(2020) A Sociologia Da Mentalidade Espírita. Ensaio Sobre Uma Ampliação Espírita Do Conceito de Sociedade (Livro Aephus)

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(2020) A sociologia da mentalidade espírita. Ensaio sobre uma ampliação


espírita do conceito de sociedade (Livro Aephus)

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Luiz Signates
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O individualismo e as possibilidades de uma sociologia da mentalidade
espírita: ensaio sobre uma ampliação espírita do conceito de sociedade e
seus limites1

Luiz Signates2

Introdução

Não é segredo para ninguém que as religiões constituem mundividências. Diferentes de meros
pontos de vista, as teologias e teogonias religiosas em geral sustentam discursos totalizantes,
em relação ao universo e à vida, que buscam dar conta de todas as perguntas do homem a
respeito das coisas. Derivadas de um tempo em que representavam o único saber
sistematizado disponível, as descrições religiosas do mundo ainda hoje disputam com a
filosofia e a ciência o privilégio de dizer a verdade e determinar as regras morais e sociais,
embora na atualidade isso ocorra com menor consequência, em vista de terem as instituições
religiosas perdido a capacidade política de imposição de ideias.

A fragilidade política e, até certo ponto, cultural da discursividade religiosa, decorrente da


laicização do Estado e, também, da diversificação das alternativas interpretativas no mercado
das crenças, não inibiu as pretensões totalizantes das mundividências religiosas. Elas
continuam a produzir sentidos totais e absolutos, ancoradas em produções dogmáticas, ainda
que cada vez mais em negociação com os sentidos da ciência e da filosofia. Encantoadas pela
sombra do êxito da empreitada científica e tecnológica do capitalismo moderno, as religiões
nem por isso se restringiram aos terrenos nos quais a racionalidade instrumental do
desenvolvimento da ciência não alcança. Tanto é verdade que, no auge do saber
contemporâneo, teses como o criacionismo e o terraplanismo ainda vicejam, como a dizer que
o obscurantismo não se extingue nem sob a luz solar da mais eficaz racionalidade que a
Humanidade já conheceu.

O espiritismo se insere de forma própria nessa realidade. Surgida em pleno apogeu do


chamado “século das Luzes”, na França positivista e sob a batuta de um intelectual que se
destacava pela posição racionalista com que tratava os temas, o espiritismo fundou um novo
modo de efetuar o debate entre ciência e religião. Distanciando-se da consagrada separação
entre razão e fé, Allan Kardec propôs o diálogo entre essas duas dimensões, por meio do
conceito de “fé raciocinada” (KARDEC, 2013, p. 256) –, que antecipa determinados sentidos da
epistemologia contemporânea (SIGNATES, 2001a), e originalmente submete a fé à razão e à
própria racionalidade científica (KARDEC, 2013). Embora não tenha sido praticada por seus
seguidores, especialmente no Brasil, onde a religião estabelecida utiliza largamente as obras

1
Texto inscrito no Fórum do Pensamento Social Espírita, promovido pela Aephus, em 2019.
2
Docente efetivo do Programa de Mestrado/Doutorado em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás. Docente efetivo do Programa de Mestrado/Doutorado em Comunicação
da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP. E-mail:
[email protected]
de Kardec numa perspectiva claramente dogmática (SIGNATES, 2018a), o debate científico é
profundamente sensível dentro do movimento espírita. A busca por conciliar o pensamento
religioso com a racionalidade possível prossegue no movimento, a ponto de fazer emergir,
recentemente, instituições voltadas para essa mediação – como a AEPHUS, que patrocina esta
publicação –, fundamental para a justificação e a legitimação ideológica da doutrina.

Este texto se insere nesse debate, em uma especificidade pouco aventada pelos espíritas, por
razões históricas: a da correlação entre o pensamento espírita e o pensamento social. Como
temos feito ver em outros trabalhos, o espiritismo brasileiro pouco discute e até, em certos
casos, renega o debate social e político. Ancorado desde Kardec numa visão individualista do
espírito e estruturado como religião, no sentido moderno do termo – em que a religião é uma
atividade privada, na qual a inserção política aparece como contaminadora e negativa –, o
espiritismo no Brasil promoveu ao longo do século XX uma busca nem sempre bem sucedida
por aproximação com as ciências médicas e psicológicas, especialmente a biomedicina e a
psicologia behaviorista, afeitas a uma forma de pensar na qual o indivíduo ocupa a
centralidade da subjetividade e as suas relações constituem apenas um consequente
subalterna dessa centralidade. Com base nesse composto, o espiritismo brasileiro tornou-se
sobretudo uma religião de autoajuda, inerte para os problemas e temáticas sociais, inclusive
os debates sobre moral – que tendeu sempre a perceber pela perspectiva das escolhas
individuais, distante até mesmo das abordagens filosóficas, que interpretam a moral pela
perspectiva das regras e costumes coletivos herdados social e historicamente.

Por isso, este ensaio pretende ser prospectivo, no sentido teológico do termo. Primeiro, parte
de reconhecer a literatura espírita consagrada como um texto de tipo teológico, já distanciado
de sua pretensão científica inicial, não evidentemente por suas origens e sim pelo modo como
é tratada nos dias de hoje: como códex do espiritismo, indisponível ao debate contraditório,
exceto em alguns grupos pequenos e raros, que temos por exceções que confirmam a regra.
Em seguida, este trabalho busca operar uma estratégia intelectual específica: a do
desentranhamento conceitual (BRAGA, 2011; YAMAMOTO, 2014), método que de ordinário
funciona com um propósito específico e declarado, o de fazer ver aquilo que não está
imediatamente claro, à superfície dos textos. O que a hermenêutica fenomenológica um dia
denominou “intencionalidade” e que a análise marxista inscreveu como “ideologia”, aparece
aqui como metodologia despida dos pressupostos dessas duas correntes, mas orientada para o
desvelamento específico de conteúdos não expressados, mas passíveis de prospecção,
considerando os fundamentos estabelecidos.

Dessa forma, este trabalho prospecta a visão social embutida nos conceitos fundamentais do
espiritismo, e a isso denominamos, provisoriamente, uma “sociologia da mentalidade
espírita”. Não se quer, evidentemente, conferir a essa prospecção o caráter de ciência
estabelecida, sendo relevante dizer que pelo termo “sociologia” não se quer denominar a
disciplina científica e sim a “visão social” percebida. O fato de não termos logo utilizado esta
expressão se deve à intenção de trabalharmos, de fato, os conceitos sociológicos, a partir da
perspectiva doutrinária espírita. Trata-se, pois, rigorosamente, de uma “sociologia de uma
mentalidade” e não de uma sociologia enquanto tal, embora tenhamos razões para crer que
esse estudo cabe nos estudos de sociologia da religião ou, talvez melhor, de teologia social da
religião.
Por fim, há que se assumir os limites da análise aqui empreendida. Busca-se neste texto, de
forma específica, os fundamentos de uma visão social relativa à mentalidade do espiritismo
brasileiro. Por tal razão, não serão abordados aqui vários aspectos do pensamento do
espiritismo francês, inclusive dos textos de Allan Kardec, porquanto esta abordagem obrigaria
perscrutar os contrastes entre o modo de pensar espírita contemporâneo e o de seu
codificador, embora tenhamos por razoável postular que as coerências nesse sentido são mais
frequentes do que as incoerências. Deixaremos, portanto, a outro texto o suprimento dessa
lacuna.

Sociologia das mentalidades: uma nova concepção de mundividência

Este estudo tem a pretensão de buscar as bases do que poderia ser uma interpretação social
do pensamento espírita. Considerando que o espiritismo, especialmente o brasileiro, por conta
da hegemonização de sua vertente religiosa, sempre se furtou a esse debate, trata-se, com
efeito, de buscar na cultura doutrinária espírita aquilo que não estaria expressamente lá.
Epistemologicamente, não há problemas nisso: tanto nas ciências da linguagem, quanto nas
próprias ciências sociais, o trabalho científico constitui-se justamente no desvelamento – daí a
ideia de “descoberta”, isto é, retirar aquilo que cobre, que esconde; descobrir, desvelar – dos
sentidos ocultos tanto nas palavras, quanto nas práticas humanas. De um ponto de vista
metodológico, contudo, esse gesto demanda ser definido e explicitado ou, no mínimo, ser
nomeado adequadamente, a fim de garantir a cientificidade de seus resultados.

Numa busca prévia por alguma tradição nas ciências humanas e sociais para esse
empreendimento, este estudo perpassou várias categorias. A talvez mais desejada pelos
espíritas, em sua pretensão de harmonização de seu pensamento com a ciência, seria a de
conferir status de teoria à sua doutrina. A aspiração científica do espiritismo é tão entranhada
na discursividade espírita que praticamente constitui um dogma a afirmação de que a
concepção espírita de espiritualidade possui fundamentos científicos sólidos e garantidos.

A afirmação do “aspecto científico” soa para os adeptos como uma garantia insofismável de
verdade dos postulados. Assim, a partir dessa concepção, os resultados de uma pesquisa que
buscasse as noções sociais ou sociológicas entranhadas nas narrativas dentro dos textos
espíritas só poderia obter o selo de uma “teoria” social espírita, ou uma autêntica sociologia
do espírito. As poucas publicações espíritas voltadas para a temática social bordejam sem
assumir essa caracterização, como na conservadora obra de Nei Lobo (1992; 1994) intituladas
“Estudos de Filosofia Social Espírita” e “Plano social de Deus e as classe sociais segundo o
espiritismo”, nas quais ele aplica uma técnica positivista e fragmentária de cotejamento dos
textos de Kardec para garimpar hipotéticas opiniões do codificador do espiritismo a diferentes
elementos do pensamento marxista, chegando a posicionamentos fortemente conservadores.

Outros autores, intelectuais espíritas que sempre fizeram a mediação entre o espiritismo e o
pensamento científico e filosófico de suas épocas (SIGNATES, 2014), quando se dedicaram ao
trato das temáticas sociais, reagiram aos contextos em que estiveram inseridos. O texto
clássico sobre o assunto, sem dúvida, é o de Léon Denis, francês contemporâneo de Kardec,
com seu livro póstumo “Socialismo e espiritismo” (DENIS, 1982). No Brasil, com semelhante
antiguidade, Lavigne e Prado (1955) publicaram “Os espíritas e as questões sociais” como uma
“interpretação progressista da obra de Kardec O Livro dos Espíritos. Nos países de fala
espanhola, é forçoso ressaltar os estudos do espírita argentino Manuel Porteiro, morto em
1936. Suas duas obras “Espiritismo dialectico” (1990) e “Concepto espírita de la sociologia e
Origen de las ideas Morales” (1998) podem ser consideradas referências de uma aplicação da
concepção espírita de vida à sociedade. Deve-se destacar ainda a primeira dissertação de
mestrado defendida sobre o espiritismo, no Brasil, de Cleusa Beraldi Colombo (1998), que,
mesmo com declarada adesão doutrinária, não assume o postulado de teoria para o que
denominou “ideias sociais espíritas”. O filósofo espírita Herculano Pires parece ter sido quem
mais se aproximou de uma abordagem epistemológica da visão social espírita, no que ele
denominou de uma “parassociologia” (PIRES, 1983, p. 55).

Estes autores, contudo, pouco ou nada foram levados em consideração, no desenvolvimento


do espiritismo brasileiro que se tornou hegemônico, sob a liderança da Federação Espírita
Brasileira. O debate social e político que provocam jamais foi adiante e nunca se tornou uma
política de intervenção na esfera pública, nem, menos ainda, uma proposta estratégica ou
tática de influência no Estado ou na sociedade brasileira. Tornada religião organizada, o
conjunto dos postulados espíritas perde, portanto, a dimensão de teoria, pela impossibilidade
interna do contraditório, e ganha o status de “doutrina”, no sentido contemporâneo do
termo3, ou de “teologia”, tal como se apresenta para os estudos de ciências da religião. A
pretensão de realização científica, presente na ideologia espírita e recomendada como método
pelo seu iniciador, não se verifica nas práticas religiosas – e nem seria necessário que isso
ocorresse, para a afirmação religiosa desse movimento –, razão pela qual este trabalho trata
os conteúdos espíritas como um organum doutrinário ou teológico, numa postura
epistemológica de acato antropológico dessa religiosidade, mas não destituída de crítica.

Esse é o contexto que este texto se limita a abordar neste momento. Assim, nessa condição,
como denominar o “desentranhamento” das ideias sociais? A definição metodológica,
estabelecida nesse quadro de análise, conduziu-nos a três possibilidades categoriais: ideologia,
imaginário e mentalidade. Em outras palavras, perscruta-se buscar a “ideologia social”, o
“imaginário social” ou a “mentalidade social” do espiritismo. Avaliemos rapidamente cada uma
delas.

A noção de ideologia é uma noção ampla, porém ambígua. Segundo Stoppino (1994), há um
sentido forte e um sentido fraco desse conceito. O sentido forte é o marxista, que define a
palavra como “falsa concepção da realidade”; e o sentido fraco, porque amplo em demasia, é
o de Destutt de Tracy, criador desse conceito, em 1796, o de conjunto orgânico de ideias
relativas a um agrupamento (BOSI, 2010). Para este trabalho, a noção forte é incompatível,
pois presume uma realidade social por antecipação: a “falsa concepção da realidade” não é
outra coisa senão o modo como as classes dominantes no capitalismo iludiriam as classes

3
Os dicionários disponíveis da língua portuguesa definam de forma precisa o conceito de doutrina. De
um deles, obtém-se definições como “conjunto de dogmas e princípios que fundamentam um sistema
ideológico, filosófico, político, religioso etc”, como “crença ou conjunto de crenças que são vistas como
verdades absolutas pelos que nela acreditam” ou, ainda, de forma mais clara, como “tudo o que é
objeto de ensino” (AULETE, 2019, s/p). Em qualquer desses casos, a noção de doutrina parece adequada
ao modo como o espiritismo brasileiro trata historicamente seus postulados.
trabalhadoras, para que estas adiram e defendam os interesses dominantes, contra seus
próprios interesses. Por método, devemos evitar um pressuposto social tão evidente, sob pena
de contaminarmos as análises que pretendemos fazer. Além disso, é forçoso admitir que a
concepção “forte” de ideologia contém um problema epistemológico aparentemente
insolúvel: toda atribuição de sentido que sinaliza uma “falsidade” presume-se verdadeira por
antecipação, embora saibamos que o adjetivo “falso” em Marx não tem necessariamente a
tonalidade epistemológica, e sim política, no sentido de descrever o trabalho do dominador de
não permitir aos que lhes têm interesses antípodas, que conheçam e ajam segundo seus
próprios interesses. Assim, a noção de ideologia, no sentido fraco, é, sim, compatível com os
propósitos deste trabalho; entretanto, sua ambiguidade induz-nos a buscar alternativas.

O conceito de “imaginário” é instigante, pela abertura que concede às possibilidades de


produção do sentido. Os estudos do imaginário remontam a obra seminal de Gilbert Durant,
As estruturas antropológicas do imaginário. Trata-se de uma noção que se parece com a de
ideologia, no sentido “fraco”, mas a ultrapassa, por não pressupor uma racionalidade, ou seja,
o conceito de imaginário insere também as perspectivas de afetos, sonhos, desejos
(MAFFESOLI, 2001).

o imaginário, mesmo que seja difícil defini-lo, apresenta, claro, um


elemento racional, ou razoável, mas também outros parâmetros, como o
onírico, o lúdico, a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o não racional, o
irracional, os sonhos, enfim, as construções mentais potencializadoras das
chamadas práticas. De algum modo, o homem age por que sonha agir. O
que chamo de “emocional” e de “afetual” são dimensões orgânicas do agir
a partir do espírito. Evidentemente que a prática condiciona as construções
do espírito, mas estas também influenciam as práticas (MAFFESOLI, 2001,
p. 76-77)

Se, por um lado, a noção de ideologia racionaliza a tal ponto a abordagem, que nos coloca
diante de uma dicotomia, capaz de produzir interpretações ambíguas, por outro lado a noção
de imaginário amplia a interpretação para além da racionalidade e nos situa numa perspectiva
antropológica densa demais, para os propósitos deste trabalho. Denominar como imaginário a
racionalidade social estabelecida nos textos espíritas lança-nos num debate que ainda não
pretendemos entrar: o de inserir a visão social espírita no campo das expectativas afetivas e
desejos dos espíritas – que não duvidamos que exista, mas não constitui o objeto de atenção
neste momento.

Eis porque passamos a adotar a alternativa do conceito de mentalidade. A noção de


mentalidade é relativamente antiga nas ciências sociais e suficientemente ampla para ancorar
diferentes definições. Sua herança mais relevante encontra-se nos estudos históricos. Conta
Ortega Noriega (1985) que a chamada “história das mentalidades” foi uma invenção de
historiadores europeus em meados dos anos 1960, numa aproximação com outras ciências
sociais e, em especial, com a antropologia, orientados pelo propósito de “estudar a dinâmica
de uma sociedade através da análise da ‘mentalidade’ das classes e grupos que a integram”
(ORTEGA NORIEGA, 1985, p. 127). A questão imediatamente seguinte é saber o que, afinal,
significa a noção de “mentalidade”. O autor admite a imprecisão do conceito e afirma que sua
definição
“se aproxima ao que Althusser denomina ‘ideologia prática’, ou seja, uma
complexa formação de ideias, representações e imagens que correspondem
a certos comportamentos e atitudes dos indivíduos, de tal modo que em seu
conjunto funciona como a norma prática que rege a posição correta dos
homens frente a sua história”. (ORTEGA NORIEGA, 1985, p. 127).

A noção de mentalidade é mais do que ideologia e menos do que imaginário, sendo, pois,
estabelecida num plano intermediário entre ambos estes conceitos. Outra característica que a
torna interessante para estes estudos foi apontada por Jacques Le Goff: a sua qualidade
categorial de apontar para a captação daquilo que é residual nos modos de pensar e viver.

A primeira atração da história das mentalidades está precisamente em sua


imprecisão, em sua vocação para designar os resíduos da análise histórica,
o não sei o quê, da história (LE GOFF, 1976, p. 68)4.

A diferença metodológica fundamental neste trabalho é a ultrapassagem do interesse


histórico, em benefício de uma percepção de tipo hermenêutico, próximo ao sentido teológico
do termo, isto é, como “arte de compreender”, cujo ponto central estaria “na exposição ou na
interpretação dos restos da existência humana preservados na escrita” (DILTHEY, 1999, p. 15).
Busca, este trabalho, pois, os traços fundamentais de uma hermenêutica da mentalidade
social espírita, cujos resultados analíticos podem ser traduzidos como uma espécie de
sociologia ou visão social dessa mentalidade.

Evidentemente, este trabalho tem limites, por conta de suas dimensões. O que traremos aqui
são conceituações fundamentais e preliminares. A articulação densa e exaustiva de uma
sociologia da mentalidade espírita exigiria algo de muito maior fôlego. Entretanto, esperamos
que o debate sobre estes fundamentos possa permitir incursões futuras de melhor qualidade e
maior densidade.

Fundamentos de uma sociologia da mentalidade espírita: o conceito de


sociedade

Como toda e qualquer articulação do pensamento social, é preciso indagar sobre o que é o
homem e como se constituem suas relações, no tempo e no espaço.

Para o espiritismo, o homem é um ser individual, quase monádico, e essa concepção ordena
todo o resto, inclusive suas relações de contiguidade espacial e de duração temporal.

É o individualismo espírita exacerbado, aquilo que epistemicamente impede a produção de um


pensamento social no espiritismo. Superá-lo, portanto, é indeclinável – ainda que não seja a
pretensão deste trabalho “fazer doutrina”, e sim possibilitar uma dedução do que pode ser um
pensamento social articulado com os fundamentos doutrinários espíritas.

4
Tradução nossa. No original bibliográfico: “La primera atracción de la historia de las mentalidades está
precisamente en su imprecisión, en su vocación por designar los residuos del análisis histórico, el no sé
qué de la historia” (LE GOFF, 1976, p. 68).
A superação da metáfora individualista exige a análise dos aspectos relacionais contidos na
mentalidade espírita, desde sua fundação.

A mentalidade espírita trabalha pragmaticamente com três tipos de relacionamento: aquele


entre seres encarnados, aquele entre seres desencarnados e, por fim, o que se dá entre
encarnados e desencarnados. A divisão entre os mundos físico e espiritual, típica das religiões,
aparece aqui numa condição que ultrapassa os âmbitos da dicotomia sagrado/profano. Temos
abordado isso em outros trabalhos.

Por um lado, o espaço do sagrado se torna profano, na postulação de que o


mundo espiritual é constituído de matéria em estado não perceptível aos
sentidos físicos, no qual habitam os espíritos, definidos como homens
desencarnados; e, por outro lado, o profano se sacraliza, na medida em
que, pela reencarnação e a mediunidade, torna-se possível defender que a
evolução do pensamento humano pode ser capitaneada pelos espíritos,
convertendo, assim, todo o saber significativo em revelação (SIGNATES,
2014, p. 437).

Aprofundemos um pouco a abordagem dessas dimensões relacionais.

A percepção das relações dos encarnados entre si pode ser feita a partir da ritualidade
quádrupla do espiritismo (SIGNATES, 2019): divulgação, estudo, caridade e mediunidade. Após
o processo de institucionalização (SIGNATES, 2002)5, tornou-se praticamente estandardizado
que estudo e mediunidade são ritos internos, de relacionamento dos espíritas entre si, e
caridade e divulgação constituem ritos externos, isto é, de relacionamento dos espíritas com
os não espíritas.

Como se pode perceber, o desenvolvimento de uma sociologia da mentalidade espírita passa,


obrigatoriamente, pela crítica do movimento espírita. É a partir dessas relações que o
espiritismo se insere na sociedade e, por tal razão, é assim que a concebe. Não há uma
diferença epistêmica entre a percepção social geral e a autopercepção do espírita.

Uma demonstração típica disso é a concepção espírita do Brasil e do mundo – aquilo que
Laplantine e Aubrée denominaram “brasilodisseia espírita” (LAPLANTINE e AUBRÉE, 2009) –,
contida especialmente nos livros A caminho da luz (EMMANUEL/XAVIER, 1996) e Brasil,
coração do mundo, pátria do evangelho (CAMPOS/XAVIER, 2008), cujos relatos conferem ao
espiritismo uma centralidade fundamental nos destinos do Brasil e do mundo.

O Espiritismo brasileiro baseia-se muito menos num fundamento teórico (a


obra de Kardec e dos sucessores) do que numa epopeia mítica, que é a
própria história da humanidade, uma narrativa inteiramente orientada em
direção de um desfecho escatológico, transmitida oralmente, apesar de
conhecer também um grande número de formulações escritas (LAPLANTINE
e AUBRÉE, 2009, p. 291).

5
A noção de institucionalização é mais ampla do que a sua aplicação às condições de desenvolvimento
das religiões. Para uma percepção de sua formulação como teoria social, ver Signates (2001).
Evidentemente, a escatologia espírita não se explica em termos de mentalidade apenas nas
concepções sociológicas do movimento espírita. Há que se destacar a interessante sociologia
contida no modo como o espiritismo concebe o mundo espiritual, as relações dos
desencarnados entre si.

Nesse âmbito, o individualismo espírita persevera, ancorado na concepção das classes e


ordens dos espíritos, por meio da qual o espiritismo praticamente padroniza os indivíduos
desencarnados em superiores e inferiores. Interessante observar que a noção de “classe”
neste caso não remete a uma visão social ou a uma concepção de sociedade, e sim a uma
percepção naturalista que autoriza imediatamente a estigmatização dos espíritos. É como se a
desencarnação retirasse das pessoas a condição de seres humanos comuns, complexos e
contraditórios, e os tornasse moral e espiritualmente transparentes, a ponto de poderem ser
classificados como elevados e inferiores, assumindo assim padrões de visão e comportamento
estritamente definidos, conforme previstos pela moralidade espírita. Um estudo simples dos
padrões de personalidades espirituais que comparecem a reuniões de desobsessão nos
centros espíritas demonstraria isso com enorme facilidade, uma vez que todas as
manifestações mediúnicas ocorridas dentro dessas reuniões extremamente ritualizadas
tendem a seguir os padrões pressupostos pela mentalidade compartilhada pelos médiuns e
devidamente prevista nos livros doutrinários.

Contudo, o desenvolvimento da literatura mediúnica ao longo do século 20, especialmente


aquela que veio à luz a partir do lápis de Francisco Cândido Xavier, trouxe uma nova concepção
ao espiritismo da percepção do mundo dos espíritos: a noção de cidade espiritual. Trata-se de
uma concepção que não é recente no pensamento cristão – Santo Agostinho pensou uma
cidade espiritual, a Jerusalém eterna (AGOSTINHO, 1996), mas no plano de uma escatologia da
realização da conversão do mundo e não numa descrição naturalista do mundo do sagrado –,
mas que emerge no espiritismo brasileiro como uma utopia que articula conteúdos do
imaginário católico, reinterpretados de forma espírita, e valores do integralismo brasileiro da
primeira metade do século 20 (DA SILVA, 2012).

... a cidade espiritual Nosso Lar é, sem dúvida, uma forma de representação
do paraíso, uma utopia celeste. É uma representação que possui elementos
do imaginário católico (...), mas que incorpora valores do mundo
contemporâneo, como a valorização do trabalho. (...) Se (...) ela pode ser
uma releitura do Jardim do Eden, então podemos ver nela também a
representação das cidades planejadas da época, inclusive o ideal das
‘cidades jardins’. Transporte público rápido e eficiente por meio do
‘aerobus’, ruas amplas, limpas e arborizadas, edifícios públicos imponentes,
residências confortáveis e graciosas fazem parte de Nosso Lar, mas
também de qualquer utopia de planejamento urbano. Nosso Lar, por outro
lado e ao mesmo tempo, propõe uma forma de sociedade baseada em
princípios que não são estranhos à cultura brasileira: centralização
administrativa em um líder carismático que se justifica pela necessidade da
manutenção da ordem e do progresso. Isso não nos é estranho (DA SILVA,
2012, p. 32).
A constatação de que a mentalidade espírita produz uma visão de cidade espiritual a partir de
parâmetros sociais da atualidade não é estranhável: todas as concepções religiosas de paraíso
são afiveladas nos parâmetros vivenciais e ideológicos das sociedades onde essas religiões
vicejam, e não poderia ser diferente, salvo se concebêssemos que algum ser humano possa
viver e pensar desataviado de sua realidade histórica. Entretanto, o que chama a atenção, para
os termos deste texto, não é esse aspecto, e sim aquilo que se desdobra para além dele,
embora, ainda assim e sempre, articulado com a mentalidade da época.

Referimo-nos à interpretação daquilo que viabiliza a relação social num mundo espiritual assim
constituído: a onda mental, concebida como instrumento de poder, meio de comunicação e
critério de estratificação social. Em outras palavras, o espiritismo descreve o mundo dos
espíritos como um lugar em que o pensamento se manifesta concretamente, como energia
materialmente realizadora, canal de transmissão de sinais simbólicos de toda ordem e signo de
detecção da categoria intelecto-moral em que se situa o indivíduo. O mundo espiritual é,
imaginariamente, o lugar da transparência individual completa – embora a noção de
“sintonia”, típica das comunicações eletrônicas e de modo semelhante lançada para as
possibilidades das relações interespirituais, permita efetuar restrições às situações sociais
possíveis descritas. Em coerência com o sistema hierarquizante da mentalidade espírita geral,
aplicada, como dissemos, de forma estandardizada aos desencarnados, as descrições
espirituais assumem que “superiores” têm mais poder e controle sobre si próprios e sobre os
outros do que os “inferiores”, razão pela qual a cidade espiritual Nosso Lar não acolhe os
valores democráticos – o que é assumido aproblematicamente por autores espíritas vinculados
à visão espírita hegemônica que trataram desse assunto (TELES, 1959; DA SILVA, 2012).

É, contudo, na relação entre encarnados e desencarnados que a mentalidade espírita


estabelece sua concepção integral de sociedade. O conceito central, evidentemente, é o de
morte, ou, melhor, de “desencarnação”, a percepção da morte como passagem ou como mera
desvinculação, sem a cessação da vida e, sobretudo – o que é nodal na concepção espírita de
mundo, como já fizemos ver –, sem a interrupção da individualidade. O espiritismo rejeita,
desde o princípio, em Kardec, as concepções panteístas, segundo as quais a individualidade se
perderia com a morte pela reinserção da alma no todo universal, como uma gota que passasse
a se confundir com o oceano de onde teria vindo.

Importante salientar que a noção espírita de morte implica diretamente na noção de


corporeidade. O espiritismo não é, nesse sentido, uma doutrina espiritualista, em seu sentido
radical. A própria ideia de que os espíritos dos mortos habitam uma cidade, constituída com
prédios, avenidas e meios de transporte, já deixa clara a admissão do que temos denominado
de “materialismo espiritualista” espírita (SIGNATES, 2019).

A relevância da noção de corporeidade para o espiritismo é flagrante: morto, o espírito não


assume uma condição diáfana ou incorpórea, mas deixa o corpo como abandona uma veste
temporária e grosseira, para assumir um “corpo espiritual”, o perispírito, em tudo semelhante
ao corpo físico, e por meio do qual viverá em um novo ambiente, o mundo espiritual, dotado
também de materialidade e peculiaridades semelhantes ao mundo físico, com as diferenças
proporcionadas, como dissemos, pela visibilidade e a concretude da onda mental.
Trata-se, pois, de uma concepção multicorpórea da manifestação da vida, feita sob medida
para garantir o individualismo como concepção primaz de espírito. Aparentemente, não há
individualismo possível fora de algum materialismo, ainda que lançado para o mundo do
espírito e do sagrado. Mesmo os imaginários cristãos católicos, sobretudo os populares, que
presumiram, desde sempre, a corporeidade de anjos e santos ou até a do próprio Deus, jamais
ousaram materializar tanto o espaço sagrado, como fazem os espíritas.

A multicorporeidade espírita é um dado doutrinário. Para compreendê-la como fundamento


de uma mentalidade social, é preciso estabelece-la como base para um âmbito relacional. E
isso o espiritismo procede por duas dinâmicas bastante características: a mediunidade e a
reencarnação.

o espiritualismo moderno concebe o homem a partir de uma pluralidade de


corpos interpenetrados e em contínua interdependência, o que decorre em
várias e ousadas concepções sobre a vida e a morte (esta, por exemplo,
passa a ser considerada extinção de apenas um ou alguns dos corpos
disponíveis para a manifestação da vida). Essa pluralidade, contudo, não se
restringe às concepções dos corpos múltiplos dos indivíduos, mas também
remete à mediunidade como interpenetração de corpos de indivíduos
múltiplos, assim como a reencarnação consiste na ideia de transmigração
de corpos múltiplos na composição de identidades e subjetividades
igualmente múltiplas, sem a quebra da unidade do individual enquanto
essência. A corporeidade espiritualista, portanto, é complexa e plural,
apesar das simplificações às vezes trazidas pela dogmática espírita e suas
assemelhadas (SIGNATES, 2016, p. 181)

Identificadas essas concepções como interações sociais, o corolário analítico é de que a


reencarnação e a mediunidade caracterizam diferentes formas de articulação espaço-temporal
da multicorporeidade espírita.

Dois são os meios pelos quais se dá, na interpretação espírita, a economia


de trocas simbólicas ou físicas entre mundo espiritual e mundo material: a
reencarnação e a mediunidade, ambas singularizadas pelo modo plural
como o espiritismo concebe a corporeidade. A reencarnação é a
corporeidade múltipla, estendida no tempo; e a mediunidade é a
corporeidade múltipla, estendida no espaço. Em outras palavras, pela
reencarnação o mesmo espírito permuta de corpos, ao longo do tempo,
experimentando existências diversas, a fim de aprender e evoluir. E, pela
mediunidade, vários espíritos desencarnados, usufruem de um único corpo,
para manifestarem-se no mundo corpóreo (SIGNATES, 2019, p. 129)

Percebe-se, pois, uma noção de sociedade pela mentalidade espírita como uma rede complexa
de relações plurais, demarcadas no tempo e no espaço por uma concepção múltipla de
corporeidade, e sempre articuladas a partir de uma visão racionalista e positivista de mundo.
O racionalismo e o positivismo espíritas imprimem a todas essas concepções relacionais
implícitas uma característica utilitarista e evolucionista diretamente aplicada à noção de
indivíduo – muito mais cara ao espiritismo do que a de sociedade.
Todos os conceitos fundamentais aqui articulados assumem, no espiritismo, a
intertransponibilidade teorizada a partir da antropologia de Geertz: o “modelo de” e o
“modelo para”, ou, falando com certa simplificação, o modelo cultural religioso que explica e o
modelo que, a partir desse primeiro, se aplica às realidades religiosas e vivenciais dos adeptos.

O ‘modelo de’ espírita se constitui de toda uma complexa descrição de


mundo que enovela o sagrado e o profano em um único sistema explicativo
e cuja conexão com o modelo ‘para’ é orgânica, a ponto de dificultar a
distinção entre um e outro (SIGNATES, 2018, p. 54).

Um aspecto final chama a atenção no modo como a mentalidade espírita trabalha o conceito
de sociedade: a ausência das instituições. A sociedade espírita é inteiramente regida por
espíritos individuais e a eles se remete invariavelmente. Não há conceitos como Estado,
empresas, organizações ou sistemas. O modelo de sociedade na mentalidade espírita é
inteiramente desinstitucionalizado: embora existam as instituições e sejam referidas
narrativamente, sua presença é apenas perfunctória, marginal, como se todo o poder
derivasse do indivíduo e apenas a ele fosse referido. Mesmo o governo do planeta é atribuído
a uma pessoa: Jesus Cristo, derivando daí toda a hierarquia, da qual participam Maria, mãe do
Cristo, Ismael, o anjo que dirige o Brasil, e todos os demais, inclusive alguns personagens
históricos do próprio espiritismo brasileiro, onde pontifica o espírito do ex-deputado e ex-
presidente da FEB, Bezerra de Menezes.

Na melhor das hipóteses, há grupos de espíritos. Mas, ainda assim, prevalece a ideia do
indivíduo ou, no dizer de Emmanuel/Chico Xavier, do “homem íntimo”, contra toda teoria que
pretenda ultrapassar esse marco categorial:

a única renovação apreciável é a do homem íntimo, célula viva do


organismo social de todos os tempos, pugnando pela intensificação dos
movimentos educativos da criatura, à luz eterna do Evangelho do Cristo.
Ensinando a lei das compensações no caminho da redenção e das provas do
indivíduo e da coletividade, estabelece o regime da responsabilidade, em
que cada espírito deve enriquecer a catalogação dos seus próprios valores.
Não se engana com as utopias da igualdade absoluta, em vista dos
conhecimentos da lei do esforço e do trabalho individual, e não se
transforma em instrumento de opressão dos magnatas da economia e do
poder, por consciente dos imperativos da solidariedade humana.
Despreocupado de todas as revoluções, porque somente a evolução é o seu
campo de atividade e de experiência, distante de todas as guerras pela
compreensão dos laços fraternos que reúnem a comunidade universal,
ensina a fraternidade legítima dos homens e das pátrias, das famílias e dos
grupos, alargando as concepções da justiça econômica e corrigindo o
espírito exaltado das ideologias extremistas (EMMANUEL/XAVIER, 1996, p.
206).

Percebe-se, neste interessante e sintético trecho do livro A caminho da luz, que


Emmanuel/Xavier simplifica o marxismo como uma “utopia da igualdade absoluta” e o reduz
os problemas do capitalismo à “opressão dos magnatas da economia”, situando a mentalidade
espírita numa espécie de liberalismo generoso, que aponta para a solidariedade humana como
imperativo de organização social, sem chegar a alcançar uma formulação do socialismo
utópico, por rejeitar as opções coletivistas, sem, também, fazer uma defesa do mercado como
metro de todos os equilíbrios. O individualismo espírita sonha com um capitalismo generoso e
sem ambições, no qual as pessoas distribuam seus bens espontaneamente e a justiça social
emerja da caridade individual.

Dentro desse contexto de uma visão social estruturada pela hegemonia extrema do indivíduo,
como ponto exclusivo de referência para todos os fenômenos, emerge o conservadorismo
social e político como consequência contraditória fundamental do projeto espírita de mundo.
O sofrimento, as tragédias e as injustiças sociais aparecem à mentalidade espírita como
punição de supostos pecados cometidos no passado reencarnatório, como experiência
educativa para as almas em trânsito evolutivo, como vivência diante da qual é imperioso
resignar-se e trabalhar sem condenar quem faz o mal. Inexiste a ideia de que as regras sociais
sejam de algum modo estruturantes das vontades individuais. Transformar o mundo não é
necessário, senão transformando o indivíduo em sua interioridade psicológica. A noção de
“reforma íntima” interdita a crítica social e lança o espírita na eterna e prioritária busca por si
próprio, tornando o “outro” da caridade um instrumento de auto aperfeiçoamento e não o
lugar de construção de um mundo diferente.

Considerações finais provisórias

Uma pesquisa feita hoje sobre os fundamentos de uma sociologia da mentalidade espírita
conduz necessariamente a uma crítica social dos postulados doutrinários espíritas, tal como
são hegemonicamente interpretados pelos adeptos, no Brasil. Se, por um lado, a mentalidade
espírita amplia consideravelmente o conceito de sociedade, articulando o espaço do sagrado –
o mundo espiritual – também como sociedade, em contínua interação com os espaços
profanos – o mundo físico ou carnal –, é forçoso admitir que essa ampliação não produz uma
teoria social mais rica e mais complexa.

E o ponto de contenção desse pensamento social aparece claramente definido: é o


individualismo exacerbado, de orientação moralista, sob uma abordagem naturalista e
positivista da existência humana, aquilo que não apenas impede o espírita de pensar
socialmente sua espiritualidade, mas o remete para um conservadorismo de consequências
políticas extremamente contraditórias às suas próprias aspirações morais.

As consequências sociais e históricas dessa formulação podem ser vistas com grande clareza
no espiritismo brasileiro da atualidade. Após um século inteiro de caridade prática dos
espíritas junto às periferias miseráveis das cidades do país, os espíritas brasileiros prosseguem
sendo o cume da pirâmide social brasileira, demonstrando que a caridade espírita é
pragmaticamente excludente e conservadora. Os espíritas, sem obrigatoriamente terem a
consciência disso, constituem-se como personalidades pacíficas e generosas e fazem o bem
que podem aos mais pobres, mas não se misturam com eles, nem os admitem compartilhando
sua fé.
O individualismo espírita parece ser feito para atender somente aos próprios espíritas e, ao
vetar o debate social de bases sociológicas, remete o movimento à reprodução das ideologias
políticas da classe em que se encontram, produzindo assim uma atividade religiosa generosa e
pacífica, mas profundamente conservadora das desigualdades e injustiças sociais.

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