(2020) A Sociologia Da Mentalidade Espírita. Ensaio Sobre Uma Ampliação Espírita Do Conceito de Sociedade (Livro Aephus)
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Luiz Signates
Universidade Federal de Goiás
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Luiz Signates2
Introdução
Não é segredo para ninguém que as religiões constituem mundividências. Diferentes de meros
pontos de vista, as teologias e teogonias religiosas em geral sustentam discursos totalizantes,
em relação ao universo e à vida, que buscam dar conta de todas as perguntas do homem a
respeito das coisas. Derivadas de um tempo em que representavam o único saber
sistematizado disponível, as descrições religiosas do mundo ainda hoje disputam com a
filosofia e a ciência o privilégio de dizer a verdade e determinar as regras morais e sociais,
embora na atualidade isso ocorra com menor consequência, em vista de terem as instituições
religiosas perdido a capacidade política de imposição de ideias.
1
Texto inscrito no Fórum do Pensamento Social Espírita, promovido pela Aephus, em 2019.
2
Docente efetivo do Programa de Mestrado/Doutorado em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás. Docente efetivo do Programa de Mestrado/Doutorado em Comunicação
da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP. E-mail:
[email protected]
de Kardec numa perspectiva claramente dogmática (SIGNATES, 2018a), o debate científico é
profundamente sensível dentro do movimento espírita. A busca por conciliar o pensamento
religioso com a racionalidade possível prossegue no movimento, a ponto de fazer emergir,
recentemente, instituições voltadas para essa mediação – como a AEPHUS, que patrocina esta
publicação –, fundamental para a justificação e a legitimação ideológica da doutrina.
Este texto se insere nesse debate, em uma especificidade pouco aventada pelos espíritas, por
razões históricas: a da correlação entre o pensamento espírita e o pensamento social. Como
temos feito ver em outros trabalhos, o espiritismo brasileiro pouco discute e até, em certos
casos, renega o debate social e político. Ancorado desde Kardec numa visão individualista do
espírito e estruturado como religião, no sentido moderno do termo – em que a religião é uma
atividade privada, na qual a inserção política aparece como contaminadora e negativa –, o
espiritismo no Brasil promoveu ao longo do século XX uma busca nem sempre bem sucedida
por aproximação com as ciências médicas e psicológicas, especialmente a biomedicina e a
psicologia behaviorista, afeitas a uma forma de pensar na qual o indivíduo ocupa a
centralidade da subjetividade e as suas relações constituem apenas um consequente
subalterna dessa centralidade. Com base nesse composto, o espiritismo brasileiro tornou-se
sobretudo uma religião de autoajuda, inerte para os problemas e temáticas sociais, inclusive
os debates sobre moral – que tendeu sempre a perceber pela perspectiva das escolhas
individuais, distante até mesmo das abordagens filosóficas, que interpretam a moral pela
perspectiva das regras e costumes coletivos herdados social e historicamente.
Por isso, este ensaio pretende ser prospectivo, no sentido teológico do termo. Primeiro, parte
de reconhecer a literatura espírita consagrada como um texto de tipo teológico, já distanciado
de sua pretensão científica inicial, não evidentemente por suas origens e sim pelo modo como
é tratada nos dias de hoje: como códex do espiritismo, indisponível ao debate contraditório,
exceto em alguns grupos pequenos e raros, que temos por exceções que confirmam a regra.
Em seguida, este trabalho busca operar uma estratégia intelectual específica: a do
desentranhamento conceitual (BRAGA, 2011; YAMAMOTO, 2014), método que de ordinário
funciona com um propósito específico e declarado, o de fazer ver aquilo que não está
imediatamente claro, à superfície dos textos. O que a hermenêutica fenomenológica um dia
denominou “intencionalidade” e que a análise marxista inscreveu como “ideologia”, aparece
aqui como metodologia despida dos pressupostos dessas duas correntes, mas orientada para o
desvelamento específico de conteúdos não expressados, mas passíveis de prospecção,
considerando os fundamentos estabelecidos.
Dessa forma, este trabalho prospecta a visão social embutida nos conceitos fundamentais do
espiritismo, e a isso denominamos, provisoriamente, uma “sociologia da mentalidade
espírita”. Não se quer, evidentemente, conferir a essa prospecção o caráter de ciência
estabelecida, sendo relevante dizer que pelo termo “sociologia” não se quer denominar a
disciplina científica e sim a “visão social” percebida. O fato de não termos logo utilizado esta
expressão se deve à intenção de trabalharmos, de fato, os conceitos sociológicos, a partir da
perspectiva doutrinária espírita. Trata-se, pois, rigorosamente, de uma “sociologia de uma
mentalidade” e não de uma sociologia enquanto tal, embora tenhamos razões para crer que
esse estudo cabe nos estudos de sociologia da religião ou, talvez melhor, de teologia social da
religião.
Por fim, há que se assumir os limites da análise aqui empreendida. Busca-se neste texto, de
forma específica, os fundamentos de uma visão social relativa à mentalidade do espiritismo
brasileiro. Por tal razão, não serão abordados aqui vários aspectos do pensamento do
espiritismo francês, inclusive dos textos de Allan Kardec, porquanto esta abordagem obrigaria
perscrutar os contrastes entre o modo de pensar espírita contemporâneo e o de seu
codificador, embora tenhamos por razoável postular que as coerências nesse sentido são mais
frequentes do que as incoerências. Deixaremos, portanto, a outro texto o suprimento dessa
lacuna.
Este estudo tem a pretensão de buscar as bases do que poderia ser uma interpretação social
do pensamento espírita. Considerando que o espiritismo, especialmente o brasileiro, por conta
da hegemonização de sua vertente religiosa, sempre se furtou a esse debate, trata-se, com
efeito, de buscar na cultura doutrinária espírita aquilo que não estaria expressamente lá.
Epistemologicamente, não há problemas nisso: tanto nas ciências da linguagem, quanto nas
próprias ciências sociais, o trabalho científico constitui-se justamente no desvelamento – daí a
ideia de “descoberta”, isto é, retirar aquilo que cobre, que esconde; descobrir, desvelar – dos
sentidos ocultos tanto nas palavras, quanto nas práticas humanas. De um ponto de vista
metodológico, contudo, esse gesto demanda ser definido e explicitado ou, no mínimo, ser
nomeado adequadamente, a fim de garantir a cientificidade de seus resultados.
Numa busca prévia por alguma tradição nas ciências humanas e sociais para esse
empreendimento, este estudo perpassou várias categorias. A talvez mais desejada pelos
espíritas, em sua pretensão de harmonização de seu pensamento com a ciência, seria a de
conferir status de teoria à sua doutrina. A aspiração científica do espiritismo é tão entranhada
na discursividade espírita que praticamente constitui um dogma a afirmação de que a
concepção espírita de espiritualidade possui fundamentos científicos sólidos e garantidos.
A afirmação do “aspecto científico” soa para os adeptos como uma garantia insofismável de
verdade dos postulados. Assim, a partir dessa concepção, os resultados de uma pesquisa que
buscasse as noções sociais ou sociológicas entranhadas nas narrativas dentro dos textos
espíritas só poderia obter o selo de uma “teoria” social espírita, ou uma autêntica sociologia
do espírito. As poucas publicações espíritas voltadas para a temática social bordejam sem
assumir essa caracterização, como na conservadora obra de Nei Lobo (1992; 1994) intituladas
“Estudos de Filosofia Social Espírita” e “Plano social de Deus e as classe sociais segundo o
espiritismo”, nas quais ele aplica uma técnica positivista e fragmentária de cotejamento dos
textos de Kardec para garimpar hipotéticas opiniões do codificador do espiritismo a diferentes
elementos do pensamento marxista, chegando a posicionamentos fortemente conservadores.
Outros autores, intelectuais espíritas que sempre fizeram a mediação entre o espiritismo e o
pensamento científico e filosófico de suas épocas (SIGNATES, 2014), quando se dedicaram ao
trato das temáticas sociais, reagiram aos contextos em que estiveram inseridos. O texto
clássico sobre o assunto, sem dúvida, é o de Léon Denis, francês contemporâneo de Kardec,
com seu livro póstumo “Socialismo e espiritismo” (DENIS, 1982). No Brasil, com semelhante
antiguidade, Lavigne e Prado (1955) publicaram “Os espíritas e as questões sociais” como uma
“interpretação progressista da obra de Kardec O Livro dos Espíritos. Nos países de fala
espanhola, é forçoso ressaltar os estudos do espírita argentino Manuel Porteiro, morto em
1936. Suas duas obras “Espiritismo dialectico” (1990) e “Concepto espírita de la sociologia e
Origen de las ideas Morales” (1998) podem ser consideradas referências de uma aplicação da
concepção espírita de vida à sociedade. Deve-se destacar ainda a primeira dissertação de
mestrado defendida sobre o espiritismo, no Brasil, de Cleusa Beraldi Colombo (1998), que,
mesmo com declarada adesão doutrinária, não assume o postulado de teoria para o que
denominou “ideias sociais espíritas”. O filósofo espírita Herculano Pires parece ter sido quem
mais se aproximou de uma abordagem epistemológica da visão social espírita, no que ele
denominou de uma “parassociologia” (PIRES, 1983, p. 55).
Esse é o contexto que este texto se limita a abordar neste momento. Assim, nessa condição,
como denominar o “desentranhamento” das ideias sociais? A definição metodológica,
estabelecida nesse quadro de análise, conduziu-nos a três possibilidades categoriais: ideologia,
imaginário e mentalidade. Em outras palavras, perscruta-se buscar a “ideologia social”, o
“imaginário social” ou a “mentalidade social” do espiritismo. Avaliemos rapidamente cada uma
delas.
A noção de ideologia é uma noção ampla, porém ambígua. Segundo Stoppino (1994), há um
sentido forte e um sentido fraco desse conceito. O sentido forte é o marxista, que define a
palavra como “falsa concepção da realidade”; e o sentido fraco, porque amplo em demasia, é
o de Destutt de Tracy, criador desse conceito, em 1796, o de conjunto orgânico de ideias
relativas a um agrupamento (BOSI, 2010). Para este trabalho, a noção forte é incompatível,
pois presume uma realidade social por antecipação: a “falsa concepção da realidade” não é
outra coisa senão o modo como as classes dominantes no capitalismo iludiriam as classes
3
Os dicionários disponíveis da língua portuguesa definam de forma precisa o conceito de doutrina. De
um deles, obtém-se definições como “conjunto de dogmas e princípios que fundamentam um sistema
ideológico, filosófico, político, religioso etc”, como “crença ou conjunto de crenças que são vistas como
verdades absolutas pelos que nela acreditam” ou, ainda, de forma mais clara, como “tudo o que é
objeto de ensino” (AULETE, 2019, s/p). Em qualquer desses casos, a noção de doutrina parece adequada
ao modo como o espiritismo brasileiro trata historicamente seus postulados.
trabalhadoras, para que estas adiram e defendam os interesses dominantes, contra seus
próprios interesses. Por método, devemos evitar um pressuposto social tão evidente, sob pena
de contaminarmos as análises que pretendemos fazer. Além disso, é forçoso admitir que a
concepção “forte” de ideologia contém um problema epistemológico aparentemente
insolúvel: toda atribuição de sentido que sinaliza uma “falsidade” presume-se verdadeira por
antecipação, embora saibamos que o adjetivo “falso” em Marx não tem necessariamente a
tonalidade epistemológica, e sim política, no sentido de descrever o trabalho do dominador de
não permitir aos que lhes têm interesses antípodas, que conheçam e ajam segundo seus
próprios interesses. Assim, a noção de ideologia, no sentido fraco, é, sim, compatível com os
propósitos deste trabalho; entretanto, sua ambiguidade induz-nos a buscar alternativas.
Se, por um lado, a noção de ideologia racionaliza a tal ponto a abordagem, que nos coloca
diante de uma dicotomia, capaz de produzir interpretações ambíguas, por outro lado a noção
de imaginário amplia a interpretação para além da racionalidade e nos situa numa perspectiva
antropológica densa demais, para os propósitos deste trabalho. Denominar como imaginário a
racionalidade social estabelecida nos textos espíritas lança-nos num debate que ainda não
pretendemos entrar: o de inserir a visão social espírita no campo das expectativas afetivas e
desejos dos espíritas – que não duvidamos que exista, mas não constitui o objeto de atenção
neste momento.
A noção de mentalidade é mais do que ideologia e menos do que imaginário, sendo, pois,
estabelecida num plano intermediário entre ambos estes conceitos. Outra característica que a
torna interessante para estes estudos foi apontada por Jacques Le Goff: a sua qualidade
categorial de apontar para a captação daquilo que é residual nos modos de pensar e viver.
Evidentemente, este trabalho tem limites, por conta de suas dimensões. O que traremos aqui
são conceituações fundamentais e preliminares. A articulação densa e exaustiva de uma
sociologia da mentalidade espírita exigiria algo de muito maior fôlego. Entretanto, esperamos
que o debate sobre estes fundamentos possa permitir incursões futuras de melhor qualidade e
maior densidade.
Como toda e qualquer articulação do pensamento social, é preciso indagar sobre o que é o
homem e como se constituem suas relações, no tempo e no espaço.
Para o espiritismo, o homem é um ser individual, quase monádico, e essa concepção ordena
todo o resto, inclusive suas relações de contiguidade espacial e de duração temporal.
4
Tradução nossa. No original bibliográfico: “La primera atracción de la historia de las mentalidades está
precisamente en su imprecisión, en su vocación por designar los residuos del análisis histórico, el no sé
qué de la historia” (LE GOFF, 1976, p. 68).
A superação da metáfora individualista exige a análise dos aspectos relacionais contidos na
mentalidade espírita, desde sua fundação.
A percepção das relações dos encarnados entre si pode ser feita a partir da ritualidade
quádrupla do espiritismo (SIGNATES, 2019): divulgação, estudo, caridade e mediunidade. Após
o processo de institucionalização (SIGNATES, 2002)5, tornou-se praticamente estandardizado
que estudo e mediunidade são ritos internos, de relacionamento dos espíritas entre si, e
caridade e divulgação constituem ritos externos, isto é, de relacionamento dos espíritas com
os não espíritas.
Uma demonstração típica disso é a concepção espírita do Brasil e do mundo – aquilo que
Laplantine e Aubrée denominaram “brasilodisseia espírita” (LAPLANTINE e AUBRÉE, 2009) –,
contida especialmente nos livros A caminho da luz (EMMANUEL/XAVIER, 1996) e Brasil,
coração do mundo, pátria do evangelho (CAMPOS/XAVIER, 2008), cujos relatos conferem ao
espiritismo uma centralidade fundamental nos destinos do Brasil e do mundo.
5
A noção de institucionalização é mais ampla do que a sua aplicação às condições de desenvolvimento
das religiões. Para uma percepção de sua formulação como teoria social, ver Signates (2001).
Evidentemente, a escatologia espírita não se explica em termos de mentalidade apenas nas
concepções sociológicas do movimento espírita. Há que se destacar a interessante sociologia
contida no modo como o espiritismo concebe o mundo espiritual, as relações dos
desencarnados entre si.
... a cidade espiritual Nosso Lar é, sem dúvida, uma forma de representação
do paraíso, uma utopia celeste. É uma representação que possui elementos
do imaginário católico (...), mas que incorpora valores do mundo
contemporâneo, como a valorização do trabalho. (...) Se (...) ela pode ser
uma releitura do Jardim do Eden, então podemos ver nela também a
representação das cidades planejadas da época, inclusive o ideal das
‘cidades jardins’. Transporte público rápido e eficiente por meio do
‘aerobus’, ruas amplas, limpas e arborizadas, edifícios públicos imponentes,
residências confortáveis e graciosas fazem parte de Nosso Lar, mas
também de qualquer utopia de planejamento urbano. Nosso Lar, por outro
lado e ao mesmo tempo, propõe uma forma de sociedade baseada em
princípios que não são estranhos à cultura brasileira: centralização
administrativa em um líder carismático que se justifica pela necessidade da
manutenção da ordem e do progresso. Isso não nos é estranho (DA SILVA,
2012, p. 32).
A constatação de que a mentalidade espírita produz uma visão de cidade espiritual a partir de
parâmetros sociais da atualidade não é estranhável: todas as concepções religiosas de paraíso
são afiveladas nos parâmetros vivenciais e ideológicos das sociedades onde essas religiões
vicejam, e não poderia ser diferente, salvo se concebêssemos que algum ser humano possa
viver e pensar desataviado de sua realidade histórica. Entretanto, o que chama a atenção, para
os termos deste texto, não é esse aspecto, e sim aquilo que se desdobra para além dele,
embora, ainda assim e sempre, articulado com a mentalidade da época.
Referimo-nos à interpretação daquilo que viabiliza a relação social num mundo espiritual assim
constituído: a onda mental, concebida como instrumento de poder, meio de comunicação e
critério de estratificação social. Em outras palavras, o espiritismo descreve o mundo dos
espíritos como um lugar em que o pensamento se manifesta concretamente, como energia
materialmente realizadora, canal de transmissão de sinais simbólicos de toda ordem e signo de
detecção da categoria intelecto-moral em que se situa o indivíduo. O mundo espiritual é,
imaginariamente, o lugar da transparência individual completa – embora a noção de
“sintonia”, típica das comunicações eletrônicas e de modo semelhante lançada para as
possibilidades das relações interespirituais, permita efetuar restrições às situações sociais
possíveis descritas. Em coerência com o sistema hierarquizante da mentalidade espírita geral,
aplicada, como dissemos, de forma estandardizada aos desencarnados, as descrições
espirituais assumem que “superiores” têm mais poder e controle sobre si próprios e sobre os
outros do que os “inferiores”, razão pela qual a cidade espiritual Nosso Lar não acolhe os
valores democráticos – o que é assumido aproblematicamente por autores espíritas vinculados
à visão espírita hegemônica que trataram desse assunto (TELES, 1959; DA SILVA, 2012).
Percebe-se, pois, uma noção de sociedade pela mentalidade espírita como uma rede complexa
de relações plurais, demarcadas no tempo e no espaço por uma concepção múltipla de
corporeidade, e sempre articuladas a partir de uma visão racionalista e positivista de mundo.
O racionalismo e o positivismo espíritas imprimem a todas essas concepções relacionais
implícitas uma característica utilitarista e evolucionista diretamente aplicada à noção de
indivíduo – muito mais cara ao espiritismo do que a de sociedade.
Todos os conceitos fundamentais aqui articulados assumem, no espiritismo, a
intertransponibilidade teorizada a partir da antropologia de Geertz: o “modelo de” e o
“modelo para”, ou, falando com certa simplificação, o modelo cultural religioso que explica e o
modelo que, a partir desse primeiro, se aplica às realidades religiosas e vivenciais dos adeptos.
Um aspecto final chama a atenção no modo como a mentalidade espírita trabalha o conceito
de sociedade: a ausência das instituições. A sociedade espírita é inteiramente regida por
espíritos individuais e a eles se remete invariavelmente. Não há conceitos como Estado,
empresas, organizações ou sistemas. O modelo de sociedade na mentalidade espírita é
inteiramente desinstitucionalizado: embora existam as instituições e sejam referidas
narrativamente, sua presença é apenas perfunctória, marginal, como se todo o poder
derivasse do indivíduo e apenas a ele fosse referido. Mesmo o governo do planeta é atribuído
a uma pessoa: Jesus Cristo, derivando daí toda a hierarquia, da qual participam Maria, mãe do
Cristo, Ismael, o anjo que dirige o Brasil, e todos os demais, inclusive alguns personagens
históricos do próprio espiritismo brasileiro, onde pontifica o espírito do ex-deputado e ex-
presidente da FEB, Bezerra de Menezes.
Na melhor das hipóteses, há grupos de espíritos. Mas, ainda assim, prevalece a ideia do
indivíduo ou, no dizer de Emmanuel/Chico Xavier, do “homem íntimo”, contra toda teoria que
pretenda ultrapassar esse marco categorial:
Dentro desse contexto de uma visão social estruturada pela hegemonia extrema do indivíduo,
como ponto exclusivo de referência para todos os fenômenos, emerge o conservadorismo
social e político como consequência contraditória fundamental do projeto espírita de mundo.
O sofrimento, as tragédias e as injustiças sociais aparecem à mentalidade espírita como
punição de supostos pecados cometidos no passado reencarnatório, como experiência
educativa para as almas em trânsito evolutivo, como vivência diante da qual é imperioso
resignar-se e trabalhar sem condenar quem faz o mal. Inexiste a ideia de que as regras sociais
sejam de algum modo estruturantes das vontades individuais. Transformar o mundo não é
necessário, senão transformando o indivíduo em sua interioridade psicológica. A noção de
“reforma íntima” interdita a crítica social e lança o espírita na eterna e prioritária busca por si
próprio, tornando o “outro” da caridade um instrumento de auto aperfeiçoamento e não o
lugar de construção de um mundo diferente.
Uma pesquisa feita hoje sobre os fundamentos de uma sociologia da mentalidade espírita
conduz necessariamente a uma crítica social dos postulados doutrinários espíritas, tal como
são hegemonicamente interpretados pelos adeptos, no Brasil. Se, por um lado, a mentalidade
espírita amplia consideravelmente o conceito de sociedade, articulando o espaço do sagrado –
o mundo espiritual – também como sociedade, em contínua interação com os espaços
profanos – o mundo físico ou carnal –, é forçoso admitir que essa ampliação não produz uma
teoria social mais rica e mais complexa.
As consequências sociais e históricas dessa formulação podem ser vistas com grande clareza
no espiritismo brasileiro da atualidade. Após um século inteiro de caridade prática dos
espíritas junto às periferias miseráveis das cidades do país, os espíritas brasileiros prosseguem
sendo o cume da pirâmide social brasileira, demonstrando que a caridade espírita é
pragmaticamente excludente e conservadora. Os espíritas, sem obrigatoriamente terem a
consciência disso, constituem-se como personalidades pacíficas e generosas e fazem o bem
que podem aos mais pobres, mas não se misturam com eles, nem os admitem compartilhando
sua fé.
O individualismo espírita parece ser feito para atender somente aos próprios espíritas e, ao
vetar o debate social de bases sociológicas, remete o movimento à reprodução das ideologias
políticas da classe em que se encontram, produzindo assim uma atividade religiosa generosa e
pacífica, mas profundamente conservadora das desigualdades e injustiças sociais.
Bibliografia
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