Imigrantes e Saúde Mental PDF

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observatório da imigração

Migrantes
e saúde mental
a construção
da competência cultural

33
chiara pussetti (Coord.)

Outubro 2009
júlio f. ferreira
Elsa Lechner
Cristina Santinho
Migrantes e saúde mental
a construção
da competência cultural

Chiara Pussetti (Coord.)


Júlio F. Ferreira
Elsa Lechner
Cristina Santinho

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (1)


Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

PUSSETTI, Chiara, e outros


Migrantes e saúde mental: a construção da competência cultural/Chiara Pussetti, e outros. – (Estudos OI ; 33)
ISBN 978-889-8000-89-7
CDU 316
614
613
314

PROMOTOR
OBSERVATÓRIO DA IMIGRAÇÃO
www.oi.acidi.gov.pt

COORDENADOR DA COLECÇÃO
ROBERTO CARNEIRO

AUTORES
Chiara Pussetti (Coord.)
Júlio F. Ferreira
Elsa Lechner
Cristina Santinho

EDIÇÃO
ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAÇÃO
E DIÁLOGO INTERCULTURAL (ACIDI, I.P.)
RUA ÁLVARO COUTINHO, 14, 1150-025 LISBOA
TELEFONE: (00351) 21 810 61 00 FAX: (00351) 21 810 61 17
E-MAIL: [email protected]

EXECUÇÃO GRÁFICA
PRINCÍPIA

PRIMEIRA EDIÇÃO
750 EXEMPLARES

ISBN
978-989-8000-89-7

DEPÓSITO LEGAL
302603/09

LISBOA, OUTUBRO 2009

(2) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Índice Geral

Nota de Abertura 7
Nota do Coordenador 9

Migrantes e saúde mental


a construção da competência cultural 11

Agradecimentos 13

Introdução: Psiquiatria Transcultural – uma prática


aquém da promessa 15

Chiara Pussetti

I PARTE: Biopolíticas de Saúde Mental – medicalização,


cultura e resistência 27

Chiara Pussetti

CAP. 1. Corpos em trânsito e sofrimento psíquico 29

CAP. 2. Antropologia das emoções e das perturbações emocionais:


uma introdução crítica à psiquiatria transcultural
e à etnopsiquiatria 41
1. Psiquiatria transcultural 43
2. Etnopsiquiatria 59

CAP. 3. Biopolíticas da depressão nos imigrantes africanos 69

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (3)


II PARTE: Estudo de caso – Práticas e Discursos
numa Unidade Psiquiátrica Transcultural 91

Júlio F. Ferreira

CAP. 4. Uma experiência de clínica Transcultural 95

CAP. 5. “Welcome to Europe” 107


1. Uma Entrevista Marcante:
de Uma Visão às Suas Ressonâncias 110

CAP. 6. O Paciente e a Sua Magia 115

CAP. 7. Vidas Passadas 121


1. Com os Pés Pelas Mãos – O Caso de Apar 121
2. Kan 131
2.1. De Trás para a Frente 131
2.2. De Frente para Trás 133
3. O Caso de “Velha-sane” 137
3.1. O Amanhecer 137
3.2. Meio-dia 139
3.3. Entardecer 141
3.4. Assim que a Noite Cai 146

CAP. 8. A Prisão Sem Paredes 151


1. A Experiência, a sua Interpretação, e a Clínica 155

(4) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


III PARTE: Experiências institucionais
no cuidado mental da diferença 163

Elsa Lechner
CAP. 9. Resumo comparativo dos modelos das consultas culturais
de Avicenne, Mortimer e Hospital Miguel Bombarda 165
1. A consulta transcultural do hospital Avicenne, Bobigny 165
2. A consulta cultural do Jewish Hospital em Montreal 168
3. A consulta do migrante no Hospital Miguel Bombarda 171

Cristina Santinho
CAP. 10. Refugiados e requerentes de asilo: abordagens
antropológicas no campo da saúde física e mental 177

Conclusão: Propostas para um serviço psicoterapêutico


com competência antropológica 197
Chiara Pussetti e Júlio F. Ferreira

Bibliografia 213

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (5)


Nota de Abertura

Abordar políticas de saúde é sempre uma matéria delicada, uma vez que subentende,
necessariamente, lidar com o sofrimento de seres humanos. Tratando-se de saúde mental
parece ainda mais delicado porque o ser humano surge, nessa situação, com uma ima-
gem ainda mais fragilizada.

Com a publicação deste estudo dedicado ao tema “Migrantes e saúde mental: a cons-
trução da competência cultural”, da autoria de Chiara Pusseti e Júlio Pereira, o ACIDI I.P.
procura ultrapassar mais uma barreira na direcção da plena integração dos imigrantes
na sociedade portuguesa, apresentando uma reflexão antropológica sobre a questão da
saúde mental dos imigrantes.

Aproveitando o conhecimento dos autores para divulgar uma perspectiva de cuidados de


saúde “culturalmente competentes”, reforça-se o trabalho efectuado nos últimos anos em
matéria de cuidados de saúde para as comunidades imigrantes, introduzindo um olhar
particularmente importante se tomarmos em conta, conforme nos revelam os investigado-
res, o carácter traumático da experiência migratória.

A extensão de cuidados de saúde para com os imigrantes, independentemente da sua


situação de regularidade administrativa, motivou uma apreciação internacional positiva,
testemunhada no recente relatório da ONU sobre Desenvolvimento Humano, que aponta
Portugal como o país do Mundo que tem a melhor política de integração dos imigrantes.

É este o lugar que queremos manter. E para isso contribuem as indicações que resultam de
estudos como este. Aqui fica, por isso, o nosso reconhecido agradecimento aos seus autores.

Rosário Farmhouse
Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (7)


Nota do Coordenador

A intensificação dos fluxos migratórios tendo por destino final o nosso país, verificada
nesta primeira década do novo século, fez emergir dimensões novas e anteriormente des-
conhecidas em serviços ditos de cuidados (“care”) como são os casos flagrantemente
relevantes da saúde e da educação.

Se, no caso da educação, a problemática da multi e interculturalidade vem tendo respos-


tas sistemáticas, ainda que insuficientes, desde a criação do Secretariado Entreculturas
em 1991 (Despacho Normativo n.º 63/91, de 18 de Fevereiro), o caso do sector da saúde
despertou para a problemática da diferença bem mais recentemente. A presidência por-
tuguesa da UE no segundo semestre de 2007 registou, neste particular, um inequívoco
avanço na matéria que é digno de menção especial.

A saúde mental é – pelos seus contornos especiais – uma das vertentes mais delicadas da
problemática sendo evidente, pela vulnerabilidade extrema do paciente imigrante, a neces-
sidade de detenção de competências culturais e interculturais por parte dos prestadores de
cuidados, seja na dimensão pessoal e profissional, seja mesmo na dimensão institucional
e organizacional.

A fim de fornecer um primeiro e importante contributo para preencher a lacuna de inves-


tigação sobre esta realidade, Chiara Pussetti e Júlio Ferreira dirigiram e organizaram o
presente volume da Colecção Estudos do OI dedicado à problemática “Migrantes e saúde
mental: a construção da competência cultural”, com generoso desvelo e reconhecida
dedicação.

Compreende-se que o olhar do antropólogo seja, neste caso, mais revelador do que o olhar
do clínico ou do administrador de saúde, já que se trata, no fundo, de acolher a pessoa
toda, diferente na fala, na memória, na identidade ou nos hábitos culturais, ao invés de pri-

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (9)


vilegiar a pessoa indistinta que padece de uma doença mental aparentemente semelhante
à de outros pacientes.

Pela novidade do olhar compreende-se e agradece-se que o estudo compreenda partes


manifestamente diferentes mas complementares.

Enquanto numa primeira parte se abordam as biopsicologias de saúde mental, na segun-


da parte lança-se o bisturi do estudioso sobre um caso de estudo de observação de uma
unidade psiquiátrica transcultural na área da Grande Lisboa. A parte terceira é dedicada à
descrição de experiências institucionais no cuidado mental da diferença.

Ainda que com características de obra colectiva, reunindo contributos diversificados de au-
tores variados, os coordenadores realizaram um meritório esforço de unidade e de criação
de um fio condutor que o leitor não deixará de sentir. A robustez teórica que inspira todo o
volume é também um garante da consistência da obra.

Os investigadores concluem com um leque oportuno de recomendações de ordem prática


de entre as quais se pode realçar o contributo para a definição de uma clínica cultural-
mente competente.

O acervo de estudos do OI/ACIDI fica sensivelmente enriquecido e completado com este


estudo.

Ficamos, pois, devedores aos seus principais impulsionadores e autores, Chiara Pussetti e
Júlio Ferreira, de um serviço académico de inestimável valia para a comunidade de interessa-
dos em alargar a sua esfera de saberes no exaltante dominio da mobilidade de pessoas.

Roberto Carneiro
Coordenador do Observatório da Imigração do Acidi

(10) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Migrantes e saúde mental
a construção da competência cultural

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (11)


Agradecimentos

Este relatório é, com efeito, fruto de um trabalho de equipa. Desejo agradecer em primeiro
lugar ao Dr. Júlio F. Ferreira, que realizou o trabalho de terreno para este projecto, partilhando
comigo as suas reflexões teóricas, os problemas práticos da pesquisa, os desafios e os re-
sultados conseguidos. Agradeço-lhe também pelas discussões e sugestões compartilhadas,
pela sua capacidade original de reler e apropriar ineditamente posições teóricas estabeleci-
das, assim como pela determinação e empenho demonstrados ao longo da investigação,
mesmo nas alturas em que o caminho se revelou mais impérvio do que o previsto.

Foram em particular as discussões com outros colegas e amigos trilhadores dos mesmos
territórios teóricos que tornaram possíveis as análises e reflexões aqui apresentadas.
Agradeço em particular ao Prof. Doutor Robert Rowland, pela sua disponibilidade e
rigor científico, ao Prof. Doutor Paulo Raposo, pela sua amizade, conselhos e apoio
incondicional, ao Dr. Francesco Vacchiano e ao Prof. Doutor Roberto Beneduce pela
partilha contínua que promoveram de ideias e inquietações. Foram as suas sugestões
que me indicaram o caminho a seguir. Exprimo também a minha gratidão à Dr.ª
Isabel Cardana e à Dr.ª Manuela Raminhos pela sua cooperação e suporte, e pela
disponibilidade e simpatia com que sempre apoiam os investigadores do CEAS. Desejo
agradecer especialmente as generosas contribuições da Dr.ª Elsa Lechner e da Dr.ª
Cristina Santinho, que enriquecem e dinamizam com um fôlego renovado as reflexões
temáticas deste relatório. As discussões que tivemos ao longo dos anos constituíram
uma fonte fértil de sugestões e estímulos, indicando-me territórios que não tinha ima-
ginado percorrer. Agradecimentos à Dr.ª Sandra Marques, que trabalhou em conjunto
com Ferreira para a selecção das partes de sua dissertação contidas neste livro. Um
agradecimento muito especial vai para a Dr.ª Ana Mourão, que trabalhou na revisão
linguística do texto, enriquecendo-o de sugestões e ideias, ajudando-me a organizar os
eixos temáticos e acompanhando as fases mais penosas do trabalho com estímulos
positivos, muitos sorrisos e rebuçados.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (13)


Agradeço também calorosamente a todas as outras pessoas que contribuíram para este
trabalho, médicos, psiquiatras, psicólogos, técnicos de saúde, pacientes e seus familiares:
esta abertura ao diálogo interdisciplinar e a disponibilidade em compartilhar experiências,
sofrimentos e dúvidas constitui o primeiro passo para a criação de um espaço de cura
caracterizado pelo rigor científico e pela humildade, sem perder a consciência do risco de
reprodução de lógicas discriminatórias, racistas ou muito simplesmente paternalistas. Mas
desejo ainda assim exprimir uma gratidão particular por aqueles que reagiram à nossa
presença enquanto investigadores e às nossas ferramentas teóricas de antropólogos com
uma atitude crítica, de desconfiança e negatividade, mesmo aqueles que face ao encontro
(ou desencontro) de interpretações e às divergências teóricas assumiram distanciamento,
fechando portas e caminhos. Porque sem encontrar resistência, sem criar atritos, sem
ter de lutar para prosseguir o próprio trabalho, é difícil conseguir manter a determinação
necessária para enfrentar uma investigação que é ao mesmo tempo uma aventura intelec-
tual, ética e política; e impossível conduzir o próprio pensamento numa direcção precisa,
conservando em simultâneo uma consciência crítica auto-reflexiva sobre os próprios limi-
tes e falhas teóricas.

À minha filha Sole, por todo o tempo que o trabalho retira


aos nossos beijos e brincadeiras, e pela sua forma especial
de transformar o retorno a casa numa grande alegria.

C.P.

(14) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


INTRODUÇÃO
PSIQUIATRIA TRANSCULTURAL:
UMA PRÁTICA AQUÉM DA PROMESSA
CHIARA PUSSETTI

Este estudo teve como propósito conhecer – através de entrevistas aprofundadas com
técnicos de saúde mental e pacientes imigrantes – a forma como os serviços instituciona-
lizados de saúde mental em Portugal dão resposta ao sofrimento e às necessidades da
população a que se destinam. Através destas entrevistas e de encontros com os pacientes,
tentou averiguar-se o funcionamento dos serviços de saúde mental “culturalmente compe-
tentes”, bem como a percepção e a interpretação do fenómeno
1 Conjugando os dados do SEF (Servi-
por parte dos diferentes actores sociais envolvidos.
ço de Estrangeiros e Fronteiras) sobre
a “população imigrante” – divididos
A temática é relevante dados os crescentes contrastes sociais entre Autorização de Residência, Au-
torização de Permanência e Vistos de
que apresentam os fluxos da imigração em Portugal nos últi- Longa Duração (projecção de 2006)
mos 15 anos1. Neste âmbito, são indispensáveis estudos em – e os dados do INE (Instituto Nacional
de Estatísticas) – com a projecção da
diversas áreas académicas para estudar e analisar os impactos população nacional para o mesmo
migratórios e a condição dos imigrantes, nos seus mais diferen- ano – não só se conclui a formação,
nos últimos 24 anos (1980-2004), de
tes aspectos, no contexto de acolhimento. A eleição da cidade
uma curva progressiva de crescimento
de Lisboa como cenário para a análise de um projecto psiquiátri- do número de imigrantes, num total
co transcultural deve-se à sua situação de capital, apresentando de 356,8%, (ver: www.acime.gov.pt/
docs/GEE/Caracterizacao_Imigracao.
uma centralidade de recursos e investimentos públicos e priva- pdf), como as estatísticas cruzadas
dos e larga oferta relativa de postos de trabalho, e constituindo apontam para que cerca de 4% da
população nacional é constituída por
uma rota de passagem ou permanência final para imigrantes de
imigrantes legais. (Ver: www.ine.pt/
diferentes proveniências. portal/page/portal/PORTAL_INE/bd
dXplorer?indOcorrCod=0000611&selT
ab=tab0; www.sef.pt/portal/v10/PT/
Apesar do reconhecimento de uma maior vulnerabilidade dos aspx/estatisticas/evolucao.aspx?id_
imigrantes face às problemáticas da saúde em geral e dos linha=4255&menu_position=4140#0).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (15)


problemas mentais em particular, e de terem sido feitos esforços para a sensibilização
desta população face aos riscos das doenças infecto-contagiosas (como a tuberculose, as
hepatites e a Sida), em Portugal não foi desenvolvida, até ao momento, uma reflexão antro-
pológica aprofundada sobre a questão da saúde mental dos imigrantes e a construção da
“competência cultural” nos serviços destinados a este público. Isto torna-se particularmente
importante se tomarmos em consideração o carácter traumático da experiência migratória,
com tudo o que ela implica: a ruptura e a reconstrução das identidades, os choques do “ex-
patriamento”, a vivência quotidiana de uma condição de “dupla ausência” (Sayad, 1999),
o descontentamento e as possíveis dificuldades de integração na sociedade acolhedora.
Neste sentido, torna-se relevante considerar também o âmbito mais abrangente do mal-estar
geral relacionado com processos sociopolíticos mais amplos, como a pobreza, a desigual-
dade de género, a violência e exclusão sociais, tantas vezes incorporados ao nível individual
como factores de risco e patologia.

É a vulnerabilidade ligada a todos estes factores que conduz os imigrantes a um pedido


de ajuda, e é no contexto das consultas de apoio médico e psicológico que muitas vezes
este sofrimento procura ser transmitido, em busca de respostas sensíveis e culturalmente
competentes. Infelizmente, podemos constatar na maior parte dos casos que os serviços
vocacionados para as populações migrantes não representam um espaço de escuta e de
reconhecimento do outro. A tomada de consciência dos mal-entendidos e impasses na
compreensão intercultural está a criar a necessidade colectiva de providenciar respostas
novas e originais para o mal-estar dos imigrantes. Um relatório recente da Organização
Mundial para as Migrações (IOM, 2005)2 incentiva a adopção na Europa de políticas de
saúde “culturalmente sensíveis ou competentes”, no sentido de
2 IOM (2005) World report on
melhorar a qualidade dos serviços de saúde para uma popula-
migration 2005: Costs and benefits ção que é cada vez mais multicultural.
of international migration, Genebra:
Organização Internacional para as
Migrações. Um esforço para a criação de reflexão crítica na área da saú-
http://www.iom.int/iomwebsite/ de mental transcultural está a ser levado a cabo por diversos
Publication/ServletSearchPublication?e
vent=detail&id=4171 (acedido a 20 de
países na Europa. Nas políticas da saúde dirigidas aos imigran-
Setembro de 2005). tes, o enfoque é colocado sobre o carácter imprescindível da

(16) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


interdisciplinaridade, da investigação (em particular nas áreas da antropologia médica e
da etnopsiquiatria) e de uma formação “antropológica” contínua dos técnicos de saúde
– visando a competência cultural destes face aos pacientes imigrantes e às suas espe-
cificidades (como as de menores não acompanhados, vítimas de tortura, refugiados e
requerentes de asilo político). Os inquéritos europeus sublinham a alta percentagem de
mal-entendidos produzidos entre operadores da saúde e pacientes imigrantes, mesmo
na presença de mediadores linguísticos. É focada a importância de uma colaboração de
mediadores culturais e de terapeutas imigrantes com os técnicos de saúde e cientistas
sociais. Estas são algumas das prioridades da UE (Programme of Community Action in
the Field of Public Health, 2003-2008), da OMS e da OIM, sobretudo face a dificuldades
sanitárias onde a dimensão cultural se torna especialmente significativa, como no caso do
sofrimento psíquico agudo, dos menores em risco e das vítimas de trauma.

Em Portugal, a tentativa de criar sinergia na relação entre profissionais da área da saúde


mental e imigrantes é recente, e a reflexão teórica sobre o assunto praticamente inexisten-
te. O mesmo é válido para as figuras profissionais do Mediador Linguístico e do Mediador
Transcultural, porquanto só presentemente a sua necessidade começa a ser considera-
da no contexto clínico geral, e menos ainda na área da saúde mental. As experiências
europeias mostram como a colaboração de profissionais da saúde, cientistas sociais e me-
diadores pode de facto mudar a relação entre comunidades antes praticamente invisíveis e
os serviços sanitários nacionais. Nos projectos-piloto criados na Holanda, assim como na
França, Alemanha e Itália, foram criadas equipas multidisciplinares de colaboração entre
cientistas sociais e técnicos de saúde de diversas formações (e no caso francês, também
diferentes origens e nosologias), com o fim de fornecer explicações originais e traçar per-
cursos terapêuticos inéditos. As práticas e saberes terapêuticos dos quais os imigrantes
são portadores não têm sido até ao momento valorizados no âmbito da saúde pública
em Portugal, pelo que esta colaboração auspiciada pelos documentos europeus não se
encontra ainda em curso.

Estão porém a ser desenvolvidas campanhas de sensibilização cultural dos serviços de


saúde pública, e a ser criada uma reflexão nova sobre a questão da gestão social do

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (17)


pluralismo terapêutico e da criação de serviços de saúde mental multiculturais. Neste
sentido, importa lembrar que Portugal está incluído no European Survey on Migration and
Health (IMISCOE/IOM), assim como na Action Cost IS0603 – Health and Social Care for
Migrants and Ethnic Minorities in Europe. Estes estudos situam, todavia, Portugal como
um dos países com maiores limitações no que diz respeito em particular aos cuidados de
saúde mental dirigidos a imigrantes, sublinhando a escassez de investigação académica
antropológica (e das ciências sociais em geral) assim como a impermeabilidade do am-
biente médico à presença de cientistas de outras áreas e formação. O último inquérito
europeu sublinhou a falta de preparação dos técnicos de saúde para assuntos “culturais”
e o desenvolvimento de um diálogo “transcultural” eficaz, a falta de pesquisa e de cola-
boração interdisciplinar, e a escassez de intérpretes linguísticos e mediadores culturais3.
Por outras palavras, os clínicos tomam as práticas culturais “exóticas” como algo por sua
natureza “hostil à normalidade racional”, cujo restabelecimento constituiria o objectivo das
aplicações terapêuticas. Associa-se a este cenário o facto de Portugal e a Grécia serem os
únicos dois países da União Europeia que não produzem dados acerca da saúde mental
dos imigrantes4, o que circunscreve este trabalho a uma área pouco desenvolvida e de
grande importância prática a nível da intervenção.

Para esta pesquisa, concentramo-nos particularmente nas interacções entre os diversos


protagonistas do encontro terapêutico, assim como nas modificações ou transformações
ocorridas nesta interacção. O objectivo foi o de conhecer a forma como os serviços de
saúde mental institucionalizados em Portugal fazem face e dão resposta ao sofrimento e
às necessidades da população a que se destinam.

O estudo em questão foi realizado por um investigador, o Júlio F. Ferreira, com bolsa de
estudo atribuída pelo ACIDI (Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural)
e pelo CEAS (Centro de Estudos de Antropologia Social), insti-
3 Ver: De Freitas, 2003 e 2006.
4 Ver: “Health and Social Care for tuições às quais aproveitamos para agradecer. O seu trabalho
Migrants and Ethnic Minorities in foi convertido numa tese de mestrado em Antropologia Social,
Europe” (2006), da rede IMISCOE
International Migration, Integration and
consagrada ao assunto das esperanças, problemas e desafios
Social Cohesion – European Survey. ligados à implantação de um projecto de psiquiatria transcul-

(18) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


tural para imigrantes em Portugal. O trabalho prático do investigador foi realizado entre
Janeiro do 2007 e Abril de 2008.

A sua proposta de abordagem de assuntos sensíveis no universo dos fluxos migratórios


na Europa, e com o potencial à partida para criar contraposições e visões contrastantes
em relação às dos profissionais de saúde nele envolvidos, gerou uma série significa-
tiva de resistências institucionais à presença do investigador, que acabou por lhe ver
vedada a possibilidade de assistir às consultas ou de aceder às fichas clínicas dos
pacientes no contexto hospitalar. Dada a continuidade desta atitude de resistência,
foi adoptada por Ferreira a estratégia de procurar informação sobre o hospital fora do
mesmo, em particular junto de alguns elementos profissionais que se haviam retirado
da Unidade Transcultural para continuar a tratar os utentes do hospital nos seus con-
sultórios particulares. Neste contexto foi concedida a permissão, por ambas as partes
(terapeutas e utentes), para acompanhamento de alguns casos e levantamento das
respectivas fichas médicas, que incluíam os historiais clínicos de acompanhamento
intra-hospitalar. Foram efectuadas entrevistas com psiquiatras, psicólogos e antropólo-
gos da Transcultural, que proporcionaram a reconstrução parcial de histórias de vida
dos utentes, dos seus percursos clínicos, diagnósticos, medicação, bem como a possi-
bilidade de contacto directo com os mesmos, para obtenção de informações adicionais
e dos seus pontos de vista quanto ao próprio mal-estar e cuidados recebidos. A maior
parte do trabalho foi desenvolvida graças à colaboração de uma psicóloga do grupo,
que forneceu ao investigador o acesso a muitas informações clínicas, discutindo longa-
mente consigo os casos e possibilitando-lhe o contacto directo com alguns pacientes,
as entrevistas com os técnicos de saúde que formavam o grupo, e a participação das
reuniões abertas ao público.

Devido a dificuldades logísticas encontradas na realização do trabalho de terreno, deci-


dimos introduzir neste relatório também algumas componentes de reflexão mais teórica,
quer ligadas à nossa experiência de trabalho na área da antropologia médica e da etnopsi-
quiatria clínica, como forma de introdução à problemática, quer dando voz a duas colegas
antropólogas, igualmente investigadoras nesta zona de fronteira entre o saber biomédico

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (19)


e a imigração – que é portadora de diferentes representações e percepções do corpo, da
doença e da cura.

Consideramos relevante a participação de outros pesquisadores empenhados no mesmo


terreno de investigação, não somente para enriquecer a reflexão e análise sobre o tema,
dando espaço a outras vozes e experiências, mas também procurando criar um diálogo
entre campos e posicionamentos teóricos diferentes, com vista à sugestão final de reco-
mendações dirigidas às políticas públicas no domínio da saúde mental.

A Elsa Lechner trabalhou enquanto antropóloga durante quatro anos num serviço de apoio
psiquiátrico para imigrantes, concentrando-se em particular na recolha de histórias de
vida dos pacientes e no valor terapêutico de uma abordagem clínica centrada no indivíduo
(person-centered)5. A pesquisa da Maria Cristina Santinho foca-se sobre o apoio psiquiátri-
co a uma categoria de imigrantes muito particular: refugiados, vítimas de trauma e tortura,
exilados e requerentes de asilo político, que está ligada a histórias dramáticas e a diagnós-
ticos geralmente específicos (como a síndroma de stress pós-traumático). Ainda assim, o
seu trabalho ilumina os desafios e os problemas próprios do encontro clínico transcultural
na área global da saúde mental, fornecendo material etnográfico rico e original que convi-
da à reflexão crítica.

A integração no presente volume dos contributos de autores heterogéneos, com perspec-


tivas, pontos de partida e terrenos diversos dentro do campo mais vasto da antropologia
médica é o que motiva a divisão temática do livro em partes e capítulos distintos. Contu-
do, a análise segue um fio condutor claro e unificador, constituído pela reflexão comum
dos investigadores – conquanto recorrendo a instrumentos variados (reflexão teórica, aná-
lise de dados ou observação etnográfica) em realidades institucionais e humanas elas
próprias diversas – sobre uma mesma questão essencial: quais os limites e as lacunas, os
obstáculos e os espaços de diálogo, as virtudes e as direcções previsíveis dos serviços de
saúde mental vocacionados para os imigrantes no contexto nacional, e quais as propostas
ao nível das políticas públicas que essa análise inspira para o
5 Hollan, 1997: 219-234. futuro destes serviços.

(20) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Os investigadores que colaboraram para a realização deste relatório adoptaram as pro-
postas de análise, as problemáticas e as perspectivas teóricas apresentadas por autores
de referência na antropologia médica crítica e na etnopsiquiatria clínica. Tal aproximação
à antropologia médica crítica decorre naturalmente do objecto de estudo desta pesquisa,
que reúne múltiplos e complexos aspectos decorrentes do encontro clínico entre leigos e
técnicos de saúde – representações do risco e prevenção, factores sociais e culturais que
lhes estão associados, estigma social, adaptação de factores multiculturais às práticas
públicas, implicações sociais dos modelos institucionais, e intervenções biomédicas – para
além das dimensões políticas e económicas que estão na base deste encontro.

O que caracterizou a nossa abordagem crítica foi portanto a consciência de que a aten-
ção ao contexto social e político constitui um aspecto incontornável na compreensão da
dimensão “cultural” no interior do trabalho psiquiátrico. As interpretações do sofrimento
apelam a uma consciência da história do discurso que as elabora, e o seu contexto é
sempre o das relações de poder locais: um posicionamento crítico considera necessa-
riamente as práticas e estratégias terapêuticas no interior das relações de força que as
geram e sustentam, avaliando a posição dos interlocutores e a ideologia veiculada pelas
categorias diagnósticas.

Seguindo esta preocupação crítica, decidi organizar e compor o relatório da seguinte for-
ma: a primeira parte, intitulada “Biopolíticas de Saúde Mental – medicalização, cultura e
resistência” é composta por três capítulos da minha autoria, que apresentam algumas das
questões teóricas mais relevantes para a discussão sobre a saúde mental transcultural.
O primeiro capítulo, “Corpos em trânsito e sofrimento psíquico”, evidencia criticamente
o carácter da experiência migratória enquanto factor de risco e patologia. O segundo
capítulo traça, a partir de algumas reflexões propostas por autores de referência na an-
tropologia das emoções, as diferenças fundamentais entre a psiquiatria transcultural e a
etnopsiquiatria. O capítulo final desta primeira parte concentra-se em específico sobre a
depressão enquanto desordem de que padecem particularmente os imigrantes, segundo
a opinião da generalidade dos técnicos de saúde entrevistados. A partir de uma reflexão
sobre a famosa controvérsia da existência ou ausência da depressão entre os africanos, é

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (21)


questionada a possibilidade de pensar qualquer forma de sofrimento independentemente
das dinâmicas sociais e interesses políticos e económicos que a constroem, produzem,
reconhecem e nomeiam. A discussão sobre a presença da depressão em África (ou no
caso da pesquisa conduzida no serviço transcultural, entre os imigrantes africanos) é
neste âmbito interpretada no interior do mais amplo quadro político-económico, outrora
utilizado como forma de legitimar a empresa colonial e, no presente, como forma de
justificar novas formas de imperialismo.

Se a primeira parte configura o enquadramento teórico do volume, a segunda parte, “Es-


tudo de caso: Práticas e Discursos numa Unidade Psiquiátrica Transcultural”, apresenta
os resultados da pesquisa etnográfica realizada pelo investigador Júlio F. Ferreira, no duplo
âmbito da sua dissertação de mestrado (integrando-a parcialmente, tendo no entanto so-
frido um processo de revisão e edição para o presente formato de livro) e de uma Bolsa
de Investigação do ACIDI (que culminou na realização deste relatório). O quarto capítulo,
intitulado “Uma experiência clínica transcultural”, apresenta um enquadramento do es-
tudo e explica o funcionamento e retórica do serviço transcultural no qual o investigador
realizou trabalho de terreno. O quinto capítulo, “Welcome to Europe”, discute a ideologia
assimilacionista da “racionalidade europeia”, apresentando a título ilustrativo uma entre-
vista marcante com uma das psicólogas do grupo, sobre os conceitos, práticas e discursos
da unidade transcultural. No sexto capítulo, “O Paciente e Sua Magia”, é equacionada de
forma crítica a construção de uma categoria diagnóstica que identifica o mal-estar dos
imigrantes: a “Síndrome de Ulisses”. O sétimo capítulo é dedicado à apresentação de
três casos clínicos que o investigador analisou em profundidade, e que ilustram a incom-
preensão e o desencontro entre pacientes imigrantes e psiquiatras. Finalmente, “A Prisão
Sem Parede” apresenta uma leitura particular do autor sobre a patologização da diferença
sociocultural, através da metáfora do “panóptico” presente no hospital moderno.

A terceira parte, “Experiências institucionais no cuidado mental da diferença”, reúne as


contribuições de Elsa Lechner e de Cristina Santinho. O texto de Lechner apresenta de
forma comparativa três modelos de consulta de psiquiatria dirigida a populações migrantes
em serviços transculturais: a consulta dirigida por Marie-Rose Moro no hospital Avicenne

(22) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


em Bobigny (Paris); a consulta do Jewish Hospital de Montréal, dirigida por Laurence
Kirmayer; e a “Consulta do Migrante”, criada por Inês Silva Dias no Hospital Miguel Bom-
barda e extinta pelas reformas do serviço nacional de saúde do actual governo português.
Estes serviços partilham o objectivo de procurar dar resposta às necessidades de apoio
psicológico de populações migrantes. No entanto, apresentam diferenças relevantes nas
suas filiações teóricas, contexto histórico de emergência e nos dispositivos terapêuticos
que aplicam e desenvolvem na prática. A consulta de Avicenne funciona no serviço de
pedopsiquiatria do hospital dirigindo-se a crianças e adolescentes. É dirigida pela pedop-
siquiatra Marie-Rose Moro, baseia-se nos fundamentos da etnopsicanálise e trabalha com
uma equipa pluridisciplinar alargada. As crianças são recebidas com a família, por tradu-
tores e mediadores culturais para além dos terapeutas. Os serviços de psiquiatria cultural
do hospital Mortimer em Montreal dirigida por Laurence Kirmayer reúnem uma equipa
transdisciplinar e assentam numa perspectiva crítica da psiquiatria cultural contemporâ-
nea baseada na autocrítica dos próprios terapeutas relativamente aos seus preconceitos e
conceitos teóricos. A Consulta do Migrante no Hospital Miguel Bombarda é o mais jovem
destes serviços. Foi criada em 2004 pela médica psiquiatra Inês Silva Dias e funcionou
até 2007 com uma equipa de três médicos, três psicólogas e um psicopedagogo. Este
projecto-piloto em Portugal teve o mérito de propor um serviço diferenciado consciente da
importância das diferenças culturais na manifestação da doença. Não obstante, segundo
a análise proposta pela autora, não atingiu os seus objectivos e intenções.

Cristina Santinho apresenta um trabalho levado a cabo no Centro Português de Refugia-


dos, Centros de Saúde e Consultas de Psiquiatria, onde a investigadora realizou entrevistas
aprofundadas com médicos e técnicos de saúde e recolheu histórias de vida de refugiados
e requerentes de asilo. O seu artigo foca, através de uma abordagem crítica e construtiva,
a questão do suporte institucional providenciado à saúde física e mental dessa categoria
particular de imigrantes. Sendo que os refugiados constituem um grupo específico de
imigrantes que se caracteriza por serem vítimas de gravíssimos atentados aos direitos
humanos nos seus países de origem – guerras, perseguições, torturas – é aqui defendida
a necessidade de uma abordagem diferenciada no campo da saúde que tenha em conta
por um lado, as suas origens culturais e linguísticas e por outro, a necessidade de se en-

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (23)


contrarem mecanismos nosológicos adequados à história de vida e à história do trauma de
que, na maioria dos casos, são portadores. Como resultado de uma investigação realizada
pela autora, que implicou observação participante, entrevistas em profundidade e histórias
de vida aplicadas a refugiados e requerentes de asilo, bem como a médicos e psiquiatras
que os consultam, conclui-se que por enquanto, em Portugal, os serviços médicos são de-
sadequados à particularidade destes eventuais pacientes. Salienta-se ainda a gravidade da
situação no campo da saúde mental, onde não existem respostas nosológicas adequadas
ao trauma e onde as barreiras linguísticas, culturais e sociais são ainda intransponíveis.
Conclui-se, apresentando alternativas a um serviço de saúde físico e mental que passe
necessariamente pela constituição de equipas pluridisciplinares que possam contextualizar
a história do trauma numa história de vida mais ampla que ajude a restituir ao refugiado o
sentido da sua existência e lhe proporcione os mecanismos para reinterpretar a sua história
no novo contexto sociocultural, económico e político do país que o acolheu.

A conclusão deste relatório, assinada por mim e pelo investigador deste projecto, preten-
de apresentar algumas sugestões construtivas no âmbito dos cuidados de saúde mental
transculturais, com potencial aplicação a futuros serviços de aconselhamento e acom-
panhamento psicológico e psiquiátrico para migrantes. A ideia central desta proposta é
devolver a voz e agentividade aos pacientes enquanto sujeitos políticos e morais, tantas
vezes silenciados em prol da valorizada “racionalidade” ocidental. O espaço clínico – hí-
brido e em constante construção e alteração, palco de encontro e partilha profunda com
os pacientes migrantes, os seus desejos, saberes, dúvidas e estratégias – torna-se desta
forma um meio de acesso privilegiado às múltiplas e complexas dimensões da experiência
migratória, tantas vezes ignoradas apesar da sua importância para a compreensão daquilo
que acontece no atravessar de uma fronteira.

É no seio deste panorama conflitual, móvel e mutável, no qual múltiplos discursos coe-
xistentes entram em contradição, e onde os problemas sociais podem tornar-se sintomas,
que o psiquiatra cultural deve intervir, problematizando as traduções como processos com-
plexos a enfrentar e pensar, em vez de soluções rápidas a empregar – no fundo tão rápidas
quanto superficiais. O convite é o de trabalhar sem nunca perder a consciência das rela-

(24) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


ções entre conhecimento, poder, autoridade e hegemonia; da multiplicidade dos factores
em jogo (sociais, políticos e económicos, além de culturais); e da centralidade dos indiví-
duos em si, das suas interpretações, experiências de mal-estar, representações, emoções,
ambiguidades, memórias, e esperanças. Cenário sem dúvida instável e contraditório que
o psiquiatra tem de confrontar, a juntar à ininteligibilidade natural do mundo interior dos
indivíduos. Estes, por sua vez, “fazem com efeito referência a esquemas que inevitavelmen-
te produzem quebra-cabeças, anomalias, espaços vazios, contradições e sobreposições
de valores; a códigos centrais de referência que geram estruturas de representações e
cenários pragmáticos que podem ser amplamente caracterizados como móveis, instáveis
e transitórios” (Bibeau, 1997: 55-57)6.

Nas palavras de Roberto Beneduce, é necessário romper o invólucro das categorias diag-
nósticas e das pré-noções psicológicas que no curso dos anos tentaram circunscrever ao
perímetro opressivo de uma aflição, de um problema “ligado à cultura”, ou de um quadro
sintomático bem definido, expressões e fenómenos complexos e heterogéneos (Beneduce
2002b: 28). “Os pacientes são pessoas, pessoas em crise com certeza: uma crise existen-
cial, social, ou familiar, e nós não podemos assim ter a presunção de considerar esta crise
simplesmente como uma qualquer patologia. (…) Talvez as categorias da psiquiatria, como
os manicómios, existam só para tornar racional o que não se compreende: quando uma
pessoa entra no manicómio já não é um louco mas um doente. (…) A certeza é que, no
final, a loucura nunca é escutada no que diz ou quereria dizer” (Basaglia, 1981 e 1982).

Porquanto o texto seja o resultado de um trabalho de equipa e de reflexões comuns, cada


capítulo reflecte o posicionamento teórico próprio de cada autor e é, portanto, de sua
inteira responsabilidade e mérito.

6 Muitos autores salientaram a


importância de uma abordagem cen-
trada sobre o paciente (entre outros,
ver: Castillo, 1997; Hollan, 1997).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (25)


I PARTE
BIOPOLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL
– MEDICALIZAÇÃO, CULTURA E RESISTÊNCIA

CHIARA PUSSETTI

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (27)


Capítulo 1.
Corpos em trânsito e sofrimento psíquico

A situação de saúde dos imigrantes e dos grupos étnicos minoritários é considerada,


ao nível da Europa, pior do que a do cidadão europeu médio. Segundo a declaração de
Amesterdão7 os imigrantes não recebem cuidados de saúde ao mesmo nível do que a
média da população – em termos de diagnóstico, tratamento e serviços preventivos – e
os serviços de saúde não são suficientemente receptivos às necessidades específicas das
minorias. Os profissionais da saúde não possuem a preparação cultural adequada para se
relacionar com utentes provenientes de outros contextos, e quase não existe colaboração
interdisciplinar entre ciências médicas e sociais. As sondagens europeias8 sublinham a alta
percentagem de mal-entendidos entre operadores da saúde e pacientes imigrantes, mes-
mo quando estejam presentes mediadores linguísticos; e realçam como o uso da categoria
“imigrante”, proposta nestes programas terapêuticos, homogeneiza experiências e vivên-
cias que podem ser completamente diferentes (diferenças, por exemplo, entre migrantes
laborais, ilegais, refugiados, menores não acompanhados, vitimas de trauma, requerentes
de asilo político, imigrantes de primeira geração ou seus descendentes, e ainda diferenças
de género e de idade, etc.)9.

Os problemas de saúde, ainda de acordo com os dados dos relatórios europeus, são
agravados por uma deficiente inserção comunitária, por níveis sociais e económicos
mais baixos que o nível médio do país de acolhimento, por barreiras linguísticas e cultu-
rais, etc. Apesar do reconhecimento destas características gerais, e de terem sido feitos
esforços para a sensibilização desta população face aos riscos
das doenças infecto-contagiosas (como a tuberculose, as hepa- 7 Cf. http://www.mfh-eu.net/public/
tites e a Sida), até agora faltam reflexões aprofundadas sobre european_recommendations.htm
(acedido a 10 de Julho de 2008).
a especificidade e necessidades destes grupos em particular 8 COST Action “Health And Social
na área da saúde mental, onde continuam a ser reproduzidas Care For Migrants And Ethnic Minori-
ties In Europe”.
atitudes universalistas, organicistas e biomédicas da doença. 9 Programme of Community Action in
Os imigrantes são considerados mais expostos a riscos de de- the Field of Public Health 2003-2008.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (29)


senvolvimento de patologias mentais: apesar de explicações genéticas e bioquímicas
terem sido por muitos anos a explicação privilegiada deste fenómeno10, estudos recentes
sublinham o papel da exclusão social e da discriminação como factores condicionantes
da psicopatologia11.

O processo migratório, segundo alguns autores, constitui em si um factor de risco, na me-


dida em que reúne sete elementos de perda: da família e dos amigos, da língua, da cultura,
da casa, da posição social, do contacto com o grupo étnico e religioso. Esta série de perdas
é experienciada como um luto e sempre acompanhada por uma maior vulnerabilidade
aos transtornos mentais e/ou às perturbações emocionais (Desjarlais et al., 1995; Bibeau
1997; Kirmayer & Minas, 2000; Persaud & Lusane, 2000; Murray & Lopez, 1997). Muitos
autores realçaram a maior vulnerabilidade que os imigrantes apresentam em relação a
problemas de saúde em geral (Carballo et al., 1998; Jansà, 2004) e de saúde mental em
particular, devido não só à dureza do processo migratório (Carta et al., 2005; Pumariega
et al., 2005; Keyes, 2000; Fox et al., 2001; Hermansson et al., 2002; Maddern, 2004;
Mollica et al., 2001; Steel & Silove, 2001), mas também à exposição quotidiana a formas
de discriminação (Comas-Diaz & Greene, 1995; Essed, 1991; Fernando, 1984; Kessler,
Mickelson, & Williams, 1999; Noh, Beiser, Kaspar, Hou, & Rummens, 1999; Ren, Amick, &
Williams, 1999; Salgado de Snyder, 1987).

Sem dúvida a fragilidade destes grupos não é somente devida à experiência da migração,
mas especialmente ligada à sua situação socioeconómica mais precária, à marginalização,
à ilegalidade e à falta de um apoio social adequado: condições que causam pressão psicoló-
gica, além de constituírem factores de risco sanitário no seu sentido mais amplo (altas taxas
de traumatismos e incidentes no trabalho, por exemplo). Ironi-
10 Para uma apresentação crítica camente, Abdelmalek Sayad, reflectindo sobre a relação entre
destas posições cf. Littlewood R. e
doença, sofrimento psíquico e migração, questiona se os “pro-
Lipsedge M. [1982] 1997; Fernando
1988; 1991; 1995; 1998; 2002; 2003. blemas” dos imigrantes serão verdadeiramente problemas “dos”
11 Ver: Chakraborty & McKenzie, imigrantes ou, antes, problemas da sociedade e das instituições
2002; McKenzie, 2003; Cooper, 2005;
Hjern et al., 2004; Wicks et al., 2005;
“em relação aos” imigrantes, problemas por outras palavras de
Cantor-Graae & Selton, 2005. origem sociopolítica (Sayad, 1999; aspas acrescentadas).

(30) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Ao mesmo tempo, os imigrantes são considerados como um grupo de contágio, com hi-
giene insatisfatória, moralmente ambíguo ou desviante, portador de desordem social e de
doenças “exóticas”, “infecciosas”, “estranhas”. O imigrante, ameaça potencial da ordem
moral, política, económica e simbólica constituída, é um perigo: a sua presença – ou ainda
melhor, a sua dupla ausência12 – assusta e contamina. É exactamente no seu “não estar”
que reside a culpa originária do imigrante: é culpado de um reato latente, da violação de
uma fronteira, da permanência num país sem permissão, da sua posição apolítica e aceite.
É alguém deslocado (déplacée), “suspenso entre dois mundos” (Nathan, 1986), “órfão
da própria cultura” (Ben Jelloun, 1977), numa condição de “des-identidade” (Lai, 1988)
ou “manque à être” (Bastide, 1976). A maior parte dos imigrantes entrevistados para este
trabalho, assim como noutras ocasiões (Bordonaro e Pussetti, 2006), contam histórias que
relatam o despedaçamento da identidade, a paralisia face à multiplicidade e à fragmenta-
riedade das referências espaciais e simbólicas; exprimem queixas de viver como “zombies”
ou “vampiros”, nem vivos nem mortos, suspensos entre dois mundos sem pertencer a
nenhum, reclusos numa prisão invisível. Ao contrário do que acontece com outros grupos
noutros contextos, tentando manter uma ubiquidade árdua, os imigrantes entrevistados
no curso desta investigação queixam-se de não se situar nem “aqui” nem “lá”: falam por
outras palavras de um transnacionalismo incompleto ou impossível, da incapacidade de se
moverem livremente, da prisão da irregularidade, da angústia da perseguição pela polícia,
de um aprisionamento feito de controlos, requisições e discriminações contínuas.

O imigrante é alguém sem colocação: não pertence ao país de acolhimento e já não


se identifica com a sua região de origem. Para esta situação concorre o endurecimento
actual das políticas migratórias, que não favorecem em nada a integração, mas antes
pelo contrário contribuem para alimentar estereótipos promotores de um clima hostil e
de recusa em relação aos estrangeiros. Alessandro Dal Lago13 afirma que o primeiro ní-
vel de discriminação tem lugar na linguagem mediática e política da imigração. Termos
como “clandestino”, isto é, indivíduo que tem de se esconder, “irregular” ou “ilegal”,
instituem uma relação próxima entre a ideia do imigrante e a do
criminoso, do desviante, e do delinquente. A sua “não coloca- 12 Sayad, 1999.
ção social” torna-o num ser simultaneamente invisível e opaco, 13 Dal Lago, 1999.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (31)


porque incomodamente presente, intimidativo enquanto símbolo das margens, do que a
sociedade tenta excluir e pretende não ver; é o criminoso, o ilícito, o irregular e, portanto,
o bode expiatório de qualquer problema social (Wacquant, 2002). As raízes desta sobrepo-
sição semântica e os factores históricos e económicos que a geram são todavia raramente
examinados com rigor científico: assiste-se ao mesmo tempo a uma des-civilização da
vida nas periferias das grandes cidades e a uma demonização das minorias. Muitas vezes
as estratégias repressivas ou de controlo “sanitário” tornam-se as únicas formas viáveis
para enfrentar a falência da integração. As prisões da Europa, assim como os hospitais
psiquiátricos, enchem-se progressivamente de cidadãos estrangeiros. No campo específico
da saúde mental, assiste-se a uma sobreposição de noções como “desviante”, “estranho”,
“exótico”, e “patológico” (Pussetti, 2006). Diversos autores realçaram como os diag-
nósticos psiquiátricos funcionam regularmente enquanto instrumentos de controlo e de
opressão das experiências de segmentos marginais e subalternos da população. A leitura
patologizante ou medicalizante da diferença cultural ou exclusão social, própria de muitos
programas terapêuticos, permite por outras palavras incorporar as características de gru-
pos minoritários como elementos potencialmente patológicos que é necessário controlar
e monitorizar (Conrad e Schneider, 1980; McKenzie, 1999; Fernando, 1988, 1991, 1995,
1998, 2002, 2003; Santiago-Irizarry, 2001; Peirce, Earls, e Kleinman, 1999; Kleinman,
2001; Farrington, 1993; Littlewood e Lipsedge [1982] 1997). O imigrante deve demonstrar
continuamente a sua inocência, quer face à sociedade de origem que muitas vezes o
considera um fugitivo, um traidor, quer face à sociedade de acolhimento que o vê como
um intruso: sabe que para ser tolerado não pode incomodar, contestar ou objectar. O seu
espaço é o da invisibilidade social e moral.

Diferentes autores afirmaram que é exactamente a “invisibilidade social” ou a liminari-


dade da experiência migratória, amplificada pelas contradições das políticas migratórias
e pelas barreiras burocráticas, que acabam por gerar perturbações emocionais e patolo-
gias mentais14. A “psicopatologia” identificada no migrante seria nesta visão o resultado
da passagem árdua entre uma cultura e a outra, da falta de in-
14 Lock e Scheper-Hughes, 1987;
tegração na sociedade de acolhimento, da crise identitária, da
Scheper-Hughes, 1994; Farmer, 1992. discriminação: será a tentativa de uma mestiçagem impossível

(32) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


a geradora de patologias psíquicas (Nathan, 1994), assim como a ambivalência da posi-
ção do imigrante (Risso e Frigessi, 1982), a laceração insanável entre utopia e saudade
(Bordonaro e Pussetti, 2006), entre ilusões e sofrimento (Sayad, 1999). Alguns autores,
que desenvolveram uma análise crítica dos programas de saúde mental destinados aos
imigrantes, e dos assim chamados “síndromes ligados à cultura” (culture-bound syndro-
mes)15, notaram a ausência de categorias diagnósticas e de estratégias terapêuticas que
tomassem em consideração questões político-económicas como problemas de integra-
ção, discriminação, estigma, pobreza, racismo ou violência (Velásquez et al., 1993). Essa
falta, segundo estes autores, reduz à invisibilidade as experiências reais e quotidianas
dos migrantes e dos grupos marginalizados, as suas histórias e percursos distintos. “In-
visibilidade” essa que se torna evidente consultando os processos clínicos dos utentes
dos serviços de saúde mental para migrantes. As fichas clínicas são expressão eloquente
do silenciamento das suas vozes: nas palavras de Roberto Beneduce, são caracteriza-
das por uma verdadeira “amnésia profissional selectiva” (Beneduce, 2007), que ignora
muitas vezes elementos como: a transcrição da cidade de nascimento ou de prove-
niência (cingindo-se geralmente à nacionalidade), a reconstrução da árvore genealógica
(demasiado complexa, onde o parentesco não reproduza fielmente o modelo ocidental),
a indicação dos diversos nomes pessoais que muitas vezes
relatam etapas importantes da vida e processos de construção 15 A categoria de “culture-bound syn-
dromes” está presente no Diagnostic
da identidade e das relações familiares (com indicação apenas and Statistical Manual of Mental Disor-
do nome “oficial”), ou a interpretação individual do sofrimento ders (DSM-IV) da American Psychiatric
e da doença. Na explicação de Beneduce, estas “amnésias” Association só há algumas décadas.
Na Primavera de 1991, de facto,
são expressão daquele distanciamento etnocêntrico pelo qual os maiores estudiosos na área da
esquecemos que o imigrante é também um emigrante, isto psiquiatria cultural encontraram-se em
Pittsburgh para avaliar hipóteses de
é, alguém proveniente de um local no qual possuía ligações, inclusão da dimensão cultural na nova
afectos, uma posição social específica, e de um contexto so- edição do DSM. A ideia surgiu, como
cial e histórico denso de significados. Tal cesura contribui para se refere na introdução do DSM-IV, da
opinião segundo a qual uma consulta
a criação daquela “divisão identitária”, “dupla consciência”, culturalmente sensível tem de contar
ou “dupla ausência” que são próprias de quem passa pela com a identidade étnica, linguística
e religiosa do paciente e com as
experiência da migração, e que podem manifestar-se através explicações culturais que ele oferece
de sintomas (Sayad, 1999). para sua aflição (Pussetti, 2006).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (33)


As condições particularmente duras da migração contemporânea, juntamente com o peso
de um passado colonial silenciado mas todavia presente em muitos preconceitos e este-
reótipos, são propícias a um aumento exponencial das psicopatologias nos imigrantes,
segundo alguns autores16, não somente por causa de óbvias fracturas identitárias – li-
gadas, por exemplo, à distância da cultura de acolhimento, à ruptura das ligações com
o contexto de origem, a uma condição de “ubiquidade impossível” e de “provisoriedade
permanente” (Sayad 1999) – mas especialmente devido a factores económicos e políticos.
Um aspecto adicional constitui o sofrimento dos imigrantes como algo simultaneamente
social e político: o facto de os imigrantes, como nos lembra insis-
16 Bhugra e Ayonrinde, 2004,
tentemente Sayad (1995), serem provenientes de países outrora
Fernando, 1984, Watkins et al., 2006,
Brown et al., 2003, Jackson et al., colonizados, e muitas vezes residentes nos países que foram
1996, McNeilly et al., 1996, Pak et colonizadores. Uma ligação histórica dolorosa e difícil, uma “ver-
al., 1991, Thompson, 1996, Williams
& Williams-Morris, 2000, Desjarlais
dade colonial” que é geralmente omitida – como sustenta Homi
et al., 1995, Bibeau, 1997, Kirmayer Bhabha (2001) – mas que emerge através do sintoma, através
& Minas, 2000, Persaud & Lusane,
da linguagem do corpo e do sofrimento. Neste sentido, o corpo
2000, Murray & Lopez, 1997.
Muitos autores realçaram como doente aparece como um arquivo histórico, e os sintomas como
a exposição quotidiana a formas histórias incorporadas que estabelecem a relação entre o nível
de discriminação, porquanto subtis
e indirectas, é fonte de depressão: individual e o colectivo, o presente e o passado. Didier Fassin
Comas-Diaz & Greene, 1995, Essed, (2002) sugeriu a este respeito o conceito de “incorporação da
1991, Fernando, 1984, Kessler,
Mickelson & Williams, 1999, Noh,
história” para descrever o duplo processo através do qual, por
Beiser, Kaspar, Hou & Rummens, um lado, o social se inscreve no corpo, e por outro, o corpo e
1999, Ren, Amick & Williams, 1999,
os seus estados contam histórias que relatam não só a vida in-
Salgado de Snyder, 1987, Carta et al.,
2005, Klerman & Weissman, 1989, dividual, mas também a memória histórica sedimentada nesse
Wetzel, 1994, Sileo, 1990. mesmo corpo.
Outros autores salientaram como a
discriminação racial e de género está li-
gada ao desenvolvimento de patologias A ideia de que a emigração está indissoluvelmente ligada a
mentais: Fernando 1984, Watkins et
formas específicas de sofrimento psicológico acabou para pro-
al., 2006, Brown et al., 2003, Jackson
et al., 1996, McNeilly et al., 1996, Pak mover uma progressiva medicalização da experiência migratória.
et al., 1991, Thompson, 1996, Williams Duplamente alieno, o imigrante é desde sempre considerado um
& Williams-Morris, 2000.
17 Nostalgia é uma palavra formada
indivíduo frágil, predisposto aos distúrbios mentais, vulnerável,
pelo prefixo nostos, que significa irrequieto e deslocado, como a noção clínica de “nostalgia”17

(34) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


(Hofer, 1934; Frigessi Castelnuovo & Risso, 1982; Prete, 1992; Bolzinger, 1989; Beneduce,
1998, 2007) e a categoria de “aliéné migrateur” (Foville, 1875)18 sintetizam emblematica-
mente. No final de 1800, o estatuto do imigrante não era de facto muito diferente de um
quadro psicopatológico ou de um diagnóstico médico. O nomadismo era considerado uma
anomalia, um comportamento desviante: a instabilidade da vida do imigrante era correla-
cionada com uma potencial personalidade esquizóide.

Desde o emprego no século XVII da categoria de “Heimweh”19 para explicar a vulnera-


bilidade às doenças e as mortes misteriosas dos mercenários suíços que partiam para
o estrangeiro, assim como das mulheres que saíam do país para trabalhar como empre-
gadas; e desde que a ciência médica começou a legitimar-se através da elaboração de
quadros nosológicos discretos (nos quais a partir de 1688 a nostalgia entrará a pleno
direito como patologia da migração), o problema do impacto do percurso migratório
na experiência emocional dos imigrantes assumiu um interes-
se científico em contínua expansão. Designada “Maladie du
“regresso”, e pelo sufixo algos, ou
souvenir”, “home-sickness” ou “psicose dos imigrantes”20, seja “dor”. A palavra nostalgia nesta
a interpretação da nostalgia como patologia continuou por acepção foi proposta no final
do século XVII por Johannes Hofer,
muitos anos a ser utilizada nos paradigmas nosológicos da um médico da Universidade de
psicologia e da etnopsiquiatria da migração21. Um exemplo Basilea, na sua Dissertatio medica
de Nostalgia oder Heimweh.
entre outros: em 1963, o director dos Hospitais Psiquiátricos 18 Foville, 1875; Ballet, 1903.
de Turim (Itália), De Caro, sustentava que a “personalidade Para uma análise desta categoria
esquizóide” constituía um dos factores determinantes do fluxo veja-se http://www.hopital-marmottan.
fr/publications/F_CARO_memoire_
migratório interno em direcção às cidades do Norte do país – DEA_Voyage_Pathologique_2005.pdf
o “comportamento migratório”, na sua opinião, explicava-se 19 Palavra alemã composta
por “pátria, casa” (Heim) e
com base num terreno de predisposição psiquiátrica (Benedu- “dor, doença” (weh). Para uma
ce, 2007). Esta leitura patologizante da experiência migratória genealogia do conceito cf. Beneduce
continuou a reproduzir-se em numerosas pesquisas, fundando 1998, 2007.
20 Cf. Frost, 1938 e Collier & Bourbon,
as suas conclusões sobre o modelo de “selecção negativa”, 1924, in Beneduce, 2007.
isto é: seriam os sujeitos fracos, poucos integrados na socie- 21 Vejam-se as pesquisas dos anos
trinta de Malzberg e Ødegaard sobre
dade de origem, com escassas ligações afectivas e estrutura os noruegueses nos Estados Unidos
familiar instável a optar pela emigração, levando a que os seus (in Beneduce, 2007).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (35)


distúrbios latentes se manifestassem particularmente no país de acolhimento (Littlewood
& Lidsedge, 1989).

As pesquisas epidemiológicas e os trabalhos de psicologia da imigração raramente apre-


sentam uma visão positiva do processo migratório, evidenciando antes as componentes
estruturais de tipo macro-social, que realçam somente os efeitos da imposição e opressão
sociais (crises sociais e económicas, conflitos bélicos e violências estruturais, persecução
e tortura, etc.), elidindo da análise os elementos de escolha activa (o que os antropólogos
costumam designar como “agency”), de projecto individual, de apropriação e de resis-
tência, ou considerando-os até no interior dos vínculos que limitam as possibilidades e o
espaço de movimento do indivíduo.

A representação da vulnerabilidade psicológica como característica intrínseca dos mi-


grantes não toma todavia em conta a relação mais ampla entre sofrimento individual e
experiência de exclusão, marginalização social, discriminação e precariedade das con-
dições habitacionais e laborais, entre outros factores. Para evitar os mal-entendidos e os
problemas metodológicos ligados a um emprego acrítico de categorias diagnósticas (“ca-
tegory fallacies” é a expressão proposta por Arthur Kleinman a este respeito), diferentes
autores tentaram apresentar um método capaz de pôr em relação, sem determinismos, as
biografias individuais e as narrativas colectivas com as vicissitudes históricas, políticas e
económicas que desde sempre acompanharam o movimentos das pessoas22.

O estereótipo do imigrante como pessoa frágil do ponto de vista mental, com um elevado
risco de desenvolvimento de patologias psiquiátricas, de acordo a minha experiência de
terreno está todavia ainda presente. Que a experiência migratória está indissoluvelmente
ligada à emergência da patologia mental é por exemplo a opinião do psiquiatra catalão
Joseba Achotegui, que chegou a identificar uma nova categoria diagnóstica para definir
exactamente este mal-estar: a síndrome de Ulisses (síndrome de
22 Kleinman, 1980; 1988; 1995; stress múltiplo e crónico ligado à migração)23, a que retornare-
Littlewood, 1990; Kirmayer, 2006;
Bibeau, 1997.
mos mais tarde, no capítulo 6. Para já, podemos considerar esta
23 Achotegui, 2003. categoria como o exemplo mais recente da medicalização – sob

(36) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


a forma de uma perturbação psíquica ou distúrbios do comportamento – da experiência
migratória: a síndrome de Ulisses traduz os conflitos sociais em idiomas psicopatológicos,
desviando a atenção do contexto político e económico mais amplo para se concentrar no
indivíduo como corpo despolitizado e naturalizado.

Todavia, esta leitura medicalizante do processo migratório está a impor-se como hegemóni-
ca, como o revela o facto de o Parlamento Europeu estar a apoiar a investigação sobre esta
doença, e de a categoria vir a ser incluída na próxima edição do DSM. No sítio de Internet
do Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (ACIDI, Portugal), a síndro-
me de Ulisses é indicada como doença psicológica provocada pela solidão, o sentimento
de fracasso, a dureza da luta diária pela sobrevivência e o medo e falta de confiança nas
instituições, que está a afectar cada vez mais os imigrantes, ao ponto de já terem sido
diagnosticados milhares de casos. Esta patologia nasceu – na opinião de Achotegui – no
ano 2000, que assistiu a um endurecimento progressivo das políticas migratórias24.

Dada a particular vulnerabilidade dos imigrantes a perturbações mentais comparativamen-


te à população autóctone, 12 países europeus25 juntaram-se num projecto financiado pela
Comissão Europeia – Health and Consumer Protection DG (SANCO) para reflectir sobre os
problemas da saúde mental dos imigrantes e discutir em particular a importância da inter-
venção farmacológica da criação de “serviços de saúde mental culturalmente sensíveis”
e de “Hospitais Amigos dos Migrantes”. Escassa foi a reflexão, todavia, sobre a possibi-
lidade de que as próprias políticas migratórias e sanitárias constituam factores de risco
e patologia: as constrições políticas, sociais e económicas que bloqueiam os imigrantes
nas margens da sociedade de acolhimento são completamente esquecidas nos encontros
clínicos com os utentes imigrantes.

A medicalização da condição de imigrante é um dos problemas


24 http://www.acime.gov.pt/modules.
mais sérios dos programas terapêuticos de saúde mental des- php?name=News&file=article&sid=263
tinados a estes utentes. Assim como acontece com a categoria 25 Nomeadamente: Áustria, Alema-
nha, Dinamarca, Grécia, Espanha,
da síndrome de Ulisses, muitos destes programas acabam por Finlândia, França, Irlanda, Itália,
estereotipar e reificar a experiência migratória, ao atribuir-lhe Holanda, Suécia e Reino Unido.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (37)


um estatuto ontológico, e por tornar homogéneas vivências emocionais que são indivi-
duais, heterogéneas e irredutíveis a modelos pré-estabelecidos. Estes modelos e categorias
silenciam a diferença individual visando simplificar o uso de programas de diagnóstico
e tratamento. Mas o que sucede nesta constituição de um paciente imigrante estereoti-
pado como sujeito psiquiátrico é a reprodução de uma ideologia médica que sistematiza
características e comportamentos socioculturais num conjunto de sintomas psicopato-
lógicos. A leitura medicalizante da condição do imigrante permite por outras palavras
transformar os problemas sociais, económicos e políticos de grupos desfavorecidos em
elementos potencialmente patológicos que podem ser controlados e monitorizados far-
macologicamente.

Quando o imigrante se relaciona com as instituições de cuidados de saúde, o que procura


é um sentido para o próprio sofrimento: face à doença, este é o primeiro passo para uma
explicação da sua experiência com vista à mudança. A doença exige um sentido, uma
justificação, mas uma que seja inteligível à luz dos códigos que moldam a busca terapêu-
tica. Ela coincide também com um processo de reconstrução da própria identidade, do
equilíbrio ameaçado pelas condições da vivência quotidiana. A resposta terapêutica mais
eficaz seria aquela capaz de colocar em interdiálogo os três corpos referidos por Lock e
Scheper-Hughes (1987): o corpo individual, próprio da análise fenomenológica; o social,
foco do estruturalismo e antropologia simbólica; e o político, evidenciado pela genealo-
gia foucaultiana e pelos estudos pós-estruturalistas. O pedido de cura que os imigrantes
expressam encontraria resposta apenas nos moldes de uma política de atribuição dos
sintomas que coordenasse dimensões institucionais com a necessidade existencial dos
doentes em afirmar a “realidade” da própria experiência da aflição.

Em simultâneo, torna-se evidente que os corpos dos imigrantes incorporam uma diferen-
ça que não permite a sujeição passiva aos modelos da medicina ocidental e do saber
hegemónico da sociedade hóspede. Esta diferença é expressa através da utilização das ca-
tegorias do sistema médico do contexto de origem; veiculada nas negociações de sentido
que a doença sempre exige; e reproduzida num léxico da aflição muito particular. Os sin-
tomas apresentados constituem assim um desafio na medida em que traduzem a procura

(38) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


de um sentido diferente do proposto pela biomedicina. Eles espelham outros paradigmas
interpretativos, diferentes modelos médicos, outras modalidades de relacionamento com
o mundo, o invisível, os antepassados, a dor, a morte, e as relações interpessoais. Estas
manifestações sintomáticas – que falam de possessão por espíritos, vinganças, feitiçaria
– são possivelmente interpretadas pelos médicos ocidentais enquanto problemas mentais
ou neurológicos, mesmo quando os resultados dos testes clínicos são negativos. Há reali-
dades que não fazem sentido fora de um determinado registo: a biomedicina só encontra
significado nestes fenómenos em termos de auto-sugestão, epilepsia, ou problemas psi-
cológicos. As estratégias de busca da cura e de interpretação dos sintomas que os corpos
dos imigrantes parecem obstinadamente buscar exprimem a procura de um horizonte de
significado que o recurso às estruturas sanitárias e linguagens da medicina ocidental não
pode geralmente oferecer. As principais queixas dos imigrantes referem a falta de atenção e
incredulidade dos médicos ocidentais face às aflições que eles apresentam, e reportam-se
à organização dos serviços sanitários, com o domínio exercido pela psiquiatria em todos os
casos não imediatamente reconduzíveis a uma interpretação orgânica da doença. Face à
exigência de uma explicação, a impotência das interpretações fornecidas pela biomedicina
é vivida com desconforto. Um diagnóstico que é recebido com suspeição, resistência e
desconfiança não provê possibilidades de significação. Estas exigem antes a construção
de uma interpretação mais familiar, mais afim, que tenha em conta por um lado as repre-
sentações da pessoa, as etiologias locais e as formas culturais da aflição, e por outro as
modalidades originais e individuais de negociação entre as opções da “tradição” e as da
biomedicina ocidental.

O sofrimento dos numerosos imigrantes que apresentam dores crónicas ou outros sinto-
mas “irregulares” deve ser interpretado em relação a estas dificuldades, assim como à
constante erosão dos valores, à perda de importância da coesão do grupo, e à desagrega-
ção dos códigos de referência “tradicionais” que permitiam ao indivíduo compreender a
sua experiência de aflição. Os sintomas “anómalos” representam e renovam as tensões e
os contrastes sociais que atravessam os corpos dos imigrantes. As doenças traduzem rela-
ções de poder, alienação, pequenas histórias locais e movimentos transnacionais. O corpo
emerge como um arquivo histórico e lugar de resistência, e os seus sintomas como um

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (39)


comentário político sobre as complexas relações que situam os imigrantes em processos
sociais amplamente para além do contexto local.

Neste sentido, a doença pode ser interpretada, seguindo a perspectiva adoptada por Nancy
Scheper-Hughes (1992) no seu trabalho sobre os ataques de nervos na comunidade de
Alto de Cruzeiro no Brasil, como uma forma de acção corpórea, “uma coisa que os seres
humanos fazem de maneiras absolutamente originais” (Scheper-Hughes, 1994: 229).

(40) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CAPÍTULO 2.
ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES E DAS PERTURBAÇÕES
EMOCIONAIS: UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA À PSIQUIATRIA
TRANSCULTURAL E À ETNOPSIQUIATRIA

Os últimos 20 anos têm assistido à manifestação de um interesse académico renova-


do pelas emoções em diferentes campos disciplinares, entre os quais a antropologia, a
filosofia, a sociologia, a psicologia, a neurobiologia e a história. Infelizmente, sobretudo
nas disciplinas que se confrontam com as vivências emocionais dos migrantes – caso da
antropologia e psicologia transcultural – os debates recentes continuam, salvo raras excep-
ções, a reproduzir dicotomias como “natureza/cultura” ou “genes/ambiente”, herdadas
do pensamento do século XIX. Podemos, assim, dividir a maior parte dos estudos sobre as
emoções produzidos nas últimas décadas em dois ramos teóricos opostos: o dos biologis-
tas e o dos construtivistas sociais.
26 Entre os pensadores que

Os biologistas sustentam que as emoções são essências uni- inauguraram a concepção científica
das emoções, Charles Darwin, William
versais, inatas e geneticamente determinadas: fenómenos James, Walter Cannon e Sigmund
biológicos interiores passivos e involuntários, de carácter não Freud podem ser considerados pais
fundadores da moderna pesquisa
cognitivo, ligados à memória filogenética e não à aprendizagem
sobre as emoções. O que em síntese
individual, desinteressantes, e inacessíveis portanto aos méto- une a posição destes teóricos é uma
dos da análise cultural26. As teorias universalistas ou inatistas, visão das emoções como fenómenos
não cognitivos e involuntários, algo de
caracterizadas por influências de tipo etológico e neurobiológico, interno aos indivíduos, e ligado a uma
têm dominado desde há muitos anos o campo das pesquisas base genética hereditária e universal.
27 Nestes trabalhos Ekman tentou
psicológicas, e são representadas de maneira emblemática pe-
identificar a correlação entre um
los estudos neuroculturais de Paul Ekman sobre a expressão grupo limitado de expressões faciais

facial das emoções (Ekman, 1980a; 1980b; 1984)27. Durante universais e um conjunto definido de
“emoções básicas”. Os antropólogos
muito tempo, as emoções foram consideradas também pelos culturais criticaram duramente a
antropólogos como fenómenos naturais, universais e inatos. metodologia utilizada por Ekman e
pelos pesquisadores que partilharam
O conceito da unidade psíquica dos seres humanos justificava a sua opinião e orientação teórica,
ao nível teórico uma possibilidade de compreensão imediata censurando-os por terem seleccionado

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (41)


entre pessoas de culturas diferentes: antropólogos e psicólogos poderiam assim enten-
der empaticamente as emoções dos outros enquanto idênticas às suas, e utilizar sem
problemas as próprias categorias para descrever as vivências afectivas desses outros.
Num universo de costumes bizarros e lógicas diferentes, era confortador assumir que os
Outros não eram afinal assim tão diferentes de nós quando choravam, riam, amavam,
sofriam ou se zangavam. Muitas críticas foram dirigidas às abordagens que adoptaram
de forma não problematizada a empatia como “sensibilidade extraordinária, quase uma
capacidade preternatural de sentir, pensar e perceber como os nativos” (Geertz, 1988:
72). Qualidade essa – talvez presente nos anjos telepáticos que povoam o céu de Ber-
lim28, mas com certeza não nos antropólogos e psiquiatras – que coloca a possibilidade
de compreensão trans-cultural numa improvável dimensão extra-cultural, na qual se-
ria possível “um acesso emocional directo às pessoas de outras culturas” (Reddy, 1999:
262). A título de exemplo, Marvin Harris exprimia já há algumas décadas, em The Rise of
Anthropological Theory. A History of Theories of Culture, a sua surpresa e ironia face à “con-
fiança extraordinária” que mostrava a sua colega Margaret Mead em conseguir identificar
as emoções dos sujeitos samoanos em termos idênticos às próprias (1971: 550-551).

artificialmente algumas emoções O problema da empatia como metodologia de compreensão


“purificadas” segundo critérios aprio- das vivências emocionais alheias, baseada no pressuposto da
rísticos; de terem submetido desenhos
estilizados ou fotografias de caras,
universalidade das respostas afectivas, como sustenta Leavitt
abstraídas de qualquer contexto, a (1996), reside no facto de ocultar o carácter problemático do
um agregado restrito de pessoas, sem
diálogo interpessoal e da tradução cultural, levando a conside-
ter em conta as eventuais diferenças
de género, idade e posição social; de rar como certa a primeira impressão, quando esta deveria pelo
se terem baseado numa identifica- contrário ser constantemente questionada e reexaminada. Este
ção mecanicista entre movimento
muscular e emoção propriamente
emprego incauto da empatia como ferramenta de acesso às
dita, descuidando o ponto de vista dos experiências emotivas dos outros está ligado a uma represen-
locais, o contexto e as circunstâncias
tação das emoções como algo autêntico, natural e biológico.
da experiência emotiva; e, por fim, de
terem fornecido uma tradução acrítica A imagem de um Eu genuíno e de um núcleo de irracionalida-
dos termos emocionais ingleses para de “escondido”, “profundo” e “íntimo”, assim como o conceito
outras línguas.
28 Win Wenders 1987, Der Himmel
de emoção que lhe está associado, pertencem à tradição das
über Berlin [Il cielo sopra Berlino]. ciências ocidentais da psique (Despret, 2002). A ideia de auten-

(42) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


ticidade que veiculam de que: “a emoção é verdadeira, naturalmente verdadeira, mas,
sobretudo, espontaneamente verdadeira” (Despret, 2002) simultaneamente exprime uma
separação entre natureza e cultura, e justifica a possibilidade de uma compreensão para
além da variabilidade superficial dos costumes.

Contudo, este emprego metodológico da empatia para apreensão directa das vivências
alheias ignora simultaneamente o ponto de vista dos indivíduos e o mais amplo contexto
político, histórico e social em que se inserem, colocando acriticamente as experiências dos
outros no interior das próprias referências conceptuais29. Vinciane Despret chama a nossa
atenção para o facto de não existir a possibilidade de um acesso privilegiado à emoção
alheia, e de a confiança ingénua nessa capacidade – que mascara o carácter problemático
da tradução – depender de uma imagem do ser humano e das suas paixões culturalmente
específica, própria do contexto euro-americano. Por outras palavras, as abordagens que
assumem a universalidade do psiquismo humano como forma de justificar a compreensão
intercultural imediata não constroem um diálogo mas antes “impõem” um enquadramento
cognitivo/emocional próprio, onde são “encaixadas” as experiências do Outro. Tais posi-
ções ignoram, segundo Despret, que a dita natureza das paixões é por “Nós” cultivada;
a assumida autenticidade do Eu é uma imagem por “Nós” construída; e a pressuposta
universalidade das emoções aquilo que paradoxalmente “Nos” distingue (Despret, 2002:
9, itálicos acrescentados).
29 Diferentes autores se referiram,

É todavia exactamente esta perspectiva, ingénua e já amplamen- a este respeito, a uma “empatia
etnocêntrica”, a um “mal-entendido
te criticada, que adopta uma certa psiquiatria transcultural de empático” (Bonino, Lo Coco e Tani,
derivação kraepeliniana, ao basear as suas pretensões de uma 1998: 59), à “incompreensão causada
pela parcialidade das próprias
eficácia transcultural no pressuposto da unidade biopsíquica da perspectivas” (Piasere, 2002: 155),
humanidade. à compreensão falaz causada por
uma “atribuição demasiado fácil aos
outros do que sentimos-pensamos”
1. Psiquiatria transcultural (Wikan, 1992: 479), ou a uma
“compreensão enganosa baseada
sobre uma ideia de autenticidade do
Do ponto de vista da psiquiatria transcultural, o ser humano Eu e da universalidade das emoções
seria composto por dois níveis sobrepostos: a um sólido e uni- humanas” (Despret, 2002).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (43)


forme substrato fisiológico e psicológico universal, “núcleo duro” profundo comum a todos
os seres humanos, sobrepor-se-ia a mudança, a variabilidade e a multiplicidade cultu-
ral dos costumes. Nesta óptica, biologia e psicologia seriam indissociáveis, enquanto
consideradas subjacentes aos, e determinantes dos, aspectos socioculturais; E todos
os processos cognitivos, emoções, e experiências de carácter “psíquico” afirmar-se-iam
como invariantes naturais, cujo carácter universal exclui possibilidades de contextualização
sociocultural. As emoções, ainda segundo esta perspectiva, situar-se-iam no foro íntimo
dos indivíduos, numa dimensão pré-cultural, ligada à memória filogenética mais do que
à aprendizagem individual. Tratar-se-ia, em suma, de fenómenos naturais e biológicos de
carácter não cognitivo, universais e inatos.

Podemos assim encarar a psiquiatria transcultural como uma psiquiatria que reivindica,
sem nunca pôr em causa as próprias premissas epistemológicas relativas, uma aplicação
global através das culturas. Com essa missão, emprega os contributos da antropologia
para possibilitar uma adaptação da psiquiatria geral a contextos onde predominam repre-
sentações diferentes de pessoa e das suas perturbações, que não cabem nos quadros
oficiais psiquiátricos. Tobie Nathan, contrapondo a etnopsiquiatria (no sentido de George
Devereux) à psiquiatria transcultural, argumenta:

Car si, conformément aux indications de G. Devereux, j’ai conservé le terme “eth-
nopsychiatrie” (quoique n’étant pas psychiatre), c’était pour préserver l’originalité
du domaine, notamment par rapport à la psychiatrie transculturelle, surtout amé-
ricaine. La psychiatrie transculturelle est, du point de vue méthodologique, en
quelque sorte le symétrique de l’ethnopsychiatrie. Elle se veut une psychiatrie que
l’on pourrait dire “culturellement éclairée” — mais une psychiatrie avant tout! Elle
utilise les apports anthropologiques pour rendre la psychiatrie possible avec des
populations que peu de choses dans leurs traditions prédisposaient à ce genre
de pratiques. En vérité, cette psychiatrie consacre un lien entre anthropologie et
conquête puisqu’elle demande à l’anthropologie de lui fournir les savoirs qui lui
permettront de percer les défenses que ces populations opposent aux pratiques
psychiatriques (Nathan 2000).

(44) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


De facto, uma análise cuidadosa desta poderosa afirmação de Nathan evidencia o sig-
nificado quase inverso dos termos “etnopsiquiatria” e “psiquiatria transcultural”. Se na
primeira confluem indistintamente os saberes de antropólogos, psiquiatrias, psicólogos
e outros terapeutas, reconhecendo os saberes locais como sistemas de cura autênticos
e equivalentes com os quais o diálogo é possível, a segunda afirma por contraste a
sua validade científica exclusiva, que permanece associada a um interesse compara-
tivo e classificatório, epidemiologicamente orientado. Enquanto a primeira estende o
reconhecimento do estatuto de “etnopsiquiatrias” (concepções locais sobre a psique)
à psiquiatria e psicologia ocidentais, a segunda, pelo contrário, não parece disposta a
repensar criticamente os seus fundamentos epistemológicos e modelos diagnósticos,
nem a renunciar à própria hegemonia cultural. Se a primeira prossegue com renovado
vigor crítico o debate sobre a possibilidade de empregar categorias diagnósticas ociden-
tais a sintomas e comportamentos ligados a outros universos experienciais, a segunda
defende antes a possibilidade de estender as categorias do Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders (DSM) a qualquer latitude, baseando-se no pressuposto
de existência de um núcleo biopsíquico universal, cujas leis e funcionamentos apenas
a psiquiatria ocidental teria conseguido identificar cientificamente. Se a primeira tenta
renovar as estratégias de escuta e interpretação junto dos seus pacientes, desenvolven-
do uma “semiótica original”, na segunda o terapeuta limita-se a traduzir as etiologias
indígenas, os termos locais e os sintomas dos pacientes nos seus próprios códigos
nosográficos.

Nestes termos, a psiquiatria transcultural impõe globalmente a sua hegemonia “científi-


ca” através da suposta autoridade dos seus manuais, categorias diagnósticas e modelos
terapêuticos. A cultura constitui meramente, segundo este ponto de vista, um factor
influenciador que atenua ou regulamenta uma expressão emotiva que é na essência
universal, filtrada por regras de exibição locais; ou condiciona a sua interpretação por
intermédio dos “óculos opacos” das crenças particulares. E pela sua imposição de sig-
nificados, categorias e explicações, a psiquiatria transcultural dissimula as relações de
força e poder que o seu saber exerce, revelando assim alguma ligação com a psiquiatria
colonial (Beneduce, 2000).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (45)


O foco na identificação, diagnóstico e classificação do “Outro” irracional continua a mar-
car a prática terapêutica contemporânea, causando o risco de reproduzir, ainda que sem
querer, estereótipos evolucionistas e antigos modelos interpretativos da relação entre cultu-
ra e doença mental. Estes modelos abrigam preconceitos, noções rígidas e impermeáveis
de “cultura” e “etnia”, e um impulso classificatório de termos, sintomas, técnicas e conhe-
cimentos culturais nos quadros da psiquiatria oficial, sem considerar os contextos sociais,
históricos e políticos mais amplos que moldam a subjectividade do sofrimento e da cura
(aos níveis individual e institucional).

O acto de compreensão, nesta perspectiva, é reduzido a uma classificação das experiên-


cias e narrativas dos outros nos termos do próprio horizonte lexical e categorial, ou noutras
palavras, a um exercício de tradução imediata das palavras de uma língua para as de uma
outra língua. A falta evidente de uma correspondência linguística directa não é interpretada
como contradição da tese de universalidade das emoções, mas antes como sinal de uma
limitação das capacidades introspectivas e de expressão emocional de alguns grupos hu-
manos (nomeadamente os africanos e os americanos africanos).

Um exemplo clássico desta postura teórica, presente ainda hoje nas expectativas, atitudes e
preconceitos de muitos dos técnicos dos serviços de saúde que atendem migrantes, é a teoria
do “processo evolutivo na elaboração emocional”, da autoria do psiquiatra cultural Julian Leff
(1981: 66). Segundo esta concepção, um evidente progresso evolutivo caracterizaria a trans-
formação do tradicional para o moderno, ou – aplicando-a à esfera da experiência emocional
– de uma modalidade e expressão somáticas (próprias das culturas menos desenvolvidas)
para um léxico psicológico (próprio das culturas ocidentais). A verbalização emocional típica
dos indivíduos ocidentais, de acordo com a teoria do autor (1981: 66), envolve uma maior
capacidade de introspecção e uma melhor gestão dos pensamentos e dos sentimentos. Nas
suas palavras: “as pessoas de países desenvolvidos apresentam uma diferenciação de esta-
dos emocionais muito superior à das pessoas provenientes de países em desenvolvimento”
(1973: 305). É possível discernir na teoria de Leff a presença de
30 Ver: Lilltewood e Lipsedge [1982]
um modelo antropológico evolucionista, evidente ainda hoje nos
1997. focos e práticas das ciências psicológicas ocidentais30 – de facto,

(46) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


com base em entrevistas efectuadas em hospitais e centros de saúde com atendimento a
imigrantes, é possível concluir, salvo raras excepções, que a teoria de Leff é ainda considera-
da válida. A verbalização emocional típica dos ocidentais – confirmam as entrevistas – seria
nesta óptica expressão de uma maior capacidade de autocompreensão e gestão da própria
vivência interior, enquanto a prevalência de um código somático indicaria pelo contrário um
nível mais arcaico de elaboração emocional, típico por exemplo dos africanos31.

Muitos dos técnicos de saúde entrevistados consideram a psicoterapia com pacientes de


origem africana como frequentemente destinada ao falhanço, por uma incapacidade dos
pacientes em empregar um léxico abstracto que será devida,
continuam os informantes, ao seu “atraso material e intelectual” 31 Em trabalho de terreno dedicado à
e “habilidades de verbalização inferiores”. Em todas as entre- vivência emocional dos Bijagós da ilha
de Bubaque (Pussetti, 2005) foi en-
vistas realizadas com psicólogos, psiquiatras e enfermeiros é contrado um vocabulário das emoções
salientada a ideia de uma dificuldade própria dos africanos em muito complexo e uma requintada
exprimir as próprias vivências emocionais em termos abstrac- capacidade de comunicar os próprios
estados interiores – por vezes através
tos. “Dificuldade de expressão”, “linguagem reduzida”, “léxico de expressões referentes a partes do
pouco evoluído”, “incapacidade de análise”, “dificuldade de corpo, mas que não possuem um valor
puramente somático. O risco de esta
transmitir o que sentem” são apenas algumas das descrições modalidade de expressão emocional
presentes nas entrevistas. poder ser interpretada por psiquiatras
ocidentais como sinal de arcaísmo no
grau de elaboração subjectiva interior
O trabalho de terreno em serviços psiquiátricos revelou também dever-se-á talvez à efectiva dificuldade
em compreender questões e proble-
a presença marcante deste tipo de preconceitos, pretensões e
matizações locais particulares, que
estereótipos nas actuais atitudes dos profissionais de saúde em utilizam, para além disso, categorias
programas específicos para imigrantes. Na prática terapêutica, muito diferentes das nossas. A repre-
sentação do indivíduo e das emoções
o Outro continua a ser encarado com atitudes de superioridade encontrada no referido contexto é
e estranheza, enquanto representante de uma humanidade in- suficientemente rica para contradizer
todas as pretensas afirmações de
génua, infantil, supersticiosa, simples e por conseguinte inferior,
incapacidade de discernimento e
numa perspectiva que muitas vezes cruza e sobrepõe diferença expressão afectivas. Ver também, para
cultural e alteridade psicopatológica. As entrevistas efectuadas outros contextos etnográficos, Bibeau,
1978, 1979; Beneduce, 1996; Ots,
realçam a persistência obstinada do que pode ser chamado o 1990; Desjarlais, 1992, Devisch, 1990,
“paradigma primitivista” (Lucas e Barrett, 1995) da psiquiatria Dirven e Niemeier, 1997, Heelas, 1996.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (47)


contemporânea, especialmente presente na psiquiatria dirigida a imigrantes: as práticas
e categorias do estrangeiro continuam a ser percebidas como limitadas pelas grilhetas da
sua cultura; as suas ideias sobre o mal-estar e a cura são encaradas sempre e somente
como “crenças”, sem nunca atingirem a dignidade do estatuto de teorias ou saberes; a
sua afectividade é vista como impulsiva e pueril; a linguagem, como demasiado “pobre”
ou “concreta”; o sintoma, meramente “somático” devido a dificuldades de expressão
abstracta. Se por um lado são de facto muito raras as posições de aberta discriminação
ou intolerância, por outro lado o racismo institucional encontra-se seriamente presente
no seio da psiquiatria, por exemplo na assunção de atitudes paternalistas que infantili-
zam os imigrantes, ou no uso acrítico de estereótipos “exotistas” acerca dos atributos,
traços ou características dos vários grupos étnicos (Fernando, 2003). Esta conjuntura é
ainda agravada por atitudes assistencialistas e assimilacionistas, isto é, que consideram
a diferença enquanto patologia, utilizando a terapia como percurso de transformação
do paciente imigrante no modelo de pessoa hegemónico da sociedade de acolhimento
(Vacchiano & Taliano, 2006).

O apoio clínico aos migrantes continua a propor estereótipos evolucionistas e a utilizar


modelos interpretativos obsoletos para explicar a relação entre cultura e doença mental.
Apesar dos esforços recentes de alguns terapeutas para ultrapassar estes problemas, a
coexistência de poderes e heranças coloniais no contexto terapêutico continua a consti-
tuir barreiras tangíveis no relacionamento com pacientes de origens culturais diversas. Os
profissionais entrevistados afirmam entre outras coisas que os imigrantes africanos são po-
tencialmente agressivos, se recusam frequentemente a colaborar com os terapeutas, não
são pontuais, não seguem as prescrições de exames ou fármacos, faltam às consultas, ou
se encerram num silêncio obstinado. Estes comportamentos hostis acabam por influenciar
e confirmar os quadros diagnósticos propostos pelos técnicos de saúde – assim como as
supostas dificuldades de auto-reflexão e verbalização emocional – dificultando ou mesmo
inviabilizando o diálogo terapêutico com o paciente estrangeiro.

O silêncio persistente e o encerramento do corpo e da mente nas suas próprias subjec-


tividades, impossibilitando a exposição dos sintomas, não carregam – na interpretação

(48) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


dos técnicos de saúde entrevistados – qualquer teor político. O silêncio é considerado um
sintoma de problemas de saúde mental, excluindo a possibilidade de que se trate de uma
forma extrema e desesperada de resistência, encarada como única possibilidade. Os técni-
cos optam por leituras em termos de “desistência”, “baixo cumprimento” do paciente, ou
“colaboração escassa” do grupo familiar, afirmações que podem antes indiciar a reduzida
qualidade do serviço oferecido, uma superficialidade da terapia farmacológica e uma inca-
pacidade dos terapeutas em responder a dinâmicas relacionais complexas.

Consideram os mesmos informantes que, quando os pacientes imigrantes se decidem


a colaborar, é geralmente para propor interpretações irracionais do seu sofrimento, ba-
seadas em crenças e superstições. O termo “crença”, em oposição a “conhecimento”, é
muito frequentemente utilizado pela equipa médica durante as entrevistas para se referir a
interpretações e práticas diferentes. Tal dependência de rituais religiosos, crenças e supers-
tições seria a causa, identificada por quase todos os técnicos de saúde entrevistados, pela
qual a relação terapêutica com os “africanos” seria a mais problemática. Dentro dessa
categoria, são referidos em particular os imigrantes de “primeira geração” – por estarem
pretensamente mais ligados “aos cultos animistas e aos rituais lá da terra” – e especifica-
mente os guineenses32.

Paradoxalmente, apesar das melhores intenções, os técnicos de saúde mental acabam


por patologizar as opiniões, comportamentos e práticas culturalmente diversos ao lê-los
como formas impróprias e erróneas de interpretar a experiência
32 A título de exemplo, apresentam-se
humana ou como sintomas de perturbações mentais. A título de algumas das expressões utilizadas
exemplo, de acordo com um dos entrevistados, as explicações para caracterizá-los: “animistas”, com
“crenças mais fortes do que os outros
que os imigrantes (e nomeadamente os guineenses) fornecem imigrantes africanos na feitiçaria e na
no diálogo terapêutico são geralmente desorganizadas, apresen- magia”, “usam muitos amuletos”, “em
tam uma estrutura narrativa fragmentária e ilógica, e juntam comparação aos moçambicanos ou
aos cabo-verdianos, por exemplo, são
casos concretos a elementos “de fantasia”. As suas interpreta- mais ancestrais”, “acreditam muito
ções – mesmo que despertem um interesse “exótico”, ou que em espíritos, antepassados, entidades,
e isto acaba por perturbá-los”, “têm
possam fornecer indícios da cultura de origem do paciente – são uma interpretação do mal-estar não
assim consideradas pelos profissionais sanitários como fabu- científica e baseada em superstições”.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (49)


lações contrárias à “racionalidade” que estes pretendem restabelecer e que constitui o
objectivo das aplicações terapêuticas.

Para além disto, é saliente nestas entrevistas o emprego inadequado de certas categorias,
nomeadamente uma definição de “cultura” ligada a modelos evolucionistas, uma reifi-
cação do conceito de “etnia” como espelho de efectivas diferenças físicas e culturais (e
portanto ignorando os efeitos da taxonomia colonial), ou uma sobreposição confusa dos
conceitos de cultura e etnia com o de “raça”. É também frequente nos discursos sobre
a saúde dos imigrantes o uso de termos como “educar”, “ensinar”, “ajudar”, “civilizar”,
ou “corrigir”, assim como um tom de paternalismo e compaixão, que evidenciam a so-
breposição perversa de diferentes motivações – como sejam a filantropia, o empenho
humanitário, a educação/civilização de mentes mais “simples” ou “condicionadas por
dogmas religiosos arcaicos”, a rejeição das tradições terapêuticas locais (consideradas
como crenças, superstições, magias) ou o domínio e controlo hegemónicos, em nome da
ciência, da higiene, e da “modernidade”.

O intuito é o de “ajudar o migrante, curá-lo, oferecer-lhe apoio e assistência”, nomeando


o seu sofrimento, classificando os seus sintomas, diagnosticando o seu comportamento e
julgando-o no interior de um recinto clínico. Uma intenção filantrópica e humanitária acaba
assim por legitimar a imposição de normas, práticas e critérios biomédicos “científicos” e
até morais, ignorando os valores e interpretações do Outro sobre o seu próprio sofrimento.
As dimensões assistenciais, clínica e higienista cruzam-se numa forma subtil e quase in-
visível de violência simbólica: impondo regras e significados, denominando, etiquetando e
alterando comportamentos em direcção a uma suposta “normalidade”, sobretudo através
do discurso de poder e conhecimento da saúde mental.

Será talvez irónico que o propósito dos clínicos seja no fundo o de orientar os pacientes
para esta “normalidade” social e cultural. Porque no processo, a “cultura” dos migran-
tes é considerada patológica em si, e como tal um obstáculo na meta da assimilação
como definida pela medicina ocidental. A diversidade “cultural”, com o seu potencial
para questionar e modificar práticas e lógicas tomadas como garantidas no Ocidente,

(50) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


acaba antes por ser subordinada à racionalidade indiscutível destas. Por outras pala-
vras, a reificação dos conceitos de “cultura” e “etnia” e o objectivo de um “tratamento
culturalmente sensível” conduzem paradoxalmente à reprodução do mesmo sistema
médico que aquelas ideias e práticas poderiam originalmente transformar, graças a uma
atitude que reproduz a hierarquia existente entre saberes, privilegiando a ciência médica
sobre a construção complexa, indeterminada, e confusa que constitui para os informan-
tes a “cultura”. O trabalho de terreno em instituições de saúde mental para imigrantes
realçou as dificuldades que apresentam os seus profissionais em considerar a possível
utilidade ou validade de sistemas de cura e representações do indivíduo alternativas.
A maior parte dos médicos entrevistados acreditam que as explicações não científicas
fornecidas pelos imigrantes para o próprio sofrimento se resumem a superstições que
tornam os pacientes vulneráveis às práticas de “qualquer bruxo”, contribuindo para um
politeísmo terapêutico que acaba apenas por confundi-los e agravar a eventual pato-
logia. Da mesma forma, quase todos concordam que os imigrantes (em particular os
africanos) serão potencialmente educáveis, e que como tal constitui uma das funções
dos técnicos da saúde corrigir comportamentos inadequados, elucidar ao nível sexual/
/moral, libertar a mente de fantasias e fabulações, e facilitar o processo de “civiliza-
ção”, tendo em vista o bem-estar completo do indivíduo. Um dos entrevistados cita a
este respeito a definição de “saúde” apresentada no preâmbulo da Constituição da Or-
ganização Mundial da Saúde: saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não apenas a ausência de doença”. Estilos de vida, hábitos alimentares,
educação, comportamento sexual, interpretações do corpo e da doença, credos religio-
sos: é auspiciada para cada uma destas variáveis uma mudança na direcção daquele
bem-estar psico-fisico-social, equilíbrio corporal e moral – o bem-estar e equilíbrio como
definidos pela mais ampla sociedade de acolhimento. O trabalho de terreno conduzido
em centros de apoio psiquiátrico para imigrantes confirma a opção da prática clínica
quotidiana, face à complexidade dos idiomas, metáforas e lógicas simbólicas apresen-
tados pelos pacientes, por uma solução que reitera estratégias já consolidadas e decide
entre o que pode ser legitimado (enquanto dotado de “sentido”) e o que pelo contrá-
rio é remetido para o mundo da superstição, da crença, da fantasia, do preconceito
e do irracional.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (51)


A filósofa Isabelle Stengers produz reflexões parecidas no campo específico da etnopsiquia-
tria da migração. Existe, na sua opinião, uma tentação dos profissionais de saúde mental
para se aproveitarem da “cura” para fazer “pedagogia”, afiliando o paciente imigrante
aos valores ocidentais da racionalidade e universalidade (Stangers, 2003: 31). Por outras
palavras, Stengers denuncia a abordagem “assimilacionista” dos programas de saúde
mental para imigrantes, que patologizam a diferença e utilizam a cura enquanto meio de
transformação do paciente no modelo de pessoa hegemónico na sociedade de acolhimen-
to. E se porventura o imigrante não aceita, se rebela, se afasta deste percurso em direcção
à racionalidade, à civilidade e à ciência, é interpretado como naturalmente incapaz de
se modernizar (por falta das capacidade cognitivas suficientes), ou como corrompendo
voluntariamente a sua cura (por um desvio social ou psicológico que deve ser controlado,
corrigido e limitado). Estes preconceitos explicam a surpresa dos médicos quando o pa-
ciente imigrante decide percorrer um caminho terapêutico alternativo ao da biomedicina
– noutros termos, “quando aquele que se acreditava ter aderido finalmente aos valores
gravados à saída da caverna decide tentar outra coisa” (Stengers, 2003: 31).

Continua a existir, em contexto médico, pouco interesse nas motivações destas escolhas,
da resistência, e do universo de significados do qual o imigrante é portador. As posições
dos técnicos entrevistados parecem oscilar entre pólos opostos: o Outro é encarado ora
como idêntico a nós do ponto de vista psíquico (embora sempre com a necessidade de o
ajudar a evoluir), ora como totalmente diferente (“é assim porque é africano”; “isto é um
comportamento típico dos indianos”, etc.). Em ambos os casos as interpretações, expli-
cações e histórias dos pacientes são desprovidas de utilidade, salvo na medida em que
contribuem para o argumento do distúrbio ou da alteridade radical, que naturaliza e reifica
a diferença cultural. O antropólogo é frequentemente consultado para confirmar exacta-
mente estas representações ingénuas do Outro, que se resumem a estereótipos estéreis,
totalmente inadequados para dar conta da complexidade das vivências individuais.

Nos contextos clínicos em que pôde ser observada a interacção entre cientistas sociais e
médicos, o antropólogo foi interpelado apenas para obter detalhes sobre as especificidades
“típicas” dos diferentes grupos (“Como é que curam isso em África? Qual é a relação dos

(52) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


indianos com a alimentação? Como se comportam as mulheres ciganas?”); para “traduzir”
uma linguagem plena de imagens, metáforas e crenças no idioma científico da medicina
(“a que se refere o paciente ao falar de feitiçaria e possessão, o que significa realmente?”);
ou para receber aconselhamento sobre como ajudar os imigrantes a modificar as suas prá-
ticas – do ponto de vista dos médicos consideradas inadequadas, insalubres, incómodas,
dificultadoras do trabalho dos enfermeiros ou transtornantes para outros pacientes. Num
texto bastante provocador, intitulado Culture as Excuse, Rob van Dijk critica abertamente o
facto de o emprego do saber antropológico no meio clínico se resumir muitas vezes a uma
passagem de informações estereotipadas que em nada melhoram a qualidade do serviço:

“The mood is optimistic and can be described as “give us the tools and we do the job”. Such a
reaction is not exceptional. Barna observes a similar process with inter-cultural training program-
mes for developing workers. “To counteract the anxiety, clients demand the only thing they know
to dispel the feeling: culture-specific information. Trainers comply by offering a smattering of the
language, ‘getting-around information’, and whatever do’s and don’t’s they believe are appropria-
te” (Van Dijk, 1998: 244).”

“Matização das teorias psiquiátricas com traços culturais” é uma expressão amplamente
empregue para definir esta utilização demasiado superficial do saber antropológico no
contexto clínico. A mera tonalidade cultural das disciplinas médicas e psicológicas é
reproduzida através do estabelecimento, pelas teorias na base destas metodologias de
intervenção, de uma distinção marcada entre os elementos psíquicos e os culturais,
considerando os últimos como superficiais e inconsequentes face ao núcleo duro e uni-
versal do psiquismo humano. Na prática, a psiquiatria transcultural fortalece a relação
entre antropologia e domínio, ao pedir à primeira o fornecimento dos saberes que lhe
permitem adaptar a sua retórica a povos e contextos outros, aos quais se impõe como
saber hegemónico.

Considerando os poucos casos em que a psiquiatria considera a cultura dos pacientes como
variável importante na formulação dos diagnósticos ou na escolha da abordagem terapêu-
tica, a relevância atribuída limita-se aos aspectos mais “simbólicos” – analisando rituais,

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (53)


cosmogonias, religiões etc. – sem considerar as contradições económicas, as relações de for-
ça e os conflitos morais, assim como os efeitos da violência colonial na memória individual
e colectiva. As experiências de trabalho de terreno em serviços de psiquiatria transcultural
confirmam que os únicos elementos dos contextos de origem dos pacientes tornados sig-
nificativos na prática clínica são os ligados à vida ritual/religiosa. São, por outras palavras,
os elementos que oferecem um toque de folclore (ou de exotismo) aos processos clínicos.
A variável da diferença cultural é incluída superficialmente na formulação do diagnóstico
sobretudo para legitimar as pretensões de transculturalidade do serviço oferecido, sem
que sejam, com efeito, consideradas as contradições económicas, as relações de força,
a violência estrutural, material e simbólica que marcam a vida dos migrantes.

A este respeito, os profissionais da saúde parecem em certa medida crer que uma conside-
ração séria de variáveis culturais na prática clínica poderia expô-los a críticas e sarcasmos:
“somos cientistas, não feiticeiros”; “não podemos pôr as penas e tocar tambor”; “dar
crédito a estas ideias supersticiosas desajuda os imigrantes”; “este é um serviço sério,
não algo de bruxos”, ilustra um tipo de frase presente em quase todas as entrevistas rea-
lizadas. Ao mesmo tempo, preocupam-se em perder a credibilidade também no caso de
reconhecerem efectivamente a possibilidade de diálogo interdisciplinar e multiterapêutico
(ou seja, com cientistas sociais e com outros terapeutas). Poder-se-á sugerir que receiam
deixar de ser os detentores exclusivos da racionalidade e verdade científicas no caso de
mergulharem seriamente na aventura etnopsiquiátrica.

Não se pretende porém afirmar que todos os psiquiatras são racistas, fechados ao diálo-
go ou exibidores de atitudes coloniais. O problema é muito mais profundo, residindo na
própria definição da psiquiatria como disciplina científica, que é baseada na suposição da
unidade biopsíquica dos seres humanos, e da sua validade universal. É esta arrogância
própria da psiquiatria que a torna fundamentalmente racista (Bracken & Thomas, 1999).
O problema é agravado pelo facto de, devido à própria natureza, falta de objectividade,
dependência do senso comum e fraca validade dos critérios diagnósticos, a psiquiatria
estar aberta às forças políticas e sociais tornando-se, portanto, muito eficaz na promoção
dos poderes dominantes (Fernando, 2003).

(54) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Uma clarificação, contudo. Tal desadequação não significa que o recurso à psiquiatria
oficial seja uma resposta totalmente ineficiente para os pacientes imigrantes. Aliás, muitos
deles optam reflectidamente pela biomedicina como meio de obter uma compreensão de,
e resposta para, o seu sofrimento. Nestes casos podemos afirmar, seguindo Frankenberg
(1988), que a biomedicina não é hegemónica apenas por representar o sistema médico
dominante, mas porque o seu domínio é aceite e recriado pelas pessoas. Os ocidentais não
consultam os médicos porque sejam forçados a aceitar os ponto de vista deles, como vítimas
passivas de hegemonia, mas porque compartilham já estes pontos de vista, fazendo com
que outras perpectivas possíveis para os seus mal-estares não tenham sentido para si.

Além disso, também não pretendo negar em absoluto a utilidade dos medicamentos para
conter as crises de sofrimento, nem especialmente a sua fascinação e eficácia perfor-
mativa e simbólica (Camionete der Geest & Whyte, 1991). Os imigrantes entrevistados
consideram frequentemente a ideia de tomar fármacos ocidentais como uma opção muito
atractiva: o comprimido é um objecto concreto com poderes terapêuticos especiais, tam-
bém enquanto substância simbolicamente dotada. Após a análise por Claude Lévi-Strauss
da eficácia dos símbolos [1975 (1949)], o fármaco pode naturalmente ser encarado nesta
sua dimensão: para os teóricos contemporâneos da eficácia simbólica da biomedicina,
também a aceitação partilhada da autoridade do conhecimento científico e seus objectos
produz o efeito terapêutico atribuído aos fármacos.

É ainda possível realçar uma função cognitiva e metafórica do fármaco, na medida em que
ele concretiza e objectifica o processo da cura, realçando a percepção do próprio mal-estar
enquanto algo tangível. Esta dimensão assume relevância mesmo no contexto biologista do
hospital psiquiátrico. Como Sjaak Van der Geest Sjaak e Susan Reynolds Whyte afirmam:

“A eficácia metafórica dos fármacos em relação às desordens psiquiátricas é particularmente


significativa, porque tais condições são efectivamente difíceis de comunicar. (…) Os fármacos
ajudam a definir, a estabelecer um significado e facilitam a comunicação. O que Lévi-Strauss
afirmou sobre animais e plantas no seu ensaio clássico sobre o totemismo aplica-se aos fármacos
em contexto psiquiátrico: os fármacos são ‘bons para pensar, para dar um significado’ (1963: 60).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (55)


(…) Assim, uma comunicação sobre o tratamento farmacológico é uma forma de comunicar expe-
riências problemáticas e ambíguas (1991: 356).”

Apesar disso, uma abordagem clínica transcultural não se pode limitar, mecânica e
superficialmente, ao tratamento farmacológico dos sintomas. Nem sempre o sofrimento
provém de uma “doença” (pode situar-se por exemplo em questões relacionais e fami-
liares), portanto nem sempre a solução será intervir ao nível do organismo. A ligação
inextrincável entre o corpo e as emoções, o organismo físico e o mal-estar, ainda que
evidente ao nível do senso comum ocidental, não é universalmente assumido: com
efeito, muitos contextos culturais dissociam o lugar das emoções e o sofrimento do
indivíduo da sua corporeidade, situando o primeiro, pelo contrário, em agentes externos
ou relações interpessoais33.

Testemunhos da experiência de profissionais de saúde assim como de cientistas sociais


confirmam que apesar disso o recurso à farmacologia é geralmente a solução imedia-
tamente proposta, pela sua capacidade em conter o sintoma sem os elevados gastos
de tempo necessários à psicoterapia. Citando um informante, o tratamento muitas vezes
“limitava-se a uma economia medicamentosa do quotidiano”, acrescentando criticamente
que “a subministração pesada de fármacos contribuía para reproduzir exactamente o es-
tado de coisas que desajuda os imigrantes”, e que o emprego de fármacos como primeira
opção “permitia aos médicos não se questionarem, continuando fechados no conservado-
rismo, impermeáveis à mudança, inflexíveis face à diferença da
33 Segundo Hallpike, “os estados
qual o imigrante era portador”.
mentais e os sentimentos são muitas
vezes considerados noutras culturas
Tobie Nathan criticou duramente, no contexto etnopsiquiátrico, a
como externos à pessoa e como enti-
dades cuja existência é independente utilização massiva dos psicofármacos “dos brancos”. Analisan-
do facto de ser vivenciado fisicamente do os seus efeitos, o autor concluiu que esta escolha terapêutica
ou pensado” (1979: 402). Exemplos
desta exteriorização das emoções são tem o efeito de enraizar o sintoma no indivíduo, assim tornado
reportados nas pesquisas de Simon e definitivamente um “doente psiquiátrico”. Face à hegemonia e
Weiner sobre a Grécia homérica (1966:
307) e de Lienhardt sobre os Dinka
ao poder simbólico do comprimido, qualquer outra acção cultu-
(1961:149). ral (amuletos, gestos, palavras, etc.), ainda que eficaz ao nível

(56) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


terapêutico, acaba por ser remetida, mais uma vez, para as noções de “crença” e “supers-
tição”. Face à tremenda influência das empresas farmacêuticas, a afirmação de Nathan
de que os medicamentos mais utilizados no mundo permanecem a oração e o sacrifício
de galinhas aparece como provocatória (1996).

A experiência de investigação com imigrantes em contexto psiquiátrico demonstra igual-


mente a forma como os sintomas rebeldes destes pacientes podem desafiar as categorias
interpretativas e práticas terapêuticas da psiquiatria, ao não se adequarem aos padrões
clínicos e resistirem ao tratamento farmacológico. Estas manifestações sintomáticas – que
relatam a possessão por espíritos, vinganças, feitiçaria – são possivelmente interpretadas
pelos médicos ocidentais enquanto problemas mentais ou neurológicos, mesmo surpre-
endentemente quando os resultados clínicos são negativos34. É assim natural que, numa
medicina insensível ao contexto cultural, aqueles fenómenos só encontrem interpretação
enquanto auto-sugestão, epilepsia ou problemas psicológicos.

Os corpos dos imigrantes, movidos pela busca fundamental de um significado que é alheio
ao atribuído pela biomedicina, constituem para esta um desafio, na medida em que pa-
recem desmentir três das suas teses fundamentais, ligadas a uma imagem culturalmente
definida do ser humano: de que os sintomas são sinais de uma doença-facto; de que o mó-
bil da doença está localizado no interior do corpo do indivíduo; e de que o corpo responde
através de mecanismos que são universais, porque “naturais”. O sofrimento dos imigran-
tes propõe antes três leituras alternativas: os sintomas como signos de um desequilíbrio
entre o indivíduo e o contexto; o móbil da doença enquanto localizado no campo relacional
do indivíduo; a resposta do corpo constituída sempre de maneira peculiar, produzindo liga-
ções criativas com as formas (culturais) institucionalizadas da aflição. Os corpos ostentam
obstinadamente uma diferença que não se sujeita passivamente aos modelos da medicina
ocidental, ao saber hegemónico da sociedade hóspede. Dife-
rença esta que é afirmada através da utilização de categorias 34 Para exemplos de terreno ver:
pertencentes ao sistema médico tradicional do país de origem; Vacchiano & Taliani, 2006;
Pussetti, disponível em:
veiculada nas negociações de sentido que a doença sempre exi- http://ceas.iscte.pt/ethnografeast/
ge; e reproduzida num léxico da aflição muito particular. papers/chiara_pussetti.pdf

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (57)


O trabalho de terreno conduzido confirma a falta de resposta, na maior parte dos casos, dos
cuidados médicos em relação aos desafios da diversidade, pela sua subordinação a modelos
e paradigmas rígidos que continuam a reproduzir. Uma abordagem caracterizada pelo redu-
cionismo biológico, diagnósticos baseados em testes uniformizados e orientados em paralelo
por uma psicoterapia alicerçada na farmacologia para resolução dos sintomas, circunscre-
ve as dinâmicas culturais da alteridade. Considerando os instrumentos teóricos e técnicos
empregues pelo corpo médico, é notável a tendência para a homogeneização das práticas
clínicas, que acaba por impedir o desenvolvimento de cuidados “culturalmente específicos”
ou “à medida” de cada indivíduo. Aquela tendência “estandardizadora” está directamente
associada ao emprego de protocolos uniformes de diagnóstico e tratamento (por exemplo, os
testes da psicologia clínica ou os modelos propostos pelo DSM, cuja eficácia com pacientes de
outras culturas já havia sido amplamente criticada por Frantz Fanon). Contudo, os instrumen-
tos e as medidas padronizadas são – como o termo indica – dirigidos aos pacientes “padrão”,
sendo consequentemente inadequados para atendimento a pacientes que se distinguem da
norma. Esta desadaptação conduz a que as respostas aos testes psicológicos acabem por
ser pobres, fragmentadas e estéreis. Mas face à ausência de questionamento sobre a perti-
nência do emprego destes instrumentos diagnósticos com imigrantes, a falta de respostas
adequadas é interpretada como confirmação de problemas psicológicos ou até cognitivos.

Da mesma forma, nunca é problematizada nos modelos diagnósticos oficiais a abordagem


biologista, que correlaciona os sintomas sempre com características cognitivas, problemas
físicos ou neuroquímicos e défices genéticos, e jamais, em contrapartida, com o contexto
interpretativo, o grau de hegemonia cultural de determinados códigos comunicativos e cate-
gorias, ou com as experiências e representações específicas do sofrimento que lhes estão
associadas. Por outras palavras, o sintoma nunca é pensado numa perspectiva semântica,
desprezando interpretações alternativas, “outras”, que apesar de constituintes centrais na
construção da experiência de mal-estar, são marginalizadas enquanto divergentes do modelo
hegemónico. Mesmo com escassa informação sobre a história do paciente, a sua biografia,
nomes, cidade, ou família, um diagnóstico psiquiátrico é proposto após um encontro bre-
ve e fragmentário, muitas vezes conduzido por enfermeiros. Diagnóstico que apesar disso
reivindica legitimidade com base numa presumível “objectividade metodológica” (emprego

(58) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


dos testes psicodiagnósticos, por exemplo), validando uma crescente subministração de
psicofármacos. Fórmulas como psicose reactiva, esquizofrenia atípica, ou delírio, tornam-se
muitas vezes termos “tampão”35 para um conjunto de sintomas incompreensíveis.

Nem sempre, portanto, os modelos médicos fazem sentido para as experiências pessoais
dos doentes, especialmente no caso de praticarem outras formas de interpretar, definir,
explicar e agir face à doença. Face às formas diferentes de vivenciar o corpo, o sofrimento
e as emoções, a resposta farmacológica como única opção terapêutica revela-se estéril e
incapaz de oferecer o espaço de escuta e diálogo que é o elemento fundamental de qual-
quer serviço que se pretenda transcultural.

Numa metáfora elucidativa: se o psiquiatra transcultural é um profissional que viaja pelo


mundo, e no retorno a casa abre a mala para dela extrair dicionários para a sua biblioteca
e objectos curiosos para adornar os seus quartos, o etnopsiquiatra é também viajante, mas
que no regresso já não tem mala, veste-se de outras formas, e perdeu a casa, sendo por-
tanto obrigado a pensar e construir um outro espaço, que desta vez não pode deixar de ser
colectivo. Ou nas palavras de Piero Coppo (2003), enquanto a psiquiatria transcultural pro-
põe e divulga a psiquiatria em todas as línguas do mundo, a etnopsiquiatria tenta edificar
um sistema de saberes e práticas complexo, múltiplo, plural, onde a psiquiatria ocidental é
apenas um dos elementos presentes. Se a primeira classifica saberes e práticas diferentes
segundo os próprios códigos, a segunda explora outros modelos do corpo, do sofrimento e
das emoções, outras terapias e conhecimentos, e integra-os, reconhecendo-lhes o estatuto
de teoria e deixando-se alterar por eles. É a partir destas considerações que se inicia a re-
flexão relativista e construtivista social que caracteriza a etnopsiquiatria clínica, na acepção
de Tobie Nathan.

2. Etnopsiquiatria

Se ao considerar as diferentes formas de acompanhamento


35 Aqui é muitas vezes aplicado
psicológico dos migrantes colocamos a psiquiatria transcultural o termo “container diagnoses”
clássica no filão teórico dos biologistas, na posição construtivista (Van Dijk, 1998)

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (59)


e relativista cultural podemos inserir a etnopsiquiatria francesa à la Tobie Nathan36. Nesta
visão, examinar a dimensão cultural torna-se um passo fundamental para compreender
as dimensões de significado que os modelos biológicos não conseguem captar e explicar.
A posição relativista da etnopsiquiatria nathaniana acolhe o ponto de vista da antropologia
das emoções segundo o qual estas derivam da interpretação e avaliação de estímulos, ou
seja de um processo de atribuição de sentido e valor histórica e culturalmente específico.
As emoções são consideradas construções sociais, variáveis como qualquer outro fenóme-
no cultural: é portanto paradoxal falar de emoções inatas e universais, idênticas através
das culturas e do tempo.

Do facto de que a emoção não é independente da cultura, mas pelo contrário constituída
por modelos de experiência adquiridos, historicamente situados e continuamente modifi-
cados pelas diferentes vivências e discursos polivalentes individuais, decorre que as suas
perturbações não possam ser consideradas objectivas e neutras, mas antes, nas palavras
de Beneduce, “um conjunto de conotações, metáforas, significados, valores e ideologias”
(Beneduce, 1995: 17). Noutros termos, cada sociedade terá as suas próprias emoções e
doenças que não podem mais ser consideradas formas puras, universalmente definidas e
imutáveis ou objectos naturais, como pretenderia o paradigma biomédico. Representações
diferentes das emoções, da pessoa, e do corpo, estão na base de horizontes nosológicos diver-
sos, de experiências diferentes da aflição, do mal-estar e da cura. Torna-se então necessário
abandonar pretensões de universalidade e aceitar a presença simultânea de outros saberes
baseados em diferentes definições do indivíduo, da normalidade e da anomalia, e em inter-
pretações e representações alternativas da saúde, do sintoma, da doença e da cura.

Na perspectiva “nathaniana”, portanto, também a psicologia e


36 Psicólogo, psicanalista, e discípulo a psiquiatria ocidentais são consideradas etno-psico-saberes ou
de Georges Devereux, criou em 1979 o
psicologias locais/indígenas, na medida em que se organizaram
primeiro ambulatório de etnopsiquiatria
em França, no hospital Avicenne. e instituíram no interior de um determinado contexto histórico-
Em 1993, fundou o “Centre Georges -cultural. Nas palavras de Tobie Nathan, “a etnopsiquiatria não
Devereux”, centro clínico-académico
de investigação e apoio psicológico a
pode, como a psiquiatria, basear-se em descrições clínicas ex-
famílias imigrantes. ternas nas quais somente o ‘observador’ possui o quadro das

(60) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


referências em que o observado é integrado, porque este último é também o nosso princi-
pal informante sobre o seu próprio quadro referencial” (Nathan, 2006: 43).

Os profissionais de saúde que se confrontam com utentes imigrantes colocam em prá-


tica quotidianamente, e sem terem consciência disso, a dimensão “etno” do saber que
representam, devido à incapacidade de compreender mal-estares e comportamentos não
presentes nos quadros diagnósticos psiquiátricos. Tal incompreensão exige uma mudança
dos paradigmas teóricos e práticas clínicas ocidentais: “os imigrantes, quer eles estejam
– e quer nós mesmos estejamos – conscientes disso ou não, são os actores principais de
um processo de mudança e redefinição da cura para o mal-estar psíquico” (Losi, 2000: 64).
A etnopsiquiatria, enquanto disciplina intersticial, mestiça e em si mesma migrante, tenta
responder a este desafio redefinindo saberes e práticas terapêuticas numa óptica interdis-
ciplinar e intercultural. A questão que se coloca não é somente a de fazer coexistir culturas
e conhecimentos diversos, mas a de fazê-los encontrar-se, cruzar-se e fundir-se, activando
em simultâneo métodos e teorias de disciplinas diferentes (psicologia, psiquiatria, etno-
logia, antropologia, filosofia, medicina e biologia) assim como saberes terapêuticos de
outros contextos culturais. A etnopsiquiatria é um saber “pluriforme” (Beneduce, 1994),
“pluriteórico” (Nathan, 1996), “nómada” (Nathan, 1986), situado nas fronteiras (Bastide,
1965) entre contextos sociais, entre representações do “Eu” e das próprias vivências, entre
saberes e disciplinas, entre universos simbólicos e culturais. Constitui portanto uma disci-
plina completamente distinta da psiquiatria transcultural, que apenas descodifica – através
de um exercício de tradução – a diferença do Outro no interior de um sistema pensado
como universalmente válido. Pelo contrário, a etnopsiquiatria dedica-se, como condição
de possibilidade, a um exercício de “des-narcização” do saber biomédico ocidental. Esta
proposta consiste em oferecer uma leitura polissémica do mal-estar, através de um esforço
essencialmente hermenêutico: o desafio é procurar, para além dos sintomas manifestos,
o sentido que se constrói na articulação da história individual e do contexto sociocultural
(Bibeau, 1993; 1992; 1988; Bibeau & Corin, 1994; Corin, 1993; 1989; Corin et al., 1993;
1990). Tal demanda implica uma abordagem não somente multidisciplinar mas também
pluriterapêutica, capaz de juntar múltiplos actores diferentes, entre médicos, terapeutas
“tradicionais”, objectos de culto e entidades invisíveis, com as suas técnicas e poderes

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (61)


curativos específicos. Apenas neste contexto o paciente acederá a um espaço de diálogo
entre referências simbólicas diferentes, e no percurso original de múltiplas interpretações
assim gerado, o significado da sua doença.

Contudo, é importante esclarecer que a antropologia construtivista, da qual bebe a etnop-


siquiatria de Tobie Nathan, tem descrito as interpretações e comportamentos emocionais
culturalmente específicos como sistemas de representações puros e coerentes, relativa-
mente homogéneos, logicamente articulados e sem contradições internas, marcados por
fronteiras precisas e imutáveis no tempo.

Aderindo a esta forma de construtivismo radical, muitos cientistas sociais têm sustenta-
do afirmações no mínimo discutíveis. Os filósofos Robert Solomon e Claire Armon-Jones,
por exemplo, afirmam que “a emoção não é uma sensação, mas essencialmente uma
interpretação” (Solomon, 1984: 248) e que “cada emoção é um produto sociocultural
único e irredutível” (Armon-Jones, 1986: 37). Na mesma linha, a antropóloga Benedicte
Grima sustenta que “a emoção é só cultura” (Grima, 1992: 6), enquanto Lila Abu-Lughod
e Catherine Lutz proclamam que “longe de ser entidades psicobiológicas internas”, as
emoções são antes “construções socioculturais”, “estilos culturais”, “práticas discursi-
vas”, e “performances sociais” culturalmente específicas (Abu-Lughod e Lutz, 1990).
Chegam ao ponto de propor uma concepção das emoções como algo que “pertence à
vida social e não a estados interiores” (1990: 2), sugerindo que “o trabalho antropoló-
gico deve esforçar-se por libertá-las da psicobiologia” (1990: 10, 12). No encontro com
os próprios interlocutores, continua Catherine Lutz (1988: 8), o antropólogo só pode
desempenhar o papel de “tradutor”, face à ausência de um terreno biopsíquico comum
da compreensão humana.

Por outras palavras, se para os biologistas a empatia é o instrumento privilegiado da


compreensão transcultural – em virtude de um núcleo emocional comum à humanida-
de – para os construtivistas radicais o trabalho de terreno sobre as emoções dos outros
acaba, no outro extremo, por se tornar uma confirmação da incomensurabilidade da
experiência humana.

(62) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


É assim que ambas as posições, quer as biologizantes próprias da psiquiatria transcultural,
quer as radicalmente relativistas como as da etnopsiquiatria de Tobie Nathan, acabam por
se tornar problemáticas no contexto do trabalho antropológico na área da saúde mental
dos imigrantes.

No caso da psiquiatria transcultural, a tese de uma vivência emocional universal justifica


as pretensões hegemónicas das categorias diagnósticas e dos modelos interpretativos da
psiquiatria euro-americana, permitindo “instituir” – nas palavras de Owen Lynch – “uma
forma de imperialismo ocidental sobre as emoções dos outros” (1990: 17), ou até mesmo
uma forma de controlo sanitário e moral. De acordo com os etnopsiquiatras italianos Ro-
berto Beneduce (2001) e Salvatore Inglese (2002), esta colonização cultural da psiquiatria
ocidental, baseada em premissas e pretensões universalistas, revela de forma evidente
relações assimétricas de poder. Na medida em que a psiquiatria sustenta o teor científico
e objectivo da classificação das emoções, assim como a sua invariabilidade no tempo e
no espaço – independente das formas humanas diversas de as avaliar intelectualmente e
as viver somaticamente – o papel da cultura é relegado para o de mero condicionamen-
to na interpretação dessas experiências universais, através do filtro opaco das crenças
locais. A possessão espírita seria desta forma uma perturbação dissociativa mascarada
por crenças e práticas religiosas, o xamanismo uma esquizofrenia disfarçada por supersti-
ções culturais, e as abluções rituais dos muçulmanos praticantes uma forma de distúrbio
obsessivo-compulsivo dissimulado pelas prescrições locais. É também neste sentido que
por exemplo a possessão zar, estudada já em 1958 pelo antropólogo Michel Leiris entre os
Etíopes de Gondar, é definida no DSM-IV da American Psychiatric Association (1994) como
“experiência esquizofrénica dissociativa” e considerada assim uma patologia psiquiátrica.
Ou que a linguagem da feitiçaria é interpretada num registo psicopatológico como psicose
aguda de natureza persecutória, com alucinações auditivas e visuais, ligada a temáticas
religiosas e a crenças culturais (Ndetei, 1988).

Este olhar patologizador identifica as interpretações não-ocidentais da doença, as representa-


ções diferentes da pessoa e dos seus limites, e as distinções alternativas entre “normalidade”
e “anomalia” como estratégias culturais inadequadas para interpretar a experiência huma-

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (63)


na (McKenzie, 1999; Fernando, 2003). É sintoma desta atitude que no British Journal of
Psychiatry, uma das mais notáveis revistas psiquiátricas, o psiquiatra Andrew Cheng (2001)
afirme que a interpretação, expressão e experiência emocional individuais, possivelmente
ligadas a “crenças erradas e superstições mórbidas culturalmente específicas”, cobrem um
núcleo de questões objectivas, científicas, reais e universais que só a psiquiatria ocidental
conseguiu identificar. Na sua opinião é evidente que as sociedades “menos desenvolvidas”,
“primitivas” e de inteligência menor só poderão deter um conhecimento limitado dos proble-
mas mentais. E que as ciências da psique ocidentais – construídas, por definição, em torno
de presumíveis universais, e propondo-se como as únicas com validade científica – podem
relegar os outros saberes e práticas para a categoria das psicologias folk e indígenas, etnop-
sicologias, e psicologias culturais (culture-bound).

Por outro lado, também as perspectivas construtivistas ou relativistas podem revelar-se pe-
rigosas e politicamente discriminatórias. Existe, efectivamente, o risco de cair no extremo
oposto: em vez de procurar ou inventar espaços originais de diálogo, lugares singulares de
pesquisa, mediação e confronto de saberes, de onde retirar práticas clínicas inovadoras, a
perspectiva relativista acaba por se tornar porta-voz de pressupostos de incomensurabilidade
da experiência humana. A este respeito, o médico e sociólogo Didier Fassin (2000) salientou
os riscos gerados pela reificação do conceito de cultura e por uma “culturalização” exces-
siva dos instrumentos e estratégias metodológicas dos antropólogos e dos psiquiatras que
estudam as emoções humanas. Frequentemente, afirma Fassin, os conceitos de “cultura” e
“diferença cultural” são empregues de forma ambígua, colorindo comportamentos, conflitos
e situações que possuem também outros fundamentos importantes. Em contextos controver-
sos como o das políticas dirigidas aos migrantes, podem assim ser reproduzidas formas de
racismo cultural, ao considerar as culturas como irredutivelmente distintas, intraduzíveis e in-
compatíveis entre si. Um tal abuso da noção de cultura – que postula a incomensurabilidade
de mundos humanos diferentes – confina o Outro numa “diversidade” autónoma e fechada
em si mesma, agravando o risco de segregar os imigrados e as suas necessidades.

Com base em trabalho etnográfico realizado em três centros de etnopsiquiatria, é possível


salientar o uso regular, nestes serviços específicos para migrantes, de noções estereoti-

(64) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


padas, essencializadas e biologizantes de “cultura” e “etnia”, confundindo de facto estes
conceitos com o de “raça”. Muitos autores realçaram a forma como a frequente sobreposi-
ção das noções de biologia e cultura nos programas terapêuticos que lidam com migrantes
acaba por “naturalizar” as diferenças entre grupos (Lee, Mountain & Koenig, 2001; Fernan-
do, 2003). Ainda nas palavras de Fassin, esta atitude simultaneamente carrega e oculta o
fantasma da Raça disfarçado de Cultura.

Em particular, Fassin ataca abertamente Tobie Nathan – fundador de uma das práticas e
teorias etnopsiquiátricas mais originais – dirigindo-lhe duas críticas: a de considerar a “cul-
tura” como uma entidade definida, fechada, delimitada por fronteiras que impossibilitam
a mútua compreensão; e a de procurar nesta “cultura” a origem e cura do mal-estar dos
outros, sem considerar as dinâmicas sociais, históricas e políticas mais amplas. De facto, no
seu texto principal (L’influence qui guérit, 1994), Nathan sustenta afirmações bastante criti-
cáveis37, que apoiam uma ideia de “cultura” estática e homogénea. Na posição rigidamente
relativista do autor, são a mestiçagem e o confronto cultural os geradores de patologias
psíquicas, constituindo-se assim como solução a reprodução de cada cultura específica em
guetos autónomos e fechados em si mesmos. Este posicionamento teórico concentra toda
a atenção sobre as especificidades culturais próprias do pacien-
te, reconstruindo uma antropologia do seu contexto de origem 37 A título de exemplo, Nathan afirma
e tentando oferecer um ambiente terapêutico que o reproduza que “não existem senão Bambara,
Bamileké, Yoruba e assim por diante”
(Nathan, 2006: 16). A restrição de tal foco carrega o perigo de (2006: 99), e que “é necessário fazer
omissão de outras variáveis relevantes, de incongruências e con- o possível para agir como um soninké
com um paciente soninké, como um
tradições, ou simplesmente da influência dos agentes individuais bambara com um bambara, como um
sobre a própria história, num processo de “naturalização ou des- kabyle com um kabyle” (1994: 24),
tendo sempre em conta a identidade
-historicização das diferenças” (Vacchiano & Taliani, 2006: 71). étnica do imigrante porque, qualquer
que seja a sua história pessoal, “um
Dogon será sempre um Dogon, e um
A asserção da coerência dos sistemas de representações, basea-
Bozo um Bozo” (1994: 219). Por esta
da numa abordagem essencialista da cultura que frequentemente razão, continua Nathan, as instituições
assume o relativismo absoluto, torna conceptual e metodologica- francesas deveriam “favorecer os
guetos, para nunca constranger uma
mente difícil a compreensão da heterogeneidade e indeterminação família a abandonar o seu próprio
interna daqueles sistemas, que os indivíduos utilizam para construir, sistema cultural” (1994: 216).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (65)


criativa e estrategicamente, a própria identidade e emoções. Para descrever a complexidade e
mutações da vida social e experiência individual é necessário compor uma nova abordagem,
que ofereça espaços de autonomia e liberdade ao indivíduo, rejeitando em igual medida o
determinismo psicobiológico e o sociocultural.

Da análise de consultas de apoio psicológico transcultural evidenciam-se duas estratégias,


regularmente utilizadas face à incompreensibilidade do paciente migrante (duplamente
alienado, porque doente e estrangeiro): ou a negação implícita da diferença cultural, com a
redução de qualquer comportamento ou sintoma às categorias da nosologia ocidental; ou,
pelo contrário, a localização dos motivos para o mal-estar do imigrante exclusivamente na
sua cultura de origem. No segundo caso, o procedimento habitual é a procura, ainda que
superficial, de informação culturalmente específica sobre o seu grupo “étnico” ou “país”.

Se é certo que conhecer a perspectiva dos pacientes sobre a doença e os modos de cura
nos seus países de origem constitui uma mais-valia, por outro lado o imigrante tem – até
por definição – de ser localizado entre (no mínimo) duas culturas. Não há possibilidade
alguma de conhecer exclusivamente com base nas representações indígenas de doença e
cura a complexa combinação de noções culturais pelas quais “aquele” indivíduo idiossin-
craticamente sofre e procura apoio terapêutico.

Os antropólogos já não podem assumir que os imigrantes habitam mundos circunscritos


e coerentes de experiências e significados moldadores das suas respostas emocionais:
estas são, pelo contrário, construídas combinando os códigos fundamentais das múlti-
plas visões do mundo às quais o indivíduo adere, e com elementos periféricos marginais
que invadem os seus sistemas de representação. Os indivíduos e grupos no mundo
contemporâneo aparecem incontornavelmente envolvidos numa permanente transição:
em lugar de horizontes culturais bem definidos, encontramos panoramas complexos,
híbridos, conflituais e mutáveis.

Os trabalhos da antropologia das emoções e das migrações deveriam contribuir para um


questionamento crítico das ferramentas de trabalho dos investigadores e terapeutas, para

(66) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


possibilitar a melhor apreciação desta heterogeneidade interna dos sistemas de represen-
tação utilizados pelos indivíduos para construir o próprio “Eu”, emoções e experiência do
mundo. Torna-se necessária uma observação mais atenta dos interstícios, margens, para-
doxos, ambiguidades e incongruências que formam parte constitutiva daqueles sistemas
de significação. É neste panorama complexo e transitório, em que múltiplos discursos
coexistem e se contradizem e em que os problemas sociais são lidos como sintomas, que
o antropólogo e o psiquiatra cultural precisam de intervir.

O confronto quotidiano com os migrantes, e em particular com o seu sofrimento, crises exis-
tenciais, sociais e familiares, exige igualmente o questionamento do conceito de identidade
pessoal, nas suas relações com as diversas comunidades às quais o indivíduo pertence
em simultâneo. Se cada cultura é marcada por um carácter múltiplo e contraditório, assim
também em cada indivíduo coexiste a pluralidade: nas palavras de Bibeau, muitas vozes
falam no interior dos indivíduos, associadas a metanarrativas fragmentárias e a sistemas
de referência flexíveis (Bibeau, 1997: 57). Mais um panorama instável e contraditório que o
antropólogo e o psiquiatra devem enfrentar: o mundo interior individual, onde é constante a
“referência a esquemas que inevitavelmente produzem quebra-cabeças, anomalias, espaços
vazios, contradições e sobreposições de valores; e a códigos interpretativos centrais que geram
estruturas de representações e cenários pragmáticos que podem ser amplamente caracteriza-
dos como móveis, instáveis e transitórios” (Bibeau, 1997: 55, 57). Enfrentá-los significa não
encerrar o diálogo pela construção de uma imagem estável e estereotipada do sujeito, mas
aceitar antes a sua transitoriedade e multiplicidade, e a polissemia das suas referências.

A este respeito, salientam-se as virtudes de um emprego da narrativa. O processo de auto-


narração possibilita aos indivíduos a contínua reconstrução, interpretação e transformação
da própria identidade, utilizando o conjunto amplo e híbrido de representações ou modelos
culturais do “Eu” disponíveis. William Reddy fala a este respeito de processos de self-
-making, self-exploration e self-alteration (2001: 32).

Mas concentrar-se no indivíduo não significa ignorar o peso dos factores sociais no seu
sofrimento. Alguns autores focaram as contradições geradas ao tentar isolar-se de forma

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (67)


arbitrária as experiências dos indivíduos das mais amplas problemáticas macro-sociais
dos contextos que eles habitam (por exemplo, Kleinman, Das & Lock, 1997). As suas
conclusões evidenciaram as estratégias políticas e profissionais que concorrem para a
construção da experiência do sofrimento, onde têm lugar metáforas e códigos interpretati-
vos predefinidos e quadros teóricos hegemónicos. Assim, também a narração da memória
familiar e colectiva, do presente como do passado, e dos mais amplos constrangimentos
políticos, sociais e económicos – que outrora forçaram a migração, e que hoje bloqueiam
os migrantes nas margens da sociedade – constitui um foco valioso para o antropólogo e
o terapeuta. Enquanto permite aos interlocutores procurar o sentido do próprio percurso,
gerir as ligações contraditórias com a própria família e terra de origem, e estabelecer
relações originais com as próprias identidades múltiplas, possibilita, por outro lado, um
acesso privilegiado do investigador/terapeuta a dimensões “ocultas”, estratégias e inte-
resses políticos e económicos muitas vezes intencionalmente omitidos ou dissimulados
na literatura sobre o assunto, conquanto significativos para a compreensão dos factores
presentes na experiência da migração.

(68) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CAPÍTULO 3.
BIOPOLÍTICAS DA DEPRESSÃO
NOS IMIGRANTES AFRICANOS

Falar da depressão em África e nos imigrantes de origem africana significa abordar um


tema clássico da psiquiatria cultural: o debate sobre a black depression, ou seja, sobre a
existência ou não desta patologia específica nos africanos. A seguinte discussão focar-se-á
sobre o tema controverso das biopolíticas da depressão em imigrantes, em particular nos
originários da África subsaariana.

Antes de mais, não se pretende falar da depressão enquanto facto orgânico, mas antes da
construção e negociação social de um conceito. E o termo “biopolítica” será aqui utilizado
na acepção de Michel Foucalt, para indicar a aplicação e o impacto do poder político sobre
todos os aspectos da vida humana, através de medidas sanitárias, de higiene, etc. É este,
na perspectiva foucaultiana, o novo aspecto do poder. Um poder não institucional, não
repressivo, mas espalhado, penetrante e inscrito nos corpos; um poder que não reprime,
não impõe, não pune, mas que constrói os corpos, os normaliza, os identifica, e os torna
sujeitos subjugando-os.

Uma discussão da categoria “depressão” é relevante por diferentes razões. Em primeiro


lugar, porque se trata de uma patologia que nos últimos 50 anos se transformou numa
emergência de saúde pública mundial. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em
2020 a depressão será, ao nível planetário, o segundo maior problema de saúde depois
das doenças cardiovasculares38. Em Portugal, a Direcção-Geral de Saúde, respondendo
ao apelo da OMS, está a avançar agora com um Programa Nacional de Luta Contra a
Depressão: citando uma notícia no Diário de Notícias “a preo-
cupação acrescida com a depressão, patologia causada por um 38 Lakoff, 2006; Petryna, Kleinman,
desequilíbrio da química cerebral, decorre do facto de se estimar Lakoff, 2006.
39 http://www.mni.pt/destaques/
que esta doença atinja cerca de 30% da população em Portugal index.php?cod=6290&file=destaque
e anualmente 33,4 milhões de pessoas na Europa”39. &voto=5

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (69)


Em segundo lugar, por se tratar do problema mental mais diagnosticado em pacientes
imigrantes em Portugal, segundo os psiquiatras entrevistados, e por existirem estu-
dos epidemiológicos que indicam serem ao nível mundial os
40 http://www.acime.gov.pt/modules. imigrantes, enquanto socialmente excluídos, pobres, discrimi-
php?name=News&file=article&sid=319
nados, ilegais, etc., um grupo particularmente vulnerável aos
41 Stotland, 2004; Aroian e Norris,
2003; Bhugra & Ayonrinde, 2004; distúrbios depressivos (Bhugra, Becker, 2005). No sítio do
Bhugra, 2003. ACIDI na Internet, um artigo intitulado Almas feridas40 relata o
42 Fernando, 1984, Watkins et al.,
2006, Brown, et al., 2003, Jackson et
aumento contínuo e exponencial da depressão nos imigrantes,
al., 1996, McNeilly et al., 1996, Pak et ao ponto de esta perturbação do humor estar a constituir-
al., 1991, Thompson, 1996, Williams &
-se no maior risco de saúde mental para aquela população.
Williams-Morris, 2000.
43 Sobre as altas taxas de depressão A depressão nos imigrantes é apresentada como uma patolo-
causadas por discriminação, ver: gia “inevitável”, devido a factores tais como a discriminação,
Clark e Williams, 1999; Clark et al.,
R., Anderson, N. B., Clark, V. R., &
trauma e stress precedentes, concomitantes e posteriores à
Williams, D. R. 1999; Brown, Keith, migração, falta de redes de apoio, declínio do estatuto econó-
Jackson, & Gary 2003; Jackson et al.,
mico e social, barreiras linguísticas e institucionais, fracturas
1996; Brown et al., 2003; McNeilly et
al., 1996; McNeilly et al. 1996; Pak et identitárias, choque cultural e exclusão, entre outros41.
al., 1991; Thompson, 1996; Williams &
Williams-Morris, 2000; Hudson e Kohn-
-Wood, 2007; Comas-Diaz & Greene, Seriam presumidamente mais atingidos pela depressão os imi-
1995; Essed, 1991; Fernando, 1984; grantes negros, na medida em que a discriminação racial é
Kessler e Williams, 1999; Noh et al.,
1999; Ren e Williams, 1999; Salgado
considerada um factor patogénico adicional42. É vastíssima a
de Snyder, 1987. Sobre a relação entre literatura sobre a relação entre discriminação e patologias tais
discriminação e hipertensão: Arriola,
como a depressão e a hipertensão em imigrantes de origem
2002; Anderson e Jackson, 1987;
Myers e McClure, 1993; Williams e africana43. E se os imigrantes negros são delimitados enquan-
Neighbors, 2001. to grupo particularmente exposto aos riscos de perturbações
44 Cockerham, 1996; Kessler et al.,
1994; Linzer et al., 1996; Culbertson,
depressivas, entre eles as mulheres são indicadas como as
1997; Walters, 1993; Nolen-Hoeksema, mais vulneráveis. Com efeito, estudos epidemiológicos pro-
1987; Boyd & Weissman, 1981;
pondo explicações que variam entre o biológico e o social
Eaton & Kessler, 1981; Frerichs e
Clark, 1981; Warheit e Schwab, 1973; argumentam serem as mulheres em geral mais inclinadas
Weissman & Klerman, 1977. a manifestar esta patologia44, e especialmente as mulheres
45 Gordon-Bradshaw, 1987; Mc Grath
et al., 1990; Brown et al., 2000;
negras de baixa classe social45. Sofrem por conseguinte de
Collins, 1990; Wilson, 1996. uma dupla vulnerabilidade ao risco da depressão: enquanto

(70) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


mulheres face aos homens, e enquanto negras em comparação com outros imigrantes
(Carta et al., 2005)46.

Em terceiro lugar, a questão da depressão nos imigrantes africanos (e em particular nas


mulheres) chamou pessoalmente a minha atenção por ter sido um assunto longamente
debatido na equipa de psiquiatria transcultural para imigrantes onde conduzi trabalho
de terreno durante três anos. O que me intrigava a nível pessoal era, em particular a
ideologia biologista presente no discurso dos médicos e veiculada pela subministração
dos fármacos: a depressão como doença genética, segundo muitos dos técnicos provavel-
mente hereditária, devida a um defeito dos neurotransmissores. O sofrimento era assim
legitimado como doença, realidade orgânica, baseada num desequilíbrio neuroquímico por
produção insuficiente de serotonina, e causada por defeitos genéticos. A hipótese geneti-
cista, defendida pelos profissionais com os quais trabalhei, e que sustenta a necessidade
das intervenções farmacológicas, afirma por outras palavras ser a depressão “o resultado
natural de uma deficiência bioquímica, assim como por exemplo a diabetes depende de
uma deficiência de insulina”, nos termos de um médico entrevistado47. Esta definição da
patologia localiza portanto no cérebro individual a origem do distúrbio, sem ter em conta
eventuais explicações sociais para o mal-estar (Moncrieff & Kirsch, 2005).

Afigurava-se-me particularmente notória a tentativa de explicar, através da argumentação


biológica ou geneticista, as altas taxas de depressão nas mulheres negras, através de
discursos estereotípicos sobre o género, por um lado, e de con-
ceitos irreflectidos de “raça”, “etnia” e “cultura”, por outro. Em 46 Klerman & Weissman, 1989;
diferentes ocasiões noções como as de “personalidade africa- Wetzel, 1994, Sileo, 1990. Foucault
afirmava ironicamente que uma
na”, “traços comportamentais dos negros” ou “origem genética mulher negra é o doente psiquiátrico
da mente africana” eram abordados no discurso dos médicos, perfeito (2005: 202).
em expressões que relembram de forma inquietante os clássicos 47 Caspi et al., 2003; Ross e Pam,
1995; Alper e Beckwith, 1993; Conrad,
estudos de psiquiatria transcultural da época colonial48. Mesmo 1997; Robert e Plantikow, 2005.
sem entrar na questão do emprego criticável que a maior parte 48 Baldwin, 1976; Adebimpe, 1984;
Lind, 1917; Bean, 1906; Carothers,
dos profissionais entrevistados faziam destes conceitos, existe 1953; 1954; Szasz, 1971; Lumsden,
uma literatura considerável sobre o uso não problematizado e 1976; Gelfand, 1962; McCulloch, 1995.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (71)


a sobreposição destas noções nos estudos epidemiológicos sobre a saúde dos imigrantes
e das minorias étnicas49. O conceito de raça continua, todavia, presente nos estudos
epidemiológicos, biologizando integralmente fenómenos que poderiam ter também leituras
sociais e políticas50. Alguns autores chegaram a identificar a tendência neokraepeliniana51
da psiquiatria contemporânea, onde todos os transtornos mentais são vistos como possuin-
do um substrato biológico e potencialmente relacionado com factores genéticos e raciais,
como forma de violência estrutural que contribui para uma crescente desumanização da
pesquisa científica – considerando como factos exclusivamente biológicos fenómenos de
natureza biossocial52. Analisando o debate sobre “raça” e saú-
49 Bhopal, 1997; Osborne,
de mental, é impressionante a importância que continuam a ter
Noble, Weyl, 1978; Polednak, 1989;
Cruikshank, 1989; Cannon e Locke as leituras biogenéticas da “psique dos negros” na explicação
Source, 1977; Ahmad, 1993; Donovan, das elevadas taxas de psicopatologias neste grupo (Rees, 1991;
1984; Sheldon, 1992; Johnson,
1984; Ahmad, 1989; Osborne, 1992;
Harrison et al., 1988), desconsiderando explicações ligadas a
Dressler, 1993. factores sociais, económicos e políticos53. Nestes trabalhos, é
50 O’Donnell, 1991; Banton, 1987;
a própria fisiologia africana que é considerada problemática e
Smaje, 1995; Feit 1992; Murray, 1994.
51 Esta perspectiva própria da predisposta ao desenvolvimento de patologias mentais. Exem-
psiquiatria americana a partir da plos destes estudos incluem as pesquisas contemporâneas de
década de 1970, acompanhada da
intervenção farmacológica massificada Robin Murray, que explica os índices elevados de esquizofrenia
e do uso do DSM à escala mundial, em afro-descendentes com base em factores perinatais54, que li-
concorreu para anular as variáveis
culturais: a sintomatologia, a patologia,
gam as perturbações mentais dos negros a traumas perinatais e
e a etiologia foram consideradas causas genéticas. Shashidharan e Francis (1996) apresentaram
constituintes de um único sistema
uma revisão crítica dos estudos epidemiológicos sobre a vulne-
coerente, e o sinal da patologia (o
sintoma) o pretexto para percorrer rabilidade étnica ou racial à psicopatologia55, evidenciando a
a única estrada possível (o modelo forma como muitas pesquisas psiquiátricas identificam os afro-
biomédico) naquele sistema.
52 Farmer, 2002; Nizeye et al., 2006.
-descendentes como mais vulneráveis à doença mental, menos
53 Suki, 2003; Fernando, 1995; Rack, adequados à psicoterapia – devido a limitações de habilidade
1982; Shaikh, 1985; Brewin, 1980;
verbal – e mais resistentes ao tratamento farmacológico. Peran-
Sashidharan, 1988; Burke, 1984.
54 Ver: Rees, 1991; Hutchinson e te esta descrição, o tratamento farmacológico é considerado a
Murray, 1996; Toone et al., 1996 e os terapia mais adequada para pacientes negros, e não faltam es-
trabalhos de Glyn Harrison (Harrison
et al., 1988).
tudos salientando as quantidades muitos superiores de drogas
55 Sashidharan e Francis, 1996. que lhes são subministradas comparativamente aos pacientes

(72) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


brancos56. Na maior parte dos casos que acompanhei no trabalho com imigrantes de
origem africana, o diagnóstico de depressão era extremamente comum, e a explicação
bioquímica do sofrimento com o respectivo tratamento farmacológico constituíam a nor-
ma. Tentando reconstruir as histórias dos pacientes através e além dos sintomas que
eles expressavam, comecei a dar-me conta que o diagnóstico de depressão constituía a
tradução em termos clínicos de problemas e desconfortos ambientais que tinham cau-
sas principalmente sociais. Alguns dos clínicos entrevistados admitiram que os imigrantes
diagnosticados com este distúrbio poderiam encontrar uma cura através de intervenções
sociais, estando na maior parte das situações ilegais, desprotegidos, explorados pelos
patrões, e em condições habitacionais e económicas deploráveis. Mesmo assim, os entre-
vistados concordavam que a única solução viável para os ajudar era a farmacológica, uma
vez não sendo possível alterar todas as outras variáveis57. A todos os imigrantes africanos
subsaarianos que acompanhei foram prescritos como primeira medida fármacos antide-
pressivos. Mesmo que possivelmente mascarado por problemas físicos, ou expresso de
forma somática, o problema que mais de metade dos imigrantes
56 Rogers e Taylor, 2007; Ball e
africanos apresentam, segundo os profissionais da saúde, é a Elixhauser, 1996; Kressin e Petersen,
depressão: relatam sensações de tristeza e fracasso, choram, 2001; Flaskerud e Hu, 1992; Segal
et al., 1996; Fleck et al., 2002; Kuno
queixam-se da situação em que vivem quotidianamente, têm e Rothbard, 2002; Walkup et al.,
pensamentos negativos, dormem mal. Alguns dos técnicos de 2000; Diaz e De Leon, 2002; Kuno
e Rothbard, 2002; Kreyenbuhl et al.,
saúde chegaram a afirmar que os comportamentos depressivos 2003; Daumit et al., 2003; Kreyenbuhl
eram comuns especialmente nos africanos de primeira geração, et al., 2003; Opolka et al., 2003.
e entre estes, nas mulheres, devido não somente às condições 57 Os técnicos de saúde justificavam
a alta incidência da depressão nos
particularmente duras do percurso migratório, mas especial- imigrantes baseando-se em estudos
mente a uma resignação, à incapacidade de assumir firmeza e epidemiológicos que apontavam para
um aumento exponencial da patologia
resolução, e a uma atitude de desistência face às adversidades em geral, e entre os sectores marginais
que seria típica dos africanos e do sexo feminino. Afirmações da população em particular.
deste género, mesmo que suportadas por uma literatura sobre 58 Adebimpe, 1984; Azibo, 1983;
1984; Baldwin, 1976; 1980; 1986;
a estrutura típica de personalidade e a base genética do com- 1987; Baldwin e Bell, 1985; Bean,
portamento dos negros58, não deixam de lembrar estereótipos à 1906; Gelfand, 1962; Mihoko
Doyle, 2006; Jones, 1980; Lind, 1917;
la Colin John Carothers sobre a Mente Africana59, ou os discur- Lumsden, 1976; Semaj, 1971; 1981.
sos euro-americanos sobre emoções e género (analisados entre 59 Carothers, 1947; 1951; 1953; 1954.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (73)


outros por Catherine Lutz60). A resposta clínica mais usual é o tratamento através de
fármacos designados pelos profissionais de saúde como “de emprego comum”, fármacos
“sociais”, nomeadamente sedativos, ansiolíticos e antidepressivos. O tratamento farmaco-
lógico é considerado também pela OMS como a resposta mais adequada e eficaz contra
a patologia depressiva, mesmo que esta esteja ligada a factores como a pobreza, fome,
discriminação racial e de género, violação dos direitos humanos, ilegalidade ou exclusão
social, entre outros61. Os psiquiatras Dinesh Bhugra e Oyedeji Ayonrinde (2004) sustentam
que a maior parte dos imigrantes em situação de ilegalidade, pobreza, precariedade e
marginalização, mesmo com queixas meramente somáticas, são clinicamente deprimidos.
Os médicos com os quais tive ocasião de trabalhar (mesmo fora da psiquiatria) confir-
mam que quase todos os imigrantes utentes dos centros de saúde, independentemente
da queixa que os motiva, apresentam sintomas depressivos. A experiência de trabalho de
terreno sugere ser este de facto um dos diagnósticos mais comuns para o sofrimento dos
consultantes que lamentavam situações sociais e existenciais dramáticas (em particular
mulheres africanas). A categoria de depressão parece exprimir por conseguinte, no idioma
da nosologia psiquiátrica, o sofrimento social dos imigrantes mais vulneráveis.

Os sintomas depressivos, ligados à ansiedade, são identificados também pela nova e mais
importante patologia mental dos imigrantes, “descoberta” pelo psiquiatra catalão Joseba
Achotegui: a síndrome de Ulisses, síndroma de stress múltiplo e crónico, já definida como
“o mal do século vinte e um”, e que atinge principalmente os africanos, na opinião de
Achotegui “alegadamente mais expostos aos riscos da depressão” (Achotegui, 2005). Não
só entre os imigrantes de origem africana mas também em África, segundo um estudo
conduzido pela Organização Mundial de Saúde62, a depressão tornou-se uma das pato-
logias mentais mais importantes, devido à interacção singular
60 Lutz, 1990. de múltiplas variáveis: urbanização, vulnerabilidade e alterações
61 World Health Report (2001).
económicas e políticas, fragmentação identitária, modificação
Consultar o conjunto factores já refe-
ridos no primeiro capítulo, entre eles das estruturas hierárquicas “tradicionais” e da ordem social,
nomeadamente as sete componentes globalização e aculturação maciças, movimentos migratórios,
de perdas implicadas, segundo alguns
autores, no processo migratório.
ruptura de laços familiares, individualismo crescente, etc. São
62 OMS, Sartorius et al., 1996. exactamente estas transformações sociais, marcos da passa-

(74) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


gem entre o período colonial e o pós-colonial, que criaram – segundo alguns autores – a
experiência da depressão naquele continente, e que estão ligadas ao aumento exponencial
desta patologia nos imigrantes africanos63. A depressão é apresentada portanto como
“desordem pós-colonial” (DelVecchio et al., 2008) ou “descontentamento com a moderni-
dade” (Comaroff e Comaroff, 1993).

Em particular as alterações sociais repentinas que caracterizam a contemporaneidade


africana, como a urbanização, a migração do espaço rural para a cidade, as mudanças
económicas, o individualismo e a solidão crescentes, a desaculturação e a dissolução da
organização social “tradicional” são considerados por muitos autores como as causas do
advento da depressão em África, ou pelo menos da mudança dos códigos interpretativos
e dos idiomas de pessoa e de doença64. Seriam estas as premissas necessárias, em
qualquer lugar do mundo, à construção da experiência depressiva, do seu léxico, da sua
hegemonia cultural e discursiva65.

A construção da depressão como patologia no Ocidente do século XX está ligada a mudan-


ças similares do panorama socioeconómico. Esta desordem tem uma longa tradição no
Ocidente – apesar do seu significado social e moral ter mudado
drasticamente no curso dos anos – e foi objecto de diferentes 63 Beneduce, 1995; 1999.
64 Entre os outros, Gutkind, 1969;
estudos históricos66. Jackson (1986), como também Harré e Collomb e Collignon, 1974; Zempleni,
Finlay-Jones (1986), concentraram-se na difícil tarefa de acom- 1988; Auge, 1997; Kirmayer, 1993;
panhar o desaparecimento da emoção chamada acídia e o Hunter, 1991; Reverzy, 1993; Buka
et al., 2006; Marsella, 1998; Obrist
significado da “obsoleta” melancolia, dois conceitos precursores e Eeuwijk, 2003; Harpham e Blue,
de “depressão” fundamentais na época medieval. Em meados 1995; German, 1987; Lambo, 2008;
Harpham e Blue, 1995; Platt, 1984;
do século XVIII no Ocidente, segundo a análise de Susan Sontag Gunnell et al., 1999; Preti e Miotto,
(1978), começou a existir uma interessante associação do sofri- 1999; Kposowa, 2001; Harpham,
mento, tristeza, melancolia e descontentamento, e de sintomas 1994; Kleinman, 1991; Lusty e
Vaughan, 1988.
como a falta de sono e apetite, fraqueza, perda de vitalidade, for- 65 Augé, 1977; Kirmayer, 1994;
ça e iniciativa com a imagem da pessoa romântica, requintada, Zempleni, 1988; Beneduce, 1995.
66 Jadhav, 2000; Radden, 2000;
sensível, e interessante. Ter uma energia e boa disposição exces- Jadhav e Littlewood, 1994; Gaines,
sivas, um bom apetite e um corpo bem constituído significava 1992.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (75)


por contraste ser uma pessoa vulgar e pouco elegante (Sontag, 1978). Segundo a recons-
trução histórica, esta representação começou a mudar na época da Revolução Industrial
(Rabinbach, 1990). A energia e a força do trabalho, no interior do pensamento positivista
e do sistema capitalista em expansão, começaram a ser relacionadas directamente com
a produção de riqueza (Lutz, 1991). Surgiram patologias relacionadas com a falta de
energia: como a depressão, a neurastenia e, numa segunda fase, a síndrome de fadiga
crónica. Ao mesmo tempo, começou a emergir a ideia de “stress” como causa de pertur-
bação mental (Kraepelin, 1921; Leonhard, 1959; Stone, 1985; Pilgrim, 2007). A noção
de depressão encontrava-se directamente ligada a ideias de pressão, força e energia: no
começo do século XX o termo era usado principalmente em meteorologia (áreas de alta e
baixa pressão), em economia (a Grande Depressão), em linguística (na oscilação da altura
das notas musicais) e em fisiologia (para indicar declínios da curva T do eletrocardiograma
ou do sistema imunitário). Se antes a melancolia era protagonizada principalmente pelos
homens, e constituía um sentimento socialmente valorizado enquanto sinal de requinte,
o correspondente discurso moderno sobre a depressão difere do anterior pelo facto de
individuar as mulheres como grupo sofredor, e pela representação da síndrome enquanto
situação desviante, inadequada, e de natureza médica (Radden, 1987)67.

O questionamento do estatuto ontológico da categoria “depressão” torna-se particular-


mente significativo, uma vez que esta patologia se transformou, a partir dos anos 50 do
século XX e no espaço de uma década, numa das doenças mais difusas, com o major
custo social e simultaneamente com um dos mercados farmacêuticos mais prósperos,
ainda hoje em contínua expansão. Como relata brilhantemente David Healy no livro The
Antidepressant Era, até aos anos 50 a depressão não era considerada um problema.
Depois da invenção da Cloropromazina e dos serotoninérgicos nessa década, o autor subli-
nha a reticência dos laboratórios farmacêuticos da época em financiar os estudos clínicos
sobre antidepressivos. A companhia farmacêutica suíça Geigy
67 Esta mudança poderá estar considerava o investimento injustificado, uma vez não existin-
relacionada com o processo geral de do mercado para este género de produtos: a depressão era na
medicalização e normalização que
caracteriza, na análise de Foucault
altura uma patologia demasiado rara. Exactamente 30 anos de-
(1978), a idade moderna. pois a situação inverteu-se por completo, e o crescimento do

(76) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


mercado de antidepressivos contribuiu para a fragmentação da categoria de depressão
em subunidades patológicas mais específicas: distimia, depressão recorrente breve, de-
pressão maior, depressão masculina versus feminina, e assim por diante. As companhias
farmacêuticas contribuíram para construir a legitimidade do diagnóstico (Antonuccio,
Burns & Danton, 2002; Koerner, 2002): a “Beat Depression Campaign” do Royal College
of Psychiatrists por exemplo, assim como todas as campanhas mundiais promovidas pela
World Psychiatric Association para demonstrar a pandemia depressiva (Murray & Lopez,
1995; Fenton & Sadiq-Sangster, 1996), foram financiadas pelas empresas farmacêuticas
(Pilgrim & Rogers, 2005a, 2005b).

Consideremos as estatísticas: em 1958, quando foi descoberto o primeiro antidepressivo,


a depressão afectava uma média de 50 pessoas por milhão; em 1970 o número dos
afectados era estimado pelo psiquiatra Heinz Lehmann como de 100 milhões no mundo
inteiro e em 1980 ultrapassava um milhão somente na França. As vendas de Prozac ultra-
passam actualmente as dos sapatos Nike. Até em países onde parecia não constituir uma
preocupação sanitária a depressão se tornou uma patologia importante, e prevê-se que
venha a ser, dentro de poucos anos, o problema de saúde mais significativo do continente
africano (Bhugra, 2004). Segundo alguns autores, esta consta-
tação trata-se de uma distorção evidente, servindo para desviar 68 Bhugra, 2004; Murray & Lopez,
1997; Higginbotham and Marsella,
a atenção de problemas mais sérios a nível global, como as 1988.
violações e negações de direitos humanos, políticas migratórias 69 Porquanto seja controversa, quero
inflexíveis, fome, miséria e pobreza68. todavia levantar algumas questões que
evidenciam a impossibilidade de se
imaginar qualquer forma de sofrimento
A incidência elevada da depressão em África e em imigran- independentemente das dinâmicas
sociais e dos interesses políticos
tes africanos é especialmente impressionante face à sua e económicos que a constroem,
inexistência nos cânones da psiquiatria transcultural clássica. produzem, reconhecem e nomeiam.
A interrogação certa aqui não é a da
O debate sobre a designada black depression, um tema clássi-
existência ou não da depressão nos
co da psiquiatria cultural, discutia precisamente a inexistência africanos, mas a de como e porquê
desta patologia nos africanos69. A ideia desta ausência es- se produzem novas hegemonias
discursivas e novos interesses que se
tava obviamente ligada à ideologia colonial, que afirmava a sobrepõem a outros, que se modificam
“verificação científica” da inferioridade biológica e espiritual ou desaparecem.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (77)


dos povos subjugados. Médicos e psiquiatras coloniais argumentavam pela ausência de
depressão em África devido à alegada simplicidade da mente negra, expressão de es-
truturas cerebrais menos evoluídas. Nos relatórios psiquiátricos da época encontramos
a convicção de que o “negro” não conhece a depressão por ser pouco auto-consciente,
imaturo, ter fraca integração pessoal e sentido de responsabilidade, ter uma afectivi-
dade infantil, ser dominado por instintos pueris, despreocupado com o futuro e ancorado
à imediação do presente70. O homem africano pareceria portanto “naturalmente” prote-
gido contra o desenvolvimento desta síndrome71, sendo o sofrimento moral considerado
uma prerrogativa reservada aos brancos, cristãos, civilizados e cultos. Nas origens da
psiquiatria transcultural encontram-se diferentes trabalhos destinados a demonstrar o
desprovimento psíquico dos africanos, supostamente encerrados num estado evoluti-
vo biológico inferior ao europeu. Será portanto compreensível
70 Ver: Beiser, 1985, Kalunta, 1981,
Marsella et al., 1985, Beneduce, 1999, que, em reacção à violência hermenêutica destas teses – e das
Littlewood e Lipsedge [1982] 1997: práticas que justificavam, como a escravidão e a colonização –
61-82. McCulloch, 1995; Beneduce,
2002; Fassin, 1999; 2000; Bloch,
a psiquiatria africana se empenhe em defender a tese oposta:
1997; Vaughan, 1991; Keller, 2001; que também os africanos possuem uma psique e a exploram
Littlewood e Bhugra, 2001; Collignon, em profundidade, que também eles adoecem existencialmente
1997, Carothers, 1947; 1951; 1953.
71 Diversas pesquisas identificaram e se deprimem. A leitura de trabalhos destinados a demonstrar
também a ausência de designação esta existência de um typus melancholicus africanus deixa a
para este distúrbio nas línguas africa-
nas e a existência de uma organização
sensação de se ter contudo atingido um resultado exagerado,
social comunitária e coesa como extremado em relação ao pretendido. A fim de demonstrar que
provas da ausência da depressão
os africanos não seriam inferiores aos europeus, começou a
no continente africano. Outros
autores sustentaram que a depressão ser defendida a tese de que todos sentiam emoções e mal-es-
poderia ser mascarada por distúrbios tares exactamente como os europeus: primeiro a melancolia,
somáticos e neurovegetativos sem
causas orgânicas: o psiquiatra Julian
mais tarde a depressão. As pesquisas internacionais sobre a
Leff (1981), por exemplo, afirmava que epidemiologia da depressão tornaram evidentes as dificulda-
em África as experiências emocionais
des em estabelecer critérios diagnósticos estáveis e gerais72.
se manifestariam como perturbações
somáticas, dada a incapacidade dos Os mesmos autores chegaram a admitir que os critérios da
africanos em exprimir-se segundo um definição da experiência e fronteiras da patologia se altera-
código psicológico, devido ao seu nível
de atraso material e intelectual.
vam sensivelmente com as alterações do panorama histórico
72 Marsella et al., 1985. e político.

(78) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


O período da independência dos países africanos marcou a passagem à existência da
depressão em África, especialmente devido à mudança dos códigos interpretativos dos
psiquiatras (entram em cena os sintomas depressivos “indirectos” ou “mascarados”), aos
efeitos da urbanização, e ao prestígio crescente reconhecido às experiências depressivas
(Prince, 1968). Como ilustração, considere-se que Thomas A. Lambo escrevia em 1956
não existirem “depressões psicóticas clássicas” em África, apenas para declarar em 1960
que muitos dos africanos eram deprimidos (Lambo, 1960). Na mesma linha, notava
Raymond Prince (1968) numa revisão da literatura sobre o tema como os 14 artigos
relativos a África editados antes de 1957 referiam não existir um único caso de depressão;
enquanto os 20 publicados entre 1957 e 1965 a apresentavam pelo contrário como um
distúrbio muito frequente. Em particular, nos primeiros relatos da época a depressão apa-
rece encarada como patologia característica das pessoas “civilizadas”, “ocidentalizadas”:
“todos os nossos pacientes deprimidos eram ocidentalizados… não encontramos casos de
depressão em populações primitivas… o suicídio é raríssimo nas comunidades primitivas,
porém não é invulgar nos africanos ocidentalizados” (Lambo, 1960). Por contraste, depois
do período da independência: “observamos muito frequentemente casos de depressão”
(1960). O que aconteceu durante aquela década? Esta mudança tão drástica do quadro epi-
demiológico pode ter interpretações diferentes: desordem tipicamente pós-colonial, maior
cuidado diagnóstico, resultado da globalização crescente das categorias psiquiátricas euro-
-americanas, perturbação devida à urbanização repentina das comunidades africanas ou
ligada ao incentivo das empresas farmacêuticas73. Entre os possíveis factores responsáveis
pela emergência da depressão em África, Prince refere a questão do prestígio e requinte as-
sociado à imagem da pessoa melancólica, a imposição de novas hegemonias discursivas e
o desaparecimento de outras, e a ocidentalização progressiva das nosologias.

Naquela década foi portanto atingido um consenso entre os psiquiatras – ainda que bai-
xando o nível de coerência epistemológica (chegando a permitir a classificação como
depressão, porquanto “mascarada”, de experiências vivenciadas e explicadas pelos indiví-
duos de formas distintas) – sobre a alta prevalência dos distúrbios
depressivos também em África, mesmo que dissimulados. São 73 Del Vecchio et al., 2008; Kirmayer
particularmente interessantes, neste sentido, as Actas do Sym- e Minas, 2000.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (79)


posium Régional de Psychiatrie et Culture, organizado em 1981 pela Association Mondiale
de Psychiatrie e pela Société de Psychopathologie et d’Hygiène Mentale de Dakar. A parte
central do simpósio – editado na revista Psychopathologie Africaine – foi dedicada às ob-
servações dos psiquiatras africanos sobre a grande incidência da depressão em África a
partir da década citada (Collignon, 1981), e à sua fervorosa reivindicação da capacidade
de depressão dos africanos. Como já sugerido, podemos interpretar este posicionamento,
por um lado, como uma reacção a representações coloniais que justificavam a ausência
daquela patologia com uma deficiência neurológica, psicológica e cultural dos negros. Por
outro lado, Piero Coppo (2005) sublinha que estes psiquiatras foram obviamente formados
nas universidades europeias, e que as suas pesquisas sobre depressão tiveram o finan-
ciamento das companhias farmacêuticas, tendo sido justificadas pela rápida difusão nos
seus países dos fármacos antidepressivos. O mesmo simpósio foi precisamente financia-
do pelas indústrias Janssen-Le Brun, Spécia e Squibb, produtoras de antidepressivos de
ampla difusão protagonistas no mercado africano. Outros autores ligaram também o adven-
to da depressão em África nos anos 60 aos interesses e investimentos das empresas
farmacêuticas em novos mercados. A discussão sobre a existência da depressão “negra”
deve ser interpretada no interior do mais amplo quadro político-económico, outrora en-
quanto forma de legitimar a empresa colonial, e no presente como meio de justificar novas
formas de imperialismo. É impossível compreender a relevância desta diatribe sem reflectir
sobre a relação entre dimensões clínicas, higienistas, assistencialistas e humanitárias por
um lado, e projectos de sujeição, dominação e controlo por outro, realizados através de
saberes “dominantes” como o médico e o psiquiátrico. Quer a insistência obstinada na pre-
sença da depressão africana, quer a demonstração da sua ausência através da reificação
da categoria como doença, falham ao não considerar os indivíduos nas suas dimensões
sociais e históricas, ignorando igualmente os interesses macroeconómicos e políticos liga-
dos (outrora) ao projecto colonial e (no presente) ao humanitarismo pós-colonial74, ou às
receitas do mercado farmacêutico.
74 Uma das formas de imperialismo
moderno é a que foi designada
“intenção filantrópica”, suportada Em 1951 foi descoberta a Iproniazida, e em 1957 a Imipramina,
pela ideia de modernizar, educar,
curar, administrar corpos, desenvolver,
os primeiros fármacos antidepressivos inibidores da mono-
instruir e civilizar (Said, 1993). aminoxidase (entretanto descontinuados pelos seus efeitos

(80) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


secundários graves a nível do fígado). O momento da descoberta e da comercialização
em vasta escala destes fármacos coincide exactamente com o momento da descoberta
da depressão em África, sublinhando o laço estreito entre diagnósticos e medicamentos
disponíveis – “Uma vez que não existem por detrás das categorias objectos ‘naturais’, é a
dinâmica da invenção dos fármacos (estes sim, objectos reais) a descobrir doenças novas,
a gerar nomes, distinções e classificações, parte integrante da sua fabricação” (Coppo,
2005: 63). Por outras palavras, os laboratórios e as indústrias farmacêuticas não procu-
raram somente a chave certa para a fechadura, mas impuseram a forma da fechadura à
qual aplicar a chave. Emily Martim (2006), num artigo brilhante sobre a economia moral
e o contexto emocional que acompanhou a descoberta e a difusão dos antidepressivos
nas décadas entre 1950 e 1970, indica mais uma vez 1957 como o ano que marcou a
imposição à escala global da patologia “depressão” e dos fármacos para a tratar. Esse
ano viu com efeito ser organizado em Milão um grande encontro da comunidade científica
internacional da “psique” para falar da eficácia das drogas psicoactivas no alívio do mal-
-estar emocional. O evento teve suficiente importância para ser repetido no ano seguinte
em Roma, na presença do papa, que expressou publicamente a apreciação pelas virtudes
da psicofarmacologia para curar a dor moral, e a sua esperança da disponibilização destes
recursos em escala mundial (Healy, 1996: 82).

Um exemplo entre muitos: quando em 1961 a indústria farmacêutica Merck começou


a vender a Amitriptilina, um antidepressivo da família dos tricíclicos, comprou 50 000
cópias do livro editado no mesmo ano pelo psiquiatra Frank Ayd Jr., Recognizing the
Depressed Patient, para as distribuir gratuitamente em todo o mundo. Neste livro, o
autor convida o leigo a identificar diferentes sintomas e mal-estares com a categoria da
depressão. O livro foi traduzido em 12 línguas e foram feitas campanhas para ensinar
aos profissionais das áreas da psique a diagnosticar a depressão (Healy, 1996: 99). Foi
pela primeira vez vendida à escala global, juntamente com o fármaco, também a ideia
da doença para que era indicado. A partir daí foi distribuída uma profusão de material
informativo sobre a definição e sintomas de reconhecimento da depressão, e milhões
de dólares são gastos por ano na divulgação deste género de
informação em todo o mundo75. 75 Bhugra, 2004; Wazana, 2000.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (81)


A maior parte destes opúsculos (que podem encontrar-se facilmente, e em todas as lín-
guas, juntamente com os testes autodiagnósticos, por exemplo na Internet), é construída a
dois níveis: o primeiro (familiar ao leitor) reporta contos simples de experiências vividas e
de situações familiares, económicas e sociais degradadas; o segundo fornece explicações
clínicas de especialistas e faz corresponder ao caso particular uma subcategoria específica
de depressão. O utente aprende então que o que ele chamava tristeza, mal-estar, infelici-
dade, saudade, e por aí fora, merece um outro idioma: aprende, por outras palavras, a dar
ao seu sofrimento um formato clínico adequado76. É a mesma dinâmica que constrói em
simultâneo os antidepressivos, a depressão enquanto categoria, uma linguagem própria
para exprimir o sofrimento, e os pacientes deprimidos.

A visibilidade que ganhou assim a depressão tornou-a numa categoria disponível para
encaixar qualquer tipo de mal-estar, quer do ponto de vista dos técnicos de saúde quer
dos pacientes. Durante a pesquisa num serviço de atendimento psicológico para imigran-
tes, escutei muitas vezes conversas sobre depressão, em diferentes termos e com tónicas
diversas. Por exemplo, J. M., imigrante guineense, relatava ao médico: “a minha vida é
difícil, não tenho amigos nem uma mulher… sinto-me sozinho… estou aqui porque às
vezes sinto-me um pouco deprimido na hora do almoço e do jantar, porque como sozinho
e à noite, porque não tenho ninguém perto”. O próprio paciente identificava o seu senti-
mento de solidão em termos clínicos, assim como W. N., mulher marroquina que – em
resposta às perguntas de um etnopsiquiatra que a estimulava a falar dos espíritos “djinn”
– declarava: “eu também pensei nisso, mas como vi o cartaz na sala de atendimento com
a lista dos sintomas já sei que se trata de depressão, e portanto queria os comprimidos
para me tratar”.

Numa ilustração da situação oposta, L. K., uma mulher guineense em situação ilegal, sem
abrigo após a perda da casa e do trabalho, tinha sido encontrada alcoolizada a dormir na
rua e foi coercivamente conduzida ao serviço. Ela relatava aos médicos a sua história com-
plexa de perdas e fracassos recorrendo ao léxico da feitiçaria, lamentando a persistência de
dores de barriga e a falta de fluxo menstrual devidas a uma acção
76 Pignarre, 2001: 279-280. ritual de que teria sido vítima (descreve ter sido “ligada” – um

(82) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


sortilégio vegetal que envolve folhas ligadas com o objectivo de gerar diferentes malefícios).
A sua narrativa era interrompida por frequentes crises de choro, especialmente ao revelar
que a situação de completa precariedade habitacional e laboral em que se encontrava lhe
havia custado a tutela dos filhos. O abuso de substâncias, aliado a um comportamento
julgado disfuncional – ao ponto de se ter tornado sem-abrigo – e acompanhado pelos
sintomas que relata (de tristeza e de impotência para mudar a situação), contribuiu para a
afirmação de um diagnóstico de depressão. L. K. pedia a prescrição de medicamentos para
a enxaqueca insistente que a atormentava, tendo sido antes tratada farmacologicamente
com antidepressivos, sem considerar possíveis estratégias para melhorar a sua situação
do ponto de vista económico e social. Segundo os médicos entrevistados, o antidepressivo
será indispensável ao paciente para suportar esta fase difícil da sua vida, assim como para
prevenir desordens mais sérias. Este caso é um dos diversos casos semelhantes acom-
panhados durante o meu trabalho de campo, onde os pacientes relatando situações de
dificuldade, precariedade, medo e discriminação encontraram como única resposta um
diagnóstico psiquiátrico e uma solução farmacológica.

Num último caso entre múltiplos, J. A., um rapaz guineense de 18 anos, foi conduzido
directamente ao hospital psiquiátrico após ser encontrado pela polícia completamente
alcoolizado, drogado e incapaz de um discurso coerente, num bairro “problemático” da
cidade. O rapaz, entre muita resistência, acabou por admitir o consumo habitual de drogas
leves e álcool. Os pais, chegados após algumas horas ao serviço hospitalar, confirmaram
preocupados a situação de mal-estar do filho: irritável, desafiando a autoridade paterna
com comportamentos inconvenientes, reprovado na escola e bastante desmotivado para
continuar, frequentador de companhias preocupantes, investindo muito tempo em jogos
de vídeo violentos, e manifestando excesso de apetite, sobretudo por junk food. Ele negou
boa parte das acusações, reclamando a maioridade, a autonomia em relação aos pais nas
companhias que escolhia frequentar, e o desinteresse em prosseguir com os estudos. Os
médicos diagnosticaram-lhe uma depressão severa, mesmo face à sua negação de sensa-
ções de tristeza ou fracasso. Neste caso, a patologia ter-se-ia revelado pela linguagem não
verbal, os movimentos corporais lentos, as queixas somáticas (dor de cabeça), os silêncios
e pausas julgados excessivos antes de responder, a fraca concentração durante o discurso

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (83)


do psiquiatra, o nervosismo crescente, e a tentativa final de minimizar ou justificar os sin-
tomas. Apesar da sua resistência, foi tratado com antidepressivos e internado para afastar
a suspeita de uma patologia mais séria. Dias depois, a mãe explicava aos médicos o con-
texto social da família, relatando uma série complexa de problemas económicos e legais
que teriam contribuído – na sua opinião – para que o filho se envolvesse no mercado da
droga. Por entre muitas lágrimas, lamentava o quanto tudo isso lhe causava um sofrimento
profundo, enraizado no próprio corpo. Indicava as zonas doridas, falava do sono perdido
devido à preocupação com o filho e os problemas laborais do marido, e de desmaios
frequentes. Também ela foi considerada deprimida, e este diagnóstico veio confirmar a
suspeita de uma componente genética (ligada à história familiar) na desordem do filho. Os
dois foram considerados predispostos para a doença, assim resultante de uma inclinação
inata, determinada por factores hereditários e bioquímicos, para um défice funcional dos
neurotransmissores, gerando um distúrbio na neurotransmissão central. A “culpa” da si-
tuação recairia então de alguma forma sobre a mãe – o que implicou uma série bastante
grave de consequências familiares77.

Por outras palavras, a atenção é focada na saúde mental do indivíduo, desviando-a de


problemas sociais de difícil resolução, que necessitariam de respostas económicas e
políticas78. O tratamento farmacológico do sofrimento, entendi-
77 Descobriu-se mais tarde, através
de entrevistas fora do hospital, que ela
do como fenómeno orgânico, é considerado o único caminho
era a segunda esposa do seu marido, possível, silenciando os processos históricos, políticos e socioe-
e que os filhos nascidos da primeira
conómicos que lhe estão na base. O aspecto mais espectacular
mulher nunca haviam desiludido o pai,
conseguindo acabar os estudos. Este da globalização ocidental, no que diz respeito à medicalização
diagnóstico veio confirmar suspeitas e das situações de desfavorecimento social, é o conjunto de
preocupações que a primeira esposa
já alimentava há muito tempo sobre
discursos sobre a depressão e o trauma, conceitos que transfor-
a nova mulher do marido: de que ela maram uma condição humana (sofrer) numa condição clínica
teria uma doença genética, transmitida
(sofrer de uma patologia)79. A psiquiatria acaba assim por neu-
ao filho, que estaria na base de todos
os seus problemas. tralizar críticas, desafios, resistências e dissidências políticas
78 Horwitz, 2002, Horwitz e Wakefield, como disfunções mentais individuais, oferecendo tratamen-
2007.
79 Rechtman, 2002.
tos farmacológicos a sujeitos que, afinal, estão a exprimir a
80 Kirmayer, 2006. dor de um sistema socioeconómico e político disfuncional80.

(84) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Na opinião de Achotegui (2005), assim como de muitos dos clínicos que entrevistei, a
depressão nos imigrantes tem obviamente causas sociais, ligadas nomeadamente ao
endurecimento progressivo das políticas migratórias. Todavia, afirma Achotegui, “isto es-
capa à responsabilidade e às possibilidades dos profissionais de psiquiatria”. A solução
que ele propõe é antes do tipo paliativo: o apoio farmacológico para reduzir ou analgizar
o sofrimento dos indivíduos, onde não é possível mudar as condições de base. É o que
acontece com os imigrantes, assim como com os muitos “desfavorecidos” dos países em
via de desenvolvimento: o World Mental Health Report (2001) considera de facto proble-
mas políticos e económicos como a pobreza, violência, discriminação e desigualdades
sociais enquanto preocupações prevalentemente psiquiátricas, às quais a resposta passa-
ria por novos serviços de saúde mental e tratamentos farmacológicos em ampla escala,
nomeadamente ao nível da prevenção do mal-estar81.

A medicalização massiva destas condições sociais críticas, por meio da categoria de “de-
pressão”, é posta em prática através de projectos globais como os da OMS “Nações em Prol
da Saúde Mental”, programa financiado pela Eli Lilly, GlaxoSmithKline e outras empresas
farmacêuticas82. Tratar o problema no indivíduo como algo farmacologicamente curável é
concentrar-se na ponta do icebergue, contribuindo para manter e reproduzir estruturas já
existentes de desigualdade social. Se a depressão é a patologia dos imigrantes e dos excluí-
dos em geral, é porque se trata, usando uma expressão de Paul Farmer (1999; 2003), de
uma “patologia do poder”, isto é, produzida por condições sociais caracterizadas por pro-
fundas desigualdades. E resumir a uma patologia os efeitos de processos socioeconómicos
reproduz aquela violência simbólica através da qual cada ordem social tenta esconder, jus-
tificar, legitimar e naturalizar todo o sofrimento que é imposto aos indivíduos como preço
de pertença àquela ordem (Das, 1997). Esta medicalização dos problemas sociais acaba
por despolitizar o que intrinsecamente seria um problema político, legitimando e mantendo
o statu quo. Assim, o que requereria uma resposta colectiva torna-se um problema indivi-
dual. Vicente Navarro afirma que as situações concebidas pelos profissionais de saúde como
distúrbios mentais são antes muitas vezes resultado de uma
distribuição fundamentalmente desproporcionada dos recursos 81 Eisenberg et al., 1995.
socioeconómicos a nível global. Contudo, em vez de contestar 82 Kirmayer, 2002; Bhugra, 2004.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (85)


o sistema em vigor os clínicos concentram-se antes nos corpos individuais (Navarro, 1986:
40)83. Parece que tanto na opinião dos técnicos entrevistados como nos relatórios da
OMS (1995), a forma melhor de lidar com sujeitos desfavorecidos ou marginalizados seria
oferecer-lhes o acesso aos serviços de saúde mental e disponibilizar-lhes o tratamento far-
macológico. Este argumento é particularmente evidente no caso dos antidepressivos, vistos
como “fármacos sociais”, “que ajudam o paciente a inserir-se positivamente na socieda-
de”, “que evitam a exclusão e o isolamento”, “que permitem enfrentar melhor situações
difíceis”, ou “que sintetizam a promessa de uma melhor inserção social”.

O World Bank Report (Narayan et al., 1999) emprega as noções de “marginal” e “mar-
ginalização” para descrever a exclusão social e a discriminação, especificando que em
relação aos cuidados de saúde é considerado “marginal” quem não tem acesso aos
fármacos (Narayan et al., 1999: 87-88, 96, 113). Marginalização, pobreza, exclusão e
falta de esperança (“hopelessness”) são considerados neste relatório virtualmente como
sinónimos (Narayan et al., 1999: 35). A inclusão do termo hopelessness para descrever
a experiência individual da marginalidade social não é contudo casual: como sublinham
alguns autores, a “marginalidade” está associada a elevadas taxas de depressão (Kir-
mayer & Jarvis, 1998). O estado deprimido é sintomático da liminaridade social, assim
como a sua permanência sem cura é um sintoma de exclusão dos cuidados de saúde.
A conclusão do relatório é de que todos os “marginais”, quer os pobres urbanos, como
os imigrantes, como também os habitantes de países em desenvolvimento, deveriam ter
acesso directo e imediato aos fármacos antidepressivos. Remo-
83 Os antropólogos médicos que
trabalham sob a perspectiva da ver os sintomas da depressão implicaria nessa óptica contribuir
economia política afirmam que a para a eliminação da marginalidade social, e vice-versa (Dumit,
compreensão de desordens como,
por exemplo, o abuso de álcool ou a
2003). Fornecer uma substância psico-activa aos indivíduos
depressão tornaria necessária a con- marginalizados parece ser, segundo este relatório, a forma mais
sideração das condições históricas e
eficaz de auxiliar a sua integração. É neste sentido que Stefan
materiais mais amplas que produzem
estes comportamentos, assim como Ecks (2005) fala de “pharmaceutical citizenship” referindo-se
das desigualdades raciais, de classe e ao poder dos antidepressivos para “des-marginalizar” os indi-
de género. Morsy, 1990, Singer e Baer,
1996, Singer et al., 1992; Navarro,
víduos que manifestam perturbações do humor ligadas a um
2002; 2004. “sofrimento social”.

(86) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Vale a pena citar um relatório do Conselho Americano de Bioética, intitulado “Beyond
Therapy: Biotechnology and the Pursuit of Happiness” (2003)84, no qual se caracteriza
a procura da felicidade enquanto direito humano básico, fundamental para o bem-estar
psico-físico do indivíduo (2003: 203), tornando por conseguinte uma prioridade tratar
a depressão à escala global, com particular atenção aos sectores desfavorecidos, mais
atingidos pela patologia (2003: 240). Uma revisão do material de propaganda disponível
na Internet, assim como nas revistas especializadas e nos cartazes informativos distribuí-
dos em muitos centros clínicos, torna clara a associação implícita entre a prescrição de
fármacos antidepressivos e a promessa da reintegração social, do sucesso pessoal e da
felicidade. A este respeito as imagens que acompanham o material de propaganda são
elucidativas, representando famílias felizes em paisagens bucólicas, casais sorridentes
de namorados ou indivíduos com postura profissional e bem sucedida, incorporando
ideais de equilíbrio, serenidade e harmonia, e promessas de reintegração social, familiar,
e de retorno à capacidade produtiva. Entre os motes publicitários mais comuns sobres-
saem: “Mantém activo o homem moderno”; “Recupera o que estava perdido, recupera
o equilíbrio”; “Equilíbrio Restabelecido, Actividade Preservada”; “Olhando o mundo sem
medo”; “Uma luz para guiar os seus pacientes”; “A alegria, da forma mais pura”, etc.
Nos termos do psiquiatra Joelson Tavares Rodrigues: “as indústrias farmacêuticas não
pretendem, com as suas propagandas, meramente informar sobre as características e
vantagens dos seus produtos; muito mais do que isso, existe a intenção de vender a
ideia de que a medicação pode restaurar o equilíbrio, dar ao indivíduo condições para
ter uma vida produtiva, reintegrá-lo plenamente na sociedade, proporcionar-lhe alegria
e sentido” (2003).

Segundo a interpretação de muitos autores, esta reconfigura-


ção de problemas sociais em termos psicopatológicos sustenta
os interesses da indústria farmacêutica85. Nas palavras de 84 O relatório foi definido
também “relatório Kass”,
Kirmayer (2005), o mercado farmacêutico e os psiquiatras tra- seguindo o nome do “chair” da
balham de mãos dadas para estabelecer a hegemonia de uma mesa, Leon Kass.
85 Applbaum, 2006; Kirmayer, 2002;
leitura clínica da situação precária dos imigrantes e cidadãos Ecks, 2005; Bhugra e Mastrogianni,
dos países em desenvolvimento. 2004.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (87)


Em particular, a introdução de uma patologia específica para designar o mal-estar dos
imigrantes, a já referida síndrome de Ulisses – a ser tratada, naturalmente, com fármacos
antidepressivos – cria uma sobreposição entre a experiência migratória e a doença mental,
patologizando uma condição socioeconómica.

Mesmo admitindo que possa encontrar-se fragilizado devido à dureza do acolhimento,


nomeadamente aos níveis político e económico, o imigrante não é por si psicologicamen-
te instável. Tratar a condição de sofrimento dos imigrantes ilegais – assim como outros
indivíduos socialmente desfavorecidos – concentrando a intervenção somente na saúde
mental individual serve para naturalizar e despolitizar a doença como algo que ocorre no
indivíduo, desviando a atenção do cenário mais amplo de “violência estrutural” (Farmer,
2003)86. Utilizo aqui este conceito em bruto – ainda que este pudesse beneficiar de algu-
ma elaboração, diversificação, e talvez até redefinição – para sublinhar como até mesmo
actos ligados a intentos filantrópicos e humanitários podem constituir uma forma de
violência. Assim, a intervenção médica para “ajudar” e “curar” os imigrantes – mitigando
os excessos e orientando os comportamentos, ou ainda anestesiando a dor da marginali-
dade – é considerada legítima enquanto direccionada para o bem-estar psico-físico-social
dos pacientes, sem que sejam colocadas em causa as implicações políticas destas ac-
ções de auxílio. A sobreposição entre protecção, cura, acção pedagógica, assimilação,
imposição de valores morais e controlo constitui uma das dinâmicas fundamentais da
intervenção médica e social, para além de oferecer vantagens significativas para os que
trabalham no sector da assistência psico-social (Rose, 1999;
86 Michael Taussig referiu-se à Rose e Miller, 1992; Stengers 2003).
“construção clínica da realidade”
para indicar o processo de reificação
através do qual relações humanas
Diferentes autores se têm empenhado em evidenciar as liga-
e questões sociais e económicas ções complexas entre violência, sofrimento, controlo e poder,
são objectivadas enquanto factos
entre as quais lembramos noções como a de “violência simbó-
orgânicos (1980). No seu último
trabalho Peter Conrad, abordando o lica” de Bourdieu (2000), a de “cultura do terror” de Taussig
tema da depressão, fala explicitamente (1986; 1992), de “crimes de paz” de Basaglia (Basaglia, Sche-
de individualização e biologização de
problemas sociais através de uma
per-Hughes, e Lovell, 1987), de “violência do quotidiano” de
excessiva medicalização da sociedade. Scheper-Hughes (1996), de “sofrimento social” de Kleinman,

(88) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Das e Lock (1997), ou de “biopoder” de Foucault (1978). O que diferencia a definição pro-
posta por Farmer das restantes é a sua formulação enquanto instrumento teórico, método
de pesquisa e imperativo ético. A eficácia do conceito, como argumentam outros autores
(Brendan, 2005; McBride, 2007), está na sua capacidade de tornar visíveis as dinâmicas
sociais (e portanto também económicas, políticas e históricas) da violência e da margina-
lização.

Seriam então os mecanismos através dos quais as forças sociais são incorporadas em
eventos biológicos e patologias, evidenciados por muitos dos autores na área da antropo-
logia médica, o foco adequado para a intervenção, permitindo potenciar a capacidade de
acção dos sujeitos através da promoção dos seus próprios direitos – não só civis e políticos
como também sociais e económicos. Neste sentido, o empenho da antropologia que aqui
defendo não consistiria somente numa análise desses mecanismos geradores do sofri-
mento, mas também na intervenção não limitada à medicina, antes acima de tudo social,
económica e política. Se o cunho crítico do meu trabalho reclama uma intervenção social,
é verdade que um envolvimento activo implicaria por outro lado a mobilização de forças e
interesses sociais que escapam ao controlo do antropólogo ou do psiquiatra. Mas a este
respeito, gostaria de concluir citando uma frase elucidativa de Bourdieu:

“Analisar os mecanismos que tornam a vida dolorosa, até insustentável, não significa neutralizá-
los; fazer emergir as contradições, não significa resolvê-las. Mas, porquanto se possa ser céptico
acerca da eficácia social da mensagem sociológica, não podemos diminuir o efeito que esta pode
ter, isto é, de permitir aos que sofrem a descoberta das possíveis causas sociais, colectivamente
ocultadas, do próprio sofrimento, e assim, a libertação de uma culpa e de uma responsabilidade
individual (Bourdieu, 1993: 1453).”

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (89)


II PARTE
ESTUDO DE CASO:
PRÁTICAS E DISCURSOS NUMA UNIDADE
PSIQUIÁTRICA TRANSCULTURAL

J Ú L I O F. F E R R E I R A

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (91)


One must ask, why should a discipline whose roots are so deeply planted in Western culture, who-
se major figures are almost entirely European and North American (and male), and whose data
base is largely limited to the mainstream population in Western societies, why should so strongly
Western-oriented a discipline regard cross-cultural research among the more than 80 percent of the
world’s people who inhabit non-Western societies as marginal? … can psychiatry be a science if it
is limited to middle-class whites in North America, the United Kingdom and Western Europe?
Kleinman in Gaines (1992: ix)

Esta contribuição pretende analisar o funcionamento de um serviço de psiquiatria des-


tinado a imigrantes integrado no sistema público de saúde mental português, tendo em
conta a presença (e utilidade) de conceitos como etnicidade/identidade, cultura, doença
e saúde no atendimento clínico aos utentes, e nomeadamente no discurso médico que os
apreendem. O objectivo é identificar os seus usos, finalidades e consequências no trata-
mento desta população, considerando os diagnósticos pelos profissionais especializados
em “sensibilidade cultural” e “transculturalidade”, observando as dinâmicas na relação
entre estes e os imigrantes e a sua construção da “competência cultural” nos projectos
destinados a esta finalidade.

Não se trata de discutir acerca da formação da “identidade” (ou qualquer outro daqueles
conceitos) nesse contexto, mas antes de analisar o uso político destes termos no aco-
lhimento aos utentes, e o seu papel nas possíveis contradições que surjam na prática
terapêutica, evidenciando o recurso a elementos identitários/culturais pelo modelo biomé-
dico como estratégia de cura dos utentes – que passa potencialmente pela patologização
de indivíduos e grupos pela via institucional.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (93)


O foco de estudo é a formação, seguimento e aprimoramento do trabalho num programa de
apoio transcultural para imigrantes, localizado num hospital de média dimensão, em Lisboa.
O objectivo deste serviço era alcançar e colocar em prática competências linguísticas e de
“sensibilidade cultural” na relação entre as estruturas “clássicas” da psiquiatria e os novos
perfis de utente, procurando oferecer-lhes uma compreensão personalizada das suas afli-
ções, pelo afastamento das premissas convencionais sobre a psique e o reconhecimento
de outras formas de abordagem psicobiológicas.

Este modelo de trabalho assumia uma centralidade prioritária para o grupo, que acreditava
promover uma optimização dos resultados psiquiátricos com imigrantes, principalmente no
que diz respeito às condições de tratamento, através da utilização de mediadores culturais
formados em outras áreas de saber, e da sensibilização dos técnicos do hospital para as
“diferenças culturais” e suas implicações na relação médico/utente. O grupo almejava evi-
tar classificações patológicas alheias às particularidades destes indivíduos, considerando as
suas experiências subjectivas, possíveis traumas no percurso migratório, referências religiosas
e de organização social.

De certa forma, a abordagem transcultural assumiu-se como adaptação das condições da


estrutura psiquiátrica institucional às novas necessidades sociais provocadas pelos fluxos
imigratórios em Portugal. As práticas que acompanharam esta inovadora perspectiva do
acesso à saúde incluíram, no entanto, apropriações clínicas estáticas de conceitos como
“cultura”, “etnicidade” e “identidade”, promovendo visões essencialistas da diversidade dos
seus utentes.

A atenção necessária aos factores linguístico e cultural conduziu os técnicos de saúde do gru-
po Transcultural a associar características psicopatológicas inatas às nacionalidades dos imi-
grantes87, classificando os elementos culturais como “algo natural,
87 Sobretudo das comunidades
estrangeiras mais significativas esta- distante das culturas europeias” (para citar um dos psiquiatras),
belecidas em Portugal – a brasileira, e gerando uma hierarquia entre o “Nós” e o “Eles”. A cultura era
indivíduos dos PALOP (Países Africa-
nos de Língua Oficial Portuguesa) e do
utilizada, então, como ferramenta para a fabricação do “outro”, e
Leste europeu. como medida da valorização e validade político-social do utente.

(94) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CAPÍTULO 4.
UMA EXPERIÊNCIA DE CLÍNICA TRANSCULTURAL88

O primeiro contacto com o serviço ocorreu em Janeiro de 2007,


88 Os profissionais entrevistados para
quando fui apresentado por um ex-membro do grupo como a produção desta secção foram devi-
estudante de antropologia, interessado em desenvolver um pro- damente informados das finalidades
e dos objectivos científicos da investi-
jecto de pesquisa sobre imigração e saúde mental. A princípio gação. Dada a extensão da pesquisa
custou-me entender o seu funcionamento, não só pela pequena aos consultórios particulares destes
profissionais, os seus nomes foram
dimensão e pontual actuação do grupo na clínica, mas dada
substituídos pela posição que ocupam
também a sua “inespecificidade” enquanto grupo – que se con- no seu trabalho no sector público,
firmou ao longo do trabalho de campo. com o intuito de preservar identidades,
respeitar os seus estatutos e opiniões.
As frases entre aspas, portanto,
O calendário de trabalho da unidade de psiquiatria Transcultu- colhidas ao longo do trabalho de
campo, reflectem directamente as
ral previa reuniões “fechadas”, onde se compunham as pautas
opiniões destes profissionais, sem a
administrativas da actuação no hospital e se apresentavam as necessidade de atribuição directa ao
discussões de casos clínicos; e reuniões “abertas” ao público seu orador. Esta suposição justifica-se
pela homogeneidade percebida no
(com uma média de três encontros a cada dois meses), onde grupo, com raras contraposições entre
os técnicos de saúde procuravam discutir temas teóricos com seus membros.
A fim de preservar igualmente a
suporte nos autores de referência na área da psiquiatria e imi-
identidade das instituições referidas,
gração. Estas reuniões eram – no mínimo – “misteriosas”, já que assim como dos utentes, os nomes
não se discutiam os problemas práticos da clínica encontrados aqui citados são fictícios. O grupo
principal de estudo é denominado
pelo grupo, mas casos ideais seleccionados de livros médicos de “Transcultural”, principal local
e literatura. O comportamento-padrão consistia na explicação de trabalho de campo por detrás da
produção deste livro. De toda a forma,
de exemplos clínicos hipotéticos, assumindo ora um relativis-
gostaria de reiterar que a visão crítica
mo cultural extremo, ora visões estáticas da “cultura”, sempre sobre a Transcultural não pretende “di-

definidas pela nacionalidade dos utentes. A linguagem usada minuir” o trabalho dos seus membros,
depreciar o seu prestígio profissional
era invariavelmente muito vaga, com palavras que pareciam me- ou o das instituições a que estão
didas (a fim de não causarem impacto sobre os observadores ligados. Esta iniciativa procura manter
uma análise imparcial, concedendo-se
externos presentes) e pronunciadas num tom humanitário den- uma maior liberdade nas opiniões de
samente assistencialista de “ajuda ao necessitado”. todas as partes envolvidas.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (95)


Os termos técnicos e as selecções bibliográficas eram rapidamente abandonados, e as
discussões mantinham-se em regime muito informal, com opiniões superficiais e extrema-
mente pessoais sobre a psiquiatria, a clínica e a imigração, que em nada se assemelhavam
a estudos científicos ou referências à medicina ou às ciências sociais. Muitas vezes este
ambiente se me afigurou como uma espécie de “terapia de grupo” ao invés de uma
discussão acerca da psiquiatria, onde falar do “outro” envolvia pontos de vista pouco
articulados, de senso comum e sem suporte empírico. Em suma, tais reuniões pareciam
antes ter como objectivo reforçar as concepções empregadas por cada técnico no seu
trabalho, proporcionar-lhe uma espécie de conforto ou confirmação em relação às suas
premissas clínicas.

O imigrante era sistematicamente simplificado a um “ser problemático”, sendo reduzi-


da a sua experiência migratória ao factor económico, e considerada necessariamente
traumática. No estabelecimento da metodologia de trabalho, era negociado pela alta
hierarquia do grupo Transcultural o conjunto dos factores considerados significativos no
tratamento dos utentes, evidenciando um uso estereotipado de elementos identitários e
de conhecimentos acerca dos seus locais de origem, das suas “culturas”, factores étnicos
e linguísticos, entre outros89. De qualquer modo, os consensos sobre tais factores eram
escassos e pouco apoiados em casos reais do hospital, e os modelos de abordagem
aos utentes nunca chegaram a ser realmente discutidos, assistindo-se à tendência dos
profissionais de estaturo hierárquico mais baixo para seguirem fielmente as orientações
do psiquiatra-chefe, por contraditórias e (informalmente) desaprovadas que fossem pela
maior parte do grupo.

Definições acerca da sintomatologia e psicopatologia eram


89 Ver: Kleinman, 1988 e Good & Del fortemente alicerçadas na pertença nacional dos indivíduos, pro-
Vecchio-Good, 1981 para uma visão
movendo a ideia de uma convergência entre identidade, cultura,
da clínica como espaço de negociação
entre a performance dos utentes (e os país de proveniência e propensão para determinadas doenças,
elementos eleitos como constituintes e assumindo a suposta homogeneidade “cultural” através dos
das suas identidades) e o desenvol-
vimento e percepção da desordem
territórios de origem. Esta perspectiva amadureceu no serviço
mental pelos médicos. devido à influência forte de estudos epidemiológicos internacio-

(96) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


nais, descrições de desordens patentes nos manuais de psicopatologia e dados fornecidos
pelas indústrias farmacêuticas90.

O discurso oficial da abordagem Transcultural promovia o desenvolvimento de instrumentos


diagnósticos “sensíveis” à dimensão cultural, privilegiando o ponto de vista do utente, con-
textualizando as suas necessidades e referências, e assumindo flexibilidade na definição das
fronteiras entre o “normal” e o “patológico”. O objectivo seria afastar tendências classifica-
tórias e patologizadoras dos utentes, privilegiando antes o encontro clínico entre o modelo
biomédico da psiquiatria ocidental e outras possíveis estruturas psicocognitivas. Porém, a
homogeneização cultural e o recurso às categorias médicas convencionais acabavam por
produzir o contrário: uma reprodução das práticas que os técnicos de saúde pretendiam
idealmente criticar. Por trás de uma política de transculturalidade encontravam-se as estru-
turas muito rígidas da psiquiatria ocidental e suas categorias diagnósticas. Se por um lado
se procurava evitar a interpretação errada da “cultura” e suas influências através de leituras
psicopatológicas de comportamentos e sintomas, por outro lado a
sedimentada reificação da diferença cultural era encarada como 90 Os manuais de psicopatologia
causa da divergência interpretativa do utente em relação à doença. (como o DSM) evidenciam um forte
diálogo com os dados estatísticos
de testes clínicos das empresas
De acordo com aquelas estruturas canónicas, a doença nunca farmacêuticas, em que os factores am-
plamente considerados contemplam
poderia ser colocada em questão. Enquanto base das variações a faixa etária, género, nacionalidade
na expressão do sofrimento dos utentes, a cultura era cristaliza- e, não raramente, “raça”. São
exemplos os estudos sobre diferenças
da como factor patoplástico sobre a universalidade das doenças
sintomatológicas e diagnósticas entre
e das emoções. Existia assim o risco de patologizar comporta- White-Americans e Afro-Americans, ou
mentos e sofrimentos do “outro” através de uma incorporação da população haitiana na Inglaterra
face aos “ingleses brancos”. Para
das referências culturais no modelo médico (ou vice-versa), mais informação sobre o funciona-
onde o propósito desejável seria antes o oposto – a reflexão so- mento destes estudos e seus usos
clínicos, ver: Fernando, 2005; Bains,
bre as limitações do modelo clínico e as possibilidades de uma
2005; Littlewood, 1990. Sobre as
sintomatologia para além dele. indicações sintomatológicas das
empresas farmacêuticas, ver: www.
lilly.com (produtora do Prozac) e www.
Relato em seguida um caso elucidativo. Numa das reuniões zoloft.com/ (psicofármaco produzido
abertas foi apresentado o exemplo de um homem ucraniano pela Pfizer).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (97)


com dificuldades de integração social em Portugal, conduzido à Transcultural por uma
organização não-governamental de auxílio ao imigrante. Foi diagnosticado com esqui-
zofrenia (combinada com surtos psicóticos) pelo psiquiatra-chefe, sobretudo por uma
certa resistência que manifestou em expressar-se junto do técnico responsável. As infor-
mações acerca deste indivíduo eram escassas, desconhecendo-se o seu grau escolar,
situação familiar e percurso pessoal. Durante a triagem, o seu comportamento foi mar-
cado principalmente pelo “silêncio”, interpretado como uma “resistência ao tratamento”
e ao relacionamento interpessoal – segundo comentários do próprio técnico que efec-
tuou a triagem. Este silêncio em contexto clínico foi extrapolado para a esfera social e
lido como comportamento atípico, próprio do distúrbio de que seria portador, causa da
sua não-integração social. Uma das poucas informações que puderam descobrir sobre o
paciente revelava uma infância e adolescência “violentas”, com uma mãe rude e constan-
temente doente e um pai agressivo e “seco”. Nenhum mediador cultural foi consultado,
nem tão-pouco as questões semânticas foram consideradas. E um período limitado da
sua vida foi extremamente valorizado: “(…) é um elemento chave, já que esquizofré-
nicos com surtos psicóticos possuem, muitas vezes, um histórico familiar como este
entre a infância e adolescência (…)”. Este cenário contribuiu para a afirmação de um
diagnóstico claro, sem no entanto considerar o domínio da língua portuguesa pelo pa-
ciente, bem como qualquer contextualização socioeconómica, recolha da história de vida
ou levantamento de experiências traumáticas (como xenofobia ou exclusão social pós-
-migração). Um dos técnicos de saúde defendeu a pertinência deste diagnóstico com base
na noção de que “a esquizofrenia é comum em pessoas do Leste europeu que vêm para a
Europa ocidental, principalmente as pessoas das zonas rurais, que acreditam em supers-
tições e são fechadas ao convívio social (…) têm também altas taxas de disfunções [em
geral] (…) tratamo-los com neurolépticos, com que obtemos bons resultados (…)”. Em
suma, um período temporal circunscrito foi considerado representativo de todo o percurso
deste utente, e adicionado ao estereótipo acerca “dos do Leste” (ucranianos) e das dis-
funções que, segundo alguns psiquiatras entrevistados, terão tendência a desenvolver.

Este exemplo ilustra igualmente a atitude geral do grupo de tomar uma disfunção orgâ-
nica como ponto de partida para a interpretação dos comportamentos ou experiências

(98) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


subjectivas, suportada pelos estereótipos que a própria psiquiatria epidemiológica cultiva.
Os resultados clínicos do serviço Transcultural sugeriam uma fraca atenção à cultura na
orientação teórica dos profissionais da área, evitando referências sociológicas e privile-
giando o uso dos manuais nosológicos da psiquiatria ocidental. De facto, a simplificação
do percurso do indivíduo no diagnóstico citado foi contrariada num acompanhamento
clínico posterior, feito por outro técnico de saúde, que descobriu após pouco tempo de
terapia que o utente possuía elevadas habilitações escolares e dominava as línguas ma-
terna, russa e portuguesa. Muitos dos problemas apresentados tinham, possivelmente,
origem em relações familiares conturbadas desde a sua adolescência e no uso (mais
recente) de substâncias psicotrópicas (heroína e cocaína) e álcool. O diagnóstico original
de esquizofrenia tinha sido relacionado com um hipotético mecanismo de deslocamento
pelo ego, sugerido pela alegada incapacidade do utente em assumir compromissos
sérios ou escolhas acerca da sua vida, como um emprego fixo ou um casamento (que
terá cancelado após um longo período de noivado na cidade onde vivia na Ucrânia). Esta
análise superficial desconhecia as dificuldades efectivas do sujeito em manter o próprio
trabalho, as suas condições laborais e de legalidade, a sua posição e experiência como
imigrante em Portugal, os motivos para o acto migratório, assim como as motivações
reais para a quebra do acordo matrimonial indesejado (que tinha sido decidido pela
sua família). Todas estas informações – básicas para entender o mais amplo contexto
biográfico e social do utente – permaneceram fora do foco de investigação durante toda
a triagem no serviço, sendo recolhidas somente dois anos mais tarde, por um psicotera-
peuta particular, ex-integrante do grupo.

Durante o período de tratamento no serviço Transcultural, o terapeuta pós-triagem (actual)


constatou a falta de informações básicas sobre o percurso do utente, e a consequente
insuficiência de dados para o diagnóstico. Desde o início, a sua inclinação foi para a altera-
ção do quadro diagnóstico original, considerando que os “surtos psicóticos” poderiam ter
ligação com o uso de psicotrópicos. Contudo, o psiquiatra-chefe não autorizou a mudança
oficial no processo clínico do utente, devido sobretudo à sua certeza de uma relação do
complexo sintomático e psicopatológico com o contexto de origem, por muito restritas que
fossem as informações disponíveis.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (99)


Numa das reuniões abertas foram discutidas as CBS (Síndromes Culturalmente De-
terminadas/cultural-bound syndromes). O segundo psiquiatra-chefe referiu a inovação
introduzida por estes estudos na psiquiatria, fazendo-a passar a averiguar se os seus
utentes europeus teriam estsdo grandes períodos fora do continente, onde pudessem
ter adoptado modelos de vida que não encaixariam de volta na sociedade europeia.
Esta perspectiva demonstra uma aceitação acrítica da categoria CBS como proposta
pelo DSM-IV, sem no entanto reflectir sobre o seu significado. Ao ser contestado por um
antropólogo presente, que questionava a existência de categorias em si “culture-free”
(procurando estabelecer o papel da interpretação da cultura na psiquiatria), interveio o
psiquiatra-chefe:

“A cultura é o elemento patoplástico da desordem mental. Estes estudos são científicos e,


se a ciência ainda não deu grandes informações com relação à biologia no que diz respeito
aos neurotransmissores e genes, trata-se de uma questão de tempo. As CBS é um assunto
controverso, ligado à história da psiquiatria, dado que tudo está ligado à cultura (…) 1,5%
a 3% da população mundial possuem esquizofrenia, ou seja, todos têm muitas doenças
pelo mundo, mas a cultura fá-los pronunciar-se de forma diferente (…) as CBS não existem,
existem desordens, que são descobertas por estruturas avançadas da ciência sobre o conhe-
cimento do Homem.”

Todas as tentativas de introduzir a dimensão cultural e desconstrutivista na psiquiatria


receberam como resposta o argumento sobre o potencial da ciência para explicar plena-
mente o funcionamento do corpo/mente, ainda que hipoteticamente. Em geral, o grupo
considerava “os estudos epidemiológicos suficientes para elucidar todas as questões”
“da cultura”, e legítima a sua introdução e categorização no DSM-IV e nos manuais
internacionais de psiquiatria.

De facto, a cultura está presente no DSM como factor importante na expressão do “sofrimen-
to” e da “doença”, mas é ainda ignorado o seu papel na origem das doenças e sintomas,
e da própria ideologia e factores políticos que os acompanham. Se a dimensão cultural
fosse devidamente valorizada não constaria apenas de um apêndice no final do DSM.

(100) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


E o próprio DSM seria considerado como produto de um contexto sociocultural, económi-
co e histórico específico.

Muito aquém de uma discussão teórica, o grupo Transcultural parecia situar no discurso
sobre a “sensibilidade cultural” a legitimação do seu próprio projecto, sem a finalidade
efectiva de desenvolver a qualidade terapêutica e as trocas de experiência necessárias
a novas leituras dos quadros clínicos dos seus utentes. O modelo diagnóstico biomédi-
co era palco de contradições, geralmente evidenciadas por afirmações opostas tecidas
por um mesmo técnico numa única apresentação teórica, onde opiniões acerca de um
dado quadro clínico (relacionado com dimensões culturais) poderiam seguir caminhos
diametralmente opostos. Logo após a expressão do seu posicionamento sobre as CBS,
o psiquiatra-chefe foi questionado sobre a imagem clínica dos portugueses em França,
onde os médicos costumavam focalizar a triagem psiquiátrica no abuso sexual, que acre-
ditavam ser prática corrente em Portugal, e o factor que mais levaria os portugueses às
clínicas psiquiátricas francesas. O psiquiatra-chefe classificou essa postura como racista
pelo seu recurso clínico a um estereótipo, que seria segundo ele evitado ao seguir como
modelo o seu próprio método de triagem: “Eu não incluo as pessoas em quadros diagnós-
ticos, eles apenas ajudam a perceber as pessoas!”. Se por um lado o “caso português”
em França denota o uso estereotípico da cultura como base de uma patologização arbitrá-
ria, as formulações teóricas e diagnósticas da Transcultural não se furtavam a estabelecer
a mesma relação de poder (evidente ao longo do trabalho de campo): os portugueses
apareciam para a clínica francesa tal como os guineenses e latino-americanos (entre
outros) para a portuguesa.

O estatuto atribuído aos utentes, principalmente psicopatológico, encontrava-se associa-


do à sua nacionalidade, género e pertença de grupo. Acompanhando as estatísticas de
estudos internacionais e as sugestões do DSM, o tratamento a utentes provenientes de
países industrializados era reduzido, assim como o número de consultantes do género
masculino. Este facto não é acidental, e evidencia a relação entre a criação da doença e
as ideologias que lhe estão subjacentes. Os utentes europeus recebiam uma abordagem
suave em comparação com os indivíduos de países pobres ou subdesenvolvidos: eram

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (101)


geralmente enviados para casa com um diagnóstico de depressão e uma prescrição
medicamentosa mais leve, ainda que apresentassem os mesmos sintomas dos outros
utentes. Eram aparentemente criados dois grupos fundamentais distintos: o “clube dos
legítimos” e o dos “ilegítimos”, do racional e do irracional, dos que pertencem à facção
detentora do saber médico ocidental e dos que podem apenas esperar passivamente a
intervenção terapêutica – respectivamente, dos europeus, indivíduos do hemisfério Norte
e Ocidente, por um lado, e dos imigrantes do hemisfério Sul e Oriente, por outro (Peirce,
Earls e Kleinman, 1999).

Uma grande parte dos psiquiatras e psicólogos entrevistados


91 O transtorno esquizofreniforme apontou uma maior prevalência da depressão e de diferentes
possui as mesmas características da tipos de esquizofrenia em indivíduos do “Leste” (europeu), “Áfri-
Esquizofrenia (com poucas variações),
com diferença na duração dos sinto-
ca” e “América do Sul”, seguindo as indicações dos estudos
mas, que se prolongam por mais de epidemiológicos internacionais. A identidade destes indivíduos
uma semana, porém sem ultrapassar
era percebida e organizada em amplos blocos geográficos, sem
os seis meses contínuos. Após este
período, os utentes são diagnosticados qualquer especificação regional da sua origem. Após diferencia-
definitivamente com esquizofrenia, o ção segundo este critério, os utentes eram abordados de forma
que denota a suposição da universali-
dade das estruturas psicológicas pela homogénea, desprezando a variabilidade cultural dentro dos
psiquiatria, presente na racionali- seus próprios territórios. Todos os utentes guineenses, angolanos
zação dos detalhes diagnósticos. A
“manualização” das psicopatologias
e sul-africanos, por exemplo, eram simplesmente resumidos aos
define limites muito subtis entre as pa- “africanos”, sem outras considerações acerca de aspectos étni-
tologias, sintomatologias e categorias
cos, identitários, culturais, linguísticos, políticos ou económicos.
a ler nos indivíduos. A catatonia, por
exemplo, é um tipo de esquizofrenia
cuja especificidade está em períodos De acordo com entrevistas aplicadas aos profissionais de posição
acentuados de passividade e extrema
agitação do indivíduo. De forma geral,
mais elevada no grupo, os africanos e pessoas do Leste europeu
os transtornos aqui citados incorporam compartilhavam os índices patológicos mais elevados, sendo
disfunções sociais e interpessoais
os primeiros preponderantes no que se refere à esquizofrenia
comuns, segundo os psiquiatras
entrevistados, nomeadamente um e transtornos esquizofreniformes, e os segundos os portadores
“défice de racionalidade e interpreta- mais significativos da esquizofrenia catatónica91. Mas no final, o
ção coerente do mundo”. Para mais
informações sobre os limites de cada
denominador comum a estes grupos e suas predisposições psico-
psicopatologia, ver o DSM-IV (2007). patológicas era uma diminuição semelhante da sua capacidade

(102) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


de interacção social, já evidenciada nos “sistemas de crenças e religiões que possuem, com
uma visão mágica da realidade, fruto do credo em forças externas a si próprios que possam
conduzir as suas vidas; que no entanto, estão a desaparecer pelo uso crescente de neuro-
lépticos”, citando um dos técnicos de saúde do grupo. Esta abordagem não considera as
críticas teóricas e resultados clínicos apontados por antropólogos e psicólogos, mas apenas
os estudos científicos dos grandes laboratórios farmacológicos, marcados por pressupostos
médicos sobre os estados mentais e capacidades cognitivas dos utentes.

As contradições internas no posicionamento do grupo não lhe permitiam estabelecer um


modus operandi comum, caracterizado pela “sensibilidade cultural”, que o diferenciasse
do serviço de psiquiatria geral do hospital. De facto, as fichas de triagem de ambos os
serviços eram semelhantes, com apenas algumas diferenças vagas, e as perguntas de
âmbito cultural ficavam frequentemente sem resposta nos processos clínicos dos utentes.
Dos 92 processos analisados, apenas um indicava oficialmente a presença de um me-
diador cultural para auxílio e aconselhamento do psiquiatra no diagnóstico, e tão-pouco
estava registado o uso oficial de mediadores linguísticos, para proporcionar aos utentes
uma expressão mais fácil e rica na língua materna, e lhes permitir explorar as descrições
emocionais acerca dos seus problemas e percursos pessoais. As estruturas semânticas
não eram assim consideradas, apesar da sua importância ser reconhecida como uma
regra básica na intervenção terapêutica (Kleinman, 1988).

O género e proveniência geográfica do universo de utentes eram registados, seguindo as


orientações metodológicas defendidas pelos manuais internacionais de psiquiatria e pelo
discurso geral do serviço. Cerca de 60,5% eram do género feminino, face a 39,5% do
género masculino. Apesar das restrições de acesso aos diagnósticos dos utentes, as entre-
vistas com psiquiatras e psicólogos permitem projectar que (somente) cerca de 11% dos
indivíduos não eram medicalizados (não sofriam qualquer intervenção médica controlada).
Se forem aqui contemplados os abandonos do tratamento (aproximadamente 6%) e os
indivíduos que continuaram a psicoterapia após o processo de triagem, o número de uten-
tes não medicalizados cai para apenas 4,5%. Estes dados contrariam as expectativas em
relação ao projecto transcultural, cuja tónica na “cultura” deveria implicar práticas mais

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (103)


correntes de desconstrução e contextualização da doença e do utente – o que idealmente
conduziria a índices estatísticos precisamente opostos.

Muitos dos profissionais, quando questionados a respeito do rácio entre os géneros dos
utentes, sugeriram ser “normal” a maior medicação/medicalização das mulheres. Esta
desproporção poderá relacionar-se com a depreciação do género feminino na mediação
clínica e no encontro terapêutico, que se traduz numa complexa topografia clínica, a saber:
1. a prevalência de mulheres nos índices estatísticos, principalmente de origem africana;
2. a frequência de diagnósticos estigmatizantes, que denotam um grau severo de distúrbio
nas utentes (como esquizofrenia); e 3. a sua forte medicalização, através de prescrições
farmacológicas pesadas, muitas vezes de cocktails com mistura de diferentes drogas (se-
gundo dois profissionais entrevistados).

Aquele rácio dever-se-á igualmente à associação (dependente dos contextos de proveniên-


cia) entre as mulheres e o sobrenatural. Como apontam muitos trabalhos antropológicos,
o género socialmente desfavorecido – isto é, excluído do espaço público e do poder – en-
contra muitas vezes o seu domínio de expressão, resistência e agência (“agency”) em
práticas aparentemente marginais, como sejam a “feitiçaria”, a “possessão”, a comuni-
cação mediúnica com os mortos, o transe divinatório, etc. (Lewis, 1989; Seligman, 2005;
Beneduce, 2002). Elementos muito frequentes na experiência quotidiana e relatos das
mulheres provenientes, por exemplo, do hemisfério Sul eram facilmente interpretados em
contexto clínico enquanto sintomas de graves desordens mentais92. Na prática do serviço
Transcultural, esta “incidência patológica por género” era parti-
92 Em geral, devido a uma interpreta- cularmente visível nas utentes de origem “africana” (para usar o
ção inadequada de estruturas religiosas
e sistemas de crenças, teoricamente
termo de referência dos próprios médicos), que representavam
apoiada em trabalhos psiquiátricos 15,5% do total de utentes (a par com a percentagem das uten-
clínicos como o DSM. Casos similares
tes da Europa de Leste), face a 7,5% de europeias (ocidentais).
podem ser encontrados no México
(com expressão significativa), como por A maior assimetria, neste sentido, ocorria com as latino-americanas,
exemplo Santería (ver: Santiago-Irizarry, com um rácio de 12% para 4,5% entre mulheres e homens (res-
2001). Para um exemplo concreto da
Transcultural, ver o caso de Velha-sane,
pectivamente). No global, o conjunto das utentes originárias do
presente neste relatório. continente africano, da América latina e do Leste europeu repre-

(104) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


sentava 43% do total de utentes do serviço, face a 26,5% de homens com igual proveniência,
e contra uma fatia de apenas 7,5% de mulheres europeias ocidentais (ver tabela 1). Esta úl-
tima desproporção pareceria lógica dado o direccionamento do 93 Os estudos efectuados por
serviço para utentes imigrantes, porém uma leitura mais aprofun- Fernando (2005) em clínicas de acom-
dada evidencia o pressuposto de um fundamento geográfico das panhamento psiquiátrico a imigrantes
das Caraíbas (também de segunda e
propensões patológicas como base da mediação clínica93. terceira geração) em Londres, sobre as
diferenças na severidade do diagnós-
tico (e sua propensão) entre ingleses
Tabela 1 – Incidência Patológica por Género94 e os referidos imigrantes, apontam
Proveniência Feminino Total (F) Masculino Total (M) % Total dispositivos similares aos encontrados
ao longo do trabalho de campo na
África 15,38% 14 13,19% 12 28,57% 26
Transcultural. Para mais informação no
América Latina 12,09% 11 4,40% 4 16,48% 15 âmbito do racismo institucional e da
Europa de Leste 15,38% 14 8,79% 8 24,18% 22 classificação de grupos e comporta-
Europa ocidental 7,69% 7 4,40% 4 12,09% 11 mentos por género, ver: Fernando,

Ásia 4,40% 4 5,49% 5 9,89% 9 1988, 1998; Littlewood e Lipsedge,


1982; Bracken e Thomas, 1999; Shim,
Outros 5,49% 5 3,30% 3 8,79% 8
2000; Banks e Kohn-wood, 2007;
Totais 60,44% 55 39,56% 36 100,00% 91 Griffiths, 1977; Santiago-Irizarry, 2001;
Kirmayer e Young, 1999.
Muitas vezes em entrevistas com técnicos de saúde os factores 94 Os números reais dos utentes
da Transcultural foram mantidos
genéticos foram referidos como a promissora futura abordagem sem arredondamentos; o campo
da medicina para explicação dos distúrbios psíquicos. A estra- “outros” refere-se aos utentes com
nacionalidade desconhecida – por
tégia farmacológica de controlo das “desordens” mentais, uma
falta de documentação e de acesso a
resposta paliativa à percebida “disfunção bioquímica” cerebral, informação – contemplando também o

é crescentemente utilizada nos projectos clínicos transculturais, número (insignificante) de imigrantes


com dupla nacionalidade (provenientes
que recorrem a análises das ciências sociais para a classificação de países da América Latina e de
estereotipada dos indivíduos, cruzando determinadas teorias e África, e com cidadania europeia).
Os números representam as
pressupostos com os resultados de estudos epidemiológicos. actividades oficiais da Transcultural
Apesar de a correlação entre distúrbios e factores genéticos per- entre 2004 e 2007 (período escolhido

manecer não provada, a Monomine Hypothesiss95 dá apoio à para análise), incluindo alguns novos
pacientes do início de 2008, com os
imagem de “progresso científico” dos métodos de tratamento, quais foi também possível o contacto
enquanto são omitidos os valores sociopolíticos incorporados no no âmbito desta pesquisa.
95 A Monoamine Hypothesis,
modelo biomédico – resultando numa diferenciação entre gru- como é conhecida na comunidade
pos segundo o critério da (dis)função orgânica. científica, modificou as perspectivas no

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (105)


A valorização das capacidade cognitivas e do seu reflexo na produtividade social (trabalho
e relações interpessoais) – idealmente exemplificados nos indivíduos do “hemisfério Nor-
te” – cria um ambiente especialmente favorável ao controlo po-
tratamento psicoterapêutico, marcando pulacional dos imigrantes do “Sul”, “uma vez que estes possuem
o início do investimento em massa das
maior prevalência de distúrbios psicopatológicos, disfunções
indústrias farmacêuticas e do Estado
na descoberta de novos medicamentos bioquímicas e problemáticas culturais”. Por outras palavras,
e categorias psicopatológicas. Desde en- ambas as componentes bioquímica e genética enquanto fac-
tão, nenhuma outra hipótese relevante
na compreensão das causas da doença
tores do distúrbio mental (comummente referidas em estudos
mental rompeu com o paradigma actuais, apesar de não cientificamente comprovadas) implicam
orgânico, o que dá fundamento à
processos de hierarquização e diferenciação humanas que estão
contestação da antropologia médica
crítica e da etnopsiquiatria. Não existem presentes no discurso médico, servindo finalidades políticas ao
exames que possam comprovar a propiciarem estratégias de controlo (por razões socioeconómi-
hipótese do chemical imbalance
alegadamente na base das desordens
cas) de populações e movimentos migratórios, sobretudo para
mentais, principalmente porque a a Europa e os EUA. Isabelle Stengers usa o termo “princípio de
identificação de um desequilíbrio
irredução” para criticar a presença desses elementos no discur-
nas funções dos neurotransmissores
requereria o prévio estabelecimento de so médico, e as pretensões biomédicas de saber e julgar, “de
um padrão para medição da funciona- desvendar [generalizações] (…) acima das diferenças que dizem
lidade. O problema reside justamente
na inexistência desta medida, que não respeito somente às vivências de seus actores” – que justificam
pode ser cientificamente aferida. A as relações de poder médico/utente, e produzem repercussões
Monoamine Hypothesis é insuficiente
para explicar a desordem mental,
políticas através da via institucional (Stengers, 2002: 76; ver
simplificando-a numa estrutura que também Paris, 1994; Kirmayer, 2006; Pupavac, 2004).
parte do comportamento do indivíduo
para a disfunção bioquímica do corpo,
sugerindo a universalidade das estrutu-
ras psicológicas e biopsicológicas dos
indivíduos, e descartando por completo
as componentes sociais, culturais,
políticas, históricas, económicas e
ideológicas que integram a medicina e
a sua eficácia terapêutica. Este modelo
torna a doença mental uma entidade
natural, sem considerar que as suas
premissas, baseadas em suposições
não testáveis cientificamente, consti-
tuem um alvo fácil de contestação.

(106) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CAPÍTULO 5.
“WELCOME TO EUROPE”

O cunho darwinista/evolucionista era uma constante subtil no quotidiano do serviço, in-


terpretado sobretudo em termos de um progresso da racionalidade, ou frequentemente de
uma evolução cognitiva e genética (de acordo com um dos técnicos de saúde entrevista-
dos)96. Valores e imagens de produtividade, relações sociais e interpessoais idealizadas
e capacidade de expressão “racional” das emoções e pensamento eram constituintes da
perspectiva psiquiátrica da unidade Transcultural, que mantinha uma visão da componen-
te cultural como mero factor de variabilidade na expressão do “sofrimento” dos utentes e
nas motivações que ali os conduziam, sem deixar contudo de defender a certeza da doen-
ça mental. A atitude do grupo reflectia (quase) consensualmente a indisponibilidade para
uma reflexão crítica e epistemológica sobre as referências ideais, morais e políticas que
influenciam e compõem o modelo biomédico, e as suas consequências no seio da institui-
ção psiquiátrica. Com efeito, este cenário evidenciava a forma como os valores presentes
nas descrições das “desordens” clínicas dos imigrantes – construídas e objectivadas no
discurso médico como propensão natural para a doença, legitimadora da intervenção mé-
dica (Tileagä, 2006) – podem ser transportados para a esfera social e interpessoal, onde a
“disfunção” se torna representante de um desequilíbrio sociopolítico do utente.

Se é verdade que o serviço Transcultural foi articulado enquanto projecto simultaneamente


comprometido com a imigração e a psiquiatria, a arbitrariedade e a contradição das suas
práticas na intervenção clínica sobre os utentes e o seu modo de vida, embora encober-
tas, eram sistemáticas. De facto, os técnicos de saúde possuíam uma responsabilidade
(mesmo que apenas teórica) na integração da população imigrante na sociedade de aco-
lhimento. Porém, a linguagem psicológica institucional parecia incorporar uma vertente
moral e pedagógica, que transformava o encontro clínico num projecto de “formatação” do
paciente e suas formas de pensar segundo valores pretensamen-
96 Ver a entrevista com um dos
te universais e um desejado ideal de racionalidade. A título de psicólogos do grupo, mais adiante
exemplo, os sistemas de crenças apontados como propiciadores neste relatório.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (107)


da esquizofrenia em africanos não fomentavam discussões acerca da cultura, mas antes
contra-exemplos de casos clínicos europeus discutidos nos termos da nosologia ocidental,
minando a suposta “sensibilidade cultural” com correlações entre cultura e deficiência/
/disfunção orgânica. Os técnicos de saúde transmitiam subliminarmente a ideia de uma
“disfunção da cultura”, uma vez que esta (percebida como elemento patoplástico) era a
via pela qual a doença se expressava em ambiente clínico. Com efeito, se as referências
“culturais” dos utentes não divergissem daquelas que fundamentam as noções de “sau-
dável” (e “racional”) no modelo euro-americano, provavelmente as suas sintomatologias
não seriam interpretadas à luz de diagnósticos graves, e muitas das aflições expressas não
seriam sequer consideradas patologias. Deste modo, a cultura constituía um elemento
sobretudo retórico no diálogo terapêutico, reduzida às categorias psiquiátricas da patologia,
e convertida numa entidade a percepcionar, isolar e classificar: o objectivo principal tornou-
-se o de “corrigir e curar a cultura”. Não eram raros os exemplos de imigrantes de “segun-
da geração” (filhos de guineenses e cabo-verdianos) convencidos a abandonar terapias
“convencionais” (muitas vezes mais eficazes que a farmacológi-
97 Gordon dá o exemplo do controlo ca segundos seus próprios relatos) e a utilizar antes a nosologia
político iniciado em 1905 em Ingla- psiquiátrica na explicação dos seus casos a terceiros; e ainda
terra, onde as práticas e os exames
médicos, sobretudo em navios que menos raros eram os relatos de encorajamento ao abandono
transportavam imigrantes, possuíam das “suas crenças”, encaradas como as causas das desordens.
o objectivo adicional de encontrar (ou
“fabricar”) algum tripulante enfermo,
Estes exemplos sugerem a substituição do termo “integração”
para assim recusar toda a tripulação; pelo de “assimilação” enquanto objectivo central dos discursos
os alvos principais eram russos e
e práticas dirigidos aos utentes.
europeus de Leste (pela influência
anti-semita), e irlandeses (uma vez que
dominava em Inglaterra a concepção O processo terapêutico poderá servir uma estratégia de inter-
popular de estes “serem ladrões e
pessoas intelectualmente lentas (…)”).
venção mais alargada. Exames e metodologias clínicas são
Santiago-Irizarry descreve por outro historicamente reconhecidos como mecanismos de controlo
lado os programas psiquiátricos para
dos fluxos migratórios, operacionalizados e legitimados pela
“latinos” (na sua maior parte mexi-
canos) como forma de controlo dos crença na objectividade científica (Gordon, 1983; Santiago-
seus percursos migratórios nos EUA, -Irizarry, 2001)97. E o prognóstico parece tornar-se favorável
com a produção de estigma social e
assimilação cultural pelas técnicas
quando ocorre no utente a transformação no sentido de uma
modernas da psiquiatria. maior proximidade/semelhança ao que é socialmente valoriza-

(108) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


do no local de acolhimento. Vacchiano e Taliani (2006) designam este processo de mito
dell’assimilazione riuscita (mito da assimilação conseguida), descrevendo esta transforma-
ção como o exercício de violência sobre o “outro”, recusando-o para impedir o seu estatuto
de paridade no local de recepção.

O processo terapêutico poderá servir uma estratégia de intervenção mais alargada. Exames
e metodologias clínicas são historicamente reconhecidos como mecanismos de contro-
lo dos fluxos migratórios, operacionalizados e legitimados pela crença na objectividade
científica (Gordon, 1983; Santiago-Irizarry, 2001). Por outro lado, sendo a resistência um
sinónimo do fracasso terapêutico, o profissional de saúde tenderá naturalmente a descartar
o seu teor e implicações políticas e a reduzi-la a algo manifestamente patológico – confusa
e arbitrariamente fundamentado na identidade dos utentes e na linguagem nosológica
institucional. Said (1990) descreve a assimilação como a contraposição do “moderno”
ao “arcaico”, o estabelecimento de hierarquias entre o “nós” e os “outros”, uma exten-
são política do colonialismo, o percurso de conversão do “outro” em alguém como “eu”,
um processo de “civilização” do “anacrónico”, do “atrasado”, do “não desenvolvido”. As
políticas actuais de imigração e saúde mental na Europa e nos EUA – nomeadamente as
encontradas na Transcultural – seguem esta mesma postura, abordando a interpretação
cultural, a experiência do corpo, da doença e do mundo como algo a formatar de acordo
com as noções hegemónicas ocidentais. A dicotomia Nós/Outros é acompanhada de uma
hierarquização social – estreitamente ligada à construção da noção de “desvio” enquanto
falta/limitação percebida nas estruturas psicológicas do “outro”, a corrigir pelo processo
da sua transformação num como “nós”.

Sob esta perspectiva, qualquer comportamento do utente poderia servir de confirmação


ao suposto quadro clínico. O silêncio como expressão de resistência obstinada98 emergiu
no contexto de muitos diagnósticos a utentes “africanos” durante a pesquisa. Também nas
entrevistas aos utentes me deparei com esta forma de resistência, provavelmente por ter
sido estabelecida uma associação inicial entre o pesquisador no campo e a imagem do
médico na relação terapêutica – homem branco a fazer pergun-
tas sobre assuntos alheios ao tratamento clínico – e para própria 98 Said, 1990.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (109)


protecção dos utentes, que percebiam como as suas “crenças”, “feitiçarias” e expressões
culturais podiam ser articuladas contra si mesmos99.

1. Uma Entrevista Marcante: de Uma Visão às Suas Ressonâncias

Diagnosis is the foundation of any medical practice, and the twentieth century has seen a revolu-
tion in medicine’s ability to identify – and treat – the illnesses that plague humanity.
DSM-IV, 4.ª edição, página de apresentação

A fim de transmitir os ideais clínicos do grupo Transcultural e


99 Ver o caso de Velha-sane (adiante
neste trabalho) onde é relatada a evidenciar as premissas e contradições presentes no plano de
conquista progressiva de confiança ao trabalho, transcrevo parcialmente uma entrevista com um dos psi-
longo das entrevistas de reconstrução
do seu percurso pessoal. Um elemento
cólogos do grupo, cuja importância e influência sobre os outros
que possibilitou a empatia e a desvin- integrantes entendo como determinantes no condicionamento das
culação entre a minha presença e a
estratégias gerais de atendimento dos utentes no serviço100:
imagem “interventiva hospitalar” foi a
minha apresentação como brasileiro, o
que permitiu converter a nossa relação
na de dois imigrantes, ambos com for-
• Há quantos anos trabalha na área da saúde mental?
mas diferenciadas (sotaques) de falar – Quinze.
português, e com religiões populares
mais próximas entre si do que do con- • Qual a motivação da existência deste trabalho?
texto português (entre outros factores).
– Colocar em prática a experiência adquirida pelo nosso “psiquiatra-
Ou seja, dois indivíduos que apesar
das suas posições opostas (investiga- chefe” no exterior… Trazer a transculturalidade para a psiquiatria
dor/informante) estavam sujeitos a portuguesa.
formas similares de estigma social ou
dificuldades gerais de inserção. Neste
• Quantas pessoas compõem o grupo actualmente?
sentido, após pouco tempo de relação
– Pode variar um pouco, mas basicamente somos: três psicólogos, três
com Velha-sane (e em geral, com os
outros utentes), o levantamento de psiquiatras, um enfermeiro e um antropólogo, com pessoas que contri-
informações tornou-se cada vez mais buem durante um tempo e acabam por sair, enquanto outras entram.
fácil e dinâmico, contrariamente ao
que se verificou, na maioria dos casos
• Como e no que é que a “transculturalidade” mudou o trabalho dos
que tive conhecimento, na relação
entre médicos e utentes.
técnicos?
100 Esta entrevista foi realizada no – Principalmente sobre a interpretação da doença. Nós não podemos
seu consultório particular, a fim de olhar para um doente e chamar-lhe “esquizofrénico”, pois esta é uma

(110) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


forma europeia de chamar a doença, que nem sequer existe com este reconstruir o seu percurso teórico e
nome na origem do paciente. Não podemos vê-lo [o doente] com olhar abordagem terapêutica aos imigrantes.
crítico, mas observar os seus “medos” pela sua visão mística. O uso e a transcrição foram autorizados
pelo mesmo. O objectivo foi a recolha
de informações sobre o ponto de vista
• Qual o critério utilizado para criar um grupo transcultural?
dos técnicos de saúde acerca dos uten-
– A escolha de pessoas com experiências transculturais práticas na tes, o estabelecimento das premissas
clínica e no percurso pessoal. conceptuais da clínica Transcultural,
bem como a elucidação sobre o tipo de
• Em geral, qual a proveniência nacional das pessoas que passam ambiente e ideias que enquadravam o
encontro clínico transcultural. O conteú-
pela triagem?
do desta entrevista não será trabalhado,
– Russos, romenos, ucranianos, africanos, brasileiros. sobretudo por representar uma opinião
profissional individual, e não geral do
• Porque se chama o serviço “transcultural”? grupo estudado, por mais que fosse
levantada por um dos profissionais
– Porque é além da cultura! A cultura está no cidadão nacional e no
mais influentes no funcionamento da
estrangeiro. Temos a cultura e as “subculturas”. A “subcultura” é
Transcultural, como ele mesmo relatou.
o que está delimitado, está nas vilas e nas aldeias, com morais di- A forma como a entrevista é exposta
ferentes, modos de valorizar e de colocar o sujeito socialmente… permite deixar liberdade ao leitor quanto
as crenças são diferentes… a cultura está nas cidades… Basta o à contextualização destas opiniões face
à exposição teórica presente noutras
exemplo dos retornados, onde os que partiram para as antigas
secções deste trabalho.
colónias possuíam a mente mais aberta do que os que ficaram, Gostaria de salientar a correcção
com outras influências na vida, menos focalizados no fado e na da actividade profissional do entrevis-
tragédia… esta relação está em proporção, dos que ficaram e tado, originalmente referido na minha
partiram, entre as cidades e o campo, e entre o nacional e o dissertação de mestrado como
“psiquiatra”, por lapso. Como a minha
estrangeiro… Por isso, por estes estímulos, os cidadãos nacio-
maior preocupação foi a protecção da
nais nascidos, ou com permanência no exterior, são colocados identidade do meu informante, não
na Transcultural como estrangeiros… porque, quando voltam, os considerei na altura que a formação
choques entre o que vem de fora e o que está dentro é muito forte, profissional implica uma série de

e não o podem suportar. paradigmas e perspectivas específicas


na prática terapêutica.
Outra questão importante que se
• De que maneira a especificidade da etnicidade do paciente dife- revela neste ponto é a utilização da
rencia a forma de abordagem ao seu tratamento? Pode dar um palavra paciente por grande parte dos
exemplo? profissionais por mim entrevistados –
contrariando o uso corrente de doente e
– Primeiro, temos uma abordagem humanista; segundo, e o que
utente em Portugal. Atribuo este uso ao
mais conta, é a nossa capacidade de nos isolarmos da nossa facto de tais profissionais terem conhe-
cultura, enquanto tentamos compreender a cultura do outro… des- cimento da minha nacionalidade, sendo
cobrir qual é o seu problema e a sua doença. paciente o termo corrente no Brasil.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (111)


• Com que grupos “étnicos” a relação terapêutica se tornou mais problemática, segundo a sua
experiência? E qual a patologia de maior dificuldade no tratamento?
– Guiné-Bissau, pelos comportamentos rígidos dos muçulmanos. A patologia é a esquizofrenia, que
por acaso é a doença que estes mais possuem em comparação com os outros pacientes.

• Quais são os elementos tradicionais e as “crenças” ou “superstições” que encontraram mais fre-
quentemente nos relatos dos pacientes? E quais as patologias mais frequentes para cada crença
exemplificada?
– Pessoas do “Leste”… o “Leste” é um continente que engloba a Europa uma vez e meia…
a África também… apesar de ser um continente, é muito pouco evoluída em termos de cultura
e evolução… o “Leste” é mais rico neste sentido; Porém, ambos possuem coisas em comum,
como os sistemas de crenças. As pessoas do “Leste” acreditam em forças externas, como a
bruxaria, inveja, energias negativas, que podem exercer controlo sobre suas vidas e seus des-
tinos. É um carácter comum na forma médica de ver estas pessoas. Na África, por exemplo,
estes factores externos podem ser vistos pela deusa da “Many Quá”101, que é uma figura que
controla a vida dos indivíduos. … De ambas as origens, em geral, são diagnosticados com
depressão e esquizofrenia, respectivamente.

• Qual a especificidade que torna o serviço prestado aos doentes “culturalmente competente/
sensível”?/Pode indicar a diferença na triagem entre um “Mandinga” da Guiné e um brasileiro?
– A informação actualizada e a experiência dos membros do grupo. Na terapia… é a aceitação,
olhar activo e incondicional…
– O método é o mesmo, e não faz diferença quanto às nacionalidades… ambas são tratados com
o mesmo percurso. Transportamos a cultura e assim, desta forma, descobrimos a doença.

• Qual foi a identidade nacional da maior parte dos pacientes que tratou?
– América do Sul, Guiné-Bissau, Brasil.

• O que entende particularmente pelo conceito de cultura e etnia?


– Cultura é o que cria a identidade no indivíduo, ligada à nação; etnia é o que se chamava antiga-
mente de raça, o que define o grupo, as crenças, a cor…

• Qual a importância da pertença “cultural” ou étnica na avaliação?


– Básica!

101 Querendo referir-se à Mamy-Wata.

(112) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


• Na parte de acompanhamento da Transcultural, quais os casos onde a participação de antropó-
logos, em teoria, modificou o percurso de diagnóstico?
– Uma vez tivemos a ajuda de um antropólogo. Foi um caso de esquizofrenia de um guineense.
O diagnóstico continuou, mas foi muito importante para nós a sua intervenção, pois tivemos uma
justificação do seu comportamento. Este paciente não era somente esquizofrénico, mas o sistema
de crenças… e a sua mãe também estava doente, com os seus comportamentos a influenciar o fi-
lho… Se de facto a pessoa é perturbada, não posso fazer uma distinção entre cultura e doença.

• Qual o percurso dos membros da equipa para oferecer um serviço transcultural?


– Temos experiência, formação em diversas áreas e falamos muitas línguas. Muitos de nós moráva-
mos fora [de Portugal] e viajamos muito.

• Pode indicar-me uma (ou mais) referências bibliográficas que o ajudou especificamente no traba-
lho da Transcultural?
– Marie-Rose Moro e “Bertolucci”102. Agora não me lembro, mas posso enviar-lhe por e-mail.

• Da forma como trabalha, tente definir-me o que é “doença”:


– Ausência de saúde; estado modificado dos processos químicos e orgânicos do corpo e da mente.

• De acordo com a entrevista concedida até o momento, poderia falar-me sobre os dados esta-
tísticos presentes no DSM-IV e suas repercussões clínicas na Transcultural? Porque há maior
incidência de psicopatologias em pessoas do “Leste” e da “África”, como reporta o doutora?
– A África é um continente a abater, fadado ao desaparecimento, basta ver a evolução do HIV… São
factores culturais e de desconhecimento; estão a viver em estado de natura. Tem a ver com factores
genéticos e o cruzamento de raças… Eles cruzam as raças… que acabam por oferecer maior expo-
sição às doenças e às desordens (esquizofrenia)… Não sabias? Se queres Pit Bulls mais agressivos,
deves cruzá-los entre eles… se queres uma vaca apurada, não a podes cruzar com outras vacas…
Eles cruzam-se entre eles, com as mães e os filhos… Por isso, na época de César [o imperador
romano] eram todos doidos. Porque se casavam e cruzavam uns com os outros, com núcleos
reduzidos. Está provado cientificamente que a baixa variabilidade
genética provoca doenças mentais. Por isso pode-se dizer que há 102 Referindo-se a Beneduce,

uma escala evolutiva, e isso se pronuncia no poder de racionalidade. etnopsiquiatra italiano. O Prof. Doutor

Na base estão os africanos… Os indianos, a raça Hindu, possui alta Beneduce esteve em Portugal para
apresentar uma conferência no ICS
taxa de esquizofrenia catatónica pela própria disposição das castas e
(Instituto de Ciências Sociais), e teve
dos cruzamentos. Isto é fora de minha área, é da biologia, da cultura a oportunidade de promover uma
geral (…) se queres um contra-exemplo, existem os alemães. palestra na Transcultural.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (113)


CAPÍTULO 6.
O PACIENTE E a SUA MAGIA

À antropologia sempre foi atribuído um papel paradoxal. Se o discurso da Transcultural a


apontava, por um lado, como saber fundamental para uma psiquiatria “bem aplicada”,
alegava por outro a falta de conhecimento dos antropólogos em relação à medicina psi-
quiátrica e aos factores orgânicos. A empatia conseguida pelos antropólogos durante as
triagens era encarada como fruto da sua “romantização” das relações de doença, e o
seu conhecimento entendido como ineficaz por “desconhecer as causas das disfunções
dos pacientes e o real reconhecimento das doenças por trás da cultura (…)”. De facto, o
carácter vago dos conceitos presentes no plano de trabalho do grupo sugere a sua falta de
preparação bem como as dificuldades em conjugar a psiquiatria com outras disciplinas
necessárias à clínica transcultural e ao atendimento terapêutico a imigrantes. Os próprios
psicólogos relatavam as restrições impostas sobre a sua intervenção terapêutica, com
uma prevalência, pelo menos oficial, dos diagnósticos dos psiquiatras sobre as categorias
psicológicas, sendo o principal argumento para esta subordinação “o desconhecimento
dos funcionamentos bioquímicos do corpo, marcado pela incapacidade [dos psicólogos]
de prescrever medicamentos, e estabelecer papéis hierárquicos [caracterizados pela auto-
ridade dos psiquiatras perante todos os outros profissionais] (…)”. De qualquer modo, o
foco da questão não será o estabelecimento da competência de uma área face às outras,
mas antes a necessidade de unificação de conhecimentos, de introdução de pensamento
crítico na psicoterapia, de renovação de perspectivas sobre o encontro médico, o indivíduo
e as circunstâncias políticas relevantes à sua condição clínica.

A nosologia ocidental identifica a sintomatologia com um sofrimento que requer e justifica


a intervenção, enquanto constitui o processo diagnóstico numa técnica padronizada. A re-
dução das experiências de mal-estar a categorias hegemónicas, bem como a sobreposição
de certezas teóricas às potencialidades dos modelos dos utentes, produzem um cenário
de elevados índices de imigrantes nos hospitais psiquiátricos europeus (Selten et al., 2001,
2007; Fernando, 1995; 1998; 2005) – sobretudo de segunda e terceira gerações, que a

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (115)


“interpretação cultural” (desadequada) categoriza geralmente como portadores de esqui-
zofrenia. Apesar das inovações culturais no DSM, a conduta médica continua a encarar
a desordem mental como outra doença qualquer103: visando o avanço médico-científico
como garante da precisão e objectividade das descrições sintomáticas e associando-lhes
significados e contextos reduzidos, sem averiguar causalidades alternativas e sem conside-
rar a experiência subjectiva dos utentes (Ingleby, 2005).

A visão simplificadora sobre o utente imigrante que é dominante na psicoterapia está


intimamente ligada à incorporação de estereótipos e imaginários populares por parte
de muitos técnicos de saúde, assim como a uma perspectiva estritamente psicopatoló-
gica dos problemas sociais. Este ponto de vista, presente também no reducionismo da
linguagem clínica, acaba por sistematizar e uniformizar o complexo e multidimensional
acto migratório. A já referida síndrome de Ulisses104 será uma versão moderna da
Heimweh105, onde a nostalgia dos imigrantes nos países industrializados do hemisfério
Norte – devida à deslocação e à continuidade de ligações emocionais à “Pátria Mãe”
– ganha contornos patológicos. A definição da síndrome de Ulisses considera três tipos
de experiências migratórias, com graus istintos de sofrimento e de risco de desenvolvi-
mento da desordem:

“1 – El duelo simples – es aquel que se da en buenas condicio-


103 Mantendo premissas sugeridas nes: (…) cuando emigra un adulto joven que no deja atrás ni
por Kraepelin (1904). hijos pequeños, ni padres enfermos, y puede visitar a los fami-
104 Achotegui, 2005.
105 Cf. nota de rodapé 19 no capítulo liares; 2 – El duelo complicado: (…) aquel en el que se emigra
1. Heimweh, segundo o proposto dejando atrás hijos pequeños y padres enfermos, pero es posible
inicialmente por Johannes Höfer,
regresar, traerlos…; 3 – El duelo extremo: es tan problemático
médico da Universidade de Basileia
(em Dissertatio Medica de Nostalgia que (…) supera las capacidades de adaptación del sujeto (este
oder Heimweh, de finais de 1600), de-
sería el duelo proprio del Síndrome de Ulises): cuando se emigra
signaria uma nova patologia, atribuída
originalmente a soldados suíços e suas dejando atrás la familia, especialmente cuando quedan en el
esposas enviados para o estrangeiro, país de origen hijos pequeños y padres enfermos, pero no hay
e cuja sanação ocorria com o regresso
a casa. In Beneduce, 1998; Pussetti,
posibilidad de traerlos ni de regresar con ellos, ni de ayudarles
2006; Vacchiano e Taliani, 2006. (Achotegui, 2005: 2).”

(116) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Desta forma, as condições materiais são preponderantes na determinação do risco de pa-
decer da doença. Achotegui defende que todos os imigrantes, assim como (por inerência)
os seus filhos, estariam destinados a desenvolver, mais cedo ou mais tarde, esta síndro-
me. Os imigrantes ilegais, em particular, tornar-se-iam enfermos desde o início das suas
“aventuras” migratórias. O “curioso detalhe” que constitui o facto de esta síndrome ter sido
descoberta no período em que barcos de pequeno porte repletos de pessoas provenientes
de Ceuta e Norte da África chegavam à Europa torna claras as influências do contexto
político sobre a investigação psicopatológica. A síndrome de Ulisses passou então a ser
utilizada como fundamento da abordagem aos imigrantes pelo sistema público de saúde
em Espanha e, progressivamente, por toda a Europa.

Efectivamente, se por um lado os factores de exclusão social são indispensáveis para a


análise, enquanto variáveis fundamentais para o estado de saúde mental dos imigrantes,
por outro lado a perspectiva de um processo incontornável de adoecimento (nomeada-
mente o percurso do duelo simples ao duelo extremo) segue o perfil ideal do indivíduo
economicamente activo, reflectindo os valores morais específicos da produtividade e da
inserção no sistema económico. Assim, o imigrante mais saudável é aquele que não possui
filhos e pais em situação de necessidade que obriguem ao envio de remessas de dinheiro
para o exterior, que é jovem e saudável para o trabalho, que possui documentação regular e
poder económico para regressar ao país de origem – enfim, que se encontra “integrado” e
propenso a um estabelecimento pleno, com menor probabilidade de acumular poupanças
destinadas a um regresso definitivo e, portanto, consumidor e pagador de impostos, sem
necessidade da ajuda do Estado. A síndrome de Ulisses privilegia o indivíduo que emigra
para a Europa com determinadas posses e condições, controlando, através da construção
da patologia da imigração, todos os outros em situações desfavorecidas.

Premissas sobre os sentimentos dos imigrantes, o seu estatuto social e laboral e as suas
relações socioeconómicas são articuladas como fundamentos universais de uma perspec-
tiva “violenta” do acto migratório, que reduz todos os factores de motivação a questões
económicas, e que traduz o imigrante como um indivíduo que sonha com o enrique-
cimento e o distanciamento das (estereotipadas) condições de vida dos países do Sul.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (117)


Este imaginário está presente na clínica, dificultando a interpretação das reais necessida-
des dos utentes: não por acaso, as estatísticas de âmbito social apontam para o papel
do imigrante como força motriz da economia europeia, facultando mão-de-obra para as
fábricas, a construção civil e outras funções que os europeus não desejam desempenhar,
sujeitos a salários precários, pagando impostos e consumindo bens. O acto de emigrar
não é sempre uma escolha do sujeito (ou um projecto individual), mas antes um processo
complexo que combina os elementos de liberdade e coerção da deslocação. A título de
exemplo, cerca de 35,5 milhões de pessoas106 foram contabilizadas na categoria de deslo-
cação forçada dos seus lares (e países) por motivos de violência organizada.

A afirmação institucional do estigma social pode potenciar retóricas de criminalização


dos imigrantes – em discursos que misturam imaginários de senso comum com lógicas
clínico-científicas, sob categorias médicas que fazem corresponder quadros sintomáticos
a experiências subjectivas (Luhrmann, 2006) – que resultarão na diminuição da equidade
social e económica, bem como da margem de afirmação e acção política dos indivíduos.
A clínica assume, então, práticas de controlo e inculcamento de estruturas e valores sociais
no indivíduo – assim subordinado e objectivado – e a sua legitimidade serve a produção de
racismo e exclusão institucionalizados.

Não há relatos sobre o uso da síndrome de Ulisses para a classificação de imigrantes


em Portugal, apesar de alguns técnicos da Transcultural terem referido a sua pesquisa
sobre a categoria para posterior aplicação clínica, encarada como “uma boa solução para
sistematizar e facilitar o trabalho terapêutico sobre a condição dos imigrantes (…)”. A este
respeito, falava-se das consequências da imigração para a identidade e auto-reconheci-
mento dos utentes, dos quais uma grande maioria apresentava “deslocações do self”
devidas a nostalgia e obstáculos no retorno ao seu local de origem, e a dificuldades de
adaptação ao local de acolhimento: tal estado seria clinicamente caracterizado pela “(…)
incapacidade de se posicionarem diante de problemas da própria vida e tomarem deci-
sões que os resolvessem”, uma disfunção directamente ligada
106 Segundo o World Refugee Survey,
do United States Committee for Refu-
à esquizofrenia. Este cenário de dupla identidade apela à refle-
gees (USCR, 2004), in Ingleby, 2005. xão sobre a perspectiva dos técnicos transculturais acerca do

(118) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


conceito de “homem desenraizado” de Todorov (1999)107, ou ao de “dupla ausência” de
Sayad (1999), sobrepondo nostalgia e doença, e revelando o pressuposto de um carácter
traumático da imigração.

Independentemente das causas que conduzem o imigrante à clínica, e do tipo de variáveis


privilegiadas pelo diagnóstico profissional (a experiência migratória ou os elementos cul-
turais – como sistemas de significados ou crenças), o utente deve ser contextualizado, no
que diz respeito quer às suas próprias referências individuais, quer ao mais amplo cenário
histórico e político que lhes está subjacente. Se é arbitrário sobrepor o indivíduo à sua iden-
tidade cultural (por esta não o reflectir fidedignamente) (Ingold, 1993), tão-pouco lhe pode
ser negado o recurso válido a essa pertença na explicação das suas aflições. A afirmação
de estruturas universais psicológicas baseadas em estereótipos culturais e identitários, pa-
dronizados nos manuais internacionais de psicopatologia, arrisca a negação do direito do
utente à subjectividade e ao movimento dinâmico do seu auto-reconhecimento, transfor-
mando a terapia num acto político de formatação de “minorias”
107 Tzvetan Todorov, criado durante
– através da imposição de modelos ideais de comportamento e a ditadura militar (entre as décadas
pensamento – e, portanto, numa prática “assimilacionista”. de 1940 e 1960) na Hungria, desde
cedo foi tratado e educado como “um
francês” pela família, que planeava en-
Vacchiano e Taliani (2006) recorrem ao paradigma de Pascal viá-lo para França quando completasse
a maioridade, para evitar que vivesse
– “Se Deus existe ou não, eu não sei, portanto ele existe!” – no meio da violenta ditadura húngara.
para aludir a um modo de interpretação, na mediação clínica Anos depois, Todorov tornava-se
académico em Paris, tendo no fim da
com os imigrantes, da experiência entre o “visível e o invisível”
sua carreira escrito O Homem Desen-
(racionalidade/crença) que reforça o poder da dúvida frente à raizado, uma descrição autobiográfica
certeza. Nos casos de esquizofrenia em africanos, claramente das questões da identidade ao longo
do percurso migratório. A partida para
atribuídos na Transcultural (e em geral) à influência de sistemas França (perdendo o contacto com a
religiosos e “magias” (Noll, 1983), a dúvida proporcionaria um família e o seu país durante 20 anos)
e o posterior retorno após a queda do
modelo terapêutico mais flexível do que a certeza das categorias
regime húngaro fizeram-no sentir-se
nosológicas, obrigando a psiquiatria a aceitar a validade das expli- um eterno húngaro em França, e um
cações subjectivas dos utentes sobre si mesmos (Frank, 2006), eterno francês na Hungria. Todorov
acabou por se autodefinir enquanto
e surtindo um subsequente efeito positivo nos tratamentos. Uma “ambos e nenhum ao mesmo tempo”,
estratégia que reconheça a condição de desfavorecimento que como resolução dessa crise identitária.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (119)


enfrentam muitos imigrantes, com as suas referências culturais, face ao sistema médico-
-científico, será capaz de encarar o paradigma cartesiano como um modelo igualmente
relativo e específico ao “sistema de crenças” de cada utente. Amplificar e complexificar
a perspectiva sobre o indivíduo implica reconhecer o carácter limitativo do discurso dos
técnicos de saúde, que, falando em nome da natureza, a sobrepõem à cultura, mantendo
o foco essencial sobre a função/disfunção orgânica.

Torna-se necessário assumir a complexidade e ambiguidade dos indivíduos108, libertar-se


de visões estáticas da cultura, do corpo, da racionalidade das emoções e das experiências
subjectivas; e reconhecer que a psicoterapia interpreta erroneamente problemas políticos
e sociais projectando-os de forma exclusiva no indivíduo, desta forma culpabilizado e res-
ponsabilizado pela sua situação. Enquanto a mera introdução dos conceitos de etnicidade
e cultura na clínica pode promover uma visão reducionista dos utentes imigrantes, uma
viragem de perspectiva que privilegiasse os seus pontos de vista, sob uma mediação de
facto culturalmente sensível, promoveria pelo contrário o fortalecimento da posição ocu-
pada pelo utente na sua relação com o médico (Rechtman, 2006). Mais do que afirmar
modelos, a psiquiatria vocacionada para os imigrantes deveria tornar-se consciente dos
resultados contraditórios que pode produzir, sobretudo pelo seu foco clínico exclusivo nas
esferas pessoais, separadas e em detrimento das esferas colectivas e políticas.

108 Ver: Lipovetsky, 2005: 19-27;


Bauman, 2004: 34-38.

(120) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CAPÍTULO 7.
VIDAS PASSADAS

Este capítulo destina-se à apresentação de três casos clínicos recolhidos e aprofundados


durante o trabalho de campo, explorados na mediação clínica da Transcultural e aqui
reconstituídos em histórias de vida dos utentes: Apar, Velha-sane e Kan. Os dados foram
recolhidos a partir de entrevistas aprofundadas com diferentes técnicos de saúde da Trans-
cultural e com os próprios utentes, e muitas informações advêm de pesquisa documental.
Com o objectivo de promover a livre reflexão e correlação pelo leitor entre os casos clínicos
concretos e a teoria já exposta, este capítulo pretende ser essencialmente descritivo, com
a exposição dos percursos terapêuticos e/ou migratórios dos utentes, sem referências
directas aos serviços da Transcultural. Apesar dos utentes e técnicos de saúde terem co-
nhecimento do destino dado a estas informações, os nomes apresentados são fictícios, as
datas inespecíficas, e as fontes e informantes foram mantidos em anonimato.

1. Com os Pés Pelas Mãos – O Caso de Apar 109 A implantação da “Internet


Addiction Disorder” “IAD”, entre
outras desordens, tem sido muito
Apar é um jovem nascido e criado na África do Sul, país de discutida no contexto da futura edição
do DSM-V. Há muitos artigos que
imigração da sua família, possui nacionalidade portuguesa por
discutem igualmente a introdução de
descendência directa, fala inglês como língua materna, e portu- dependências relativas à Televisão e
guês como segunda língua. Aos 14 anos de idade, com o retorno Playstation. Mesmo não se tratando de
uma desordem claramente definida,
da sua família a Portugal, estabeleceu-se definitivamente neste muitos psiquiatras são aconselhados
país. Passados três anos (aos 17 anos de idade), foi entregue aos pelas empresas farmacêuticas à
prescrição de antidepressivos e
cuidados da Transcultural por intermédio de um dos membros ansiolíticos para estas situações.
do grupo, amigo da família. O levantamento clínico (anamne- Para mais informação, ver Stefania
Pinnelli (2002), disponível em:
se) identificava em Apar problemas relacionais, dependência
http://proceedings.informingscience.
de substâncias psicotrópicas (haxixe) e de realidades virtuais org/IS2002Proceedings/papers/
(Playstation, Internet e computador, em geral)109, além de com- Pinne088Inter.pdf; e Encyclopedia of
Mental Disorders FLU-INV, em: http://
portamentos e medos “estranhos” (como o receio de sair de www.minddisorders. com/Flu-Inv/
casa ou utilizar o comboio, entre outros). De acordo com o tera- Internet-addiction-disorder.html

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (121)


peuta que me ajudou a reconstruir o caso clínico do utente, os seus relatos sobre relações
pessoais e medos sugeriam a ocorrência de delírios e desordem no pensamento.
110 Este tipo de patologia é em geral
diagnosticada face à identificação de Após a triagem, Apar foi diagnosticado com esquizofrenia pa-
uma “distorção do pensamento”, que
ranóide110, tendo sido apontada como causa provável uma
produz “tipicamente” num indivíduo
a crença de ter a sua vida regida ou disfunção bioquímica que tornaria os seus actos e interacção
controlada por forças exteriores, ideias social anómalos. Não foram prescritos medicamentos, seguindo
delirantes da ordem da extravagância,
alterações da percepção, afecto “anor-
a lei nacional sobre o emprego de psicofármacos, que desa-
mal”, ausência de relação emocional conselha o seu uso em menores de idade, e também devido à
com as situações, e uma tendência
política pessoal de não medicação defendida por um dos três
ao isolamento. Fisiologicamente, de
acordo com as estatísticas do DSM-IV avaliadores inicialmente responsáveis.
(2007), pode notar-se um aumento
do tamanho dos ventrículos cerebrais,
com excessos de actividades nos neu-
Numa das reuniões de discussão de casos clínicos da Transcul-
rotransmissores dopamínicos. Ainda de tural, um dos técnicos questionou o seu diagnóstico, alegando
acordo com o manual, a prevalência
que Apar não possuiria um problema tão grave, para além de
desta enfermidade situa-se entre 0,3%
a 3,7% da população, dependendo da que determinadas características “estranhas”111 ao ambiente
zona geográfica. clínico, porém comuns num adolescente cujo corpo cresce ra-
111 Por exemplo, a insegurança e
a assunção de posturas rígidas em pidamente.
relação à sexualidade.
112 O movimento gótico teve início
nos finais dos anos 70, no Reino Uni-
O contraste entre os dois posicionamentos clínicos (o diagnós-
do, ligado aos movimentos musicais tico e a sua contestação) foi analisado em entrevistas, tendo-se
de death rock, darkwave e gothic rock,
observado que um critério de peso na triagem de Apar teria sido
caracterizado por um conhecimento e
por uma perspectiva particulares da o seu modo de vestir e falar, e determinados símbolos de identi-
filosofia, e adereços próprios como ficação com a música metal e gótica112. Estes emblemas foram
roupas negras e maquilhagem. O con-
teúdo das músicas explora temáticas
fortemente valorizados, operando uma sobreposição (controver-
que se relacionam geralmente com o sa) entre comportamentos influenciados por um “estilo gótico”
niilismo e o hedonismo e que retratam
e os seus “problemas” emocionais e relacionais.
a decadência humana. Erroneamente,
os seus adeptos são frequentemente
associados ao satanismo, sobretudo Após um curto período de tratamento, Apar revelou ao tera-
pelas roupas negras e pelos adereços
religiosos como o crucifixo – embora
peuta que o medo de viajar de comboio estaria relacionado
estes símbolos ganhem para eles com três assaltos sofridos algum tempo antes numa estação

(122) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


ferroviária perto de sua casa, a mesma em que deveria embarcar para chegar a Lisboa.
O uso de haxixe foi suspenso a pedido do terapeuta que prosseguiu o seu tratamento – o
mesmo que questionara o seu “pré-diagnóstico”113 – com o outro significado, sem cunho religioso.
intuito de observar a correlação entre o uso do haxixe e a forma Em Portugal, embora nunca tendo
como o utente exprimia os seus medos. Após a suspensão do adquirido grande expressão, alguns
jovens aderiram a este movimento
consumo as suas descrições ficaram mais claras, sugerindo (ou pelo menos às suas formas mais
que o que fora diagnosticado como delírio seria antes um efeito manifestas, como a decoração do
corpo e a música) a partir de finais da
secundário da droga, provavelmente devido à quantidade que década de 1980.
vinha sendo usada. Tais efeitos manifestavam-se somente após 113 A Transcultural adoptava um
cada reutilização de haxixe, reforçando (no seu caso) a hipóte- sistema semelhante ao da
avaliação clínica genérica dos outros
se de uma relação directa de causa/efeito. Este foi um factor utentes do hospital, assim como
importante, que acabou por afastar do seu quadro clínico a dos hospitais em que efectuei
anteriormente pesquisa, consistindo
suposição de uma disfunção bioquímica inata como causa dos num “pré-diagnóstico” que orientava
sintomas observados. o tratamento – nomeadamente a
adopção do método de continuidade
com o utente, a modalidade de terapia
O caso de Apar permite questionar a excessiva valorização médi- (farmacológica ou não), o tipo e a
ca dos símbolos de auto-identificação do indivíduo, tendo a sua quantidade de fármacos – com a sua
posterior confirmação ou alteração no
aparência, as dificuldades que ali o conduziram e a associação decorrer da terapia, e eventuais modi-
aos estilos gótico e metal sido agregadas na produção de um ficações no tratamento (verificava-se
geralmente a preferência por outra me-
perfil de pessoa rude e agressivos, com modos inapropriados dicação, prescrita sobretudo quando
de “estar no espaço”, segundo os médicos. Na sua triagem, de a evolução da doença não confirmava
o diagnóstico prévio) e por último um
facto, elementos como os assaltos na estação de comboio, a con-
diagnóstico final, que acompanhava
dução da psicoterapia em português (segunda língua, que não o utente como referência clínica para
dominava tão bem como o inglês), assim como a sua situação eventuais retornos ou o seguimento
por outro médico após a alta.
recente de imigração foram silenciados. A contextualização do 114 “Indicadores” são “guias-
seu percurso foi dirigida para a identificação de comportamen- -conceitos” a trabalhar durante a
triagem e ao longo da terapia, a fim de
tos anómalos no indivíduo, descartando a sua subjectividade.
obter um mapeamento psicopatológico
do indivíduo. Estão divididos em áreas
Os indicadores técnicos114 utilizados para a análise de Apar de actividades e relações humanas
“essenciais” (segundo entrevistas ao
foram o grau de inserção social, a relação com a família (no- grupo) ao desenvolvimento e saúde
meadamente os pais) e amigos, e os estudos. Contudo, a linha mental das pessoas. Referem-se

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (123)


condutora de todo o processo médico foi a adopção de conceitos de “ideal-funcional”
corporais e emocionais para cada ponto de análise/indicador, afastando necessariamente
uma abordagem de psicoterapia e a dimensão de transculturalidade. A premissa e o juízo
moral de “Apar enquanto gótico” estiveram subjacentes a toda a observação, como contra-
posição a uma “imagem/modelo” do comportamento social apropriado de um jovem de
17 anos – a preocupação central de “fazer amigos”, socializar, estudar e se comportar –
que constitui, em si, o alvo da contestação do movimento gótico.

Se uma primeira leitura instintiva dos sintomas aparentes e símbolos identitários de Apar
em termos dos indicadores presentes nos manuais psiquiátricos tinha provocado uma
leitura errónea do sofrimento expresso por ele, num segundo momento a interpretação
psicológica feita através do diálogo com o utente reorganizou o seu quadro clínico, simplifi-
cando-o. Após um ano de terapia, Apar havia reduzido drasticamente o consumo de haxixe
e adquirido o autocontrolo necessário para escolher usá-lo ou não. A relação com a família
assumiu também outra configuração, com um prognóstico positivo. Apar encontra-se hoje
em situação de alta clínica.

Esta segunda abordagem clínica, com o seguimento do percur-


nomeadamente à família, às relações so de Apar e a contextualização dos emblemas que envergava e
sociais e de trabalho, à sexualidade,
sua finalidade (principalmente a de contestação social), conse-
ao interesse por novas actividades,
entre outros. Os indicadores possuem guiu separar o vestuário e modos de expressão de pressupostos
diferentes graus de importância de estereotipados de “estranheza”, empregados como fundamento
acordo com a idade e a complexidade
das variáveis relacionadas com o sintomatológico. Do mesmo modo, esta perspectiva foi capaz
indivíduo em questão, por este meio de correlacionar as “experiências traumáticas” e efeitos secun-
comparadas com modelos ideais de
performance individual e emoções (re-
dários dos psicotrópicos com os comportamentos alegadamente
ferentes a cada área), em detrimento “delirantes”, extirpando o carácter patológico da palavra “medo”
do percurso de vida. Os resultados
e substituindo assim a expressão “agressividade” (na forma de
obtidos são por sua vez correlacio-
nados com o quadro sintomático relacionamento interpessoal) por “resistência”. O termo “resis-
para estabelecimento do diagnóstico, tência” ganha sentido à luz do curso da história de vida do
flexibilizando os conceitos empregados
até encontrar um ponto de equilíbrio
utente, ao considerar a sua experiência de mudança de país,
adequado a cada caso. com a consequente perda de laços de amizade, necessidade

(124) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


de domínio de uma “segunda” língua e de criação de novas relações. Interpretar o seu
comportamento “estranho” ou a sua identidade contestatária “gótica” como resistência
significa restituir agência (agency) ao indivíduo, encarando o seu quadro sintomático não
como indicador de uma patologia em curso, mas como um apelo ou uma mensagem em
busca de ser escutada (Scheper-Hughes, N. e Lock, M., 1991).

A constatação de uma auto-identificação significativa de Apar como “gótico” – sobre-


tudo face à consideração da relevância desta identificação no seu diagnóstico inicial –
tornaria essencial uma pesquisa prévia de informação sobre o movimento gótico e as
suas representações, antes de procurar qualquer tipo de problema bioquímico e pro-
blematizar o histórico do indivíduo. A segunda abordagem clínica feita pelo corpo de
psiquiatria partiu da observação – através da leitura de múlti-
plos casos – de uma prática clínica comum na Transcultural, 115 O DSM-IV, como o ICD-IX
pela qual comportamentos aparentemente desviantes são su- (International Statistical Classification
jeitos ao isolamento e categorização. Esta perspectiva mantém of Diseases and Related Health Pro-
blems) são os dois principais manuais
a presença constante, em maior ou menor escala, do elemen- diagnósticos utilizados no Ocidente,
to de “disfunção bioquímica” na elucidação das causas do constituindo as duas maiores referên-
cias de trabalho na Transcultural.
sofrimento dos utentes. 116 Face aos delírios de Apar, ao
invés de um diagnóstico clínico
directo de esquizofrenia paranóide,
Neste sentido, o caso de Apar denota a sobrevalorização que
o DSM-IV (da American Psychiatric
estas variáveis assumem na interpretação do quadro sintomá- Association, 2007) sugere o factor de
tico durante a triagem. O recurso às descrições dos manuais “indução por substância”, ou seja,
aconselharia a consideração do uso
psiquiátricos procura o enquadramento em perfis de compor- de haxixe como possível propulsor dos
tamento associados a cada patologia115, visando orientar o delírios (pp. 303-317). Seguindo esta
perspectiva diagnóstica, a forma de
psiquiatra para um “diagnóstico satisfatório”, sem equívocos tratamento, assim como a abordagem
entre patologias com sintomatologias semelhantes116. No caso do terapeuta ao longo da psicoterapia,
seriam diferentes. Creio que houve,
de Apar, o uso restrito destes perfis apontava para o primei-
neste caso, prejuízo evidente para o
ro diagnóstico da triagem, sem considerar adequadamente utente por estigma de pertença ao
os seus horizontes de significado e as suas próprias repre- grupo “gótico”, reforçado pelos juízos
de valor dos clínicos face a aspectos
sentações sobre o sofrimento. A individualidade de Apar foi como a forma de falar ou de se vestir
absorvida por um processo que o objectivou. No contexto das e o conteúdo das letras das músicas.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (125)


premissas acríticas e mecanicistas presentes nas categorias e descrições dos sintomas
fornecidas pelo DSM, cada termo ou elemento que contribuísse para caracterizar o
utente como “estranho”, “inapropriado” ou “desviante” tornava-se factor de validação
do seu diagnóstico117. Factos isolados do seu comportamento concorreram para o peso
do seu estigma.

Foi efectuada uma correlação entre factores de risco e comportamentos sociais de de-
terminados grupos, por meio de visões parciais e incompletas sobre os seus símbolos.
O cruzamento entre a informação do medo em utilizar o comboio e a interpretação
precipitada de efeitos secundários do uso de haxixe, simplificados enquanto delírios, é
exemplo de um ciclo de criação do perfil do “perigoso”. A medicalização de compor-
tamentos considerados potencialmente “perigosos”, ou “desviantes” e marginais em
relação aos modelos comummente “aceites” do indivíduo – sem compreender que a
contestação, ou mesmo a criminalidade e a violência, não são necessariamente algo
“patológico” – foram evidenciados por muitos autores (Conrad, 1979, 1992; Conrad e
Schneider, 1981).

As perguntas multiplicam-se após a análise do caso de Apar. O que poderia ter-lhe acon-
tecido se sua sorte o prendesse ao diagnóstico da triagem? Será que neste caso os seus
supostos sintomas teriam melhorado? Porque é que a necessidade de ter colocado um
português como utente dos cuidados de uma equipa Transcultural (por ter nascido e sido
criado noutro país) não produziu levantamentos relevantes sobre o seu percurso enquanto
migrante, ou o impacto da migração sobre as relações sociais e, consequentemente, as
dificuldades sentidas no país de acolhimento?
117 O DSM-IV aponta a incidência de
determinados comportamentos carac- Apar foi despido de si próprio, os seus passos e as suas atitudes
terísticos de cada patologia. No caso
foram isolados numa dinâmica passível de confirmar um quadro
da esquizofrenia paranóide é dada a
indicação de delírios e/ou alucinações clínico, sem identificar as necessidades e as trajectórias pesso-
auditivas tipicamente persecutórias, e ais que acabaram por conduzi-lo àquela situação. Partiu-se do
o(s) sintoma(s) deve(m) permanecer
obrigatoriamente pelo período mínimo
diagnóstico em busca da sintomatologia que o confirmasse. Ou-
de seis meses. tro factor importante foi o papel discriminatório que assumiu o

(126) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


diagnóstico: não só as premissas e categorias identificaram determinadas imagens e iden-
tidades no indivíduo – estabelecendo uma avaliação de “estranheza” – como fabricaram
e associaram a essa figura determinadas valorizações. Este processo foi simultaneamente
produto e produtor de estigma. A nova posição do terapeuta – diante de uma “manualiza-
ção” da abordagem clínica – foi o foco determinante de acção do processo: enquanto o
psiquiatra-chefe manteve o quadro de esquizofrenia paranóide diante da revisão clínica da
Transcultural, o psicólogo que contestara seu diagnóstico encontrou, perante os mesmos
sintomas, outro caminho.

Michael Conner aponta alguns perigos na utilização tendencial do DSM como referên-
cia para o diagnóstico psicopatológico: There is considerable overlap among diagnostic
categories in the DSM and it is possible to reach a more desirable or less desirable
diagnosis depending on the evaluator. Even when there is agreement, many professio-
nals are becoming concerned that the diagnoses and conclusions that follow from the
DSM are not very useful. In other words, the diagnosis reached is not much more than
a label that is based on an arbitrary set of symptoms. Most of the time a DSM diag-
nosis does not indicate the best course of action or even what treatment is necessary
(Conner, 1999)118.

A instrumentação rígida dos manuais psiquiátricos pode conduzir a casos em que, de certa
forma, o processo psicoterapêutico se assemelha mais à procura do utente na doença do
que da doença no utente, mediante uma estrutura institucional que legitima a autoridade
“científica” e o profissionalismo do psiquiatra.

Casos como os de Apar são cada vez mais apontados como demonstrativos da institu-
cionalização e racionalização da diferença nos tratamentos de “sensibilidade cultural”.
O confronto entre as duas perspectivas coincide com um dos contrastes observados no
grupo: pode dizer-se que, segundo a análise comparativa das en-
trevistas com os diferentes membros da Transcultural, esta linha 118 Criticism of America’s Diagnostic
Bible – The DSM (1999). Disponível
se encontra mais ou menos expressa separando psiquiatras de em: http://www. oregoncounseling.
um lado, e psicólogos e antropólogos do outro. org/Diagnosis/CriticismOfDSM.htm

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (127)


A respeito da reconstrução crítica desta diferente abordagem dentro da Transcultural, o
psicólogo que acompanhou Apar afirma:

O problema é que não se dão os instrumentos necessários nem o tempo necessário para contextu-
alizar a sintomatologia. Antes de saber do que estamos a falar, devemos saber se a sintomatologia
está ligada ao concreto. Poderia “Apar” ter ido embora com um rótulo pesado a ser exposto a
outro terapeuta… O que passou foi estigma… Havia algum tipo de racismo.

O relato desta “diferença de tratamento” foi seguido de uma contra-exemplificação pelo


psicólogo. Algum tempo depois de Apar ter sido atendido, o grupo Transcultural foi pro-
curado por uma mulher espanhola em busca de opinião profissional, alegando sofrer de
determinados sintomas e procurando a confirmação do seu quadro clínico. O psiquiatra-
-chefe conversou informalmente com ela nos corredores do hospital, dispensando-a por
não possuir problemas relevantes e aconselhando-a apenas a tomar calmantes leves.
O psicólogo de Apar, assumindo com ela a mesma abordagem informal, concluiu antes
tratar-se de um caso mais complexo de patologia borderline, com necessidade de uma
análise mais densa para confirmação do diagnóstico e indicação expressa de psico-
fármacos. Este seria segundo o psicólogo um caso simétrico ao de Apar: o factor de
peso para o reconhecimento pelo psiquiatra-chefe do grau de patologia da utente foi
a sua nacionalidade, com associações de prestígio pelo facto de ser europeia, bem
vestida, loira e branca, com indicadores de pertença a uma classe social alta. Foi um
exemplo prático do contraste, no contexto da análise, entre africanos e europeus (ape-
sar da nacionalidade portuguesa de Apar). O relato deste episódio não teria nenhum
sentido em si mesmo, mas o informante reconheceu-lhe grande relevância. Vieram-
-me lembranças das reuniões de grupo, onde os transtornos mentais eram abordados
pelo grupo (a partir das descrições do DSM e estudos epidemiológicos) não apenas
no contexto de comparações nacionais, mas também com exaltação da relação entre
a prevalência/gravidade das desordens e a nacionalidade dos utentes, com marcadas
distinções de psicopatologia entre as “raças” e as regiões geográficas – supondo, por
exemplo, que os africanos possuiriam maior grau de incidência de esquizofrenia do que
os europeus.

(128) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Este discurso, se bem que fundamentado em estudos epidemiológicos que lhe fornecem
suporte “científico”, proporciona pela sua interpretação estática e linear uma política mé-
dica de “dois pesos e duas medidas”, defendendo a necessidade de uma análise mais
cuidadosa entre os latino-americanos, africanos e naturais do Leste europeu, do que en-
tre os europeus e norte-americanos. Isto dever-se-á, provavelmente, a uma sobreposição
entre estereótipos e factores de risco, mas mais do que estigmatização, designaria esta
postura como racismo institucionalizado, marcado pela centralidade de uma espécie de
valorização simbólico-social na avaliação do estado psicopatológico segundo a naciona-
lidade do indivíduo.

A questão particular da incidência de diagnósticos de esquizofrenia em utentes afro-


-descententes ou afro-caribenhos foi abordada numa reunião teórica da Transcultural.
Os dados epidemiológicos sobre esta patologia, como reportado em muitos trabalhos
dedicados ao racismo institucional em contexto clínico/psiquiátrico, foram interpretados
enquanto “factos consumados”, sem necessidade de os interrogar ou de colocar em
questão as suas premissas e pressupostos epistemológicos. Os trabalhos que realçam
a incidência deste diagnóstico em utentes de origem africana foram interpretados como
provas da elevada proporção de desordens nesta área geográfica comparativamente a
outras, sem considerar os impactos políticos da análise e o uso irreflectido destes estu-
dos no âmbito hospitalar119. Daí que Shim afirme: Because of the authority accorded to
epidemiology as a scientific discipline, epidemiological concep-
tualizations of race and its health effects have the capacity to
shape what we believe to be true about individuals bearing such
differences. Through its increasing relevance in health policies
119 Para exemplos e reflexões acerca
and disease prevention, and their subsequent effects on institu- deste tema, ver: Fernando, 1988;
tions, behaviors, and awareness, epidemiological interpretations 1991; 1995; 1998; 2002; 2003;
of race carry the potential to influence individuals’ experience of Beneduce, 2002; Bracken P. e Thomas
P., 1999; Griffiths, 1977; Howitt e
racial difference (2000: 406). Owusu-Bempah, 1994; Karlsen e
Nazroo, 2002; King, 1996; Littlewood,
1992; Littlewood e Lipsedge, 1997;
Em entrevista com cada um dos nove membros principais do McEnzie, 1999; 2003; Peirce, Earls e
grupo Transcultural, somente dois souberam produzir um es- Kleinman, 1999, entre outros.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (129)


boço de resposta sobre a importância da “sensibilidade cultural” e os seus factores na
triagem e acompanhamento dos utentes. As respostas eram em geral vagas e chegavam
por vezes a anular qualquer relevância do “cultural” no percurso terapêutico. Um dos
psicólogos, ao ser-lhe solicitada uma reconstituição do caso de Apar, colocou as variáveis
genéticas como causa das elevadas ocorrências de desordens mentais entre os africanos,
quando comparada à prevalência das mesmas entre os europeus.

A abordagem a Apar pela Transcultural substituiu as suas reais necessidades terapêuti-


cas pelo pressuposto do utente objectivado e passivo, desprovido de voz (até mesmo para
contextualização do próprio sofrimento) substituindo desta forma o processo de Healing
pelo de Curing120. As práticas de discriminação dos utentes (mesmo que involuntárias
e inconscientes) eram ainda facilitadas pela “desorganização” e pela fraca estruturação
do grupo. De acordo com um informante, as hierarquias internas e a prevalência de al-
guns diagnósticos (e políticas gerais) sobre outros implicavam ambiguidade na definição
das funções de cada elemento, inviabilizando uma prática terapêutica coerente pelas
sobreposições de cargos e pelos conflitos de interesses particulares – estabelecendo-se
lideranças internas e circuitos de controlo no interior hierarquia médica – com efeitos
evidentes sobretudo ao nível dos resultados clínicos e estratégias de tratamento dos
utentes. De facto, funções terapêuticas centrais pareciam por vezes ser assumidas por
indivíduos sem a preparação e experiência suficientes, nomeadamente com estudan-
tes de psicologia e estagiários a intervirem como “segundos-terapeutas”, servindo de
suporte a todo o processo. O psiquiatra-chefe, por exemplo, (talvez por falta de opção)
ocupava muitas vezes três postos terapêuticos em simultâneo: como chefe do grupo,
psiquiatra do utente e coordenador/supervisor do trabalho, funções que requereriam
supostamente diferentes pessoas, a fim de garantir por um lado a neutralidade no pro-
cesso diagnóstico e as condições de anonimato em cada caso, e por outro a liberdade
dos demais envolvidos na psicoterapia, bem como as diferenças de metodologias e
percursos entre os profissionais do grupo.
120 Para mais sobre as diferenças
entre Healing e Curing, ver: Young
(1982) acerca da EM “Explanatory
O supervisor deveria (em princípio) ser neutro no tratamento
Models” de Kleinman (1978). ao utente, sem contacto directo com o mesmo, conhecendo

(130) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


somente o que lhe é relatado, a fim de poder apontar objectivamente as possíveis falhas
no tratamento e diagnóstico. Este “sigilo”, segundo a maioria dos membros da Trans-
cultural, seria conditio sine qua non para a preservação da ética do próprio processo
terapêutico – ainda que os mesmos não a respeitassem na prática do trabalho clínico,
e que esta falha não fosse reportada explicitamente como problema nas reuniões do
grupo. Novamente, as evidentes sobreposições hierárquicas – realçadas pelos membros
do grupo como uma constante a todos os encontros de discussão dos casos – impos-
sibilitavam o questionamento directo da gestão dos encontros clínicos e da falta deste
sigilo essencial. A objectividade terapêutica estava desta forma subordinada ao controlo
hierárquico dos postos mais elevados, o que se reflectia na qualidade e na eficácia do
trabalho com os utentes.

2. Kan121

2.1. De trás para a frente

“Psicose reactiva” foi o diagnóstico dos psiquiatras da Trans-


cultural a Kan, chegada a Portugal em 2004, com 37 anos.
Era entrevistada na cama do hospital por um mediador cul-
121 Não pude ter contacto directo
tural requisitado pelo grupo, devido à sua “não-reactividade” com Kan. A sua história é aqui recons-
a qualquer estímulo diante dos terapeutas. Kan não falava truída por meio de entrevistas com um
dos técnicos que acompanhou o seu
ou, quando o fazia, os médicos não conseguiam entendê-la, caso, um psicólogo que estava pre-
sendo a sua linguagem consensualmente considerada desor- sente na sua triagem psicopatológica,
e um psiquiatra que sustentou o seu
ganizada e incoerente. Os técnicos relatavam uma explícita diagnóstico após o posicionamento
incapacidade de organização lógica na racionalidade/pensa- contestatário dos dois primeiros. As
informações que possam sugerir a
mento, assim como nas explicações sobre a sua condição
sua identidade são reelaboradas, uma
de utente. Esta foi a primeira barreira que Kan encontrou no vez que o objectivo deste relato é sim-
ambiente clínico, onde as questões semânticas falhavam em plesmente analisar mais um encontro
clínico e a importância dos factores
produzir pontes entre utente e terapeutas (como sugere Klein- culturais e experiência subjectiva do
man, 1978; 1988). utente para a sua avaliação.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (131)


A descrição do DSM-IV (2005) sobre a patologia que lhe foi diagnosticada, prevendo a
apresentação de um dos traços seguintes (ainda que por um só dia), condizia com a sua
sintomatologia:

“Critérios para o diagnóstico de Transtorno psicótico breve [298.8]


Presença de um (ou mais) dos sintomas seguintes: 1) Ideias delirantes; 2) alucinações;
3) linguagem desorganizada [p. ex., disperso ou incoerente]; 4) comportamento catatónico
ou gravemente desorganizado.”

Durante a triagem, os seus familiares confirmaram aos técnicos de saúde o estado delirante
e paranóico de Kan, marcado por sensações de persecução em relação a carros e pessoas,
e pelo medo de ser envenenada pelos próprios familiares (prestando especial atenção à comi-
da). Revelava ainda o receio de ser presa pela polícia e confirmava esconder-se destes muitas
vezes ao vê-los na rua. Acreditava haver câmaras de vigilância que a controlavam ao longo da
linha do metropolitano e nos transportes públicos em geral. Em ambos os ambientes, social
e familiar, Kan relatava a constante sensação de controlo, de ser observada e conduzida. Ao
falar das suas relações familiares e conjugais aos técnicos de saúde, Kan recorria muitas
vezes a explicações que “desafiavam” a suposta racionalidade ocidental, com narrativas
sobre entidades sobrenaturais, “lutas espirituais”, “cabeças amarradas”, venenos e poções
feitas de fluidos corpóreos, o furto do seu odor, histórias sombrias de “calcinhas” (roupas
íntimas femininas) enterradas no “mato”, “mau-olhado” e “inveja”. Os psiquiatras considera-
vam estes relatos como persecuções de origens místicas (feitiçaria, rituais para condicionar
a sua vida sexual ou inibir a sua fertilidade), comportamentos típicos de uma “psicose de
natureza persecutória”. Os psiquiatras da Divisão de Saúde Mental da WHO (World Health
Organization), numa pesquisa transcultural em colaboração com o IPSS (International Pilot
Study on Schizophrenia) e os DOSMED (Determinants of Outcome of Severe Mental Disor-
ders), afirmaram serem particularmente frequentes em África as reacções psicóticas agudas
transitórias baseadas em crenças culturais na magia e na feitiçaria (in Pussetti, 2006).

De facto, Kan apresentava uma condição persistente de angústia e ansiedade, ligada à


sensação de ser vítima de feitiçaria. Esta angústia era sustentada – no seu contexto de ori-

(132) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


gem – pela percepção da proximidade íntima e diária de pessoas “ambíguas e invejosas”,
em particular do próprio grupo familiar. Segundo a interpretação dos comportamentos de
Kan pelos técnicos de saúde, os medos observados em relação aos carros e ao simples
facto de atravessar a rua eram encarados como “sinais claros de paranóias e ansiedades
que estavam presentes nas suas relações interpessoais, aqui e no contexto de origem”,
e apresentados como delírios alucinatórios. Os técnicos de saúde em momento algum
tomaram em conta o peso que o factor “invisível” assume em contextos e segundo referên-
cias culturais diferentes, podendo constituir uma realidade para o indivíduo sem se tratar
necessariamente de um indício de patologia.

Como consequência da abordagem e do diagnóstico clínico, Kan foi internada duas vezes
no hospital psiquiátrico, num total de seis meses. Os motivos para a sua deslocação a
Portugal haviam sido a relação conflitual com o marido (na terra de origem) e o acom-
panhamento – na ausência de outra pessoa que o pudesse fazer – de um parente a um
tratamento médico necessário.

A condição de “psicótica” valeu-lhe a perda da guarda da sua filha (que a acompanhava


em Portugal), que passou a ser tutelada por uma Casa de Acolhimento para Menores.

2.2. De frente para trás

O diagnóstico de psicose reactiva – com que foram classificados o comportamento e


as queixas de Kan – refere-se a “sintomas (…) que se apresentam pouco depois (e em
aparente resposta) a um ou mais acontecimentos que, isolados ou em conjunto, seriam
claramente stressantes a qualquer pessoa em circunstâncias parecidas e (imersa) num
mesmo contexto cultural” (DSM-IV, 1995: 311). Esta definição, pertencente à antiga edição
do DSM-III-R, já não é utilizada, tendo sido substituída na recente versão do manual pela
categoria de transtorno psicótico breve. A última edição do DSM adverte os psiquiatras
sobre o risco de mal-entendidos culturais, e a fácil confusão de comportamentos admiti-
dos em outros contextos culturais (como escutar vozes, por exemplo) enquanto sintomas
de transtorno psicótico breve (DSM-IV, 1995: 309). Estas indicações contidas no manual

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (133)


(tanto na edição III-R, como na mais recente IV) não foram contudo seguidas. A ter sido
interpretado o comportamento de Kan como consequência normal de eventos stressantes
a qualquer indivíduo, e uma manifestação admissível no contexto de origem, o seu destino
clínico poderia ter sido diferente.

Na relação terapêutica hospitalar, ao que tudo indica, a história de vida de Kan não foi
escutada, assim como não foram consideradas relevantes – mesmo que aparentemente
irracionais – as suas interpretações dos eventos da sua vida. Não foram analisadas de
forma aprofundada as motivações e os traumas do seu percurso migratório, a sua relação
com a família, a situação socioeconómica ou o contexto de origem. O seu processo clínico
é uma sequência de páginas brancas: em particular, a secção dedicada à “História pessoal
e desenvolvimento social” não reporta absolutamente nada; enquanto a “História Familiar”
apresenta apenas três linhas, que relatam o falecimento do seu pai, o local de residência
actual da sua mãe, e a existência de quatro irmãos. Os relatórios dos médicos não incluem
informações sobre as suas representações, à excepção de dados vagos, inexactos e pouco
aprofundados, que reduzem as referências de Kan a entidades e definições superficiais e
completamente eurocêntricas (o deus da etnia) – que no contexto de origem teriam uma
definição e uma identidade específicas – sem explorar minimamente o significado que
estas entidades podem ter para a utente ou para a sua comunidade, no contexto de origem
e no lugar de acolhimento.

Na “História Clínica” são apenas reportados o seu país de origem e língua materna,
além de duas informações básicas: que ganha menos de 50 euros por mês e que dorme
num colchão no chão, com a sua filha, num espaço cedido por um amigo. Ao longo do
processo clínico, para além dos seis meses de internamento, foram registadas mais de
10 visitas médicas. Ainda que não faltasse tempo para a escuta da utente, a descrição
dos psiquiatras limitou-se a realçar o “estado de espírito” de Kan ao longo das consultas,
e a avaliá-lo entre “bom” e “delirante”. Se de facto não houve uma tentativa séria de
diálogo, foram todavia feitos esforços para interpretar as queixas da utente e melhor con-
cluir sobre o seu quadro clínico, que tomaram a forma de repetidas análises clínicas ao
sangue e à urina, bem como testes de funcionalidade hepática e visitas ginecológicas.

(134) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Um exemplo muito marcante deste “não-diálogo” foi a delonga (de meses) em descobrir
que Kan não possuía afinal nenhuma dificuldade em expressar-se, mas que apenas fala-
va “crioulo” em vez de português. Segundo o relato de um dos psicólogos que contribuiu
para a reconstrução deste caso, tal “desencontro” rendeu à utente efeitos colaterais for-
tes, como um aumento de peso considerável e dificuldades cognitivas provocados pelos
efeitos secundários dos psicofármacos.

Revendo o caso de Kan através dos seus próprios relatos – fornecidos ao mediador cul-
tural que tentou reconstruir a história de vida da utente na sua língua materna – e a partir
de apontamentos pessoais do psicólogo responsável pela triagem (cedidos para análise),
é possível oferecer uma interpretação do seu mal-estar mais complexa, que não reduz as
suas experiências aos quadros patológicos da psicose. O passado de Kan é uma síntese
de medos e persecuções: a sua história conjugal foi uma sequência de ameaças físicas
e “místicas”, com um ex-marido ciumento e rancoroso que a molestava continuamente
e a intimidava utilizando todos os recursos disponíveis, incluindo a violência e ataques
“sobrenaturais”. Kan relatou, com extrema lucidez e coerência narrativa, os episódios
que mais a marcaram e apavoraram, e que podemos reconduzir ao espaço simbólico
da feitiçaria, algo muito presente (de acordo com um psicólogo e o mediador cultural
de Kan) na vida quotidiana do seu contexto de proveniência. O discurso de Kan a este
respeito – como sugeria Evans-Pritchard ao falar da feitiçaria entre os Azande do Zaire122
– dispõe de uma lógica interna perfeita, onde nenhum acontecimento é excluído por esta
leitura e tudo se torna extremamente coerente. A ansiedade de se sentir vítima de “mau-
olhado” e “ataques de feitiçaria” é uma constante nos seus
relatos, que sublinham relações familiares tensas e complexas, 122 No clássico de 1937 Witchcraft,
Oracles and Magic among
principalmente com o ex-marido e com a cunhada – que des- the Azande.
de a sua vinda para Portugal se demonstrou hostil e pouco 123 De facto, é quase impossível ter
disposta a hospedá-la e mantê-la economicamente, ainda que provas efectivas de envenenamento
no seu país de origem. O que é para
não possuísse outros recursos. Segundo esta mesma lógica, este caso significativo é o discurso
pode interpretar-se o medo de Kan sobre o envenenamento da sobre comida envenenada, constante
no contexto de qualquer refeição
comida (prática muito visível nos discursos das pessoas e nos feita pela utente. Este dado estava
cuidados com a comensalidade no seu contexto de origem)123 presente nos relatos de muitos

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (135)


como um meio de resolução transversal e indirecta dos conflitos, e de controlo moral. In-
terpretar eventos tão complexos num registo exclusivamente psicopatológico significa não
reconhecer as diferentes dimensões de significados, os conflitos e as dinâmicas relacio-
nais dos quais o mal-estar do indivíduo é expressão e consequência. Teria provavelmente
sido mais produtivo considerar os relatos de Kan não enquanto delírios psicóticos, mas
como a sua forma de narrar e representar mudanças de vida drásticas, fracturas familia-
res, desilusões, conflitos económicos, tensões interpessoais, e de transportar consigo as
feridas históricas de um país com uma recente história colonial e de violenta guerra civil
(Kleinman, 1978, 1988). Além de um reducionismo do percurso individual da utente,
foram igualmente ignorados os marcos locais e históricos que influenciaram as suas
relações familiares e interpessoais.

Da mesma forma, teria sido mais eficaz do ponto de vista terapêutico considerar o que
a polícia, os transportes e o metropolitano, os carros e mesmo a malha urbana pode-
riam significar “do seu ponto de vista”. Um desencontro de realidades que ela própria
expressou aos técnicos de saúde numa frase curta, mas particularmente significativa:
“quando cheguei, não conhecia a realidade daqui!”. Não é difícil para os antropólogos
– especialmente os que frequentaram contextos “exóticos” – compreender o hiato que
ela atravessou no tempo limitado de uma viagem de avião, e o choque de encontrar-se
num contexto espacial desconhecido, onde mesmo as práticas corpóreas mais quotidia-
nas (atravessar uma rua, utilizar um comboio ou o metro) eram para ela completamente
estranhas (uma vez que provinha de uma zona estritamente rural). Muitos dos informantes
da mesma proveniência de Kan relataram sensações similares ao chegarem a Lisboa (de
acordo com as entrevistas com os técnicos de saúde), e falaram igualmente do “medo
da polícia”, não apenas enquanto ameaça (evidente) aos imigrantes em condição de ile-
galidade, mas também pelos relatos das suas práticas de controlo e punição, divulgados
regularmente entre os imigrantes: relatos de violência social
utentes com a mesma proveniência, gratuita, de abusos, de moléstia sexual das mulheres, de ofen-
e foi confirmado em entrevistas sas e racismo. Mesmo que estas práticas sejam consideradas
com antropólogos especialistas
na área e mediadores culturais
ficção, e “a polícia” imaginada como gentil e compreensiva, é
da Transcultural. incontornável a presença desta componente no discurso des-

(136) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


tes indivíduos – especialmente dos ilegais, moradores de bairros sociais e negros – que
Kan encontra ao chegar a Portugal, e a influência que exercem sobre a sua aprecia-
ção da realidade, a adicionar à conflituosa adaptação e às referências do passado.
O discurso persistente sobre a ideia de controlo, que considera as câmaras de vigilância e
os registos dos “passes” dos transportes públicos como meios para identificar e localizar
os indivíduos em toda a cidade, ganha assim sentido. Não é importante discutir aqui
a existência destas formas de vigilância e punição dos “ilegais”; o relevante é antes a
existência e reprodução entre eles deste discurso. A esta observação, os psiquiatras da
Transcultural responderam que, precisamente pela condição marginal e precária em que
vivem, “os imigrantes” (todos?, os ilegais?, os negros?) têm tendência para a paranóia e os
surtos psicóticos. Mais uma vez, uma leitura patologizadora de fenómenos e ansiedades
que podem ter uma explicação puramente social, económica e política, são introduzidas
na intervenção e controlo sobre populações.

3. O Caso de “Velha-sane”

3.1. O amanhecer

“Velha-sane”, proveniente do Sul da Guiné-Bissau, chegou a Lisboa há menos de uma


década, onde se estabeleceu com uma prima (na verdade, filha da vizinha na aldeia
onde crescera) que vivia e trabalhava em Portugal. A documentação que estabelecia o
seu direito de estadia foi autorizada no âmbito do acordo entre o Ministério da Saúde
guineense e o governo português, pelo qual os cidadãos portadores de enfermidades que
não possam ser tratados na capital, Bissau, têm direito a um visto de permanência para
acesso à saúde em Portugal124.

124 De acordo com o tratado entre a


Deslocou-se em busca de infra-estruturas para uma intervenção República Portuguesa e a República
cirúrgica. Tivera um dos seus rins extraído em 2004, enquanto da Guiné-Bissau, decreto n.º 44/92
assinado em Lisboa a 31 de Março de
o outro, a funcionar parcialmente, fora mantido devido a pro- 1989. Para mais detalhe, ver: www.
blemas de incompatibilidade de doadores, o que a obrigou a gddc.pt/siii/docs/dec44-1992.pdf.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (137)


permanecer em Portugal para hemodiálise e acompanhamento médico. Velha-sane não
sabe definir ao certo os seus problemas de saúde, respondendo sempre com recurso a
termos “didácticas” transmitidas pelos médicos, como “rim doente”, “problema de rins”,
sem mais detalhes fisiológicos/orgânicos.

A impossibilidade de trabalhar devida ao seu estado de saúde provocava-lhe tensão,


fazendo surgir outros problemas como gastrite, prisão de ventre, dores de cabeça, in-
sónia, nervosismo e “formigueiro” nas mãos e braços, problemas secundários no rim
remanescente e nas articulações dos joelhos. No início de 2006, com o agravamento
dos sintomas, o seu nefrologista foi informado sobre o estado de saúde geral da utente,
tendo descoberto que as queixas agora apresentadas por Velha-sane eram, na verdade,
as mesmas relatadas ao recordar a infância e adolescência, atribuídas pela própria à
época em que “caía de ataque”.

O “ataque” surgiu aos oito anos de idade, enquanto trabalhava a recolher água para a
família na aldeia vizinha. Velha-sane perdeu os sentidos e encontrou-se, ao acordar, caída
sem movimentos no chão, com “sucuma a sair da boca” (espuma) e, temporariamente
sem visão. Os “ataques” tornaram-se desde então constantes, causando-lhe em diferen-
tes ocasiões a perda temporária da fala, afectação da coordenação motora, a abertura
dos olhos à semelhança de um estado de transe e a perda de audição – a ausência,
portanto, de qualquer forma de comunicação com as pessoas em redor – à excepção de
uma voz de mulher que a assustava (e que continua a assustá-la). Cada episódio deixava
Velha-sane de cama, levando a família a procurar o tio da sua mãe, que lhe administrava
ervas de banho e a ingestão de certos líquidos para afastar o mal – que diziam ser de or-
dem espiritual. Aos poucos, Velha-sane recuperava a saúde e a família evitava falar sobre
o assunto, agindo como se nada tivesse ocorrido. Velha-sane não sabia explicar o que
acontecia nesses tempos, repetindo apenas que “caía de ataque quando era pequena”,
e acrescentando “foi assim”.

No mesmo período em que apresentou ao nefrologista trechos da sua história e a insatis-


fação pessoal com as condições de vida em Lisboa, Velha-sane sofreu outro “ataque”, que

(138) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


a levou a ser internada por quatro dias num centro hospitalar. Os exames neurológicos não
indicaram qualquer anormalidade, e o corpo psiquiátrico reuniu-se sem chegar a uma con-
clusão sobre as causas do seu estado, decidindo então contactar o seu nefrologista, que
recolheu o historial de Velha-sane. A apreciação da provável importância de factores cultu-
rais na sua sintomatologia motivou a transferência para os cuidados da Transcultural.

O psiquiatra da Transcultural não explicou a Velha-sane a situação. Advertiu-a de que o


tratamento seria demorado, talvez permanente e, assim sendo, da necessidade de ela
permanecer em Lisboa. A triagem à qual foi submetida indicou um diagnóstico de esqui-
zofrenia e o suporte dos técnicos de saúde baseou-se de início em sessões de psicoterapia
com auxílio de psicofármacos.

3.2. Meio-dia

No início da sua adolescência, Velha-sane foi levada da zona rural (onde vivia) para a
capital, para ser tratada no Hospital Nacional Simão Mendes. A princípio os médicos
suspeitaram de cisticercose “Taenia solium”125, mas a sua fa-
125 No caso de Velha-sane, os
mília, muçulmana e de etnia Mandinga, negava que Velha-sane médicos em Bissau acreditavam na
alguma vez tivesse ingerido carne de porco. hipótese de neurocisticercose, com a
instalação dos cisticercos no sistema
nervoso central, músculos e vísceras,
Dos oito aos 18 anos de idade, os “ataques” foram sendo con- podendo causar crises convulsivas,
cefaleia, alterações na visão, hidroce-
trolados por meio dos “mezinhos do chão” (designação de Velha-
falia, etc., que explicariam a priori todo
-sane para as ervas medicinais da sua região), os “remédios da o seu quadro sintomático, dado que
terra” do tio da sua mãe. Os sintomas originais desaparece- os exames neurológicos não indicavam
relações precisas entre os sintomas.
ram progressivamente, enquanto um novo quadro sintomático Os médicos encaravam as divergências
emergia, que a utente descreveu como “nervosismo” e dores ao entre as queixas da utente e a
sintomatologia da neurocisticercose
longo do corpo, principalmente na cabeça e na região renal.
como devendo-se às nomenclaturas
diferentes empregues pela utente:
Ao longo dos anos os “ataques” diminuíram, apesar da con- convulsões poderiam ser vistas como
“estado de transe”, alterações na visão
tinuidade dos sintomas secundários e de sonhos que não a como alucinações ou confusão mental,
deixavam dormir, provocando-lhe alta irritabilidade em relação e assim por diante.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (139)


aos parentes e vizinhos. Os tratamentos do tio da sua mãe foram suspensos a seu
pedido, por não mais acreditar na sua eficácia. Tão-pouco os médicos da capital con-
seguiram compreender ou classificar o seu estado físico/emocional, aconselhando-a
a obter um parecer médico que viabilizasse a ida a Portugal em busca de segundas
opiniões clínicas.

Aos 19 anos de idade a família acordou o seu casamento, contra o desejo de Velha-sane
– que me confessou não gostar da ideia de estar submetida às ordens de um marido. Após
alguns meses de casada, os seus “ataques” voltaram, demonstrando (sob o seu ponto de
vista) a sua insatisfação com a situação familiar e o desejo de melhorar as suas condições
de vida. Este contexto conduziu o seu marido a procurar uma segunda mulher, que passou
a viver na casa vizinha, e que terá ficado grávida pouco tempo depois, situação que provo-
cou conflitos entre as duas e o marido. Velha-sane descreveu:

Ela era mais jovem, dava os filhos fortes que ele queria, estava sempre a cozinhar e presente
para ele, se sujeitava às ordens e às obrigações… Eu não! … então ficava nervosa e ela passou
a dizer a todos que era estranha pelos meus ataques, que eu entrava em transe, não poderia
ter mais filhos e trabalhar. Gozava comigo em frente a todos pelos filhos fracos que eu perdi, e
pelas doenças dos que nasceram… isso tudo acabou por provocar muitos ataques e brigas… já
não tinha respeito na aldeia.

Velha-sane teve um filho no primeiro ano de casamento, que nasceu doente, e se recusou
a amamentar a partir dos três meses, por ser muito fraco. Durante todo o período da
gravidez exprimiu fortes queixas de dores de cabeça, e da constante perseguição por uma
força omnipresente que a observava e lhe tirava o sono – a mesma força que acreditava ter
retirado as energias ao seu filho. Alguns meses depois engravidou de gémeos mas perdeu-
-os no sexto mês de gestação, incidente que criou nela fortes sentimentos de protecção e,
paradoxalmente, de raiva em relação ao primeiro filho. Durante a gestação interrompida
começou a ter sonhos sobre um novo futuro filho, que chegou a dar à luz meses depois,
mas igualmente doente.

(140) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Os ataques voltaram e as sensações de perseguição, então acentuadas, causaram mais
problemas no seu casamento e na aldeia onde vivia. Os “tratamentos da terra” que o
marido e a família lhe procuravam aplicar eram indesejados por Velha-sane, que se sentia
pressionada a agir agressivamente. Foi conduzida mais uma vez a médicos em Bissau
onde, após exames inconclusivos, foi expedida uma ordem de internamento num centro
de doentes mentais, onde permaneceu sob tratamento durante um ano e três meses,
enquanto a família a obrigava a manter os “remédios da terra”.

Velha-sane voltou por fim à aldeia, desprovida de qualquer prestígio entre os seus amigos
e familiares, com “ataques” frequentes e o quadro sintomático agravado: insónias que
duravam dias seguidos, agressividade nas relações sociais e a sensação de presença
constante da força que a perseguia, ameaçando os seus filhos e perturbando o seu sono.
Esta situação conduziu à decisão de regressar à capital e solicitar uma junta médica para
ir a Lisboa, na tentativa de encontrar um “tratamento moderno”. Segundo Velha-sane, a
sua vinda não é movida somente por um intuito terapêutico, mas também pelo desejo de
afastamento do seu marido (funcionário público que trabalhava na organização de cursos
de saneamento básico em aldeias afastadas da capital) e de obtenção de condições e
recursos para melhorar a vida dos seus filhos.

3.3. Entardecer

Ao psiquiatra da Transcultural (assim como nas entrevistas para este trabalho) falou sempre
de sonhos, definindo as datas e as personagens que via e revelando a sua omnipresen-
ça, e a importância que assumiam nas decisões tomadas sobre a sua vida. Porém, ao
ser questionada, permanecia geralmente em silêncio por alguns segundos, acabando por
responder timidamente que não se recordava. Ao longo de todas as entrevistas foi sendo
estabelecida alguma confiança, através da repetição das mesmas perguntas para verificar
possíveis alterações nas respostas.

Após alguns encontros, Velha-sane acabou por revelar detalhes sobre os seus sonhos.
Envolviam geralmente membros da família, e a presença de figuras que repetidamente a

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (141)


ameaçavam e molestavam com pedidos, causando-lhe insónias e conduzindo, em certos
períodos, a mais frequentes consultas médicas/psiquiátricas, para um aumento das doses
de fármacos que permitisse “sonos sem sonhos”. Para Velha-sane, a suavização do sono
por recurso farmacológico possibilitava um afastamento das personagens, pela relação
que acreditava existir entre as insónias e o “nervosismo” nas relações interpessoais.

Quando questionada sobre as dores de cabeça que antecediam os “ataques”, falava de


“água que se mexe na cabeça” para descrever as sensações físicas de que padecia desde
a infância. E efectivamente, os seus sonhos estavam sempre relacionados com o mar e a
água. A figura que a atormentava era representada como uma senhora branca, aparente-
mente europeia, gorda (forte), com cabelos loiros e olhos claros, que nunca falava mas lhe
“apagava a mente”, deixando-a com medo de dormir. Estes sonhos eram intercalados com
imagens dos filhos ou do pai em acidentes de carro ou a sofrer algum outro tipo de mal,
situações face às quais Velha-sane se sentia impotente. Os relatos sobre os seus familiares
eram sempre correlacionados pela utente com o medo (de perda de entes queridos ou
bens materiais) provocado por esta senhora europeia.

Durante as entrevistas, os relatos acerca dos próprios sonhos eram contraditórios, nomea-
damente pelo contraste entre o silêncio e as vozes e ameaças alternadamente atribuídos à
entidade feminina. Porém, a cada tentativa de explorar em profundidade os acontecimen-
tos do seu passado e a sua relação com as forças que a perturbavam, a expressão corporal
de Velha-sane sugeria timidez, afastamento e tentativas de mudança de assunto.

Velha-sane revelou não se encontrar sozinha com a sua prima em Portugal, mas a morar
com o seu irmão, junto de (aproximadamente) 15 parentes que viviam e trabalhavam
em Lisboa e arredores. O seu discurso era paradoxal: ao mesmo tempo que exprimia
insatisfação com a sua vida financeira actual, alegando sofrer necessidades e não ter
dinheiro suficiente para enviar à família (que passava dificuldades de subsistência) na
Guiné-Bissau, esforçava-se por descrever-lhes, quando os contactava por telemóvel, as di-
versas utilidades que ostentava a sua casa: variados equipamentos electrónicos e receptor
televisivo por cabo, iPods modernos e carros de luxo para todos os homens da família.

(142) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Em muitos dos nossos encontros, Velha-sane e a sua família insistiam em ir buscar-me de
automóvel às estações de metropolitano, e no interior da casa expunham orgulhosamente
os seus bens materiais, apontando-os e referindo-se a eles numa linguagem de prestígio.
Apesar de alegar não acreditar nos “remédios da terra”, mandava comprar mensalmente
ervas para a confecção de líquidos de banhos e “mezinhos”, que utilizava e vendia por
intermédio do seu irmão, astrólogo com larga clientela (evidenciada pelos constantes pedi-
dos recebidos por telemóvel) na região da grande Lisboa.

O prolongamento do seu estatuto de “enferma” possibilitou-lhe a permanência na Euro-


pa sem problemas burocráticos de maior, afastando a obrigação de retorno à “terra”. Se
foi a motivação terapêutica a trazê-la inicialmente para a Europa, a manutenção do seu
estado de saúde permitiu no entanto atingir objectivos secundários e melhores condições
de vida.

Os sonhos exprimem o contraste entre as duas realidades distin-


126 Para mais, ver: Szombati-Fabian
tas associadas à Europa: a melhoria da sua qualidade de vida e Fabian, 1976; Salmons, 1983;
(expressa pela posse material) e os sintomas dos seus males, Drewal, 1988; Bastian 1997; Gore
and Nevadomsky, 1997; Jell-Bahlsen,
com os sonhos ameaçadores da “Senhora Europeia” – o que 1997; Beneduce e Taliani, 2001;
lembra o culto da Mamy-wata, praticado por toda a região Oeste, Pussetti, 2005: 107-114; Pussetti, no
prelo, entre outros.
Central e Subsaariana do continente africano, partes do Caribe 127 Mesquitela, 1996.
e da América do Sul126. 128 A palavra iran ou irã designa em
crioulo diferentes objectos rituais, que
podem incluir amuletos fabricados
Porquanto não haja ainda muitos estudos sobre a presença do para um marabut – espíritos que
culto da Mamy-Wata no contexto da Guiné-Bissau, podemos moram no território, ou entidades
sobrenaturais que podem possuir as
estabelecer um paralelismo com o culto local da Serpente, a pessoas (Henry, 1994: 88; Pussetti,
bajuda iran cego (crioulo), a menina-pitão, (Pussetti, 2005a; 2001; 2005b). O termo iran deriva

Pussetti, Bordonaro, no prelo)127. A Serpente é de facto, tal do termo bijagó eraminde, erande,
ou irande, referente a uma entidade
como Mamy-Wata, um iran128 (ser sobrenatural) que assume originariamente ligada a um pitão,
frequentemente a aparência de uma mulher branca, europeia que mora no mar e pode relacionar-se
extraordinariamente com os seres
e sexualmente apelativa, que pode entrar em relação “con- humanos (Henry, 1994: 89; António
tratual” com os seres humanos. No culto da Mamy-Wata, tal Carreira, 1961; Pussetti, 1999).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (143)


como no da Serpente, o elemento do bem-estar económico e acesso a bens materiais
é a base da relação com a entidade espiritual. Diferentes autores129 salientaram como
constante nestes cultos a relação entre a aquisição de bens e a morte e/ou a doença dos
filhos e parentes próximos, como sugerem os sonhos de perigo da Velha-sane, reforçados
pela perda dos gémeos e do seu pai (em relação ao qual possuía fortes ligações emocio-
nais e lembranças de cuidado durante a infância). A Serpente chupa o sangue dos seus
adeptos, devora os seus filhos, extirpa a fertilidade das mulheres e a alma dos homens.
Nos relatos de Velha-sane, como evidenciado anteriormente, a competição com a outra
esposa do seu marido toma, muitas vezes, a forma de provocações em relação à possibi-
lidade de perda da fertilidade ou à impossibilidade de dar à luz filhos fortes e saudáveis.
Ambos estes riscos, assim como a associação dos seus “ataques” a um transe induzido
pela entidade, fortalecem a possibilidade de ligação de Velha-sane à Serpente, com
óbvias repercussões ao nível familiar e social pela conotação negativa desta conexão –
ainda que não tenha sido voluntariamente estabelecida por si, mas antes eventualmente
pela sua própria família desde a infância130.

A utilização deste tipo de recurso por parte da co-esposa, apon-


129 Entre outros, Beneduce e Taliani, tando publicamente as doenças de Velha-sane e as perdas dos
2001; Vacchiano e Taliani, 2006; seus filhos, assim como os seus “ataques” e sofrimentos, é
Einarsdóttir, 2000.
130 As fragmentações na reconstrução
um mecanismo frequente nas relações poligâmicas no contexto
da história de Velha-sane, os relatos guineense, com a finalidade de desacreditar a figura das outras
contraditórios e as revelações pontuais
mulheres do marido. Esta estratégia de mútua marginalização
do seu percurso sugerem a presença
da Serpente, nomeadamente: nos das esposas (Oliveira de Sousa, 1995; Pussetti, 2005a; 2005b)
sonhos, nas ameaças, nas sensações, é evidenciada pelo termo “kumbosas” (crioulo), que se refere
na perda da fertilidade e dos filhos,
e na ênfase nos bens materiais no
às outras esposas do próprio marido: derivado do substantivo
percurso migratório para Lisboa. Há “kumbossadia”, que pode ser traduzido por “ciúme” e “mau-
três formas essenciais que pode tomar
-olhado”, esta forma de tratamento sublinha a relação complexa
esta ligação ritual: directa, entre o in-
divíduo e a entidade; pela família, sem e tensa entre as co-esposas (Pussetti, 2005a).
o próprio conhecimento do indivíduo;
e da própria escolha da entidade que
busca o indivíduo, sem intervenção da
Partindo do pressuposto de que Velha-sane teria instaurado uma
família ou escolha pessoal. relação contratual com Serpente, como os sonhos e os bens

(144) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


materiais (continuamente exibidos) pareceriam indicar, podemos imaginar o carácter per-
turbado e desarmónico da ligação: a Serpente oferecia-lhe utilidades (carros luxuosos,
perfumes caros, materiais electrónicos sofisticados, etc.) ao mesmo tempo que lhe retirava
a liberdade (com o internamento no centro para doentes mentais); o sono, através dos
sonhos perturbadores; os filhos e os parentes; a saúde (o rim); a fertilidade; e a calma,
com ameaças e sustos.

Outro caso semelhante ao de Velha-sane, ocorrido em Portugal na mesma década e


igualmente no contexto de um projecto de intervenção hospitalar para imigrantes, foi pu-
blicamente apresentado na conferência internacional Ethnografeast e editado por Chiara
Pussetti (2008)131. Milocas, uma guineense com expressões religiosas também ligadas
ao culto da Serpente – o que reforça as associações entre ligações contratuais à Mamy-
-Wata e o contexto guineense de emigração – foi tratada por psiquiatras, sendo aquela
relação ritual interpretada enquanto quadro sintomático, e tratada com psicoterapia.
Apesar desta ligação comum à divindade, as trajectórias e as interpretações psicopa-
tológicas das duas utentes seguiram caminhos diferentes. Embora ambas tenham sido
diagnosticadas com desordens mentais, identificam-se diferenças tanto a nível do per-
curso migratório como na suposta relação contratual com Mamy-Wata. De acordo com
as descrições da autora, as expressões rituais de Milocas foram tratadas com psico-
fármacos que acabavam por acentuar os estados alterados da sua mente, apesar de
procurarem devolver-lhe a “consciência” do que se passava ao seu redor. Pelo contrário,
Velha-sane não só possuía uma larga rede de familiares em Lisboa que auxiliavam o
acesso a bens de consumo e recursos específicos do tratamento, como terá persistido na
constante negação de qualquer prática de ordem “mágica”, o que poderá ter contribuído
para uma suavização na análise da sua sintomatologia, principalmente no que se refere
às descrições dos “ataques” no seu percurso migratório e comportamental. Pode dizer-se
que Velha-sane – seja por acaso ou por ter evitado o uso de uma linguagem que poderia
levar à sua estigmatização pelos psiquiatras – encontrou uma posição de equilíbrio entre
prosseguir com o seu tratamento e não reforçar a gravidade da
sua situação (que possuía, na verdade, muitos elementos co- 131 http://ceas.iscte.pt/ethnografe-
muns à história de Milocas). Enquanto Velha-sane permaneceu ast/papers/chiara_pussetti.pdf

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (145)


sob tratamento em consulta externa, Milocas foi reconhecida como um caso mais grave,
e sujeito a uma intervenção mais pesada.

3.4. Assim que a noite cai

Apesar de o tratamento durar já há aproximadamente dois anos, os psiquiatras não


sabiam diagnosticar precisamente o caso de Velha-sane. Segundo um informante, ex-fun-
cionário do hospital que abriga a Transcultural (e que teve acesso ao parecer do psiquiatra
responsável por Velha-sane), apesar de a utente ter sido oficialmente diagnosticada com
esquizofrenia, tratava-se de um caso de difícil diagnóstico. As constantes alterações no
posicionamento médico evidenciavam a incapacidade em estabelecer o tipo específico
de esquizofrenia da utente, dado que cada fase da sua vida indicava um subtipo da
mesma patologia, que se articulavam actualmente de forma indefinida, nomeadamente:
“paranóide”, com predomínio de delírios e alucinações; “desorganizada”, com altera-
ções da afectividade e desorganização do pensamento; e “catatónica” com alterações
da motricidade.

À Velha-sane, o psiquiatra da Transcultural apenas lhe reportou ter “doença dos nervos”,
uma expressão que não se refere a nenhuma categoria reconhecida pelos manuais in-
ternacionais de psiquiatria. O termo (Lewis-Fernandez, 1994) poderia no máximo ser
considerado uma “CBS”, culture bound-syndrome (Ciminelli, 1998; Hughes e Simons,
1985; Pussetti, 2006)132.

Velha-sane foi (por mim) encorajada a perguntar ao psiquiatra


da Transcultural sobre qual seria, de facto, o seu problema, não
132 Contudo, partindo-se do tendo recebido como resposta um diagnóstico “oficial”, mas
princípio de que toda a síndrome é
antes a repetição de que se tratava de um problema de nervos,
culturalmente construída, trata-se de
uma classificação criticável. CBS não explicação que ela utilizava agora para justificar, a si mesma e
possui assim uma característica de perante os outros, os seus problemas. Tão-pouco o psiquiatra
especificidade, mas está na própria
constituição do que o DSM designa
lhe facultou o direito de acesso ao seu processo clínico quan-
“desordem”. do Velha-sane o solicitou para mostrar a outros médicos, na

(146) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


tentativa de obter uma segunda opinião que pudesse ser mais clara relativamente ao
seu quadro clínico (dado a sua descoberta que “doença de nervos” não representa uma
categoria biomédica). Esta recusa é reflexo de uma postura que se pode designar “pa-
ternalista”, infantilizando o utente, e que está particularmente presente nos casos de
imigrantes – em que a estrutura de acesso a ajuda pode ser reduzida (pela própria rede
limitada de infra-estruturas), impondo a submissão do utente ao processo no qual é intro-
duzido. Se o psiquiatra não forneceu à utente um diagnóstico reconhecível na nosologia
biomédica oficial, administrou todavia um tratamento farmacológico específico para a
esquizofrenia hebefrénica, além de outros fármacos para condicionar o sono e acalmar
o nervosismo. A esquizofrenia hebefrénica é uma subtipologia residual da esquizofrenia,
que sintetiza e correlaciona os sintomas dos diferentes tipos da esquizofrenia reconheci-
dos em Velha-sane.

Os fármacos são muitas vezes utilizados, como coloca Luhrmann (2001), com o propósito
de diminuir a dúvida dos médicos em relação ao diagnóstico, mediante resultados na dimi-
nuição de alguns sintomas. Além disso, são outras tantas vezes empregues para objectivar
o processo de cura e definir o tipo de doença que se procura identificar, nomeadamente
quando a situação clínica se apresenta de forma confusa. Neste sentido, a dimensão meta-
fórica que assumem os fármacos na definição e compreensão das patologias psiquiátricas
é muito interessante:

““Drugs” are “facilitators” for establishing meaning and for communication. What Lévi-Strauss
said about animals and plants in the essay on totemism applies to drugs in a psychiatric
setting: they are “easy to signify” (1963: 60). (…) Thus, communication about medication
becomes communication about problematic and ambiguous experiences (Van der Geest &
Whyte, 1991: 356).”

Para Velha-sane, muitos fármacos e suas combinações foram testados com o objectivo de
orientar a intervenção médica e encontrar uma categoria nosológica precisa adequada ao
estado da utente. Neste caso, a síntese das diferentes combinações farmacológicas con-
cluiu a presença duma quarta tipologia, distinta das três inicialmente reconhecidas.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (147)


O tratamento farmacológico, ao invés de conter as crises e permitir à utente afastar as
ameaças que a assustavam, criou um círculo vicioso pelo qual se tornou incapaz de dor-
mir sem tomar os fármacos, e com a necessidade de doses progressivamente elevadas
para atingir um sono sem sonhos apavorantes. Se é verdade que os sonhos eram afas-
tados pelos fármacos, o tratamento criava a alternância de dois estados indesejáveis: os
comprimidos causavam-lhe dependência, sem melhorias no seu quadro clínico; enquanto
a interrupção farmacológica lhe provocava a insónia e o medo de dormir, e o retorno ao
ponto de partida. Apesar da evidente importância dos sonhos nos relatos de Velha-sane,
marcados pela presença de medos e ameaças, o psiquiatra ignorou este elemento, acon-
selhando a utente a “não ligar à senhora loira, pois esta deve ser somente a senhoria
da casa que vem cobrar a renda!”. De facto, existia um aspecto de cobrança na relação
de Velha-sane com a Serpente, onde esta lhe reclamava o pagamento de uma dívida,
e de forma bastante exigente. Mas a abordagem “transcultural” foi colocada de lado e,
independente da veracidade da existência da Serpente – assim como do modelo biomédico –,
o encontro clínico demonstrou a sua capacidade de distorcer os problemas em buscas
afoitas de respostas específicas.

Independentemente das possíveis “patologias” de Velha-sane, esquizofrénica, “doente dos


nervos”, ou outra condição qualquer, as interpretações que poderia oferecer na explicação
do seu sofrimento, e os caminhos que esboçou na esperança de ser ajudada na procura
de um “sentido” reconhecível não foram escutados, ignorando completamente o valor
terapêutico das narrativas da própria doença (Kleinman, 1988).

Apesar da fragmentação no diálogo terapêutico e da substancial ausência de uma escuta


efectiva, é digna de realce a utilização da experiência individual da aflição como estraté-
gia política – para obter vantagens e para melhorar a própria inclusão social no país de
acolhimento (e da própria família). É com efeito muito interessante do ponto de vista político-
-económico a utilização que diversos migrantes fazem do seu mal-estar, tendo em conta que,
em paralelo com uma progressiva severidade e restrição nas políticas migratórias, aumen-
tam significativamente as permissões de estadia temporária por motivos médicos. O corpo
doente impõe a própria legitimidade onde as outras bases de reconhecimento são cres-

(148) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


centemente questionadas, transformando-se num recurso inédito de legitimação para os
migrantes irregulares. Diferentes autores reflectiram sobre as utilizações tácticas da medi-
calização pelos próprios migrantes com a finalidade de obter permissões de residência e
de reagrupamento familiar (Fassin, 2000; Fassin et al., 2004).

Quando questionada sobre o seu futuro, Velha-sane fala da impossibilidade de voltar à Gui-
né-Bissau, devido às necessidades do tratamento psiquiátrico e ao acompanhamento pelo
nefrologista. De certa forma, o seu estado de saúde possibilita-lhe permanecer num lugar
de conquistas – ao que tudo indica, lugar relacionado com os seus desejos e relação com
a Serpente. Actualmente, Velha-sane planeia trazer para Lisboa os seus filhos, recorrendo
ao discurso de serem portadores de “cabeça pancada”, ou seja, sofrendo de fortes dores
de cabeça e incapacidade para estudar, apesar de “serem inteligentes”. Velha-sane pre-
tende solicitar a uma junta médica no Hospital Simão Mendes, em Bissau, a colaboração
com o psiquiatra da Transcultural que, mesmo não tendo conhecimento de mais detalhes,
acredita na provável patologia mental referida, apoiando-se nos problemas psiquiátricos
da Velha-sane e na frequência na sua transmissão genética (segundo o psiquiatra que a
acompanha). Estima-se que dentro de um ano os seus filhos estarão em Lisboa, a serem
acompanhados pelo mesmo corpo médico que trata a mãe.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (149)


CAPÍTULO 8.
A PRISÃO SEM PAREDES133

Pelas suas semelhanças com o serviço em análise, farei neste capítulo uso das referências
obtidas através do trabalho que realizei anteriormente no Hospital Psiquiátrico do Juqueri,
no Brasil. Embora, se trate de contextos socioespaciais e populacionais diferentes, o tipo
de estruturas encontradas são comuns a ambas as instituições. O trabalho no Juqueri
reflectiu sobre o Movimento Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica no Brasil, em pleno
ano de 2002 – similar às reformas descritas por Basaglia na
década de 1970 na Itália – com o encerramento progressivo dos 133 O título “A PRISÃO SEM PAREDES”
hospitais psiquiátricos e a reinserção social dos internos que pode ser encontrado noutros contextos,
nomeadamente no artigo sobre “A
se encontravam em estruturas asilares/manicomiais. No gru- Crítica da Sociedade do Espetáculo” de
po Transcultural em Portugal encontrei um serviço pioneiro de Guy Debord, pelo conhecido colunista
psiquiatria destinado a imigrantes, criado pelo desejo e necessi- de jornal Luiz Zanin Orecchio, reeditado
no jornal O Estado de São Paulo em
dade de resposta a impactos secundários de fluxos imigratórios 2008. Quando li Porter (2002), sobre o
no país, com uma proposta de flexibilização das estruturas da crescimento do número de desordens
mentais entre o DSM-III e o DSM-V, e
psiquiatria ocidental pela incorporação de aspectos culturais Kirk e Kutchins (1997), sobre o papel
nas estratégias de diagnóstico e tratamento de utentes, e com de possíveis factores económicos na
uma aparente política de não internamento134.
descoberta de tais desordens, acreditei
ser esta a expressão mais adequada à
conclusão desta secção: a expressão

O programa dos dois estudos que realizei foi marcado pela simi- refere-se ao resultado da modificação
dos sistemas institucionais asilares
litude e complementaridade, constituindo a preocupação central no sentido de uma reinserção social
de ambos a observação do funcionamento da instituição e a dos utentes fortemente apoiada no
uso de neurolépticos. “A PRISÃO SEM
proposta de uma análise crítica dos seus serviços. Desta forma, PAREDES” pretende transportar esta
já me sentia no presente estudo familiarizado com o ambien- perspectiva para o leitor, onde as
paredes das instituições psiquiátricas
te hospitalar/institucional, não só por se tratar nos dois casos
se “virtualizam”, estando presentes
de hospitais psiquiátricos, mas pelo foco comum sobre actos em todas as esferas da vida quotidiana
terapêuticos que reflectem problemas políticos na sociedade, dos utentes.
134 O que sugere outra dinâmica co-
facultando abundante documentação adicional quanto à articu- mum, a priori, ao sistema manicomial
lação da ciência e ideologias, e as suas expressões no discurso. ainda tão presente na América do Sul.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (151)


As instituições de formato asilar são em geral apontadas como formas legitimadas de
propagação de modelos sociopolíticos predominantes, contribuintes para um processo
de alienação e despersonalização dos indivíduos – estendendo o discurso da exclusão
entre o meio intra-institucional e a sociedade, e com o foco explícito em representações
de racionalidade (Basaglia, 1985; Goffman, 2001; Castel, 1991). Deste modo, as formas
hegemónicas sociais permeiam as ideias e práticas da instituição, orientando o saber
médico/intervenção para a categorização do indivíduo, o isolamento dos seus proble-
mas e a sua correcção.

Por comparação, o sistema de saúde mental da Transcultural enquadra uma relação


significativamente diferente com os seus utentes. Em primeiro lugar, pelo funciona-
mento em formato de consulta externa. Em segundo, pela conversão do tratamento e
apoio terapêutico numa versão especificamente adaptada a imigrantes num contexto
de acolhimento. E em terceiro, pela diversidade da formação em outras áreas de saber
de muitos dos técnicos, nomeadamente em antropologia e psicologia. Este ambiente
(sem ter em conta questões de eficácia terapêutica) constitui a principal especificida-
de da Transcultural em relação ao modelo asilar, e reflecte uma tentativa de reversão
positiva da imagem institucional através de uma “humanização do hospital”, passando
de um local de aprisionamento e exclusão para um local da liberdade e apoio à inser-
ção social.

Independentemente do formato institucional – instituição asilar ou instituição hospitalar


moderna, psiquiatria geral ou transcultural – o hospital psiquiátrico não deixa de ser
genericamente uma Instituição Total (Goffman, 2001), lugar onde se recriam micro-
estruturas sociais, forçando-as sobre os indivíduos através de uma relação de poder
instituição/internado. Esta mesma lógica está presente nas ideologias e reificações da
Transcultural, e é reproduzida no discurso de “sensibilidade cultural” utilizado na sua
intervenção psiquiátrica (reflexão desenvolvida ao longo deste trabalho). Neste sentido,
a hipótese aqui levantada considera a reformulação institucional moderna operada por
meio de uma “imagem humanizada” como uma clara adaptação tecnológica da lógica
e discursos da exclusão.

(152) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


O panóptico de Bentham135 significa, muito mais do que um projecto arquitectónico, a
concretização material da ideia de observação, diferenciação e “mapeamento do com-
portamento criminal/desviante” dos indivíduos. Estabelecer esta relação constante de
poder permite “ver sem ser visto”, forma primordial da observação do “outro”, confinado
(desprovido de contacto social) pelo modelo intra-institucional. O protótipo moderno da
sociedade disciplinar (Foucault, 2004) reflecte um processo de investimento do Estado
na domesticação do indivíduo para o corpo São – o corpo útil à produção e politicamen-
te dócil – operado por uma biopolítica da população. O “inimigo” (em termos genéricos)
é criado pela contraposição à normalidade. A “limpeza” social, desde o princípio dos
hospitais gerais, cumpria já o propósito de afastar socialmente o inerte, o vagabundo,
o alcoólico, a prostituta, o doente e qualquer indivíduo que não incorporasse a repre-
sentação dos valores necessários ao trabalho, higiene e cuidado do corpo e do homem
enquanto ser que detém o domínio da natureza. Perseguindo a biopolítica de alcance
do “poder da mente (de uns) sobre a mente (de outros)”, os comportamentos de desvio
motivaram a classificação dos indivíduos em dicotomias tais como saudáveis/doentes,
normais/anormais.

135 Jeremy Bentham, filósofo e


Mais do que criticar a sociedade disciplinar (fora do propósito utilitarista inglês, conceptualizou o
deste espaço), é necessário reflectir sobre os valores morais panopticon (em 1785) como projecto
arquitectónico prisional, consistindo
que compõem um saber legitimado, convertido em poder sobre numa construção arredondada ou oval
as populações, assente num ideal de evolução e domínio do com uma torre ao centro, a que presi-
dia um guarda vigilante. A disposição
mundo através da ciência. Quero dizer que o panóptico é uma
das celas era propositada para criar
técnica plástica, com uma intervenção baseada na autodisci- nos internos a sensação de serem
plina sobre o corpo e a sua compreensão, e aplicado por vias constantemente vigiados, provocar
automatismo nos seus comporta-
políticas hegemónicas. O seu percurso segue: a) uma ideali- mentos ao longo do tempo, até que
zação teórico-ideológica sobre a ordem, economia, disciplina, a presença do vigilante não afectasse
o dia-a-dia do observado dentro da
sociedade, intervenção e modificação do indivíduo, e controlo
instituição. Esta estrutura implica
populacional; b) a aplicação da teoria numa estrutura física, ver sem ser visto, criando assim as
procurando estabelecer um ambiente ideal para a obtenção do condições ideais para desenvolver
técnicas de controlo do corpo e formas
seu objectivo; c) a auto-reorganização dessa estrutura permi- de correcção (Bentham Jeremy, The
tindo novas formas de actuação e aplicação. Panopticon Writings).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (153)


Recorrer ao “panoptismo” – enquanto movimento que expressa estas três componentes
– amplia as possibilidades de trabalho e intervenção sobre as formas modernas da psico-
patologia, em associação com uma espécie de “absolutismo de mercado” (como sugerem
autores como Kleinman, Kirmayer, Conrad e Schaneider, Fernando, entre outros citados
anteriormente), que torna a descoberta de novas desordens indissociável dos lucros das
empresas farmacêuticas.

Através de macroestruturas que adaptam a técnica de Bentham, novas formas de tecno-


logia de observação e correcção do corpo são aplicadas sem a necessidade de muros,
transportando a qualquer lugar os propósitos da intervenção
136 Muitos estudos científicos com
base em moldes raciais foram promovi- clínica, que acompanham ubiquamente o utente.
dos nos EUA e Europa após a Segunda
Guerra Mundial. A diferença na
predisposição às doenças, sobretudo
O hospital moderno, como é o exemplo da Transcultural, não
às mentais, era procurada para legiti- escapa a este princípio. A sua estrutura de atendimento aos uten-
mação do alegado contraste entre as
tes é influenciada por conjunturas económicas e políticas, e o
qualidades e deficiências de brancos
e negros, e de ocidentais e orientais. seu modelo terapêutico apoiado no imaginário da globalização
As pesquisas eram formuladas com e das consequências históricas dos conceitos de direitos civis e
base nos paradigmas do darwinismo
cultural, sendo a psique dos brancos anticolonialismo emergentes do pós-guerra136. Se, como procuro
considerada mais desenvolvida. demonstrar, a observação dos utentes nos serviços da Transcul-
O conflito entre a antropologia e a
psiquiatria a este respeito estabeleceu-
tural é focalizada na cultura e etnia (e sua modificação como
-se nomeadamente a partir do conceito forma de adaptação dos utentes ao local de acolhimento), porque
de “cultura” de Boas, que se opôs a
não falar de etnopanoptismo ou panoptismo cultural ? O tipo de
essas ideias e redefiniu a diferença
cultural distinguindo-a de capacidades estrutura física torna-se irrelevante dentro do hospital moderno,
inatas ao indivíduo, à sua raça ou uma vez que as técnicas farmacológicas actuais permitem um
local de origem. E Ruth Benedict (em
1942) propôs em Race and Racism
modo de intervenção e vigilância continuado e permanente. Se a
que as diferenças psicológicas entre “diferença cultural” é assumida como um “mal” a ser curado, o
raças são efeitos de diferenças de ca-
imigrante é o novo inimigo e alvo a ser corrigido pelo projecto de
rácter antes cultural e nacional. Estes
foram os marcos que converteram assimilação total no âmbito da migração.
“raça” e “racismo” em problemas
políticos, servindo como referência ao
anticolonialismo que se desenvolveu
O comportamento desviante pode ser visto como universal (Con-
nas décadas de 1950 e 1960. rad e Schneider, 1981:5-7; Lévi-Strauss, 2004: 362-69), mas

(154) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


foram as heranças do modelo positivista nas ciências sociais que possibilitaram o uso
do termo “anormalidade” e a intervenção do saber médico ao serviço da patologização
dos problemas sociais, reconhecendo a “diferença” individual (ou de grupos) pelo con-
teúdo moral e político que representam. Transportar comportamentos da esfera do “des-
vio” para a da “doença” não apenas despolitiza o indivíduo, como diminui o poder
e voz dos movimentos sociopolíticos. O carácter social da construção do saber bio-
médico conduz a conhecimentos baseados em conceitos dominantes/hegemónicos,
cujas premissas são constituídas por valores morais, perspectivas e imaginários éticos
contemporâneos, próprios de um contexto sociopolítico específico (nomeadamente euro-
americano). Excluídos os critérios biológicos/orgânicos, o diagnóstico – na medida em
que envolve uma relação vertical com o utente – limita-se à expressão de um juízo de
valor (Cooper, 2004).

1. A Experiência, a sua Interpretação, e a Clínica

O único mito puro é a ideia de uma ciência purificada de qualquer mito.


Michel Serres, La Traduction

“Sofrimento social” é um dos termos mais utilizados no contexto das experiências migra-
tórias e seus efeitos. Integrando os índices sociais das políticas públicas da Europa, está
consequentemente incorporado nas práticas de assistência à saúde mental pública e dos
centros de psicoterapia transcultural137.

Existe um vasto leque de abordagens possíveis a este conceito nas relações estabeleci-
das entre psicoterapia e paciente – nomeadamente na importância dada à componente
de transculturalidade e “sensibilidade cultural”. As contradições evidenciadas no siste-
ma médico (e medicalizador) perante a situação da migração
137 Ver: The Changing Role of the
requerem reflexões sobre os paradigmas que fazem concorrer State: Homeless and Exclusion –
o saber biomédico com a precarização (em vez de apoio tera- regulating public space, Novembro
de 2006; diversas fontes estatísticas
pêutico) destes indivíduos. Mais do que um saber representado (e referências) em www.acidi.org.pt;
em contexto institucional, a medicina psiquiátrica é um terreno Vacchiano e Taliani (2006).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (155)


onde pode ser reconhecido e explorado o modo como a experiência social é remodelada
e reinventada, e como historicamente é construída a dicotomia entre doença e saúde,
normalidade e anormalidade.

A epidemiologia, “como estudo da distribuição de doenças e desordens em populações


humanas e sua variação em diferentes subgrupos”138, é uma estratégia discursiva com
carácter político não só da psiquiatria, mas do saber médico em geral. A construção dos
factores de risco nos estudos epidemiológicos em medicina e saúde – no caso da imigra-
ção mas não só – conduz muitas vezes a considerar a irregular distribuição do rendimento
e a pobreza como os maiores factores de proliferação de doenças. Se a população estu-
dada sofre a incidência de determinada patologia (como por exemplo a esquizofrenia),
a lógica que dirige a análise conclui a ligação directa de tais doenças à pobreza. Muitos
estudos deste género utilizam indicadores de qualidade de vida instituídos nas socieda-
des industriais modernas, universalizando-os a fim de mapear outras sociedades e zonas
geográficas. O objectivo é o de estabelecer a ligação entre o défice de tais indicadores e
a relevância de uma determinada patologia. Por exemplo, um designado Cross-National
Study pode ser desenvolvido no estudo epidemiológico comparado da “depressão”, de-
monstrando idealmente a presença diferencial desta “doença” em diferentes países e a
sua taxa de prevalência por “subgrupos”:

“(…) Depression… showed great variability (1,5% in Taiwan to 19,0% in Beirut), with Asian coun-
tries showing the lowest rates… In all 10 countries, women had higher rates of depression than
men, and mean age of onset was consistently in the 25-to 35-year-
138 Ver: Weissman et al. (2006) old range… In summary, cross-national studies conducted during
“Cross-National Epidemiology of Major
the last two decades have begun to provide a detailed picture of
Depression and Bipolar Disorder”
e Weissman et al. “Cross-National major depression and bipolar disorder around the world.”139
Epidemiology of Mood Disorders: an
Update”.
139 Weissman et al., “Cross-National Os estudos epidemiológicos visam conhecer as consequências
Epidemiology of Mood Disorders: an directas e indirectas das doenças, acima de tudo pelos seus
Update”, disponível em: www.pasteur.
fr/applications/euroconf/depression/
efeitos prejudiciais no funcionamento individual, familiar e so-
weissman.pdf cial. Criam-se perfis baseados na “funcionalidade” e na “dis-

(156) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


função” social para mapear o universo estudado. As amostras são privilegiadamente se-
paradas e classificadas por “pastas”, referentes a grupos “étnicos” (não raramente referi-
dos como raças), condição socioeconómica, habilitações literárias, profissão, historial de
tratamento pessoal e familiar, idade, género, entre outros.

Um dos problemas das avaliações diagnósticas dos transtornos mentais é precisamente


a vertente epidemiológica que assumem, pela sua orientação exclusiva nas descrições de
manuais como o DSM e o ICD. Enquanto a criação destes “perfis” se afirma por um lado
como questão metodológica de abordagem à população estudada, trata-se por outro de
uma prática disseminadora das representações políticas contidas nos seus fundamentos;
reificadora de critérios diagnósticos padronizados e reproduzíveis; e produtora de exclusão
social, pela criação e formalização de grupos de risco definidos por aspectos sociocultu-
rais, económicos e políticos. No caso da já citada “Cross-National Epidemiology of Mood
Disorders”, o género feminino alcança uma maior prevalência da depressão, mas os facto-
res culturais, religiosos e de parentesco, bem como as suas funções simbólicas e sociais,
são omissos, mapeando-se perturbações e supostos sintomas genéricos num universo de
análise que engloba, numa dinâmica social comum, países como Estados Unidos, França
e Líbano.

Relativamente a esta abordagem das ciências médicas, os seus referenciais metodológicos


e conceitos de saúde e doença, Kleinman reforça que: “Social suffering results from what
political, economic, and institutional power does to people and, reciprocally, from how the-
se forms of power themselves influence responses to social problems” (1997: ix).

Ou seja, as medidas que intervêm sobre (e assim definem) o que é “sofrimento” – e


consequentemente o que é “patológico” – evoluem de acordo com o enquadramento polí-
tico-económico e as formas hegemónicas de poder.

Os movimentos sociais gay em São Francisco na década de 1970 demonstraram como


a nosologia científica e a sua demarcação de comportamentos patológicos podem ser
negociadas. Até ao DSM-III, a homossexualidade era considerada um distúrbio do com-

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (157)


portamento sexual, como aliás era descrita desde o século XIX140. Este quadro terá mudado
quando grupos de manifestantes invadiram um encontro da APA141 em 1974, reivindi-
cando a retirada desta classificação da homossexualidade dos manuais internacionais
de psiquiatria. Da mesma forma que um comportamento pode
140 Psychopathia Sexualis, do alemão
ser socialmente isolado pela clínica e balizado por fronteiras
Richard Von Krafft-Ebing, tornou-se
um clássico do estudo da sexualidade arbitrárias como condição patológica, certos factores macroe-
na psicologia e psiquiatria. Apesar conómicos e políticos – como por exemplo determinados pelos
de utilizar uma linguagem técnica já
desactualizada, os seus estudos defi-
fluxos imigratórios – propiciam a aplicação da mesma lógica às
niram, pela primeira vez na história, relações humanas.
uma fronteira entre normalidade e
anormalidade nos comportamentos
sexuais, distinguidos entre saudáveis, Desde o final do século passado, antes do advento do DSM-III,
“doentios” e “abomináveis”. Os com- as pesquisas epidemiológicas sobre transtornos mentais usaram
portamento patentes nos 238 casos
analisados por Krafft-Ebing foram
diferentes métodos e sistemas de classificação, apresentando
separados por tipologias, tendo sido uma ampla variação nas estimativas de prevalências, tanto
proposta uma “cura” caracterizada em
quanto sobre a importância de factores de risco como a classe
geral pela abstinência e/ou casamento
heterossexual forçado. A sua obra social (Lima; M. S. et al., 2005: 3).
constituiu uma referência e inspirou
análises de direito criminal e estudos
clínicos sexuais modernos, já que Com a emergência da importância dos factores culturais no
inovadoramente apresentava a carac- contexto médico, foram contestadas as versões anteriores ao
terização dos doentes por sexo, idade,
condição socioeconómica e profissio-
DSM-IV pela sua total ignorância a este respeito, sendo consi-
nal, entre outros. Paradoxalmente, e a deradas insuficientes face aos novos requisitos indispensáveis
título de curiosidade, apesar de o seu
da prática clínica. Em 1991, o NIMH142 organizou um comi-
trabalho continuar a ser seguido
como referência na área, o Dr. té maioritariamente constituído por antropólogos e psiquiatras
Krafft-Ebing foi desacreditado na sua transculturais para a formulação de propostas diagnósticas fun-
carreira profissional pela sua posterior
alegação de que a homossexualidade
damentadas na “sensibilidade cultural”. De antemão, a maior
deveria ser descriminalizada e prati- preocupação por trás deste projecto foi a atenção consagrada à
cada livremente, causando alvoroço
contextualização e ao respeito pelas referências do utente nos
na sociedade e na academia pela
refutação da categoria de “doentio” métodos diagnósticos internacionais.
que ele mesmo contribuiu para criar.
141 American Psychiatric Association.
142 National Institute of Mental
A estratégia adoptada pelos revisores e editores acabou por
Health, EUA. propiciar a aceitação clínica e de mercado do DSM-IV: foi

(158) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


conservada a estrutura das edições anteriores, para manter a disponibilidade de in-
formação (Kirk e Kutchins, 1997), apenas sendo acrescentado um apêndice – cuja
introdução directa no corpo de texto foi recusada – com o propósito de representar
as componentes culturais. A indexação foi feita em resposta às novas necessidades
criadas pelo atendimento clínico a africanos americanos e minorias étnicas (latinos e
indígenas) em centros de tratamento nos Estados Unidos. O Cultural Axis do DSM visava
fornecer aos técnicos de saúde dados de estudos e critérios para a análise psiquiá-
trica, salientando diferenças simbólicas entre comportamentos “culturais”, incluindo
exemplos de dinâmicas sociais não universais, e sugerindo “atenção” na aplicação das
categorias avaliativas. No entanto, o modelo “DSM” não é mais do que um manual
de indicadores e tendências da sintomatologia e patologia, num formato resumido,
puramente descritivo e simplista, alienado da diversidade potencialmente presente no
encontro clínico.

O mero reconhecimento do elemento “cultura” pelo DSM demonstraria a sua im-


portância para a clínica, assim como o carácter “geograficamente circunscrito” das
categorias universais da psicopatologia, assim fruto de construções eminentemente
históricas e económicas num espaço e tempo concretos. Contudo, a inviabilidade do
formato do manual gera anomalias em muitos dos resultados clínicos, dificuldades
quanto às formas de aplicação culturalmente sensíveis, e principalmente obstáculos
na relação entre médico e utente. Entre os exemplos mais ilustrativos da abor-
dagem inadequada a estes múltiplos factores e os seus efeitos, Lewis-Fernández
assinala:

“Consider the inadequacy of the likely Cultural Axis evaluation of the rich contextual dynamics
involved in a presentation of taijinkyofusho. The particular Japanese exigencies of self-definition
within different social circles evincing distinct relational obligations, especially problematic du-
ring adolescence, patterned by gender roles and cultural rules of social trust and reciprocity
(amae), and showing historical changes with the loosening of social bonds as a result of the
growth of corporate capitalism in Japan… would all be reduced to an Axis I diagnosis of Social
Phobia… (1996: 134).”

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (159)


A introdução de comentários por temas e áreas “culturais” são pontuais, assemelhando-se
mais a uma descrição de exotismos comportamentais de sociedades distantes das indus-
triais modernas. Acabou por se estabelecer tacitamente uma hierarquia entre diferentes
formas de saberes, com a redução e subjugação de dinâmicas rituais, religiosas e sociais
segundo as categorias do olhar paternalista médico-científico ocidental. A perspectiva do
utente, primordial (segundo o comité da NIMH) para uma análise ponderada de cada
caso, foi reduzida a breves tipologias e influências de factores socioeconómicos e religiosos
generalizados, sem uma dimensão de reflexão e autocrítica em relação aos referenciais do
saber hegemónico. O estabelecimento de pontes requereria antes o privilegiar das sensa-
ções, experiências e necessidades dos utentes na avaliação psicopatológica, assim como
o aprimoramento da orientação e formação dos técnicos de saúde, nomeadamente com o
fim de diminuir o excesso de “sobreinterpretações” patológicas, frutos de uma contextua-
lização arbitrária do utente.

O DSM popularizou-se não só como referência de consulta, mas como norma e padrão
no meio terapêutico. E este facto é particularmente relevante quando tratamos das pro-
blemáticas do encontro clínico com a “diferença”. Como é que uma publicação de foco
tão abrangente poderia sistematizar adequadamente as diversas categorias e experiências
culturais – recusando a sua universalidade – sem privilegiar determinadas interpretações
subjectivas (neste caso as biomédicas ocidentais) da doença?

A “manualização” da saúde mental causa transtornos mesmo onde as determinantes


culturais são menos relevantes. A própria perspectiva subjacente ao DSM – quando aceite
acriticamente – conduz à procura de comportamentos típicos encaixáveis em determina-
das categorias de patologia, pela sua definição “matemática” dos limites da normalidade
e anormalidade. É promovida a simplificação e redução da clínica à universalidade das
estruturas psicobiológicas, com o subsequente projecto de controlo sobre elas. Diferentes
autores, referindo-se às pretensões de domínio contidos na “bíblia” (Kutchins e Kirk, 1997)
da psiquiatria contemporânea (o DSM), falam explicitamente de “imperialismo ocidental”
(Lynch, 1990), “hegemonia”, “imperialismo” e “colonização cultural” (Beneduce, 1998),
“controlo sanitário e moral sobre os outros” (Inglese, 2002).

(160) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Relativamente à qualidade e eficácia do saber, os profissionais da área – sobretudo os
psiquiatras no topo da hierarquia, justamente porque têm mais poder – prescindem da
reflexão crítica e do questionamento do modelo pré-estabelecido que favorece a sua po-
sição. De um lado, assiste-se a uma espécie de “sistema Ford da psicopatologia”, com
testes fechados a definir o utente e indicar o seu estado, com um discurso de exaltação
dos recursos clínicos e do profissionalismo e cientismo médicos; enquanto do outro lado
se encontra o utente objectivado, isolado, categorizado e fragmentado pela aplicação de
um método que, dentro da perspectiva transcultural, deveria antes privilegiá-lo a ele e à sua
complexidade sobre qualquer outro interveniente na relação terapêutica.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (161)


III PARTE
EXPERIÊNCIAS INSTITUCIONAIS
NO CUIDADO MENTAL DA DIFERENÇA

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (163)


CAPÍTULO 9.
RESUMO COMPARATIVO DOS MODELOS
DAS CONSULTAS CULTURAIS DE AVICENNE,
MORTIMER E HOSPITAL MIGUEL BOMBARDA

E lsa L ech n er

A psiquiatria cultural tem evoluído em direcções distintas em diferentes países, em con-


sequência de vários factores como a composição demográfica e o estatuto político das
minorias etnoculturais. A história da imigração e os modelos de cidadania em cada país,
levam à implementação de serviços de saúde mental distintos e à criação de necessida-
des diferentes.

Neste breve resumo, apresentamos três modelos de consulta de psiquiatria dirigida a po-
pulações migrantes, em três países: a consulta dirigida por Marie-Rose Moro no hospital
Avicenne em Bobigny (Paris); a consulta do Jewish Hospital de Montréal, dirigida por
Laurence Kirmayer; e a “Consulta do Migrante”, criada por Inês Silva Dias e extinta pelas
reformas do serviço nacional de saúde do actual governo português.

1. A consulta transcultural do hospital Avicenne, Bobigny

A consulta transcultural do hospital Avicenne143, na periferia norte de Paris – também


apelidada de consulta de etnopsiquiatria – está em funcionamento há mais de 20 anos.
A sua proposta é a de um quadro terapêutico específico e original para situações em
que terapeuta e paciente não partilham a mesma cultura de origem. O fundamento teó-
rico deste serviço reside na etnopsicanálise e no complementarismo criados por Gerges
Devereux (1972), que recorrem simultaneamente à psicanálise
e à antropologia para compreender e tratar tendo em conta o 143 Ver nomeadamente Moro e
banho cultural em que mergulham os migrantes. Moro, 2004.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (165)


Este quadro é, antes de mais, para psicoterapias e consultas terapêuticas, mas também
cumpre uma função de ajuda, diagnóstico e aconselhamento.

A consulta é dirigida a qualquer paciente, criança ou adulto, que seja migrante de primei-
ra, segunda ou terceira geração, cuja problemática e expressão psicopatológica estejam
intimamente ligadas à sua história de migração, às representações culturais da doença,
e às dificuldades em estabelecer um laço entre a cultura de origem e a do país de aco-
lhimento.144

O serviço é dirigido por Marie-Rose Moro145 e reúne uma equipa transdisciplinar de


co-terapeutas (médicos, psicólogos, enfermeiros, antropólogos, assistentes sociais), de ori-
gens culturais e linguísticas diversas, com formação clínica, psicanalítica e antropológica.
A consulta funciona durante toda a semana e recebe os pacientes tanto individualmente
como em equipa. Ser migrante não é condição para se ser etnopsicanalista da equipa,
mas todos os terapeutas devem ter feito a experiência de descentramento de si e do seu
meio de origem familiarizando-se assim com outros sistemas culturais. O trabalho em
grupo permite que as experiências de todos se fundam na proposta de soluções terapêu-
ticas originais e eficazes. O princípio é o da aprendizagem e prática da alteridade e da
mestiçagem: um paciente magrebino não será recebido por um terapeuta magrebino…
O dispositivo proposto é, por excelência, misto e centrado na noção de alteridade.

A consulta recebe pacientes de todos os cantos do planeta: África negra, Magrebe, Sudeste
asiático, Antilhas, Turquia, Sri Lanka, Europa central…

Curar/cuidar de forma plural

A maior parte dos pacientes e famílias é recebida individualmente na presença de um tra-


dutor. Nalguns casos, cada terapeuta recorre a um grupo de co-terapeutas. Apesar de o
trabalho em equipa ser utilizado apenas numa minoria de casos,
144 Moro, 2004.
145 Ver biografia e bibliografia no site
ele é o mais específico à consulta e foi o que mais permitiu ao
www.clinique-transculturelle.org. serviço de Bobigny experimentar novas abordagens terapêuticas.

(166) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Este dispositivo é constituído por um grupo de terapeutas que recebe o paciente e a sua
família (em geral, 10 co-terapeutas). A importância do trabalho terapêutico em grupo
deve-se ao facto de, nas sociedades tradicionais, o indivíduo ser pensado em interacção
constante com o seu grupo de pertença. Além disso, a doença é considerada como um
acontecimento que implica simultaneamente os indivíduos, a família e a comunidade.
Por isso ela é tratada em grupo: seja o grupo social, seja uma comunidade terapêutica.
O tratamento colectivo da doença permite um compromisso entre uma etiologia colectiva
e familiar do mal e uma etiologia individual.

As pessoas que levam as famílias de migrantes à consulta também participam, pelo me-
nos a primeira vez, tendo em conta que são portadoras de um “pedaço da história da
família”. Esta presença evita que o trabalho transcultural seja uma outra ruptura no longo
e difícil caminho das famílias migrantes – muitas vezes com um vasto percurso anterior
de terapias várias.

À parte das funções do modo cultural do atendimento e dos cuidados prestados, da


co-construção de um sentido cultural, o grupo permite também uma materialização da
alteridade e uma transformação desta alteridade em alavanca terapêutica, ou seja de
suporte de elaboração psíquica. A mistura de pessoas, de teorias e de maneiras de fazer é
um factor implícito ao dispositivo.

Para explorar cada caso com precisão, a utilização da língua materna e a tradução entre
duas línguas é aqui fundamental. Uma técnica desenvolvida por Marie-Rose Moro em
conjunto com o linguista S. de Pury Toumi consiste em gravar os encontros terapêuticos,
para depois os fazer traduzir por tradutores não presentes na consulta. Moro chama a
isto “o conhecimento cultural partilhado”, pois o tradutor é convocado a dizer porque
escolhe uma tradução e não outra, sendo que se trata sempre de uma pessoa bilingue.
Este estudo pôs em evidência a importância, para os terapeutas, das associações ligadas
à materialidade da linguagem do paciente, mesmo quando não se compreende o que
diz. Este banho linguístico cria imagens e associações ligadas ao efeito provocado pelas
palavras, ritmos, sonoridades… a interacção faz-se através do sentido mas também com

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (167)


a própria língua e os mundos que ela transporta. Assim, a tradução participa activamente
no processo psicoterapêutico.

Outro aspecto desta consulta de Avicenne é a atenção prestada à “transferência e contra-


-transferência cultural”, por semelhança à transferência/contra-transferência psicanalítica.
Concretamente, no final de cada consulta, o grupo tenta explicitar a contra-transferência
de cada um dos co-terapeutas numa conversa sobre os efeitos da sessão terapêutica.

A transferência traduz-se nas reacções implícitas e explícitas que os pacientes desenvol-


vem em relação ao terapeuta. A contra-transferência reside nas reacções do terapeuta em
relação ao paciente. Há uma dimensão tanto afectiva como cultural destes fenómenos
relacionais. A contra-transferência cultural concerne a maneira como o terapeuta se po-
siciona em relação à alteridade do paciente, e diz respeito às suas maneiras de fazer, de
pensar a doença, a tudo o que faz o ser cultural do paciente… Qual a posição de cada
terapeuta em relação ao modo específico do paciente compreender o seu mal? A resposta
do terapeuta a esta pergunta depende da sua contra-transferência cultural. Esta, por sua
vez, condiciona a capacidade de entrar em relação com o paciente. Trata-se pois de definir
o estatuto epistemológico que se atribui a esta dimensão da relação terapêutica. E de
tomar consciência das pertenças culturais inscritas na história colectiva que impregna as
reacções de cada um. A análise dessa contra-transferência cultural serve para os terapeu-
tas evitarem a passagem a actos agressivos, afectivos, racistas…

2. A consulta cultural do Jewish Hospital em Montreal

O Canadá é um país de imigrantes com uma política e ideologia multiculturalistas. Estas


reflectem-se em esforços desenvolvidos para dar resposta à diversidade cultural também
nos serviços de saúde mental.

O multiculturalismo tornou-se política oficial no Canadá em 1971. Os seus objectivos explí-


citos são manter as línguas e culturas de origem dos seus cidadãos e combater o racismo.
A cultura e a etnicidade são aqui vistas de forma positiva. Consequentemente, a legislação

(168) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


procurou promover o pluralismo e a diversidade nos locais de trabalho e garantir o igual
acesso aos cuidados de saúde. Neste contexto, a psiquiatria cultural centrou a sua aten-
ção nas questões relacionadas com a etnicidade mas acabou por esquecer um pouco a
questão da língua em razão do bilinguismo oficial do país.146

Para colmatar a falta de serviços adaptados às especificidades linguísticas e culturais dos


pacientes canadianos, foi criada a consulta de psiquiatria comunitária e familiar do Hos-
pital Mortimer em Montreal (Jewish Hospital), dirigida por Laurence Kirmayer. O objectivo
foi quebrar as barreiras dominantes sentidas pelos utentes como preconceito ou racismo;
incompreensão; familiaridade linguística e cultural. Estas barreiras ainda não foram ultra-
passadas pelo sistema nacional de saúde canadiano como um todo.

Quatro dos psiquiatras em serviço nesta consulta do Jewish Hospital de Montreal são auto-
res de um artigo científico esclarecedor sobre o contexto cultural dos encontros terapêuticos
com migrantes. Estes autores são também professores e investigadores no Departamento
de Psiquiatria Cultural da Universidade de McGill, na mesma cidade.

A partir da sua experiência clínica e de investigação, estes autores desenvolveram um


modelo de resposta terapêutica junto de populações migrantes. A base teórica deste mo-
delo assenta na atenção cuidada ao contexto cultural dos problemas psiquiátricos e no
reconhecimento da sua centralidade na avaliação clínica de cada caso. As atitudes e as
convicções culturais dominam as perspectivas tanto dos pacientes como dos clínicos, pelo
que é fundamental tomar consciência da sua actualização no encontro terapêutico. À falta
desta consciência compromete-se a aliança terapêutica e a negociação e efectivação da
eficácia dos tratamentos. Na prática clínica, a “competência cultural” é pois uma exigência
desta consulta que procura alargar o seu leque de dispositivos e olhares sobre o sofrimento
psíquico e a cura.

Para dar forma a este modelo culturalmente competente, a equi-


pa de Montreal trabalhou sobre os conceitos e abordagens chave
desta nova prática clínica. Eles são nomeadamente, a cultura, 146 Kirmayer et al., 2000.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (169)


o género através de diferentes culturas, a identidade etnocultural, explicações de doença e
procura terapêutica, formulação cultural, competência cultural.147 Neste resumo, deter-nos-
-emos apenas na competência cultural, por motivos de espaço disponível.

A expressão “competência cultural” designa uma abordagem terapêutica que visa de-
senvolver estratégias adequadas perante uma população culturalmente diversificada.
A competência cultural envolve estratégias tanto culturalmente específicas como genéricas
na resposta aos desafios impostos pela alteridade no trabalho com migrantes. Isto inclui
a capacidade do terapeuta captar a informação cultural relevante no momento do encon-
tro clínico, de compreender como o mundo cultural do paciente e da respectiva família
influencia a doença, e de desenvolver um plano de tratamento que emancipa o paciente
através da validação do seu saber cultural específico.

A competência cultural está relacionada com conhecimentos relativos a grupos culturais


específicos, à sua história, língua, maneiras, estilos de educação, expressão emocional,
interacção interpessoal, explicações culturais da doença e modalidades de cura. É assim
levada a cabo, nesta equipa, a formação cultural e intercultural específica a grupos diver-
sos sem cair contudo no ethnic matching. Procura-se aqui não ceder ao risco de tomar
por garantidos certos aspectos e questões em função da afinidade cultural existente entre
paciente e médico, ou de tabus partilhados entre ambos. Também se evita a confusão
entre proximidade cultural e amizade, favor ou intervenção inapropriada.

Na sua formação profissional cultural, os clínicos são pois distanciados da sua cultura de
origem e tornam-se relutantes em fazer uso do seu conhecimento cultural tácito. Há uma
hipervigilância em relação aos pontos de referência cultural de partida e uma combinação
de saberes e estratégias de tratamento: diagnósticos e métodos tradicionais podem ser
associados a tratamentos psiquiátricos convencionais. O clínico
147 As referências bibliográficas sobre pode comportar-se de forma diferente em função de cada caso.
esta matéria são extensas. Procurar no Também é tida em conta a percepção que os pacientes têm do
sítio do departamento de psiquiatria
cultural da McGill na Internet: http://
quadro institucional da consulta. O coração da competência a
www.mcgill.ca/tcpsych/publications adquirir é, pois, a compreensão a desenvolver pelo clínico sobre

(170) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


as suas próprias representações, muitas delas relacionadas com a etnicidade, religião,
classe, formação médica de base, e contexto de prática clínica. O terapeuta culturalmente
competente tem um sentido agudo daquilo que não sabe, e um respeito sólido pela dife-
rença. Deve tolerar a ambiguidade e incerteza associadas ao seu não saber. É que, no final
das contas, os pacientes são os que mais sabem sobre o seu universo.

A grande variedade de competências a adquirir pelos clínicos culturais leva estes últimos
a trabalhar em equipas multidisciplinares. Uma grande diversidade de modelos de traba-
lho em grupo tem sido desenvolvida por clínicos desta consulta e colaboradores. Cécile
Rousseau e Jaswant Guzder são duas psiquiatras do Jewish Hospital que têm aplicado
estratégias particularmente criativas (nomeadamente com terapia artística). Como a pró-
pria Rousseau afirma, o trabalho clínico em psiquiatria cultural é um messy work (trabalho
desordenado), que foge às convenções e desafia a criatividade dos clínicos e pacientes.

3. A consulta do migrante no Hospital Miguel Bombarda

A “Consulta do Migrante” iniciou o seu trabalho no ano de 2004, no Hospital Miguel Bom-
barda em Lisboa, por iniciativa do Núcleo de Psicologia e Psiquiatria Transcultural fundado
pela psiquiatra Inês Silva Dias. Durante o seu tempo de funcionamento (de Julho de 2004
a Dezembro de 2007) contou com utentes oriundos de uma grande variedade de países,
recebendo imigrantes de primeira e segunda geração em Portugal, e filhos de emigrantes
portugueses retornados. Alguns dos países de origem dos utentes registados foram: An-
gola, Cabo-Verde, Guiné, São Tomé, África do Sul, Brasil, Argentina, Venezuela, Espanha,
Itália, Ucrânia, Moldávia, Roménia, Rússia, Albânia, Bangladesh, Paquistão e China.

Este serviço representou uma iniciativa pioneira em Portugal de prestação de um serviço


clínico para imigrantes. Nos seus objectivos de partida, pretendia incluir nos mecanismos
de interpretação e resolução dos problemas a dimensão cultural do sofrimento. A equipa
foi constituída a partir dos interesses comuns de alguns membros do Núcleo Português
de Psicologia e Psiquiatria Transcultural, com experiência internacional de trabalho (Ma-
cau, Bélgica, França, Suécia, EUA), ou de origem estrangeira (Chile). Do conjunto dos

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (171)


sete terapeutas oficiais da consulta, nenhum tinha formação especializada em psiquiatria
transcultural, etnopsiquiatria ou clínica intercultural, o que fez deste serviço um campo de
experimentação de um saber técnico em aprendizagem. As duas antropólogas que partici-
param das consultas, respectivamente desde 2004 e 2005, deixaram de o fazer em 2006,
por decisão da nova direcção entretanto eleita.

Sem modelo de partida, as consultas eram feitas pelos psiquiatras uma vez por semana no
hospital, reunindo-se a equipa em reuniões clínicas, teóricas e administrativas. Em 2006,
as reuniões clínicas passaram igualmente a ser vedadas aos membros que não cumpriam
funções institucionais no hospital. Permaneceram as reuniões administrativas e teóricas
acessíveis ao grupo alargado composto pelos técnicos de saúde da consulta, por três
antropólogos, um psicopedagogo, e dois psicólogos exteriores ao hospital. A direcção da
equipa abriu, entretanto, as portas das reuniões teóricas a todas as pessoas interessadas
do grande público. Estas reuniões teóricas consistiram na leitura e discussão de textos de
antropologia médica, etnopsiquiatria, psiquiatria cultural e estudos culturais e históricos
sobre “povos do mundo”.

A política de encerramento da consulta aplicada ao longo do ano de 2007 acompanhou


as reformas governamentais do serviço nacional de saúde que encerrou a “Consulta do
Migrante” e fundiu o Hospital Miguel Bombarda com o Hospital Júlio de Matos. Os psicó-
logos contratados foram dispensados e a consulta é agora suposta migrar para um serviço
exterior ao hospital (intenção manifesta da direcção deste serviço específico).

A fragilidade administrativa, teórica e prática desta iniciativa-piloto deve ser compreendida


no contexto mais vasto da recente história de imigração em Portugal e da formação tradi-
cional dos técnicos de saúde mental nacionais. De forma importante, de facto, a viragem
histórica dos anos 70 em Portugal trouxe ao quotidiano das relações interpessoais entre
ex-colonizados e ex-colonizadores o convívio e sobreposição de formas de identidade demo-
crática e comunitária com a herança colonial do passado. A questão da diferença cultural
dos migrantes, nesta perspectiva, não apenas traz à análise, em contextos clínicos como
a “Consulta do Migrante”, a problemática da cultura, mas mergulha à partida o trabalho

(172) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


intercultural na dimensão histórica e política subjacente às relações entre povos com um
passado comum (Sayad, 1999). A diversidade cultural é, ela própria, um problema político
por excelência, tendencialmente hierarquizado e massificado através dos meios de comu-
nicação, das imagens de “nós” e dos “outros” (Taliani, 2006). Razão pela qual qualquer
dispositivo terapêutico se revela ineficaz quando não inserindo as experiências privadas
dos imigrantes no contexto mais vasto da história e da política, como tendem a fazer os
técnicos sem formação/sensibilização antropológica.

No caso dos “novos encontros”, por sua vez, entre imigrantes oriundos de países distantes
deste passado colonial, como são os imigrantes da Europa de Leste, o encontro com a di-
versidade aponta antes para a aprendizagem de um futuro comum que dependerá da forma
como o presente histórico reconhece o papel social de uns e de outros e concebe a relação
entre as duas partes. A dimensão histórica e política, neste caso, parece esclarecer os encon-
tros entre migrantes e hóspedes sobre a existência de uma necessidade de relação orientada
por e para um fim comum. O presente histórico surge como uma oportunidade (mais ou
menos utópica) de correcção dos erros do passado na construção de novos alicerces para a
convivência. O futuro permite vislumbrar um horizonte orientador da memória antiga que se
procura salvar da história de violência do passado. O mesmo se pode aplicar à própria cola-
boração profissional entre médicos e cientistas sociais, ainda sem tradição em Portugal.

Se os “reencontros” no contexto migratório podem dificultar (quando não impossibilitam)


esta vida em comum, em consequência das marcas da violência do passado colonial, os
“novos encontros” podem permitir a gestação de novas formas de convivência e a constru-
ção de regras comuns aplicáveis a todos. Estas últimas dependem, claro está, de questões
geopolíticas e diplomáticas mais vastas que se subordinam menos aos peões da história
– neste contexto, os imigrantes e os cidadãos hóspedes – e mais aos grandes interesses
políticos e económicos dos países e Estados.

Na prática, no próprio terreno da consulta se constatou a existência de uma desigualdade


de partida difícil de ultrapassar entre os utentes imigrantes e os operadores domésticos.
Na “Consulta do Migrante”, essa desigualdade pareceu atenuada nos casos acompanha-

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (173)


dos por terapeutas também eles “estrangeiros”. De facto, é de realçar o papel das duas
psicólogas chilenas, membros oficiosos da equipa hospitalar. Os pacientes seguidos por
estas terapeutas testemunharam um sentimento de maior proximidade, que se explica
pela partilha de uma diferença mais óbvia, nomeadamente do ponto de vista linguístico.
Os sotaques, neste caso, ajudaram a aproximar os utentes dos técnicos.

Também a relação diferenciada em função dos estatutos e competências específicas dos


técnicos da consulta – se eram médicos, psicoterapeutas ou enfermeiros (bem como com
a antropóloga) – coloriu de tonalidades diferentes os sentidos atribuídos pelos utentes
ao encontro terapêutico. Estas diferenças tiveram consequências relevantes no percurso
subsequente de procura de ajuda por parte dos migrantes (health-seeking behaviour) e na
evolução das razões de partida que os motivaram a recorrer à consulta. O que se observa
a este propósito é que uma hierarquização e medicalização (esta última implicando muitas
vezes a primeira) do sofrimento conduzem a uma maior estigmatização dos utentes, e a
uma autopercepção desvalorizante que alimenta uma desigualdade estrutural entre presta-
dores de serviços de saúde e imigrantes consultantes.

Como constatado noutros serviços de apoio a imigrantes na Europa e América do Norte,


com muita frequência o desajuste entre os universos de pertença e referência entre clínicos
e migrantes conduz a um abandono destes serviços por parte dos segundos (Beneduce,
2005). Por essa razão, a continuidade do trabalho terapêutico fica comprometida, sendo
de notar que o grau de investimento de interesse por parte dos clínicos é inversamente
proporcional ao seu grau de patologia do sofrimento dos imigrantes. Cada caso torna-se,
ao olhar dos próprios médicos, igual a todos os casos categorizados segundo os cânones
ocidentais tidos como verdade científica incontestável. Cada pessoa torna-se, assim, ra-
pidamente numa patologia, sendo que paradoxalmente, quando analisadas as “histórias
clínicas” de pacientes em psiquiatria, se verifica uma multiplicidade de diagnósticos e de
terapêuticas farmacológicas aplicadas.

O contacto próximo com os utentes da consulta, bem como o acompanhamento das


reuniões clínicas e teóricas da equipa hospitalar, permitiu constatar como o mal-estar

(174) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


dos imigrantes pode ser entendido como um sintoma mais vasto do mal-estar da nossa
sociedade. Da mesma forma, o sofrimento expresso nos idiomas culturais específicos dos
imigrantes revela-se um verdadeiro desafio ao saber hegemónico da medicina ocidental.
O trabalho de terreno com imigrantes num contexto clínico aponta assim para um campo
de acção e reflexão em movimento. Este caracteriza-se por uma epistemologia provisio-
nada e um questionamento metodológico permanentes, cuja aceitação (teórica e prática)
não deve representar uma fonte de ineficácia mas, antes pelo contrário, uma condição de
enriquecimento e de adequação à realidade complexa.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (175)


CAPÍTULO 10.
REFUGIADOS E REQUERENTES DE ASILO148:
ABORDAGENS ANTROPOLÓGICAS NO CAMPO
DA SAÚDE FÍSICA E MENTAL

C R I S T I N A S A N T I N H O149

La única cosa sensata que se puede decir sobre la naturaleza humana es que está “en” esa
misma naturaleza la capacidad de construir su propia historia.
Lewontin, Rose Y Kamin [1990]

O propósito deste texto é discutir a incorporação da condição de “não-pertença” entre os


refugiados e requerentes de asilo em Portugal, tanto na perspectiva sociocultural, como
na perspectiva da antropologia médica150. Em particular, pretendemos abordar o modo
como os refugiados e requerentes de asilo lidam com a doença,
148 Entende-se por “requerentes
o sofrimento físico e mental, o acesso ao Sistema Nacional de de asilo” todos os que entrando em
Saúde e a forma como perspectivam o seu futuro em Portugal. território nacional, ainda estão depen-
dentes de uma decisão definitiva por
parte do SEF (Serviço de Estrangeiros
É pouco frequente no nosso país orientarmos a investigação e Fronteiras), relativa ao seu pedido
para grupos numericamente tão pouco significativos, como é de reconhecimento de estatuto de
refugiado. Esta decisão pode tardar
aparentemente o caso dos Refugiados e Requerentes de Asilo. meses ou até anos.
Até agora, as grandes preocupações, em particular no campo da 149 Doutoranda em Antropologia pelo
Departamento de Antropologia do
saúde, têm vindo a dedicar-se aos imigrantes (documentados ISCTE e bolseira da Fundação para a
e indocumentados) que fazem já parte, indiscutivelmente, da Ciência e Tecnologia (FCT).
150 Nas últimas décadas, a definição
estrutura social e cultural do nosso país.
de “antropologia médica” não tem sido
linear e uniforme, tendo-se inclusive
A situação portuguesa no que diz respeito ao número de pedi- subdividido em diferentes áreas, como
por exemplo a etnomedicina, ou a
dos de asilo contrasta com os outros países da União Europeia, antropologia do corpo. Neste texto, en-
particularmente com a vizinha Espanha ou mesmo França. Em tendemos “antropologia médica”, não

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (177)


Portugal, em média, existem apenas uma ou duas centenas de pedidos de asilo por ano,
um pequeno número em comparação com os outros países europeus. Na consulta efectu-
ada aos registos estatísticos do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) relativos ao ano
de 2007151, haviam pedido asilo em Portugal 227 indivíduos, dos quais destacamos a títu-
lo de exemplo os seguintes números: Colômbia: 86; Somália: 21; Bósnia Herzegovina: 16;
Guiné-Conacri: 14; República Democrática do Congo: 11; Afeganistão: 7. Importa contudo
destacar que destes 227 requerentes de asilo, apenas 84 foram admitidos à segunda fase
do procedimento. Em 2007, foram somente concedidas 25 autorizações de residência por
razões humanitárias e um único estatuto de refugiado.

Para podermos ainda perspectivar o número de entradas comparativamente a outros pa-


íses europeus de menores dimensões, podemos referir que tanto Malta como a Lituânia
têm não só mais pedidos como também um maior número de refugiados.

São várias as razões apontadas para este fenómeno. Desde logo a posição geográfica de
Portugal em relação à Europa, o facto de não possuir fronteiras com o Mediterrâneo, a au-
sência de rotas aéreas directas provenientes dos países de onde os requerentes de asilo se
libertam, e ainda a presente situação económica do país, com escassa empregabilidade,
são alguns dos factores que condicionam a procura preferencial de Portugal como país de
asilo. Relativamente a este ponto, interessa referir que os refugiados e requerentes de asilo
por mim entrevistados, relativamente às razões que os levaram a vir para Portugal e não
para outro país europeu, referiram que apenas tinham decidido vir para a Europa, sendo
que o facto de se encontrarem em Portugal se deveu sobretudo ao acaso. Esta justifica-
ção era dada preferencialmente por aqueles que escolheram o
só como uma disciplina que aborda as
questões da saúde, mas principalmente
transporte marítimo (clandestino) como meio de fuga. Outros
que as contextualiza num panorama referem que a escolha se deveu em primeiro lugar ao facto de o
mais amplo da cultura, da sociedade,
país vizinho ao seu ter fronteiras com as ex-colónias portuguesas
da economia e da política.
151 Fontes: http://www.refugiados. e portanto existirem voos directos entre esses países terceiros e
net/cidadevirtual/estatisticas/ Portugal, e em segundo lugar por terem referências da história
pa_2007.html; “Relatório de
Actividades do SEF, Imigração,
de Portugal, ouvidas nos bancos da escola. São ainda mencio-
Fronteiras e Asilo”. nados vários casos que apontam para uma decisão de vinda

(178) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


para Portugal, tomada não pelos próprios mas por redes organizadas nos países emisso-
res que os “ajudam” a iniciar o percurso de viagem. São estas redes que providenciam
documentos e bilhetes de viagem a alguns refugiados. Sobre este aspecto, importa desde
já salientar aqui que, ao contrário dos imigrantes, a saída do seu país nunca é uma saída
pacífica e muito menos planeada. Normalmente, é feita sobre ameaça eminente e súbita
de morte, o que evidentemente não permite na maior parte dos casos a ida a casa para
preparar documentos de identidade ou passaporte. São vários os exemplos de países onde
estes documentos nem sequer são fáceis de obter oficialmente.

Um número tão pouco expressivo de refugiados em Portugal origina um enorme desco-


nhecimento na sociedade portuguesa sobre o que significa ser refugiado ou requerente
de asilo, implicando também um escasso debate social e político sobre esta condição. Ao
contrário dos temas relacionados com a imigração, que ocupam diariamente os noticiários
televisivos e as páginas de jornais, o tema dos refugiados apenas recebe honras de referên-
cia nas datas mais significativas, como é o caso da recente comemoração do “Dia Mundial
do Refugiado” (20 de Junho) nas instalações do Centro de Acolhimento de Refugiados
(CAR) – CPR152, que receberam a visita do Presidente Cavaco Silva acompanhado de uma
vasta comitiva de figuras políticas e públicas.

Como consequência desta inexpressividade demográfica, acabam por ser remetidos para
a quase invisibilidade social, não possuindo na prática uma identidade que os torne um
grupo socialmente reconhecido e muito menos com carácter reivindicativo. Ao contrário do
que acontece com a população imigrante, que se vê representada num número bastante
significativo de associações – segundo os dados disponíveis no sítio do ACIDI na Internet,
só as associações reconhecidas em Portugal são mais de 100 – os refugiados não pos-
suem qualquer estrutura associativa criada pelos próprios. Assim, carecem de organismos
que garantam aquilo que J. Sardinha (2007) designa como “sa-
tisfação colectiva dos seus membros, de modo a conduzir as 152 O Centro de Acolhimento de
suas acções e reivindicações (…)” e que simultaneamente lhes Refugiados pertence ao Conselho
Português de Refugiados, ONGD repre-
reforcem o sentido de pertença, a par de lhes garantirem um re- sentante do ACNUR (Alto Comissariado
conhecimento político face às suas reivindicações e ao exercício das Nações Unidas) em Portugal.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (179)


dos seus direitos e deveres de cidadania – o que só agudiza a sua condição de marginali-
dade e invisibilidade face ao sistema social. No caso dos refugiados e dos requerentes de
asilo, não podemos contudo afirmar que constituam um grupo único ou uma categoria
– termo este que segundo Goffman (1998) é perfeitamente abstracto e pode ser aplicado
a qualquer agregado, referindo-se por vezes a pessoas submetidas a uma “estigmatização
social” em sentido estrito, como acontece com a maior parte das associações de imi-
grantes que se formam em torno de uma reivindicada pertença étnica. A criação de uma
associação representativa dos refugiados enquanto tal teria que enfrentar desde logo a
incontornável diversidade dos seus membros, para além da necessidade de encontrar um
património material e simbólico que permitisse uma interacção mútua.

Mas para que se perceba o verdadeiro sentido do que significa ser refugiado ou reque-
rente de asilo, e em que medida sê-lo é efectivamente diferente de ser imigrante, temos
de esclarecer o que se entende por este estatuto. Em 1951, foi eleito pela primeira vez
na Assembleia-Geral das Nações Unidas o Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR).

Foi então assinada a convenção relativa aos refugiados, que viria a estabelecer os seus
direitos e deveres em matéria de emprego, educação, residência, liberdade de circulação,
acesso aos tribunais e acima de tudo segurança contra o regresso ao país que os perse-
guiu, bem como as obrigações dos Estados perante eles, estipulando também padrões
internacionais de tratamento. Nessa convenção, o artigo 1.º define o termo “refugiado” da
seguinte maneira: [Qualquer pessoa] (…) receando com razão ser perseguida em virtude
da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões
políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa, ou em virtude
daquele receio, não queira pedir protecção daquele país…153

Não abordando aqui a especificidade dos “imigrantes econó-


micos e ou ambientais” que necessitam de sair do seu país
153 Consultar: “A situação dos refu-
giados no Mundo. Cinquenta anos de
por razões de sobrevivência associada à extrema pobreza ou à
Acção Humanitária”, ACNUR, 2000. escassez de recursos que lhes permita o acesso às fontes ali-

(180) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


mentares (este assunto, apesar da sua importância, não se enquadra aqui), o que significa
em concreto esta definição de refugiado? Como poderemos nós definir o seu perfil, ou
mais exactamente “perfis”, e como se definem a eles próprios? Quais são as suas narrati-
vas, a sua história de vida? E ainda, qual a relação entre a legislação relativa à protecção
da sua saúde e a história dos seus sofrimentos tantas vezes incompreendidos?

Em Portugal, existem duas organizações que assumem a de-


fesa dos interesses dos refugiados. Uma delas, internacional 154 Em traços gerais, do ponto de
e de carácter religioso, o Serviço Jesuíta dos Refugiados (JSR) vista da antropologia, “trabalho de
campo” significa, desde Malinowski,
e a outra, o Conselho Português para os Refugiados (CPR),
um conjunto de métodos de recolha
constituída como Organização Não Governamental para o De- e análise de dados. A observação
senvolvimento (ONGD) e fundada em 1991. Esta última é participante, os estudos de caso, as
histórias de vida, as entrevistas em
a única representante do ACNUR em Portugal e dá abrigo a profundidade, os questionários e o
todos os requerentes de asilo que dão entrada no país, pro- registo do observado em cadernos de
campo são, entre outras, algumas das
venientes de regiões tão diferentes como: Costa do Marfim,
ferramentas utilizadas pelos antropó-
Myanmar, Somália, Líbano, Colômbia, Albânia, Palestina, Etió- logos que têm vindo paulatinamente
pia, Sri Lanka, Afeganistão, Congo, Turquia, para nomear apenas a ser utilizadas por outras ciências
humanas, nomeadamente a sociologia
alguns exemplos. e a psicologia social.
155 O termo “observação
participante” foi usado pela primeira
A pesquisa que está na base deste artigo reflecte uma metodo- vez por Eduard Lindeman em 1924,
logia antropológica que tem por base o trabalho de campo154 e era por ele entendido como a
incorporação de um entrevistador
que tenho vindo a efectuar no contexto do CPR desde o início
num determinado grupo, de prefe-
de 2007 junto dos refugiados e requerentes de asilo, mas que rência sem interferir nas actividades
também contempla entrevistas efectuadas quer aos médicos do quotidianas (Céfaï, Daniel; 2003).
No caso experienciado pela autora,
Centro de Saúde da localidade onde se situa o CAR (Bobadela) esta observação participante levada
e aos psiquiatras que os atendem – no contexto do Hospital Júlio a cabo no momento da consulta do
refugiado, era a única forma (apesar
de Matos ou do consultório privado – quer aos técnicos respon-
de discutível) de permitir, aos próprios,
sáveis pelas várias vertentes do acolhimento no CPR. Podemos serem compreendidos pelo médico.
também afirmar que uma boa parte da pesquisa tem incluído A opção pela não interferência, poria
em causa a comunicação médico/
“observação participante”155, realizada aquando do acompa- /paciente, pela existência de barreiras
nhamento dos refugiados ao consultório do médico de clínica linguísticas intransponíveis.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (181)


geral, assim como à consulta de psiquiatria, com o objectivo imediato de traduzir as suas
aflições, expressas em francês ou inglês, para o português, e vice-versa (das orientações
dadas pelo médico em português, para os idiomas de recurso usados pelos refugiados),
tornando possível uma melhor interpretação da informação clínica dada pelo médico.
Grande parte do trabalho de campo tem-se desenrolado tendo como cenário preferencial o
Centro de Acolhimento de Refugiados (CAR) da Bobadela, tal como referimos anteriormen-
te. O CAR, pelas suas características de abrigo da diversidade cultural e linguística, pode-se
considerar aquilo que Marc Augé (2005) denominou um “não-lugar”: “Os não-lugares são
tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e dos bens (…) como
os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de
trânsito prolongado onde são arrebanhados os refugiados do planeta.” No caso do CAR,
julgamos poder afirmar que se o lugar de residência e abrigo dos requerentes de asilo é
estável, os próprios residentes – requerentes de asilo – não o são, uma vez que apenas aí
podem permanecer por alguns meses. Nas palavras de um requerente de asilo: “a única
coisa que é comum a todos nós aqui no centro é o sofrimento”. Nesta não-comunidade,
nesta “Torre de Babel”, diferentes aspectos relacionados com a saúde física e mental
acabam por surgir.

Começámos por dizer que, quando um refugiado pede asilo em Portugal, nem sempre sabe
que chegou a este país. Isto significa que por trás da cada história de vida de um homem,
mulher, ou criança (alguns deles são crianças e jovens desacompanhados), não existe
só a fuga desesperada e não planeada a guerras e conflitos armados e uma experiência
traumática de perseguição, tortura e violência (sobre o próprio ou sobre membros da sua
família ou comunidade). Existe também, por vezes, uma viagem de fuga clandestina, feita
em barcos ou camionetas com condições deploráveis, expostos a situações de extrema
vulnerabilidade – como abusos sexuais, violações, confinamento em espaços minúsculos
e sem acesso à luz solar, humilhações e ameaças – em troca de um pedaço de comida e
a promessa de chegada a qualquer porto de abrigo.

Uma vez chegados a Portugal – nos casos com mais êxito, que são aqueles que através
da sua história e comportamento, por vezes marcado com as cicatrizes da tortura no

(182) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


próprio corpo, conseguem convencer o SEF da veracidade da sua história – são então
encaminhados para o CPR, onde permanecerão por alguns meses, no Centro de Aco-
lhimento aberto – significando que podem sair e entrar sempre que desejem, sendo
“apenas” confinados pelas suas próprias limitações relativas ao desconhecimento do
espaço geográfico, da língua, da sociedade – até que o seu estatuto seja finalmente
reconhecido. Ou nalguns casos, quando esse reconhecimento é recusado, o processo
passa a ser arrastado na lentidão dos tribunais após a interposição de recurso, o que
pode prolongar-se em anos de indecisão e sofrimento (uma espécie de limbo malévolo,
onde nem existe direito legal a apoio financeiro). Estes pedidos desesperados de asilo são
invariavelmente confrontados com um aparelho burocrático, político e geoestratégico que
visa avaliar, até quase à exaustão, a veracidade dos factos descritos pelo requerente, não
raramente em idiomas e códigos culturais e simbólicos difíceis de entender por ambas
as partes envolvidas.

O Centro de Acolhimento da Bobadela é considerado a nível internacional como um centro


modelo, não apenas pelas boas condições logísticas, mas sobretudo pelo apoio que aí é
prestado, que tem em conta, dentro do possível, a especificidade de cada refugiado ou
requerente de asilo e que se traduz em acolhimento residencial, apoio alimentar, banco
de roupa, apoio jurídico e financeiro, ensino da língua portuguesa, e assistência à saúde.
A este último respeito, é feito desde logo o encaminhamento para
um rastreio elementar de saúde junto a um dos parceiros do 156 O CAVITOP foi fundado em 2002
centro, designado “Consulta do Migrante”, através do Projecto pelo cirurgião Gentil Martins e é consti-
tuído maioritariamente por psiquiatras
“Epimigra” (sediado no Instituto de Higiene e Medicina Tropical e psicólogos. Teve como objectivo
– Universidade Nova de Lisboa), ou em caso de necessidade prioritário prestar acompanhamento às
vítimas de tortura de ex-combatentes
manifestada pelos próprios refugiados, para os Serviços de Saú- da guerra colonial portuguesa. No con-
de Pública, tais como o Centro de Saúde da Bobadela, hospitais junto de psiquiatras que constituem
em caso de urgência ou, em situações consideradas pelos téc- o CAVITOP, destacamos o Prof. Dr.
Afonso de Albuquerque e o Prof. Dr.
nicos do CAR como “particularmente difíceis do ponto de vista António Bento que atendem ainda hoje
psicológico”, encaminhamento para médicos psiquiatras com refugiados encaminhados pelo CPR
– não no contexto físico do CAVITOP,
parcerias estabelecidas pelo CPR – como é o caso do CAVITOP mas das instalações onde cada um
– “Centro de Apoio às Vitimas de Tortura em Portugal”156. exerce a sua profissão.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (183)


Tal como referi anteriormente, a minha pesquisa tem vindo a ser realizada em grande parte
com base na recolha de histórias de vida e em entrevistas aos refugiados residentes no
CAR assim como já fora da instituição, com particular atenção à recolha de depoimentos
sobre o momento traumático da perseguição e fuga, a percepção sobre o seu estado de
saúde mental e físico e as suas expectativas relativamente à vida em Portugal.

Por outro lado, tenho vindo também a aplicar entrevistas aos técnicos que atendem direc-
tamente os refugiados no Centro de Acolhimento, bem como aos médicos de família, de
saúde pública e psiquiatras que os consultam esporadicamente – quando existe suspeita
(por parte dos técnicos) de um trauma que os impede de funcionarem dentro da “norma-
lidade esperada”.

Ao contrário do que acontece com a maioria dos imigrantes – que depositaram no percurso
migratório uma esperança sonhada e previamente preparada ao pormenor (às vezes com
a participação e solidariedade de toda a família), e com a vantagem de poderem usufruir
de redes sociais e culturais já estabelecidas – os refugiados, pelo contrário, são arrancados
do mundo que sempre conheceram para reiniciarem e se reinventarem a si próprios numa
nova existência, em contextos culturais, sociais, linguísticos e por vezes religiosos muito
distintos dos seus, com códigos que não dominam e numa sociedade que dificilmente
reconhece o seu percurso, a sua identidade e o seu sofrimento.

Também diferentemente do que acontece com os imigrantes indocumentados, não exis-


tem aparentemente entraves de qualquer espécie, do ponto de vista legislativo e jurídico,
no acesso à saúde por parte dos Refugiados e Requerentes de Asilo, que vem salva-
guardada pela portaria n.º 30/2001 (Ministério da Administração Interna e da Saúde)
a assistência médica e medicamentosa, desde a apresentação do pedido de asilo até
à sua resolução final. Esta assistência é prestada nas mesmas condições em que se
encontram os cidadãos nacionais, e com isenção do pagamento de taxas, incluindo
também os cuidados de especialidades: oftalmologia, estomatologia, otorrino, saúde
mental, internamentos, reabilitação, etc., para isso bastando “apenas” a apresenta-
ção de comprovativo de apresentação de pedido de asilo ou autorização de residência

(184) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


válidos157. Apesar deste processo ser aparentemente fácil porque salvaguardado por lei,
na prática o processo é muito mais complicado, sobretudo nos casos em que o reque-
rente de asilo ou refugiado já não se encontra debaixo da jurisdição geográfica do Centro
de Saúde da Bobadela. Fora deste centro, os técnicos administrativos dos serviços de
saúde parecem desconhecer a validade dos documentos apresentados, comunicando
aos refugiados a obrigação de pagar avultadas quantias por uma consulta ou intervenção
médica de urgência.

Se bem que a salvaguarda dos direitos jurídicos de protecção humanitária dos refugiados
e requerentes de asilo – incluindo o acesso à saúde, como acabo de mencionar – esteja
sem dúvida legalmente salvaguardada em Portugal, o mesmo não se pode de todo afirmar
relativamente ao problema dos cuidados especificamente orientados para a saúde mental.
Porque esta última depende não apenas de um ou outro aspecto jurídico – por vezes em
si factores de distúrbio, pela morosidade do processo de decisão – mas também de outras
causas bastante mais abrangentes de nível económico, social e linguístico que sem dúvida
contribuem para um perfil de angústia e depressão.

Na maioria das entrevistas aplicadas aos médicos que acompa-


nham os refugiados e requerentes de asilo, salientamos duas
157 Recentemente foi aprovada na
situações: Assembleia da República, promulgada
e referendada pelo Presidente da
República e pelo Primeiro-ministro,
a) No que diz respeito à consulta no Centro de Saúde da
no dia 20 de Junho (Dia Mundial do
Bobadela (que cobre a área onde se situa o Centro de Refugiado), a lei n.º 27/2008 de 30
Acolhimento) os entrevistados não hesitam em afirmar de Junho que estabelece a garantia
da assistência médica e medica­
que a maior parte das queixas apresentadas pelos refu- mentosa aos requerentes de asilo e
giados são do foro psicossomático: dores de estômago, membros da sua família e o acesso
ao Serviço Nacional de Saúde
insónia, ansiedade, dores musculares, problemas der-
(capítulo VI, secção I, artigo 52).
matológicos, dificuldade de concentração, nervosismo, Já no capítulo VII, artigo 73, é garanti-
estado de permanente alerta. Estes sintomas são tam- do aos refugiados e membros da sua
família o acesso ao Serviço Nacional
bém corroborados pelos técnicos do CAR – CPR que de Saúde, nas mesmas condições dos
para lá os encaminham. cidadãos nacionais.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (185)


b) Nos casos considerados pelas assistentes sociais do CAR como mais graves, por-
que implicam (segundo descrições apresentadas por estas técnicas) agressividade,
ansiedade extrema, pesadelos, isolamento constante ou ameaça física (tentativa de
fogo posto ou ameaça de suicídio por exemplo), os refugiados são encaminhados
para os médicos psiquiatras que os atendem pontualmente, raramente regressan-
do à consulta após terem obtido a primeira receita médica (segundo testemunho
dado pelos próprios médicos).

Tanto numa situação como noutra, salientamos que o primeiro grande entrave colocado à
comunicação e ao diálogo entre médico e refugiado é, na maioria das vezes, um entrave
linguístico. Esta questão, no meu ponto de vista primordial, em particular quando se trata
de problemas psíquicos causados por perseguição ou tortura, foi por mim testemunhada
várias vezes no acompanhamento dos próprios refugiados às consultas. Nem sempre os
médicos falam em francês ou em inglês, e na maioria das vezes os requerentes de asilo,
para além de não dominarem ainda o português básico, utilizam estes idiomas apenas
como recurso incipiente, pois a sua língua materna é frequentemente um dialecto lo-
cal do país de origem158. Este facto dificulta consideravelmente um atendimento mais
personalizado e específico aos refugiados, que tenha em conta as suas necessidades.
O desconhecimento da língua, a ausência de referentes culturais imediatamente compreensí-
veis, o desconhecimento do sofrimento e da aflição que originou
158 Foi-me dito recentemente que um a sua história enquanto refugiado, a ausência de uma identida-
dos médicos psiquiatras, no momento
de reconhecida, o isolamento e a angústia perante um futuro
da consulta, não se terá apercebido
que o requerente de asilo que estava próximo completamente incerto, e até uma diferente percepção
a atender, e a quem se dirigia em dos significados de saúde, doença e corpo fazem do refugia-
francês, nem sequer dominava essa
língua. A confusão instalou-se pelo
do um paciente específico, que necessita de muito mais que
facto de o dialecto usado pelo os serviços generosamente prestados pelo Serviço Nacional de
requerente de asilo ser o ngala
Saúde: um comprimido apaziguador dos seus sofrimentos. No-
(falado nalgumas regiões do Congo
e em Angola), que apenas possui tamos que é frequentemente referida pelos médicos a adopção
algumas palavras em francês, desta solução terapêutica – a prescrição de antidepressivos,
não sendo portanto suficiente para
haver um mínimo entendimento
ansiolíticos e sedativos – no sentido de apaziguar as suas in-
entre médico e paciente. terpretadas queixas. Se existem controvérsias sobre a aplicação

(186) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


deste tipo de terapia – tal como refere Hackett e Hackett (1999): “a validade do diagnóstico
é se ajuda o paciente, e não se está conforme as irreconciliáveis posições dos antropólogos
médicos e universalistas” – no caso de Portugal essa situação nem se coloca, uma vez
que não existe um acompanhamento estruturado e continuado pelos serviços de saúde
ao paciente.

Defendo portanto a posição de que um refugiado não é um doente mental comum, tal
como é aparentemente encarado pelo SNS, mas alguém que foi vítima de um contexto
de conflitos armados, guerras, tortura física e psicológica e que acaba também por ser
vítima de um processo que, apesar da provável boa vontade dos médicos que os aten-
dem em consulta, compactua com a falta de respostas adequadas à sua situação social
em Portugal.

Segundo as palavras de um dos médicos de família do Centro de Saúde,

o principal problema é estarem desinseridos numa sociedade que não é a deles. (…) A maior
parte tem problemas psicológicos graves, são indivíduos que não estão integrados, e por-
tanto qualquer coisa que os atinja do ponto de vista físico toma proporções maiores do que
aquelas que normalmente têm. Eu acho que os principais problemas são psicológicos mais
do que físicos.

Referindo ainda a ausência de um diagnóstico adequado devido ao problema da compre-


ensão da língua, referia um dos médicos psiquiatras:

De facto o diagnóstico [de PTSD], não é tudo. Há aquilo que nós chamamos pessoas que
sofrem, mas que não atingem os parâmetros para se fazer o diagnóstico. Não quer dizer que
não estejam em sofrimento e também não quer dizer que não precisem de ajuda psicológica. E
sabe que a questão do diagnóstico é sem dúvida importante do ponto de vista da necessidade
que nós temos de classificar as pessoas. Agora, há muitas pessoas que não se podendo fazer
o diagnóstico, mesmo assim estão em sofrimento e mesmo assim, deveriam estar a ser acom-
panhadas e a ser tratadas individualmente… e por outro lado os que têm vindo [à consulta]
são poucos e, mesmo estes, há quebras de comunicação [com o CPR] e eu depois não sei o
que se passa, não sei de nada.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (187)


Ambos os depoimentos revelam nitidamente uma ausência de articulação devidamente
estruturada entre o Serviço Nacional de Saúde, o CPR e o CAVITOP tendo como eixo de
intervenção os refugiados e requerentes de asilo. Apesar da boa vontade de todas as
instituições e profissionais envolvidos, os apoios no domínio da saúde física e mental são
pontuais, desarticulados e sobretudo feitos (ao nível da intervenção dos profissionais de
saúde) sem grande vontade ou possibilidade de um verdadeiro conhecimento do Outro.
Porque o paciente é encarado como se fosse uma tábua rasa, sem história, sem identi-
dade, sem referentes culturais e principalmente sem uma narrativa do trauma provocada
pelas perseguições e eventuais torturas no país de origem e durante a viagem – que foram
sem dúvida, para além de particularidade de qualquer contexto cultural, o leitmotiv do
seu sofrimento.

Mais do que a necessidade de aplicar aos refugiados e requerentes de asilo um sistema


nosológico baseado em biopolíticas do corpo ou da mente, em face da actual inter-
venção que é feita no domínio da saúde, propõe-se aqui contemplar a possibilidade
de desenvolvimento de uma resposta articulada ao nível da saúde mental (e também
física). A proposta é a de colocar em rede e permanente diálogo não só as instituições
que já operam (pontualmente) a este nível, como também outros profissionais cientifi-
camente e tecnicamente preparados, bem como tradutores que dominem a língua de
origem e do contexto de acolhimento, com o objectivo de poder ouvir o refugiado: ouvir
a história de perseguição e aflição, a reconstituição dos factos que o trouxeram até cá,
as suas angústias, medos e expectativas, a sua história de vida. Mas fazê-lo fora dos
contextos estigmatizantes, como os hospitais psiquiátricos ou a consulta apressada e
descaracterizada do Centro de Saúde.

Existem, quanto a nós, dois indícios da pertinência de um novo serviço que pres-
te assistência em rede: por um lado, há com certeza uma razão (ou várias) para o
raro regresso do refugiado após a primeira consulta com o médico, mesmo quando
se trata de casos graves identificados pelos psiquiatras como PTSD (post-traumatic
stress disorder). É necessário fazer o diagnóstico desta situação. Porque é que faltam
a uma segunda consulta? O que sentiram durante a mesma? Quais as suas maiores

(188) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


dificuldades no atendimento?… Porque é que apesar de se
diagnosticarem tantos refugiados com dificuldades ao nível
da saúde mental, são tão poucos efectivamente encaminha-
dos para a consulta? Porque é que os médicos psiquiatras do
CAVITOP que atendem os refugiados nos hospitais psiquiátri-
cos (frequentemente inseridos em grupos de terapia com os
“sem-abrigo”159 ou nos seus próprios consultórios) comentam
159 O facto de colocarem os
terem acompanhado ao longo destes últimos anos cinco ou refugiados na mesma classificação
seis anos menos de uma dezena de pacientes no total, e de dos “sem-abrigo” denota, não só
entre alguns médicos mas também
a maioria faltar à segunda ou terceira consulta?
entre alguns técnicos da Santa Casa
da Misericórdia, um profundo des-
Por outro lado, há que ter em conta esta afirmação feita por um conhecimento da fragilidade em que
se encontram os mesmos, a par da
dos médicos: “neste momento, [os refugiados] não podem ser evidente falta de respostas concretas
englobados no Sistema Nacional de Saúde, que é muito pesado e adequadas às características deste
grupo por parte do SNS e das outras
e que já não funciona bem para os nacionais, muito menos para
instituições estatais que se ocupam
os refugiados… deveria haver um departamento que se ocupas- da sua integração na sociedade

se exclusivamente deles”. Julgamos que para além de não haver portuguesa. Um dos casos que acom-
panhei recentemente dava conta da
respostas adequadas no SNS, existe também a necessidade de extrema indignação e humilhação que
um outro apoio social, económico e até afectivo (por exemplo o demonstrava um refugiado que, por
não conseguir trabalho remunerado
desenvolvimento de redes sociais com as quais se identifiquem), que lhe permitisse viver com digni-
que constituiriam sem dúvida factores de protecção da saúde dade, foi encaminhado para a “sopa
dos pobres” levando na mão uma
mental e física dos refugiados.
declaração em português, assinada
por ele, mas da qual desconhecia o
A este propósito, destacamos como uma boa experiência, no conteúdo, que atestava a sua própria
incapacidade para trabalhar – o que
sentido de criar laços de pertença e de partilha de problemas e segundo alega o próprio não seria de
procura de soluções de forma lúdica e criativa, a formação de todo verdade, pois apenas não conse-
guia encontrar trabalho remunerado,
um grupo de teatro de refugiados e requerentes de asilo que tem
o que sabemos ser um dos problemas
o nome de “RefugiActo”. Este grupo, formado em 2004, sur- da actual situação económica e laboral
giu paralelamente à aprendizagem do ensino de português160 em Portugal.
160 Cuja responsável é a professora
– actividade inserida no projecto de integração levado a cabo Isabel Galvão, à qual se deve também
pelo CPR – e está constituído presentemente por refugiados e a criação do RefugiActo.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (189)


requerentes de asilo de cerca de 18 nacionalidades161 diferentes, sendo também diversi-
ficados os grupos etários (crianças, jovens e adultos), os géneros e sobretudo os idiomas
e as culturas. Este grupo de teatro merece, quanto a mim, uma particular referência,
porque segundo a apresentação que se pode ler na folha de divulgação do mesmo, “(…) a
expressão dramática é, reconhecidamente, um meio de melhorar a confiança e autonomia
pessoais (…), sendo também “um fórum onde pudessem expressar as suas vozes, e que
estas fossem, de algum modo, o eco de muitas outras”. E ainda: “(…) abre espaço para
um melhor conhecimento de si próprio e do outro, entrecruzam-se vivências, estimulam-
-se e aceitam-se sugestões, confrontam-se ideias, encaram-se medos e preconceitos …”.
Acerca deste grupo de teatro, cabe ainda referir que alguns dos textos que levam ao palco
reflectem as dificuldades de integração e compreensão que sentem por parte da sociedade
portuguesa, destacando aqui uma rubrica particularmente dedicada ao tema da saúde
que satiriza a ida do refugiado ao consultório médico.

Regressando à situação da saúde mental dos refugiados, importa esclarecer um pouco o


que se entende pelo que atrás designámos por “PTSD”: como refere Rechtman (2002),
existe uma já longa história e não menor controvérsia sobre aquilo a que se convencio-
nou designar no DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatístico das perturbações mentais
da Associação Americana de Psiquiatria) como síndrome da
161 Hesitamos sempre que usamos
o termo “nacionalidade”. De facto,
perturbação pós-traumática. Se por um lado, segundo alguns
muitos dos refugiados não têm sequer autores, foi através da psiquiatria e da descoberta da PTSD que
direito a usar este conceito, por
se reconheceu um instrumento de avaliação ao serviço das víti-
serem provenientes de regiões em
permanente conflito e luta pelo mas de tortura física e psicológica, por outro lado, o diagnóstico
reconhecimento e autonomia do de PTSD atribuído aos refugiados sem uma verdadeira análise
seu território, como é por exemplo
o caso dos palestinianos, ou dos
do contexto político, social e cultural, é visto por outros autores
curdos (Turquia). Este “pormenor” de (Burstow, 2005) como uma submissão à pressão da indústria
contornos geopolíticos, aparentemente
farmacêutica, que tem urgência em inventar novas patologias (os
sem relação com a saúde, é também
afectado pela dificuldade de aceitação autores referem-se sobretudo ao contexto dos EUA) sem tomar
de registo nos serviços informatizados em linha de conta aspectos como a subjectividade do indivíduo
dos hospitais que não reconhecem ao
refugiado a pertença a um suposto
ou a recusa de todas as formas de desvio. Alguns antropólogos
“Estado Palestiniano”. culturalistas, como Summerfield (1997), defendiam ainda a tese

(190) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


segundo a qual “a PTSD era sobretudo uma construção ocidental, destinada a impor um
modelo médico ao sofrimento dos povos em guerra, favorecendo a emergência de uma
verdadeira indústria do trauma, exportada a todas as culturas”.

Independentemente da maior ou menor validade destes argumentos, importa salientar o


que afirma Talarn (2007):

“Aquello que realmente nos convirtió a todos en verdaderos seres humanos, el vínculo con los
otros, ya no se tiene en cuenta a la hora de entender y abordar el sufrimiento mental. Para
comprender la depresión, la esquizofrenia, los ataques de pánico o cualquier otra situación ya
no hacen falta para nada las nociones de psiquismo, inconsciente, aprendizaje, sistema familiar,
afecto, cognición, duelos, perdidas, etcétera. Se padece un trastorno mental, pero parece que ya
no existe lo mental, sólo existe lo cerebral, lo tangible, lo biológico, lo físico.“

A esta apreciação, ousaria apenas acrescentar também a importância do contexto socio-


cultural, histórico e político, que acaba por ser o cenário preferencial onde todos estes
fenómenos acontecem.

Ainda, referindo-nos à abordagem da saúde mental dos refugiados, e se estabelecer-


mos uma comparação entre a realidade portuguesa neste domínio e a francesa – por
ser aquela que melhor tenho estudado através da obra de um dos mais conceituados
médicos e antropólogos, Didier Fassin – seremos levados a concluir que a situação em
Portugal é, por enquanto, diametralmente diferente. Portugal tem a enorme vantagem de
não fazer depender (como na França) a autorização de requerente de asilo de um teste
que certifique clinicamente (e politicamente) a veracidade do trauma e da tortura, efec-
tuado por especialistas da mente – o que entra em perfeita contradição com a definição
de refugiado consagrado na Convenção da Assembleia das Nações Unidas de 1951,
para a qual basta o receio de perseguição e não a prova do mesmo. Aqui em Portugal,
é ainda a veracidade da narrativa do requerente de asilo, bem como o enquadramento
dessa narrativa no conhecimento produzido pelos técnicos do SEF e do CPR sobre a
situação política do Estado de proveniência do requerente, que abre ou fecha a porta de

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (191)


entrada em Portugal. Dar testemunho das suas memórias mais ou menos traumáticas
é, digamos, o modo mais seguro de “provar”, de forma tão coerente quanto possível, a
veracidade da sua história. Falar, dar testemunho, constitui um “ritual de passagem” que
lhes permite (em princípio) um lugar no mundo e que os arranca ao espaço ameaçador
do qual pretendem escapar. Referimos ainda que a palavra dita detém a chave da reali-
dade da experiência traumática e, em simultâneo, tem o poder de, quando devidamente
interpretada pelo psiquiatra ou terapeuta, vir a ser a base do diagnóstico, pois constitui-se
como narrativa das emoções pessoais, que o refugiado experiencia através da memória
a cada momento.

O problema coloca-se ainda num outro contexto, como já dissemos: na ausência de


articulação estruturada entre os serviços que prestam assistência aos refugiados e um
autêntico serviço, por enquanto inexistente, orientado especificamente para a particula-
ridade dos refugiados.

Um dos aspectos positivos em França é a quantidade e especificidade de respostas


dadas aos refugiados, requerentes de asilo e imigrantes ao nível da saúde mental (Fas-
sin, 2005). Só na região de Paris, existem quatro ONG que, subsidiadas pelo Estado ou
por outras instituições públicas e privadas, fornecem respostas integradas, com equi-
pas multidisciplinares constituídas por antropólogos, médicos, psiquiatras, psicólogos,
assistentes sociais e, em particular, os próprios refugiados. Num todo, estas equipas
contribuem para uma mais adequada compreensão, por parte dos clínicos e sobretudo
da sociedade, sobre os contornos sociais, culturais, simbólicos, linguísticos e políticos
dos pacientes, para além do conhecimento fundamental da história pessoal que lhes
provocou o sofrimento e o trauma.

Ora para que este quadro se verifique em Portugal, são necessárias duas coisas. Do ponto
de vista político e das próprias estruturas governamentais e não governamentais que lhes
prestam apoio: adquirir consciência da importância destes serviços, e vontade para lhes
prestar os apoios necessários, tanto técnicos como financeiros. Do ponto de vista clínico:
acreditar que vale a pena trabalhar em diálogo com os cientistas sociais (onde desde logo

(192) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


se enquadra uma antropologia médica transcultural), bem como assumir que é necessário
conhecer e trabalhar mais de perto com as ONG que prestam serviços aos refugiados e
que os contextualizam.

Partir do princípio errado que o sofrimento dos refugiados está apenas relacionado com
o seu passado traumático ou com as memórias angustiantes, violentas e recorrentes que
assaltam os seus dias e as suas noites (e que os transportam, por vezes de forma obsessiva,
para as visões de tortura e de morte de familiares e amigos, ou para a lembrança de uma fa-
mília sobrevivente que ficou para trás, constituída por pais e/ou filhos, e ainda à mercê dos
abusos dos perpetradores) é, sem dúvida, não querer assumir
162 Existem casos em que por haver
que a angústia e receio dos refugiados não se transporta apenas a suspeita, por vezes infundada,
para o passado, mas também para a incerteza do presente e de que o requerente de asilo está a
trabalhar, os serviços locais da Santa
do futuro que a sua vida actual em Portugal lhes reserva. A pre- Casa da Misericórdia – que já não
cariedade quanto à sua situação laboral, os baixos salários que possuem a incumbência específica de
na maior parte das vezes os colocam numa situação de mera acompanhar os requerentes de asilo,
e portanto os colocam na mesma
sobrevivência, ou os manifestamente insuficientes subsídios que situação dos restantes cidadãos
a Santa Casa da Misericórdia lhes atribui (variando entre os 150 nacionais – decidem cortar o subsídio
que entretanto estes recebiam,
euros e os 380 euros mensais)162, com os quais não conseguem colocando-os por vezes em situação
fazer face ao custo de vida,163 colocam-nos numa situação ex- de extrema pobreza.
163 Esse subsídio destina-se a pagar
tremamente vulnerável e difícil de suportar. São vários os relatos a renda da casa ou do quarto alugado,
de refugiados que referem a sua fragilidade psicológica pelo facto a alimentação, os transportes, os
de terem perdido, com o exílio, a dignidade que mantinham no medicamentos e as despesas de
carácter pessoal. É de salientar que os
seu país de origem imediatamente antes dos acontecimentos requerentes de asilo apenas têm a sua
violentos que os levaram a buscar protecção noutro país. Muitos vida relativamente protegida, do ponto
de vista social e económico, enquanto
dos refugiados exerciam profissões de destaque e prestígio so- residem no CAR. Após a sua saída
cial, como médicos, engenheiros, jornalistas, professores. Como das instalações, e por não existirem
refere Rollemberg (2005): “(…) os exilados não choram somente redes sociais de apoio, estão completa-
mente à mercê do que podem ou
os seus mortos, o seu luto é também social, no sentido em que não encontrar para sobreviver, o
eles devem aceitar o fim de um modus vivendi de um contex- que muitas vezes implica o recurso
à caridade alheia ou aos pequenos
to social e político que não poderá mais reproduzir-se tal como apoios (dinheiro de bolso) que o CPR
era. Perda dos seus sistemas de referências, de seus objectos por vezes lhes dispensa.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (193)


de amor, dos seus pólos de investimento e de agressividade”. Em termos psicanalíticos,
como lembra Júlia Kristeva (referenciada por Rollemberg, 2005), a perda que o exilado ou
refugiado sente aparece associada à morte da mãe, não sendo por acaso que o livro de
Albert Camus, O Estrangeiro, começa precisamente com a morte da mãe. Ao lamentar o
espaço perdido, o refugiado fica preso entre mundos que o rejeitam de diferentes maneiras:
preso por um lado a um espaço e um tempo aonde não pode regressar; por outro ao mundo
actual com referentes que desconhece e que tornam penoso o seu quotidiano, agravado
pelas carências materiais, pela barreira linguística, pela quase impossibilidade de exercer a
profissão de origem; e ainda a um outro mundo dificilmente perspectivado num futuro sem
calendário marcado, como Janus (deus da mitologia romana), deus das passagens, do fim
e do começo, representado por duas cabeças que olham simultaneamente o passado e o
presente, num constante e duplo sistema de referências. Melanie Klein chega a identificar o
exilado com o matricida, a partir do qual o sujeito se refaz: “o sujeito constrói-se a partir do
exílio, devido à perda do objecto primordial…”. Apesar de no tempo presente estar aparente-
mente a salvo das atrocidades e da violência que na maior parte dos casos lhe ameaçaram
a vida, os refugiados manifestam contudo nas entrevistas algum receio por algo que de
mal que lhes possa suceder aqui em Portugal. Um dos efeitos da mobilidade dos dias de
hoje reflecte-se também na possibilidade real da existência de redes mafiosas ou ligadas a
circuitos internacionais que os possam detectar aqui, exercendo alguma forma de chanta-
gem ou repressão junto das famílias de origem164. Este receio latente acentua o carácter
de invisibilidade, de anonimato, reforça o sentimento de insegurança e de isolamento. Esta
ambiguidade de papéis leva-os por caminhos frágeis, que tanto
164 Este receio é frequentemente
mencionado pelos refugiados podem resultar num sentimento de resistência e de anseio pela
colombianos que se sentiram vítimas superação das dificuldades que agora enfrenta – fazendo oscilar
de perseguições na origem, e às quais
não podem atribuir uma referência ou
as atitudes e os sentimentos entre o ressentimento e o agrade-
pertença específica. A ameaça tanto cimento pelo acolhimento, a angústia e a esperança – como o
pode vir dos diferentes e por vezes
podem fazer sucumbir face à hostilidade sentida na sociedade
antagónicos grupos de guerrilheiros,
como dos paramilitares, como de onde agora está inserido, e à necessidade de tomar outros rumos
vários grupos do exército nacional. e experimentar outros países, que lhe permitam juntar algum
165 Um dos refugiados entrevistados
contava-me desesperado que não
dinheiro para finalmente poder mandar vir a família que espera
tinha dinheiro para mandar vir a ansiosamente por essa chamada no país de origem165.

(194) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


É de salientar também que ao longo das entrevistas era raro o refugiado (homem ou mu-
lher, vivendo já fora do CAR) que apesar do seu sofrimento psicológico pretendia assumir
o papel de vítima perante a sociedade. Quando questionados se para eles a questão da
saúde era uma questão importante ou prioritária, afirmavam que sim, mas essa preocu-
pação assumia invariavelmente um lugar posterior ao papel principal desempenhado pela
importância de encontrar um trabalho suficientemente remunerado que lhes permitisse
sair do sufoco financeiro em que se encontravam. Referiam ainda a sua capacidade para
poderem contribuir, de forma digna e com os seus saberes, para a sociedade que os aco-
lheu. Este aspecto, perfeitamente compreensível num quadro de (normalmente) desejada
integração social, ajuda a relativizar a tão falada condição de vítima, quando a esta está
associada uma condição patológica de incapacitação social, como aconteceu no caso
norte-americano com os refugiados vietnamitas. Tal como menciona Rechtman (2002),
nesse caso o reconhecimento de vítima acabava por ser uma vitória que correspondia
ao seu novo estatuto e estava, na época, intrinsecamente ligado, do ponto de vista da
psiquiatria, à visibilidade científica das perturbações pós-traumáticas, bem como à rei-
vindicação de uma legitimidade política. Excluindo o facto de que (também por razões
políticas e diplomáticas do contexto português actual) não são reconhecidos refugiados
provenientes das ex-colónias portuguesas, por actualmente se
considerarem seguras e Portugal não estar em guerra com ne- mulher e os filhos que continuavam
nhum outro país, não emerge uma aparente necessidade de a sofrer ameaças no país de origem.
Estava a contemplar a hipótese de
reconhecimento político do papel de vítima, tal como aconteceu regressar a África, mais precisamente
entre os EUA e o Vietname. Restam assim poucos casos em Por- a Moçambique (país vizinho do seu),
para aí poder reunir a família. Tinha
tugal de refugiados que possam ser imediatamente entendidos a esperança de poder encontrar lá
como portadores de perturbações pós-traumáticas que os impe- um emprego sem tantas exigências
burocráticas quanto as que havia
çam de levar adiante o seu projecto de vida futura. Tal não se encontrado na Europa, podendo assim
deve ao rigor de um diagnóstico profundo, mas antes à falta de reunir dinheiro para juntar de novo a
serviços de saúde mental adequados que possam detectar essa família. Salienta-se que apesar do rea-
grupamento familiar em Portugal estar
fragilidade. Pode contudo subentender-se que por enquanto ape- contemplado na lei da imigração, são
nas se conhece uma pequena percentagem da realidade sobre as razões de ordem económica que
na realidade impedem, na maior parte
o sofrimento psíquico dos refugiados. Esta “suspeita” baseia-se das vezes, o reencontro dos familiares
nas referências dadas por alguns psiquiatras portugueses que na segurança deste país.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (195)


mencionam casos de refugiados com histórias de tortura física e psicológica de tal maneira
graves e profundas que, após terem ido a uma ou duas consultas, não regressaram, tendo
também desaparecido do próprio Centro de Acolhimento de um dia para o outro.

O facto de até agora Portugal estar de longe de ser uma escolha natural para a maioria dos
refugiados e requerentes de asilo, e de aí resultar um insignificante número de pedidos,
dá-nos a responsabilidade acrescida de prestar um serviço de saúde mental específico, que
respeite os direitos humanos dos refugiados, que os saiba ouvir enquanto pessoas em so-
frimento e com eles encontrar soluções, e que por acréscimo nos respeite também a todos
nós: cientistas sociais, médicos, técnicos, representantes dignos do país que os acolheu.

(196) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


CONCLUSÃO
PROPOSTAS PARA UM SERVIÇO PSICOTERAPÊUTICO
COM COMPETÊNCIA ANTROPOLÓGICA

C H I A R A P U S S E T T I e J Ú L I O F. F E R R E I R A

De boas intenções está o inferno cheio.


Adágio popular português

Não existirão, naturalmente, regras e directivas precisas para a criação de um espaço


terapêutico que se queira transdisciplinar e culturalmente sensível, mas mais tentativas
e desafios contínuos. Decidimos porém encerrar este relatório com algumas propostas
e orientações possíveis para a concretização de um serviço clínico assumido acima
de tudo como crítico e auto-reflexivo, capaz de considerar os pacientes imigrantes
enquanto sujeitos políticos e morais, sem os forçar a transformar-se naquilo que é
valorizado por “Nós”: em mentes e corpos domesticados por práticas sócio-sanitárias,
modelos de “pessoa” e representações da normalidade, tecnologias de cidadania e
valores morais.

O que deve caracterizar uma etnopsiquiatria culturalmente competente e sensível é em


primeiro lugar uma consciência do papel dos factores sociais e políticos enquanto aspecto
incontornável para a integração da dimensão cultural no contexto do trabalho psiquiátrico.
As interpretações da doença carregam invariavelmente a história do discurso que as forma,
e o seu contexto é sempre o das relações de poder locais. O primeiro passo na direcção de
uma etnopsiquiatria crítica é portanto uma leitura das práticas e estratégias terapêuticas
face às relações de força que as geram e sustentam, avaliando a posição dos próprios
interlocutores e a ideologia veiculada pelas categorias diagnósticas. O modelo de etnopsi-
quiatria aqui defendido reclama a necessidade de repensar os espaços clínicos enquanto

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (197)


lugares de conflito e mudança, de relações de força, onde se confrontam actores sociais
portadores de significados e valores em conflito. A etnopsiquiatria situa-se, com efeito, no
espaço dinâmico de confronto e transformação gerado pelo encontro entre culturas e so-
ciedades, especialmente no âmbito do processo migratório. E procura, através de múltiplas
vias e estratégias (as da clínica como as da pesquisa antropológica), definir modalidades
sempre mais eficazes de intervenção sobre a aflição e as dificuldades daqueles que en-
frentam a dor das próprias memórias.

Por entre os diversos caminhos possíveis, como foi sendo realçado ao longo do texto,
distingue-se como mote comum a adopção de um posicionamento auto-reflexivo por parte
dos profissionais da saúde, que se traduza numa interrogação constante sobre os próprios
instrumentos diagnósticos. O convite é o de explorar os campos semânticos e usos linguís-
ticos das categorias e conceitos empregues em contexto clínico, e de repensar as noções
e os modelos interpretativos e terapêuticos da psiquiatria, colocando-os no seu contexto
histórico, económico e político de produção. Isto significa reconstruir as origens e proces-
sos de elaboração das ideias e saberes, assim como das instituições onde eles se tornam
práticas, com o objectivo de revelar o carácter político e cultural mesmo daquilo que é por
nós tomado como natural e factual – o nosso corpo, as nossas sensações e emoções. Por
outras palavras, trata-se de indagar os processos generativos da episteme, adoptando uma
abordagem “arqueológica” no sentido foucaultiano166.

Este questionamento permitiria evidenciar a medida em que definições como “normal”


e “patológico”, “razoável” e “insensato”, “saudável” e “mórbido” são o produto de um
contexto histórico, político e sociocultural específico – o que é
166 Foucault chamou “arqueologia”
rotulado como “loucura” numa sociedade pode mostrar-se ab-
ao método proposto de procurar as solutamente normal numa outra sociedade – não constituindo
condições e os processos sociais da
o mero reflexo de uma realidade científica ou orgânica, como
produção do saber médico e da
doença; e “genealogia”, por é habitualmente assumido. Noutros termos, dado que as defi-
outro lado, à estratégia metodológica nições, interpretações e manifestações da loucura diferem de
que questiona a autoridade e a
legitimidade das instituições de poder
acordo com os contextos sociais, culturais, políticos, ideológicos
hegemónicas (1969). e económicos, as categorias médicas emergem não como refe-

(198) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


rentes discursivos de elementos do “real”, mas como modelos e dispositivos analíticos de
definição e construção dessa mesma realidade167.

As próprias ciências da psique ocidentais (assim como as suas 167 Infelizmente, comenta Kleinman
(1988), os psiquiatras muitas vezes
categorias e interpretações) não são excepção a esta pers-
esquecem-se que “esquizofrenia”,
pectiva, devendo reconhecer o seu estatuto de psicologias lo- “depressão” e outras categorias psi-
cais ou “etno”psicologias, na medida em que se organizam quiátricas não possuem um estatuto
ontológico, tratando-se apenas de
e instituem no interior de um determinado contexto histórico conceitos utilizados para descrever
e sociocultural168. Catherine Lutz (1985), na mesma linha de sentimentos, pensamentos e compor-
tamentos individuais em contextos
argumentação, afirma não ser epistemologicamente sustentá-
sociais, culturais, económicos e
vel pensar numa psicologia “científica”, e consequentemente históricos particulares. O resultado é
universal, contraposta a presumíveis psicologias “étnicas” (sub- que os termos, os conceitos e as ideias
com os quais os psiquiatras definem
jectivas, indígenas, culturais, locais); mas ser pelo contrário e explicam as diferentes aflições
necessário considerar todas as psicologias existentes como cul- são confundidos com o sofrimento
humano efectivo.
turalmente específicas (o que tornaria de facto supérfluo o uso
168 A psiquiatria ocidental – afirma
do prefixo “etno-”)169. À luz destas considerações, Lutz convida Summerfield (2001) – é só uma
os psiquiatras ocidentais a admitir a especificidade sociocultu- entre as outras etnopsiquiatrias; é
necessária uma psiquiatria que reco-
ral do seu saber e a abandonar pretensões de universalidade, nheça as limitações desta abordagem
para procurar antes espaços de diálogo e confrontação com técnica e encare a sua contextualiza-
ção sociocultural e política como uma
outros saberes e experiências. Na sua visão, serão os antro- obrigação ética. Veja-se, entre outros,
pólogos os especialistas desta modalidade de relação, que se Coppo 1997.
169 Nas palavras de Lutz, a “(etno)
esforça por salientar a particularidade das diferentes culturas,
psicologia não é tanto um sistema
ao mesmo tempo que as torna reciprocamente compreensíveis. de conhecimentos que se sobrepõe
“O processo de abordagem à compreensão da vida emocio- à experiência real das pessoas,
como um dos sistemas simbólicos
nal de pessoas de diferentes culturas – argumenta ainda Lutz fundamentais através dos quais os
(1988: 8) – pode ser considerado inicialmente como um proble- indivíduos percebem, comunicam e se
experimentam a si mesmos, ao próprio
ma de tradução”. Este processo comporta todavia muito mais
mundo interior, ao próprio corpo, aos
do que uma correspondência entre as palavras de uma língua seus limites, às suas mudanças” (Lutz
e as palavras de uma outra língua; implica o acolhimento de 1985: 67). A etnopsicologia, nesta
acepção, compreende quer a varie-
diferentes formas de conceber a relação entre mente, corpo, dade de concepções culturalmente
emoção, mal-estar e sociedade, para procurar espaços de apro- construídas sobre a pessoa humana,

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (199)


ximação e construção de terrenos comuns. Reduzir a compreensão a uma tradução
directa, aproblemática, ingénua e etnocêntrica, que não considera nem o ponto de vista
do Outro nem o mais amplo contexto político, histórico e social, levaria necessariamente
ao “mal-entendido”, ao “equívoco” ou à “armadilha empática” causados por uma pro-
jecção das próprias categorias sobre as experiências alheias170. Seguindo o caminho do
léxico psicológico (histeria, dissociação, etc.) restam de facto poucas possibilidades para
acolher a rede dinâmica dos nexos simbólicos, dos conhecimentos e dos saberes em jogo
no encontro cultural171.

quer o sistema de representações que


Não se trata portanto de uma questão de traduzir outras línguas
em cada sociedade está na base da
vida quotidiana e do senso comum, nos idiomas da biomedicina, mas de inventar novas estratégias,
assim como os saberes e objectos que incorporem os saberes e as práticas que os novos pacien-
de especialização que caracterizam
domínios e actividades particulares
tes encarnam, para dar conta de expressões diferentes da dor,
(saúde, cura, cerimónias religiosas, da eficácia de remédios diferentes, do valor de representações
divinação, etc.).
diferentes do corpo e suas leis. Isto exige um dispositivo terapêu-
170 Unni Wikan alerta os antropólogos
que querem trabalhar sobre a vida tico necessariamente transdisciplinar e multiterapêutico, onde
emotiva dos outros dos riscos de uma diversos actores – mediadores culturais, profissionais das ciên-
“atribuição demasiado fácil aos outros
do que o antropólogo sente-pensa” cias da psique, terapeutas com as mesmas origens culturais dos
(Wikan 1992: 479), isto é, da imposi- pacientes, cientistas sociais, assim como os próprios pacientes
ção sobre estas experiências de uma
ordem e modelo segundo a própria
com os seus grupos familiares e redes de relações – possam
representação do psiquismo. confrontar teorias, interpretações, práticas e possíveis estraté-
171 Em diferentes ocasiões também
gias de cura, sem reproduzir hegemonias, e conscientes das
Roberto Lewis Fernandez, comentando
a categoria de trance and possession relações de força sempre presentes. Neste sentido, assumem-se
disorder constante no DSM-IV, tem como posturas adequadas o reconhecimento da voz do pacien-
sublinhado os riscos de mal-
-entendidos que derivam da legitima-
te, a escuta da sua história, o acompanhamento do ritmo da
ção transcultural de uma nosologia sua narração, e a aceitação da sua interpretação dos eventos
que pretende categorizar experiências
como leitura possível, sem preconceitos ou ironias. Esta atitude
peculiares e heterogéneas. O autor
critica, em particular, a possibilidade implica a devolução da dignidade ao paciente, a admissão da
de incluir fenómenos e campos de eficácia do saber do mediador cultural – que pode mesmo ser
experiência tão diferentes num sistema
nosográfico único como o da psiquia-
um terapeuta, e que oferece uma visão mais ampla do contex-
tria norte-americana (1992, 1994). to de origem, completando as lacunas – e da competência do

(200) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


terapeuta principal – que pode ou não ser representante da biomedicina ocidental – em
conduzir os encontros médicos e dinamizar o diálogo.

Em contexto clínico persevera uma tendência para considerar as doenças isoladamente


das histórias pessoais dos pacientes. A este respeito, a proposta é a de considerar os cor-
pos doentes não só como organismos físicos, mas entidades culturais e arquivos históricos
de significados, lugares de resistência e comentário político sobre as complexas dinâmicas
da migração. Para melhor compreender o duplo processo através do qual, por um lado, o
social se inscreve no corpo, e por outro, o corpo e os seus estados contam histórias – não
só sobre a vida individual, mas também sobre a memória histórica sedimentada nesse
corpo – será útil uma combinação do interesse pelas histórias de vida e narrativas dos mi-
grantes (seguindo a perspectiva da person-centered ethnography172) com uma análise das
componentes sociopolíticas e económicas envolvidas na construção do mal-estar. Tal equi-
líbrio metodológico permitiria perceber de forma mais eficaz o modo como cada indivíduo
constrói, idiossincraticamente, as relações com o próprio contexto de origem e com diferen-
tes identidades, participando de relações onde se atravessam e sobrepõem outros grupos
e culturas, e onde são percorridas e construídas outras redes sociais. Esta abordagem
possibilitaria efectivamente uma reconstituição dos percursos de significação individuais
e dos processos de construção e negociação entre as identidades múltiplas que todos os
sujeitos carregam, no interior de um quadro mais amplo de variáveis macro-sociais.

A medicação é certamente um instrumento, entre outros, capaz de auxiliar o indivíduo a


superar o seu sofrimento, e não nos opomos à sua utilização. Torna-se porém necessá-
rio, em simultâneo, reconstruir a história do paciente através das suas narrativas, avaliar
em profundidade o seu contexto social, e colocar em questão as próprias noções de nor-
malidade e patologia. A preocupação com a contextualização das categorias diagnósticas
deveria, por outras palavras, ser acompanhada de uma interpretação do estado de aflição
enquanto experiência individual fortemente enraizada nos valores
culturais, sistemas simbólicos e organização sociopolítica do pacie- 172 Muitos autores salientaram a im-
portância de uma abordagem centrada
nte. Através de uma abordagem crítica ao modelo biomédico oci- sobre o paciente (entre outros, Castillo,
dental, o desafio é o de compreender a experiência de mal-estar 1997, e Hollan, 1997).

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (201)


como ponto de articulação entre indivíduo e colectividade, desenvolvendo sensibilidade às
diferentes realidades nas quais se desenvolvem os fenómenos do sofrimento psíquico.

Esta sensibilidade cultural é, em primeiro lugar, uma questão política. No debate sobre
a saúde mental dos imigrantes, por detrás das polémicas sobre como organizar os cui-
dados sanitários em resposta a utentes e problemas novos e inesperados, sobre se será
ou não adequado criar serviços específicos para imigrantes, ou se será clinicamente
legítimo ou eticamente aceitável o recurso a etiologias e terapias tradicionais na cura,
emergem questões mais amplas e complicadas, como o reforço das leis migratórias, o
direito à cidadania, a presença silenciosa do passado colonial, a decisão entre integração
e assimilação, o acesso aos cuidados de saúde por parte dos imigrantes ilegais, etc.

O famoso debate entre Didier Fassin e Tobie Nathan aborda a questão da manutenção
de espaços de acolhimento e serviços de saúde mental específicos para estrangeiros, en-
quanto reprodução de lógicas de exclusão, divisão cultural e “guetização”. Contudo, essa
discussão não considera o facto de constituir precisamente uma condição para a emer-
gência destes espaços a falta de competência, recursos e saberes necessários por parte
dos serviços generalizados de saúde pública para dar conta dos novos pedidos de cura.
A ideia de centros de aconselhamento e acompanhamento clínico psicoantropológico
para imigrantes, imaginados como espaços simultaneamente de formação, investigação
e cura, surge para fazer face à falta ou fragmentação dos conhecimentos antropológicos
e etnopsiquiátricos na bagagem dos operadores de saúde mental. Esta falha traduz-se
num acolhimento inadequado ao paciente imigrante, confrontando-o com referências inin-
teligíveis ou irrelevantes que o deixam desorientado.

As iniciativas que surgiram e continuam a emergir, seja no sector privado ou nos serviços
públicos, para lidar com os desafios constituídos pelos utentes estrangeiros no âmbito da
saúde mental – ainda que desorganizadas ou criticáveis do ponto de vista das ciências
sociais – constituem passos importantes na direcção de uma consciência e abertura
novas às problemáticas e necessidades do público imigrante, revelando um esforço de
construção de linguagens e instrumentos novos e originais.

(202) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


Os centros surgidos nas últimas décadas na Europa, e mais recentemente em Por-
tugal, para responder ao mal-estar psíquico dos imigrantes têm o potencial para se
tornarem focos de pesquisa e elaboração de práticas clínicas inovadoras, onde os
modelos de cura se fundem e transformam, os pressupostos epistemológicos das
perspectivas psicopatológicas se entrelaçam e renovam, e os espaços clínicos abrem
lugar à mediação, ao diálogo e à reflexão contínua. Este avanço traduz-se não ape-
nas numa defesa da importância do encontro interdisciplinar, mas na afirmação do
valor e possibilidade de emprego de técnicas terapêuticas ligadas a outros horizon-
tes culturais.

Porquanto seja difícil oferecer recomendações pragmáticas isoladas visando a criação


de espaços de escuta e cura culturalmente competentes e sensíveis às necessidades de
saúde mental dos imigrantes em Portugal, será pelo menos possível e pertinente sugerir
os primeiros passos nesta direcção. No último encontro europeu organizado em Barce-
lona (6-7/11/08) pela COST Action HOME IS0603 (Health and Social Care for Migrants
and Ethnic Minorities in Europe) e pela WHO-HPH Task Force on Migrant-Friendly and
Culturally Competent Health Care, dedicado à questão da saúde mental dos imigrantes
(Cultural competence, health staff training and development), foi insistentemente subli-
nhada a falta de preparação dos técnicos de saúde para as questões “culturais”, e a
consequente necessidade de organizar cursos de formação em antropologia médica,
etnopsiquiatria e psicologia social a eles dirigidos.

Seria importante insistir na formação específica para o diálogo intercultural de intérpretes


linguísticos e mediadores culturais de proveniência comum à das principais comunida-
des migrantes. Para este fim, seria necessário incentivar ao máximo a colaboração
interdisciplinar entre ciências sociais e humanas e a biomedicina, assim como fomentar
continuadamente uma relação estreita entre investigação, prática clínica, formação e
avaliação de projectos. Assumir-se-ia como fundamental o encorajamento à pesquisa
sobre os temas da migração e da saúde, as consequências psicológicas da violência e
da tortura, os sistemas de cura em contextos socioculturais diferentes, a epistemologia
da clínica e as práticas de saúde da biomedicina.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (203)


No referido encontro de Barcelona foi realçado o facto de nos centros de apoio psicológico
para imigrantes não serem geralmente integrados profissionais de saúde da mesma origem
dos pacientes – a não ser para a execução de tarefas de nível médio ou baixo. A experiência
migratória pessoal dos terapeutas deveria ser considerada condição preferencial, na medi-
da em que promove uma maior sensibilidade no contexto cultural da terapia. Também foi
apontada a total ausência de esforço na direcção do diálogo e da colaboração pofissional
com “outros” terapeutas, que muitas vezes acompanham o processo de cura dos mesmos
pacientes. Por outras palvras, não é concedida igual dignidade profissional a terapeutas
que não se enquadram no contexto da certificação biomédica, ainda que o tratamento por
eles oferecido se revele igualmente eficaz. Deveriam ainda ser fomentadas e colocadas em
prática medidas severas contra a discriminação racial em contexto institucional, e especial-
mente nos serviços que se pretendem dirigidos a imigrantes.

De forma muito concreta, poderemos sumariar os elementos necessários à constituição de


uma clínica culturalmente competente nos seguintes pontos:

• Deverá ser criada uma equipa terapêutica interdisciplinar (psicoterapeutas e psiquia-


tras formados na antropologia médica crítica, antropólogos, mediadores, assistentes
sociais, psicólogos sociais e comunitários);

• Esta equipa deverá constituir-se como um serviço de recurso, para onde outras
instituições possam remeter os seus casos, quer para efeitos de acompanhamento
dos pacientes, quer para supervisão e/ou aconselhamento institucional;

• A equipa deverá trabalhar em relação contínua com os serviços sociais e psicológi-


cos disponíveis no território, de forma a oferecer uma intervenção que não se limite
ao âmbito clínico mas seja também social;

• A equipa deverá manter relações estreitas com os contextos universitário e de


pesquisa, de forma a produzir e renovar o conhecimento e fornecer estímulos à
investigação;

(204) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


• Será útil a criação de um boletim informativo e de um sítio na Internet que por um
lado resultem da cooperação entre os estudantes das diversas áreas pertinentes, e
por outro estimulem e potenciem o diálogo interdisciplinar, incentivando e alimen-
tando a pesquisa;

• Os ficheiros que incorporam a informação recolhida dos pacientes deverão ser de


natureza médico/antropológica, de forma a enquadrar o máximo de dados, e da
forma o mais completa possível, sobre os utentes e os seus contextos sociofami-
liares de origem e de acolhimento. Também deverão ser registadas as passagens
institucionais dos pacientes pelos serviços clínicos disponíveis no território, e em
particular o percurso deles no seio do serviço culturalmente competente oferecido,
com o fim de avaliar continuamente a sua operacionalidade;

• Deverão ser organizados eventos, reuniões alargadas de discussão dos casos, se-
minários internos e abertos ao público, assim como acções de formação dirigidas
aos técnicos de saúde;

• Deverá ser constituída uma biblioteca de base sobre os temas da psiquiatria trans-
cultural, da etnopsiquiatria e antropologia médica crítica, assim como disciplinas
afins;

O paciente imigrante em busca de apoio psicológico só poderá ser acompanhado e tratado


de forma eficaz na condição de encontrar serviços antropologicamente competentes. Estes
serviços caracterizam-se por serem não apenas culturalmente sensíveis, mas ainda capa-
zes de considerar o mais amplo contexto social, histórico, económico e político que molda
o sofrimento do imigrante, as dinâmicas quotidianas nas sociedades de acolhimento, a
produção social e cultural das nossas categorias e práticas, as economias morais em que
se desenvolvem as vivências clínicas dos utentes, e os fenómenos de discriminação mui-
tas vezes na origem dupla do mal-estar do paciente e do desencontro terapêutico. Estes
serviços são marcados sobretudo por uma abertura à possibilidade de estratégias mesti-
ças, híbridas, e provisórias, passíveis de resistir à “sedução ou compulsão diagnóstica”

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (205)


(Beneduce, 2007) próprias da prática clínica contemporânea – que sente a necessidade
de classificar e nomear para explicar e compreender.

As medidas apontadas no Plano para a Integração dos Imigrantes (PII), nomeadamente no


que diz respeito às medidas 25, 26, 27 e 28173 vão ao encontro de muitas das propostas
colocadas neste trabalho, principalmente mediante as incoerências encontradas ao longo
dos trabalhos de campo dos respectivos investigadores envolvidos nesta proposta de aná-
lise do sistema de saúde pública destinado a imigrantes em Portugal.

As medidas 26 e 27 do PII174 poderiam, quando aplicadas em conjunto, fortalecer a pro-


moção da “sensibilidade cultural” nos hospitais nacionais, principalmente no que toca o
serviço de saúde mental. Torna-se fundamental para qualquer acto de mediação cultural
que procure ser eficaz no âmbito clínico/sanitário, incentivar acções de formação contínua
dos profissionais da saúde nas áreas da antropologia médica e da psicologia social, assim
como promover encontros de formação interpares para permitir o diálogo entre técnicos
de saúde nacionais e de outras origens, visando fortalecer o debate com relação à diferen-
ça: questões semânticas, especificidades culturais, económicas, sociopolíticas e históricas.
Estas propostas, se colocadas em prática, devem ser constantemente acompanhadas por
formadores que tragam debates recentes, a fim de estabelecer um constante “aprimora-
mento” na actuação médica transcultural. Desta forma, a construção conjunta de técnicos
de saúde e cientistas sociais criaria oportunidades e diálogo para o desenvolvimento de fer-
ramentas culturalmente específicas nas interpretações médicas.
173 Aprovadas por Resolução do
Conselho de Ministros n.º 63-A/2007,
de 3 de Maio; ver: http://www.acidi. O Relatório Anual de Execução (Maio de 2007/Maio de 2008)
gov.pt/docs/PII/PII_public.pdf
174 Relativas à formação dos técnicos
do PII, no que concerne as medidas de adaptação do sistema
de saúde “visando a criação de de saúde a um atendimento “culturalmente competente”, refere
competências interculturais”, e à
que “a direcção Direcção-Geral da Saúde tem feito um grande
integração de imigrantes formados em
medicina para que seus “conheci- esforço em informar os serviços de saúde sobre as condições
mentos linguísticos” e culturalmente de acesso destes cidadãos [imigrantes], com a emissão regular
específicos possam ser aproveitados
na “reforma” do atendimento prestado
de circulares e notas informativas (…) estes documentos têm
aos imigrantes. como objectivo fazer face a bloqueios que surgem neste pro-

(206) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


cesso, fruto, muitas vezes, de diferentes interpretações e procedimentos face à legislação
em vigor”175.

Todavia, a resistência institucional ao modelo “transcultural” apresenta ainda, segundo o


próprio Relatório de Execução, “situações discricionárias”176 nos serviços de saúde e vários
órgãos das autoridades competentes, expondo o exemplo da “não emissão do atestado de
residência que habilita os imigrantes que residam há mais de 90 dias em Portugal, a ter
acesso ao cartão de utente”; quadro este amplamente reconhecido, e pelo qual as próprias
medidas do PII foram criadas.

O Segundo Relatório Anual de Execução do Plano para a Integração dos Imigrantes (Maio
2008/Maio 2009)177 aponta progressos práticos nas propostas do PII, nomeadamente
quanto à medida 27, prevendo a integração até o final de 2009 de 150 médicos estrangeiros,
ou seja, 50% a mais do que o mencionado no relatório de execusão anterior; e a medida 28,
com a colocação de 15 “profissionais de mediação” em cerca de 13 serviços de saúde.

Embora os movimentos apresentados no segundo relatório com relação a medidas im-


portantes para a melhoria dos serviços prestados aos imigrantes, a sensível distância
entre propostas e planos nas políticas de Estado para a “integração dos imigrantes” e
a execução de medidas aprovadas parece formar um contexto bastante paradoxal. Se
por um lado novas medidas atestam a desigualdade no acesso à saúde entre cidadãos
nacionais e imigrantes, por outro as propostas que pretendem promover a equidade deste
acesso podem assumir um carácter de formalização e “tolerân-
cia” das referidas “situações discricionárias”, com acções que 175 Ver: http://www.acidi.gov.pt/
docs/PII/RAE0708_PII.pdf; p. 35.
procuram atingir tal resultado pela criação de documentos espe- 176 Ver: http://www.acidi.gov.pt/
cíficos para imigrantes com a burocracia e a parte legislativa a docs/PII/RAE0708_PII.pdf; p. 36.
sublimar a mentalidade do “tratamento da diferença” expressa 177 Disponível em: http://www.acidi.
gov.pt/docs/PII/Relatorio-PII-segundo-
no âmbito institucional. Um exemplo concreto é a necessidade ano.pdf
de se ultrapassar barreiras através da “elaboração e emissão de 178 Piero Coppo apresenta uma
perspectiva histórica e ideológica das
uma credencial, a emitir pelo ACIDI, IP, que permita o acesso à consequências políticas no encontro
saúde em alternativa ao atestado de residência”178. entre diferentes sistemas terapêuticos,

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (207)


Além disso, no que concerne as intervenções relativas aos problemas de saúde públi-
ca, nomeadamente “doenças sexualmente transmissíveis”, “saúde materno-infantil” e
“vacinações”, seria importante uma reflexão prévia sobre os conceitos empregados nas
categorias e nas definições apresentadas no PII. Isto é, (re)discutir, por um lado, as pos-
síveis declinações culturais das representações de corpo, sexualidade, vulnerabilidade e
risco, assim como, por outro lado, as possíveis estruturas e organizações da “família”.
O espaço de interface entre medidas de saúde pública e seus utentes torna-se particular-
mente problemático sem uma apreciação historicamente crítica e “culturalmente sensível”
das categorias utilizadas. Como aponta Coppo (2003) em sua análise histórica sobre
o encontro de diferentes sistemas terapêuticos, devemos repensar as relações de poder
inseridas na mediação clínica para evitarmos o risco de projectar e impor valores morais
e configurações de estilos de vida considerados como “saudáveis” pela cultura ocidental
(euroamericana), expressos, mais exactamente, através da intervenção sanitária

A distância entre propostas e planos nas políticas de Estado para a “integração dos
imigrantes” e a execução de medidas aprovadas parece formar um contexto bastante
paradoxal. Se por um lado novas medidas atestam a desigualdade no acesso à saúde
entre cidadãos nacionais e imigrantes, por outro as propostas que pretendem promover
a equidade deste acesso podem assumir um carácter de formalização e “tolerância”
das referidas “situações discricionárias”, com acções que procuram atingir tal resultado
pela criação de documentos específicos para imigrantes com
indicando o papel da medicina nos
a burocracia e a parte legislativa a sublimar a mentalidade do
processos de “conquista de território”
e conversão de culturas locais à “tratamento da diferença” expressa no âmbito institucional. Um
cultura europeia. Sobretudo, nos exemplo concreto é a necessidade de se ultrapassar barreiras
indica subtilmente como um saber
sistematizado “irradia” a própria
através da “elaboração e emissão de uma credencial, a emitir
ideologia que o constitui (pp. 21-23). pelo ACIDI, IP, que permita o acesso à saúde em alternativa ao
A este processo na Europa moderna,
atestado de residência”179.
Vacchiano e Taliani (2006) designam
como o acto de “convencer o Outro da
vantagem de tornar-se um de Nós”. Mesmo que a supracitada credencial (que está ainda em
179 Ver: http://www.acidi.gov.pt/
docs/PII/RAE0708_PII.pdf; ibidem,
processo de elaboração pelo ACIDI) possa servir seus fins, no-
p. 36. meadamente no caso dos estrangeiros em situação irregular,

(208) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


garantindo o acesso à saúde nos termos previstos pela lei, não significa porém que tais
medidas sejam conhecidas pelos imigrantes e respeitadas pelas autoridades e pelos técni-
cos de saúde. Os testemunhos recolhidos em diferentes ocasiões nos trabalhos de campo
dos investigadores que contribuíram para o presente estudo realçam que, na maior parte
dos casos, tanto os imigrantes ilegais quanto os técnicos de saúde desconhecem e/ou não
respeitam o princípio de igualdade de direitos de acesso – independentemente do estatuto
face à lei portuguesa – aos serviços de saúde.

Além disso, no que concerne as intervenções relativas aos problemas de saúde públi-
ca, nomeadamente “doenças sexualmente transmissíveis”, “saúde materno-infantil” e
“vacinações”, seria importante uma reflexão prévia sobre os conceitos empregues nas
categorias e nas definições apresentadas no PII. Isto é, (re)discutir, por um lado, as pos-
síveis declinações culturais das representações de corpo, sexualidade, vulnerabilidade e
risco, assim como, por outro lado, as possíveis estruturas e organizações da “família”.
O espaço de interface entre medidas de saúde pública e seus utentes torna-se particular-
mente problemático sem uma apreciação historicamente crítica e “culturalmente sensível”
das categorias utilizadas. Como aponta Coppo (2003) na sua análise histórica sobre o
encontro de diferentes sistemas terapêuticos, devemos repensar as relações de poder in-
seridas na mediação clínica para evitarmos o risco de projectar e impor valores morais
e configurações de estilos de vida considerados como “saudá-
veis” pela cultura ocidental (euroamericana), expressos, mais 180 Piero Coppo apresenta uma
exactamente, através da intervenção sanitária180. perspectiva histórica e ideológica das
consequências políticas no encontro
entre diferentes sistemas terapêuticos,
Um processo de “docilização” dos corpos e das concepções de indicando o papel da medicina nos
processos de “conquista de território”
vida do Outro, cujo conteúdo ideológico foi já amplamente ana- e conversão de culturas locais à
lisado por muitos autores, principalmente quanto às aplicações cultura europeia. Sobretudo, nos
indica subtilmente como um saber
de modelos sanitários no âmbito da saúde sexual e reprodutiva,
sistematizado “irradia” a própria
materno-infantil, do planeamento familiar, da redução de riscos ideologia que o constitui (pp. 21-23).
e prevenção de danos (entre os outros, Foucault, 1988, 1991; A este processo na Europa moderna,
Vacchiano e Taliani (2006) designam
Inda, 2006; Ong, 1995; Procacci, 1993; Rose, 1998, 2000; Ruhl, como o acto de “convencer o Outro da
1999; Weir, 1996). vantagem de tornar-se um de Nós”.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (209)


Neste sentido, a principal contribuição de uma antropologia médica que se afirma como
crítica é propor a aliança entre a relação terapêutica e novos paradigmas de análise, ou
seja, ao invés de partir do pressuposto de que a maior vulnerabilidade e/ou exposição
ao risco no âmbito da saúde seja condição natural da migração, deve-se reavaliar critica-
mente como as políticas sanitárias afectam a vida das populações migrantes, invertendo
posições nas relações terapêuticas. Os assuntos relacionados com a saúde dos imigrantes
tomaram uma importância fundamental na actividade governamental, criando a neces-
sidade de estudar, categorizar e apoiar estas populações, assim como promover a sua
integração. Torna-se indispensável, portanto, promover a conscientização de como estas
intervenções pretendem construir formas normativas de cidadania e subjectividade, funda-
das geralmente em assumpções morais culturalmente específicas de cariz etnocêntrico.
O que identifica uma abordagem politicamente posicionada é justamente a preocupação
de trazer à discussão a perspectiva de como o sector sanitário intervém de forma prática
na vida destas populações quanto à sua conduta, corporalidade, sexualidade, moral e
modo de vida; esta é justamente uma das facetas que a antropologia médica crítica pode
oferecer na mediação entre ambas as partes: realçando a dubiedade e contradição presen-
tes na lógica e actuação do sistema público de saúde.

Partindo de uma crescente linha de investigação preocupada com as formas de “governan-


ça” no liberalismo avançado, e aproveitando de significativas contribuições na pesquisa
etnográfica no âmbito da saúde mental transcultural em Portugal, propomos neste estudo
analisar os múltiplos níveis em que as ideias, projectos e técnicas tentam influenciar e
transformar o comportamento dos imigrantes de forma a convertê-lo de acordo com ideolo-
gias de ordem social e do “bem-estar” da sociedade de acolhimento. No imaginário social,
analisando os estereótipos e os prejuízos mais comuns, os imigrantes são facilmente conce-
bido como socialmente inadequados, mal-educados, vulneráveis, dispostos em maior grau
a comportamentos de risco, criminosos, às vezes estranhos ou perturbados, culturalmente
limitados e, portanto, indivíduos carentes de apoio, educação, instrução e correcção. Estas
formas de correcção e orientação dos comportamentos vão desde às medidas sanitárias,
até a reclusão penitenciária ou em asilos, para redireccionar comportamentos sociais,
vida sexual e familiar, etc: ou seja, na direcção do que é considerado saudável e normal

(210) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


pela ideologia dominante. É exactamente nestas intervenções sanitárias, normativas, sobre
planeamento familiar, sexualidade, infância, economia doméstica, nutrição e higiene que
se corre o risco de impor valores morais e constituir uma espécie de “despotismo” sobre a
vida do Outro. A insistência no PII e no Relatório de Execução não só quanto aos direitos de
acesso à saúde dos imigrantes (muitas vezes ignorados ou negados), mas também no que
concerne o cumprimento dos próprios deveres e a co-responsabilidade face as questões
de saúde pública, é um exemplo clássico do que foi definido como “governamentalida-
de neo-liberal” (entre os outros, Ferguson e Gupta, 2002; Inda, 2005; Holmer Nadesan,
2008; Barry, Osborne, Rose, 1996; Larber, 2000; Burchell, Gordon, Miller, 1991). A relação
terapêutica, portanto, pode implicar novas formas de vigilância, agora articuladas pelo
autocontrolo do estilo de vida e pela monitorização constante de indicadores de qualidade,
como no caso prototípico dos diagnósticos preventivos em saúde.

Torna-se imperativo, portanto – sem esquecer que o objectivo principal destas campanhas
é a promoção do “bem-estar” dos cidadãos – problematizar as múltiplas representações do
corpo e as construções do sujeito nos discursos de saúde pública, realçando os julgamen-
tos morais aí accionados, e a tendência destes discursos para a reprodução de relações
de desigualdade pré-existentes. Desconhecer como o discurso oficial da biomedicina in-
corpora valores hegemónicos na actuação sanitária (planeamento familiar, vacinações,
natalidade, morbilidade, expectativa de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de
doenças, formas de alimentação, condições de habitat, por exemplo) significa não reco-
nhecer e deslegitimar as representações, os estilos de vida e as identidades específicas
dos utentes para os quais estas intervenções são dirigidas.

Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural (211)


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(260) Migrantes e Saúde Mental – A Construção da Competência Cultural


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