Espiritismo e Politica Os Tortuosos Cami
Espiritismo e Politica Os Tortuosos Cami
Espiritismo e Politica Os Tortuosos Cami
OS TORTUOSOS CAMINHOS
DO CONSERVADORISMO RELIGIOSO
E SUAS CONTRADIÇÕES NO BRASIL*
Luiz Signates**
Resumo: Trata este trabalho das transformações do espiritismo em sua relação com os
sentidos da política. Destaca-se inicialmente a predominância do individualis-
mo moralista nos fundamentos doutrinários do espiritismo. No Brasil, o espiri-
tismo emerge como religião, e segue num quadro de forte despolitização, exceto
na afirmação da liberdade religiosa, no Império (Questão Religiosa) e quando
emergem debates públicos sobre aborto e pena de morte. Entretanto, em meio
ao debate das eleições de 2018, emergiu na internet uma controvérsia envolven-
do a figura de Divaldo Pereira Franco, em Goiânia, que tem alterado o modo
como os espíritas lidam com as temáticas políticas.
A
temática das relações entre religião e política é uma das mais instigantes, tanto
na área das ciências sociais, quanto na das ciências da religião. São, indiscuti-
velmente, as duas atividades mais mobilizadoras dos coletivos humanos na his-
tória. Ambas apelam profundamente à alma humana, uma pelo poder, outra pela
salvação, e, embora atualmente sejam abordadas de forma disjuntiva, no quadro
da grande dicotomia de Bobbio – público e privado –, não raro seus sentidos se
encontram e, quando isso ocorre, pouca coisa se conserva como estava, no âm-
bito da produção histórica dos sentidos sociais.
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* Recebido em: 27.08.2019. Aprovado em: 04.11.2019.Este texto é produto de conferência feita no
III Colóquio Internacional do NEARG, pronunciada em 5 de abril de 2019, na Escola de Formação
de Professores e Humanidades da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).
** Doutor em Ciências da Comunicação (USP). Mestre em Comunicação (UnB). Especialista
em Políticas Públicas (UFG). Graduado em Comunicação Social-Jornalismo (UFG). Docente
na PUC Goiás e na UFG. E-mail: [email protected]
Kardec era um educador preocupado com as questões sociais, que militava pela
educação popular. Já aos 24 anos de idade, escreveu brilhante ensaio Proposta
para a melhoria da Instrução Pública (ver RIVAIL, 2000) e durante décadas
deu cursos gratuitos, em sua própria casa, de química, matemática, astronomia,
fisiologia, gramática… numa tentativa de democratizar o conhecimento. Ao que
parece, manteve relações com os socialistas (depois chamados de utópicos por
Marx e Engels), pois em sua fase espírita, os cita constantemente, entre eles,
Fourier, e Saint-Simon. (Robert Owen, por sua vez, recebeu influência de Pesta-
lozzi, pois o visitou em Iverdon e mais tarde tornou-se adepto do espiritismo).
O pesquisador francês François Gaudin descobriu recentemente documentos
ainda inéditos, revelando a parceria de Kardec com o amigo Maurice Lachâtre,
conhecido socialista de tendência anarquista e editor das obras de Marx, em
fascículos populares. Ambos tiveram um projeto economicamente fracassado
da fundação de um banco popular, possivelmente nos moldes do que queriam os
socialistas pré-marxianos e os anarquistas como Proudhon.
Em seguida, preceitua Denis (1982, p. 93-95), sem deixar margem para dúvidas:
No Brasil espírita, jamais o debate político ou social teve esse nível de sofisticação ide-
ológica. Aqui, o espiritismo se constrói numa forte luta pelo direito à identida-
de religiosa, debaixo do pesado combate da Igreja Católica, num momento em
que o romanismo reprimia inclusive o catolicismo popular. É historicamente
compreensível que o espiritismo sofresse esse nível de oposição, afinal eram
católicos praticantes os primeiros espíritas (STOLL, 2003; THEODORIDIS,
Essa herança cultural de índole católica não arrefeceu, contudo, em razão dos combates
promovidos pela Igreja. A partir da década de 1930, começa a influência de
Francisco Cândido Xavier, que contribuiria para consolidar a cultura espírita
hegemônica, exclusivamente religiosa aos moldes católicos.
Esse modo católico de ser espírita, concretizado por Chico Xavier através do
exemplo de vida, parece ser responsável, em larga medida, pela transformação
dessa que era uma doutrina estrangeira em religião integrante do ethos nacio-
nal. Da moda de salão, da atividade de cunho terapêutico, o Espiritismo passou
a integrar o imaginário brasileiro. Parte desse tributo se deve a Chico Xavier.
É dele [...] a construção do ‘estilo brasileiro’ de ser espírita. Um estilo que tem
por fundamento a noção cristã de santidade, um dos valores fundantes da cultu-
ra religiosa nacional (STOLL, 2003, p. 196).
Até hoje, as ritualidades de uma reunião de “palestra pública” espírita, tal como de-
finida desde 1977 pela Federação Espírita Brasileira (FEB, 2006, p. 23-26),
especialmente quando é procedida de aplicação de passes e oferta de água
fluidificada, segue em linhas gerais a liturgia da missa (orações antes e após a
liturgia da palavra; eucaristia; e oferta final da hóstia).
Estabelecido como religião abraçada pelas elites do Rio, de São Paulo e das capitais do
Nordeste, o espiritismo brasileiro passou a vicejar como caridade e mediuni-
dade, a serviço dos pobres, e assim ganhou ao longo do século todos os rincões
do país. Muita espiritualidade fenomênica, muita ação social, mas pouco estu-
do, o que possibilitou inclusive que experiências religiosas negras pudessem
surgir em seu bojo, como a Umbanda, sem a necessidade de qualquer esforço
intelectual ou teológico (ORTIZ, 1991).
Mesmo quando intelectuais, usualmente vinculados a profissões médicas e psicológi-
cas, começaram a produzir um pensamento espírita mais próximo da lingua-
gem científica ou filosófica (HESS, 1991), como era recomendação original de
Kardec, não havia uma articulação voltada para as ciências sociais ou políti-
A ampliação dos trabalhos assistenciais requer, dos espíritas, uma maior inter-
locução com o Estado, com as agências que formam a rede de serviços assisten-
ciais, uma estruturação mais autônoma da área assistencial no centro espírita,
a busca de mais recursos, a incorporação de profissionais para atuação (e não
somente voluntários), enfim, um conjunto amplo de tarefas que fazem com que
os espíritas se vejam em atividades que, aparentemente, nada tem a ver com o
atendimento direto ao assistido. Se de um lado, todas essas atividades acarre-
tam em uma possibilidade de ampliação e diversificação dos trabalhos assisten-
ciais, por outro, os espíritas parecem preferir permanecer em suas atividades
menores, em uma ação mais direta e moral junto ao assistido do que ter que
afastar-se dessas atividades para cumprir exigências formais, de um lado, e, de
outro, ter que ceder a outros discursos (do Estado, de outras agências privadas
e dos profissionais) na ação assistencial (SIMÕES, 2015, p. 1889-1890).
Evidentemente, não se pretende aqui “explicar” a assistência social espírita tão somen-
te pelas relações com o Estado, afinal, como asseverou Cavalcanti (1983), a
caridade, além da mediunidade e do estudo, constitui um dos elementos do
“sistema ritual espírita”. Tornada “assistência social”, na sua institucionali-
zação pelos Centros Espíritas ou em instituições especializadas (ARRIBAS,
2010), estabelece-se como uma atividade que se relaciona, mas também ultra-
passa, por razões doutrinárias, o espectro da negociação política. Como revela
Simões Neto (2017, p. 158), em resultado de extensa pesquisa empírica feita
junto aos adeptos, “a conceituação [de assistência social] construída pelos es-
píritas entrevistados estava mais referida ao universo interno à religião do que
dialogava com o contexto social”.
A atividade eleitoral, porém, é uma atividade sempre controversa. Em geral, o espírita
sequer vota no espírita. Alguém que faça campanha eleitoral explícita no inte-
rior de centros espíritas recebe rejeição imediata7. Aparentemente, a separação
iluminista entre estado e religião infundiu uma convicção profunda no adepto.
Observa-se, portanto, que em certos momentos históricos, o movimento es-
pírita foi influenciado pelas correntes políticas em voga. No Brasil, contudo,
isso jamais se tornou um movimento organizado, ou mesmo uma corrente in-
terna do movimento. Prevaleceu aqui a despolitização que conhecemos nas
Em relação à pena de morte, a mobilização dos espíritas nunca foi assim, tão intensa,
em razão dessa questão jamais ter sido reivindicada por nenhum segmento
social. Evidentemente, esses temas chamam a atenção não por serem deba-
tes humanistas, de alta repercussão social e ética, caso contrário os espíritas
se mobilizariam fortemente também quando temáticas semelhantes, de alta
consequência social, como as injustiças sociais, a corrupção e a desigualdade,
são lançados à esfera pública. As temáticas do abortamento e da pena de mor-
te mobilizam os espíritas por serem proposições dogmáticas no espiritismo.
Allan Kardec posicionou-se fortemente contra elas e isso torna tais dogmas
uma posição fechada para os espíritas.
As demais ações de natureza política do movimento espírita brasileiro, registradas pela
história, são pontuais e nem sempre mobilizadas pelo interesse público, ainda
que inspiradas, como é comum nas religiões, pela dogmatização interna que
impõe posições a priori. Foi o caso, por exemplo, da exclusão espírita das
E, por fim, dentre outros comentários, Divaldo Franco repercutiu uma das grandes
fakenews da campanha Bolsonaro, a da suposta existência de cartilhas do
MEC que estimulam a sexualidade precoce das crianças:
Esse pronunciamento, feito numa reunião informal com jovens, teria sido assimilada
e caído no esquecimento, como todas as outras que os espíritas tratam, para a
disseminação do conservadorismo que caracteriza o movimento espírita hoje.
Afinal, em outubro do ano anterior, 2017, o mesmo Divaldo Franco havia fei-
to, sem grande alarde, uma homenagem pública ao então prefeito de São Paulo
João Dória, no Auditório do Ibirapuera (CIDADE DE SÃO PAULO, 2017).
A fala de Divaldo, portanto, seria consumida e segregada à reunião onde fora
dita. Entretanto, a entrevista foi transmitida ao vivo pela internet e dissemina-
da em seguida pelos admiradores de Divaldo Franco, naturalmente movidos
pelo entusiasmo de ver o grande líder espírita adotar uma posição política que
já vicejava com força na classe média brasileira.
O que não era esperado foi a reação dos espíritas de esquerda. Na semana seguinte,
liderados pela pedagoga paulista Dora Incontri, presidente da Associação Bra-
sileira de Pedagogia Espírita, um grupo de 62 espíritas de diferentes estados
A partir de então, nas redes sociais ao longo do ano de 2018, muitas lideranças espíritas
brasileiras e mesmo sites jornalísticos se posicionaram, seja defendendo Dival-
do Franco e fazendo-lhe coro (GAZETA DO POVO, 2018), seja contestando-o
e assumindo uma posição contra hegemônica (BRASIL 247, 2018). Ao longo
de vários meses, o orador baiano não se posicionou a respeito da controvérsia
gerada por ele. Discretamente, a instituição que ele dirige, o Centro Espírita
Caminho da Redenção, reivindicou ao Youtube os direitos autorais do vídeo
publicado, razão pela qual o link que leva ao vídeo foi anulado em vários sites,
mas ainda pode ser encontrado no Youtube (YOUTUBE, 2018a).
A postura institucional de retirada do vídeo da internet, bem como o silêncio de Di-
valdo ante a controvérsia sinalizavam o eventual interesse dele em finalizar a
querela, como, aliás, é bem próprio da atitude espírita, de evitar conflitos ou
controvérsias públicas. Entretanto, em 22 de agosto, já iniciada a campanha
eleitoral no Brasil, eis que Divaldo Franco fala na cidade de Santa Maria, no
Rio Grande do Sul, e, em novo pronunciamento transformado em vídeo e que
também passou a circular na internet, volta a carga contra Marx e o marxismo.
Desfere críticas ferinas e pessoais ao filósofo, dizendo que era um ocioso, que
jamais trabalhou, que passou a vida às expensas da esposa rica, acusa-o de
ensinar como devastar um povo destruindo a família, degradando a sociedade,
para que se perca os padrões éticos, como estamos vendo no Brasil, especial-
mente quando a digna ex-presidente da república apresentou um projeto a res-
peito da liberdade infantil de escolher o sexo que deseja ter. Não é importante
a anatomia para o marxismo, porque o que interessa é a desordem. [...] É a
ausência total da dignidade ética (YOUTUBE, 2018b).
Abstract: This paper thematizes the transformations between spiritism and politics.
It stands out initially the predominance of the moralistic individualism in
the doctrinal foundations of the Spiritism. In Brazil, spiritism emerges as a
religion, and continues in a context of strong depoliticization, except in the
affirmation of religious freedom in the 19th Century (Religious Question) and
when public debates about abortion and the death penalty emerge. However,
during the 2018 elections debate, a controversy surfaced on the internet in-
volving the figure of Divaldo Pereira Franco in Goiânia, which has altered the
way spiritists deal with political issues.
Notas
1 O problema do individualismo no espiritismo tem raízes religiosas e antropológicas conhe-
cidas (LEWGOY, 2006; 2008; STOLL, 2002).
2 Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti foi um dos mais destacados espíritas do final do
século XIX, tendo sido Presidente da Federação Espírita Brasileira num de seus momentos
de crise, resultante do conflito entre os “cientificistas”, que propugnavam que o espiritismo
fosse uma ciência, e os “místicos” (entre os quais perfilava o próprio Bezerra de Menezes),
que defendiam o caráter religioso. Menezes foi vereador e deputado geral pelo Partido
Liberal, no Rio de Janeiro, capital do Império, entre 1861 e 1885 (WANTUIL, 1981).
3 Francisco Leite Bittencourt Sampaio foi uma expressiva liderança espírita contemporânea
de Bezerra de Menezes. Também pertencente ao Partido Liberal, foi deputado entre 1864
e 1870 (WANTUIL, 1981).
Referências
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