, que faz emergir a consciência ética, consciência
que está aliada ao compromisso da e com a libertação. É um grito que
precisa ecoar de forma responsável. A possibilidade de ter ouvidos
para ouvir, necessita do sujeito uma possiblidade de fazer a
experiência intencionalmente, uma abertura ao Outro, um deixar se
afetar pelo Outro. Esta sensibilidade pelo Outro exige consciência
ética, que acolhe o sofrimento do Outro e responde com
responsabilidade ao Outro. O “ouvinte responsável” surge quando na
experiência “tiver sentido o impacto da súplica do Outro”. (DUSSEL,
1995, p. 19). O grito do Outro sentido como súplica é anterior à
reflexão. A experiência originária da filosofia da libertação está no
Outro pobre que comove. O Outro é anterior a constituição do eu.
Num mundo de economia de mercado globalizado, o Outro é o
pobre, o que “tem fome”, aquele que precisa, antes de tudo, ser
alimentado. Porém, todos os grupos de “outros” que impedem o
curso da história do progresso e do desenvolvimento acabam por
serem alvo de aniquilação. Em primeiro plano, é preciso reconfigurar a
nossa situação de latino-americanos no processo de modernização,
que se configura no processo de globalização. A globalização tem
algumas características pertinentes no que significa pensar o Outro e
394
se comprometer como este Outro, principalmente porque o processo
mundial é a globalização que substitui a ideia de imperialismo, o
tradicional conceito de dependência parece ocultar-se dentro de uma
nova configuração e, em vez dele se tornar incapaz de expressar a
relação na globalização, ele se torna um conceito onipotente. Perde o
sentido, por isso, falar em exploração, opressão, classe social,
burguesia ou colonialismo frente a neutralidade do mundo
globalizado. Para Rosenmann, “[...] o conceito de globalização
pressupõe uma realidade neutra, uma fase ou estágio da evolução da
ordem mundial na qual estão imersos de igual forma países
dominantes e países dependentes” (ROSENMANN, 2008, p. 131,
tradução nossa).
A “globalização expressa uma nova realidade”, que segundo
Rosenmann (2008), é um conceito neutro de valores, mas que encobre
uma certa ideologia. Este processo de “desideologização” ou
“despolitização” do processo de globalização faz normalizar o
processo de concentração e centralização do capital em escala
transnacional. Não obstante, tem como ponto forte o progresso
científico induzido e expandido pela revolução tecnológica, a
incorporação de técnicas despolitizadas no processo de produção.
Sob esta visão tecnocrática, se aduz a necessidade de acelerar as
mudanças de maneira que favoreçam uma eficiente inserção global e
evita o atraso que fazia perder a oportunidade para localizar
estrategicamente em um grupo de países capazes de subir ao trem do
progresso, manifestado na robótica, na informática, na inteligência
artificial, na transformação do mercado de trabalho, na produção e no
capital (ROSENMANN, 2008, p. 132, tradução nossa)
A marcha do progresso parece que torna impossível se opor a
este fenômeno espontâneo da globalização, em que países periféricos
possam se tornar países desenvolvidos, o que se impõe é que basta
participar e seguir as normas do progresso. As políticas
governamentais de educação se justificam na perspectiva de inserção
aos modelos de desenvolvimento, ou seja, “[...] se queres estar entre
os melhores, basta modificar e aceitar os critérios que impõe a
globalização” (ROSENMANN, 2008, p. 132, tradução nossa). Segundo
Rosenmann, a ideologia da globalização neutra esbarra numa adesão
radical, e assim, “qualquer crítica tendente a mostrar défices não
395
contemplados na globalização é rejeitada em prol de um mundo feliz”
(ROSENMANN, 2008, p. 134, tradução nossa).
Nessa direção, quem é o Outro no mundo globalizado e tão
competitivo? Quem é o Outro que permite fazer uma experiência inicial
da libertação? Quem é o Outro que exige de mim e do Outro um olhar,
um ouvido responsável, que afeta a minha própria felicidade? Quem é
o Outro, estudante e jovem na América Latina? E qual é a experiência
inicial que não comprometa a satisfação de um “mundo feliz”? Estas e
outras questões pretendem dar luz à experiência inicial de libertação a
partir do Outro, que exigem de mim e, também, do Outro, uma
comoção que afeta e compromete a presença do Outro com o mínimo
de consciência ética possível para uma vida coletiva, na busca de
vivermos juntos. Trata-se da possibilidade da alteridade, de um Outro
permanente (BAUMAN, 1996), um Outro que não é apagado e
excluído, pois, “o desaparecimento da alteridade significa que vivemos
numa época pobre de negatividades” (HAN, 2017, p. 14).
A desideologização e despolitização são os primeiros efeitos de
que o Outro não é mais um compromisso político e social necessário e
exigente, mas somente na medida em que faz parte de meu mundo.
Angariado pela despersonificação do Outro e pelos meios de
comunicação, o Outro passou a ser uma conta virtual, um perfil, uma
curtida, um like, uma selfie, há alguns Outros que comovem quando
este Outro entra em meu mundo, por alguma relação casual ou de
interesse, mas que tende, devido a mobilidade da vida, a desaparecer
nos excessos de informação, nas demandas do cotidiano, nos não likes
recebidos.
A tecnocracia exige uma gama protocolar muito grande, uma
gama de sujeitos que precisam cumprir tarefas para se adaptar às
condições da economia de mercado. Há alguns outros que aparecem
vezes ou outras, em relações afetivas, em relações de trabalho, como
clientes, como terapeutas, como professores, mas normalmente não
permitem o comprometimento constitutivo. Num mundo globalizado,
de informações em massa, temos poucas experiências significativas, e
em alguns momentos temos lampejos de libertação, de
comprometimento com o Outro. O Outro pelo qual nos
comprometemos é o Outro que compartilha de algum interesse em
comum, de algum objetivo compartilhado.
396
A ausência de uma pólis faz com que não haja mais compromisso
em comum em um mundo globalizado, é cada um para si e por si. A
ausência de uma consciência ética geral impede de me comprometer
com a causa do Outro, enquanto infinitamente Outro. Trata-se da
ausência e inexistência de uma ética da responsabilidade, como nos
lembra Hans Jonas (2006). A experiência de libertação é uma
experiência dolorida, que na maioria das vezes ameaça o “mundo
feliz”, a positividade, ou na melhor das hipóteses, ameaça uma vida
feliz reduzida ao “eu” e não ao “nós”.
Experienciar os movimentos sociais, a questão ecológica, os
direitos humanos e dos animais dentro de um mundo globalizado,
exploratório e competitivo, que tem um efeito devastador sobre o
sujeito, e acaba se recolhendo e retraindo no seu mundo para tornar a
sua experiência inicial libertadora possível. A fragilidade e
dramaticidade da condição humana em um mundo globalizado se
atenua, e caso não haja um exercício constante e formativo de acordo
com suas limitações, faz jogar a criança fora com a água do banho. A
questão que se coloca é saber se o professor consegue fazer esta ou
alguma experiência pedagógica de libertação na prática educativa
contemporânea.
397
explicação, como se ele devesse ser o ‘sul’ que os orientasse” (FREIRE,
1992, p. 24).
O esforço de compreender o mundo do Outro é o problema
nuclear da educação escolar enquanto prática da libertação, e quase
continuamente muito sofrido para o educador, uma vez que exige a
transformação de compreender o mundo do outro, para a partir dele
propor a libertação com a leitura de mundo do educador (FREIRE,
1992). Este esforço epistemológico de compreender o mundo do outro
é também uma ruptura existencial que requer uma libertação mútua
do educador e educando. A capacidade do educador de se colocar no
mundo do outro, partir do mundo do outro numa linguagem do Outro
é o grande desafio pedagógico da libertação: “Trata-se de uma
revolução copernicana em pedagogia, que ainda está longe de ser
compreendida5” (DUSSEL, 2000, p. 436).
Nossa indagação inicial chega agora a vias de fato, uma vez que a
experiência inicial da filosofia da libertação se encontra afetada pela
globalização, que possui neutralidade ideológica, mediada pela
tecnologia de informação e uma tecnocracia, que torna os
gerenciamentos institucionais mediados pela tecnologia, fazendo
aparecer as marchas do desenvolvimento e do progresso. Não temos
mais uma contraposição política depois da queda do muro de Berlim,
sendo assim, não faz sentido em opor o capitalismo por uma via
socialista ou crítica ao capitalismo.
Tomando todos estes aspectos em consideração, achamos,
todavia, que problemas aparentemente anacrônicos, ‘fora da moda’,
‘superados’ para a Europa, Estados Unidos ou Japão, não o são tanto
para as vítimas no mundo periférico, na África, Ásia, América Latina ou
na Europa do Leste; para os homeless [sem-teto], marginalizados e
empobrecidos dos países centrais; para ecologistas e feministas
(DUSSEL, 2000, p. 501).
Assim sendo, parece não fazer mais sentido, na educação escolar,
falar em pedagogia da libertação no seu sentido de alteridade,
humanidade e mundanidade, conforme proposto por Dussel e Freire.
5 Importa dizer que essa incompreensão é muito atual, presente, inclusive, nos
discursos do Presidente Jair Messias Bolsonaro, este considera a perspectiva de
compreender o mundo do Outro e mostrar ao aluno como “o mundo é”, que no fundo,
se trataria de uma ideologização e politização do outro por parte do professor, que é
considerado como doutrinador.
398
Em um país que se caracteriza pela desideologização/despolitização,
nada mais “natural” do que tratar da escola como um espaço neutro
politicamente, de uma educação que seja baseada em tecnologias de
informação e das inúmeras maneiras de “inovação” e “renovação” e,
consequentemente, que desenvolva certas competências e
habilidades nos educandos. Tudo na perspectiva da funcionalidade,
mas jamais levando-se em consideração uma reflexão de cunho
filosófico. Nessa direção, como poderíamos definir uma experiência
pedagógica de libertação nesses tempos de globalização,
competitividade e exclusão a partir da América Latina?
A primeira hipótese é conseguir, epistemologicamente,
compreender a globalização como um projeto inacabado da
Modernidade, retornando aos temas “fora de moda”, e retornar a
temas como os de emancipação, a partir da compreensão do Outro,
inspirados na negatividade, na alteridade, no sofrimento e na
experiência inicial. Em termos de escola, deve-se retornar aos temas
de opressão, exclusão, injustiça, barbárie e adequação, no intuito de
se resgatar a compreensão de colonizados/colonização, em síntese,
trata-se de apresentar o legado histórico e culturalmente produzido
pela humanidade, a fim de que Auschwitz não se repita. Além disso,
esse argumento nostálgico, também retorna pelas vias ecológicas e
também na e pela educação ambiental, que urge sempre com a
politização e parece ser condizente com uma afronta ao
desenvolvimento, ao progresso e a uma vida supostamente feliz,
resultando e causando, por isso, algum tipo de sofrimento voluntário.
A segunda alternativa é manter em suspenção o discurso
totalizante, o sentido ético último da educação, e aderir a tese do fazer
o que dá para fazer. De uma forma mais circunscrita, significa não
tentar transformar o sistema educacional como um todo, mas fazer
pequenos ajustes a partir do que já está posto. Esse tipo de ação não
compromete o sujeito como um todo, mas apenas em uma
determinada região da realidade, que representa uma visão pós-
moderna e, infelizmente, aceita em nossas contradições atuais.
A globalização, a dificuldade do discurso totalizante e o
desenvolvimento tecnológico com vistas ao progresso e à satisfação
de necessidade imediatas (reais ou inventadas), impediram o
movimento de uma experiência inicial da libertação, do mesmo modo
na educação escolar, a necessidade de adaptar a carga horária às
399
condições de trabalho, a exigência curricular, mesclada com a
necessidade de adaptação tecnológica6 por parte do educador, parece
ocultar nas demandas diárias a possibilidade do aparecimento do
Outro na sala de aula. O Outro, o analfabeto, o excluído
socialmente/historicamente, é somente mais um, no movimento voraz
e supérfluo do progresso e das exigências do capital.
“Sempre teremos que ter pessoas para limpar o chão” dizem os
educadores, “a escola não me ajuda na minha tarefa de empacotador”
diz o educando, a escola deveria “preparar para o trabalho, meu filho
deveria sair com uma profissão” diz um pai. E assim, o cenário
pedagógico impede de fazer qualquer experiência inicial de libertação,
reduzindo a explicação do mesmo, a mesmidade. O Outro enquanto
pobre, encontra no professor um sujeito similar que não consegue
superar as demandas de seu dia, o professor deixa de ser professor e
passa a gerenciar aulas, passa conteúdo sem significado e sentido
algum, muitas vezes, inclusive, a disciplina e/ou conteúdo não fazem
nem sentido para o próprio professor, imagina então para o aluno.
Para Rosset (1993, p. 66),
Se a escola é feita para ensinar, então é necessário que ela ensine alguma coisa
[...]. A pedagogia acabou por suplantar a própria instrução. Temos hoje docentes
que não sabem nada, mas possuem uma misteriosa ciência da educação,
verdadeira mitologia dos tempos modernos. Resultado: desde há uma dezena
de anos vemos chegar ao ensino superior estudantes analfabetos.
400
um treinamento avançado de competências e habilidades, sempre
com o intuito de facilitar o processo, de torná-lo mais prazeroso e
flexível, na contramão da exigência, do esforço, da determinação, do
estudo demorado etc., justamente o que é a especificidade da
instituição escolar. Por isso mesmo, trata-se de uma educação que
encobre o Outro e a sua alteridade, que o reconhece como o mesmo,
na sua mesmidade. Nessa direção, a pergunta de Skliar (2003, p. 29):
“E se o outro não estivesse aí?”, faz todo sentido para o processo
educativo, pois sem o outro não seríamos nada, nem precisaríamos de
escolas.
401
CONSIDERAÇÕES FINAIS
402
inclusão é vista como privilégio de poucos e restrita a problemas
físicos, e no mar de estudantes, muitos são os excluídos, se não o são
na escola serão no mercado de trabalho. E nesta lógica perversa,
solidificamos discursos fortes, e numa autopiedade não há espaço
para o Outro enquanto Outro, somente para um eu que necessita do
Outro, para se reafirma como eu, infelizmente! Finalmente,
gostaríamos de ressaltar que o objetivo de abordar a educação escolar
e a presença do Outro, permanece ainda um caminho aberto a ser
percorrido, por mim, você, nós, o Outro e tantos outros.
Referências
403
LARROSA, J. Tremores: Escritos sobre a experiência. Tradução de
Cristina Antunes e João Wanderley Geraldi. 1. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016. (Coleção Educação: Experiência e Sentido).
_____. Experiencia y alteridad em educación. In: SKLIAR, C.; LARROSA,
J. Experiencia y alteridad em educación. 1. ed. Rosario: Homo Sapiens
Ediciones, 2009, p. 13-44. (Pensar la Educación).
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não
estivesse aí? Tradução de Giane Lessa. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
ROSENMANN, M. R. Pensar América Latina: El Desarrolo de la
Sociología Latinoamericana. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales - CLASCO, 2008.
ROSSET, Clément. A ciência da educação, mitologia dos tempos
modernos. In: KECHIKIAN, Anita. Os filósofos e a educação
(entrevistas). Lisboa: Edições Colibri, 1993, p. 63-67.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da
intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SCHÜTZ, J. A.; MOURA, L. R. de. A experiência escolar com o outro na
alteridade. Revista Igarapé, Porto Velho (RO), v.5, n.1, p. 46-60, 2017.
ZAMORA, J. A. Th. W, Adorno: pensar contra a barbárie. Tradução de
Antonio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008.
404