Apostila 12 - Romantismo No Brasil 1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 13

PRÉ-UNIVERSITÁRIO OFICINA DO SABER Aluno(a):

DISCIPLINA: Literatura PROFESSORES: Suéllen da Mata

ROMANTISMO NO BRASIL TEXTO 12

Romantismo brasileiro, com suspiros e saudades


No início do século XIX, o Brasil foi sacudido por um verdadeiro furacão: a transferência da família real
portuguesa, em 1808, que trouxe mudanças substanciais à vida cultural da corte no Rio de Janeiro. A
criação da Imprensa Régia permitiu a publicação do primeiro jornal brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro,
já em 1808. A convite do governo imperial, cientistas e pintores europeus foram trazidos especialmente
para se dedicar a pesquisas em solo brasileiro. No caso das artes, esses pintores formaram a Missão
Artística Francesa.

SAIBA MAIS

Em 1816, um grupo de artistas franceses se transferiu para o Brasil, a convite da corte portuguesa, para
organizar o ensino das artes plásticas no país. Além disso, muitos deles passaram a se dedicar ao registro
iconográfico da vida local.

O mais famoso representante da Missão Artística Francesa foi Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Seu
livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-1839) reúne aquarelas e desenhos que produziu
durante a estadia no país.

Debret registrou vários aspectos da vida nacional: a natureza, os indígenas e a vida urbana. Suas pinturas
representam, hoje, uma importante fonte de conhecimento do cotidiano brasileiro do início do século
XIX.

A vida social brasileira ganhou ânimo com a independência, em 1822, a partir da qual cresceu a
esperança de renovação política. No entanto, quando D. Pedro abdicou, em 1831, seu filho tinha apenas
cinco anos de idade e não podia assumir o trono. Constituíram-se então os sucessivos governos
regenciais, que administraram o país em nome do monarca, entre 1831 e 1840.

A decretação da maioridade de D. Pedro II, então com 15 anos de idade, iniciou o Segundo Reinado entre
nós. O novo monarca se mostraria um homem interessado na vida intelectual, apoiando diversas
iniciativas culturais. D. Pedro II permitiu uma ampla liberdade de imprensa — sendo muitas vezes alvo
de caricaturas ousadas —, subsidiou a publicação de obras que caíam no seu agrado e ainda patrocinou o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição criada em bases nacionalistas, que financiava a
pesquisa de temas relacionados à história brasileira.

A seguir, vamos ver como ocorreu o Romantismo no Brasil tanto na poesia quanto na prosa.

Poesia romântica brasileira

O marco inaugural do Romantismo brasileiro é a publicação do livro de poemas denominado Suspiros


poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, em 1836. O autor, embora produzisse uma literatura
com traços clássicos, assumia a condição de inovador das letras brasileiras, o que, naquele momento,
queria dizer associar-se ao Romantismo.
Reconhecem-se três vertentes na poesia romântica brasileira, costumeiramente associadas a gerações
poéticas: o indianismo (primeira geração), o ultrarromantismo (segunda geração) e
o condoreirismo (terceira geração). Essa divisão por gerações pode provocar alguma confusão, já que a
produção dos autores não obedeceu aos limites cronológicos naturalmente associados a cada uma delas.

A seguir, vamos conhecer os principais autores da poesia romântica brasileira de cada vertente:
Gonçalves Dias e a poesia indianista; Álvares de Azevedo e a poesia ultrarromântica; Castro Alves e a
poesia condoreira.

Gonçalves Dias

Antônio Gonçalves Dias nasceu em 1823, na cidade de Caxias, interior do


Maranhão. Seus pais, um homem branco e uma mulher mestiça, foram alvo
de perseguição decorrente do preconceito porque representavam a união
entre etnias diferentes.

A partir de 1846 começou a publicação dos seus Cantos (Primeiros


cantos, Segundos cantos, Novos cantos e Últimos cantos), alcançando fama
imediata.

Quando vivia na Europa, entre 1854 e 1858, teve oportunidade de


publicar, na Alemanha, a edição conjunta dos seus Cantos. Em 1862, com
problemas de saúde, foi mais uma vez à Europa, agora em busca de
tratamento. Morreu em um naufrágio, quando retornava ao país, em 1864.

Indianismo: a imagem idealizada do indígena


Retrato de Gonçalves Dias. Século
XIX. Autor desconhecido. O poeta
No Romantismo brasileiro, a valorização da figura do indígena, foi o principal representante do
o indianismo, significava elevar o nome do país e reafirmar os princípios indianismo romântico brasileiro
de nacionalidade. De acordo com essa imagem, o índígena era valente, na poesia.
corajoso, leal, honesto, etc. Afirmar tudo isso a respeito dele era dizer o mesmo a respeito do homem
brasileiro, ou seja, do próprio país.

Na poesia, o maior representante do indianismo foi Gonçalves Dias. Em alguns de seus livros, há uma
seção que ele chamou de Poesias americanas. Nessa parte, ele inseria poemas que tinham como tema o
indígena e a natureza do Brasil. Vejamos um exemplo de sua poesia indianista.

Canção do Tamoio (Natalícia)

I. Tem certa uma presa, Se morre, descansa


Não chores, meu filho; Quer seja tapuia, Dos seus na lembrança,
Não chores, que a vida Condor ou tapir. Na voz do porvir.
É luta renhida: Não cures da vida!
Viver é lutar. III. Sê bravo, sê forte!
A vida é combate, O forte, o cobarde Não fujas da morte,
Que os fracos abate, Seus feitos inveja Que a morte há de vir!
Que os fortes, os bravos, De o ver na peleja
Só pode exaltar. Garboso e feroz; V.
E os tímidos velhos E pois que és meu filho,
II. Nos graves concelhos, Meus brios reveste;
Um dia vivemos! Curvadas as frontes, Tamoio nasceste,
O homem que é forte Escutam-lhe a voz! Valente serás.
Não teme da morte; Sê duro guerreiro,
Só teme fugir; IV. Robusto, fragueiro,
No arco que entesa Domina, se vive;
Brasão dos tamoios Na guerra e na paz.
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959. p. 372-373. (Fragmento).

A poesia da natureza

A natureza sempre foi um refúgio para os românticos, um espaço de acolhimento e introspecção. Na


poesia romântica brasileira, também era um tema que permitia expor as peculiaridades da pátria recém-
independente.

Na poesia de Gonçalves Dias especificamente, a natureza é entendida em dois sentidos básicos: de um


lado, é manifestação da presença de Deus; de outro, é oportunidade para declaração de princípios
nacionalistas. O mais famoso poema do Romantismo brasileiro trata deste último aspecto.

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras, Minha terra tem primores,


Onde canta o Sabiá; Que tais não encontro eu cá;
As aves, que aqui gorjeiam, Em cismar — sozinho, à noite —
Não gorjeiam como lá. Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Nosso céu tem mais estrelas, Onde canta o Sabiá.
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida, Não permita Deus que eu morra,
Nossa vida mais amores. Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Em cismar, sozinho, à noite, Que não encontro por cá;
Mais prazer encontro eu lá; Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.
Onde canta o Sabiá.
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959. p. 103.

Um romântico acima de tudo

Os românticos atribuíam à natureza um papel importante na expressão da emotividade. Na obra de


Gonçalves Dias, ela não aparece somente como expressão do nacionalismo, mas também reflete os
sentimentos do eu lírico.

Gonçalves Dias não foi um romântico apenas por tratar do indígena ou da natureza brasileira em seus
poemas. Seu romantismo manifestava-se ainda na expressão do sentimento amoroso, como se pode
observar no texto a seguir.

Consolação nas lágrimas

Nada é melhor que este pranto Não soro de fel, mas santo
Em silêncio gotejado, Frescor em peito chagado;
Meigo e doce, e pouco e pouco Não espremido entre dores,
Do coração despegado; Mas quase em prazer coado!
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959. p. 209-210. (Fragmento).
Alvares de Azevedo

Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, em 1831. Em seguida,


sua família mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, onde fez seus primeiros
estudos.

Aos dezessete anos voltou à cidade natal para cursar a Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco. Envolveu-se tanto com o meio estudantil local quanto
com o literário.

Morreu bastante jovem, em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com a saúde


debilitada pela tuberculose e por um tumor. Esse fato, associado a uma poesia
Retrato de Álvares de
carregada de melancolia, contribuiu para torná-lo símbolo de sua geração poética.
Azevedo, aos 16 anos.
Século XIX. Insley
Ultrarromantismo: exacerbação sentimental
Pacheco.

No século XIX, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na cidade de São


Paulo, atraía jovens de todo o Brasil — moços tão interessados nos estudos quanto em conquistas
amorosas, festas e versos. A marca mais importante da geração de poetas surgida ali é a exacerbação
sentimental, isto é, o exagero na expressão das emoções humanas — razão pela qual esse período é
também conhecido como ultrarromantismo.

A poesia ultrarromântica cria uma imagem sofrida, dolorosa e melancólica da vida. Essas sensações
foram sintetizadas em uma palavra de origem inglesa, spleen, tomada no sentido de “melancolia
extrema”, diante da qual a única solução parecia ser a morte. Isso torna a literatura ultrarromântica
bastante pessimista. Ela era expressão do “mal do século”. Esse termo, também associado à tuberculose,
corresponde a um estado de desânimo em relação ao presente e ao futuro.

Ultrarromantismo: exacerbação sentimental

No século XIX, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na cidade de São Paulo, atraía jovens de
todo o Brasil — moços tão interessados nos estudos quanto em conquistas amorosas, festas e versos. A
marca mais importante da geração de poetas surgida ali é a exacerbação sentimental, isto é, o exagero na
expressão das emoções humanas — razão pela qual esse período é também conhecido
como ultrarromantismo.

A poesia ultrarromântica cria uma imagem sofrida, dolorosa e melancólica da vida. Essas sensações
foram sintetizadas em uma palavra de origem inglesa, spleen, tomada no sentido de “melancolia
extrema”, diante da qual a única solução parecia ser a morte. Isso torna a literatura ultrarromântica
bastante pessimista. Ela era expressão do “mal do século”. Esse termo, também associado à tuberculose,
corresponde a um estado de desânimo em relação ao presente e ao futuro.

A imagem feminina
No ultrarromantismo, a mulher é concebida como uma entidade inacessível, isto é, fora do alcance do
poeta. Essa imagem contribuía para a adoção do ideal de amor platônico, que representava a realização
do sentimento apenas no plano espiritual. Leia o poema de Álvares de Azevedo que representa essa
imagem ultrarromântica.

Quando à noite no leito perfumado

Quando à noite no leito perfumado E, quando eu te contemplo adormecida


Lânguida fronte no sonhar reclinas, Solto o cabelo no suave leito,
No vapor da ilusão por que te orvalha Por que um suspiro tépido ressona
Pranto de amor as pálpebras divinas? E desmaia suavíssimo em teu peito?
AZEVEDO, Álvares de. In: BUENO, Alexei (Org.).
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2000. p. 133. (Fragmento).
Escapismo: fuga da realidade

A partir do livre curso da fantasia, o poeta romântico cria mundos imaginários. Com isso, assume uma
postura escapista, de fuga da realidade. Os caminhos para essa fuga são vários: a visão saudosista do
passado (rejeição do presente), o mergulho na intimidade (negação do mundo à sua volta), a temática da
morte (recusa da vida), etc.

O escapismo romântico está bastante presente nos versos a seguir, de Álvares de Azevedo.

Meu pobre leito! eu amo-te contudo!

Aqui levei sonhando noites belas; Esqueci-as no fumo, na leitura


As longas horas olvidei libando Das páginas lascivas do romance...
Ardentes gotas de licor doirado,
AZEVEDO, Álvares de. In: BUENO, Alexei (Org.).
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2000. p. 208. (Fragmento).

Atmosfera noturna

A noite era um momento especial para os poetas ultrarromânticos. O silêncio noturno favorece o
recolhimento (um elemento essencial para a manifestação do eu lírico emotivo), além de ser o período do
repouso, do sono e do sonho.

Há ainda outro motivo a justificar a preferência romântica pela noite: o satanismo (atração por imagens
grotescas, diabólicas), que sintetizava as forças malignas que atormentavam o ser humano.

No poema a seguir, é possível perceber essa atmosfera soturna que paira não apenas nas nuvens sobre o
eu lírico, mas também dentro dele nos mais profundos sentimentos.

Solidão

Nas nuvens cor de cinza do horizonte Ó lua, as doces brisas que sussurram
A lua amarelada a face embuça; Coam dos lábios teus como suspiros!
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça. Falando ao coração que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Ergueu-se, vem da noite a vagabunda Canta assim algum gênio adormecido
Sem xale, sem camisa e sem mantilha, Das ondas mortas no lençol de prata?
Vem nua e bela procurar amantes;
É doida por amor da noite a filha. Minh’alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária...
As nuvens são uns frades de joelhos, Deito-me só e triste sem ter fome
Rezam adormecendo no oratório; Vendo na mesa a ceia solitária.
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório. Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
As árvores prateiam-se na praia, Não me deixes assim dormir solteiro,
Qual de uma fada os mágicos retiros... À meia-noite vem cear comigo!

AZEVEDO, Álvares de. In: BUENO, Alexei (Org.).


Obra completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2000. p. 232.
A dor e o riso

No Romantismo, dor e riso conviveram intimamente. Os artistas românticos eram capazes de rir de si
mesmos, de sua própria dor. Quase sempre, era um riso irônico, um humor contido, que mantinha a
marca melancólica que caracterizava a poesia sentimental.

No livro Lira dos vinte anos há muitos exemplos de poesia satírica, como o que se lê a seguir.

Namoro a cavalo

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça Por ver-me tão lodoso ela irritada
Que rege minha vida malfadada Bateu-me sobre as ventas a janela...
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcineia namorada. O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
[...] Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Ontem tinha chovido... Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Dei ao diabo os namoros. Escovado
Mas lá vai senão quando uma carroça Meu chapéu que sofrera no pagode,
Minhas roupas tafuis encheu de lama... Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada Circunstância agravante. A calça inglesa
Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Rasgou-se no cair de meio a meio,
Fui mesmo sujo ver a namorada... O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
AZEVEDO, Álvares de. In: BUENO, Alexei (Org.). Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p. 242-243.
(Fragmento).
Prosa romântica brasileira

De acordo com o tema principal que desenvolvem, os romances românticos podem ser
classificados da seguinte maneira:
• Romance urbano ou de costumes – abrange temas amorosos e sociais, e sua ação se passa no
ambiente urbano, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, como Senhora (José de Alencar) e A
Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo).
• Romance sertanejo ou regionalista – aborda temas e situações que se passam longe dos centros
urbanos; focaliza a gente do interior, com seus costumes e valores peculiares, como O
sertanejo (José de Alencar) e Inocência(Visconde de Taunay).
• Romance histórico – volta-se para o passado, numa reinterpretação nacionalista de fatos e
personagens de nossa história, como O guarani (José de Alencar) e Lendas e romances (Bernardo
Guimarães).
• Romance indianista – ainda na perspectiva nacionalista, é aquele que enfoca a figura do índio,
idealizando-o e exaltando-lhe o caráter nobre e a valentia, como vemos em O guarani,
Iracema e Ubirajara (José de Alencar).

Cronologia dos principais romances do Romantismo


1844 – A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo.
1845 – O moço loiro, de Joaquim Manuel de Macedo.
1853 – Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
1856 – Cinco minutos, de José de Alencar.
1857 – O guarani, de José de Alencar.
1862 – Lucíola, de José de Alencar.
1865 – Iracema, de José de Alencar.
1872 – Inocência, de Visconde de Taunay; O seminarista, de Bernardo Guimarães.
1874 – Ubirajara, de José de Alencar.
1875 – Senhora, de José de Alencar; A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães.
1876 – O Cabeleira, de Franklin Távora.

A euforia que sucedeu à declaração da independência, em 1822, foi o motor para o projeto de criação de
uma identidade nacional. O momento impunha mudanças. Esse estado de transformação social e política
serviu de inspiração para os escritores da época, que assumiram uma postura mais idealista diante do
que estava ocorrendo. Assim, a nova estética floresceu impregnada de um espírito ufanista e intenso,
tanto na poesia quanto na prosa.

A publicação de folhetins tornou-se popular e garantiu um público leitor cada vez maior, atraído pelas
tramas intensas, carregadas de sentimentalismo (como já vimos anteriormente). Essas narrativas foram
as precursoras da prosa romântica, pontuada pela luta do bem contra o mal, pela presença do herói, pela
força do amor. Os romances eram de cunho social, regional, histórico e indianista.

A seguir, conheceremos alguns dos principais nomes da prosa romântica no Brasil e suas
características.

José de Alencar

José Martiniano de Alencar nasceu em 1829, em Messejana, no Ceará, e


faleceu em 1877, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1850, formou-se em
Direito, em São Paulo. Fixando-se no Rio de Janeiro, exercia a profissão de
advogado, continuava a se dedicar à literatura e se iniciava na política.

Em 1855, tornou-se redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro. Exerceu


vários mandatos como deputado por seu estado natal, e chegou a Ministro
da Justiça, cargo que ocupou entre 1868 e 1870. Filiado ao Partido
Conservador, mantinha certa independência de opinião, o que algumas
vezes o levou a criticar o imperador. Retrato de José de Alencar.
Século XIX Autor desconhecido. O
escritor foi o principal nome do
Como escritor, dedicou-se muito ao teatro, mas ganhou destaque no Romantismo brasileiro.
terreno da ficção, com obras como O guarani (1857), Iracema (1865)
e Senhora (1875), com as quais alcançou grande sucesso de público.

Com a independência, em 1822, os intelectuais brasileiros tomaram para si a tarefa de construir uma
nova imagem do país, formulando um projeto de cultura nacional. Um dos artistas mais envolvidos com
esse projeto foi José de Alencar. Isso significava criar temas, personagens e ambientações nacionais em
poemas e nas narrativas de ficção.

O escritor, então, produziu obras ambientadas em diferentes tipos de espaço (sertões, cidades, matas,
etc.) e em momentos distintos da nossa história, desde o período pré-colonial até a contemporaneidade.
Essa diversidade de espaço e de tempo dos enredos determinou a seguinte divisão da obra ficcional de
José de Alencar:
• Romance indianista — O filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau criou o mito do bom selvagem, segundo o
qual o ser humano era originalmente bom, pois, não tendo sido contaminado pela civilização, conservava-se
puro e livre. No Romantismo brasileiro, o indianismo funcionou como instrumento de reflexão em torno do
tema da nacionalidade. A idealização do índígena era proposital: tratava-se de construir uma alegoria dos
atributos da raça brasileira. Aos traços comuns dos heróis românticos — bravura, coragem, honradez, nobreza
de caráter, dedicação à amada e respeito à hierarquia — o bom selvagem acrescentava o apego à terra
brasileira.
• Romance histórico — O Romantismo defendia uma arte pedagógica, didática. Para os representantes dessa
estética, a arte deveria funcionar como um instrumento de formação e refinamento das massas. Em alguns de
seus romances, Alencar partia de acontecimentos históricos para transmitir valores aos seus leitores.
• Romance regionalista — Ainda dentro desse espírito didático do Romantismo, Alencar pretendia apresentar o
Brasil aos brasileiros. Para tanto, criou um amplo painel de tipos e cenários, envolvendo várias regiões do
interior do país.
• Romance urbano — O escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850) produziu um vasto painel da sociedade
francesa, em sua obra A comédia humana, constituída por quase uma centena de narrativas. Sem pretender
chegar a essa dimensão monumental, José de Alencar se dedicou à elaboração de um retrato da sociedade
brasileira, em seu ainda tímido processo de urbanização.

Iracema
Em Iracema, publicado em 1865, Alencar tinge de cor local o modelo romântico europeu. Ambientada nas
selvas brasileiras durante a colonização do Nordeste (início do século XVII), a história da mulher
indígena que se apaixona por um homem branco serve de alegoria da constituição da raça brasileira. O
subtítulo da obra, Lenda do Ceará, insinua o caráter mítico que acompanha o fundo histórico da narrativa.

Síntese

A cidade de Fortaleza foi fundada no século XVII por Martim Soares Moreno, soldado vindo do Rio
Grande do Norte. Ele estabeleceu alianças com a tribo dos pitiguaras, cujos grandes inimigos, os
tabajaras, eram aliados dos franceses. Essas são as circunstâncias históricas da trama.

Martim se perde na mata, ocasião em que conhece a tabajara Iracema, por quem se apaixona. Mas esse
amor logo conhece grandes obstáculos: a inimizade entre as tribos, o amor do líder guerreiro dos
tabajaras por Iracema e a condição especial dela, única conhecedora da fórmula do vinho de Tupã, bebida
sagrada para sua tribo.

Essa condição de Iracema exige a preservação de sua virgindade. Porém, quando Martim sorve o vinho de
Tupã, fica em um estado de semiconsciência e acaba por possuí-la. O casal foge, mas é encontrado pelos
tabajaras. Os pitiguaras os resgatam, e Iracema e Martim passam a viver juntos. Iracema engravida e dá à
luz Moacir, morrendo pouco tempo depois e deixando o filho aos cuidados de Martim.

A obra Iracema possui uma dimensão alegórica de grande importância para a apreensão de seu sentido
integral. Iracema representa a terra brasileira, ainda virgem. Há quem suponha que o nome da heroína
seja um anagrama de América. A virgindade lhe será arrebatada por Martim, cujo nome vem de Marte, o
deus da guerra. De fato, trata-se de um guerreiro, colonizador, ocidental, cristão. O filho do casal
completa a mensagem: Moacir, em tupi, significa “filho da dor”, sintetizando o sacrifício da raça que
morreu para gerá-lo.

A nova raça reúne os atributos herdados do branco — a cultura avançada, a religião católica e a língua
portuguesa — e do indígena — o apego à terra.

Embora possua personagens históricas, isto é, que realmente existiram, como Martim e Poti, Iracema é,
acima de tudo, uma obra de ficção romântica.

Leia o trecho a seguir, que relata o primeiro encontro de Iracema e Martim.

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos
que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como o seu sorriso, nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito
perfumado.

[...]

Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de
chuva. Enquanto repousa empluma das penas do gará as flechas de seu arco; e concerta com o sabiá da
mata pousado no galho próximo, o canto agreste.

[...]

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua
vista perturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da
floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das águas
profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
ALENCAR, José de. Iracema. Disponível em: <dominiopublico.gov.br>. (Fragmento).
Senhora

O romance Senhora, publicado em 1875, pode ser enquadrado em um dos muitos perfis de mulher
compostos por Alencar, em narrativas que tinham protagonistas femininas, como Diva e Lucíola.
Em Senhora, José de Alencar demonstra completo domínio da arte de contar uma história e controlar as
emoções do leitor.

Em Iracema, o leitor é colocado em plena mata nordestina. Em Senhora, o cenário é completamente


distinto: a alta sociedade do Rio de Janeiro, a corte do Segundo Reinado brasileiro. O destinatário do
romance é, igualmente, o público urbano. E a mensagem a ser transmitida tem relação direta com os
novos costumes oriundos dessa urbanização: em uma sociedade que se torna cada vez mais materialista,
qual é o lugar do amor?

Síntese

Aurélia Camargo, uma jovem rica cortejada por todos os rapazes, determina ao seu tio Lemos que sirva
de intermediário em uma negociação ao final da qual ela acaba por comprar um marido: Fernando Seixas.
Lemos oferece dinheiro ao rapaz sem lhe revelar a identidade da pretendente, e ele, enfrentando
dificuldades financeiras, aceita o negócio. Quando descobre tratar-se de Aurélia, fica exultante de
felicidade, porque em um passado não muito distante ele a havia cortejado. Na noite de núpcias, porém,
Aurélia conta ser a mentora de toda a transação matrimonial e que o casamento era uma imposição
social, e não um gesto de amor.

Para explicar tamanha afronta, o narrador faz um flashback. Aurélia era filha bastarda de um rico
fazendeiro, Pedro Camargo, cujo pai, Lourenço, não admitia o relacionamento do filho com uma moça
pobre da cidade, mãe de Aurélia. Ambas passam por dificuldades, e a mãe, temendo pelo futuro da filha,
insiste que ela arranje um namorado. Por sua beleza, muitos pretendentes se oferecem.

O jovem Fernando Seixas conquista Aurélia e assume o compromisso de se casar com ela, mas o cancela
pouco depois, premido pela necessidade de realizar um casamento rico. Lourenço Camargo, arrependido,
faz de Aurélia sua herdeira universal, morrendo em seguida. Pouco depois, Aurélia perde também a mãe.
Para a função de tutor, a justiça nomeia o tio Lemos. Deste ponto, parte para a vingança sobre Seixas.
Termina o flashback.
Dali até o final do romance, Seixas busca de todas as formas recuperar a dignidade perdida. Dedica-se ao
trabalho e se torna econômico, para tentar devolver à esposa a quantia paga por ele. Seus esforços
acabam surtindo o efeito desejado, e ele resgata sua dívida. Na cena final, ocorre a reconciliação do casal.

Nada mais romântico que o final de Senhora: a vitória do amor. No entanto, ao longo da narrativa o casal
de protagonistas se coloca fora dos padrões convencionais: o herói se vende e a heroína se mostra
maquiavélica. A própria trama põe em destaque a importância do dinheiro nos títulos das partes do
romance: “O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate” — etapas de uma transação comercial.

Seixas desprezou Aurélia em função de necessidades materiais relativas ao sustento da família — e quem
há de negar nobreza de caráter a quem se sacrifica pelos seus? O espírito vingativo de Aurélia traz
consigo o final feliz esperado. E o amor, capaz de paroxismos próximos ao ódio, também é capaz de
perdoar.

Graças ao amor, Seixas, antes um conquistador, materialista e egoísta, depois da lição que lhe aplica a
amada, passa a ver valor apenas no amor verdadeiro. Também em função do sentimento amoroso,
Aurélia perdoa o passado do marido e se rende a ele. Ela aprende a sua lição, deixando de lado a
arrogância que acompanha seu espírito vingativo.

A cena a seguir se passa em um baile, quando Aurélia e Seixas já estão casados.

— Há que tempo o procuro! disse Aurélia, sentando-se a seu lado, e olhando-o inquieta. Está incomodado?

— Não, senhora; tive há pouco o prazer de vê-la dançar com o Abreu.

Aurélia lançou um olhar rápido e penetrante ao marido.

— É verdade; dancei com ele; é um de meus pares habituais, tornou com volubilidade. E o senhor, por que
não dançou também?

— Porque a senhora não me ordenou.

— É esta a razão? Pois vou dar-lhe um par... Quer oferecer-me seu braço? replicou Aurélia sorrindo.

— Seria ridículo oferecer-lhe o que lhe pertence. A senhora manda, e é obedecida.

Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao longo da alameda.

— Por que me chama senhóra? perguntou ela fazendo soar o ó com a voz cheia.

— Defeito de pronúncia!

— Mas às outras diz senhôra. Tenho notado; ainda esta noite.

— Essa é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula
cortês, a relação de império e domínio, usamos da variante, que soa mais forte, e com certa vibração
metálica. O súdito diz à soberana, como o servo à sua dona, senhóra. Eu talvez não reflita e confunda.
ALENCAR, José de. Senhora.
Disponível em: <dominiopublico.gov.br>. (Fragmento).

Manuel Antônio de Almeida

Manuel Antônio de Almeida nasceu em 1831 na cidade do Rio de Janeiro e faleceu em 1861 em Macaé.
Pertencia a uma família de classe média baixa.
Órfão de pai desde a infância, optou pela carreira da Medicina,
formando-se em 1855. No entanto, nunca chegou a exercer a profissão,
porque seus interesses logo o conduziram à carreira jornalística,
atingindo a posição de redator do jornal Correio Mercantil, do Rio de
Janeiro.

Em 1858, alcançou o posto de diretor da Tipografia Nacional (órgão de


informação oficial). Logo a seguir, alimentou a ambição de seguir
carreira política. Em sua primeira viagem para a campanha eleitoral,
acabou falecendo, vítima de um naufrágio.

A vida política brasileira do século XIX foi marcada pela disputa entre Retrato de Manuel Antônio de
dois partidos políticos: o Liberal e o Conservador. As polêmicas Almeida. Século XIX. Autor
desconhecido. O escritor morreu
ocupavam as páginas dos jornais. Um deles, o Correio Mercantil, que precocemente, aos trinta anos de
circulou entre 1848 e 1868, publicava um suplemento dominical idade. Deixou uma obra curta, mas
chamado A Pacotilha, que trazia informações sobre diversos assuntos, com um romance marcante, Memórias
de um sargento de milícias.
tratados em tom mais leve, e ainda folhetins literários.

Em 1852, quando ainda era um dos redatores do jornal, Manuel Antônio de Almeida foi convidado a
colaborar com A Pacotilha. Surgiram assim as Memórias de um sargento de milícias, publicadas em
folhetins semanais até 1853.

Memórias de um sargento de milícias

“Era no tempo do Rei.” Com essa frase, o narrador abre o romance e informa ao leitor o lugar e a época da
ação: o período em que o rei D. João VI viveu no Rio de Janeiro, isto é, entre 1808 e 1821. Fica assim
explicitada a intenção de apresentar um quadro da vida carioca, o que é reforçado pela galeria de tipos
sociais que surge nas páginas do livro.

Muitas vezes, os nomes dessas personagens não são revelados; elas são identificadas pela função social
que exercem: Mestre de cerimônias, Mestre de rezas, Toma-largura e Tenente-coronel.

Síntese

A narrativa gira em torno das aventuras de duas personagens homônimas: Leonardo Pataca e seu filho Leonardo.
No navio que o trazia de Portugal para o Brasil, Pataca se envolvera com Maria da Hortaliça, e desse enlace nasceu
Leonardo, o futuro sargento de milícias.

Maria da Hortaliça volta para Portugal com outro homem, e o filho fica sob os cuidados do padrinho, o Barbeiro, e
sob a proteção de sua madrinha, a Comadre.

Leonardo atormenta a vizinhança com suas travessuras, razão pela qual o Barbeiro resolve fazer dele um padre.
Matricula-o em uma escola, depois permite que ele sirva de coroinha em uma igreja. Ali, Leonardo continua suas
estripulias, acompanhado do colega Tomás da Sé, e ambos acabam expulsos da igreja.

Leonardo conhece então Luisinha, afilhada de D. Maria e virtual herdeira de sua fortuna, mas Luisinha acaba se
casando com o interesseiro José Manuel.

O Barbeiro morre e deixa um pequeno pecúlio a Leonardo, que é obrigado a morar com o pai, mas, depois de uma
discussão, foge de casa. Perambulando pelas ruas, reencontra Tomás da Sé e se une ao seu grupo, de que faz parte
a mulata Vidinha, com quem ele se envolve. Por ação de dois primos enciumados, Leonardo acaba apanhado pelo
chefe de polícia, o Major Vidigal, e é acusado de vadiagem, fugindo antes de chegar à cadeia. Para escapar a futuras
perseguições, arranja um emprego. Mas envolve-se com a esposa de um colega de trabalho e volta à condição de
vadio.
Como vingança pela fuga anterior, o Major Vidigal o prende e o obriga a alistar-se. Leonardo se afasta das antigas
companhias, mas não abandona sua índole transgressora. Certa vez, auxilia a fuga de um homem perseguido pelo
Major, que descobre a trama e prende Leonardo. O rapaz consegue a liberdade graças à intervenção de certa Maria
Regalada, que em troca promete ao Major retomar um antigo relacionamento com ele. Além da soltura, Leonardo
ganha uma promoção a sargento e retoma o namoro com Luisinha, nessa altura já viúva de José Manuel. Obtém do
Major a reforma para a tropa de milícias, condição que lhe permite casar-se com a moça.
Memórias de um sargento de milícias não se enquadra facilmente no Romantismo convencional. O protagonista está
longe de se encaixar no figurino do herói romântico típico, que servia de exemplo de conduta moral. Leonardo é o
anti-herói. Sua origem não tem nada de nobre: “filho de uma pisadela e de um beliscão” trocados entre os pais
quando se conheceram, já prenuncia desde logo o tom humorístico da narrativa. Malandro, pouco dado ao trabalho
e ao esforço pessoal, vive ao sabor dos acontecimentos, buscando aproveitar os momentos de felicidade que
experimenta.

SAIBA MAIS

O elogio à malandragem possui uma longa tradição na cultura brasileira. O Leonardo das Memórias de um
sargento de milícias deixou muitos descendentes. O Macunaíma de Mário de Andrade foi o primeiro a receber a
herança com orgulho e levá-la adiante, contando agora com o aval de um movimento literário importante, o
Modernismo.

Nos anos 1960, a figura do malandro passou a ser associada à busca de meios de sobrevivência em um ambiente
hostil aos excluídos. Assim, driblar os salários baixos e as péssimas condições de vida passou a ser visto como um
procedimento malandro.

Como exemplo, é possível citar duas obras: o conto “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963), de João Antônio (1937-
1996), narra uma noite pelas periferias de São Paulo na vida dos três personagens que dão título à história; e a
peça teatral Dois perdidos numa noite suja (1966), de Plínio Marcos (1935-1999), em que dois trabalhadores
conversam e trocam experiências em uma relação conflituosa no mesmo quarto de pensão que dividem.

O narrador acompanha de perto suas andanças — e também as de seu pai, Leonardo Pataca — pelas ruas
do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o romance se aproxima da narrativa picaresca: história satírica com
descrições bastante realistas das perambulações pela sobrevivência do protagonista, que em geral era de
origem humilde e seguia por caminhos inesperados — características também encontradas no
protagonista de Memórias de um sargento de milícias.

Ao contar as andanças das personagens pela cidade, o narrador registra os costumes das classes
populares — danças, procissões, formas de relacionamento, linguagem, etc. Assim, acaba por revelar um
aspecto fundamental da vida brasileira: a convivência estreita entre a lei e a transgressão da lei.

No romance, o Major Vidigal é o encarregado de impor a ordem. Na cena a seguir há um contraste cômico
entre as peças de seu vestuário: “farda” e “calças de enfiar” (da cintura para cima, um militar; da cintura
para baixo, um civil). Ele recebe a visita de mulheres interessadas em obter a libertação de Leonardo,
preso por desacato ao próprio Major. Enquanto este liberta Leonardo passando do universo da ordem
para o da desordem, Leonardo assume vida mais regrada passando da desordem para a ordem. Desse
modo, o vestuário do Major evidencia a facilidade com que as personagens transitam entre os polos da
ordem e da desordem.

Partiram pois as três para a casa do major, que morava então na rua da Misericórdia, uma das mais antigas
da cidade. O major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos, não tendo a princípio suposto o quilate da
visita; apenas porém reconheceu as três, correu apressado à camarinha vizinha, e envergou o mais depressa
que pôde a farda; como o tempo urgia, e era uma incivilidade deixar sós as senhoras, não completou o
uniforme, e voltou de novo à sala de farda, calças de enfiar, tamancos, e um lenço de Alcobaça sobre o
ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo assim, apesar da aflição em que se achava, mal pode conter
uma risada que lhe veio aos lábios.
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Disponível em: <dominiopublico.gov.br>. (Fragmento).
O Romantismo também é colocado em questão, em Memórias de um sargento de milícias, conforme se
pode observar na cena a seguir de um primeiro encontro. A descrição de Luisinha escapa da idealização
típica das narrativas românticas; além disso, a descoberta do amor por Leonardo não vem associada ao
sofrimento e à impossibilidade de realização, mas ao riso que a lembrança da menina provoca nesse anti-
herói.

[...] Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda
não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida; andava com o queixo enterrado no peito, trazia
as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe
apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe
caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido,
quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça.

Por mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e
sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se
interiormente.

Quando se retiraram, riu-se ele pelo caminho à sua vontade. O padrinho indagou a causa da sua hilaridade;
respondeu-lhe que não se podia lembrar da menina sem rir-se.

— Então lembra-se dela muito a miúdo, porque muito a miúdo te ris.

Leonardo viu que esta observação era verdadeira.


ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.
Disponível em: <dominiopublico.gov.br>. (Fragmento).

No que diz respeito à linguagem, Memórias de um sargento de milícias apresenta algumas peculiaridades.
Os escritores românticos adotavam um estilo mais formal, enquanto Manuel Antônio de Almeida optou
por adotar as gírias e o coloquialismo próprios de suas personagens. É o que se pode notar no trecho a
seguir, que conta o momento em que Pataca flagra Maria da Hortaliça com outro homem em sua casa.

À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego
de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a
Maria com os punhos cerrados.

— Grandessíssima!...

E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo.

A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer
coisa.

— Tira-te lá, ó Leonardo!

— Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos...

— Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
ALMEIDA, Manuel Antônio de.
Memórias de um sargento de milícias.
Disponível em: <dominiopublico.gov.br>. (Fragmento).

Você também pode gostar