AnisioTeixeira-A Pedagogia de Dewey

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Anísio S.

Teixeira

A PEDAGOGIA DE DEWEY

DEWEY E A PEDAGOGIA AMERICANA


[Apresentação de Lourenço Filho]

Ao traçar este titulo, detemo-nos em considerar se não seria mais prudente


escrever Dewey e a renovação pedagógica mundial, tão profunda e extensa tem
sido a influência de suas idéias na vida pedagógica atual de todos os continentes.
Recentes reformas nos países orientais, como China, Japão, Turquia, Índia,
declaram-se, de maneira explícita, baseadas em sua concepção da escola como
"sociedade embrionária", e de sua concepção da educação como "processo de
vida". A Rússia, ciosa da originalidade de sua obra educacional, foi buscar em
Dewey, dez anos antes da revolução de 1917, a essência da teoria renovadora que
aí floresceu primeiro com Zelenko e Shatsky, e que Lunatcharsky, mais tarde,
pôde ampliar. Depois de 1933, porém, os Soviets condenaram as idéias de
Dewey. Na Europa ocidental, confessam todos os grandes renovadores maior ou
menor influência dos princípios assentados pelo grande mestre americano.
Jorge Kerschensteiner, para citar um só dos de relevo, declarou com a maior
franqueza em sua autobiografia: "As sugestões práticas de organização
lembradas por John Dewey coincidem, em grande parte, com as minhas; e a
clareza e a lucidez de seu pensamento, em matéria de educação, deram-me, em
muitas ocasiões coragem para experimentar as minhas próprias idéias. Muitas
delas, quando ainda obscuras, foram esclarecidas pelo estudo intenso de seus
trabalhos". Será preciso não esquecer que os livros de Dewey correm, de há
muito, impressos em francês, alemão, italiano, espanhol, búlgaro, grego, turco,
russo, sueco, húngaro, japonês, chinês e árabe... Em português, a não ser um
pequeno folheto da União Pan-Americana, foi este o primeiro volume a
aparecer, em 1930.

Por isso mesmo, a Biblioteca de Educação não quis apresentar a versão


simples dos interessantes trabalhos que se lerão a seguir, nem a entregou a
qualquer tradutor da língua inglesa, embora hábil: foi pedi-la a um antigo
discípulo de Dewey, o Dr. Anísio Teixeira, solicitando-lhe ao mesmo tempo que a
fizesse acompanhar de uma visão geral das teorias do mestre. E não errou. Além
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de uma tradução meticulosa, quanto à intenção de cada termo, Anísio Teixeira
nos dá substancioso estudo acerca das idéias de Dewey e de Kilpatrick, dois dos
luminares da educação renovada nos Estados Unidos. Por esse estudo é possível
ajuizar da filosofia da educação norte-americana de nosso tempo.

A que se deve o extraordinário prestigio das idéias de John Dewey?

Já o assinalamos, no volume desta mesma série, Introdução ao Estudo da


Escola Nova, ao tratar do sistema de projetos, que as corporifica, em grande
parte. Em Dewey, há uma luminosa concepção da escola como parte inerente ao
processo social total. A escola deve ser uma pequena comunidade, em que os
processos de vida em nada devem diferir dos processos que lhe estão ao
derredor, nas outras instituições de cada coletividade. "Quando a escola receber
e preparar cada criança como membro de sua pequena comunidade, saturando-a
do espírito de cooperação, do espírito de servir, provendo-a, ao mesmo tempo,
dos instrumentos necessários para a sua direção própria, teremos conseguido a
mais profunda e cabal garantia de que a sociedade em geral será mais digna,
mais bela, mais harmoniosa". Esses instrumentos, de que nos fala Dewey, não
são apenas as técnicas elementares da leitura e escrita, nem habilidades em
pequenas artes, nem copiosa informação de memória. O que deseja é que o
educando, ao encarar situações novas, possa resolvê-las com êxito, com presteza
e acerto. "A única coisa que a escola pode e deve fazer é desenvolver a aptidão
para pensar". Longe de defender, porém, qualquer doutrina semelhante d da
educação formal, apelando para processos de formação analítica, e de imaginar
que o pensamento se possa desenvolver em abstrato, Dewey salienta que o
pensamento não é senão um processo de abordar a experiência em situação
total, ou seja, em face de problemas reais.

A visão social profunda, encarando de frente a agitação das novas formas


políticas, com a convicção de que só a escola lhes pode dar estabilidade e
segurança, sob base democrática, como, por outro lado a reabilitação do
pensamento sob bases pragmáticas, são, a nosso ver, os dois pontos que
tornaram a concepção educativa de Dewey das mais atraentes em nossa época.

Mas o mestre americano não se apresenta apenas como sociólogo e


filósofo: é um psicólogo sutil, de doutrinas que nos parecem precursoras das
mais modernas teorias com base experimental. Sua doutrina acerca do Interesse
e do Esforço, de que trata precisamente uma das partes deste volume, embora
escrita há muitos anos, continua a ser coisa nova para a maioria dos espíritos
que aprenderam a velha psicologia atomística, que nos inculca compreensão
estática dos fenômenos do pensamento. Dewey teve como mestre, no estudo da
psicologia da infância, a Stanley Hall. Mas, como muito bem salientava
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Claparède, enquanto este era de espírito indutivo, acumulador de fatos, de
observações, aquele aparece como analista delicado, dialético sutil, cuja
habilidade em apreender e explicar o valor dos processos mentais alguns têm
igualado, mas ninguém excedido.

John Dewey nasceu em Burlington (Vermont) a 20 de outubro de 1859.


Fez os seus estudos na Universidade de John Hopkins, graduando-se em
filosofia, em 1884. Nomeado assistente da Universidade de Michigan, no mesmo
ano, passou, pouco depois, a professor catedrático, cargo que ocupou até 1894.
Chamado para reger o ensino de filosofia e pedagogia da Universidade de
Chicago, teve ocasião de fundar e dirigir a University Elementary School,
primeira tentativa no gênero, e onde pôde pôr em experimentação as suas
teorias de educação renovada. Em 1904, chamou-o, por sua vez, a Universidade
de Colúmbia, em Nova York, para entregar-lhe o lugar de professor de filosofia,
que ocupou por quase trinta anos.

Numerosos estudos filosóficos, trabalhos de psicologia pura e de psicologia


aplicada, de sociologia e de pedagogia se devem a John Dewey. Deles
destacamos os que mais diretamente se ligam à educação: Psychology of
Number, 1895; Interest as Related to Will, 1895; Ethical Principles Underlying
Education, 1897; My Pedagogic Creed. 1897; The School and the Society, 1900;
Psychology and Social Practice, 1901; The Child and the Curriculum, 1902; The
Educational Situation, 1902; Relation of Theory to Practice in the Training of
Teachers, 1904; The School and the Child, 1906; Educational Essays, 1910; How
We Think, 1910; The Schools of Tomorrow, 1913; Democracy and Education,
1916; Human Nature and Conduct, 1921.

Todas essas obras têm tido grande influência na orientação do pensamento


educativo moderno, e, particularmente, na da educação norte-americana. Em
recente estudo acerca dessa influência, por todos aliás proclamada, diz Jesse
Newlon: "A educação norte-americana tem passado por um grande movimento
de transição. Não é possível aquilatar de todas as forças que a produzem; mas
em grande parte, não podemos deixar de atribuí-las à influência de John Dewey,
que mais que qualquer outro filósofo educador, tem concorrido para melhorar as
escolas de seu tempo".

A 20 de outubro de 1950, celebraram os Estados Unidos, por suas


instituições de cultura, em geral, o 90º aniversário de John Dewey. Foi ele,
então, chamado "o maior americano vivo, em nossos dias. [Nota para a 4ª
Edição: John Dewey faleceu em 2 de junho de 1952, em Nova York.]

Lourenço Filho
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II

A PEDAGOGIA DE DEWEY

[Esbôço da teoria de educação de John Dewey]

A. EDUCAÇÃO COMO
RECONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Conceito da experiência. - O universo é um conjunto infinito de


elementos, que se relacionam de maneira a mais diversa possível. A
multiplicidade e variedade dessas relações o fazem essencialmente precário
instável e o obrigam a perpétua transformação.

Pode-se mesmo dizer que tudo existe em função dessas relações mútuas,
pelas quais os corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente.

Esse agir sobre outro corpo e sofrer de outro corpo uma reação e, em seus
próprios termos, o que chamamos de experiência. Nosso conceito de
experiência, longe, pois, de ser, atributo puramente humano, alarga-se à
'atividade permanente de todos os corpos, uns com os outros.

No mundo físico, tais experiências se dão sem nenhum sentido de


adaptação. Os corpos não fazem questão de conservar o seu caráter. O ferro não
se esforça por continuar ferro: se entra em contato com a água, breve se
transforma em bióxido de ferro.

No plano da vida, já há distintamente preferência, seleção e adaptação,


buscando o corpo conservar seu "organismo". As experiências nesse nível vegetal
e animal são psico-físicas. Os corpos agem e reagem, para a conquista de um
equilíbrio de adaptação.

No plano humano esse agir e reagir ganha sua mais larga amplitude,
chegando não só à escolha, à preferência, à seleção, possíveis no plano
puramente biológico, como ainda à reflexão, ao conhecimento e á reconstrução
da experiência. Experiência não é, portanto, alguma coisa que se oponha à
natureza, - pela qual se .experimente, ou se prove a natureza. Experiência é uma
fase da natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela
entram - situação e agente - são modificados.
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O que há de fundamental, nesse modo de ver a experiência, é a sua


identificação com a natureza. Os pontos de vista do racionalismo ou do
intelectualismo operavam sobre o velho dualismo de natureza e experiência, em
que esta era um simples instrumento de análise daquela. Daí, experiência ser
considerada "transitória", "passageira", "pessoal", contra a realidade
permanente do mundo exterior.

Entendendo, porém, experiência como um modo de existência da


natureza, vemos que ela é tão real quanto tudo que é real. Poderíamos defini-la
como a relação que se processa entre dois elementos do cosmos, alterando-lhes,
até certo ponto, a realidade.

Qualquer experiência há de trazer esse resultado, inclusive as experiências


humanas de reflexão a conhecimento. Com efeito, o fato de conhecer uma coisa,
importa em uma alteração simultânea no agente do conhecimento a na coisa
conhecida. Essas duas existências se modificam, porque se modificaram as
relações que existiam entre elas. A árvore que era apenas objeto de minha
experiência visual, passa a existir de modo diverso, se entre mim a ela outras
experiências se processarem, pelas quais eu a venha conhecer em outros
aspectos: úteis, medicinais, de resistência, etc. Depois dessas experiências, eu e a
árvore somos alguma coisa diferente do que éramos antes. Existimos de modo
diverso um para com o outro. Houve, através daquelas experiências, uma
transformação que irá permitir alterar, sob certo aspecto, o mundo em que vivo.

A concepção ampla de experiência, que estamos esboçando, deixa-nos logo


ver que a experiência não é, em si mesma, cognitiva, mas que pode ganhar esse
atributo, que será tão real a orgânico, quanto qualquer dos outros que já possua.

Hart classifica nossas experiências em três tipos fundamentais [HART,


Inside Experience]:

I. O primeiro tipo é o das experiências que nós apenas temos. Não c só não
chegamos a conhecer seu objeto, como, às vezes, nem sequer sabemos que as
temos. O fato de que elas existem é demonstração de que a experiência é
fenômeno do mundo orgânico a não qualquer coisa que somente o homem
possua, como instrumento para sua tentativa de conhecer o universo.

A criança que, ao nascer, começa a ter fome, sede, dor, bem-estar, mal-
estar, está téndo experiências, muito antes de vir a saber que. as tem a muito
antes de vir a saber o que elas são. Nesse nível, a experiência é nitidamente um
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fenômeno da natureza, como a chuva, ou o trovão. "An ache in his (child's) head
is a ache in the world" [HART, ob. cit., pag. 43].

II. O segundo tipo se constitui das experiências que, sendo refletidas,


chegam a conhecimento, à apresentação consciente. Por elas, a natureza ascende
a um novo nível, a que a leva o aparecimento da inteligência: ganha processos de
análise, de indagação de sua própria realidade, escolhe meios, seleciona fatores,
refaz-se a si mesma. Para o "empiricista naturalista", essa elevação de nível não
abre nenhum abismo intransponível entre a realidade e o conhecimento, o
homem e a natureza, o espírito e a matéria.

III. O terceiro tipo de experiência é o desses vagos anseios do homem por


qualquer coisa que ele não sabe o que seja, mas que pressente a adivinha.
Objetivamente, essas intimações incertas da realidade ao seu espírito parecem
provir, ou de falhas nas suas experiências, ou da existência de alguma coisa que
aflora, mas está para além de sua experiência.

Quanto mais é o homem experimentado, mais aguda se lhe torna a


consciência dessas falhas, a das contradições a dificuldades de uma a completa
inteligência do universo. É isso que dá ao homem a divina inquietação, que o faz
permanentemente, insatisfeito, e permanentemente empenhado na constante
revisão de sua obra.

Todas as experiências do segundo e do terceiro grupos, graças à linguagem


e à comunicação entre os homens, formam hoje, não as experiências de A, B ou
C, mas a experiência humana - acumulação muitas vezes secular de tudo que o
homem sofreu, conheceu a amou.

Essa "experiência humana" fornece o material e a direção para as nossas


experiências atuais. Se dela privássemos o homem, ele voltaria a níveis que
nenhuma vida selvagem nos pode fazer imaginar.

Suprimir-lhe-íamos imediatamente tudo a que chamamos de espírito e


inteligência, que outra coisa não são que hábitos mentais, laboriosa e
longamente adquiridos.

Processo da experiência. - Estudemos, agora, mais de perto, a


natureza do processo da experiência.

De início, a experiência envolve dois fatores, - agente a situação -


influindo-se mutuamente um sobre o outro.
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Há atividade mútua a mútua capacidade de reação. Não sendo
primariamente cognitiva, essa mútua readaptação pode ser puramente orgânica,
não envolvendo percepção das modificações que se processam entre o agente e à
situação, e o novo agente e a nova situação posteriores à experiência.

A experiência é, nesse passo, pouco significativa para a vida humana. Não


chegando à reflexão consciente, não nos fornece nenhum instrumento para nos
assenhorearmos melhor das realidades que nos circundam. Grande se vai tornar
a sua significação, quando se completa com o elemento de percepção; de análise,
de pesquisa, levando-nos à aquisição de "conhecimentos", que nos fazem mais
aptos para dirigi-la, em novos casos, ou para dirigir novas experiências.

Outra coisa não quer dizer o "aprender por experiência" da linguagem


popular. O processo da experiência atinge, então, esse nível de percepção das
relações entre as coisas, de que decorre sempre a aprendizagem de alguns novos
aspectos.

Ora, se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda sorte, se


não podemos viver sem estar constantemente sofrendo a fazendo experiências, é
que a vida é toda ela uma longa aprendizagem. Vida, experiência, aprendizagem
não se podem separar. Simultaneamente vivemos, experimentamos a
aprendemos.

Experiência educativa. - A experiência educativa é, pois, essa


experiência inteligente, em que participa o pensamento, através do qual se vêm a
perceber relações a continuidades antes não percebidas.

Todas as vezes que a experiência for assim reflexiva, isto é, que atentarmos
no antes a no depois do seu processo, a aquisição de novos conhecimentos, ou
conhecimentos mais extensos do que antes, será um dos seus resultados
naturais.

A experiência alarga, deste modo, os conhecimentos, enriquece o nosso


espírito a dá, dia a dia, significação mais profunda à vida.

E é nisso que consiste a educação. Educar-se é crescer, não já no sentido


puramente fisiológico, mas no sentido espiritual, no sentido humano, no sentido
de uma vida cada vez mais larga, mais rica e mais bela, em um inundo cada vez
mais adaptado, mais propício, mais benfazejo para o homem.

Conceito de educação. - Podemos, já agora, definir, com Dewey, a


educação como o processo de reconstrução a reorganização da experiência, pelo
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qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, a com isso nos habilitamos a
melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras.

Por essa definição a educação é fenômeno direto da vida, tão inelutável


como a própria vida. A contínua reorganização a reconstrução da experiência
pela reflexão, constitui o característico mais particular da vida humana, desde
que emergiu do nível puramente animal para o nível mental ou espiritual.

Essa contínua reconstrução - em que consiste a educação - tem por fim


imediato melhorar pela inteligência a qualidade da experiência. Analisando-a
mentalmente, percebendo as relações que ela nos desvenda, ganhamos os
conhecimentos necessários para dirigir, com mais segurança, nossas
experiências futuras.

Um dos aspectos a notar na definição de Dewey é que, por ela, o fim (o


resultado) da educação se identifica com seus meios (o processo), do mesmo
modo, aliás, que os fins da vida se identificam com o processo de viver.

Enquanto vivo, eu não, me estou, agora, preparando para viver e daqui a


pouco, vivendo. Do mesmo modo eu não me estou em um momento preparando
para educar-me e, em outro, obtendo o resultado dessa educação. Eu me educo
através de minhas experiências vividas inteligentemente. Existe, sem dúvida,
certo decurso de tempo em cada experiência, mas assim as primeiras fases com
as últimas do processo educativo, têm todas igual importância, a todas
colaboram para que eu me instrua a me eduque - instrução e educação que não
são os resultados externos da experiência, mas a própria experiência
reconstruída a reorganizada mentalmente no curso de sua elaboração.

É por esse aspecto que o conceito de educação, que vamos tentando


analisar, não se confunde com os conceitos tradicionais, de que educação ou é
um desdobramento de forças latentes internas, ou uma formação pela aplicação
de forças ou influências externas, sejam físicas, naturais, ou culturais a
históricas. Em todos esses conceitos, a educação compreende um processo
educativo a uma aquisição posterior de resultados educativos. A divisão entre o
fim e o processo autoriza a dissociação entre a educação e a vida, ou, pior ainda,
autoriza a suposição de que se ministra educação ou instrução por processos
puramente passivos de ensino.

Definida nos termos em que a define Dewey, a educação não se confunde


com qualquer desses processos de preparação, que se localizam neste, ou
naquele período da vida.
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Seja a infância, a idade adulta ou a velhice, todas participam ou podem
participar do caráter educativo de suas experiências. Quando muito, haverá
questão de grau de educabilidade, no sentido em que, na infância, por isso que
nada foi ainda acumulado, as experiências são totalmente aproveitadas,
enquanto na velhice, por exemplo, a nossa menor plasticidade, como o nosso
maior saber, tornam mais difícil esse aproveitamento.

Restitui-se assim a educação ao seu lugar natural na vida humana. Ela é


uma categoria, por assim dizer, dessa vida, um resultado inevitável das
experiências.

Voltemo-nos agora para a educação como fenômeno social, pelo qual a


geração adulta transmite à geração nova as conquistas de sua civilização.

Educação como necessidade da vida social. - A vida se caracteriza


mesmo em seus mais modestos aspectos, por essa força de duração ou
resistência, que lhe permite renovar-se, ainda quando julgamos que se destrói.
Onde quer que apareça, envolve sempre luta a conflito entre um organismo e o
meio ambiente. E, nesse sentido, viver é "subjugar e controlar, em seu próprio
proveito, energias que, de outro modo, o destruiriam" [Democracy and
Education, pag. 3].

Quando o indivíduo sucumbe ou morre, a vida continua em outros seres,


cada vez mais complexa, mais readaptada a mais perene, tendo em si mesma o
segredo de sua perpetuidade. Ora, se assim é com a vida física a animal, não o é
menos com a vida social. A vida social se perpetua por intermédio da educação.
"O que a nutrição e a reprodução são para a vida fisiológica, a educação é para a
vida social" [Idem, pag. 11].

Isso é intuitivo, quando consideramos que a vida social é um complexo de


crenças, costumes, instituições, idéias, linguagem, lenta e laboriosamente
adquiridas a solicitamente transmitidas das mãos dos mais velhos para as dos
mais novos. Sem essa permanente transmissão de valores entre a geração adulta
e a geração infantil, os grupos sociais depressa retornariam às mais absolutas
condições de primitivismo.

Mas não é só isso. A sociedade, como diz Dewey, não somente assegura a
sua continuidade por transmissão, mediante comunicação, como, a sua própria
existência se traduz em transmissão a em comunicação.

Não basta, para que se constitua a sociedade, proximidade física; não basta
identidade de fim. Têm-no as peças de máquina a nem por isto são sociedade.
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Sociedade pressupõe uma consciência comum desse fim, uma participação
inteligente na atividade coletiva, uma compreensão comum. E isso não se efetua
sem comunicação, sem mútua a permanente informação. Em seu sentido
genuíno, sociedade é, pois, comunicação ou mútua participação.

Ora, comunicação é educação. Nada se comunica sem que os dois agentes


em comunicação - o que recebe e o que comunica - se mudem ou se
transformem de certo modo. Quem recebe à comunicação tem uma nova
experiência que lhe transforma a própria natureza. Quem a comunica, por sua
vez, se muda a se transforma no esforço para formular a sua própria experiência,
Há, assim, uma troca, um mútuo dar a receber. Neste sentido, toda relação
social que seja realmente vivida a participada é educativa para os que dela
partilham.

A vida social, pois, não somente exige, para se perpetuar, esse ensinar a
aprender que constituem a educação, como o seu próprio modo de ser, o próprio
processo de vida coletiva, em essência, consiste em ensinar a aprender. É a
permanente circulação de reações a de experiências a de conhecimentos que
forma a vida em comum dos homens, a que lhes permite a perpétua renovação
de suas existências, por uma perpétua reeducação. Tal influência educativa,
recebida assim diretamente da participação na vida social, é, entretanto,
necessariamente acidental a imprecisa. A influência do adulto sobre o adulto se
exerce através de processos tão complexos, acidentais a amplos, que é impossível
sistematizá-los, organizá-los, ou mesmo fixar-lhes os limites.

Daí não podermos confiar nessa educação, se quisermos dar cumprimento


à responsabilidade de habilitar á criança para a participação plena na vida social.

Educação direta e formal da infância. - Distinta, portanto, da


educação indireta que naturalmente decorre do próprio processo da vida
coletiva, existe uma educação direta a formal para a infância.

Em grupos sociais de desenvolvimento escasso, compreende-se que não


exista, por assim dizer, essa educação formal. Excetuando-se cerimônias de
iniciação, as mais das vezes apenas solenizadoras da aceitação ou do ingresso do
jovem candidato no grupo dos adultos - a infância, na maior parte das tribos
selvagens, educa-se pela participação gradual a imediata na vida social.

As sociedades de hoje ganharam, porém, como já haviam ganho todas as


sociedades civilizadas anteriores, tal complexidade que a participação direta da
criança na vida adulta se torna absolutamente impossível. Cresce, assim, à
medida que avança a cultura social, a necessidade da educação direta da
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infância. Tornam-se necessárias escolas, estudos a professores: todo um
mecanismo especializado a sistemático, para fornecer aquilo que a vida,
diretamente, não pode ministrar.

Qual o perigo imediato dessa organização?

Que se esqueça na escola a sua função substitutiva e, ao invés de educação,


se esteja aí a obrigar a criança a deveres insípidos e contraproducentes. Que a
escola, deslembrada da sua função, se torne um fim em si mesma, fornecendo
aos alunos um material de instrução que é da escola mas não da vida.

As escolas passam a constituir um mundo dentro do mundo, uma


sociedade dentro da sociedade. Isto, no melhor dos casos, que, no pior, elas se
tornam simplesmente livrescas, atulhando a cabeça da criança de coisas inúteis
a estúpidas, não relacionadas com a vida nem com a própria realidade.

Vem daí a noção corrente de educação pela qual esta não é considerada
como uma necessidade social, mas identificada simplesmente a uma instrução
parcial sobre assuntos remotos, ou antes, à simples aquisição de "letras".
"Letrado" e "iletrado" tornam-se sinônimos de educado a ineducado.

Um dos grandes méritos da teoria de educação de Dewey foi o de restaurar


o equilíbrio entre a educação tácita a não formal recebida diretamente da vida, e
a educação direta a expressa das escolas, integrando a aprendizagem obtida
através de um exercício específico a isto destinado (escola), com a aprendizagem
diretamente absorvida nas experiências sociais (vida).

A direção do processo educativo. - Se é pela educação que a


sociedade se perpetua, se é pela educação que à geração mais nova se
transmitem as crenças, os costumes, os conhecimentos a as práticas da geração
adulta - educação é o processo pelo qual a criança cresce, desenvolve-se,
amadurece poderia dizer-se.

Esse processo de crescimento se opera, conforme já notamos, por uma


constante reorganização a reconstrução da experiência.

Vejamos, agora, como se dirige esse processo, a quais as forças por que se
orienta e conduz, para que fique assegurada a renovação social que o justifica.

A atividade educativa não se processa no vácuo, independente de objeto ou


condições. Ao contrário, ela é sempre uma resposta a estímulos específicos ou
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gerais, nascidos do próprio organismo e do meio ambiente em que o indivíduo
vive.

A direção é, de um lado, fornecida por esse meio social. Os civilizados


perpetuam a civilização. Os selvagens perpetuam a selvajaria. Tudo por uma
questão de meio educativo. O meio social, pelos seus estímulos, provoca a dirige
as nossas atividades.

Este meio se constitui exatamente das condições que promovem ou


impedem, estimulam ou inibem as atividades características do nosso
organismo. E são tais condições que determinam a direção do processo
educativo.

Tomemos por exemplo a aprendizagem da linguagem. Como se dirige essa


atividade educativa pela qual a criança cresce no comando da língua materna?
Por certo, ninguém imaginará o perigo de que ela se desoriente a crie uma língua
própria em vez de aprender o idioma nativo.

A ilustração é das mais concludentes.

Com efeito, sendo a educação o resultado de uma interação, através da


experiência, do organismo com o meio ambiente, a direção da atividade
educativa intrínseca ao próprio processo da atividade. Não pode haver atividade
educativa, isto é, um reorganizar consciente da experiência, sem direção, sem
governo, sem controle. Do contrário, a, atividade não será educativa, mas
caprichosa ou automática.

Daí à afirmação de Dewey de que, rigorosamente, todo o problema de


direção em educação é simplesmente um problema de redireção.

A criança, que esteja aprendendo a falar, não precisa de direção para que
venha a conquistar a língua materna, mas de redireção, no sentido de se lhe
corrigirem, ajustarem, economizarem a ordenarem as experiências educativas.

De dois modos, porém, o meio social pode dirigir a nossa atividade. Por
um, somos treinados, por outro, educados. O treino nos leva apenas a certa
conformação externa com hábitos a práticas de cujo sentido não participamos
integralmente: é o primeiro resultado rude e áspero de nosso contato com outros
pessoas a com um meio social de convenções a de fórmulas. Se eu levo, sob pena
de certo castigo, uma criança a se curvar sempre que tal ou qual pessoa entre
numa sala, ela ganhará provavelmente esse hábito. Mau grado todas as
aparências externas de cortesia estarem presentes, é possível, entretanto, não
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haver cortesia alguma no seu sentido genuíno. A criança não participa da
significação social do seu hábito. Ganhou, tão-somente, através dos estímulos
com que procuramos imprimir-lhe esse hábito, uma conformidade mecânica.
Pode chegar a ser um esplêndido exemplar de "bicho ensinado", mas não se
educou.

O treino é assim uma forma preliminar a incompleta de educação. Torna-


se aqui necessário salientar que muitas das atividades chamadas educativas, a
que forçamos as crianças, que vão além desse nível rudimentar.

A educação verdadeira deve, porém, levar a criança para além dessa


aquisição de certos modos visíveis a externos de ação, provocados por condições
também puramente externas. A criança deve associar-se á experiência comum,
modificando de acordo com ela seu estímulo interno, a sentindo, como próprio,
o sucesso ou o fracasso da atividade.

É neste sentido que toda educação é social, sendo, como é, uma


participação, uma conquista de um modo de agir comum. Nada se ensina, nem
se aprende, senão através de uma compreensão comum ou de um uso comum.

O fato da linguagem cria a ilusão de que se educa diretamente através de


palavras.

Se nada é mais falso, nada entretanto é mais consciente ou


inconscientemente adotado na prática.

A palavra permite, sem dúvida, resumir e ampliar a experiência, mas nem


por isso ela se subordina menos àquele caráter de compreensão mútua que
permite a reconstrução imaginativa da experiência comum, ou associada, que
representa.

Com efeito, ainda aí é por intermédio de uma experiência em que a criança


percebe o sentido das coisas pelo seu uso, que a educação se processa. A palavra
cadeira, por exemplo, é aprendida depois que a criança experimentou e usou o
objeto cadeira. Passa, então, essa palavra a representar-lhe, condensadamente,
tudo aquilo que significam as suas experiências com relação à cadeira. O só
estímulo auditivo - cadeira - lhe provoca todas as reações que o objeto lhe
costuma despertar. Até aí, estamos dentro do nosso conceito de experiência e de
atividade. O conhecimento não se transmitiu diretamente pela palavra. Pode ela,
entretanto, ser-lhe útil em mais alguma coisa: ampliar-lhe a experiência e levá-
la, pela compreensão do termo cadeira, a compreender todos os outros móveis
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de fins idênticos que não estejam ao alcance do seu conhecimento direto, pelo
uso ou experiência.

Nesse segundo passo, a linguagem não abre, como logo vemos, nenhuma
exceção ao princípio geral que adotamos. A experiência é ampliada por um
processo de reconstrução imaginativa. As novas coisas aprendidas estão ligadas
às primeiras experiências reais.

É face a essa função de ampliadora da experiência que a língua se torna o


instrumento por excelência de educação. E, compreendida assim, é ela uma das
ilustrações mais fecundas da ação educativa, sutil e larga, do meio social. Todo
um sistema particular e delicado de modos de sentir e de viver conquista-nos
insensivelmente e para sempre, através de sua aprendizagem.

A escola como meio social. - Não há, pois, nenhum meio direto de
controlar ou governar a educação que a geração infantil recebe, salvo o de
preparar o ambiente em que a criança age, pensa e sente. Não se educa
diretamente mas indiretamente através de um meio social. Temos, porventura,
possibilidade de agir sobre o meio, de modificá-lo, de alterá-lo, de organizá-lo
intencionalmente para tal ou tal efeito educativo? Todos os pais inteligentes
dirão que sim. Muitos deles estão constantemente interessados em dar ao meio
familiar uma feição educativa e benéfica, ela qual os filhos possam vir a ser,
possivelmente, melhores do que eles.

As escolas, por sua vez, são também meios organizados intencionalmente


para o fim expresso de influir moral e mentalmente sobre os seus membros. É,
pois, na preparação desse meio especial de educação - a escola - que podemos e
devemos dispor as condições pelas quais a criança venha a crescer em saber, em
força e em felicidade.

Três características, acentua Dewey, distintas das que marcam as


associações ordinárias, deve ter essa forma de associação.

Primeiro, deve prover um ambiente simplificado, para permitir o acesso da


criança. Longe vão os tempos em que a própria vida ainda era tão simples que as
crianças nela podiam diretamente participar. Hoje, a civilização ganhou
inexprimível complexidade, constituindo-se de uma série de artes, de ciências e
de instituições que somente anos de estudo nos habilitam a compreender e a
praticar. A escola deve simplificar esse ambiente complexo para que a criança
gradualmente lhe venha conhecer os segredos e nele participar.
15
Segundo, deve organizar um meio purificado, isto é, de onde se eliminem
certos aspectos reconhecidamente maléficos do ambiente social. A escola não
visa perpetuar na sociedade os seus defeitos. Em uma sociedade progressiva, ela
é o órgão específico de uma constante melhoria, pela qual desejamos legar a
nossos filhos a possibilidade de uma vida mais feliz que a nossa.

Terceiro, deve prover um ambiente de integração social, de harmonização


de tendências em conflito, de larga tolerância inteligente e hospitaleira.
Influências antagônicas, isolamentos familiares ou religiosos, espírito de dá ou
de partido, ameaçam nas sociedades heterogêneas dos dias de hoje, a dividir,
separar, desunir os membros da família social. A escola deve ser a casa da
confraternização de todas essas influências, coordenando-as, harmonizando-as,
consolidando-as para a formação de inteligências claras, tolerantes e
compreensivas.

O processo educativo e o indivíduo. - Até aqui estudamos o conceito


de educação em sua objetividade de fato natural e social. Importa agora
examiná-lo nas suas relações com o indivíduo: de que modo suas tendências,
seus impulsos, suas inclinações entram na contextura do ato educativo.

Das explicações anteriores decorre claramente que consideramos o


indivíduo como um ser social, que só existe em sociedade, que é tão impossível
isolar como é impossível isolar a "matéria" da "forma" na concepção escolástica.

Com Albion W. Small, preferiríamos chamar-lhe "socius" a "indivíduo",


uma vez que aquela expressão é muito mais fiel à realidade, que a velha
categoria de indivíduo.

Quando, portanto, acentuamos que educação importa em direção, em


governo, em controle da experiência pelo meio social não quisemos significar
por isso nenhuma forma de coerção ou compulsão. Estamos longe da velha
suposição de que as tendências naturais do indivíduo são todas egoísticas ou
anti-sociais, consistindo a educação no esforço para subordiná-las a um sentido
exato de vida coletiva. A vida social, que fosse assim uma construção
compulsória, mantida em harmonia instável por meio de forças externas, não
poderia existir.

A atividade educativa deve ser sempre entendida como uma libertação de


forças e tendências e impulsos existentes no indivíduo, e por ele mesmo
trabalhados e exercitados, e, portanto, dirigidos, porque sem direção eles não se
poderiam exercitar. Em geral, o próprio estímulo traz já um elemento de direção
e de orientação da atividade. Não somente excita e provoca a atividade orgânica,
16
como a encaminha para determinada "resposta". Existe entre o estímulo e o
órgão estimulado uma correspondência, pela qual aquele fornece a condição
para que este preencha a sua função.

Isso é evidente em atividades rudimentares, em que há um estímulo


específico para provocar uma atividade específica. Dado o som, o ouvido ouve.
Dada a luz, os olhos vêem.

Mas a educação de uma criança não está assim sujeita a estímulos


específicos que despertem respostas certas e definidas. Ao contrário, são em
multidão os estímulos que apelam para respostas múltiplas, devendo pois haver
um trabalho largo de coordenação e ajustamento.

Imaginemos um principiante que está a aprender a patinar. As energias


despendidas não têm, a princípio, exatidão nem ordem. São dispersivas e
centrífugas. Progressivamente é que se vão selecionando as reações mais
ajustadas, é que o esforço se vai circunscrevendo a um objetivo mais
determinado, e se coordena por fim a atividade no resultado almejado.

A tarefa de direção importa, assim, em selecionar, focalizar e ordenar a


resposta à situação, dando orientação, coordenação e continuidade às múltiplas
reações do nosso organismo.

Tal direção nunca poderá ser puramente externa. O meio exterior provê
apenas as condições, os estímulos. As respostas ou reações têm que nascer de
tendências existentes no indivíduo, o qual participa, deste modo,
profundamente, da direção que tiverem os seus atos.

A influência do meio social, quando se opera normalmente, importa


simplesmente em um trabalho de redireção. E mesmo essa redireção tem,
logicamente, que levar em conta as tendências e impulsos do organismo, sob
pena de ser incompleta ou prejudicial.

O que sucede, porém, com os homens é que eles são muito mais
conscientes da sua influência, quando agem propositadamente no sentido de
dirigir a atividade alheia. Sua atuação direta, contra uma resistência ou uma
desobediência, projeta tal luz sobre a, eficácia de sua influência que,
naturalmente, forma-se a suposição de que é essa a forma, por excelência, de
direção.

Ora, assim é que se não dirige. Na maioria desses casos, uma


superioridade física ou moral força a prática do ato desejado pelo adulto. Mas
17
ninguém pode assegurar o perfeito resultado educativo dessa obediência. Perde-
se a oportunidade de fazer que o educando, por sua própria disposição, partícipe
do ato, e dê, assim, ao seu modo de agir uma direção intrínseca e persistente. O
verdadeiro meio de direção, ou controle social das atividades dos educandos é a
sua participação com outras pessoas em atividades comuns, cujo sentido e
finalidade eles adotem plenamente.

Só desse modo, além de ganhar um ajustamento físico com o ambiente - o


que pode ser obtido pela direção compulsória - o educando se adapta
integralmente à situação, porque compreende e aceita o sentido comum que tem
a sua resposta.

O fim da educação é, de modo geral, levar os educandos a ter as mesmas


idéias que prevalecem entre os adultos, e, assim, como membros reais do grupo
social, dar às coisas e aos atos o mesmo sentido que os outros. Esse controle
social se opera por um processo de compreensão comum dos objetos,
acontecimentos e atos, de sorte que se habilitem os educandos para uma
participação efetiva nas atividades associadas.

Pode-se, agora, compreender o cuidado que deve haver para que a escola
se organize de modo a assegurar esse resultado.

O fato de que a escola tem que se aproveitar amplamente da linguagem


para levar a criança à participação da experiência do passado, como para ganhar
mais facilmente a experiência do presente, mostra-nos como é fácil perder de
vista esse verdadeiro espírito social para transformá-lo em um espírito livresco e
irreal.

As crianças, diz Dewey, vão à escola para aprender. Está, porém, ainda por
se provar que o ato de aprender se realiza mais adequadamente quando é
transformado em uma ocupação especial e distinta. A aquisição isolada de saber
intelectual, tendendo muitas vezes a impedir o sentido social que só a
participação em uma atividade de interesse comum pode dar, deixa de ser
educativa, contradizendo o seu próprio fim. O que é aprendido, sendo aprendido
fora do lugar real que tem na vida, perde com isso seu sentido e seu valor.

O indivíduo e a sociedade, fatores e produtos, simultaneamente. - No


processo educativo, o indivíduo e o meio social são, portanto, dois fatores
harmônicos e ajustados. O meio social ou o meio escolar, se bem
compreendidos, devem fornecer as condições pelas quais o indivíduo liberte e
realize a sua própria personalidade. Não podemos, assim, considerá-los
antagônicos.
18

Todas as idéias de oposição entre a sociedade e o indivíduo se originam de


concepções isoladas e estáticas da sociedade ou do indivíduo. Se notarmos,
porém, que não existe indivíduo sem sociedade, nem sociedade sem indivíduos,
que uma e outra são produtos e fatores de uma situação única - vida social - e
que essa situação, por isso mesmo que é o resultado de uma constante interação
de elementos diversos, é essencialmente móvel e dinâmica, para logo
percebemos que não existe o problema do indivíduo versus sociedade.

Pode haver, aqui e ali, circunstanciadamente, antagonismo entre tal


indivíduo e tal sociedade, o que significa desadaptação e desajustamento
transitórios. Não há, porém, nenhum conflito essencial entre as duas realidades
- indivíduo e sociedade - porque elas não são mais que termos de um mesmo
processo em constante desenvolvimento.

Logo, a escola não deve ser a oficina isolada onde se prepara o indivíduo,
mas o lugar onde numa situação real de vida, indivíduo e sociedade constituam
uma unidade orgânica.

Esta concepção importa na atribuição da qualidade progressiva ao


indivíduo e à sociedade.

O processo educativo como processo do crescimento indefinido. De fato, a


capacidade humana de aprender, isto é, o poder de reter de uma experiência
alguma coisa com que se poderá transformar a experiência futura, é de sua
natureza indefinida. O homem não aprende por uma necessidade que, satisfeita,
faça desaparecer aquela capacidade. Aprender é, muito pelo contrário, uma
função permanente do seu organismo, é a atividade pela qual o homem cresce,
mesmo quando o seu desenvolvimento biológico de há muito se completou. Essa
capacidade de aprender permite uma educação indefinida, um indefinido
crescimento. Tal crescimento é naturalmente muito mais visível na infância,
onde tem o seu máximo de intensidade, mas nem por isso deixa de perdurar por
todo o período da vida.

Analisemos com Dewey as condições por que se opera esse crescimento. A


primeira condição para crescimento é imaturidade. Não entendamos, porém,
imaturidade como simples ausência ou falta, mas como uma força de
desenvolvimento.

É o hábito de considerar a criança comparativamente, em relação ao


adulto, que leva à concepção de que imaturidade é somente falta, privação; e
crescimento, qualquer coisa que enche o intervalo entre o ser imaturo e o adulto.
19
Tal idéia é contrária à realidade, porque, conforme já notamos, o poder de
crescer moral e mentalmente se conserva até a velhice. Embora diminuindo
progressivamente de intensidade, não faz ele do adulto nenhum alvo fixo a
atingir. Também essa concepção é a responsável mais imediata pela teoria de
que a educação é simples preparação para a vida, teoria que justifica todo o
isolamento e artificialismo com que se organiza a escola.

Considerada em si, e não em relação ao adulto, a imaturidade da criança


indica poder, força de crescimento e desenvolvimento, capacidade de construir,
utilizando o presente, um futuro cada vez melhor.

Os traços principais da imaturidade são dependência e plasticidade.


Dependência não é simplesmente impotência. É antes poder, mas poder com
outros. É ela que abre para a criança um campo indefinido de adaptações e
readaptações sociais. A sua maior dependência física marca a sua maior riqueza
de dotes sociais.

Tomando toda a escala de animais, poderíamos dizer que os dotes de


independência física diminuem à medida que crescem os dons sociais de mútua
dependência, mútuo auxílio e mútua colaboração. Dependência é, portanto,
capacidade social, capacidade de vibrar simpaticamente com os semelhantes,
capacidade de entrar em relações, de associar-se, de viver em comum. Em rigor,
afirma Dewey, à medida que um homem cresce em independência pessoal reduz,
de algum modo, a sua capacidade social como indivíduo.

A essa dependência, ou melhor interdependência social, ajunta-se o


característico de plasticidade do organismo humano, isto é, a capacidade de
aprender a modificar os próprias atos, em vista dos resultados de experiências
anteriores, desenvolvendo disposições, hábitos e modos de agir.

Aprender, aliás, além de ser o modo de adquirir hábitos, pode tornar-se e


torna-se um hábito em si mesmo. É intuitivo que isto vem a significar
prolongamento de plasticidade, permanência da constante capacidade de
renovação do homem.

Importa logo notar que nessa teoria não se alimenta, sobre o hábito, a
suposição corrente de que o mesmo importe em uma adaptação rígida ao meio
externo.

Hábito, como produto imediato do processo educativo, é uma forma de


habilidade de execução, uma forma de eficiência. Tal fase motora ou de execução
não esgota, entretanto, o significado de hábito. Além da facilidade, da economia
20
e da eficiência de ação que o hábito assegura, envolve ele ainda uma inclinação
intelectual, uma preferência pelas condições que permitem o seu exercício. E é
esse elemento intelectual que dá flexibilidade, força aperfeiçoadora ao hábito.
Por aí é que os hábitos, além de serem produtos de educação, chegam a ser
instrumentos para a reeducação permanente em que devemos viver.

Existem, por certo, hábitos rígidos que nos escravizam a ação, em vez de
libertá-la. Aí estão os hábitos rotineiros que se desligaram da inteligência que os
poderia renovar. Como tais deixam de ser educativos, para se tornarem entraves
ao nosso progresso. Destroem a plasticidade a que nos referimos, que é a
permanente capacidade de adquirir novos hábitos, ou de aperfeiçoar os que já
possuímos.

Não há dúvida que uma tendência, de certo modo orgânica, nos leva a uma
crescente diminuição de plasticidade. Asseguremos, porém, um ambiente que
nos conserve o uso constante da inteligência no processo de formação dos
hábitos, e contrabalançaremos, de muito, aquela tendência.

Está nisso uma das maiores responsabilidades da escola. Nunca se deve


buscar a eficiência mecânica de um hábito sem fazê-la acompanhar de uma
idêntica eficiência de pensamento. Deste modo todos os hábitos serão refletidos
e inteligentes e, como tais, aptos a toda sorte de reajustamentos que a vida exige.

Seja a idéia de imaturidade como atributo puramente negativo da criança,


seja a idéia de hábito como qualquer coisa mecânica e rígida, ambas levam ao
conceito de educação como uma adaptação estática a um meio ou ambiente fixo.

Responde tal idéia de educação por três práticas funestas das escolas: a)
não levar em conta as tendências e impulsos nativos ou já existentes na criança;
b) não desenvolver a iniciativa para o trato com situações novas; c) dar relevo
exagerado a exercícios que asseguram eficiência mecânica com prejuízo de uma
assimilação mais pessoal e mais rica das coisas.

Em todos esses casos, o adulto é considerado o padrão fixo a que


desejamos conformar os alunos, reduzindo a educação a uma modelagem da
criança "à imagem e semelhança dos pais".

Educação é vida. - Na teoria que expomos, educação não é preparação,


nem conformidade. Educação é vida, e viver é desenvolver-se, é crescer. Vida e
crescimento não estão subordinados a nenhuma outra finalidade, salvo mais
vida e mais crescimento.
21
O processo educativo, portanto, não tendo nenhum fim além de si mesmo,
é o processo de contínua reorganização, reconstrução e transformação da vida.
Na frase de Dewey, o hábito de aprender diretamente da própria vida, e fazer
que as condições da vida sejam tais que todos aprendam no processo de viver, é
o produto mais rico que pode a escola alcançar.

Graças a esse hábito, a educação, como reconstrução continua da


experiência, fica assegurada como o atributo permanente da vida humana.
22

B. A ESCOLA E A RECONSTRUÇÃO
DA EXPERIÊNCIA

A premissa democrática que domina toda essa exposição. - A


teoria geral de educação, que vimos expondo, deixa subentendido que a contínua
reconstrução da experiência, individual ou social, somente pode ser aceita e
conscientemente buscada, por sociedades progressivas ou democráticas, que
visem, não a simples preservação dos costumes estabelecidos, mas a sua
constante renovação e revisão. Essa reconstrução propõe-se, com efeito, a
aumentar, sempre e sempre, o conteúdo e a significação social da experiência, e
a desenvolver a capacidade dos indivíduos, para agir como diretores conscientes
dessa reorganização.

É natural, portanto, que somente sociedades democráticas, que procurem


dar a maior liberdade aos membros que as constituem e criar o mais largo
espírito de solidariedade social e de comunhão de interesses, podem
conscientemente, aceitar e estimular o dinamismo reconstrutor da teoria
exposta. Passando, neste capítulo, a analisar as modificações que deve sofrer a
educação escolar, propriamente dita, para se ajustar ao conceito geral de
educação de John Dewey, toda a nossa exposição se acha subordinada à
premissa democrática que fundamenta a própria filosofia social daquele
pensador.

No capítulo precedente, esforçamo-nos por demonstrar que vida e


aprendizagem são, na realidade, os dois fatos supremos do processo educativo.
Vive-se aprendendo, e o que se aprende leva-nos a viver melhor. Todo o
interesse humano pela educação e pela escola é, fundamentalmente, urna
questão de tornar a vida melhor, mais rica e mais bela.

Logo, para dirigir o processo educativo devemos saber: 1º) como


aprendemos; 2º) como o que aprendemos refaz e reorganiza a nossa vida; 3º)
em que consiste uma vida melhor, trais rica e mais bela.

[Na universidade de Columbia, em Nova York, onde foi professor de filosofia John
Dewey, e professor de filosofia da educação W. H. Kilpatrick, costuma-se dizer,
numa dessas generalizações felizes de estudantes, que Dewey diz o que se deve
fazer e Kilpatrick o como se pode fazer, em educação. Na realidade, os dois
espíritos são em muitos aspectos suplementares e ninguém pode julgar-se
conhecedor da teoria de educação que ambos propõem, com a leitura das obras
de um só desses autores. Desde já declaro que, se o primeiro capítulo dessa ligeira
introdução foi todo inspirado em Dewey, para este segundo capítulo fomos colher
23
a maior parte de nossa argumentação em Kilpatrick. V. o vol. desta coleção
Educação para uma Civilização em Mudança, que condensa a filosofia da
educação de KILPATRICK.]

Como aprendemos. - Dizer como aprendemos importa em dizer o que é


método. O dualismo entre "método" e "matéria", originário do dualismo mais
profundo entre "espírito" e "mundo exterior", leva a supor que "método" e
"matéria" são coisas distintas e independentes.

As "matérias" transformam-se, então, em uma classificação sistemática de


fatos e princípios sobre a natureza e sobre o homem. E "método", em uma
classificação e exposição dos processos e modos pelos quais aquelas "matérias"
podem ser melhor apresentadas e impressas na mente dos discípulos. Em teoria,
pelo menos, torna-se, então, possível uma ciência completa de métodos, extraída
de uma ciência dos processos mentais, independente das matérias sobre que
esses métodos vão ser aplicados.

E exatamente porque tais métodos, além do mais, são completamente


ignorados pelos especialistas nas matérias, é que se justifica a acusação à
pedagogia - como ciência de métodos de aprender - de dispensável e fútil.

Não há, porém, nenhuma separação entre método e matéria. Método é o


modo pelo qual a experiência se processa, e, assim, não se distingue da
experiência, como também o seu objeto - a matéria - dela se não distingue. Essa
perfeita unidade do processo da experiência deve estar sempre presente à
inteligência do educador, para que se evite o erro de pensar que a distinção
puramente intelectual entre método e matéria tem qualquer apoio na realidade
objetiva de cada experiência.

Sendo assim, compreende-se que método, para nós, não é nenhum


conjunto de fórmulas ou regras pedagógicas, mas o modo por que devemos
dirigir a vida das crianças para o seu máximo crescimento e máximo aprender.

Vejamos pois o que é aprender e como se aprende. Se o nosso interesse


fundamental é pela vida, aprender significa adquirir um novo modo de agir, um
novo "comportamento" (behavior) de nosso organismo. Na linguagem usual do
povo, aprender e saber sempre tiveram esse sentido. "Saber é poder" é máxima
popular. A noção de que o conhecimento é um instrumento para reorganizar a
ação não oferece nenhuma surpresa para a nossa linguagem ordinária.

Aprender para a vida significa que a pessoa não somente poderá agir, mas
agirá do novo modo aprendido, assim que a ocasião que exija este saber apareça.
24
Imaginemos, como lembra Kilpatrick, num exemplo, aliás, extremo, que eu
indague do meu leitor, quantos são 5x3. A resposta 15 será dada
automaticamente, não estando em suas forças evitar que ela surja na sua mente.
O que aprendemos tem assim uma força propulsiva, pela qual, além de
podermos fazer a coisa pelo novo modo aprendido, temos que fazê-la por esse
novo modo. A aprendizagem se fixa intrinsecamente no organismo, dele
passando a fazer parte como nova forma de comportamento. Só deste modo
teremos realmente aprendido para a vida.

Outros tipos de aprendizagem, aceitáveis para efeitos secundários, mas


que não modificam a contextura da ação e conduta, não interessam à educação.

Quais as condições por que se processa essa aprendizagem que se integra,


assim, diretamente na vida?

Citam-se, geralmente, cinco condições para essa aprendizagem.


Indiquemo-las, deixando entrever como a escola tradicional não as fornece, nem
as pode fornecer com a sua velha organização:

1. Só se aprende o que se pratica. - Seja uma habilidade, seja uma


idéia, seja um controle emocional, seja uma atitude ou uma apreciação, só as
aprendemos se as praticarmos.

A escola tradicional está organizada para permitir que se pratiquem certas


habilidades mecânicas e certas idéias, sem cogitar da prática de outros traços
morais e emocionais desejáveis em uma personalidade. Como aprender, com
efeito, honestidade, bondade, tolerância, no regime de "lições" marcadas para o
dia seguinte? Só uma situação real de vida, em que se tenha de exercer
determinado traço de caráter, pode levar à sua prática e, portanto, à sua
aprendizagem. Daí, ser necessário que a escola ofereça um meio social vivo,
cujas situações sejam tão reais quanto as de fora da escola.

2. Mas não basta praticar. - A intenção de quem vai aprender tem


singular importância. Aprende-se através da reconstrução consciente da e
perimia, isto é, as experiências passadas afetam a experiência presente e a
reconstroem para que todas venham influir no futuro. Logo, a intenção que se
alimentar de aprender isto ou aquilo decide de muita coisa. Não posso adquirir
um novo modo de agir, se não tenho a intenção de adquiri-lo. A psicologia
ensina exatamente que não aprendemos todas as "respostas" que nosso
organismo dá aos "estímulos" de qualquer situação. O organismo escolhe as
"respostas" que satisfazem o seu esforço. Em cada caso particular, aprendo
aquilo que constitui o fim de minha atividade no caso. Aprendo as respostas
25
justas, corretas, bem sucedidas e deixo de aprender as respostas mal ajustadas,
falhas, erradas.

Está-se, pois, a ver o que se entende como sucesso e. como insucesso


determina inteiramente a direção de minha aprendizagem. É a atitude, o
propósito, a intenção de quem vai aprender que decide sobre o que vai ser
aprendido. A criança que, numa atividade educativa, tenha o propósito pessoal
de aprender leva vantagens sobre qualquer outra que o não tenha. Dá-lhe esse
propósito impulso para pôr em exercício seu esforço, critério para julgar do
sucesso ou fracasso da sua ação, e, ainda, a atitude pessoal pela qual identifica
esse fracasso com o seu próprio fracasso, e aquele sucesso com seu próprio
sucesso.

Segue-se de tudo isso que a escola não pode ser, simplesmente, a casa onde
se vão estudar alguns fatos e algumas habilidades mecânicas previamente
determinadas em programas fixos. Perde-se, por esse modo, a oportunidade de
aprender o que é verdadeiramente importante para a vida do aluno. Se o que se
aprende não se pode, então, determinar exclusivamente pelos programas e pelas
lições, a escola tem que tomar um rumo todo novo. A escola tem que se
transformar em um meio real, de experiências reais e de vida real. Só aí a criança
poderá, sem deslocações artificiais, criar seus propósitos, pô-los em execução,
aprender por meio deles e integrar os resultados de sua aprendizagem em sua
própria vida.

3. Aprende-se por associação. - Não se aprende somente o que se tem


em vista, mas as coisas que vêm associadas com o objetivo mais claro da
atividade. Não levar em conta esses resultados da atividade educativa, importa
em desprezar, por vezes, coisas mais importantes do que o próprio objeto do
ensino. Enquanto ensinamos aritmética, podemos estar ensinando também uma
atitude de desgosto pela matéria, que venha a perdurar toda a vida.

4. Não se aprende nunca uma coisa só. - Como acabamos de ver, à


medida que aprendemos uma coisa, várias outras são simultaneamente
aprendidas.

Geralmente, em qualquer experiência, enquanto a atenção se dirige para


esse ou aquele fator, tomando dele consciência mais ou menos viva, segundo
Kilpatrick, duas ou três diferentes aprendizagens estão sendo adquiridas, com
respeito a cada fator: primeiro, uma atitude de gosto ou desgosto; segundo, uma
idéia do que é o fator e de como ele age; terceiro, um ideal de qual deveria ser o
seu caráter e a sua ação. Essa atitude, essa idéia e esse ideal se constroem
juntamente com o objetivo direto da atividade. Deverá o educador desprezar
26
elementos dessa importância para a vida? Poderá a escola se organizar sem levar
em conta tais aprendizagens?

Enquanto um aluno está aprendendo a lição de geografia, está


simultaneamente ganhando atitudes para com a matéria, para com o mestre,
para com a escola, para com as coisas da inteligência, de certo modo para com a
vida toda.

Essa lição de geografia pode vir a ensinar-lhe a ter prazer em cooperar com
os outros, a ter simpatia humana, ou, pelo contrário, o pode levar a uni
sentimento de desgosto e de irritação contra o mestre, contra a ordem escolar ou
contra a ordem em geral.

Tais atitudes, tais idéias e tais hábitos, que assim se vão formando à
margem da atividade, são de importância que é difícil exagerar.

Esta razão ajunta-se às outras para promover a transformação dá ardem


tradicional da escola que apenas visa ensinar fatos, informações e algumas artes.
Para atender a todas as aprendizagens que acompanham qualquer atividade
educativa, é necessário que as condições da escola sejam idênticas às da própria
vida.

5. Toda a aprendizagem deve ser integrada à vida, isto é,


adquirida em uma experiência real de vida, onde o que for aprendido tenha o
mesmo lugar e função que tem na vida.

A idéia de que a escola era uma "preparação" ganhou, na velha escola, até
nos menores detalhes dos exercícios escolares, uma expressão definida. Se se
ensinava a ler, havia-se de aprender primeiro as letras, depois as sílabas, depois
as palavras, depois as sentenças. Se a escrever, primeiro se haviam de aprender
traços, depois composições desses traços, depois letras, e assim por diante. Cada
exercício era um exercício "isolado", sem conexão com nenhuma realidade
presente, e que depois o aluno devia "combinar", recompor, para construir o
todo real.

Se assim era nas artes escolares, muito mais nas "matérias". Tudo era
ensinado na sua ordem lógica, independente da aplicação e das relações reais.
Mais tarde, o aluno sacaria contra esse capital acumulado, para utilizá-lo na vida
real.

Tal ensino divorcia-se de todas as condições de uma verdadeira


aprendizagem.
27

O aluno, não vendo nenhuma relação da "matéria" com sua vida presente
ou qualquer empreendimento em que esteja empenhado, não pode ter motivo
para se esforçar; não tendo motivo, não pode ter desejo ou intenção de aprender
(salvo motivos artificiais ou falsos); não tendo a intenção de aprender, não pode
assimilar ativamente a matéria, integrando-a à sua própria vida.

O que sucede é fácil de perceber. Alguma coisa sempre se aprende, seja lá


qual for o método. Mesmo na escola tradicional. Conhecimentos decorados, ou
um meio saber livresco e intelectualista. O aluno ganha, porém, através dessa
aprendizagem uma singular indisposição para a ação. Todo o meu saber é um
saber segregado da vida, sem relações com a realidade, inaplicável. Nos
melhores casos, chega a desenvolver grande habilidade mental para idéias, para
jogos de pensamento, conservando-se incapaz de um projeto concreto e
realizável. Para cúmulo de ironia, por vezes, seu meio-saber livresco torna-o tão
convencido de que essa é a verdadeira fórmula da inteligência, que, com toda a
candura do mundo, ele reputa pobres de espírito todos os homens de ação, todos
aqueles que ignoram o divórcio estúpido que a escola lhe impôs entre o
pensamento e a ação.

Está claro que é dispensável insistir na afirmação de que tal ensino é antes
prejudicial do que útil.

O que se aprende "isoladamente", de fato não se aprende. Tudo deve ser


ensinado, tendo em vista o seu uso e função na vida. Nem se diga que isso venha
a impedir os "exercícios" escolares e tornar, assim, impossível a aprendizagem
de muita coisa. Muito pelo contrário. Se a criança percebe o lugar e a função que
tem aquilo que vai aprender, seu intento de aprender dá-lhe impulso para todos
os "exercícios" necessários. Toda criança se "exercita" naturalmente, Nos jogos,
a cada momento, se vê isto. O interesse da criança no jogo fá-la praticar
isoladamente as partes que compõem o jogo. Mas, não as "pratica", senão em
vista do todo a que aquela parte vai servir. Nesse caso a aprendizagem é ainda
integrada.

Mais uma vez, pois, repetimos que a escola tem que repudiar o velho
sistema, para adotar como unidade do seu programa a "experiência" real em vez
da "lição", se é que deseja satisfazer a sua finalidade.

Como o que aprendemos refaz e reorganiza a nossa vida. - Toda


a teoria de educação de Dewey insiste, como ponto principal, na restituição da
aprendizagem ao caráter natural que ela tem na vida.
28
Educação é vida, não preparação para a vida. - Muito antes que
houvesse escolas houve educação. E mesmo havendo escolas, a educação que se
recebe antes de ir para a escola, a que se recebe fora da escola, quando a
freqüentamos, e a que se recebe depois de deixar a escola, sem dúvida, são bem
mais importantes que a que nos fornecem os curtos ou longos anos escolares.

Temos, portanto, que nos voltar para a vida para ver como o que
aprendemos nos auxilia a refazer e reorganizar a nossa própria vida.

Há dois modos de aprendizagem na vida: aquele pelo qual aprendemos a


fazer alguma coisa que antes não sabíamos (aprendizagem motora); e aquele
pelo qual resolvemos uma dificuldade ou um problema (aprendizagem
intelectual). Geralmente, o que aprendemos encerra uma combinação desses
dois tipos. Nem se esqueça que a um e outro acompanham várias aprendizagens
associadas.

Demos um exemplo de uma dessas aprendizagens comuns na vida de


qualquer criança. Tomemos a ilustração de Kilpatrick e os cinco pontos para o
qual este chama nossa atenção.

Suponhamos uma criancinha que foi até hoje alimentada por mãos alheias.
Ela quer agora alimentar-se por si mesma. Dá-se, mais ou menos, o seguinte:

1. A criança tenta alimentar-se por si mesma com uma colher.

2. Encontra dificuldade. Falta-lhe a habilidade necessária. Seu organismo


não tem o "comportamento" necessário àquele Ao. Tem várias outras
habilidades e hábitos. Sabe segurar a colher, sabe apanhar o alimento. Falta-lhe,
porém, alguma coisa para poder alimentar-se por si.

3. Experimenta novamente, sob a direção da ama ou de sua mãe.


Experimenta, depois, sozinha, de um modo, depois, de outro.

4. Afinal acerta, acha e aplica a habilidade que lhe faltava.

5. A atividade começada em 1, detida por uma dificuldade em 2, prossegue


agora seu caminho. A criança alimenta-se por si mesma.

Nessa ilustração vê-se: a) como aprender é indispensável à vida (vida em


progresso); b) como estudo é o esforço para achar a solução de uma dificuldade
ou um modo de agir apropriado á, situação, esforço que pode ser ajudado por
quem saiba facilitar ou estimular o processo (professor); c) como, aprender
29
nesses casos importa em uma atividade criadora, mesmo que seja auxiliada por
outrem; d) e finalmente, como a aprendizagem terra na própria situação a prova
que se efetivou, uma vez que a atividade pôde prosseguir o caminho
interrompido pela dificuldade que se lhe interpôs.

Tal aprendizagem é, na frase de Kilpatrick, intrínseca n vida, funcionando


no seu lugar real no processo de viver.

A aprendizagem escolar é geralmente extrínseca à vida. Não tem relações


com ela, nem visa resolver uma dificuldade percebida que detenha a atividade
em que o aluno esteja voluntariamente empenhado.

Dai o critério de Kilpatrick, para julgar o ensino: "no grau em que a


aprendizagem escolar for "intrínseca", sendo as outras condições as mesmas,
nesse grau a aprendizagem é boa e sã".

Resta salientar como o que a criança aprende, reorganiza e reconstrói sua


vida. Continuemos com a ilustração. Ganhou a criança através daquele processo
de aprendizagem um novo "comportamento"; ao que sabia antes ajuntou mais
um conhecimento: sabe alimentar-se por si mesma. Que quer isso dizer? Que
várias coisas que não lhe eram possíveis, tornaram-se possíveis: ficou menos
dependente dos outros; a sua responsabilidade é maior; é, sob certo aspecto,
mais gente do que antes; o modo de se alimentar e aquilo com que se vai
alimentar estão agora mais em suas mãos.

A sua pequenina vida se alargou; graças a isto vai aprender várias outras
coisas; a sua vida ganhou um plano mais alto.

É isso a "reconstrução da experiência", que, segundo Dewey, define a


educação.

Não avancemos sem considerar um ponto importante, que poderia parecer


aberto à crítica.

A escola é a instituição pela qual a sociedade transmite a "experiência


adulta" à criança.

Como por esse processo, que defendemos, se poderão criar as


oportunidades para essa aquisição da experiência da espécie humana? Onde
ficam as "matérias" de ensino?
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Conhecimento ou saber, nessa nova escola, tornar-se-á oportunista,
incerto e desarticulado?

Antes do mais, vejamos na ilustração citada, como entrou ali a


"experiência adulta" e qual a sua função.

A colher e o seu uso são aquisições da experiência humana. O uso pessoal


da colher pela criança é que é o elemento novo. A experiência de espécie lhe
serviu para a estimular a alimentar-se sozinha, por aquele modo, e lhe forneceu,
no exemplo do adulto, o modelo de imitação, pelo qual guiou os seus esforços.

O caber acumulado da espécie estimula pois a aprendizagem e fornece-lhe


os meios e modelos pelos quais se pode vir a adquiri-lo.

A teoria da escola que vamos expondo, longe de banir, portanto, a


experiência da espécie, faz dela seu ponto de apoio fundamental. Mais. Não julga
que ela deva ser adquirida, exclusivamente, pela atividade espontânea da
criança. O professor é elemento essencial da situação em que o aluno aprende, e
sua função é, precisamente, a de orientar, guiar e estimular a atividade através
dos caminhos conquistados pelo saber e experiência do adulto.

Apesar de tudo isso, fica de pé, entretanto, a crítica de que a escola


organizada pela teoria aqui exposta, não será econômica, não levará ao máximo
de aprendizagens, porque a aquisição do saber, devendo processar-se em um
processo natural de vida, será inevitavelmente acidental. A condenação da escola
velha já está tão cediça, exatamente neste aspecto de quase nada ensinar, que se
poderia pedir-lhe contas, neste passo, da autoridade com que levanta essa
acusação contra a escola nova.

O saber que se ganha ali é tão duvidoso, tão livresco, tão isolado da vida,
que não seríamos exagerados em repetir que é antes prejudicial do que
vantajoso.

Não seria pois essa a razão por que não havíamos de tentar a reorganização
escolar.

Mas, há mais do que isto. As experiências com escolas novas já vão bem
adiantadas no mundo. Escolas em que "o currículo não é organizado por
"matérias", mas como um processo de vida, uma sucessão de experiências, em
que cada uma se desenvolve da anterior, permitindo uma contínua e frutuosa
reconstrução da experiência", já existem em todo o mundo. Apesar do seu
caráter experimental e tateante, as conclusões são, até agora, todas favoráveis.
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Mesmo sob o aspecto da simples aquisição de conhecimentos e de saber, elas
sobrelevam em muito a velha escola tradicional.

Todo o problema está na seleção das atividades infantis que vão constituir
o programa. Se as atividades forem escolhidas com inteligência, a criança nunca
virá a correr o risco de aprender menos na escola nova do que na escola
tradicional. Esse problema do currículo, se não no seu conteúdo, no seu método,
é magistralmente estudado por Dewey, na primeira parte deste livro.

Em que consiste uma vida melhor, mais rica e mais bela. -


Spencer considerava a finalidade da educação a "vida completa" e esforçou-se
por definir, objetivamente, o que era essa vida completa.

Para, Dewey o fim da educação não é vida completa, mas vida progressiva,
vida em constante ampliação e em constante ascensão.

Como cresce, então, a vida? - Cresce á medida que aumentamos o


conteúdo de nossa experiência, alargando-lhe o sentido, enriquecendo-a com
idéias novas, novas distinções e novas percepções; e à medida que aumentamos
o nosso controle dessa experiência.

A vida é, pois, tanto melhor quanto mais alargamos nossa atividade, pondo
em exercício todas as nossas capacidades. Esse ideal é não somente individual,
como social: o máximo desenvolvimento de cada um dirigido de modo que se
assegure o máximo desenvolvimento, de todos.

Tal desenvolvimento progressivo e permanente constitui a essência da vida


perfeita.

A filosofia que serve de fundamento a essa teoria é a que expusemos no


primeiro capítulo.

O mundo em que vivemos é essencialmente precário e indeterminado, mas


o esforço humano conta, como um fator predominante, no destino que esse
mesmo mundo pode tomar. O homem refaz o mundo pelo seu esforço.
Presentemente, esse esforço ganhou tal expansão e tal intensidade que tudo está
a se refazer com velocidade que nos custa, às vezes, apreender.

Nesta civilização em perpétua mudança, só uma teoria dinâmica da vida e


da educação pode oferecer solução adequada aos problemas novos que surgem e
que surgirão.
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É tal teoria, adaptada às duas grandes forças que estão moldando o mundo
moderno - democracia e ciência - que a filosofia de John Dewey buscou traçar.

Na exposição resumida que dela procuramos fazer, buscamos, uma vez que
não podíamos ser completos, ser, ao menos, fiéis ao pensamento do grande
pedagogista.

As duas monografias de John Dewey, que compõem este livro, darão ao


leitor um exemplo do vigor e originalidade do seu pensamento em matéria de
educação, e lhe despertarão talvez o desejo de conhecer outros trabalhos de um
dos maiores filósofos de nosso tempo.

Anísio S. Teixeira

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