Ebook Educação e Pesquisa Dialogando Com A Pluralidade

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EDUCAÇÃO E PESQUISA:

DIALOGANDO COM A PLURALIDADE

1
2
Augusto Kessai Agostinho Chicava
Jenerton Arlan Schütz
(Organizadores)

EDUCAÇÃO E PESQUISA:
DIALOGANDO COM A PLURALIDADE

3
Copyright © dos autores e das autoras

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser


reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os
direitos das autoras e dos autores.

Augusto Kessai Agostinho Chicava; Jenerton Arlan Schütz (Organizadores)

Educação e pesquisa: dialogando com a pluralidade. São Carlos: Pedro


& João Editores, 2020. 404p.

ISBN: 978-85-7993-844-3 [Ebook]


978-85-7993-843-6 [Impresso]

1. Estudos da educação. 2. Educação e pesquisa. 3. Educação em


Moçambique. 4. Autores. I. Título.

CDD – 370

Capa: Andersen Bianchi


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello
(UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil);
Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil;
Marisol Barenco de Melo (UFF/Brasil): Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil)

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

4
SUMÁRIO

Prefácio 9
Adelino Chissale

UNIVERSIDADE, PESQUISA E DOCÊNCIA: 11


REFLEXÕES SOBRE O (DES)CONHECIMENTO DO ATUAL
GOVERNO
Jenerton Arlan Schütz
Cláudia Fuchs
Edinaldo Enoque Silva Júnior

A FORMAÇÃO TEÓRICA-EPISTEMOLÓGICA NA PESQUISA 31


EDUCACIONAL: DESAFIOS
Odair Neitzel

DA ÉTICA DO DISCURSO À ÉTICA DA RAZÃO CORDIAL: DUAS 45


AMPLIAÇÕES DA ÉTICA KANTIANA
Francisco Valente Fumo
Armindo Armando Nhanombe

A ACÇÃO COMUNICATIVA E A RAZÃO CORDIAL: DOIS 65


FUNDAMENTOS DA DIDÁCTICA DE FILOSOFIA NA
HIPERMODERNIDADE MOÇAMBICANA
Francisco Valente Fumo

PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY NO SISTEMA 83


NACIONAL DE EDUCAÇÃO MOÇAMBICANA
Augusto Kessai Agostinho Chicava
Izequiel Estanilau da Costa

A PRÁTICA DOCENTE NA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA 103


SOCIEDADE BRASILEIRA: REFLEXÕES EM RELAÇÃO AO
CONTEXTO ATUAL
Pâmela Pongan

CRIMINALIZAÇÃO POLÍTICA NO ESTADO NOVO: O CASO DO 121


CÔNEGO CÉSAR ROSSI, O “PARTIDÁRIO DO NAZI-FASCISMO”
Leandro Mayer

5
A CAPOEIRA NO CONTEÚDO DA DISCIPLINA DE EDUCAÇÃO 127
FÍSICA EM ESCOLAS MUNICIPAIS DO INTERIOR DA BAHIA
Fabrim Atil da Silva
Juliana Barros Ferreira
Nayara Alves de Sousa

DA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS ÀS PRÁTICAS DE FUTSAL 141


DISSEMINADAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA: UMA
NOVA ABORDAGEM
Ademilton Santos Silva
Guacyra Costa Santos
Nayara Alves de Sousa

DANÇA FOLCLÓRICA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E A 157


INCLUSÃO DE UM ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL EM
UMA ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA
Selma Rocha Ramos
Juliana Barros Ferreira
Nayara Alves de Sousa

NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: 169


UM COMPROMISSO COM A EDUCAÇÃO FÍSICA
Noeme Silva Moreira
Guacyra Costa Santos
Nayara Alves de Sousa

AVANÇOS DAS POLÍTICAS DE ENSINO TÉCNICO-PROFISSIONAL 181


EM MOÇAMBIQUE
Augusto Kessai Agostinho Chicava

A TEORIA QUEER E A SALA DE AULA: APRENDER COM O 197


DIFERENTE
Celio Silva Meira
Celeste Dias Amorim

INCLUSÃO DE UMA CRIANÇA COM ENCEFALOPATIA CRÔNICA 209


NÃO PROGRESSIVA DA INFÂNCIA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO
FÍSICA EM UMA ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA
Geilda Marcionílio dos Santos
Nayara Alves de Sousa
Juliana Barros Ferreira

6
A AVALIAÇÃO DE TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO: 225
UMA POSSÍVEL FERRAMENTA DE REORGANIZAÇÃO
COGNITIVA DO ALUNO
Adriana Paz Nunes

O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA EM MOÇAMBIQUE 237


NA IMPLEMENTAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL
E A EDUCAÇÃO
Armindo Armando Nhanombe

AS PAISAGENS NOSTÁLGICAS E O ETERNO RETORNO NO 255


POEMA SÚPLICA, DE NOÉMIA DE SOUSA
Sandra Fonseca Pinto
Carlete Maria Thomé

AS MELODIAS DAS SEREIAS: LEITURAS, TRAVESSIAS E 269


SENTIDOS
Jessé Pinto Campos
Gilcilene Dias da Costa

O LUGAR DA IDENTIDADE NA SALA DE AULA: BEYONCÉ, 285


RACISMO, ENSINO DE INGLÊS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Fernando Silvério de Lima
Ícaro Guilherme Guerra
Gisane de Oliveira Almeida Costa

A IMPORTÂNCIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA NA 305


APRENDIZAGEM DE CONTEÚDOS DA MATEMÁTICA NO ENSINO
FUNDAMENTAL II: EXPERIÊNCIA EM ESCOLA PÚBLICA
NA CIDADE DE NATAL
Heriberto Silva Nunes Bezerra

SER-SENDO PEDAGÓGICO: O BRINCAR NA PERSPECTIVA DE 321


PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM UM MUNICÍPIO DO
INTERIOR DA BAHIA
Selenita Novais Silva Sobrinho
Celeste Dias Amorim
Nayara Alves de Sousa

7
AVALIAÇÕES MATERIALIZADAS EM UMA REPORTAGEM 341
ACERCA DO INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR
POR MEIO DE COTAS SOCIAIS E RACIAIS
Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi
Maria Aparecida Resende Ottoni

O PROJETO MÃO AMIGA CAPES/PIBID COMO BENEFÍCIO 367


PEDAGÓGICO NO PROCESSO DA CONSTRUÇÃO DO PERFIL
PROFISSIOGRÁFICO DO CURSO DE PEDAGOGIA DA
UNESPAR/UV
Rosana Beatriz Ansai
Verediane Wollinger

A EXPERIÊNCIA INICIAL DO OUTRO NA PEDAGOGIA 385


LATINO-AMERICANA: UMA LEITURA À LUZ DE
ENRIQUE DUSSEL E PAULO FREIRE
Ivan Luís Schwengber
Jenerton Arlan Schütz

8
Prefácio

Vivemos num mundo cada vez mais caraterizado por diversidades,


em parte devido à globalização como um conjunto de processos e
discursos. Como um fenômeno multidimensional, a globalização tem
sido responsável por fazer chegar até nós ideias, pensamentos,
culturas, práticas e costumes que nos são distantes no espaço mas que
rapidamente podem tornar-se como que nossas criações. No entanto,
esse tornar-se como que algo nosso não é um processo linear, pois
muitas vezes resistimos porque sentimos que o que é novo destrona
em nós o que está enraizado e cristalizado: o ser humano sempre
resistiu à novidade.
A educação não está isenta do desafio de abraçar e acolher o que
é novo. É neste sentido que a pesquisa educacional torna-se crucial
para fazer sentido ao que se apresenta como diverso na sociedade.
Este volume reúne escritos de várias temáticas em educação cujo
objetivo principal é fazer da pesquisa um instrumento para estabelecer
pontes na diversidade. O volume ajuda-nos a olhar para a pluralidade
não como uma ameaça ao que estamos habituados, mas como uma
oportunidade rica de possibilidades nunca antes exploradas.
Um pouco por todo mundo, a educação está passando por teste
de ouro, desde a reorientação dos seus objetivos às reinvenções
curriculares e ensaios de práticas educativas e de formação docente
para responder aos desafios da globalização e das mudanças
climáticas. Por outro lado, vemos governos supostamente mais
conservadores - na verdade mais populistas que conservadores - a
darem pouca importância à educação comparativamente a outras
áreas. Isso parece ser um reconhecimento implícito de que uma
educação bem feita é sementeira de valores democráticos, da
solidariedade, da tolerância e do respeito pela diferença.
Efetivamente, estes valores são, muitas vezes, a antípoda do
conservadorismo populista. Este livro representa um ato de coragem
porque desafia-nos a encarar a pluralidade não como ameaça, mas
como a expressão diferenciada do ser humano que no fundo é o
mesmo.

9
A leitura deste livro desafia-nos a despirmo-nos do que nos
apegamos (teorias, metodologias e práticas educativas) para
experimentarmos algo diferente. O livro é um convite a tornarmos a
educação num instrumento de mudança social construindo pontes
sobre a diversidade.

Adelino Chissale

Doutor em Educação
Professor da Universidade São Tomás de Moçambique
Janeiro de 2020

10
UNIVERSIDADE, PESQUISA E DOCÊNCIA:
REFLEXÕES SOBRE O (DES)CONHECIMENTO DO ATUAL GOVERNO

Jenerton Arlan Schütz1


Cláudia Fuchs2
Edinaldo Enoque Silva Júnior3

INTRODUÇÃO

O ódio é tema forte e frequente na história humana. Quando um


discurso e as ações buscam interferir na dignidade humana, na
igualdade entre as pessoas, no próprio regime democrático e nos
valores que formam uma sociedade pluralista, é possível que se esteja
diante de manifestações de ódio. No caso específico do governo
brasileiro e a relação com as Universidades Públicas, essa
manifestação fica evidente. Este ódio dirigido às universidades, à
pesquisa, aos professores e ao conhecimento, traz à luz o ideário do
governo marcado pelo obscurantismo, anti-intelectualismo e
anticientificismo, o mesmo afronta inúmeras descobertas e estudos
fundamentais para a humanidade com crenças baseadas na religião e
na negação da ciência.
Examinar os ataques endereçados às universidades, à
dimensão da pesquisa e aos professores é o objetivo deste escrito.
Desse modo, realizar-se-á um movimento de análise e interpretação
crítica dos inúmeros fatos, das entrevistas, falas, tweets e projetos
envolvendo o atual governo e a educação pública, além da dimensão
da pesquisa e da docência.
Nesse sentido, considera-se que os julgamentos do governo,
muitas vezes, sem fundamentação ou aprofundamento algum, trazem
desdobramentos sérios, entre eles, apontamos três de seus mais
notáveis abusos, respectivamente: i) os ataques contemporâneos à
educação (em seus diferentes níveis), pesquisa e docência; ii) o

1 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUÍ). E-mail: [email protected].


2 Mestranda em Educação nas Ciências (UNIJUÍ. E-mail: [email protected].
3 Mestre em Educação (UNOESC). E-mail: [email protected].

11
relativismo das pesquisas e dos conhecimentos científicos; iii) o de
tornar as universidades em espaços de (suposta) balbúrdia e de
produção/pesquisa irrelevante.
Nessa direção, para dar de tal empreitada, o estudo analisará, no
primeiro momento, os ataques endereçados contemporaneamente à
educação brasileira, isso, com o intuito de elucidar o enorme desprezo
que o governo tem para com o conhecimento e o professor; por
conseguinte, o estudo apresentará alguns argumentos do presidente,
Jair Bolsonaro, e do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, sobre
a “balbúrdia” e a irrelevância das pesquisas que ocorrem nas
universidades brasileiras, isso, a fim de demonstrar que tais
argumentos não condizem com a veracidade dos fatos e a realidade da
pesquisa científica realizada nas universidades; por fim, tematizar-se-á
a importância da dimensão da pesquisa na universidade e seus
desdobramentos para a sociedade, considerando que as universidades
de pesquisa possuem um papel crucial, elas não só fornecem um
ensino gratuito de qualidade e formam bons profissionais, mas
principalmente atuam como locais de elaboração de conhecimento, de
pensamento, impulsionando o desenvolvimento científico,
tecnológico e intelectual de qualquer país.

OS ATAQUES CONTEMPORÂNEOS À EDUCAÇÃO BRASILEIRA:


DESPREZAR O CONHECIMENTO, MENOSPREZAR O PROFESSOR

Que a educação (em seus diferentes níveis) vem sofrendo


inúmeros ataques do atual governo já não é mais novidade. A
intensificação para se aplicar o projeto político-ideológico
desenvolvido pelo governo, de caráter de extrema direita, já chegou
ao Planalto Central. O projeto da “Escola sem Partido”, por exemplo,
defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, visa
implantar nas escolas um único partido e um único projeto de
educação, a saber, o de seu domínio ideológico. Ideologia essa que
esbanja conservadorismo e falta de conhecimento sobre os processos
educacionais, propagando-se, com isso, desprezo, ódio e terror para
com o patrimônio da sociedade que é a educação pública, laica,
gratuita, universal, democrática, republicana.
Além disso, a ameaça imposta pelo atual governo no anseio de
acabar com cursos das ciências humanas, apenas demonstra o

12
desprezo do governo pelo conhecimento, pela ciência, pelo
pensamento. Nesse sentido, o governo, com apelo moral, concentra
seus ataques às ciências humanas e sociais, na filosofia, história e
sociologia, justificando que essas áreas não dão um retorno imediato
para a sociedade e nem melhoram a mesma, diferentemente das
Engenharias e outras áreas mais.
Outrossim, refletir profundamente sobre a quase total abolição
desses cursos deveria ser uma preocupação primária de todos. Uma
vez que o desconhecimento filosófico, histórico, sociológico causa um
efeito social muito negativo, a saber, os cidadãos não se reconhecem
como membros de uma comunidade porque perderam as suas
referências comuns.
Parece-nos, diante desse contexto, que os cidadãos dos países
democráticos (por exemplo, o Brasil) não possuem a menor noção da
longa luta de seus antepassados para conseguir este tipo de sistema,
enquanto que, sob os presentes ataques à educação e docência, os
imigrantes poderão desconhecer, ao mesmo tempo, a história de seu
país e a do de adoção. É por isso que todos aqueles que adentram o
mundo humano devem (ao menos deveriam) aprender que o mundo
não nasceu democrático e republicano, ou seja, a democracia e a
república não são algo dado ou espontâneo, mas que se conquistou a
duras penas, com rupturas revolucionárias.
Além disso, o que pode vir a acontecer em um país quando os
cidadãos não têm em comum nenhum acervo cultural? Já não se
poderá viver em uma sociedade coerente e organizada, mas sim em
uma de vários “grupinhos justapostos”. Por isso, deve-se recordar que
todos os regimes autoritários se destacaram por querer impor a
amnésia histórica a seus súditos. Convém-lhes, por exemplo, que a
história comece com eles e que seja transmitida a sua versão do
passado, uma bela analogia à proposta do atual governo.
Não bastasse, para o atual governo, os professores são
denominados de doutrinadores e que apenas satisfazem e impõem as
suas visões político-ideológicas em sala de aula, tal como é
apresentado no Projeto da Escola sem partido.
Para o atual governo, as denominadas “práticas de doutrinação
política e ideológica nas escolas” seriam decorrentes da base teórica
marxista, gramsciana e, principalmente, a freireana seria a que teria
influenciada a pedagogia brasileira. Em um artigo presente no site do

13
Programa da Escola sem Partido4, o colaborador Rodrigo Constantino
acusa “a educação contemporânea” de ser “uma máquina de formar
alienados, aqueles que vão depois defender o PT e o PSOL”. Sem
distinção, transfere a responsabilidade por todos os problemas da
educação à esquerda brasileira. E quando não há o que ser transferido,
os defensores/adeptos os criam. É o caso da distorção do conceito de
ideologia que promovem, revelando a incapacidade de seus
defensores de reconhecerem que o projeto em vigor se coloca,
também ele, sob perspectiva ideológica. Semelhante absurdo ocorre
com a equivocada expressão “ideologia de gênero”, cunhada para
subverter as discussões sobre gênero e atribuir a elas uma conotação
pejorativa.
Na mesma direção, em entrevista à repórter Ingrid Fagundes5, o
advogado Miguel Nagib afirma que, no Brasil, quem promove, de
forma sistemática e organizada, a doutrinação político-ideológica em
sala de aula, com apoio teórico (Gramsci, Althusser, Freire, Saviani,
etc.), político (governos e partidos de esquerda, PT à frente),
burocrático (MEC e secretarias de educação), editorial (indústria do
livro didático) e sindical é de esquerda.
Estas e outras entrevistas, além de artigos de opinião,
definição de objetivos e justificativas do Programa – considerados
todos isentos de qualquer ideologia – encontram-se disponíveis no site
do movimento. Na seção sobre os objetivos, aliás, além de instruir os
pais e alunos sobre os procedimentos que devem ser seguidos para
denunciar os professores, os idealizadores reforçam que o site foi
criado “para dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a
imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a
instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários. E o modo de fazê-lo é divulgar o testemunho das vítimas,
ou seja, dos próprios alunos”. Afirmam que a luta é “pela
descontaminação e desmonopolização política e ideológica das
escolas”.
Convém destacar, ainda, a crítica que os defensores do
movimento Escola sem Partido endereçam ao documento da Base

4Disponível em: http://www.programaescolasempartido.org/.


5 A entrevista completa está disponível em: https://odia.ig.com.br/_ conteudo/
noticia/brasil/2015-09-06/escola-sem-partido-quer-fim-da-doutrinacao-de-
esquerda.html.

14
Nacional Comum Curricular (BNCC), para os quais novamente a marca
da esquerda brasileira aí é invocada. O Deputado Rogério Marinho, o
mesmo que criou o Projeto de Lei n. 1411/20156, “tipifica o crime de
Assédio Ideológico e dá outras providências”, entre elas a “pena-
detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa”.
Além disso, em seu § 1°, acrescenta que “se o agente for
professor, coordenador, educador, orientador educacional, psicólogo
escolar, ou praticar o crime no âmbito de estabelecimento de ensino,
público ou privado, a pena será aumentada em 1/3” e, no § 2º, que “se
da prática criminosa resultar reprovação, diminuição de nota,
abandono do curso ou qualquer resultado que afete negativamente a
vida acadêmica da vítima, a pena será aumentada em 1/2”. Outro ponto
que merece destaque é a opção de acesso no site do “Escola sem
Partido” denominada de “Síndrome de Estocolmo7”. Nela, os
idealizadores alegam que os alunos são vítimas de um “sequestro
intelectual” que os tornariam reféns de seus professores/
doutrinadores.
Numa linguagem bastante simples, o projeto “Escola sem
partido” apresenta objetivos claros que se valem – ao mesmo tempo
que expressam – a polarização da política brasileira, acirrada com as
eleições presidenciais de 2018. Desse modo, difunde, no âmbito
educacional, uma nova concepção de escolarização, um novo discurso
sobre o lugar e ofício do professor, inclusive com a possibilidade de
delação.
Além disso, como lembra Bittencourt (2017), trata-se do
cerceamento da liberdade de cátedra do professor na realidade
educacional brasileira mediante o projeto ideológico da Escola sem
Partido, que apregoa o fim do partidarismo político na atuação
docente em sala de aula. Contudo, o citado projeto mascara suas reais
intenções, que é a de eliminar da atuação do professor o seu papel de
estimulador da reflexão crítica sobre os problemas sociais de nossa
realidade política, auxiliando assim os estudantes a compreenderem
as nossas contradições estruturais. A ideologia da Escola sem Partido
defende a neutralidade pedagógica, mas a própria construção

6 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?


idProposicao=1229808.
7 Disponível em: http://escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo.

15
curricular já denota ausência de neutralidade, pois diversos critérios e
interesses ocultos se encontram subjacentes no currículo pedagógico.
Na mesma direção, podemos considerar que é preocupante a
declaração do ministro da educação, Weintraub, que aparentemente
pretende criar condições para a liberdade de expressão. Para ele, as
universidades têm logicamente o direito de se expressar, desde que o
desempenho acadêmico esteja bom. “Só tomaremos medidas dentro
da lei. Posso cortar e, infelizmente, preciso cortar de algum lugar” 8,
afirmou. “Para cantar de galo, tem de ter vida perfeita”. Contudo, com
esse tipo de fala e ato, pretende-se, unicamente, restringir a liberdade
de pensamento e promover o patrulhamento ideológico dentro dessas
instituições de ensino.
Ademais, os sucessivos cortes nas políticas educacionais – seja na
educação básica ou no ensino superior – e a ameaça de acabar com a
vinculação constitucional que assegura os recursos para a educação
evidenciam o fidedigno desejo pelo viés privatista do governo. Trata-
se de um governo que quer entregar aos grandes empresários a
educação conquistada pelo povo brasileiro. É exatamente por isso que
fomenta as políticas de vouchers, a educação domiciliar, o projeto
escola sem partido, incentiva a agressão à gestão democrática e à
autonomia das escolas/universidades, defende a militarização escolar;
sustenta a inoperância inescrupulosa do Ministério da Educação, que
afeta a qualidade do atendimento público nas escolas, institutos
federais e universidades; defende a revogação de inúmeros conselhos
de acompanhamento social, impondo inúmeros retrocessos à gestão
democrática.
Percebe-se, a partir do contexto supracitado, que tudo não passa
de um pacote de ideias, projetos e concepções “bem articulado”, que
visa atingir todos os níveis da educação, além de desprezar o
conhecimento produzido pelas instituições, sem elas, não há ciência,
sem a escola a ciência seria impossível. Desprezar a autoridade
docente também está neste pacote do governo, denunciar os
professores, vigiá-los, puni-los, considerá-los doutrinadores e

8 A notícia completa está disponível em: https://www.correiobraziliense.


com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2019/04/30/ensino_
ensinosuperior_interna,752333/mec-mira-universidades-por-balburdia-e-corta-30-de-
verba-da-unb.shtml.

16
disseminadores de práticas político partidárias ou ideológicas é
lamentável.
Não bastasse, em recente fala do Ministro da Educação,
Weintraub confirmou que o corte (e não mais contingenciamento) na
educação de R$ 926 milhões foi para ser utilizado no pagamento das
emendas parlamentares. Isso mostra mais a ligação entre a reforma da
previdência e os ataques à educação básica e superior9. Esse
remanejamento atinge, na área da Educação, ações como o apoio à
manutenção da educação infantil, concessão de bolsas na educação
superior e básica, valorização docente, investimento na educação
pública e apoio ao funcionamento de instituições federais de ensino.
Ademais, no dia 17 de agosto de 2019, inúmeros meios de
comunicação vincularam a notícia de que o MEC irá utilizar o IDH, a
nota de curso e a área prioritária para conceder bolsas de pós-
graduação. Conforme o jornal “Estadão”, o novo sistema de escolha
levará em conta o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos
municípios onde as universidades estão localizadas, além do teor das
pesquisas e a nota obtida pelos cursos nos últimos anos. Terão
prioridade aquelas que se encaixarem em áreas consideradas
estratégicas pela gestão Jair Bolsonaro, como cursos de Saúde e
Engenharias. Bolsas de doutorado terão preferência em relação às de
mestrado10.
Ainda na mesma notícia, para o presidente da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Anderson
Correia, cursos como Medicina, Odontologia, Engenharias e
Computação devem estar no grupo considerado prioritário. Já as
pesquisas que ele classifica como de “humanas puras” serão menos
beneficiadas. Nesse grupo, estão Filosofia e Ciências Sociais, para o
presidente, “priorizar uma área não é matar outra”.
O problema que daí decorre é favorecer apenas cidades em que o
indicador do IDH seja mais alto e desfavorecer áreas e regiões em que
o IDH é menor. Além disso, a área das ciências humanas pode ser muito

9 Notícia divulgada pela Folha de São Paulo no dia 16 de agosto de 2019. Ver mais em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/weintraub-admite-ser-corte-r-926-
milhoes-do-orcamento-da-educacao-remanejados-para-pagar-emendas.shtml.
10 A notícia completa está disponível em: https://educacao.estadao.com.br/

noticias/geral,mec-usara-idh-nota-de-curso-e-area-prioritaria-para-conceder-bolsas-
de-pos,70002971476?fbclid=IwAR2lsVP6-10YjcjU_DGuKMX4edzIntYsWNDHA8
WLp2ODoIQH45W5ZcpjM00.

17
prejudicada com o direcionamento de bolsas para outras áreas. Na sua
conta de Twitter, no dia 26 de abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro
postou a seguinte mensagem: “O Ministro da Educação
@abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades
de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão
afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao
contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina” (grifo
nosso).
Decorrem daí três fatores importantes e que são
desconsiderados pelo governo: Em primeiro lugar, a educação em
todos os seus níveis não pode e não gera retorno imediato de seu
investimento: trata-se de um investimento nacional para as gerações
futuras, um investimento a longo prazo; por conseguinte, o mundo
contemporâneo requer não apenas competências técnicas e
especializadas, mas uma ampla formação intelectual e generalizada
para os cidadãos, somente assim terão condições plenas para
participares, futuramente, da esfera decisória de poder; por fim, não
cabe aos políticos, em sociedades democráticas e republicanas, decidir
o que constitui um bom ou um mau, melhor ou pior saber. A avaliação
dos conhecimentos e de sua utilidade não deve ser submetida à bitola
da conformidade a uma ideologia dominante e única.
Não é por acaso que ideias como a da Terra Plana tem ganhado
número cada vez maior de adeptos. Os “anti-intelectuais” questionam
a eficácia de vacinas e rejeitam veemente a Teoria da Evolução de
Darwin. No campo pedagógico, os “anti-intelectuais” (que nunca
pisaram em uma sala de aula, exceto como alunos) querem erradicar
as ideias de Paulo Freire das escolas, uma vez que acreditam que as
escolas brasileiras não respeitam os valores tradicionais da família
(umbigo familiar/convicções familiares), e que as instituições de ensino
são responsáveis por promover a “ideologia de gênero”, o
“cientificismo” e a “doutrinação comunista”. Se não bastasse, entre
os “anti-intelectuais” está na moda ser “politicamente incorreto”, por
isso chegam a negar fatos como o massacre de indígenas durante o
período colonial, a escravidão e o golpe militar de 1964.
Portanto, a trajetória histórica da educação no Brasil mostra que
ela nunca foi prioridade no País, ela apenas é bem destacada nos
discursos e slogans políticos, contudo, como vimos, o atual governo
está abusando dela. A multifacetada realidade brasileira e os

18
problemas que a educação brasileira enfrenta, desde o sucateamento
das escolas públicas, a precariedade da formação e valorização dos
professores que nelas atuam, à desigualdade social, econômica e
cultural dos alunos, demonstra o descaso e desprezo para com a
educação pública no País. A glória de todo país está no modo de como
o governo trata a escola pública, as universidades e os seus
professores.

SOBRE A BALBÚRDIA E A IRRELEVÂNCIA DAS PESQUISAS NAS


UNIVERSIDADES BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA ATUAL
CONJUNTURA BRASILEIRA

Os primeiros meses do governo de Bolsonaro foram e são


marcados por inúmeras críticas endereçadas à classe dos professores,
à pesquisa, às universidades e à ciência brasileira. Para Abraham
Weintraub, Ministro da Educação, as universidades brasileiras
promovem balbúrdias, eventos ridículos e possuem um baixo
desempenho acadêmico. Segue-se a isso, a defesa do ministro pelo
corte orçamentário de inúmeras instituições públicas, que na verdade,
foi expresso pelo ministro como um mero contingenciamento de
verbas, porém, como vimos, no dia 16 de agosto de 2019, Weintraub se
retratou e disse que foi, realmente, um corte de 926 milhões de reais e
que este valor foi destinado para emendas parlamentares.
Lembramos que no dia 22 de maio de 2019, o ministro Weintraub
foi convocado para comparecer ao Congresso para esclarecer os
contingenciamentos anunciados na verba das universidades e
instituições federais de ensino superior. Na ocasião, o ministro se
recusou a pedir desculpas por usar o termo “balbúrdia” ao se referir as
universidades federais. “Eu não tenho problema nenhum em pedir
desculpas, mas esse não”, disse Weintraub em resposta ao deputado
Marcelo Freixo do PSOL11.
Não bastasse, a afirmação do presidente da República durante
entrevista à rádio Jovem Pan, na noite de segunda-feira, 8 de abril de
2019: “[...] e nas universidades, você vai na questão da pesquisa, você
não tem, poucas universidades têm pesquisa, e, dessas poucas, a

11 A notícia completa está disponível em: https://www.correiobraziliense.com.


br/app/noticia/politica/2019/05/22/interna_politica,756608/ministro-da-educacao-
recusa-a-se-desculpar-por-usar-o-termo-u201cbalb.shtml.

19
grande parte tá na iniciativa privada, como a Mackenzie em São Paulo,
quando trata do grafeno”.
Percebe-se, a grosso modo, a crítica de que nada de bom se
produz nas universidades brasileiras, que as universidades brasileiras
não possuem pesquisa de ponta. Ou então, que nelas só se produz
balbúrdias e coisas desinteressantes (de segundo plano/secundárias).
Tais críticas fazem com que a pesquisa, a ciência e a tecnologia fiquem
à mercê de investimentos públicos, inclusive, desamparadas para
qualquer continuação e melhoria.
Em outra notícia divulgada pelo “El País”, intitulada: “Não tenho
dinheiro para um tubinho de plástico: os cientistas que estão saindo do
Brasil12”, afirma-se que existe uma crescente fuga de cérebros do
Brasil, ou seja, é um dos impactos mais imediatos e visíveis dos cortes
no orçamento em ciência e tecnologia promovidos pelo Governo
Federal nos últimos anos, algo que vem congelando pesquisas e
bolsas, ameaçando laboratórios de fechar.
Para se ter uma ideia da imensidão do problema, só em 2017,
conforme a mesma notícia supracitada, o Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), responsável por
dezenas de unidades de pesquisa, laboratórios em universidades e
bolsas de estudos cedidas pelo CNPQ, sofreu um corte de 44% do
orçamento que estava previsto para este ano. A previsão era de 5,8
bilhões de reais, mas apenas 3,3 bilhões foram liberados pelo Governo
de Michel Temer (PMDB). A perspectiva é de que em 2018 haja um
corte de mais 25%. Em 2010, quando a pasta de Comunicações ainda
não estava incorporada ao ministério, o orçamento teve um pico de
aproximadamente 8,6 bilhões de reais — corrigido pela inflação, o
equivalente a 10 bilhões de reais hoje.
Outrossim, importa destacar que tirar o dinheiro de ciência e
tecnologia não resolve o problema financeiro do País. Analogamente,
é como se alguém tivesse um problema financeiro em casa e decidisse
parar de tomar o remédio para o coração que custa um real, ao invés
de cortar as contas com viagem, restaurante ou compras
desnecessárias para o momento. Esta é a sensação e momento que
vive a ciência brasileira, infelizmente.

12 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/28/ciencia/1511838032_059250.


html.

20
No dia 30 de Abril, o “Estadão” publicou na versão digital, uma
notícia com as falas do ministro da educação em relação às
universidades, professores, pesquisa e ciência no País13. Contudo, na
mesma semana, o “Estadão” mostrou que as universidades acusadas
de “balbúrdia” pelo atual governo tiveram melhora significativa no
principal ranking universitário internacional, o Times Higher Education
(THE).
Conforme o documento “Pesquisa no Brasil: um relatório para a
CAPES da Clarivate Analytics14” (tradução nossa), o Brasil produz
trabalhos muito citados e conseguiu bons índices no top 1% do mundo.

Além de analisar o desempenho médio das pesquisas brasileiras usando o


impacto médio de citações, podemos avaliar a medida em que pesquisadores
brasileiros publicaram pesquisas de alto impacto. Isso é feito analisando a
porcentagem de artigos brasileiros no top 1% e top 10% dos trabalhos mais
citados.

Notavelmente, entre 2011 e 2016, o percentual de artigos brasileiros nos


primeiros 1% dos artigos mais citados aumentou rapidamente para atingir a
média mundial (Figura 4). Em termos absolutos, a produção de artigos do Brasil
que exceder esse limite mais do que dobrou de 206 em 2011 para 483 em 2016.
No mesmo período, os jornais brasileiros no top 10% só mostraram aumentos
modestos, aproximadamente proporcionais ao aumento do número total de
artigos brasileiros publicados (Figura 5) (CROSS; THOMSON; SINCLAIR, 2017, p.
10, tradução nossa)15.

Sobre as figuras citadas, decidimos em apresentar as originais do


próprio documento, seguindo a análise feita por Cross, Thomson e
Sinclair, (2017, p. 10). Isso, com o intuito de demonstrar a falta de

13 Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-


de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579.
14 Original: “Research in Brazil: a report for CAPES by Clarivate Analytics”.
15 Original: “In addition to analyzing the average performance of Brazilian research using

the average citation impact we can assess the extent to which Brazilian researchers have
published very high-impact research. This is done by analyzing the percentage of Brazilian
papers in the world’s top 1% and top 10% of most highly-cited papers”.
“Remarkably, between 2011 and 2016 the percentage of Brazilian papers in the world’s
top 1% of most highly-cited papers has increased rapidly to reach the world average
(Figure 4). In absolute terms Brazil’s output of papers that exceed this threshold has
more than doubled from 206 in 2011 to 483 in 2016. Over the same period Brazilian papers
in the top 10% has only shown modest increases, roughly proportional to the increase in
the total number of Brazilian papers published (Figure 5)”.

21
conhecimento por parte do atual governo quando este se refere às
pesquisas e produções realizadas no País e a importância das mesmas
em escala mundial.

Figura 1 – Porcentagem de artigos brasileiros no 1% dos artigos


mais citados no mundo entre 2011 e 2016 (média mundial
marcada pela linha pontilhada).

Fonte: Cross, Thomson e Sinclair, (2017, p. 10).

Figura 2: Porcentagem de artigos brasileiros entre os 10% mais citados


no mundo entre 2011 e 2016 (média mundial marcada pela linha
pontilhada).

Fonte: Cross, Thomson e Sinclair, (2017, p. 10).

Percebe-se, desse modo, um certo desconhecimento, por parte


do atual governo, dos índices e produções realizadas nas
universidades do Brasil e no mundo. O total desprezo pela pesquisa
realizada e, consequentemente pelos resultados dela provenientes,
somente demonstram a falta de realidade do que está acontecendo,
de fato, nas universidades e instituições de pesquisa do País. Não
bastasse, de acordo com a mesma produção realizada pela Clarivate
Analytics a pedido da CAPES, o Brasil, no período de 2011-2016, publicou
mais de 250.000 artigos na base de dados Web of Science em todas as

22
áreas do conhecimento, correspondendo à 13ª posição na produção
científica global, num total de mais de 190 países.
Para o presidente da Academia Brasileira de Ciência, Luiz
Davidovich, físico e professor da UFRJ, “Mais de 95% das publicações
referem-se às universidades públicas, federais e estaduais. O artigo
lista as 20 universidades que mais publicam (5 estaduais e 15 federais),
das quais 5 estão na região Sul, 11 na região Sudeste, 2 na região
Nordeste e 2 na Centro-Oeste16”. Além disso, para o Coordenador do
projeto Métricas, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp), o professor Jacques Marcovich, ex-reitor da USP
(1997-2001), das 20 universidades que mais publicam no Brasil, não há
nenhuma privada17, contrapondo, justamente, a fala do presidente de
que há pouca produção nas universidades públicas e pesquisas “boas”
em instituições privadas.
Nessa direção, podemos considerar que as razões apresentadas
pelo ministro para os cortes na pasta da educação, além de não
corresponderem à veracidade dos fatos, como vimos no tocante ao
desempenho acadêmico, não se qualificam como razões legítimas. A
despeito de não ter o ministro detalhado exatamente os eventos que
interpreta como “balbúrdia” e “ridículos”, temos duas indicações: as
menções a eventos com presença de “sem-terras” e de “gente
pelada”.
Por extrapolação, digamos, o ministro se referia a eventos com
uma natureza de reflexão e expressão política, num caso, e artística,
no outro. Se essa interpretação é razoável, então de duas uma: ou o
ministro só quer eliminar da universidade o seu caráter de espaço do
pensamento crítico, da experimentação livre – das ciências às artes, da
mecatrônica à antropologia -, reduzindo-a à função escolar de mero
local de transmissão de informação, ou então ele se arvora a função de
supervisor ideológico.
O que a ciência brasileira precisa não é de uma imposição de
pensamento único, nem de ódio, nem de perseguição e difamações
das mais diferentes origens. O que a ciência brasileira precisa é de
investimento público e de possibilidades de avanço, aperfeiçoamento

16 A notícia completa está disponível em: http://www.abc.org.br/2019/04/15/


universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/.
17 Ver mais em: http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-

por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/.

23
e aprofundamento de pesquisas, inclusive para difundir a diversidade
e a pluralidade de pensamentos, para o bem da universidade, da
ciência, da tecnologia e da sociedade como um todo.

A PESQUISA COMO ATIVIDADE FUNDAMENTAL NAS


UNIVERSIDADES/PARA AS SOCIEDADES: A CRÍTICA DA CRÍTICA

As universidades são lugares onde as pessoas se encontram para


pensar em conjunto. Sem o pensamento em diálogo com os outros
não pode haver juízo informado, nem possibilidade de ação moral ou
de ação coletiva.
A educação (em seus diferentes níveis) nos dá um espaço
protegido dentro do qual podemos pensar contra a opinião recebida:
um espaço para questionar e desafiar, para imaginar um mundo de
diferentes perspectivas (para além da extensão do próprio umbigo),
para refletir sobre nós próprios na relação com os outros e, ao fazê-lo,
compreender o que significa assumir responsabilidade pelo mundo
comum.
É tarefa, também da universidade, assegurar que tal espaço
permaneça aberto e acessível a todos, independentemente dos
antecedentes de cada um. Mas, só pode fazê-lo se não se enclausurar
no espaço que disponibiliza. É preciso manter presente que o
pensamento é discursivo, que pensar é uma atividade heurística e
exploratória, imprevisível nos seus resultados, incerta e
indeterminada.
Num mundo profundamente dividido, pensar em conjunto talvez
seja o nosso recurso mais válido, e a universidade (e as escolas em
geral) talvez seja um dos poucos lugares dentro dos quais esse recurso
do pensamento pode ainda encontrar um valor incondicional e
humano. Para Dalbosco e Fávero (2017, p. 15):

Enquanto patrimônio social e cultural de imensa grandeza, historicamente, a


universidade se caracterizou como a instituição responsável pela produção e
pela transmissão da experiência cultural e científica da sociedade bem como pela
formação de competentes recursos humanos, imprescindíveis para o
desenvolvimento científico e tecnológico das nações e para o avanço das
sociedades.

Desse modo, na especificidade da universidade, o pensamento


acontece nas três dimensões consideradas imprescindíveis e

24
indissociáveis: a pesquisa, o ensino e a extensão. Pelo fato do presente
escrito focar nas críticas endereçados à dimensão da pesquisa, iremos
dar ênfase apenas a essa dimensão, tomando-a como aspecto
fundamental para as sociedades democráticas e republicanas.
Um professor de universidade, envolvido com as atividades de
pesquisa é, necessariamente, um especialista e atualizado em sua área
de conhecimento/formação, por isso, está constantemente sendo
avaliado e questionado pelos seus pares da comunidade científica em
que está inserido. Não obstante, podemos afirmar que a própria
validação do conhecimento científico depende de uma certificação no
âmbito da comunidade científica. Ou seja, não se produz qualquer
coisa e de qualquer jeito nas universidades, tal como supõe o atual
governo.
Sendo a universidade um espaço de constituição e construção do
pensamento livre, reflexivo e crítico, ela tem o dever e o desafio de
contextualizar e indagar-se sobre os rumos do desenvolvimento
científico e tecnológico, a fim de evitar, como lembra Santos (2003),
de reforçar as visões parciais, unilaterais e comprometedoras de um
diagnóstico mais acurado.
Nesse sentido, diante dos inúmeros ataques provenientes do
atual governo, a passagem de Dalbosco e Fávero (2017) elucida as
consequências para o âmbito universitário, a saber, a perda da
autonomia e da liberdade se faz sentir na forma como está sendo
(re)organizada a racionalidade instrumental da universidade, a saber,
a implementação de uma estrutura vertical e centralizada de
administração, substituindo as estruturas democráticas de gestão; o
fim da estabilidade dos docentes e demais funcionários; o
estabelecimento de mecanismos de controle e de avaliação da
produtividade; a eliminação ou reorganização das atividades que não
agregam valor econômico, ou imediato; a desqualificação e posterior
eliminação das áreas de conhecimento que não estão alinhas às
demandas do mercado; a progressiva eliminação da liberdade de
produção acadêmica e da liberdade de investigação; o direcionamento
da pesquisa para as demandas de interesse das empresas e do
mercado; o enxugamento e flexibilização dos currículos de acordo
com as exigências da clientela; enfim, a transformação da educação
superior em um negócio e consequente mercantilização das
universidades.

25
Ademais,

A pesquisa nas universidades não é um mal necessário, não é um bem


desnecessário, ela é o germe da evolução, ela é um bem impreterível e
profundamente necessário[...]. A pesquisa nem sempre melhora a didática dos
professores (qualidade esta que de algum modo pertence à categoria dos
talentos naturais), mas sempre melhora o conteúdo desta didática, a sua
substância, a essência de sua mensagem. A pesquisa coloca o saber de quem
ensina num contexto mais amplo, mais rico, define seu contorno, unifica,
acrescenta nuanças, lhe dá versatilidade, relevo, vida, alegria [...] (TSALLIS, 1985,
p. 570).

Para Severino (1996), na universidade, ensino, pesquisa e


extensão efetivamente se articulam, mas a partir da pesquisa, ou seja,
só se aprende, só se ensina, pesquisando; só se presta serviços à
comunidade, se tais serviços nasceram da pesquisa. O professor
precisa da prática da pesquisa, para ensinar eficazmente; o aluno
precisa dela, para aprender eficaz e significativamente; a comunidade
precisa da pesquisa, para poder dispor de produtos do conhecimento;
e a universidade precisa da pesquisa, para ser mediadora da educação.
Eis a importância da pesquisa.
Dessa maneira, a pesquisa deve estar alicerçada na
responsabilidade, na ética e na solidariedade social. Se quisermos ser
responsáveis pelo futuro de nosso país, então devemos refletir sobre
a ciência, direcionando-a ao agir consciente e ético, pois de nada serve
a sabedoria se ela não colaborar para um mundo mais justo, solidário
e harmônico. Afinal, é por isso que se faz pesquisa, uma vez que a
aposta de todo pesquisador é que o mundo continue, se aperfeiçoe e
se aprofunde.
Importa destacar, na contramão dos discursos do atual governo,
que ninguém se torna pesquisador, cientista, se não dominar os
conhecimentos já existentes na área em que ele se propõe a ser um
investigador, a fazer ciência. É isso que o professor pode fazer e que
só a universidade sabe fazer. Por isso, concordamos com Bujes que a
pesquisa, provém quase sempre “[...] de uma insatisfação com
respostas que já temos, com explicações das quais passamos a
duvidar, com desconfortos mais ou menos profundos em relação a
crenças que em algum momento, julgamos inabaláveis. Ela se constitui
na inquietação” (BUJES, 2007, p. 16).

26
Desse modo, a pesquisa é um conjunto de ações, propostas para
encontrar a solução de um ou mais problemas. A pesquisa se realiza
quando temos um problema e não temos informações suficientes para
solucioná-lo de imediato. Na esteira do pensamento freireano, “[...]
pesquiso para constatar, contatando intervenho, intervindo educo e
me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e
comunicar ou anunciar a novidade” (FREIRE, 1999, p. 32).
É por meio da pesquisa que professores e pesquisadores
produzem referenciais de objetividade para o mundo humano, é por
meio dela que se conserva a preocupação com a validade e a
veracidade, com o rigor e a consistência metodológica. É a pesquisa
que possibilita validar os conhecimentos e submetê-los à avaliações e
questionamentos de determinada comunidade científica. Da
universidade espera-se, mormente, que consiga formar profissionais e
pesquisadores com sólidos valores éticos e de cidadania e que gere
conhecimento – ciência, tecnologia, humanidades e artes – voltado à
solução de problemas relevantes para a humanidade e para a
sociedade que a financia.
As universidades de pesquisa possuem um papel crucial na
sociedade, elas não só fornecem um ensino de qualidade e formam
bons profissionais, mas principalmente por atuarem como locais de
elaboração do pensamento e de conhecimento, impulsionando o
desenvolvimento científico, tecnológico e intelectual de qualquer país.
Lembramos que toda pesquisa realizada nas universidades se
torna um produto. Esse mesmo produto vai ser destinado para a
sociedade de maneiras diversas, ou seja, pode ser na forma de recursos
humanos, de trabalhos científicos, de tecnologias, de inovações, de
serviços. Contudo, tudo provém de uma dimensão: a pesquisa. Não
obstante, nem todos os produtos da pesquisa são entregues
imediatamente, alguns duram décadas para estarem prontos e
disponíveis de forma segura e ética para toda a sociedade usufruir.
Importa dizer que no Jornal da USP há uma reportagem completa
sobre a pesquisa no Brasil, publicada em 5 de abril de 2019. O título da
reportagem é: “Fábricas de conhecimento: o que são, como
funcionam e para que servem as universidades públicas de pesquisa”.
Nela são apresentados dados, informações relevantes, pesquisas
realizadas e elementos essenciais para se compreender o que

27
realmente acontece em uma universidade de pesquisa18. Dessa forma,
o conteúdo do jornal contradiz todas as afirmações feitas pelo atual
governo e expõe a veracidade sobre a pesquisa no Brasil.
Não existem países socialmente equitativos sem uma educação
republicana, laica, universal e de qualidade. O Brasil, apesar de todas
as vicissitudes, conseguiu, a duras penas, construir um sistema público
de ensino superior. Algumas de suas universidades estão entre as
melhores do mundo. Foram elas que ajudaram, à sua maneira, a
superar as amarras do subdesenvolvimento, da tirania e a
discriminação social presente na sua história. Indagamos: Que
vantagem o atual governo enxerga ao tentar destruí-la (a
universidade)?
Portanto, é a pesquisa que permite o alargamento de horizontes
compreensivos e interpretativos, afinal, é isso que faz uma
universidade ser universidade, e não outra coisa, deve ser por este fato
que o atual governo a despreza tanto. Ademais, por uma questão de
dever e de ofício, os acusadores dos professores, das universidades e
da pesquisa, se estiverem realmente preocupados com a educação e
com o problema da suposta balbúrdia e da irrelevância e falta de
pesquisa “de ponta”, poderiam começar tomando, com retidão,
partido pela educação, pela universidade, pelos seus professores e
pela pesquisa, para o bem de todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ciência, a pesquisa e a universidade são dimensões essenciais


para qualquer civilização que tenha em seu horizonte compreensivo, a
necessidade da continuidade do mundo humano e o seu
aperfeiçoamento.
Todavia, é preciso mostrar que existe método mesmo (e
sobretudo) na violência e nas barbáries autoritárias, mormente quanto
institucionalizadas: o anti-intelectualismo manifesto do núcleo duro
deste governo não é um epifenômeno, mas a encarnação de sua
representação (imagem). E é este núcleo duro, ideológico e
explicitamente habituado a práticas autoritárias de governo, que
necessita da narrativa obsessiva do inimigo interno, – no caso
presente, “nós, os inimigos” (nós os professores).

18 Ver mais em: https://jornal.usp.br/ciencias/fabricas-de-conhecimento/.

28
Por este motivo, o pensamento crítico, para o atual governo, é
insuportável, – assim como lhe são insuportáveis o espírito
republicano e as práticas democráticas de governo. É preciso
concordar que os gestos de força e de perversidade do governo são os
gestos que trazem à luz a absoluta incompetência para compreender
e manter o que define o ambiente universitário e a própria política
democrática ao menos desde a modernidade, ou seja, a liberdade de
pensamento, de pesquisa e de crítica.
A razão do governo encontrará nas universidades brasileiras uma
profecia autorrealizável, as instituições brasileiras foram forjadas
pelos exemplos de resistência e defesa das liberdades democráticas
durante as décadas mais sombrias da ditadura civil-militar brasileira, e
continuarão resistindo contra as investidas do autoritarismo. Nenhum
país se desenvolveu sem autonomia científica. Não há país sem ciência!

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, R. N.. A impossível neutralidade discursiva na práxis


educacional e a improbidade ideológica da Escola sem Partido. Revista
Espaço Acadêmico, 16(191), 117-133, 2017.
BUJES, M. I. E. Descaminhos. In: COSTA, M. V. (Org.). Caminhos
investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em
educação. 2. ed. (p. 13-34). Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.
CROSS, Di; THOMSON, Simon; SINCLAIR, Alexandra. Research in
Brazil: A report for CAPES by Clarivate Analytics. Clarivate Analytics,
2017. Disponível em: < https://www.capes.gov.br/images/stories/
download/diversos/17012018-CAPES-InCitesReport-Final.pdf>. Acesso
em: 10 de Julho de 2019.
DALBOSCO, C. A.; FAVERO, A. A. Universidade e formação pedagógica:
a busca por excelência em ensino, pesquisa e extensão. In: SGARI, R.;
VALERIO, P. da S.; CASAGRANDA, E. A. (Orgs.). Universidade e
formação. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2017, p. 13-
35.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

29
SANTOS, C. R. A. de. Apresentação. In: APPEL, E. (Org.). A universidade
numa encruzilhada: seminário sobre universidade. Brasília: UNESCO,
2003, p. 9-20.
SEVERINO, António Joaquim. Pesquisa, pós-graduação e universidade.
Revista da Faculdade Salesiana, Lorena, v. 24, n. 34, p. 60-68, 1996.
TSALLIS, Constantino. Por que pesquisa na Universidade? Ciência e
Cultura, v. 37, n. 4, p. 570-572, 1985.

30
A FORMAÇÃO TEÓRICA-EPISTEMOLÓGICA NA PESQUISA
EDUCACIONAL: DESAFIOS1

Odair Neitzel2

PARA COMEÇO DE CONVERSA....

A clareza metodológica e o trato epistemológico dos dados em


uma pesquisa, tanto de natureza quantitativa quanto qualitativa, são
determinantes para conferir credibilidade àquilo que se pretende
apresentar a partir de uma investigação científica. Para tanto, torna-se
importante a caminhada formativa teórica-epistemológica de um
pesquisador, pois esta lhe confere clareza, discernimento e capacidade
para tomar as decisões e orientações que são decisivas para uma
investigação qualificada e respeitável.
Estas são algumas das questões que devem ser enfrentadas por
quem deseja realizar pesquisas no campo da educação com qualidade.
Essa pressuposição choca-se com as dificuldades formativas dos
pesquisadores e relaciona-se com questões ligadas aos contextos
conjecturais de uma sociedade marcada pela complexidade e pela
diversidade. Isso é perceptível pelas transformações provocadas pelas
tecnologias comunicacionais das redes de computadores, por
exemplo. Transformações estas que tem eclipsado as formas
tradicionais de relacionamento humano, abalado valores, ou ainda,
constituído novos. As mudanças sociais têm reafirmando alguns
saberes humanos e destronado tantos outros, e estes, têm desafiado
os processos educacionais, e por consequência, dificultado as
pesquisas neste âmbito.
Os paradigmáticos contextos sociais contemporâneos têm
provocado a reflexão sobre aquilo que comumente entendemos por
educação, desafiado a pesquisa educacional, exigindo novas posturas
investigativas e uma qualificação de seus métodos e abordagens. A

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentado na 1ª Mostra de Pesquisa da Pós-
Graduação e Mostra de Extensão em Educação realizado nos dias 19 à 21 de agosto de
2015.
2 Doutor em Educação (Linha de Fundamentos da Educação) na UPF; Docente na UFFS

– Campus Chapecó; Email [email protected].

31
qualificação da pesquisa educacional tornou-se uma exigência que se
assenta entre outras questões, sob a formação teórico-epistemológica
do pesquisador e seu preparo para lidar com a pesquisa no contexto
de complexificação do fenômeno educacional.
As dificuldades presentes nesta temática se estendem à
discussão e à defesa de um campo próprio da investigação
educacional, dissolvida em uma considerável quantidade de teorias,
abordagens e discursos sobre aquilo que é próprio à educação(GATTI,
2006, p. 14). Soma-se a estas incertezas a discussão sobre o estatuto
da Pedagogia como área de conhecimento da educação. Ou seja, as
dificuldades de um campo científico próprio da investigação
educacional, de algum modo está integrada com a problemática da
identidade estatutária da Pedagogia, que por sua vez, liga-se a
precariedade da formação teórica-epistemológica de seus pares, além
das dificuldades de compreensão do fenômeno educacional no
contexto da complexidade e pluralidade da sociedade
contemporânea.
Urge assim o enfrentamento e a problematização dos processos
e modelos formativos daqueles que se pretendem como
pesquisadores em educação, que insistimos ter sua referência na
pessoa do pedagogo. Da mesma forma é preciso enfrentar os
discursos empunhados nos espaços educacionais que relativizam a
formação qualificada do pesquisador e profissional da educação. A
questão da baixa densidade teórica-epistemológica na pesquisa
educacional segundo Charlot, diz respeito justamente a “passar do Eu
empírico ao Eu epistêmico, ou seja, do indivíduo preso no movimento
da vida cotidiana ao indivíduo intelectualmente mobilizado, atento ao
saber” (2006, p. 11).
Para a nosso propósito, de defesa de uma formação teórica-
epistemológica qualificada do pesquisador em educação,
encontramos subsídios em Gatti e sua definição de Pedagogia como “a
educação que pensa a si mesma, ou seja, que fala para si, se avalia e se
imagina”, e portanto, é “o espaço das grandes reflexões em educação,
das teorizações integrantes”. Já a Didática é entendida por Gatti como
“ação qualificada do ato de educar, vivências e reflexões de, sobre e
para as relações educativas intencionais, um campo de conhecimento
sobre o ensino” (2006, p. 16).

32
Esta definição de Gatti nos leva a duas constatações: em primeiro
lugar, de que é preciso mudar o modo com concebemos a Pedagogia.
Esta não pode ser reduzida a um curso de formação de profissionais da
educação. Em segundo lugar, não sendo a Pedagogia um didatismo,
sendo a ciência da investigação e teorização do fenômeno
educacional, a Pedagogia exige do seu pesquisador – o pedagogo -
uma formação teórica consistente. O pedagogo, entre outras coisas,
deve assumir uma postura investigativa. Postura que, como defende
Charlot, exige qualificação do pesquisador em seu ofício: “Um discurso
científico sobre a educação não deve ser um discurso de opinião; ele
não é científico se não controla seus conceitos e não se apoia em
dados. A pesquisa em educação (ou sobre a educação) produz um
saber, rigoroso como o é todo saber científico” (2006, p. 10).
Defender um campo de investigação próprio para a educação é
pensar em uma ciência da educação, e no nosso caso, é defender que
a Pedagogia deva de alguma forma assumir esse estatuto. Isso não
significa seu isolamento ou fechamento em si mesma. Em primeiro
lugar, porque a defesa da Pedagogia como ciência da educação tem a
pretensão de lhe conferir o estatuto, a autoridade da ciência com
propriedade teórico-epistemológica para se manifestar sobre o tema
da educação.
Em segundo lugar, porque a Pedagogia como outras áreas do
saber, dialoga e é atravessada pelos saberes de outras ciências de
conhecimento, não sendo somente o caso da Pedagogia, mas da
maioria das ciências humanas, como a sociologia por exemplo, que se
apoia em pesquisas da antropologia, da psicologia, da matemática, da
informática entre outras3. Porém, precisa constituir uma
epistemologia própria, delimitar seu campo, que ao nosso ver, é um
dos problemas de maior urgência para esta área de saber.
Admitir o problema de identidade estatutária da Pedagogia é
também de alguma forma constatar o problema do campo de
investigação da pesquisa educacional. Isso significa entre outras
coisas, que a Pedagogia carece de resolver um problema a princípio
interno e fazer frente a perspectiva que levou a mesma a se entender

3 As obras por exemplo de Bauman ou de Simmel, são ricas em aspectos


antropológicos, filosóficos e psicológicos. São investigações sociológicas com forte
marca psicológica. Da mesma forma que a Pedagogia, como ciência da educação,
precisa manter o diálogo aberto com outras áreas de saber.

33
de modo reduzido, como curso de formação de professores ou
confundida como didatismo4.
A definição de um campo epistêmico científico próprio para a
educação implica, portanto, em pensar a Pedagogia para além de um
curso de formação ou um didatismo, mas como ciência da educação,
um campo da pesquisa educacional, o que significa por sua vez, pensar
a Pedagogia para além dos problemas da ação pedagógica, pensar na
qualificação do pedagogo como o cientista do fenômeno educacional
em sentido amplo.

A PESQUISA DIANTE DA SOCIEDADE MULTIPLA E COMPLEXA...

As dificuldades relacionadas a um campo epistemológico na


pesquisa educacional, e que aqui, tentamos rapidamente
problematizar de alguma forma e tentamos ligar ao problema do
estatuto da Pedagogia, não são as únicas razões que nos levam a
defender a necessidade de uma qualificação nas pesquisas
educacionais. Também se associa a dificuldade em lidar com a
complexidade do fenômeno educacional no contexto da sociedade
contemporânea5.
No contexto das sociedades múltiplas e complexas, a pesquisa
em educação enfrenta o desafio de investigar os processos formativos
em um contexto de dissolução e descrédito de instituições sociais,
políticas e culturais - como no caso da família e do próprio Estado -, que
marcam profundamente os processos de educação formal e informal
no contexto da sociedade contemporânea.

4 Essa questão somente citada aqui, carece de um aprofundamento maior. Isso por
que o problema é: sendo a Pedagogia um curso que pretende formar gestores
educacionais, como poderia a Pedagogia por exemplo, orientar e gerir cursos de
formação de áreas diversas? Será que o pedagogo está habilitado de modo tão
abrangente e profundo capaz de ditar os pressupostos formativos das diversas áreas
de formação profissional? O curso de Pedagogia como está estruturado, seus
entendimentos sobre processos formativos e pedagógicos, pode ser generalizado a
outros processos de formação? Possui base teórica para compreender os processos
sociais, éticos, políticos e culturais presentes nestes espaços?
5 Para um compreensão maior da temática da complexidade e pluralidade das

sociedades contemporâneas, indicamos os textos de Flickinger (2010) - A educação


diante da complexidade da sociedade contemporânea; e o texto de Goergen (2014) -
Formação humana e sociedades plurais.

34
A pesquisa educacional neste contexto, precisa estar atenta para
não ser tragadas e submergir aos diversos discursos e ideologias que
buscam tomar a educação como um instrumento de seus interesses. A
pesquisa educacional é desafiada a identificar com vigilância
epistêmica, sem querer dizer verdades últimas, os princípios e
fundamentos que possam nortear os processos formativos neste
contexto social. Precisa insistir em buscar princípios norteadores
generalizáveis sem abrir mão de raciocinar criticamente.
Se tratando de sociedades múltiplas e complexas, é preciso
reconhecer que esta é marcada pela individualidade exacerbada, pela
intoxicação informacional, que entre outras coisas, implica no
abandono do sujeito a si mesmo. A falta de aportes seguros para o
sujeito se pensar, a crise de legitimidade das instituições tradicionais
provocada principalmente ideologia neoliberal e a defesa de uma
sociedade do consumo, tem levado as pessoas a se abrigar sob
posturas neoconservadoras e fundamentalistas. Essa conjuntura traz
riscos e inseguranças para tudo que se relaciona aos processos
formativos e educacionais. Assim, é preciso redobrar a atenção e a
vigilância ao buscar compreender e estabelecer nortes para pensar
educação, evitando assumir razões ideológicas que colocam em risco
os direitos humanos e a luta por uma sociedade democrática, justa e
pacífica.
Diante destas dificuldades e problemáticas que incidem
diretamente na investigação educacional, há de se reconhecer o
momento positivo de reflexão e reconstrução. Exige, porém, olhar
com profundidade teórica e epistemológica para o objeto de
investigação, no caso da pesquisa educacional, para o fenômeno
educativo e formativo em suas diversas instâncias. Isso significa entre
outras coisas, a necessidade de revisitar atentamente as concepções
de ciência e os modelos investigativos em que se apoiam as pesquisas
educacionais.
Com isso acreditamos ter evidenciado como a pesquisa se apoia
em uma base teórica-epistemológica para o enfrentamento problemas
e questões que são objetos da investigação educacional. Insiste
Dalbosco(2014) de que a pesquisa educacional é afetada justamente
por uma fragilidade epistêmica ou por uma falta de densidade teórica.
Entre as possíveis razões para tal estão a falta de uma tradição
epistemológica própria na investigação. A ciência da educação,

35
basicamente sobreviveu se apropriando da investigação de áreas
correlacionadas, que investigam a educação sob a perspectiva
sociológica, psicológica, etc. A ciência da educação, que insisto em
apontar como Pedagogia, toma emprestada de outras ciências os
fundamentos epistêmicos de sua investigação. Ou seja, a educação
carece de uma ciência da educação ativa e com propriedade, para
tomar para si, a responsabilidade de dizer os fundamentos da
educação.
Essas declarações acima, sobre as transformação sociais
contemporâneas, sobre o estatuto da Pedagogia e sobre a formação
teórico-epistemológica do pedagogo, não se apresentam sem uma
dose de confusão e embaraço como demonstra Charlot (2006, p. 7):
Quando imaginamos um pedagogo fazendo pesquisa educacional, é
comum pensar em alguém que pesquisa sobre como “cuidar de
crianças”, como se as ciências da educação se preocupassem
exclusivamente com uma espécie de treinamento de educadores para
a práxis pedagógica. Provavelmente muitos de nós já se sentiu
incomodado com esse reducionismo. A Pedagogia precisa tomar para
si a investigação do fenômeno educacional, não somente alguns de
seus fragmentos. Essa é mais uma das razões que leva pesquisadores
da área da educação como Charlot (2006, p. 8) a defender um modelo
epistêmico próprio para a educação.
Ainda para além das dificuldades macros ligadas a um contexto
mais geral e social, há outras dificuldades intrínsecas ao campo de
atuação do profissional da educação. Um primeiro, como já
sinalizamos acima, está no fato dos (1) programas de pesquisa em
educação serem permeadas por investigadores de outras áreas de
formação específica. Assim, “As ciências da Educação possuem uma
realidade institucional, administrativa, organizacional, mas não têm
existência epistemológica específica” (CHARLOT, 2006, p. 8). Como a
pesquisa tem um de seus pilares no processo de constituição e
formação do investigador, a dificuldade está em não ter transitado
pelas discussões e investigações que dizem respeito especificamente
a educação6.

6 É preciso
dizer que o contrário também é válido. De certo modo, a Pedagogia, circula
em outras áreas de saber e pretende orientar os processos formativos a partir de uma
concepção reduzida de pedagogia. Isso traz sério problema e conflitos
epistemológicos para a própria Pedagogia, que se vê rejeitada e relativizada pela

36
Um segundo fator, conectado ao primeiro, (2) está no fato de,
sendo a educação permeada por várias áreas de conhecimento, a
pesquisa tender a ser vista sob um outro prisma que não é
especificamente da educação. São filósofos, sociólogos entre outros
que dirigem seu olhar investigativo para a educação. Geralmente são
primeiro filósofos ou sociólogos e depois se ocupam da educação. Ora,
o resultado disso segundo Charlot, é que a educação se apresenta
como “uma área na qual circulam, ao mesmo tempo, conhecimentos,
práticas e políticas” diversas, constituindo-se como, “uma disciplina
epistemologicamente fraca: mal definida, de fronteiras tênues, de
conceitos fluidos” (2006, p. 9).
Isso nos leva a um terceiro fator (3), que consiste na defesa no
espaço acadêmico, de uma “ciência da educação” como viemos
empregando neste ensaio7, e pensar a educação e a sua investigação a
partir de uma especificidade epistemológica mais forte. Além das
condições para pensar uma epistemologia forte em educação, que a
Pedagogia assuma para si a tarefa de pensar o fenômeno educacional
legada historicamente a outras áreas de saber.
Isso, porém, não significa negar as contribuições das outras áreas de
saber, nem o seu isolamento. Mas significa que a Pedagogia tome uma
posição ativa. É assumir o caminho em que as contribuições de outras
áreas de saber contribuam para a investigação na educação a partir de um
capo epistêmico próprio. É pensar a educação, considerando que ela não
se reduz a instrução, que é um fenômeno que é condição do humano, e,
portanto, é um fenômeno primordial, essencial e intrínseco a evolução
cultural da vida humana. Ou seja, reconhecer que não há história humana
sem educação das novas gerações (BOTTER, 2012).
Isso demonstra que as dificuldades inerentes a um campo de
pesquisa em educação possuem fatores intrínsecos e extrínsecos, que

incompatibilidade do que propõem e do que se espera em outras áreas de


conhecimento.
7 Para ilustrar essa concepção, vale dizer que é preciso em certas situações focar o que
se pretende discutir. Herbart dirige essa crítica a Pestalozzi, por sua grande quantidade
de termos e conceitos, o que dificulta a compreensão de sua proposta. Em relação a
proposta de Pestalozzi, Afirma Herbart que “Ela [a problemática] se apresenta a
mente do pesquisador com toda espécie de termos e princípios, que este nunca os
expressa com clareza” (Sie hängt in Kopfe des Erfinders mit allerlei Begriffen und
Bestrebungen zusammen, die er nie deutlich auspricht) (HOFMANN; EBERT, 1976, p.
393).

37
tem razões sociais, históricas, epistêmicas entre outras. Constatação
essa que tem implicações e se estende para muito além do que possa
parecer. Sua dificuldade, que se caracteriza como relativismo, como
falta de consideração com a própria educação, pode ser desastrosa na
definição de políticas públicas, tecnológicas e científicas para a
educação de modo geral.

A FRAQUEZA DO CAMPO EPISTÊMICO DA EDUCAÇÃO...

Dentre as diversas abordagens8 e tendências de investigação


presentes na educação, trataremos das dificuldades em relação as
pesquisas empíricas, etnográficas e bibliográficas. Quando está ligada
a categoria do cotidiano (empiria), um dos problemas que se coloca é
a densidade dos dados (modos de observar, coletar, registrar, relatar,
compreender), que dependem diretamente da experiência e
conhecimento do pesquisador sobre a área.
Já em relação à pesquisa de perspectiva etnográfica as
dificuldades ligam-se ao desconhecimento desta abordagem, falta de
clareza teórica e a complexidade própria deste método. Neste tipo de
pesquisa, há a necessidade de um esforço interpretativo dos
fenômenos por parte do pesquisador, evitando, porém, buscar
predefinição de valores, princípios e crenças a partir de suas
pretensões. Ou seja, é problemático o fato do pesquisador
desenvolver a pesquisa com hipótese pré-formuladas. Isso significa
que para essa abordagem metodológica, é necessária uma formação
que confira perspicácia intelectual ao investigador.
Em relação à pesquisa de viés bibliográfico, o problema que se
apresenta, para além da metodologia, está na restrição da experiência

8 Gatti (2006) identifica quatro tendências da pesquisa educacional: a ciência de


procedimentos com o domínio da perspectiva da psicologia do desenvolvimento, que
busca definir práticas a partir de teorias prévias, não estando diretamente ligado a
educação, mas a áreas paralelas; A perspectiva lógico-cognitivista, que teoriza sobre o
ensino das disciplinas, com duas perspectivas, ao que tudo indica, das áreas “duras”,
que pensam o ensino das mesmas sem uma preocupação maior com sua aplicabilidade
social ou o ensino em contexto escolar, e as áreas propriamente escolares que se
ocupa mais com transmissão de saberes; a pesquisa com foco no sujeito que aprende
que visa os processos de aprendizagem das crianças e jovens, como abordagem
cognitivista, de referência piagetiana; e as “praxiológica” com seu foco voltado a ação,
da produção de instrumentos para a ação propriamente dita da educação em
contextos complexos.

38
formativa do pesquisador. Torna-se importante que o pesquisador
transite por leituras em outros campos de investigação por exemplo.
A leitura de diferentes áreas se põem como condição para a mesma.
Há sempre o risco de recair em uma endogenia, ou seja, uma busca
“intradisciplinar” para a definição termos.
Isso tudo nos remete novamente a preocupação com a formação
teórico-epistemológica do pesquisador em educação. As diversas
abordagens e as lacunas apontadas na pesquisa educacional e
apresentadas acima, justificam o esforço em trazer para uma ciência
da educação a responsabilidade de investigar o fenômeno
investigativo.
Se tratando da pesquisa educacional, fica evidente a dificuldades
implícitas no problema da formação teórico-epistemológica dos
pesquisadores. É preciso considerar que a pesquisa qualitativa não parte
de hipóteses fechadas, que apontam a priori o resultado, o que significa
que a formação do pesquisador é fundamental à medida que necessita da
habilidade teórica que antecede a própria investigação (como veremos
mais adiante com fundamentação em Popper), para quando imerso no
contexto da pesquisa, reconheça os saberes, reconstrua questões e
variáveis, e desenvolva com propriedade sua investigação.
A necessidade de uma constituição formativa teórico-
epistemológica do pesquisador, se apresenta como forte
condicionante, por exemplo, em estratégias de investigação da
observação participante e da entrevista em profundidade. No caso a
entrevista em profundidade por exemplo, por ser uma abordagem
aberta, não estruturada, não-diretiva, carece da capacidade e a
perspicácia para o controle da investigação por seu caráter
extremamente dinâmica. Pela grande flexibilidade de respostas em
uma pesquisa qualitativa, o sucesso da pesquisa depende do
investigador, que acaba se tornando o instrumento central da
investigação.

OS ENTRAVES DOS DISCURSOS DE UMA PSEUEDUCAÇÃO...

Segundo Charlot (2006), uma das questões que dificulta a


pesquisa em educação são os discursos presentes nos espaços de
formação e atuação dos educadores. Muitos destes discursos
desconstroem ou desestimulam a formação mais qualificada das

39
pessoas que se ocupam com o fenômeno educacional. (1) Um primeiro
discurso é o que nega o interesse ou a cientificidade da educação. (a)
Dentro deste discurso, temos o discurso espontâneo, utilizado por
educadores que pensam que sabem por terem alguma experiência
com a educação de seus próprios filhos por exemplo. Esquecem que
“Um discurso científico sobre a educação não deve ser um discurso de
opinião; ele não é científico se não controla seus conceitos e não se
apoia em dados” (CHARLOT, 2006, p. 10). A pesquisa não se dá de
modo espontâneo, precisa seguir métodos, regras.
Pertencente ainda a esse primeiro tipo de discurso, o (b)discurso
do prático, muito conhecido na área da educação, opõem prática e
teoria, afirmando que a prática apresenta resultados e o teórico só
pode especular. Isso é caracterizado por Charlot como uma
pseudoposição. Mais adequado seria neste caso, reconhecer que a
teoria tem interpelações com a prática e vice-versa. Neste discurso
afirma-se que o teórico não tem noção das condições e da realidade
do chão da sala de aula. Defende Charlot que o professor precisa de
qualidade formativa e não tão somente de uma espécie de santidade
ou militância.
Ainda pertencendo ao primeiro tipo de discurso está o (c)discurso
dos antipedagogos, que defendem que não há a necessidade de um
saber pedagógico, bastando apresentar o conhecimento e pronto.
Acusam a Pedagogia de afastar a juventude do esforço e do saber e
seu efeito é bastante elitista. O equívoco neste discurso está em
pensar que simplesmente apresentar o saber põem a inteligência em
movimento, não reconhecendo assim um dos maiores problemas
pedagógicos - a mobilização intelectual do aluno. O primeiro discurso,
portanto, nega a cientificidade da ação pedagógica e a necessidade da
teoria para a prática pedagógica.
Um segundo tipo de discurso que perpassa a educação é o (2)
discurso pedagógico que confunde educação com ciências da
educação. Há várias teorias pedagógicas, inspiradas em um conjunto
de pressupostos filosóficos e em diversas práticas. Mas o que perpassa
todas elas são princípios que se ligam aos fins da existência humana.
Assim, a Pedagogia essencialmente seria segundo Charlot (2006, p. 12),
a conexão dos diversos discursos e não os diversos modelos
pedagógicos dela decorrentes.

40
Em um terceiro grupo estão os (3) discursos políticos sobre a
educação. O discurso militante, por exemplo, pretende explicar o micro
pelo macro e vice-versa. Esse tipo de discurso se pautam em
fundamentos como os da sociologia da reprodução, que entre outras
coisas afirma que os problemas da educação se ligam a ascensão do
neoliberalismo, mercantilização da educação e o processo de
globalização. A violência na escola estaria ligada a pobreza por
exemplo (A violência implica na educação segundo Charlot, mas não é
regra geral estar ligada a pobreza, pois há escolas em locais pobres
com bons resultados). Tudo isso não pretende desconsiderar as
contribuições destes discursos, porém, um campo de investigação se
constrói com “apostas epistemológicas” afirma Charlot (2006).

CONTRIBUIÇÕES DO RACIONALISMO CRÍTICO DE POPPER...

Mostramos em nossa argumentação a dificuldade de estabelecer


um campo epistêmico forte para a educação, o que se liga as
dificuldades da investigação de qualidade, e que por sua vez, está
relacionada a dificuldade de compreender o papel da investigação da
educação, e que de alguma forma deságua no problema da formação
teórico-epistemológica do pesquisador em educação.
A partir disso, pensamos ser oportuno recorrer ao argumento de
Karl Popper (2008) e sua obra Conjecturas e refutações, para mostrar
que a ciência possui sempre a antecipação epistemológica-teórica em
sua mobilização. Nesta obra, Popper apresenta uma das questões
centrais para se pensar a investigação e produção de saberes
científicos. Popper questiona sobre "quando pode uma teoria ser
classificada como científica?" ou se "Existe um critério para classificar
uma teoria como científica?"(p. 63). Para o autor, a observação e
experimentação em si não conferem ou alcançam por si só o status de
científico.
Para Popper em primeiro lugar, “o critério que define o status
científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada"
(Ibid, p. 66). É o que conhecemos por teoria da refutabilidade, e pela
qual Popper entende ser possível delimitar o campo científico. Afirma
que "O critério da 'refutabilidade’ é a solução para o problema de
demarcação, pois afirma que para serem classificados como
científicas, as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes

41
de entrar em conflito com observações possíveis ou concebíveis".
(Ibid, p. 68).
Mas o que nos interessa nas considerações de Popper e que nos
auxiliam a entender a necessidade de uma formação teórico-
epistemológica do pesquisador, é o fato de Popper defender que há
sempre uma hipótese que antecede a observação e a pesquisa em si.
No caso do ovo e da galinha, o ovo é anterior. Se esse argumento for
feito em regresso, voltaremos a teorias e mitos, cada vez mais
primitivos, chegando finalmente a “expectativas inconscientes e
inatas" (Ibid, p. 77).
Segundo Popper, defender "ideias inatas " é algo absurdo.
Porém, não é absurdo defender que os organismos possuem uma
antecipação de "reações ou respostas inatas", que se antecedem aos
acontecimentos. Encontramos uma argumentação semelhante em
MEAD(1973), quando este apresenta a tese da passagem da interação
por gestos para a interação simbólica9. O que queremos mostrar com
Popper, é que os saberes são incorporados pela cultura humana e que
por sua vez, são internalizados pelos seus membros. Em outras
palavras, há sempre uma teoria que orienta o pesquisador e que
antecede um projeto de pesquisa10.
Isso mostra de certo modo, que ao observar, há uma expectativa,
no caso do pesquisador, um saber ou uma teoria. Vale salientar ainda,
que a ciência surge com os mitos e a crítica aos mesmos, portanto, não
da observação e da invenção dos mesmos11. Assim, de acordo com
Popper, e com base nas afirmações de Charlot (2006, p. 17), as ciências
progridem a partir de seus pontos de partida ou terias que as
antecedem. A pesquisa sempre é antecipada por uma base teórica-
epistemológica, no caso da pesquisa qualitativa, está na constituição
formativa do pesquisador. O que precisamos na pesquisa educacional
é que esta tenha uma base epistemológica e teórica forte e

9 Habermas(2012) discute essa concepção de Mead em TAC.


10 Popper ao sinalizar para as expectativas inerentes aos sujeitos quando nascem por
exemplo, no caso do bebê, de que será amamentado, chama atenção para um
"conhecimento", não válido apriori, mas "psicologicamente ou geneticamente
apriorístico" (POPPER, 2008, p. 77), e portanto, é anterior a observação.
11 Popper sugere que se adote a teoria mais apta, e elimine as menos aptas. Aptidão

aqui entendida como credibilidade ou legitimidade. É o que Popper denomina de


justificação racional.

42
pesquisadores bem formados, pois esta base será sua antecipação
investigativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS...

Segundo Esteban (2008), é extremamente importante que a


pesquisa social, de modo mais específico, a pesquisa educacional,
tenha uma boa fundamentação epistemológico-teórica e que os
pesquisadores possuam um domínio profundo de conhecimento sobre
os fundamentos epistemológicos e teóricos da pesquisa. Ora, é de
fundamental importância a base epistemológica, que muitos
pensadores desatentam e sequer observam. Da mesma forma,
ressalta a importância de familiarização e aprofundamento com a
discussão epistemológica, e principalmente, em deter-se na reflexão
sobre procedimentos científicos. Assim, a constatação é da
necessidade de compreensão e aproximação com epistemologia e
com as perspectivas teóricas na pesquisa qualitativa em educação
(ESTEBAN, 2010).
Por fim, é preciso reconhecer que a pesquisa no meio educacional
em muitas situações abriu mão da preocupação com a validade do
conhecimento, descuidando da qualidade do conhecimento
educacional. Isso se liga a fraqueza da base epistemológica no campo
educacional acarretando segundo Gatti, em um problema “densidade
conceitual” (2006, p. 24). Ou seja, a falta de densidade teórica é a
incapacidade de conceber problemas de investigação, da sua
explanação, organização e desenvolvimento de modo geral. Esta falta
de densidade também está associada a carência de domínio conceitual
por parte dos pesquisadores e a incapacidade no trato dos dados e de
desenvolver a argumentação e a interlocução com seus pares.

REFERÊNCIAS

BOTTER, Barbara. A pedagogia antes da pedagogia. In: OLIVEIRA,


Paulo Eduardo (Org.). . Filosofia e Educação: aproximações e
convergência. Curitiba: Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012.
9788565531016.

43
CHARLOT, Bernard. A pesquisa educacional entre conhecimentos,
políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber.
Revista Brasileira de Educação v. 11, n. 31, p. 7–18, 2006.
DALBOSCO, Cláudio Almir. Pesquisa educacional e experiência humana
na perspectiva hermenêutica. Caderno de Pesquisa v. 44, n. 154, p.
1028–1051, 2014. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/198053
142820>.
ESTEBAN, M. P. Pesquisa qualitativa em Educação: fundamentos e
tradições. Porto Alegre: AMGH, 2010. .
FLICKINGER, Hans-georg. A educação diante da complexidade da
sociedade contemporânea. Espaço Pedagógico v. 21, n. 1, p. 11–22,
2010.
GATTI, Bernardete Angelina. A construção metodológica da pesquisa
em educação: desafios. RBPAE v. 28, n. 1, p. 13–34, 2006.
GOERGEN, Pedro. Formação humana e sociedades plurais. Espaço
Pedagógico v. 21, n. 1, p. 23–40, 2014.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo 2: sobre a crítica da
razão funcionalista. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. II v. 978-85-7827-461-0.
HOFMANN, Franz; EBERT, Berthold. Johann Friedrich Herbart:
ausgewählte Schriften zur Pädagogik. Berlin: Volk und Wissen
Volkseigener Verlag, 1976.
MEAD, Georg Herbert. Espíritu, persona y sociedad: desde el punto de
vista del conductismo social. Barcelona: Paidós, 1973.
POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações. Brasília: UNB, 2008. 63-94
p.

44
DA ÉTICA DO DISCURSO À ÉTICA DA RAZÃO CORDIAL: DUAS
AMPLIAÇÕES DA ÉTICA KANTIANA1

Francisco Valente Fumo2


Armindo Armando Nhanombe3

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, pretendemos demonstrar que Habermas e


Cortina ampliaram, cada um ao seu modo, a ética kantiana, tendo
como substracto o vínculo comunicativo. Habermas amplia a razão
monológica de Kant apenas pela razão comunicativa procedimental; e
Adela Cortina, passando pela Ética do Discurso (razão comunicativa
procedimental), como o melhor modelo da ética mínima, propõe uma
ética que tem como base a compaixão e os sentimentos, uma ética do
coração. A razão é, que a Ética do Discurso é um óptimo fundamento
para a ética cívica de uma sociedade moralmente pluralista, mas,
sempre que não se contente com a sua dimensão procedimental,
senão que deixe falar a dimensão cordial.
A Ética do Discurso de Habermas e a Ética da Razão Cordial de
Cortina procedem da ética formalista, deontológica, universalista e

1 Parte do conteúdo deste artigo foi apresentado por Francisco Valente Fumo como
dissertação para obtenção do grau acadêmico de Mestre em Educação/Ensino de
Filosofia na Universidade Pedagógica de Maputo no ano 2014.
2 Doutorando em Migrações Internacionais e Cooperação ao Desenvolvimento (IUEM

– Universidad Pontificia Comillas), Mestre em Desenvolvimento Social (Universidad


Católica San António de Murcia), Mestre em Teología Moral y Pastoral (Universidad
Pontificia Comillas), Mestre em Bioética (Universidad Pontificia Comillas), Mestre em
Educaação/Ensino de Filosofia (Universidade Pedagógica de Maputo), Licenciado em
Filosofia (Universidade São Tomás de Moçambique) e Licenciado em Sagrada Teologia
(Pontificia Universidad Urbaniana).
3 Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Tomás de Aquino de Moçambique,

Bacharel em Teologia pela Universidade Urbaniana de Roma. Mestre em Filosofia de


Educação Pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Doutorando em Ética
Aplicada pela Universidade de São Tomás de Aquino de Moçambique. Licenciando de
Direito Canónico pela Universidade Católica de Lisboa. Mestre e Doutorando em
Direito e Segurança pela Universidade Nova de Lisboa. Investigador de CEDIS da
Universidade Nova de Lisboa.

45
mínima de Kant. As diferenças estão no método filosófico empregue
e, em consequência, do tipo de fundamentação a que chegam. Estes
constituem os aspectos que apresentaremos em seguida.
A Ética do Discurso ou comunicativa é um fenómeno
especificamente alemão, do fim dos anos 60 e dos anos 70. Ela
constitui o que nós, no contexto desta dissertação, concebemos como
primeira ampliação da ética kantiana. Habermas defende uma ética
cognitivista, universalista e deontológica; na qual questões morais
devem ser decididas através de um consenso, na medida em que os
princípios morais não têm conteúdos, mas sim através da participação
nos discursos públicos, cria-se a possibilidade de avaliação dos
conteúdos morais provenientes do mundo da vida.
Adela Cortina, nas suas investigações na Universidade de Munich,
entrou em contacto com racionalismo crítico, o pragmatismo e a ética
marxista e, mais concretamente, com a filosofia de Jurgen Habermas
e Karl-Otto Apel. Ela tomou o conceito de Ética do Discurso, para fazê-
lo centro das suas próprias teorias. Ela é a responsável pela
disseminação da Ética do Discurso no mundo hispânico; no entanto,
ela não só a tornou conhecida, como também a ampliou para uma ética
cordial.
Por isso, uma comparação entre a Ética do Discurso e a Ética da
Razão Cordial é importante, já que as duas têm em vista a dar uma
resposta à maneira como as sociedades pluralistas podem conviver de
forma harmoniosa.
Entretanto, Cortina descobre na Ética do Discurso algumas
lacunas; pois na visão da autora, aquela ética não explora o vínculo
comunicativo na sua globalidade. Desta feita, Adela Cortina faz uma
segunda ampliação da ética kantiana, tendo como base a Ética do
Discurso. Sendo que:
“A degradação da sociedade, dos costumes, do indivíduo
contemporâneo da época do consumo de massa”,4 o relativismo
universal, a decadência dos valores, o hedonismo sem limites, o
pluralismo a que estão sujeitas várias sociedades postulam uma
urgência na reflexão ética. No entanto, este mundo está marcado
pelas morais religiosas, em que a fundamentação da norma moral é
transcendente, dependente da fé e de morais tradicionais, onde o

4 LIPOVETSKY, G. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos


democráticos. São Paulo, Editora Morale, 2005.

46
conceito do bem não é compreendido numa perspectiva
verdadeiramente universal, a partir da perspectiva de todos os seres
humanos. Por isso, recorremos a Habermas e Adela Cortina para
fundamentar uma moral universal, considerando que os dois partem
da moral kantiana, defendemos que eles fazem ampliações a ética de
Kant.
O presente trabalho tem o seguinte problema de pesquisa: em
que medida é possível a fundamentação de uma ética universal nas
sociedades pluralistas nos tempos pós-modernos?
As perspectivas que apresentamos, como possibilidade de
fundamentação de uma ética universal nas sociedades pluralistas, são
a de Habermas com a Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial de
Adela Cortina. Habermas, para construir sua Ética do Discurso, parte
duma razão comunicativa; Adela Cortina amplia o conceito de Ética do
Discurso com a ética cordial, pois não basta a razão é necessária a
compaixão. Ora, a razão e o coração são universais. É a segunda
ampliação da ética kantiana.
O nosso objetivo é fazer uma análise comparativa entre a Ética do
Discurso (ética da razão comunicativa) de Jurgen Habermas e da ethica
cordis (ética da razão cordial) de Adela Cortina. A razão comunicativa
e a razão cordial situam-se no contexto da ampliação da razão
monológica kantiana, por um lado. Por outro, os dois modelos éticos
encontram a sua fundamentação no descobrimento ético da
intersubjectividade, exploram de modo particular o vínculo
comunicativo como portador duma dimensão ética. Os dois defendem
que, nas sociedades pluralistas, a acção comunicativa é importante na
busca do agir moral, visto que o vínculo comunicativo expressa o
reconhecimento recíproco. No entanto, Adela Cortina acha que este
vínculo carrega consigo, também, sentimentos sociais, a capacidade
de estimar valores e a compaixão, por isso é necessário ir além da
razão argumentativa, é necessária uma razão cordial.
Consideramos que esta vertente comunicativa, dialógica,
presente nas duas visões éticas, pode servir de base para a construção
de uma ética universal, na linha de Kant, própria para as sociedades
pluralistas, como é a moçambicana. Depois de apresentar e comparar
os autores, demonstraremos como as duas éticas constituem duas
ampliações da ética kantiana e a contribuição para as sociedades
multiculturais.

47
Habermas, influenciado pela guinada linguística do séc. XIX,
descobre que, nas sociedades multiculturais, a comunicação é o lugar
existencial de busca de convivência, reconhecimento e entendimento.
Habermas, fazendo um comentário à proposta de Tugendhat sobre
uma moral pós-convencional cognitiva, defende que:

nas sociedades modernas as normas morais têm de se separar dos conteúdos


concretos das orientações para a vida ética que emerge agora no plural; elas
encontram o seu fundamento numa identidade social tornada abstracta, apenas
circunscrita ainda pelo estatuto de pertença a uma comunidade.5

Adela Cortina, observando a sociedade espanhola, é a favor da


criação de uma Ética da Razão Cordial que não envolve apenas os
princípios éticos de convivência, próprios das éticas mínimas, mas
apela à compaixão. Num contexto de visões e concepções diferentes
sobre o bem, nas sociedades multiculturais, a questão que se coloca é
“saber como uma sociedade democrática estável e justa, composta
por cidadãos livres e iguais, mas profundamente divididos por
doutrinas religiosas, filosóficas, incompatíveis entre si, pode existir de
maneira durável”6.
Adela Cortina7 recorda-nos que neste contexto não podemos
tomar como ponto de partida nenhuma moral concreta de vida boa,
nem religiosa, nem secular, porque torna-se impossível superar o
monismo.
Para procedermos a uma análise comparativa entre a Ética do
Discurso e a Ética da Razão Cordial, dividimos o trabalho em três
capítulos. No primeiro, desenvolvemos a Ética do Discurso em
Habermas. Habermas propõe a Ética do Discurso como um processo
de interacção em busca da eticidade, querendo com isso dizer que as
normas morais procedentes do mundo da vida, carecem da aprovação
dialógica no contexto de um grupo ou comunidade.
A teoria de Habermas constitui tentativa de fortalecer o universo
moral das sociedades da razão instrumental e tecnológica por meio do
discurso, da acção comunicativa, que conservaria a ética, construindo

5 HABERMAS, J. Comentários à Ética do Discurso. Trans. Gilda Lopes Encarnação,


Lisboa, Instituto Piaget, 1991.
6 RAWLS, J. O liberalismo político. São Paulo, Ática, 2000.
7 CORTINA, A. Ética de le Razón Cordial, Educar en la Cuidadania en el siglo XXI. Oviedo

Espanha Ediciones Nobel, 2007.

48
racionalmente tudo o que foi destruído pela racionalidade
instrumental. Posto que coloca no centro as duas questões
fundamentais da moralidade, a justiça e a solidariedade.
Ao recorrer a acção comunicativa, baseando-se nas investigações
sobre o desenvolvimento do juízo moral, feitas por Kohlberg8,
Habermas defende que o entendimento, entre os participantes numa
argumentação, deriva da aprovação racionalmente motivada, que
obedece o princípio da universalidade. Assim, a Ética do Discurso é por
essência ética dos procedimentos, pois aponta apenas para os modos
de aprovação de uma norma dentro de uma comunidade de falantes.
Na segunda parte do texto, demonstramos que esta posição que
afirma que toda a humanidade está ligada por um vínculo
comunicativo é defendida também por Adela Cortina, que compartilha
com Habermas a Ética do Discurso, identificando esta com a ética
cívica. Adela Cortina, não negando o caminho da ética procedimental,
propõe que devemos actualizar os seus delineamentos numa ética que
não é já só da razão procedimental, senão da razão humana íntegra, a
razão cordial.9
Já a terceira abordagem, destina-se a comparar as duas
perspectivas éticas, a Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial. Num
primeiro momento, sublinhamos as semelhanças existentes, cientes
de que os dois autores, Habermas e Cortina, partem do vínculo
comunicativo. A similitude revela-se como primeira ampliação
kantiana. A segunda ampliação ocorre quando Adela Cortina distancia-
se da Ética do Discurso, e introduz a dimensão cordial para superar o
procedimentalismo de Habermas.
A metodologia, que seguimos neste trabalho, é
fundamentalmente de pesquisa bibliográfica, as obras que serviram-
nos de referências básicas foram “Consciência moral e agir
comunicativo” de Habermas e “Ética de le razón cordial, educar en la
Cuidadania en el siglo XXI” de Adela Cortina.
Além da interpretação e dissertação, foi necessária uma
metodologia correlacional, onde estabelecemos a relação em três
níveis, entre Habermas e Adela Cortina, e, entre estes dois e Kant.

9 CORTINA, A. Ética de le Razón Cordial, Educar en la Cuidadania en el siglo XXI. Oviedo


Espanha Ediciones Nobel, 2007.

49
A ÉTICA MÍNIMA COMO CONVERGÊNCIA ENTRE HABERMAS E ADELA
CORTINA: A PRIMEIRA AMPLIAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA

Como ponto de partida, entendamos que Adela Cortina10,


defendeu com Kant, que o dever torna-se o tema central da ética. Esta
ética é considerada formalística pelo facto de a obrigatoriedade não
residir no conteúdo da acção, mas na vontade racional. Esta é, para
Kant, a única forma de se conseguir a intersubjectividade exigida pela
obrigatoriedade moral, pois está relacionada com todas as outras
vontades; e aqui está também a exigência da universalidade que se
exprime na formulação do imperativo categórico: “Age apenas de
acordo com a máxima que possas querer que se transforme, ao mesmo
tempo, em lei universal”,11 isto é, o sujeito, na sua individualidade, deve
dedicar-se apenas a acções universalizáveis.
Kant procurou mostrar que a razão é uma faculdade prática na
medida que é o único instrumento capaz de mover a vontade e mostrar
ao ser humano o que deve fazer, isto é, o agir moral. A partir desta
pergunta, Kant reflectiu sobre o alcance da razão e a fonte da
obrigatoriedade moral, ao que concluiu que a razão é a única faculdade
capaz de captar todo o princípio a priori, originalidade e orientação de
toda a acção, de modo que, só a vontade racional pode determinar
aquilo a que o homem se deva dedicar inteira e unicamente. Ela
determina a acção necessariamente por si mesma, sem referência aos
fins ou propósitos12.
A tese principal desta subsecção é que a Ética do Discurso
introduzindo o vínculo comunicativo como aquele que une a espécie
humana, transforma a razão monológica kantiana em razão
comunicativa, que é o fundamento da Ética do Discurso; assim,
podemos dizer que Habermas reelabora e reconstrói a ética kantiana,
criticando alguns dos seus pressupostos, renunciando sobretudo ao
seu aspecto monológico. Deste modo, Habermas interpreta
processual, dialógica e comunicativamente o imperativo categórico.
Vale dizer que Habermas, recorrendo à filosofia da linguagem, desloca

10 CORTINA, A. (Org.). 10 Palavras Chaves em Ética. Gráfica de Coimbra, 1997.


11 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trans. Paulo Quintela, Lisboa,
Edições 70, 1995.
12 CORTINA, A. (Org.). 10 Palavras Chaves em Ética. Gráfica de Coimbra, 1997.

50
a referência ética da consciência moral solitária, reflexiva, para a
comunidade dos sujeitos de diálogo 13.
Esta razão comunicativa diz que o homem já não decide
individualmente se deve seguir certas normas morais, mas, antes,
entre num diálogo, e, consequentemente, numa comunidade de
interlocutores afectada pelas normas decidas dialogicamente o que
deve ser. Para compreendermos isto é necessário esboçarmos em
linhas gerais o que é a ética kantiana.
Deste modo, é evidente que a Ética do Discurso é uma ampliação
da Ética de Kant, porque vai mais além, tratando de superar os limites
monológicos implícitos nela, e procurar mediante o diálogo, o
intersubjectivamente justificável ou desempenhável, a
fundamentação da universalidade das normas correctas, e a
justificação que se dá às normas, é em todo caso transcendental, mas
sempre mediante uma situação ideal do diálogo.
O método transcendental filosófico, presente na Ética do
Discurso, pode aceder às entranhas da racionalidade humana e
descobrir nelas que não existe apenas uma racionalidade estratégica,
esta considera os demais interlocutores como meios para conseguir os
próprios fins e procura tirar um proveito próprio no diálogo (CORTINA,
1994), existe também uma racionalidade comunicativa, que sustenta
uma moral cívica dialógica.
Deste modo, com Habermas, descobrimos o carácter dialógico da
razão humana, que para descobrir a correcção das normas morais
precisa de entabular diálogo presidido por regras lógicas e por um
princípio ético procedimental, que preconiza que uma norma só é
válida se todos os interlocutores afectados por ela estão dispostos a
dar o seu consentimento através de um diálogo, celebrado em
condições de simetria.
O carácter monológico da razão prática kantiana é reformulado
pela pragmática-discursiva da Ética do Discurso. Posto que Kant
consubstancia a ideia de uma autonomia individual, que se submete a
uma norma que ele (Kant) mesmo estabeleceu, considerando uma
legislação interna.

13HAMEL, M. R. De ética kantiana à ética habermasiana: implicações sociojuridicas da


reconfiguração discursiva do imperativo categórico, Revista Katál, Florianópolis v. 14.
n. 2, p. 164-171, Jul./dez, 2011.

51
Com Habermas, passamos do formalismo ético ao
procedimentalismo que supõe o passo do monólogo ao diálogo. O
sujeito já não chega de modo independente à descoberta de que
normas são correctas, senão que a sua decisão passa do
estabelecimento do diálogo com todos os sujeitos que serão afectados
pela norma posta em questão. Assim, Habermas, demonstra o carácter
dialógico da racionalidade humana. Esta ética é procedimental porque
se preocupa em trazer à luz as condições que fazem do diálogo um
discurso racional, que acha a verdade das proposições teóricas e a
correcção das normas práticas.
De Kant que perguntava como eu devo agir, passamos para
Habermas que pergunta como nós devemos agir, assim a ética passa,
com Habermas, a ter como referência, não já o indivíduo autónomo,
mas a colectividade de falantes. Para Kant, o homem precisa da lei
moral para fazer a ligação entre a vontade e a razão, para a vontade
não perfeitamente boa põe-se o dever. As acções são praticadas pelo
dever. Este dever é imposto por uma máxima universal “age só
segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal”, que torna a acção moral num sentido universal. A
este princípio objectivo, que é um mandamento para a razão chama-se
imperativo categórico. Ele não é limitado por nenhuma condição, é um
mandamento absoluto, por ser o princípio supremo da moralidade e
por ser independente da experiência e fundar-se na razão pura,
portanto, é a priori.
Na ética kantiana, a autonomia coloca-se ao nível do sujeito. Esta
significa escolher de modo a que, as máximas de agir estejam incluídas
no próprio querer, como lei universal. No entanto, esta autonomia está
ao nível do sujeito monológico, que procura conformar a sua vontade
com o dever interior universal, tal procedimento é modificado em
Habermas (1989), pois às normas chega-se por uma interacção na qual
os sujeitos afectados coordenam os seus planos de acção, o acordo
alcançado em cada caso mediando-se pelo reconhecimento
intersubjectivo das pretensões de validez. Por isso, o imperativo a
priori de Kant, na Ética do Discurso, que permite estabelecer a lei
moral, transforma-se no princípio de universalização: “só podem
reclamar validez as normas que encontram (ou possam encontrar) o
assentimento de todos os concernidos enquanto participantes num
discurso prático” (HABERMAS, 1989, p. 116).

52
As duas éticas possuem um carácter impessoal, este é dado na
ética kantiana pelo imperativo categórico, enquanto na ética de
Habermas é dado pelo princípio da universalidade. O carácter
linguístico estabelece a demarcação, pois enquanto na ética de Kant o
sujeito orienta a sua acção pelo dever contido no imperativo
categórico, Habermas advoga que falantes e ouvintes discursam, de
forma argumentativa, entre eles os respectivos planos através dos
processos de entendimento. Então, percebemos que a força já não
está no imperativo, nas forças ilocutórias das acções de fala; a razão
comunicativa é possibilidade da acção porque possui um conteúdo
normativo (1989a).
A Ética do Discurso é procedimental, no sentido em que não
oferece conteúdo normativo, mas, sim, coloca o discurso como critério
para testar a validade das normas, sem oferecer ou não oferecendo
modelos para a acção. Daí que Hamel, no seu artigo “Da ética kantiana
à ética habermasiana: implicações sociojurídicas da reconfiguração
discursiva do imperativo categórico”, distinguiu a razão prática da
razão comunicativa deste modo:

a razão prática parte de uma orientação para o agir (imperativo categórico,


princípio supremo da moralidade), ao passo que na razão comunicativa, o agir é
orientado pelo entendimento, não oferecendo modelos para a acção, pois
possui a linguagem como condição possibilitadora (HABERMAS, 2011, p. 168).

Distingue-se ainda a ética de Kant da Ética do Discurso, por esta


última substituir a consciência (subjectividade) pela linguagem
(intersubjectividade), fundamentando assim a ética pela linguagem.
Adela Cortina está enraizada na Ética do Discurso desenvolvida
por Apel e Habermas, ela é a conhecida como transmissora da Ética do
Discurso para o mundo hispânico. Toda a sua abordagem ética passa
pela Ética do Discurso.
Adela Cortina distingue na sua abordagem as éticas mínimas das
éticas máximas. A ética mínima, como já tivemos oportunidade de
afirmar, é aquele conjunto de valores partilhado por uma sociedade
pluralista. A catedrática de filosofia prática, Adela Cortina apresenta a
Ética do Discurso como uma ética mínima. Visto que, para a filósofa,
“solo poseen fuerza legitimante las reglas y premisas comunicativas, que
permiten distinguir un acuerdo o pacto, obtenido entre personas libres e

53
iguales, frente a un consenso contingente o forzado” (CORTINA, 2006,
p. 167-168).
A Ética Mínima, como Ética do Discurso, baseia-se na
intersubjectividade. Esta permite uma articulação entre as éticas dos
máximos para descobrir aquilo que é comum, o conjunto de valores e
princípios partilháveis. Assim, compreendida a Ética Mínima é
procedimental, pois indica a forma que os afectados devem seguir
para decidir sobre as normas. Por isso, podemos dizer que Adela
Cortina coincide com Habermas, ao considerar que “la racionalidad del
procedimiento ha de garantizar la validez de los resultados que se
obtienen con él” (CORTINA, 2006, p. 177).
Adela Cortina, depois do contacto com os iniciadores da Ética do
Discurso, Apel e Habermas, retoma a Ética do Discurso nas suas formas
elementares, embora depois apresente propostas de ampliação, como
veremos na próxima subsecção, e, influência de modo particular os
países da América Latina.
O ponto de partida de Cortina e de Habermas não é a consciência,
como nas éticas kantianas, mas a linguagem. Assume o giro linguístico
da filosofia e considera a linguagem na sua tríplice dimensão: - de
signo, semântica e pragmática -, finalmente considera a dimensão
pragmática desde uma situação ideal de diálogo. Para a decisão moral
possa ser racional, argumentável, não dogmática, o único
procedimento moralmente certo para alcançá-la será o diálogo, que
deve culminar em um consenso entre os envolvidos.
Podemos perceber a convergência entre Habermas e Cortina,
através desta concepção de Adela Cortina, onde se conjuga a ética
deontológica e a teleológica, o diálogo é que franqueia a distância
entre a felicidade e o dever, como confirma a assertiva a seguir:

hoy en día el eje de la reflexión ética se ha desplazado nuevamente, en cuanto que


no se reduce a la felicidad o al deber, sino que intenta conjugar ambos por medio
del diálogo. Aunque el elemento vital de la moralidad sigue siendo la autonomía de
la persona, tal autonomía no se entiende ya como ejercida por individuos aislados,
sino como realizable a través de diálogos intersubjetivos, tendentes a dilucidar cuál
sea nuestro bien, porque es errado concebir a los hombres como individuos capaces
de acceder en solitario a la verdad y al bien (CORTINA, 2000, p. 23).

A Ética Mínima, cultivada por Adela Cortina, quando se identifica


com a Ética do Discurso, é também cognitivista (racionalidade do
âmbito prático), procura critérios universalistas, é deontológica

54
porque se abstrai das questões de vida boa, limita-se ao que é obrigado
ou devido em termos de justiça das normas e formas de acção.
Brevemente, podemos dizer que Cortina sustenta com Apel e
Habermas a racionalidade do âmbito prático, o carácter
necessariamente universalista da ética, a diferenciação entre o justo e
o bom, a representação de um procedimento legitimador das normas
e a fundamentação das normas correntes mediante o diálogo (em
sentido transcendental forte com Apel).
É evidente que na Ética do Discurso, a razão humana não é uma
razão pura, dado que não é possível sustentar uma razão meramente
objectiva, imparcial e desinteressada, como se fosse possível uma
racionalidade alheia aos interesses humanos (CORTINA, 2001, p.63).
Adela Cortina (2001) é da opinião de que a razão humana se move
a partir dos interesses pessoais e colectivos, bem como a partir das
circunstâncias históricas, com as suas tradições, valores e costumes.
Não existe razão desinteressada. Aristóteles já havia indicado, desde a
Antiguidade, que a natureza humana é uma unidade entre inteligência
e desejo, que só pode ser descrita como inteligência desejosa.
Por isso, Adela Cortina explorou de modo fecundo o vínculo
comunicativo, deu atenção a alguns aspectos ignorados por Habermas
e Apel, não se limitou-se à dimensão racional deste vínculo, assumiu
que o coração é que pode falar melhor dos valores e das normas,
revestiu a Ética Mínima de uma dimensão cordial, distanciando-se
desse modo de Habermas. Cunhou uma nova racionalidade, a
racionalidade cordial, que além da lógica, considera os sentimentos.
Esta constituiu a divergência com Habermas e a segunda ampliação da
Ética de Kant. Demonstrar isso é o móbil da próxima subsecção.

A ÉTICA CORDIAL – DIVERGÊNCIAS ENTRE JÜRGEN HABERMAS E


ADELA CORTINA – SEGUNDA AMPLIAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA

A segunda ampliação da Ética Kantiana ocorre com Adela Cortina,


esta filósofa valenciana revela-se Kantiana. Ela manifestou essa
identidade (a sua identificação) com Kant numa entrevista:

“Yo soy totalmente kantiana y en los últimos tiempos he trabajado con Apel en el
ámbito de la ética del discurso. También es verdad que he tenido muy buena
amistad con José Luis Aranguren. Pero, dentro de la línea filosófica yo soy más
kantiana y partidaria de la ética del discurso que la línea de Aranguren” (Entrevista

55
conduzida por L. Hooft publicada no Suplemento do Diário La Capital de Mar del
Plata, 11/03/2001).

No obstante a afirmação de ser kantiana, Adela Cortina não


recebe de modo acrítico a ética kantiana, nem sem reformulações a
Ética do Discurso. Ela segue uma deontologia, transcendental no
sentido kantiano e dialógico na linha da Ética do Discurso, porém
introduz a motivação humana nas dimensões da unidade, da
compaixão ou cordialidade e aproxima-se do teleologismo aristotélico,
por colocar a necessidade de cultivar o carácter e as virtudes por parte
da pessoa humana. O Deontologismo legado por Kant é revitalizado
pelo vínculo da compaixão.
Adela Cortina aceita, sem dúvida, o procedimentalismo dialógico
que norteia a Ética do Discurso, mas também traz á luz os seus limites.
A Ética da intersubjectividade deve ser conjugado à ética
intrasubjectiva, com o diálogo que cada um de nós (é) somos. Ela dá
esse passo considerando que no vínculo comunicativo existem
elementos que escapam o procedimentalismo de Habermas e Apel.
Por isso, ela confere à Ética do Discurso uma nova fisionomia que dá o
nome de Ética da Razão Cordial.

un escenario que tiene también el lenguaje por lugar de descubrimiento, pero


encuentra a través de él que el reconocimiento recíproco y cordial es el vínculo, la
ligatio que genera una obligatio con las demás personas y consigo mismo; un
reconocimiento que no es sólo lógico, sino también com-passivo (CORTINA, 2007,
p. 51).

O risco que traz consigo a Ética do Discurso, no pensar de Adela


Cortina, é dissolver o fenómeno moral, se, não é completada com a
teoria dos direitos humanos, virtudes, compaixão e estima do sujeito
ético. A Ética do Discurso, na versão habermasiana e apeliana, ao
prescindir da bondade da intenção e desprezando o interesse até o
qual se faz uma correcta norma, situa a ética e a moral num lugar
precário, de pura exterioridade.
Deste modo, podemos dizer que na Ética Kantiana e do Discurso,
descobre-se uma consciência moral e jurídica de uma determinada
época, expressa já em consciência (Kant) ou em linguagem
(Habermas). Fica evidente que a razão é histórica, pois é necessário um
processo de amadurecimento na reflexão que depende do nível de
consciência moral, política e jurídica alcançada. Portanto, quando se

56
inicia um discurso, deve-se ter em conta as circunstâncias sociais,
históricas e culturais.
Para Adela Cortina, prescindir da dimensão valorativa e só apelar
à dimensão racional do homem, é tirar o cerne da moralidade e não é
suficiente para o indivíduo seguir um princípio. Ademais, assim, a ética,
fica circunscrita ao mundo das ideias porque se ignora os motivos da
acção, as virtudes. Então, na racionalidade comunicativa, deve-se
enxertar a dimensão volitiva, a cordialidade (a cordura), é preciso o
querer e a compaixão.
Por isso, podemos defender, com Victoria Camps14 (2010), que
não há razão prática sem sentimentos. A ética não pode prescindir da
parte afectiva ou emotiva do ser humano, porque uma das suas
funções é ordenar e organizar o mundo da afectividade e emoções. A
ética é uma inteligência emocional. Levar uma vida digna, conduzir-se
bem na vida, saber discernir, significa não só ter um intelecto afeito à
racionalidade, senão sentir emoções adequadas em cada caso.
Na vida em comum, nas sociedades pluralistas, é importante a
capacidade de argumentar segundo as normas e o reconhecimento
mútuo como interlocutores válidos, mas também é fundamental a
capacidade de estimar valores e de compadecer-se. Só a estima dos
valores e a compaixão revelam a injustiça com que os homens se
tratam uns aos outros, e fazem sentir as necessidades asseguradas
apenas pela gratuidade. Procedendo desta maneira, Cortina
desenvolve a dimensão cordial da comunicação, fazendo com que a
Ética do Discurso catapulte os limites da razão lógica, para a razão
cordial que engloba sentimentos, compaixão e estima.
Assim, a filósofa valenciana assegura não podermos fundar a
moral na pura razão, nenhum fim se imporá como obrigatório,
enquanto apenas proposto pela razão.
Transparece, no pensamento da Professora Cortina, aquela visão
de Bergson,

a inteligência é incapaz de apreender a essência da realidade, o fluxo vital. Só a


intuição pode dar ao homem o absoluto; e a intuição é uma espécie de simpatia
intelectual pela qual o homem se transporta ao interior de um objecto para
coincidir com o que ele possui de único e por conseguinte de inexprimível
(BERGSON apud SILVA in CARVALHO, 2004, p. 45).

14 Victoria Camps é filósofa espanhola, catedrática de Ética e Filosofia do Direito, Moral

e Política da Universidade Autónoma de Barcelona.

57
A intuição, compreendida como espécie de simpatia equipara-se
à compaixão. Deste modo, vemos que não basta, para a filósofa
valenciana, apelar a uma ética do dever, é necessário irmos à ética das
virtudes; aqui, a autora faz uma síntese fecunda entre o kantismo
(ética do dever) e o aristotelismo (ética da virtude). O agir humano
deve ser consoante o dever moral, considerando a intersubjectividade,
mas deve ter como fim a formação do carácter e a busca da virtude.
Cortina afasta-se do puro procedimentalismo, pois o diálogo
dever ter como referencial primordial os valores. A razão deste
posicionamento da filósofa espanhola é que “quien sepa mostrar de
algo que es un valor positivo no necesita después intentar argumentar
acerca de porqué hay que realizarlo: los valores llevan ya una fuerza
dinamizadora, en virtud de la cual nos incitan a realizarlos” (CORTINA,
2007, p. 143).
O ser humano além da dimensão racional, deverá ensinar-se a
degustar os valores e a estimá-los. Uma ética de atitudes deve cultivar
um conjunto de valores para incorporar um princípio ético, por isso,
uma ética de virtudes e atitudes ocupa-se dos modos adequados para
enfrentar a vida de acordo com princípios éticos. Daí que Adela Cortina
amplia o fundamento da cidadania (ética mínima, na vertente dialógica
de puros procedimentos) e desemboca na razão cordial, na qual a
virtude da prudência é substituída pela virtude da cordialidade que
integra por sua vez a inteligência, o sentimento e a coragem.
A Ética do Discurso, reformulada pela Professora Cortina, pode
contar também não só com um procedimento, senão também com
atitudes, disposições e virtudes, motivadas pela percepção de um
valor, com um ethos, em suma universalizável. Assim, podemos
integrar o teleologismo e deontologismo, pois a acção racional tende
a um fim, este télos faz com que a acção seja maximamente valiosa por
si mesma, e isso conduz ao deontologismo.
Adela Cortina explora os direitos humanos, já presentes na Ética
do Discurso, na sua perspectiva a fundamentação dos mesmos deve
ter em conta o âmbito ético e a sua promulgação nos códigos jurídicos
vigentes. Os direitos humanos são um tipo de exigências cuja
satisfação deve ser obrigada legalmente e portanto protegida pelos
organismos correspondentes, e, o respeito por estes direitos
humanos, é a condição de possibilidade para se poder falar de homens
no verdadeiro sentido.

58
Enfatiza o carácter autónomo e autobiográfico do sujeito, sem
deixar de reconhecer o sujeito interlocutor da Ética do Discurso.
Portanto, diante da supremacia da consciência kantiana, da
supremacia da racionalidade transcendental apeliana e da supremacia
da pragmática universal habermasiana na moralidade do agir humano,
ela introduz a cordialidade e leva a Ética do Discurso que ora estava
presa à racionalidade formal até à racionalidade emotiva pelo facto de
a dignidade do ser humano situar-se para além do determinável. Trata-
se de uma conciliação entre a razão e a vontade que se traduz na
humanização da racionalidade.

EM BUSCA DO RECONHECIMENTO INTERSUBJECTIVO NAS


SOCIEDADES PLURALISTAS

Nesta subsecção, indicamos que contribuições as duas


perspectivas éticas, a Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial,
podem trazer às sociedades pluralistas.
Nas sociedades hodiernas, a par do relativismo moral, cresce a
consciência moral relativa aos problemas como a violência, a
discriminação, o aborto, a corrupção e os direitos das mulheres e
menores em todas as culturas. Ademais, hoje, exige-se um novo
comportamento das pessoas, não só em relação a outros seres
humanos, mas em relação aos animais e à natureza (MACEDO apud
CARVALHO, 2004).
O respeito, a responsabilidade e a integridade constituem anelo
objectivo de todas as sociedades. É a partir desses valores comuns das
sociedades pós-modernas que deve começar o discurso ético actual.
Em Moçambique, com ocidentalização, mistura-se na vida das pessoas
os valores pós-modernos e tradicionais, o que cria nos jovens uma crise
de identidade e relativismo axiológico.
No contexto das sociedades actuais e a moçambicana, em
particular, revela-se revitalizar a comunicação como o vínculo que une
todas os membros e daí buscar intersubjectivamente as normas que
podem regrar a vida em sociedade. Isto é possível porque a
humanidade está ligada por um vínculo, o comunicativo, que
Habermas e Cortina trazem com a base para a constituição de uma
ética universal.

59
Recorrer ao vínculo comunicativo permite fortalecer os laços
fragmentados (recordemos que vivemos em sociedades liquidas, onde
as relações são fragmentadas), e resgatar o reconhecimento
intersubjectivo de todos os membros da sociedade, tendo em conta
que são interlocutores válidos na busca da aprovação das normas
procedentes do mundo e da vida, pelos interlocutores capazes de
argumentar racionalmente.
Habermas e Cortina defendem a necessidade de uma ética
universal que não exclui nenhuma visão sobre o bem, nem as morais
religiosas que têm um fundamento transcendental, isso só é possível
através de uma ética baseada na comunicação. Apesar desses valores
universais, não podemos menosprezar a influência das religiões e da
moral tradicional na vida das pessoas. Hoje, depois da quebra da
unidade religiosa, é necessário, através do diálogo intersubjectivo,
buscar os princípios e valores que permitem a convivência. Em
Moçambique, é necessário um diálogo intersubjectivo que possa
tornar possível a convivência entre as diversas religiões existentes,
entre as pessoas que vieram das diferentes partes do mundo, com
destaque para as crescentes comunidades asiáticas, africanas
provenientes dos Grandes Lagos e os de origem nativa aqueles que
podiam chamar de nativo. A sociedade moçambicana é hoje
multicultural.
No entanto, este diálogo só é possível se cada grupo cultural e
religioso não se fechar na sua concepção de “vida boa” ou “felicidade”
(ética de máximos), mas sim abrir-se ao mundo partilhável de valores
e princípios que formam uma moral cívica. Ademais, é preciso dar um
passo em frente, não considerar os valores e princípios de modo
puramente racional, mas chegar a uma dimensão cordial da razão
humana.

CONCLUSÃO

O fio da meada do nosso trabalho foi a análise comparativa entre


a Ética do Discurso Ética da Razão Cordial. A dissertação (quis
demonstrar) demonstrou que as duas (ambas as) Éticas constituem
duas ampliações da ética kantiana, e que sendo éticas universais
podem contribuir para o reconhecimento e a valorização do “outro”
nas sociedades modernas, marcadas pelo individualismo, pela cultura

60
do ter e pela fragmentação das relações humanas. Para nós,
inspirando-nos em Habermas e Cortina, considerar o “outro” como
interlocutor válido, é respeitar a sua dignidade, ter sempre em conta a
igualdade e defender a sua liberdade.
A descoberta do vínculo comunicativo desautoriza qualquer
pretensão de individualismo atomista, e vê o “outro” como uma lei
para mim. Esta perspectiva de ser um legislador universal, onde as
minhas acções entram numa ética universal, já estava presente em
Kant. Porém, Habermas e Cortina vieram fortalecer os laços humanos
pela razão comunicativa e pela compaixão.
A Ética do Discurso, na vertente de Jürgen Habermas, e, a Ética da
Razão Cordial– ethica cordis -, desenvolvida por Adela Cortina, são duas
éticas que, na nossa opinião, se complementam e constituem
ampliações distintas à ética kantiana.
Para reconstruir o mundo partilhado destruído pela razão
instrumental, própria da técnica e da ciência, Habermas convida-nos a
superar a razão monológica da ética kantiana, em busca do mundo da
vida, onde os sujeitos intervenientes aderem a um conjunto de valores
recorrendo à argumentação.
A razão monológica é substituída por uma ética que se baseia na
acção comunicativa. Esta última é compreendida como “situação em
que os actores aceitam coordenar de modo interno seus planos e
alcançar seus objectivos, unicamente, à condição de que há ou se
alcance mediante negociação um acordo sobre a situação e as
consequências que cabe esperar” (HABERMAS, 2008, p. 138).
As duas teorias éticas têm em vista (como objectivo) a superar o
vazio moral criado pela razão instrumental. Habermas aponta para os
procedimentos formais que visam a produzir um compromisso de um
agir coordenado, ao passo que Cortina pensa que é necessário ir mais
além, buscando uma ética que, além de apontar para uma razão
procedimental, assenta no coração, uma ethica cordis.
Adela Cortina considera a Ética do Discurso como o modelo por
excelência de uma ética cívica – conjunto dos princípios e valores que
tornam possível a convivência. Por isso, a filósofa valenciana defende
que a Ética do Discurso “pretende encarnar na sociedade os valores de
liberdade, da justiça e da solidariedade por meio do diálogo como
único procedimento capaz de respeitar tanto a individualidade das

61
pessoas como a sua dimensão solidária” (CORTINA; MARTÍNEZ, 1998,
p. 15).
Habermas indicou, tendo como base a acção comunicativa, os
procedimentos necessários para se chegar a esses valores dentro de
uma sociedade pluralista. Entretanto, não saiu da pura racionalidade,
como Kant. Por isso, com Cortina, acontece a segunda ampliação, ao
inserir na dimensão cordial, a compaixão, as virtudes na ética kantiana.
Aqui, a autora faz uma síntese fecunda entre o kantismo (ética do
dever) e o aristotelismo (ética da virtude). O agir humano deve ser
consoante o dever moral, considerando a intersubjectividade, mas
depende da formação do carácter e da busca da virtude. O diálogo
dever ter como referencial primordial os valores.
A Ética do Discurso e a Ética da Razão Cordial colocam desafios às
sociedades em que vivemos; visto que defendem a buscar coordenada
do agir social e moral. Neste sentido, à pessoa humana é sempre
reconhecida e respeitada a sua dignidade a partir do vínculo
comunicativo. Esses princípios exigem das sociedades pluralistas uma
superação dos laços fragmentados, do individualismo, do consumismo
que muitas vezes torna o outro instrumento para a consecução dos
desejos pessoais.
Mas, Adela Cortina chama-nos atenção de que este caminho não
pode ser trilhado apenas pelos procedimentos da pura racionalidade,
o homem da pós-modernidade deve cultivar o seu carácter, vivendo
segundo virtudes e compadecer-se sobretudo com a dor dos outros,
estamos assim numa ética cordial, onde o coração e a razão agem
juntos.
Ao resgatarem o vínculo comunicativo, os dois filósofos abrem
espaço para repensarmos como o crescimento do mundo das redes de
informação pode ser uma forma de a humanidade estar unida por uma
ética universal, que permita uma convivência sem excepções.

REFERÊNCIAS

CAMPS, Victoria. El gobierno de las emociones. Barcelona, Herder,


2010.
CARVALHO, José Maurício de (Org.). Problemas e teorias da ética
contemporâneo. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2004.

62
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siglo XXI. Oviedo (Espanha), Ediciones Nobel, 2007.
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Catedra, 2011.
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categórico, Florianópolis v. 14. n. 2, p. 164-171, Jul./dez, 2011.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad.
Paulo Quintela, Lisboa, Edições 70, 1995.
LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos
tempos democráticos. São Paulo, Editora Morale, 2005.
RAWLS, John, O liberalismo político. São Paulo, Ática, 2000.

63
64
A ACÇÃO COMUNICATIVA E A RAZÃO CORDIAL:
DOIS FUNDAMENTOS DA DIDÁCTICA DE FILOSOFIA
NA HIPERMODERNIDADE MOÇAMBICANA

Francisco Valente Fumo1

INTRODUÇÃO

As mudanças tecnológicas, sociais, económicas, culturais e


políticas, que estamos a viver no contexto da hipermodernidade,
influenciam a vida interior e pessoal da pessoa humana. Ademais, as
sociedades actuais apresentam-nos um mundo que nos escapa
permanentemente. Por isso, uma das marcas desta época é o
individualismo no qual os seres humanos somos obrigados a
desenvolver activamente nossa própria identidade (GIDDENS;
SUTTON, 2017, p. 177). Nas sociedades hodiernas, os individuos tȇm
mais oportunidades de configurar sua própria vida, devido a que
vivem uma vida más aberta e reflexiva. A biografia de cada pessoa é
hoje uma bigrafia elegida com todas possíveis consequȇncias. O
individuo da era hipermoderna não se aferra a tradição, busca a
autonomia, como capacidade de reflectir por si mesmo e
autodeterminar-se (GIDDENS, 1995, p. 167).
Este fenómeno se desenvolve a partir do desprezo das
instituçoes tradicionais como autoridade política, social e civil, e tudo
o que pode ser conotado com uma moral heteronóma.

1 Francisco Valente Fumo é Doutorando em Migraçoes Internacionais e Cooperação ao

Desenvolvimento (Universidad Pontificia Comillas - Madrid), Mestre em


Desenvolvimento Social (Universidad Católica San Antonio de Murcia - UCAM), Mestre
em Teologia Moral e Pastoral (Universidad Pontificia Comillas - Madrid), Mestre em
Bioética (Universidad Pontificia Comillas - Madrid), Mestre em Educação/Ensino de
Filosofia (Universidade Pedagógica de Maputo – UPM), Licenciado em Filosofia
(Universidade São Tomás de Moçambique – USTM) e Licenciado em Sagrada Teologia
(Pontifícia Università Urbaniana). É docente na USTM de História da Filosofia
Medieval, Filosofia do Direito e Filosofia da Religião. No Instituto Superior Maria Mãe
de África, lecciona as cadeiras de Ética Aplicada, Metafísica, Filosofía da Natureza
(Cosmologia).

65
Na perspectiva de Lipovetsky e Charles, não é que as instituções
tenham perdido seu sentido de ser, mas sim estão a ser reutilizadas a
favor da soberania do sujeito (LIPOVETSKY; CHARLES, 2014, p.103). O
individuo da hipermodernidade não só é autocrítico dos saberes
tradicionais, se não que reactiva as crenças tradicionais através de
uma hibridação do passado e da hipermodernidade. Constitui-se
como um ser absoluto nas suas decisões. Não só se institucionaliza a
moral individualista, mas se sacraliza também o individuo de modo
que o homem se converte um ser que dita suas próprias normas
(BECK, 2009, p. 104).
Em Moçambique, ultimamente, já se fala do vazio de sentido,
como crise de identidade e crise ética. Castiano e Ngoenha (2011, p.
83) elucidaram o aspecto da crise de identidade de seguinte modo:
“em tudo o que pretendemos fazer, como o desenvolvimento, fazemo-
lo à imagem e a semelhança do Ocidente como horizonte, como
justificação, como legitimação”.
Fazer tudo em função do Ocidente é negação da própria
identidade de moçambicanos, como também é negar que o homem
moçambicano seja um projecto que deve construir a sua essência. No
sentido existencialista, o ser humano deve ser considerado como
centro do seu próprio desenvolvimento, neste caso o
desenvolvimento nunca será imitar o outro. Os moçambicanos
deverão compreender que cada um é único e irrepetível e pelas
escolhas pessoais, vai construindo a sua essência.
No campo da educação, em particular, com a difusão dos meios
de comunicação social e electrónicos; com a criação de extensas redes
sociais; com a emergência de uma sociedade multi-cultural, multi-
etnica e multi-religiosa; com a massificação do acesso ao Ensino
Superior, o pessimismo ocidental difunde-se por Moçambique.
Confrontado com o desenvolvimiento acelerado dos países europeus,
americanos e asiáticos, o estudante moçambicano sente encanto pelo
Ocidente e desencanto por Moçambique. Perdeu os sentidos de
referência tradicionais, primeiro com a introdução de religiões
estrangeiras, o cristianismo (uma religião de raiz hebraica-grega e
latina) e o islamismo (uma religião de raiz árabe); e, depois, com a
adopção de uma política importada desde as remotas terras do
Império Soviético. Alterou a sua relação com a terra, com a
comunidade, com o seu povo ou tribo. Identificou-se com um Estado

66
Moçambicano, criado artificialmente pela vontade humana, e, com
uma língua oficial herdada de uma potência estrangeira e europeia.
A hipermodernidade em Moçambique se manifesta como crise
ética. Na visão de Gonçalves (2011), esta deveu-se a negação da
tradição para a construção de um futuro socialista e à reversão
repentina do país ao capitalismo. Em outras palavras, os jovens, em
particular, são confortados com passado revolucionário socialista e
com a ilusão neoliberal, em que a realização do futuro melhor se
mostra cada vez mais distante, por isso cairam no vazio de sentido,
que se evidencia através do individualismo personalizado. Isso se
pode ver nas atitudes de busca dos interesses individuais.
Este capítulo tem por objectivo analisar como a razão
comunicativa de Habermas e a razão cordial de Adela Cortina podem
fundamentar a Didáctica de Filosofia no contexto de um Moçambique
da hipermoderidade. Para atingir este objectivo seguimos uma
pesquisa qualitativa, baseada na recolha bibliográfica. O método
correlacional, o qual seguimos, relaciona em primeiro lugar os dois
autores e procura trazer à luz que métodos podem beneficiar a
Didáctica de Filosofia, partindo da acção comunicativa e da razão
cordial.
O capítulo se constitui de duas partes. Exploramos, em primeiro
lugar, os conceitos de acção comunicativa e razão cordial; depois,
passamos a indicar os possíveis métodos didácticos que podem ser
consequências da acção comunicativa e da razão cordial e por fim
indicaremos, em forma de conclusão, as possíveis perspectivas para
una didáctica de filosofia no contexto moçambicano.

AÇÃO COMUNICATIVA EM J. HABERMAS

É imprescindível compreendemos o contexto da elaboração do


conceito de acção comunicativa no percurso intelectual de Habermas.
No seu projecto intelectual da década dos 70, repensa o materialismo
por meio de uma crítica da teoria da racionalização de Weber
(SPECTER, 2013, p. 205).
Por isso, os principais aspectos da teoria acção comunicativa
foram recolhidos já em 1968 em Tecnologia e ciência como ideologia.
Neste ensaio, Habermas inventou as categorias de trabalho e
interacção para resolver o problema que surgia da estrutura do

67
discurso sobre a tecnologia. Para reformular a racionalização de
Weber, Habermas toma a distinção entre trabalho e interacção; como
também distingue a racionalidade instrumental e a racionalidade
comunicativa.
Enquanto a racionalidade instrumental defende uma acção
orientada a fins concretos; no entanto, Habermas chega à
racionalidade comunicativa e a distingue da racionalidade epistémica
e da teleológica, uma vez que a comunicativa “exprime-se na força
unificadora da fala orientada ao entendimento mútuo, discurso que
assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida
intersubjectivamente partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte no
interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo mundo
objectivo” (HABERMAS, 2004a, p. 107).
A acção comunicativa, sendo uma interacção simbolicamente
mediada, é uma crítica ao progresso científico-técnico, dado que este
não oferecia uma distinção entre trabalho e interacção, tal fez com
que “perdessem a consciência do dualismo trabalho e interacção”
(SPECTER, 2013, p. 208).
Diferentemente do individualismo protagonizado pelo
progresso tecnológico-científico, a acção comunicativa governa-se
por normas consensuais vinculantes, que definem as recíprocas
expectativas respeito a condutas e que devem ser entendidas e
reconhecidas ao menos por dois sujeitos actuantes.
A nova tecnologia, desenvolvida pela razão instrumental, na
visão de Habermas, viola duas condições fundamentais da nossa
existencial cultural. Destrói, por um lado, a linguagem na forma de
individualização e socialização determinada pela comunicação na
linguagem ordinária, e por outro lado, viola a manutenção da
intersubjectividade da compreensão mútua, assim como a criação da
comunicação sem dominação (SPECTER, 2013, p. 209).
Com a teoria da acção comunicativa, Habermas defende uma
comunicação livre como fundamento normativo para a teoria social,
onde a pragmática universal da língua é a pedra fundamental para o
edifício da mesma teoria. Este conceito combate a ideologia como
comunicação sistematicamente distorcida.
A acção comunicativa é ponto de chegada da crítica feita por
Habermas à razão instrumental ou finalista na versão de Weber e
Popper, que se atêm ao modelo dedutivo da justificação. Não

68
esqueçamos que a teoria da Acção comunicativa esboça-se na
tentativa de ampliar o conceito de razão pela razão comunicativa, e
um novo conceito de sociedade, que integrasse o sistema ao mundo
vivido. Habermas defende, através da acção comunicativa, uma
racionalidade abrangente,

a racionalidade comunicativa exprime-se na força unificadora da fala orientada


ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes envolvidos um
mundo da vida intersubjectivamente partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte
no interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo objectivo
(HABERMAS, 2004a, p. 107).

Entramos agora com mais pormenores para o conceito da Acção


Comunicativa. Para percebermos o mesmo, temos que partir do
conceito de acção social. Com o propósito de demonstrar isso,
Habermas exemplifica a acção social com “a cooperação entre (ao
menos) dois actores que coordenam as suas acções instrumentais para
a execução de um plano de acção comum” (HABERMAS, 2011, p. 476).
Desta afirmação, compreende-se porquê Habermas concebe a
acção comunicativa como uma interacção social mediada pela
linguagem. Pois, a linguagem é fonte de integração social. Sendo uma
acção dirigida ao entendimento, através do agir comunicativo, os
participantes definem de modo cooperativo os seus planos de acção,
com vista ao entendimento.
É evidente, em Habermas, que o conceito de acção comunicativa
recupera a razão como factor de entendimento e de equacionamento
dos problemas do homem hipermoderno, mediados pela razão
discursiva. Deste modo, o agir comunicativo não corresponde apenas
às acções orientadas ao entendimento mútuo, como também
percebe-se como produto dos processos de socialização resultantes
do entendimento mútuo e consenso.
Assim, Habermas recupera a razão como factor de entendimento
e de equacionamento dos dilemas do homem moderno, intermediário
pela razão discursiva. Isto demonstra-se no conceito de acção social
que é uma interacção consensual, na qual os participantes partilham
uma tradição e a sua orientação é normativamente integrada de
forma que da mesma definição da situação e não discordam
relativamente às pretensões de validade que reciprocamente
apresentam.

69
A este nível da nossa argumentação, fazemos uma distinção
entre a acção estratégica e as acções comunicativas, visto que, para
compreender o pensamento de Habermas sobre a passagem de uma
racionalidade científica e tecnológica para racionalidade comunicativa
é fundamental.
Muito antes de escrever um ensaio sobre a acção comunicativa,
Habermas diferenciou a acção comunicativa da acção estratégica
deste modo: “A acção estratégica distingue-se das acções
comunicativas que ocorrem sob tradições comuns, em virtude de a
decisão entre possibilidades alternativas de escolha, poder e ter de
tomar-se de forma fundamentalmente monológica, isto é, sem um
entendimento ad hoc” (HABERMAS, 1968, p. 22).
Na acção estratégica, o agente solitário pretende influenciar as
acções dos outros, de acordo com seus interesses particulares não
generalizáveis; enquanto o agir comunicativo é uma acção orientada
para o entendimento, por isso os intervenientes mantém uma atitude
cooperativa. Pelo contrário, a acção estratégica, seja ela evidente ou
latente (manipulação e comunicação distorcida), os agentes não
buscam o entendimento nem reconhecem as bases universais de
validade.
Na acção comunicativa, como Habermas defende, “os
participantes unem-se através da validade pretendida de suas acções de
fala ou tomam em consideração as dissensões constatadas. Através das
acções de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, os quais
apontam para um reconhecimento intersubjectivo” (HABERMAS, 1990,
p. 72).
Esta distinção que Habermas faz é importante, pois trata-se de
dois níveis de comunicação bem distintas. A acção comunicativa
assenta numa racionalidade que se manifesta nas condições
requeridas para um acordo obtido comunicativamente, enquanto a
acção estratégica apoia-se na racionalidade teleológica dos planos
individuais.
Dado que acção comunicativa está baseada na racionalidade
comunicativa, que tem em vista o consenso, ela desemboca nos actos
ilocutórios, como escreve o próprio autor, “eu caracterizei o
compreender e o aceitar de acções de fala, como sucessos
ilocucionários” (HABERMAS, 1990, p. 72).

70
No agir comunicativo, tem-se a certeza de que o télos do
entendimento habita na linguagem e por força é de per se normativo.
Habermas ilustra esse pensamento ao escrever; “o conceito
entendimento possui conteúdo normativo, que ultrapassa o nível da
compreensão de uma expressão gramatical” (HABERMAS, 1990, p. 77).
A explicação que se pode dar a esta assertiva de Habermas é que
sempre que dois falantes se entendem sobre alguma coisa, no fundo
aceitam antes os proferimentos válidos sobre a mesma coisa; daí que
há sempre, por trás do consenso, um conhecimento intersubjectivo
de validade de um proferimento. Então, na linguagem não só estão
ligadas as dimensões do significado e de validez, mas encontramos
também a dimensão normativa.
Acção comunicativa é fundamentalmente domínio de situações,
assim ela contém dois aspectos, “o aspecto teleológico de execução de
um plano de acção e o aspecto comunicativo da interpretação da
situação e obtenção de um acordo” (HABERMAS, 2011, p. 493).
Habermas defende que para ocorrer o aspecto teleológico da acção,
temos que ver o actor como uma pessoa capaz de adoptar duas
relações com o mundo objectivo, pode conhecer estados de coisas
existentes e trazer à existência estados de coisas desejadas.
Agindo em busca do consenso, os participantes, na acção
comunicativa, realizam acções definidas em comum, e procuram
assim um consenso não falhado e sem desentendimentos, nem mal-
entendidos. Acção comunicativa ocorre dentro daquilo que Habermas
denomina mundo da vida, este é “o contexto formador do horizonte
dos processos de entendimento que delimita a acção moral”
(HABERMAS, 2011, p. 494).
Assim, o mundo vivido é um conceito complementar do agir
comunicativo, na medida em que o primeiro representa o background
social da acção orientada ao entendimento mútuo, e o entendimento
é o segundo médium da reprodução simbólica do mundo da vida.
A racionalidade comunicativa unifica o discurso orientado ao
entendimento e assegura aos participantes um mundo
intersubjectivamente partilhado. Na racionalidade comunicativa, o
agente, “com seu acto de fala, procura atingir o seu objectivo de
conseguir a comunicação com o ouvinte a respeito de algo”
(HABERMAS, 1996, p. 193).

71
A racionalidade comunicativa tem como objectivos ilocutórios
conseguir entendimento entre os falantes. Como o próprio Habermas
atesta:

a racionalidade comunicativa toma apenas corpo, antes de mais, num processo


de entendimento que opera através dos pretensões de validade sempre que
falante e ouvinte, numa atitude performativa dirigida a segundas pessoas, se
entendem ou pretendem entender-se entre si a respeito de algo do mundo
(HABERMAS, 1996, p. 198).

Habermas está convicto que é por meio de procedimentos da


argumentação que se devem construir as normas duma sociedade,
numa situação que se devem adoptar pontos de vista uns dos outros,
tendo como critério a força do melhor argumento.
Não esqueçamos que Habermas, com seu pensamento persegue
aquele projecto da modernidade de liberdade e igualdade, valores
trazidos pelo iluminismo. Na sua perspectiva para se chegar a estes
ideais, “deixemos de lado o paradigma da consciência entendamos que
a racionalidade não depende directamente do sujeito, mas da
intersubjectividade que atrelemos, assim, o pensamento a uma lógica de
descentralização em relação ao ego” (HABERMAS, 2004b, p. 8).
Habermas defende que não existe um mundo inteligível que
fornece ao homem ideias de conduta moral, nem procedem de uma
intuição mental dos indivíduos. As normas morais são frutos do agir
intersubjectivo. No entanto, a intersubjectividade não exclui a
subjectividade; Habermas demonstra isso partindo de dois conceitos
presentes na moral de Kant, a liberdade e autonomia. A liberdade é
um acto da consciência de único sujeito, enquanto na autonomia a
vontade se deixa determinar por máximas aprovadas pelo teste da
universalidade.
Habermas combina a subjectividade, ou a liberdade comunicativa
com a busca do consenso; porque cada participante é dotado de
liberdade para dizer sim ou não na discussão, porém esta liberdade de
dizer sim ou não orienta-se pela busca do consenso. Os participantes,
uma vez mergulhados no diálogo, devem deixar-se guiar pela força do
melhor argumento, porque escolhem “soluções que sejam
racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos e todos os que por
elas forem afectadas” (HABERMAS, 2004b, p. 16).

72
A RAZÃO CORDIAL EM ADELA CORTINA

A filósofa valenciana encontra na acção comunicativa de


Habermas uma falha. Esta perspectiva ética, na visão de Adela Cortina,
é excessivamente racional, procedimental, formal que lhe falta a
dimensão dos sentimentos, da cordialidade. Adela Cortina defende
que é muito difícil considerar o outro como interlocutor válido na
realidade sem ter em conta a dimensão sentimental, posto que o
reconhecimento, não pode resultar apenas da dimensão lógico-
formal, tem de haver necessariamente uma dimensão cordial.
No fundo, a Razão Cordial unifica duas dimensões fundamentais
do ser humano, a razão e os sentimentos, que indubitavelmente se
complementam. Adela Cortina trava uma luta conta a hegemonia da
razão reducionista, positivista e meramente procedeimental. Ela
convida-nos a pensar mais além da razão procedimental, a buscarmos
a ordo amoris de Max Scheler. Recordemos que Max Scheler tem uma
visão do homem marcado não apenas pela razão positivista. Na obra
A Posição do Homem no Cosmo, ele defende que o homem,
diferentemente dos animais, “dispõe de uma especial abertura ao
mundo: o seu espírito torna-o capaz de se distanciar do seu imediato e
com isso de se abrir ao mundo, fora de seu círculo de percepção”
(SCHELER apud DELUIS et al, 2001, p. 102).
A ordem do amor é o ethos do homem. Deste modo, Cortina
segue a Scheler e amplia a razão kantiana e a razão comunicativa pela
razão cordial. Com efeito, Max Scheler escreve no seu ensaio Ordo
Amoris: “o núcleo fundamental deste ethos é a ordem do amor e do
ódio” (SCHELER, 1998, p. 2).
Assim, Adela Cortina empenha-se em mostrar como o vínculo
comunicativo não só conta com uma dimensão argumentativa, não só
revela uma capacidade de argumentar sobre o verdadeiro e sobre o
justo, senão que conta com uma dimensão cordial e compassiva, sem
a qual é impossível comunicar-se. Ademais, temos que dizer que para
argumentar a sério sobre o justo e o injusto é necessário ir à base da
vontade cordial e compassiva da comunicação. Pois, a razão íntegra é
a cordial e não a lógica-argumentativa, chegamos eficazmente à
justiça pelo coração e não pela razão.
Esta ampliação que a autora propõe fundamenta-se no próprio
vínculo comunicativo que não se esgota na dimensão lógico-

73
argumentativa, pois no vínculo comunicativo sobressai a dimensão
cordial. Por outro lado, o vínculo comunicativo já existe nas pessoas,
o que pode acontecer é recusá-lo, mas nunca ignorá-lo. De facto, esta
autora está convencida de que o verdadeiro tem algo de
comunicativo, porque “nadie es capaz de descubrir en solitario qué es
lo verdadero o qué es lo conveniente, sino que necesita entrar en un
diálogo con otros para ir descubriéndolo conjuntamente” (CORTINA,
2013, p. 33).
O vínculo comunicativo oferece muitas dimensões que
ultrapassam de longe a dimensão lógica. Aqui encontramos uma
superação da ética do discurso que buscou no vínculo comunicativo
apenas procedimentos para validação das normas. É necessário ir
mais além, descobrir que o vínculo comunicativo esconde uma
dimensão cordial, porque para descobrir o que é justo, o agente deve
cultivar o seu carácter, estimar os valores a justiça e “nuestra ética de
la razón cordial ha encontrado la fuente de la obligación moral en el
reconocimiento recíproco de seres que se saben y siente
interlocutores válidos por compartir el bagaje de una razón cordial”
(CORTINA, 2007, p. 240).
Por um lado, estimar os valores implica de certo modo unir a
razão e os sentimentos, pois o reconhecimento cordial radica dos
valores morais na compreensão de que os seres humanos são seres
de dignidade e de grandeza, e são igualmente, seres vulneráveis que
obrigam ao respeito e à compaixão.
Adela Cortina chama a este modo de proceder o cultivo da
virtude de cordura, que é um enxerto da prudência no coração da
justiça. Assim, os projectos racionais têm força se não perdem a sua
base que é o coração. A compaixão leva a aproximar-se a quem sofre
e a tratar de eliminar as causas do sofrimento, sentindo o respeito por
sua inegável dignidade. O vínculo que nos une é o reconhecimento da
nossa dignidade e, ao mesmo tempo, da nossa situação de
vulnerabilidade.

A ACÇÃO COMUNICATIVA E A RAZÃO CORDIAL: FUNDAMENTOS DA


DIDÁCTICA DE FILOSOFIA

Os entendidos na matéria dizem que existe uma arte de ensinar


que se chama Didáctica. Então, a Filosofia deve ser ensinada com arte.

74
Esta arte de ensiná-la chama-se Didáctica de Filosofia. Ao tentarmos
entrar no conceito de Didáctica de Filosofia, um problema se coloca
porque a Filosofia é de per si uma disciplina didáctica, então ela, em
princípio não necessitaria de uma Didáctica a partir das ciências de
educação. Esta nossa asserção é confirmada pelo pensamento de
Dantas, que escreveu:

a Filosofia não é apenas mais uma disciplina a ser ensinada e aprendida, mas nela
se define, se pratica e se põe em jogo a essência e a própria natureza de ensinar
e aprender […], não como simples transferência de conteúdos, ou mera
aquisição de habilidades específicas, sejam elas técnicas, comportamentais ou
cognitivas, mas na verdade como toda uma prática, todo um processo
essencialmente emancipatório de educar, de formação de homens e mulheres
efectivamente capazes de pensar, questionar e elucidar dialogicamente as
condições de realização de suas vidas, de sua própria história, do próprio mundo
em que existem (DANTAS, 2002, p. 61-62).

No entanto, a Didáctica, sendo uma reflexão crítica sobre o


ensino e aprendizagem, procura reflectir sobre a relação pedagógica,
os conteúdos, métodos e avaliação, pode aplicar-se também à
Filosofia. Pois, a Filosofia é uma disciplina que “se caracteriza como
uma busca amorosa de um saber inteiro. Ver com clareza, abrangência
e profundidade a realidade, assumindo diante dela uma atitude crítica,
é a tarefa constante do filósofo” (RIOS, 2010, p. 44); a Filosofia não
pode eximir-se de criticar-se, perguntar-se e questionar-se sobre a
relação pedagógica que o seu ensino e aprendizagem implicam na sala
de aulas.
Ao reflectir sobre o processo de ensino e aprendizagem da
Filosofia, ela cumpre o seu papel de busca, de admiração, crítica,
demanda pela felicidade e pelo sentido, espaço de interacção. Visto
que: “saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”
(FREIRE, 1999, p. 52).
Na nossa opinião, o ensino da Filosofia, numa cultura da
personalização e individualismo total, onde os interesses e desejos
individualistas passam a ter mais valor do que os colectivos
(LIPOVETSKY, 2005), exige busca intersubjectiva do saber filosófico.
Isto se explica se tivermos em conta que “o saber muda de estatuto
ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pós-
moderna” (LYOTARD, 1979, p. 3).

75
Na hipermodernidade, o estudante deve sentir-se um sujeito no
processo de ensino e aprendizagem, como se buscara
individualmente o que aprende. De facto, a Filosofia ajuda os seus
amantes a construirem um pensamento lógico, a serem criativos até
mesmo a serem capazes de produzir um pensamento crítico.
Ademais, a Filosofia tem a capacidade de conduzir os seus amantes
aos valores (entendamos valores morais que se podem inculcar
através da Ética).
Colocar a razão comunicativa e a razão cordial como
instrumentos que possibilitam uma Didáctica da Filosofia é superar a
dicotomia que a educação muitas vezes coloca entre a razão e os
sentimentos. É recolocar o verdadeiro sentido da razão, refutando a
razão instrumental e a acção estratégica. Neste contexto, é mister
recorrer à visão de Rios que sustenta que:

trata-se, sim, de negar tanto a razão positivista, exaltada pela modernidade,


quanto o irracionalismo que parece ser característica do movimento
denominado pós-moderno. É preciso resgatar o sentido da razão que, como
característica diferenciadora da humanidade, só ganha sua significação na
articulação com todos os demais instrumentos com os quais o ser humano se
relaciona com o mundo e com os outros – os sentidos, os sentimentos, a
memória, a imaginação (RIOS, 2010, p. 45).

O pressuposto base de uma didáctica de filosofia que tenha


como premissas a razão comunicativa e o reconhecimento cordial é,
por um lado, considerar o aluno como interlocutor válido, diante do
qual me aproximo com respeito porque buscamos juntos, um
consenso. A Filosofia é o lugar do discurso. Por outro, é ter sempre
como ponto de referência o mundo os valores, tendo em conta que o
homem é valor absoluto (dignidade humana). Pois, a filosofia busca
“explorar este objecto, o ser humano, em sua inteireza, seus desejos,
suas paixões, suas relações, o mundo que constrói” (RIOS, 2010, p.
50). Tal objecto obriga-nos a colocar a ética no centro da Didáctica da
Filosofia. Ensinar e aprender Filosofia é estimar valores.
Porém, quando isto se refere ao indivíduo da hipermodernidade,
não se deve obviar a autorrealização e a busca da felicidade personal.
Mas a felicidade e autorrealização exigem formação prudencial do
carácter (ADELA, 1995). Por isso, o professor de Filosofia deve, além
de habilitar o aluno a buscar a intersubjectivamente a verdade por
uma argumentação crítica, analisar criticamente as normas vigentes

76
no seu meio social, ajudar o aluno apreciar valores e a ter sentimentos
de compaixão.
Nesta perspectiva, o primeiro método que se coloca é o dialógico
(diálogo como meio de interacção na sala de aula). Este resulta do
trânsito que Habermas e Adela Cortina fazem, da razão monológica
de Kant à razão comunicativa ou dialógica que nasce da consideração
do vínculo comunicativo entre o professor e o aluno, como acontece
no mundo social.
O fundamento deste método está na própria natureza do
filosofar, que se nutre do intercâmbio e da oposição das consciências
reflexivas. Supõe que os sujeitos (professores e alunos) na sala de aula
são obrigados a agir comunicativamente, isto é procuram o
entendimento – neste método, o professor faz perguntas a fim de
estimular a crítica, cativa a atenção dos alunos e penetra no território
da sua emoção para cativar dúvida.
A educação para liberdade usa-se do diálogo como ferramenta
principal. Pois, como dizia Freire, “o diálogo é a essência da educação e
é o meio de superação da contradição entre o educador e o educando”
(FREIRE, 1977, p. 22) O diálogo constroí a liberdade porque respeita a
curiosidade e o questionamento do educando em relação ao mundo,
às pessoas, ao seu sentido de vida.
O diálogo é fundamental na educação, porque no fundo ninguém
educa ninguém, os homens se educam entre si, mediatizados pelo
mundo. Por isso, a dialogicidade deve ser base da educação. Pois,
dentro da educação mediada pelo diálogo, acontece aquele contacto
profundo inter-humano; na qual, para Martin Buber (1974), se dá a
confirmação da pessoa; ou melhor confirma-se que o aluno é um
parceiro na busca do conhecimento. Logo, a Didáctica da Filosofia
deve estar marcada pelo diálogo, racionalidade intersubjectiva
(CORTINA, 1996).
O diálogo possibilita a participação activa do aluno na busca do
saber. Por isso, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou sua construção” (FREIRE,
1999, p. 52). Não obstante, a característica da hipermodernidade ser a
autonomia do individuo, esta é realizável através de diálogos
intersubjectivos (CORTINA, 2000, p. 23). A dialogicidade, para usar a
expressão de Freire, ajuda o professor a reconhecer a unicidade e as
potencialidades do educando, para se tornar pessoa única. Aliás, para

77
pedagogia existencialista, o sujeito (neste caso o educando), como
centro de referimento, no diálogo, descobre a sua real capacidade de
auto-afirmação, como via de buscar a autenticidade.
Não se pode compreender a educação sem o diálogo, pois “a
educação é, por excelência, o lugar do diálogo, portanto, o lugar da
palavra e da reflexão, que ultrapassa a apropriação dos conhecimentos
para nos conduzir à formação pessoal. Desde que podemos dizer a
palavra, estamos em constante conversação com o mundo, instaurando
a própria possibilidade de educar” (HERMANN, 2003, p. 95). Aliás,
como escreveu Izquierdo Moreno “a vida é um diálogo permanente.
Não existe vida sem diálogo, uma vez que a vida é fundamentalmente
diálogo” (MORENO, 2005, p. 183).
O segundo é o método da crítica social, fundamenta-se na
docência que é um processo complexo que pressupõe uma
compreensão da realidade concreta da sociedade, o que Habermas
chama o mundo da vida. Deste modo, o ensino e aprendizagem da
Filosofia implicam sempre uma crítica sobre a realidade social. Por
isso, Ngoenha (1993) defende que a missão do filósofo é produzir
utopias para o seu povo. A educação tem sempre a dimensão social.
Para Habermas, acção comunicativa ocorre dentro daquilo que
denomina mundo da vida, este é “o contexto formador do horizonte
dos processos de entendimento que delimita a acção moral”
(HABERMAS, 2011, p. 494).
Deste modo, o docente de Filosofia fará da sala de aula um lugar
de debate sobre temas sociais. Neste vertente, ele usará da exposição
interrogada. O professor procurar interrogar as verdades sociais, para
isso ele coloca a dúvida como crivo de informação. Visto que educar é
sobretudo provocar a inteligência, é a arte do desafio.
A docência, como nos ensinou Sócrates, é uma maiêutica.
Sócrates, nas suas interlocuções, começava por fazer perguntas aos
seus alunos e como estes dessem respostas segundo a opinião
comum (entenda-se aquelas respostas dadas pela sociedade), ele
apresentava argumentos com vista a derrubar as respostas dadas
pelo senso comum (LEANG, 1995).
O docente deve usar, no ensino de filosofia, a dúvida porque
“a dúvida provoca-os mais do que a resposta” (CURY, 2008, p. 126). A
dúvida expande o mundo das ideias dos alunos, ajuda-os a
questionarem o mundo à sua volta. Por isso, Habermas conseguiu ser

78
um crítico social. Trouxe-nos a racionalidade comunicativa como
resposta à racionalidade instrumental e Cortina veio ampliá-la com a
razão cordial.
O terceiro método é educar aos valores. Adela Cortina coloca no
reconhecimento cordial os valores. É importante que os professores
eduquem aos alunos a estimar os valores como autonomia, liberdade
e igualdade; bem como a serem tolerantes. Ademais, a educação tem
que ser algo que mexe com os sentimentos das pessoas. Assim, os
professores deverão humanizar o conhecimento. Não devem
transmiti-lo de modo cru, mas sim apresentá-lo cheio de valores.
Como escreveu Adela Cortina: “no hay enseñanza neutral, sino siempre
cargada de valores, por eso más vale explicitarlos y tratra
serenamente sobre ellos para no caer en la indoctrinación (CORTINA,
2007, p. 142).
Adela Cortina esta ciente de que toda a educação é
acompanhada pela transmissão de valores. Portanto, “por de trás de
qualquer pedagogia existem valores, crenças e suposições calcadas
numa visão de mundo particular” (GIROUX, 1997, p. 72).
Por último, colocamos a educação à compaixão para com os
seres humanos que sofrem e ao cuidado dos seres não humanos. Tal
educação pode ser fomentada pela participação dos alunos em
projectos sociais. Este procedimento ajuda os alunos a superarem o
individualismo, o egoísmo e o desejo de dominar aos outros e tornam-
se mais sensíveis à dor alheia. O outro campo importante é educar
para eles não possam causar dor aos seres infra-humanos, pois eles
sentem também a dor. Ademais, deverão cuidar da natureza em geral,
para que o nosso habitat seja sempre habitável.

CONCLUSÃO

O ensino e aprendizagem de filosofia combina vários métodos,


procedimentos e modos de ensinar, que compromete professores e
alunos na busca do conhecimento. Na perspectiva de Habermas e
Adela Cortina, toda a Didáctica centra-se na intersubjectividade. Onde
se considera o aluno como um interlocutor na busca do
conhecimento. Os dois autores oferecem-nos como modelo de busca
o estabelecimento do diálogo, na expectativa real de aproximar-se de

79
um consenso. Aqui, se encontra a dignidade humana como centro do
ensino e aprendizagem.
O saber é fruto de um entendimento intersubjectivo. A
linguagem é a condição de possibilidade da experiência educativa.
Deste modo, os agentes educativos sujeitos efectivos no processo
educativo. Então, valoriza-se, no processo de educação, as relações
humanas. A educação dirige-se para os valores como a liberdade,
igualdade, autonomia, justiça e procura incutir nos alunos a
compaixão pelos que sofrem e o cuidado dos seres não humanos.
A acção comunicativa e a razão cordial trazem consigo os
seguintes princípios didácticos: a dialogicidade, a crítica social, o
educar aos valores e a educação à compaixão. Os princípios acima
indicados não esgotam aquilo que são a acção comunicativa e a razão
cordial, mas constituem uma boa base para mais aprofundamento.

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81
82
PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY NO SISTEMA
NACIONAL DE EDUCAÇÃO MOÇAMBICANA

Augusto Kessai Agostinho Chicava1


Izequiel Estanilau da Costa2

INTRODUÇÃO

Este capítulo discore acerca da importância do pensamento


pedagógico de John Dewey no sistema nacional de educação
moçambicana. Neste sentido partimos da perspectiva que uma
população educada é fundamental para o desenvolvimento nacional.
Sendo a educação a estrada mestra para a preparação dos recursos
humanos necessários para o crescimento e desenvolvimento de um
país assim como para a ordem social, então, somos todos chamados à
procura dos melhores elementos que possam fazer desta estrada
mestra, firme e duradoura.
Segundo Ngoenha, “a história é uma concepção ocidental, ela
levou o ocidente até onde se encontra hoje, e a nós – africanos -
empurrou-nos para uma posição de eternos subalternos, atrasados em
relação aos outros e objectos do seu olhar” (NGOENHA, 1993: 50,
nossos grifos). Ora, a educação em África desde a invasão europeia
tem sido vista como alienada e desvalorizada em relação aos saberes
ocidentais. Isto significa que, o processo de colonização trouxe
consigo vantagens assim como prejuízos para África. Segundo Freire,
“A invasão cultural é a penetração em uma sociedade qualquer, de
uma cultura estranha que a invade e lhe impõe sua maneira de ser e de
ver o mundo” (FREIRE, 2008, p. 186). Temos neste caso um tipo de

1Doutorando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante no


grupo de pesquisa “Ensino e Conhecimento”. Atualmente é Professor efetivo na
Universidade São Tomás de Moçambique (USTM). Pesquisa na área de Epistemologia
Genética; Pedagogia Freireana e Pragmatismo Deweyana. Bolsista da CAPES. E-mail:
[email protected]
2 Izequiel Luciano Estanoslau da Costa SJ (Padre). Licenciatura em Filosofia pela

Universidade São Tomás de Moçambique (USTM), E em teologia pela Hekima


University College in Kenya. Atualmente é Professor e Padre Capelão do St. Ignatius
College em Harare (Zimbabwe). E-mail: [email protected]

83
sociedade que não pode gozar dos seus direito pela imposição dos
mais fortes. Em tudo faz-se sob uma ordem alheia a sua vontade. A
mesma ideia é apresentada por Dewey quando fala da Europa bárbara:

Com efeito, tinha que ir à escola para obter a civilização grego-romana; com isto,
também sua cultura era mais de empréstimo do que desenvolvida por ela
própria. Não somente suas ideias gerais e educação artística, senão também os
modelos de suas leis, provinham dos trabalhos escritos de outros povos. E sua
dependência aumentou ainda com os dominantes interesses teológicos desse
período (DEWEY, 1979, p. 308).

No caso de Moçambique por exemplo, a história narra que nos


finais do século XV e princípios do século XVI, iniciaram os primeiros
contatos dos portugueses com a sociedade moçambicana. Nesses
contatos, os portugueses invadiram e impuseram nos moçambicanos
à sua maneira de ser e de ver o mundo. A partir dai o estilo de vida dos
moçambicanos foi modificado. E, pouco a pouco os portugueses
usando o cristianismo foram travando nos moçambicanos a
criatividade, impossibilitando-os assim da sua visão crítica, limitando o
seu raciocínio, fazendo deles um povo estático, sem crescimento.
Segundo Ngoenha (1993) “não nos foi perguntado como víamos o
nosso futuro, quais eram as nossas aspirações, os nossos sonhos.
Éramos simplesmente chamados a executar futuros inventados por
outros e em benefício deles” (p.10). Como tal, o povo moçambicano
passou a não gozar dos seus direitos de cidadãos, fazendo da ordem
portuguesa as suas vontades, como outrora apontara Dewey acerca
da escravatura que,

o escravo, no definir de Platão, é o homem que recebe de outros os objetivos


que orientam sua conduta. Manifesta-se esta condição mesmo quando não haja
escravidão no sentido legal desta palavra. Ela existe sempre que um homem se
dedica a uma atividade, cuja utilidade social ele não compreenda e que não
encerre para ele algum interesse pessoal (DEWEY, 1979, p. 91).

Ainda na educação criou-se uma divisão segundo o status social


ou racial que resultou em dois tipos de educação: uma destinada ao
filho do colono (português) e outra destinada ao filho do indígena3. Os

3Categoria indígena definia toda população nativa e primitiva do território africano


(moçambicano) considerada não civilizada ou vida selvage. Normalmente eram
indígena os indivíduos da raça negra ou dela descentente.

84
dois tipos de educação tinham programas curriculares diferentes,
assim como condições materiais das escolas, estímulos e castigos
aplicados eram diferentes. Ao branco era ensinado todo o saber
pensar e ao indígena era ensinado o saber fazer e obedecer, como
aponta Golias: “os indígenas não eram sujeitos de direito mas sim
objetos de uma política determinada longe do seu consentimento”
(GOLIAS, 1993, p.33). Trazendo esse posicionamento no debate, põe-
se em crise a hipótese da Educação Democrática desenhada por
Dewey, aquela na qual centra a atenção na figura do aluno e na
igualdade de oportunidades. No ponto de vista de Dewey, a escola
assim como as oportunidade de ensino devem ser iguais para todos
sem diferenças de classes e, cada aluno deve-se enriquecer com as
experiências dos outros, entrando numa relação de interajuda.
A educação colonial colocou ainda a barreira da língua aos
moçambicanos para não desenvolver educacionalmente uma vez que
o indígena devia aprender não na sua própria língua, mas na língua do
colono. Isso criou imensas dificuldades às crianças nas classes iniciais.
Adicionado à barreira da língua, estavam também os conteúdos
curriculares onde o colono impôs ao indígenas a aprendizagem da
história e geografia de Portugal assim como a ética do colono como
afirma Mondlane (1977); “a análise do conteúdo dos livros de estudo
indica que em tudo se foca a cultura portuguesa; a história e a
geografia africanas são totalmente ignoradas, toda a atenção incide
sobre a língua portuguesa, a geografia das descobertas e conquistas
dos Portugueses; moralidade cristã; artesanato e agricultura” (p. 63).
Nota-se, assim, que as políticas educativas coloniais obrigaram o
indígena a esquecer sua própria condição africana através de uma
pedagogia alienante.
Mas como a escola não é apenas arma para a dominação, mas
também para a libertação dos dominados e, considerando que a
escolarização é a chave do desenvolvimento intelectual, e
consequentemente do progresso social, foi assim que a FRELIMO4, já
durante da Luta Armada de Libertação Nacional e até a independência,
empenhou-se em elaborar os primeiros documentos criticando
fundamentalmente os conteúdos da educação colonial e empenhou-
se ainda a desenvolver currículos adequados para os moçambicanos
com o objetivo de formar um homem que se identifica com a realidade

4 Frente de libertação de Moçambique

85
como o afirma Mazula (1995): “Homem Novo, com plena consciência
do poder da sua inteligência e da força transformadora do seu trabalho
na sociedade e na Natureza; o Homem Novo, livre de concepções
supersticiosas e subjetivas” (p. 110).

PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY À LUZ DA CRIAÇÃO DA


LEI 4/83 DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO MOÇAMBICANA

De 1975 a 1976, à luz do primeiro Seminário de Educação, os


programas de algumas disciplinas alteraram. Foi o caso da História e
Geografia de Portugal que passaram para a história e geografia de
Moçambique e de África. Outras disciplinas foram introduzidas nos
níveis básico e secundário, a exemplo de Educação Política, Atividades
Culturais e Produção Escolar. Para garantir a lecionação dessas
disciplinas foram recrutados novos professores e a reciclagem dos
velhos (professores com uma idade avançada).
No dia 8 de Março de 1977, o Presidente Samora Machel tomou
uma medida brusca de paralisar as 10a e 11a séries, e os estudantes
foram chamados a cobrir a falta de professores. Em Junho de 1979, foi
convocada a terceira Reunião Nacional de Educação em Maputo e
adopta-se o princípio do centralismo democrático, visando garantir
uma direcção centralizada nos assuntos educativos a partir do centro
para a base, isto é, Central-Nacional-Provincial-Distrital. Começou a
substituir-se o estilo elitista como repúdio ao sistema colonial, por um
estilo coletivista de direcção. Um dos fatores da centralidade foi a
escassez dos recursos para a educação, que levou a necessidade de
concentrar a sua gestão a nível ministerial. Os meios alocados para as
escolas eram escassos e, como consequência, multiplicam-se casos de
corrupção, desvios de fundos, entre outros. Apesar dessas era
imperioso “expandir a educação para todos na perspetiva de integrar
todas as pessoas que fazem parte da sociedade baseada em valores de
igualdade e de respeito pela dignidade humana pois a educação é um
dos instrumentos de reabilitação social” ( NYERERE apud CASTIANO,
2005, p. 211-216).
No dia 23 de Março de 1983 foi aprovada a Lei mãe do Sistema
Nacional de Educação conhecida como Lei 4/83, que sintetiza as Linhas
Gerais do SNE, nos seus fundamentos político-ideológicos, princípios,
finalidades, objectivos gerais e pedagógicos da educação em

86
Moçambique. Logo no seu primeiro parágrafo, a Lei 4/83 cita que “o
sistema de educação é o processo organizado por cada sociedade para
transmitir às novas gerações as suas experiências, conhecimentos e
valores culturais, desenvolvendo as capacidades e aptidões do
individuo, de modo a assegurar a reprodução da sua ideologia e das
suas instituições econômicas e sociais”. Uma vez que cada tempo tem
suas necessidades e, as respostas dadas a uma determinada
necessidade numa dada época, podem ser ultrapassadas com o surgir
das novas necessidades, havia necessidade de se reformular a
educação desenhada no período pós-independência, visto que esta já
não dava repostas às inquietações da época.
Esta reforma curricular de 1983 define, pela primeira vez, uma
nova filosofia onde todo o projeto da educação se submetia a um
projeto de sociedade socialista, como única via do desenvolvimento
econômico e social de Moçambique. A filosofia da Formação dum
Homem Novo a fim de harmonizar o desenvolvimento da sua
personalidade com a formação científica, prática e política. Nesta
mesma filosofia, os conteúdos curriculares são concebidos para que a
aquisição de conhecimentos científicos e técnicos, sirvam de alicerce
na ideologia socialista.
Com a Lei 4/83 que criou o SNE, a educação fica dividida não só
em níveis (Primário, Secundário, Médio e Superior), como era entre
1975 e 1983, mas também em subsistemas (de Educação Geral, de
Educação de Adultos, de Educação Técnica, de Formação de
Professores e de Educação Superior, com vista a oferecer a todos as
melhores oportunidades de desenvolver as suas aptidões, mas essas
devisões tinha uma estrutura lógica, ou seja, “toda importancia recai
pois, nas subdivisões lógicas e no encadeamento da matéria a estudar.
O problema de instrução consiste em obter textos que apresentem
essas divisões e sequências lógicas, e em ministrar, em classe, essas
porções no mesmo sistema gradativo e lógico” (DEWEY, 1971, p. 46).
Nesta Lei 4/83 está claro no seu quarto parágrafo que “a
dominação colonial em Moçambique impôs uma educação que visava
à reprodução da exploração e da opressão e a continuidade das
estruturas colonial-capitalista de dominação”. Mais adiante a mesma
Lei afirma que “a luta armada de libertação colonial representa a
expressão mais alta da negação e ruptura com o colonialismo e as
concepções negativas da educação tradicional”. Ora, para que o aluno

87
construa competências cognitivas precisa de uma mobilização
intelectual da qual, “é preciso que a situação de aprendizagem tenha
sentido para ele, que possa produzir prazer, responder a um desejo. É
uma primeira condição para que o aluno se aproprie do saber. A
segunda condição é que esta mobilização intelectual induza a uma
actividade intelectual eficaz” (CHARLOT, 2005, p. 54).
Portanto, acreditou-se, conforme o mesmo suplemento que na
sociedade moçambicana empenhada na construção do socialismo, a
educação constituía o direito fundamental de cada cidadão e era o
instrumento central para a formação e para a elevação do nível
técnico-científico dos trabalhadores. Ela era um meio básico para a
aquisição da consciência social requerida para as transformações
revolucionarias e para as tarefas do desenvolvimento socialista (Lei
4/83). Nesta mesma linha Dewey já anunciara que somente com uma
educação democrática é que se

prepara todos os seus membros para com igualdade aquinhoarem de seus


benefícios e em que assegura o maleável reajustamento de suas instituições por
meio da interação das diversas formas da vida associada. Essa sociedade deve
adotar um tipo de educação que proporcione aos indivíduos um interesse
pessoal nas relações e direção sociais, e hábitos de espíritos que permitam
mudanças sociais sem ocasionar desordens (DEWEY, 1979, p. 106).

Da mesma forma no seu primeiro capítulo esta Lei apresenta os


princípios gerais da educação nos quais a educação é aqui definida
como um direito e um dever de todos os cidadãos, com a mesma
igualdade de oportunidade e acesso em todos os níveis de ensino. É
projetada uma educação permanente e sistemática ao serviço da
Nação (Art. 1° da Lei N° 4/83). Este artigo leva-nos às ideias deweyanas
na passagem que diz “para terem numerosos valores comuns todos os
membros da sociedade devem dispor de oportunidades iguais para
aquele mútuo dar e receber. Deveria existir maior variedade de
empreendimentos e experiências de que todos participassem”
(DEWEY, 1979, p. 90). Por seu turno Ngoenha afirma que:

a escola não é simplesmente o edifício, as salas de aulas, as carteiras mas é


sobretudo os alunos, que são os cidadãos de amanhã, implica que a escola vai
ser antes de mais um sistema de valores – educação à liberdade, à democracia à
solidariedade, à tolerância, ao dialogo, à iniciativa, ao trabalho, à abnegação que
a sociedade quererá transmitir aos seus futuros cidadãos, isto é, o tipo de

88
homens que queremos que sejam os moçambicanos amanhã; e este é um
problema filosófico” (NGOENHA, 1993: 8).

Ainda no mesmo artigo estabelece-se que a educação deve


garantir a formação do Homem Novo5, liberto das ideologias e políticas
coloniais e dos valores negativos da tradição, capaz de assimilar e
utilizar a ciência e a técnica ao serviço da Revolução. Aqui temos
aspectos visíveis da negação do colonialismo e do tradicionalismo.
O Art. 2° da Lei N° 4/83 afirma que o “princípio da
correspondência entre os objetivos, conteúdos e estrutura do SNE,
deve estar em relação dinâmica com o desenvolvimento social e
econômico do País”. Isto o que implica uma permanente e sistemática
atualização e aperfeiçoamento. Ora, Dewey já dizia que a “educação é
uma função social que assegura a direção e o desenvolvimento dos
imaturos, por meio da sua participação na vida da comunidade a que
pertencem, o que equivale, com efeito, a afirmar que a educação
variará de acordo com a qualidade da vida que predomina no grupo”
(DEWEY, 1979, p. 87).
No Art. 3o da mesma Lei 4/83 aparece outro ponto que nos leva
a Dewey ao falar do princípio orientador do processo educativo onde
enfatiza-se a questão da ligação entre a teoria e a prática, que se traduz
no conteúdo e método de ensino das várias disciplinas, no caráter
politécnico da educação conferida e na ligação entre escola e a
comunidade. Em Dewey, “as coisas que melhor conhecemos são
aquelas que mais usamos como cadeiras, mesas, penas, papel, roupas,
alimentos, facas e garfos, para mencionar algumas de uso comum – ou
outras coisas mais especificas de acordo com as ocupações de cada
um” (DEWEY,1979, p. 205). Acredita-se, no entanto, que esta ligação
entre a teoria e a prática cria no educando um senso de harmonia, de
amizade, assim como de clarividência, ao passo que as coisas com que
não está acostumado a lidar são estranhas e alheias. Dai que é

5 O governo moçambicano identificava o Homem Novo como sendo o Homem socialista.

Homem Novo é “aquele que constrói o socialismo e mobiliza as massas pela sua
dedicação, disciplina e entusiasmo” (FRELIMO, 1977, p. 94). Segundo Graça Machel
(Ministra da Educação e da Cultura no primeiro governo moçambicano, durante 14
anos) homem socialista implicava uma nova concepção de mundo – sem exploração
do homem pelo homem, uma sociedade sem fome e nudez – de nação, de povo, no
cultivo de valores (MAZULA, 1995).

89
necessário a adaptação dos instintos de comunicação e os hábitos de
sociabilidade.
No Art. 4o da Lei 4/83 do SNE, são apresentados os objetivos deste
sistema como sendo para a “formação do Homem Novo, um homem
livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e
colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista,
nomeadamente”. Aqui é apresentada a negação do tradicional. Neste
Artigo esqueceu-se, no entanto da necessidade da experiência para o
sucesso do processo educativo. Dewey por exemplo não descarta
totalmente as experiências passadas, mas sim as usa para perspectivar
o futuro. Isso se pode aferir quando ele diz que “não podemos
conceber um mundo em que o conhecimento de seu passado não seja
útil para prever seu futuro e dar-lhe significação. Deixamos de ver as
relações com o futuro exatamente porque estas se acham tão
inevitavelmente implícitas” (DEWEY, 1979, p. 375).
No 2o ponto do Art. 4o fala-se de “formar o professor como
educador e profissional consciente com a profunda preparação
política e ideologia, científica e pedagógica, capaz de educar os jovens
e adultos nos valores da sociedade socialista”. Como teoria, ficou sim
desenhado um bom princípio, mas observa-se que ficou apenas na
teoria. Faltou no entanto a sua praticidade. Já ao falar das escola,
apresenta-se como necessidade o “fazer das instituições de ensino
bases evolucionárias para a consolidação do Poder Popular,
profundamente inseridas na comunidade”. Aqui se recorda Dewey
quando escreveu que,

o plano de um currículo deve tomar em conta a adaptação dos estudos às


necessidades da vida atual em sociedade, a escolha deve ser feita com o fito de
melhorar a vida que levamos em comum, de modo que o futuro seja melhor que
o passado. Além disso, devem-se planejar o currículo colocando-se em primeiro
lugar as coisas essenciais, e, em segundo, as que constituem requintes. Coisas
essenciais são as socialmente mais fundamentais, isto é, as relacionadas com a
atividade compartida pelo grupo mais extenso” (DEWEY, 1979, p. 211).

Isto é:

Como educadores nossa tarefa é precisamente substituir essas impressões


fugazes e superficiais – fantasias e as experiências pessoais da criança – por uma
realidade estável e lógica. Tal realidade é que os estudos e as lições representam.
Subdividamos cada assunto em matérias de estudo; cada matéria em lições; cada
lição em fatos e fórmulas específicas.façamos o que aluno percorra, passo a

90
passo, essas partes isoladas, até que, ao fim da jornada, tenha vencido todo
programa (DEWEY, 1971, p. 45, grifos nossos).

Assim, é importante que ao se desenhar um currículos e tenha em


conta primeiro o ser humano, a sua dignidade e depois as suas
necessidades profissionais. Não obstante que Constatou-se, portanto,
que na educação desenhada no período pós-independência, exagerou-
se essa exclusão do tradicional, em que as línguas nacionais também
foram excluídas do Sistema Nacional de Educação, optando-se por dar
continuidade da língua portuguesa como a língua da unidade nacional.
Até certo ponto pode se acreditar que a educação implementada
no período pós-independência contribuiu no desprezo exagerado e
marginalização dos saberes tradicionais, fragilizando assim o próprio
desenvolvimento educacional. Este desrespeito à tradição chegou ao
extremo e, como consequência, começou a formar-se cidadãos
medíocres na medida em que só tinham como valor a parte intelectual
e nunca a parte humana. Houve crise de identidade, pois apesar de se
ser moçambicano as escolas continuavam a ensinar maioritariamente
o que era exterior a realidade local.
No entanto, o Art. 5o da Lei 4/83 volta-se a contemplar a
necessidade do estudo das línguas locais. “O SNE deve, no quadro dos
princípios definidos para presente lei, contribuir para o estudo e
valorização das línguas, cultura e história moçambicana, com o
objetivo de preservar e desenvolver o patrimônio cultural da Nação”.
Aqui se buscaram repescar alguns aspectos que antes foram negados.
No Art. 6o da mesma Lei fala-se da escolaridade obrigatória. No 2o
ponto deste Artigo diz-se que “os pais, a família, as instituições
econômicas e sociais e os órgãos do Poder Popular a nível local
contribuem para o sucesso da escolaridade obrigatória, promovendo
a inscrição das crianças em idade escolar, apoiando-as nos estudos,
evitando as desistências antes de completar as sete classes do ensino
primário”. A iniciativa foi boa, mas o problema é que na sua prática
aparecem aspectos não claros a ponto de Ngoenha afirmar:

a FRELIMO convidava-nos para participar, e de uma maneira que se queria ativa


na construção do futuro. Só que esse futuro tinha cores bem precisas, tinha
traços bem determinados. Uma vez mais não nos foi perguntado qual o tipo do
futuro que sonhávamos para nós e para os nossos filhos; uma vez mais se
pretendia que fossemos rápidos a responder com as nossas energias, planos e

91
projectos, na construção de um futuro na elaboração do qual não tínhamos
participado (NGOENHA, 1993, p. 11).

No 4o ponto do artigo 10º ainda encontramos alguma tendência


da pedagogia de Dewey, embora que este não seja mencionado. O
artigo afirma que deve-se “conferir aos jovens os conhecimentos,
capacidades, hábitos e atitudes necessárias à compreensão e
participação na transformação da sociedade”. E nesta mesma
perspectiva, Dewey afirma que: “um programa de estudos que tenha
em vista as responsabilidades sociais da educação, deve apresentar
situações cujos problemas sejam relevantes para a vida em sociedade
e em que se utilizem as observações e conhecimentos para
desenvolver a compreensividade e o interesse social” (DEWEY, 1979,
p. 212).
Um outro ponto de convergência também se encontra no Art. 40o
que apresenta a responsabilidade de outros organismos: “os órgãos
do Poder Popular, Organizações Democráticas de Massas e Sociais e
todos os cidadãos devem participar na materialização do princípio
político-pedagógico de ligação escolar-comunidade”. Segundo Dewey
(1975) “sendo a educação o resultado de uma interação, através da
experiência, do organismo com o meio ambiente, a direcção da
atividade educativa é intrínseca, ou seja, um reorganizar consciente da
experiência, sem direcção, sem governo, sem controle. Do contrário, a
atividade não será educativa, mas caprichosa e automática” (p. 22).

PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY À LUZ DO REAJUSTE


DA LEI 4/83 PELA LEI 6/92 DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO
MOÇAMBICANA

Acompanhando as mudanças que ocorrem em Moçambique –


novo modelo econômico e político, e a consagração da nova
Constituição da República de 1990 – em 1992, temos a outra reforma
curricular, por meio da a Lei nº 6/92, de 6 de Maio; que reajusta o
quadro geral do sistema educativo e adequa as disposições contidas
na Lei nº 4/83, de 23 de Março, às condições sociais e econômicas do
país – transformações socioecônomicas e políticas de raiz neoliberal –
tanto do ponto de vista pedagógico como organizativo (CHICAVA,
2016). Diante disso,

92
[...] a estrutura e o conteúdo do currículo, desenvolvido nos princípios da década
80, têm-se mostrado cada vez mais inadequados para uma economia em rápida
mudança e para as exigências sociais. A atual estrutura curricular é demasiado
rígida e prescritiva, deixando pouca margem para adaptações aos níveis regional
e local. A maior parte dos conteúdos, que se lecciona na escola, é de uma
relevância ou utilidade prática insignificante (MINED, 2003, p. 15).

A Lei nº 6/92 tinha como objetivos: erradicar o analfabetismo de


modo a proporcionar a todo o povo o acesso ao conhecimento
científico e o desenvolvimento pleno das suas capacacidades; garantir
o ensino básico a todos os cidadãos de acordo com o desenvolvimento
do país através da introdução progressiva da escolaridade obrigatória,
isso na medida que “cresce, assim, à medida que avança a cultura
social, a necessidade da educação direta da infância. Tornam-se
necessárias escolas, estudos e professores: todo um mecanismo
especializado e sistemático, para fornecer aquilo que a vida,
diretamente, não pode ministrar” (DEWEY, 1971, p. 20); assegurar a
todos os moçambicanos o acesso a formação profissional; formar
cidadãos com sólida preparação científica, técnica, cultural e física e
uma elevada educação moral cívica e patriótica, como salienta Dewey
(1979);

apesar do processo indefinido da correção e instrução conscientes, o meio e a


mentalidade ambientes são, afinal de contas, o principal agente para a aquisição
de boas maneiras. E as maneiras não passam de uma moral de menor
importância. E mesmo na verdadeira moral, a instrução consciente só terá
possibilidade de eficácia na medida em que se harmonizar com o procedimento
daqueles que constituem o ambiente social da criança (p. 19).

Por outra:

Como aprender, com efeito, honestidade, bondade, tolerância, no regime de


‘lições’ marcadas para o dia seguinte? Só uma situação real de vida, em que se
tenha de exercer determinado traço de caráter, pode levar à sua prática e,
portanto, à sua aprendizagem. Daí, ser necessário que a escola ofereça um meio
social vivo, cujas situações sejam tão reais quanto as de fora da escola (DEWEY,
1980, p.129).

Também tinha como objetivo formar o professor como


educador e profissional consciente com profunda preparação
científica e pedagógica, capaz de educar os jovens e adultos, como
salienta Dewey (1971), que toda importância está no preparo

93
adequado e na competência dos professores; formar cientístas e
especialistas devidamente qualificados que permitam o
desenvolvimento da produção e da investigação científica;
desenvolver a sensibilidade estética e capacidade artística das
crianças, jovens e adultos, educando-os no amor pelas artes e no gosto
pelo belo, ou seja;

Todos os adultos adquirem, no decurso de sua experiência e educação certas


medidas do valor de várias espécies de experiências. Aprenderam a considerar
como coisas moralmente boas a honestidade, a amabilidade, a perseverança e a
lealdade; e como valores estéticos, certos clássicos da literatura, da pintura, da
música e assim por diante (DEWEY, 1979, p. 257).

Porém, como podemos notar, a estrutura curricular do ensino


moçambicano continou a mesma; o que mudou foram alguns
objetivos, isto é, desapareceu a perspectiva do Homem Novo, o
socialismo e apareceu a questão da formação para a cidadania.
Em tudo precisa se alimentar a esperança de que a escola tem a
tarefa de contribuir para a melhoria das condições de vida na
sociedade. A pesar em Moçambique essa contribuição não se notar
tanto, o rumo é este; aos poucos vão se criando os tipos de
mentalidades intelectuais interessados no desenvolvimento e
democratização da nossa escola.
Dewey mostra que “aquilo que mais precisa ser feito para
melhorar as condições sociais é organizar a educação de modo que as
tendências ativas naturais se empreguem plenamente na feitura de
alguma coisa, alguma coisa que requeira observação, aquisição do
conhecimento informativo e o uso de uma imaginação construtora”
(DEWEY, 1979, p. 150). Então, para se criar essa situação precisa se que
haja participação dos pais, da escola e de toda a sociedade em geral na
formação dos seus membros.

PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE JOHN DEWEY NA CRIAÇÃO DA


REFORMA DO ENSINO BÁSICO MOÇAMBICANO

A educação é considerada um fator-chave na promoção do bem-


estar social e na redução da pobreza. A busca de uma educação básica
de qualidade aparece na medida em que se acredita no papel da
educação como um dos pilares de desenvolvimento de um país.

94
Portanto, em Dewey, “é característica da verdadeira aprendizagem ser
consciente, dinâmica e permeada de novos padrões de
comportamento, de novos modos de ver, perceber, sentir, julgar, ser
e agir” (DEWEY, 1975, p. 22).
Pela dinâmica do processo de ensino-aprendizagem, o Ministerio
de Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) obriga-se cada
vez mais a organizar consultas às bases para definir políticas
educativas. Pela tomada de consciência das diferenças culturais ou
políticas entre moçambicanos, o MINEDH ganha maior consciência da
questão do meio em que estão, para o sucesso de seus programas. A
partir desses pressupostos introduz-se línguas locais no ensino.
Segundo Mazula (2000), “a confiança no outro é uma atitude
fundamentalmente cirúrgica, que supõe a eliminação dos medos,
preconceitos e estereótipos” (p. 39). Mais adiante acrescenta “por
isso que a democracia implica necessariamente a descentralização do
poder, das instituições e a descentralização das atividades
administrativas, se se quiser que o povo participe realmente na
governação do país no processo do seu desenvolvimento” (Idem).
Desde o ano 2000, o MINEDH começa a descentralizar-se. O MINEDH,
como entidade central do processo educativo passa a ser somente um
organismo de definição e supervisão de politicas de educação. No
entanto, como visão do MINEDH definem-se as novas formas para
garantir e promover o sistema educativo que responda às
necessidades e expectativas dos moçambicanos. Voltamos a relação
das ideias deweyanas na crença de que “somos como pessoas aquilo
que nos mostramos ser quando associados a outras pessoas, numa
livre reciprocidade de dar e receber. Isto transcende a esfera de
eficiência, que consista em fornecer produtos aos outros - a da cultura,
que seja um solitário requinte e polimento” (DEWEY, 1979, p. 133).
Assim, o MINEDH aposta em aumentar o acesso às oportunidades
educativas a todos os moçambicanos e em particular às mulheres e
melhorar a qualidade de educação, assim como planeja desenvolver
um quadro institucional e financeiro sustentável.
À luz dessas propostas, em 2003 faz-se a reforma do Ensino
Básico e estende-se mais tarde para o ensino secundário Geral.
Aparecem as inovações como a criação dos ciclos de aprendizagem (1°

95
ciclo de 1ª a 2ª classe, 2° ciclo de 3ª a 5ª classe e 3° ciclo de 6ª a 7ª classe)6;
o ensino básico integrado (EPC); promoção semi-automática; avaliação
sumativa e formativa; distribuição de professores na qual, um
professor é formado para 3 disciplinas; currículo local7 que é a
integração dos saberes locais na crença de que, segundo Dewey, “a
tarefa especial da educação nos tempos atuais é lutar em prol de uma
finalidade em que a eficiência social e a cultura pessoal sejam coisas
idênticas e, não, antagônicas” (DEWEY, 1979, p. 134); e a introdução de
línguas moçambicanas.
Para Basílio, “o novo currículo do Ensino Básico, fruto da
transformação curricular de 2002 trás a preocupação de envolver a
comunidade na produção dos saberes locais para a prática
pedagógica” (BASÍLIO, 2006, p.16). Isto significa não apenas a
presença da comunidade em reuniões, mas sim a participação
contribuindo nas tomadas de decisões. Na perspectiva desta
participação da comunidade introduz-se o currículo local no qual os
conteúdos provém da cultura local. Quanto a esta matéria, Dewey é de
opinião de que,

o plano de um currículo deve tomar em conta a adaptação dos estudos às


necessidades da vida actual em sociedade, a escolha deve ser feita com o fito de
melhorar a vida que levamos em comum, de modo que o futuro seja melhor que
o passado. Além disso, devem-se planejar o currículo colocando-se em primeiro
lugar as coisas essenciais, e, em segunda, as que constituem requintes. Coisas
essenciais são as socialmente mais fundamentais, isto é, as relacionadas com a
actividade compartida pelo grupo mais extenso (DEWEY, 1979, p. 211).

De acordo com Basílio, “o currículo do Ensino Básico desafiou-se no


sentido de eliminar a distância e “harmonizar” as culturas que se
encontravam em oposição. De facto, o não resgate dos saberes locais
para a escola contribuía para a exclusão da cultura original (nativa) do

6 De acordo com a nova Lei nº 18/2018 de 28 de Dezembro, o currículo do ensino básico

Moçambicano tem 9 séries organizadas em 3 ciclos. O 1o ciclo correspondente a 1a a 3a


séries e o 2o ciclo, compreende a 4a a 6a séries, equivalendo o ensino primário6. O 3o
ciclo compreende o primeiro ciclo do ensino secundário 6 que corresponde a 7a a 9a
séries.
7 O currículo local é um componente do currículo nacional correspondente a 20% do

total do tempo previsto para a lecionação de cada Disciplina. Este componente é


constituído por conteúdos definidos localmente como sendo relevantes, para a
integração da criança na sua comunidade (INDE, 2015, p. 6).

96
aprendente e, por conseguinte, o seu desenquadramento cultural”
(BASÍLIO, 2006 p. 17). É neste sentido que mais adiante, Basílio vai
propor que “para posicionar os saberes locais, o conhecimento escolar
dado às crianças deve atender as culturas locais e os grupos sociais
eliminando a distância entre o local e o universal” (BASÍLIO, 2006, p. 29).
E de acordo com Dewey (1975), verifica-se que a aprendizagem é
necessária ao homem a fim de construir a sua personalidade e afirmar-
se como pessoa humana. Pela educação, o homem define claramente
suas características individuais, na medida em que toma consciência de
sua realidade, das suas limitações, daquilo que precisa adquirir para ser
mais homem, das suas potencialidades e possibilidades, ele ganha o
desejo de aprender. Vista nesse ângulo, a aprendizagem é entendida
como uma modificação profunda, consciente e permanente até certo
ponto, de toda a estrutura humana. Mas a verdadeira aprendizagem
não é algo que se realiza de uma vez por todas, permanecendo
imutável. Nesta mesma linha, Basílio diz que,

tomando-se a realidade moçambicana, a escola teve duas fases. Na primeira, ela


esteve organizada obedecendo a um padrão colonial que se arrastou até depois
da independência. Nesse currículo, obedecendo-se apenas aos paradigmas
dominantes, os saberes locais não tinham sido sistematizados e
institucionalizados com o objetivo de resgatar o seu valor intrínseco. Na
segunda, o INDE propõe 20% do tempo para inserção de saberes locais,
comunitários, quotidianos na sala. Neste currículo prioriza-se a diversidade
cultural e sustenta-se um cruzamento entre a cultura universal com a cultura
local (BASÍLIO, 2006, p. 36).

Ora, a partir dos pressupostos apresentados pode-se concluir que


a eficiência social, como finalidade educativa, deve significar o cultivo
da faculdade de participar livre e plenamente de actividades, e dos
saberes locais que são relevante para a aprendizagem e, por isso, o seu
resgate para a sala é imprescindível. No entanto, para a visão de
Basílio, “o novo currículo parece pretender acabar com a
regionalização dos saberes e conceber um projecto voltado à
diversidade cultural, embora o conhecimento progrida dando
referência ao universal” (BASÍLIO, 2006, p. 39). Analisado o novo
curriculum do Ensino Básico em Moçambique observa-se claramente
que há esta tendência de cada vez mais, fazer da educação, um
instrumento para a harmonia social dentro deste relacionamento do
regional assim como do universal.

97
Depois da introdução do novo currículo do ensino básico em
2003, houve necessidade de reajustar a lei nº 6/92, com a nova Lei nº
18/2018 de 28 de Dezembro8, que estabelece os seguintes subsistemas
da educação moçambicana:
a) educação pré-escolar, que se realiza em creches e jardins de
infância para crianças com idades inferiores a 6 anos;
b) educação geral, concebida como eixo central do sistema
nacional de educação de Moçambique; corresponde ao ensino
primário e secundário;
c) educação de adultos, que é o subsistema em que se realiza a
alfabetização e a educação de adultos;
d) educação profissional e formação de professores, que
constitui o principal instrumento para a formação profissional da
força de trabalho qualificada, necessária para o desenvolvimento
econômico e social do país, compreendendo ensino técnico
profissional, formação profissional, formação extra-instituicional
e ensino superior profissional;
e) por último, o ensino superior que tem a função de assegurar a
formação ao nível mais alto nos diversos domínios do
conhecimento técnico, cientítico e tecnólogico necessarários ao
desenvolvimento do país (MOÇAMBIQUE, 2018).
E segundo a mesma lei, estabelece que a educação básica:

Confere competências fundamentais à criança, jovem e adulto para o exercicio


da cidadania, fornecendo-lhes conhecimento geral sobre o mundo que os rodeia
e meios para progredir no trabalho e na aprendizagem ao longo da vida. A
educação básica compreende o ensino primário e o primeiro ciclo do ensino
secundário (MOÇAMBIQUE, 2018, p. 20).

Evolvidos mais de 10 anos após a introdução do ensino básico, não


houve muito progresso no sistema nacional de educação. Segundo o
Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação (INDE),
constatou-se frágil assimilação dos conteúdos programados no plano
curricular, e, consequentemente gerando reprovações em massa dos
alunos do 1o e 2o ciclos do ensino básico. Ainda no mesmo estudo feito
pelo INDE concluiu-se que grande parte dos alunos do ensino primário
terminam o 1º ciclo sem saber ler nem escrever. Estas constatações

8 Lei vigente no Sistema Nacional de Edicação de Moçambique.

98
levaram a mesma entidade a iniciar um processo de “revisão pontual
do plano curricular e dos programas de ensino, com vista a
incrementar a qualidade de ensino” (INDE, 2015, p. 1).
Nessa perspectiva, a revisão pontual do plano curricular do ensino
básico em Moçambique cingiu-se mais sobre “alteração da designação
do plano curricular do ensino básico, passando a designar-se plano
curricular do ensino primário. Alteração do plano de estudos, que
compreendeu a redução do número de disciplinas através da
integração de competências e de conteúdos” (INDE, 2015, p. 1).

À GUISA DE CONCLUSÃO

A educação tem sido, para as sociedades, um meio pelo qual


transmitem-se e conservam-se os aspectos culturais de um povo de
geração em geração,e também de transmissão de conhecimento
científico. Neste sentido, a educação é um eterno processo de
aperfeiçoamento, amadurecimento, refinamento das culturas
humanas e da ciência. A realidade moçambicana hoje, chama-nos a
reflectir sobre a necessidade da educação, pensando sobre a questão
de como a escola pode contribuir para a formação ética e democrática
de seus membros em nossa sociedade contemporânea. O rumo da
educação moçambicana segundo o que parece, desde a época pós-
colonial até aos nossos dias tende a caminhar em muitos aspectos
sobre aquilo que são os aspectos pedagógicos deweyanos. Isto
significa que o sistema de educação moçambicano em quase todas as
suas mudanças ocorridas, apesar de não aparecer claramente explícito
o pensamento pedagógico de John Dewey, nota se que em muitos
aspectos há sua influência.
A situação que o povo moçambicano viveu no tempo colonial leva a
crer que os intelectuais moçambicanos da altura, preocupados com o
rumo do país tenham dedicados as várias leituras a fim de encontrarem a
forma educacional eficaz para o povo moçambicano. E nesta busca, não
escapa a possibilidade de terem lido o pensamento educacional
deweyano. Daí que em quase todas as mudanças ocorridas a nível
educacional encontramos esta similaridade com Dewey.
Começam a se sentir as possíveis influência de Dewey nesta
educação pós-colonial na medida em que há interesse da educação
moçambicana buscar uma unanimidade da formação do seu povo ao

99
serviço da mesma sociedade (moçambicana). É claro que o desejo da
educação para todos até hoje ainda não tem a sua praticidade na
medida em que ainda em Moçambique existe escolas para certa classe
socialmente alta (que na maior parte das vezes são privadas) e outras
(estatais) para os pobres e, mesmo assim nem todos os pobres tem
acesso. Um passo positivo a ressaltar é o da escola gratuita que a
maioria tem acesso (ensino básico). Mas ainda há muito por fazer.
Cada vez que se sobe de nível de escolaridade as oportunidades
diminuem de forma acentuada para a maioria da população
moçambicana, devido à falta de condições financeiras.
Hoje em Moçambique, cada vez mais vai-se aproximando a ideia
de fazer com que a educação leve os indivíduos, não só na teorização
dos conhecimentos, mas sua praticidade. Esta era a preocupação de
Dewey ao acreditar que o individuo que não deve estar isolado do
mundo. Desse modo, é preciso que a educação moçambicana leve em
conta os dados concretos oriundos das condições atuais da sociedade
em transformação e não basear-se simplesmente numa visão politica
e ideológica. A educação moçambicana precisa abrir-se mais para um
ideal que não seja dogmático e acabado.
Portanto, com a introdução do novo currículo (Lei nº 18/2018 de
28 de Dezembro) o objetivo central é fazer com que o moçambicano
seja formado na sua integridade; não apenas na quantidade, mas
acima de tudo em qualidade. As ideias deweyanas até hoje são válidas
para o contexto educação moçambicana, na medida em que a escola
deveria atuar como um instrumento edificador da sociedade. Pois, é
missão da escola empenhar-se para o desenvolvimento das atividades
que tematizam os direitos humanos e despertam o respeito para com
o meio ambiente.

REFERÊNCIAS

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Pós-Graduação – PPGE, 2006.
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duma “Educação para todos” em Moçambique. 2a ed. Maputo:
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100
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Educação em Moçambique. Maputo: INDE, 2005.
CHARLOT, Bernard. Relação com o Saber, Formação dos Professores
e Globalização: Questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed,
2005.
CHICAVA, Augusto K. A. O ressurgimento do ensino técnico (Saber-
Fazer) no paradigma da educação moçambicana: Um olhar
epistemológico. 130f. Dissertação (Mestrado em educação) – Escola de
Pós-graduação, Universidade São Tomás de Moçambique, 2016.
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DEWEY, John. Experiência e natureza; Lógica: a teoria da investigação;
A arte como experiência; Vida e educação; Teoria da vida moral. Trad.
De Murilo, Leonidas de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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DEWEY, John. Os pensadores. Tradução de Murilo Octávio Rodrigues
Paes Leme, Anísio S. Teixeira, LeonildasContijo de Carvalho. São Paulo:
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MOÇAMBIQUE. Boletim da República, Lei nº18/2018, I Série, nº 254. Lei
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101
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Reajusta o quadro geral do Sistema Educativo. Maputo, Imprensa
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MOÇAMBIQUE. Boletim da República, I Série, n° 12 de 23 de Março. Lei
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NGOENHA, Severino Elias. Das independências às liberdades. Maputo:
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NGOENHA, Severino Elias. Estatuto e Axiologia da Educação. Maputo:
Livraria Universitária, 2000.

102
A PRÁTICA DOCENTE NA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA SOCIEDADE
BRASILEIRA: REFLEXÕES EM RELAÇÃO AO CONTEXTO ATUAL

Pâmela Pongan1

INTRODUÇÃO

O ensino de História através do saber histórico, tem a finalidade


de possibilitar a construção da consciência histórica. E o processo
nessa perspectiva deve ser uma formação adequada, de modo a
garantir a efetividade do ensino. Segundo Fonseca (1997) em sua
formação o docente deve buscar construir um trabalho reflexivo e
critico perante suas práticas além do aprimoramento.
A História foi implantada como disciplina nas escolas brasileiras
no século XIX, estruturada nos moldes positivistas e conceituada na
Ciência Moderna. Resumindo-se assim, ao estudo dos “grandes
homens” e seus “grandes atos”, usando tempo linear através da
noção de evolução por etapas. Além de a concepção positivista tender
para o ensino do passado com verdade única, vendo os documentos
como comprovantes dessa verdade.
A partir das reflexões e regulamentações presentes das Diretrizes
Curriculares e Leis que passaram a reger o ensino nacional, o ensino de
História passou a ter por objetivo formar cidadãos, a partir de uma
função política, como já acontecia em outros países. Partindo disso,
ensinar História está diretamente relacionada com a compreensão da
realidade de vida de cada aluno, pois ao compreender sua própria
experiência, ele conseguirá entender os acontecimentos ocorridos na
vida de tantas pessoas ao longo do tempo.
Com as transformações ocorridas na sociedade contemporânea e
com as novas perspectivas historiográficas, surgiu a necessidade de
utilizar uma nova metodologia no ensino de História, com
diversificados conteúdos e métodos. Partindo disso, esse artigo busca
refletir a respeito das práticas no ensino de História presentes no
século XXI.

1Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da


Universidade de Passo Fundo/RS – PPGH/UPF. Bolsista CAPES.

103
O ENSINO DE HISTÓRIA

O ensino de História foi visto até a década de 1970 como linha


linear e cronológica que estava muito longe dos alunos. O que causava
certo desconforto, pois estes não estavam preparados para trabalhar
com concepções abstratas de tempo e noções históricas.
A partir de 1970 surgiram novas teorias em relação ao ensino de
história, acreditando que com essa nova perspectiva, as crianças e os
jovens pudessem, sim, lidar com a temporalidade e outros conceitos
históricos fundamentais, e, portanto, a história.
Surgiu então a perspectiva da Educação Histórica:

A Educação Histórica se preocupa com a busca de respostas referentes ao


desenvolvimento do pensamento histórico e a formação da consciência histórica
de crianças e jovens. Essa perspectiva parte do entendimento de que a História
é uma ciência particular, que não se limita a compreender a explicação e a
narrativa sobre o passado, mas possui uma natureza multiperspectivada, ou seja,
contempla as múltiplas temporalidades pautadas nas experiências históricas
desses sujeitos. Parte também dos referenciais epistemológicas da ciência da
História como orientadores e organizadores teórico-metodológicos da
investigação histórica (SCHMIDT, 1998, p.13).

Os estudantes passaram a ser compreendidos como agentes de


sua própria formação, com ideias históricas prévias sobre a História e
com várias experiências, assim como o professor passou a ter um
papel de investigador constante, necessitando problematizar suas
aulas em diversas situações.
Então é a partir da percepção de presente de cada um que o
conhecimento do passado acontece. Não interessa saber História, e
sim o uso que se faz dela. “A compreensão do passado deve ser
utilizada para orientação temporal dos sujeitos, ou seja, para
SOBANSKI (2009) é através da consciência histórica que se embasa a
preocupação com o saber histórico, com o pensar historicamente de
crianças e jovens, bem como de professores. Chamamos esta
capacidade de ler o mundo historicamente de literacia histórica.

Literacia histórica quer dizer, saber “ler” a informação, debater e selecionar


mensagens, fundamentalmente é preciso saber interpretar fontes, analisar e
selecionar pontos de vista, comunicar sob diversas formas, apostar em
metodologias que envolvam os alunos no ato de pensar historicamente
(SOBANSKI, 2009, p. 12).

104
O professor tem de desenvolver uma atividade questionadora
para conhecer aquilo que o aluno já sabe e desafiá-lo e acompanhá-lo
na construção de sua aprendizagem. Seu trabalho de investigação se
baseia sobre a utilização de diferentes fontes e narrativas históricas
com o objetivo de promover nos alunos a competência histórica de
compreender que a História é construída com diversas perspectivas.

OS PROFESSORES DE HISTÓRIA E O NOVO DESAFIO DE ENSINAR NO


CONTEXTO SOCIAL ATUAL

Na perspectiva de Educação Histórica, a existência das ideias


prévias revela uma grande preocupação de como crianças e jovens
fazem a leitura histórica do mundo. Essas ideias prévias são memórias
que os sujeitos têm de suas experiências com o passado.
A partir dessa concepção o historiador Jörn Rüssen compreendeu
as ideias prévias como protonarrativas:

O quotidiano das crianças e dos jovens está cheio de elementos fragmentados


das histórias, de alusões a histórias, de parcelas de memória, de “narrativas
abreviadas”. A compreensão desses fragmentos narrativos, portanto, da
protonarrativas, é possível a partir da consciência da estrutura de uma narrativa
histórica: alguém conta a alguém uma história, na qual o passado é tornado
presente, de forma que possa ser compreendido, e o futuro é esperado
(RÜSSEN, 2001, p.159).

Mais uma vez o professor possui um papel significativo, pois tem


uma relação muito importante relacionando as ideias prévias
(protonarrativas) e a leitura de mundo que devem realizar nas aulas.
Por isso, o professor de História Henrique Theobald defende a ideia de
que os professores de História devem ser entendidos como
intelectuais e, portanto, produtores do conhecimento.

O viés do professor como intelectual transformador, o qual se busca


compreender aqui, vai além da perspectiva que assume sua função política na
construção da cidadania. Trata-se também de se levar em conta o professor que
investiga elementos de sua prática e domina o processo de produção do
conhecimento com que lida, além de transformar o ensino (THEOBALD, 2007, p.
47).

Outros trabalhos, como o da pesquisadora Olga Magalhães, vêm


fomentar a importância de reelaborar a formação dos docentes de

105
História, dando a estas competências básicas que lhe permitam
compreender locais e momentos de reflexão, principalmente em torno
da cognição histórica situada, para que esta realize uma real interação
dos conhecimentos teóricos e o desenvolvimento da prática docente.

A cognição situada na História se preocupa em investigar quais seriam os


mecanismos de uma aprendizagem criativa e autônoma, que possam contribuir
para que os alunos transformações em conhecimentos, apropriando-se das
ideias históricas de forma mais complexa. O pressuposto é buscar a construção
de uma literacia histórica, ou seja, da realização do processo de formação
histórica de cada um (SCHMIDT, 2009, p. 38).

Um problema de cunho prático para a pratica da docência em


história é a seleção dos conteúdos significativos em história, pois
podemos afirmar que as noções de significância histórica são
construções pessoais, culturais, políticas e historiográficas
transmitidas de forma diversificada aos membros de uma sociedade.
Temos dois conceitos de significância histórica:
No primeiro conceito de Peter Seixas (1994 apud Chaves, 2006, p.
28):

Primeiro, os historiadores avaliam se o fenômeno afetou um grande número de


pessoas por um longo período de tempo. Segundo, estabelecemos sua relação
com outros fenômenos históricos. Terceiro, estabelecem a sua relação com o
presente, e também, com suas próprias vidas.

No segundo conceito de Keyth Barton e L.S. Levstik (2001, apud


CHAVES, 2006) apresentam uma conceituação de caráter
antropológico, pois entendem que as ideias referentes à significação
histórica:

São construções culturais transmitidas aos membros da sociedade através de


várias fontes de informação. Essas fontes produzem versões do passado que
possibilitam a produção de inferências históricas tais como a construção de
ideias e imagens acerca do passado e considera as produções subjetivas, sociais,
culturais, políticas e historiográficas comunicadas de formas variadas aos
membros da sociedade através de várias fontes de informação – a família, a
escola, as mídias, os museus (p. 34).

É assim que essa perspectiva de ensino determina aos


professores certas competências para dar aulas de História, como
contextualizar, problematizar o passado e criar pressuposições a
respeito do presente.

106
A consciência histórica, portanto, emerge do encontro do
pensamento histórico científico com o pensamento histórico geral.
Dessa formatemos uma historiografia que colaborou para
construirmos uma determinada consciência. Aqui está o papel da
Educação Histórica.

POR UMA HISTÓRIA PRAZEROSA DE ENSINAR E APRENDER

A grande causa de dúvidas da eficácia educacional dos livros e a


utilidade dos professores como agentes de ensino e
consequentemente das propostas curriculares ligadas às realidades
nacional e local está nas mudanças políticas e econômicas ocorridas no
final do século XX, a difusão das novas tecnologias globais.
Pesquisadores veem com preocupação que os alunos troquem a
investigação bibliográfica por informações superficiais dos sites de
pesquisa, em uma substituição do livro quando deveria ser um
complemento. O desafio é desenvolver uma prática de ensino de
História adequada aos novos tempos e também a esses novos alunos,
onde tenhamos um conteúdo rico, socialmente responsável e sem o
professor passar por ingênuo ou nostálgico.

O grande desafio que se apresenta neste novo milênio é adequar nosso olhar às
exigências do mundo real sem sermos sugados pela onda neoliberal que parece
estar empolgando corações e mentes. É preciso, nesse momento, mostrar que é
possível desenvolver uma prática de ensino de História adequada aos novos
tempos (e alunos): rica de conteúdo, socialmente responsável e sem
ingenuidade e nostalgia. Historiador/professor sem utopia é cronista e, sem
conteúdo, nem cronista pode ser. (PINSKY, 2010, p. 19).

E nesse ponto o papel do professor de História é o de se


conscientizar de sua responsabilidade social perante esses sujeitos
históricos e ajudá-los a compreender e melhorar o mundo em que
vivem. E para isso mais do que o livro, esse professor precisa ter
conteúdo, precisa ser um assíduo leitor, pesquisador, motivador, que
tome as questões sociais e culturais como referência das
problemáticas humanas e trabalhe temas ligados a desigualdades
sociais, raciais, sexuais, diferenças culturais, sem, entretanto, distorcer
o acontecido.
E nesse universo despertar o interesse do aluno com
demonstração na atualidade de coisas cronologicamente remotas

107
como a situação das mulheres na Idade Média, a insatisfação dos
plebeus na Roma Antiga, as aspirações ambíguas dos burgueses no
século XVIII, conceitos de democracia, cidadania, práticas como a
manifestação da religiosidade, reconheçam o preconceito, até mesmo
o uso e abuso da história a longo do tempo como poder emanado por
grupos políticos, nações e facções.
Para vencer esses novos desafios, Pinsky (2010), sugere o
trabalho integrado entre a História social e a História das Mentalidades
e do Cotidiano, onde a primeira buscaria a percepção das relações
sociais a outra privilegiaria cortes temáticos. Para que o aluno possa
sentir a História como algo próximo a ele.

Assim, não vemos uma incompatibilidade entre a História Social e a História das
Mentalidades e do Cotidiano. Na verdade, as duas abordagens não apenas não
se opõem necessariamente, como se complementam. A abordagem da corrente
da História Social busca a percepção das relações sociais, do papel histórico dos
indivíduos e dos limites e possibilidades de cada contexto e processo histórico.
A das Mentalidades privilegia cortes temáticos. Frequentemente, a primeira
busca a floresta; a segunda, a árvore; uma, o telescópio; a outra, o microscópio.
Bem utilizados, ambos os procedimentos são recomendáveis. Se trabalhados de
forma integrada, chega-se ao melhor dos mundos, olha-se a partir de diferentes
pontos de vista. Além disso, por meio desses olhares, poderá o professor (re)
aproximar os alunos do estudo da História (PINSK, 2010, p. 27).

Portanto, diferentes recortes da História permitem que o aluno


abra enormes horizontes que podem acolher, inicialmente, sua
curiosidade, depois, sua análise e, finalmente, sua identificação com
essa “gente como a gente” que construiu o processo histórico do qual
ele mesmo faz parte.

COMO SELECIONAR OS CONTEÚDOS DE HISTÓRIA?

Primeiramente, devemos ter em mente que o ensino da história


deve ter como objetivo auxiliar o aluno a pensar historicamente, ou
seja, ter a capacidade de relacionar a experiência humana com a vida
prática de cada sujeito, transitando entre diferentes argumentos, e
interpretando o passado seguindo os métodos da ciência da história.

A história [...] contribui em primeiro lugar para entendermos o mundo presente.


Como em uma cidade coexistem através da arquitetura, das crenças, dos mitos
e superstições do passado e presente. A história ajudaria a decifrar esta
paisagem. A História também ajudaria a entender que além de tudo o que está

108
gravado na pedra ou sepultado debaixo da terra as atitudes e os
comportamentos humanos perante a doença, o sofrimento, a morte, as idades
da vida não são eternos. Pertencem à temporalidade, têm um princípio e um fim.
A história é a arte de aprender que o que é nem sempre foi, que que o que não
existe pôde alguma vez existir; que o novo não o é forçosamente e que, ao
contrário, o que consideramos por vezes eterno é muito recente. Esta noção
permite situarmo-nos no tempo, relativizar o acontecimento, descobrir as linhas
de continuidade e identificar as rupturas. (WINOCK apud MATTOZZI, 1998, p. 26).

Por isso, assim, como o saber da história se preocupa com grupos


humanos, suas relações entre si e com o meio, o ensino da história
precisa interagir com os alunos, sua história e seu papel enquanto
sujeitos históricos.
Nesse contexto, entra o papel do professor, que é responsável
pela seleção dos conteúdos, manuais e livros a serem utilizados em
sala de aula.

As definições de conteúdos históricos escolares envolvem também as demandas


relacionadas aos poderes constituídos, nesse sentido definir o que se ensina na
disciplina de história caracteriza-se antes de qualquer coisa por disputas em
torno da memória e constituição da nação e de seus sujeitos. Cada sociedade
marca e reproduz passados ancorados na história que os contam. Todas as
culturas necessitam de um passado, mas nem sempre este passado é aquele
referendado pela investigação histórica. (CAINELLI, 2010, p. 20)

Tudo que é ensinado na escola sobre história é um conhecimento


produzido por historiadores difundidos através dos currículos e livros
didáticos. Nesse sentido, aumenta a responsabilidade do professor em
relação a seleção do que ensinar, pois há uma imensidão de
possibilidades de escolhas, mas será que tudo é história?
Segundo Hobsbawn (1998, p.71),

[...] todo estudo histórico, portanto, implica uma seleção minúscula, de algumas
coisas da infinidade de atividades humanas do passado, e aquilo que afetou essas
atividades. Mas não há nenhum critério geral aceito para se fazer tal seleção.

Por isso, a tarefa de selecionar conteúdos é muito complexa,


sendo assim, o livro didático passa a ser visto como orientador e até
definidor dos conteúdos a serem abordados. Com isso, a prática em
sala de aula acaba sendo definida e resumida por ele, pois as
dificuldades em selecionar outros materiais, ou pela falta de tempo
mesmo, faz com que os professores optem pela facilidade do livro
didático.

109
Entretanto, não se pode esquecer que mesmo o livro sendo um
propagador de conhecimento legitimo e autorizado pela ciência
histórica, também é visto como formador de ideias. Pois além de
conter os conteúdos apresentados em programas e currículos, já os
traz selecionados e ordenados na sequência didática sugestiva. Porém,
não possui nada a respeito da história local e como trabalha-la.

A história loca tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar
a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente
nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho, lazer –
e igualmente por situar os problemas significativos da história do presente.
(BITTENCOURT, 2004, p.168).

Assim, a história local permite ao professor desenvolver nos


alunos a capacidade de associar a história com seu mundo, tornando
significativa sua aprendizagem.
Desta forma, é necessário ao professor ter em mente, no
momento de fazer a escolha dos conteúdos, a perspectiva sobre o
pensamento histórico que pretende repassar na formação de seus
alunos. Sem esquecer que a narrativa é, ainda, um dos métodos mais
eficazes na aprendizagem do ensino de história.
Nesse sentido, Mattozzi (1998, p.28), afirma que “a essência do
ensino seria a constituição de narrativas concebidas pela descrição,
análise e explicação”. Outro princípio importante no ensino da história
é o levantamento de hipóteses. Esse método tem como objetivo
ensinar história criando experiências incomparáveis, mesmo que
complexas, visando a construção de um pensamento histórico
consciente, deixando para traz o ensino através de repetição.
É através do desenvolvimento do pensamento histórico que os
alunos passarão a ver a História como algo significativo, que tem
relevância no seu passado e presente, pois lhes permitirá questionar e
analisar seu entorno a partir de uma visão crítica e consciente.
O professor deve apresentar ao aluno que “aprender história
seria: discutir evidencias, levantar hipóteses, dialogar com os sujeitos,
os tempos e os espaços históricos. Olhar para o outro em tempos e
espaços diversos” (CAINELLI, 2010, p.27). É por isso que a seleção de
conteúdos é tão importante, pois são eles que possibilitam construir a
criticidade nos alunos, a partir do levantamento de questões diante
dos temas propostos em discussão na sala de aula.

110
Especificamente por isso, o professor não deve deixar suas aulas
serem resumidas e orientadas exclusivamente pelo livro didático e
pelos currículo e programas, que visam apenas desenvolver
habilidades didáticas ao invés de construir o pensamento histórico
consciente, pois se resumem a selecionar, sintetizar, resumir e
comparar. Enquanto a aprendizagem relacionada ao desenvolvimento
do pensamento histórico permite e exige deduções, levantamento de
hipóteses, narrativas e uma compreensão total. Desta maneira, o
ensino de história tem muito a melhorar nas salas de aula brasileiras, a
partir da construção do pensamento histórico primeiramente nos
professores, para depois, consequentemente, nos alunos.

O USO DOS LIVROS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS NO ENSINO DE


HISTÓRIA

Atualmente, o livro didático é, nas escolas brasileiras, a principal


fonte de estudo dos alunos, sendo determinante no processo de
ensino-aprendizagem. Por isso, se tornou alvo de pesquisas e debates
realizadas por inúmeros pesquisadores que buscam saber qual o
caminho que ele deve seguir: ser abolido, complementado e/ou
diversificado para melhor a qualidade do processo de ensino.

O livro didático é, de fato, o principal veiculador de conhecimentos


sistematizados, o produto cultural de maior divulgação entre os brasileiros que
têm acesso à educação escolar. Alguns educadores, ao se referirem ao uso
recorrente do livro didático, afirmam: “Ruim com ele, pior sem ele”. (FONSECA,
2003, p.49)

É assim no ensino de História também. O livro didático de História


é amplamente utilizado, principalmente nos anos finais do ensino
fundamental e no ensino médio. Isso é consequência da estreita
relação entre as mudanças ocorridas no ensino de História no século
XX e o desenvolvimento da indústria cultural.

As mudanças na produção do conhecimento chegam à escola básica e ao público


em geral não só pelos novos currículos, mas, sobretudo, pelo material de
difusão, produto dos meios de comunicação de massa: livros didáticos e
paradidáticos, jornais, revistas, programas de TV, filmes e outros. Assim, pensar
o ensino de história e os materiais didáticos implica refletir sobre as relações
entre indústria cultural, Estado, universidade e ensino fundamental e médio.
(FONSECA, 2003, p. 50).

111
É dever do Estado repensar o papel da escola, assim como lhe
cabe a produção e difusão do conhecimento. No Brasil, isso gerou uma
a massificação do ensino, como consequência da alta demanda por
vagas na rede escolar pública, principalmente nos anos 60 e 70. Assim,
o Estado acabou fomentando a indústria cultural, associando-a
diretamente “[...] ao processo de democratização, ampliação ou
massificação do ensino” (FONSECA, 2003, p.50).
Ao observarmos os currículos de História, constatamos que a
partir de 1970, eles se materializaram nos livros didáticos. Neste
período, verificou-se uma admissão em massa de livros, impulsionadas
pelo Estado e pela indústria editorial brasileira, que estava em
crescimento por conta dos incentivos estatais que recebia. “O livro
didático assumiu, assim, a forma do currículo e do saber nas escolas”
(FONSECA, 2003, p.50).
Com o grande apoio estatal à indústria editorial, iniciada nos
governos pós-1964, o livro passou a ser uma das mercadorias mais
vendidas, resultando em sua massificação.

Portanto, a indústria cultural e a educação escolar, sobretudo, a partir da


reforma educacional de 1971, estiveram intimamente relacionadas, tendo como
objetivo o projeto de massificação do ensino e da cultura. Esse projeto
beneficiava o modelo de desenvolvimento, os ideais de segurança nacional e
correspondia aos interesses de multinacionais no Brasil e na América Latina. Os
vínculos entre o Estado, o capital e a educação não se resumiam ao campo da
editoração de livros didáticos; seus mecanismos conseguiram abarcar vários
setores da vida cultural do país. (FONSECA, 2003, p. 52).

Foi com essa política de incentivos estatais na produção de livros


didáticos, que elevou a indústria editorial brasileira entre as maiores do
mundo. Entretanto, isso não garantiu um aumento na qualidade do
ensino, pois o Brasil permaneceu entre os países pobres e atrasados
quanto ao seu índice educacional. Isso se deve, principalmente, ao fato
de que essa relação estabelecida na produção e venda dos livros
permitiu uma difusão de saberes e conhecimentos históricos
específicos, abordando-os sempre de forma simplificada.

O processo de simplificação no âmbito da difusão implica tornar definitivas,


institucionalizadas e legitimadas pela sociedade determinadas visões e
explicações históricas. Essas representações transmitidas simplificadamente
trazem consigo a marca da exclusão. O processo da exclusão inicia-se no social,
em que “alguns atos” são escolhidos e “outros” não, de acordo com os critérios

112
políticos. Na academia, o trabalho do historiador pode tanto excluir como
recuperar ou resgatar “atos” excluídos; no livro didático o processo de exclusão
de ações e sujeitos faz parte da lógica da didatização. (FONSECA, 2003, p. 53).

Já nos anos 80, o crescimento de pesquisas no campo da História


e os movimentos de reflexão sobre o ensino ocasionaram uma
mudança na posição da indústria cultural em relação ao processo de
ensino. Esta passou a participar de debates acadêmicos, aliando-se a
setores intelectuais, o que resultou em uma adequação e renovação
de seus materiais.
Essa nova relação ocasionou mudanças significativas,
principalmente no ensino fundamental e médio, quanto ao ensino de
História. Assim, enquanto se expandiam as pesquisas históricas,
iniciou-se publicações alternativas em diversos campos a respeito de
experiências no ensino de história. E o mercado editorial soube
aproveitar essas novidades.

Constatamos um duplo movimento de renovação. O primeiro tratava de rever e


aperfeiçoar o livro didático de história, ajustando aquela mercadoria altamente
lucrativa aos novos interesses dos consumidores. Conceitos e explicações foram
renovados de acordo com as novas bibliografias. Foram propostas mudanças na
linguagem e na forma de apresentação, com a inclusão de alternativas como a
seleção de documentos escritos, fotos, desenhos e seleção de textos de outros
autores. Um outro movimento foi o lançamento de novas coleções visando
atingir o leitor médio. Os livros dessas coleções, denominados para didáticos,
tornaram-se um novo campo para as publicações dos trabalhos acadêmicos. A
nova produção historiográfica, abordando temas até então pouco estudados,
tornou-se mercadoria de fácil aceitação no mercado dos livros. (FONSECA, 2003,
p. 54).

A expansão das publicações de livros paradidáticos foi


consequência da busca por parte dos especialistas, antes voltados
somente ao meio acadêmico, em compartilhar o saber histórico,
através de associações com as editoras. Porém, mesmo os livros
paradidáticos tendo diferentes tipos e enfoques, não superou a
produção e venda dos livros didáticos. Isso porque o mercado
consumidor dos livros didáticos é o Estado, o que implica diretamente
no nível de produção, circulação e consumo.
Com a preocupação atual da sociedade em desenvolver uma
educação básica de qualidade, é indispensável o aperfeiçoamento da
política nacional do livro didático. Um método é avaliar

113
constantemente e permanentemente a produção já disponível no
mercado.

O Estado e as escolas públicas e privadas, os maiores compradores, devem exigir


seus direitos como consumidores exigentes, propondo mudanças qualitativas às
editoras, inclusive exigindo revisão ou a retirada do mercado dos livros
desatualizados, dos que contenham erros conceituais e dos que veiculem
preconceitos raciais, políticos e religiosos. A política do Ministério da Educação
de avaliação permanente da qualidade das obras e coleções possibilita oferecer
aos professores e às escolas em geral, opções e critérios para a escolha do
material mais adequado às diferentes realidades. (FONSECA, 2003, p. 55).

Em segundo, é necessário pensar em como ensinar história nas


salas de aula deixando o uso exclusivo do livro didático. Logo, isso
requer o uso de textos e obras alternativas, pois é praticamente
impossível construir um conhecimento histórico sem texto escrito,
pois essa é a principal fonte histórica no processo de ensino-
aprendizagem. Essa atitude exigirá do professor uma dedicação de
tempo maior na preparação e organização dos textos, pois o uso de
uma só fonte, seja ela o livro didático ou qualquer outra obra, de forma
exclusiva, acaba simplificando o currículo e o conhecimento abordado
em sala de aula. Além de que esta metodologia acabará
desenvolvendo nos alunos uma postura auto excludente, com uma
concepção de “verdade absoluta”, e uma visão de livro didático como
fonte inquestionável.

Complementar o livro didático e diversificar as fontes historiográficas, como os


paradidáticos em sala de aula, são opções que não descartam ou consideram o
livro como mero “bode expiatório”, culpado por todos os males do ensino, mas
partem de um pressuposto básico: o livro didático é uma das fontes de
conhecimento histórico e, como toda e qualquer fonte, possui uma historicidade
e chama a si inúmeros questionamentos. (FONSECA, 2003, p. 56).

E este tem sido o maior desafio dos professores atualmente,


diversificar as fontes para adotar em sala de aula, superando a
exclusividade do livro didático. Isto exige uma postura crítica diante
dos conteúdos presentes nas diversas publicações veiculadas
disponíveis. “Analisando os livros didáticos de história utilizados
atualmente percebe-se que a simplificação de temas amplos em fatos
isolados, principal característica, permanece” (FONSECA, 2003, p. 56).
É claro que ao longo do tempo, com todas essas mudanças, o livro
didático adquiriu algumas características importantes. Fonseca (2003)

114
destaca, como principais renovações, “[...] a introdução de novos
temas, ligados à história das mentalidades do cotidiano. O livro
didático deixou de se dedicar quase que exclusivamente aos fatos da
política institucional e alargou o campo do conhecimento histórico
ensinado nas escolas. Segundo, a tendência de não mais organizar os
conteúdos de história do Brasil, história da América e história geral
isoladamente, mas articulados ao longo de quatro séries, sem recorrer
às categorias dos ‘modos de produção’ como articuladores”
Com esse processo de mudanças e renovações na produção de
livros didáticos e paradidáticos fica nítido que, nos últimos anos, foi a
indústria editorial que definiu o que ensinar e como ensinar em história
nas escolas brasileiras. Por isso, cabe ao professor de história
estabelecer diversas abordagens que contribuam para a formação de
alunos com pensamento crítico e reflexivo, buscando construir uma
concepção e prática de cidadania e democracia. Pois é o exercício da
crítica a principal ferramenta da história.

REFLEXÕES EM RELAÇÃO A PRÁTICA DOCENTE NA DISCIPLINA DE


HISTÓRIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL

Nos últimos anos do século XX, iniciaram-se debates a respeito do


ensino de História nas escolas brasileiras, a partir do processo de
discussão e modificação curricular. A partir deles levantaram-se
inúmeras propostas de renovação das metodologias, dos temas, da
organização e dos problemas do ensino que são visualizados nas salas
de aula. É através de todo esse processo de mudança, que a História e
a geografia para a ser valorizadas como áreas especificas do
conhecimento.

Do movimento historiográfico e educacional é possível apreender uma nova


configuração do ensino de história. Houve uma ampliação dos objetos de estudo,
dos temas, dos problemas, das fontes históricas utilizadas em salas de aula. Os
referenciais teórico-metodológicos são diversificados; questões até então
debatidas apenas no ensino de graduação chegam ao ensino médio e
fundamental, mediadas pela ação pedagógica de professores que não se
contentam com a reprodução dos velhos manuais. (FONSECA, 2003, p. 243).

Atualmente, existem no Brasil, inúmeras formas de ensinar e


aprender História. O que é positivo, pois há disponível diversas
concepções teóricas, ideológicas, políticas e metodológicas quanto ao

115
ensino de História. Pluralidade essa, permitida pelas novas pesquisas
historiográficas, pelas renovações nos currículos, nos PCNs, assim
como, pelas experiências dos próprios professores, que vieram para
contrapor a história tradicional.
Entretanto, é nítido que tudo que o aluno aprende ou não, bem
como aquilo que o professor ensina ou deixa de ensinar, vai além do
que é apresentado pelos currículos e livros didáticos. Por isso, é muito
importante um diálogo baseado na criticidade entre os sujeitos ligados
a construção dos saberes históricos em todos os espaços, sejam
educativos, sociais e culturais.

Acreditamos que o professor de história não opera no vazio. Os saberes


históricos, os valores culturais e políticos são transmitidos e reconstruídos na
escola por sujeitos históricos que trazem consigo um conjunto de crenças,
significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos nos vários espaços.
Isso implica a necessidade de nós, professores, incorporarmos no processo de
ensino outras fontes de saber histórico, tais como o cinema, a TV, os quadrinhos,
a literatura, a imprensa, as múltiplas vozes dos cidadãos e os acontecimentos
cotidianos. O professor, ao diversificar as fontes e dinamizar a prática de ensino,
democratiza o acesso ao saber, possibilita o confronto e o debate de diferentes
visões, estimula a incorporação e o estudo da complexidade da cultura e da
pesquisa histórica. (FONSECA, 2003, p. 244).

Nesse sentido, as mudanças só acontecerão de forma


significativa e positiva, quando acompanhadas de melhorias nas
condições de trabalho docente e na formação inicial e continuada dos
professores de toda a rede pública e privada do Brasil.
Entretanto, a formação vai além de cursos e debates. Envolve
também as experiências, as ações desenvolvidas ao longo do tempo
do trabalho docente. A ação e os saberes de cada professor são
reconstruídos ao longo do tempo ganhando novos significados a partir
da observação e reflexão sobre os resultados obtidos. Isso exige uma
postura crítica, sensibilidade e reflexão permanentes por parte dos
professores a respeito de suas ações no cotidiano escolar, visando
rever as práticas e saberes.
Desse modo, “[...] ensinar história no atual contexto sociopolítico
e cultural nos conduz à retomada de uma velha questão: o papel
formativo do ensino de história” (FONSECA, 2003, p. 245). Não
devemos esquecer do papel da história quanto disciplina escolar, que
é a formação do indivíduo, este que é um cidadão em uma sociedade
composta por diferenças e contradições.

116
Isso requer assumir o ofício de professor como uma forma de luta política e
cultural. A relação entre ensino e aprendizagem deve ser um convite e um
desafio para alunos e professores cruzarem, ou mesmo subverterem as
fronteiras impostas entre os diferentes grupos sociais e culturas, entre a teoria
e a prática, a política e o cotidiano, a história, a arte e a vida. Como? Certamente
um dos caminhos é buscar renovar, cotidianamente, nossas práticas dentro de
fora da escola. É procurando agir como cidadãos, sujeitos da história e do
conhecimento. É criando possibilidades de mudanças. (FONSECA, 2003, p. 245).

Porém, a força da tradicional concepção de ensino da História


resiste, inibindo os processos de mudança, de reconstrução do saber.
Nessa prática o professor acaba cristalizando ideias, valores e fatos
como verdades absolutas, dificultando o desenvolvimento da
criticidade no aluno. Isso gera uma metodologia baseada no professor
como reprodutor de conteúdos e o aluno como mero espectador
passivo. Essa ação, segundo Fonseca (2003, p. 245) acaba

[...] perpetuando a chamada ‘memória dos vencedores’, via ‘história oficial’. E,


ao mesmo tempo em que dificultava a compreensão da história como
experiência humana de diversos sujeitos e grupos, era um limite ao
desenvolvimento de novas práticas pedagógicas que pudessem romper com a
forma tradicional de ensinar e aprender história na sala de aula.

Em contrapartida, hoje, é nítida a percepção de que a escola vai


além disso, pois é um espaço de debates e reflexões. Logo, se torna
um lugar com distintas possibilidades de ensinar e aprender. Nesse
sentido, se faz necessário uma nova concepção de história, de seu
ensino e aprendizagem, através da construção de novas práticas
educativas.
Por isso, devemos ver o ensino de História como formador da
consciência histórica nos sujeitos, que permita a compreensão do
“eu”, a afirmação quanto indivíduo no tempo, no espaço, na sociedade
em que vive, onde assume um papel ativo capaz de construir e
transformar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entretanto, para que o aluno compreenda e interprete o passado


de forma adequada, é necessário que o professor tenha uma
consciência de seu modo de perceber o passado, evitando o
anacronismo, dando ao ensino da História uma função formativa para

117
a formação de uma cidadania crítica e atuante. Para assim, auxiliar o
aluno a se sentir um sujeito histórico, que tem um papel ativo na
sociedade.
É fundamental que o professor, durante todo o processo de
ensino-aprendizagem, leve em consideração os saberes históricos que
o aluno adquiriu através de suas relações familiares, sociais e
escolares. Mesmo estes conhecimentos não sistematizados são
importantes para a aprendizagem do aluno, através da relação que ele
mesmo fará entre esses conhecimentos e os novos que irá adquirindo
na escola, buscando reformular esses conceitos, além de buscar
aperfeiçoar, adquirir e descobrir novas habilidades.
Para efetivar isso, é necessário que o professor busque conhecer
a história de cada aluno, além de saber suas dificuldades. Isso se fará
através da relação professor-aluno durante o ano letivo, onde o
professor criará situações que oportunizem a construção desse
conhecimento.
Assim o professor pode transpor as atividades e conteúdos
abordados em sala de aula com a realidade dos alunos, pois
conhecendo seus alunos, poderá interagir e dialogar com eles de
forma clara e segura quanto ao êxito de sua metodologia. Enquanto
cabe a escola “buscar viabilizar, socializar e sistematizar os
conhecimentos dos alunos, ampliando suas potencialidades de manejo
e aquisição do saber elaborado” (BRODBECK, 2012, p. 18).
Pois, assim como em outras áreas do conhecimento, aprender
História é construir e dominar conceitos, que se ampliam e ganham
novos significados através de uma relação dinâmica com outros
conceitos que são apresentados, afim de desenvolver um pensamento
crítico acerca dos acontecimentos passados e presentes.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São


Paulo: Cortez, 2004.
BRODBECK, Marta de Souza Lima. Vivenciando a história:
metodologia de ensino da história. Curitiba: Base Editorial, 2012.
CHAVES, Edilson A. A música caipira em aulas de História: questões e
possibilidades. Curitiba: UFPR, 2006.

118
CAINELLI, Marlene. História. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o Ensino)
FONSECA, S. G. Didática e prática de ensino de história: experiências,
reflexões e aprendizados. São Paulo: Papirus, 2003.
FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: História oral de
vida. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997.
HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
MATTOZZI, Ivo. A história ensinada: educação cívica, educação social
ou formação cognitiva. In: Revista O Estudo da História, n.3. Actas do
Congresso O ensino de História: problemas da didática e do saber
histórico. Braga: Universidade do Minho, 1998, p.23-50.
PINSKY, Jaime. História na sala de aula: conceitos, práticas e
propostas. São Paulo: Contexto, 2010.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos da
ciência histórica.
SCHIMIDT, Maria A. A formação do professor de história e o cotidiano
da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na
sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998.
SOBANSKI, Adriane de Q. (Org.) Ensinar e aprender História: histórias
em quadrinhos e canções. Curitiba, Base Editorial, 2009.
THEOBALD, Henrique R. A experiência de professores com ideias
históricas: o caso do “Grupo Araucária”. Curitiba: UFPR, 2007.

119
120
CRIMINALIZAÇÃO POLÍTICA NO ESTADO NOVO: O CASO DO
CÔNEGO CÉSAR ROSSI, O “PARTIDÁRIO DO NAZI-FASCISMO”

Leandro Mayer1

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Este capítulo integra uma série de publicações relacionadas a


religiosos processados perante o Tribunal de Segurança Nacional
durante o Estado Novo (1937 – 1945). Nesta escrita apresentamos o
processo criminal instaurado contra o Cônego César Rossi, que figura
como acusado de crime contra a segurança nacional no processo-
crime nº 4.405 junto ao Tribunal de Segurança Nacional, no Rio de
Janeiro.
Com a normatização de condutas do Estado Novo, modelo
autoritário de governo, a população de origem imigrante alemã,
concentrada principalmente na região sul do País, sofreu repressões.
Partindo do pressuposto de que a normatização da campanha de
nacionalização passou por leituras e interpretações dos agentes
oficiais envolvidos, responsáveis pela implementação e o
cumprimento da lei, entende-se que o processo como um todo foi
peculiar, a depender dos envolvidos, da resistência e da repressão.
Desse modo, parte-se de um contexto macro-histórico, para verificar,
em escala reduzida, as respostas singulares.
Os processos-crime, além de serem inéditos em estudos
acadêmicos, são capazes de revelar aspectos não abordados em
outros campos de análise. Sobre a relevância das fontes, concordamos
com Ginzburg (1991), que afirma que um documento realmente
excepcional pode ser muito mais revelador do que mil documentos
estereotipados. Já Dosse (2009) enaltece que a descoberta de
documentos novos e até então inacessíveis possibilita novas leituras,
oferecendo ao historiador, uma seara única. É fato também que a
documentação criminal é o espaço onde se dá voz aos anônimos, cujas

1 Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo. Bolsista


UNIEDU/FUMDES. E-mail: [email protected].

121
vozes para Rosemberg (2009) se cruzam, esbarram e se
complementam.

CÔNEGO CÉSAR ROSSI, O “PARTIDÁRIO DO NAZI-FASCISMO”

O processo-crime 4.405 foi instaurado em 1943 contra o cônego


César Rossi de Laguna/SC, tendo como origem a acusação do religioso
ser um “ardoso partidário do nazi-fascismo”. Esta acusação partiu do
relato de uma testemunha ouvida em outro inquérito no qual o cônego
era acusado de ter chamado por diversas vezes de ladrão ao escrivão
da paz, Alfredo Teixeira de Melo, que deu parte na polícia na condição
de ofendido. No inquérito, a testemunha Duilio José Paizani,
telegrafista, 49 anos, residente no distrito de Mirim-Laguna, fez
acusações comprometedoras contra o cônego, afirmando que em
certa ocasião o acusado discutiu questões de guerra dentro da
repartição dos correios e telégrafos, “manifestando-se, francamente
favorável às potências do Eixo”, tendo o religioso falado “que não
estava provado que tivesse sido torpedeados por submarinos do Eixo,
cinco navios brasileiros, e que se fossem por navios ingleses ou
americanos o nosso governo não teria declarado guerra aos mesmos”,
afirmando ainda

que os americanos não sairiam mais do Brasil, e que nas fortificações do norte
do país, guarnecidos por oficiais ingleses e americanos, não era permitida a
entrada de oficiais brasileiros, e que nestas fortificações guarnecidas por oficiais
brasileiros, os ingleses e americanos entravam e saíam a hora que bem
entendessem, e que por este motivo, havia quase sempre muitas bofetadas
entre oficiais estrangeiros e brasileiros (P. C. 4.405, 1943, p. 6).

Duilio José Pizani ainda fez outra acusação grave, dando conta
que o cônego teria, na mesma ocasião dos fatos narrados
anteriormente, dito que “os brasileiros eram incivilizados e que povos
civilizados só existiam três: alemães, italianos e japoneses e que a raça
inferior tinha que desaparecer, isto se referindo aos brasileiros”.
Finalizando, o depoente falou que soube que o cônego teria convidado
o juiz de paz do distrito de Mirim para “organizar um partido e que
depois deste partido vitorioso, eliminariam os maus elementos” (P. C.
4.405, 1943, p. 6).

122
Diante das acusações de Duilio José Pizani, inquérito foi
instaurado pela delegacia especial de polícia de Laguna para apurar as
declarações, sendo intimados para depor o acusado César Rossi e
testemunhas.
O acusado, cônego César Rossi foi o primeiro interrogado, em 29
de setembro de 1943. Descrito como sendo de nacionalidade Italiana2,
vigário da paróquia de Mirim, 64 anos. Interrogado sobre as denúncias
feitas pelo telegrafista Duilio José Pizani contra ele, o cônego
confirmou que em certa ocasião fez uma visita ao telegrafista, o qual
“atacou e insultou as potências do Eixo, principalmente a Alemanha,
dizendo coisas injuriosas contra aquele povo”. Afirmou que se
incomodou com a atitude do telegrafista, retirando-se em seguida e
dizendo ao telegrafista “que não tinha nada com as potências do
Eixo”. O acusado afirma que nada mais aconteceu além do fato
narrado, “negando o depoente ter se referido ao nosso país com
relação aos afundamentos de navios, declaração de guerra e mesmo
sobre as fortificações do norte, nem mesmo com relação a esta ou
outra raça” (P. C. 4.405, 1943, p. 9).
Na mesma data também foram ouvidas as testemunhas. Olimpio
Soares da Rosa, 53 anos, guarda-fios3 do telégrafo, relatou que em
certa ocasião o cônego César Rossi esteve na agência de correios e
telégrafos do distrito de Mirim onde o depoente é funcionário e ouviu
o cônego dizer “que não tinha ficado provado que os cinco navios
brasileiros, fossem torpedeados por submarinos do Eixo, mas que se
tivessem os mesmos sido torpedeados por navios ingleses ou
americanos, o governo brasileiro não teria declarado guerra a estes”.
O cônego também teria se referido às fortificações do norte do país,
afirmando que “os oficiais ingleses e americanos entravam nas
fortificações brasileiras, mas, aos oficiais brasileiros não era permitido
a sua entrada nas fortificações americanas”. Confirmou também que o
religioso teria afirmado “que só existiam três povos civilizados,
italianos, almães e japosenes, e que os demais povos eram incivilizados
e por este motivo deveriam desaparecer” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).

2 No boletim individual do acusado, preenchido pela delegacia de polícia de Laguna,


consta que o Cônego César Rossi é natural de Cervara di Roma, Itália.
3 É a denominação dada à pessoa encarregada de vigiar e reparar as linhas ou cabos de

luz elétrica, telegráficos e telefônicos.

123
Questionado se o depoente conhece o cônego e quais as suas
atitudes face o conflito mundial, a testemunha respondeu que “o
cônego é francamente favorável ao Eixo e já tendo o mesmo feito uma
aposta como a Alemanha venceria a guerra” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).
Disse finalmente o depoente, que sabe que no tempo na extinta Ação
Integralista Brasileira, o cônego César Rossi era adepto do partido.
Avelino Bilherva Soares, operário, 29 anos, em depoimento
afirmou que é intendente do distrito de Mirim e que conhece a muitos
anos o cônego César Rossi, sabendo que o mesmo “é partidário das
potências do Eixo”. Afirmou que soube que o religioso fez inclusive uma
aposta que a Alemanha venceria a guerra. O depoente afirmou que “é
público e notório ser o cônego César Rossi, partidário das potências do
Eixo, como também já foi parte integrante da extinta Ação Integralista,
que o referido Cônego é italiano nato” (P. C. 4.405, 1943, p. 10).
Teodoro Machado de Souza, lavrador, 67 anos, juiz de paz do
distrito de Mirim, relatou que conhece o acusado há muitos anos e que
o cônego vive se envolvendo em conflitos com as autoridades. O
depoente informou que em 19304 foi procurado pelo cônego para
formar “um partido político nas normas do partido que Mussolini
organizou na Itália”, explicando que o objetivo seria “juntar todos os
elementos, separando então os maus, e com o resto derrubar as
autoridades do lugar” (P. C. 4.405, 1943, p. 11). Por fim, afirmou que é
voz corrente no distrito de Mirim que o cônego é torcedor das
potências do Eixo.
Josina Mário Teixeira, 24 anos, professora municipal, declarou
que há algum tempo o cônego fôra afastado da paróquia por ser
italiano, e depois de sua volta teria falado na igreja que “na prática
tinha voltado para Mirim para mostrar ao povo que ele tinha poder, e
que ali achava-se vivo e verde” (P. C. 4.405, 1943, p. 11).
Aristotilino Quirino da Silva, guarda-fios, 42 anos, declarou que é
funcionário da agência de correios e telégrafos no distrito de Mirim.
Em seu depoimento confirmou na íntegra as declarações constantes
na denúncia de Duilio José Pizani, na condição de testemunha ocular
dos fatos que teriam ocorrido no interior da agência, enaltecendo que
o cônego manifestou-se a favor das potências do Eixo, sendo voz
recorrente no distrito wue o cônego é um “fervoroso adepto do nazi-
fascismo” (P. C. 4.405, 1943, p. 12).

4 Lembrar que nesta época a associação a partidos políticos não era criminalizada.

124
Ouvidas as testemunhas e o acusado, em relatório, o delegado
especial da delegacia especial de polícia de Laguna José Atanazio de
Freitas, considerou que no inquérito “ficou francamente provado que
o cônego César Rossi, vigário da paróquia de Mirim, é um ardoso
partidário do nazi-fascismo, parecendo-me ter o mesmo incidido nas
sanções do decreto-lei nº 4285 de 16 de maio de 1938[...] e outros
dispositivos da Lei de Segurança Nacional” (P. C. 4.405, 1943, p. 12). Por
fim, solicitou a remessa dos autos à Delegacia da Ordem Política e
Social em Florianópolis, onde foram recebidos em 12 de outubro de
1943. Na mesma data, o delegado em exercício do DOPS, Arnaldo
Martins Xavier, ordenou a remessa do inquérito ao Egrégio Tribunal
Superior de Segurança Nacional do Rio de Janeiro, onde consta a data
de recebimento do processo em 7 de dezembro de 1943.
Os autos receberam vistas pelo procurador do Tribunal de
Segurança Nacional Eduardo Jara em 31 de dezembro, o qual opinou
pelo arquivamento do processo, considerando que

Contra César Rossi, sacerdote na cidade de Laguna, foi apresentada denúncia


pelo escrivão do Registro Civil do distrito de Mirim. Declaram o escrivão e a
testemunha que o cônego César Rossi xingou o serventuário de Mirim, de ladrão.
As disposições do art. 3º, inciso 25, do Decreto-Lei n. 4316, não se aplicam a
escrivães de registro civil, pois não possuem as prerrogativas de “jus imperil”.
Por improcedência da acusação, opino pelo arquivamento do presente
inquérito7 (P. C. 4.405, 1943, p. 17).

O julgamento ocorreu em 25 de janeiro de 1944, acordando os


juízes do Tribunal de Segurança Nacional, por maioria dos votos,
deferir o pedido de arquivamento do inquérito por considerar “que os
autos não oferecem qualquer indício de cuplabilidade do acusado” (P.
C. 4.405, 1943, p. 19).

5 Dispõe sobre o processo dos crimes definidos nas leis nºs. 38 e 136, de 4 de abril a 14
de dezembro de 1935. “Por divulgar em público notícias falsas, sabendo ou devendo
saber, que o são e que possam gerar na população desassossego ou temor” (P. C.
4.405, 1943, p. 12).
6 Define crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do

Estado e contra a ordem social.


7 É importante atentar que o procurador do Tribunal de Segurança Nacional Eduardo

Jara considera apenas o fato do xingamento do cônego, ignorando as demais


denúncias constantes nos autos.

125
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDALISE, Carla. Camisas-Verdes: o Integralismo no sul do Brasil.


Acervo: revista do Arquivo Nacional. V. 10, n. 2 (jul./dez. 1997). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1998. p. 17-36.
CANABARRO, Ivo dos Santos. Uma abordagem cultural de um
movimento político dos anos trinta: o caso do integralismo em Ijuí.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1994.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
GERTZ, René E. Integralismo, nazifascismo e "neonazismo" no sul do
Brasil, 2012. Disponível em http://renegertz.com/publicacoes/textos/17-
textos/95-integralismo-nazifascismo-neonazismo-sul-brasil. Acesso
em 20 maio 2015.
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado
historiográfico. In: _____. A micro-história e outros ensaios. Lisboa:
Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 169-178.
ROSEMBERG, André; SOUZA, Luiz A.F. de. Notas sobre o uso de
documentos judiciais como fonte de pesquisa histórica. In: Revista
Patrimônio e Memória. Vol 5, nº 2. Julho/dezembro, 2009. Disponível
em http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/issue/view/15/showToc.
Acesso: 16 nov. 2014.
TONINI, Veridiana M. Uma relação de amor e ódio: o caso Wolfram
Metzler (1932-1957). Passo Fundo, UPF, 2003.

FONTE PRIMÁRIA

PROCESSO CRIME - Processo Crime nº 4.405 contra Cônego César


Rossi, instaurado em 1943. Acusação: Crime contra a segurança
nacional. Disponível no Arquivo Nacional (fichário TSN – Tribunal de
Segurança Nacional).

126
A CAPOEIRA NO CONTEÚDO DA DISCIPLINA DE EDUCAÇÃO FÍSICA
EM ESCOLAS MUNICIPAIS DO INTERIOR DA BAHIA

Fabrim Atil da Silva1


Juliana Barros Ferreira2
Nayara Alves de Sousa3

INTRODUÇÃO

A educação física escolar, constituída como uma área do


conhecimento humano, presente no currículo da educação básica das
escolas brasileiras, possibilita o estudo sistematizado daquilo que
historicamente o homem produziu em termos de cultura corporal.
Nessa disciplina estão incluídos, os conteúdos do esporte, do jogo, das
lutas, da dança e das brincadeiras tradicionais (BRASIL, 1998).
No entanto, os conteúdos do esporte, especialmente futsal,
handebol, basquetebol e voleibol estão inseridos no contexto da
educação física de forma muito mais enraizada, em detrimentos de
outros conteúdos como: a dança os jogos populares e as lutas,
restringindo o acesso destas outras práticas que compõe o universo
da cultura corporal (GONÇALVES JUNIOR, 2007).
A capoeira, por exemplo, atua de maneira direta e indireta sobre
todos os aspectos cognitivos, afetivos e motores (CAMPOS, 2001). Um
estudo realizado por Natividade (2006), em duas escolas municipais,
localizadas no interior do Rio de Janeiro, trouxe como resultado da
prática da capoeira, utilizada de forma lúdica e como discussão em
aula, um desenvolvimento positivo das habilidades motoras e físicas,
além do sentimento de afetividade e coletividade dos discentes.
Então, cabe ao professor de educação física, abordá-la, valorizando a
luta, o contexto histórico, a musicalidade, a ludicidade, bem como,

1Graduando em Educação Física pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


(UESB). E-mail: [email protected].
2Fisioterapeuta. Mestre em Tecnologias em Saúde/EBMSP. Docente da FAINOR, FTC e

UNINASSAU. E-mail: [email protected].


3Fisioterapeuta. Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente

Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].

127
questões técnicas do jogo e estrutura hierárquica dos grupos (REIS,
2000).
Portanto, considerando o valor educativo da capoeira e sua
contribuição como prática pedagógica na escola, surge à inquietação
dessa pesquisa, no intuito de verificar a importância da capoeira no
conteúdo da disciplina de Educação Física para os professores de
escolas municipais de um interior da Bahia.
Essa pesquisa é relevante, pois a Capoeira pode e deve ser
utilizada como conteúdo nas aulas de Educação Física escolar, pois
além de ter um rico conteúdo histórico, desenvolver o aspecto físico-
motor, cognitivo e afetivo, é um excelente facilitador da aprendizagem
escolar.

A CAPOEIRA E A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

A capoeira é uma manifestação brasileira, provocada pela


necessidade de lazer e defesa do negro, recebendo aportes de várias
manifestações africanas. É caracterizada como uma luta, jogo,
brincadeira ou dança realizada por dois participantes que se interage
em um espaço circular (roda) ao som de berimbaus, atabaques,
pandeiros e por palmas ritmadas e ainda por músicas específicas
cantadas pelos integrantes (SOUSA e OLIVEIRA, 2011; CAMPOS, 2011;
D’AMORIN e ATIL, 2007).
Para Pastinha (1988, p. 20), a “capoeira tradicional veio para o
Brasil com os escravos africanos, era uma forma de luta com
características próprias, onde seu maior recurso estava na força
muscular, flexibilidade e rapidez nos movimentos”. Para Abib (2004,
p.89), esses povos inventaram formas de defesa, que era, inclusive,
utilizada pelos negros “como um instrumento de luta, no qual o saber
corporal podia ser transformado numa arma eficaz a serviço da sua
libertação”.
D’Amorin e Atil (2007) afirmam que não vieram escravos para o
Brasil e, sim, populações inteiras feitas escravos:

Vieram trazendo suas riquezas, estruturas sociais, políticas, hábitos e


manifestações aqui se agruparam, resistiram. Com isso, o ventre africano se
preparou, concebeu e fez nascer um rebento no Nordeste, denominado
Capoeira tradicional que foi se modificando, até ser recriada em duas vertentes:
A capoeira angola (jogo rasteiro, disfarçado de brincadeira, com golpes de

128
pernadas e cabeçadas e movimentos improvisados), criada pelo Mestre
Pastinha; e a Capoeira Regional (jogo mais acrobático, com movimentos de
pernadas e esquivas rápidas), criada pelo Mestre Bimba (D’AMORIN; ATIL, 2007).

Para Crispin e Mann (2016) devido ao perfil dinâmico da capoeira,


sendo uma atividade de ataque e defesa, com a utilização de golpes de
ataque e contra-ataque, valendo-se de grande poder de improvisação,
acabam recrutando de seus praticantes um número alto de ações
musculares diferentes o que possibilita o desenvolvimento de várias
aptidões físicas, dentre as quais se destacam a força, a potência, a
flexibilidade, a coordenação motora, o equilíbrio e a velocidade.
Diferentemente da introdução da ginástica e dos esportes na
sociedade brasileira e a posteriori nas escolas, vinda de uma cultura de
classes dominantes, a capoeira surge das classes subalternas e
pretende-se resistir física e culturalmente ao sistema dominante.
Períodos se passaram e hoje ela é tombada como Patrimônio Cultural
e Imaterial da Humanidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN, 2014).
A disciplina de Educação Física constitui uma área de
conhecimento que compreende, em suas ações, os aspectos
pedagógicos, políticos e sociais. Dessa forma, está ligada ao contexto
social, daquilo que, em momentos históricos específicos o homem
produziu em termos de conhecimentos e valores que nortearam os
diversos segmentos da sociedade.
Segundo Brasil (1996), desde aprovação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação nº 9.394/96, houve significativas mudanças,
sobretudo na autonomia para que as escolas, no que se refere às
escolhas dos conteúdos, pudessem adequá-los as suas respectivas
regiões. Para Souza e Oliveira (2001) um ponto importante dessa lei é
que a Educação Física, passa a ser valorizada como componente
curricular. Neste sentido, a disciplina deve estar integrada ao projeto
da escola, e cabe ao professor buscar ações que legitime sua prática
na escola.
A cada dia que passa, a Capoeira tem se incorporado ao ambiente
escolar, seja nas aulas de Educação Física, atividades extracurriculares,
datas comemorativas e apresentações de grupos da comunidade.
Porém, foi a partir da criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN’s) em 1998, que a Educação Física passou a contemplar mais esta

129
modalidade de esporte, jogo, folclore, arte e cultura com legitimação
(NATIVIDADE, 2006).
A capoeira é um conteúdo que pode ser contemplado na escola
pelos seus múltiplos enfoques, que possibilitam a luta, a dança, a arte,
o folclore, o esporte, a educação, o lazer e o jogo. A mesma deve ser
ensinada globalizadamente, deixando que o aluno se identifique com
os aspectos que mais lhe convier (SOUZA; OLIVEIRA, 2011).
Para D’Amorim e Atil (2007), a capoeira é extremamente
organizada, hierárquica, disciplinada e disciplinadora, com quadros a
quem se pede imenso respeito pelos mais velhos, criando uma relação
muito forte entre discípulo e Mestre. Ela por sua vez, se aprimora como
instrumento educacional e deve estar presente em diversos espaços
educacionais, pois pode contribuir para o desenvolvimento do
educando, transformando a escola em um espaço mais prazeroso para
todos.

CAMINHOS METODOLÓGICOS

Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem qualitativa.


Segundo Marconi e Lakatos (2003) esse tipo de pesquisa, também
chamada de estudo de campo, caracteriza-se na busca de obter
respostas sobre determinado fenômeno que queira comprovar,
possuindo uma maior aproximação entre pesquisador e o objeto de
estudo e ainda valoriza as generalidades e singularidades dos sujeitos
ou de determinados grupos da pesquisa, apresentando dados mais
contundentes sobre determinada realidade.
Essa pesquisa foi realizada em 3 escolas municipais, situada em
um município localizado no interior da região Sudoeste, do estado da
Bahia, durante o período de outubro a novembro de 2018. A escola,
denominada de Escola 1, está situada na sede do município e atende
um contingente de 850 alunos, envolvendo as etapas da Educação
Infantil, Fundamental I, Fundamental II e educação de jovens e adultos
(EJA).
As Escola 2 e Escola 3 são situadas no distrito deste interior,
estando distante 50 km da sede, atendendo, uma com população de
220 alunos e outra com número de 450 alunos respectivamente,
distribuídos também nas mesmas etapas de ensino da Escola 1.

130
Como sujeitos, inicialmente foram escolhidos 14 professores de
Educação Física. Porém, como critério de inclusão deveria possuir a
capoeira inserida no conteúdo das suas disciplinas. Todos os
participantes disponibilizaram voluntariamente, via e-mail seus planos
anuais da disciplina do ano de 2018, para verificação da existência ou
não, da capoeira no conteúdo. Com isso, foram selecionados 3
professores que trabalhavam com o tema.
O professor da Escola 1, possuía formação em pedagogia, atuava
como professor da disciplina Educação Física desde o ano de 2015 e
lecionava no ensino Fundamental II.
O professor da Escola 2 era bacharel em Educação Física, atuava
enquanto professor dessa disciplina desde o ano de 2013 e lecionava
no ensino Fundamental I e Fundamental II. Além disso, também era
professor de capoeira pela Escola de Desenvolvimento e Apoio da Arte
Capoeira (ABADA- Capoeira), e realizava trabalhos sociais com
capoeira na comunidade.
O professor da Escola 3 era licenciado em Educação Física, atuava
nessa escola desde o ano de 2016, lecionava no ensino Fundamental II
e praticava capoeira a mais de doze anos.
Todos foram previamente esclarecidos sobre o estudo e
assinaram o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido, sendo
assegurado o direito de interromper sua participação em qualquer
etapa da pesquisa, sem nenhuma penalização ou prejuízo, bem como
sigilo e anonimato quanto aos dados coletados.
Adotou-se como instrumento da pesquisa um formulário que
constava perguntas abertas sobre a importância da capoeira nas aulas,
a forma como os professores abordavam pedagogicamente a capoeira
na aula de educação física e a experiência extracurricular com a
capoeira. Como técnica de pesquisa foi aplicado o questionário
presencialmente, em uma semana de aula, no período vespertino e
com duração total de duas horas.
A partir daí surgiram três categorias: I. Percepção do professor de
Educação Física em relação à capoeira; II. Abordagem pedagógica da
capoeira na aula de Educação Física; III. Experiência extracurricular do
professor em relação à capoeira. Todas essas categorias foram
analisadas através da análise descritiva.

131
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados estão apresentados em três categorias: I.


Percepção do professor de educação física em relação à capoeira; II.
Abordagem pedagógica da capoeira na aula de educação física; III.
Experiência extracurricular do professor em relação à capoeira.
Estas categorias surgiram dos resultados encontrados, a partir
dos questionários aplicados com os 3 professores nomeados por A, B
e C que utilizavam a capoeira na disciplina de Educação Física em 3
escolas, nomeadas por 1, 2 e 3. Portanto, o professor A é da Escola 1,
trabalha com a capoeira há 2 anos, o professor B da Escola 2, utiliza a
atividade capoeira por 7 anos , e o professor C é da Escola 3, e faz uso
desse conteúdo faz 3 anos.

I. Percepção do professor de educação física em relação à capoeira

Em relação à visão/percepção sobre a capoeira, o professor A


relatou que compreende como: “[...] uma atividade bastante
completa, em que você poderá usá-la em meio educacional para o
desenvolvimento do componente das aptidões físicas, relacionada à
saúde e ao desempenho atlético, além da extraordinária contribuição
na socialização”.
O professor B afirma que: “[...] A capoeira foi desenvolvida pelos
escravos aqui no Brasil para vencer uma resistência física, cultural e
que se aprimorou ao longo do tempo, sendo atualmente uma
excelente atividade, inclusive para ser desenvolvida na escola”. Nessa
direção D´Amorim e Atil (2007), afirmam que a capoeira é uma
manifestação ligada à resistência dos negros. Desde os tempos da
escravidão, eles criaram formas de manter sua unidade social,
preservando seus usos e costumes.
O professor C afirmou que: “[...] a capoeira não se limita ao
aspecto estético da luta, mas sendo uma atividade rica em cultura,
legado da influência dos povos africanos no Brasil”. Segundo Fontoura
e Guimarães (2002), a capoeira é uma manifestação cultural surgida a
partir da necessidade de liberdade dos escravos frente aos senhores
de engenho.
Além disso, os três professores são unânimes em caracterizar o
aspecto lúdico da capoeira como uma ótima atividade, sobretudo para

132
crianças. Para Silva (1993) são os aspectos lúdicos presentes na
capoeira e ao mesmo tempo seu caráter combativo é que a faz tão
interessante. Além disso, o lúdico não deve ser entendido como um
passatempo ou simplesmente para divertir-se, mas para a contribuição
do ensino-aprendizagem, influenciando as dimensões cognitivas
afetivas e sociais do aluno, este internaliza novos conhecimentos,
apropria da cultura dando novos significados ampliando sua visão
sobre o mundo (MIRANDA, 2002; COSTA et al, 2018; NASCIMENTO,
2019).
Quanto à relevância do conteúdo da capoeira, o professor A
afirma que: “[...] ela não direciona somente à prática de movimentos
corporais. Faz uma ponte com a história, da forma como um povo
resistiu a uma imposição cultural diferente, sendo a capoeira uma peça
fundamental dessa resistência, portando a introdução dos conteúdos
da capoeira deve-se também a uma desmistificação de somente
enxergar como apresentação e espetáculo”.
O professor B diz ser: “[...] uma excelente ferramenta
pedagógica dentro de ambiente escolar, sua história e
desenvolvimento, vão além do desenvolvimento do componente
físico ou da defesa pessoal”. O professor C afirma que: “[...] a
educação física escolar deve-se apropriar do que foi produzido no
Brasil, sobretudo quanto às manifestações corporais. A capoeira é um
componente com muitas possibilidades, não pode ser negado aos
nossos alunos, estaríamos negando nossa própria história”.
Nessa mesma direção, Darido (2001) destaca a importância da
inclusão dos jogos, da dança, das lutas, da capoeira nas aulas de
educação física escolar entendendo este componente curricular como
um campo para se trabalhar com os elementos da cultura corporal.
Quando perguntados se a capoeira precisa ocorrer como nas
academias e se precisaria de uma formação continuada em capoeira, o
professor A salienta que: “[...] é importante em todas as áreas e não
seria diferente em Educação Física. Nas aulas os conteúdos de capoeira
devem seguir um curso diferente, não é somente a fruição dos
movimentos como fim em si mesmo, mas como um meio para alcançar
outras dimensões do conhecimento e com isto aproximar o estudante
destes conteúdos que talvez em outros contextos não acontecesse”.
O professor B enfatiza que “[...] é imprescindível à formação
continuada para uma melhor compreensão da capoeira, já que possui

133
nuances que são despercebidas de quem não o pratica. Além disso, o
ambiente escolar é um espaço para apropriação crítica do
conhecimento, não devendo estar restrito a aplicação da técnica,
portanto, a capoeira deve ser adaptada às diversas realidades
encontradas na escola”.
O professor C, diz que “[...] a formação continuada é importante,
não significando que será necessário ingressar em uma academia de
capoeira, pois isto é questão de gosto pessoal, cabe ao professor o
contato com livros, professores e mestres, a fim de ampliar suas
percepções a cerca desta prática”. Neste contexto Bahia et. al (2018)
afirmam que a formação continuada deve-se da mobilização dos
conhecimentos científicos, pedagógicos e as reflexões individuais e
coletivas dos docentes aproximando seus saberes da realidade
escolar, afim de melhorar o fazer pedagógico em todos os momentos
de atuação profissional, na busca de avanços qualitativos no ensino e
no exercício docente.

II. Abordagem pedagógica da capoeira na aula de educação física

Em relação à introdução da capoeira nas aulas de educação física,


o professor A afirma que: “[...] introduz com aulas expositivas com
participação dos discentes, debate em sala, atividades escritas
avaliativas individuais ou em grupo e apresentações de rodas na escola
com participação de professores da cidade”.
O professor B respondeu que: “[...] utiliza duas ou três aulas para
apresentar o conteúdo, com leitura de textos, exposições orais e
documentários. Reservo duas aulas para oficinas práticas e faço uma
culminância com uma roda de capoeira com convidados da
comunidade”.
O professor C diz: “[...] gosto de fazer uma abordagem histórica
do conteúdo, utilizando de textos, revistas de capoeira e vídeos. Nas
aulas práticas, tento demostrar que os movimentos de capoeira
possuem uma estreita relação com o comportamento social dos
escravos e dos primeiros capoeiristas urbanos que foram os
estivadores, ou seja, esquivar- se do movimento para esperar o
momento certo do ataque, ir ao chão, mas não se dar por vencido,
saber que existe mais que uma luta de contato físico”.

134
Silva (2018), portanto, falando sobre a “capoeirização” da escola,
ressalta que a capoeira possibilita novas abordagens e metodologias,
rompendo com o modelo reducionista de transmissão oral do
conhecimento, centrando, por exemplo, no “aprender fazendo”, num
aprendizado que envolve o “tato-cinestésico”, na valorização das
diferenças, da cooperação superando barreiras competitivas.
Quanto às facilidades e dificuldades no trato da capoeira nas aulas
de educação física o professor cita que: “a aula pode ocorrer na
própria sala de aula, e que muitos alunos já conhecem, facilitando o
processo de ensino”. O Professor B enfatiza que “os instrumentos de
capoeira podem ser confeccionados pelos próprios alunos e as aulas
poderão acontecer na própria sala de aula”. O professor C diz que “a
facilidade se encontra da própria liberdade dos gestos motores da
capoeira, não necessitando de um padrão rígido de movimento, como
ocorre em outras lutas”. Isto significa que os alunos podem
experimentar vários gestos motores e golpes, visando sempre
aumentar a eficiência de execução.
Quanto às dificuldades o professor A respondeu que: “por não ter
formação prática em capoeira e nem formação em educação física,
tenho dificuldade com o ensino dos movimentos e os alunos ficam às
vezes desmotivados e dispersos”. O professor B disse que: “a principal
dificuldade é o ensino para alunos evangélicos, muitos têm resistência,
sobretudo das músicas e do ritmo”, mas no geral não ver como
obstáculo e sim como possibilidade para o diálogo e buscar o
entendimento. O professor C disse que: “[...] não há dificuldades nas
aulas práticas e que os alunos assimilam bem, no entanto, alguns
alunos não se sentem motivados em função do ritmo e de muitas letras
musicais cantadas na roda se aproximarem de religiões de matrizes
africanas”.
Um estudo de Moura et.al (2012) sobre as dificuldades e
facilidades de inserção dos conteúdos da capoeira em escolas da
Rocinha, uma comunidade da cidade do Rio de Janeiro, apontou que
mesmo sabendo da importância destes conteúdos em sala de aula, os
professores optaram por não trabalhar, alegando formação deficitária
nos cursos de formação. Como facilidades destacaram não precisam
de espaços nem roupas apropriadas e que os instrumentos são de fácil
aquisição se comparado a outras lutas.

135
Quanto à estruturação deste conteúdo durante o calendário
letivo, o professor A respondeu que: “[...] opta por trabalhar somente
na última unidade de ensino, pois aproxima do período da data de
comemoração ao Dia da Consciência Negra”. O professor B disse que:
“[...] estrutura os conteúdos de modo que as lutas e capoeira ficam
para a quarta unidade”. O professor C também trabalha com este
conteúdo na última unidade letiva e ressalta ainda que: “[...] nesse
período é mais fácil fazer um paralelo com outros temas como ética,
cidadania e diversidade cultural”.
Quando foram perguntados se utilizavam alguma abordagem
pedagógica específica para introdução da capoeira nas aulas, o
professor A disse que: “não”. O professor B disse que: “não, mas é
crucial correlacionar estes elementos problematizando com os
problemas sociais, não devendo ser uma prática desvinculada deste
contexto”. O professor C disse que: “utilizo de várias abordagens
pedagógicas visando sempre despertar o senso crítico dos alunos
frente a estes conteúdos”.
Quanto ao que priorizavam na capoeira para incentivar os alunos,
o professor A afirma que: “[...] deve-se evidenciar o contexto social, a
formação de valores respeitando sempre as diferenças”. O professor
B diz que: “[...] nas séries iniciais do ensino fundamental, opta por usar
imagens e vídeos com acrobacias, pois ficam entusiasmados para
conseguirem executar tais movimentos e nas turmas subsequentes
prefere valorizar o contexto social valorizando as diferenças e a
pluralidade cultural”.
O professor C relata que: “[...] opta por uma abordagem lúdica,
explorando a criatividade e curiosidade dos alunos, mas sem perder o
foco”. Corroborando com as afirmativas dos professores, Bomfim
(2000) diz que a capoeira não restringe a mais uma atividade física
dentro da escola, que é necessário o debate político, socializador e
também, da promoção da igualdade racial.

III- Experiência extracurricular em capoeira

Em relação à participação em alguma aula de capoeira ou o


contato com professores da área, o professor A disse que: “[...] nunca
participou de uma aula de capoeira, mas mantém contato sempre com
os professores de capoeira da região”. O professor B respondeu que:

136
“participo de grupos de capoeira mantendo uma rotina de treinos”. O
professor C disse que: “[...] atua também como professor de capoeira
fora do ambiente escolar, sendo subordinado a professores e mestres
dentro da hierarquia do grupo de capoeira”.
Segundo Silva (2011) esse contato com mestres de capoeira para
o aprimoramento de seus conhecimentos é muito importante, pois
possibilita a estes ampliar suas capacidades gestuais, a musicalidade e
inseri-los na sua prática pedagógica de forma prazerosa.
Quanto ao que fazem para ficarem informados sobre a capoeira,
o professor A respondeu que: “a principal fonte de pesquisa é a
internet”. O professor B disse que: “[...] a prática constante já o
mantêm atualizado, porque há sempre discussões nos grupos sobre
capoeira de modo geral”. O Professor C disse que: “a literatura deste
conteudo é bastante rica, tanto artigos na internet, livros e também o
contato com outros professores e mestres em rodas de capoeira e
cursos promovidos com o intuito de disseminação das práticas da
capoeira”.
Professores que se mantêm atualizados tornam-se mais
reflexivos em suas práticas docentes, reformulando e aprimorando os
saberes já adquiridos (MILEO, 2009). Além disso, o contato com
profissionais especialistas, segundo Silva (2011) possibilita a
compreensão das diferentes linguagens que compõe o acervo da
cultura corporal, riquíssimo no processo de ensino-aprendizado da
capoeira para os professores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as percepções dos professores em relação à


capoeira, os três participantes compreendem a capoeira para além da
dimensão da luta corporal ou como um jogo de espetáculo, mas como
uma peça de resistência da cultura africana aqui no Brasil, que se
corporificou trazendo uma conotação de liberdade, de se expressar,
seja através dos gestos motores na roda ou na musicalidade. Portanto,
argumentam que a capoeira é um dos componentes que dá
personalidade a história de um povo, faz parte da nossa cultura e por
possuir tantas possibilidades é importante que esteja inserida no
ambiente escolar, especialmente nas aulas de Educação Física.

137
Além disso, como os próprios professores disseram, não é
necessária uma formação específica em capoeira para inserirem estes
conteúdos na sala de aula, não é a busca pela técnica ou a formação
do guerreiro que está em pauta, mas a capacidade de possibilitar
acesso a outras práticas, respeitando os limites e valorizando as
diversidades encontradas.
Quanto ao questionamento dessa pesquisa, os resultados
corroboram com a hipótese levantada quando ressalta que a presença
da capoeira no conteúdo da disciplina de Educação Física é importante,
segundo as percepções dos professores das escolas municipais
localizadas em um município do interior da Bahia.
No entanto, faz-se importante e recomenda-se a realização de
novas pesquisas, com um número maior de sujeitos, e em outras
instituições de ensino, para que possam almejar contribuições
importantes relacionadas à Capoeira e a Educação Física, a partir do
respaldo e valoração de outros professores.

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140
DA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS ÀS PRÁTICAS DE FUTSAL
DISSEMINADAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA:
UMA NOVA ABORDAGEM

Ademilton Santos Silva1


Guacyra Costa Santos2
Nayara Alves de Sousa3

INTRODUÇÃO

Foi através das aulas de Seminário Temático V, que conheci4 o


grande poeta Manoel de Barros (2010), ao olhar da educação física, o
que me fez abrir esse cenário lembrando do meu tempo de menino
quando no quintal da minha casa desenvolvia regras para as
brincadeiras, sendo por muito tempo, esse espaço, palco das
expressões dos sonhos e do colorido da infância. Dessa vivência, trago
a experiência profissional de policial miliar, talvez, com regras fortes,
rigorosas e disciplinadoras. Depois o contato com a sala de aula, com
adaptação de regras em torno de uma prática cultural esportiva
prazerosa para os alunos. Contexto que vem se desenvolvendo na
cidade de Caraíbas - BA, em especial, no Ensino Médio do Colégio
Estadual Luís Eduardo Magalhães - CELEM e, posteriormente com a
possibilidade de ser difundida para toda a comunidade e quem mais
possa se interessar.
Assim, inspirado na literatura de Manoel de Barros (2010),
Menino do Mato, apresento uma experiência pedagógica onde a
poesia, primeiramente, faz-me regressar aos sentidos que carrego

1Graduando em Educação Física. E-mail: [email protected].


2 Mestre pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente da
Educação Básica. E-mail: [email protected].
3 Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente Adjunta da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].
4 Justifico o uso da 1ª pessoa no trabalho, por trazer a esse contexto narrativo as

minhas vivências dos tempos de menino o que me faz ressaltar as experiências vividas
na prática do futsal na área da educação física.

141
desde a infância, onde implementei regras para as brincadeiras, ainda
no fundo do quintal. Esse caminho trouxe-me outras ideias que hoje,
se fixam na educação física ao trabalhar com o futsal.
A referida obra não versa somente a infância, como trata da
criatividade e experiência acompanhada pela imaginação, o que me
faz colocar em cena novas compreensões enquanto educador. Assim,
diz o grande poeta: “Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gene brincava de brincar com as palavras tipo assim: hoje eu vi
uma formiga ajoelhada na pedra!” (BARROS, 2010, p. 449).
Essa é uma maneira única que o autor nos conta sobre a magia
das palavras e a beleza da natureza, recordando-me a figura de
menino, onde por muitas vezes, pude agraciar o verde que nos cerca
e nesse instante, recriar imagens para o contexto da educação física.
Ao tratar da infância recorro a Kuhlmann Júnior (2001), onde o
mesmo me faz relembrar os tempos e lugares, experiências vividas,
sendo produtores de histórias:

[...] considerar a infância como uma condição da criança. O conjunto de


experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos e
sociais é muito mais do que uma representação dos adultos sobre esta fase da
vida. É preciso conhecer as representações da infância e considerar as crianças
concretas, localizálas nas relações sociais, etc., reconhecê-las como produtoras
da história (KUHLMANN JÚNIOR, 2001, p. 31).

Nesse entendimento, o futsal aqui apresentado parte dos


momentos que marcaram minha infância, tempo em que adaptava
regras nas brincadeiras e que, hoje venho explorar nas atividades de
esporte, de modo prazeroso para todos que o pratiquem, sejam nos
famosos
“jogos” de fins de semana da vida cotidiana, nas competições
(interbairros, campeonatos de zona rural, campeonatos municipais,
campeonatos de associações, de condomínio, etc.).
O futsal entra como componente de educação física enquanto
conteúdo a ser trabalhado em todas as séries e sem distinção de
pessoas, podem e devem participar todos os discentes regularmente
matriculados na unidade de ensino. Segundo Bertini Júnior e Tassoni
(2013):

142
A educação física no Brasil surge ligada intimamente à formação e educação
corporal disciplinadora, com objetivos dos mais variados: militares, de saúde,
estéticos, esportivos de alto rendimento ou não, recreativos, servindo, muitas
vezes, a mecanismos de alienação ou propósitos políticos, valendo-se da prática
ou de eventos esportivos para desviar a atenção das tensões políticas e das lutas
ideológicas. Exemplos desses mecanismos encontram-se no jovem do final da
década de 60, que o governo militar buscava para formação de um exército forte
para desmobilizar correntes opositoras ao regime que vigorava, como também
no futebol, personificado na seleção brasileira, marcava o tom vitorioso de um
governo autoritário e ditatorial (JÚNIOR; TASSONI, 2013, p. 34).

Observa-se que há entre os alunos, nas atividades práticas de


futsal no Ensino Médio do Colégio Estadual Luís Eduardo Magalhães
(CELEM) de Caraíbas, município localizado às margens do Rio Gavião,
a 83 km Oeste de Vitória da Conquista, Bahia. A pesquisa apresenta
como objetivo geral: Analisar a participação de adolescentes nas
atividades e/ou competições de Educação Física Escolar, tendo o Futsal
como conteúdo proposto. Nos objetivos específicos pretende-se: A)
Adaptar regras no futsal para se tornar uma prática cultural esportiva
prazerosa; B) compreender o porquê das recusas de alguns alunos em
participarem dos eventos de futsal em Educação Física no Colégio
Estadual Luís Eduardo Magalhães (CELEM), Município de Caraíbas-
Bahia. C) compreender a Prática como um Componente Curricular
(PCC), nos cursos de Educação Física e entender como os discentes
desses cursos visualizam a disciplina em questão, nos dias atuais. D)
Estabelecer um diálogo das regras implementadas ao olhar da
literatura Menino do Mato (BARROS, 2010).
Nesse contexto, surge o questionamento: como é a participação
de adolescentes nas atividades e/ou competições de Educação Física,
tendo o futsal como conteúdo? Atualmente ao ensinar o futsal
percebe-se uma recusa dos alunos em relação a essa modalidade
esportiva. Fato que me levou a optar por tal temática, uma vez que,
fiquei a observar os alunos na referida aula no Colégio Estadual Luís
Eduardo Magalhães e a pensar o quanto a incorporação de regras
também fez parte da minha infância, o que me remete a (BARROS,
2010): “O menino tinha no olhar um silencio de chão e na sua voz uma
candura de fontes”.

143
UM OLHAR À LITERATURA: ENCONRO COM AS TEORIAS

“Esses meninos faziam parte do arrebol como passarinhos”


(BARROS, 2010, p. 451). Olhar Manoel de Barros como um poeta que
ensina para a vida é também, fazer despertar o encanamento para as
aulas de educação física de forma que eu venha agregar valores éticos
e culturais para com os tempos da escola. Estudos sobre a Prática
como um Componente Curricular (PCC) demonstram avanço na
compreensão pelos professores, uma vez que, o componente
curricular traz relevância na pesquisa o que visa ministrar as
dificuldades encontradas no contexto educacional, de acordo as
concepções de (SOUZA NETO; SILVA, 2014).
Os motivos para estudar a temática Prática como Componente
Curricular (PCC) surgem dos questionamentos sobre o distanciamento
da formação em Educação Física e o contexto educacional. Daí a
importância que trago em dialogar com a literatura Menino do Mato,
abordando um cenário vivenciado por nós professores, motivando-nos
a pesquisar sobre um componente curricular que auxilia na formação
teórico-prática. “A gente gostava das palavras quando elas
perturbavam os sentidos normais da fala” (BARROS, 2010, p. 451). A
Educação Física, que por muito tempo foi conduzida por autodidatas,
ou seja, pessoas sem uma formação específica e em sua maioria
atletas, passou a ser ministrada por professores formados em
Educação Física, técnicos em desporto e médicos formados na área de
Educação Física e desporto (DELGADO, 2013).
Aqui, um novo impulso marca as adaptações nas aulas de futsal
no município de Caraíbas, Bahia, como forma de conhecer o corpo em
movimento, o melhoramento das práticas daquela cultura mediante
referenciais teóricos e científicos, que possibilitam refletir sobre o
campo de atuação, buscando novos caminhos, ouras regras. Pretende-
se com esse novo formato de formação em Educação Física constituir
profissionais que analisem criticamente a realidade social, e que por
meio das “manifestações e expressões do movimento” possa intervir
no “enriquecimento cultural das pessoas, para aumentar as
possibilidades de adoção de um estilo de vida fisicamente ativo e
saudável” (BRASIL, 1997, p. 1).
Volvendo o olhar ao poema de Manoel de Barros (2010), em sua
obra Menino do Mato, é necessário assumirmos a subjetividade que

144
envolve essa condição de ser professor, suas funções sociais, suas
reproduções, suas contradições e seus valores, para uma melhor
leitura de mundo e ensinamentos. Nesta perspectiva é preciso que se
tenha uma visão crítica sobre a Prática como um Componente
Curricular (PCC) e, como afirmam Souza Neto e Silva (2014, p. 891),
“não se trata de negar os esforços de interpretação e de aplicação da
lei que se têm realizado, mas de colocar em foco a questão sobre se os
caminhos adotados têm sido os mais promissores”.
Para Freire (1991, p.117), “o jogo de regras” é uma característica
do ser suficientemente socializado, que pode, portanto, compreender
uma vida de relações mais amplas. Enquanto joga, o aluno representa
e apresenta habilidades e condutas a que os adultos se submetem
quando vivem em sociedade, mas que para a criança, livre de pressões,
servirá de suporte para atingir habilidades de nível mais alto, quando
necessário. São as regras impostas pelo grupo na qual ele pertencerá
quando for para a escola.

PERCORRENDO OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

A investigação qualitativa, segundo Alves (1999), sem dúvida se


apresenta como uma alternativa de pesquisa no campo social e
possibilita ao pesquisador apreender especificidades do contexto que
tanto lhe interessa. Ao trabalhar com valores, crenças, hábitos,
representações, a pesquisa qualitativa é capaz de aprofundar e ampliar
conceitos importantes para o nosso estudo, o que me faz voltar à
literatura do Menino do Mato de Manoel de Barros (2010).
Assim, o Colégio Estadual Luís Eduardo Magalhães está situado no
município de Caraíbas na Bahia, sendo lócus desta pesquisa. O
município faz parte da microrregião de Vitória da Conquista, estando
situado a 83 quilômetros Oeste deste município, o qual exerce muita
influência econômica em Caraíbas e demais municípios do Vale do Rio
Gavião.
Os participantes da pesquisa são compostos por 30 alunos, sendo
12 egressos e 18 com matrícula efetiva nas três séries do Ensino Médio
do período letivo de 2018, no Colégio Estadual de Caraíbas. Foram
convidados aleatoriamente a participarem e incluídos numa
amostragem, os maiores de 18 anos e os menores que tiverem
autorização de seus respectivos responsáveis. A todos os participantes

145
serão previamente esclarecidos sobre o estudo e após, solicitado a
assinatura do termo de consentimento e livre esclarecido (TCLE) e
quando for o caso o termo de assentimento e livre esclarecido.
Para a coleta de dados, optamos pela realização de estudos a
partir da composição de quantos alunos e egressos. Assim, foi utilizada
a técnica de Grupo Focal, realizada em dois momentos, um
representado pelos discentes atuais e o outro pelos alunos egressos, o
que objetivou compreender a Prática como um Componente Curricular
(PCC) nos cursos de Educação Física e entender como os discentes
desses cursos visualizam a disciplina em questão, nos dias atuais.
Para uma melhor compreensão e abordagem do que seja um
grupo focal e como ele trabalha, Tanaka e Melo (2001, p. 41) destacam:
“É uma técnica de pesquisa ou de avaliação qualitativa, não-diretiva,
que coleta dados por meio das interações grupais ao se discutir um
tópico sugerido pelo pesquisador”.
A partir das abordagens desses autores, destaco os principais
passos metodológicos por eles mencionados que deram evasão ao
tema e guiaram o referido estudo a ser desenvolvido, a saber: definir
claramente o problema a ser avaliado; escolher um bom facilitador e
de preferência dois relatores para anotar a discussão; o grupo deve ter
uma composição homogênea, preservando certas características
heterogêneas - um balanço entre uniformidade e diversidade do
grupo; e a escolha das variáveis vai depender do que se avalia e do para
quê da avaliação.
Os procedimentos para a análise dos dados partiram do método
interpretativo. Eles partem do pressuposto de que a realidade social é
subjetiva e instável e os dados são resultados de uma construção dos
participantes mediante a interação com outros sujeitos. Sendo assim,
a interpretação dos dados qualitativos surge do entendimento da
realidade social e dos modos como essa realidade é percebida pelos
próprios participantes (FLORES, 1994).
Para tanto, o referido estudo auxiliará as aulas de Educação Física,
onde os alunos serão beneficiados indiretamente com informações
necessárias para o desenvolvimento das atividades físicas envolvendo
o futsal. Cabe aos participantes descobrir as potencialidades e/ou
possibilidades desta modalidade esportiva tão praticada nos últimos
tempos, como também é pretensão propor um equilíbrio de forças e
uma harmonização entre discentes praticantes de futsal, uma vez que

146
há muita reclamação dos alunos dos primeiros anos em relação às
disparidades de tamanho comparados aos discentes de segundo e
terceiros anos do Ensino Médio.
Nesse caminho recorro a Barros (2010, p. 452), quando afirma:
“Sua maior alegria era de ver uma garça descoberta no alto do rio. Ele
queria ser sonhado pelas garças”. Enquanto aqui, sonho com um
contexto mais inspirador para as aulas de Educação Física, talvez, mais
ousado. Deste modo, foram analisadas as respostas das 05 questões
restantes (Quadro 1) para a concretização do presente trabalho.

Quadro 1 - Questões norteadoras para o desenvolvimento da pesquisa. Caraíbas,


Bahia, 2019.
1- Você acha que se sente motivado o bastante para participar das aulas de Educação
Física?
2- O que você mudaria nas aulas de Educação Física?
3- Quais atividades que mais gostam e quais menos gostam?
4- Como é ser aluno nas aulas de Educação Física?

5- Como seria uma boa aula de Educação Física?

Aluno 01 – Sim, me sinto motivado sim, porque com essa nova maneira a gente tem
mais possibilidade de jogar sem levar pancadaria, não prevalece a força e sim a
habilidade e o pensar no jogo.

Aluna 02 - A mudança já estamos fazendo com essa nova maneira de ver o futsal aqui
na escola, na nossa escola, no CELEM, pois agora tanto nós do 1º ano, quanto o pessoal
do segundo do terceiro, todo mundo joga de igual para igual, sem ter aquela de que
só os terceiros anos são os mais fortes. Todos nós podemos participar com igualdade
de condições graças ao trabalho do professor Ademilton.

Aluno 03 - Olha eu só gostava de futsal, mas agora estou gostando mais de outras
atividades como o basquete, o vôlei, o handebol que é muito interessante a gente joga
com as mãos. Quem tem habilidade com os pés, com as mãos também tem. Mas que
não tem habilidade com os pés como diz o professor: “se sabe jogar pedra em galinha,
sabe arremessar a bola de handebol.”.

Aluno 04 - Ah, é muito bom, pois a gente se ver respeitado, participa das atividades.
Tem os eventos da escola como os jogos que acontecem todo ano, em Julho, quando
agente retornar das férias. Já é uma data certa, então isso é muito bom, tem os jogos
também que a gente participa, o JERP/BA, isso é interessante, isso faz a escola ficar
interessante e o professor sempre está com a gente ajudando e orientando. Então
estamos sempre participando, eu gosto muito, já estou no terceiro ano e essa é minha
terceira vez que vou participar dos jogos lá em Conquista.

147
Aluno 05 - Essa é fácil, aqui no CELEM é fácil responder, pois a aula de educação física
é legal. A aula aqui no CELEM é maravilhosa. Pena que já estou no segundo ano e o
terceiro ano só tem uma aula de educação física, mas tenho que passar para o terceiro
ano. Mas vamos fazer dessa aula, também, uma boa aula. Então o que seria bom de
uma aula aqui? Aula que é boa então é a que acontece, é a aula que está acontecendo.
Essa é a boa, então a gente faz ficar melhor ainda, apesar de não termos uma quadra
coberta. O sol é muito quente, mas a gente desenvolve nosso trabalho, o professor
ajuda demais a gente.

Lembrando que todos os alunos opinaram.


Fonte: elaboração própria da pesquisadora, 2019.

RESULTADOS

Análise das entrevistas

As questões propostas nos fizeram verificar que, a disciplina


Educação Física é interessante, lúdica, prazerosa, diferente ao olhar
das outras, motivadora e a mais querida pelos alunos. Porém, o que se
vê ainda, são alguns professores que não acompanharam a evolução
dos últimos tempos, talvez, cansados, outros desanimados e, aquele
sem habilidades, na maioria das vezes, verifica-se um trabalho sem
regras.
A partir das respostas dos alunos verifica-se que os mesmos
aceitaram bem a proposta de adaptação de regras aplicadas no CELEM
nos últimos anos. Entenderam os alunos que o equilíbrio entre as
equipes disputantes numa quadra de jogo é mais interessante do que
o uso da força, como um todo, sem levar em conta que é trabalhada,
também, outras disciplinas – Ética, Matemática, dentre outras. Quando
a partir do jogo por exemplo, a soma dos pontos a subtração das faltas
com pontos perdidos, observa-se aí a aplicação da matemática.
A aceitação dos alunos é muito boa, mesmo os alunos que estão
chegando de outras unidades, as escolas do ensino fundamental do
município já estão se adaptando, porque eles ouvem os alunos do
CELEM falar. Os alunos do colégio estadual comentam sobre essa
atividade que tem na sua escola, então acabam anunciando para os
que estão chegando para se adaptar, diferentemente do que
aconteceu no passado.
Ao anunciar a proposta de pontuação pela adaptação de regra
alguns alunos ficaram meio reticentes, mas entenderam que era

148
necessária aquela mudança. Então o que podemos observar é que os
alunos abraçaram essa nova maneira de disputa. Tanto homens quanto
mulheres abraçaram a ideia.
Assim sendo entendemos que essa proposta de adaptação de
regra tem ajudado e, muito na formação do caráter dos alunos
enquanto pessoas éticas para viver em sociedade.
Muitas vezes, nos jogos em quadra os alunos acabam colocando
em disputa, talvez até diferenças familiares que existam. Diferenças de
adolescentes que é disputa pelo espaço e aí a partida deixa de ser
prazerosa e acaba se tornando uma guerra entre aspas.
Então o que podemos concluir é que a adaptação de regras
proposta pelo CELEM de Caraíbas - BA, nesses últimos anos tem
contribuído em muito para o desenvolvimento de jovens e futuros
cidadãos, os pais de famílias inseridos numa sociedade cada vez mais
excludente onde os valores éticos nem sempre são observados como
deveriam ser.
Retomando a literatura Menino do Mato, vale lembrar que, a
narrativa faz parte do 20º livro, sendo um dos últimos trabalhos de
Manoel de Barros que nesse enredo vem deslumbrar como via de
aproximação e embelezamento para discutir a pesquisa e fazer-me
regressar a pureza na figura de menino, de um empo que implantava
regras nas brincadeiras da infância.
Na orelha do livro emanam-se as palavras, a vida colorida do
poeta:

[...] Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem
comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um
orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.
Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das
coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda
a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter
sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e
comunhão com ela. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as
árvores (BARROS, 2010, p. 450).

Foi através de um olhar especial a essa forma de linguagem


poética, apresentada na disciplina Seminário Temático V, que pude
trazer recordações e novas lições ao cenário do futsal, com o propósito

149
de reinventarmos sempre as nossas práticas educativas e, por fim a
história que me acompanha desde os tempos de menino.

Adaptação de regras no futsal

De acordo Macedo, Petty e Passos (2000), acontece desde que os


participantes se submetam às regras e comprometam-se com o
objetivo final da partida. Para esses autores, quem joga pode
efetivamente desenvolver-se, afinal o sujeito aprende sobre si próprio
(como age e pensa), sobre o próprio jogo (o que o caracteriza, como
vencer), sobre as relações sociais relativas ao jogar (tais como
competir e cooperar) e, também, sobre conteúdos (semelhantes a
certos temas trabalhados no contexto escolar) (MACEDO; PETTY;
PASSOS, 2000, p. 22-23).
A seguir, as regras adaptadas para o desenvolvimento da prática
do futsal:
1. O gol passa a valer 20 pontos para a equipe que o confere, a
equipe que toma o gol perderá 10 pontos;
2. A equipe que cometer uma falta perderá 10 pontos;
3. A equipe que os seus atletas aplicarem um ou mais chapéus
terá 5 pontos; acrescidos por cada ação, a sua soma. Da mesma
forma se aplicar uma “sainha” no adversário será acrescido 5
pontos ao seu saldo;
4. Bola acertada no travessão valerá 15 pontos. O objetivo dessa
ação é para que não se chute a bola em cima do goleiro e sim,
tirando-a do alcance do mesmo. Obs.: Se a bola bater no
adversário e pegar no travessão não valerá a pontuação dos 15
pontos, mas se esta for defendida pelo goleiro e, ainda assim ela
pegar no travessão serão acrescidos 15 pontos para a equipe que
fez o chute em direção ao gol do referido arqueiro. Um dos
objetivos é retirar a força excessiva das jogadas, disciplinar, fazer
com que os atletas passem a usar matemática na soma,
orientando os parceiros para que não façam faltas e, fazer com
que o jogo fique mais bonito, com jogadas plásticas, dribles,
dentre outros;
5. O objetivo principal é sempre buscar o gol. Quem cometer
infração ou, pancadaria perderá 10 pontos, por cada falta
cometida. Assim, trabalhará a ética e o respeito ao adversário.

150
6. Cada equipe começará o jogo com 100 (cem) pontos, uma vez
que o resultado definidor da agremiação vencedora ao final da
partida se dará por meio da soma dos pontos obtidos observando
critérios de adaptação das regras dispostos acima.
A seguir, apresenta-se o modelo de uma ficha/ súmula de uma
partida jogada durante realização dos Jogos Internos do CELEM –
edição 2019:

Quadro 2 – Modelo de ficha/ súmula


ATREVIDU’S GOL = 20 FALTAS BOLA NO CHAPÉ SAINH C C
PONTOS – 10 TRAVESSÃO U = 5 A A V
PONTO = PONTO =5
S 15 PONTOS S PONTO
S
01 XXXXXX XAVIER
08 YYYYYY II II
VINÍCIUS
03 WWWWW DE I I I
ALMEIDA
10 XXXXXXX NETTO I
11 HHHHHHH I
SANTOS
07 KKKKKKK III
ALVES
13 ZZZZZZZZZZ II I
DELLON
12 JJJJJJJJ PORTO
02 ZXZXZXZX I
TEIXEIRA
Nº TODAS AS 100+120= 60 + 15 + 10 +5 TOT
JO EQUIPES 220 -180 = AL
G O JOGARÃO A 120 150
MODALIDADE
FUTSAL
A CADA GOL SOFRID
SOFRIDO O -
SERÁ SUTRAIDO 40=180
10 PONTOS

151
CHEGUEI VAZEI GOL = 20 FALTAS BOLA NO CHAPÉ SAIN C C
PONTOS – TRAVESSÃO U = 5 H A V
10 = PONTO A = 5
PONTO 15 PONTOS S PONT
S OS

01 XXXXXX I
FERREIRA
03 YYYYYY CHAVES I I I

08 WWWWWW III I I
ALMEIDA
10 XXXXXXX PATEZ I

11 HHHHHHH LIMA

07 KKKKKKK I
MELLO
13 ZZZZZZZZZZ I
CARLOS
02 JJJJJJJJ SILVA

12 ZXZXZXZX
ARAGÃO
Nº TODAS AS 100+80 10 + 30 + 15 + 10 TOTA
JOG EQUIPES = - 120 = L
O JOGARÃO A 180 110 165
MODALIDADE
FUTSAL
A CADA GOL SOFRID
SOFRIDO O
SERÁ SUTRAIDO - 60 =
10 120
PONTOS
Fonte: Elaboração própria da pesquisadora, 2019.

A partir da adaptação dessas regras, torna-se clara a importância


de trabalhar os valores, a respeitar e a viver em sociedade. Como
afirmam, Marinho et al., (2007, p. 38):

Logo, a educação deve caminhar para a vida afetiva, intelectiva, corporal, social
e espiritual do aluno, sem as divisões tão usadas nas escolas. Sabemos hoje que
educar não é apenas estar preparado para o mercado de trabalho e acumular
informações e conhecimento. Pelo contrário, o mundo exige pessoas com uma
visão ampla, o que engloba autoconhecimento, desejo de aprender, capacidade
de tratar com o imprevisível e a mudança, capacidade de resolver problemas

152
criativamente, aprender a vencer na vida sem derrotar os demais, aprender a
gostar de progredir como pessoal total e crescer até o limite de nossas
possibilidades, que são infinitas (MARINHO et al., 2007, p. 45).

O profissional de Educação Física precisa buscar uma


identificação de seus saberes conforme as próprias experiências,
vivências, dificuldades e acertos, importante para o reconhecimento
da área. Sendo assim, a Educação Física está sendo composta por
muitos especialistas em diversas subáreas da Educação Física que em
sua maioria não se preocupam com a prática pedagógica da área.
O desenvolvimento da pesquisa mostrou que, a diferença de
estatura, força e postura, principalmente nos primeiros anos, causaria
recusa dos alunos na referida modalidade. Isto ocorreu mais, nas
competições na modalidade FUTSAL, muitos se negaram a participar
alegando que os discentes dos 2º e 3º anos são mais fortes e
consequentemente ganharão com mais facilidades, pois estes levam
vantagem por usarem de força para ganhar dos novatos. Neste caso, a
recusa em participar de algumas atividades relacionadas ao futsal se dá
por medo de perder para os ditos mais ‘fortes’. Fato este que para
muitos é uma desonra, perder logo de imediato, estão chegando à
escola e não querem posar de “fracotes”.
O que não dá para entender, uma vez que muitos destes
participam de jogos nas mais diversas localidades fora do contexto
escolar, participam de igual para igual, não importando a estatura dos
adversários eminentes. Os que na unidade escolar, por vezes, se
recusam a jogar com os seus colegas, são os mesmos, em sua grande
maioria, que participam dos corriqueiros ‘babas’ de fim de semana nas
suas regiões de origem. Segundo James citado por Brandão (1995, p.
20):

A educação é a organização dos recursos biológicos do indivíduo, de todas as


capacidades de comportamento que fazem adaptável ao meio físico e mental.
Se indivíduos são seres adaptáveis, as formas de integração de qual quer meio e
situação, com certeza podem ser adaptadas.

O profissional de Educação Física em sala de aula depara com


inúmeras vozes presentes no contexto educacional, já que
trabalhamos com seres únicos e singulares num âmbito diverso. Dessa
maneira, precisamos abordar os conhecimentos referentes ao esporte,
de forma refletida e planejada, enfrentando as dificuldades e

153
limitações, na possibilidade de aceitar regras visando o respeito para
com o outro, através da construção do conhecimento e das vivencias
do dia a dia. Logo, investigo quais os procedimentos metodológicos
possíveis e adequados para ensinar o futsal na escola. E como não
voltarmos ao grande poeta (BARROS, 2010, p. 452), já que falamos de
lugares bonitos e de criação! Assim, diz o autor: “Lugar mais bonito de
um passarinho ficar é a palavra. Nas minhas palavras ainda vivíamos
meninos do mato, um tonto e mim”.
A adaptação de regras implantadas no Colégio Estadual Luis
Eduardo Magalhães também apresentada como tese de defesa de
conclusão de curso em licenciatura em educação física na UESB de
Vitória da Conquista, surge da necessidade de buscar um equilíbrio
entre partidas de futsal realizadas na unidade de ensino CELEM em
caraíbas. Há 19 anos ou mais precisamente a partir 2000 quando
implantado ensino médio em Caraíbas a disciplina educação física
sempre era relegada a segundo plano, ou seja, qualquer professor de
qualquer formação, muitos sem formação nenhuma, atuavam como
regente de turmas. No ano de 2006, me foi ofertada a disciplina
educação física, aceitei o desafio com uma condicionante, que o
trabalho seria feito com todas as turmas e não como era feito. Antes
era fracionada, cada turma tinha um professor.
Logo percebi que alguns alunos, mais precisamente os dos
primeiros anos evitavam jogar contra os alunos mais experientes da
unidade de ensino. Essa recusa como já fora relatada acima de dava
por se considerarem inferiores em ralação aos outros alunos dos
segundos e terceiros

CONCLUSÃO

Neste cenário a pesquisa ganha expressividade no


desenvolvimento de habilidades motoras, expressão de sentimentos,
opiniões, aquisição da autonomia, internalização de regras,
socialização e construção do conhecimento ao olhar da literatura que
nos leva a caminhos criativos, pois acredito que a produção de
conhecimento se expressa por diversas vias. A educação em sua
essência deve ser uma escola da vida, lugar do aprendizado onde
aprendemos as diversas formas de ver e atuar no mundo. Penso que
cada poeta que compõem um poema é influenciado pelos

154
ensinamentos que a vida traz. E assim cada sujeito constrói sua cultura,
seu saber num universo de sonhos, através do exercício constante de
retroalimentação da aprendizagem. Assim, fortaleço meus
ensinamentos sobre a literatura Menino do Mato: “É a voz de Deus que
habita nas crianças, nos passarinhos e nos tontos. A infância da
palavra” (BARROS, 2010, p. 455).
A partir dessa pesquisa tenho a plena consciência de que estou
contribuindo para o melhoramento das aulas de educação física no
tocante ao futsal, mas a contribuição se deu devido a muitas
contribuições e estudos de artigos científicos publicados nesses
últimos anos.
Com esta adaptação de regras tem-se observados que os alunos
têm absorvido e entendido a proposta de uma parte dessa pesquisa
terei a oportunidade de difundir essa proposta a proposta pensada em
prol do bem-estar do alunado.
Ao final desse trabalho estarei com uma bagagem maior para
trabalhar e desenvolver as minhas atividades não só no Colégio
Estadual Luís Eduardo Magalhães, mas também em outras unidades de
ensino, haja vista que trabalho, também, na rede Municipal de
Caraíbas. Recentemente fizemos um trabalho de intervenção lá nesta
Unidade Escolar onde aplicamos essa adaptação de regras com alunos
do ensino fundamental 1, mais precisamente alunos do 4º e 5º anos e
foi bem aceito. Os alunos entenderam o trabalho, principalmente
começando com as crianças de menor idade vai surtir um efeito. Não
que o efeito que vem sendo obtido junto aos adolescentes do ensino
médio não seja satisfatório, mas vai dar uma contribuição. Então, o
objetivo principal agora com a conclusão dessa pesquisa é que ela seja
publicada e seja difundida para outros colegas professores adapte,
entenda e leve para suas escolas.

REFERÊNCIAS

ALVES, A. J. O planejamento de pesquisas qualitativas em educação.


Caderno Pesquisa, São Paulo, v. 77, n. 100, p. 53-61, mai. 1999.
BARROS, M. Menino do mato. São Paulo: Leya, 2010.
BRASIL. Parecer CNE/CES 744/1997. Orientações para cumprimento do
artigo 65 da Lei 9.394/96 - Prática de Ensino. Brasília, DF: MEC, 1997.

155
Disponível em: http://www.portal.mec.gov.br/index. Acesso em: 6 out.
2015.
BRANDÃO, C. R. O Que é Educação. 33 ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BERTINI JUNIOR, N.; TASSONI, E. C. M. A Educação Física, o docente e
a escola: concepções e práticas pedagógicas. Rev. Bras. Educ. Fis.
Esporte, v. 27, n. 3, p. 467-483, 2013.
DELGADO, M.A. Formação Profissional em Educação Física. Várzea
Paulista: Fontoura, 2013. Cap. 2., p. 57-74.
FREIRE, J. B. Educação de Corpo Inteiro: teoria e prática da educação
física. 2 ed. São Paulo: Editora Scipione, 1991.
FLORES, J. G. Análisis de datos cualitativos: aplicaciones a la
investigación educativa. Barcelona: PPU, 1994, p. 7-107.
KULHMANN JR. M. Infância e educação infantil: uma abordagem
histórica. Porto Alegre: Mediações, 2001.
MACEDO, L; PETTY, A. L. S; PASSOS, N. C. Aprender com jogos e
situações problema. Porto Alegre: Artmed, 2000.
MARINHO, H. R. B et al. Pedagogia do movimento: universo lúdico e
psicomotricidade. Curitiba: IBPEX, 2007.
SOUZA NETO, S.; SILVA, V. P. Prática como Componente Curricular:
questões e reflexões. Diálogo.educ., v. 14, n. 520, p.889-909, 2014.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.7213/dialogo.educ.14.043.ao03.
Acesso em: 6 out. 2015.
TANAKA, O. Y; MELO, C. M. M. Avaliação de programas de saúde: um
modo de fazer. São Paulo: Edusp, 2001, 83p.

156
DANÇA FOLCLÓRICA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E A
INCLUSÃO DE UM ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL EM UMA
ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA

Selma Rocha Ramos1


Juliana Barros Ferreira2
Nayara Alves de Sousa3

Introdução

A deficiência intelectual (D.I.) não é uma doença e sim uma


limitação, caracterizada principalmente pelas dificuldades em resolver
problemas, compreender ideias abstratas (como as metáforas, a
noção de tempo e os valores monetários), estabelecer relações sociais,
obedecer a regras e realizar atividades cotidianas, como, por exemplo,
as ações de autocuidado (AMPUDIA, 2011).
Quando se refere ao meio escolar, compreender as limitações
desses alunos é o primeiro passo. Devem-se traçar estratégias para
saber como lidar com a sua aprendizagem que, muitas vezes não os
tornam atraídos pelos modelos de aulas “convencionais” (PIMENTA,
2017).
Atualmente, depara-se com as mais variadas situações que levam
a reflexão sobre a necessidade de se fazer inclusão nas aulas de
Educação Física (EDF), uma vez que esta lida diretamente com o corpo
e práticas de socialização e afetividade. Assim, ao receber um aluno
com deficiência intelectual numa unidade escolar, toda esta
compreensão deve estar muito bem esclarecida para os educadores
que irão responsabilizar-se diretamente com este aluno.
No ensino de EDF, trabalhar de forma criativa pode favorecer o
aprendizado. A dança folclórica é apenas uma entre diversas outras

1Graduanda em Educação Física. E-mail: [email protected].


2Fisioterapeuta. Mestre em Tecnologias em Saúde/EBMSP. Docente da FAINOR, FTC e
UNINASSAU. E-mail: [email protected].
3Fisioterapeuta. Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente

Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].

157
possibilidades que surge no espaço das aulas, e pode ser um fator de
inclusão para pessoas com deficiência em seus mais amplos aspectos.
Nesse contexto, Vieira (2014) ressalta que dançar é uma das maneiras
mais divertidas e adequadas para ensinar na prática todo o potencial
de expressão do corpo.
Ao considerar que a dança leva o indivíduo a desenvolver sua
capacidade criativa, em uma descoberta pessoal de suas habilidades,
surgiu à necessidade de realizar essa pesquisa, com o objetivo de
analisar a importância da dança folclórica nas aulas de Educação Física
para a inclusão do aluno com deficiência intelectual.
Portanto, tomando como referência estas argumentações, este
estudo aponta a dança folclórica como uma atividade inclusiva para o
aluno com deficiência intelectual na participação e no interesse das
aulas de Educação Física.

O ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E A INCLUSÃO ESCOLAR

Deficiência sugere algo que possua falhas, imperfeições. É o


termo usado para definir a ausência ou a disfunção de uma estrutura
psíquica, fisiológica ou anatômica. Diz respeito à biologia da pessoa
(OMS, 2005).
A Deficiência Intelectual (DI) é uma das deficiências mais
encontradas em crianças e adolescentes, atingindo 1% da população
jovem (VASCONCELOS, 2004). Caracterizada pela redução no
desenvolvimento cognitivo, ou seja, no QI, normalmente abaixo do
esperado para a idade cronológica da criança ou adulto, acarretando
muitas vezes um desenvolvimento mais lento na fala, no
desenvolvimento neuropsicomotor e em outras habilidades.
A DI não é considerada uma doença ou um transtorno
psiquiátrico, e sim um ou mais fatores que causam prejuízo das
funções cognitivas que acompanham o desenvolvimento diferente do
cérebro (HONORA e FRIZANCO, 2008). Podem ocorrer casos de
raciocínio lento, argumentação precária, comunicação e socialização
quase que inexistentes, enfim, a depender do grau da deficiência, as
características variam de pessoa para pessoa.
A escola por sua vez, é a porta principal de acesso à inclusão ou à
exclusão. Os alunos com deficiência intelectual passaram a se tornar
um público cada vez mais comum nas escolas regulares. Quando os

158
professores se deparam com esses alunos, muitas vezes não sabem
como lidar com a situação.
Assim, cabe à escola buscar formas de tornar esses espaços
inclusivos, a fim de que os alunos possam interagir independe das
limitações. Como enfatiza a Declaração de Salamanca (1994), o
princípio fundamental das escolas inclusivas consiste em que todos os
alunos aprendem juntos, sempre que possível, independentemente
das dificuldades e das diferenças.
As escolas devem reconhecer as necessidades diversas dos seus
alunos adaptando-se aos vários ritmos de aprendizagem, garantindo
um bom nível de educação para todos, através dos currículos
adequados, de uma boa organização escolar, de estratégias
pedagógicas e de utilização de recursos. Segundo Garcia (2012) o
educador deve ter uma atitude consciente na busca de uma prática
pedagógica mais coerente com a realidade. A dança leva o indivíduo a
desenvolver sua capacidade criativa, numa descoberta pessoal de suas
habilidades, podendo contribuir de maneira decisiva para a formação
de cidadãos críticos, autônomos e conscientes de seus atos, visando a
uma transformação social. Assim, uma das possibilidades de incluir os
alunos com deficiência intelectual nas aulas de EDF certamente seria
por meio da dança.

A dança folclórica na aula de Educação Física e o Aluno com


Deficiência Intelectual

O trabalho de EDF possibilita aos alunos uma ampliação da


visão sobre a cultura corporal de movimento, e, assim, viabiliza a
autonomia para o desenvolvimento de uma prática pessoal e a
capacidade para interferir na comunidade, seja na construção de
espaços de participação em atividades culturais, como jogos,
esportes, lutas, ginásticas e danças, com finalidades de lazer, afetos
e emoções (BRASIL, 1997).
A dança folclórica na aula de EDF é a tradução de um resgate
cultural. Segundo Vieira (2014), ela é produzida espontaneamente
numa comunidade com laços culturais em comum, resultantes de um
longo convívio e troca de experiências que funciona como fator de
integração, celebrando eventos de relevo ou como simples
manifestações de vitalidade.

159
Assim, atrelar a dança, especificamente à dança folclórica nas
aulas de EDF, pode ser não só prazerosa para os alunos com
deficiência intelectual, mas também para os professores apreciarem
a riqueza que possam ser apresentadas. Há um mundo de infinitas
possibilidades que podem contemplar este trabalho, além do
resgate cultural que venha a ser proporcionado.
A EDF por sua vez, recebe constantemente este desafio para lidar
com essa prática no cotidiano, no entanto, a dança, se apresenta como
excelente oferta de inclusão dos alunos com deficiência intelectual
nessas aulas, de uma forma inovadora, que desperta de fato a atenção
e participação desse alunado que, muitas vezes se percebe meio que
ignorado ou incapaz de socializar-se com os demais.
Lauar e Mattos (2014) nos dizem que a inserção da dança como
componente curricular nas aulas de EDF é um desafio que deve ser
assumido pelos educadores, especialmente quanto à constituição de
práticas pedagógicas de caráter lúdico, com definição de percursos
metodológicos específicos, conectando o conjunto de experiências
discentes e os saberes trabalhados pela escola. Assim, a aceitação é
um passo primordial para que as relações em sala de aula se
efetivem. Aceitar o ritmo, o espaço e o tempo do aluno, poderá vir a
fazer diferença em quaisquer trabalhos que tenham como meta
proporcionar a inclusão escolar do aluno com deficiência intelectual.

CAMINHOS MetodolÓGICOS

Esse estudo foi realizado em uma Escola Municipal, localizada em


Encruzilhada na Bahia. Participou dessa pesquisa 1 aluno, de 24 anos
de idade, da turma do 6º ano do ensino fundamental, do turno
vespertino, com diagnóstico de Deficiência Intelectual (DI), mais
especificamente Retardo Mental, em grau moderado e sem
comprometimento motor, conforme laudo médico, o qual obteve-se
acesso durante a pesquisa.
Para assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), a genitora foi esclarecida sobre os objetivos da pesquisa, sendo
assegurado o direito de interromper a participação do seu filho, em
qualquer etapa da pesquisa, sem nenhuma penalização ou prejuízo,
bem como sigilo e anonimato quanto aos dados coletados.

160
A inserção desse aluno na escola só aconteceu quando ele
completou 18 anos de idade, após recomendações médicas e
encontrou dificuldades a partir do momento em que foi inserido, entre
elas: momentos de comportamento agressivo, dificuldade de lidar
quando não tem posse do medicamento, a falta de interação com
outras pessoas e o mais comprometedor foi o fato de ter agredido
fisicamente a diretora da escola anterior onde estudou.
Trata-se de um estudo observacional, descritivo e com uma
abordagem qualitativa. Como instrumentos foram utilizados o diário
de campo e o formulário de observação que objetivou descrever como
é realizada a dança folclórica na aula de EDF, e demonstrar o
comportamento do aluno com deficiência intelectual, durante a dança
e sua inter-relação com a professora e com os colegas.
O estudo teve como técnica a observação, que foi realizada em 7
semanas de aulas, no período vespertino, no período de 09 de outubro
de 2018 à 20 de novembro de 2018. Os dados foram analisados através
da análise descritiva, onde, segundo Gil (1999) esse tipo de pesquisa
tem como objetivo primordial a descrição das características de
determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de
relações entre variáveis.

Resultados e Discussão

Os resultados estão apresentados em duas categorias: I. A


dança folclórica como atividade inclusiva ao aluno com
Deficiência Intelectual; II. O aluno com deficiência intelectual na
atividade folclórica. A segunda categoria está dividida em duas
subcategorias: a) O comportamento do aluno com deficiência
intelectual durante a atividade; b) Relação interpessoal do aluno com
deficiência com a professora e os demais alunos.

I. A dança folclórica como atividade inclusiva ao aluno com Deficiência


Intelectual

Esta categoria objetiva descrever como é realizada a dança


folclórica na aula de EDF. Foi considerado o período da atividade, como
era realizada, a frequência da realização, o tempo, o tema trabalhado,
a atividade desenvolvida e o local.

161
A escola anualmente desenvolve vários projetos, inclusive sobre
o folclore. Foi decidido experimentar uma atividade diferenciada de
acordo o que já estava previsto no plano de curso, porém de uma
forma nunca realizada antes. Então, pensou-se em trabalhar a temática
das danças folclóricas e analisar mais profundamente como ocorreria
à participação do aluno com deficiência intelectual, da turma do 6º ano
nesta atividade.
Como destaca o Coletivo de Autores (1992), a dança é uma
expressão representativa da linguagem social que permite a
transmissão de sentimentos, emoções, afetividade vivida e dimensões
da religiosidade, do trabalho, dos costumes, hábitos e da saúde.
Na realização da atividade o aluno com deficiência intelectual
manteve-se participante, feliz e tinha um papel importante. Nessa
direção Lauar e Mattos (2014), ressaltam que a dança produz uma
sensação de alegria, sendo essas atividades fundamentais para a
expressão dos sujeitos, pois se vincula às expressões francas e diretas
de sentimentos em um contexto social que conectada cognição,
afetividade e motricidade.
O início da atividade se deu de forma muito bem sistematizada. A
princípio, o conteúdo foi discutido por meio de uma apostila elaborada
e levada para discussão em sala de aula. Como destaca os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998), quando realizar-se o contato com estas
danças é necessário aprofundar-se, buscar conhecê-las, situá-las e
ressaltar a importância de sua prática e significado. Não se trata
apenas do dançar por dançar. Faz-se necessário também conhecer o
seu contexto histórico diante da temática apresentada.
Assim, a professora demonstrou imagens das danças folclóricas
mais comuns no Brasil e especificamente da nossa região onde foram
destacadas: a quadrilha e o samba de roda. Em seguida, vários vídeos
foram demonstrados para que os alunos percebessem como eram
realizadas cada tipo de dança. Foi lançada a proposta de em grupos,
apresentarem uma atividade do tipo de dança folclórica, ao qual fosse
obtido o tema por sorteio e os ensaios aconteceriam no decorrer das
aulas.
Com isso, as aulas seguiram por 7 semanas, nas 2 horas das aulas
de EDF, para que pudessem montar suas apresentações na escola. A
professora ficava revezando nos espaços para acompanhar o
andamento e o comportamento dos alunos, bem como obtinha ajuda

162
dos meninos do Programa Mais Educação e da secretaria da escola na
tentativa de manter a ordem nos ensaios, priorizando também a
segurança dos alunos.
Esses ensaios também aconteceram nas aulas de outros
professores que se sensibilizaram com a proposta e em alguns
momentos cediam o horário ou parte dele para garantir assim uma
melhor apresentação, porém, sempre atentos, principalmente ao
grupo do aluno com deficiência, pois todos já conheciam suas
limitações.
O aluno com deficiência por sua vez, era muito ativo e
participante e, por muitas vezes se dirigia a professora para reclamar
quando seus colegas ficavam dispersos e se desconectavam por
instantes dos ensaios.
A culminância da atividade se deu no mês de novembro com as
apresentações de cada dança folclórica. A pedido dos alunos cada
turma apresentou apenas para sua turma, porém os pais autorizaram
a filmagem e fotografia, bem como sua divulgação.
Os alunos, mesmo em sua maioria sendo carentes,
providenciaram o figurino da dança, de acordo com suas condições,
confeccionaram instrumentos musicais fictícios para incrementar a
apresentação e o aluno com deficiência foi um destaque no samba de
roda. Mesmo com seu jeitinho tímido, se sentiu muito a vontade e suas
limitações por causa da deficiência não o impediram de participar e se
destacar.
Foi enaltecedor poder ver numa escola pública, uma ação simples,
voltado para a dança folclórica por meio do ensino de EDF, agregar
expressões de felicidade, ao mesmo passo em que inclui o aluno com
deficiência intelectual e resgata valores. Neste contexto:

Nesses ambientes educativos, ensinam-se os alunos a valorizar a diferença, pela


convivência com seus pares, pelos exemplos dos professores, pelo ensino
ministrado nas salas de aula, pelo clima sócio afetivo das relações estabelecidas
na comunidade escolar, sem tensões, competição de forma solidária e
participativa. Escolas assim concebidas não excluem nenhum aluno, de seus
programas, de suas aulas, das atividades e do convívio escolar (MANTOAN, 2011).

Uma escola que agrega valores, certamente faz toda a diferença


e as atividades voltadas para o cunho folclórico, principalmente da
dança, despertou a atenção de um grande contingente de alunos,
porém foi extremamente perceptível o encantamento e participação

163
do aluno com deficiência atuando em cada momento da atividade.
Segundo Lauar e Mattos (2014) a dança produz a sensação de alegria,
sendo essas atividades fundamentais para a expressão dos sujeitos. O
trabalho com a dança vincula-se às expressões francas e diretas de
sentimentos em um contexto social que conectada cognição,
afetividade e motricidade.

II. O aluno com deficiência intelectual na atividade folclórica

Esta categoria objetiva demonstrar o comportamento do aluno


com deficiência intelectual durante a dança folclórica e sua inter-
relação com os demais alunos durante a atividade. A partir daí,
surgiram duas subcategorias: a) O comportamento do aluno com
deficiência intelectual durante a atividade; b) Relação interpessoal do
aluno com deficiência com a professora e os demais alunos.

a) O comportamento do aluno com deficiência intelectual durante


a atividade

Nessa subcategoria foram observadas as atividades que o aluno


com deficiência intelectual gostava e não gostava de realizar, as
atividades que não conseguia realizar, a sua participação na atividade
folclórica e a sua assiduidade.
A inserção do aluno com deficiência intelectual na escola só
aconteceu quando ele completou 18 anos de idade, após
recomendações médicas e encontrou diversas dificuldades a partir do
momento em que foi inserido, entre elas: momentos de
comportamento agressivo, dificuldade de lidar quando não tem posse
do medicamento, a falta de interação com outras pessoas e o mais
comprometedor foi o fato de ter agredido fisicamente a diretora da
escola anterior onde estudou.
Nessa direção Antun (2017) ressalta que a agressividade na
maioria das vezes, trata-se de uma forma de expressão. Os docentes
devem reconhecer que muitas crianças manifestam agressividade, de
diversas formas. Não somente as com deficiências. Mas se um
indivíduo com deficiência o faz, passa a “carregar” este estigma
associado ao diagnóstico. Então, não cabe à escola ficar atribuindo a

164
culpa da agressividade do aluno com deficiência intelectual à sua
condição, o que, geralmente ocorre em espaços escolares.
Em relação às aulas, nem tudo chamava a atenção desse aluno, e,
muitas vezes se ausentava por horas. Porém, quando foi lançada a
temática: Folclore, ele fazia questão de participar dos ensaios e até
sugeriu ideias de roupas para os componentes do grupo nas primeiras
reuniões da apresentação. Com isso, apesar de não costumeiramente
participar de tudo o que era proposto, com esta proposta, se percebeu
como parte importante da atividade.
Perceber o aluno com deficiência intelectual na atividade com a
dança folclórica nos remete à ideia proposta por Mantoan (2011) que
destaca a preocupação da escola inclusiva em oferecer condições para
que todos possam aprender, como sendo aquela escola que busca
construir no coletivo um contexto pedagógico que atenda todos os
alunos e que compreenda a diversidade humana como um fator
impulsionador das novas formas de organizar o ensino.
É gratificante ver a interação, participação e assiduidade do aluno
com deficiência intelectual, especialmente nos dias de aula de EDF,
pois, durante o período de ensaios até o dia da apresentação, ele não
se ausentou e manteve sempre presente.
No dia da apresentação seu grupo realizou o samba de roda,
adotaram como método a roda em casal. O aluno com deficiência
intelectual se sentiu à vontade e sua presença foi muito importante no
processo. De acordo com Lehnhard e Antunes (2012) atividades
realizadas em conjunto ressaltam a capacidade de conviver,
comunicar-se ou relacionar-se com as pessoas, além disso, pode ser
entendido como uma ligação de amizade ou de afeição que depende
de uma gama de atitudes em nível de reciprocidade.

b) Relação interpessoal do aluno com deficiência com a professora e


os demais alunos.

Quanto à relação com a professora de EDF, o aluno a considerava


uma amiga. Talvez essa proximidade, confiança e respeito facilitaram
os trabalhos com ele. Assim, Artiolli (2006) nos diz que a integração
educacional passa também pelo tipo de relacionamento que o
professor estabelece com o aluno com deficiência, pois é no cotidiano,

165
na sala de aula, que a prática pedagógica, entrelaçada por valores,
conceitos, preconceitos e estereótipos, se efetiva.
No momento da observação percebeu-se que na turma há
aceitação e respeito com o colega que apresenta deficiência
intelectual e nenhum tipo evidente de preconceito, em apenas um
momento, foi observado um tratamento diferenciado por parte de um
dos colegas, mas que foi imediatamente contido pela intervenção da
professora de EDF e pela equipe gestora da Unidade Escolar.
Portanto, o respeito se sobressaia e facilitava o trabalho com as
danças. Se a criança com deficiência for aceita pelo grupo e for
estimulada para realizar as mesmas atividades que os colegas sem
deficiência, ela terá seu sentimento de capacidade aumentada o que,
consequentemente, melhorará sua aceitação (LEHNHARD; ANTUNES,
2012).
Na culminância do trabalho que foi apresentado somente para a
turma, no final do mês de novembro do ano letivo de 2018, o aluno com
deficiência se mostrou muito entrosado com todos os colegas e com o
grupo de trabalho ao qual foi designado. Participou da apresentação
da dança “Samba de Roda”, onde, extremamente feliz, pôde
contribuir com a demonstração de um tipo de samba regional. Nessa
direção Oliveira e Reia (2017) destacam que as pessoas com deficiência
intelectual necessitam de atenção e credibilidade, e quando
incentivadas, elas nos mostram aprendizagens e desenvolvimentos
surpreendentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apontaram que a professora e os colegas de classe


têm uma excelente relação interpessoal com o aluno com deficiência
intelectual. Além disso, a dança folclórica apresenta-se como um
importante dispositivo de inclusão escolar.
Analisar a importância da dança folclórica nas aulas de EDF para
inclusão do aluno com deficiência intelectual se deu de forma leve e
inovadora. A finalidade de incluir, certamente ficou perceptível
durante cada momento observado, pois havia um entusiasmo muito
grande do aluno com deficiência intelectual nesta atividade. A
temática instigou algo que nunca imaginávamos que viria à tona: a
preferência do aluno pelas danças folclóricas.

166
Assim, vale ressaltar que uma atividade tão importante e
realizada com êxito, não pode acontecer apenas uma vez no ano e nem
somente nas aulas de EDF. A escola pode vislumbrar da ideia para
programar um projeto mais sistematizado e bem mais amplo, haja
vistas que tem a capacidade de instigar e aguçar o lado artístico e
participativo, principalmente do aluno com deficiência intelectual.
Além disso, faz-se importante a realização de novas pesquisas,
com alunos que apresentem outras deficiências, na própria e em
outras instituições de ensino enfatizando a dança folclórica como
atividade inclusiva nas aulas de EDF.

REFERÊNCIAS

AMPUDIA, R. O que é deficiência intelectual? Nova Escola online, 01


ago. 2011. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/271/o-
que-e-deficiencia-intelectual>. Acesso em: 15 out. 2018.
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de uma criança com Síndrome de Down? 2017. Disponível em:
https://www.diversa.org.br/forum/como-lidar-comportamento-
agressivo-estudante-com-sindrome-down/ Acesso em: 13/10/2019.
ARTIOLLI, Ana Lucia A educação do aluno com deficiência na classe
comum: a visão do professor. Disponível:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
69752006000200006>. Acesso em: 14/10/2019.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
curriculares nacionais: Educação Física/ Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF,1997.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da Educação Física.
São Paulo: editora Cortez, 1992.
DECLARAÇÃO DE SALAMANCA: sobre princípios, políticas e práticas
na área das necessidades educativas especiais. Salamanca-Espanha,
1994.
GARCIA, Alda Cristina. A importância do relacionamento entre professor e aluno
no processo de aprendizagem. Disponível: https://www.monografias.com/
pt/trabalhos3/impressao-mono-capa/impressao-mono-capa2.shtml Acesso:
14/10/2019.

167
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª edição. São Paulo,
Editora Atlas, 2006.
HONORA M. E FRIZANCO M. L. Esclarecendo as deficiências: Aspectos
teóricos e práticos para contribuir com uma sociedade inclusiva.
Ciranda Cultural, 2008.
LAUAR, Sirley Jardim e MATTOS, Adenilson Mariotti, A dança na escola
como elemento lúdico e suas contribuições para a aprendizagem,
2014.
LEHNHARD, Greice Rosso e ANTUNES, Mara Rubia. Aluno com
deficiência física nas aulas de Educação Física: Discussões sobre
inclusão escolar. p. 11, 2012.
MANTOAN, Maria Tereza Eglér (organizadora). O desafio das diferenças nas
escolas. 4. Ed.- Editora Vozes. Petrópolis RJ, 2011.
MARQUES, I. Parâmetros Curriculares Nacionais e a Dança: Trabalhando com
os Temas Transversais. Revista Ensino de Arte, nº 2, ano I, 1998.
OLIVEIRA, Juliana Thais de e REIA, Letícia, A inclusão do Aluno com
Deficiência no Ensino Regular, UNISALESIANO Centro Universitário
Católico Salesiano Auxilium PEDAGOGIA, p. 27. Lins, 2017
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Guia de Qualidade do Ar.
Atualização Mundial. In: REUNIÃO DO GRUPO DE TRABALHO, 2005,
Alemanha. Relatório, 2005.
PIMENTA, Tatiana. Deficiência Intelectual: principais características,
sintomas e tratamento, Virtude.com 9 de agosto de 2017. Disponível
em: https://www.vittude.com/blog/deficiencia-intelectual-
caracteristicas-sintomas/>. Acesso em 19 de dezembro de 2019.
VASCONCELOS, M. M. Retardo mental. Jornal de pediatria, Porto
Alegre, v. 80, 2004.
VIEIRA, Martha Bezerra, As danças folclóricas no Brasil: diante do
contexto da Educação Física escolar, EFDeportes.com, Revista Digital.
Buenos Aires, Año 18, Nº 189, Fevereiro de 2014. Disponível em:<
http://www.efdeportes.com/>. Acesso em 29 de maio de 2019.

168
NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL:
UM COMPROMISSO COM A EDUCAÇÃO FÍSICA

Noeme Silva Moreira1


Guacyra Costa Santos2
Nayara Alves de Sousa3

INTRODUÇÃO

Vivenciando experiências com pessoas durante a minha4


trajetória educacional pude adquirir princípios e saberes que
permearam a relação professor e aluno, entrelaçando passado,
presente e futuro. Desse modo, as narrativas configuram-se como
instrumento para aproximar diferentes tempos e espaços formativos
narrando minha história como professora de Educação Física, na
reconstrução das práticas pedagógicas sob as memórias e
lembranças, que despertam a vontade de escutar o outro, exercendo
o que Bosi (1994), chama de memóriatrabalho. Inspirada em suas
abordagens, a autora nos ensina:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,


reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do
passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se
duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no
inconsciente de cada sujeito (BOSI, 1994, p. 55).

Para Bosi (1994), é preciso conservar a arte de narrar, num


mundo de vivências e contradições, acendendo a lembrança que

1Graduanda em Educação Física. E-mail: [email protected].


2 Mestre pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente da
Educação Básica. E-mail: [email protected].
3 Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente Adjunta da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].
4 Justificamos o uso da primeira pessoa do singular no corpo do trabalho, devido ao

fato de abordar as vivências de Noeme enquanto educadora de Educação Física no


município de Cândido Sales, Bahia.

169
marcou nossa vivência. Nesse cenário ficam acordados os objetivos de
compartilhar momentos que consideramos importantes nas
experiências docentes e escolares, por exemplo: o que aprenderam e
aprendem na escola e nas aulas; o que é importante na escola e o que
pode ser melhorado, bem como, conhecer a construção da identidade
que ocorre no processo em que o sujeito está inserido e na
apropriação dos significados de sua trajetória tanto pessoal como
profissional, que se apresentam como ferramentas pedagógicas.
Na obra Memória e Sociedade: lembranças de velhos, Bosi (1994)
articula as vivências ao olhar das memórias que vêm mostrar não
apenas lembranças, mas também silêncios e esquecimentos. Dessa
maneira, nascem as narrativas como formas de falar sobre a sociedade
e a cultura dos sujeitos que atravessam gerações. Destacamos então,
essas memórias que podem ser compreendidas como possibilidades
formativas. Souza (2006), afirma:

A escrita da narrativa abre espaços e oportuniza, às professoras e


professores em processo de formação, falar-ouvir e ler-escrever sobre
suas experiências formadoras, descortinar possibilidades sobre a
formação através do vivido. A construção da narração inscreve-se na
subjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num
tempo da consciência de si, das representações que o sujeito constrói
de si mesmo (SOUZA, 2006, p. 64).

Consideramos importante a citação do referido autor, já que a


história profissional dos docentes, em especial, do Centro Educacional
Getúlio Vargas, no município de Cândido Sales, Bahia, é tomada como
narrativas de vida importantes na prática de formação na área da
Educação Física, percebendo desafios e dificuldades em suas
trajetórias, ressignificando o papel do professor. Nesse contexto,
surge o questionamento: Como é trabalhada a Educação Física nas
séries finais do Ensino fundamental II e o que lhes marcou na sua
formação profissional? A Educação Física no Centro Educacional
Getúlio Vargas é trabalhada da seguinte forma: duas aulas semanais,
uma teórica e a outra prática. A aula teórica acontece dentro dos
recintos da instituição, enquanto a prática, onde desenvolve o
handebol, futsal, vôlei e outras modalidades são realizadas na quadra
poliesportiva. Falando da formação profissional, percebo hoje, os

170
gestores mais compreensivos, sensíveis e próximos da realidade social
dos alunos o que difere da minha época.
Como objetivo geral apresentamos: Analisar de que forma é
trabalhada a Educação Física das séries finais do Ensino Fundamental
II e quais fatores contribuíram para a formação profissional de alguns
professores. Em se tratando dos objetivos secundários abordamos: 1-
Conhecer a construção da identidade que ocorre no processo em que
o sujeito está inserido e na apropriação dos significados de sua
trajetória tanto pessoal como profissional, que se apresentam como
ferramentas pedagógicas; 2- Entender a importância das experiências
escolares para uma formação docente.
Para isso, buscamos um pequeno grupo de trabalho que
consideramos comprometidos, teoricamente e na prática, importante
para os conhecimentos estratégicos dessa pesquisa e socializadores,
compartilhando experiências e sustentando esse discurso. No que
tange à formação profissional, procura-se debater acerca das
formações nos espaços formais questionando as dificuldades e
diferenças. Formação que, ao se situar no tempo tem uma ação de
caráter educativo teórico/prático, confronta-se com a constante
tomada de decisões em contextos de incertezas ao exercício da
docência. Nessa direção Libâneo (2004), ressalta:

A profissão de professor combina sistematicamente elementos teóricos


com situações práticas reais. É difícil pensar na possibilidade de educar
fora de uma situação concreta e de uma realidade definida. Por essa
razão, a ênfase na prática como atividade formativa é um dos aspectos
centrais a ser considerado, com consequências decisivas para a
formação profissional (LIBANEO, 2004, p. 230).

Nesse cenário, compreende-se as experiências dos professores


como formação profissional, ampliando o contexto do mundo escolar
e, em especial, o viver na Educação Física. Entrar em contato com a
formação profissional é também, anunciar ao mundo de
questionamentos ditos como verdades ou, rigorosos, arrogantes que
se estabelecem nas nossas vivencias. Sendo assim, o estudo e a
história de vida são entendidos como uma estratégia de pesquisa que
agrega a abordagem biográfica o que permite compreender as
experiências sob as diversas dimensões da vida humana. Nesse
entendimento, são apresentadas considerações sobre o tempo e o

171
recolhimento da história, de modo a refletir sobre os lugares de onde
se fala, se narra. Acredita-se serem essas, as principais condições para
que o narrador possa aproveitar desse momento e, a partir dele,
produzir novas elaborações sobre o tempo presente, enquanto
pesquisador, já que carregamos uma riqueza de linguagens e do
contexto vivido, abrindo espaços para uma nova pesquisa.

NARRADORES DE NOSSA PRÓPRIA PRÁTICA

A abordagem teórico-metodológica se constituiu em uma leitura


de práticas formativas que se configura no papel em sermos
narradores de nossas próprias práticas, entendidas como formação.
Nessa direção, a pesquisa nos alerta para um percurso de resgate das
experiências, rememoradas pelos professores colaboradores da
pesquisa. Bondía (2001, p. 27) define que o saber da experiência “[...]
se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que lhe vai
acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido
ao acontecer do que nos acontece”.
O saber rigoroso, a precisão quantitativa, a rejeição, o
desencantamento, a falta de prazer e de emoção, faz lembrar a perca
da riqueza de compreensão para com o cenário da Educação Física,
mencionado no início deste trabalho. Nessa concepção, corrobora-se
com Santos (2000), quando o autor cita:

Em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, a


imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a
espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversabilidade, a
irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da
necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 2000, p. 70-71).

Diante destas discussões, a profissão docente abrange uma


missão consigo mesmo, sob uma ação pautada na ética e no respeito
de crescer tanto no plano profissional quanto pessoal, o que vem
colaborar com a partilha de experiências, sentimentos, fraquezas e
competências que favoreçam o contexto da Educação Física. É neste
olhar que procuro falar da Educação Física relacionando-a com as
práticas discursivas em sala de aula, analisando a disciplina no
contexto sócio histórico presente na vida do professor. No cenário da
educação as experiências ganham narrativas recriando lugares como

172
espaços formadores nos alertando para uma história compreendida
como as experiências passadas, que é a construção de um novo
conhecimento, de um novo saber. Nesse trabalho, busca-se acenar
uma visão reflexiva sobre o processo ensino e aprendizagem na
Educação Física, para refletirmos sobre a prática desenvolvida nos
estabelecimentos de ensino, onde por vezes, algumas instituições,
ainda prega o rigor em suas práticas educativas. Dessa forma,
propomos uma efetivação de práticas narrativas coerentes com os
princípios do respeito ao bem comum, formando cidadãos
conscientes, sadios e felizes cumprindo seu papel no mundo.

CAMINHO METODOLÓGICO

A pesquisa se fundamenta em uma abordagem discursiva


baseada em Foucault (2005), quando o autor salienta:

[...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito;


e que este já dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um
texto já escrito, mas um ‘já-mais-dito’, um discurso sem corpo, uma voz
tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de
seu próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo o que o discurso formula
já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que
continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz
calar. O discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença
repressiva do que ele diz; e esse não dito seria um vazio minando, do
interior, tudo o que ele diz (FOUCAULT, 2005, p. 28).

Portanto, a formação discursiva emerge de um momento que


marca a determinação histórica onde os começos precisam ser
recomeçados com as formas de pensamento que vão caracterizar uma
prática discursiva na condição de existência humana, tomado como
um lugar de expressão.
Na fase inicial da pesquisa, foi realizada uma revisão bibliográfica
sobre o tema, onde tive acesso a: livros, artigos, dissertações
científicas disponibilizadas na internet; dessa forma, contextualizando
a pesquisa em pauta. A segunda parte do trabalho foi uma pesquisa
de campo de análise qualitativa, realizada junto aos professores em
estudo, enfatizando como ocorrem as práticas de Educação Física das
séries finais do Ensino Fundamental II em Cândido Sales, Bahia. Maria

173
Cristina Piana (2009, p. 169), ao mencionar Gonsalves (2001, p.67),
afirma:

A pesquisa de campo é o tipo de pesquisa que pretende buscar a


informação diretamente com a população pesquisada. Ela exige do
pesquisador um encontro mais direto. Nesse caso, o pesquisador
precisa ir ao espaço onde o fenômeno ocorre, ou ocorreu e reunir um
conjunto de informações a serem documentadas (PIANA, 2009).

Dentre as técnicas de observação existentes, optou-se pela


observação direta, com o propósito de facilitar o entendimento do
comportamento dos indivíduos, onde foram realizadas entrevistas
com 3 professores, integrantes do quadro funcional da referida escola
em estudo. As entrevistas tiveram duração média de 35 minutos,
foram gravadas e, posteriormente, transcritas para então serem
analisadas, o que ofereceu maior sustentação ao trabalho
desenvolvido no contexto da Educação Física.
A entrevista é definida por Haguette (1997) como um “processo
de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o
entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte
do outro, o entrevistado”. A entrevista aberta é utilizada quando o
pesquisador deseja obter o maior número possível de informações
sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e para
obter um maior detalhamento do assunto em questão. Ela é utilizada
geralmente na descrição de casos individuais, na compreensão de
especificidades culturais para determinados grupos e para
comparabilidade de diversos casos (MINAYO, 1993).
Objetivou-se nas entrevistas conhecer as histórias de vida e
fatores que promovessem uma formação profissional, sejam eles,
negativos ou, positivos. Nesse caminhar, corrobora-se para uma
abordagem de estudo que servirá também de reflexão para outras
áreas do conhecimento, como, a sociologia e a filosofia. Dessa
maneira, abordamos as implicações no processo educacional, o que
aciona as narrativas e a formação profissional.
Para a interpretação das entrevistas utilizou-se a análise de
conteúdo, que, de acordo com Bardin (1977), representa um conjunto
de técnicas para analisar comunicações, que buscam desvendar
através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do

174
conteúdo das mensagens, indicativos que possibilitem a inferência de
conhecimentos relativos às condições de reais destas mensagens.
A terceira parte do trabalho é constituída por narrativas oriundas
dos três profissionais escolhidos do Centro Educacional Getúlio
Vargas, no município de Cândido Sales, Bahia. Nesta etapa, intercruzo
memórias e narrativas dos respectivos docentes, numa breve
caracterização e formação profissional, onde, por questões éticas sua
identidade é preservada, sendo substituídos por nomes de flores (Flor
de Lis, Flor de Cheiro e Flor do Campo), o que me faz colocar em cena o
tópico chamado: Um Canteiro de narrativas e formação profissional.
Vale ressaltar que, os participantes da pesquisa foram previamente
comunicados e esclarecidos sobre o artigo em questão, sendo,
posteriormente, solicitadas as assinaturas do termo de
consentimento e livre esclarecido (TCLE).

PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO

Para a análise dos discursos ancoramo-nos em Bardin (1977),


trazendo sentidos as vozes dos sujeitos da pesquisa, lembrando que
nessa interpretação perpassaram as lembranças, os sucessos,
experiências, as emoções e, até mesmo as infelicidades que o tempo
jamais poderá apagar. Nessa caminhada ao ouvir os professores e, a
partir da transcrição das entrevistas, percebemos marcas na
linguagem que apontam significações, seja, para a vida profissional ou,
pessoal. Trata-se de conhecer novas perspectivas, que vêm participar
da cena, à qual se produz num momento chamado análise, capaz de
nos fazer refletir sobre a formação profissional, construindo novas
abordagens sobre as práticas educacionais. Bardin (1977),
proporciona uma melhor compreensão sobre a análise do discurso,
fornecendo ao pesquisador subsídios para o trabalho. Assim afirma:

O discurso não é um produto acabado, mas um momento num processo


de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de
incoerências, de imperfeições. Isto é particularmente evidente nas
entrevistas em que a produção é ao mesmo tempo espontânea e
constrangida pela situação (BARDIN, 1977, p. 170).

Ademais, nesse trabalho o discurso mostrou-se profundo,


criativo e, ao mesmo tempo, saudoso, uma vez que, fez circular na

175
pesquisa lugares de histórias e memórias, desafios e reconstruções no
processo ensino e aprendizagem, discutindo distanciamentos e
aproximações entre a prática e teoria. Assim, anuncia Laurence
Bardin: “Por detrás do discurso aparente geralmente simbólico e
polissêmico esconde-se um sentido que convém desvendar”
(BARDIN, 1977, p. 14).
Aqui, trilhamos pelas categorias apresentadas pela autora,
primeiramente houve uma pré-análise, considerando os discursos dos
participantes e suas ideias iniciais. Depois a exploração do material,
para um melhor contato e conhecimento das abordagens. Por fim, o
tratamento dos resultados, por meio da transcrição que aparecem na
pesquisa através dos discursos, o que contribuiu significativamente,
para o refinamento da pesquisa. As três etapas apresentadas foram
cumpridas aproximadamente no período de 6 meses, o que procurou
garantir a integridade do processo.

UM CANTEIRO DE NARRATIVAS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Inspirados pelo canteiro das narrativas e formação profissional


abordamos os depoimentos dos três professores, como categoria de
análise para refletirmos práticas de formação, capazes de produzir
saberes, novas abordagens e valores, fazendo emergir momentos da
história de vida dos professores, oferecendo a pesquisadora uma
possibilidade de interpretação para esse momento educacional, ao
olhar da Educação Física.
Sobre a trajetória de vida como ferramenta pedagógica, tais
experiências ganham força para a abertura de novos caminhos e
concepções, possibilitando ao sujeito consciência da sua formação,
desvelando acontecimentos que marcaram esse caminho. Em se
tratando de um canteiro que brotaram situações vividas e de pessoas
que fizeram parte desse momento educacional, Flor de Lis, autora do
referido artigo, regressa ao passado, trazendo fragmentos de sua
história de vida, que lhes marcou intensamente e, hoje toma como
uma abordagem discursiva sobre o percurso formativo e suas
implicações. Certamente, por isso, sua escrita expressa sinais de
denúncia, mas também, de compromisso para com a vida. Logo, faz
questão de afirmar: Não entendia.... Ficava sempre a perguntar e pensar
com um gestor tão autoritário, doutrinador, impedia que as aulas de

176
Educação Física acontecessem de maneira lúdica, alegre e descontraída
no contexto da escola. Humm, lembro-me como hoje... Era como se fosse
um doce que tirando da nossa boca, (risos). Ali, todo o encanto acabava,
pois, essa era a melhor e a mais esperada aula (Flor de Lis, 25/07/2019).
Para o pensamento de Foucault (1971, p. 7), o homem propaga
sua história lançando uma compreensão para as mudanças
necessárias. Assim, diz o autor: “Ao invés de tomar a palavra, eu
gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo
possível”.
Aqui, percebemos um acento sobre a condição histórica que por,
muitas vezes, afetam o processo ensino e aprendizagem e,
consequentemente as pessoas. Quanto ao discurso o filósofo nos
presenteia dizendo:

O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte:


permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de
que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade
aberta, o azar [aléa] são transferidos, pelo princípio do comentário,
daquilo que corria o risco de ser dito, para o número, a forma, a máscara,
a circunstância da repetição. O novo não está naquilo que é dito, mas no
acontecimento de seu retorno (FOUCAULT, 1971, p. 28).

Importante nesse sentido, analisar os diversos momentos e o


intercruzamento dos acontecimentos através do pensamento como
demonstra passagem acima, para uma formação do discurso,
atravessando práticas pedagógicas que nos servirá para entendermos
uma nova realidade educacional. Nesse contexto, a experiência de Flor
de Cheiro, desbrava suas memórias possibilitando a autora tornar-se
conhecedora das histórias que envolvem a pesquisa,
concomitantemente, a sua formação profissional. O ser humano é um
vencedor desde que fora fecundado, pois vencera milhões de
espermatozoides para nascer, por isso supero um obstáculo a cada dia
na minha carreira como docente e agora que migrei para a área da
Educação Física me acho uma heroína. Através da análise do discurso,
Foucault traz sentido para a história, quando comenta: “[...] que além
de qualquer começo aparente há sempre uma origem secreta – tão
secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar
inteiramente” (FOUCAULT, 2005, p. 27)

177
É através da análise discursiva que percebemos os sentidos fincados
nas trajetórias de vida e formação profissional, sejam nas palavras, nas
imagens ou, até mesmo durante os momentos de recordação, esses que
apresentam como marcas para interpretar o entendimento do lugar
marcados pela História. Neste momento, Foucault busca compreender o
discurso pela análise do saber, pois “[...] não há saber sem uma prática
discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber
que ela forma” (FOUCAULT, 2005, p. 205).
Ao dialogar com Flor do campo percebemos seus pensamentos de
análise para o processo ensino e aprendizagem, ao afirmar: À medida que
fui conhecendo a Educação Física fui sendo fisgado por ela e transformando
os meus hábitos e a minha vida de forma que mantenho hoje, hábitos
saudáveis associado à atividade física. Aqui, enfatizou o discurso como
portador de histórias, lugares e compreensão das ideias permanentes na
memória, possibilitando o que Foucault chama de formação discursiva e,
assim aborda o discurso como uma descontinuidade.

É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua


irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e
nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido,
esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido
bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso
remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo
no jogo de sua instância (FOUCAULT, 2005a, p. 28).

O discurso de Flor do Campo faz-nos ressaltar o quanto a figura


cativante do gestor contribui para que o aprendizado aconteça de
forma positiva e marcante, deixando boas lembranças. Sabe-se que,
não é tarefa fácil escrever de forma precisa sobre as concepções
Michel Foucault, já que seu pensamento é denso e complexo. Mas,
como falar de discurso, se não tratarmos das ideias que norteiam a
análise? Sem aprofundar no sentido que o discurso nos traz? Acredita-
se que, longe desse pensamento, o discurso não teria sua importância.
Neste cenário, o presente capítulo faz um convite a conhecermos a
vasta obra desse autor, imprescindível, para refletirmos os
distanciamentos e as aproximações dos saberes para o campo da
educação. O canteiro de narrativas e formação profissional expressa
uma mistura de flores e ao mesmo tempo, mescla diversas literaturas
que, por aqui passaram.

178
CONCLUSÃO

Nos dispersamos da escrita com os grandes ensinamentos que a


vida nos ofertou e que, de maneira especial, marcaram a nossa
formação profissional. Logo, a pesquisa nos mostrou diversas
dificuldades que o professor de Educação Física atravessa em sua
carreira docente; desde a infraestrutura precária das escolas, como a
falta de parceria das mesmas ou, dos profissionais que ali atuam, por
muitas vezes acharem que a disciplina não é tão importante, ou,
menos importante que as outras, até o desencanto do profissional em
alguns momentos na sala de aula. E que, num momento da vida
precisa-se criar possibilidades para sua própria produção ou, sua
construção, na tentativa de melhorar as práticas educacionais e atrair
os alunos. Pensamos que, por detrás do discurso esconde-se um
sentido de interpretação dos sonhos, desejos e buscas que revelam
nas práticas de análise.
A partir das narrativas contidas nesse capítulo, fomos edificando
a nossa trajetória como docentes, organizando recursos para a prática
cotidiana, o que nos fez voltar à memória, às nossas ações.
Destacamos as relações humanas que são elementos fundamentais a
uma prática pedagógica capazes de integrar a cultura, os valores e a
interação para um contexto social/humano mais justo e sadio. Esse
caminho do conhecimento nos levou a um processo de formação,
onde conseguimos extrair lições dos momentos negativos que
permearam a nossa vida, fazendo-nos hoje, pessoas melhores, mais
confiantes e compreensivas para o mundo acadêmico. E foram as
experiências negativas, porém reflexivas e enriquecedoras que me
trouxeram até aqui.... Para que assim, pudesse superar, recriar e contar
uma nova história através dos canteiros de narrativas (Flor de Lis).

REFERÊNCIAS

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.


BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência.
Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 19, jan. /abr. 2001.
BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 3.ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

179
FOUCAULT, M. L'Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.
FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. 7 ed. Tradução Luiz F.B. Neves.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
HAGUETTE, T. M. F. Metodologias qualitativas na Sociologia. 5 ed.
Petrópolis: Vozes, 1997.
LIBÂNEO, J. C. Organização e gestão da escola: teoria e prática. 5. ed.
revista e ampliada. Goiânia: Editora Alternativa, 2004.
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento científico: pesquisa
qualitativa em saúde. 2 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco,
1993.
NÓVOA, A. Formação de professores e formação docente. In:______.
Os professores e a sua formação. Publicações Dom Quixote, Lisboa,
1992.
PIANA, M. C. A Construção do Perfil do assistente social no cenário
educacional [online]. São Paulo: Editora UNESP; Cultura Acadêmica,
2009.
SANTOS, B. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política
na transição paradigmática. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2000.
SOUZA, E. C. de. A arte de contar e trocar experiências: reflexões
teórico-metodológicas sobre história de vida em formação. Educação
em Questão, Natal, v. 25, n. 11, p. 22-39, jan. /Abr. 2006.

180
AVANÇOS DAS POLÍTICAS DE ENSINO TÉCNICO-PROFISSIONAL
EM MOÇAMBIQUE

Augusto Kessai Agostinho Chicava1

INTRODUÇÃO

Segundo Azevedo e Abreu (2007), depois da guerra civil e das


eleições de 1994, a educação moçambicana foi encarada como uma
prioridade nacional, em particular o ensino elementar. O sistema
educativo nacional moçambicano era regulado por uma Lei de Bases,
de 1983.

Em Agosto de 1995, foi aprovada pelo Governo uma nova política nacional de
educação, reconfirmada pelo “Plano Nacional de Desenvolvimento do Sistema
Educativo”, discutido com os doadores em Setembro de 1997, em que se
definiram as grandes orientações para os anos vindouros, a saber: melhorar o
acesso à educação e a qualidade do ensino. Já nesse momento, foi atribuído ao
Ensino Técnico-Profissional um papel muito significativo, afirmando-se como
prioridade reabrir e criar escolas de artes e ofícios e elementares de agricultura
e pecuária, e incentivar outras iniciativas neste domínio, por forma a promover o
autoemprego (AZEVEDO; ABREU, 2007, p. 25).

Das Escolas de Artes e Ofícios (EAO) esperava-se um papel


determinante na “reativação do tecido produtivo nas zonas rurais e na
fixação das populações” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1995, apud
AZEVEDO; ABREU, 2007, p. 26). Tais escolas tinham caraterísticas bem
específicase contribuiram significativamente para o bem-estar da
população, conforme destacam Azevedo e Abreu (2007):

As EAO eram escolas-oficinas e tinham por finalidade principal dar aos seus
alunos, quase sempre população autóctone, uma preparação profissional
prática, a que se juntava alguma formação académica, bastante elementar,

1Doutorando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante no


grupo de pesquisa “Ensino e Conhecimento”. Atualmente é Professor efetivo na
Universidade São Tomás de Moçambique (USTM). Pesquisa na área de Epistemologia
Genética; Pedagogia Freireana e Pragmatismo Deweyana. Bolsista da CAPES. E-mail:
[email protected]

181
equivalente ao primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária. Os
oficiais deles saídos, viam em geral melhorada a sua situação económica,
diferenciando-se mesmo dos trabalhadores rurais, socialmente mais
desfavorecidos. A primeira escola foi criada em 1907, na Ilha de Moçambique,
pelos padres Salesianos, e oferecia formação nas áreas das artes gráficas e da
carpintaria. Desta escola-oficina saía boa parte do material impresso que
circulava, ao tempo, em Moçambique (AZEVEDO; ABREU, 2007, p. 26).

Sabe-se que o sistema de educação técnico-profissional


Moçambicano é oferecido, sobretudo por escolas públicas e centros
de formação administrados pelos diferentes ministérios. Há pouco
tempo, alguns provedores privados entraram no mercado e
ofereceram programas especializados de formação aos seus clientes
do setor privado (principalmente novos investidores estrangeiros),
mas estes programas ainda beneficiam uma minoria de alunos no
sistema de educação técnico-profissional (BROUWER e BRITO, 2010,
p.10). Pela sua natureza e enfoque, o ensino técnico-profissional (ETP)
enquadra-se no conceito mais amplo de Educação Profissional, o qual
envolve como provedores o governo e outros parceiros (MINISTÉRIO
DE EDUCAÇÃO, 2012, p. 90).
Segundo Macamo (2015), ETP de qualidade envolve elevados
custos. Comparando ao Ensino Secundário Geral (ESG) a algumas
especialidades do Ensino Superior, o custo por aluno do ETP é mais
alto. Porém, apesar de ser alocado, a este tipo de ensino, uma parte
considerável do orçamento para o setor de Educação, não é suficiente
para garantir as condições necessárias à progressão das reformas já
iniciadas. A fim de manter a sustentabilidade financeira do ETP,
assegurar a sua qualidade e expansão, o Ministério de Educação de
Moçambique tem redefinido os critérios de financiamento e aumenta
a contribuição do setor privado por meio do envolvimento das
comunidades e das próprias famílias. Assim sendo, este novo século
(XXI), inicia-se com o ressurgimento do Ensino Técnico-Profissional, o
qual passou pela preparação de uma nova estratégia do Ensino
Técnico-Profissional e pelo início da Reforma da Educação Profissional
(REP).
Visando a concretização deste estudo, foram utilizados os
procedimentos metodológicos da pesquisa qualitativa,
fundamentando-se em leituras, interpretações e análise textos
científicos. Também foi usado o método hermenêutico, por meio de
uma análise aprofundada de diferentes abordagens que discorrem a

182
respeito da questão da educação moçambicana, em diversos âmbitos.
Valeu-se ainda da pesquisa bibliográfica, mediante consultas a estudos
já publicados, com o intuito de também proceder a uma abordagem
sobre atual cenário ensino técnico-profissional da educação
moçambicana.

CONCEPÇÃO RELACIONAL ENTRE EDUCAÇÃO E TRABALHO

Em contexto do mundo capitalista marcado pela revolução


tecnológica acelerada, em que a força do trabalho é uma mercadoria,
cujo preço depende cada vez mais de habilidades adquiridas nos
bancos escolares, os trabalhadores encaram a educação como a senha
necessária para ingresso e permanência no emprego. A escola
continua a ser vista como a porta de entrada para o mundo do trabalho
e condição para a sobrevivência.
A educação e trabalho fazem parte da mesma dimensão e
podemos inferir como uma dimensão humana, ou seja, essas duas
categorias dizem respeito somente ao ser do homem. Segundo Karl
Marx (1964), trabalho manual (prática) e trabalho intelectual (teoria)
deveriam associar-se, ou seja, combinação entre o trabalho produtivo
e a educação (politécnica), considerando que a primeira finalidade da
vida é a manutenção e a reprodução de si mesma. Desse modo,
Gramsci (2004) introduz o conceito da escola unitária, que procura
salvaguardar a relação entre o trabalho manual e trabalho intelectual,
ou seja:

A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola
única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo
o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente,
industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual.
(GRAMSCI, 2004, p. 33).

Entretanto, a educação pode ser entendida como processo de


formação da personalidade do homem para a vida e trabalho na
sociedade, na medida que se torna um suporte na efetivação do
homem na intervenção e transformação do mundo, isto é:

a escola unitária [...] deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade


social, depois de tê-los elevados a um certo grau de maturidade e capacidade

183
para criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na
iniciativa (GRAMSCI, 2004, p. 36).

Assim sendo, há uma necessidade de distinguir educação técnica


e tecnicista. Isto é, educação técnica refere-se aos processos de
manipulação do mundo material; e a educação tecnicista por sua vez
enfatiza a predominância da mecanicidade dos mesmos. Entretanto,
educação como a prática técnica é trabalho por seus procedimentos
burocráticos e também por sua dinâmica. Errôneo pensar educação
distinto do trabalho, pois, a educação aumenta a produtividade e
produz o conhecimento técnico exigido pelo acelerado crescimento
econômico no mundo de trabalho.
Portanto, na concepção da educação prática, a escola procura
valorizar as ações didáticas e a mesma tem maior probabilidade de
proporcionar ao educando apropriados métodos para o aprendizado
e, aos professores, a possibilidade do desenvolvimento das
competências necessárias para implementar as ações requeridas. Na
mesma ordem de ideia, Gramsci (2004) salienta que devemos
conceber o trabalho como um princípio educativo, ou seja, o estudo é
também trabalho e muito cansativo (GRAMSCI, 2004). E tendo em
conta que o trabalho humaniza o homem.
No contexto moçambicano, a relação da educação e mundo de
trabalho é marcada por um certo desnivelamento, ou seja, “nota-se
um desfasamento entre as mudanças que ocorrem no mundo do
trabalho e a o perfil do trabalhador ingresso nas Instituições da
educação moçambicana” (GONÇALVES, 2015, p. 8). E, segundo o
mesmo autor, um dos problemas desse desnivelamento entre
educação e mundo de trabalho, no sistema educacional moçambicano,
é a falta de escolas técnicas vocacionais e profissionais de educação
terciária, o que se traduz no pouco número de trabalhadores com uma
qualificação profissional que esteja em consonância com as mudanças
no mundo do trabalho exigidas pelos empregadores.

AVANÇOS DE POLÍTICAS NACIONAIS DO ENSINO TÉCNICO-


PROFISSIONAL EM MOÇAMBIQUE

A edução profissional compreende o ensino técnico profissional, a formação


profissional, a formação profissional extra-instituicional e o ensino superior
profissional. A educação profissional estrutura-se e funciona num sistema
integrado e flexível orientado para o mercado de trabalho [...] Um dos objetivos

184
do sistema de educação profissional é a introdução de métodos, currículo e
modalidades de formação que respondem às necessidades do mercado de
trabalho (MOÇAMBIQUE, 2018, p. 1, grifo nosso).

O ETP em Moçambique foi criado ainda no tempo colonial, ou


seja, a lei colonial no 2025, de 19 de julho de 1947, já vinha a reger o
ensino técnico-profissional. E em 1948, criou-se a Direção Geral do
Ensino Técnico Profissional (decreto lei no 37.028, de 25/08//48), que
tinha como função conduzir o ensino agrícola, industrial e comercial
(PINTO, 2012).
Entretanto, nessa ordem de ideia, no ano de 1975, surge, em
Moçambique, o primeiro debate sobre o Ensino técnico, isto quando
da realização do Seminário Nacional do Ensino Técnico, e, segundo
Pinto (2012), era um cenário de uma rede escolar reduzida. Havia
insuficiente aparelhamento das instituições em material oficinal e
instrumentalização de laboratórios, além de falta de pessoal docente
e de técnicos habilitados, decorrentes da saída dos portugueses.
Esses cenários do ensino técnico também verificaram-se depois
da independência, como procura ilustrar Pinto:

Mesmo depois da independência, verifica-se dispersão da responsabilidade, da


direção e administração das áreas de formação e educação, assim como
desarticulação e fraca interligação entre várias estruturas educacionais. Os
princípios e os objectivos gerais eram diversos, não existia um perfil profissional,
as ações realizadas não obedeciam a um plano único de formação de força de
trabalho qualificada, não existia normas e princípios de equivalência,
continuidade de estudos, diplomas e regulamentação diversa (SNE, 1985 apud
PINTO, 2012, p. 5).

Um dos objetivos e prioridades do Governo Moçambicano (o


programa quinquenal para o período 1995-1999) é a redução dos níveis
de pobreza absoluta e melhoria de vida de sua população Educação,
concretamente educação técnica, era a saída para se alcançar este
objetivo. Com a aprovação da Política Nacional de Educação (PNE), em
1995, surge a necessidade de traduzir as intenções políticas para um
quadro de ações e transformações por meio de um Plano Estratégico.
E é a partir disso que surgiu o primeiro Plano Estratégico de Educação
1999-2003 (PEE I), o qual tinha como lema “Combater a Exclusão,
Renovar a Escola”. Caracterizou-se como sendo um plano centrado em
prioridades, com opções limitadas, que se apoiou nos três pilares

185
definidos pela Política Nacional de Educação, quais sejam: aumento do
acesso e equidade; melhoria da qualidade e relevância do ensino;
reforço da capacidade institucional do Ministério da Educação. O Plano
Estratégico de Educação (PEE) propõe três principais objetivos para o
sistema educativo: aumentar o acesso às oportunidades educativas
para todos os moçambicanos e em todos os níveis do sistema; manter
e melhorar a qualidade da educação, e por último desenvolver um
quadro institucional e financeiro que possa no futuro, sustentar as
escolas e os alunos (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1998).
Ainda no mesmo ano de 2005, surge outra mudança. Houve
extinção dos Ministérios da Educação e da Cultura e foi criado o
Ministério da Educação e Cultura, mantendo na sua gênese a estrutura
Direção Nacional de Educação Técnico-Profissional e Vocacional
(DINET). Por sua vez, a DINET teve a responsabilidade de elaborar o
segundo Plano Estratégico da Educação 2005/2009 (PEE II), que tinha
como objetivo redução da pobreza absoluta; assegurar a justiça e a
equidade do gênero e a luta contra a propagação do HIV/SIDA e a
mitigação do seu impacto.
Como parte integrante do PEE I e do Plano de Ação para a
Redução da Pobreza Absoluta (2001-2005), a estratégia do Ensino
Técnico-Profissional em Moçambique (2002-2011), “Mais técnicos,
novas profissões, melhor qualidade”, identifica as opções e ações
prioritárias a serem implementadas visando ajustar o ETP aos desafios
do desenvolvimento econômico de Moçambique.
Assim, esse documento destaca que o ETP tem como missão
garantir aos cidadãos o acesso a uma formação científico-técnica
altamente qualificada, para responder às necessidades do
desenvolvimento econômico e social. Diz também que esse ensino
técnico tem como visão a transformação num subsistema mais
flexível, articulado, inovador, dinâmico, autônomo e sustentável,
reconhecido, valorizado, comparticipado por todos os parceiros
sociais, com capacidade de adaptação e com respostas às mudanças,
acessível a todos, com oferta de programas de formação flexíveis, que
promovam competências profissionais, relevantes, que preparem os
indivíduos para o mundo de mercado e para a vida, que contribua para
o Desenvolvimento dos Recursos Humanos de Moçambique e com um
sistema de Avaliação e Certificação. E segundo Pinto (2010), os

186
objetivos estratégicos vão ao encontro aos do Plano Estratégico da
Educação 2012-2016 (PEE III).
Neste caso, realiza-se o segundo seminário Nacional do Ensino
Técnico-Profissional, isto entre os dias 24 a 28 de maio de 2004, o
mesmo tinha como objetivo de avançar na implementação da
Estratégia do ETP (2002-2011). E que se pretendia lançar um debate
estratégico sobre a reforma do Ensino Técnico-Profissional e conhecer
possíveis opções para essa mesma reforma. Daqui resultou a discussão
de uma nova visão mais abrangente do ETP e Formação Profissional,
de uma busca de consenso sobre a reforma do sistema de ETP entre as
entidades envolvidas (PINTO, 2010). Posteriormente, iremos discutir
sobre esta reforma do ETP.
De acordo com a Política Nacional de Educação e Estratégias de
Implementação, promulgada pelo Conselho de Ministros da República
de Moçambique (Resolução nº 8/95, de 22 de agosto de 1995), o Ensino
Técnico tem a responsabilidade de formar os operários e técnicos
necessários devidamente qualificados, para responder às
necessidades de mão de obra qualificada para os diferentes setores
econômicos e sociais do país.
Nessa ordem de ideia e perante a Resolução nº 8/95, de 22 de
agosto de 1995, esse ensino encontra-se subdividido em três níveis:
Ensino Técnico Elementar (ETE), Ensino Técnico Básico (ETB) e o
Ensino Técnico Médio (ETM). O ETE faz-se após a conclusão do 1º Grau
do Ensino Primário Geral ou para adultos, inclui disciplinas de formação
geral e técnica, conferindo um nível escolar correspondente ao Ensino
Primário Geral ou para adultos.
Ao contrário dos antigos Planos (PEE I e PEE II), o Plano
Estratégico da Educação 2012-2016 subdivide-se em dois níveis: o nível
básico e nível médio, cada um com duração de três anos. Assim está
expresso no PEE (2012-2016):

O Ensino Técnico-Profissional estrutura-se neste momento em dois níveis: o nível


básico e o nível médio, ambos com a duração de três anos, e é organizado por
ramos: comercial, industrial e agrícola. O critério mínimo de ingresso é a
conclusão da 7ª série para o nível básico, e, para o nível médio, a conclusão da 10a
série do Ensino Secundário Geral ou do 3o ano do nível básico do Ensino Técnico-
Profissional. Este nível de educação não é gratuito, havendo cobrança de
propinas. O Ensino Técnico-Profissional está numa fase de reforma, com enfoque
na introdução de um sistema educativo modular, seja ao nível básico, seja ao

187
nível médio, que vai resultar em diferentes tipos de certificados (MINISTÉRIO DE
EDUCAÇÃO, 2012, p. 13).

Salienta-se que o ensino técnico é caracterizado e diferenciado


dos outros subsistemas de ensino pela sua função social de:

a) Assegurar a formação integral dos jovens e trabalhadores preparando-os para


o exercício de uma profissão numa especialidade, mas sempre dentro das
exigências qualitativas e quantitativas da planificação e do desenvolvimento da
economia e da sociedade; b) Pela ênfase na formação profissional que consiste
em dar aos jovens e trabalhadores uma especialidade e desenvolvendo neles
capacidades e hábitos profissionais; c) Associar o conhecimento técnico às
experiências práticas e à busca de soluções técnicas e tecnológicas; d) Vincular
as escolas técnicas e institutos com os sectores produtivos; e) Pelo carácter
terminal da formação (a formação geral e básica confina-se às exigências da
educação técnico-profissional, sem perderem a sua estrutura e solidez
científicas; os graduados de cada nível incorporam-se prioritariamente nos
serviços e na produção; o prosseguimento dos estudos sem abandonar o
exercício da profissão) (AFRIMAP, 2012, p. 117).

O ingresso no Ensino Técnico Básico (ETB) tem como requisito a


conclusão do Ensino Primário Geral ou para adultos ou do Ensino
Elementar Técnico-Profissional, com a duração de dois a quatro anos,
conferindo um nível escolar correspondente ao 2º nível do Subsistema
de Educação Geral e permitindo o ingresso ao 3º nível de qualquer dos
subsistemas do Sistema Nacional de Educação e Médio (ETM) com as
especializações do comércio, indústria e agricultura, saúde e pesca.
Esse subsistema tem como população alvo: os jovens em idade escolar
e pré-laboral. Na mesma ordem de ideia, o Plano Estratégico da
Educação 2012/2016 vem salientar o seguinte:

A Educação Profissional inclui o ETP, sob tutela do MINED e liderado pela DINET,
e abrange os níveis básico (após a 7a classe) e médio (após a 10a classe). Os
provedores deste tipo de ensino são públicos e privados. A Educação Profissional
inclui também a Formação Profissional de curta duração, em primeiro lugar sob
tutela do Ministério de Trabalho e liderada pelo INEFP. Os seus provedores são
públicos e privados (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 2012, p. 90).

Por sua vez, o ensino técnico médio faz-se após a conclusão do 2º


nível dos subsistemas de Educação Geral, de Educação de Adultos ou
de Educação Técnico-Profissional, com duração de dois a quatro anos,
concedendo um nível escolar equivalente ao 3º nível do subsistema de

188
educação Geral e oportunizando o ingresso no Subsistema de
Educação Superior ou no nível Superior do Subsistema de Formação
de Professores (AFRIMAP, 2012).
Contudo, há que ter em conta que a educação profissional
ancorada em competências e de qualidade implica uma série de
mudanças e de investimentos radicais em relação à situação atual
deste subsistema de educação. Essa reforma requer grandes
investimentos, tendo em conta que a situação orçamental do país é de
dependência externa, pelo menos em 50% do seu orçamento total.
Esse fator alia-se ao fato de o Governo não disponibilizar de meios para
investir num tipo de educação adequada para o seu povo. Ficando a
critério dos investidores externos o poder de imposição.
Na tentativa de dar resposta aos desafios da competitividade de
Moçambique, tomando também em consideração o processo de
integração regional na Comunidade para o Desenvolvimento da África
Austral (SADC), o governo, por meio do Ministério da Educação,
iniciou, em 2006, a Reforma da Educação Profissional (REP). O objetivo
dessa reforma é de instruir cidadãos profissionalmente competentes,
de modo a desenvolver uma economia competitiva, isto é, “criar uma
Educação profissional orientada pela demanda do mercado de
trabalho, através de uma formação baseada em padrões de
competência e cursos modulares, flexíveis, providenciados por
instituições de formação acreditadas para o efeito” (MCTESTP, 2018,
p. 6).
E uma das caracteristicas da REP é:

a necessidade de uma ampla participação dos parceiros sociais,


designadamente: dos empregadores, dos sindicatos e outras organizações da
sociedade civil, na definição e implementação das políticas para a Educação
Profissional, através do seu envolvimento ativo como membros dos órgãos
reguladores, bem como ao nível da própria provisão de serviços de formação
(MCTESTP, 2018, p. 6).
.
Nesta mesma perspectiva, a REP é uma tentativa de dar resposta
aos desafios da competitividade de Moçambique, tomando também
em consideração o processo de integração regional na SADC. Brouwer
e Brito (2010) salientam o seguinte:

Num mundo cada vez mais global e com o país melhor integrado na Região
Austral, os graduados da educação profissional moçambicanos de Mavago têm

189
de competir, em pé de igualdade, pelos postos de trabalho não só com os
graduados da Cidade de Maputo, mas também com os graduados do Botswana,
África do Sul, China ou de qualquer outro país do mundo. Só assim poderemos
desenvolver o país de forma sustentável e quebrar, de uma vez por todas, o ciclo
da pobreza através da criação de emprego, incremento da atividade produtiva e
inovação, bem como da criação da riqueza para o bem-estar dos moçambicanos
(BROUWER; BRITO, 2010, p. 12).

Nove anos depois da introdução da REP, um dos avanços foi à


criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e
Técnico Profissional (MCTESTP), ou seja, tutela do Ensino Técnico-
Profissional passou do extinto Ministério da Educação para o
MCTESTP, isso em 2015.

Esta mudança da tutela não foi uma mera transferência de tutela institucional,
mas tem como pressupostos dois aspectos interligados: integrar o ETP com as
outras áreas tecnológicas e científicas geridas pelo mesmo Ministério e criar
melhores condições para responder aos crescentes desafios da demanda de
competências profissionais requeridas pelo mercado de trabalho, em expansão
e mais aberto à internacionalização. Por razões acima referidas, foi necessário
elaborar um novo Plano Estratégico de referência para o período de 2018 a 2024
(MCTESTP, 2018, p. 4-5).

O Plano Estratégico do Ensino Técnico Profissional (PEETP) 2012-


2016 que era parte integrante do Plano Estratégico da Educação (PEE)
2012-2016 foi substituído por um novo Plano Estratégico do Ensino
Técnico Profissional 2018-2024 que tem como objetivo principal, expandir
o acesso e incrementar a qualidade do ETP visando à empregabilidade dos
graduados e contribuir para o desenvolvimento do país.
E consequentemente no ano seguinte foi criado e aprovado a lei
o
n 6/2016, de 16 de Junho, Lei da Educação Profissional, que estabelece
o quadro de organização, estruturação, funcionamento e
financiamento da Educação Profissional.
Segundo a lei no 6/2016, de 16 de junho um dos objetivos do
sistema de educação profissional é a capacidade de desenvolver força
de trabalho, isto é,

introdução de métodos, currículo e modalidades de formação que respondem às


necessidades do mercado de trabalho; aumento da produtividade e
competividade das empresas; promoção do auto emprego; [...] promover a
participação dos formandos em estágios curriculares no local de trabalho;
estimular a participação dos trabalhadores em ações de formação profissional;

190
incentivar aos empregadores a: proporcionar aos trabalhadores a oportunidade
de adquirirem novas competências; fornecer oportunidade aos recém-formados
para adquirem experiência laboral; [...] garantir a qualidade e relevância da
educação profissional no mercado de trabalho (MOÇAMBIQUE, 2016, p. 2).

Nessa perspectiva, ensino técnico-profissional tem a


responsabilidade ou desafios de formar técnicos necessários,
devidamente qualificados, para responder às necessidades e desafios
econômicos e sociais do país. O mesmo desafio é substanciado pelo
governo de Moçambique.

Programa Quinquenal (PQG) 2015-2019 do governo moçambicano, que elegeu o


Desenvolvimento de Capital Humano e Social como uma das suas Prioridades
para o presente mandato. O objetivo estratégico, deste pilar, estabelece a
necessidade de Promover um Sistema Educativo inclusivo, eficaz e eficiente que
garanta a aquisição das competências requeridas ao nível de conhecimentos,
habilidades, gestão e atitudes que respondam às necessidades de
desenvolvimento humano trabalho (MCTESTP, 2018, p. 4, grifo nosso).

Apesar de alguns recuos em determinados aspectos, podemos


inferir que o ETP tem evoluído bastante nestes últimos anos, pois,
atualmente (2019) é constituído por uma rede de 220 instituições,
contra 171 do ano 2017. E houve um progresso considerável em termos

191
do número de estudantes, dos 42165 que existiam em 2015, em 2017
existiam em 85313 estudantes efetivos, como ilustra a tabela acima.
Nessa mesma senda, é de referir que no campo contratação,
formação e capacitação de professores houve melhorias, ou seja, em
2013 existiam 152 professores, e atualmente o ensino ETP possui mais
de 5493 professores, “as instituições públicas têm o maior número de
docentes perfazendo cerca de 52,7% do total dos docentes no
subsistema do ETP” (MCTESTP, 2018, p. 8).

À GUISA DE CONCLUSÃO

A partir do que vimos tratando até o momento podemos inferir


que o ensino técnico-profissional em Moçambique desempenha um
papel preponderante, isto quer em termos socioeconômicos, quer em
termos históricos e sendo também muito relevante na promoção
social do trabalho. Os cursos profissionais tendem a corresponder à
opção capaz de minimizar as críticas vindas do Ensino Geral, no que diz
respeito o campo da empregabilidade.
Mas o país deve ter em conta que as aplicações desse
conhecimento na vida prática do estudante do ensino técnico-
profissional só serão possíveis se existir melhores condições de
trabalho, nomeadamente: um ensino capaz de conciliar a prática com
toria - não simplesmente no foco prático do ensino - e a sua conexão
ao mundo do trabalho; continuar apostar no melhoramento de
infraestruturas e a existência de um quadro de pessoal docente
qualificado, pois, há necessidade dos professores a terem tomada de
consciência dos princípios psicopedagógicos que estão subjacentes à
organização e ao funcionamento da estrutura curricular do ensino que
estão enseridos.
Entretanto, deve-se evitar excesso na especialização do Ensino
Técnico-Profissional, isto sob risco de o país estar a formar, como diz
Azevedo (2007) “automáticos programados” e não jovens cidadãos
construtores do seu futuro, uma realidade em aberto ao longo da vida.
Apesar das mesmas escolas do ensino técnico possuírem um percurso
próprio e uma relativa autonomia que lhes permite construírem uma
cultura própria.
Assim sendo, persistência de ensino técnico-profissional
que o governo moçambicano tem pregando, parece uma medida

192
política (empregabilidade) do que responder ao insucesso
escolar. Pois, atualmente, o governo moçambicano está
preocupado com a escassez de mão de obra especializada para
satisfazer a demanda dos grandes projetos envolvidos na
exploração de recursos minerais, sobretudo gás natural e carvão
mineral na região Norte do país. Em outras palavras, podemos
dizer que a persistência na formação técnico-profissional é vista
como uma saída para colmatar déficit da empregabilidade.
Nesse novo contexto do ensino técnico-profissional é preciso
com muita urgência revitalizar para que transforme no ensino credível,
mas isso passa necessariamente pela capacitação dos professores e
dos gestores. Como diz Brouwer e Brito (2010), é necessário que o
ensino técnico-profissional recupere o prestígio e a credibilidade, de
forma que a sociedade veja, nesta formação, uma alternativa viável ao
Ensino Geral.

REFERÊNCIAS

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195
196
A TEORIA QUEER E A SALA DE AULA: APRENDER COM O DIFERENTE

Celio Silva Meira1


Celeste Dias Amorim2

INTRODUÇÃO

A sociedade moderna, marcada como nos aponta Santos (1997)


por uma fragmentação cultural, política e identitária que leva a um
multiculturalismo, busca uma homogeneidade social, uma linearidade
do pensamento ocidental que tenta impor a cada indivíduo, a cada
grupo social, a cada cultura os seus padrões. Entretanto, para romper
este processo precisamos perceber “as conexões existentes entre os
múltiplos elementos que formam um real social [...]. [...], superando-
as pela noção de multiplicidade, dando abertura para a complexidade,
para tecer junto” (ALMEIDA, CESTARI 2015, p. 3832).
Neste sentido, entendemos que a sala de aula é um campo
favorável para tecer as dicotomias modernas, pincipalmente para
aprendermos com a diferença, ou seja, a ver o diferente, não como
desigual, mas como riqueza de viver na diversidade, pois “faz-se
necessário o reconhecimento de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades” (HAAS, 2017, p. 28), Assim devemos
“compreender a individualidade como diferenciação e constituição de
subjetividades, ou seja, como modos de ser do sujeito” (ALMEIDA,
CESTARI 2015, p. 3832). E uma das ferramentas para alcançar na sala de
aula esta discussão é a Teoria Queer.
As raízes históricas da Teoria Queer surgem nos idos de 1960,
especialmente nos Estados Unidos, fruto do movimento da chamada
contracultura, baseado na contestação social e utilizando novos meios

1 Doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela Universidade


Católica do Salvador (UCSal). Membro dos Grupos de Pesquisa DSN/UCSal e NUCUS-
UFBA/UAB. Atualmente pesquisa Gêneros, Sexualidades e Educação.
2 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PRODEMA/UESC. Membro do

Grupo de Pesquisa CIPED/UESB. Professora da Faculdade Pitágoras, Unidade Vitória


da Conquista

197
de comunicação em massa, com um espírito mais libertário, criticando
a cultura dominante e propondo uma cultura alternativa ou cultura
marginal (LOURO, 2001).
No Brasil, uma das primeiras produções acadêmicas a discutir
sobre o queer foi um artigo “Teoria Queer: uma política pós-identitária
para a educação”, publicado na Revista Estudos Feministas, de Guacira
Lopes Louro, no ano de 2001. Neste, a autora nos convoca a refletir
que a sexualidade ao longo dos tempos tem tomado espaço em
diversas áreas do conhecimento, “desde então, ela vem sendo
descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada,
normatizada, a partir das mais diversas perspectivas” (LOURO, 2001,
p. 541-553). Na contemporaneidade, ela continua sendo algo que ainda
incomoda, perturba e regula/normatiza a vida de muita gente dentro
do campo social.
Partindo do pressuposto, é que este texto objetiva compreender,
provocar e discutir acerca da Teoria Queer e como esta poderá se fazer
presente na nossa prática pedagógica de sala de aula, propondo uma
aprendizagem interconectada com o diferente. Por tratar-se de uma
abordagem eminentemente teórica, não houve a necessidade de um
campo empírico. A metodologia consistiu em fontes bibliográficas
acerca do tema em estudo.

MAS, AFINAL, O QUE É MESMO A TEORIA QUEER?

Quando rastreamos as pistas de origem da expressão “queer”,


algumas experimentações semânticas foram testadas por Thürler
(2019). Em inglês, o termo deriva do adjetivo germânico quer que
significa transversal, diagonal, oblíquo e que, por sua vez, é
proveniente do verbo latino torqueo (torcer, dobrar). Queer ainda
pode ser considerado o contrário de straight (direito, reto) e – desde o
momento em que, em um regime de heterossexualidade compulsória,
a heterossexualidade está tradicionalmente associada à retidão moral
– heterossexual. Em italiano ou castelhano, podemos traduzir o queer
como estranho, torcido, raro, bizarro, mas também a insultos, como
marica, maricón, como ocorreu em língua inglesa, na qual, a partir do
século XVIII, esse termo passou a ser usado como epíteto depreciativo
contra as minorias sexuais. Mas desde os anos 1990, primeiro nos
Estados Unidos e, depois no resto do mundo, é “orgulhosamente

198
reivindicada como marca de transgressão por pessoas que antes
chamavam a si mesmas de lésbicas ou gays” (SPARGO, 2017, p. 9).
Um insulto, que equivale no nosso cotidiano brasileiro a:
veadinho, bicha, sapatão, afeminados, travestis, boiola, mulherzinha,
mona, baitola, dentre outros adjetivos de baixo calão, usados para
ofender as pessoas que têm sua orientação sexual diferente da que
está posta socialmente, que é a heterossexualidade.

Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade


compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normatização e a
estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual
dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser
assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva
e perturbadora (LOURO, 2001, p. 541-553).

A teoria tem por objetivo principal representar a diferença que ao


longo dos anos, foi alvo de intolerância e preconceito, portanto, sua
forma de ação é ser transgressora e perturbadora da ordem
socialmente imposta. Ordem esta que é marcada pela homofobia que
se desdobra nas mais variadas formas de violência contra minorias
sexuais, como também, pelo reflexo da falta do exercício de direitos
individuais, do direito a diferença, a diversidade.

Tenemos el derecho a ser iguales cuando la diferencia nos inferioriza, tenemos


el derecho a ser diferentes, cuando la igualdad nos descaracteriza. Estas son las
reglas, probablemente, fundamentales para entender el momento que vivimos
y para ver que esta nueva forma de identidad nacional tiene que convivir con
formas de identidades locales muy fuertes. (SANTOS, 2007, p. 34).3

Segundo Haas (2017, p. 16) “há uma diferença entre direito a


diferença e direito a diversidade; onde a diferença exclui, afasta, e
apenas ensina a tolerar o outro; já a diversidade respeita, convive e
agrega valores”.
Pensando no direito à diversidade e sobretudo, nas
transformações da consciência humana, dos valores e do

3 Temos odireito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito de ser
diferente, quando a igualdade nos descaracteriza. Estas regras são, provavelmente,
fundamentais para entender o momento em que vivemos e ver que essa nova forma
de identidade nacional tem de coexistir com formas de identidades locais mais fortes
(SANTOS, 2007, p. 34, tradução nossa).

199
comportamento da sociedade é que entre as décadas de 1960 e 1980
surge a Teoria Queer, que é desenvolvida por uma série de
pesquisadores e ativistas bastante diversificados, principalmente nos
Estados Unidos, quando surge uma das epidemias mais temidas do
século XX que foi a AIDS, o que gerou um dos maiores pânicos sexuais
de todos os tempos (MISKOLCI, 2016) e associando o tal vírus como se
fosse uma “peste gay”, ou seja, causada por homossexuais. Essa ideia
equivocada acabou levando a um aumento do preconceito contra
essas minorias sexuais, por acharem que a epidemia da AIDS seria
transmitida por estes. Onde para muitos, seria um castigo divino.

Então, a aids foi um choque, e da forma como foi compreendida tornou-se uma
resposta conservadora à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela
então conhecida ‘geração do desbunde’. No mundo todo, essa reação teve
consequências políticas jamais superadas e também na forma como as pessoas
aprenderam sobre si próprias, sobre a sexualidade, e na maneira como vivenciam
seus afetos e suas vidas sexuais até hoje (MISKOLCI, 2016, p. 23).

É neste contexto sócio histórico caótico da AIDS que surge a


Teoria Queer, como uma forma de resistência mais astuta e radical
para atacar o poder e exigir direitos que foram historicamente
negados e ir de encontro ao socialmente posto como normal. É daí que
surge o que Miskolci (2016) denomina de “nação queer”, a nação
anormal, a nação esquisita, a nação bicha. Uma vez que até então, o
movimento gay e também o lésbico existente tinha uma concepção
um tanto quanto conservadora e normatizadora em querer o tempo
todo mostrar que homossexuais eram pessoas normais e respeitáveis,
até mesmo porque a sociedade incentivava e ainda incentiva essa
forma “comportada” de ser gay ou lésbica, que no fundo é uma forma
reprimida e conformista de lidar com o desejo.

Faz-se necessário romper com essa ‘necessária’ homogeneidade social,


reconhecendo a diversidade e a individualidade dos indivíduos, [...]. O ser
humano precisa resgatar seu próprio ser, sua individualidade e deixar de buscar
estereótipos que o fazem se enquadrar em perfis prontos que apresentam a
sociedade o quão desenvolvido se é. Deve-se dar um fim ao padrão
universalizador e uniformizante do comportamento, em que deve-se ser igual
para ser aceito e respeitado na sociedade ocidental do consumo. Os seres
humanos são diferentes e essa é a maior beleza da existência! A diferença e a
diversidade entre as pessoas (HAAS, 2017, p. 17, grifo nosso).

200
Com o movimento queer, essa ideia começa a ser questionada e
desconstruída, com o seguinte pensamento: mesmo os respeitados e
supostamente admirados serão em um dado momento histórico
atacados e transformados em abjetos. Ou seja, o preconceito é para
todos, é democratizado, independentemente de você ser ou não uma
pessoa “discreta” com formação acadêmica e com poder aquisitivo.
Miskolci (2016) ainda nos chama atenção dizendo que a Teoria
Queer não é uma defesa da homossexualidade e sim a recusa de
violentos valores morais que instituem e fazem valer a linha da
abjeção, uma fronteira extremamente enrijecida, calcada numa divisão
entre os relegados à humilhação, os socialmente aceitos e ao desprezo
coletivo. Para Batler (2003), o queer é uma política de gênero que tem
como objetivo contestar a norma social imposta por uma sociedade
estruturada na sua maioria por indivíduos heteros, brancos, e de classe
média e média alta. É um chamado para que todos os excluídos,
marginalizados façam parte da luta e se sintam representados.

A nova política de gênero, que também pode ser chamada de queer, se


materializa no questionamento das demandas feitas a partir dos sujeitos; em
outras palavras, chama atenção para as normas que os criam. Essa mudança de
eixo na luta política se fundamenta em duas concepções distintas com relação à
dinâmica das relações de poder: uma que as compreende, e outra que o concebe
como mecanismos sociais disciplinadores. Na perspectiva do poder opressor, os
sujeitos lutam contra o poder por liberdade, enquanto na do poder disciplinar, a
luta é por desconstruir as normas e as convenções culturais que nos constituem
como sujeitos (MISKOLCI, 2016, p. 27).

A teoria em análise lida com o gênero como algo cultural, algo que
é construído socialmente, para esta, o masculino e o feminino estão
em homens e mulheres, nos dois. Cada indivíduo tem gestuais, formas
de fazer e pensar que a sociedade qualifica como masculinos ou
femininos independentemente do nosso sexo biológico. Nesta
concepção, gênero está intrinsecamente relacionado ás normas e
convenções construídas socialmente. Tendo estas, uma variação de
acordo com o tempo e de sociedade para sociedade. Ou seja, a nossa
postura enquanto homens e mulheres é um constructo social. “O
gênero é performativo porque é resultante de um regime que regula
as diferenças do mesmo. Neste regime os gêneros se dividem e se
hierarquizam de forma coercitiva” (BUTLER, 2003, p. 64).

201
Um olhar queer sobre a cultura posta socialmente, nos instiga,
nos convida a uma perspectiva mais crítica em relação às normas e
convenções de gênero e sexualidade estabelecidas. Portanto, Pierre
Bourdieu nos diz que:

O rompimento com a invisibilidade se dá com uma superação do gueto, e a


constituição de grupos organizados de homossexuais que visam questionar sua
posição na sociedade, tentando redefinir a categorização social do homossexual:
lutando por impor o sistema de classificação mais favorável a suas propriedades
ou ainda para dar ao sistema de classificação dominante o conteúdo melhor para
valorizar o que ele tem e o que ele é (BOURDIEU, 1979, p. 67).

Na superação da invisibilidade Bourdier (1979) confirma a luta que


os homossexuais diante da situação de minoria e marginais para se
tornarem sujeitos ativos, detentores de voz e conseguirem alcançar
liberdade, igualdade de direitos e visto em sua plenitude de ser
humano, que valoriza o foram, são e serão nessa sociedade
preconceituosa e normatizante.
A Teoria Queer para Miranda e Garcia (2012) representa tudo que
envolve as minorias sexuais em suas especificidades e pluralidades e
colocar em prática uma cultura múltipla e especifica de grupos como
os gays, as lésbicas, os bissexuais, os travestis, os transexuais, as drags.
Vale ressaltar, que é a cultura de uma minoria, porém maioria em
riqueza e diversidade que almeja voz, lugar, inclusão, nessa sociedade
heteronormativa e centralizadora através de distorção, transgressão,
estranheza e ruptura. Furlani (2009) em se tratando do queer, esta
rejeita a posição de um essencialismo sobre a identidade sexual; ela
admite os predicados normativos e homofóbicos construídos
historicamente sobre o termo, fazendo dessa inscrição negativa uma
humorada paródica. Neste caso, fazendo uso negativo e pejorativo do
termo queer, esse grupo marca uma resistência e uma proposital ironia
à heteronormatividade.

A SALA DE AULA E O QUEER: COMO APRENDER COM O DIFERENTE

Podemos começar essa discussão com uma pergunta elementar:


como que um movimento que traz no seu discurso uma apologia ao
estranho, ao esquisito a tudo aquilo que está a quem dos padrões
heteronormativos, pode se articular com a educação? Uma vez que

202
esta é tradicionalmente um campo que prima pela normalidade, pelo
ajustamento social de seres humanos?
A escola como ela se encontra estruturada desde o seu
surgimento tem o papel de “enquadrar” todo aquele ou aquela que
estiver fora das normas sociais vigentes, ela existe enquanto um
campo disciplinador, onde ideias são inculcadas nas cabeças dos
futuros cidadãos que gerenciarão a nossa sociedade. Afinal, a escola
serve para formar cidadãos de bem, nunca para a transgressão ou para
a contestação.
Para Bourdieu (1998) a escola não apenas transmite e constrói
conhecimentos, mas, também, reproduz padrões sociais, deturpando
valores e “fabricando sujeitos”. A escola foi feita para o binarismo, a
começar pela sua arquitetura, banheiros para meninos e banheiros
para meninas, em alguns casos mais remotos, filas de meninos e filas
de meninas. Nunca nos seus espaços nem físicos e nem pedagógicos
existem lugar para um outro ou para uma outra que não se encaixe em
uma das situações descritas acima.
São questões inquietantes, que muitas das vezes não temos uma
resposta, Louro (2001) nos dá algumas pistas de possíveis e prováveis
respostas:

Para ensaiar respostas a tais questões é preciso ter em mente não apenas o alvo
mais imediato e direto da teoria queer – o regime de poder-saber que, assentado
na oposição heterossexualidade/homossexualidade, dar sentido às sociedades
contemporâneas - mas também considerar as estratégias, os procedimentos e
as atitudes nela implicados. A teoria queer permite pensar a ambiguidade, a
multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas, além disso,
também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a
educação (LOURO, 2001, p. 541-553).

Buscando caminhos para todas essas indagações é que Furlani


(2009) vê possibilidades de instigar discursões acerca de posturas e
encaminhamentos pedagógicos, tendo o referencial queer como um
ponto de partida que seja capaz de tornar o ato pedagógico da sala de
aula infindavelmente provocativo e instigante. Em que, a teoria queer
seja para “[...] educadores e educadoras [...] o caminho talvez seja o
de ampliar o sentido da teoria para além da conotação sexual e de
gênero e voltar-se para um jeito queer de pensar a educação, o
conhecimento, o poder e a construção das identidades” (LOURO,
2004a, p. 211).

203
Hoje, as representações que as históricas “minorias” assumem no
contexto social são resultados tanto do discurso dominante, quanto
das próprias representações oriundas do interior dos seus
movimentos que, pela visibilidade, gozam ora da aceitação, ora do
recrudescimento da rejeição social de setores tradicionais (LOURO,
2001).
Neste caso, a Teoria Queer pode ser compreendia como “uma
política de conhecimento cultural”, pois pode “provocar outro modo
de conhecer e de pensar” (LOURO, 2004b, p. 60). Para Jimena Furlani:

A epistemologia queer pode ser transferida para qualquer categoria de análise


sociocultural, uma vez que sua premissa básica (rejeitar qualquer forma de
normatividade) se presta tanto às discursões sexuais (que a originaram), como
também às questões racial, étnica, colonial, de gênero, geracional. Trata-se de
uma atitude intelectual, investigativa e crítica, de recusa a um sistema de
significação normativa (FURLANI, 1999, p. 314).

Ao considerar o espaço escolar como local das diferenças, o que


essa teoria ofereceria às pedagogias que desejam práticas
emancipatórias? Parece que o caráter polêmico, contestador e
inconformado das teorias críticas emancipatórias encontra nas
perturbadoras e irônicas proposituras queer uma convergência
coerente. Porém, cabe outra indagação: até que ponto os nossos
professores estão preparados para lidar com o diferente no cotidiano
escolar das salas de aula? E propor uma prática inovadora que venha a
convergir todos? Uma vez, que nossos professores foram “formados”
para lidar com o “normal”. Muitos ao depararem com situações de
homofobia em sala de aula fingem que não estão vendo e em muitos
casos estimulam mesmo que inconscientemente, por meio dos seus
métodos de ensino muitas vezes arcaicos e binários, isso quando não
soltam piadinhas acerca da orientação sexual de alunos e alunas que
pensam diferentes acerca da sexualidade que lhes foram impostas por
uma sociedade machista e homofóbica.
Em relação a tal questão, a Teoria Queer vem sinalizando para o
rompimento do modelo normal heterossexual de análise e para a
legitimação das identidades sexuais e de gênero. Para Louro (2001, p.
549) “[...] segundo os teóricos e as teóricas queer, é necessário
empreender uma mudança epistemológica que efetivamente rompa

204
com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a
dominação e a exclusão”.
Parece que a inclusão curricular das representações de gays,
lésbicas e outras categorias, pode ser vista como uma possível
estratégia de uma ação contra a homofobia nos ambientes escolares,
da mesma forma que pode ser visto como uma estratégia de
subversão.

Esta visibilidade é fundamental para subverter a dicotomia sexo/gênero


heteronormativa, mostrando uma infinidade de estranhos arranjos de
identidades e de estilos, o que possibilita uma desestabilização do entendimento
de as configurações de gênero e do desejo serem únicas ou fixas, até mesmo no
contexto das identidades marginais. Neste sentido, o ‘modo queer de pensar’
tanto abalaria questões de ordem conceitual e reflexivas envolvidas na produção
dos discursos que definem essas representações acerca das identidades, como
facilitaria seu processo de desconstrução. Talvez, a partir do ‘olhar queer’,
pudéssemos perguntar: Como cada representação (do normal e do anormal) é
criada e/ou recusada? Como cada representação marca as posições dos sujeitos
no âmbito escolar e social? Como seria possível subverter essas posições de
sujeito? Seria o caso de redefinir sua representação? (FURLANI, 2009, p. 316).

Com isso, uma postura pedagógica baseada numa atitude queer


é rigorosamente contra qualquer forma de normatização da
sexualidade. A começar pelos procedimentos didático-metodológicos,
estes, buscam assentar em intervenções críticas ou subversivas das
relações opressivas no âmbito do espaço escolar, entre a sexualidade
heteronormativa e os regimes de gêneros, na tentativa de demonstrar
como a produção da normalidade é intencional, histórica, política e,
sendo assim, instável, contingencial e mutável.
Diante o exposto, ao propor possibilidades políticas, conceituais
e didáticas em sala de aula na abordagem com a Teoria Queer,
procuramos ensaiar como a nossa prática pedagógica poder ser
diferenciadas das conservadoras concepções ainda existentes em
muitas escolas das mais variadas redes. Entretanto, como alerta Louro.

A teoria queer, que serve de base, de referência é desconcertante e provocativa.


Tal como os sujeitos de que fala, esta teoria é, ao mesmo tempo, perturbadora,
estranha e fascinante. Por tudo isso, ela parece arriscada. E talvez seja mesmo...
mas, seguramente, ela também faz pensar (LOURO, 2001, p. 552).

205
Ainda tomando como base o pensamento de Louro (1999, p. 136),
até “[...] mesmo o texto mais radical e contestador pode ser
‘domesticado’ e pode perder sua força dependendo da forma como é
tratado”. Mais do que isso, talvez devamos pensar como os
significados daquilo que vemos, lemos e ouvimos a partir dos recursos
didáticos escolares “tocam” e “marcam” os sujeitos da educação.
Para Furlani (2009) os métodos e os artefatos escolares, as
linguagens envolvidas nos processos de comunicação, as atitudes
pessoais diante do que é dito e do que não é dito na escola, tudo isso
nos constitui: meninas e meninos, mulheres e homens, negros e
brancos, indígenas, gays, heterossexuais, lésbicas etc. essa construção
das identidades culturais é um processo permanente, articulado por
inúmeras instancias sociais, dentre elas, está à escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe a nós educadores um novo olhar sobre esses coletivos que


deparamos no nosso cotidiano escolar. Perceber essas minorias e
trabalhar para que estes sofram menos preconceito especialmente no
âmbito da educação formal.
O silencio e a invisibilidade em que se encontram muitas pessoas
não será rompido apenas com a melhora de suas condições
econômicas, mas apenas quando nós, intelectuais, repensarmos nosso
papel quando criamos conhecimento, de modo a não reproduzirmos
formas de pensar que relegam boa parte da humanidade ao
inarticulado ou “sem importância”.
Retomando o pensamento de Miskolci (2016), quando nos
convida a pensar que ao invés de ensinar a reproduzir a experiência da
abjeção, o processo de aprendizagem pode ser de ressignificação do
estranho, do anormal como veículo de mudança social e abertura para
o futuro. E a escola por mais que ela ainda seja um ambiente inóspito
para muitos, é nela que ainda reside a esperança de um mundo onde
todos possam exercer plenamente suas orientações sem a presença
de uma sociedade heteronormativa ditadora e preconceituosa.
Exemplo disto são alguns segmentos evangélicos que na linha de
“fabricação de sujeitos” disciplinados desempenham um papel social
de barreira o que para eles trazem uma representação da antissocial,
promovendo no ambiente escolar acrítico, quando é um empecilho

206
para que ocorra uma discussão mais livre em sala de aula, desprovida
de preconceitos e ideias heteronormativas na sociedade como um
todo. Este discurso preconcebido pode ser percebido pelo veto da
bancada evangélica do Congresso Nacional sobre a cartilha que trata
da orientação sexual nas escolas, com indicativo de que se tratava de
um “kit gay” em que as escolas iriam ensinar ao seu alunado como ser
“veado”, incentivar a prática do sexo livre, promovendo o
despudoramento e a degeneração social. O que é lamentável.
Práticas pedagógicas que não consideram o afeto, a
representatividade, o corpo e a experiência são potencializadoras das
exclusões de minorias políticas, sobretudo em relação ao cruzamento
das identidades de gênero, classe, raciais e sexuais. Precisamos pensar
numa pedagogia embasada na práxis libertadora que venha
transgredir normatizações, subverter as opressões e produzir
conhecimentos e sujeitos emancipados. Precisamos sair da zona de
conforto, permitindo outras visões, outras experiências subjetivas e
corporais.
É nesse diapasão de subversão e disputa que precisamos
reconhecer a potência política de algumas ações para enfrentar, em
especial, a nova era fascista-cisheteronormativa-machista-racista que
estamos a viver.

REFERÊNCIAS

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na individualidade e na formação humana: uma cartografia da
concepção do ciclo de formação humana do ensino fundamental. In:
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Conquista: Museu Pedagógico, 2015. ISSN: 2175-5493.
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Minuit, 1979.
BOURDIEU, P. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
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identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
FURLANI, J. Direitos humanos, direitos sexuais e pedagogia queer: o
que essas abordagens têm a dizer à Educação Sexual? In: JUNQUEIRA,

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homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
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LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
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de pós-identidade. In: UZIEL, A. P.; RIOS, L. F.; PARKER, R. G. (org.).
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em tempos de aids. Rio de Janeiro: Pallas: Programa de Gênero e
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THÜRLER, D. Sexualidade e políticas de subjetivação no campo das
artes. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências;
Superintendência de Educação a Distância, 2019. 55 p.

208
INCLUSÃO DE UMA CRIANÇA COM ENCEFALOPATIA CRÔNICA NÃO
PROGRESSIVA DA INFÂNCIA NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA EM
UMA ESCOLA DO INTERIOR DA BAHIA

Geilda Marcionílio dos Santos4


Nayara Alves de Sousa2
Juliana Barros Ferreira3

INTRODUÇÃO

A encefalopatia crônica não progressiva da infância (ECNPI) ou


paralisia cerebral (PC) é definida como um grupo de desordens, que
acometem os movimentos (BOBABTH, 1979). Ocorre, em função de
uma lesão, em uma região do córtex motor, que impede a passagem
da aferência que sai da região cerebral aos músculos (SOUZA;
FERRARETO, 1998; MARCONDES et al., 2003).
Esta é uma condição que traz interferências nas funções e
estruturas do corpo, nas atividades e participação, no ambiente
familiar, social e estudantil desta criança (OMS, 2003). O
comprometimento funcional gera impasse para que possam ter
autonomia, e assim, possam fazer uso dos espaços ofertados pela
escola (GALLO; ORSO; FIÓRIO, 2011; SILVA; MARTINEZ; SANTOS, 2012).
A lei de diretrizes e bases da educação nacional, afirma que a
inclusão escolar de alunos com deficiência em escolas regulares é um
direito garantido pela Lei n. 9.934/96 que ressalta a oferta da educação
especial enquanto dever constitucional do Estado deve ter início na
educação infantil, na idade de zero a cinco anos (BRASIL, 1996).
A inclusão é caracterizada como um desenvolvimento do trabalho
em equipe, e contribui para o aprendizado mútuo, e em conjunto

4Graduanda em Educação Física pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


através do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR).
E-mail: [email protected]
2Fisioterapeuta. Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente

Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].
3Fisioterapeuta. Mestre em Tecnologias em Saúde/EBMSP. Docente da FAINOR, FTC e

UNINASSAU. E-mail: [email protected].

209
(STAINBACK; STAINBACK, 1999). Assim, incluir o indivíduo com ECNPI
dentro do âmbito escolar, e nas atividades preconizadas pelos
componentes curriculares, faz com que exista ampliação das relações
sociais, além da melhoria social e cognitiva destas crianças
(CARVALHO, 2013).
Por esta razão, Paula e Baleotti (2011) e Carvalho (2013), ressaltam
em seus estudos, a importância da qualificação e capacitação dos
professores, com o intuito de promover a socialização, e
principalmente a presença destas crianças na sequência e finalização
de cada fase do processo escolar.
Como ressalta Freire (1996), é fundamental que o professor leve
a sério a sua formação e que busque a competência profissional para
que se sinta seguro no exercício da função. O sucesso da prática
docente está diretamente ligado à postura do professor que deve ter
o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das formas de
intervenção (SILVA, MARTINEZ, SANTOS, 2012).
Nesse sentido, objetiva-se nessa pesquisa verificar a inclusão de
alunos com encefalopatia crônica não progressiva nas aulas de
Educação Física, bem como as estratégias que vem sendo utilizadas
para a inclusão em uma escola localizada na zona rural no município de
Cândido Sales na Bahia.
Para tanto a pesquisa torna-se relevante, pois propõe trazer
contribuições importantes relacionadas à inclusão de alunos com
ECNPI nas aulas de Educação Física, a partir da prática pedagógica e
das adaptações curriculares.

A PARALISIA CEREBRAL

O termo Paralisia Cerebral (PC) foi introduzido por Freud


enquanto estudava a Síndrome de Little (BARUZZI, 2013). O termo PC
refere-se a uma desordem do movimento e da postura, persistente,
porém variável, surgida nos primeiros anos de vida pela interferência
no desenvolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC), causada por
uma desordem cerebral não progressiva (BARUZZI, 2013).
De acordo com Ferrareto e Souza (1998), a paralisia cerebral foi
um termo usado para relatar as desordens motoras, não progressivas
e sujeitas a mudanças, resultadas de uma lesão no cérebro nos
primeiros estágios de seu desenvolvimento.

210
Atualmente, numa perspectiva da Associação Brasileira de
Paralisia Cerebral (ABPC), considera-se a ECNPI ou PC, como uma lesão
de uma ou mais partes do cérebro que pode ocorrer durante a
gestação, o parto ou após o nascimento, ainda no processo de
amadurecimento do cérebro da criança (ABPC, 2001).
Na maioria das vezes é uma lesão provocada pela falta de
oxigenação das células cerebrais. Essas células por sua vez são
consideradas como um grupo de desordens do desenvolvimento
motor e da postura, causando limitações em algumas atividades e
geralmente acompanham de alterações na sensação, percepção,
cognição, comunicação e comportamento, podendo também incidir
de crises convulsivas (ABPC, 2001).
De acordo com o ponto de vista de Leitão (1983), essa deficiência
é caracterizada como um grupo de distúrbios motores ocorrentes no
período pré e peri-natal, sendo impossível defini-lo com exatidão. A
Paralisia Cerebral, como um termo bastante confuso, amplo, e não
específico, resumindo-o como conjunto de distúrbios da função
motora, de início na primeira infância, caracterizados por paralisia,
espasticidade e/ou movimentos involuntários dos membros,
raramente hipotonia e ataxia, frequentemente acompanhados de
déficit mental e epilepsia (LEITÃO, 1983).
Rosenbaum et al. (2007) destaca que na paralisia cerebral o
processo cognitivo global e específico pode ser afetado, tanto por
distúrbios primários, bem como em consequência secundária a
limitações neuromotoras restringindo assim as experiências da criança
nos contextos de referência e o processo de aprendizagem.
Nessa mesma perspectiva Bottcher, Flachs e Uldall (2010)
corroboram que uma pessoa com quadro clínico de PC, as alterações
cerebrais presentes representam uma restrição biológica que
predispõem consequência na trajetória típica de desenvolvimento
cognitivo, acarretando muitas vezes, em deficiência intelectual ou
problemas cognitivos específicos.
Segundo Gouveia (2011), a criança com essa deficiência poderá
apresentar um atraso intelectual em vista das lesões cerebrais
sofridas, mais um fator imprescindível a isso, será a falta de
experiências ofertadas a ela, podendo então, ser extinta de uma gama
de vivências que certamente facilitaria significativamente à diminuição
deste atraso. Embora isso seja uma constante, o contrário também se

211
aplica, sendo que uma criança com paralisia cerebral poderá ter uma
inteligência normal ou em muitos casos acima da média, a partir dos
estímulos que lhe forem oferecidos.

A Educação Física e a INCLUSÃO ESCOLAR

A Educação Física (EDF) inserida no contexto escolar é,


sobretudo, educação. Os seus valores, assim como seus objetivos
voltam-se para a formação educacional nos aspectos pessoais e sociais
(GONÇALVES, 1994).
De acordo com Brito e Lima (2012), a disciplina de educação física
é considerada uma das matérias de fácil inclusão de um aluno com
deficiência em vista das outras matérias. Porém ainda há pouco
conhecimento dos professores para atuar com alunos deficientes.
Carvalho (1998), afirma que a educação inclusiva parte do
pressuposto de uma educação apropriada e de qualidade oferecida
para todos os alunos, considerada dentro dos padrões normais com
necessidades educacionais especiais. Ele ainda relata que deve haver
um trabalho pedagógico que atenda a todos os alunos, sem exceções.
Atendendo assim, o ensino inclusivo e a prática da inclusão de todos,
independentemente de sua situação social, deficiência sensorial, física
ou cognitiva, origem socioeconômica, étnica ou cultural.
Para Sanchez (2005), a educação inclusiva compreende uma
escola aberta a todos, onde todos possam aprender juntos,
independentemente de suas dificuldades. Segundo Gonçalves (1994),
a Educação Física como práxis educativas que considera o crescimento
pessoal e os aspectos sociais apresenta o objetivo de construção da
personalidade do aluno, por meio da atividade física, uma vez que
trabalha com o corpo e o movimento inerente às particularidades do
ser humano. No entanto, de forma transformadora atua diretamente
nos âmbitos mais profundos da personalidade, nos espaços de
fundamentação do interesse, desejo e pensamento.
Segundo Gallahue e Donnelly (2008), o ensino da educação física
no Ensino Fundamental deve ser fundamentado em conceitos de uma
educação voltada para a qualidade de vida, onde deixe claro que sua
proposta não é formar campeões, no entanto, necessita agregar-se
aos valores e significados da educação e, principalmente na escola.
Através disto, a escolha pessoal repercute de forma imprescindível na

212
seleção de uma forma de ensino, sendo que todo professor apresenta
um conjunto diferente de traços de personalidade para o ensino.
Neste sentido, Freire (1994) salienta que o profissional de
Educação Física exerce uma influencia considerável sobre seu aluno a
ponto de moldar o seu caráter, isso mostra que o professor consegue
tocar de forma especial na raiz formativa do aluno. O educador físico
torna-se responsável por experiências e descobrimentos que podem
ser agradáveis ou não.
Como ressalta Freire (1996) é fundamental que o professor leve a
sério a sua formação e que busque a competência profissional para
que se sinta seguro no exercício da função. O sucesso da prática
docente está diretamente ligado à postura do professor que deve ter
o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das formas de
intervenção.

O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

O Projeto Político Pedagógico (PPP) é um documento importante


que direciona e organiza todos os fazeres pedagógicos no decorrer do
ano letivo, tendo em vista as metas a serem atingidas para alcançar os
resultados esperados. Sendo assim, para alcançá-los é necessária a
participação coletiva de todos os seguimentos da escola (VEIGA, 1995).
Para Neves (1995), o Projeto Político Pedagógico é um
instrumento de trabalho que mostra o que vai ser feito, quando, de
que maneira, por quem, pois o mesmo relata de forma objetiva uma
filosofia e harmonização das diretrizes da educação nacional com a
realidade da escola, transparecendo assim sua autonomia e definindo
seu compromisso para com o público em questão. O projeto deve ser
aceito por todos os envolvidos, daí a importância de que seja
elaborado participativa e democraticamente.
De acordo com Silva (2014), quando se busca a construção de um
projeto buscamos um rumo, uma direção, numa ação intencional de
fazer, de realizar com compromisso definido coletivamente. Dessa
forma, quem planeja precisa adotar ações indispensáveis de
organização com fundamentação sobre o que fazer no futuro e
registrá-las coerentemente no que se chama plano.
Veiga (2004) destaca que o PPP não é algo que é planejado e
construído e em seguida arquivado ou direcionado às autoridades

213
educacionais como prova de trabalho realizado da conclusão de um
objetivo, mas que ele deva ser vivenciado em todos os momentos e
por todos os envolvidos com o processo educativo da escola. Sendo
um compromisso definido coletivamente, pela comunidade escolar na
busca da sua identidade, ficando assim compreendido como plano
primordial da instituição ou o projeto educativo, um instrumento
teórico-metodológico, cuja finalidade é construir para a organização
do conhecimento escolar.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa tem uma proposta metodológica descritiva, com


abordagem qualitativa. O local da pesquisa foi uma escola pública,
localizada na zona rural, em um município do interior da Bahia,
escolhida, por ser considerada acessível.
O responsável pelo aluno e a direção da escola foram consultados
para autorização da pesquisa, e assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Portanto, a amostra foi
composta pelo pai do aluno com diagnóstico médico de ECNPI que se
encontrava devidamente matriculado no 4° ano do ensino
fundamental, e pela professora que lecionava a matéria específica de
EDF, formada há 11 anos em Pedagogia. Portanto, foi definida uma
letra do alfabeto para cada um dos sujeitos, sendo. P: professora, R:
responsável pelo discente.
O foco da pesquisa foi uma turma do 4° ano do ensino
fundamental, uma vez que as outras turmas da escola não
apresentavam alunos com ECNPI, bem como não fez parte do grupo
de participantes os professores das demais disciplinas e turmas.
Para possibilitar a investigação dos alunos com ECNPI e sua
inclusão nas aulas de educação física, neste município, primeiramente
foi diagnosticado os alunos regulares da escola que possuíam
diagnóstico médico de ECNPI, devidamente registrado nos
documentos da matrícula, e que participavam das aulas de EDF.
Foi utilizada a análise documental, por meio dos seguintes
documentos: projeto político pedagógico, diário de classe e formulário
de coleta dos registros. Além, da técnica de observação, onde foram
observadas as aulas de EDF, da turma selecionada para a verificação
de como ocorre à participação do discente nas atividades.

214
O instrumento para esta técnica foi uma ficha de observação das
aulas de EDF seguindo o estabelecido por Lehnhard et al. (2009),
contendo itens referentes a: como foi a inclusão deste discente, como
o aluno com a deficiência participa das atividades preconizadas, e a
relação entre os alunos durante as atividades. Durante as observações
o pesquisador estava presente no ambiente, porém não interferiu no
objeto de estudo.
Por meio de observação e análise, foi descrito o cotidiano de
inclusão da criança com ECNPI, nas aulas de educação física, sua
inserção nas práticas cotidianas da escola, formas de participação e a
construção de estratégias pedagógicas pelos educadores.
Foi aplicado o questionário com o professor, objetivando
identificar os elementos do discurso pedagógico sobre o processo de
ensino aprendizagem, quais os conhecimentos sobre inclusão escolar
e ECNPI e as bases teóricas que fundamentam a suas práticas
pedagógicas, bem como sua formação e atuação docente. A partir da
análise dos resultados, gerou-se 3 categorias, das quais foram
representadas por meio do registro das falas.

RESULTADOS E DISCUSSõES

Os resultados foram apresentados em três categorias: I. As aulas


de EDF II. As adaptações curriculares III. Inclusão do aluno com ECNPI
nas aulas de EDF.
As categorias surgiram a partir dos resultados encontrados, na
realização da observação e a partir dos questionários aplicados com a
professora que ministrava o componente de EDF, e o responsável pelo
discente.

I. As aulas de Educação Física

Essa categoria surgiu a partir da observação das aulas na turma


selecionada, pois foi notória durante o período de observação que as
aulas não acontecem de forma planejada no ambiente escolar. Mesmo
sendo de conhecimento de todos que as aulas são de grande
relevância, e que age de forma inclusiva quando trabalhada de forma
adequada. Segundo a professora de EDF relata que:

215
P: [...] Considerando a importância da EDF na ampla formação dos estudantes,
no geral, sei que a mesma se faz imprescindível para os alunos com necessidades
educativas especiais, pois são muitos os benefícios proporcionados a esses
sujeitos na escola.

Nesta perspectiva o responsável pelo discente relata que:

R: [...] Não acredito de fato que a EDF esteja sendo cumprida no ambiente
escolar, pois não percebo a prática da EDF na turma do meu filho, mesmo sendo
uma disciplina obrigatória e que compõe a grade curricular.

Para Darido e Rangel (2008), a educação física, como prática


escolar, integra o aluno na cultura corporal, ajudando na formação
cidadã, sendo assim o aluno poderá reproduzir e até mesmo
transformar essa cultura. Eles ainda afirmam que a prática da educação
física além de desenvolver aspectos individuais e coletivos, abrange o
desenvolvimento motor, a aptidão física e o bem-estar social. Mattos
e Neira (2006) relatam que a educação física abrange o ser em sua
totalidade, sendo assim considerado um meio educativo privilegiado.

II. As adaptações curriculares

Nessa categoria buscou-se observar se são feitas de fato


adaptações no currículo escolar que visem atender os discentes com
encefalopatia crônica não progressiva. Parte-se do pressuposto que as
adaptações curriculares constituem possibilidades educacionais de
atuar frente às dificuldades de aprendizagem dos alunos, e que a
realização da adaptação do currículo regular pode torná-lo apropriado
às peculiaridades dos alunos com necessidades especiais. Para tanto a
professora destaca que:

P: [...] Vejo a adaptação das atividades como uma possibilidade efetiva para a
aprendizagem do estudante com deficiência, pois é uma que favorece a ação,
reflexão sobre esse estudante, seus limites e possibilidades, inclusive no
momento de avaliar a sua aprendizagem. Tudo é desafio!

O responsável pelo discente em sua fala abrange, de forma bem


clara e objetiva, seu ponto de vista em relação às adaptações
curriculares e estratégias que devem ser abordadas:

216
R: [...] A adaptação é o primeiro passo para que a inclusão aconteça, crianças
com encefalopatia ou outra deficiência, na maioria das vezes não consegue
acompanhar os conteúdos como os demais, no caso de meu filho que o
comprometimento cognitivo é muito grande, é essencial a adaptação, sendo
formas de adaptação, repetir por muitas vezes o conteúdo a ele, como ele é uma
criança não verbal, trabalhar com formas alternativas, onde ele possa se
expressar por gestos.

Para Strapasson (2007), a Educação Física Adaptada (EFA) tem-se


constituído como condição para a pessoa com deficiência desenvolver
as áreas motoras, intelectual, social e afetiva. Deve-se trabalhar na
EFA, a individualidade do aluno, para aprimorar suas potencialidades
individuais, e oportunizar não somente melhorias na área motora,
como também na afetiva e social.
De acordo com a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), o
currículo deveria ser adaptado às necessidades das crianças, e não
vice-versa. Sendo assim, as escolas deveriam prover oportunidades
curriculares que sejam apropriadas à criança com habilidades e
interesses diferentes. Assim, acredita-se que as adaptações
curriculares deveriam ser um meio de contribuição, para que os alunos
incluídos nas salas de aulas regulares se beneficiem com o processo de
socialização, bem como dos conhecimentos escolares.
Segundo (SEBASTIAN HEREDERO, 2010), entende-se como
adaptação curricular toda e toda e qualquer ação pedagógica que
tenha a intenção de flexibilizar o currículo, para oferecer respostas
educativas, às necessidades especiais dos alunos no contexto escolar.

III. Inclusão do aluno com ECNPI nas aulas de Educação Física

A inclusão de crianças com deficiência nas aulas de EDF tem sido


um grande desafio no processo de inclusão escolar. Nesse contexto, a
presente categoria objetivou identificar a percepção da professora e
da responsável pelo discente quanto à inclusão do discente com ECNPI
nas aulas. A professora relata que:

P: [...] Apesar de serem os momentos em que há uma maior interação entre


todas as crianças, precisa melhorar para favorecer ainda mais a inclusão dos
estudantes com deficiência nas aulas de Educação Física.

217
Freire (1996) trouxe a importância de o professor entender que a
formação profissional e a competência profissional, são peças
fundamentais para a segurança no exercício profissional. O sucesso da
prática docente está diretamente ligado à postura do professor que
deve ter o pleno domínio e discernimento de suas atitudes e das
formas de intervenção.
A colocação da responsável diz que:

R: [...] Como não há de fato a prática da disciplina na turma do meu filho, posso
relatar o que observo no grupo de capoeira a qual ele participa, aqui em minha
localidade. De todas as atividades que meu filho participa a capoeira é a que ele
mais gosta, ele gosta da movimentação mesmo sendo na cadeira, gosta dos sons
dos instrumentos se alegra quando está no treino, acredito que a pratica da
Educação Física na vida dele traria a mesma satisfação se de fato existissem as
aulas e se houvesse uma verdadeira inclusão.

Foi notório durante a coleta dos dados, que o discente de fato


participa das aulas, porém estas são incorporadas dentro das demais
disciplinas. Assim, a EDF, torna-se como toda e qualquer atividade de
movimentos realizada em sala, sem um tempo apropriado e devido
para que aconteçam, de fato, as aulas de EDF.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de EDF, a
participação do discente com ECNPI nas aulas de EDF, quando
orientada e estruturada adequadamente, pode trazer benefícios para
eles, principalmente proporcionar a integração, inserção social e
desenvolvimento de suas capacidades afetivas (BRASIL, 1998a,
1998b).
Mediante os resultados obtidos através da análise do projeto
político pedagógico (PPP) da unidade escolar, uma meta traçada para
o ano de 2019, foi dedicar mais tempo a buscar estudos, que pudessem
favorecer o conhecimento do corpo docente da escola em relação à
educação inclusiva de modo geral.
Porém, foi perceptível que passou apenas de metas traçadas,
uma vez que as aulas de fato, são raridade acontecerem. Além do PPP,
nada constar em relação à inclusão de discente com deficiência nas
aulas de EDF.
De acordo com Veiga e Resende (2003), o projeto PPP de uma
escola não pode ser entendido somente como um mero documento
contendo regras, normas e modos de ver o aluno, a escola e os

218
conteúdos disciplinares. Ou somente mais um documento, que será
engavetado, sendo apenas uma mera formalidade.
Outro fator importante a ser destacado é a importância da
formação do docente, pois a professora não apresentava subsídios
para que suas aulas contemplassem a inclusão de forma significativa.
De acordo com Negrine (2002), o docente precisa ter um domínio de
conhecimento na área onde atua como também ter uma boa conduta
de ensino para não correr o risco de tornar-se despreparado, relapso e
desmotivado para exercer sua função.
Nesta mesma perspectiva Mantoan (2006), destaca que a
formação dos professores deve possuir programas e conteúdo, que
possibilitem formar um profissional capaz de desenvolver habilidades
para agir nas mais variadas situações, levando em conta a diversidade
dos alunos e a complexidade da prática pedagógica. Nesse mesmo
sentido ela ainda afirma, que a formação é um processo contínuo em
constante desenvolvimento, em que o professor deve ter
disponibilidade para a aprendizagem.
Nas observações junto ao campo de pesquisa foi perceptível que
há uma relação positiva entre o discente, a docente e os colegas da
turma. Estes demostraram ter consciência da importância de estudar
com um aluno com necessidades educativas especiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante a análise dos dados coletados e dos resultados


apresentados, faz- se notória a importância de práticas docentes que
possam auxiliar a inclusão de discente com ECNPI nas aulas de
Educação Física, bem como salientar a importância dessas aulas no
ambiente escolar, além da formação continuada do docente de
educação física.
Esse estudo auxiliará na inclusão escolar de estudantes com
paralisia cerebral, passo extremamente importante na consolidação
de uma política de educação inclusiva nas escolas. Ainda, os alunos
serão beneficiados indiretamente com informações necessárias para
aproximar os pais da escola e solidificar a direção e coordenação para
a adoção da política inclusiva.
Portanto, serão sugeridos conteúdos e ações a partir das
possíveis dificuldades encontradas, pois as escolas e os professores

219
têm sido requisitados para atender as mais variadas demandas da
sociedade, o que requer conhecimentos e metodologias próprias para
a intervenção com cada aluno, especificamente no caso de alunos com
deficiência nas aulas de EDF. Será salientada também, a importância da
elaboração e planejamento do PPP, pois este irá contemplar todo o
trabalho desenvolvido na instituição ao longo do ano letivo.
Assim, faz-se importante a realização de novas pesquisas
relacionadas à inclusão de alunos com encefalopatia crônica não
progressiva nas aulas de Educação Física, com um número maior de
sujeitos e em outras instituições de ensino, objetivando incentivar
estratégias que realmente favoreçam a inclusão desse público.

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223
224
A AVALIAÇÃO DE TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO:
UMA POSSÍVEL FERRAMENTA DE REORGANIZAÇÃO
COGNITIVA DO ALUNO

Adriana Paz Nunes1

INTRODUÇÃO

Avaliar as atividades dos alunos sempre foi um dos principais


desafios enfrentados pelos professores, tutores e avaliadores de
trabalhos de conclusão de cursos. Neste sentido, surgem muitas
dúvidas com relação aos critérios empregados para que essa avaliação
seja rigorosa e justa, contribuindo assim, no processo de formação do
aluno, ou seja, é importante que a atividade de avaliação permita que
o aluno, a partir do feedback2 dado pelo parecerista /avaliador,
confirme ou reorganize sua compreensão acerca do tema proposto.
Este capítulo tem por objetivo propor uma reflexão referente à
atividade de avaliação de trabalhos de alunos (as) de curso em nível de
pós-graduação latu senso. A escolha desta temática se dá por entender
que a avaliação ocupa um espaço central no processo de ensino e
aprendizagem, tanto para o aluno quanto para o professor, pois este
instrumento é a principal ferramenta utilizada para verificar se houve
ou não aprendizagem, ou ainda, se esta foi parcial ou lacunar.
Outro ponto que se julga pertinente mencionar refere-se ao baixo
número de trabalhos científicos encontrados sobre a avaliação de
trabalhos acadêmicos3 realizada por pareceristas4 e/ou avaliadores.
Assim, a discussão proposta abordará a avaliação realizada por
profissionais que são mestres ou doutorandos ou já doutores.

1 Mestra em educação; Professora na instituição Faculdade e Escola Técnica Alcides


Maya. E-mail: [email protected]
2 Palavra de origem inglesa que significa realimentar ou dar resposta a um

determinado pedido ou acontecimento.


3 Por trabalho acadêmico neste texto entende-se monografia de cursos de pós-

graduação latu senso.


4 Trata-se de um profissional habilitado para avaliar e formular um parecer sobre o

trabalho do aluno.

225
Na atividade de avaliação realizada por pareceristas não há
relação de proximidade entre este com o aluno, o ato de avaliar
restringe-se, especificamente, ao trabalho escrito pelo aluno e enviado
aos pareceristas. Neste sentido, é possível afirmar que os elementos
que os profissionais têm para considerar são distintos se comparado à
avaliação feita pelo professor, pois este acompanha o processo de
aprendizagem do aluno ao longo do semestre, o desempenho, o
interesse, a atenção do educando. Estes são alguns elementos que
compõem a relação do professor e seu aluno e não é contemplado na
avaliação realizada pelo parecerista.
Neste tocante, acredita-se que esta discussão seja um terreno
fértil para reflexões acerca de como pensar e/ou repensar a prática
avaliativa realizada por pareceristas. No mundo contemporâneo o
processo de avaliar necessita ser uma análise constante, porém, não é
uma tarefa fácil. Para Sant’Anna (1995, p. 29-30) a avaliação é:

[...] um processo pelo qual se procura identificar, aferir, investigar e analisar as


modificações do comportamento e rendimento do aluno, do educador, do
sistema, confirmando se a construção do conhecimento se processou, seja este
teórico ou prático.

Sobre o ato de avaliar, Vasconcelos (2014) afirma que refletir


sobre este processo é uma tarefa desafiadora dada relevância e a
complexidade do tema. Sob a compreensão de Perrenoud (2007) “a
temática avaliação é uma inquietação para os pedagogos, desde a
criação da escola. Os pedagogos lutam para que o processo avaliativo
promova a aprendizagem do estudante e não apenas vise classificar o
desempenho do discente”.
Perrenoud (2007) compreende a avaliação como uma
engrenagem no funcionamento do processo didático, não se trata
apenas da utilização de técnicas e instrumentos de medida e
verificação da assimilação de conteúdos expostos anteriormente à
aplicação de um instrumento de verificação. Para o mesmo autor
(2007) as avaliações além de controlar o desempenho e a dedicação
dos estudantes, tem o objetivo de gerir o fluxo do processo de ensino.
Para fins didáticos, apresenta-se o octógono de avaliação de
Perrenoud:

226
Fonte: Octógono de Perrenoud (2007)

Acredita-se que os elementos contemplados no octógono,


principalmente os últimos (g) Sistemas de seleção e orientação e (h)
Satisfações pessoais e profissionais ocupam um papel importante na
avaliação de trabalhos de conclusão de curso em nível de pós-
graduação latu senso realizada por pareceristas. O elemento (g) é
importante na perspectiva do professor, pois a orientação reflete no
resultado da avaliação do aluno. Já elemento (h) é importante na
perspectiva do aluno, dado que a etapa de construção do trabalho final
e sua posterior avaliação são etapas constitutivas que visam o
atingimento das satisfações pessoais e profissionais dos alunos, uma
vez avaliados e aprovados.
Visto isso, destaca-se que este texto possui um caráter reflexivo,
e nele busca-se analisar como os critérios avaliativos empregados por
pareceristas favorecem na construção da aprendizagem do aluno em
seu trabalho final, este, por sua vez, representa a compilação de todo
o percurso realizado ao longo do curso pelo aluno.
Neste texto apresenta-se, inicialmente, alguns tipos diferentes de
avaliação e, posteriormente, as conclusões que sugerem o melhor
caminho para que a avaliação realizada pelo parecerista proponha ao
educando elementos para que seu processo de construção de

227
conhecimento não seja finalizado nesta atividade, ou seja, que o
feedback sirva como instrumento de reorganização cognitiva.

TIPOS DE AVALIAÇÃO

Como ponto de partida, julga-se pertinente apresentar, ainda que


brevemente os principais tipos de avaliação para, a partir disso, refletir
sobre como os pareceristas podem conduzir sua forma de avaliar os
trabalhos acadêmicos. Inicia-se pela avaliação tradicional, seguida da
avaliação diagnóstica, avaliação formativa e, por fim, a avaliação do
tipo somativa, também conhecida por avaliação classificatória.

A AVALIAÇÃO TRADICIONAL

Para Garrido (2009), “a avaliação tradicional envolve uma


abordagem que tem por objetivo mensurar a memorização de um
determinado conteúdo pelo educando medido por meio de um
determinado instrumento avaliativo”. Como exemplo de instrumento
de avaliação citam-se as provas, os trabalhos de pesquisa e os
seminários apresentados pelos alunos.
De maneira geral, este modelo considera que a aprendizagem
acontece no instante que o conteúdo é passado do docente ao aluno.
Assim, compreende-se e espera-se que os instrumentos de avaliação
utilizados por este modelo resgatem o conteúdo ensinado
anteriormente. A visão tradicionalista da avaliação associa-se às
informações, ao conteúdo e sua relevância em detrimento dos
processos de desenvolvimento dos mesmos.
Pode-se, por fim, inferir que este tipo de avaliação está associado
a capacidade de informações que o aluno é capaz de memorizar. Ela
não investiga em profundidade o conhecimento construído pelo
educando.

A AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA

Kraemer (2010) destaca que a avaliação diagnóstica pretende


averiguar a posição do aluno frente a novas aprendizagens que lhe vão
ser propostas e a aprendizagens anteriores que servem de base
àquelas, no sentido de antecipar a identificação de dificuldades futuras

228
e, em certos casos, de resolver situações presentes. Em consonância,
Luckesi (2000, p. 09) complementa que “[...] para avaliar, o primeiro
ato básico é o de diagnosticar, que implica, como seu primeiro passo,
coletar dados relevantes, que configurem o estado de aprendizagem
do educando ou dos educandos”. Ainda neste sentido:

A avaliação diagnóstica é aquela realizada no início de um curso, período letivo


ou unidade de ensino, com a intenção de constatar se os alunos apresentam ou
não o domínio dos pré-requisitos necessários, isto é, se possuem os
conhecimentos e habilidades imprescindíveis para as novas aprendizagens. É
também utilizada para caracterizar eventuais problemas de aprendizagem e
identificar suas possíveis causas, numa tentativa de saná-los (HAYDT, 1988, p. 16-
17).

Este tipo de avaliação é de suma importância, especialmente se


aplicada no início do curso, pois permite ao professor desenvolver suas
práticas a partir do conhecimento construído pelo aluno verificado na
avaliação diagnóstica. Nessa mesma perspectiva Jorba e Sanmartí
(2003, p. 27), evidenciam que a avaliação diagnóstica, também
chamada de avaliação inicial, “[...] tem como principal objetivo
determinar a situação de cada aluno antes de iniciar um determinado
processo de ensino e aprendizagem, para poder adaptá-lo a suas
necessidades”.
Alvarenga (2002) atenta para a necessidade de que os
conhecimentos prévios dos alunos sejam objetos de avaliação para
poder integrá-los aos conhecimentos pretendidos. Alvarenga (2002, p.
13) complementa bem essas colocações e salienta a importância de
levar em consideração as concepções prévias [...] descobrir que
bagagem os alunos trazem, seus conceitos espontâneos e científicos,
esquemas de aprendizagem, formas como resolvem problemas,
fatores atitudinais, motivacionais e afetivos, curiosidade, estilo
cognitivo e crenças. A avaliação diagnóstica torna-se importante para
que o docente possa refletir sobre qual método empregar baseando-
se no conhecimento construído pelo educando.

A AVALIAÇÃO FORMATIVA

A avaliação do tipo formativa preocupa-se em acompanhar o


desempenho do aluno. Neste tipo de avaliação os objetos
preferenciais são os processos de aprendizagem, ou avaliação para as

229
aprendizagens (FERNANDES, 2006). Assim, a avaliação formativa tem
como finalidade principal melhorar as aprendizagens dos alunos a
partir de uma criteriosa utilização da informação recolhida para que se
possam perspectivar e planejar os passos seguintes.
Para Kraemer (2010) o objetivo da avaliação formativa é repensar
uma proposta de avaliação que oportunize a aprendizagem do aluno,
contribuindo assim para fornecer dados para aperfeiçoar o processo
de aprendizagem do aluno. Na visão de Hadji (2001, p. 20), a avaliação
é formativa na medida em que “[...] se inscreve em um projeto
educativo específico, e que favoreça o desenvolvimento daquele que
aprende, deixando de lado qualquer outra preocupação”.
Segundo Rabelo (1998, p. 73), uma avaliação formativa tem a
finalidade de “[...] proporcionar informações acerca do
desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem”. Avaliar
formativamente é entender que cada aluno possui seu próprio ritmo
de aprendizagem e, sendo assim, possui cargas de conhecimentos
diferentes entre si. Para Nunes, a avaliação formativa ultrapassa o
limite de decorar e propõe ao aluno um exercício de “pensar sobre”,
seja a forma de avaliar empregada uma prova seja qualquer outro
método pedagógico (2018, p. 70).

A AVALIAÇÃO SOMATIVA

Sobre a avaliação somativa, Kraemer (2010, p. 4), destaca que:

[...] pretende ajuizar do progresso realizado pelo aluno no final de uma unidade
de aprendizagem, no sentido de aferir resultados já colhidos por avaliação do
tipo formativa e obter indicadores que permitem aperfeiçoar o processo de
ensino.

De acordo com Fernandes (2009, p. 44), quando avaliar e medir


são sinônimos, a avaliação torna-se “[...] uma questão essencialmente
técnica que, por meio de testes bem construídos, permite medir com
rigor e isenção as aprendizagens escolares dos alunos”.
A avaliação somativa acontece no final do processo de ensino,
serve para verificar o que o aluno aprendeu depois de todo conteúdo
trabalhado pelo professor, dessa forma, são atribuídas notas que
serão divulgadas posteriormente. Nesta mesma perspectiva, Haydt
(1988, p. 18) explica que:

230
[...] a avaliação somativa, com função classificatória, realiza-se ao final de um
curso, período letivo ou unidade de ensino, e consiste em classificar os alunos de
acordo com níveis de aproveitamento previamente estabelecidos, geralmente
tendo em vista sua promoção de uma série para outra, ou de um grau para outro.

A avaliação somativa, também é conhecida como avaliação


classificatória. Dessa forma, Luckesi (2002, p. 77), evidencia que “[...] a
prática classificatória da avaliação é antidemocrática, uma vez que não
encaminha uma tomada de decisão para o avanço e crescimento”,
assim sendo, ela tem função apenas de classificação. Partindo desse
pressuposto, Rabelo (1998), complementa que não tem sentido a
escola continuar usando notas classificatórias, acredita-se que a
avaliação apenas como instrumento com essa finalidade não auxilia o
aluno no seu crescimento e desenvolvimento, pois ela apenas atribui
uma nota ou um conceito, sem levar em consideração todo o processo
de aprendizagem.
A partir da explicação acerca dos principais tipos de avaliação,
pode-se inferir que avaliar as atividades dos alunos é uma tarefa
complexa e exige, de quem o faz, reflexão e um planejamento prévio
a fim de atingir os objetivos do processo educacional, ou seja,
contribuir com a construção de conhecimento dos educandos,
permitindo-os estabelecer relações e empregar estes conhecimentos
em diversos campos de atuação.
Alguns tipos de avaliação promovem essas relações, a exemplo
cita-se a avaliação formativa outros, pouco permite faze-lo dado seu
objetivo pontual impossibilitando, ao professor, acompanhar todo o
desenvolvimento do aluno. Como exemplo cita-se a avaliação
somativa também conhecida como classificatória.
No tocante a importância de refletir sobre como avaliar, cabe
salientar que o processo de ensino e aprendizagem deve considerar
este percurso. Neste sentido, os trabalhos de conclusão de cursos5 são
um importante instrumento para avaliação de aprendizagem, nele, o
aluno tem oportunidade de expor todo o conhecimento construído ao
longo do curso.
Como dito no início deste capítulo, o objetivo é que o texto
permita ao leitor refletir sobre o processo de avaliação, e pensar sobre
este assunto como processo complexo e importante nesta etapa final

5 TCC’s.

231
da formação do educando. Faz-se necessário acrescentar que esta
avaliação deve dar ao aluno um feedback que possibilite a este
autorregular-se, ou seja, que o educando possa reorganizar suas
conclusões a partir do que foi proposto pelo parecerista.
Para Piaget a equilibração consiste no processo de
autorregulação interna do organismo, que se constitui na busca
sucessiva de reequilíbrio. O indivíduo aprende basicamente através de
suas próprias ações sobre os objetos do mundo e constrói suas
próprias categorias de pensamento. Piaget define a como um
processo de autorregulação, que é fundamental no desenvolvimento
(1972, p. 4).
Nesse diapasão o feedback claro, objetivo e consistente auxilia o
aluno neste processo de reequilibrar-se internamente com relação ao
seu aprendizado a partir de seu trabalho. A avaliação realizada pelo
parecerista deve favorecer a construção do conhecimento, ou seja, da
atividade cognitiva.
Outro ponto importante já anunciado refere-se ao planejamento
elaborado previamente para que a avaliação traga resultados positivos
para avaliador e avaliado. Uma prática importante ao parecerista é
definir critérios de avaliação, estes critérios são estabelecidos na etapa
de planejamento e têm por objetivo manter um padrão de avaliação,
ou seja, considerar elementos que são importantes a serem avaliados
em todos os trabalhos. A seguir, apresenta-se um exemplo de critérios
que são utilizados pela autora deste capítulo em avaliação de trabalhos
de conclusão de curso e artigos.

Quadro: Exemplo de critérios para avaliação de TCC realizada por pareceristas


Critérios Fortalezas Fragilidades Parecer6
Tema (é relevante?)
Título
Escrita
Apresenta muitos erros?
Normalização de acordo com ABNT
O problema está delimitado?
É possível que a pesquisa responda ao
problema levantado?

6Nesta coluna o parecerista anota suas observações que será dado ao aluno, ou seja,
o feedback da avaliação.

232
Os objetivos geral e específicos são
coerentes com a pesquisa proposta pelo
aluno?
Há justificativa do estudo no texto?
Se sim, está de acordo com a proposta do
aluno?
Foi realizada revisão de literatura?
A fundamentação teórica está de acordo
com a proposta da pesquisa?
A metodologia define com clareza como
será realizada a pesquisa?
Abordagem; natureza; campo;
instrumentos utilizados; cuidados éticos
A discussão de resultados foi realizada?
Os resultados são apresentados?
As conclusões e considerações finais
São apresentadas de acordo com a
proposta da pesquisa?
Todos os autores citados estão nas
referências?
Foi detectado plágio no trabalho? (parcial
ou total)
Fonte: a autora (2019)

Neste quadro foi apresentado o modelo utilizado pela autora


deste capítulo com critérios para auxiliar na avaliação de trabalhos
acadêmicos, como parte integrante do planejamento do processo
avaliativo. Acredita-se que foram contemplados os principais
elementos que precisam ser considerados em um TCC.
Na primeira coluna estão os critérios propriamente ditos, eles
surgem como questionamentos que precisam ser respondidos no
trabalho avaliado. A segunda coluna identificada como “fortalezas”,
são os pontos positivos que também devem ser sinalizados no
feedback para o aluno. A terceira coluna refere-se aos pontos
negativos, ou onde o trabalho apresenta erros, lacunas e/ ou
equívocos. O parecerista pode sinalizar mencionando o trecho e a
página, esta prática auxilia no processo de construção de
conhecimento do aluno.
Por fim, a última coluna intitulada “parecer”, trata-se de um
espaço destinado às observações feitas pelo parecerista e,
posteriormente, encaminhadas ao aluno. Neste espaço ele [o
parecerista] pode ainda apontar outras questões dentro de cada

233
critério que não foram sinalizadas nas fortalezas ou fragilidades. Dado
o exposto, espera-se que estas linhas possam auxiliar no processo e
avaliação de trabalhos acadêmicos contribuindo com o
desenvolvimento dos educandos.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que o tema Avaliação é amplo e


complexo, e discuti-lo torna-se imprescindível para que seja possível
refletir e propor tipos de avaliação que contemplem todo o processo
de aprendizagem. A avaliação deve ser utilizada a favor da construção
de conhecimento, ou seja, da atividade cognitiva do educando.
Dentre os tipos de avaliação citados, pode-se inferir que a
avaliação do tipo formativa é a que melhor comtempla o processo de
aprendizagem em sua totalidade. Acredita-se que, se o trabalho de
avaliação realizado pelo parecerista considerar o processo de
aprendizagem do e planejar sua atividade utilizando-se de critérios
claros de avaliação é um caminho possível para que o feedback dado
ao aluno assume o papel de resgate e reorganização cognitiva de
possíveis erros e ratificação de possíveis acertos. Este capítulo foi
escrito utilizando como experiência a atividade de parecerista de
trabalhos de conclusão de curso realizada pela autora, mas cabe
salientar que a contribuição pode auxiliar outros trabalhos
acadêmicos, como artigos, por exemplo. Assim, espera-se que este
capítulo possa contribuir propondo uma reflexão acerca desta
temática tão instigante que é a avaliação de trabalhos acadêmicos.

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235
236
O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA EM MOÇAMBIQUE
NA IMPLEMENTAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL
E A EDUCAÇÃO

Armindo Armando Nhanombe1

INTRODUÇÃO

Este capítulo surge na sequência da conferência intitulada


“Educação de Qualidade e Desenvolvimento na Lusofonia” realizada na
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Colégio de
Campolide, 6 e 7 de junho de 2019, na sequência da Agenda 2030 no ODS4
- Educação de Qualidade que encontra na educação a força motriz do
desenvolvimento com o envolvimento de um conjunto variado de atores
e exige uma abordagem multidisciplinar para cumprir os objetivos de
garantia de uma educação inclusiva, equitativa, qualidade e promotora de
oportunidades de aprendizagem, durante toda a vida e para todos. Dos
debates em torno da Educação se fez, também, com o contributo do
Direito, sobre os desafios da Educação em Portugal, Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Timor-Leste. Das jornadas de
trabalho resultou este artigo que tive a honra e o privilégio de apresentar
publicamente, com o título “O Papel da Igreja Católica em Moçambique na
implementação do Empreendedorismo Social e a Educação”. Sendo que, o
meu artigo vai procurar trazer aproximações entre a Educação e a
Evangelização no empreendedorismo social. Se partimos do pressuposto
que tanto a educação como a evangelização visam o ser humano, então,

1 Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Tomás de Aquino de Moçambique,


Bacharel em Teologia pela Universidade Urbaniana de Roma. Mestre em Filosofia de
Educação Pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Doutorando em Ética Aplicada
pela Universidade de São Tomás de Aquino de Moçambique. Licenciando de Direito
Canónico pela Universidade Católica de Lisboa. Mestre e Doutorando em Direito e
Segurança pela Universidade Nova de Lisboa. Docente de Ética Fundamental, Ética Geral,
Introdução a Filosofia na Universidade São Tomás de Aquino de Moçambique, docente
também no Seminário Santo Agostinho da Matola nas cadeiras de Filosofia Africana e
Didática da Filosofia. Docente de Metodologia de Investigação Científica e Ética Geral no
Instituto Superior de Negócios e Gestão. Pertence a equipa de investigadores de CEDIS da
Universidade Nova de Lisboa. Tem participado de conferências como orador. Estando
neste momento a residir em Lisboa para continuação dos Estudos.

237
podemos aferir que a Educação e a Evangelização devem ter um papel
importante no empreendedorismo, na componente da preparação. A
Educação dá-se a conhecer pelo ensino e a Igreja fá-lo pela doutrinação.
Assim, tentaremos perceber o papel da ação da Educação e da Igreja, no
geral, e no empreendedorismo em particular, com especial incidência em
Moçambique.

PROBLEMA

Diante do empreendedorismo verifica-se que só por si significa


para além da inovação algo que visa o lucro, equiparando-se, deste
modo, ao capitalismo. A Evangelização significa anúncio de boa nova.
A pergunta que se coloca é: como salvaguardar os valores da educação
e da evangelização para que o empreendedorismo não seja um meio
da acumulação de riqueza mais do que empoderamento do ser
humano na componente social?

JUSTIFICATIVA

A escolha deste tema deve-se à importância que a Educação e a


Igreja podem ter no empreendedorismo. Se o empreendedorismo
significa inovação, a evangelização significa boa nova e a educação
significa ‘conduzir para fora’, ou seja, preparar o indivíduo para o mundo,
quer dizer que é do interesse da sociedade que o empreendedorismo
ajude na criação do Homem Novo. Tanto, mais que a luta atual não seja
somente a do empreendedorismo, mas que tenha a componente social,
dado que não estaremos a dar primazia ao ser humano e sim ao material.
O capitalismo advogou que era para dar autonomia ao ser humano e à
criação do Homem Novo, mas cedo se transformou num sistema de
acumulação de lucro. A Igreja apercebeu-se desta situação, tendo
chamado à atenção das consciências a doutrina social. Interessa-nos
aplicar esta situação à realidade moçambicana, em que o
empreendedorismo social está em franco desenvolvimento.

ENQUADRAMENTO CONCEITUAL – EDUCAÇÃO

A Educação conduz-nos na ação. Educar vem do latim educare,


por sua vez ligado a educere, verbo composto do prefixo ex (fora) e

238
ducere (conduzir, levar), e significa literalmente ‘conduzir para fora’,
ou seja, preparar o indivíduo para o mundo.
A sociedade é formada por pessoas. E somente estes devem ser
educados e incutidos de valores morais e éticos: “qualquer família sabe
que não há educação sem valores, em e com valores” (CLARK,
ARNOLD; HALSEY, 1974). O mesmo autor acrescenta que: “ educar
uma criança ou um jovem é dar-lhe recursos físicos, espirituais,
intelectuais e emocionais que lhe permitam realizar-se plenamente
como pessoa” (CLARK, ARNOLD; HALSEY, 1974, p. 149). Educar é dar
ferramentas comportamentais ao ser humano que permitam que se
desenvolva e se relacione com toda a existência. O ser humano,
diversamente dos animais, que são seres adaptados a todas as
circunstâncias da natureza, é um ser inadaptado, isto é, precisa
adaptar-se para cada situação. Esta adaptação é feita segundo os
valores que o ser humano vai recebendo e deve ser feita em função
dele próprio. Não deixa de ser importante saber o que deve transmitir
e como transmitir.
As metodologias de ensino conjugadas com o currículo,
entendendo como conteúdo ganham capital importância no caminho
pelo qual queremos enveredar ou transmitir na nossa educação ou
quiçá na nossa sociedade. Esta acessão é defendida por Bastos e
Ribeiro no seu artigo intitulado “Educação e empreendedorismo
social: um encontro que (trans)forma cidadãos” ao afirmar que:
“Supõe-se que a tarefa educativa continua a exigir novos caminhos de
perceber e pensar, novas imagens do homem e da sociedade, novas
conceções éticas e axiológicas, novos rumos por onde enveredar”
(BASTOS; RIBEIRO, 2011, p. 578). Os mesmos autores, citando Jacques
Filion, percebem o empreendedorismo como aprendizagem, supondo
programas que se direcionam nesse sentido:
“No entendimento de Jacques Filion, “o empreendedorismo se
aprende”, pois o autor considera que é possível conceber programas
e cursos que adotem sistemas de aprendizados adaptados à lógica
desse campo de estudo, numa abordagem em que o aluno é levado a
definir e estruturar contexto e a entender as várias etapas de sua
evolução (FILION, 1999)”. Esta afirmação mostra como a educação
pode ter um papel importante no empreendedorismo. Atente-se que,
há uma tendência generalizada de se exigir aquilo que nuca se deu.
Apresento dois debates em Moçambique neste âmbito, o primeiro tem

239
a ver com axiologia em que se afirma categoricamente que os jovens
não têm valores.
O filósofo moçambicano António Cipriano, no seu livro Educação,
modernidade e crise ética em Moçambique questiona se são os jovens
que não têm valor ou nasceram numa sociedade sem valores, pois
Moçambique sempre foi um país em transição política: foi o
colonialismo, veio a independência em que a Frelimo assumiu o
marxismo – leninismo e antes que se consolidasse teve que abandonar
para aderir ao capitalismo. Pelo que somos um País em consolidação e
esta situação tem reflexo na educação e moralização da sociedade
(CIPRIANO, 2011). O segundo debate tem a ver com as metodologias
de ensino – a aprendizagem, partindo da constatação em que os
graduados moçambicanos são do ensino médio técnico profissional e
do ensino superior, com a agravante de serem nas áreas técnicas mais
teóricos que práticos. A título de exemplo, segundo a nossa
Constituição da República no seu Art. 103, diz: a agricultura é a base de
desenvolvimento do País. Mas, a terra não está sendo agricultada. Se
até antes da independência e um pouco depois deste facto histórico
só tínhamos uma Instituição do Ensino Superior, Universidade Eduardo
Mondlane, hoje já não se pode dizer a mesma coisa. Pois, Moçambique
possui além das Universidades Estaduais, muitas outras Universidades
privadas, num total de 53 (http://www.mctestp.gov.mz/por/Ultimas-
Noticias/Noticias/MCTESTP-destaca-evolucao-do-ensino-superior).
Ademais, temos também muitas escolas de Ensino Técnico. Por
outro lado, a terra não nos falta. Em princípio, quem deve ensinar a
cultivar as machambas, as terras são os nossos agrónomos. Se não o
fazem, poder-se-á concluir que há um défice na sua formação? Não
necessariamente, pois há outros fatores envolvidos, como a Educação,
a Ética e a Moral ancestral que, na generalidade, atribuía à mulher os
trabalhos agrícolas. Assim, podemos questionar com Bertrand no seu
livro Teorias Contemporâneas da Educação que nos diz que a nossa
análise deve partir do que é preciso ensinar? Como ensinar? Quais
devem ser os objetivos da educação? (BERTRAND, 2001).
Estas duas colocações acima conduzem-nos ao debate de sempre
sobre os métodos tradicionais e participativos da Educação. Enquanto
a Educação se focou nos métodos participativos a teologia salientou-
se no que é chamado de teologia prática. Este discurso assenta no
facto que tanto a educação como a teologia devem ser proactivas, isto

240
é, não fiquem somente no aspeto teórico ou prático, mas sempre
iluminados pela ética e pela moral. Sendo que teóricos como John
Dewey com o seu instrumentalismo, Habermas com a sua ação
comunicativa e Paulo Freire com a sua educação democrática e
libertária assente essencialmente no diálogo que se estabelece entre
o formador e o formando pode ajudar a construir uma educação que
seja proactiva. Estas abordagens deram aquilo que hoje se chama de
aprendizagem em pares ou na designação inglesa peer instruction, que
é uma educação participativa, em que o aluno já não é “tábua rasa”
como na educação tradicional, mas como o fazedor do seu
aprendizado na chamada sala invertida onde o professor é um mero
facilitador. Esta tentativa de abordagem duma educação participativa
e proactiva não passou despercebida pela teologia que sentiu a
necessidade de criar uma teologia que não se baseasse somente na
esperança, que até foi acusada pelos marxistas como “ópio do povo”
por prometer uma vida melhor para a vida futura, perceba-se para
além da morte e não neste mundo. Então, a teologia prática segundo
Richard Osmer que se aplica na vida quotidiana do homem, como
também tenta fazer a teologia da libertação, sobretudo na América
latina. Afirmamos que tanto a educação como a teologia estão no
processo de transformação contínuo com vista a responder aos
problemas concretos do homem. Achamos que não estaríamos a
forçar, se afirmássemos que a Educação e a Teologia (Evangelização)
podem jogar um papel importante no empreendedorismo, que é o de
responder aos problemas concretos do homem na sua vida quotidiana.

EVANGELIZAÇÃO

A Igreja Católica Evangeliza. Evangelizar significa dar boa notícia.


E a boa notícia não é outra coisa senão o amor de Deus, um amor que
é incondicional. A Igreja persegue um mandato, que se resume em
missão.
Igreja recebeu um mandato de Cristo “Ide por todo o mundo,
anunciai a Boa Nova a toda criatura.” (Mc,16, 15). A criatura aqui referida
é o Homem. Sendo que este mandato, concretiza-se na missão.
A palavra missão vem do Latim missionem, de missum, supino de
mittere, enviar, mandar. No Novo Testamento, esta palavra vem do
grego apostello, que indica, fundamentalmente, o mandato recebido

241
por Cristo do Pai e, por sua vez, transmitido aos apóstolos (Jo.3, 16).
“A missão cristã é tão antiga como a Igreja mesma; a Igreja que nasce,
sacramentalmente, da Páscoa e do Pentecostes” (Otaduy, Viana e
Sedano, 2012)
Por sua vez, o Decreto Ad Gentes que trata da atividade
missionária da Igreja, emanado pelo Papa Paulo VI, em 7 de dezembro
de 1965, afirma que “O nome de ‘missões’ dá-se geralmente àquelas
actividade características com que os pregoeiros do Evangelho, indo
pelo mundo inteiro enviados pela Igreja, realizam o encargo de pregar
o Evangelho e de implantar a mesma Igreja entre os povos ou grupos
que ainda não crêem em Cristo”. Essas “missões” são levadas a efeito
pela atividade missionária e exercem-se ordinariamente em certos
territórios reconhecidos pela Santa Sé. O fim próprio desta atividade
missionária é a evangelização e a implantação da Igreja nos povos ou
grupos em que ainda não está radicada (AG, 34).
A Constituição LG (17), promulgada em novembro do ano
anterior, destacou a teologia da missão, ou seja, a missão eclesial à luz
da atividade de Jesus ou como definido no parágrafo 17, “A índole
missionária da Igreja”, e este Decreto AG visa efetivar esta índole,
apontando para as reflexões ‘pastorais’ da atividade missionária. Sob
a perspetiva do conjunto dos documentos conciliares - Constituições
(LG, GS, DV e SC - com destaque para a Lumen Gentium que trata da
missão universal da Igreja); Declarações (NA e DH) e Decretos (UR, AA)
- que propiciaram amplas reflexões sobre a Missão da Igreja, às portas
da passagem para o segundo milénio este Decreto AG, visto
separadamente dos outros, pode parecer restritivo à missão ad gentes,
ou seja, voltada apenas aos povos estrangeiros, e contrário ao espírito
do Concílio. Porém, visto como parte integrante do conjunto, percebe-
se que ele faz a ligação entre as reflexões teológicas e pastorais
relacionadas à missão, em geral. Sem abandonar ou diminuir a
necessária e tradicional missão ad gentes, de ir ao encontro dos povos
estrangeiros, este documento, embasado nos textos conciliares,
acima citados, enfatiza que não são somente os povos distantes ou
isolados geograficamente que precisam ser evangelizados, mas que
toda a Igreja precisa passar por uma metanoia (conversão), por um
profundo processo de revisão eclesial para ser uma presença efetiva
no mundo.

242
Esta contextualização e breve revisão literária permite-nos
perceber que a missão Cristã é tão antiga como a própria Igreja
Católica, ou melhor dito, já está na origem da Igreja e sempre foi
preocupação desta manter, expandir a Boa Nova, cumprindo o
mandato de Jesus Cristo. A atividade missionária merece destaque nos
estudos acadêmicos, tendo-se criado uma cadeira com o nome de
Missiologia que visa encontrar os fundamentos e os meios para levar
avante o mandato de Jesus Cristo.

EMPREENDEDORISMO

É mister fazer um percurso etimológico e uma revisão literária do


conceito empreendedorismo nas várias vertentes e a que a nos
interessa neste debate é o empreendedorismo social. Começando pela
etimologia, Baggio, citando Barreto diz-nos que o empreendedorismo
provém da palavra imprehendere, do latim, tendo o seu
correspondente, “empreender”, surgido na língua portuguesa, no
século XV. A expressão “empreendedor”, segundo o Dicionário
etimológico Nova Fronteira, teria surgido na língua portuguesa, no
século XVI. Todavia, a expressão “empreendedorismo” foi originada
da tradução da expressão entrepreneurship da língua inglesa que, por
sua vez, é composta da palavra francesa entrepreneur e do sufixo
inglês ship. O sufixo ship indica posição, grau, relação, estado ou
qualidade, tal como, em friendship (amizade ou qualidade de ter
amigo). O sufixo pode ainda significar uma habilidade ou perícia ou,
ainda, uma combinação de todos esses significados como em
leadership (liderança = perícia ou habilidade de liderar) (BARRETO,
1998, p. 189-190) (BAGGIO; BAGGIO, 2014, p. 36).
Da etimologia da palavra passamos para a revisão literária e
notaremos que incide na habilidade e arte de criar e renovar.
Afirmamos acima que tanto a educação como a evangelização visam
renovar o Homem. Esta renovação é assumida por Baggio,
Schumpeter, Barreto, Dornelas, Chiavenato. O empreendedorismo
pode ser compreendido como a arte de fazer acontecer com
criatividade e motivação. Consiste em realizar com sinergismo e
inovação qualquer projeto pessoal ou organizacional, em desafio
permanente às oportunidades e riscos. É assumir um comportamento

243
proactivo diante de questões que precisam ser resolvidas (BAGGIO;
BAGGIO, 2014).
Empreendedorismo, segundo Schumpeter, é um processo de
“destruição criativa”, através do qual produtos ou métodos de
produção existentes são destruídos e substituídos por novos
(SCHUMPETER, 1997). Já para Dolabela (2010), corresponde a um
processo de transformar sonhos em realidade e em riqueza. Para
Barreto (1998, p. 190) “empreendedorismo é habilidade de criar e
constituir algo a partir de muito pouco ou de quase nada”. É o
desenvolver de uma organização em oposição a observá-la, analisá-la
ou descrevê-la.
Segundo Dornelas empreendedor é aquele que deteta uma
oportunidade e cria um negócio para capitalizar sobre, ele, assumindo
riscos calculados. Em qualquer definição de empreendedorismo,
encontra-se, pelo menos, os seguintes aspetos referentes ao
empreendedor: 1) tem iniciativa para criar um novo negócio e paixão
pelo que faz; 2) utiliza os recursos disponíveis de forma criativa,
transformando o ambiente social e económico onde vive; 3) aceita
assumir os riscos calculados e a possibilidade de fracassar (DORNELAS,
2008).
Para Chiavenato (2004) o espírito empreendedor é a energia da
economia, a alavanca de recursos, o impulso de talentos, a dinâmica
de ideias. Mais ainda: ele é quem fareja as oportunidades e precisa ser
muito rápido, aproveitando as oportunidades fortuitas, antes que
outros aventureiros o façam. O empreendedor é a pessoa que inicia e/
ou opera um negócio para realizar uma ideia ou projeto pessoal
assumindo riscos e responsabilidades e inovando continuamente
(CHIAVENATO, 2004).
“Pode-se dizer que os empreendedores dividem-se igualmente
em dois times: aqueles para os quais o sucesso é definido pela
sociedade e aqueles que têm uma noção interna de sucesso”
(DOLABELA, 2006, p. 44). Ser empreendedor significa possuir, acima
de tudo, o impulso de materializar coisas novas, concretizar ideias e
sonhos próprios e vivenciar caraterísticas de personalidade e
comportamento não muito comuns nas pessoas.
A nosso ver, os componentes comuns em todas as definições de
empreendedor: tem iniciativa para criar um novo negócio e paixão
pelo que faz; utiliza os recursos disponíveis de forma criativa

244
transformando o ambiente social e económico onde vive; aceita
assumir os riscos e a possibilidade de fracassar. “O empreendedor é
alguém que sonha e busca transformar seu sonho em realidade”
(DOLABELA, 2010, p. 25). A pessoa de qualquer idade pode ser
empreendedora (BAGGIO; BAGGIO, 2014, p. 27).
Chegados aqui, há que distinguir, a meu ver, o
empreendedorismo do empreendedorismo social. Percebe-se que o
empreendedorismo por si visa o lucro, ou mais ainda, o
empreendedorismo por si só, pode ser individual enquanto o
empreendedorismo social é mais amplo como afirma Baggio citando
Odara (2008, p. 3), os Empreendedores sociais visam o bem-estar
coletivo, com a capacidade empreendedora e criadora na promoção
de mudanças sociais capazes de alcançar grandes distâncias nas suas
atividades. São inovadores que deixarão a sua marca na história da
humanidade. Esta visão do emprendedorismo social coincide com a
visão da Igreja Católica que é de criar o homem novo, o Homem
redimido, que nem sempre coincidiu com o homem novo que o
capitalismo e o (ou) regime da Frelimo, no caso de Moçambique,
apreguou pretender criar. Baggio (2014) traça algumas características
do emprendedorismo social:
 É coletivo e integrado;
 Produz bens e serviços para a comunidade, local e global;
 Sua medida de desempenho é o impacto e a transformação
social. Visa satisfazer necessidades dos clientes e ampliar as
potencialidades do negócio;
 Tem o foco na busca de soluções para os problemas sociais e
necessidades da comunidade;
 Visa resgatar pessoas da situação de risco social e promovê-las
gerar capital social, inclusão e emancipação social.

A SOCIEDADE E A IGREJA: DUAS APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS

A Revolução industrial que prometia revolucionar a sociedade e


de modo concreto o Homem, cedo se apercebe que tinha tomado e
tornado o ser humano numa máquina, daí a publicação do Manifesto
do Partido Comunista, de Marx e Engels, em 1848, na tentativa de dar
uma solução à questão operária. A questão social era exatamente as
precárias condições de trabalho impostas aos operários e os baixos

245
salários, que os colocavam numa situação de miséria imerecida.
Podemos afirmar que a sociedade fez uma tentativa de posicionar-se,
infelizmente a Igreja chegou atrasada,com a publicação da Enciclica
Rerum Novarum, 1891. Mesmo assim, ainda que seja correr contra o
prejuízo, a Igreja criou a doutrina social da Igreja. O Papa Leão XIII
enfrentou a questão operária numa época em que começavam a
distinguir-se duas classes antagônicas: a dos capitalistas e a do
operariado.
Na Rerum Novarum, define-se o trabalho como a atividade
humana destinada a prover às necessidades da vida, especialmente a
sua conservação (RN, 6). Ele tem uma dignidade e não se deve ter
vergonha de trabalhar para ganhar o pão do dia-a- dia, uma vez que o
próprio Jesus quis ser trabalhador (RN, 15).
O trabalho é pessoal e necessário: pessoal porque a força ativa é
inerente às pessoas e porque é propriedade daquele que a exerce e a
recebeu para a sua utilidade; é necessário porque o homem precisa
dele para sobreviver. O trabalho tem uma prioridade sobre o capital. O
magistério posterior (Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI) seguiu
basicamente estas indicações deixadas por Leão XIII.
Sendo que, podemos afirmar que a sociedade posiciona-se com o
manifesto do partido comunista social e político e a Igreja com a
Doutrina Social da Igreja. Ao longo do tempo, a Sociedade tem-se
posicionado com o empreendedorismo social que tem na sua génese
movimentos sociais característicos de determinados momentos da
história das sociedades, como por exemplo o associativismo, o
mutualismo e o cooperativismo, e que, ainda hoje, são a base
organizativa de alguns movimentos sociais. Atente-se que, a revolução
industrial criou o capitalismo em que o poder estava nas mãos de
algumas pessoas, a Igreja ao posicionar-se com a doutrina social,
recorda o princípio do bem comum. Tudo o que existe no mundo é
para todos e todos devem ter iguais oportunidades.

EMPREENDEDORISMO APLICADO À REALIDADE MOÇAMBICANA

A Independência de Moçambique deu-se no dia 25 de junho de


1975, no Estádio da Machava, Maputo, proclamada por Samora Moisés
Machel. Tendo como Divisão Administrativa: Províncias (11),
Autarquias/Municípios (53 – criados em 1998), Distritos (154), Postos

246
Administrativos e localidades, numa extensão de 799,380 km², com
uma população de 28,8 milhões de habitantes: 15,061 milhões de
mulheres e 13,800 milhões de homens, segundo o último
recenseamento de 2017, lembrar que em 1997 eram 16,1 milhões e 2007
eram 20, 5 milhões (http://www.ine.gov.mz). Faz fronteira a norte com
a Tanzânia, a oeste com o Malawi, Zâmbia, Zimbabwe e Suazilândia, a
sul com a África do Sul e a este é banhado pelo Oceano Índico, numa
extensão de costa marítima cerca de 2.770 Km.
São identificáveis três fórmulas principais da Lei fundamental de
Moçambique. A Constituição fundadora, datada de 1975 e as versões
que se lhe seguiram, a de 1990 e a atual, de 2004. Cada uma espelha
contextos políticos diferentes correspondendo a fases que marcaram
a evolução do país.
O Empreendedorismo em Moçambique deve ser visto neste
contexto da construção do Estado Moçambicano.

O ESTADO MOÇAMBICANO

Antes da independência Moçambique era uma colônia


portuguesa e logo a seguir à independência Moçambique aderiu a o
marxismo-leninismo. Em 1990, com abertura do país para um Estado
democrático é que se abre ao associativismo (Lei nº 8/91 de 18 de
Julho), permitindo iniciativas coletivas ou individuais. Podemos
visualizar aqui o nascimento do empreendedorismo, aquando da
independência, o governo propôs a criação do Homem Novo.
Por via da Independência era preciso criar o Homem Novo. A
Igreja apercebe-se que a criação deste homem novo passa por muni-lo
não só de conhecimento, mas de autossuficiência. O Homem novo da
Frelimo resultou na Exclusão. Como soía dizer-se: disseram abaixo o
capitalismo e viva o socialismo. O povo abaixou, mas quando levantou
a cabeça os que tinham dito abaixo os capitalistas já eram eles os
capitalistas.
O Homem Novo devia rejeitar tudo que era do colono. Um
homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade
burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade
socialista. Os que negavam incorporar-se a este homem novo eram
enviados aos chamados campos de operação produção (machambas)
para serem educados, mas produzindo em 1981 nas zonas do interior

247
do Norte: Cabo Delgado e Nampula. Na prática, tratava-se de grandes
acampamentos para onde eram enviados “marginais”, “suspeitos” ou
inimigos políticos (como Urias Simango). Nas machambas, todos
teriam que trabalhar na lavoura durante o dia, construir as suas
palhotas e, ao final da jornada, assistir a cursos de marxismo-leninismo.

A IGREJA CATÓLICA

A Igreja Católica em Moçambique teve e tem um impacto na


Educação e no Empreendedorismo Social.
Já no tempo colonial criou-se em Moçambique aquilo a que se
chamou Igreja e Escola. As Igrejas não eram somente lugares para
ouvir a palavra de Deus mas também para a Educação, Artes e Ofícios.
A maior rede escolar pertence à Igreja católica. As igrejas e capelas-
escola não só eram lugar de culto, mas de Educação.
Com a Concordata, a Igreja em 2012 ganha maior pujança, o que
na verdade é um memorando de intenção e de boas relações entre a
Santa Sé e o Governo Moçambicano, como diz o próprio prefácio que
passamos a citar: “A República de Moçambique e a Santa Sé,
doravante designadas por partes: para favorecer uma sã colaboração
entre o Estado moçambicano e a Igreja católica, no respeito pela
independência e autonomia de cada uma das Partes no seu âmbito
próprio acordam”.

CARITAS MOÇAMBICANA NA VANGUARDA DO


EMPREENDEDORISMO

No campo do empreendedorismo por parte da Igreja pode-se


destacar a Caritas Moçambicana que criou meios de emponderar os
crentes para autossuficiência, a criação da união geral das
cooperativas que veio agregar camponeses e avicultores, assim como
as salinas de Mabone.
De acordo com o “Decreto sobre a atividade missionária da
Igreja” (AG,19), publicação que resultou das discussões do Concílio
Vaticano II, a caridade deve ser entendida como um ato de amor ao
próximo. Observamos que a caridade é difundida como um dever
cristão, como possibilidade de demonstrar perante a sociedade um
caráter nobre e bondoso. Portanto, sente o Governo, que a Igreja se

248
manifesta no campo social a fim de promover a justiça social. Os
Fundamentos bíblicos são: O Antigo Testamento, que propõe romper
os grilhões da iniquidade, soltar as ataduras do jugo, pôr em liberdade
os oprimidos, desperdiçar toda espécie de jugo, repartir o pão com o
faminto, abrigar os desabrigados, vestir o nu; enfim, agir com amor
concreto ao próximo (Is 58). O Novo Testamento enfatiza a comunhão
de bens, a solidariedade e a fraternidade entre os cristãos (At 2, 44ss).
A Caritas Moçambicana foi fundada em 1976. E no ano seguinte
1977, no mês de novembro, em Assembleia Ordinária da CEM decide-
se a implantação da Cáritas Diocesana. Fazendo jus à decisão tomada
sua Eminência Reverendíssima Senhor Cardeal Dom Alexandre Maria
dos Santos, OFM, criou a Caritas Arquidiocesana de Maputo.
Por trás da decisão da CEM estava todo o contexto triste da
bárbara guerra civil que vitimou muitos moçambicanos, fazendo surgir
um número elevado de refugiados, desabrigados e necessitados. A par
deste cenário estavam também as situações calamitosas, provocadas
pelas intempéries naturais, para citar alguns exemplos, 1976 e 1977
cheias da bacia do Incomáti. 1980, grande seca no país, que também
originou deslocados. 1984, chuvas torrenciais que fazem
transbordarem o Umbeluzi e Incomáti. Nos anos 2000, cheias que
afetaram quase todo o país.
Neste contexto foram surgindo apoios externos vindos de todos
os quadrantes do mundo. Chegavam bens e consumíveis de todos os
tipos para ajudar as vítimas de Moçambique que estavam numa
situação de carestia quase total. Por causa disto este tempo foi
chamado da época dos contentores. Só se falavam de contentores,
constantemente. Neste âmbito de ajudas, é bom frisar que também
surgem congregações religiosas que entram neste ritmo filantrópico,
recebem doações e canalizam-nas para as vítimas.
Depois disto, surge outra fase, a fase de projetos na tentativa de
se criar uma autossustentabilidade. E quase todos procuram fazer
projetos para manter as suas atividades pastorais. É neste cenário em
que nos encontramos, fase de projetos autossustentáveis que
procurem criar sustentabilidade a partir das bases.
Então, é neste histórico contexto que a imagem da Caritas é
criada, a sua identidade é rotulada: Caritas instituição de doações que
só dá. Todos os que precisarem, mesmo que não sejam necessitados
para lá se devem dirigir.

249
Infelizmente, esta imagem ainda continua, mesmo depois de ter
passado o período de guerras e das frequentes emergências. Os
nossos fiéis estão habituados a receberem e o Padre que não dá é mau;
o setor de caridade que não distribui alimentos, não presta. É assim
que uma das nossas batalhas atuais é combater esta mentalidade e
criar uma mentalidade nova e diferente; uma caritas que parta da base,
das comunidades e de todos os fiéis e não do estrangeiro.
Estar neste combate dando origem a muitos Projetos de
autossustentabilidade e de empreendedorismo em todo o país, é a
missão da Igreja e da sociedade. Há um slogan moçambicano que diz:
há duas coisas que chegam a todas as partes do país: coca – cola e a
Igreja Católica. Há que acrescentar o da autossuficiência e o
empreendedorismo do Homem novo.

O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA NA EDUCAÇÃO

No campo da Educação-Ensino pode-se destacar as escolas


comunitárias, a Universidade Católica de Moçambique, A Universidade
de São Tomás de Moçambique, Instituto Superior Profissional Dom
Bosco, as várias Escolas de Artes e Ofícios espalhadas pelo país criadas
e coordenadas pela Igreja Católica. A lista podia ser enorme daquilo
que a Igreja Católica faz em Moçambique.
Portanto, o empreendedorismo social, a educação e ensino são
os pilares da Igreja Católica na garantia do bem comum do homem e
da mulher, vistos em pé de igualdade.

CONCLUSÃO

O percurso que fizemos permitiu-nos concluir que Educação,


Ensino e Evangelização têm muitos pontos de aproximação e diálogo.
Pois, perseguem o mesmo objeto que é homem. Tanto a Educação,
Ensino e a Evangelização passam por dar dignidade ao homem, criando
nova cultura, nova ética e nova moral. Outro sim há consciência que só
um homem proactivo pode conseguir estes objetivos, daí a
necessidade da aposta no empreendedorismo como uma forma de
inovar. Mas, não empreendedorismo por si só, mas o
empreendedorismo social, pois este persegue o bem comum que visa
o bem-estar do homem, na criação da riqueza, na família e na

250
sociedade. Uma renovação da educação e da teologia só pode ser
benéfico para o homem individual, social e coletivo. Por isso, a aposta
na formação do homem, no sentido de se despojar da atitude da
submissão das filhas, dos filhos e de mulher-esposa, a todos níveis,
criará na sociedade mais respeito e sobretudo dará a dignidade
necessária a quem mais precisa.

Finalizo o capítulo com uma nota de recomendação:


Pode parecer contraproducente sobretudo neste momento, em
que Moçambique, foi vítima dos desastres naturais, apostar no mar.
Todavia, deve-se dizer que o mar em Moçambique ocupa uma grande
extensão e é fonte de riqueza. A China pode ser exemplo da promoção
e abertura ao mundo com as parcerias no empreendedorismo, no
litoral oceânico, que tão benéficos resultados têm trazido para a vida
do povo chinês. Relembremos que também este país começou a sua
revolução pela agricultura, da qual se viu obrigada a colocá-la em
segundo plano. Sugiro que haja mais investimento no estudo do mar e
mais empreendedorismo focado no mesmo. Não há maior beleza que
o litoral de Moçambique. Ademais, o mar associado ao desporto pode
ser uma fonte rendimento, atendendo que o ser humano se fascina
com tudo aquilo que é exótico, embora possa contar com
adversidades, mas o homem deve lutar contra a natureza. O exemplo
é a Holanda e o Japão que apesar de todas diversidades do mar
conseguiram erguer-se. O contacto com o mar diversifica mais as
relações ou até podemos dizer que o mar universaliza as relações. O
trabalho junto ao mar desbloqueia os comportamentos
preconceituosos e traz-nos a liberdade para o empreendedorismo que
nos aproxima da Igreja, do Estado e da Sociedade.

REFERÊNCIAS

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empreendedorismo, inovação e Tecnologia. 2014, p. 25–38. Disponível
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251
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Revista Diálogo Educacional. ISSN 1518-3483. 11:33, 2011. pp. 573–594.
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252
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REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Lei nº 8/91 de 18 de Julho do
Associativismo: Boletim da República.

253
254
AS PAISAGENS NOSTÁLGICAS E O ETERNO RETORNO NO POEMA
SÚPLICA, DE NOÉMIA DE SOUSA

Sandra Fonseca Pinto1¹


Carlete Maria Thomé2

INTRODUÇÃO

Noémia de Sousa é considerada a mãe dos poetas


moçambicanos. Mulher negra, sempre foi militante da FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique). Seus poemas são um mosaico
de culturas, assim como seu país. É possível encontrar em seus versos
a excentricidade de sua cultura, com ricos elementos passíveis de
diversos segmentos de análise.
Dessa maneira, esta pesquisa tem o objetivo de analisar as
paisagens nostálgicas constituídas no poema Súplica, de Noémia de
Sousa, para demonstrar como as paisagens percebidas no poema
expressam a nostalgia presente na obra, configurando o mito do
eterno retorno. Por um processo fenomenológico, o sujeito observa a
paisagem e apreende seu sentido, construindo um pensamento-
paisagem. Esse pensamento constitui uma cena nostálgica.
A nostalgia é um sentimento que plasma a melancolia do sujeito,
que sofre por estar longe de casa, iludido por um retornar inexistente,
caindo num círculo interminável do eterno retorno. Dessa forma, o
problema que essa pesquisa aborda é: como relacionar as paisagens
contidas no poema analisado com o sentimento de nostalgia e do
eterno retorno?
Para alcançar o objetivo esperado, esta investigação utiliza
aportes teóricos de Collot (2010, 2013) e Merleau-Ponty (1999, 2007),
sobre a fenomenologia da paisagem e da percepção, Tuan (1980,
1983), sobre a noção de espaço, lugar e topofilia, Starobinski (1966),

1 Doutoranda – PPGL (Programa de Pós-Graduação em Letras) – UPF/Passo Fundo-RS,


E-mail: [email protected]
2 Doutoranda – PPGL (Programa de Pós-Graduação em Letras) – UPF/Passo Fundo-RS,

E-mail: [email protected]

255
Jankélévitch (1974) e Vecchi (2017), sobre o conceito de nostalgia,
Gusdorf (1980), Hesíodo (2007) e Eliade (1991, 2012), sobre o mito.
Os procedimentos metodológicos foram realizados mediante
pesquisa descritiva, de base bibliográfica e análise qualitativa. O corpus
de análise é um poema intitulado Súplica, da poetiza moçambicana
Noémia de Sousa. Essa escolha se deu pela forte presença de nostalgia
nas paisagens percebidas nessa obra.
Assim, na segunda seção, serão abordados os conceitos de
fenomenologia da paisagem e da percepção. Na segunda seção,
haverá uma explanação a respeito do conceito de nostalgia. Na
terceira seção, será enfocado o conceito de nostalgia na música. Na
quarta, e última seção, será feita a análise do poema proposto,
dividindo-se as estrofes e versos, para uma melhor demonstração das
paisagens nostálgicas e, por fim, o mito do eterno retorno presente na
obra.

A FENOMENOLOGIA DA PAISAGEM

Pode-se afirmar que, à luz da teoria de Collot (2013), a paisagem é


uma extensão de região que se abre ao observador. Sendo um espaço
percebido, ela é apreendida por um sujeito, a uma perspectiva do
olhar. Sendo assim, a paisagem e o ponto de vista estão intimamente
relacionados. Une-se, então, à noção de paisagem três componentes
relacionados entre si complexamente: um local percebido, um olhar
que observa e uma imagem formada a partir dessa relação. Collot
(2013), explica a relação entre o sujeito e o mundo através da
fenomenologia.
De acordo com Collot (2013): “[...] a paisagem não é apenas um
procedimento social, econômico e político, mas que nela podem ser
investidos significações e valores tanto coletivos como individuais,
todo um imaginário ao qual a ficção e a poesia podem dar sua plena
expressão” (COLLOT, 2013, p. 15). O ser se funda no mundo
fenomenológico, e é nele que ele se conhece e se percebe como
existência no mundo (MERLEAU-PONTY, 2007). Assim, um ambiente
só se tornará paisagem quando for percebido por um sujeito.
Para Collot (2013), a perspectiva do olhar, a observação e a
percepção da paisagem levam a um pensamento-paisagem, forma de
pensamento partilhado entre o homem e as coisas, e uma maneira

256
diferenciada de refletir sobre o mundo, pois, segundo esse autor, o
visível se estrutura ao sujeito em forma de uma paisagem em
potencial, que não se enquadra como construção contingente, mas
como estrutura fundamental da percepção do homem.
O horizonte da paisagem se confunde com o campo visual do
sujeito que observa, e este se confunde com o horizonte da paisagem;
ao assimilar uma paisagem, o sujeito lança mão de experiências pré-
existentes em sua vida, por meio de recordações, visto que a
percepção responde aos estímulos externos, por meio dos fenômenos
(COLLOT (2013). O sujeito estende-se para o mundo por meio desse
sentimento, e muito do que apreende está ligado aos valores
biológicos e culturais. Portanto, para evocar sentido em uma paisagem
observada é necessário que o indivíduo traga à tona lembranças e
recordações, sejam por experiências pessoais ou pela cultura implícita,
adquirida socialmente (TUAN, 1980).
Segundo Merleau-Ponty (1999), para que o sujeito possa
completar a percepção, antes mesmo da contribuição da memória, o
que é observado deve formar um quadro que possibilita ao sujeito o
reconhecimento de experiências anteriores. É preciso que os dados
apreendidos tornem possíveis recordações. Assim, o caos sensível é
organizado pelo sujeito, que impõe sentido ao quadro observado,
como um apelo a essas recordações. Por meio da visão, tem-se o
espetáculo do mundo, cabe ao sujeito reorganizar os dados e
preencher as lacunas para dar sentido ao caos.

SOBRE O CONCEITO DE NOSTALGIA

O termo nostalgia surgiu para designar um sentimento bastante


especial dentro da nomenclatura médica, quando soldados que foram
para a guerra ou os exilados estavam definhando por estarem longe
de casa. Em 1688, Johanes Hofervs, um médico suíço definiu nostalgia
como causa moral de uma doença física. Em latim, desiderium pátrio,
significa o desejo do nosso país. Nóstos significa viagem, álgos, significa
dor, ou seja, dor da viagem/regresso. É um distúrbio causado pela
distância de casa (VECCHI, 2017).
Para Tuan (1983), o sentimento pela pátria é uma emoção
comum, que se intensifica de acordo com o vínculo relativo aos laços
existentes no lugar. Uma verdade absoluta da localização humana, que

257
não é limitada a nenhuma cultura. Quando o homem se familiariza com
o espaço, percebe características do passado e assim reconhece um
lar, pois o lar fornece uma imagem do passado, um centro que leva ao
significado de origem (TUAN, 1983). Assim é o sentimento intenso que
o homem tem pela pátria, pois é um tipo de lugar importante.
Por meio da sensibilidade do nostálgico, é possível entender que
a verdadeira pátria de todos os homens não é deste mundo, mas de
além do mundo, e que a verdadeira pátria de todos os homens não se
encontra em nenhum mapa, é uma pátria escatológica, uma espécie
de jesuíta celestial, situada no horizonte de toda a esperança
(JANKÉLÉVITCH, 1974). O nostálgico é aquele que, estando longe,
sofre. De acordo com Tuan (1980), esse sentimento caracteriza a
topofilia, que se refere à relação afetiva entre o sujeito e o espaço
físico, refletida na experiência pessoal.
Starobinski (1966), afirma que a nostalgia é uma turbulência
íntima ligada a um fenômeno temperamental, capaz de desencadear
uma hipermídia emocional que relaciona a ilusão apaixonada do
passado com o sentimento doloroso de separação. Portanto, o
conceito de nostalgia é o habitante de um país distante, cujos usos e
língua são diferentes dos seus e devem ser apreendidos
sensivelmente.
A nostalgia se funda em algo trágico, o retorno, pois, mesmo que
se retorne ao lugar familiar, este não será mais o mesmo, pois a ação
do tempo e da natureza modificam constantemente o espaço
percebido pelo sujeito. O regresso, então, torna-se uma outra partida.
O retorno é impossível, é um erro infinito. Mas a nostalgia alimenta a
ilusão do retorno, tornando-se em um ciclo infinito de retorno, o mito
do eterno retorno (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Sob esse contexto, há a irreversibilidade do tempo e do espaço.
O sujeito nostálgico recusa o presente, porém alimenta uma ilusão de
retorno que não existe. O retorno, assim, é uma panacéia. A
impossibilidade do regresso é o que faz o nostálgico (VECCHI, 2017).
Saudade, nostalgia e melancolia são posturas diferentes em
relação ao tempo e permitem interseção entre elas. Há uma
ambiguidade entre nostalgia e saudade. A saudade é a mistura de dois
termos: passado e presente ou, ainda, memória e esquecimento.
Assim, a saudade implica o retorno, o ficcionaliza, mas a nostalgia é a
impossibilidade de retornar. A saudade se configura como passado

258
reinventado, recuperado, portanto, é uma agência. A saudade possui
acumulação de tempo e é a invenção do retorno, enquanto que a
nostalgia é a ilusão do retorno, isso é o que distingue esses dois termos
(VECCHI (2017).
Já a melancolia é uma situação patológica, referente ao luto
(trauma). Refere-se à impossibilidade de terminar um processo – o de
luto. Esses dois conceitos fazem parte do mesmo processo. Porém, o
luto é positivo, uma vez que tem o objetivo de finalizar a dor daquilo
que se perde. Já a melancolia é negativa, pois mantém a dor do que se
perdeu. Assim, por estar fixado numa idea, o sujeito acaba por
assimilar representações errôneas (STAROBINSKI, 1966). No processo
de luto: é preciso enterrar o morto para completar o processo de luto,
de outro modo, vem à tona o sentimento de melancolia em forma de
espectros, elemento fantasmagórico, que são as relações com
fantasmas do passado. Na fantasmagoria, a verdade é uma ilusão
(VECCHI (2017).
De acordo com Jankélévitch (1974), a nostalgia é uma melancolia
humana tornada possível pela consciência, que é a consciência de
outra coisa, um contraste entre passado e presente, entre presente e
futuro. O exílio, portanto, tem uma vida dupla, como uma
superposição de vidas, a do passado e a atual. Os lugares distantes
tornam-se para o nostálgico a representação de uma segunda vida,
uma vida poética e sonhadora, uma vida fantasmagórica que ocorre à
margem da primeira. O exilado tenta ouvir as vozes internas através
do ruído estridente da vida cotidiana, mas essas vozes interiores são
as vozes do passado e da cidade distante, elas sussurram um segredo
nostálgico na linguagem da música e da poesia (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Sendo condições universais, as três palavras: nostalgia,
melancolia e saudade têm cabo na memória. A saudade é o elemento
que une os outros dois termos. No entanto, esses três elementos
constituem o tripé das perdas. Com o colonialismo e ditaduras, houve
a fantasmagorização do passado, pois não houve o processo completo
de luto (VECCHI (2017). Tem-se, então, o mito do eterno retorno. A
nostalgia depende do ponto de vista do sujeito, pois é uma posição no
presente em relação ao passado, o manifestante reivindica o retorno
às fontes originais de tudo o que constitui uma linguagem natural,
fabular, nacional encanto popular, que afirma o direito imprescritível
das origens históricas e geográficas. O protesto da nacionalidade

259
oprimida, frustrada e alienada prontamente toma uma forma musical
(JANKÉLÉVITCH, 1974).

A MÚSICA NOSTÁLGICA E A REATUALIZAÇÃO DO TEMPO

Durante muito tempo, os povos se reuniam para ouvir os poetas


cantarem suas histórias. A narrativa oral trazia a mais sublime
experiência espiritual, por ser capaz de restaurar e renovar a vida, uma
vez que a palavra tornava os fatos passados e futuros em fatos
presentes. Nesse sentido, os poemas narrativos tinham o poder de
colocar o tempo e o mundo em seu estado original, revigorando-os e
restabelecendo-os, assim como surgiram em seu estado primordial,
com toda sua perfeição, o retorno a: “um mundo mágico, mítico,
arquetípico e divino, que beira o espanto e o horror, que permite a
experiência do sublime e do terrível, e ao qual o nosso próprio mundo
mental e a nossa própria vida estão umbilicalmente ligados”
(HESÍODO, 2007, p. 19). Renovar o tempo e o mundo através da força
da palavra garantia a presença das divindades protetoras.
De acordo com Eliade (2012), reatualizar os mitos é esforçar-se
para definir o espaço e criar ordem onde houver caos, compartilhando,
assim, a expressão sagrada dessa ação. As noções de realidade,
verdade e significação, desenvolvidas mais tarde pelas especulações
metafísicas, como a fenomenologia, são despontadas pela experiência
do sagrado. Assim, o mito surge como um protótipo de equilíbrio
universal, refletido no comportamento humano de retorno à ordem
primordial, como forma de reintegração:

No homem, o possível passa à frente do real: alargando indefinidamente a


paisagem, ele mantém a nostalgia de uma expansão superior do ser. Realiza-se
assim permanentemente uma transfiguração do horizonte natural. O habitat
humano assume forma mental. A consciência mítica permite a constituição de
um envolvimento protetor no seio do qual encontra o homem seu lugar no
universo. (GUSDORF, 1980, p. 25)

A música exerce um poder nostálgico muito grande. A melodia


provoca diferentes reações no sujeito. De acordo com Starobinski
(1966), a melodia deve ser considerada como algo relativo, pois é
baseada nas associações de ideias e hábitos particulares e pela
linguagem de sentimentos e paixões. Desse modo, ouvir uma música

260
que fez parte do passado, desperta memórias, que, em conjunto com
o som, desperta uma presença floreada de sentimento, mesmo que a
causa primitiva desse sentimento não seja lembrada. Esses efeitos são
derivados dos hábitos da infância ou de um antigo modo de vida e
despertam, nos sujeitos deslocados, uma dor amarga por ter perdido
tudo. O aqui age não como música, mas como uma lembrança.
De acordo com Jankélévitch (1974), a música é
imperceptivelmente nostálgica na sua essência. Diante da
impossibilidade de retornar ao país familiar, o homem, desesperado de
milagres, começa a cantar. Na música e na poesia, o homem nostálgico
encontra sua língua. A música, uma linguagem ambígua, não usa
palavras unívocas para transmitir um significado predefinido, também
é feita para expressar, e até mesmo para inspirar, sentimentos não
motivados. A música, por outro lado, que não age diretamente sobre
as coisas para transformá-las, mas dá voz ao impotente passado e
infeliz irreversibilidade. No entanto, o contrário da vida, o trabalho
musical é repetível, pode-se reproduzi-lo infinitamente.
Assim, de acordo com Starobinski (1966), o sinal mnemônico é
uma presença parcial que faz sentir, com dor e prazer, a iminência e a
impossibilidade do retorno total do universo familiar, que emerge tão
facilmente do esquecimento. É a gentil melancolia do passado em
geral que se exala nas cantigas. É o arrependimento incurável da
felicidade que já passou, da felicidade sem lugar ou data. A casa da
lembrança é, por excelência, a música (JANKÉLÉVITCH, 1974).
A teoria acústica da nostalgia, conforme Starobinski (1966), vem
da junção dos temas: exílio, música, memória dolorosa e terna,
imagens douradas da infância; e contribuem, também, para a
formação da teoria romântica da música. Segundo esse autor, é por
meio da sensação de audição que pode tornar sensíveis lugares e
coisas extraordinárias. Os sons provenientes de lugares sublimes
promoverão uma impressão mais profunda do que as formas
apreendidas.
Começa uma espécie de retorno infinito. São as formas
retrospectivas de desejo, a esperança de um passado por vir e o retorno
a um futuro que já ocorreu, são formas paradoxalmente recíprocas da
mesma nostalgia. Neste ponto, a idade de ouro do passado mais distante
é um futuro quimérico. O homem que retorna à sua origem, à sua
inocência, retorna para onde ele nunca mais voltou, volta a ver o que ele

261
não viu e esse falso reconhecimento é mais verdadeiro do que o homem
verdadeiro, guiado por verdadeiro falso reconhecimento, retorna a um
lugar desconhecido (JANKÉLÉVITCH, 1974).
Nesse sentido, Eliade (1991), afirma que, por ser um acontecimento
primordial, o mito narra sempre uma criação, de que forma algo passou a
existir. Conta uma realidade absoluta de algo que se revelou plenamente
no mundo. Dessa maneira, o círculo não fecha. Há a eterna peregrinação
em busca das fontes do verdadeiro objeto que causa a nostalgia. O tempo
nostálgico não é a ausência em oposição à presença, mas o passado em
relação ao presente, o verdadeiro remédio, mas a parte de trás na
retrocessão do espaço para o passado no tempo, não é novo, mas o
eterno retorno (JANKÉLÉVITCH, 1974).

A PAISAGEM NOSTÁGICA DA MÚSICA NO POEMA SÚPLICA

Considerada a mãe dos poetas moçambicanos, Noémia de Sousa é


uma importante representante da literatura africana, de extração
portuguesa. Em seus poemas é possível perceber o envolvimento social
da autora como militante, com os ideais de libertação de Moçambique,
numa época em que ainda era colônia de Portugal. Sangue negro (1988),
é um mosaico de culturas, nos poemas é possível encantar-se com
crenças, ritos, mitos entre tantos outros aspectos presentes em uma
literatura que reflete a excentricidade de Moçambique.
Assim como em outros poemas, o tema música aparece com tom
de identidade de um povo e resgate às origens. O poema Súplica é
composto por quarenta e dois versos, distribuídos em seis estrofes,
que não obedecem a uma métrica exata, constituindo-se em versos
livres. Já na primeira estrofe do poema há a manifestação da nostalgia
de um eu lírico que busca o resgate de sua identidade pelo ideal da
música: “Tirem-nos tudo,/mas deixem-nos a música!” (SOUSA, 1988, p.
37-38). O sujeito da estrofe é a primeira pessoa do plural, o que remete
à ideia de conjunto, ou seja, um eu lírico e sua nação. Ao se comparar
os dois termos, subseqüentes nos dois versos, “tudo” e “música”,
percebe-se o valor dado às duas palavras. “tudo” possui um valor
menor do que “música”, pois, ainda que se tirem todas as coisas, o
mais importante é a música, ou seja, a música é, sob a perspectiva de
Collot (2013), uma percepção fenomenológica transcendente, que está
além do meio físico.

262
A partir da segunda estrofe, a poeta utiliza recursos estilísticos para
a construção das imagens de Moçambique, paisagens percebidas pelo
eu poético como enraizamento de uma terra natal: “(1) Tirem-nos a terra
em que nascemos,/ (2) onde crescemos/ e onde descobrimos pela
primeira vez que o mundo é assim:/ um tabuleiro de xadrez...” (SOUSA,
1988, p. 37-38). Esses versos remetem à infância do sujeito poético, pois
há a referência do local de nascimento, expressando o que Tuan (1980)
chama de topofilia, uma afetividade ao seu lugar de origem, o lugar
familiar. Nos dois últimos versos dessa estrofe há a melancolia presente
no fato de descobrir que a vida “é um tabuleiro de xadrez”, esse
sentimento remete ao pensamento de que a vida é um jogo, cujas peças,
as pessoas, podem ser lançadas para diversas direções, inclusive, para
longe de casa. As reticências utilizadas no final do último verso indicam
incerteza e lamento ao se descobrir adulto, idade em que se vive a
experiência dos percalços da vida, pois, conforme afirma Starobinski
(1966), o nostálgico não quer o lugar de sua juventude tanto quanto a
juventude em si. Seu desejo não é de algo que ele possa encontrar, mas
de um tempo que é eternamente irreparável.
Na terceira estrofe do poema, há doze versos, que configuram
uma paisagem mais tradicional de Moçambique, com elementos
típicos da cultura desse país, enfatizando a nostalgia sentida pelo eu
lírio:

(3) Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,


(4) a lua lírica do xingombela
(5) nas noites mulatas
(6) da selva moçambicana
(7) (essa lua que nos semeou no coração
(8) a poesia que encontramos na vida)
(9) tirem-nos a palhota – a humilde cubata
(10) onde vivemos e amamos,
(11) tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
(12) tirem-nos o calor do lume
(13) (que nos é quase tudo)
(14) - mas não nos tirem a música! (SOUSA, 1988, p. 37-38)

No verso três (3), há a ideia de deslocamento do local natural,


uma vez que, fisicamente, não é possível se “tirar” o sol que aquece
alguém, mas é possível retirar o sujeito do seu lugar familiar, privando-
o de viver o que o ambiente oferece naturalmente. A expressão
metafórica de uma laceração mais profunda na qual o sujeito se sente

263
separado do seu ideal é resultado da experiência dolorosa da
consciência arrancada de seu ambiente familiar (STAROBINSKI, 1966).
Nos versos quatro (4), cinco (5) e seis (6) há a paisagem percebida pelo
eu poético como encantamento pelo local e experiência vividos. A
paisagem, segundo Collot (2013), é uma extensão de região que se
abre ao observador. Sendo um espaço percebido, ela é apreendida por
um sujeito, a uma perspectiva do olhar. A poetisa descreve uma dança,
em noite de luar, na selva de Moçambique, ou seja, descreve a
paisagem percebida como memórias reminiscentes de um tempo mais
primitivo. Xingombela é uma dança típica moçambicana antiga,
praticada em terreiro, no início da noite, por isso “a lua lírica do
xingombela”. Essa dança é acompanhada de batuques, apitos e
xipalapala, que são chifres de gazela. Os dançarinos, meninos e
meninas jovens, praticamente da mesma idade, usam peles de animais,
palhas e pulseiras para dançar. Conforme afirma Jankélévitch (1974), a
música, às vezes, deixa as pernas intermitentes no passado e nas
profundidades da memória, nas canções, as velhas lembranças surgem
da sombra, seguidas por seu próprio eco, se eleva como uma
reminiscência distante, o passado, ao chamar de encantamento, de
repente levanta, no local, para a luz do presente. Esse encantamento
vem, a seguir, nos próximos versos, como uma explicação, que a
autora coloca entre parênteses, desse sentimento: (7) “(essa lua que
nos semeou no coração/ (8) a poesia que encontramos na vida)”.
Os versos seguintes também configuram a paisagem
moçambicana nostálgica de moradia. Nos versos “(9) tirem-nos a
palhota – a humilde cubata/ (10) onde vivemos e amamos” (SOUSA,
1988, p. 37-38), palhota e cubata são descrições de cabanas
vernaculares e casas cobertas por folhas, típica choupana de negros
africanos. Mais uma vez, o eu lírico expressa sentimento de amor pelo
local: “vivemos e amamos”.
Há, novamente, referência ao local amado pelo sujeito, mas,
desta vez revelando a dificuldade e pobreza, como nas condições de
subsistência do indivíduo? “(11) tirem-nos a machamba que nos dá o
pão,/ (12) tirem-nos o calor do lume/ (13) (que nos é quase tudo). Aqui,
a machamba é o quintal, a horta onde se plantam vegetais. Lume é
característico a fogo, chama, ou seja, o que aquece o corpo e a vida e
o que, para o eu lírico “é quase tudo”. Mesmo se tratando de alimento
e do conforto do calor, ainda assim, o sujeito poético expressa a

264
submissão da ausência desses elementos, no entanto, reafirma: “(14) -
mas não nos tirem a música!”. A música, nesse sentido, é mais
importante do que o próprio alimento, visto que ela não alimenta o
corpo, mas a alma. Para Jankélévitch (1974), a música encontra seus
acentos mais profundos e desperta nos corações o eco mais fraterno.
Há, nos versos, a junção do exílio, música, memória dolorosa e terna,
que são imagens do passado, conforme aponta Starobinski (1966),
pois é pela sensação de audição tornam-se sensíveis lugares e coisas
extraordinárias.

(15) Podem desterrar-nos,


(16) levar-nos
(17) para longe terras,
(18) vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos
(19) à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
(20) mas seremos sempre livres
(21) se nos deixarem a música! (SOUSA, 1988, p. 37-38)

Nos versos acima estão expressos o sentimento doloroso de


melancolia pelo deslocamento da pátria amada, uma vez que o eu lírico
traz à tona toda a cultura de escravidão vivida pelo povo moçambicano
no passado, momento em que foram retirados de suas terras, não
geograficamente, mas a terra metafísica, a terra sagrada à qual
pertenciam. Porém, o eu lírico deixa claro, nos dois últimos versos
dessa estrofe, que serão sempre livres “(21) se nos deixarem a
música!” (SOUSA, 1988, p. 37-38), ou seja, a música torna-se condição
de liberdade. É através da música que haverá sempre o retorno ao
tempo em que tudo se viva em paz e equilíbrio, tempo de liberdade,
um protótipo do de equilíbrio universal, refletido no comportamento
humano de retorno à ordem primordial, como forma de reintegração
(ELIADE, 2012).
Essa ideia de retorno ao tempo original é reforçada nos três
primeiros versos dessa estrofe: “(22) Que onde estiver nossa canção/
(23) mesmo escravos, senhores seremos;/ (24) e mesmo mortos,
viveremos,” (SOUSA, 1988, p. 37-38), pois é evidenciado que onde
estiver a canção, não haverá mais escravidão, a morte já não é
condição de não viver, pois viverão sempre pela música. O horizonte
da paisagem é observada pelo eu poético, que se confunde com o
campo visual que observa, e este se confunde com o horizonte da
paisagem, assimilando a paisagem por meio de experiências pré-

265
existentes e de recordações, visto que a percepção responde aos
estímulos externos, por meio dos fenômenos (COLLOT (2013). Na
música, o eu lírico nostálgico encontra sua língua, sua terra natal, seu
tempo original, por meio da contemplação meditativa: “(35) E o nosso
queixume/ (36) será uma libertação/ (37) derramada em nosso canto!”
(SOUSA, 1988, p. 37-38). O mais doloroso é a nostalgia do exílio na terra
estrangeira, a voz do país distante é ouvida através das lágrimas da
vida cotidiana (JANKÉLÉVITCH, 1974) .
Há a reiteração do mito do eterno retorno na última estrofe do
poema: “(40) Tirem-nos tudo.../ (41) mas não nos tirem a vida,/ (42)
não nos levem a música!” (SOUSA, 1988, p. 37-38). A música cantada
garante o retorno abstrato ao tempo de origem, mesmo que esse
tempo nunca mais volte, através da música o sujeito se reatualiza no
tempo, volta ao tempo original, garantindo a realidade absoluta
(ELIADE, 2012). Dessa maneira, o círculo não fecha. Há a eterna
peregrinação em busca das fontes do verdadeiro objeto que causa a
nostalgia. (JANKÉLÉVITCH, 1974).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa buscou-se demonstrar como as paisagens


percebidas na obra selecionada são constituídas, formando uma cena
nostálgica, que configurou o mito do eterno retorno.
Com o objetivo de analisar as paisagens nostálgicas constituídas
no poema Súplica, de Noémia de Sousa, demonstrou-se como a música
é interpretada pelo eu lírico como fonte de retorno às origens. A terra
natal é descrita no poema com elementos típicos da cultura
moçambicana, local contemplativo do sujeito poético.
Ao se apresentar o poema dividido em estrofes e versos,
conceberam-se os elementos que constituem as paisagens
nostálgicas, geradoras de sentido. A música é, para o eu lírico, a
garantia de libertação, fonte de reparação e equilíbrio, o eterno
retorno ao tempo primordial.
Nesta pesquisa, foi possível mostrar como o sujeito percebe a
paisagem subjetivamente, agregando a elas afetividade, a topofilia
sentida pela pátria amada, lugar desejado pelo sujeito do poema.
Por isso, conclui-se que esta pesquisa pode contribuir com os
estudos sobre paisagem e nostalgia, aproximando essas duas teorias.

266
Considera-se que todo sujeito pensa-paisagem, portanto, essa teoria
pode ser aplicada a qualquer texto literário, pois é centrada em torno
da perspectiva do sujeito e do horizonte fenomenológico que ele
observa.

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno: cosmo e história. 9. ed. São


Paulo: Mercuryo, 1991.
______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução
Rogério Fernandes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. São Paulo: Editora Convívio,
1980.
HESÍODO. Teogonia : A origem dos deuses / Hesíodo; estudo e tradução
Jaa Torrano. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. L'irréversible et la nostalgie. Paris:
Flammarion: 1974.
SATROBINKI, Jean (1966) Il concetto di nostalgia. In: Diogène: 92-115
SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. Moçambique: Associação de
Escritores Moçambicanos, 1988.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: Um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do
Meio Ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.
______. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL,
1983.
VECCHI, Roberto. Práticas e políticas da nostalgia colonial. Seminários
especiais. Passo Fundo: UPF, 2017.

267
268
AS MELODIAS DAS SEREIAS: LEITURAS, TRAVESSIAS E SENTIDOS

Jessé Pinto Campos1


Gilcilene Dias da Costa2

ARIA INICIAL

Caro amigo, sinto a necessidade de lhe conduzir por esses


caminhos, o fio do labirinto que se apresenta tentarei ser, entretanto
aviso que não há linha reta, nem caminhos tão fáceis, nem atalhos ou
brevidades, tampouco rota de fuga. Nosso pensar caminhará por
veredas íngremes, com pouca luz, nossa visão titubeará, e os sentidos
abraçarão a dispersão e o desconhecido. E habitaremos sentidos
outros da leitura por entre metamorfoses, sensações e sentidos a fim
de perspectivar uma leitura por vir e suas ressonâncias.
Uma leitura por vir é “o movimento entre todos os sentidos
possíveis” (BLANCHOT, 2013, p.357), uma metamorfose que se tece no
“movimento de comunicação pela qual o livro (leitura) se comunica
com ele mesmo” (Ibidem, p. 357), um movimento ousando que aspira
o “futuro de exceção a partir do que o livro vem na direção dele
mesmo e vem em nossa direção, expondo-nos ao jogo supremo do
espaço e dos tempos” (Ibidem, p. 357). Uma leitura ou livro “sem autor
e sem leitor, que não é necessariamente fechado, mas sempre em
movimento” (BLANCHOT, 2013, p.356), um movimento por vir que
caminha por entre veredas desconhecidas em movimento de devir,
pois não se sabe o caminho (e nem se pretende limitar o caminho) por
onde se pretende caminhar, apenas caminha por entre as sensações,
metamorfoses e deslocamentos de sentidos em um horizonte que
espreita abismos e incertezas. Caminha ainda, por rizomas em direções

1Universidade Federal do Pará (UFPA), Doutorando do Programa de Pós-Graduação


em Educação na Amazônia (Educanorte), Professor Substituto na Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]
2 Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em Educação pela Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação


em Educação e Cultura (PPGEDUC/CUNTINS/UFPA). Professora colaboradora nos
Programas de Pós-Graduação PPGED e PPEB/ICED/UFPA). E-mail:
[email protected]

269
desconhecidas. Aqui não se pretende enquadrar um horizonte, e sim,
construir nossa visão a partir ótica cartográfica.
E assim, no horizonte vislumbra o olhar de um devir-outro
(DELEUZE, 2011) entre o admirar e pensar o movimento, um
“movimento de diáspora que nunca deve ser reprimido, mas
preservado e acolhido como tal [...]” (BLANCHOT, 2013, p. 345), assim,
teremos um livro (leitura) “sempre em movimento, sempre no limite
do esparso, será também sempre reunido em todas as direções, pela
própria dispersão [...]” (BLANCHOT, 2013, pp. 345-346), um livro
(leitura) que pela dispersão se renova por descolamentos e desvios, “e
todo o desvio é devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas, nem
na linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 12), nem na leitura.
Os tons proféticos, os oráculos, o futuro... não apreende o
movimento por vir da leitura, tons vindouros nos levam a um lugar
distante, ainda vago de infinito alcance talvez. O movimento por vir
habita os deslocamentos, os devires, ora habita ora se transfigura em
marés de metamorfoses entre sensações e experiências plurais. Em
meio às experiências plurais, a leitura por vir dança a palavra por “um
movimento rítmico”, “escapando ao acaso por sua estrutura e sua
delimitação, realiza a essência da linguagem, que desgasta as coisas
transformando-as em sua ausência ao devir rítmico, que é o
movimento puro das relações” (BLANCHOT, 2013, p. 331). Um
movimento da leitura que convida a ausência a bailar as
metamorfoses, os abismos e incertezas.
Uma leitura por vir caminha longe da experiência da linguagem
fria e funcional para que a leitura não se torne epitáfios,
necromânticos, sem renovação, assim, uma leitura “por vir” cavalga
“no dorso da leitura” (COSTA, 2016), pois, “cavalgar no dorso da
leitura, produz, duplamente ao pensamento, euforia e embriaguez,
espanto e consternação” (COSTA, 2016, p. 140) e nos enlaça por entre
sensações, metamorfoses e transfigurações dos sentidos, em um
caminho outro que segue por veredas sem direção.
Uma leitura por vir segue “para além do futuro e não cessa de vir
quando está ali” (BLANCHOT, 2013, p. 352), continua a seguir o
movimento seguinte, impulsionado pelo desejo. Assim, a leitura por vir
transporta o leitor a habitar uma “dimensão temporal” (Ibidem, p.
352), “diferente daquela que o tempo do mundo nos fez mestres, está
em jogo em suas palavras, quando estas põem a descoberto, pela

270
escansão rítmica do ser, o espaço de seu desdobramento” (Ibidem p.
352). É valido ressaltar que foco aqui não é criar um perfil de “leitor
ideal” ou “prática pedagógica ideal”, pelo contrário, é (re)pensar a
leitura como um movimento por vir, tecido no limiar entre texto-
leitura, entre descolamentos, abismos e incertezas, para que
possamos vislumbrar a relação das sensações, metamorfoses e
experiência de sentidos oriundas das ressonâncias da leitura.

A MELODIA DAS SEREIAS

O sol acabara de abraçar a escuridão, e aos poucos os raios que


iluminam o rio se dissipavam, era possível ouvir o movimento das
águas, e ao redor da fogueira o silêncio era invadido pelo crepitar da
lenha e contar das histórias, as vozes que a história entoa lanceava
imagens que flutuavam pelo imaginário, transfigurando o horizonte
em uma janela rumo ao infinito das coisas. Ao olhar o campo
imaginativo, seguia em direção a novos mares, outras terras para
habitar, outros caminhos para se perder, os lares para morar, mas no
rio as águas mudam, todavia, a vontade de nadar seguia o movimento
por vir.
O som da tormenta da água aos poucos era apaziguado pelo
desejo íntimo, desejos aflorados pelas melodias da alma, tons e
espíritos de renovação. São as luas cheias, o convite a adentrar no
imaginário mítico das feras, do silêncio e das tempestades. É a lua cheia
o movimento de transfigurações, o movimento da escuridão, a luz que
ilumina os caminhos em meio ao por vir desconhecido. A lua entoa
metamorfoses, eis aqui as fases, as mudanças, o novo a cada luar... A
cada giro, as faces mudam, e tempo desenha o por vir. “Lua nova, ó
Lua Nova, eis-me aqui. Tu vens até mim? Eu sou o teu Sim!” (COSTA,
2008, p.14).
O canto por vir da Sereia embriaga o destino, fidelidade e desejo.
E traz tom de sedução que vai além do ouvir e tece o futuro ao toque
que a melodia propõe a ser. O horizonte a se desenhar por promessas
que não se constroem em um momento presente. E sim, em uma
música que alcança tons vindouros, entre sedução e imprevisibilidade.
Eis aqui o canto pelo encanto das Sereias: “a forma inapreensível e
proibida da voz sedutora” (FOUCAULT, 2009, p.234), uma orquestra
regida por pluralidade e desvios. Amor ao por vir.

271
O canto anseia o “sulco prateado no mar, oco da onda, grota
aberta entre os rochedos, praia de brancura” (FOUCAULT, 2009
p.234), lugares onde o encanto começa, e aventura ressona, talvez, o
caminho é aberto, e se transforma, são as melodias vindouras uma
abertura ao horizonte do infinito do mar, e ao navegar pelas espumas
de sedução, as correntes seguem os movimentos das ondas e
penetram direções sombrias e gélidas do mar. É o movimento das
ondas uma possibilidade a se arremessar às incertezas das águas.
As espumas cortam os mares sem direção, são as correntes do
mar rumo às cartografias e rizomas entoando “a promessa de um
canto futuro” (FOUCAULT, 2009, p. 234) que percorre a melodia. É o
tom que dita os sentidos sensórias e faz perder a razão. E seguir guiado
pelo desejo do íntimo. O canto da Sereia aqui, nasce como uma nova
aurora. Aurora que tece o amanhã e “as Sereias prometem cantar para
Ulisses, é o passado de suas proezas, transformadas para o futuro em
poema (...)” (FOUCAULT, 2009, p. 234). O futuro poetiza as vozes que
ressonam em um movimento por vir... onde as veredas se estabelecem
por um passo inicial.
Ao pensar na aurora por vir, as águas transcorrem fluxos por
entre igapós, riachos, ribanceiras, igarapés, pequenos furos, acima e
abaixo, vazante ou enchentes as águas levam histórias, memórias,
lendas, o mítico... arrastam pela correnteza verdades preciosas. E ao
poente do Sol, o silêncio vai adentrando as matas, e repousando nas
sombras. Aos poucos o brilho da lua entoa transfiguração, e sons
renascem em um mundo repleto de magia, o curupira, a mula sem
cabeça, as matinhas, anhangas afloram sua natureza, é noite de lua
cheia. As feras começam a poetizar.
O brilho da lua ilumina o rio, e Iara começa a cantar, é o
movimento de sua voz uma “promessa ao mesmo tempo falaciosa e
verídica” (FOUCAULT, 2009, p.234). O tom do seu canto emana
desejos íntimos de aportar suas certezas em um momento presente, é
a precipitação um caminho à morte, tendo em vista que “todos
aqueles que se deixarão seduzir e apontarão seus navios para a praia
encontrarão apenas a morte” (FOUCAULT, 2009, p.234). Entretanto, a
realidade do canto se expressa “através da morte que o canto poderá
se elevar e contar infinitamente a aventura dos heróis” (FOUCAULT,
2009, p.234).

272
Uma aventura de herói travada entre riscos e desafios. O canto da
Sereia é “tão puro que ele nada mais fala que não seja do seu refúgio
devorador” (FOUCAULT, 2009, p.234), sentidos que precisavam ser
acolhidos pela devoração (COSTA, 2008), um instinto canibal
antropofágico que perpassa o desejo. “Desejo que é força, apetite,
vontade, fluxo descontínuo, potência vibratória (para além da carência
do objeto ausente, da falta, da culpa, do luto, do duplo rebatimento do
sujeito sobre si mesmo). Desejo como fluxo, corrente, devir” (COSTA,
2008, p.71). Fluxo do desejo que flui pela veia, é o desejo apetite e
carne, pão e vinho... O fluxo por vir.
Um movimento do desejo que impulsiona tons de sedução.
“Desejo como adjacência, passagem, prosseguir. Desejo como deriva,
decurso, fugir” (COSTA, 2008, p.71). Desejo latente, desejo por vir em
meio ao caos que cria transfigurações pelo caminho, riscos e desvios.
“Desejo como irrupção, acontecimento, fremir. Desejo que excede,
que escapa, que escorre, que não é lugar, apenas posição” (COSTA,
2008, p. 71). Desejo como movimento do corpo, da alma, das
metamorfoses, são os traços da trajetória que despertam no íntimo...
Ritos de acolhimento.
Então “[...] é preciso renunciar a ouvi-lo, tapar os ouvidos,
transpô-lo como se fosse surdo, para continuar a viver e então
começar a cantar” (FOUCAULT, 2009, p. 234). É preciso cantar
melodias novas, habitar ares desconhecidos, alçar voos leves, rumo ao
devir. É a possibilidade um caminho à perversão e à descoberta. Um
mundo possível que se cria e ora habita provisoriamente... São os
lugares de descobertas, de afirmação do desejo, momento de lançar
mão das incertezas e pertencer aos abismos, a fim de que:

[...] Nasça a narrativa que não morrerá, é preciso estar à escuta, mas permanecer
ao pé do mastro, pés e mãos atados, vencer qualquer desejo de uma astúcia que
se violenta a si mesma, sofrer todo sofrimento permanecendo no limiar do
abismo que atrai, e se reencontrar finalmente além do canto, como se tivesse em
vida atravessado a morte, mas para restituí-la em uma segunda linguagem.
(FOUCAULT, 2009, p. 234)

Movimentos do mar em meio à tempestade... São as ondas o fio


condutor do desejo. E em meio à lançante as irrupções das águas que
retiram do horizonte a ideia do porto, e lança o leitor no mar, dando a
violência e os abismos. Pois, os tons apresentam o reencontro com
morte pelo canto interior. Uma melodia que apresenta travessias pelo

273
desejo instaurando uma linguagem a ser acolhida em tempestade e
desejo. E à deriva os desejos percorrem o mar em suas profundezas,
esconde os anseios por vir, uma confusão por assim dizer, um
sentimento arrebatador que arranca as entranhas da alma e a põe a
poetizar.
Em tempo inverso de cachoeira, ideias que fluem em um fluxo
contínuo que regressa ao passado. Mas em tempos de cachoeira a vida
quer apenas se renovar, e seguir a revolução por um barulho seguinte,
em movimento por vir e libertação. Cante o novo! Cante as verdades!
Cante o amor! Cante ao mundo! Cante melodias inauditas, e as
propaguem em mundo onde as vozes se reinventem e se retorçam.
Às margens do rio, a lua entoa, Iara sentada está, são as águas
escuras, que a beleza encantou, ao longe, olha a lua e canta, canta uma
melodia fina, saudosa, quem sabe. A voz ecoa no lugar como em
espírito livre selvagem que a escuridão nos faz relembrar, são os
barulhos seguintes que as águas do rio permeiam. Um pouco de fera,
um pouco de mítico, um pouco de transfiguração, a Iara retorna ao rio,
e sua visão a faz duvidar, o espelho negro do rio, embora hostil, em seu
seio começou a poetizar, talvez o belo venha à noite, quando o céu é
repleto de estrelas. A ti conto pelo encontro da voz da sereia, ame a
luz da lua, o rio hostil que a escuridão incendeia.

As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia,
que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a
verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não
passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele
espaço onde o cantar começava de fato. (BLANCHOT, 2013, p.3)

A sereia canta uma melodia por vir. Uma melodia por vir conduz o
navegante a pertencer ao gélido azul da tormenta das águas. Não há
assim, razão funcional a qual seguir, apenas é dragado pelo tom
desconhecido que emana do canto. É o canto um caminho a desbravar
direções desconhecidas, entretanto, “de que natureza era o canto? Em
que consistia seu defeito? Por que seu defeito o tornava tão
poderoso?” (BLANCHOT, 2013, p.3). O canto poderia ter tom inumano,
ou mesmo ser igual aos outros, porém a melodia latente propagava
tons de sedução, e em meio ao turbilhão o navegante seguia o tom
embriagado que ecoara do canto da sereia. Não mais mundo
mundano, e sim, o amor, a entrega, a sedução.

274
O canto lanceava os navegadores, “homens do risco e do
movimento ousado” (BLANCHOT, 2013, p.4). No mar o navegante
anseia um destino, uma rota, um porto seguro. O canto da sereia
desnorteia o navegador, e o faz aportar suas incertezas, não mais um
único caminho a seguir. Ao lançar a âncora em meio à melodia da sereia
é preciso ter cuidado, pois “todos aqueles que dele se aproximaram
apenas chegaram perto, e morreram por impaciência, por haver
prematuramente afirmado: é aqui; aqui lançarei âncora” (BLANCHOT,
2013, p.4).
O belo e enigmático canto da sereia ecoa pelo momento presente
em transfiguração do momento agora ao passado que ainda se
desenha no íntimo do navegador. Navegador embriaga-se, assim
como leitor, na melodia que se põe a bailar ritos de metamorfoses em
meio ao presente que não quer sossegar. Ao bailar com a tormenta da
água e o canto da Iara em um salão cheio de ventos de tempestade por
vir o navegador leitor aspira um caminho entre traços e novas
direções, tendo cuidado de voltar a si, em giro que passa pela
autocompreensão, a fim de vislumbrar um horizonte enigmático do
desconhecido que ressona metamorfoses.
A metáfora do canto da sereia de Blanchot faz pensar a leitura em
movimento e transfiguração, dando-nos pistas que nos convidem a
repensar a leitura em seu campo enigmático, tendo assim, o cuidado
de não pertencer às brevidades ou precipitações de sentidos e
cometer o erro de lançar âncora por uma ação impensada, afirmando
verdades ilusórias. Assim, buscamos um mundo que caminhe em um
horizonte sem cegueira ou surdez, pelo caminho entre apetite e
ruminação, espreitando a leitura em seus perigos e desvios, a fim de
que a navegação (leitura), suporte fortes tormentas imprevisíveis e
enigmas mortais.
Iara reverbera ao mundo maneiras de pensar as sensações por
meio do “desconhecido”, talvez. Iara lanceia desassossego, pois, põe
a escuridão em poesia e canta um novo caminho. Não é a objetividade
da ação que se julga aqui, e sim, o conhecer o íntimo dos abismos e
caminhos desconhecidos. Iara transforma, assim, a singularidade em
pluralidade e dispersão e põe-se a cantar melodias novas, caos e
tempestade.

275
LEITURAS, TRAVESSIAS E SENTIDOS

O tempo se dissolve a passos rápidos em um movimento de


renovação e esquecimento. O andar por entre a escuridão, em meio ao
caos, nos revela o “desconhecido”, anda andarilho, por entre as teias,
sem caminho e contaminação, ande por entre o novo “sem medo da
pouca luz no caminho”, acenda em seu íntimo o fio em busca dos
prismas dos sentidos, não mais uma direção! Abre seus olhos, as lentes
em cada passo, olhe por visões múltiplas, e no interior abrace os sons
que emanam no horizonte, e ecoam em ti, reflita o ouvir o outro,
acolha-o. E entre tato perscrute caminhos em uma teia de sensações,
negue o tangível e debruce no inteligível, entre espírito e carne, entre
amor e recusa.
Os fios da trama dissolvem o caminho e nos fazem perscrutar a
escuridão, ouvem-se as vozes ecoarem ao longe, vozes silenciadas,
inauditas, talvez. Sobretudo, o caminhar transmuta a cada passo dado,
“mais nenhum caminho! “Apenas abismo e silêncio”!” – Assim você
quis! Sua vontade deixou o caminho! Agora ande, andarilho! Tenha o
olhar frio e claro! Perdido estará, se acreditar no período” (NIETZSCHE,
2012, p. 29). Ande andarilho em um estado de aceitação e desejo, diga
sim à embriaguez e às possibilidades.
Ao mundo da leitura dançamos em ritmo feroz da devoração
antropofágica (COSTA, 2008), ecos canibais de um ler por apetite e
seleção. A ti devora o mundo e o mundo a ti devora. Põe no mundo o
novo em uma magia salutar a alma (magia tupiniquim), uma magia da
devoração (COSTA, 2008) com tons seletivos, uma magia que
transfigura o corpo do leitor a cada passo desse caminhar rumo ao
corpo vivo, transmutado da leitura, onde as transfigurações e
metamorfoses sigam em barulho seguinte por entre vozes que só
querem ecoar, sem prenúncios de certezas, sem arrogância, sem
rumo, livre das gaiolas que as apreendem.
Assim, veja o mundo, e pelo mundo saboreie as sensações em um
paladar singular, devore e ame, pois a devoração é “nunca pedir! Nada
de Lamúrias! Simplesmente pegar, sempre pegar” (NIETZSCHE, 2012,
p. 25), e nesse pegar sempre duplo, dizer: sim e/ou não, ingestão
seletiva. À luz da razão branca, leitosa, a realidade nos retira do estado
de embriaguez, e nos apresenta as horas, e a realidade interpretada,

276
aqui jaz a imaginação, a liberdade e a criação, deveis então fazer do
mundo, ou nosso mundo, um lugar de descolamentos e renovação.
O tempo nos apresenta turbilhões de vozes que ecoam pela
realidade administrada, quebrando assim a relação espiritual com o
livro. “A convivência entre poeta e leitor, só no silêncio da leitura a sós.
A sós os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiro, não
quer que interpretem, [...]” (QUINTANA, 2012, p. 150), o leitor ama em
silêncio, acolhe e rumina. O leitor não segue fixando o sentido, e sim,
pluraliza e o retorce em castidade, obscuridade e dispersão. O silêncio
o envolve no “desconhecido”, talvez cantem e dancem um poema,
mas “o verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”
(QUINTANA, 2012, p. 150).
O silêncio provoca sensações, entorpece. São os movimentos do
silêncio que nos retiram o desassossego e nos leva ao mundo em
lugares que não se pode habitar, o silêncio é aqui não como ausência
de movimento, mas como o giro em torno de si, entre confusão e luta,
uma luta que se trava no íntimo, no movimento de ruminação, assim,
“ruminar é preciso”, é preciso ruminar, (e para a arte da ruminação é
preciso ter) “bons dentes e bom estômago – Eis que lhe desejo”
(NIETZSCHE, 2012, p. 45).
O leitor devora e recusa em desejo latente entre acolhimento e
evacuação, entre saciedade e vazio. O “Erudito” que lê em demasia,
doentio está pela produção e acúmulo, pois a criança brinca entre as
rodas, os giros as levam sem rumo, não há caminho, não há
apropriação, a criança lê e esquece, “[...] agora sim, creio que está são:
Pois sadio é quem esquece” (NIETZSCHE, 2012, p.19).
A linguagem é viva, e sua vivacidade requer da leitura uma
vivência múltipla, desvios e travessias. A leitura enquanto travessia
“perde seu destino porque não tem meta, não é finalidade. É a duração
da continuidade” (SKLIAR, 2004, p.26). E o leitor atravessa a trajetória
rumo à viagem que se apresenta em uma infância que “atravessa.
Passa entre suas travessuras. E assim, ela (criança) entra na pausa sem
saber que está na pausa” (SKLIAR, 2004, p.27). A criança é inocente e
lê pelo gosto da viajem... E foge das leituras que não alçam voos. A
criança então julga leitura em fruição e desejo, assim caminha “os
primeiros passos não são os primeiros passos, pois ela já caminhou
várias vezes, passando através de sonhos e trevas” (SKLIAR, 2004,

277
p.27). Caminhou por direções não funcionais e habitou inocência e
leveza da leitura, abrigando os livros pela fruição.
A criança lê em poesia, pois “o poeta viaja. Atravessa. Passa. De
uma palavra a outra. De uma palavra à voz. Do corpo à escrita. Da
escrita à palavra, à voz e ao corpo de quem lê” (SKLIAR, 2004, p.27). E
o poeta entorpece a alma e poesia perdura e passa como o bater das
asas de uma borboleta, é um movimento rápido e intenso que criar
travessias que “nunca mais saberemos seus limites” (SKLIAR, 2004,
p.27). O poeta (leitor) caminha ao encontro da duração. “A travessia é
uma duração” (SKLIAR, 2004, p.27). E o poeta (leitor) encontre-se no
entre-lugar, na duração da travessia.
O sol põe ao longe, entretanto é possível sentir o calor que emana
dos raios, um calor que abraça o corpo com um tom familiar. Ao redor,
olhe o mundo que o cerca, e aspire nele um sentimento de
estranhamento, como se o sol posasse no mar pela primeira vez, feche
os olhos, e imagine as janelas que se abrem ao vento e esqueça. Ao
“ler como um entardecer: luz fraca, a sós, porque já não importa as
maneiras de pensar, mas todos os contornos: o perfil de uma terra
estranha e nossa, a infância na largura de suas águas, o passeio ao
longo das margens de uma história alheia, a ponto de ser nossa”
(SKLIAR, 2004, p.58).
O sol repousava no mar, a escuridão trazia consigo um novo luar,
lua nova, talvez? Transfigurações talvez? Há algo de novo, um
sentimento de renovação se revela pelo desconhecido. Assim, leia
“como não ter lido antes” (SKLIAR, 2004, p.62), leia por uma sensação
de renovação que invade o corpo e transmuta. São os tremores novos
caminhos para habitar que se constroem “de parágrafo em parágrafo,
aquilo que parecia alheio começa a existir em mim, como se fosse
possível habitar um corpo que não é meu, um corpo diferente do meu,
uma voz incógnita” (SKLIAR, 2004, p.62).
Uma voz que busca espaço entre lutas e modificações. Voz
contraditória, sem face ou destino, uma voz que canta a beleza da
natureza das coisas. A voz que emana uma paixão, que entorpece os
sentidos e nos faz mudar de destinos, verdades e certezas. A voz da
leitura que nos retira do mundo e propõe a viajem que pressupõe
descolamentos. Desta forma, a leitura engendra “o corpo em tempo
que não vivemos para tentar vivê-lo” (SKLIAR, 2004, p.63).

278
O mundo caminha em passos lentos, direções imprevisíveis,
temperatura, sons, almas, vozes transfiguradas pelo desconhecido,
um mundo encoberto de sensações, digressões, horizontes a se
desenhar, em um devir contínuo de renovação. É possível, ouvir os
passos, as direções, as certezas, entretanto, qual caminho nos levará
ao por vir? A cada passo as transfigurações mudam o tempo, em outro,
o tempo muda a rota, todavia, não há linha reta ou caminho, apenas
segue, “[...] pelo infinito, pela chuva que nunca deixará de recolher-se,
pelo tempo inventado em outro tempo, pelo um que é sempre
outro...” (SKLIAR, 2004, p.60). Segue rumo às melodias saudosas, da
aurora doce do amanhecer, da chuva da tarde, do horário em que o
café abrevia a viagem à leitura.
O convite a viajar segue o tempo, mas não há nada para ser
mensurado, capturado e/ou apreendido. O convite por vir viaja à frete
do tempo e da realidade. E direciona a leitura para além do “deter o
tempo que nos atribui este mundo e impedir que a máquina utilitária
do universo siga seu caminho de massacres” (SKLIAR, 2004, p.63). O
tempo o vilão dos sentidos, das brevidades, das certezas, dos
desentendimentos... “do turbilhão, que é um gesto que não reconhece
nem seu passado nem seu porvir” (SKLIAR, 2004, p.66). O turbilhão, o
movimento de travessia que ora angustia ora desvela um caminho
possível, uma verdade momentânea.
As tempestades são os movimentos dos ventos e a beleza da chuva,
as tardes de descanso, a beleza da aurora, os movimentos das águas, das
transfigurações. Em meio ao mundo das transfigurações, “os olhos veem
o quê? Não, não veem, são vistos. São vistos sem pressa, sem ostentação,
porém sem respiro” (SKLIAR, 2004, p.59). Os olhos são as janelas da alma
da leitura que se abre ao horizonte, e olhar a alma aspira memórias,
sensações, lembranças e imaginação. E os olhos...

Não dizem a você com se deve ver, mas sopram no seu ouvido o que querem que
você veja. Seria melhor não fazê-lo? Não indicar, não sugerir, não insinuar o que
ver? Não, não vale a pena ensinar. Esse ensinar enquanto ato de indicação, como
um signo que aponta para algum lugar. Talvez, ensinar o modo pelo qual você
eleja ser visto por outros outros. (SKLIAR, 2004, p.59)

O olhar vislumbra um por vir da leitura entre “desertos, penhascos,


edifícios em ruínas, oceanos que não vão nem voltam, labirintos
encruzilhadas, lugares próximos que, ao fechar do livro, tornam-se

279
alheios, inalcançáveis” (SKLIAR, 2004, p.60). O olhar avista lugares,
outros abismos, outras pessoas, outros desejos e ao olhar o outro
vislumbra transfiguração dos estados da alma, uma mudança que ocorre
no íntimo... E o olhar muda ao passo da imaginação, uma viagem que
apresenta transfigurações das verdades, da realidade, do livro, do leitor.
Uma viagem que apresenta múltiplos olhares e múltiplos sons.
O olhar lança ao mundo, real ou da imaginação, verdades que
habitam aos íntimos das pessoas, uma voz inaudita e confusa. E ao
olhar o livro a leitura perpassa as vozes racionais que viajam ao fluxo
imaginativo da leitura, vozes que se retorcem no leitor, e diz “[...] por
tudo aquilo que não terá nome, mas poderá, algum dia, dizer-se com
sua própria voz, na sua vez, em seu ritmo” (SKLIAR, 2004, p.60). Ritmo
que dita o movimento da leitura e do leitor e o coloca a dançar uma
nova música e entre ritos de acolhimento e transformação.
O mundo por vir da leitura desperta: viajantes, andarilhos,
homens de passo lentos e ruminação constante, homens que seguem
longe do arquétipo da razão fria e funcional, entretanto, o leitor
moderno, o que vive na inércia do mundo real, precisa “decidir entre o
livro e o mundo? Seria necessário deixar o livro para estar no mundo?
Seria necessário abandonar qualquer pretensão de um mundo para
manter-se no livro?” (SKLIAR, 2004, p.60). Seria necessário abrir mão
da sua razão? Da sua cultura? Status? Arrogância? Das suas certezas?
Verdades? O mundo por vir abre horizontes imaginativos, livres da
opressão utilitarista, livre da razão que cega o leitor por vozes que não
sabe acolher em ruminação... O leitor por vir precisa “cruzar um
mundo desconhecido, um tempo desconhecido, gestos
desconhecidos” (SKLIAR, 2004, p.62).

Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como
a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes
penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas
faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente
amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase
lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: “Mas
é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!” (LISPECTOR, 1999, p.233)

Afinal! O livro desconhecido dança tons fantásticos, um amor


assim desconhecido, que brota de uma entrega e se faz pela súbita
descoberta de liberdade, um amor latente a um livro sem traços, sem
nome, sem tema ou autor. Um livro que aspira libertação em seu

280
íntimo. O leitor anseia o livro desconhecido que se transmuta em várias
faces, um livro que envolva o leitor por sensações inesperadas, aquele
livro que entorpece a alma e dá aos olhos lágrimas de libertação, em
dizer “sim!” ao desconhecido como um convite ao por vir.
O leitor por vir “espera os livros. Na espera do livro, o buscava
como (perdão por assim dizê-lo) um animal que tem fome” (SKLIAR,
2014, p. 53-54), no baquete anseia aventuras, romances, um encontro
com imaginativo que a leitura emana, deseja sensações,
metamorfoses, embriaguez. O livro apresenta-se como gesto, um
convite! O leitor por vir “se abre, é aberto, o aberto, como seu livro
está aberto, abre-se como uma ferida está aberta, abre e abre-se, abre-
se totalmente sobre o que transborda do todo, e abre” (SKLIAR, 2014,
p. 53-54) abre-se e acolhe o leitor pela leitura.
No tempo em que as palavras flutuam em margens vazantes e o
espírito quer dançar ritmos interpretativos. Assim, a leitura apresenta
forças “dançantes, estranhos turbilhões que não arrasam: dançam”
(SKLIAR, 2014, p.59). Nessa dança os sentidos recobrem o salão e se
põem a bailar, ritmos de transfigurações, em meio ao ir e vir dos korpus
a dançar aspira e transpira renovação.
À meia noite os sinos batem quebrando o silêncio, e as horas
insistem em regressar à realidade. O silêncio enreda o leitor em
amabilidade, e o faz seguir um barulho seguinte rumo ao labirinto do
mundo por vir, e caminha, onde os sentidos são transgressores das
objetividades, das verdades absolutas, dos caminhos frios e
infrutíferos. O mundo por vir aspira andarilhos, ande andarilho para
além do mundo, e pelo mundo, entre ensejos espirituais. Diga sim às
verdades e às mentiras pelo caminho. Andarilho por vir caminha entre
lentidão e ruminação, afinal? Qual sentido se pretende habitar se não
for pela dispersão? Desejo move o passo seguinte e faz desenhar
horizonte em multiplicidade.
A incerteza, deslocamentos, desvios são caminhos sempre
possíveis ao leitor por vir, este que caminha subvertendo as margens
interpretativas, a fim de renovação e metamorfoses dos signos.
Andarilho, jovem de barriga jovial, criança inocente, Dionísio.
Andarilho, seu corpo de areia, de muitas faces, plural e desviante;
homem linguagem, andarilho por vir. (NIETZSCHE, 2001)
“Leitor moderno” ande perdido pela inércia do mundo prático e
funcional, tateará assim, cego, cego por sua cultura, cego por suas

281
verdades, cego por sua arrogância e falsa erudição. Nesse mundo
objetivo e taxinômico ser cego é está fadado a ler o mundo em seu
limite. “Leitor moderno” abandone sua falsa erudição e ande perdido
em um mundo por vir entre piruetas, transfigurações, (des) formas,
assim livre andará das suas certezas, da sua razão totalizante, livre das
suas dicotomias, das formas enquadradas e imutáveis, e abrace a
escuridão em busca do desconhecido.
Meu bom homem, por onde andaste? Que bagagens carregas
pelo caminho? Que sentidos trazes? Ou perdido estás? Nobre confrade,
de que terras vens? De que água há de beber? Quais histórias subjazem
no seu rosto cansado? Com quais adversários lutaste? Grandes feras?
Ou monstros interiores? Meu bom homem, deite, pois, mais jornada
terás amanhã. Descanse a alma que essas cicatrizes logo
desparecerão. Serás um novo homem se aprender a esquecer, uma vez
que, perdido sempre estarás enquanto regressares ao labirinto da
leitura (SKLIAR, 2014).
Em solidão caminhou lentamente, seu olhar se perdia em meio as
cores, e sol que o aquecia, o levou em todas as direções com um
acolhimento leve, põe-se a caminhar na estrada rumo ao desconhecido
da leitura...
O som das águas era abafado pelo barulho do motor, o barco seguia
viagem, e o andarilho outro caminho, o convite emanava do livro com
uma experiência a ser vivida e pertencida em outro lugar, as horas
transcorriam jocosas. O corpo era envolvido lentamente por desejo
embriagado, era levado a habitar um sorriso doce pela leitura, seus
sentidos eram metamorfoseados, transfigurados, lançados à dispersão e
multiplicidade. O barco seguia e as tramas e dramas continuavam a se
misturar com o verde da mata e o azul do céu, os sons pareciam se
abrandar ao ritmo da leitura, o olhar que lançava pintava aos quadros que
se retorciam ao redor. O mundo não era o real, o inteligível, o palpável,
era um mundo só pertencido à leitura. Ande!

O CANTO POR VIR

Nossa tentativa se pautou em ensejar a leitura em suas múltiplas


ressonâncias, todavia, nosso pensar não desejou formular um
arquétipo de leitor ideal, e nem mesmo traçar metas frias e objetivas
acerca do tema leitura, pelo contrário, ensejou transfiguração,

282
dispersão, multiplicidade. A fim de alçar voos interpretativos leves e
inocentes rumo às melodias inauditas, talvez.
À leitura pertenceu descolamentos, não mais ideias pré-
concebidas, ou sentidos pré-prontos. O leitor aqui foi convidado a
transbordar suas margens sensoriais, com intuito de adentrar no
mundo desconhecido da leitura, entre contaminação e experiências
plurais. Para se desapropriar dos conceitos e verdades fixas e
irredutíveis, e lançar-se ao sonoro canto das sereias. Desta forma,
buscou-se as sensações submersas no contato com a leitura, dando a
ler, em embriaguez e metamorfose.
Caminhar, sim! Andarilho. Passos lentos e ruminação. Zaratustra,
talvez? Afinal qual caminho alcançou? Quais vitórias celebrou? O fim se
aproxima e as respostas habitam em ti leitor, pois nossas tentativas
não objetivaram instaurar verdades absolutas ou criar guias para o
ensino de leitura, pois a leitura por vir caminha rumo ao passo
seguinte, sempre em processo de renovação e esquecimento,
subvertendo assim qualquer ideia de leitura dogmática, colonial
presente na sociedade atual, propondo assim, uma leitura em
movimento contínuo onde os sentidos são desconstruídos e
construídos na incerteza, onde o canto entoa melodias inauditas em
um narrar imprevisível, o leitor assim, submerso em seu estado de
solidão valora o papel salutar que a leitura desenvolve no limiar da vida
espiritual, uma leitura ao encontro do prazer por entre as memórias do
leitor.
O movimento das águas revela o por vir, um barulho seguinte, o
mesmo rio, o mesmo lugar, porém outras vozes, outras experiências,
águas novas para se banhar, um novo caminho e lugar para
experimentar e viver. A leitura é esse estado de renovação infinita que
produz no leitor sensações e transfigurações...
Entretanto, é valido ressaltar que este texto não pretendeu
instaurar verdades ou juízos morais em torno do tema da leitura, nem
dizer que este é “o caminho”, não! não queremos ser profetas, pois
quem crê se prende novamente, e sim buscou pensar no por vir da
leitura pelas dimensões poético-filosóficas, com o recorte das
sensações e metamorfoses, sentidos corpóreos, canibais, ditos e não
ditos, silêncios e ruminação da leitura, desta forma, ensejamos que o
gesto da leitura gere renovações dos sentidos (sentidos educacionais
e da vida cotidiana), onde nosso espírito possa ser preenchido por uma

283
experiência salutar, destarte, a alma deseja habitar uma experiência
salutar, em busca do “tempo perdido”, em que as leituras excitem o
desejo e a fruição “rumo ao desconhecido”.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés.


2ª ed. São Paulo: Editora WMG Martins Fontes, 2013.
______. O espaço literário. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
COSTA, Gilcilene Dias da. No quarto com Proust; Nietzsche, Deleuze
Notas sobre o desaparecimento do leitor na literatura. In: LEMOS,
Flávia Cristina Silveira. GALINDO, Dolores. (orgs). Criações
Transversais com Gilles Deleuze: Artes, saberes e política. Curitiba:
CRV, 2016.
COSTA, Gilcilene Dias. Trilogia antropofágica [a educação como
devoração]. (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2008, 190f.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2
ed, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
DELEUZE. Gilles. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. 2ª ed.
São Paulo: Editora 34, 2011.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio Janeiro: Rocco, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução e notas de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
______. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza,
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo
César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SKLIAR, Carlos. O ensinar enquanto travessia: linguagens, leituras,
escritas e alteridades para uma poética da educação. Tradução de Adail
Sobral, Salvador: EDUFBA, 2004.
QUINTANA, Mario. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

284
O LUGAR DA IDENTIDADE NA SALA DE AULA: BEYONCÉ, RACISMO,
ENSINO DE INGLÊS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Fernando Silvério de Lima1


Ícaro Guilherme Guerra2
Gisane de Oliveira Almeida Costa3

"Eu tive meus altos e baixos


Mas sempre encontro a força interior para me reerguer
Me serviram limões, mas eu fiz limonada"
(Beyoncé - Freedom)

‘YOU KNOW YOU THAT BITCH WHEN YOU CAUSE ALL THIS
CONVERSATION’: INTRODUÇÃO

Os quatro (4) termos aparentemente isolados, apresentados no


subtítulo deste capítulo, se reúnem no objetivo de contextualizar
nossas discussões ao longo das seções que compõem este texto. Em
2016, a cantora norte-americana (1) Beyoncé virou manchete
internacional ao lançar seu sexto álbum de estúdio intitulado
Lemonade com canções que faziam referência à sua identidade negra
e às questões raciais latentes nos Estados Unidos. Inspirados numa
recepção controversa por parte do público, o programa de comédia
Saturday Night Live (SNL) apresentou um esquete intitulado The day
Beyoncé turned black (o dia em que Beyoncé se tornou negra) sob a
forma de um trailer que retrata, de maneira apocalíptica, a parcela
branca da sociedade americana reagindo ao álbum de maneira
exagerada ao perceber as referências que a cantora traz na canção
Formation e que exaltam sua identidade. O vídeo ironiza protestos
reais que ocorreram no país, tendo em vista não apenas o lançamento

1 Professor Adjunto de Língua Inglesa e Linguística Aplicada do Departamento de


Letras (DELET) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Instituto de Ciências
Humanas e Sociais (ICHS). Coordenador do subprojeto PIBID-UFOP Inglês.
[email protected]
2 Licenciando em Letras Inglês da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bolsista

CAPES do subprojeto PIBID Inglês. [email protected]


3 Professora da rede pública de ensino do estado de Minas Gerais. Supervisora do

subprojeto PIBID Inglês. [email protected]

285
do álbum, mas as performances da cantora durante o Super Bowl,
evento nacional da liga de futebol americano.
Em 2019, trinta anos depois do surgimento da Lei de nº 7.716 4 de
1989 sobre crimes de (2) racismo e discriminação (raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional), a sociedade brasileira está distante
de superar as polêmicas sobre preconceito, tendo em vista dados
recentes que apontam como a desigualdade de condições de vida e
oportunidades continuam latentes (cf. MENDONÇA, 2019). Tomando o
processo educativo pautado pela interculturalidade (BRASIL, 2017), ou
seja, não apenas reconhecendo, mas respeitando as diferenças,
observa-se que questões marcantes na sociedade como racismo e
discriminação precisam ser debatidos cada vez mais em sala de aula e
encontramos aqui uma temática possível para o (3) ensino de inglês,
nosso campo de atuação, proposto em parceria entre escola e
universidade a partir do projeto PIBID, centrado na (4) formação de
professores.
A partir dessa rápida contextualização que conecta os quatro
termos, o objetivo deste capítulo é apresentar os resultados
desenvolvidos dentro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência (PIBID), mais especificamente no subprojeto Língua
Inglesa. Este será um texto escrito em três vozes, sendo elas a do
coordenador do projeto, a de um futuro professor e bolsista, bem
como a professora supervisora na escola pública. A primeira seção que
segue este preâmbulo apresenta algumas reflexões sobre linguagem,
identidade e ensino de línguas. Esses são alguns conceitos norteadores
para entendermos as próximas seções que trarão uma
contextualização da proposta interventiva em sala de aula para
discutir racismo e identidade racial a partir da música Formation da
cantora Beyoncé e do vídeo comentado ao início desse texto.
Posteriormente, o texto toma a forma narrativa do futuro professor,
de forma a trazer uma perspectiva bastante próxima da experiência de
trabalhar questões tão sensíveis em uma aula de língua inglesa,
analisando a dinâmica da interação professor-aluno. Somado a isso,
temos a perspectiva da professora supervisora que além do suporte,
esteve presente durante toda a proposta observando como o futuro
professor concretizava as atividades que planejou. Por fim,

4A lei foi assinada em cinco de janeiro de 1989. Ficou conhecida como Lei Caó, em
homenagem ao ex-deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira.

286
retomamos nossa voz coletiva para oferecermos algumas
ponderações acerca do que aprendemos com essa experiência em sala
de aula, no anseio de que mais pesquisas focalizem essas parcerias
entre escola e universidade.

‘I GRIND TIL’ I OWN IT’: IDENTIDADE, SALA DE AULA E ENSINO DE


INGLÊS

Em seu trabalho clássico nas ciências sociais, Hall (2006) analisa o


conceito de identidade situado no movimento histórico das
sociedades humanas para compreender, de maneira contextualizada,
o que se entende como identidade na pós-modernidade. Para este
autor, existiram pelo menos cinco grandes avanços nas ciências
humanas que nos ajudam a compreender este conceito. As tradições
do pensamento marxista do século XIX, o estudo freudiano do
inconsciente no século XX, a revolução do estruturalismo saussuriano,
as noções focaultianas de poder e os estudos feministas da década de
sessenta ilustram cronologicamente essas mudanças citadas
anteriormente na obra de Hall (2006). Elas mostram uma evolução no
pensamento do sujeito acerca de um conceito mais fixo de identidade
e mais centrado na individualidade, para algo situado historicamente,
amparado nas relações sociais, nas relações de poder e na fluidez da
maneira com que o sujeito se representa e é representado pelos
outros.
Tais discussões fortalecem o desafio de pensar o conceito de
identidade em diálogo com o momento vivido pela sociedade atual
que configura as diferentes formas de ser e de viver no mundo. Para
Hall (2006), um dos principais traços é a fragmentação da identidade,
não mais como algo único e fixo, mas na perspectiva de algo variado.
Ao mesmo tempo, isso indica que enquanto um caráter múltiplo, a
identidade também se revela como algo contraditório por conta da
mobilidade que ela se constrói nas diferentes relações dos sujeitos
com o mundo e com as outras pessoas. De maneira geral, a identidade
é mais complexa do que um simples rótulo que ao mesmo tempo em
que define algo, limita suas condições de ser dentro desse rótulo. Em
síntese, a identidade não apenas se forma, mas se transforma de
maneira contínua tendo em vista não apenas como uma pessoa se
apresenta, mas também pela maneira como as outras pessoas a

287
representam. Retomando a ideia de contradição, é importante
considerarmos que, de acordo com Hall (2006) as identidades se
empurram para diferentes direções, resultando no que o autor chama
de deslocamento (uma mudança de centro) e dependendo dos
diferentes sistemas de significações e representação cultural, várias
são as possibilidades que o sujeito tem de se identificar.
Enquanto uma ciência de caráter transdisciplinar (MOITA LOPES,
2006) e transgressivo (PENNYCOOK, 2006), a Linguística Aplicada (LA)
estabelece o diálogo com as ciências humanas para compreender o
conceito de identidade, assim como apresentado por Stuart Hall. O seu
diferencial, no entanto, enquanto ciência autônoma, é o de tomar a
linguagem em seu uso pelo sujeito (o falante), de forma a
compreender como ser e estar na vida social se constrói pela
linguagem, ou seja, os problemas e as inquietações que surgem dessa
relação entre linguagem e identidade.
Em LA, a questão da identidade tem sido tratada também em
relação ao desenvolvimento profissional, mais uma das facetas da
identidade humana. Pesquisas com foco no processo de formação de
professores de línguas (CELANI, 2006, LIMA, 2017, 2019a, 2019b; LIMA;
MAPA; JESUS, 2019) e seus processos identitários (BOHN, 2005; SOL;
NEVES, 2012). Para linguistas aplicados, essa relação vai além da
relação que o sujeito desenvolve com sua primeira língua (língua
materna), atentando assim para os trações distintos da identidade dos
sujeitos que aprendem outras línguas e como isso atravessa seu
próprio processo de aprendizagem como aluno e até mesmo como
futuro professor (cf. BOHN, 2005). De acordo com Norton (2013), a
compreensão contemporânea de identidade como algo mais
maleável, unifica e conecta o sujeito com sua realidade social e não
trata a identidade como algo descontextualizado. Nessa perspectiva,
os teóricos atuais têm desafiado e questionado...

a visão de que os aprendizes possam ser definidos em termos binários como


motivados ou desmotivados, introvertidos e extrovertidos, inibidos ou
desinibidos, sem considerar que tais fatores afetivos são frequentemente
construídos socialmente em relações desiguais de poder, mudando através do
tempo e do espaço, e possivelmente coexistindo em formas contraditórias em
um único indivíduo. (NORTON, 2013, p.02, ênfases nossas).

Para ilustrar essa reflexão, podemos pensar o aluno brasileiro que


busca aprender inglês na escola pública. A identidade desse aluno não

288
se constitui apenas como aluno, mas como filho, irmão e cidadão. Esse
aluno vem para a sala de aula e ao interagir revela diferentes traços
identitários acerca do que entende e como compreende as coisas. Ela
ou ele aprende inglês no formato típico de escola pública: geralmente
duas aulas semanais de cinquenta minutos, em turmas numerosas.
Além disso, pode ter suas próprias expectativas e opiniões sobre a
necessidade ou até mesmo a possibilidade de aprender essa língua
naquele contexto. Sua identidade, no entanto, não se esgota no perfil
de estudante, mas de sujeito que faz parte de um grupo social e que
busca pertencimento.
Por mais complexo que isso já se revela, não podemos
desconsiderar que esse sujeito não está sozinho em sala, portanto,
todos os seus colegas se revelam pelos mesmos traços de
subjetividade. Soma-se a isso a identidade do professor ou professora
de inglês, que tentará lidar com as condições adversas aqui
brevemente citadas para oportunizar a aprendizagem da nova língua.
E como pesquisas em LA tem mostrado (CELANI, 2006; LIMA, 2017;
LIMA; MAPA; JESUS, 2019), as condições disponíveis tem afetado um
ensino de qualidade, apesar dos esforços de professores e alunos.
Retomando Norton (2013), os critérios binários falham no momento de
representar um aluno, pois não dão conta de apreender a dinâmica da
vida e da aprendizagem humana: mesmo em condições adversas é
possível aprender, e até nas melhores condições é possível que a
aprendizagem encontre seus entraves. Tais questões não se limitam
apenas, por exemplo, aos traços individuais do aluno (se está
motivado e cognitivamente preparado) e é por isso que autores como
Norton (2013) e Pennycook (2006) ressaltam a importância de
considerar as relações de poder que atravessam o acesso que os
aprendizes tem à língua alvo e a comunidade que fala essa língua,
questões de proficiência da nova língua (cf. KNAPP, 2017; MORENO,
2017, para estatísticas sobre o desempenho brasileiro), dentre outros.
Em resposta a esse desafio, Norton (2013) pontua dois aspectos
centrais. Primeiro, é necessário considerar que as identidades se
relacionam às práticas institucionais. A escola, por exemplo, padroniza
e compartilha suas formas de ensino e estabelece atividades em que
os alunos constroem suas identidades tendo em vista a maneira como
o ensino se organiza, ou como explica Bohn (2005, p.103) na relação
com as “vozes das instituições”. Vale lembrar que todas essas práticas

289
são norteadas a partir de documentos nacionais como a Base Nacional
Curricular Comum - BNCC (BRASIL, 2017). Tanto no formato tradicional
de transmissão de conhecimento, a conhecida educação bancária na
visão freiriana, quanto nos formatos interacionistas que concebem o
aluno com sujeito ativo, participativo e consciente de sua posição
como sujeito (FREIRE, 2001), essas práticas institucionais atravessam a
identidade dos nossos alunos. Sob este aspecto, vale ponderar se a
aula de inglês oferecida aos alunos se revela como algo mais bancário
ou mais interativo. Esses diferentes formatos trazem diferentes
implicações para a vida dos alunos, e consequentemente a identidade
que eles constroem no mundo contemporâneo que exige o
conhecimento dessa língua internacional, um cenário onde apenas 5%
da população total do Brasil pode ser considerada fluente em inglês
(KNAPP, 2017; MORENO, 2017).
Outro aspecto importante a ser considerado na relação entre
língua e identidade é o conceito de investimento, proposto por Norton
(2013). Para essa autora, o termo surgiu entre as lacunas dos estudos
de motivação que tratavam desse fenômeno como algo estritamente
psicológico e ligado à individualidade do alunos. A respeito desse
conceito a autora explica que...

Ele sinaliza a relação socialmente e historicamente construída dos aprendizes em


relação à língua alvo e o frequente desejo ambivalente de aprender e praticá-la.
Se os aprendizes ‘investem’ na língua alvo eles fazem isso com a compreensão
de que vão adquirir uma gama mais ampla de recursos simbólicos (língua,
educação, amizade) e recursos materiais (bens capitais, propriedades, dinheiro),
que por sua vez aumentarão o valor do capital cultural e do poder deles.
(NORTON, 2013, p. 6).

A ideia de investimento, influenciada pelos estudos sociológicos


de Pierre Bordieu foi proposta como um complemento da noção de
motivação, uma vez que apenas essa última não se revelava como
fator exclusivo para o sucesso de aprendizagem. Em situações em que
a aprendizagem encontrava seus limites, a autora sugeriu que
considerássemos as relações de poder que atravessam as identidades
dos alunos que estavam tentando aprender. Portanto, o investimento
considera o papel do comprometimento do sujeito para aprender
(relações afetivas com colegas, professores e a própria língua) e é sob
este aspecto que as identidades merecem atenção. Ambientes de
aprendizagem que tomam o aluno apenas como receptor de conteúdo

290
não favorecem seu pensamento crítico e sua posição como sujeito,
pelo contrário, desfavorecem suas chances de investir no próprio
processo de aprender. Em cenários ainda mais hostis, racistas e
homofóbicos, por exemplo, a possibilidade de construir novos
conhecimentos é atravessada pela impossibilidade de respeito e
tolerância às diferenças, de tentar situar-se entre identidades que
atacam outras identidades. Em contextos dessa natureza, antes de
aprender o aluno precisa aprender a se proteger.
O que se deseja é o contrário de um cenário polarizado em que o
diálogo não acontece. Considerando que as identidades são variadas,
o que se espera é que tantos os ambientes quanto as instituições
respeitem as diferenças. Neste cenário controverso, pensar o papel de
discutir as identidades em sala de aula pode vir a ser algo igualmente
controverso. No entanto, vale lembrar que importantes documentos
nacionais respaldam a necessidade de promover a formação humana
do aluno em sala de aula em todas as disciplinas. Observe o que diz a
Base Nacional Curricular Comum (BNCC):

[U]ma educação linguística voltada para a interculturalidade, isto é, para o


reconhecimento das (e o respeito às) diferenças, e para a compreensão de como
elas são produzidas nas diversas práticas sociais de linguagem, o que favorece a
reflexão crítica sobre diferentes modos de ver e de analisar o mundo, o(s)
outro(s) e a si mesmo. (BRASIL, 2017, p.242).

No processo de aprender e ensinar uma nova língua, nossos


alunos estão em contato constante com a diversidade, enriquecido
pela diferença entre culturas que deve gerar novos conhecimentos e
não propagar formas de exclusão e de desrespeito. O que observamos
a partir dessas reflexões é a necessidade de conceber a aula de inglês
(e o ensino de línguas) como espaço, evento e momento de construir
novos conhecimentos mediados por diferentes formas de uso da
linguagem, abrindo espaço para que os diferentes alunos possam
participar, questionar e criar novas compreensões sobre si e sobre os
outros. Tendo essa tarefa em mente, apresentaremos nas próximas
seções alguns relatos de experiência no contexto de um projeto de
iniciação à docência em língua inglesa abordando questões como
identidade e racismo.

291
‘NOW LET’S GET IN FORMATION’: CRIANDO AULAS PARA O PIBID
INGLÊS

Cada bolsista do subprojeto PIBID Inglês recebe orientações e


participa de oficinas didáticas que auxiliam no trabalho de pensar e
elaborar intervenções para a sala de aula. A proposta, no entanto, se
volta ao trabalho criativo do professor em um exercício que se inicia a
partir de suas leituras e seu contato com os alunos de escola pública.
A partir dessa relação, cada futuro professor ou pibidiano estabelece
para si um planejamento de atividades que gostaria de realizar na aula
de inglês, articulando o ensino de línguas e a formação humana do
sujeito. O plano a seguir retrata uma proposta didática para um nono
ano do ensino fundamental dois.

Quadro 1. Plano de intervenção (Formation)


UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID-UFOP
Subprojeto: Inglês
Coordenação: Prof. Dr. Fernando Lima

Plano de Aula - Intervenção Didática

Turma: Nono ano A (36 alunos).


Professor Pibidiano: Ícaro Guerra
Professora Supervisora: Gisane Oliveira

Título da Aula: When did you turn black?


Tema: Música, identidade e questões étnico-raciais.

Duração: 100 min


Objetivos: Problematizar questões sobre preconceito, discriminação, racismo, e
identidade étnico-racial a partir do vídeo “The day Beyoncé Turned Black”. Trata-se
de uma esquete de comédia do programa norte-americano Saturday Night Live
referente ao lançamento do álbum Lemonade da cantora Beyoncé sob o formato
de uma sátira de um trailer de filme de suspense.

Descrição procedimental
Introdução Os alunos ouvirão a música Formation, da cantora Beyoncé. Eles
contarão com o auxílio da letra da música para acompanhar em
uma versão impressa. A letra será analisada e discutida junto ao
grupo, tendo em vista seu conteúdo, referências culturais e
discurso. (10 minutos)

292
Atividade Os conceitos de paródia, ironia e do movimento Black Lives Matter5
Principal serão apresentados para que os alunos discutam o que conhecem
sobre o assunto e como eles se fazem presentes na proposta do
vídeo. Os alunos assistirão ao vídeo The day Beyoncé turned black,
do programa Saturday Night Live. O vídeo é uma paródia de um
trailer de filme de terror que satiriza as reações exageradas de
parte da sociedade americana após a apresentação de Beyoncé na
final do Super Bowl de 2016.

Após isso, trabalharemos a questão expressiva e linguística do


vídeo, como a reação de alguns personagens e daremos início a um
debate sobre a identidade do negro na sociedade e questões
raciais na sociedade contemporânea. Após isso, vamos propor
uma atividade com questões de análise para um debate sobre o
vídeo. (40 minutos)

Atividade Retomada do assunto da aula anterior, atentando para conexões


Principal que o aluno realiza sobre a temática após a primeira aula: histórias
pessoais, exemplos do cotidiano, da mídia, dentre outros. (10
minutos)

Conclusão Os alunos irão confeccionar cartazes sobre a identidade racial e


sobre o combate ao preconceito e discriminação após as
discussões em sala. Os cartazes serão expostos em um mural para
a comunidade escolar (40 minutos).

Ainda que no projeto PIBID a elaboração e planejamento de aulas


possibilita um importante mapa norteador da prática pedagógica dos
futuros professores, a dinâmica da concretização dessas ideias precisa
ser contemplada e, portanto, na próxima sessão, o futuro professor
analisará sua proposta em sala de aula.

THE DAY BEYONCÉ TURNED BLACK: RELATOS DO PROFESSOR


PIBIDIANO

Desde que ingressei na universidade e conheci o campo da


pesquisa científica, me interesso pelas questões de identidade na

5 Traduzido em português como Vidas Negras Importam, trata-se de um movimento


ativista em prol da luta dos direitos da comunidade negra, popularizada na cultura
americana a partir de protestos contra desigualdade social, racismo e críticas ao
sistema judicial norte-americano.

293
educação e possuo um projeto de pesquisa voltado para essa área.
Minha motivação para essas aulas veio dos pensamentos sobre os
alunos da turma para a qual iria aplicar a intervenção. Quando me
surgiu a inspiração de trabalhar algo relacionado à cantora Beyoncé,
automaticamente me vieram os pensamentos do empoderamento
dela em relação às pessoas negras e às mulheres. Por coincidência,
quando estava em um simpósio, tomei conhecimento de um texto
sobre a música Formation. Nele, as autoras conseguiram trabalhar em
uma turma de universitários o conceito de empoderamento feminino
com a música Formation e o vídeo do SNL. Como eu já conhecia o vídeo,
pensei em trabalha-lo em uma vertente diferente, focando as questões
de identidade étnico-racial com os meus alunos e sobre discriminação
e racismo.
Por ser uma turma bastante heterogênea, pensei que essa
temática seria bem recebida pelos alunos por ter observado eles desde
o início do ano e saber como eles reagem a esse tipo de coisa, nesse
caso, os discursos de ódio. Portanto, imaginei que essa proposta seria
acolhida e favoreceria o engajamento da turma. A princípio pensei que
poderiam ficar encabulados com a temática, mas acredito que duas
questões favoreceram a liberdade para se expressar: a primeira é a
música de uma cantora pop que faz parte do cotidiano deles; a
segunda é o vídeo que contém um tipo de comédia que faz muito
sucesso: o uso do humor com o exagero e a ironia. O humor estabelece
um ambiente mais favorável e confortável para a aula de inglês.
O tema do racismo, apesar de incomodar, como também
acontece com outros temais, (homofobia, saúde mental, machismo,
bullying) continuava em bastante evidência, especialmente por ser o
mês de novembro, período em que as escolas normalmente organizam
eventos a respeito do dia da consciência negra. O grande desafio para
quem vai ser professor é saber abordar um tema tão delicado e
complexo desses, mas com objetivos claros de que esse é um
problema que precisa ser discutido, as atividades foram se
organizando de maneira mais clara.
Inicialmente, conversei com o coordenador do projeto sobre a
ideia e ele pediu que eu a desenvolvesse e mostrasse meu esboço de
plano de aula (Quadro 1). A partir disso, comecei a rabiscar ideias e
pensar em formas de trabalhar essas questões com o nono ano. Ao
longo desse processo, encaminhei três versões diferentes do plano de

294
aula para o coordenador até que chegássemos no resultado final.
Foram várias sessões de perguntas e respostas sobre dúvidas de como
trabalhar esse assunto da melhor forma na sala de aula e entre trocas
de e-mails e orientações as atividades foram se concretizando.
Perguntei sobre jeitos de lidar com as questões étnico-raciais na sala
de aula, sobre como organizar os debates e como articular essas
propostas com a aula de inglês. Por fim, os materiais finais elaborados
resultaram em uma atividade com a letra da música, outra com
questões de debate sobre o vídeo paródia, uma apresentação de slides
com imagens e referências da música para mediar toda a discussão, o
vídeo e os materiais de papelaria para realizarem a atividade prática
dos cartazes.
Então, chegou o dia de realizar a aula que tanto planejei. De
imediato, ela teve um atraso de vinte minutos, uma vez que o projetor
da sala do nono ano não estava funcionando. Tivemos que mudar eles
de sala de última hora, porém, apesar do primeiro imprevisto, consegui
realizar a atividade. Fiz uma breve introdução sobre o assunto a ser
tratado. Depois disso, entreguei as folhas da letra da música para eles
e escutamos juntos algumas vezes. Após isso, perguntei o que já
sabiam sobre a letra. Até então só responderam que haviam gostado
e que não tinham percebido nada de diferente no clipe da música, pois
já o conheciam.
Em seguida, introduzi o outro vídeo que iria mostrar e pedi que
prestassem bastante atenção na composição dele, assim, mostrei a
apresentação que a cantora fez no Super Bowl. Fiz a mesma pergunta e
um aluno comentou ter percebido que a cantora só estava acompanhada
de dançarinas negras no palco. Prossegui com a apresentação,
mostrando a foto de personalidades negras: Barack Obama, Willow Smith
e Machado de Assis, perguntando se eles conheciam essas pessoas e o
que sabiam sobre a vida delas. Dentre as três imagens, os alunos
discutiram por mais tempo sobre Machado de Assis, resgatando debates
naquele ano sobre a identidade étnico-racial do autor brasileiro. Após isso,
ressaltei um verso em específico da música de Beyoncé: “I like my negro
nose with Jackson Five nostrils”. Expliquei o contexto desse trecho, as
referências ao cantor Michael Jackson e percebi que, apesar de saberem
quem era o cantor, pouco sabiam das questões raciais presentes em sua
vida e carreira: seu início no grupo Jackson Five, o vitiligo e as cirurgias
plásticas, dentre outros exemplos.

295
Depois, comentamos sobre a apresentação de Formation no
Super Bowl e eu mostrei a eles as reações de algumas pessoas que se
sentiram incomodadas. Mostrei fotos da apresentação, manchetes de
jornais internacionais falando dos protestos anti-Beyoncé e fotos dos
cartazes que foram feitos nessas manifestações. Discutimos sobre as
reações da mídia, em especial os memes e as piadas que viralizaram na
internet sobre essa parcela da sociedade que criticou a performance
no evento da liga de futebol americano. Em seguida, eles assistiram ao
vídeo The day Beyoncé turned black (SATURDAY NIGHT LIVE, 20016)
pela primeira vez.
No começo, eles ficaram meio confusos com a ideia do vídeo,
mesmo sabendo o que era uma paródia. Acredito que focaram muito
no conceito e características do trailer de suspense que se esqueceram
de levar em conta a noção de paródia, sátira. Retomamos a noção de
paródia e assistimos novamente. Desta vez, várias gargalhadas
puderam ser ouvidas pela sala, pois aos poucos foram percebendo
como o discurso de humor estava construído. Posteriormente, dei
início ao debate. Retomei a questão do título do vídeo, perguntando
se sabiam o significado de “to turn”. Um aluno respondeu que sim e
deu a sua tradução literal (virar, no sentido de fazer uma conversão).
Assenti com a cabeça, mas expliquei que o significado desse verbo, no
contexto do vídeo, era outro, que era o fato das pessoas se darem
conta de algo (virar, no sentido de tornar-se). Nesse caso, o fato de se
darem conta, de descobrirem que a Beyoncé é negra e celebra sua
origem e sua identidade, conforme os versos da música em questão.
Em seguida, discutimos as questões para analisar a letra e seu contexto
de referência.
Na aula seguinte, mostrei novamente o vídeo e retomei o que
havíamos discutido e iniciei a atividade prática. Mostrei para eles duas
questões para reflexão e debate: “when did you ‘turn’ black?” e “how
can you turn into an ally?”. Na primeira questão (quando você “se
tornou” negro?), discutimos sobre racismo e preconceito e vários
alunos negros compartilharam histórias pessoais ilustrando
momentos em que se perceberam vivenciando o racismo. A segunda
questão (como tornar-se um aliado?) considerou o exercício de pensar
em alternativas para combater o preconceito em práticas cotidianas
que nem sempre são reconhecidas como racistas (tomando os
exemplos da questão anterior como norteador do debate).

296
Após as trocas de experiência, enfatizei que cada aluno deveria
elaborar uma resposta aos questionamentos anteriores sob a forma
de uma expressão artística, e que poderiam escolher qual questão
responder. Por fim, depois de explicar toda a proposta, enquanto os
alunos começaram a produzir seus cartazes, exibi outros slides com
imagens de pessoas negras que foram fotografadas em ensaios,
campanhas publicitárias em favor da população negra, fotos de
artistas negros e fotos de cartazes em protestos contra o racismo e a
discriminação para que pudessem se inspirar enquanto faziam a
atividade.
Com isso, entreguei uma folha de papel para cada um, bem como
lápis de cor, canetinhas, pincéis e outros materiais, enquanto
conversava com os alunos que iniciavam as produções artísticas.
Durante esse processo, vários alunos me surpreenderam com esboços
já pensados desde o início da aula, como desenhos, trechos de músicas
e poesias que eles conectaram com o que estávamos trabalhando. Me
surpreendi com uma aluna, que me pediu para traduzir um texto para
ela colocar em sua arte. No texto estava escrito:

“Me vi como pessoa negra quando precisei falar sobre cotas. Me vi como pessoa
negra quando me chamaram de “cabelo duro”. Triste como eu fui a última pessoa
a descobrir a minha cor, e pelos brancos, ainda…”.
(Texto produzido em sala por uma das alunas do nono ano)

Aquilo me impactou de tal forma que tudo que eu queria era ver
o resultado final. Enquanto isso acontecia, eu olhava os esboços das
atividades e as respostas na folha de atividades da aula anterior sobre
o vídeo paródia. Enquanto o clipe da música era reproduzido ao fundo,
eu percebia a expressão no rosto deles de admiração, tanto na parte
musical do vídeo quanto na parte de estética, coreografia etc.
Começaram a surgir ilustrações de referências, gírias da letra da
música, como “hot sauce in my bag swag”. Uma vez terminados, os
trabalhos estavam prontos para uma exposição nas paredes da escola
e os alunos socializaram algumas de suas ideias durante a aula.
Em relação à minha formação como futuro professor, essa proposta
foi essencial para que eu (re)afirmasse o meu desejo de ser professor de
inglês. Quero contribuir com a maneira como meus alunos interagem com
diferentes textos e olham para a própria história de vida, quero que eles
saibam onde estão como sujeitos no mundo e que possam vivenciar

297
novos conhecimentos a partir da língua inglesa. A vida em sociedade
coloca desafios que atravessam a identidade desses alunos e como essas
questões mais controversas também afetam como meus alunos olham
para si mesmos, pensei em uma proposta pedagógica que considerasse a
perspectiva dos alunos e das alunas
A participação deles me agradou como professor, mas não posso
deixar de lado que apesar do envolvimento e da produção dos cartazes, a
indisciplina de alguns alunos atrapalhou um pouco proposta, pois afetou
a questão do tempo e prejudicou alguns momentos da aula. Apesar de
tudo, minhas expectativas foram atendidas e percebi que as ideias que
pensei foram bem aceitas e a turma participou de uma forma que em
geral me deixou satisfeito. Poder estar ali observando o investimento
(NORTON, 2013) dos alunos fez toda a diferença. Tive alunos que me
perguntaram o tempo todo se o que eles estavam fazendo estava certo,
alunos que escreveram textos e me mostraram para dizer se podiam dizer
o que queriam dizer. A aula de inglês se organizou pelo senso de
possibilidade: sim, em inglês e sim, eles podiam. Muitos estavam ao
mesmo tempo interessados na temática e interessados em produzir
aqueles cartazes em inglês. A identidade tinha seu espaço na aula e estava
sendo contemplada nas atividades dos alunos. Como futuro professor,
vejo que o papel deles para essa aula dar certo foi fundamental. Eu não
teria alcançado meus objetivos se não tivesse lido o que eles escreveram
ou visto os desenhos/pinturas que fizeram. Eles que fizeram essa aula
acontecer, não eu.

WE SLAY (OKAY): RELATOS DA PROFESSORA SUPERVISORA

A proposta de que os alunos do PIBID trabalhassem a questão da


identidade e do racismo na aula de inglês foi pertinente e
extremamente relevante, pois ao mesmo tempo em que os alunos
aprendiam esse novo idioma, eles discutiram temas da vida cotidiana
e alguns relataram experiências pessoais de racismo com colegas que
não tinham essa mesma vivência. É um tipo de ação pedagógica que
visa o diálogo e o respeito ao aspecto subjetivo do aluno, de sua
individualidade como parte daquele contexto. As reflexões sobre os
preconceitos estão cada vez mais presentes na sociedade brasileira e
consequentemente no ambiente escolar, dessa forma, esse é um tema
que precisa ser trabalhado em todas as disciplinas. No caso do inglês,

298
a proposta ficou muito interessante por articular o diálogo com
questões raciais presentes em outras países e pelos textos e materiais
trabalhados na língua alvo.
Conhecendo meus alunos, o engajamento deles com as atividades
do pibidiano a partir dessa temática foi muito interessante. A proposta foi
desenvolvida com uma turma do nono ano (alunos entre 14 e 15 anos) e
que formam um perfil único: ora não se envolvem com as propostas
desenvolvidas em sala, ora acreditam já saber de tudo o que será
proposto nas aulas. Eles concretizam a ideia de que trabalhar com
adolescentes é uma constante surpresa, mas na aula planejada pelo
professor em formação, a atividade proposta conseguiu o engajamento
de quase toda a turma. Os cartazes finais retrataram desde histórias
pessoais até poemas e isso foi motivado pelas discussões que o professor
pibidianos promoveu. Durante a aula, chamei a coordenadora da escola
para ver a discussão que os alunos fizeram com o professor Ícaro e como
os adolescentes se mostraram interessados.
O trabalho de questões sociais enquanto se ensina inglês é
imprescindível, pois como temos a linguagem como aspecto central,
todas as temáticas são possíveis. São importantes e essenciais, já que por
meio delas é possível analisar os diferentes discursos presentes em nossa
sociedade e essas diferentes vozes que nos atravessam (BOHN, 2005).
Essas questões devem ser trabalhadas não apenas nas aulas de inglês
mas, em diferentes Componentes Curriculares. A participação dos
pibidianos nas minhas aulas trouxe mudanças inclusive como olho para a
minha própria aula. Por meio da inserção dos bolsistas na rotina escolar
foi possível elevar a qualidade das abordagens metodológicas, não
apenas dos futuros professores, mas dos profissionais que como eu,
estão em sala há mais tempo, mas que sempre tem algo novo a aprender.

WE GON’ SLAY (OKAY): REVERBERANDO AS DIFERENTES VOZES E


IDENTIDADES

As experiências reportadas ao longo do capítulo mostram uma


série de contribuições ao ensino de inglês que podem ser pensadas em
diferentes perspectivas, mas que de maneira geral ressaltam o papel
importante de parcerias entre escolas e universidades. Ao pensarmos
o ensino de línguas não apenas como estudo do idioma em si, mas
como forma de interação com o outro, com outras culturas e outros

299
conhecimentos, os relatos mostraram que mesmo os temas mais
sensíveis atingem a os alunos e engajam a participação tendo em vista
o investimento (NORTON, 2013) para aprender, que vai muito além
apenas de estar motivado. A temática gerou interesse e foi promovido
em língua inglesa e por meio dela. É necessário ter em mente que o
desenvolvimento linguístico do aluno no novo idioma é uma
possibilidade a ser alcançada, ainda que as condições de trabalho
estejam aquém daquelas necessárias.
O PIBID6 se diferencia de outros projetos de formação pelas
parcerias que promove entre a tríade: coordenador, futuro professor
e professor supervisor. As ideias não contemplam apenas o estudo
científico e o preparo para a docência, elas abrem espaço para o
trabalho criativo do professor em formação e o diálogo com
professores já atuantes que ensinam e aprendem também. A
construção do conhecimento extrapola a tríade. No contexto escolar,
os alunos têm a possibilidade de participar de outras aulas e outras
atividades que se voltam à aprendizagem de inglês. Experiências dessa
natureza já na formação inicial fortalecem a construção de uma
identidade do professor de línguas que se pauta não apenas pelo
ensino do idioma, mas na formação humana do aluno, uma forma de
mudança social (FREIRE, 2001). Precisamos de mais experiências que
fomentem alternativas que busquem fazer a diferença pelo ensino de
inglês na escola pública.
Do ponto de vista dos estudos de identidade e língua, a proposta
se revelou importante por favorecer o diálogo e a construção de
sentidos sobre as identidades em sala de aula: tanto as identidades
negras e suas experiências com o racismo, quanto as identidades dos
aliados, que apesar de não vivenciarem a mesma experiência
diretamente, têm papel importante em combater a discriminação. De
maneira geral, a identidade nunca sai da sala de aula, pois os sujeitos
não deixam elas em casa antes de ir para a escola. Todavia, nem todos
os espaços educacionais possibilitam momentos ou oportunidades

6 Os autores gostariam de agradecer aos bolsistas do subprojeto


PIBID Inglês da UFOP
em 2019: Tátima Mapa, Cristina Batista, Cristina Aparecida e Higor Lucas.
Agradecimentos adicionais aos alunos que participaram das atividades, à direção e
equipe pedagógica da escola que sediou o projeto e à Professora Doutora Vanderlice
Sol pela contribuição ao PIBID Inglês.

300
para que elas sejam contempladas como parte da prática pedagógica.
Dito de outra forma, a identidade encontra seu lugar na sala de aula e
as questões mais polêmicas e sensíveis também. Professores
iniciantes, já experientes ou formadores de professores, independente
dessas nomenclaturas, todos de alguma forma temos sempre algo
novo a aprender. Aprender não apenas uma nova língua que nos
conecta as pessoas, mas aprender também a sermos pessoas
melhores!

REFERÊNCIAS

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identidade profissional. Investigações: Linguística Aplicada e Teoria
Literária, v. 17, n.2, p. 97-113, 2005.
BRASIL. Língua Inglesa. In: BRASIL. Base Nacional Comum Curricular:
Componente Língua Inglesa. Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 2017, p.241-264.
CELANI, M. A. A. Ensino de línguas estrangeiras. Ocupação ou
profissão. In: LEFFA, V.J. (Org.). O professor de línguas estrangeiras:
construindo a profissão (p. 25-43). Pelotas: Educat, 2006.
FREIRE, P. A educação e o processo de mudança social. In: FREIRE, P.
Educação e Mudança. 12ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
HALL, S. A identidade em questão. In: HALL, S. A identidade cultural
na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. Rio de Janeiro: DP & A editora, 2006, p.07-22.
HALL, S. Nascimento e morte do sujeito moderno. In: HALL, S. A
identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A editora, 2006, p.23-46.
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segue-estagnado-em-ranking-de-proficiencia-na-lingua-inglesa.shtml >
Acesso em: 27 de dez, de 2019.
LIMA, F.S. Trajetórias em espiral: a formação histórico-cultural de
professores de Inglês. 2017. Tese de Doutorado em Estudos
Linguísticos. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Unesp,
São José do Rio Preto, 2017.

301
LIMA, F.S. "Aprender inglês nunca foi meu interesse: passado,
presente e futuro de um aluno de Letras escrevendo a própria história.
In: OLIVEIRA, A.L.; SCHÜTZ, J.A.; AMARAL, M.A.F; LIMA, M.C. (Orgs.).
Vozes da Educação: pesquisas e escritas contemporâneas. São Carlos:
Pedro e João Editores, 2019a. p.181-195.
LIMA, F.S. Percorrendo o caminho das pedras: grupos focais na
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DERING, R.O. (Orgs.). Entremeios Educacionais: perspectivas teórico-
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303
304
A IMPORTÂNCIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA NA
APRENDIZAGEM DE CONTEÚDOS DA MATEMÁTICA NO
ENSINO FUNDAMENTAL II: EXPERIÊNCIA EM ESCOLA PÚBLICA
NA CIDADE DE NATAL

Heriberto Silva Nunes Bezerra1

INTRODUÇÃO

Incentivar os alunos à aprendizagem de conceitos da Matemática


em sala de aula tem sido um dos grandes desafios dos professores, seja
nas escolas da rede pública ou privada. Há segundo Curtis (2017), uma
falsa ideia de que essa disciplina é complicada e que somente poucos
alunos são capazes de compreendê-la e resolver problemas
matemáticos.
Por este motivo, os educadores têm buscado (re) pensarem suas
práticas pedagógicas, a fim de incentivar e/ou despertar o interesse
dos seus alunos em apreender os saberes dessa ciência. Como
alternativas recorrentes podemos citar: o uso de jogos matemáticos,
oficinas interdisciplinares, seminários temáticos, entre outros, os quais
tendem a “quebrar” a rotina de sala aula, possibilitando uma
aprendizagem do conhecimento de forma divertida, coletiva e
interativa.
Outrossim, a contextualização histórica é uma grande
colaboradora nesse processo de aprendizagem de conteúdos
matemáticos, a qual busca promover, nos estudantes, uma
aprendizagem significativa. A respeito disso, Miguel e Miorim (2011)
asseguram que o conhecimento histórico da Matemática desperta o
interesse do aluno pelo conteúdo matemático, o qual está sendo
ensinado, atribuindo à história um poder quase mágico, assim
modificando a atitude do estudante em relação a essa ciência.

1Mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional do


Rio Grande do Norte – PPGEP/IFRN e licenciado em Matemática também pelo IFRN.
Email: [email protected]

305
Durante o primeiro semestre de 2018 desenvolvemos em uma
escola da rede pública da cidade de Natal – Rio Grande do Norte,
especificamente em duas turmas de 6º e 9º ano, atividades
interdisciplinares entre as disciplinas de Matemática e História,
utilizando-se da contextualização histórica como elemento essencial à
introdução de novos conhecimentos matemáticos.
Essa proposta interdisciplinar partiu de uma análise da
problemática enfrentada pelos estudantes dos anos supracitados, os
quais apresentavam grandes dificuldades em compreender e aplicar os
saberes matemáticos trabalhados em sala de aula, tais como:
geometria plana, funções do primeiro grau e frações. Além disso,
muitos relatavam que não reconheciam a importância da disciplina em
suas vidas.
Destarte, esse estudo tem como objetivo geral, refletir sobre a
importância da contextualização histórica na aprendizagem de
conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II, além de relatar
experiências na docência em uma escola pública na cidade de Natal, na
qual utilizamos de atividades interdisciplinares entre as disciplinas de
Matemática e História com o intuito de colaborar na aprendizagem dos
educandos
Neste sentido, a fim de alcançar os nossos objetivos de pesquisa,
analisamos essa prática pedagógica à luz do pensamento de teóricos
tais quais: Curtis (2016), Gonçalves e Pires (2014), D’Ambrósio (2012),
Miguel e Morim (2011) e Freire (2005; 1996), além disso, matutamos
sobre os principais apontamentos referente a temática presentes nas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013) e nos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental II
(1998).
Além dessa revisão bibliográfica e documental, de natureza
qualitativa, utilizamos da pesquisa ação, a qual segundo Minayo (2014)
é um tipo de investigação social com base empírica, concebida e
realizada em estreita associação com uma ação voltada à resolução de
problemas comunitários e sociais. Nessa modalidade, os
pesquisadores e participantes representativos da situação ou do
problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Desse modo, acreditamos que essa investigação contribuirá não
somente com os atuais educadores, mas também com os futuros
professores, promovendo uma reflexão acerca da essencialidade de

306
desenvolver práticas interdisciplinares que trabalhem o contexto
histórico nas aulas de Matemática.
Tendo como prováveis consequências, aos sujeitos envolvidos na
construção do conhecimento, um novo olhar sobre a Matemática e a
possibilidade de associar os conceitos apreendidos em sala de aula
com suas atividades do cotidiano e com as demais disciplinas,
desenvolvendo assim, uma aprendizagem significativa.
Logo, este artigo científico está estruturado em quatro (4) partes:
a primeira é essa breve introdução, contendo a problemática, os
objetivos, a metodologia e a justificativa da pesquisa. Posteriormente,
discutimos a contextualização histórica como prática essencial à
aprendizagem de conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II.
Na terceira parte, narramos algumas experiências na docência em uma
escola pública em Natal, na qual utilizamos de práticas
interdisciplinares. Por fim, expressamos as nossas considerações
finais.

O CONTEXTO HISTÓRICO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA À


APRENDIZAGEM DE CONCEITOS DA MATEMÁTICA NO ENSINO
FUNDAMENTAL II

O Ensino Fundamental II é uma etapa educacional em que os


estudantes são desafiados social e intelectualmente. Esse por meio do
desenvolvimento do pensamento crítico, lógico-racional, da
criatividade, os quais são essenciais à construção do conhecimento,
sendo avaliados via testes e provas semestrais. Já aquele, diz respeito
ao processo de socialização, de interação com os demais alunos,
professores e colaboradores da escola, tendo como provável objetivo,
inserir o indivíduo ao meio social, fomentando a formação ética-
cidadã.
Desse modo, o professor deve pensar práticas pedagógicas que
colaborem a interiorização dos conceitos da Matemática. Tendo em
vista que, segundo Freire (1996), o educador deve desenvolver
práticas que possibilitem aos educandos construírem o seu próprio
conhecimento, além de refletir sobre elas, pois é com a atitude
reflexiva de hoje, que aprimoramos as práticas de amanhã.
Um exemplo de prática pedagógica que contribui para essa
formação do aluno e promove a compreensão do saber sistemático é

307
a contextualização histórica da Matemática. Sobre a qual (MIGUEL;
MORIM, 2011, p. 52) afirmam que:

[...] a importância da história no processo de ensino-aprendizagem da


Matemática é indubitável, por considerar que isso possibilitaria a desmistificação
da Matemática como disciplina complexa, além do mais é um estímulo à não
alienação do seu ensino. [...] A forma lógica e emplumada através da qual o
conteúdo matemático é normalmente exposto ao aluno, não reflete o modo
como esse conhecimento foi historicamente produzido.

Assim, compreendemos que antes de introduzirmos um novo


conceito matemático em sala de aula, devemos realizar uma
contextualização histórica sobre esse conteúdo o qual será
trabalhado, permitindo aos educandos conhecerem suas aplicações,
suas origens e principalmente relacionar a importância dessa
aprendizagem com seu cotidiano.
Esses pensamentos de Miguel e Morim (2011) vão ao encontro de
reflexões de Curtis (2016) referente ao processo de ensino e
aprendizagem de conceitos matemáticos em sala de aula. Curtis (2016)
salienta que muitos estudantes não conhecem as razões de
aprenderem determinados conteúdos matemáticos. De modo que, ao
não identificarem as relações dos conceitos ensinados com sua
realidade, passam a sentirem-se desmotivados.
De modo semelhante a Miguel e Morin (2011), D’ambrósio (2012)
acredita ser importante que, antes de iniciar a explanação sobre um
conceito matemático, o educador introduza um breve relato histórico
acerca do objeto de estudo. Pois, é primordial que o educador mostre
ao estudante que aquele conceito não foi desenvolvido ao acaso,
porém há uma história por trás de sua origem, houve uma
problemática social a qual se fez necessária sua aplicação no passado
e que atualmente, se tornou fundamental em nossas atividades sociais
e profissionais.
D’ambrósio (2012) complementa que, era comum nas civilizações
antigas (gregas, egípcias e romanas) o uso da trigonometria e da
Matemática básica na resolução de problemas e na construção de
monumentos. Os antigos povos necessitavam do saber matemático
em suas atividades do cotidiano, assim essa ciência foi se aprimorando.
Logo, pensamos que essa contextualização histórica em sala de
aula, promove inúmeros benefícios aos educandos, tais como:

308
desmistificar o pensamento de que a Matemática é complicada e/ou
desnecessária; colaborar para uma interdisciplinaridade entre as
disciplinas de História e Matemática; proporcionar um novo olhar
sobre essa ciência, identificando suas aplicações no cotidiano; e
finalmente motivar os alunos ao prazer em aprender Matemática e
consequentemente melhorar seus desempenhos em atividades e
avaliações.
Outrossim, notamos que a interdisciplinaridade é
constantemente desenvolvida durante essa atividade de
contextualização histórica. De modo que se torna fluente pensar
práticas pedagógicas que envolvam não somente assuntos da
Matemática com a História, como também a Geografia, Sociologia e
Filosofia. Essa interdisciplinaridade, segundo Gonçalves e Pires (2014),
é pensada de modo a promover a interação entre as diversas ciências.
Os autores complementam que:

[...] A interdisciplinaridade é observada como a interação necessária entre as


diversas disciplinas no processo de organização e desenvolvimento curricular, a
partir de uma análise crítica da realidade e da percepção do papel que o educador
tem nesta realidade. Essa interação pode ir da simples comunicação de ideias à
integração mútua de conceitos diretores da epistemologia, da terminologia, da
metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização referentes ao
ensino e à pesquisa. (GONÇALVES; PIRES, 2014, p. 244).

Assim, analisa-se que princípios norteadores à formação integral


dos estudantes, tais como: a interdisciplinaridade e a intrínseca
articulação entre teoria-prática podem ser trabalhadas por meio da
contextualização histórica. Esses princípios supracitados, presentes
nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL,
2013), objetivam contribuir para o desenvolvimento de atividades que
contemplem os aspectos culturais, sociais, profissionais, científicos e
tecnológicos.
Além disso, têm-se a curiosidade e a criatividade, como aspectos
cognitivos essenciais para que os estudantes nessa etapa educacional
possam dar saltos de qualidade no pensamento. Logo, ao expor
relatos históricos sobre o conteúdo matemático que será ensinado, o
professor permite que o aluno viaje no tempo por meio de sua
imaginação, de modo que formule suas hipóteses, imagine situações
históricas e note a presença da Matemática em suas vidas.

309
A respeito do incentivo à curiosidade, Freire (1996, p. 88)
assegura que “o exercício da curiosidade convoca a imaginação, a
intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na
busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser”.
Assim, compreendemos que esses momentos de excitação à
curiosidade e criatividade são valiosos na apreensão do conhecimento
matemático. Numa relação de ensino bidirecional, em que ambos
aprendem por meio do compartilhamento de saberes. Como esclarece
Freire (2005), em Pedagogia do Oprimido:

O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado,
em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim,
se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos
de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade,
se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora
ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os
homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. (FREIRE, 2005, p.
79).

Além dessas percepções apresentadas, observamos, nos


Parâmetros Curriculares Nacionais, a Matemática no Ensino
Fundamental (BRASIL, 1998) indicações sobre o desenvolvimento de
atividades que trabalhem com a abordagem da historicidade de
conceitos da Matemática. Os PCN defendem que:

O conhecimento matemático deve ser apresentado aos alunos como


historicamente construído e em permanente evolução. O contexto histórico
possibilita ver a Matemática em sua prática filosófica, científica e social e
contribui para a compreensão do lugar que ela tem no mundo. (BRASIL, 1998, p.
19).

Além do mais, os PCN (BRASIL, 1998) esclarecem que o


conhecimento matemático é fruto de um processo de que fazem parte
o contexto histórico, a imaginação, a criticidade, a criação de hipóteses
e teses, além dos erros e acertos.
A partir da análise dessas citações teóricas, entendemos que essa
prática pedagógica deve ser frequentemente realizada em sala de
aula, pois como educadores matemáticos não estamos passando
conhecimento aos alunos, na realidade estamos colaborando para a
formação de indivíduos críticos, questionadores, curiosos e criativos,
que utilizarão dessa aprendizagem da Matemática em sala de aula,

310
para suas atividades do dia a dia e até mesmo (re) construírem suas
realidades.
Destarte, infere-se que o contexto histórico é apresentado como
uma estratégia pedagógica que contribui no ensino e aprendizagem
de conceitos da Matemática no Ensino Fundamental II, permitindo que
os alunos apreendam os saberes inerentes dessa ciência e exercitem a
criticidade, a criatividade e a curiosidade.
A seguir, relataremos uma experiência na docência em uma
escola da rede pública na cidade de Natal, durante o primeiro semestre
de 2018, na qual utilizamos a contextualização histórica como prática
pedagógica, a fim de promover um novo olhar dos educandos sobre
essa ciência, melhorando consequentemente seus resultados em
testes e avaliações, e desenvolvendo a interdisciplinaridade entre as
disciplinas de Matemática e História.

EXPERIÊNCIA NA DOCÊNCIA EM ESCOLA DA REDE PÚBLICA NA


CIDADE DE NATAL

Durante o primeiro semestre de 2018, fomos em uma escola


estadual na cidade de Natal a fim de realizarmos uma entrevista com
professores da área da Matemática, pois em nossa primeira disciplina
de mestrado fomos desafiados a desenvolver um artigo científico
voltado para práticas pedagógicas e metodologias de ensino. Logo,
pensamos em realizar uma pesquisa voltada para as concepções de
professores de escolas públicas sobre práticas pedagógicas.
Como mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Educação
Profissional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte – PPGEP/IFRN - procuramos uma escola que fosse
localizada em um dos bairros mais humildes e populares da região, pois
queríamos observar essa realidade e as dificuldades enfrentadas pelos
educadores.
Neste sentido, optamos por uma escola da zona oeste de Natal, a
qual está localizada no bairro do Planalto, um dos bairros periféricos e
violentos da capital potiguar, que desenvolve atividades educacionais
para crianças e adolescentes voltadas ao ensino fundamental I e II. Em
nossa primeira visita a instituição, percebemos que apesar de simples,
ela oferecia boa estrutura física para os estudantes e colaboradores,
tais como: bebedouros funcionando, banheiros limpos e conservados,

311
biblioteca organizada e com bom acervo de literatura disponível, as
salas de aulas todas possuíam ventiladores, quadro branco e carteiras
em bons estados, apenas com alguns rabiscos feitos pelos próprios
alunos.
Todavia, em nossa segunda visita a escola ouvimos dos
estudantes que não gostavam de Matemática, que não compreendiam
seus conceitos, muito menos sua utilidade na vida profissional e social.
Outros afirmavam que somente os alunos denominados “nerds”
conseguiam obter bons resultados nas atividades e avaliações da
disciplina.
Diante dessas queixas, conversamos com os dois professores de
Matemática da escola, os quais alegaram que os alunos apresentam
um bloqueio para com a disciplina, o que vem acarretando notas
baixas nas avaliações, conversas paralelas durante as explicações e
consequentemente reclamações sobre os conteúdos trabalhados em
sala de aula.
Diante dessa problemática que emergiu, imediatamente
repensamos nossos objetivos iniciais e como educadores de
Matemática e História refletimos sobre o que poderíamos desenvolver
na escola com o intuito de ajudar a solucionar essa questão. Pois,
durante nossa formação como licenciados aprendemos que o
professor tem como principal missão colaborar no processo de
construção social e educacional dos alunos e promover através de suas
práticas pedagógicas a interiorização do conhecimento.
Na semana seguinte, dialogamos com a supervisão pedagógica,
direção e professores da instituição sobre a problemática e em seguida
apresentamos uma estratégia pedagógica com o intuito de
desenvolver no contraturno oficinas interdisciplinares de Matemática
e História, as quais trabalhariam a contextualização histórica dos
conteúdos matemáticos ensinados em sala de aula, além de reforçar a
aprendizagem desses conceitos.
A ideia foi prontamente abraçada pela instituição e na mesma
semana foi disponibilizada uma sala de aula para realizarmos as
oficinas. As quais seriam ofertadas aos estudantes do 6º e 9º ano,
tendo em vista que estes, segundo os próprios professores,
expressavam maiores dificuldades no que tange a compreensão e
aplicação dos conceitos matemáticos. Assim, ficou determinado o

312
público alvo das oficinas interdisciplinares de contextualização
histórica e reforço matemático.
Vale salientar, que em diálogo com a supervisão pedagógica ficou
estabelecido que os encontros ocorreriam as quartas-feiras, sendo das
13h até as 14h com os alunos do 6º ano, e das 14h até as 15h com a turma
do 9º ano. Essa divisão fez-se necessária pois, os conteúdos
trabalhados em sala de aula eram diferentes, ou seja, a grade curricular
não era semelhante. Logo, identificamos que as turmas necessitavam
de um olhar e uma metodologia diferente, pois os estudantes do 9º
ano tinham mais experiências, de certo modo, tinham uma base
matemática maior do que as crianças do 6º ano.
Em nosso primeiro encontro ficamos surpresos com a quantidade
de jovens e crianças presentes nas oficinas, não tivemos nenhuma
ausência de alunos. Estes demonstravam por meio de seus olhares a
curiosidade e o interesse em descobrir o que iríamos desenvolver
naquele momento.
Em conversa com o professor de Matemática fomos informados
que os alunos apresentavam maior dificuldade em geometria plana,
não conseguiam resolver problemas matemáticos e identificar as
propriedades das formas geométricas. Diante disso, organizamos um
ambiente interativo e lúdico com sólidos geométricos e tangrams, a
fim de que os alunos pudessem manipular os objetos e brincando
aprendessem as propriedades e conceitos da geometria.
Inicialmente, o professor de História solicitou que os alunos
fizessem um grande círculo e relatou que a geometria plana foi
essencial nas grandes construções históricas, tais como: as pirâmides
do Egito, o coliseu romano, o partenon grego e os incríveis
monumentos erguidos pelos povos maias e astecas. Por meio de fotos
apresentadas via slides, os alunos pareciam encantados com as novas
informações, era como se aquele conteúdo matemático começasse a
fazer sentido em suas vidas.
Em seguida, desafiamos os educandos a citarem exemplos de
construções atuais, as quais eles enxergavam a presença da
geometria. Prontamente, empolgadas as crianças responderam “os
estádios de futebol”, “os grandes prédios de nossa cidade”, etc. Foi
um momento gratificante perceber que nossos alunos estavam
apreendendo o conhecimento matemático e relacionando-o com suas
vidas.

313
Na quarta-feira seguinte, retornamos à escola e imediatamente
fomos informados pela direção escolar que os estudantes estavam
apaixonados pela oficina, que durante toda a semana só falavam dos
fatos ocorrido no primeiro encontro. Diante do exposto, ficamos
maravilhados pela aceitação e pela vontade dos alunos em participar e
aprender, ou seja, em construírem seus conhecimentos.
A aula interdisciplinar inicialmente ocorreu por meio de slides, os
quais apresentamos as propriedades inerentes das formas
geométricos, tais como: quadrado, triângulo, círculo, retângulo e
trapézio. Durante as explicações, relembrávamos as aplicações desses
conceitos nas civilizações antigas e na atualidade.
Pós-explanação, as crianças realizaram atividades lúdicas
manuseando os sólidos geométricos, com o objetivo de melhor
compreender os conceitos de arestas, vértices, faces e as
propriedades das formas geométricas. Como educadores sabemos
que é essencial que os alunos tenham esses saberes geométricos
interiorizados, para que possam ser corretamente aplicados nas
situações do cotidiano.
A esse respeito Nascimento (1998, p. 40) esclarece que:

[...] estudo da geometria é essencial para o estudante compreender a realidade


na qual está inserido, para interpretá-la e para se comunicar a respeito dela. A
familiarização com as figuras geométricas e o desenvolvimento de habilidades
ligadas à percepção espacial são essenciais em várias situações escolares (entre
as quais, a leitura e a escrita) no dia-a-dia das pessoas, no exercício das mais
variadas profissões.

Assim, compreendemos que esses conhecimentos aprendidos


serão futuramente, necessários para a vida profissional do estudante.
Por isso é importante que nossos alunos tenham essa base matemática
da geometria solidificada.
Além do mais, desenvolvemos desafios utilizando o tangram, um
famoso quebra-cabeças geométrico chinês formado por 7 peças,
chamadas tans: são 2 triângulos grandes, 2 pequenos, 1 médio, 1
quadrado e 1 paralelogramo. Utilizando todas essas peças sem
sobrepô-las, podemos formar várias figuras. Durante os desafios de
montagem, os estudantes brincavam e aprendiam matemática, para
nós era um momento gratificante, pois observávamos que eles sorriam
e se divertiam enquanto assimilavam os conhecimentos matemáticos.

314
Abaixo apresentamos imagens da atividade desenvolvida com os
alunos do 6º e 9º ano.

Figura 1: educador matemático ensinando as propriedades das formas


geométricas planas aos alunos do 6º ano.

Fonte: acervo do autor. (2018).

Na imagem 1, temos o professor e matemática trabalhando na


oficina com as formas geométricas e suas propriedades. Utilizando
para tal, slides, sólidos geométricos e tangrams. A esse respeito,
constatamos que os PCN da matemática para o ensino fundamental II
(BRASIL, 1998) afirma que o uso de material lúdico no processo de
ensino e aprendizagem favorece a apreensão do conhecimento.
Na imagem 2, apresentamos os materiais disponíveis aos alunos
durante a oficina, os quais contribuíram para à interiorização do
conteúdo matemático.

315
Figura 2: materiais utilizados na oficina interdisciplinar.

Fonte: acervo do autor. (2018).

É importante destacar que os materiais usados na oficina foram


disponibilizados pelo laboratório de Matemática do IFRN – campus
Natal Central – sob a autorização do professor Dr. Wharton Martins de
Lima, o qual há mais de 20 anos ministra na instituição aulas de
Matemática tendo como ferramenta pedagógica o material lúdico.
Na imagem 3, observamos alguns alunos do 9º ano manuseando
o material e aprendendo os conceitos da geometria de forma divertida
e interativa.

Figura 3: alunos na oficina interagindo com o material lúdico.

Fonte: acervo do autor. (2018).

316
Ao decorrer da oficina, percebemos que os alunos que possuíam
maior facilidade em aprender, ajudavam aos demais, ou seja, havia o
compartilhamento do saber. Os estudantes trabalhavam em grupos, o
que permitia uma socialização dos indivíduos e a aprendizagem de
forma divertida e interativa por meio de desafios utilizando o tangram.
Na imagem 4, captamos um momento que tocou nossos
corações, uma das crianças do 6º ano, fez um pequeno resumo da
contextualização histórica trabalhada em sala de aula. Ela relembrou
as pirâmides do Egito e os triângulos presentes em suas laterais,
destacou os edifícios da cidade, os quais possuíam retângulos em suas
estruturas, ainda pontuou que em seu bairro possuía uma praça em
formato de círculo.

Figura 4: aluno do 6º ano e seu resumo sobre o contexto histórico da


geometria.

Fonte: acervo do autor. (2018).

É possível através das imagens perceber que os alunos estavam


apreciando a oficina e aprendendo os conceitos matemáticos. Durante
as atividades de contextualização histórica, de manuseio aos sólidos
geométricos e os desafios com o tangram, a curiosidade e a
criatividade eram incentivadas naturalmente. As crianças
perguntavam, as respostas obtidas geravam outras dúvidas, as quais

317
muitas vezes foram respondidas pelos próprios colegas. Em processo
que chamamos de aprendizagem compartilhada.
Nas semanas seguintes, continuamos a trabalhar a
contextualização histórica nas oficinas, desta vez referente ao
conceito de funções de primeiro grau. Semelhante a oficina anterior,
realizamos o círculo de debate e discussão histórica, e nas semanas
seguintes aplicamos outras atividades interdisciplinares com material
lúdico.
Ao final do mês de maio, conversamos com a supervisão
pedagógica e com os professores de Matemática e História da
instituição, referente ao desempenho dos alunos em sala de aula e nas
atividades e avaliações bimestrais. Como devolutiva, recebemos
sorrisos e agradecimentos dos mesmos, os quais afirmaram ambas as
turmas melhoram o desempenho nas atividades, a conversa paralela
diminuiu significativamente e muitos alunos apresentavam uma
evolução cognitiva no que tange ao questionamento em sala de aula e
a criatividade em resolver problemas matemáticos.
Os professores mencionaram também, que estavam utilizando
dessa estratégia pedagógica em sala de aula, antes de introduzir os
conceitos de Matemática, realizavam a contextualização histórica,
explicavam a importância do conteúdo ser aprendido e suas aplicações
no cotidiano do estudante.
Diante dos comentários feitos pelos professores e pela
supervisão pedagógica, concluímos nossa missão, a qual iniciou-se
diante de uma problemática identificada na instituição de ensino e que
nos sensibilizou como educadores. Acreditamos ter deixado na escola
uma semente plantada, não somente nos alunos, mas também nos
professores e nos seus colaboradores, e esperamos que essa semente
seja frequentemente regada e que gere frutos, os quais serão
essenciais para o processo de ensino e aprendizagem, como também
à formação humana e social dos educandos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho, refletimos sobre a importância da


contextualização histórica na aprendizagem de conceitos da
Matemática, sendo possível constatar que por meio de prática
pedagógica interdisciplinares, os alunos conseguem desenvolver a

318
curiosidade, a criatividade, o pensamento crítico e (re) conhecer a
essencialidade dessa ciência em suas vidas sociais e profissionais.
Ainda, constatamos que essa prática pedagógica permitiu ao
professor desenvolver atividades por meio do círculo de debate, da
utilização do material lúdico, além da interação com os jogos. Desse
modo, os alunos apreenderam não somente os conteúdos inerentes
da Matemática, como também da História, aprenderam também
princípios da Sociologia como por exemplo, o trabalho coletivo, a
ética, além de desenvolver o raciocínio lógico.
Além disso, destacamos que os alunos conseguiram
compreender que a Matemática é uma ciência que pode ser
apreendida por todos, não somente por uma minoria denominados
“nerds”. Finalmente, eles puderam relacionar a presença desses
conceitos trabalhados em sala de aula, com suas atividades diárias.
Acreditamos que, assim, ocorreu uma aprendizagem significativa, pois
os estudantes compreenderam os motivos de se aprender
Matemática.
Esperamos que essa pesquisa científica possa contribuir para que
atuais e futuros educadores matemáticos reflitam suas práticas
pedagógicas e busquem por meio de estratégias interdisciplinares
caminhos para que seus alunos interiorizem o conhecimento
matemático e assim os utilizem em suas vidas.

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MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa
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NASCIMENTO, Heitor Guerra do. Licenciatura em Matemática:
metodologia e didática do ensino de Matemática. Salvador; FTC/EAD,
1998.

320
SER-SENDO PEDAGÓGICO: O BRINCAR NA PERSPECTIVA DE
PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM UM MUNICÍPIO DO
INTERIOR DA BAHIA

Selenita Novais Silva Sobrinho1


Celeste Dias Amorim 2
Nayara Alves de Sousa3

INTRODUÇÃO

A Educação Infantil é a fase em que a criança apresenta um


desenvolvimento mais acelerado, o qual é marcado pela rápida
associação de saberes próprios dessa idade. Isto está relacionado ao
modo como a criança se movimenta, como lida com o seu corpo, em
que, gradativamente vai ocorrendo às descobertas de si, o
empoderamento da sua noção espaço/temporal decorrente da
conscientização da existência do seu corpo influencia no
desenvolvimento do equilíbrio e da coordenação que auxilia
significamente no processo de ensino e aprendizagem (QUEIROZ;
MACIEL; BRANCO, 2006; SUZUKI et al., 2012).
O movimento é uma necessidade básica que o ser humano tem
desde ao nascimento e que é intensamente sentido na infância.
Entretanto, é por meio do brincar a melhor opção de atividade para
suprir a necessidade de movimento e promover desenvolvimento na
infância. Esses movimentos realizados pela criança apresentam signos
relacionados à linguagem corporal que influencia diretamente na
linguagem verbal, possibilitando-a comunicar e expressar (QUEIROZ;
MACIEL; BRANCO, 2006; SUZUKI et al., 2012).
O desenvolvimento infantil acontece muito espontaneamente,
mas ocorre por influência do meio, ou seja, a depender do ambiente

1Graduanda em Educação Física. E-mail: [email protected]


2 Educadora Física. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UESC.
Docente da Faculdade Pitágoras. E-mail: [email protected].
3 Fisioterapeuta. Doutora pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente

Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:


[email protected].

321
em que está inserida, das pessoas com as quais convive, mas quando a
criança ingressa na instituição escolar o professor é de fundamental
importância, haja visto o tempo que a criança passa com ele no seu dia-
a-dia. Assim as possibilidades de progresso no desenvolvimento
podem aumentar a depender do processo de ensino oferecido na
instituição e da intervenção do profissional por meio da sua práxis
pedagógica (QUEIROZ; MACIEL; BRANCO, 2006; SUZUKI et al., 2012).
Corroborando Gomes e Mello (2010, p. 684) nos mostram quanto
o meio se faz sensível ao mundo emocional a partir do modo como o
outro nos olha, nos percebe, uma vez que, “afeto diz respeito àquilo
que afeta, ao que mobiliza, por isso reporta à sensibilidade, às
sensações. Podemos, ainda, referir afeto como ser tomado por
atravessado, perpassado, quer dizer: afetado. Esse atravessar,
perpassar é o que propriamente dá o caráter de afecção”.
Nessa vertente, lança-se o olhar sob o brincar que traz a práxis
pedagógica um caminho para se relacionar com a criança,
possibilitando por meio deste que ela seja afetada, mas também, como
aponta Deleuze (1978) que se crie a partir das vivencias e
experienciação de afeto um regime de variação. Nesse caso, cabe à
instituição, por meio do planejamento pedagógico institucional, o
entendimento da importância do brincar, do desenvolvimento de
atividades lúdicas, de forma que sensibilize o professor para que
envolva o afeto na execução de tais ações planejadas, pois contribuirá
com a construção da personalidade da criança.
Neste contexto, para dialogar como a práxis pedagógica que utiliza
o brincar como ferramenta de ensino aprendizagem, é que inserimos a
filosofia galeffiana do ser-sendo, a qual “oferece uma compreensão
poemático-pedagógica para o aprendizado. Preconiza a construção
cognoscente própria mobilizada pelo esforço do sujeito em suas
circunstâncias significativas. Aprender a ser é aprender a pensar como
exercício do conhecimento de si mesmo e dos outros, um constante
aprender e apreender o mundo” (FERNANDES, 2019, p. 14).
Partindo dessas argumentações, a pesquisa traz como objetivo
geral: Analisar a importância do brincar na perspectiva de duas
professoras da Educação Infantil, à luz da reflexão filosófica de Dante

322
Augusto Galeffi, o “SER-SENDO”, que nos influi “poemáticamente”4
sobre a nossa compreensão pedagógica para o fazer e aprender-fazer.
A escolha do tema justifica-se pelo fato que o brincar fazer parte
das minhas práxis educacional, bem como por ser relevante como
recurso pedagógico que contribuir na formação da criança e no
exercício do educador em ser-sendo, o que torna necessária
compreensão e afeto, principalmente nos dias atuais, já que vivemos
uma realidade difícil dentro das salas.

A SALA DE AULA E O SER-SENDO: APRENDENDO AFETAR E SER


AFETADO

Um trabalho com iniciantes da vida escolar dá ao docente a


condição de ensinar aprendendo, pois, com o comportamento da
criança diante das situações cotidianas, o professor tem a
possibilidade de entender como se desenvolve no âmbito cognitivo,
como nos alerta Almeida e Cestari (2015, p. 3832) “compreender a
individualidade como diferenciação e constituição de subjetividades,
ou seja, como modos de ser do sujeito”. Assim, o professor segundo
Andrade (2014, p. 18) “tem a oportunidade de trocar experiências com
o aluno e conhecer novas realidades, ampliar a sua visão de mundo e
ser um novo formador de opiniões”.
Ressaltando que nessa era digital, em que as crianças já nascem
em sociedades informatizadas, o professor é desafiado a introduzir e
manter a educação de conhecimento da vida e do mundo para que a
criança sinta a necessidade de conhecê-lo e transformá-lo, pois de
acordo Fernandes (2019, p. 170) processos “que não leva o sujeito a
despertar a potência da sua capacidade de pensar de modo próprio e
apropriado” não são significativas, não nos conduz a formação
humana, que é um princípio primordial da educação, em que para
Almeida e Cestari (2015, p. 3830) a formação humana:

[...] nos direcionam para pensar os processos formativos sob duas dimensões do
campo educacional: A dimensão constitutiva do ser, ou seja, o que tem sido o
indivíduo como processo de subjetivação em acordo com as demandas que lhe
impõem as formas de socialização determinantes; [...] A dimensão do dever ser,

4 “A poemática tem como base o autoconhecimento do ser-sendo em sua relação com


os outros nas interconexões com suas circunstâncias vitais” (FERNANDES, 2019, p.
14).

323
entendida aqui como o lugar das intencionalidades e do que há de potencial para
afirmar sobre a constituição de outros processos de subjetivação.

É na vivência destas dimensões no dia-a-dia em sala de aula que


percebemos que a escola não apenas transmite e constrói
conhecimentos, mas, também, reproduz padrões sociais, deturpando
valores e como nos aponta Bourdieu (1998) fabricando sujeitos. Neste
sentido, Almeida e Cestari (2015, p. 3830, grifo nosso) nos alerta que:

A concepção de formação humana deve perpassar todo o currículo,


considerando a faixa etária das crianças e os objetivos educacionais destacados
para o momento escolar em que estiverem inseridas. Formar a criança, além de
outras medidas, deve ressaltar o acompanhamento dela em seu processo
formativo, viabilizada por uma avaliação sistematizada e constante da proposta
pedagógica e da criança.

O processo de crescimento humano, da aprendizagem, do


vivenciar e do fazer-aprender “são mobilizados pela condição de ser
humano, o qual traz inerente a si esse ímpeto de ser-mais. [...] o ser
humano é uma potência na aventura do ser-sendo” (FERNANDES,
2019, p. 23). E, ser mais significa estar e se relacionar com o outro, com
o mundo junto com o outro, criando e desenvolvendo afetos, é ser-
sendo no mundo (GALEFFI, 2001), precisamos só criar oportunidade de
exercê-las.
É preciso fazermos convites de aberturas para as experiências de
nossas vidas, uma vez que, elas passarão. Trata-se de buscar
pedagogicamente o encontro entre nós mesmos e com o outro, na
tentativa de questionarmos nossos atos e formação através de
registros únicos que certamente descreverá os momentos vividos com
as crianças na creche, atribuindo sentindo a perspectiva dos
professores, convocando a pensar estratégias de uma docência na
educação infantil. O que nos leva a requerer:

[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender
a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24, grifo nosso).

324
Assim, é necessário que o professor de Educação Infantil se
aproprie das experiências da criança para entender como a afetividade
a auxilia na aprendizagem, na interatividade, na sua atitude e
relacionamento com o outro para a sua construção enquanto sujeito
social.
A ligação entre educador e educando está relacionada com o fim
do autoritarismo que era permitido há muito tempo nos ideais
educativos, em que a diferença entre educar e lecionar está no
comportamento do professor como educador, que usa o afeto como
instrumento fundamental na sua ação educacional (ANDRADE, 2014).
Ainda dialogando com Andrade (2014), o professor dever refletir
sobre as aulas, considerar seus alunos enquanto faz a reflexão,
fazendo o possível para que se torne um processo cheio de
descobertas; o processo de avaliação, que seja analisado de forma a
examinar todas as necessidades de cada discente, para que eles
percebam o erro como um componente referente ao seu preparo.
Segundo Andrade (2014) o desafio da sala de aula se torna uma
carga pesada ou não, a depender dos professores que possuem amor
pelo que fazem ou não, no primeiro caso têm como pretensão tornar
a prática educacional sempre melhor, identificando as dificuldades em
sala de aula e sua realidade. A sala de aula em si é repleta de desafios
que precisam ser encarados e vencidos, mas sempre por meio das
relações.

O valor do afeto no processo ensino e aprendizagem

Visitando alguns autores sobre o tema pudemos perceber o valor


do afeto no processo ensino e aprendizagem, que também, se revelam
nas brincadeiras, ampliando seu repertório de experiências e
sensações.

A afetividade se constitui como uma das habilidades que as profissionais de


Educação Infantil precisam utilizar para elaboração das propostas pedagógicas,
no planejamento das atividades e na mediação das relações entre professora-
criança, entre criança-criança e entre as crianças e os objetos de conhecimento.
Dessa forma, a dimensão afetiva é inerente à função primordial das creches e
pré-escolas, cuidar e educar (CACHEFFO; GARMS, 2015, p. 25).

Os afetos estão intimamente ligados com as interações entre


sujeitos e suas vivências, o que confere as conquistas do campo afetivo

325
dando-lhe um caráter cognitivo, onde por práticas pedagógicas
permeadas por ações afetivas levam a um desenvolvimento cognitivo,
também mais efetivo. É nesse contexto que, a brincadeira tem uma
enorme função social, pois oferece a criança a criar oportunidades
para vivenciar situações emocionais e significados de sentidos no dia a
dia, realizando descobertas sobre o mundo. Nas palavras de Cunha
(2010):

Brincar é uma forma de a criança socializar, desenvolver o corpo, sua criatividade


e de aprender: ‘Brincar, desenvolver as habilidades de forma natural, pois
brincando aprende a socializar-se com outras crianças, desenvolve a
motricidade, a mente, a criatividade, sem cobrança ou medo, mas sim com
prazer’ (CUNHA, 2010, p. 14).

Torna-se imprescindível, valorizar o brincar como ato do


aprender, já que nesse momento a criança expressa alegrias, fantasias
e desenvolvem suas habilidades cognitivas e motoras. As creches
devem proporcionar um ambiente agradável que atenda às
necessidades das crianças com atividades pedagógicas embasadas no
brincar ao encontro do afeto, valorizando diferentes linguagens as
quais se expressam no seu cotidiano, seja no convívio escolar ou
familiar. É nesta direção que caminhemos para a perspectiva dos
professores, já que minha intenção, a partir deste trabalho, será a de
defender um aspecto que compreenda o brincar entre o afetivo e o
cognitivo do ser humano.
Penso que a afetividade é um dos elementos essenciais que
precisam perpassar o processo ensino e aprendizagem,
transformando e humanizando os homens, sendo vias de aproximação
para promover o respeito e o diálogo, pois “não há diálogo [...] se não
há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a
pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há
amor que o funda [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é,
também, diálogo” (FREIRE, 1987, p. 79-80) para que a ação humana
seja comprometida com o outro, fundando as emoções e a beleza da
vida através da educação. Dessa maneira, deixa em nossas memórias:

O professor autoritário, licencioso, competente, sério, incompetente,


irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-
amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático,

326
racionalista, nenhum deles passa pelos alunos sem deixar sua marca (FREIRE,
1996, p. 73).

E quantos desses professores já atravessaram nossas vidas e


deixaram suas marcas. Certamente, a construção desse processo
educativo carece ampliar práticas e saberes voltadas as capacidades
de interpretar esse mundo agressivo que nos cercam
apavoradamente. É imprescindível, inspirar amor, afeto e respeito nas
crianças para uma melhor tarefa do aprender e numa reparação de
uma vida adulta mais feliz, o que implica também, conhecer as novas
gerações. Embora se reconheça as dificuldades dos estabelecimentos
educacionais apontados nessa pesquisa, é preciso deixar claro que, o
aprender nesta realidade é modificado pelas perceptivas das
professoras, através da formação de atitudes, onde seus conteúdos
baseiam-se na busca dos conhecimentos atrelados com a vida.

As brincadeiras: o lúdico na educação infantil

Em todas as sociedades por toda a humanidade existem relatos


de que a atividade lúdica sempre esteve presente como evento
necessário ao desenvolvimento humano. De acordo com Suzuki et al.
(2012, p. 3) “O lúdico tem sua origem na palavra latina ludus, que quer
dizer ‘jogo’. Se permanecer a sua origem, o termo lúdico referia-se
apenas ao ato de jogar, brincar e ao movimento espontâneo”.
A brincadeira faz parte da vivência infantil, brincando a criança se
permite imaginar, criar, fantasiar, sonhar, relacionar. “[...] brincar
supõem uma relação dual, a criança pode brincar com os significados
para mediar simbolicamente a internalização da cultura, que promove
saltos qualitativos no seu desenvolvimento” (ALVES; GNOATO, 2003,
p. 112).
Segundo Suzuki et al. (2012, p. 4), o brincar tem importância
na vida da criança, pois que, na brincadeira a criança encontra
“momentos de prazer, divertimento, de se gastar energia,
descarregar, extravasar, se comunicar, compreender o mundo a sua
volta, imitar, representar, fantasiar, imaginar, etc.”. Assim, para a
autora “o brincar, tanto para educadores como para as crianças,
constitui uma atividade humana promotora de muitas aprendizagens
e experiências de cultura” (SUZUKI et al., 2012, p, 40)

327
Isto, por que enquanto a criança brinca constituem experiências
que vão somando aprendizagens como processo de desenvolvimento
nos seus aspectos social, cultural e histórico. Segundo Silva Jr. (2005,
p. 25) “a socialização na escola poderá ser melhor exercida nas aulas
de recreação, pois as atividades são desenvolvidas em ambiente de
cooperação, respeito mútuo, levando a criança a ter autoconfiança e
autocontrole”, o que leva a autonomia. Assim, o ato de brincar não é
só uma distração, conforme Emmel (1996):

Há evidências de que as brincadeiras, antes de servirem de simples distração,


constituem-se em um campo de experiências de vida para a criança. O estudo de
sua influência para o desenvolvimento infantil tem sido objeto de investigação
de pesquisadores ligados a várias linhas de pensamento, tendo-se como ponto
de partida o pressuposto de que são atividades imprescindíveis para o
desenvolvimento social, afetivo, motor e cognitivo das crianças (EMMEL, 1996,
p. 46).

Durante a brincadeira a criança assume papéis que ela fantasia,


faz representações de outras pessoas, de situações com as quais
convive e se identifica, vive um imaginário que ela própria constrói.

[...] quando a criança brinca, além de conjugar materiais heterogêneos (pedra,


areia, madeira e papel), ela faz construções sofisticadas da realidade e
desenvolve seu potencial criativo, transforma a função dos objetos para atender
seus desejos. Assim, um pedaço de madeira pode virar um cavalo; com areia, ela
faz bolos, doces para sua festa de aniversário imaginária (QUEIROZ; MACIEL;
BRANCO, 2006, p. 170).

A brincadeira possibilita “à criança vivenciar o lúdico e descobrir-


se a si mesma, apreender a realidade, tornando-se capaz de
desenvolver seu potencial criativo” (QUEIROZ; MACIEL; BRANCO,
2006, p. 169). Incentivar este processo é atuar de forma a auxiliar no
desenvolvimento simultâneo do “comportamento humano, a parte
motora, cognitiva, afetiva e social” (SILVA JR., 2005, p. 26), é perceber
a criança como um sujeito que em sua individualidade e subjetividade
vai construindo a forma de ser-sendo no mundo.

METODOLOGIA

É pensando nesses bons frutos que apresentamos como


procedimentos para a realização deste estudo uma pesquisa de

328
abordagem qualitativa, descritiva e bibliográfica. Esse tipo de pesquisa
tem a finalidade de propiciar a familiaridade do aluno com a área de
estudo no qual está interessado, visto que ela possibilita a construção
de respostas ao problema de pesquisa (GIL, 2002).
Para o desenvolvimento da revisão sistemática, utilizou-se da
pesquisa bibliográfica em livros e artigos científicos, o que nos deu
base para o desenvolvimento da fase de observação realizada em uma
Creche Municipal do interior da Bahia, tendo como participantes da
pesquisa 02 professores, com formação em Pedagogia e
especialização na área de Educação Infantil. Atuam entre sete e quinze
anos na Educação Infantil. O que favoreceu o levantamento de
conceitos que nos fazem refletir sobre a práxis pedagógica voltada ao
ser-sendo.
Ainda como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista
aberta, a qual segundo Minayo (1993) é empregada quando o
pesquisador deseja obter o maior número possível de informações
sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e também
para obter um maior detalhamento do assunto em questão. Como
também, ela auxilia na compreensão de especificidades culturais para
determinados grupos e para comparabilidade de diversos casos. Já a
análise e interpretação dos dados utilizou-se dos estudos de Galeffi
(2001) e Andrade (2014) na busca de elucidar a experiência profissional
de cada participante
Todos os participantes foram devidamente esclarecidos sobre os
aspectos da pesquisa, de que não seriam identificados em nenhum
momento e que a participação não geraria custos, a seguir os
participantes voluntários assinaram o Termo Consentimento e Livre
Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao lançar-me nesta investigação, deparo-me com as experiências


de tais professoras, nos espaços de aprendizagem da Educação
Infantil, essas se configuram como registros de expectativas que
abarcam suas trajetórias de vida e formação. De acordo com Horn e
Silva (2011), o registro é uma maneira constante de o professor refletir
sobre a sua prática e encaminhar estratégias para alcançar novos

329
objetivos e ter autoria sobre suas ideias, refletir e produzir para si
mesmo condições de fazer o seu percurso investigativo.
Traçando um perfil dos participantes da pesquisa, tem formação
em Pedagogia e especialização na área de Educação Infantil. Atuam
entre sete e quinze anos na Educação Infantil. Quando questionadas
sobre a importância das brincadeiras para a aprendizagem infantil,
obtivemos os seguintes registros:

As brincadeiras favorecem o desenvolvimento cognitivo em todas as áreas do


conhecimento (Professora 1).

As brincadeiras são de fundamental importância para o desenvolvimento da


psicomotricidade, aspectos cognitivos e afetivos da criança (Professora 1).

Importante para ampliar seus conhecimentos para a sua formação e construção


do seu próprio mundo de maneira lúdica entre o real e o imaginário (Professora
2).

Vimos que as brincadeiras são ferramentas lúdicas para alcançar


o objetivo pedagógico, neste sentido os participantes inferiram que:

O lúdico é uma ferramenta fundamental no processo de ensino e aprendizagem,


uma vez que facilita a assimilação a partir da brincadeira e faz-de-contas
(Professora 1).

O lúdico é de grande importância nesse período de aprendizagem, pois por meio


do lúdico as crianças se desenvolvem muito melhor (Professora 2).

Quanto à construção do conhecimento infantil sem uma


educação que envolvesse a criança com o brincar, os participantes
opinaram dizendo que:

Ausência de jogos e brincadeiras na educação Infantil limita o processo de


aprendizagem. Sem o envolvimento das crianças nas atividades lúdico-
pedagógico, ocorre o comprometimento da construção do conhecimento
(Professora 1).

Nessa circunstância, muito dificilmente ocorrerá um aprendizado significativo, já


que a brincadeira, o jogo e o faz de conta são elementos primordiais na
construção do conhecimento infantil (Professora 1).

330
Provavelmente a criança enfrentará dificuldades uma vez que ad brincadeiras,
jogos, histórias, fazem parte do desenvolvimento imaginário das crianças
(Professora 2).

Não haveria, porque é através dos jogos e brincadeiras, que são ferramentas ao
sucesso no processo de desenvolvimento de ensino e aprendizagem da criança
(Professora 1).

Haveria, sim, mas acredito que de maneira mais lenta, porque as brincadeiras e
jogos despertam nas crianças sentimentos, criatividades (Professora 2).

Quanto a definição de brincadeiras e como são propostas pela


escola, os participantes inferiram que:

Os jogos são importantes recursos na construção do conhecimento e


desenvolvimento de várias habilidades cognitivas (Professora 1).

Define-se como instrumento de total valia, trabalhamos com projetos e dentre


ele abordamos os jogos e brincadeiras [...]. Como ferramentas favoráveis ao
sucesso no processo de ensino e aprendizagem da criança. A creche sempre
apresenta projetos que inclui brincadeiras com jogos e brinquedos em sala de
aula, pois a mesma não oferece um espaço adequado para a realização dos
mesmos (Professora 2).

Não há uma proposta definida, mas na instituição é trabalhado o método


eclético. Buscando uma variedade de procedimentos na intenção de maior
aprendizado o priorizando o faz-de-contas, contação de história e brincadeiras
(Professora 1).

Em cada um dos projetos da creche são apresentados as brincadeiras e jogos


referentes ao tema proposto (Professora 2).

Os participantes também abordaram sobre a forma e como os


conteúdos programáticos são elaborados na etapa que corresponde
ao atendimento de 01 aos 03 anos de idade, a saber:

Os conteúdos são elaborados em consonância com os parâmetros curriculares


da EI e elencados observando as áreas do conhecimento – Natureza-Sociedade-
Identidade e Autonomia etc. (Professora 1).

Norteados pelos eixos temáticos; conhecimento de mundo, linguagem oral e


visual, natureza e sociedade, habilidades matemáticas, musicalidade e artes
visuais, visando atender as habilidades necessárias à idade (Professora 1).

331
São elaboradas brincadeiras que despertam o desenvolvimento motor,
cognitivo, sensório-motor de acordo as habilidades e competências propostas
pelo eixo temático por cada faixa etária (Professora 2).

Trabalhando com os eixos temáticos de acordo com as habilidades e


competências de cada criança e sua faixa etária (Professora 2).

Na opinião de cada participante sobre a utilização do lúdico como


contribuição na construção do conhecimento da criança, obteve os
seguintes registros:

Além de contribuir na construção do conhecimento, a ludicidade favorece a


interação entre os pares, a superação de bloqueios afetivo-emocionais e
promove ainda a socialização das crianças no meio coletivo (Professora 1).

Todo e qualquer instrumento utilizado nesta etapa do desenvolvimento


contribui para o processo de aprendizagem desde que seja significativo para a
criança e sempre com monitoramento do educador (Professora 1).

Sim, contribui muito, pois desperta nas crianças uma curiosidade e através dos
brinquedos estimula o conhecimento. O brincar faz parte da vida da criança, do
seu dia-a-dia e suas vivências, tendo como resultado uma interação natural e ao
mesmo tempo estimulada, visando um melhor convívio entre colegas
(Professora 2).

Questionados sobre a Educação Infantil a as perspectivas de


atuação nesta área, os participantes relataram que:

[...] é para mim, a melhor etapa de ensino e aprendizagem. É nela que observo
que a aprendizagem ocorre com certa espontaneidade na criança e para isso
basta que o professor saiba lidar com os recursos que envolvem as situações de
afeto e do brincar na infância (Professora 1).

[...] enquanto professora atuante na Educação Infantil minhas perspectivas


estão voltadas para o ensino com afetividade visando à formação de sujeitos
sociais com mais tolerância diante dos atropelos da vida, já que se observa a falta
desse sentimento nas crianças maiores e principalmente em adolescentes no
contexto social atual (Professora 1).

Estrear um trabalho com crianças pequenas, iniciantes da vida escolar dá ao


docente a condição de ensinar aprendendo, pois que, com o comportamento da
criança diante das situações cotidianas, o professor tem a possibilidade de
entender como ela se desenvolve no âmbito cognitivo (Professora 2).

332
[...] o professor deve [...] conhecer seu aluno individualmente, ouvir suas
histórias, para saber o quanto a ausência da educação familiar pode prejudicar a
aprendizagem e desenvolvimento da criança. A perspectiva do professor está
em usar da afetividade para lidar com o comportamento diferente do aluno para
que ao vivenciar uma situação de afetividade, a criança retribua os sentimentos e
evite conflitos negativos no ambiente escolar e também familiar (Professora 2).

Abordados sobre concepção das mudanças que permeiam a


sociedade atual e das alterações no comportamento familiar, os
participantes ressaltam que:

[...] nos dias atuais observa-se a ocorrência das transformações na sociedade e


na vida familiar. As mudanças decorrentes da vida familiar estão vinculadas ao
modo de viver dos sujeitos que se adaptam às exigências do modo de vida causa
do crescimento do consumismo com interesse no rendimento capital
(Professora 1).

[...] as mudanças ocorridas na família obrigam aos adultos da casa a trabalharem


mais e ficarem menos com os filhos. Isso significa que todos que conseguem
trabalhar assumem menos a condição de cuidador das crianças, porque precisa
contribuir com a renda familiar. Logo, com os adultos trabalhando, a educação
de casa fica deficiente. Algumas crianças perdem a referência do adulto familiar
e vão se socializando com o mundo externo a sua casa repleto de conflitos que
trazem aprendizagens e experiências que o ajudarão a se tornar adulto
(Professora 2).

Essa perspectiva, que hora os participantes da pesquisa nos


apresentam, implica uma nova compreensão sobre o perfil do
professor como profissional que, como qualquer outro, reflete sua
prática, enfatiza a importância de trabalhar a dimensão emocional da
criança. Sob esse prisma, há de se pensar numa perspectiva de
professores para educação infantil que não valorize somente o
cotidiano, mas, as transformações da prática docente de acordo com
a realidade que vive, apoiado, numa matriz curricular atual em que:

[...] a concepção de formação humana deve perpassar todo o currículo escolar,


considerando a faixa etária das crianças e os objetivos educacionais destacados
para o momento escolar em que estiverem inseridas. Formar a criança, além de
outras medidas, deve ressaltar o acompanhamento dela em seu processo
formativo, viabilizada por uma avaliação sistematizada e constante da proposta
pedagógica e da criança (ALMEIDA; CESTARI, 2015, p. 3830, grifo nosso).

333
Observar o processo de ensino e aprendizagem no espaço de
Educação Infantil permite ao observador pensar as inúmeras
possibilidades de poder proporcionar o ensino por variadas
metodologias, mas com foco na individualidade da criança.

[...] a noção de individualidade, modos de ser do sujeito, vai sendo traçada numa
proposta pedagógica que privilegia a formação humana como principal ponto de
partida seu contínuo desenvolvimento, buscando dialogar com outro, olhar
sobre os educandos, reconhecendo-os como sujeito de direitos (ALMEIDA;
CESTARI, 2015, p. 3839, grifo nosso).

Essa condição de pensar daquele que observa, sugere a


elaboração de estratégias que diferenciem a prática observada no
ambiente. O ambiente observado torna-se um espaço laboratorial
onde nova metodologia pode ser acrescentada com intuito de
inovação no processo de ensino e aprendizagem. Para Andrade (2014,
p. 19) “o professor ensina para a vida, tem a oportunidade de tocar no
coração dos alunos e fazê-los pensar nas suas atitudes e
comportamentos”. Corroborando Fernandes (2019, p. 17), aponta que
“[...] só se pode ensinar aquilo que for aprendido [...]. Esta tem por
fundamento a aprendizagem de si mesmo – o ser-sendo – no processo
do seu florescimento singular”. E que “o aprender a ser-sendo”, signo
o qual se desdobra em aprender a: ver, ler, falar, escrever e pensar.
Um caminho para a aprendizagem pode ser apontado pelas
estratégias que correspondem ao pensamento diferenciado do fazer
pedagógico. Com as mudanças sociais a pedagogia passou por várias
transformações no campo das ideias até os dias de hoje, trazendo uma
fervorosa discussão em torno desse ideário. Aprendemos desde
criança que, o caminho pedagógico é aquele exigido pela escola. Logo,
as ciências e outras áreas do conhecimento sempre nos foram
apresentadas como um conjunto de regras, fórmulas e conceitos que
nos levassem a decorar, longe da valoração do ser humano.
Para Galeffi (2001, p. 21) a vivencia educativa do Fazer Aprender a
Ser é uma tarefa que “requer um continuado esforço de uma ciência
pedagógica, que consiga acompanhar o desenvolvimento aberto do
ser do homem-humanidade no mundo”. O tempo vem mostrando a
necessidade de mudança para com essa pedagogia fechada, distante
dos sentimentos. Tornou-se necessária compreensão do outro,
principalmente nos dias atuais que vivemos uma realidade difícil
dentro das salas de aula.

334
[...], nos dias de hoje, é uma necessidade para aproximar professor e aluno, uma
esperança no resgate dos que vivem sendo rejeitados pela sociedade, uma força
para levantar os ânimos daqueles que acham que a vida não lhes reserva boas
surpresas e que não há condições de melhorar a sua sobrevivência (ANDRADE,
2014, p. 11).

Hoje quando se pensa em um planejamento e que possa fluir nas


nossas aulas temos que pensar e usar estratégias que favoreçam esse
caminho. Por isso é importante destacar seu uso, pois a partir delas,
traça-se diferentes caminhos que podem levar ao processo ensino
aprendizagem, objetivando facilitar a incorporação dos
conhecimentos e a melhoria das aulas.

Construindo uma proposta pedagógica para a sala de aula da


Educação Infantil

As estratégias constituem-se a forma mais prática de se atingir


durante as aulas, o retorno desejado, pois assim o professor identifica
como foi o desempenho de cada aluno durante as atividades
solicitadas. Diante o exposto, a partir do estudo de Galeffi (2001) e
Andrade (2014), traçaremos um indicativo de dez (10) estratégias para
a construção de uma proposta pedagógica para a sala de aula da
Educação Infantil, no intuito de auxiliar o professor na trajetória do ser-
sendo, em que o afeto estabelece como base da ação, a saber:
1) Brincar com as crianças: brincadeiras planejadas para a
promoção da aprendizagem. O brincar é uma forma de comunicação,
é por meio das brincadeiras que as crianças desenvolvem atos do seu
dia a dia, com isso vai está adquirindo habilidades.
2) Escutar a criança: ouvir suas histórias e vivências. A criança
quando se sente ambientada com seus coleguinhas e as educadoras,
começa a contar sua história do dia a dia e relata como é essa vivência,
isso é de fundamental importância, pois assim o(a) professor(a)
poderá traçar caminhos a ser percorrido durante essa convivência
atendendo seus anseios.
3) Executar projetos coletivos: atividades desafiadoras para as
crianças experimentarem atividades sequenciadas e sistematizadas.
Quando se pensa em projetos o objetivo é que a criança possa se
enturmar, perder o medo e a timidez durante as atividades coletivas,
assim se sentirá mais confiante.

335
4) Linguagem Verbal: proporcionar atividades de estímulo da
linguagem. A criança geralmente quando chega no ambiente escolar
pela primeira vez, tem receio e insegurança. Neste momento o
professor precisa ajudá-las a sentir-se segura e soltar a fala
naturalmente.
5) Conversa: promoção de atividades que permita a interação das
crianças e a sua participação nas rodinhas de conversa. O momento
mais relaxante na aula é o momento de jogar conversa fora, assim as
crianças se soltam naturalmente, começam a contar tudo que fazem
durante o dia e no final de semana. Isso favorece a integração junto ao
grupo.
6) Conhecimento sobre o aluno e sua família: proporcionar uma
melhor convivência entre alunos e professores. É importante que o
professor tenha um bom relacionamento com a família do aluno, isso
pode estreitar o laço familiar e o professor conhecerá através da
conversa um pouco mais da vida do seu aluno, podendo ajudar no
surgimento de algum problema que possa acontecer.
7) Valorizar as diferenças dos alunos: planejamento de
estratégias. Neste caso, o professor poderá ensinar, o respeito sobre
as diferenças, trabalhando na prevenção ou no combate ao bullying e
ainda poderá possibilitar a construção do conhecimento do aluno.
8) Utilização do trabalho que tenha uma referência visual
marcante: cartazes, murais, etc. O professor poderá recortar imagens
de revistas e colar no caderno do aluno, juntamente com ele,
destacando as imagens com a sua vivência diária, pedindo pra ele falar
o que vê.
9) Trabalhar o cognitivo: identificação de objetos preferidos e
pessoas próximas por meio de imagens, por exemplo - o uso de
objetos facilita a concentração por meio de dramatizações de histórias
infantis, fantoches, brinquedos sonoros etc.
10) Aplicar atividades com objetos: tamanhos, formas, cores para
desenvolver noções de tamanho e permanência. Fortalecer a
motricidade fina-manusear, sustentar e transferir objetos nas mãos,
guardar objetos e classificá-los por meio de recipientes de diversos
tamanhos e cores, brincar com objetos de encaixe de diferentes
tamanhos e espessuras etc.

336
Dessa forma, essas metas propostas durante o planejamento vão
contribuir de uma forma prazerosa para o desenvolvimento
psicológico, cognitivo e social do aluno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se a importância do brincar na perspectiva dos


participantes que atuam na educação infantil, dá-se no modo de ver as
possiblidades de promoção do desenvolvimento infantil, por meio da
constatação que esta ferramenta favorece a construção do
conhecimento, do raciocínio lógico, do pensamento reflexivo e da
criatividade, como também, como estratégias pensadas para a
formação do sujeito enquanto ser humano preocupado com o outro,
em uma compreensão pedagógica que é possível fazer e aprender-
fazer com afeto.
Ainda, espera-se que este estudo possa trazer contribuições
relacionadas ao exercício de habilidades necessárias ao domínio e ao
bom uso das emoções que poderá ajudar a construir um ser humano
psicologicamente mais feliz e, certamente mais saudável nas escolas.
Até porque o professor precisa ter habilidade emocional para lidar com
as diversas situações, sem perder o equilíbrio e sem deixar de agir
afetuosamente com os seus alunos.
No entanto, faz-se necessária a realização de novas pesquisas
com um público maior de docentes e com mais estratégias,
objetivando promover ações pedagógicas que possa influenciar o
professor a SER-SENDO, com base sólida no afeto, não apenas no seu
exercício do contexto da Educação Infantil, mas na sua vida.
Extrapolando a área da educação infantil e chegando a todos os níveis
de ensino.

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339
340
AVALIAÇÕES MATERIALIZADAS EM UMA REPORTAGEM ACERCA
DO INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR POR MEIO DE
COTAS SOCIAIS E RACIAIS

Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi1


Maria Aparecida Resende Ottoni2

O presente capítulo tem por objetivo apresentar uma análise


de uma reportagem intitulada: Cotas foram revolução silenciosa no
Brasil, afirma especialista, publicada na Agência Brasil, em 27 de maio
de 2018. Empreendemos uma análise, com o intuito de investigar como
o ingresso no ensino superior, por meio de cotas, foi avaliado na
reportagem supracitada. Para isso, utilizamos os aportes teórico-
metodológicos do Sistema da Avaliatividade (SA) (MARTIN; WHITE,
2005) e da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) (HALLIDAY;
MATHIESSEN, 2014). Escolhemos ancorar esse estudo tanto LSF
quanto no SA, porque segundo Martin e White (2005, p. 7), essas duas
teorias “partilham dos mesmos pressupostos semântico-discursivos”.
O SA foi criado inspirado na metafunção interpessoal da LSF e está
“preocupado com a forma como os escritores/falantes interpretam
para si identidades ou personalidades particulares, com a forma como
se alinham ou se deslocam como inquiridos ou potenciais” (MARTIN;
WHITE, 2005, p. 1). E a LSF se trata de uma teoria interdisciplinar, que
não pode ser reduzida a uma simples descrição linguística, pois ela leva
em consideração o contexto social em que a linguagem é usada. A LSF
permite compreender que a linguagem, enquanto sistema semiótico,

1Doutoranda em Estudos linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia.


Professora da educação básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal. É
membro do Grupo de Pesquisas e estudos em Análise de Discurso Crítica e Linguística
Sistêmico Funcional, da UFU, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do
CNPq. Bolsista Capes. Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - Brasil - Capes- Código do
financiamento 001. E-mail: [email protected]
2 Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília e docente do Programa de Pós-

graduação em Estudos Linguísticos da Universidade de Uberlândia. É líder do Grupo


de Pesquisas e estudos em Análise de Discurso Crítica e Linguística Sistêmico
Funcional, da UFU, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. E-mail:
[email protected]

341
constrói significados mediante escolhas linguísticas realizadas dentro
de um sistema que irá se materializar nos textos (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014).
Dito isso, é importante lembrar que o produtor de um texto tem,
à sua disposição, vários recursos linguísticos para poder posicionar-se,
realizar avaliações sobre objetos, eventos, pessoas, comportamentos.
Dessa forma, concordamos Vian Jr (2010, p. 25), quando ele defende
que “a avaliatividade está relacionada a todo o potencial que a língua
oferece para realizarmos significados avaliativos”.
Em relação à escolha do tema desse capítulo, trata-se do mesmo
da pesquisa de doutorado3, de uma das autoras, que versa sobre a
prática social de ingresso no ensino superior por meio de cotas sociais
e raciais. Importa destacar que ingressar em uma universidade por
meio de cotas sociais e raciais é direito de todo brasileiro,
considerando o que versa na Lei 12.711, que foi sancionada em 2012 e
regulamentada pelo decreto 7.824, desse mesmo ano. A Lei 12.711/12
garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas
universidades federais e institutos federais para alunos que são
oriundos do ensino médio da educação pública do país. 50% das vagas
são destinados para ampla concorrência (BRASIL, 2012). Apesar de o
direito ao ingresso no ensino superior, por meio de cotas, ser uma
garantia prevista em lei, os estudantes, que ingressam, por esse meio,
são avaliados o tempo todo, sendo julgados como incapazes de
ocuparem vagas em um espaço que por muito tempo era destinado
apenas à elite brasileira. Além dessa avaliação desses atores sociais,
que conquistam uma vaga na universidade, o próprio ingresso por
meio de sistema de cotas é avaliado, de forma negativa. E é possível
perceber essas avaliações materializadas em vários textos que
circulam na mídia. E foi pensando nessas questões, que apresentamos
uma análise da reportagem que aborda sobre a revolução silenciosa
das cotas no Brasil, porque ela apresenta uma quantidade significativa
de avaliações positivas e não negativas, acerca das cotas. A categoria
analítica escolhida, do SA, foi a Apreciação, que é aquela que se refere
ao campo dos significados usados para atribuir valores positivos ou
negativos acerca de objetos, animais, fenômenos, eventos e produtos

3A tese orientada pela prof. Dra. Maria Aparecida Resende Ottoni (UFU), será
defendida até julho de 2021. Serão realizadas entrevistas com alunos cotistas da
Universidade de Brasília e da Universidade Federal de Uberlândia.

342
do trabalho humano. Por fim, com o intuito de apresentar um estudo
que fosse coerente e coeso em termos teórico-metodológicos,
buscamos responder, no presente capítulo, um dos objetivos da
pesquisa maior de doutorado: investigar como é avaliado o ingresso
no ensino superior, por meio de cotas sociais e raciais, em textos que
circulam na mídia. Acreditamos que, com isso, seja possível incitar uma
reflexão acerca da importância do sistema de cotas no Brasil.

A Linguística Sistêmico Funcional (LSF)

A LSF é uma teoria que vê a linguagem como um processo


interativo e social, que foca a língua em uso. Essa abordagem da
linguagem é sistêmica, porque “vê a língua como redes de sistemas
linguísticos interligados, das quais nos servimos para construir
significados” (FUZER; CABRAL, 2014, p. 19). E é funcional porque
“explica as estruturas gramaticais em relação ao significado, as
funções que a linguagem desempenha em textos” (FUZER; CABRAL,
2014, p. 19). Diferente de outras teorias, a LSF não tem seu foco em
sentenças, mas sim no texto. Os textos são usados para veicular
atitude, valores e é por meio deles que as pessoas dividem
experiências (EGGINS, 2004). Um texto sempre carregará a marca de
seu contexto e para que seja possível apreender um sentido, é preciso
elucidar esse contexto. E é por isso que o foco da LSF não é apenas a
linguagem, mas o uso que se faz dessa linguagem, por meio de
escolhas, considerando diferentes propósitos.
Assim, toda forma de manifestação da linguagem, em uma visão
funcionalista, é sempre decorrente de escolhas dentro de uma rede de
significados. Essas escolhas envolvem o contexto de situação e de
cultura, não apartando de importantes questões sociais. O contexto
de cultura está relacionado aos significados, valores e ideologias de
uma formação social. É ele que atribui valor ao texto e permite sua
interpretação. O contexto de situação é composto pelas variáveis de
registro, campo, relação e modo (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014). O
campo “é o que está acontecendo; as relações referem-se a quem está
participando, à natureza dos participantes, seus estatutos e papéis”; o
modo reporta a qual “participante da linguagem está agindo, à

343
organização simbólica do texto[...]” (HASAN, 1989, p.12). Em suma, é
por meio do contexto de situação, que é possível perceber a função da
linguagem, que é aquela de criar e trocar significados (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014).
E considerando as maneiras como a linguagem é usada por nós,
nos diferentes contextos comunicativos, contamos com três
metafunções, que são materializadas pelas variáveis do contexto de
situação: a ideacional, responsável por nossas experiências na e pela
linguagem, pela forma como compreendemos o mundo (oração como
representação); a interpessoal refere-se às nossas relações com os
outros e às atitudes expressas pelos diferentes atores sociais na
linguagem (oração como troca) e, por fim, a textual, que é aquela
encarregada da organização da informação (oração como
mensagem). Assim, a primeira metafunção, a ideacional, está ligada ao
Sistema da Transitividade; a segunda, a interpessoal, relacionada ao
Sistema de Modo e, por último, a textual que está relacionada ao
Sistema de Tema e Rema.
O Sistema da Transitividade é aquele que permite analisar
participantes (por meio de grupos nominais); processos (por meio de
grupos verbais) e circunstâncias (por meio de grupos adverbiais ou
frases preposicionais). Na Gramática Sistêmica- Funcional, “os
conceitos de processo, participante e circunstância são categorias
semânticas que explicam de modo mais geral como fenômenos de
nossas experiências do mundo são construídos na estrutura
linguística” (FUZER; CABRAL, 2014, P.41).
Os participantes são aqueles realizados principalmente por
grupos nominais, podendo ser classificados como: Ator, Meta, Escopo,
Beneficiário (Recebedor, Cliente), Atributo, Experenciador Fenômeno,
Portador, Atributo, Identificado, Identificador, Comportante,
Comportamento, Dizente, Verbiagem, Receptor, Alvo e Existente4. e
as circunstâncias são aquelas realizadas por grupos adverbiais. Em
relação às circunstâncias, elas podem ser classificadas em:

4 Para saber mais sobre os participantes, ler Halliday e Matthiessen (2014).

344
TABELA 1 - Circunstâncias e exemplos
CIRCUNSTÂNCIAS EXEMPLOS
1. EXTENSÃO 1. Distância (a que Viajar por 1000 km.
distância?) Estudou (por) 10 anos.
2. Duração (Há quanto Escreveu várias vezes.
tempo?)
3. Frequência (Quantas
vezes?)
2. LOCALIZAÇÃO 1. Lugar (Onde?) Estudar na Universidade.
2. Tempo (Quando?) Entrar às 08h.
3. MODO 1. Meio (Como? Com o Ingressar na universidade
quê?) por meio decotas.
2. Qualidade (Como?) O acesso à universidade
3. Comparação (Como cresce rapidamente.
é?) Lutar por justiça social como
4. Grau (Quanto?) Paulo Freire.
Cresceu muito o acesso ao
ensino superior.
4. CAUSA 1. Razão (por quê?) Lutar por causa da vaga na
2. Finalidade (Para quê?) universidade.
3. Lutar para manter as cotas
Benefício/representação sociais e raciais na
(Por quem?) universidade.
Discursar por alunos negros
e pobres.
5. CONTINGÊNCIA 1. Condição (por quê?) Acionar a justiça, em caso de
2. Falta/Omissão fraude no ingresso por
3. Concessão cotas.
Na falta de alunos, convocar
os do cadastro de reserva.
Lutar, apesar das críticas ao
sistema de cotas.

6.ACOMPANHAMENTO 1. Companhia (com Os alunos oriundos de


quem? com o quê?) escolas particulares
2. Adição (quem mais? O ingressaram na universidade
que mais?) com os alunos oriundos de
escolas públicas.
Os pobres e negros
ingressaram na universidade
e os indígenas, também.
7. PAPEL 1. Estilo (ser como o Falar como uma autoridade
quê)? sobre cotas sociais e raciais.
2. Produto (o que/em Separar o documento em
quê) partes.

345
8. ASSUNTO 1. Sobre o quê? Falar sobre cotas sociais e
raciais na UFU e na UNB.
9. ÂNGULO 1. Fonte De acordo com a Lei
2. Ponto de vista 12711/12, 50% das vagas são
garantidas a alunos do
ensino médio de escolas
públicas.
Na opinião da professora, as
cotas são necessárias.

Fonte: As autoras. Inspirado em Halliday e Matthiessen (2014, p. 262).

Procuramos apresentar a classificação das circunstâncias, devido


à grande ocorrência delas no corpus analisado. Em relação aos
processos, de acordo com os estudos de Halliday e Matthiessen (2014),
temos os seguintes: material, mental e relacional. E do
intercruzamento desses processos, temos mais três: o existencial, o
verbal e o comportamental, totalizando assim seis processos.
O processo material está relacionado à ordem do fazer e
acontecer; ele é dividido em criativo e transformacional. “Nas orações
criativas, o participante é trazido à existência no desenvolvimento do
processo, ou seja, passa a existir no mundo (seja exterior ou interior)”.
(FUZER; CABRAL, 2014, p. 47). “E quanto às orações transformativas,
elas são aquelas que resultam da mudança de algum aspecto de um
participante existente” (FUZER; CABRAL, 2014, p.47).
E o processo mental refere-se ao sentir e ao pensar (está no nível
da consciência); o processo relacional é aquele que permite ligarmos
um objeto a uma qualidade. No processo relacional, tem-se o
participante que em um dado momento configura-se como um
atributo, e, em outro, como um identificativo. As orações relacionais
atributivas são aquelas que colaboram para construir relações
abstratas de membros de uma classe. E as orações relacionais
identificativas são responsáveis por estabelecerem a identidade de um
participante; um dos participantes tem uma identidade determinada.
Halliday e Matthiessen (2014) apresentam a seguinte classificação para
as orações relacionais: intensivas, possessivas e circunstanciais. E elas
se apresentam de duas maneiras: atributivas e identificativas. As
orações intensivas são aquelas que caracterizam uma entidade,
(aparecem os processos ser, estar, permanecer, parecer, etc). As
orações possessivas são aquelas que indicam posse. E as

346
circunstanciais são aquelas que estabelecem relação de tempo, lugar,
modo, causa, acompanhamento, dentre outras, conforme
discriminadas na tabela 1. Em outras palavras, são as orações
relacionais que permitem representar seres no mundo em termos de
características e identidades.
Quanto ao processo existencial, ele representa a existência de
algo, sem necessariamente relacionar nenhum predicativo a esse algo,
conforme defende Thompson (2004). O processo verbal é aquele que
está ligado a uma ação. As orações verbais têm como núcleo os
processos do dizer. Esse processo contribui de forma significa na
construção de narrativas, nas reportagens, nos trabalhos acadêmicos,
pois são as orações verbais que permitem que o produtor do texto
traga a voz do outro, que garanta o dialogismo. Por último, temos o
processo comportamental, que é aquele muito próximo dos processos
mentais e materiais, causando, muitas vezes, confusão, já que ele se
encontra em posição intermediária entre os dois. E, por último, o os
processos são aqueles de caráter “(tipicamente humano) fisiológico e
psicológico, tal como respirar, tossir, sorrir, sonhar e
olhar”(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 248).
O Sistema de Modo (no qual a metafunção interpessoal está
relacionado) é responsável por estabelecer relações entre os
indivíduos, é um sistema gramatical que permite organizar o evento
comunicativo, considerando os modos declarativo, interrogativo,
exclamativo e imperativo. Na situação interativa, recorremos aos
papéis de fala, que são o dar e demandar, que segundo Halliday e
Matthiessen (2014, p. 107), “envolvem noções complexas em que
“dar” significa convidar a receber e demandar convidar a dar.
De acordo com Cabral (2007, p. 46):

Dentre os recursos gramaticais que contribuem para explicar a metafunção


interpessoal da linguagem, podemos encontrar: vocativos, perguntas,
opiniões do autor ou dos leitores presentes no texto, marcadores de
polaridade (sim, não, nenhum, nada), advérbios de modo (provavelmente,
possivelmente, francamente), modalizadores (poder, dever, ter de, precisar,
necessitar) avaliativos (interessante, necessário, prudente, horrível) advérbios
de frequência (usualmente, às vezes, nunca, sempre, raramente).

É por meio da metafunção interpessoal que expressarmos


opiniões, julgamentos e atitudes.

347
O Sistema de Tema e Rema (no qual a metafunção textual está
relacionado) garante a organização da oração como mensagem. O
tema é a primeira parte da oração, ele quem situa a oração dentro de
um contexto. Todo o restante da oração é denominado como rema.
Em relação à informação do significado presente no texto, ele é
dividido em dado e novo e isso vai interferir na construção de sentido
do enunciado. O dado é a informação que está no nível da nossa
consciência, e só conseguimos recuperá-lo ao acessarmos o contexto.
É a partir desse ponto que conseguimos compreender o novo, a
informação nova.
Apesar de o SA ter sido criado pautado na metafunção
interpessoal, não significa que não se pode recorrer a outras
metafunções para conseguirmos empreender nossas análises. Por
exemplo, os processos, as circunstâncias e atributos da metafunção
ideacional são potentes escolhas para que seja possível identificar
marcas de Afeto, de Julgamento, de Apreciação. Isso só mostra o
quanto as metafunções estão em constante diálogo.

O Sistema da Avaliatividade (SA) e a categoria Apreciação

O SA foi criado nos anos de 1990 por dois pesquisadores: Jim


Martin, professor da Universidade de Sydney e Peter White,
especialista em discurso midiático. Como marco do SA, temos, em
2005, a publicação da obra The Language of Evaluation: Appraisal in
English. Esse sistema tem como base a LSF, mais especificamente a
metafunção interpessoal da linguagem. Considerando o âmbito da
LSF, ele está inserido no estrato da semântica do discurso e é realizado
no estrato lexicogramatical da linguagem. E ele tem, como foco,
avaliações que estão relacionadas a valores sociais e morais, a
julgamentos, manifestações de afeto, ao dialogismo e ao grau de
intensidade de um enunciado. Essa teoria da avaliatividade se refere a
um sistema que está “preocupado com a forma como os
escritores/falantes interpretam para si identidades ou personalidades
particulares, com a forma como se alinham ou se deslocam como
inquiridos ou potenciais” (MARTIN E WHITE, 2005, p. 1).
Segundo Vian Jr. (2010, p. 11), o SA “é um conjunto de significados
interpessoais que se debruça sobre os mecanismos de avaliação
veiculados pela linguagem, configurados em um sistema que oferece

348
aos usuários possibilidades de utilizar itens em suas interações
cotidianas”. Esse sistema é formado por três grandes subsistemas: a
Atitude, a Gradação e o Engajamento. A Atitude apresenta as
seguintes categorias: Afeto, Julgamento e Apreciação. De acordo com
os estudos desenvolvidos por Martin e White (2005), o Afeto está
ligado à emoção; o Julgamento está ligado à ética e a Apreciação está
ligada à estética. Em outras palavras, por meio de recursos
lexicogramaticais, podemos materializar: o Afeto, para expressar
emoção; o Julgamento, para avaliações de caráter, e, por fim, a
apreciação, para atribuir valor às coisas, eventos, livros, cds, etc. A
Gradação apresenta a força e o foco, como categorias e o
Engajamento é o subsistema que se pauta no dialogismo bakhtiniano,
sendo dividido em monoglossia e heteroglossia. A figura a seguir
representa a divisão do SA.

FIGURA 1: Sistema da Avaliatividade

ATITUDE:
- Afeto
- Julgamento
- Apreciação

SISTEMA DA
AVALIATIVIDADE

GRADAÇÃO ENGAJAMENTO
- Força - Monoglossia
- Foco - Heteroglossia

Fonte: As autoras. Inspirado nos estudos de Martin e White (2005).

Explicando a figura, o Subsistema da Atitude é aquele que permite


que uma pessoa, coisa, situação, comportamentos, eventos sejam
avaliados de forma positiva ou negativa. O Subsistema Engajamento se
refere a um amplo conjunto de recursos linguístico-discursivos que serve
para denotar a aceitabilidade dos enunciados, estando relacionado a

349
aspectos dialógicos. E o Subsistema Gradação é aquele responsável por
moldar o grau da avaliação. Para Martin (2000, p. 148, tradução nossa),
“é a faculdade de mudar o grau de intensidade da Atitude, aumentando-
lhe o volume”.
Para a análise apresentada neste capítulo, focamos no Subsistema
Atitude, mais especificamente na categoria Apreciação. Se fôssemos
analisar como os cotistas são avaliados, seria coerente escolher a
categoria julgamento, mas como empreendemos uma análise acerca
do ingresso por cotas, ou o próprio Sistema de Cotas, a categoria
utilizada foi a Apreciação. Essa categoria “diz respeito às avaliações de
shows, filmes, livros, CDs, obras de arte, casas, prédios, parques,
recitais, espetáculos ou performances de qualquer tipo, fenômenos da
natureza, relacionamentos e qualidades de vida” (MARTIN; ROSE,
2003, p.37). Por fim, considerando as pressupostos teórico-
metodológicos da LSF e do SA, partimos para análise do nosso corpus.

Apresentação do corpus e da análise

Por uma questão de dimensão espacial, fizemos um recorte da


reportagem; no entanto, ela pode ser acessada, de forma completa,
por meio do seguinte link: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/
noticia/2018-05/cotas-foram-revolucao-silenciosa-no-brasil-afirma-
especialista.

Cotas foram revolução silenciosa no Brasil, afirma especialista

Publicado em 27/05/2018 - 08:15

Por Débora Brito – Repórter da Agência Brasil Brasília

A chance de ter um diploma de graduação aumentou quase quatro vezes para a


população negra nas últimas décadas no Brasil. Depois de mais de 15 anos desde as
primeiras experiências de ações afirmativas no ensino superior, o percentual de pretos e
pardos que concluíram a graduação cresceu de 2,2%, em 2000, para 9,3% em 2017. Apesar
do crescimento, os negros ainda não alcançaram o índice de brancos diplomados. Entre a
população branca, a proporção atual é de 22% de graduados, o que representa pouco mais
do que o dobro dos brancos diplomados no ano 2000, quando o índice era de 9,3%. Os
dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Censo do Ensino
Superior elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) também evidencia o aumento do número de matrículas de estudantes

350
negros em cursos de graduação. Em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram
feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último Censo, o percentual de negros
matriculados subiu para 30%. “A política de cotas foi a grande revolução silenciosa
implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos, quadruplicou o
ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez isso com o povo negro.
Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a comunidade negra”, comemorou frei
David Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de negros e
pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo. O professor Nelson Inocêncio,
que integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB),
pioneira na adoção das cotas raciais, também destaca o crescimento, mas pondera que é
preciso pensar outras políticas para garantir uma aproximação real entre o nível de
educação de negros e brancos: "Eu sou esperançoso de que a política de cotas, mesmo
com seus problemas, ao final consiga um êxito. Que a gente consiga tornar a presença
negra um pouco mais significativa nesses espaços tão historicamente embranquecidos",
disse Nelson Inocêncio - Marcelo Camargo/Agência Brasil: “Antes de falar em igualdade
racial, temos que pensar em equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a
política de cotas não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros,
a gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país continue, depois de
130 anos de abolição da escravatura, com essa imensa lacuna entre negros e brancos”,
destacou Inocêncio.

Diferenciar para incluir

Há 15 anos, o conceito de ações afirmativas para inclusão de negros na educação


superior motivou intenso debate no meio universitário. Em junho de 2003, decisão
tomada pela Universidade de Brasília (UnB) de adotar o sistema de cotas raciais em seu
processo de seleção abriu caminho para uma mudança no paradigma de acesso à
universidade, antes fortemente baseado na meritocracia. O Plano de Metas para
Integração Social, Étnica e Racial aprovado pelo Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão da
UnB previa que 20% das vagas do vestibular seriam reservadas para estudantes negros,
de cor preta ou parda. A política foi adotada a partir do vestibular de 2004, em todos os
cursos oferecidos pela universidade. À época relatora do projeto, a professora do
Departamento de Comunicação da UnB Dione Moura conta que a implantação do sistema
se deu em meio a muitas resistências e sob críticas de que a política de ação afirmativa
poderia criar um conflito racial inexistente no país ou diminuir a qualidade da
universidade.“O projeto das cotas na UnB foi um dos mais desafiantes que eu trabalhei
como profissional, cidadã, mulher e negra”, diz a professora Dione Moura, do
departamento de Comunicação Social - Marcelo Camargo/Agência Brasil. Um dos
principais desafios, segundo a professora, foi convencer os veículos de imprensa, a
sociedade e a própria academia de que era necessária uma política pública específica para
negros e não para a população pobre de forma geral. Mesmo diante dos números de
desigualdade racial na educação e no mercado de trabalho, questionamentos e dúvidas
emergiram, principalmente com relação à forma de identificação dos negros e ao
reconhecimento do problema do racismo. “O Brasil tinha uma ideia de políticas públicas

351
como universalistas, não tinha ideia de políticas regionais, por gênero e raça. O recorte
de renda era o único indicador reconhecido como legítimo para ações pontuais. Uma
política de ação afirmativa exclusiva para a população negra brasileira foi colocar o dedo
na ferida, causou um grande rebuliço”, lembrou Dione, uma das poucas professoras
negras da universidade. Outras resistências foram quebradas, como a ideia de que o
negro de alta renda não deveria ser beneficiado, de que os cotistas abandonariam a
graduação ou que teriam desempenho inferior aos de alunos não cotistas. “Já se verifica
que esses estudantes são tão capazes quanto os demais ou ainda têm um
desenvolvimento muito melhor. Nesse sentido, não há dúvida da capacidade dos cotistas,
porque eles já demonstraram isso e pesquisas também têm revelado”, destacou o
professor Manoel Neres, coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB. “O
resultado social negou os preconceitos. A UnB abriu as portas para que outras
universidades se abrissem para o jovem negro e o jovem indígena e que depois o próprio
governo federal abrisse uma política nacional para discutir as cotas no sistema público
universitário”, completou Dione Moura.

Frutos

Aos 31 anos, a antropóloga Natália Maria Alves Machado, integrante da primeira


turma de cotistas da UnB, em 2004, avalia que a adoção do sistema foi um marco histórico
que levou a sociedade a refletir sobre algumas regras e revisá-las em prol da justiça e dos
direitos coletivos. Natália foi a primeira integrante de sua família a ingressar em uma
universidade pública federal e conta que a experiência foi muito desafiadora. Ela relata
que no início foi difícil lidar com o assédio da imprensa e, ao mesmo tempo, ter de se
adaptar à nova rotina e às responsabilidades do mundo acadêmico, como encontrar
recursos para alimentação, transporte e material de estudo. Para se manter
financeiramente, ela contou com a assistência estudantil da universidade, fez estágio e
pesquisas. “A primeira turma visualmente tinha poucas pessoas negras. A gente ficava
diluído ali preocupado com as exigências do espaço universitário. O que mais chamava
atenção era o assédio da mídia, muita gente abordava para dar entrevista. Depois, em
um segundo momento, muitos pesquisadores estavam desenvolvendo análises sobre a
política. A gente sabia que tinha uma dinâmica muito forte acontecendo e foi
amadurecendo.” “Por mais que nossa presença ainda seja diminuta no espaço
acadêmico, é emocionante ver muito mais cores e formas, corpos, estéticas, símbolos e
culturas diversos. A universidade se tornou um espaço muito mais rico e instigante”, diz
a mestranda Natália Machado - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil. Depois de se
formar, Natália ingressou no mercado de trabalho como autônoma, prestando assessoria
a movimentos sociais na área da saúde. Hoje, é mestranda na UnB e faz pesquisas na área
de direito à saúde, bioética e acessibilidade. Após vários anos frequentando os bancos da
universidade, ela relata que se orgulha de ver a diversidade estética nos espaços da UnB
e, principalmente, no modo de fazer pesquisa. “Os estudantes indígenas e negros e
negras que adentraram o espaço acadêmico nos últimos 15 anos trouxeram um refresco
de inovação metodológica, teórica, epistemológica sem precedentes, de ampliar e
aprofundar o conhecimento, trazendo muito mais verdade e justiça”, avaliou. “Por mais

352
que nossa presença ainda seja diminuta no espaço acadêmico, é emocionante ver muito
mais cores e formas, corpos, estéticas, símbolos e culturas diversos. A universidade se
tornou um espaço muito mais rico e instigante”, completou.

Mudanças

A percepção de mudança no visual da universidade é compartilhada por colegas


contemporâneos. O cientista político Derson Maia, 29 anos, conta que também foi o
primeiro de sua família a conseguir ingressar em uma universidade. Ele passou no
vestibular de 2008 por meio do sistema de cotas e diz que percebe o aumento
considerável no número de negros nos últimos anos.“Mesmo com cotas, você via
pouquíssimos negros na universidade. Na minha turma de ciência política era eu e uma
outra menina. Quando eu estava me formando, em 2014, eu comecei a notar que a
universidade realmente estava ficando bem mais negra, com pessoas de outras classes
sociais mais baixas, porque antes era muito difícil. O negro que eu convivia ao longo do
curso era estrangeiro”, lembrou Derson. “As ações afirmativas produziram algo que é
realmente inédito na universidade, que é trazer esse olhar diverso para dentro da
academia”, avalia o cientista político Derson Maia - Marcello Casal Jr/Agência Brasil. O
cientista político ficou sabendo das cotas quando estava no primeiro ano do ensino
médio. Um grupo de universitários negros visitou a escola pública onde ele estudava para
apresentar o sistema aos futuros vestibulandos. Na sala de aula, ele era um dos quatro
negros em uma turma de 40 alunos. “Eu não tinha aquele medo do que seria na
universidade, porque eu já via outros negros falando sobre as cotas e que seriam um
caminho importante”, lembrou. Depois da graduação, Derson fez mestrado em políticas
públicas e, atualmente, é doutorando da Faculdade de Direito da UnB – edital no qual foi
selecionado por meio de cotas. “Eu acho que as ações afirmativas produziram algo
inédito que é trazer esse olhar diverso para dentro da academia. Se a gente quer ter uma
universidade que faça inovação científica, tecnológica, você precisa abrir para a
diversidade. Assim, [ao incluir] pessoas negras que vieram de uma outra realidade, de
uma realidade de periferia, você acaba inserindo novos olhares para o mesmo problema
e vai desenvolvendo novos caminhos. Eu acho que a universidade passou a ser uma outra
UnB”, destacou.

Longa trajetória

UnB reserva vagas para negros desde o vestibular de 2004 - Marcello Casal
Jr/Agência Brasil

A aprovação do projeto que instituiu o sistema de cotas raciais na UnB foi resultado
de um longo processo de articulação de integrantes do movimento negro, com
especialistas e representantes do Poder Público. Um dos marcos que precederam a
adoção das cotas no Brasil foi a 1ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em Durban, na África
do Sul, em 2001. A conferência motivou as personalidades negras brasileiras a reforçarem

353
o debate das ações afirmativas para negros no Brasil, que se tornou, na ocasião,
signatário do compromisso de combate a todo tipo de discriminação racial.
[...]

Presença

UnB foi a primeira universidade federal a adotar sistema de cotas raciais - Marcello
Casal Jr/Agência Brasil

Dados da UnB mostram que, no primeiro ano do sistema, ingressaram na


universidade 376 negros cotistas. A quantidade de pretos e pardos a entrar na instituição
por meio de cotas foi crescendo ano a ano. Em 2011, por exemplo, 911 negros cotistas
puderam fazer a matrícula na graduação. No acumulado de 2004 a 2018, ingressaram na
universidade 7.648 negros pelo sistema de cotas raciais.
[...]

A partir de 2013, já sob a vigência da lei federal de cotas, a UnB mudou a distribuição
da reserva de vagas. Para obedecer ao percentual estabelecido pelo Ministério da
Educação para as cotas sociais, a UnB reduziu as cotas raciais. A universidade reserva,
atualmente, 50% das vagas para alunos de escolas públicas e mais 5% exclusivamente para
negros, independentemente da sua condição econômica. Atualmente, o sistema passa
pelo desafio de aperfeiçoar o processo de seleção baseado na autodeclaração. A UnB tem
investigado ao menos 100 casos de possíveis fraudes. Em âmbito nacional, o Judiciário já
se manifestou de forma favorável ao estabelecimento de comissões para averiguar a
veracidade das declarações dos candidatos.
“Nesses 15 anos a avaliação que nós temos é muito positiva. Pelos dados dá para
ver o crescimento da quantidade de negros”, disse o decano de Ensino de Graduação da
UnB, Sérgio Andrade de Freitas - Marcello Casal Jr/Agência Brasil. O decano Sérgio
Andrade acredita que as denúncias não afetarão o sistema, mas poderá contribuir para
ajustes.“Todo processo exige um aperfeiçoamento, qualquer mudança que nós temos na
sociedade demanda um processo de amadurecimento entre as pessoas”, avalia Sérgio
Andrade [...]

Considerando o que foi apresentado sobre os aspectos


teórico-metodológicos, as tabelas a seguir nortearam a análise. Na
Tabela 2, apresentamos os tipos de avaliação e as perguntas que
podem ser feitas para identificar marcas de apreciação em um texto.
Na tabela 3, tomamos como base a classificação das circunstâncias,
apresentada na tabela 1, presente na seção sobre LSF, desse capítulo,
e, por fim, apontamos algumas das circunstâncias e processos
materializados no corpus analisado.

354
TABELA 2: Categoria Apreciação
TIPOS DE AVALIAÇÃO PERGUNTAS QUE PODEM SER REALIZADAS
DEAPRECIAÇÃO
REAÇÃO Reação de qualidade: Avaliação do impacto e da
Representa a reação que as qualidade de coisas, objetos.
coisas, os objetos provocam Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
nas pessoas. a) Despertou a atenção?
b) Proporcionou prazer?
Reação de impacto: Avaliação do impacto que as
coisas, objetos provocam nas pessoas.
Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
a) Correspondeu às minhas expectativas?
b) É bem aceito?
c) Mexeu comigo?
COMPOSIÇÃO Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
Representa o equilíbrio e a a) Foi bem elaborado?
complexidade. b) Foi fácil ou de difícil compreensão?
VALORAÇÃO Perguntas que podem ser utilizadas para a análise:
Representa a inovação, o a) Valeu a pena?
ineditismo e a relevância de
uma coisa, um objeto, um
evento.
Fonte: As autoras. Inspirado em Martin e White (2005).

Toda a reportagem está carregada de marcas avaliativas positivas


de apreciação do sistema de cotas no Brasil. Por uma questão de
recorte, apresentamos apenas alguns excertos, mas que são
suficientes para uma compreensão da importância do impacto da
implantação das cotas nas universidades do nosso país. Procuramos
identificar, tomando como base os estudos da LSF, processos e
circunstâncias que corroboraram as avaliações materializadas na
reportagem analisada. Como percebemos uma grande quantidade de
orações relacionais circunstanciais, de orações materiais
transformativas e de orações verbais, acreditamos que seja pertinente
dar destaque a elas. Para uma melhor identificação, foram marcadas,
em verde, as circunstâncias e em roxo, os processos. Não marcamos
todos os processos e circunstâncias, mas acreditamos serem
suficientes, os que estão destacados, em cores, para que seja
compreendida a importância do Sistema de Cotas e que nem sempre
estaremos diante de avaliações negativas, como percebemos em
tantos textos que circulam na mídia.

355
Legenda:

circunstâncias

Processos

TABELA 3: Circunstâncias e processos

EXCERTOS Circunstâncias e processos


1. Em 17 anos, quadruplicou o ingresso  Em 17 anos - circunstância de
de negros na universidade, país extensão - duração (há quanto tempo?).
nenhum no mundo fez isso com o povo  fez - processo material criativo
negro. Esse processo sinaliza que há  na universidade - circunstância de
mudanças reais para a comunidade localização - lugar (onde)?
negra”, comemorou frei David Santos,  quadruplicou - processo material
diretor da Educafro - organização que transformativo
promove a inclusão de negros e  sinaliza - processo verbal
pobres nas universidades por meio de  há - processo existencial
bolsas de estudo.  comemorou - processo mental
2. Antes de falar em igualdade racial,
temos que pensar em equidade racial,  for - processo relacional
que exige políticas diferenciadas. Se a  Ainda - circunstância de contingência
política de cotas não for suficiente, - concessão
ainda que diminua o abismo entre  diminua - processo material
brancos e negros, a gente vai ter que transformativo
ter outras políticas. Não é possível que  continue - processo relacional
esse país continue, depois de 130 anos  Depois de 130 anos - circunstância de
de abolição da escravatura, com essa extensão - duração (há quanto tempo?)
imensa lacuna entre negros e brancos”,  imensa - circunstância de modo - grau
(quanto?)

3. Há 15 anos, o conceito de ações  Há 15 anos - circunstância de extensão


afirmativas para inclusão de negros na - duração (há quanto tempo?)
educação superior motivou intenso  motivou - processo material
debate no meio universitário.Em junho transformativo
de 2003, decisão tomada pela  intenso - Circunstância de modo - grau
Universidade de Brasília (UnB) de (quanto?)
adotar o sistema de cotas raciais em  No meio universitário - circunstância de
seu processo de seleção abriu caminho localização - lugar (onde?)
para uma mudança no paradigma de  Em junho de 2003 - circunstância de
acesso à universidade, antes localização - tempo (quando?)
fortemente baseado na meritocracia”.  adotar - processo material
transformativo
 Abriu - processo material criativo

356
 Para - circunstância de causa -
finalidade (para quê?)
 Fortemente - circunstância de modo -
qualidade (como?)

4. O projeto das cotas na UnB foi um  foi - processo relacional


dos mais desafiantes que eu trabalhei  diz - processo verbal
como profissional, cidadã, mulher e  mais - circunstância de modo - grau
negra, diz a professora Dione Moura, do (quanto?)
departamento de Comunicação Social -  para - circunstância de causa -
Marcelo Camargo/Agência Brasil. Um beneficio (para quem?)
dos principais desafios, segundo a  principalmente - circunstância de
professora, foiconvencer os veículos de modo - comparação - (como é?)
imprensa, a sociedade e a própria
academia de que era necessária uma
política pública específica para negros e
não para a população pobre de forma
geral. Mesmo diante dos números de
desigualdade racial na educação e no
mercado de trabalho,
questionamentos e dúvidas
emergiram, principalmente com
relação à forma de identificação dos
negros e ao reconhecimento do
problema do racismo.
5.O resultado social negou os  negou - processo verbal
preconceitos. A UnB abriu as portas  abriu - processo material criativo
para queoutras universidades se  para - circunstância de causa
abrissem para o jovem negro e o jovem finalidade (para quê?)
indígena e que depois o próprio  abrissem - processo material criativo
governo federal abrisse uma política  depois - circunstância de localização
nacional para discutir as cotas no (quando?)
sistema público universitário.  abrisse - processo material criativo

6. Se a gente quer ter uma universidade  passou - processo material


que faça inovação científica, transformativo
tecnológica, você precisa abrir para a
diversidade. Assim, [ao incluir] pessoas
negras que vieram de uma outra
realidade, de uma realidade de
periferia, você acaba inserindo novos
olhares para o mesmo problema e vai
desenvolvendo novos caminhos. Eu
acho que a universidade passou a ser
uma outra UnB”

357
7. Dados da UnB mostram que, no  mostram - processo verbal
primeiro ano do sistema, ingressaram  no primeiro ano - circunstância de
na universidade 376 negros cotistas. A localização (quando?)
quantidade de pretos e pardos a  ingressaram - processo material
entrar na instituição por meio de cotas transformativo
foi crescendo ano a ano. Em 2011, por  entrar – processo material
exemplo, 911 negros cotistas puderam transformativo
fazer a matrícula na graduação. No  foi – processo relacional
acumulado de 2004 a 2018, ingressaram  ano a ano - circunstância de extensão
na universidade 7.648 negros pelo - duração (Há quanto tempo?)
sistema de cotas raciais.  Em 2011 - circunstância de localização
- tempo (quando?)
 No acumulado de 2004 a 2018 -
circunstância de extensão - (há quanto
tempo?)
 Pelo - circunstância de modo – meio
(como, com o quê?).

8. “Nesses 15 anos a avaliação que nós  Nesses 15 anos - circunstância de


temos é muito positiva.Pelos dados dá extensão - duração (há quanto tempo?).
para ver o crescimento da quantidade  muito - circunstância de modo - grau
de negros”, disse o decano de Ensino de (quanto?).
Graduação da UnB, Sérgio Andrade de  Pelos dados - circunstância de modo
Freitas - Marcello Casal Jr/Agência – meio (como, com o quê?).
Brasil. O decano Sérgio Andrade  disse - processo verbal
acredita que as denúncias não afetarão  acredita - processo mental
o sistema, mas poderá contribuir para  contribuir - processo material
ajustes. transformacional

Fonte: As autoras.

Após a identificação de processos e circunstâncias, a fim de


evidenciar como eles colaboram com as avaliações, apresentamos a
descrição e a interpretação do corpus analisado. A reportagem
intitulada Cotas foram revolução silenciosa no Brasil, afirma especialista,
foi publicada na Agência Brasil, no dia vinte e sete de maio do ano de
dois mil e dezoito e está assinada pela repórter Débora Brito.
Escolhemos alguns excertos, para discuti-los, porque acreditamos que
são suficientes para percebermos como a reportagem está carregada
de avaliações positivas, acerca do sistema de cotas. E isso não ocorre
com frequência nos textos que circulam na mídia, já que muitos
brasileiros não concordam com essa ação afirmativa. As escolhas

358
linguísticas do produtor da reportagem permitem compreender que
houve uma transformação no sistema de cotas, gerando um aumento
de negros na universidade. É possível afirmar isso, devido ao uso do
processo material transformativo aumentou. O uso desse processo e
de outros recursos lexicogramaticais revela uma avaliação positiva de
como está ocorrendo a implantação das cotas nas universidades,
desde o surgimento da lei 12.711/12. Dessa forma, notamos uma
apreciação, reação de impacto, apesar de haver universidades que
ainda não conseguiram apresentar um número significativo de cotistas
matriculados; com isso muitas delas permanecem majoritariamente
brancas e com um público elitizado. No excerto em 17 anos,
quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no
mundo fez isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há
mudanças reais para a comunidade negra”, comemorou frei David
Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de
negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo, é
possível identificar circunstâncias de extensão/duração (em 17 anos),
de localização (onde). Além disso, foram usados processos verbal,
existencial e mental, para avaliar as mudanças ocorridas em benefício
da comunidade negra e pobre. A apreciação de valoração é bem
evidenciada, pois o sistema de cotas representa, em nosso país, uma
inovação, um ineditismo. Isso pode ser comprovado por meio do
processo fez e de outras escolhas linguísticas, quando o produtor do
texto traz a voz do Frei David, usando os seguintes recursos
lexicogramaticais: “já que país nenhum no mundo fez isso com o povo
negro”,
Para dar destaque mais uma vez, em todo o processo de
transformação que está acontecendo desde a criação das cotas, que
tem o intuito de atender as minorias brasileiras, tais como negros e
pobres, identificamos, no excerto 2, processos material
transformativo e relacional circunstancial; além de circunstâncias de
contingência/concessão (ainda); de extensão/duração (depois de 130
anos) e de modo/grau (imensa), que corroboram outra avaliação de
apreciação: “Antes de falar em igualdade racial, temos que pensar em
equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a política de cotas
não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros, a
gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país
continue, depois de 130 anos de abolição da escravatura, com essa

359
imensa lacuna entre negros e brancos”. A voz de Nelson Inocêncio é que
dá destaque para a necessidade de garantir uma equidade racial, que
deve prevalecer antes da igualdade social. A avaliação do sistema de
cotas se deu por meio de um processo relacional circunstancial, ou
seja, isso ocorre quando a relação entre os dois termos é de tempo,
lugar, modo, causa, acompanhamento, papel, ângulo, grau,
contingência (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2014). Em suma, o processo
for é relacional e as circunstâncias são de contingência (ainda), de
tempo (quando) e de grau (imensa). O que foi avaliado, no excerto 2,
direciona para a confusão feita, por parte dos diferentes atores sociais,
acerca dos termos igualdade e equidade. É preciso entender que há
uma complexidade na organização do Sistema de Cotas, afinal muitos
brasileiros não compreendem que há um distanciamento entre o que
está escrito na lei, o que reza a constituição federal e o que acontece
na prática. É urgente repensarmos essa complexidade, as cercanias
que envolvem o contexto da escravidão em nosso país, as
desigualdades sociais, a falta de investimento na educação, para,
então, ser possível pensar na diferença existente entre igualdade e
equidade; sendo que se essa primeira for considerada como produtora
de justiça, estaremos nos referindo, de fato, à equidade.
Para reforçar o que já mencionamos sobre o processo de criação
e transformação do Sistema de Cotas, apresentamos o excerto 3: "Há
15 anos, o conceito de ações afirmativas para inclusão de negros na
educação superior motivou intenso debate no meio universitário. Em
junho de 2003, decisão tomada pela Universidade de Brasília (UnB) de
adotar o sistema de cotas raciais em seu processo de seleção abriu
caminho para uma mudança no paradigma de acesso à universidade,
antes fortemente baseado na meritocracia”. Há, nesse excerto, a
materialização de circunstâncias, tais como: de extensão/duração, em
Há 15 anos; de localização/tempo, em junho de 2003; de modo/grau, em
intenso; de causa/finalidade, em para; de modo/grau, em fortemente.
Além disso, há a presença, no excerto 3, de processo material
transformativo, em motivou, adotar e processo material criativo, em
abrir. Essas escolhas linguísticas, além de indicarem uma avaliação
positiva da adoção de cotas, tomando como referência a UNB, revela
a necessidade de uma reflexão, pois não ocorreu ainda uma justiça
social de tal forma que colabore de maneira significativa para que as
minorias “ocupem” espaços que pertencem a elas e que são

360
garantidos por lei. Não podemos exigir que um estudante de escola
pública, sem oportunidade de fazer um curso pré-vestibular, por
exemplo, concorra em iguais condições com estudantes da rede de
ensino privado. Mais uma vez, é evidenciada uma avaliação positiva,
uma valoração do sistema de cotas, tomando como base a atitude da
UNB, realçando que tem valido a pena, já que sua implantação “abriu
caminho para uma mudança no paradigma de acesso à universidade,
antes fortemente baseado na meritocracia”.
No excerto 4, o projeto das cotas é avaliado como eficiente, como
algo que desperta atenção. Esse projeto é avaliado como desafiador,
porque muitas vezes quem pertence/pertenceu a um contexto de
minoria é quem costuma lutar por essas causas sociais, como podemos
comprovar em: “O projeto das cotas na UnB foi um dos mais desafiantes
que eu trabalhei como profissional, cidadã, mulher e negra”, diz a
professora Dione Moura, do departamento de Comunicação Social -
Marcelo Camargo/Agência Brasil. Um dos principais desafios, segundo a
professora, foi convencer os veículos de imprensa, a sociedade e a
própria academia de que era necessária uma política pública específica
para negros e não para a população pobre de forma geral. Mesmo diante
dos números de desigualdade racial na educação e no mercado de
trabalho, questionamentos e dúvidas emergiram, principalmente com
relação à forma de identificação dos negros e ao reconhecimento do
problema do racismo. O processo relacional (foi), juntamente com
intensificador (mais) - circunstância de modo/grau e da circunstância
de modo/comparação (principalmente) apontam como foi significativo
para a participante do texto, Dione Moura, participar do projeto de
cotas. Além disso, a circunstância de causa/benefício revela o quanto
essa atitude da UNB favoreceu/beneficiou a população negra e pobre.
A voz da professora é trazida com o objetivo de relatar a importância
dessa luta pelas cotas, sendo marcada pelo processo verbal (diz). Os
recursos lexicogramaticais utilizados denotam realmente valor para o
sistema de cotas, é algo que vale a pena, pois como explica a
professora Dione Moura, no excerto 5: “O resultado social negou os
preconceitos. A UnB abriu as portas para que outras universidades se
abrissem para o jovem negro e o jovem indígena e que depois o próprio
governo federal abrisse uma política nacional para discutir as cotas no
sistema público universitário”. Nesse excerto, o processo verbal
(negou) e os processos materiais criativos (abriu, abrissem, abrisse) dão

361
destaque para a importância da negação de preconceitos, por meio da
atitude da UnB, em investir nessa luta social. A atuação do governo
também é motivada, a fim de que sejam discutidas as cotas no sistema
de ensino superior. Isso é muito relevante, porque a circunstância de
localização/tempo (depois) marca que a UNB é que abriu as portas e
que só foi criada uma política nacional, após ações dessa universidade.
A UNB deixa de ser um espaço pautado na meritocracia, a partir do
momento que abre suas portas para as minorias, gerando assim uma
transformação na universidade. Isso é bastante ressaltado pelo uso do
processo material transformacional (passou) que colabora para que a
UNB seja avaliada, de forma positiva.
Compreendemos que a lei que versa sobre o Sistema de Cotas é
bem elaborada, talvez o que ocorre é uma difícil compreensão dela,
por parte de alguns atores sociais que acreditam que as cotas estão
privilegiando uns estudantes em detrimento de outros e que essas não
deveriam existir. No entanto, várias universidades do país têm
apresentado um aumento de alunos cotistas, conforme podemos
comprovar em: Dados da UnB mostram que, no primeiro ano do sistema,
ingressaram na universidade 376 negros cotistas. A quantidade de pretos
e pardos a entrar na instituição por meio de cotas foi crescendo ano a
ano. Em 2011, por exemplo, 911 negros cotistas puderam fazer a matrícula
na graduação. No acumulado de 2004 a 2018, ingressaram na
universidade 7.648 negros pelo sistema de cotas raciais. Esse trecho da
reportagem é construído por meio do uso de diferentes processos, tais
como: verbal (mostram), processo material transformativo
(ingressaram, entrar) e processo relacional (foi). A predominância do
processo material transformativo dá destaque para uma avaliação
positiva, já que aponta o aumento de alunos cotistas na UNB. Assim,
ressaltamos que não se trata de criar as cotas, mas de transformar
ações sempre que necessário, a fim de garantir justiça social a minorias
que intentam ingressar em um ensino superior. Esse aumento de
alunos cotistas é reforçado pelo uso de circunstâncias de
localização/tempo (primeiro ano, em 2011); de extensão/duração (ano a
ano, no acumulado de 2004 a 2018); de modo/meio (pelo). Esses
recursos léxico-gramaticais dão destaque para um avanço na
implantação das cotas nas universidades, permitindo, mais uma vez,
uma avaliação positiva, apontada pelo aumento das minorias nas
universidades.

362
Em toda a reportagem, foi percebida uma frequência significativa
de avaliações positivas sobre o ingresso no ensino superior por cotas.
As vozes articuladas são de diferentes atores sociais que possuem
autoridade para discutirem sobre o assunto, já que estão engajados
em ações que garantam que as minorias, tais como pobres e negros,
ingressem em uma universidade, tais como aparece no excerto 7:
“Nesses 15 anos a avaliação que nós temos é muito positiva. Pelos dados
dá para ver o crescimento da quantidade de negros”, disse o decano de
Ensino de Graduação da UnB, Sérgio Andrade de Freitas - Marcello Casal
Jr/Agência Brasil. O decano Sérgio Andrade acredita que as denúncias
não afetarão o sistema, mas poderá contribuir para ajustes. Nesse
último excerto, escolhido para análise, é possível perceber mais
circunstâncias (nesses 15 anos, muito, pelos dados) e processos (disse,
acredita, contribuir) que corroboram as várias avaliações presentes no
corpus. A apreciação ocorre também em termos de composição da lei,
pois ela precisa ser aperfeiçoada, sempre inovada, bem elaborada, e
de fácil compreensão para que quem tem direito a cotas não seja
prejudicado: “Todo processo exige um aperfeiçoamento, qualquer
mudança que nós temos na sociedade demanda um processo de
amadurecimento entre as pessoas”, avalia Sérgio Andrade.
Por fim, não se pode negar que apesar das avaliações positivas
sobre as cotas, há um cenário mastodôntico de desigualdades no
cenário educacional brasileiro. Isso direciona para o alerta de Santos
(2002), quando ele afirma que não devemos seguir a lógica que
envolve o mito da democracia social, ou seja, a ideia de que todos nós
estamos no mesmo nível de igualdade sócio racial e que tivemos as
mesmas oportunidades, desde o processo de colonização do Brasil.
Esse autor defende que, se pensarmos dessa forma, podemos ser
levados a acreditar que as desigualdades na posição hierárquica e as
relações de poder são dessa forma devido a uma incapacidade própria
de grupos que estão em situação de desvantagem. Ademais, vivemos
um processo de exclusão social, marcada pelo contexto da
globalização. De acordo com Camino (2011, p. 7), “para entender as
formas dos processos de exclusão social, devemos, portanto, analisar
o contexto contemporâneo onde se desenvolvem. E esse contexto é
dominado pela globalização, que deve ser entendida como um
conjunto de processos que se estruturam em níveis diferentes
(cultural, econômico e social)”. Por assim ser, acredito que um dos

363
caminhos para garantir a democratização da educação, de forma a
assegurar o acesso ao ensino superior, é o sistema de cotas sociais e
raciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Sistema de Cotas é uma ação afirmativa que foi avaliada, no


corpus analisado, como algo que representa o ineditismo, seu valor é
de algo inédito, diverso, em relação a outros países. Trata-se de uma
forma de ingresso no ensino superior que não desperta à atenção
somente das minorias, tais como pobres e negros. Muitos atores
sociais, pertencentes à elite brasileira, sentem-se incomodados com
essa ação afirmativa, principalmente com relação às cotas raciais,
sendo as sociais menos criticadas. Dessa forma, é de conhecimento
público, por meio de textos que circulam na mídia, que, muitas vezes,
estudantes, que não se encaixam no fenótipo (manifestação visível ou
detectável de um genótipo) exigido, tentam ingressar na universidade
de forma ilegítima, ocupando uma vaga que deveria ser de quem
realmente tem esse direito garantido por lei.
Por isso, trata-se de um projeto desafiador, lidar com a
discordância de parte da sociedade que não compartilha da mesma
concepção do que é justiça social, que não compreende que um
estudante oriundo de escola pública não tem as mesmas
oportunidades, durante a educação básica, de acesso ao
conhecimento, da mesma forma de um estudante oriundo do ensino
privado. Por exemplo, vários desses estudantes são oriundos de
escolas públicas de periferia; escolas que, muitas vezes, não têm o
mínimo de estrutura, por falta de recursos materiais e/ou por falta de
recursos humanos para darem conta das demandas de um contexto
em constante evolução.
Na reportagem escolhida, estão materializadas escolhas
linguísticas em que é possível perceber uma grande quantidade de
avaliações positivas sobre o Sistema de Cotas. Essa reportagem que
versa sobre a evolução silenciosa das cotas merece ser compartilhada,
nas mais diferentes esferas sociais, pois traz a voz de professores, de
autoridades no assunto, de pessoas que lutam por uma equidade no
processo de ingresso no ensino superior. Esse compartilhamento
poderá permitir que essa representação positiva do sistema de cotas
chegue a um maior número de pessoas. Apesar de as minorias,

364
“geralmente terem pouco ou nenhum acesso aos contextos
comunicativos cruciais” (VAN DIJK, 2018, p. 97). Para van Dijk (2018),
as minorias não têm acesso aos seguintes contextos comunicativos: a)
discursos governamentais e legislativos de tomada de decisões,
informação, persuasão e legitimação; b) discursos burocráticos de
implementação de políticas públicas; c) discurso da mídia de massa de
grandes veículos jornalísticos; d) discurso acadêmico ou científico; e)
discursos empresariais. Por assim ser, compreendemos a importância
de analisar textos da mídia e acreditamos que a LSF e o SA
contribuíram muito para percebermos os efeitos sociais do corpus
analítico, como para possíveis mudanças sociais. As ações afirmativas
sobre cotas podem permitir que estudantes ingressem no ensino
superior com equidade, ou seja, seguir o que reza a constituição
federal, tratar os desiguais de forma desigual, isto é, oferecer
incentivos a todos aqueles que não tiveram oportunidades, devido a
qualquer forma de discriminação ou de racismo. Enfim, acreditamos
que essa análise pode contribuir, ainda que em menor medida, para
que ocorra uma reflexão acerca das cercanias da ação afirmativa
conhecida como Sistema de Cotas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 12.711. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e


nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras
providências, 2012.
CAMINO, L. Prefácio. In TECHIO, Elza Maria; LIMA, Marcus Eugênio Oliveira
(Org.). Cultura e Produção das diferenças, estereótipos e preconceitos no
Brasil, Espanha e Portugal, Brasília: Techonopolitik, 2011.
FUZER, C; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em
língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras, 2014.
HALLIDAY, M. A. K; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Na Introduction to Functional
Grammar. 4rd edition, London: Routledge, 2014.
MARTIN, J. R. Beyond Exchange: Appraisal system in English. In: Hunston,
S. e Thompson, G. Evaluation in text: authorial stance and the construction
of discourse. Oxford: Oxford University Press,2000.
MARTIN, J. R; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in
English.London: PalgraveMacmillan, 2005.
VAN DIJK, T. A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2018.

365
VIAN JR, O. O Sistema de Avaliatividade e a linguagem da avaliação. In:
VIAN JR, O; SOUZA, A. A; ALMEIDA, F. S. D. P. A linguagem da avaliação
em língua portuguesa. Estudos sistêmico-funcionais com base o
sistema da avaliatividade. SãoCarlos: Pedro & João Editores, 2010.

366
O PROJETO MÃO AMIGA CAPES/PIBID COMO BENEFÍCIO
PEDAGÓGICO NO PROCESSO DA CONSTRUÇÃO DO PERFIL
PROFISSIOGRÁFICO DO CURSO DE PEDAGOGIA DA UNESPAR/UV

Rosana Beatriz Ansai1


Verediane Wollinger2

INTRODUÇÃO

Ao analisar a construção inicial de um profissional no interior dos


cursos de Pedagogia, é notório que a formação docente basilar
compreende a interface entre conhecimentos teóricos e práticos que
supram não só as necessidades dos estudantes no decorrer de sua
formação profissional como também disponibilize a oferta de um
profissional capacitado, qualificado, preparado, ético e competente
voltado para atuar na desafiadora sociedade aprendente do terceiro
milênio.
No Curso de Pedagogia se desenvolve um profissional docente, a
partir da proposição dos objetivos e da descrição do perfil do docente
que se pretende formar. Neste tocante cabe ao Projeto Político
Pedagógico do Curso, responder a seguinte questão: que profissional
pedagogo se quer formar para o mercado de trabalho? Assim, é
imperativo que se proponha um perfil profissiográfico que vise
capacitar um aprendiz que apresente características de um professor
amoroso e qualificado no trato com crianças, jovens e adultos,
população aprendente que se encontra em ambientes de
aprendizagem e desenvolvimento intencionalmente planejados, em
contextos escolares e não escolares.
Para cumprir sua missão institucional, o curso de Pedagogia da
Universidade Estadual do Paraná, campus de União da Vitória –
UNESPAR/UV desenvolveu até março de 2018, um projeto pioneiro
desde o primeiro edital em 2009 e iniciado em 2010 e financiado pela
CAPES/MEC/DEB/PIBID, denominado de “Projeto Mão Amiga” voltado

1 Universidade Estadual do Paraná. E-mail: [email protected]


2 Universidade Estadual do Paraná. E-mail: [email protected]

367
para a formação inicial e continuada de professores. Ansai (2013, p. 147)
explicita

[...] a partir do ano de 2010, encontramos no Programa Institucional de Bolsa de


Iniciação à Docência (PIBID) uma oportunidade ímpar para oferecermos ao curso
de Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) [...], o subprojeto
que denominamos “Mão Amiga”. Essa denominação explica-se a partir dos
objetivos desse projeto, uma vez que se busca configurar um lócus de ensino
prático oferecendo uma oportunidade (ou uma “mão amiga”), aos bolsistas para
trabalharem a docência com alunos que apresentam dificuldades de
aprendizagem nas escolas municipais dos anos iniciais do Ensino Fundamental
da rede de ensino de União da Vitória/PR ao mesmo tempo em que se
desenvolvem as competências do profissional docente em sua formação inicial e
continuada.

Dessa forma os propósitos do Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID,


se caracterizam pelo oferecimento de experiências na docência inicial
muito significativa para os acadêmicos bolsistas do Curso de
Pedagogia da UNESPAR/UV, uma vez que adquirem experiências
relevantes para suas práticas docentes, não só com relação aos alunos
com dificuldades de aprendizagens, mas também para as vivências
profissionais advindas do cotidiano das escolas parceiras. Utilizando-o
assim como objeto de fonte e estudos que se coloca para analisar o
Curso de Pedagogia a partir do Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID em
relação à construção da formação profissional do docente inicial que
se pretende formar, objeto deste estudo.
A partir deste contexto argumentativo, como membros da
comunidade acadêmica do Curso de Pedagogia da UNESPAR/UV e
bolsistas do referido subprojeto, surge o questionamento: qual a
contribuição do Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID para a promoção do
perfil profissiográfico do/no curso de pedagogia da UNESPAR/UV?
Portanto, o objetivo do estudo de caráter exploratório, teórico
bibliográfico e apoiado em uma pesquisa de campo é o de revelar a
contribuição do Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID para a promoção do
processo de formação docente dos futuros pedagogos, sob o ponto
de vista do perfil do profissional que se quer formar no Curso de
Pedagogia UNESPAR/UV posto no Projeto Pedagógico do Curso.

368
DESENVOLVIMENTO

É notório que, apesar das tecnologias educacionais estarem


avançando cada vez mais para o campo da interação com o
conhecimento a partir de plataformas midiáticas, ainda se faz
necessário a atuação de um profissional docente capacitado e
competente. Este profissional hodiernamente, se caracteriza como
fundamental na promoção do processo de estruturação pessoal e
interpessoal dos educandos, a partir da proposição de práticas
educativas construtivas que provoquem os aprendizes a acreditar que
são capazes de aprender, transformando-os em sujeitos críticos e
pensantes.
Desta maneira o papel do professor na Educação Básica, é
destacado por Bizzotto et al. (2010, p. 42) como sendo um mediador
entre a criança e o conhecimento (o texto):

[...] Nessa mediação, o professor deixa de ser o único possuidor e transmissor do


conhecimento. Sua intervenção é planejada para favorecer a ação do aluno
sobre o texto. Esse exercício de mediação exige dele um conhecimento claro do
processo de construção do conhecimento, para identificar o que a criança já
sabe, [...] para que continue evoluindo para os níveis seguintes.

Por esta via, nossos estudos se voltam sobre os propósitos de


formação geral que são emanados do Projeto Pedagógico do Curso de
Pedagogia da UNESPAR/UV no tocante ao perfil profissiográfico geral
do graduando, que assim se explicita:

O perfil do graduado em Pedagogia contempla uma formação teórica


consistente, com diversidade de conhecimentos e práticas que se inter-
relacionam ao longo do curso. Assim, o/a Pedagogo/a, profissional da Educação,
formado/a no curso de Licenciatura em Pedagogia da UNESPAR/UV, coadunando
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em
Pedagogia (BRASIL, 2006), estará apto para atuar no magistério da Educação
Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, na gestão de sistemas
educacionais (formais e não formais), e em demais áreas que exijam
conhecimentos pedagógicos, devendo ser capaz de:
a) Compreender a Educação em sua amplitude e a prática educativa que ocorre
em diferentes âmbitos e modalidades educacionais, em especial na Educação
Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
b) Produzir e difundir conhecimentos científicos e pedagógicos de forma crítica
e criativa, tendo em vista a docência, a organização e a gestão de projetos, de
sistemas e instituições de ensino, em espaços de educação formal e não formal.

369
c) Comprometer-se com a formação integral dos educandos, considerando
aspectos psicológicos, sociais, culturais e políticos.
d) Exercer a profissão de forma consciente e ética, compreendendo a
diversidade e a dimensão humana da educação. (COLPED, 2018, p. 34)

Dentre as inúmeras atividades de ensino, pesquisa e extensão


materializadas e documentadas no Projeto Pedagógico do Curso de
Pedagogia da UNESPAR/UV voltadas para a promoção dos objetivos
do perfil profissiográfico, se encontra um projeto pioneiro oferecido
pelo curso e financiado pela CAPES/DEB e que faz parte do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), normatizado
inicialmente pelo edital nº 02/2009 CAPES/ DEB e posteriormente pelo
edital CAPES n.º 061/2013, denominado academicamente por “Projeto
Mão Amiga”.
Para melhor explicitarmos a composição deste projeto, quanto à
gênese motivacional da proposta das coordenadoras de área, quanto
aos seus propósitos e quanto ao plano de trabalho, Ansai e Junges
(2016, p. 31) explicam

[...] partimos da gênese motivacional em ofertar aos acadêmicos bolsistas do


curso de Pedagogia da universidade e professores bolsistas da rede municipal de
ensino de União da Vitória experiências e estudos reflexivos da prática educativa
e de gestão escolar a partir do chão da escola. Nossa base de ação-reflexão da
construção das aprendizagens é oferecer aos bolsistas acadêmicos
oportunidades concretas de experiências profissionais de docência assistida,
dando ênfase aos diversos conflitos epistêmicos e relacionais presentes no meio
escolar [...].
Nossa proposta junto ao projeto, [...] parte do pressuposto que podemos
subsidiar o desenvolvimento do perfil profissiográfico do profissional pedagogo
explicitado no Projeto Pedagógico do Curso (COLPED, 2014), por meio de
estudos e reflexões sobre as práticas que se materializam no espaço da escola
[...].
Nesta perspectiva, sistematizamos um plano de trabalho (ANSAI; JUNGES, 2013)
e de inserção dos estudantes no contexto das escolas que contempla o trabalho
pedagógico com alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem e gestão
escolar, bem como abrange estudos e pesquisas materializados em reuniões
semanais de trabalho coletivo, planejamentos de regência de classe em
pequenos grupos de alunos com dificuldades de aprendizagem, planejamentos
na área da gestão escolar, promoção de palestras, grupos de estudos individuais
e coletivos participação em eventos locais, regionais, estaduais, nacionais e
internacionais, publicações de livros no todo e em partes, manutenção de blog e
de uma página na rede social.

370
Assim evidenciamos que ao participar do projeto, o acadêmico
bolsista do curso de Pedagogia da UNESPAR/UV tem uma profícua
oportunidade de vivenciar uma formação docente inicial intensa uma
vez que no projeto se prioriza a elaboração da identidade do docente
a partir da prática reflexiva docente assistida por professoras
supervisoras bolsistas e coordenadoras de área do projeto, fato ímpar
nos cursos de licenciatura até então. Neste sentido Ansai (2013, p. 148)
enfatiza que

[...] os objetivos do Projeto Mão Amiga vêm ao encontro dos propósitos do


PIBID, uma vez que ambos viabilizam o diálogo reflexivo entre os três pilares em
que se fundamentam o Ensino Superior, para incentivar e promover a formação
de professores para a educação básica: a inter-relação entre o ensino, a pesquisa
e a extensão. [...] Por conta disso, o projeto, a partir do seu design, constitui-se
em um lócus especializado de formação docente e de construção da identidade
do educador.

Exatamente por estes fatos que o projeto Mão Amiga


CAPES/PIBID visa preparar, estruturar e capacitar as (os) bolsistas
acadêmicas (os) do Curso de Pedagogia, futuras (os) educadoras (es),
com um Plano de Ação voltado para a prática docente em seu campo
profissional – os anos iniciais do Ensino Fundamental – potencializadas
por umas práxis educativas baseadas no agir-refletir-agir. Neste
contexto Ansai (2013, p.163) explicita

O bom professor que buscamos formar e que construímos no projeto Mão


Amiga dá-se a partir de vivências e experiências da reflexão-ação-reflexão de
situações problemáticas, imprevisíveis e muitas vezes singulares que emanam do
chão da escola, nas quais as bolsistas têm oportunidade de adquirir novas
compreensões das práticas e saberes docentes; enfim damos a elas a
oportunidade de ‘pensar como uma professora’.

Ressaltando que essas experiências partem de uma metodologia


diferenciada, sendo estas o destaque da promoção do processo
ensino-aprendizagem desenvolvido pelas bolsistas acadêmicas ao
aplicarem seus planos, utilizados da seguinte maneira:

[...] Para além da pedagogia tradicional, optamos por uma metodologia que tem
como viés o lúdico na sala de aula. Para o entendimento e domínio dessa
competência por parte do futuro profissional docente, optamos por uma
metodologia de ensino aplicada a crianças/alunos que apresentam dificuldades
de aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. (ANSAI, 2013, p. 150).

371
De outra forma, a participação no projeto se reveste de
importância pelo fato de que as bolsistas acadêmicas ao atenderem os
alunos que possuem dificuldades de aprendizagem através do lúdico,
podem constatar que a evolução do nível de aprendizagem do aluno
aumenta em grande escala, uma vez que as atividades são mais
prazerosas.
Portanto, evidenciamos que o bolsista acadêmico e os alunos das
escolas parceiras do projeto acabam fazendo uma rica troca de
conhecimentos e experiências interpessoais a partir da utilização do
lúdico em sala de aula. E são essas trocas uma das principais
experiências práticas de contato com o educando que permite a
construção do perfil profissiográfico do professor pedagogo
possivelmente capacitado para atuar de fato em sala de aula de forma
a promover a superação das reais dificuldades dos alunos. Esta
dinâmica permite que ao mesmo tempo em que se estabelecem as
relações do par educativo, se consolide a construção do perfil
profissional do pedagogo. Reside aí:

[...] a importância da experiência docente pibidiana a partir da promoção de um


ensino prático reflexivo como sendo uma prática pedagógica consistente para
desenvolvermos a performance e/ou talento artístico na formação inicial no
curso de Pedagogia da UNESPAR/FAFIUV. (ANSAI, 2013, p. 158).

No contexto do viés temático da formação docente inicial do


curso de Pedagogia e posto no Projeto Pedagógico do Curso no
tocante à formação geral do profissional, se encontra a questão
problema deste estudo: qual a contribuição do Projeto Mão Amiga
CAPES/PIBID para a construção do perfil profissiográfico do/no curso
de pedagogia da UNESPAR/UV?
Deste modo realizamos uma pesquisa de campo do tipo
exploratória, com o universo do quadro de trinta bolsistas acadêmicos
que participaram do projeto em cada ano, nos anos de 2016 e 2017. Na
coleta dos dados, para compor a amostra intencional por
acessibilidade, foram selecionados somente os bolsistas que se
encontravam no quarto ano do curso, por acreditarmos que os
mesmos têm uma visão ampla, geral e mais apurada, tanto do curso
como do projeto, perfazendo um total de oito bolsistas respondentes.

372
O instrumento de coleta dos dados é um questionário misto
contendo 05 perguntas, e que foi aplicado pessoalmente pelas
pesquisadoras durante a hora do trabalho coletivo do projeto.
Sobre as características do perfil dos respondentes os dados
revelam que são todos experientes nas vivências oferecidas pelo
projeto uma vez que têm mais de dois anos de atuação como bolsistas.
No universo de respondentes 100% dos bolsistas acadêmicos é
composto pelo sexo feminino. As bolsistas respondentes selecionadas
intencionalmente para a pesquisa são formandas que possuem mais
de dois anos de experiência de estudos no Projeto, fato que contribui
de forma significativa para a coleta dos dados de pesquisa.
A pergunta inicial do questionário arguiu sobre quais os motivos
que levaram as bolsistas respondentes a ingressar no Projeto Mão
Amiga CAPES/PIBID. O quadro A revela o pensamento–ação das
respondentes:

Quadro A: Motivos que levaram as bolsistas a ingressar no Projeto Mão


Amiga - CAPES/PIBID
Respondente Resposta

BR1 “O motivo pelo qual ingressei ao Projeto Mão Amiga


CAPES/PIBID foi por poder atuar em sala de aula enquanto
acadêmico na época da graduação em Pedagogia, com uma
complementação para minha formação docente através das
práticas voltadas à superação de dificuldades de
aprendizagem.”(atuou no Projeto durante 3 anos - 2015 a
2017)
BR2 “Um dos motivos foi a bolsa para a permanência na
Universidade, outro foi para melhorar a pratica em sala de
aula, gestão assim como ter a oportunidade de atuar com
profissionais mais experientes e desta forma lapidar a pratica
pedagógica para o futuro profissional..”(atuou no Projeto
durante 3 anos - 2015 a 2017)
BR3 “Ingressei no Projeto Mão Amiga por acreditar que este seria
capaz de melhorar minha formação docente, além de
contribuir em minhas pesquisas. Atuei no Projeto durante os
dois últimos anos de minha graduação.”(atuou no Projeto
durante 2 anos - 2016 a 2017)

373
BR4 “O que motivou foi a possibilidade de entrar em contato
ainda no processo de formação docente inicial, com o chão da
escola, adquirir conhecimento prático, conviver com
docentes mais experientes, troca ideias, compreender a
realidade escolar e as dificuldades encontradas na profissão
docente.”(atuou no Projeto durante os 4 anos da graduação
- 2014 a 2017)
BR5 “A ótima referência a despeito[sic] do Projeto, dada por
colegas acadêmicas, acerca das experiências na carreira
docente habilidades aprendidas, oportunidades únicas tanto
no aspecto acadêmico como profissional.”(atuou no Projeto
durante 2 anos e 06 meses)
BR6 “Queria muito estar em sala de aula, e assim unir a teoria
juntamente com a prática. Tinha ouvido falar muito bem
sobre o Projeto e que com certeza iria fazer a diferença na
minha vida acadêmica.”(atuou no Projeto durante 3 anos e 11
meses)
BR7 “Buscava me inteirar do ambiente docente, pois não tinha
nenhuma experiência no âmbito da educação e o Projeto foi
meu primeiro contato com a escola enquanto docente e
sentia a necessidade de interagir com outros
profissionais.”(atuou no Projeto durante 3 anos e 05 meses)
BR8 “A propaganda era encantadora, falavam muito bem do
Projeto, as aprendizagens e experiências e exemplos das
bolsistas eram verdadeiros e a parte financeira que ajudava
muito. ” (atuou no Projeto durante 3 anos e 07 meses)
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017

A pergunta número 02 coletou dados acerca do pensamento-ação


das bolsistas respondentes com a questão: O Projeto Mão Amiga
CAPES/PIBID tem como objetivo propor atividades lúdicas visando uma
prática pedagógica diferenciada, em sua opinião, essa forma dinâmica
contribuiu para arrefecer as dificuldades do aluno? Por quê? O Quadro
B apresenta as respostas.

374
QUADRO B: O pensamento-ação das bolsistas respondentes sobre as
atividades lúdicas como prática pedagógica diferenciada para
arrefecer as dificuldades dos alunos.
Respondente Resposta
BR1 “Sim, pois a ludicidade está totalmente interligada à
assimilação dos conteúdos que são desenvolvidos em sala, de
maneira que a criança compreenda e se expresse diante
daquilo que está sendo proposto na atividade lúdica.”
BR2 “Com toda certeza que sim, a metodologia lúdica favorece a
aprendizagem, pois o educando aprende brincando sem que a
aprendizagem seja algo penoso e rotineiro.”
BR3 “Com toda certeza sim. Durante o desenvolvimento das
atividades e nos momentos de reflexão acerca do trabalho,
seja com a equipe bolsista, ou com os profissionais atuantes
na escola parceira, era visível o quanto as propostas
diferenciadas melhoravam o desempenho dos estudantes.”
BR4 “Contribui grandemente, pois no mundo da tecnologia a escola
e os conteúdos escolar não são atrativos, e através da
ludicidade conseguimos despertar o interesse dos alunos.”
BR5 “Sim, através dos jogos e atividades lúdicas nos meus
planejamentos, trabalhei em matemática com o jogo da
adição, e também o jogo da joaninha, o jogo do dado da
adição, boliche da adição, para que desta maneira os
educandos desenvolverem a alfabetização matemática.”
BR6 “Sim, o aluno M. não conseguia resolver uma questão de
multiplicação, e através da tabuada lúdica, onde o mesmo
com auxílio de palitos colocava nos copinhos e após contar
quantos palitos havia em cada copinho, conseguiu resolver
todas as multiplicações.”
BR7 “Sim, a utilização de material lúdico no Projeto para ensinar
as operações básicas da matemática auxiliou o aluno a
compreender o processo. Na sala de aula, o aluno não
conseguia realizar as operações por falta de compreensão,
enquanto nas aulas do Projeto conseguiu sanar suas dúvidas
utilizando material lúdico e concreto.”
BR8 “Sim, os jogos lúdicos na alfabetização dão um grande
suporte como por exemplo o bingo das letras e sílabas
auxiliam na alfabetização das crianças, memorizando e
compreendendo o conteúdo através do brincar que é o que a
criança mais gosta de fazer.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017

375
A pergunta 03 apresentou às bolsistas respondentes o seguinte
conteúdo: Ao vivenciar à docência no âmbito do projeto, como
bolsista, você experienciou uma prática docente crítica em um
movimento dialético entre o “fazer e o pensar sobre fazer”. Neste
sentido, com relação a sua formação em curso e o que o projeto lhe
ofereceu enquanto lócus de formação docente, você considera:
Excelente; Ótimo; Bom; Regular ou Péssimo? Deste modo no gráfico 1
se encontra a avaliação dos bolsistas respondentes:

GRÁFICO 1: Avaliação das bolsistas respondentes sobre a contribuição


do projeto Mão Amiga CAPES/PIBID para a formação docente de cada
um.

A pergunta número 04 versou sobre: Em medida que as experiências


vivenciadas e saberes compartilhados no cotidiano escolar
contribuíram para sua formação como docente? O quadro C apresenta
as percepções das bolsistas respondentes:

376
QUADRO C: Percepções das bolsistas respondentes sobre as
contribuições das experiências vivenciadas e saberes obtidos no
cotidiano escolar para a formação docente inicial
Resposta
Respondente
BR1 “Ótimo, a vivência escolar é algo que constrói pontes, tendo
como alicerce o professor enquanto mediador do
conhecimento, assim no período em que estive no Projeto
como graduando de Pedagogia enriqueceu os saberes
enquanto docente inicial e também contribuiu na minha
formação enquanto pesquisador.”
BR2 “Ótimo.”

BR3 Ótimo. “Sem dúvida alguma, todos os aprendizados


enquanto bolsista foram válidos e influenciaram para a
minha formação enquanto profissional reflexiva, ciente e
pesquisadora de minha prática docente.”
BR4 “Contribuíram pois vários saberes da docência são adquiridos
na prática profissional.”
BR5 “Através dos estudos e pesquisas no âmbito do Projeto Mão
Amiga o qual me forneceu amplamente subsídio de vastos
conhecimentos, uma grande quantidade de ideias, trocas de
saberes as quais me possibilitaram habilidades e estratégias
de ensinar, de lidar com os alunos. Teoria, experiência, arte,
tecnologia, valores e atitudes, todos são ingredientes que
devem ser combinados de diferentes modos. ”
BR6 “Posso dizer que minha formação no Curso aconteceu de
forma significativa, graças ao Projeto Mão Amiga, vivenciei
meus colegas em sala de aula aflitos com algumas questões,
ou atividades, nas quais tinha vivenciado ou feito no Projeto,
e que, naquele momento entendi a diferença de uma
acadêmica que participa do Projeto e aquela que não
participa, é nítido até para os professores, que chegam a
comentar.”
BR7 “A partir das experiências vivenciadas no Projeto, pude
refletir sobre as práticas e as metodologias utilizadas quanto
à sua eficiência, reformulando os aspectos necessários. Fez-
me perceber também que muitas vezes, algumas
metodologias, práticas, atividades, não dão certo para todos.
Que é preciso investigar os alunos para utilizar algo que
realmente faça diferença na aprendizagem.”

377
BR8 “Durante o Curso de Pedagogia nos 4 anos em nenhum
momento recebemos orientações sobre como proceder com
alunos com dificuldades de aprendizagem. No entanto, no
Projeto as dificuldades de aprendizagem é o foco principal.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017

A pergunta 4 coletou dados acerca da opinião das bolsistas


respondentes a partir da seguinte questão: em sua opinião há uma
relação entre os conhecimentos teórico/acadêmicos e o campo de
atuação docente a partir das vivências no projeto Mão Amiga
CAPES/PIBID? O quadro D apresenta o pensamento-ação das
respondentes.

QUADRO D: Opinião das respondentes sobre a relação entre os


conhecimentos teórico/acadêmicos e o campo de atuação docente a
partir das vivências no projeto Mão
Amiga CAPES/PIBID
Respondente Resposta

BR1 “Sim, em algumas vezes nem sempre foi possível colocar em


prática aquilo que se é obtido como conhecimento durante a
graduação, pois a realidade é outra quando se está no chão da
escola.”
BR2 “Não. Um é complemento do outro.”

BR3 “Sim, os conhecimentos teórico/acadêmicos trabalhados vão


de encontro as práticas realizadas na escola parceira, porém,
por vezes, falta aos acadêmicos recém ingressos ao curso,
bem como no projeto, compreensões sobre uma práxis
educacional que lhe possa acrescentar e tornar um melhor
profissional. Reside ai a importância de se participar do
projeto.
BR4 “O que acontece é que dependendo do contexto em que os
alunos estão inseridos, muitos conhecimentos teóricos
necessitam ser repensados e não se aplicam para todos os
contextos.”
BR5 “Através das trocas de experiências e pesquisas científicas
vivenciadas no âmbito do Projeto Mão Amiga desenvolvi
minha prática educativa. É necessário a partir da ação e da
reflexão que se constrói a autonomia e o desenvolvimento
dos alunos.”

378
BR6 “Através de pesquisas, fichamentos, artigos, somos
instigadas a construção e busca de conhecimentos.
Permitindo saciar aprendizagens construídas no coletivo.
Assim, para o desenvolvimento profissional do educador.
Nóvoa (1995, p.27).” afirma que: A formação pode estimular
o desenvolvimento profissional dos professores, no quadro
de autonomia contextualizada da profissão docente.
Imposta valorizar paradigmas de formação que promovam a
preparação de professores reflexivos, que assumam a
responsabilidade do seu próprio desenvolvimento
profissional e que participem como protagonistas na
implementação de políticas educativas.
BR7 “Vejo que as teorias vistas nas aulas da faculdade se
apresentam nas práticas de sala de aula. Algumas delas estão
de acordo com a realidade das escolas, outras parecem estar
distantes. No Projeto, o que é estudado nas pesquisas, muitas
delas podem ser colocadas em prática no dia a dia do projeto,
buscando sempre o melhor para o desenvolvimento dos
alunos.”
BR8 “Na prática quando estamos com os alunos no momento que
planejamos uma aula podemos observar o quanto a teoria é
importante para a nossa formação.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017

A última pergunta solicitou que relatassem uma experiência


docente positiva vivenciada durante a atuação no projeto Mão Amiga
CAPES/PIBID. O quadro E apresenta os relatos, a saber:

QUADRO E: Relatos de uma experiência docente positiva vivenciada


pelas bolsistas respondentes durante a atuação no projeto Mão Amiga
CAPES/PIBID.
Respondente Resposta

BR1 “Uma das experiências mais significativas foi em uma


atividade de envolvimento afetivo, da qual um certo aluno
era muito tímido, a partir da atividade envolvendo abraço e
gestos de aproximação entre os demais, esse aluno começou
a se sentir seguro de si e obteve um grande avanço na
aprendizagem.”

379
BR2 “A oportunidade de estar atuando nas escolas em contato
com docentes mais experientes, a exigência das Supervisoras
com as quais atuei me tornou uma profissional mais
capacitada e autocrítica na realização de minhas funções.”
BR3 “Inúmeras foram as experiências positivas durantes meus
anos de atuação enquanto bolsista mão amiguense,
acompanhar o crescimento e o desenvolvimento das crianças
é algo incrível. Uma das experiências mais relevantes foi a
gincana do dia dos pais, organizada na Escola Municipal Padre
João Piamarta, oportunidade na qual foi possível perceber o
envolvimento não só das crianças, mas também dos pais,
visto que para um bom andamento das atividades é de
fundamental importância a presença da família.”
BR4 “Experiência de publicar um artigo sobre o PIBID em um
congresso internacional.”
BR5 “Aspecto relevante a ser citado é a liberdade de criatividade
por parte dos bolsistas, sempre busquei atividades
diferenciadas que despertassem o imaginário dos educandos,
com essa dedicação alcançava o êxito na ensino
aprendizagem.”
BR6 “Vivenciei uma experiência que me marcou muito, onde um
aluno tinha muitas dificuldades tanto na aprendizagem
quanto na socialização com os colegas. Consegui me
aproximar dele e aos poucos ter sua confiança. Posso dizer
que a superação em todos os sentidos foi nítida, que todos ao
redor
perceberam. O aluno não queria mais se desligar do Projeto,
mesmo quando já tinha evoluído muito. Foi gratificante para
mim.”
BR7 “O cotidiano com os alunos e outros profissionais nos ensina
muito, e cada detalhe tem sua importância. Não há um só
momento ou experiência, acredito que tudo que foi vivido é
válido e deve ser reconhecido.”
BR8 “Gostei muito das correções dos meus planos de aula e
relatórios, percebi que ainda não sei muito, mas preciso estar
disposta a vivenciar novas aprendizagens, sabendo distinguir
as críticas e as correções como parte importante da minha
formação.”
Fonte: Dados da pesquisa/ 2017

380
A partir dos dados expostos anteriormente, algumas análises são
possíveis de serem tecidas, no qual apresentamos a seguir.
Observamos que com relação aos motivos que levaram as
bolsistas a ingressar no Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, os dados da
pesquisa revelam a busca por experiências educacionais significativas
e voltadas para o auxílio na compreensão melhor como acontece o
fenômeno educativo, a partir das vivências docentes ofertadas pelo
projeto. (Vide Quadro A)
Com relação ao pensamento-ação das bolsistas respondentes
sobre as atividades lúdicas que utilizaram nos seus planejamentos
apontadas como prática pedagógica diferenciada para arrefecer as
dificuldades dos alunos, elas sinalizam a compreensão da necessidade
de se utilizar uma metodologia didática prazerosa e significativa para a
promoção do processo de ensino e aprendizagem dos alunos. O
apontamento da bolsista RB2 que possui três anos de experiências de
estudos no projeto é bastante significativa ao afirmar que: “Com toda
certeza que sim, a metodologia lúdica favorece a aprendizagem, pois o
educando aprende brincando sem que a aprendizagem seja algo penoso
e rotineiro. ” (vide Quadro B)
Neste sentido, a proposta do trabalho pedagógico a partir da
ludicidade se apresenta como um lócus colaborativo para se firmar o
processo de construção do perfil profissional do estudante de
Pedagogia a partir das experiências vivenciadas no projeto e da
construção de novas percepções a respeito do processo de
organização do trabalho pedagógico em sala de aula. Como alerta
Rabello (2009, p. 107) em sua análise contundente,

Sabemos que a tarefa de transmitir o conteúdo pode ser cansativa tanto para o
aluno como para o professor, sobretudo quando este tem dificuldade em
organizar o trabalho pedagógico e gerir a sala de aula. O professor tem a função
de mediar a aprendizagem do aluno e prover a estrutura necessária para que o
educando assuma o estudo de maneira responsável e autônoma [...].

A avaliação positiva das bolsistas respondentes acerca do


estabelecimento relacional entre as experiências vivenciadas nos
estudos realizados no projeto e a formação docente no curso de
Pedagogia, é um indicador de que o Projeto Mão Amiga contribui de
forma significativa para a formação integral do profissional pedagogo.
(Vide gráfico 01)

381
A respeito dos olhares dos respondentes sobre as experiências
vivenciadas e saberes compartilhados no cotidiano escolar e a
contribuição deste fenômeno para sua formação docente, as mesmas
apontam para a constatação de que as bolsistas receberam uma
formação teórica e prática significativa ao participarem do projeto, o
que corrobora nossa assertiva de que o projeto colabora para a
formação do perfil do graduado em Pedagogia, uma vez que apontam,
conforme o Quadro C, uma aquisição de diversos conhecimentos e
experiências basilares para a formação docente inicial.
Sobre a opinião dos bolsistas respondentes sobre a relação entre
os conhecimentos teórico/acadêmicos e o campo de atuação docente
a partir das vivências no projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, verificamos
que as bolsistas respondentes, apontam uma compreensão sobre a
Educação em sua amplitude e a prática educativa que ocorre em
diferentes âmbitos, muito embora apontem para a necessidade de se
realizar mais estudos para se atingir a plenitude profissional. (Vide
Quadro D)
As respostas a última questão que se encontram no Quadro E
apontam de forma consistente que o Projeto Mão Amiga contribui
para a consolidação do perfil profissiográfico do graduando do curso
de Pedagogia da UNESPAR/UV, que muito auxilia as bolsistas a
compreender o fenômeno educativo em sua plenitude, por meio da
produção de conhecimento científico e do comprometimento com a
educação dos seus alunos de forma ética e competente. A bolsista
responde BR4 resume estas experiências vivenciadas no projeto ao
relatar que publicou os estudos e pesquisas em um congresso
internacional.

CONCLUSÕES

A formação docente inicial compreende a interface entre


conhecimentos teóricos e práticos no interior do curso de Pedagogia
para que supram as necessidades dos acadêmicos no decorrer de sua
formação profissional, disponibilizando dessa forma, um profissional
capacitado, qualificado e preparado para atura na sociedade hodierna.
Ao se delimitar o perfil do profissional pedagogo que se quer formar
no curso de Pedagogia da UNESPAR/UV a partir dos estudos realizados

382
no Projeto Mão Amiga CAPES/PIBID, os dados da pesquisa revelaram
que:
- Os bolsistas construíram, a partir das vivências da docência
assistida e dos estudos realizados, a compreensão de que é
necessária uma formação teórica consistente para se atuar
profissionalmente;
- O Projeto Mão Amiga contribui para a formação de um
pedagogo apto para trabalhar com crianças nos anos iniciais do
Ensino Fundamental;
- Os bolsistas aprenderam a produzir o conhecimento e a
difundi-lo ao participarem de eventos científicos;
- O Projeto proporciona experiências docentes que fazem com
que os acadêmicos se comprometam com a formação integral dos
seus alunos, característica importante da competência
profissional.
- Os bolsistas aprenderam a partir de uma prática docente
reflexiva, quais são as características de um professor ético,
consciente e comprometido com a formação integral humanizada
dos seus alunos.
Assim, os dados da pesquisa revelaram que os estudos realizados
no Projeto Mão Amiga estão em consonância com a proposta do
perfil do profissional que se deseja formar no Curso de Pedagogia
da UNESPAR/UV.

REFERÊNCIAS

ANSAI, Rosana Beatriz. Projeto Mão Amiga/PIBID: lócus contributivo


da e desenvolvimento da performance e do status profissional docente
no Curso de Pedagogia da UNESPAR/FAFIUV. In: MARTINS, Ilton Cesar;
BRITO, Karim Siebeneicher (Orgs.). Prática docente inicial e
continuada: o PIBID na UNESPAR. Palmas: Kaygangue, 2013. p.145-170.
Disponível em: <http://www.pibidunespar.com.br/index.php/livros>.
ANSAI, Rosana Beatriz (Org.). Formação inicial no Curso de
Pedagogia: a práxis educativa lúdica no contexto de dificuldades de
aprendizagem. União da Vitória: Produção própria: 2012. Disponível
em: <http://www.pibidunespar.com.br/index.php/livros>.

383
ANSAI, Rosana Beatriz; JUNGES, Kelen dos Santos. A contribuição do
Projeto Mão Amiga Capes/PIBID e a qualidade das ações acadêmicas
na formação docente inicial no Curso de Pedagogia da UNESPAR/UV.
In: STENTZLER, Márcia Marlene; CAMARGO SILVA, Sandra Salete de
(Orgs.). Iniciação à docência: PIBID e a formação de professores pelos
campi da UNESPAR. Curitiba: Íthala. 2016. p.30-45. (Volume União da
Vitória). Disponível em: <http://www.pibidunespar.com.br/index.php/
livros>.
COLPED – Colegiado Pedagogia. Projeto Pedagógico do Curso de
Pedagogia. Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual do
Paraná. União da Vitória-PR: UNESPAR/Campus de União da Vitória,
março. 2018
RABELLO, Roberto Sanches. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o
que é: arte e ludicidade na formação do professor. IN: D’AVILA, Crisitna
(org). Ser professor na contemporaneidade. Curitiba: CRV, 2009.
SOARES, Maria Inês Bizzotto et al. Alfabetização Linguistíca: da teoria
à prática. Belo Horizonte: Dimensão, 2010.

384
A EXPERIÊNCIA INICIAL DO OUTRO NA PEDAGOGIA
LATINO-AMERICANA: UMA LEITURA À LUZ DE
ENRIQUE DUSSEL E PAULO FREIRE

Ivan Luís Schwengber1


Jenerton Arlan Schütz2

INTRODUÇÃO

A educação escolar tem sido, constantemente, alvo de discussões


sobre o que ensinar, como ensinar, para que ensinar e qual o currículo
mais conveniente para os estudantes em seus diversos contextos
sociais. De um lado, reúnem-se desejos de uma educação voltada para
a preparação da entrada no Ensino Superior, de outro, a preocupação
de que a formação esteja voltada para o mercado de trabalho –
formação de mão de obra. Estas e outras discussões podem ser
consideradas legítimas e necessárias para a constituição de uma
Educação de qualidade e preocupada com a formação integral dos
sujeitos, entretanto, há um fenômeno de fundo intrigante, a saber,
desta vez, ao menos na sociedade brasileira, os pesquisadores em
educação foram, praticamente, desprezados e não ouvidos no que se
refere às reformas educacionais3. A consulta fora feita, quase que
exclusivamente, junto a grandes corporações e institutos que
pretendem ter resultados com a educação4. Ademais, esta
multifacetada visão sobre o papel da educação formal tem, como
aspecto positivo, a possibilidade de ter chamado a atenção da opinião
pública sobre o seu papel e a sua função.
Nesse sentido, ao aliar tais discussões com o cerne dessa pesquisa,
consideramos nuperimanente, por exemplo, que falar de/em/sobre
escola inclusiva tem sido, praticamente, abordar e tratar de algum tipo

1Doutorando em Educação (UPF). E-mail: [email protected]


2 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUI). E-mail: [email protected]
3 Referimo-nos às reformas do Ensino Médio e às últimas versões da Base Nacional

Comum Curricular.
4 Dentre as quais podemos citar: Fundação Lemann; Instituto Unibanco; Fundação

Itaú; Instituto Inspirare; Todos pela Educação; Instituto Natura; Instituto de Co-
responsabilidade pela Educação (ICE).

385
de deficiência com laudo médico ou psiquiátrico, em um viés em que não
faz sentido falar de inclusão social nos seus diferentes aspectos
econômicos, étnico-racial ou de gênero. Tratar de outro tipo de inclusão
que não seja da educação especial é carregada de sentido ideológico
considerado imoral nos tempos atuais. No caso brasileiro, temos a obra
de Paulo Freire, que aborda de forma mais radical a exclusão/inclusão na
escola. A sua luta contra a opressão a partir da educação, levou-o a ser
considerado como um dos grandes responsáveis pelo suposto fracasso
da educação formal no País. Sua obra inicial, que culmina com a
Pedagogia do Oprimido (1969), constitui-se em uma pedagogia da
libertação tratando-se de uma forma típica na/da América Latina, dentro
de um movimento filosófico e teológico em que surge a “questão da
libertação” (DUSSEL, 1995, p. 22). Nesse sentido, a Pedagogia da
Libertação de Freire está introduzida no movimento pedagógico
brasileiro em diálogo com a América Latina. O conceito de educação
inclusiva parece não comportar mais a luta contra a opressão no sentido
mais amplo da inclusão, mas passa a se restringir a um certo tipo de
sentido de educação especial. Com isso, emancipar o estudante é, de
certo modo, um tipo de adaptação à sociedade através das
competências e habilidades.
O texto se move na perspectiva de indagar se ainda faz sentido
falar em educação libertadora, ou então, dito de forma mais vasta,
pode a educação escolar ser considerada uma prática de liberdade na
América Latina, levando-se em consideração um mundo globalizado e
o esfacelamento do mundo comum? Assim sendo, faz sentido analisar
a lógica de fundo que se estabelece contra o que está posto, no
momento em que a história caminha em direção ao progresso e, nesse
sentido, se um grupo social, uma instituição ou os sujeitos não
acompanharem o desenvolvimento posto, isso significa que os casos
omissos que não se adaptarem e acomodarem ao sistema devem ser
tratados particularmente, sendo sucessivamente considerados como
problemas localizados que precisam ser combatidos ou adequados ao
já estabelecido.
No caso de pessoas ou estudantes, isso seria (é) feito por meio de
alguma terapia, algum coach ou pela indicação de algum remédio, a fim
de se “descobrir” qual o problema que o sujeito possui pelo fato de
não conseguir se adequar/adaptar; no caso das instituições, as
mudanças seriam (são) realizadas nas formas de gestão e

386
administração, do mesmo modo que as economias de países
periféricos precisam seguir as cartilhas dos países centrais. Desta
forma, desenvolver melhor os objetivos, capacitar melhor os sujeitos,
aprimorar as competências e habilidades passa a ser a função nuclear
da educação escolar. Em suma, o sistema é bom, os indivíduos que não
são competentes o suficiente para se adequar às mudanças e situações
exigidas pelos processos decorrentes da globalização.
O discurso de questionar a globalização como um sistema mundial
pode ser considerado como um tanto ultrapassado, e somente faz
sentido falar em libertação se há opressão. Se considerarmos a lógica
posta como inadequada, então significa que necessitamos fazer uma
mudança estrutural, ou ainda, transformações de situações que
julgamos serem excludentes e aniquiladoras. Se não pretendermos
somente legitimar o que está posto, mas abordar uma educação para
além do que está posto, para além da adequação e mesmidade, então
significa que precisamos pensar em uma educação que transforme a
realidade dada como naturalmente “justa” e “adequada”. Contudo,
essa transformação pode ser considerada como uma ameaça ao sistema
vigente, podendo-se, inclusive, reagir de forma violenta para a
manutenção do status quo.
Com isso, podemos aferir que o problema que aqui enfrentamos
está diretamente ligado com a forma pela qual fazemos a educação
escolar, ou seja, passamos a legitimar o sistema se considerarmos que
as diferenças ou as limitações dos sujeitos (alunos) são somente
“problemas subjetivos”, isto é, do “próprio eu”, e nada para além
disso.
Nessa direção, o capítulo se baseia na análise bibliográfica e na
perspectiva hermenêutica de interpretação crítica da questão do outro
na educação escolar. Ademais, acreditamos que somente faz sentido
falar em uma pedagogia da libertação se há uma experiência de
opressão ou, no mínimo, a necessidade de libertação, muito ofuscada
atualmente pelo que chamamos de globalização.
Em primeiro lugar, analisamos no que implica, historicamente, ser
e pensar a partir da América Latina – a inauguração do América como
produto da modernidade europeia – o surgimento da “questão da
libertação”. Por conseguinte, aborda-se o surgimento da questão da
libertação e o aparecimento do Outro a partir de Enrique Dussel, isso,
com o intuito de compreender as características da globalização e da

387
sociedade hodierna, além de suas implicações para pensar o Outro
diferente e, ao mesmo tempo, igual. Por fim, diante do contexto
brasileiro, tematiza-se, a partir de Paulo Freire e Enrique Dussel (e
alguns de autores contemporâneos), a dificuldade de se constituir
pressupostos para pensar uma pedagogia da libertação na
contemporaneidade.

O EFEITO DA MODERNIZAÇÃO PARA AMÉRICA LATINA E OS SEUS


REFLEXOS PEDAGÓGICOS

O triunfo das democracias liberais está assentado sobre um


estado constitucional, com uma economia de mercado capitalista, em
que os direitos estão formalmente assegurados. Contudo,
recentemente, em decorrência do consumismo voraz e desenfreado,
com as suas mais variadas faces e superfluidades, tem forçado e
solicitado a manutenção do excludente sistema capitalista mesmo
como endurecimento das liberdades individuais em função da
liberdade econômica. Há, nesse sentido, uma hegemonia do
capitalismo que se impõe de modo inquestionável como a melhor
opção histórica/social/econômica, especialmente após o fim da URSS
em 1991. A democracia formal é, oficialmente, a nossa forma de
legitimação do poder, que já é amplamente difundida nos limites da
representatividade, em que a manipulação das sociedades de massa e
os próprios mecanismos de validação são insuficientes para assegurar
o protagonismo dos cidadãos em condições de igualdade (isonomia).
As sociedades democráticas liberais abandonadas à lógica do
mercado abrem espaço para uma acentuada desigualdade social e de
uma crise ecológica sem precedentes. Os direitos e deveres do cidadão
garantem a igualdade formal, quase insignificante politicamente, uma vez
que não conseguem se manter longe do nacionalismo com características
excludentes e de fundamentalismos religiosos intolerantes. Este modelo
de sociedade desenvolvido é reflexo dos processos da modernização. A
questão ecológica, por exemplo, tem sido o grande ponto fraco da
modernidade, que se faz e sustenta sob a égide do progresso, da
exploração. Por mais que a sociedade se moderniza, em termos de
sustentabilidade do planeta estamos em rumos inversos. Se falarmos em
progresso como sinônimo de desenvolvimento, então não podemos
adjetivar o progresso em termos de viabilidade de vida no planeta, e

388
corremos um sério risco de torná-lo inabitável e, quiçá, supérfluo para as
novas gerações. As questões ecológicas põem sob suspeita a
modernização enquanto sinônimo de progresso.
Não obstante e de forma específica, os países latino-americanos
nascem sob o processo de modernização europeia, como colônias das
sociedades tidas como “civilizadas e modernas”. Assim sendo, “[...] a
cultura ameríndia, porque difere da europeia, é considerada como
bárbara, desprezível, sem valor” (BOUFLEUER, 1991, p. 79). Além disso,
constituem um processo de integração muito efêmero, “[...] ou melhor,
apenas foi possível uma integração perversa sob o signo do espólio,
exploração ou exclusão” (ZAMORA, 2008, p. 20). Este processo da
história latino-americana permite um estranho ethos como forma de
normalidade deste processo de marginalização mundial. Em síntese, é
normal que a modernidade produza este processo de exclusão devido a
cronologia histórica. Enigmaticamente, legitima-se o processo de
exclusão como sendo característico da própria constituição da América
(exceção feita no norte do continente).
A histórica linear e evolutiva coloca frente a frente sociedades
“desenvolvidas” e “civilizadas” com sociedades “tradicionais” e
“atrasadas”. Sob esta lógica, temos como padrão de análise as
sociedades modernas que apresentam e consideram numa escala de
inferioridade as sociedades que não seguem este curso. O diferente,
em termos de sociedade, é a civilização contra a barbárie.
Conforme Baudrillard e Guillaume (2000, p. 113, tradução nossa):

Já não trata de matá-lo, devorá-lo ou seduzi-lo, nem de enfrentá-lo ou rivalizar


com ele, também não se trata de amá-lo ou odiá-lo; agora, trata-se primeiro de
produzi-lo. O Outro deixou de ser um objeto de paixão para converter-se em um
objeto de produção. Poderia ser que o Outro, em sua alteridade radical ou em
sua singularidade irredutível, tenha se tornado perigoso ou insuportável e por
isso necessário exorcizar sua sedução? Ou será simplesmente que a alteridade e
a relação dual desaparecem progressivamente com o aumento potencial dos
valores individuais e com a destruição de valores simbólicos?

Nesse sentido, a estratégia histórica é tipicamente do processo


colonizador, que torna as formas internas da própria sociedade que se
destoam da modernização, como forma de adequação.
Comportamentos que não refletem os valores da sociedade moderna
devem ser adequados ou aniquilados, de tal sorte que, enquanto nada
puder ser feito de modo a tensionar esse movimento, se aceitará essa

389
perspectiva como parte integrante e “natural” do processo. Os modos
de vida diferentes podem até persistir no interior de uma sociedade,
contanto, desde que não afetem a marcha para o progresso.
Todavia, quando estes grupos sociais se organizam para lutar
pelos seus direitos para além do status quo, significa que estes devem
ser combatidos com uma ideologia perversa e abafadora. Além disso,
passam a ser considerados como resquícios da barbárie, para Sennett
(1988, p. 325), tais evidências se aprofundam nas sociedades modernas
onde “[...] forasteiros, desconhecidos, dessemelhantes, tornam-se
criaturas a serem evitadas” e combatidas. Todo movimento que se
pautar na luta por direitos contra a marcha do progresso deve ser
descaracterizado, por isso, formas de vida diferentes das consideradas
ideais ou condizentes deverão sempre ser combatidas.
Não será necessário grande esforço para reconhecer os múltiplos
serviços prestados por esta estratégia. De um lado, serviu para tornar
invisíveis formas de barbárie inerentes à Modernidade ou, inclusive, para
identificar e estigmatizar grupos sociais dentro das sociedades
industrializadas, objetos de processo de exclusão, exploração ou
extermínio; e, de outro, permitiu legitimar a luta, em muitos casos
exterminadora, contra formas definidas previamente como bárbaras,
empregando meios e conduzindo para efeitos que ultrapassam em muito
a barbárie atribuída aos supostos incivilizados. (ZAMORA, 2008, p. 21).
No tocante à educação escolar, esta estratégia que, de um lado, visa
mostrar certos grupos sociais como inadequados e, de outro, combatê-
los sistematicamente, tem se mostrada de alguma forma eficiente no
sistema de ensino formal, tanto que passamos por um movimento
nacional de combater qualquer tomada de posição que não seja
adequada com a estrutura vigente, no viés de caminhar sob a perspectiva
de desideologização da educação, abrindo, grosso modo, o leque para
qualquer tipo de tema transversal que tome uma posição contrária ao
desenvolvimento e formação humana. Chegamos ao extremo de
questionar uma república, a democracia e os direitos humanos que não
estejam vinculados para o progresso da sociedade capitalista.
A América Latina, desde a sua fundação, é um produto da
modernidade. A história é marcada por uma dizimação de muitos
povos e culturas, inúmeros povos que viviam neste território foram
silenciados, em um movimento tipicamente caracterizado de
genocídio, enquanto forma de assassinato praticado pelo estado ou

390
autoridade contra um determinado grupo ou etnia que não se
adequava às exigências da civilidade “boa”. (ZAMORA, 2008). No caso
dos americanos, estes se caracterizam por uma pseudo-europeização,
pois legam a língua e a cultura europeia, agregando os elementos
nativos e africanos mesmo que estes não sejam aceitos formalmente.
Nessa direção, podemos considerar que a formação educacional
latino-americana possui algum vínculo com o colonizador, uma boa
educação é feita no velho continente, “[...] os jovens ameríndios
devem deixar o seu ‘mundo’ para serem educados com a base nos
fundamentos da cultura europeia, conforme o sistema da
Cristandade”. (BOUFLEUER, 1991, p. 79).
Dentro do contexto mundial, após 1929, surge um nacionalismo
popular nos países latinos, que reflete no Brasil com o surgimento da
Escola Nova, nesta, há um manifesto contra o domínio e exploração,
citamos ainda outro movimento significativo, o dos anos 60,
especialmente quando a juventude se manifestou contra o
consumismo multinacional, expresso pedagogicamente com o
advento de reação ao capitalismo a partir dos movimentos
reacionários. É nesse período que surge a questão da libertação, que
se impõe como possibilidade outra de tensionar a globalização e a
educação escolar. É esta questão que será abordada doravante.

A POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA DE LIBERTAÇÃO EM ÉPOCAS DE


GLOBALIZAÇÃO

O surgimento de um movimento da libertação na América Latina,


que se desenvolveu em várias frentes, envolvendo a filosofia, teologia
e pedagogia, tinha como objetivo libertar o latino-americano de sua
histórica de situação de opressão e adequação. Um pensamento que
emerge a partir do Outro – enquanto completamente outro – um olhar
do diferente que é o índio dizimando, o escravo coisificado, a mulher
como objeto sexual, a criança menosprezada. A identidade de ser
latino-americano passou a ser vista como um ser humano de segunda
categoria, que pretendia também ser “[...] o porta-voz dos gritos por
libertação de todos os povos oprimidos” (BOUFLEUER, 1991, p. 56).
Dentre pensadores que abordam esta temática destacamos as
contribuições de Enrique Dussel.

391
Enrique Dussel, ao retornar para Argentina em 1969, nota uma
situação em que o Outro é continuamente oprimido, para ele: “[...] a
experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o
‘fato’ opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem
‘senhores’ e outros sujeitos [...]” (DUSSEL, 1995, p. 18). Este fenômeno
do Outro enquanto oprimido é o que despertou a necessidade de se
pensar em modos e maneira de se libertar este Outro, que passa a ser
considerada como uma libertação do pobre.
Para Dussel, a capacidade de perceber o fato da opressão é o
despertar de uma filosofia da libertação. Sem a capacidade de
indignação e inquietação frente a uma realidade que se apresenta
como injusta, bárbara, inconveniente e desumana, não há como e nem
motivos para se pensar em libertação. A filosofia da libertação, que
parte do oprimido e da realidade desumana, é a única que não tem
privilégio nenhum para defender, pois, segundo Dussel, “A inteligência
filosófica nunca é tão verídica, límpida, tão precisa como quando parte
da opressão, e não tem privilégio nenhum para defender, porque não
tem nenhum” (DUSSEL, 1977, p. 10-11). Trata-se, portanto, de um
movimento em oposição a modernidade europeia que havia se
instalada e instaurada no mundo: “Nós estávamos conscientes de que
éramos ‘a outra face’ da Modernidade” (DUSSEL, 1995, p. 47).
Em meados do século XX, a América Latina estava em pleno efeito
do macarthismo, com o caso Cuba, todo movimento intelectual que
defendesse o oprimido era ideologicamente, na Guerra Fria,
considerado comunista, não foi diferente ocorreu com o movimento
libertador. Em períodos binários, tecer qualquer crítica a um certo
sistema, insere o sujeito na condição de oposição, exatamente o que
aconteceu (e continua acontecendo) com a questão da libertação do
oprimido e com a necessidade de se compreender o tempo presente,
isto é, fazer o movimento de compreensão e, geralmente, de crítica,
enquadra o sujeito à oposição e não como alguém que pode,
excepcionalmente, aperfeiçoar as relações humanas.
A partir desse contexto, indagamos sobre o que constitui fazer
uma experiência inicial contra a opressão e as condições
desumanas/injustas? De onde emerge essa questão da libertação?
Afirmamos, previamente, que ambas as questões aparecem na
perspectiva hermenêutica da experiência dusseliana. A experiência
inicial que aqui assumimos, deve produzir efeitos de provocar, no

392
sujeito, alterações e transformações. Para alcançar este desígnio nos
aproximaremos da palavra experiência, que deve resistir à definição ou
conceituação da experiência, e simplesmente fazer soar a palavra
experiência, para que “possa causar certo ‘desassossego’, e disso dizer
mais outra coisa, para além do que diz, uma causa, uma abertura para
o real” (LARROSA, 2016, p. 43). Uma experiência, que segundo
Larrosa, deve fugir aos padrões de experiência, causar desassossego,
fugir da normalidade.
Neste marco, tenho a impressão de que a palavras experiência ou,
melhor ainda, o par experiência/sentido, permita pensar a educação a
partir de outro ponto de vista, de outras maneira. Nem melhor, nem
pior, de outra maneira. Talvez chamando a atenção sobre aspectos
que outras palavras não permitem pensar, não permitem dizer, não
permitem ver. Talvez configurando outras gramáticas e outros
esquemas de pensamento. Talvez produzindo outros efeitos de
verdade e outros efeitos de sentido (LARROSA, 2016, p. 38).
Manter a experiência num nível de estranhamento provoca a
abertura, a emersão de uma nova perspectiva de realidade, que tem
um efeito inovador no sujeito em formação. Em todos casos, iremos
nos deter a este aspecto formativo da experiência, principalmente no
modo de o estudante se constituir a partir de sua experiência. Para
Larrosa, quase nenhuma experiência nos acontece, o que há é uma
“destruição da experiência”, quase ninguém faz experiência, ninguém
se aventura a algo novo, falamos de lugares, de instituições e de
discursos padronizados, não se “ex-põe”: “É incapaz de experiência
aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada
lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre” (LARROSA, 2016, p. 26). Por isso,
para Larrosa (2009, p. 14, tradução nossa), “[...] a experiência é ‘isso
que me passa’. Não aquilo que passa, mas ‘isso que me passa’”.
Nessa direção, a experiência tem a ver, etimologicamente, com
um “caminho perigoso”, caminho que nos tira do lugar e nos expõe.
Exatamente o que para Dussel tem a ver com a experiência inicial, isto
é, envolver o Outro tratado como completamente Outro, como pobre,
é uma experiência inicial de todo o latino-americano. Este pobre é o
oprimido: “O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída a sua carne
sofredora”, que não consegue simplesmente manifestar a sua
opressão, através de uma luta consciente para a libertação, “eles

393
simplesmente gritam” (DUSSEL, 1995, p. 19). Muitas destas situações
estão completamente aniquiladas na história “sem deixar rastro e nem
eco delas” (ZAMORA, 2008, p. 22).
Esta experiência inicial, o thaumazein da filosofia da libertação é a
capacidade da experiência do Outro, do pobre, do excluído, da mulher,
do índio, do escravo e de tantos outros:
A origem radical de tudo não é, aqui, afirmação de si (do eu
próprio); para isso é preciso poder refletir, aceitar-se como valor,
descobrir-se como pessoa. Achamo-nos bem antes de tudo isso.
Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe
que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito – enquanto ruído,
rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de
acordo com seu sentido apenas por quem ‘tem ouvidos para ouvir’ –
indica simplesmente que alguém está sofrendo e que no íntimo de sua
dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica (DUSSEL, 1995, p. 19).
A presença do Outro, que não se entende, que não reflete sobre
a sua situação, mas que, constantemente sofre, precisa receber a
origem radical da experiência que assombra, que exige do sujeito uma
mudança de postura, que faz emergir a consciência ética, consciência
que está aliada ao compromisso da e com a libertação. É um grito que
precisa ecoar de forma responsável. A possibilidade de ter ouvidos
para ouvir, necessita do sujeito uma possiblidade de fazer a
experiência intencionalmente, uma abertura ao Outro, um deixar se
afetar pelo Outro. Esta sensibilidade pelo Outro exige consciência
ética, que acolhe o sofrimento do Outro e responde com
responsabilidade ao Outro. O “ouvinte responsável” surge quando na
experiência “tiver sentido o impacto da súplica do Outro”. (DUSSEL,
1995, p. 19). O grito do Outro sentido como súplica é anterior à
reflexão. A experiência originária da filosofia da libertação está no
Outro pobre que comove. O Outro é anterior a constituição do eu.
Num mundo de economia de mercado globalizado, o Outro é o
pobre, o que “tem fome”, aquele que precisa, antes de tudo, ser
alimentado. Porém, todos os grupos de “outros” que impedem o
curso da história do progresso e do desenvolvimento acabam por
serem alvo de aniquilação. Em primeiro plano, é preciso reconfigurar a
nossa situação de latino-americanos no processo de modernização,
que se configura no processo de globalização. A globalização tem
algumas características pertinentes no que significa pensar o Outro e

394
se comprometer como este Outro, principalmente porque o processo
mundial é a globalização que substitui a ideia de imperialismo, o
tradicional conceito de dependência parece ocultar-se dentro de uma
nova configuração e, em vez dele se tornar incapaz de expressar a
relação na globalização, ele se torna um conceito onipotente. Perde o
sentido, por isso, falar em exploração, opressão, classe social,
burguesia ou colonialismo frente a neutralidade do mundo
globalizado. Para Rosenmann, “[...] o conceito de globalização
pressupõe uma realidade neutra, uma fase ou estágio da evolução da
ordem mundial na qual estão imersos de igual forma países
dominantes e países dependentes” (ROSENMANN, 2008, p. 131,
tradução nossa).
A “globalização expressa uma nova realidade”, que segundo
Rosenmann (2008), é um conceito neutro de valores, mas que encobre
uma certa ideologia. Este processo de “desideologização” ou
“despolitização” do processo de globalização faz normalizar o
processo de concentração e centralização do capital em escala
transnacional. Não obstante, tem como ponto forte o progresso
científico induzido e expandido pela revolução tecnológica, a
incorporação de técnicas despolitizadas no processo de produção.
Sob esta visão tecnocrática, se aduz a necessidade de acelerar as
mudanças de maneira que favoreçam uma eficiente inserção global e
evita o atraso que fazia perder a oportunidade para localizar
estrategicamente em um grupo de países capazes de subir ao trem do
progresso, manifestado na robótica, na informática, na inteligência
artificial, na transformação do mercado de trabalho, na produção e no
capital (ROSENMANN, 2008, p. 132, tradução nossa)
A marcha do progresso parece que torna impossível se opor a
este fenômeno espontâneo da globalização, em que países periféricos
possam se tornar países desenvolvidos, o que se impõe é que basta
participar e seguir as normas do progresso. As políticas
governamentais de educação se justificam na perspectiva de inserção
aos modelos de desenvolvimento, ou seja, “[...] se queres estar entre
os melhores, basta modificar e aceitar os critérios que impõe a
globalização” (ROSENMANN, 2008, p. 132, tradução nossa). Segundo
Rosenmann, a ideologia da globalização neutra esbarra numa adesão
radical, e assim, “qualquer crítica tendente a mostrar défices não

395
contemplados na globalização é rejeitada em prol de um mundo feliz”
(ROSENMANN, 2008, p. 134, tradução nossa).
Nessa direção, quem é o Outro no mundo globalizado e tão
competitivo? Quem é o Outro que permite fazer uma experiência inicial
da libertação? Quem é o Outro que exige de mim e do Outro um olhar,
um ouvido responsável, que afeta a minha própria felicidade? Quem é
o Outro, estudante e jovem na América Latina? E qual é a experiência
inicial que não comprometa a satisfação de um “mundo feliz”? Estas e
outras questões pretendem dar luz à experiência inicial de libertação a
partir do Outro, que exigem de mim e, também, do Outro, uma
comoção que afeta e compromete a presença do Outro com o mínimo
de consciência ética possível para uma vida coletiva, na busca de
vivermos juntos. Trata-se da possibilidade da alteridade, de um Outro
permanente (BAUMAN, 1996), um Outro que não é apagado e
excluído, pois, “o desaparecimento da alteridade significa que vivemos
numa época pobre de negatividades” (HAN, 2017, p. 14).
A desideologização e despolitização são os primeiros efeitos de
que o Outro não é mais um compromisso político e social necessário e
exigente, mas somente na medida em que faz parte de meu mundo.
Angariado pela despersonificação do Outro e pelos meios de
comunicação, o Outro passou a ser uma conta virtual, um perfil, uma
curtida, um like, uma selfie, há alguns Outros que comovem quando
este Outro entra em meu mundo, por alguma relação casual ou de
interesse, mas que tende, devido a mobilidade da vida, a desaparecer
nos excessos de informação, nas demandas do cotidiano, nos não likes
recebidos.
A tecnocracia exige uma gama protocolar muito grande, uma
gama de sujeitos que precisam cumprir tarefas para se adaptar às
condições da economia de mercado. Há alguns outros que aparecem
vezes ou outras, em relações afetivas, em relações de trabalho, como
clientes, como terapeutas, como professores, mas normalmente não
permitem o comprometimento constitutivo. Num mundo globalizado,
de informações em massa, temos poucas experiências significativas, e
em alguns momentos temos lampejos de libertação, de
comprometimento com o Outro. O Outro pelo qual nos
comprometemos é o Outro que compartilha de algum interesse em
comum, de algum objetivo compartilhado.

396
A ausência de uma pólis faz com que não haja mais compromisso
em comum em um mundo globalizado, é cada um para si e por si. A
ausência de uma consciência ética geral impede de me comprometer
com a causa do Outro, enquanto infinitamente Outro. Trata-se da
ausência e inexistência de uma ética da responsabilidade, como nos
lembra Hans Jonas (2006). A experiência de libertação é uma
experiência dolorida, que na maioria das vezes ameaça o “mundo
feliz”, a positividade, ou na melhor das hipóteses, ameaça uma vida
feliz reduzida ao “eu” e não ao “nós”.
Experienciar os movimentos sociais, a questão ecológica, os
direitos humanos e dos animais dentro de um mundo globalizado,
exploratório e competitivo, que tem um efeito devastador sobre o
sujeito, e acaba se recolhendo e retraindo no seu mundo para tornar a
sua experiência inicial libertadora possível. A fragilidade e
dramaticidade da condição humana em um mundo globalizado se
atenua, e caso não haja um exercício constante e formativo de acordo
com suas limitações, faz jogar a criança fora com a água do banho. A
questão que se coloca é saber se o professor consegue fazer esta ou
alguma experiência pedagógica de libertação na prática educativa
contemporânea.

A PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

A experiência inicial da libertação ocorre em Paulo Freire,


especialmente, em sua sui generis experiência enquanto advogado, em
que não conseguira executar uma dívida de um jovem dentista, fato
retratado na obra Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a
Pedagogia do Oprimido (1992), que vem acompanhada pela convivência
com os oprimidos: “seus corpos de oprimidos, hospedeiros, sem ter sido
consultados, dos opressores” (FREIRE, 1992, p. 19).
Essa sensibilidade de compreender o Outro – o completamente
Outro –, faz com que Dussel nos aconselhe de ter a experiência inicial
de libertação, na educação escolar isso se traduz no diálogo com o
oprimido. Segundo Freire, não se trata mais de falar sobre, mas “com
participantes” (FREIRE, 1992, p. 24), esta aproximação da linguagem
do Outro é o esforço do educador, o papel de contribuir na
emancipação do oprimido, que epistemologicamente exige uma
mudança radical: “eu ainda quase sempre partia de meu mundo, sem

397
explicação, como se ele devesse ser o ‘sul’ que os orientasse” (FREIRE,
1992, p. 24).
O esforço de compreender o mundo do Outro é o problema
nuclear da educação escolar enquanto prática da libertação, e quase
continuamente muito sofrido para o educador, uma vez que exige a
transformação de compreender o mundo do outro, para a partir dele
propor a libertação com a leitura de mundo do educador (FREIRE,
1992). Este esforço epistemológico de compreender o mundo do outro
é também uma ruptura existencial que requer uma libertação mútua
do educador e educando. A capacidade do educador de se colocar no
mundo do outro, partir do mundo do outro numa linguagem do Outro
é o grande desafio pedagógico da libertação: “Trata-se de uma
revolução copernicana em pedagogia, que ainda está longe de ser
compreendida5” (DUSSEL, 2000, p. 436).
Nossa indagação inicial chega agora a vias de fato, uma vez que a
experiência inicial da filosofia da libertação se encontra afetada pela
globalização, que possui neutralidade ideológica, mediada pela
tecnologia de informação e uma tecnocracia, que torna os
gerenciamentos institucionais mediados pela tecnologia, fazendo
aparecer as marchas do desenvolvimento e do progresso. Não temos
mais uma contraposição política depois da queda do muro de Berlim,
sendo assim, não faz sentido em opor o capitalismo por uma via
socialista ou crítica ao capitalismo.
Tomando todos estes aspectos em consideração, achamos,
todavia, que problemas aparentemente anacrônicos, ‘fora da moda’,
‘superados’ para a Europa, Estados Unidos ou Japão, não o são tanto
para as vítimas no mundo periférico, na África, Ásia, América Latina ou
na Europa do Leste; para os homeless [sem-teto], marginalizados e
empobrecidos dos países centrais; para ecologistas e feministas
(DUSSEL, 2000, p. 501).
Assim sendo, parece não fazer mais sentido, na educação escolar,
falar em pedagogia da libertação no seu sentido de alteridade,
humanidade e mundanidade, conforme proposto por Dussel e Freire.

5 Importa dizer que essa incompreensão é muito atual, presente, inclusive, nos
discursos do Presidente Jair Messias Bolsonaro, este considera a perspectiva de
compreender o mundo do Outro e mostrar ao aluno como “o mundo é”, que no fundo,
se trataria de uma ideologização e politização do outro por parte do professor, que é
considerado como doutrinador.

398
Em um país que se caracteriza pela desideologização/despolitização,
nada mais “natural” do que tratar da escola como um espaço neutro
politicamente, de uma educação que seja baseada em tecnologias de
informação e das inúmeras maneiras de “inovação” e “renovação” e,
consequentemente, que desenvolva certas competências e
habilidades nos educandos. Tudo na perspectiva da funcionalidade,
mas jamais levando-se em consideração uma reflexão de cunho
filosófico. Nessa direção, como poderíamos definir uma experiência
pedagógica de libertação nesses tempos de globalização,
competitividade e exclusão a partir da América Latina?
A primeira hipótese é conseguir, epistemologicamente,
compreender a globalização como um projeto inacabado da
Modernidade, retornando aos temas “fora de moda”, e retornar a
temas como os de emancipação, a partir da compreensão do Outro,
inspirados na negatividade, na alteridade, no sofrimento e na
experiência inicial. Em termos de escola, deve-se retornar aos temas
de opressão, exclusão, injustiça, barbárie e adequação, no intuito de
se resgatar a compreensão de colonizados/colonização, em síntese,
trata-se de apresentar o legado histórico e culturalmente produzido
pela humanidade, a fim de que Auschwitz não se repita. Além disso,
esse argumento nostálgico, também retorna pelas vias ecológicas e
também na e pela educação ambiental, que urge sempre com a
politização e parece ser condizente com uma afronta ao
desenvolvimento, ao progresso e a uma vida supostamente feliz,
resultando e causando, por isso, algum tipo de sofrimento voluntário.
A segunda alternativa é manter em suspenção o discurso
totalizante, o sentido ético último da educação, e aderir a tese do fazer
o que dá para fazer. De uma forma mais circunscrita, significa não
tentar transformar o sistema educacional como um todo, mas fazer
pequenos ajustes a partir do que já está posto. Esse tipo de ação não
compromete o sujeito como um todo, mas apenas em uma
determinada região da realidade, que representa uma visão pós-
moderna e, infelizmente, aceita em nossas contradições atuais.
A globalização, a dificuldade do discurso totalizante e o
desenvolvimento tecnológico com vistas ao progresso e à satisfação
de necessidade imediatas (reais ou inventadas), impediram o
movimento de uma experiência inicial da libertação, do mesmo modo
na educação escolar, a necessidade de adaptar a carga horária às

399
condições de trabalho, a exigência curricular, mesclada com a
necessidade de adaptação tecnológica6 por parte do educador, parece
ocultar nas demandas diárias a possibilidade do aparecimento do
Outro na sala de aula. O Outro, o analfabeto, o excluído
socialmente/historicamente, é somente mais um, no movimento voraz
e supérfluo do progresso e das exigências do capital.
“Sempre teremos que ter pessoas para limpar o chão” dizem os
educadores, “a escola não me ajuda na minha tarefa de empacotador”
diz o educando, a escola deveria “preparar para o trabalho, meu filho
deveria sair com uma profissão” diz um pai. E assim, o cenário
pedagógico impede de fazer qualquer experiência inicial de libertação,
reduzindo a explicação do mesmo, a mesmidade. O Outro enquanto
pobre, encontra no professor um sujeito similar que não consegue
superar as demandas de seu dia, o professor deixa de ser professor e
passa a gerenciar aulas, passa conteúdo sem significado e sentido
algum, muitas vezes, inclusive, a disciplina e/ou conteúdo não fazem
nem sentido para o próprio professor, imagina então para o aluno.
Para Rosset (1993, p. 66),

Se a escola é feita para ensinar, então é necessário que ela ensine alguma coisa
[...]. A pedagogia acabou por suplantar a própria instrução. Temos hoje docentes
que não sabem nada, mas possuem uma misteriosa ciência da educação,
verdadeira mitologia dos tempos modernos. Resultado: desde há uma dezena
de anos vemos chegar ao ensino superior estudantes analfabetos.

É fundamental, portanto, que o professor tenha motivos que


justifiquem o porquê de sua disciplina estar presente no currículo
escolar, e o que pode, a partir dela, ser significativo para o pensamento
e a vida dos estudantes, indiferente de seus antecedentes. Se isso não
estiver claro para o professor, é melhor que arrume outra ocupação.
Encontramo-nos, nesse sentido, no mais profundo âmago da
educação bancária, depositários não somente de conteúdo, mas de

6 Referimo-nos aos discursos contemporâneos que exigem do professor a utilização


dos mais diferentes recursos tecnológicos, a fim de tornar as aulas mais “atrativas” e
“prazerosas”. Contudo, trata-se de uma exigência que ignora os pressupostos de
formação integral do sujeito, ignorando, muitas vezes, aquilo que pode vir a fazer
diferença na vida dos alunos, a saber, o conhecimento. Em síntese, o foco está nos
métodos de aprendizagem e não naquilo que deveria ser ensinado às novas gerações,
não raras vezes o professor está apenas a um passo na frente de seus alunos no que
se refere ao conhecimento da disciplina.

400
um treinamento avançado de competências e habilidades, sempre
com o intuito de facilitar o processo, de torná-lo mais prazeroso e
flexível, na contramão da exigência, do esforço, da determinação, do
estudo demorado etc., justamente o que é a especificidade da
instituição escolar. Por isso mesmo, trata-se de uma educação que
encobre o Outro e a sua alteridade, que o reconhece como o mesmo,
na sua mesmidade. Nessa direção, a pergunta de Skliar (2003, p. 29):
“E se o outro não estivesse aí?”, faz todo sentido para o processo
educativo, pois sem o outro não seríamos nada, nem precisaríamos de
escolas.

Se o outro não estivesse aí, só ficaria a vacuidade e a opacidade de nós


mesmos, a nossa pura miséria, a própria selvageria que nem ao menos é
exótica. Porque o outro já não está aí, senão aqui e em todas as partes;
inclusive onde nossa pétrea mesmidade não alcança ver (SKLIAR, 2003,
p. 29).

Não obstante, as reformas, inovações e mudanças que se impõem


à educação, principalmente no contexto brasileiro, parecem ignorar
que há um outro aí, um outro que necessita de uma educação de
qualidade, de professores de qualidade, de estruturas de qualidades,
de condições iguais, enfim, de uma educação que esteja atenta ao
Outro, atenta à experiência da educação de criar e recriar os conceitos
e as próprias relações humanas, na abertura responsável, plural, ética,
respeitosa e digna. Para Schütz e Moura (2017, p. 50),

[...] as mudanças educativas nos pensam agora como uma reforma do


mesmo, como uma reforma para nós mesmos. Elas nos olham agora
como esse rosto que vai despedaçando-se de tanta maquiagem sobre
maquiagem. As mudanças têm sido, então, a burocratização do Outro,
sua inclusão curricular, seu dia no calendário, seu folclore, seu exotismo.

Necessitamos de uma educação que escuta o chamado do Outro


e se preocupa em constituir e construir um mundo humano comum.
Que possamos lembrar da tarefa educativa: cuidar de um mundo que
não dispensa e nem exclui o(s) Outro(s), mas que depende dele(s),
motivo este que leva à afirmação de que este mundo é,
eminentemente, Humano!

401
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente esbaramos com o problema histórico da América


Latina e a impetuosidade do discurso da modernização e os efeitos
constitutivos do mundo eurocêntrico. O efeito colonizador nas
consciências, no pensamento, na língua e na religião dos povos, e um
multifacetado e anacrônico espaço de exclusão e opressão, que em
muitos casos constituiu-se e se constitui em genocídios étnicos e
genocídios, e agora em aniquilação de muitas formas de vidas diversas.
Num segundo momento, dialogamos com a experiência inicial da
filosofia da libertação, que causa o insight do Outro enquanto Outro
pobre latino-americano, a partir das teorizações de Enrique Dussel. O
que na década de setenta parece um discurso libertador semelha ter
perdido seu viés ideológico, pois a globalização acaba por sugar o
discurso da modernidade, configurando-o que parece não ter sentido
falar em oprimido, em excluído, em colonizador e educação bancária,
pois a globalização afeta todos os países e povos do mundo. Esta
aparente neutralidade da globalização tem afetado o sistema de
ensino formal, principalmente, em movimentos no Brasil, como: Escola
sem Partido e Reforma do Ensino Médio, em que as competências e
habilidades devem adequar o sujeito às exigências do mercado de
trabalho, ignorando aquilo que compreende ser uma formação
integral, e passando a consolidar os processos educativos à lógica do
capital e a atuação dinâmica do mercado, já que um sujeito com visão
reduzida e parcial, é mais fácil de ser manipulado, explorado e,
inclusive, excluído.
Ademais, pela tecnologia temos ampliado o nosso mundo, temos
acesso as mais diversas informações, basta um clique. Aquilo que
parece nos impor uma lógica inexorável, que parece ir contra este
desenvolvimento consiste em ir contra o mundo feliz e momentâneo.
Porém, o calcanhar de Aquiles das questões ambientais volta e meia
afere as nossas vidas, mas que devido a fluidez das experiências, passa
despercebido assim como as inúmeras pseudo-experiências iniciais de
libertação, - do tipo passa para a próxima.
O professor, dentro desta lógica global, desideologizante,
tecnocrática e mercantil, também não faz a experiência pedagógica da
libertação, muitos diários, muitos alunos, muitas horas, muito e pouco
tempo, tudo isso, não está condizente com a experiência do Outro. A

402
inclusão é vista como privilégio de poucos e restrita a problemas
físicos, e no mar de estudantes, muitos são os excluídos, se não o são
na escola serão no mercado de trabalho. E nesta lógica perversa,
solidificamos discursos fortes, e numa autopiedade não há espaço
para o Outro enquanto Outro, somente para um eu que necessita do
Outro, para se reafirma como eu, infelizmente! Finalmente,
gostaríamos de ressaltar que o objetivo de abordar a educação escolar
e a presença do Outro, permanece ainda um caminho aberto a ser
percorrido, por mim, você, nós, o Outro e tantos outros.

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404

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