Escritores Malditos! PDF
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Michel riaudel
resumo: no jornal O Beijo (rio de Janeiro, 1977), ana cristina cesar publicava um texto chama-
do “Malditos marginais hereges”. nele, a poetisa reagia a uma coletânea de contos organizada
por João antônio, lançada no mesmo ano, e reunidos sob o título Malditos escritores!. nossa
proposta é examinar os termos desta polêmica levando em conta o contexto (ditadura, poesia
marginal…) e repensar as categorias de maldito e/ou marginal aplicadas no âmbito da cultura
e da literatura.
palavras-chave: ana cristina cesar; João antônio; poesia marginal; contracultura
Résumé: Dans le journal o Beijo (Rio de Janeiro, 1977), Ana Cristina Cesar a publié un texte intitu-
lé “Maudits marginaux hérétiques”. Elle y réagissait à la publication de nouvelles réunies par João
Antônio et parues cette même année sous le titre Maudits écrivains!. Notre intention est d’examiner
les termes de cette polémique, en tenant compte de son contexte (dictature, essor de la poésie mar-
ginale...), et d’éprouver ces catégories de maudits ou de marginaux pour penser le lieu de la culture
et de la littérature en particulier.
Abstract: In the newspaper “O Beijo” (“The Kiss” -- Rio de Janeiro, 1977), Ana Cristina Cesar
published a text titled “Malditos marginais hereges” (Damned heretical marginals.) In it, the
poet reacted to a collection of stories organized by João Antonio, released in that same year
under the title “Damned writers.” Our proposition is to examine the terms of that argument,
taking into account the context (dictatorship, marginal poetry...), and to rethink the categories
of damned and/or marginal, applied to the scope of culture and literature.
Keywords: Ana Cristina Cesar; João Antônio; marginal poetry; counterculture
Em março de 1977, o número 4 da revista de São Paulo Extra publicou um dossiê orga-
nizado por João Antônio e intitulado “Malditos escritores”. Reunia nove contos inéditos
de nove autores diferentes: Chico Buarque, Antônio Torres, Wander Piroli, Marcos Rey,
Márcio Souza, Aguinaldo Silva, Tânia Faillace, Plínio Marcos e o próprio João Antônio.
A capa estampava os nove retratos 3x4, e mais uma décima foto exibindo o ilus-
trador Elifas Andreato, muito solicitado na época, todos com indicação de data no
canto inferior do busto como se tivessem sido fichados pela polícia. O que em con-
texto de ditadura sugeria muito da coragem desses escritores, desafiando a censura e
a repressão.
O recado era reforçado pelo forte contraste em preto e branco, sem nuances pos-
síveis, em que se destacam as letras garrafais do título: “malditos escritores”, com ponto
de exclamação. Um texto na coluna direita deixava mais clara ainda a provocação:
Eles, quem? Os selecionados da antologia. Mas então quem está falando? Quem seria
esta primeira pessoa, qualificando e decretando todos eles malditos? Os responsáveis da
revista Extra? Deixemos por enquanto a pergunta sem resposta definitiva, em suspenso.
Na contracapa, umas palavras de João Antônio desenvolviam a chamada, opon-
do de um lado o mundo dos doutores, da cartolagem, dos sabidos, e de outro o exército
dos humilhados, explorados, oprimidos, discriminados lá de baixo, prostitutas, men-
digos, policiais, praças… “cujos gritos não chegam ao conhecimento geral e a conhe-
cimento nenhum”. Essas frases, por sua vez, são apenas a conclusão do texto maior de
apresentação, texto-manifesto, “O buraco é mais embaixo”, que se abre com a constata-
ção de que “O povo parece haver tomado chá de sumiço das letras nacionais”.
[…] por isso mesmo, aqui se tentou – sem aflições estéticas ou existenciais, sem dar
bandeiras ou distribuir mesuras à crítica elitista – levantar um conjunto de trabalhos
que ao menos tentasse, com alguma limpeza e objetividade, refletir e repensar realidades
brasileiras em um leque geográfico variado, a expor em nível acessível um punhado de
histórias das classes subalternas.
São versos extraídos do último volume publicado pelo poeta baiano enquanto
vivo, Espumas flutuantes, em 1870, isto é, um ano antes de sua morte. “O livro e a
América”, aliás o texto de abertura da coletânea, ressalta a importância da literatura e
da leitura para a formação do povo (para não dizer do cidadão) americano.
Oito meses depois do lançamento desse número da Extra, já em novembro de
1977, a primeira edição do jornal carioca O Beijo publica, em reação, um ensaio assina-
do por Ana Cristina Cesar: “Malditos marginais hereges”.1 Seguindo o procedimento
da parataxe do título, justapondo três categorias de gente que está de mal com as leis
sociais, a poetisa aponta as diversas discrepâncias do discurso maldito. Uma das pri-
meiras contradições denuncia a estratégia comercial:
1. In: Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio, Armando Freitas Filho (Org.). São Paulo: Brasiliense;
Rio de Janeiro: ufrj, 1993, pp. 109-119.
Literatura? Mas, minha querida senhora, a literatura não existe. O que há é a vida, de
que a política e arte participam.
Bem se sabe que não há argumento racional capaz de desmontar a retórica da paranoia,
pois esse sempre seria suscetível de ser considerado como uma prova a mais da efetivi-
dade da perseguição. No entanto, Ana Cristina Cesar avança dois elementos sustentan-
do sua crítica. O primeiro deles é a dupla qualificação do escritor, na Extra, ao mesmo
tempo assimilado ao povo, sofrendo da exploração, dividindo com ele o “miserê”, e pai
[…] falta consciência de classe ao intelectual, que se acredita mais uma vez porta-voz
dos oprimidos, setor transparente que reflete as imagens e os gritos ocultos dos bangue-
las e desbocados. Essa falta é socialmente favorecida. Historicamente motivada. É bom
que o intelectual desconheça a sua função de controle e de reprodução social, e que não
leve a contestação ao nível concreto da sua prática. Jornalistas, professores, advogados,
cientistas – não fiquemos só nos técnicos e burocratas. A Informação, a Educação, o
Direito, a Ciência, mitos que ainda acalentamos, mesmo se coloridos com a Discórdia.3
Imagino a onipotência dos fotógrafos escrutinando por trás do visor, invisíveis como
Deus.4
[…] Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para você que só me escreve
alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme,
onde foi, com quem foi. É quase indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim,
para mim! É um abandono quase grave, e barato. Você precisava de uma injeção de
neorrealismo, na veia.5
a escrita de Ana Cristina Cesar é de fato toda feita de opacidade, reflexos, emaranhando
subjetividades alusivas, elípticas. Ao contrário desse número da Extra, cujo título com-
pleto é Extra Realidade Brasileira, Coleção Livro-Reportagem e que oferece uma escrita
redundante, da insistência, em que os recados são repetidos n vezes. A linha realista
no fundo não está preocupada com a realidade, mas, sim, com a verdade. Essa nuance
aparece claramente na citação de uma entrevista concedida por João Antônio e citada
em “Malditos marginais hereges”:
Os escritores estão muito elitizados, não é? O escritor em geral tem medo de ir pra um
campo de futebol, ir pra geral e tirar a camisa porque tá quente. Se coloca numa posição
de intelectual olhando as coisas por cima. Em geral é muito dono da verdade, não gosta
de andar de ônibus, andar de trem, gosta muito de emprego público, de mecenato…
O escritor brasileiro é um indivíduo que foge de qualquer tipo de realidade que
não seja uma realidade agradável, componente de um bom comportamento; o escritor
brasileiro é um homem que se coloca muito na classe média, e a classe média vive mais
de mentiras, vive de consumos… (João Antônio, em entrevista ao jornal ex).7
ou seja, a realidade “agradável” está associada à mentira. Sendo que o escritor elitizado
vira as costas para a outra realidade, mais verdadeira (ou, melhor dizendo, a única a
ser verdadeira), desconfortável, do campo de futebol, do ônibus, do trem… E mesmo
assim ele é “dono da verdade”. A tradução positiva dessa declaração de João Antônio
leva o escritor a imergir na vida desagradável do povo, na prática, na linguagem, para
revelar a legítima realidade. Ele é quem faz desabar as miragens de classe, as ilusões,
para finalmente expor em palavras cruas e incômodas, sem disfarce, sem “-ismo”, sem
estética, a verdade. Sua relação com o real é bem diferente daquela do pintor da vida
moderna, na leitura de Baudelaire redefinida por Foucault:
[…] na hora em que o mundo todo entra no sono, ele [o pintor moderno] põe-se a tra-
balhar e transfigura-o, transfiguração que não é cancelamento do real, mas jogo difícil
6. Id., p. 106.
7. Escritos no Rio, op. cit., pp. 118-119.
nas palavras de Michel Foucault, a tarefa do artista não seria apenas dar conta do real,
mas transfigurá-lo, numa operação de “translação” nos vários sentidos que a palavra
translation tem em inglês. Importa ao artista moderno o estupro do real, o exercício
de sua liberdade criativa e histórica. Mesmo não conhecendo esse texto de Foucault,
de alguns anos posterior à nossa polêmica, Ana Cristina Cesar também convida, não
diretamente a mandar pensar (ou fazer pensar) o povo, mas a repensar revolucionaria-
mente o trabalho do intelectual:
O intelectual de esquerda ainda é o sujeito que tem ideias, opiniões, inclinações revolu-
cionárias, mas que não consegue repensar revolucionariamente o próprio trabalho: sua
relação com os meios de produção intelectual, sua técnica, seu poder de dizer.9
8. “[…] à l’heure où le monde entier entre en sommeil, il se met, lui [le peintre moderne], au travail, et
il le transfigure. Transfiguration qui n’est pas annulation du réel, mais jeu difficile entre la vérité du réel
et l’exercice de la liberté […]. La modernité baudelairienne est un exercice où l’extrême attention au réel
est confrontée à la pratique d’une liberté qui tout à la fois respecte ce réel et le viole.» Michel Foucault,
“Qu’est-ce que les lumières?”, in: Dits et Écrits ii, Paris: Gallimard, coll. “Quarto”, 2001, p. 1389 [“What is
Enligthenment?”, in: Rabinow (P.), éd., The Foucault Reader. Nova York: Pantheon Books, 1984].
9. Escritos no Rio, op. cit., p. 115.
Desde a capa, os escritores são adjetivados com garrafal malditos que lhes anuncia o
status marginal (p. 112).
Se é pra fazer literatura “maldita” ou “marginal”, não há que desafiar as normas reais ou
sentimentais dominantes que catalogam os sujeitos merecedores da nossa pena? Ou pelo
menos não disfarçar que também nos rebolamos de piedade por nós mesmos, que somos
outros, e não iguais, em relação à chamada “gente humilde”? (pp. 118-119).
a distância que vai de umas a outras é a distância (não moralizável) da mediação lite-
rária e a distância (indisfarçável, apesar da nossa culpa) entre produtores/leitores de
literatura – Escritores Malditos, Poetas Marginais, Jorge Amado, Beijo, ou o que for – e
as “massas populares” (p. 119).
Em todas essas ocorrências, maldito e marginal equivalem-se. Vale lembrar que
nos meados dos anos 70 o rótulo de poesia marginal não faz então consenso entre os
próprios poetas. Heloísa Buarque de Hollanda, no posfácio que ela inclui na reedição
comemorativa de 26 poetas hoje, em 1998, fala em:
fenômeno que, na época, foi batizado com o nome poesia marginal, sob protestos de
uns e aplausos de outros.13
13. Hollanda, Heloísa Buarque de. Posfácio à reedição de 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeropla-
Estar nas fronteiras, não numa postura do contra, mas analisando e pensando que fron-
teiras são essas, quais são as suas necessidades.
A crítica é decerto a análise dos limites e da reflexão sobre eles. Mas se a questão kan-
tiana era saber que limites o conhecimento deve renunciar a ultrapassar, parece-me que
a questão crítica, hoje, deve se inverter em questão positiva: no que nos é dado como
universal, necessário, obrigatório, qual a parte do que é singular, contingente e devido a
imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercitada na forma
da limitação necessária em uma crítica prática na forma do possível ultrapassar.17
16. “Il ne s’agit pas d’un comportement de rejet. On doit échapper à l’alternative du dehors et du de-
dans; il faut être aux frontières”. In: Dits et écrits, op. cit., p. 1393.
17. “La critique, c’est bien l’analyse des limites et la réflexion sur elles. Mais si la question kantienne
était de savoir quelles limites la connaissance doit renoncer à franchir, il me semble que la question
critique, aujourd’hui, doit être retournée en question positive: dans ce qui nous est donné comme uni-
versel, nécessaire, obligatoire, quelle est la part de ce qui est singulier, contingent et dû à des contraintes
arbitraires. Il s’agit en somme de transformer la critique exercée dans la forme de la limitation néces-
saire en une critique pratique dans la forme du franchissement possible”, id.
Um saber sem ilusão é uma ilusão toda pura. Em que se perde tudo, e o saber. […] não
há mito puro a não ser o saber puro de qualquer mito.18
será que o maldito da revista Extra endossava, ao contrário, uma confiança demasia-
damente crédula na capacidade de a literatura “desvendar o real” e, portanto, produzir
saberes e verdades sobre a realidade brasileira, uma literatura “documento, reporta-
gem”? Levando em conta a magnífica elaboração poética dos contos de João Antônio,
muito longe dessa prosa meramente documental, temos as nossas dúvidas.
18. “Un savoir sans illusion est une illusion toute pure. Où l’on perd tout, et le savoir. […] il n’y a de
mythe pur que le savoir pur de tout mythe”. In: Serres, Michel. Hermès iii. La traduction. Paris: Ed.
de Minuit, 1974, p. 259.