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Malditos vs marginais?

Michel riaudel

resumo: no jornal O Beijo (rio de Janeiro, 1977), ana cristina cesar publicava um texto chama-
do “Malditos marginais hereges”. nele, a poetisa reagia a uma coletânea de contos organizada
por João antônio, lançada no mesmo ano, e reunidos sob o título Malditos escritores!. nossa
proposta é examinar os termos desta polêmica levando em conta o contexto (ditadura, poesia
marginal…) e repensar as categorias de maldito e/ou marginal aplicadas no âmbito da cultura
e da literatura.
palavras-chave: ana cristina cesar; João antônio; poesia marginal; contracultura

Résumé: Dans le journal o Beijo (Rio de Janeiro, 1977), Ana Cristina Cesar a publié un texte intitu-
lé “Maudits marginaux hérétiques”. Elle y réagissait à la publication de nouvelles réunies par João
Antônio et parues cette même année sous le titre Maudits écrivains!. Notre intention est d’examiner
les termes de cette polémique, en tenant compte de son contexte (dictature, essor de la poésie mar-
ginale...), et d’éprouver ces catégories de maudits ou de marginaux pour penser le lieu de la culture
et de la littérature en particulier.

Abstract: In the newspaper “O Beijo” (“The Kiss” -- Rio de Janeiro, 1977), Ana Cristina Cesar
published a text titled “Malditos marginais hereges” (Damned heretical marginals.) In it, the
poet reacted to a collection of stories organized by João Antonio, released in that same year
under the title “Damned writers.” Our proposition is to examine the terms of that argument,
taking into account the context (dictatorship, marginal poetry...), and to rethink the categories
of damned and/or marginal, applied to the scope of culture and literature.
Keywords: Ana Cristina Cesar; João Antônio; marginal poetry; counterculture
Em março de 1977, o número 4 da revista de São Paulo Extra publicou um dossiê orga-
nizado por João Antônio e intitulado “Malditos escritores”. Reunia nove contos inéditos
de nove autores diferentes: Chico Buarque, Antônio Torres, Wander Piroli, Marcos Rey,
Márcio Souza, Aguinaldo Silva, Tânia Faillace, Plínio Marcos e o próprio João Antônio.
A capa estampava os nove retratos 3x4, e mais uma décima foto exibindo o ilus-
trador Elifas Andreato, muito solicitado na época, todos com indicação de data no
canto inferior do busto como se tivessem sido fichados pela polícia. O que em con-
texto de ditadura sugeria muito da coragem desses escritores, desafiando a censura e
a repressão.
O recado era reforçado pelo forte contraste em preto e branco, sem nuances pos-
síveis, em que se destacam as letras garrafais do título: “malditos escritores”, com ponto
de exclamação. Um texto na coluna direita deixava mais clara ainda a provocação:

Eles não se emendam: sempre falando no miserê geral, no desemprego e no emprego da


força; no feijão, na carne dos amantes, futebol, homossexualismo, cadeia; sempre falando
no coração, fígado e intestinos da realidade brasileira. Raça maldita.

Eles, quem? Os selecionados da antologia. Mas então quem está falando? Quem seria
esta primeira pessoa, qualificando e decretando todos eles malditos? Os responsáveis da
revista Extra? Deixemos por enquanto a pergunta sem resposta definitiva, em suspenso.
Na contracapa, umas palavras de João Antônio desenvolviam a chamada, opon-
do de um lado o mundo dos doutores, da cartolagem, dos sabidos, e de outro o exército
dos humilhados, explorados, oprimidos, discriminados lá de baixo, prostitutas, men-
digos, policiais, praças… “cujos gritos não chegam ao conhecimento geral e a conhe-
cimento nenhum”. Essas frases, por sua vez, são apenas a conclusão do texto maior de
apresentação, texto-manifesto, “O buraco é mais embaixo”, que se abre com a constata-
ção de que “O povo parece haver tomado chá de sumiço das letras nacionais”.

[…] por isso mesmo, aqui se tentou – sem aflições estéticas ou existenciais, sem dar
bandeiras ou distribuir mesuras à crítica elitista – levantar um conjunto de trabalhos
que ao menos tentasse, com alguma limpeza e objetividade, refletir e repensar realidades
brasileiras em um leque geográfico variado, a expor em nível acessível um punhado de
histórias das classes subalternas.

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a narrativa, diz ainda o prefácio, “evitou o toque beletrístico”, se comprometeu “com a
coisa claramente popular”, tendendo a se identificar com o objeto retratado: uma litera-
tura “antropológica”, de uma antropologia participativa em que o observando se parece
e é solidário do observado. Nesta recusa do “estético por si só”, cometem-se “quase
todas as heresias diante de alguns conceitos tradicionais do purismo do fazer literário”.
Trata-se de um “corpo-a-corpo com a vida”, de uma “literatura fedida”, adequada ao
“mundo fedido” dos humildes.
Mas a chamada da capa só passa a adquirir pleno sentido quando se lê a epígrafe
de Castro Alves, na folha de rosto:

Ó bendito o que semeia


livros, livros à mancheia,
e faz o povo pensar.
O livro, caído n’alma
é germe que faz a palma,
é gota que faz o mar.

São versos extraídos do último volume publicado pelo poeta baiano enquanto
vivo, Espumas flutuantes, em 1870, isto é, um ano antes de sua morte. “O livro e a
América”, aliás o texto de abertura da coletânea, ressalta a importância da literatura e
da leitura para a formação do povo (para não dizer do cidadão) americano.
Oito meses depois do lançamento desse número da Extra, já em novembro de
1977, a primeira edição do jornal carioca O Beijo publica, em reação, um ensaio assina-
do por Ana Cristina Cesar: “Malditos marginais hereges”.1 Seguindo o procedimento
da parataxe do título, justapondo três categorias de gente que está de mal com as leis
sociais, a poetisa aponta as diversas discrepâncias do discurso maldito. Uma das pri-
meiras contradições denuncia a estratégia comercial:

Os adjetivos de maldição e marginalidade, os retratinhos e as feias broncas não foram às


bancas para atrair repressão. Mas para embalar ideologicamente o produto a ser vendido.
[… A embalagem] acondiciona e garante a circulação do produto, a sua receptividade

1. In: Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio, Armando Freitas Filho (Org.). São Paulo: Brasiliense;
Rio de Janeiro: ufrj, 1993, pp. 109-119.

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numa fatia do mercado. A embalagem altera e integra o significado da produção. Fica
montada, antes mesmo da leitura, uma cumplicidade especial com certo leitor, com base
na heroização dos escritores e no aproveitamento de uma atual simpatia automática – ou
desesperada – por qualquer que “proteste”. Simpatia por qualquer produto “perseguido”
– mesmo que este venda 25 mil exemplares com espantosa rapidez.2

Estaríamos diante da tradição de certa linha de manifestos, polêmica, retórica e escanda-


losa, arguindo da posição do fraco contra o forte em tom convencionalmente agressivo e
paranoico, construindo e encenando uma situação de vítima, valendo-se das perseguições
dos outros para atrair para seu próprio caso a piedade do leitor. Ana Cristina mobiliza o
vocabulário do marketing para reforçar a demonstração (produto, mercado, embalagem,
as cifras de venda, a popularidade dos pontos de divulgação: a banca…), mas insiste
sobretudo em duas outras vertentes da contradição: o verdadeiro estatuto do escritor em
jogo, a concepção do leitor, ambos tendo como sustento ideológico a estética mimética.
Na contraposição do “malditos” da capa e do “bendito” do verso de Castro Alves,
aparece com mais nitidez a lógica do discurso: “Eles” são tidos por malditos pelos domi-
nantes, quando são na verdade os “benditos”. Sendo que o “eu” enunciando este “eles”
explícito, indiciado, é ventríloquo. Decorre de discurso forjado pelos organizadores da
antologia e atribuído a outros “eles” implícitos, os donos do poder, no intuito de estabe-
lecer uma cumplicidade entre a segunda pessoa, o leitor, e o eu, autor, assim reunidos
para constituir uma nova categoria de “nós”, juntos na resistência e no protesto. A pri-
meira pessoa (velada) da capa falava em nome da ideologia, dos potentes, supostamente
ameaçados por esta literatura “participativa”. Aliás, como concluía João Antônio,

Literatura? Mas, minha querida senhora, a literatura não existe. O que há é a vida, de
que a política e arte participam.

Bem se sabe que não há argumento racional capaz de desmontar a retórica da paranoia,
pois esse sempre seria suscetível de ser considerado como uma prova a mais da efetivi-
dade da perseguição. No entanto, Ana Cristina Cesar avança dois elementos sustentan-
do sua crítica. O primeiro deles é a dupla qualificação do escritor, na Extra, ao mesmo
tempo assimilado ao povo, sofrendo da exploração, dividindo com ele o “miserê”, e pai

2. Id., pp. 112-113.

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do povo, com seus livros fazendo-o pensar. Notemos en passant a reescrita do verso de
Castro Alves, no original: “Oh! Bendito o que semeia/ Livros… livros à mão cheia…/ E
manda o povo pensar!”. Percebe-se um deslize significativo no lapso da citação, já que no
verso de Castro Alves o poeta incentiva e/ou ordena, mas não se substitui ao exercício
do pensamento, enquanto na epígrafe da Extra, ao fazer pensar o povo, o poeta ou o
escritor acaba pensando no lugar dele. Mas, no fundo, o que importa é que assim o autor
se vê incumbido de uma tarefa, tornando-se um missionário, um semeador, a plantar os
germes da emancipação no campo virgem, quando não alienado, da consciência popular.
A crítica de Ana Cristina Cesar faz-se então mais explícita:

[…] falta consciência de classe ao intelectual, que se acredita mais uma vez porta-voz
dos oprimidos, setor transparente que reflete as imagens e os gritos ocultos dos bangue-
las e desbocados. Essa falta é socialmente favorecida. Historicamente motivada. É bom
que o intelectual desconheça a sua função de controle e de reprodução social, e que não
leve a contestação ao nível concreto da sua prática. Jornalistas, professores, advogados,
cientistas – não fiquemos só nos técnicos e burocratas. A Informação, a Educação, o
Direito, a Ciência, mitos que ainda acalentamos, mesmo se coloridos com a Discórdia.3

reconhecemos o vocabulário foucaultiano pelo qual a poetisa vem condenando a oni-


potência do narrador realista, a prepotência da estética naturalista. Três anos mais tarde,
em Luvas de pelica, segue tematizando essas discussões:

Imagino a onipotência dos fotógrafos escrutinando por trás do visor, invisíveis como
Deus.4

[…] Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve
alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme,
onde foi, com quem foi. É quase indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim,
para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de
neorrealismo, na veia.5

3. Id., pp. 114-115.


4. Cesar, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 96.
5. Id., p. 102.

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[…] Discutimos o veio masoquista com olho bem naturalista.6

a escrita de Ana Cristina Cesar é de fato toda feita de opacidade, reflexos, emaranhando
subjetividades alusivas, elípticas. Ao contrário desse número da Extra, cujo título com-
pleto é Extra Realidade Brasileira, Coleção Livro-Reportagem e que oferece uma escrita
redundante, da insistência, em que os recados são repetidos n vezes. A linha realista
no fundo não está preocupada com a realidade, mas, sim, com a verdade. Essa nuance
aparece claramente na citação de uma entrevista concedida por João Antônio e citada
em “Malditos marginais hereges”:

Os escritores estão muito elitizados, não é? O escritor em geral tem medo de ir pra um
campo de futebol, ir pra geral e tirar a camisa porque tá quente. Se coloca numa posição
de intelectual olhando as coisas por cima. Em geral é muito dono da verdade, não gosta
de andar de ônibus, andar de trem, gosta muito de emprego público, de mecenato…
O escritor brasileiro é um indivíduo que foge de qualquer tipo de realidade que
não seja uma realidade agradável, componente de um bom comportamento; o escritor
brasileiro é um homem que se coloca muito na classe média, e a classe média vive mais
de mentiras, vive de consumos… (João Antônio, em entrevista ao jornal ex).7

ou seja, a realidade “agradável” está associada à mentira. Sendo que o escritor elitizado
vira as costas para a outra realidade, mais verdadeira (ou, melhor dizendo, a única a
ser verdadeira), desconfortável, do campo de futebol, do ônibus, do trem… E mesmo
assim ele é “dono da verdade”. A tradução positiva dessa declaração de João Antônio
leva o escritor a imergir na vida desagradável do povo, na prática, na linguagem, para
revelar a legítima realidade. Ele é quem faz desabar as miragens de classe, as ilusões,
para finalmente expor em palavras cruas e incômodas, sem disfarce, sem “-ismo”, sem
estética, a verdade. Sua relação com o real é bem diferente daquela do pintor da vida
moderna, na leitura de Baudelaire redefinida por Foucault:

[…] na hora em que o mundo todo entra no sono, ele [o pintor moderno] põe-se a tra-
balhar e transfigura-o, transfiguração que não é cancelamento do real, mas jogo difícil

6. Id., p. 106.
7. Escritos no Rio, op. cit., pp. 118-119.

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entre a verdade do real e o exercício da liberdade […]. A modernidade baudelairiana
é um exercício em que a extrema atenção para o real se defronta com a prática de uma
liberdade que ao mesmo tempo respeita esse real e o violenta.8

nas palavras de Michel Foucault, a tarefa do artista não seria apenas dar conta do real,
mas transfigurá-lo, numa operação de “translação” nos vários sentidos que a palavra
translation tem em inglês. Importa ao artista moderno o estupro do real, o exercício
de sua liberdade criativa e histórica. Mesmo não conhecendo esse texto de Foucault,
de alguns anos posterior à nossa polêmica, Ana Cristina Cesar também convida, não
diretamente a mandar pensar (ou fazer pensar) o povo, mas a repensar revolucionaria-
mente o trabalho do intelectual:

O intelectual de esquerda ainda é o sujeito que tem ideias, opiniões, inclinações revolu-
cionárias, mas que não consegue repensar revolucionariamente o próprio trabalho: sua
relação com os meios de produção intelectual, sua técnica, seu poder de dizer.9

nessa perspectiva antipopulista, não se trata apenas de assumir um ponto de vista, de


saber a impossibilidade da objetividade, nem de se entregar meramente a uma autocrítica
implacavelmente solipsista, trata-se da consciência dos limites da literatura. Do lado “mal-
dito”, manifesta-se uma adesão, uma crença (experta ou ingênua – provavelmente mais
ingênua do que experta no caso de João Antônio) nos poderes do autor. À pergunta “O que
pode a literatura?”, o realista maldito responde otimistamente, euforicamente, de forma
interesseira, calculadora ou abnegada, militante, que pode muito ou pode tudo. Vale tudo.
Ana Cristina Cesar tem, pelo contrário, plena lucidez (valeriana) de que os
poderes do autor já estão limitados pelos poderes do leitor, não mais receptor ou con-
sumidor passivo, mas em que reside a última palavra (provisória) do sentido do texto.
Segundo ela, já não é possível achar, assim como Castro Alves ou os benditos malditos,

8. “[…] à l’heure où le monde entier entre en sommeil, il se met, lui [le peintre moderne], au travail, et
il le transfigure. Transfiguration qui n’est pas annulation du réel, mais jeu difficile entre la vérité du réel
et l’exercice de la liberté […]. La modernité baudelairienne est un exercice où l’extrême attention au réel
est confrontée à la pratique d’une liberté qui tout à la fois respecte ce réel et le viole.» Michel Foucault,
“Qu’est-ce que les lumières?”, in: Dits et Écrits ii, Paris: Gallimard, coll. “Quarto”, 2001, p. 1389 [“What is
Enligthenment?”, in: Rabinow (P.), éd., The Foucault Reader. Nova York: Pantheon Books, 1984].
9. Escritos no Rio, op. cit., p. 115. 

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que o intelectual ou o artista pode modelar o cérebro, decidir da conformação e das
orientações do espírito de seu público. Aliás, essa possibilidade nem iria de acordo
com o exercício da democracia, da cidadania. Por isso, o que deve nortear a escrita, a
poesia, é de certa forma uma posição cética, sendo que “A desconfiança não é só um
jogo do contra”.10
Talvez se possa acreditar que ela escreve tendo em mente, na contramão da mal-
dição, a marginalidade então em voga e à qual ela parece ter se filiado. No ano anterior,
no dia 15 de junho de 1976 tinha sido lançada com muita repercussão a antologia orga-
nizada por Heloisa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje,11 da qual Ana Cristina Cesar
fazia parte. O volume consagra o reconhecimento de uma “poesia marginal” nascida
no início da década, na virada de 1971 para 1972, com dois livrinhos autoeditados:
Travessa Bertalha 11, de Charles, e Muito prazer, Ricardo, de Chacal. Na esteira dessa
afirmação de uma nova geração de poetas, em março de 1977, isto é, concomitantemen-
te com a publicação do número da Extra, cogita-se no Rio de Janeiro o lançamento de
um jornal alternativo. Constitui-se então um grupo que passa a se reunir com frequên-
cia, e que Ana Cristina Cesar integra logo no começo do mês de abril. Nas palavras de
outro participante, Marcos Augusto Gonçalves:

O grupo, grande e bastante heterogêneo, tinha em comum o sentimento de inadaptação


à cultura hegemônica de oposição ao regime militar, ainda bastante influenciada pelo
ideário do Partido Comunista, nacionalista, conteudista e populista. Queríamos discu-
tir sexo, feminismo, falar de Foucault, poder criticar abertamente a União Soviética, a
herança cultural do cpc, a estreiteza da militância e a própria imprensa.12

lendo as lembranças de Marcos Augusto Gonçalves, numa Folha Ilustrada de 13 de


dezembro de 1997, tudo constrói a oposição entre o grupo dos realistas malditos, con-
teudista, populista, e o grupo carioca marginal. Enquanto o maldito assumiria uma
posição absoluta, guerreando contra o establishment, profanando a norma elevada a
partir de um lugar antagônico, chulo, baixo, o marginal brincaria num espaço mediano,
de fronteiras indefinidas, nem centro, nem periferia. A margem do caderno, da folha,

10. Id., p. 115.


11. Hollanda, Heloisa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Labor, 1976.
12. Folha Ilustrada, São Paulo, 13 de dezembro de 1997.

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ainda faz parte da página, é um lugar relativo, certamente afastado do centro, mas capaz
de se tornar centro em relação à outra margem. O maldito assumiria seriamente a fun-
ção prometeica de desafiar os deuses e promover os homens, de os igualar aos morado-
res do Olímpio pelo roubo sacrilégio; o marginal parecer-se-ia com o desastrado irmão
Epimeteu, aquele que reflete après-coup, depois de ter agido e provocado catástrofes,
figura cômica e antecipadora do trickster, palhaço que participa dos dois mundos ao
mesmo tempo para melhor subvertê-los no curto-circuito do riso e do deboche.
Mas lendo com mais cuidado a contribuição de Ana Cristina Cesar no Beijo,
nota-se que na realidade ela não opõe marginais a malditos. Pelo contrário, assimila
-os, como o ilustram vários trechos do texto:

Desde a capa, os escritores são adjetivados com garrafal malditos que lhes anuncia o
status marginal (p. 112).

Os adjetivos de maldição e marginalidade (p. 112).

Se é pra fazer literatura “maldita” ou “marginal”, não há que desafiar as normas reais ou
sentimentais dominantes que catalogam os sujeitos merecedores da nossa pena? Ou pelo
menos não disfarçar que também nos rebolamos de piedade por nós mesmos, que somos
outros, e não iguais, em relação à chamada “gente humilde”? (pp. 118-119).

a distância que vai de umas a outras é a distância (não moralizável) da mediação lite-
rária e a distância (indisfarçável, apesar da nossa culpa) entre produtores/leitores de
literatura – Escritores Malditos, Poetas Marginais, Jorge Amado, Beijo, ou o que for – e
as “massas populares” (p. 119).
Em todas essas ocorrências, maldito e marginal equivalem-se. Vale lembrar que
nos meados dos anos 70 o rótulo de poesia marginal não faz então consenso entre os
próprios poetas. Heloísa Buarque de Hollanda, no posfácio que ela inclui na reedição
comemorativa de 26 poetas hoje, em 1998, fala em:

fenômeno que, na época, foi batizado com o nome poesia marginal, sob protestos de
uns e aplausos de outros.13

13. Hollanda, Heloísa Buarque de. Posfácio à reedição de 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeropla-

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alguns recusam o qualificativo, lendo nele um sinal de desprezo, outros o reivindicam
pelo mesmo motivo, assim como Hélio Oiticica adotava como slogan “Seja herói, seja
marginal”. Na verdade, ela saiu do projeto editorial poucas semanas antes do lança-
mento do número 1, em novembro, que publica, contudo, o seu texto sobre ou contra a
orientação do número da Extra. “Esse meu trabalho sobre Malditos Escritores é sobre
um certo engajamento”, escreve ela a Maria Cecília Fonseca em julho deste mesmo ano.14
Engajamento que pode visar, como o vimos, “Escritores Malditos, Poetas Marginais,
Jorge Amado, Beijo, ou o que for”.
Quem frequenta a sua poesia bem sabe que ela é mestre em jogo de sinuca, bate
numa bola para atingir e mover outras. Cada palavra tem sua superfície e suas signifi-
cações soterradas, ocultas, diversas; diz várias coisas ao mesmo tempo, embutindo um
discurso em outro, uma citação na outra. Não é nada improvável que este ensaio apa-
rentemente contra os “malditos” tenha destinatário interno ao próprio Beijo, desde a
fase de projeto atravessado por tensões entre a influência do “articuladíssimo” Escobar
e a linha mais libertária de Júlio César Montenegro.15 Ler-se-ia então seu texto como
carta explicativa da demissão de Ana Cristina antes mesmo de o jornal vir à luz.
Mas, para além das leituras circunstanciais, entendemos que a causa da dis-
cussão é de âmbito maior e diz respeito ao lugar do escritor e da literatura hoje. A
postura “maldita” ou certa postura marginal – Ana Cristina distinguia o marginal de
opção política, coletiva, e o marginal de circunstância ou oportunismo – sonha com e
reconstitui um lugar do sagrado, num mundo que de sagrado não tem mais nada. Ele
fica reinventando valores absolutos, limites intransponíveis, tabus a serem transgredi-
dos numa economia empenhada a digerir e integrar em termos mercadológicos todas
as revoltas, incluindo as mais radicais. No texto já citado de Foucault, em que ele se
volta não só para o texto de Kant sobre o Iluminismo, mas para a obra de Baudelaire,
a partir da qual esboça o quadro ético da inteligência moderna, o filósofo avança
quatro traços do ethos da nossa modernidade, um deles sendo a “atitude-limite”, que
ele define assim:

no Editora, 1998, p. 257.


14. Carta de 7 de julho de 1977. In: Cesar, Ana Cristina. Correspondência incompleta. Rio de Janei-
ro: Aeroplano; São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1999, p. 152.
15. Cf. Carta a Maria Cecilia Fonseca de 29 de junho de 1977. In: Correspondência incompleta, op.
cit., p. 149.

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Não se trata de uma postura de rejeição. Deve-se fugir da alternativa do fora e do dentro;
precisa estar nas fronteiras.16

Estar nas fronteiras, não numa postura do contra, mas analisando e pensando que fron-
teiras são essas, quais são as suas necessidades.

A crítica é decerto a análise dos limites e da reflexão sobre eles. Mas se a questão kan-
tiana era saber que limites o conhecimento deve renunciar a ultrapassar, parece-me que
a questão crítica, hoje, deve se inverter em questão positiva: no que nos é dado como
universal, necessário, obrigatório, qual a parte do que é singular, contingente e devido a
imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercitada na forma
da limitação necessária em uma crítica prática na forma do possível ultrapassar.17

ou seja, o papel crítico do intelectual ou do artista moderno não é transcendental, mas


prático. Ele não busca realizar as condições de uma metafísica convertida hoje em ciên-
cia, cognição absoluta, mas trata de levar o mais longe possível “o trabalho indefinido
da liberdade”, isto é, pensar o que dos limites que se apresentam a nós é necessário e o
que não é indispensável, o que limita sem fundamentos a constituição de nós mesmos
em sujeitos autônomos.
Da mesma forma, portanto, a questão da autonomia do texto literário traz con-
sigo uma reflexão heurística relativa às condições de produção de conhecimento hoje,
condições e capacidades relativas, tecendo a análise das condições de liberdade do
nosso ser histórico, e certo ceticismo da crítica permanente, irrequieta, justamente
porque somos históricos. A pequena vantagem da literatura ou, melhor dizendo, de
uma concepção da literatura que está justamente tentando repensar Ana Cristina Cesar
é saber que, como escrevia Michel Serres em 1974, no terceiro volume de seu Hermes,

16. “Il ne s’agit pas d’un comportement de rejet. On doit échapper à l’alternative du dehors et du de-
dans; il faut être aux frontières”. In: Dits et écrits, op. cit., p. 1393.
17. “La critique, c’est bien l’analyse des limites et la réflexion sur elles. Mais si la question kantienne
était de savoir quelles limites la connaissance doit renoncer à franchir, il me semble que la question
critique, aujourd’hui, doit être retournée en question positive: dans ce qui nous est donné comme uni-
versel, nécessaire, obligatoire, quelle est la part de ce qui est singulier, contingent et dû à des contraintes
arbitraires. Il s’agit en somme de transformer la critique exercée dans la forme de la limitation néces-
saire en une critique pratique dans la forme du franchissement possible”, id.

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justamente dedicado à tradução: não há saber sem ilusão, os mitos e os sonhos estão
repletos de saberes assim como os saberes estão cheios de sonhos e ilusões.

Um saber sem ilusão é uma ilusão toda pura. Em que se perde tudo, e o saber. […] não
há mito puro a não ser o saber puro de qualquer mito.18

será que o maldito da revista Extra endossava, ao contrário, uma confiança demasia-
damente crédula na capacidade de a literatura “desvendar o real” e, portanto, produzir
saberes e verdades sobre a realidade brasileira, uma literatura “documento, reporta-
gem”? Levando em conta a magnífica elaboração poética dos contos de João Antônio,
muito longe dessa prosa meramente documental, temos as nossas dúvidas.

Michel riaudel é professor do departamento de Estudos portugueses e Brasileiros da Uni-


versidade de poitiers (França). sua pesquisa volta-se para a literatura brasileira e as circulações
literárias entre Brasil e França. tradutor de ana cristina cesar, Modesto carone, José almino,
Milton Hatoum, entre outros.

18. “Un savoir sans illusion est une illusion toute pure. Où l’on perd tout, et le savoir. […] il n’y a de
mythe pur que le savoir pur de tout mythe”. In: Serres, Michel. Hermès iii. La traduction. Paris: Ed.
de Minuit, 1974, p. 259.

100 • riaudeL, Michel. Malditos vs marginais?

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