SOUSA, J. S. BORGNETH, A. L. Direitos Humanos - Perspectivas Interdisciplinares Na Produção Científica Da UFPI

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 402

2020

SOUSA & BORGNETH (Orgs). Direitos humanos: perspectivas


interdisciplinares na produção científica da ufpi. 1ª Ed: Gradus
Editora. Bauru, São Paulo. 2020.

FICHA TÉCNICA

Editor-chefe
Lucas Almeida Dias

Projeto gráfico
Paulo Ricardo Cavalcante da Silva

Diagramação
Tatiane Santos Galheiro

Revisão
Jancen Sérgio Lima de Oliveira

Comitê Editorial Científico – Gradus Editora 2020/2021


Dra. Janaína Muniz Picolo
Dr. Tiago Yamazaki Izumida Andrade
Dr. Vitor Sérgio de Almeida
Ma. Ana Lydia Sant’ Anna Perrone
Ma. Camila Mossi Quadros
Me. Dorgival Pereira da Silva Netto
Ma. Élida Cristina de Carvalho Castilho
Me. Filipe Pimenta Carota
Me. Jean Carlos da Silva Roveri
Me. José Augusto A. Rabelo
Me. Denise Leite Peruzzo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Direitos Humanos: [e-book]: perspectivas interdisciplinares


na produção científica da UFPI / organizadores, SOUSA, J. S;
BORGNETH, A. L.. – Bauru, SP: Gradus Editora, 2020.
400p.. : il. (algumas color.) ; PDF.

Inclui bibliografias.
ISBN: 978-65-88496-17-6

1. Direitos Humanos – Brasil 2. Educação – Brasil. I.

CDD 370.00
Sumário
PREFÁCIO.......................................................................................9

REFUGIADOS NO BRASIL:
Situação durante a pandemia de COVID-19............................................21

A LINGUAGEM RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA E SUA


RELAÇÃO COM A SAÚDE QUILOMBOLA DO PIAUÍ ...........................45

DIREITOS HUMANOS E POVOS TRADICIONAIS:


Uma análise do panorama social dos remanescentes
quilombolas brasileiros sob a luz dos direitos fundamentais .....................71

DIREITOS HUMANOS E SOPESAMENTO DE PRINCÍPIOS:


Aplicação a um caso concreto ...............................................................93

A PERDA DE IDENTIDADE DA MULHER VÍTIMA DE FEMINICÍDIO


NA ENUNCIAÇÃO JORNALÍSTICA:
Uma análise do caso de samara silva vieira lima .....................................109

DIREITO COMO LITERATURA:


O romance em cadeia de Ronald
Dworkin aliado à violência doméstica ...................................................125

ENJAULAR SERES HUMANOS:


Abolicionismo penal e os três dogmas do penalismo ................................143

A (NÃO) PROTEÇÃO AO DIREITO À MATERNIDADE


NO ÂMBITO CARCERÁRIO ..............................................................177

O UNIVERSAL, A OUTRA E A FALHA:


A dominação masculina em Boy Erased .................................................. 209
A TRANSEXUALIDADE NO BRASIL:
Em busca do direito de existir ..............................................................221

CORPOS NÔMADES EM ESPAÇOS RÍGIDOS:


O sistema penitenciário e a prisão de travestis no brasil ...........................247

CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA
E SUAS REPERCUSSÕES ..................................................................269

INCIDENTE EM ANTARES:
Onde os mortos desenterram verdades .................................................285

ASPECTOS RELIGIOSOS DA CULTURA POPULAR


NORDESTINA EM “AS PELEJAS DE OJUARA” ..................................295

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE INTRÍNSECA E O DIREITO


À MORADIA: Habitação, estado e pandemia.......................................309

PERSPECTIVAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS NA DEMOCRACIA


PARTICIPATIVA COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO ACESSO À
JUSTIÇA EM COMUNIDADES CARENTES.........................................323

DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO:


A garantia das pessoas com deficiência à educação inclusiva .....................337

DIREITO À EDUCAÇÃO: FATORES DESENCADEADORES


DA NÃO ALFABETIZAÇÃO ...............................................................361

O PAPEL DO DIREITO EM FACE DA SUBALTERNIZAÇÃO CULTURAL


BRASILEIRA EM TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19 ...................375

AUTORES........................................................................................395
PREFÁCIO

Para que direitos humanos?

Por que falamos em direitos humanos? A resposta pode ser


imediata: a nomeação se dá em razão de nem todas as pessoas
serem tratadas como humanas. E parece estranho: como você é
uma abelha e não pode ser chamada/tratada de abelha? Como ser
uma árvore e não ser tratada/chamada de árvore? Mas é isso que
ocorre! As hierarquias entre humanos para que concorram entre
si são tão intensas que chegam ao ponto de um ser humano não
ser tratado como ser humano. Concorrer pode ser apenas um
instinto de sobrevivência, mas deve ter um limite, não ocorrendo,
a espécie pode desaparecer por si só. Ocorre que a espécie humana
não concorre apenas pelo instinto de sobrevivência: alimentar-se e
ter segurança ficam esquecidos. A concorrência é para definir quem
é mais importante, a concorrência se dá para se fazer respeitar,
esquecendo a necessidade de ficar vivo.

A obra aqui prefaciada “Direitos humanos: perspectivas


interdisciplinares na produção científica da UFPI” trata-se de uma
coletânea de artigos sobre a subordinação da cultura brasileira, o
sistema de justiça e o sistema moral como revelação dos desejos de
domínio, o permanente ataque às civilizações que a cultura ocidental
buscou eliminar para se fazer como única cultura, as opressões que
constroem o espírito competitivo necessário ao capitalismo e a
ampliação das vulnerabilidades na pandemia da COVID-19.

Trago a leitura da obra não na ordem que é apresentada,


mas na sequência apresentada acima: a construção permanente da
subordinação e não tematização da morte na cultura ocidental, o
que resulta numa perspectiva de o ser humano se perceber como
imortal em dois artigos: a subordinação da cultura brasileira em:
“O papel do direito em face da subalternização cultural brasileira

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 9


em tempos de pandemia da COVID – 19” e a não tematização da
morte em “Incidente em Antares: onde os mortos desenterram
verdades”; o sistema de justiça como revelação dos desejos de
domínio em “Enjaular seres humanos: abolicionismo penal e os três
dogmas do penalismo” e a aplicação de pena moral pela sociedade
a duas pessoas negras em “Direitos humanos e sopesamento de
princípios: aplicação a um caso concreto”; o permanente ataque às
culturas que o ocidentalismo nega como cultura em três artigos: a
negação da religião das culturas negadas em “A linguagem religiosa
afrobrasileira e sua relação com a saúde quilombola do Piauí”; a luta
por pertencimento territorial dos povos quilombolas em: “Direitos
humanos e povos tradicionais: uma análise do panorama social
dos remanescentes quilombolas brasileiros sob à luz dos direitos
fundamentais” e a invisibilização da cultura nordestina, um misto
de tradições africanas e indígenas, em: “Aspectos religiosos da
cultura popular nordestina em ‘As Pelejas de Ojuara’”.

O ataque às culturas negadas como culturas é tratado


também como opressão. Afirmo que as opressões, tão necessárias
ao ocidentalismo, preparam a subjetividade competitiva para ser o
mais importante, o mais valorizado, que expressa uma boa parte
dos artigos da coletânea, em nove artigos dos dezenove: opressão
de gênero: “A perda de identidade da mulher vítima de feminicídio
na enunciação jornalística: uma análise do caso de Samara Silva
Vieira Lima”; “Direito como literatura: o romance em cadeia de
Ronald Dworkin aliado à violência doméstica” e “A (não) proteção
ao direito à maternidade no âmbito carcerário”; opressão de gênero
e sexualidade em: “O universal, a outra e a falha: a dominação
masculina em Boy Erased”; “A transexualidade no Brasil: em busca
do direito de existir”; “Corpos nômades em espaços rígidos: o sistema
penitenciário e a prisão de travestis no Brasil”; “Criminalização da
homotransfobia e suas repercussões”. Há um artigo sobre educação
inclusiva que trata da opressão da pessoa com deficiência: “Direito
fundamental à educação: a garantia das pessoas com deficiência à

10 Direitos Humanos
educação inclusiva”. As opressões são estruturantes da modernidade
o que fez com que o acesso à justiça também tenha se tornado
um direito fundamental, o direito humano constitucionalizado,
o que é tratado no artigo “Perspectivas de movimentos sociais
na democracia participativa como meio de efetivação do acesso à
justiça em comunidades carentes”

A última parte da minha leitura da obra se dedica a ampliação


das vulnerabilidades das opressões em tempos de pandemia.
“Refugiados no Brasil: situação durante a pandemia de COVID-19” e
“O princípio da igualdade intrínseca e o direito à moradia: habitação,
estado e moradia” tratam de dois temas fundamentais: a ampliação
da vulnerabilidade do migrante em tempos de pandemia, mas
não qualquer migrante, somente quem vem de culturas também
negadas ou que provocam guerras para dominar territórios. E as
reintegrações de posse ocorridas durante a pandemia, apesar de
normativa do CNJ sobre reintegração zero durante a pandemia.

Posso afirmar que a centralidade do livro se dá com a


discussão das opressões, mas traz elementos outros que explicam
por que quando tratamos de direito humanos a centralidade se
concentra nas opressões: traz como se forma o ocidentalismo pela
permanência das inferiorizações culturais, que tem o castigo, seja
moral, seja judicial, como a forma de revelar o desejo de domínio
por meio de subjetividades que querem ser heroicas, imortais,
que vivem um tempo inexistente, o futuro, que são educadas para
concorrer permanentemente, por isso as opressões fazem parte do
processo educacional e que, em tempos de crise, as vulnerabilidades
se ampliam.

Eu poderia tratar aqui apenas das opressões, que é a


centralidade da obra, mas prefiro esta leitura considerando todos
os aspectos da obra, não apenas a centralidade. Por isso, quero
começar com o desejo do ser humano de se tornar o centro do
universo ou mesmo o seu gestor. Primeiro, temos o trabalho da

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 11


arqueologia que identifica na África, no território conhecido como
Egito, as múmias que eram preparadas para a pessoa retornar ao
seu corpo, o que representa a busca de eternização. Se é eterno não
se trata de qualquer vida, mas de uma vida eterna, embora tenham
sido também mumificados gatos domésticos e até um leão, mas a
centralidade ali era a vida humana1.

A cultura ocidental é vista como sendo originada na Grécia,


na perspectiva de Hegel (1992)2, a partir da história das religiões,
o qual desconsidera a cultura africana e trata apenas como religião
da natureza, em que o sagrado poderia ser a terra, um rio, uma
árvore ou outra vida que não a humana, afirmando que estes eram
humanos, mas não tinham consciência de sua superioridade,
portanto não sabiam que eram superiores, desconsiderando toda
a tradição egípcia. Na visão de Hegel, foi a religião que fez o ser
humano se perceber como superior às outras vidas, o que se deu
no que ele chama de religião manifesta, o cristianismo, ou na
minha leitura, qualquer religião que tenha um sagrado que tenha a
semelhança de ser humano. Para o autor, as religiões evoluíram de
religião da natureza, a africana e a latino-americana, para religião
da arte, a religião grega e romana, em que os sagrados eram da
terra e humanos, com a junção de bem e mal, que evoluiu para a
religião manifesta, em que o sagrado é o pai do ser humano, que
é à sua imagem e semelhança, que vive num mundo espiritual, o
melhor de todos os mundos, o que vai fundamentar o sentimento
de imortalidade no ser humano porque morrer significa partilhar o
mundo perfeito em que o sagrado vive.

É possível perceber na visão de Hegel (1992)3 que o ser


humano se tornou superior quando se percebe como a única espécie

1
https://www.dw.com/pt-br/egito-descobre-59-sarc%C3%B3fagos-de-26-mil-anos-em-
perfeitas-condi%C3%A7%C3%B5es/a-55148694. Acesso em 11 de novembro de 2020.
2
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito I e II. Petrópolis, Editora Vozes, 1992
3
Ver citação 2

12 Direitos Humanos
que é filha do seu sagrado e que é à sua imagem e semelhança.
Portanto, o ser humano se torna efetivamente humano quando se
percebe superior às outras vidas a que chamamos de natureza, mas
para ser humano é preciso ter consciência da sua superioridade,
o que faz o ocidentalismo considerar permanentemente África e
América Latina como aqueles territórios inferiores em razão de que
pessoas que lá habitam não têm consciência de sua superioridade,
incluindo no mesmo sentido os territórios asiáticos empobrecidos
pelo colonialismo, como a Índia.

O primeiro enfrentamento para que os direitos humanos se


efetivem como decisão judicial e como política pública é o abandonar
a filosofia da consciência, que aprendemos em todas as escolas e
universidades: as pessoas que têm consciência ensinam como ter
consciência. É preciso trazer as tradições indígenas e africanas de
que aprendemos pelo diálogo, em que as pessoas que dialogam
aprendem, formulam novos entendimentos no diálogo. É por isso
que estas culturas são classificadas como orais. E oralidade não
significa ser inferior! É adotar o entendimento de que as pessoas
não vão abrir um livro para saber como se portar numa determinada
situação. A orientação precisa fazer parte do pensamento da pessoa.
É como a cultura ocidental usa os meios de comunicação: repete até
virar estrutura do pensamento das pessoas! A televisão é o maior
formador de opinião, por isso está sempre nas mãos da elite. E lá
colocam repetidamente todas as informações que querem como a
sociedade seja, formando nossa subjetividade.

Segundo Hegel (1992)4, a nossa subjetividade se formou


quando o ser humano se percebeu diferente e superior às outras
vidas, com essência interior, a que chamou inicialmente de espírito
e depois mudou para a capacidade racional, ocasionando que as
emoções, que pareciam incontroláveis, são percebidas e controladas
pela razão, portanto uma subjetividade moldada pela razão ao

4
Ver nota de rodapé 2.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 13


longo do tempo, resultando numa subjetividade que se mostra
como imortal, heroica, que tudo pode, bastando se esforçar, que
vive voltada para o futuro, nunca se fixando no presente. Portanto,
vivemos de esperanças, sentimo-nos superiores às outras vidas a
que chamamos de natureza, atuamos como gestores do universo,
pensamos dividido e por isso especialistas em algo, caso contrário
o espaço para a vida digna fica comprometido. E por pensarmos
dividido nunca vemos o todo que a nossa ação pode alcançar.
Também organizamos tudo em código binário separando o bem
do mal, formando-se como o sim e o não, o bem e o mal. Somos
também permanentemente concorrentes, sendo que as opressões
cumprem esse papel de nos fazerem concorrentes.

E onde aprendemos tudo isso? Nas famílias, nas igrejas, nas


escolas, nas universidades, com a cultura de modo amplo. Nascemos
já com as cores que vão definir superioridade ou inferioridade: azul
para os meninos e rosa para as meninas. Esta última reproduz
que a mulher sempre precisa do homem para protegê-la por
ser frágil e delicada, já o menino tem cor forte, determinando
que sempre será o que vai ter força e coragem. Os brinquedos
continuam a modelação da opressão de gênero: para as meninas,
apetrechos domésticos e bonecas, para os meninos, brinquedos
que simbolizam liberdade, agressividade e coragem. Na educação
familiar, as meninas são direcionadas às atividades domésticas
e os meninos fazem atividades não domésticas fora de casa. As
igrejas continuam a formulação da opressão de gênero por textos
que afirmam ser a mulher submissa, devendo obedecer ao marido.
A escola permanece com a mesma formação, tratando as meninas
como frágeis e delicadas e os meninos com futebol e brincadeiras que
exigem coragem, estimulando que as meninas gostem de humanas
e os meninos de exatas. Em casa, nos momentos de lazer, quando
não brincam, as crianças veem televisão, que reproduz a mesma
dominação de gênero, raça, geração e sexualidade. São programas
infantis com heróis, em que o ser humano aprende que basta se

14 Direitos Humanos
esforçar para tudo poder; de violência voltada para os meninos e de
amor para as meninas em novelas com heróis e heroínas brancas
e brancos, heterossexuais, de classe média, com expressão de ser
europeu ou estadunidense, com sofrimento sempre e todo o tempo
com um final feliz, seja para as meninas; sejam os filmes violentos
para os meninos.

O resultado disso é repetição dessa forma de ver o mundo


sempre, considerando que nunca se vê o conjunto de tudo isso,
resultando em ver a pessoa negra ou indígena como não humana,
colocando nos filmes e novelas as pessoas negras na condição
de serviçais como se escravos fossem, classificando as mulheres
como submissas e mostra-se como não submissa será corrigida
com violência ou mesmo assassinada. Não sendo hetero, será uma
punição por descumprimento da moral considerada normal. As
pessoas com deficiência são consideradas como não normais e por
isso excluídas do conjunto social. E há as idades de confiança: criança,
jovens e pessoas envelhecidas não são de confiança, as primeiras
porque viveram pouco, por isso não aprenderam ainda a disciplina
e os últimos viveram demais e não podem interferir para não ter
oportunidade de dizer que essa forma de viver não traz felicidade.
E por isso são abandonadas em asilos ou algo assemelhado.

O pensamento eurocêntrico prontinho, como apresentei


acima, foi sendo construído com a inferiorização de pessoas e
territórios. Chegaram à América Latina no final do século XV e
início do séc. XVI. Já estava em curso a formação desse pensamento
com a superioridade humana em relação às outras vidas por
se considerarem como filhos do seu sagrado, à sua imagem e
semelhança, e terem como destino final a vida espiritual, que só
os humanos gozavam dessa condição, alimentado por uma visão
de que o seu sagrado construiu tudo e depois lhe entregou para
fazer a gestão do universo. E a igreja autorizou, por bula papal, a
escravização de quem não acreditasse nesse sagrado.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 15


O que foi estabelecido aqui foi a colonização que, segundo
Quijano (1992)5, permanece como colonialidade, já que a condição
de colonizado foi eliminada quando fomos reconhecidos como
país. O colonialismo se instaurou rompendo a ética de guerra
(GROTIUS, 2004)6, em que um dizia o que queria do outro e caso
não cedesse declarava guerra e quem ganhasse ficava com o objeto
disputado e com a condição de escravizar quem perdeu, portanto,
sem haver escravidão racializada. O colonialismo se instaurou aos
poucos por meio da catequese, que reconhecia a cultura do outro,
mas assediava para que aceitasse a cultura do colonizador como
melhor. A catequese era a forma de captar a cultura daquele que
se queria inferiorizar, portanto uma dominação pelo pensamento.
A catequese serviu de modelo para a escola e para a universidade.
Permanecemos assim, fazendo conforme quis o colonizador. Não
sabemos nada da cultura anterior do nosso território, mas sabemos
tudo do pensamento eurocêntrico.

Segundo Hegel (1992)7, a justificativa da superioridade


humana em razão de ter espírito foi substituída no Iluminismo pela
razão, estabelecendo que o ser humano é superior por ser racional. E
sendo a única vida racional, mas em nada mudou a fundamentação,
por isso mesmo, a religião permaneceu onde estava com a oferta que
todas as pessoas querem, a eternidade na pós-morte. E pela ciência
se passou a buscar justificativas científicas para a inferiorização
racial (basta ver as teorias genéticas).

Essa arquitetura resultou em duas guerras mundiais. E só


depois da segunda guerra houve a declaração de que todas as pessoas
são humanas, mas sem nada mudar na moral, na permanente
5
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad y Modernidad-racionalidad”. In: BONILLO, Heraclio
(comp.). Los conquistados. Bogotá: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO, 1992, pp. 437-449.
Tradução de wanderson flor do nascimento.
6
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Tradução de Ciro Mioranza. 2. ed. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2004
7
Ver nota de rodapé n. 2.

16 Direitos Humanos
concorrência em que se educa as pessoas, sem mudar a filosofia,
a história, a ciência. Portanto, somos a mesma cultura racista,
machista, sexista, heteronormativa, sem amor ao ser humano ou
melhor com amor a alguns humanos: os brancos, heterossexuais,
ricos e poderosos. E somos uma cultura infeliz que busca a
satisfação no consumo, se satisfaz com o consumo exagerado sem
compromisso com os resíduos que produz. Até mesmo o grande
final feliz é alimentado pelo mito do amor romântico, o que é falso,
apenas alimenta as esperanças. E, se você não consegue, vai se
sentir mais infeliz ainda.

E para que servem direitos humanos? A declaração de direitos


humanos, obrigando todas as nações a declararem e protegerem os
direitos humanos, é importante, não porque se efetive, mas como
forma de tematizar quem somos nós, porque os direitos humanos
sempre foram desconsiderados e são mais desprezados na atual
conjuntura.

É impossível efetivar os direitos humanos? Sem mudar a cultura


eurocêntrica, é sim! Sem nada mudar enquanto ontologia, o ser que
queremos ser, nem a epistemologia que nos conduz para conhecer
e forma a nossa subjetividade, vamos continuar denunciando a
violação de direitos humanos e direitos fundamentais por quanto
tempo durar. A crise do momento, de uma espécie de degradação
ainda mais ampla dos direitos humanos, ocorre exatamente em
razão de nada nunca ter sido modificado na cultura eurocêntrica,
com a desconsideração das outras culturas alimentadas por outras
cosmovisões, tratando-se como única cultura e única civilização,
que racializa o planeta e considera a sua raça como superior, que
inferioriza territórios para deles se apropriar, que só a sua forma
de conhecer é legítima, as outras formas não são consideradas
graduadas como a sua. A história só começou depois da invasão
europeia, classificam as outras culturas e civilizações como
selvagens, apesar das evidências do Egito, de Incas, Astecas e Maias.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 17


Se nada mudou depois da Declaração Universal de Direitos
Humanos, essa declaração nunca será efetivada. O perdedor da
Segunda Guerra se organizou e retornou no continente europeu
e na sua extensão estadunidense, o que animou a degradação
dos direitos humanos em todos os lugares – incluindo no Brasil,
alimentada com a eleição presidencial, que colocou no poder
máximo uma pessoa que não considera nem respeita os direitos
humanos.

E como podemos fazer para nos valorizar como humanos e


valorizar as outras vidas a que chamamos de natureza? Alterando
aos poucos a nossa visão de mundo, começando na reflexão
porque vivemos em sociedade para refletir sobre a finalidade das
nossas vidas: vivemos para produzir riquezas? Ou a vida é mais
importante do que os bens materiais que acumulamos ou não nas
nossas vidas? Está correta esta nossa forma de conhecer dividindo
sem estabelecer relações e organizando tudo num “sim ou não”?
Como se tudo fosse tão simples assim, como se bem e mal não se
misturassem! Por que vivemos pensando sempre no futuro? Por que
não vivemos o presente? Aproveitando a beleza da vida, o nascer do
sol, a lua, o pôr do sol, a beleza das árvores, das flores, dos rios? Por
que vivemos para trabalhar sempre? Por que não temos medo de
perder o que há de mais precioso que é a nossa vida, pousando de
herói e de heroína? Nem uma pandemia nos fez refletir sobre isso.

Por que não refletimos sobre as concorrências que fazemos


cotidianamente como se estivéssemos permanentemente em
guerra, seja com a pessoa que você diz que ama, seja com amigas e
amigos, seja com todas as pessoas? Por que não aproveitamos esta
vida como feliz sem deixar que a felicidade nos alcance numa vida
espiritual que nem sabemos se existe?

Estas e outras reflexões nos remetem a conhecer a nossa


civilização, a cultura que aqui existiu antes da invasão e lá buscar a
nossa fortaleza e buscar referenciais dos que vieram para aqui sem

18 Direitos Humanos
escolha e aqui ainda vivem muitos aspectos da civilização em que
viviam, descendentes africanos.

Pensar em direitos humanos nos leva a refletir sobre ontologia


e epistemologia, sendo um o objetivo e o outro o modo de operar
para que possamos fazer pequenas mudanças de pensamento
numa espécie de descentramento cognitivo para enfrentar as duas
hierarquias que nos atravessam: a hierarquia entre nossas vidas
humanas e as vidas a que chamamos natureza, sob orientação do
principio do bem viver, que já é princípio constitucional na Bolívia
e no Equador, com decisões em que o rio é sujeito de direitos e não
objeto dos seres humanos.

A outra hierarquia é entre humanos. Como se sentir


igual pertencente de uma comunidade política com tantas
inferiorizações? Precisamos respeitar todas as vidas, em todos os
gêneros, sexualidades, raças, idades, com todas as partes do corpo
ou não. Enfrentando as opressões, o capitalismo não terá o sucesso
que tem no presente. Se as pessoas não concorrem, a exploração é
reduzida. Já sabemos que começar pelo capitalismo é uma espécie
de enfrentar o todo sem mudar suas partes, portanto, mantendo o
que alimenta o sistema de exploração. Precisamos de mudanças que
permaneçam para que possamos pensar em efetivação dos direitos
humanos.

Teresina (PI), 11 de novembro de 2020.

Maria Sueli Rodrigues de Sousa

Professora Associada II da
Universidade Federal do Piauí – UFPI

Graduação em Direito e Programa de


Pós Graduação em Sociologia

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 19


REFUGIADOS NO BRASIL: SITUAÇÃO DURANTE A
PANDEMIA DE COVID-19

Adamilton Lima Borgneth

INICIANDO A CONVERSA

O final do ano de 2019 introduziu um momento complexo


da história humana: o início do surto de um novo coronavírus.
Fazendo suas primeiras vítimas em Wuhan (China), a doença do
novo coronavírus (em inglês, COVID-19 – Coronavirus Disease
2019) rapidamente se alastrou por todo o planeta, atingindo de
forma mais atroz às populações que já viviam em condições de
subdesenvolvimento. Milhões de vítimas já foram infectadas e quase
1 milhão morreram em decorrência da nova síndrome respiratória.
A doença levou alguns meses para chegar ao Brasil, mas tão logo
iniciou seu contágio no país, o número de infectados progrediu em
escala exponencial.

Os refugiados viram-se então com mais um grande problema a


lidar, pois toda a dinâmica dos países onde eles estavam ou queriam
ingressar foi modificada. Por todo o mundo, inúmeros campos de
refugiados se viram superlotados em um período onde o contágio
pela nova virose se dava de forma rápida e avassaladora.

A preocupação de simpatizantes e defensores dos direitos


dos refugiados foi a de que, com o novo contexto, muitos direitos
e garantias fossem suprimidos. Outras circunstâncias que pioram
a situação são o preconceito racial e a xenofobia, os quais deixam
marcas cruéis nas vítimas e interferem diretamente na qualidade

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 21


de vida delas, as impedindo de trabalhar, de ser bem atendidas nos
sistemas de saúde, de justiça etc. Felizmente muitas ações no sentido
de auxiliar e proteger os refugiados também foram executadas.

O presente capítulo pretende discutir a situação atual dos


refugiados no Brasil em plena pandemia de Covid-19. De início,
foi preciso se definir quem são os refugiados que vivem no país.
Posteriormente, se fez uma breve abordagem sobre a legislação
relacionada aos direitos dessa população no sistema de jurídico
brasileiro; se realizou uma pesquisa em vários veículos sobre a
situação social dessas pessoas no contexto da pandemia de Covid-19
e se verificou qual a ação de diferentes agentes e instituições frente
ao cenário.

A abordagem do capítulo, caracterizada como qualitativa,


foi possível graças à coleta de dados e referências por meio de
pesquisa bibliográfica e documental. Como bases para a pesquisa
foram visitados websites de agências da Organização das Nações
Unidas (ONU), do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR), de instituições do Governo brasileiro, como
o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Outras fontes
utilizadas foram leis nacionais, matérias jornalísticas e artigos
científicos que tratam da temática. É imperativo que se defina
quem são os refugiados antes de prosseguir com as reflexões deste
trabalho.

QUEM SÃO OS REFUGIADOS NO BRASIL?

O termo “refugiado” tem sido muito mencionado nos últimos


anos. A legislação brasileira reconhece como refugiado todo aquele
que:

22 Direitos Humanos
I – Devido a fundados temores de perseguição por
motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de
nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à
proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do


país onde antes teve sua residência habitual, não
possa ou não queira regressar a ele, em função das
circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de


direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país
(BRASIL, 1997, art. 1º).

Percebemos que são inúmeras as razões que levam uma


pessoa à condição de refugiada. Em alguns casos, há a superposição
de mais de um desses motivos. Ademais, o grau de perseguição pode
ser mais alto em determinadas regiões do mundo. É comum que
se haja maior risco em países de regime político não democrático
e em regiões geográficas permeadas por conflitos étnico-raciais
ou religiosos. O ACNUR estima que existem aproximadamente 26
milhões de pessoas nessa condição em todo o mundo (ONU, 2020).

O Brasil é um país conhecido internacionalmente como


acolhedor. Por essa razão, durante as décadas passadas, houve
uma grande diversidade quanto aos locais de origem das ondas
migratórias. O CONARE possui uma rede de dados que relaciona
as decisões sobre pedidos de refúgios e as nacionalidades, dentre
outros dados.

As decisões da Plenária do CONARE – do período situado


entre janeiro de 2017 e junho de 2020 – são apresentadas na
página do Projeto de Cooperação para Análise das Decisões de
Refúgio no Brasil. Ao todo foram 60.152 decisões onde foram
julgadas solicitações de pessoas de 95 nacionalidades diferentes.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 23


Houve 40.858 (67,9%) decisões pelo reconhecimento da condição
de refugiado; 7.379 (12,3%) decisões pelo indeferimento e 11.827
(19,7%) são outros casos encerrados (BRASIL; ONU, 2020). As
decisões podem ser tomadas por três instâncias diferentes: o
CONARE, a Coordenação-Geral do CONARE e o Ministro de Estado
da Justiça e Segurança Pública (BRASIL; ONU, 2019).

O país, até junho do presente ano, possibilitou a


aproximadamente 43 mil pessoas serem reconhecidas como
refugiadas. Esse número é sete vezes maior que o registrado em
dezembro de 2019. Desses, 88% são venezuelanos que fugiram
da crise política social e humanitária que aflige o país (VIDIGAL,
2020).
O CONARE estimava que, em razão da pandemia de
COVID-19, o número de pedidos de refúgio demoraria a aumentar.
Uma causa disso seria o fechamento das fronteiras terrestres. O
coordenador-geral do CONARE, Bernardo Laferté comentou com
o Portal G1 que muitos venezuelanos que estavam em tendência
migratória estavam voltando para seu país de origem. Ele disse
ainda que, por causa da pandemia, a Polícia Federal (PF) não estava
recebendo mais pedidos de refúgio ou residência, salvo nos casos
excepcionais como, por exemplo, se for necessária a interiorização
de algum estrangeiro que já esteja no país (VIDIGAL, 2020).

Dados relevantes sobre às nacionalidades da maioria dos


solicitantes de refúgio – entre os anos 2017 e 2020 – podem ser
vistos na Tabela 1:

24 Direitos Humanos
Tabela 1 – Relação Nacionalidade x decisões do CONARE

Nacionalidade Total de decisões %


Venezuela 46.183 76,8%
Senegal 3.296 5,5%
Haiti 2.848 4,7%
Síria 1.393 2,3%
Angola 1.062 1,8%
Cuba 746 1,2%
República Democrática do Congo 560 0,9%
Fonte: BRASIL; ONU, 2020.

Evidencia-se novamente o predomínio de pedidos de


venezuelanos. Isso pode se explicar pela proximidade entre Brasil
e Venezuela e pela relativa “boa condição econômica” que nosso
país apresenta entre as nações sul-americanas. A maior causa
de migração de venezuelanos para o Brasil é a associação entre
instabilidade política e econômica. A crise política foi trazida pela
autoproclamação de Juan Guaidó como presidente, fazendo frente
a Nicolás Maduro; já a crise econômica foi trazida pela queda do
preço do petróleo.

Senegal, Angola e República Democrática do Congo são países


africanos dos quais vieram muitos solicitantes. A Síria, afligida por
uma intensa guerra civil, também teve muitos de seus nacionais
solicitando refúgio em terras brasileiras. Haiti e Cuba são nações
caribenhas que enfrentam problemas sociais há décadas e, por
isso, muitos cidadãos tentam continuar sua vida em locais mais
propícios. Felizmente, existem instituições protetoras como as que
conheceremos logo no próximo item.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 25


INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS COM OS REFUGIADOS NO
BRASIL

Como uma das medidas de implementação do Estatuto dos


Refugiados de 1951, o CONARE foi criado pela Lei 9.474, de 22
de julho de 1997. O Comitê tem função deliberativa no âmbito do
Ministério da Justiça. Compete ao CONARE:

I - analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em


primeira instância, da condição de refugiado;

II - decidir a cessação, em primeira instância,  ex


officio  ou mediante requerimento das autoridades
competentes, da condição de refugiado;

III - determinar a perda, em primeira instância, da


condição de refugiado;

IV - orientar e coordenar as ações necessárias à


eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos
refugiados;

V - aprovar instruções normativas esclarecedoras à


execução desta Lei (BRASIL, 1997).

Outro órgão de proteção atuante aqui é o ACNUR, fundado em


dezembro de 1950. O órgão, que faz parte da ONU, foi inicialmente
criado para ajudar milhões de europeus que fugiram ou perderam
seus lares (UN, 2020, tradução minha). O ACNUR possui um
escritório bastante atuante no Brasil. O nosso país ratificou a
Convenção referente ao Estatuto dos Refugiados em 1951, no ano
de 1960, se tornando o primeiro país do Cone Sul a fazê-lo (ONU,
2020). O escritório central do ACNUR no Brasil está situado em
Brasília e há unidades descentralizadas em São Paulo (SP), Manaus
(AM) e Boa Vista (RR).

26 Direitos Humanos
Além das instituições estatais e internacionais, há diversas
Organizações Não Governamentais (ONGs) que atuam nesse
segmento, como a Abraço Cultural, a Missão Paz, a Compassiva,
a Caritas, e o PARR – Programa de Apoio para a Recolocação
dos Refugiados. Essas ações se juntam a direitos e garantias
fundamentais que conheceremos no próximo segmento deste texto.

OS DIREITOS E GARANTIAS AOS REFUGIADOS

Por ser uma questão global, os interesses dos refugiados são


regulados desde o século passado por normativos internacionais
surgidos pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Como
principais componentes da legislação internacional acerca do
tema temos a Convenção de Genebra (1951), o Protocolo de 1967
e o Estatuto do ACNUR. O Quadro 1 apresenta os principais
dispositivos normativos presentes nessa legislação:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 27


Quadro 1 – Principais normativos internacionais sobre o tema de
refugiados
- O seu artigo 1ª trata do caso dos refugiados
estatutários, isto é, as pessoas consideradas
refugiadas em decorrência dos instrumentos
internacionais anteriores à Convenção;
- Compreende disposições que definem o
estatuto jurídico dos refugiados e os seus
direitos e obrigações no país de refúgio;
- Estabelece um limite temporal (até 1º jan. de
1951) e geográfico
Convenção
Relativa aos (Europa) ao termo refugiado;
Estatuto dos
Refugiados - Há disposições referentes à aplicação
(Genebra, 1951) dos instrumentos sob o ponto de vista
administrativo e diplomático (Artigo 35:
Normativos Internacionais

cooperação com o ACNUR);


- Suas disposições não estabelecem regras
específicas a serem adotadas pelos Estados
contratantes, no processo de reconhecimento
da condição de refugiado;
- A determinação da condição de refugiado não
tem como efeito atribuir-lhe a qualidade de
refugiado, mas sim constatar essa qualidade.
Define o estatuto jurídico dos refugiados e os
seus direitos e obrigações no país de refúgio;

Protocolo de - Amplia a definição do termo refugiado para


1967 Relativo além dos limites geográfico e temporal;
ao Estatuto dos - Diz respeito à aplicação dos instrumentos sob
Refugiados o ponto de vista administrativo e diplomático
(Artigo 11: cooperação com o ACNUR);
- Amplia a atuação do ACNUR.
- Possui tarefa de velar pela aplicação dos
Estatuto do instrumentos: Convenção de 1951 e Protocolo
ACNUR de 1967;
- Ação humanitária, inicialmente.
Fonte: Adaptado de Bataglia et al. (2020, p. 9)

28 Direitos Humanos
No âmbito nacional, há algumas leis, decretos, resoluções e
portarias que tratam sobre a questão dos refugiados. Os principais
instrumentos normativos são a própria Constituição Federal de
1988 e as leis de número 9.274/1997, 13.445/2017 e 13.684/2018.
Não é objetivo deste trabalho esgotar análise dessas leis, porém,
haverá citação e discussão sobre diversos dispositivos presentes
nelas.

A Constituição Federal aborda, em seu art. 1º, inciso III, o


princípio da dignidade da pessoa humana, o qual deve ser aplicado
às relações com os refugiados. O art. 5º garante igualdade aos
brasileiros e estrangeiros residentes no país (BRASIL, 1988).
Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, essa
garantia se estende a qualquer estrangeiro que esteja em território
nacional, mesmo que refugiado, turista ou viajante em trânsito.

A Lei 9.474, de 22 de julho de 1997, determina mecanismos


para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, além
de outras providências. No seu artigo 1º, a referida lei determina
os parâmetros que tornam um indivíduo refugiado no Estado
brasileiro. Um efeito significativo é a extensão da condição ao
cônjuge, aos ascendentes e descendentes, bem como a outros
membros do grupo familiar que dependerem economicamente do
refugiado. Só é necessário que estejam todos em território nacional
(BRASIL, 1997).
Brasil (1997, art. 4º) determina ainda que o refugiado “gozará
de direitos e estará sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil”.
Isso o obriga a acatar as leis, regulamentos e demais providências
voltadas à manutenção da ordem pública. Essa caracterização,
juridicamente falando, torna o refugiado igual a um estrangeiro que
esteja legalmente no país por outros meios.

Outro direito adquirido através da lei supracitada é de ter a


carteira de trabalho, documento de viagem e a cédula de identidade

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 29


comprobatória de sua condição jurídica. Quanto ao ingresso no
território brasileiro, é assegurado que, em hipótese alguma, será
efetuada a deportação para fronteira de território onde sua vida
e sua liberdade estejam ameaçadas, salvo em casos de pessoa
considerada perigosa para a segurança nacional brasileira (BRASIL,
1997, art. 7º, § 1º e § 2º).

Há um rol de direitos processuais relacionados na lei


9.474/1997 que garantem recursos caso haja negativa na solicitação.
É garantida ainda proteção na condição de estrangeiro caso o pedido
de refúgio seja totalmente negado e as condições que o provocaram
não tenham cessado, exceto nos casos de estrangeiro perigoso à
soberania e aos interesses do Brasil ou da ONU.
A Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, também chamada
de Lei de Migração, informa os princípios e diretrizes da política
migratória. Entre eles se encontra o repúdio e a prevenção à
xenofobia, a universalidade, a acolhida humanitária, a igualdade de
tratamento, dentre outros. A lei ainda dá providências no sentido
de garantias que tornem a vida do migrante mais fácil e adaptada
à realidade brasileira. Outro tema que está no escopo da lei é o
residente fronteiriço e a possível autorização de livre circulação
entre as fronteiras (BRASIL, 2017).

A Lei nº 13.684, de 21 de junho 2018, dispõe sobre a


assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação
de vulnerabilidade que decorra de migração provocada por crise
humanitária (BRASIL, 2018). A referida lei ainda define instituições
do Estado Brasileiro que ficarão responsáveis pelo gerenciamento
dessas medidas. É uma lei que trata da questão administrativa
relacionada à Assistência Emergencial. Através dos dispositivos
dessa lei, o refugiado pode se informar sobre a assistência oferecida
pelo governo brasileiro.

30 Direitos Humanos
Apesar das proteções no sentido legislativo, na prática os
refugiados precisam enfrentar condições e situações adversas nos
países onde são recebidos. Bataglia et al. (2020) cita o preconceito
como grande dificuldade para essas pessoas encontrarem trabalho
e morarem em locais mais estruturados, levando-as a migrar para
locais de menor progresso e aceitar salários insuficientes para suas
necessidades.

No contexto específico da COVID-19, chineses sofreram com


a força da xenofobia. Os ataques xenofóbicos e racistas ganharam
força na conjuntura mundial em que nos encontramos. Imigrantes e
refugiados foram e são culpabilizados por desigualdades estruturais.
Constata-se diferenciação até mesmo entre o imigrante branco e o
negro (RODRIGUES; CAVALCANTE; FAERSTEIN, 2020).

Paloschi e Luz (2020) falam não só sobre o preconceito e


a discriminação por parte das pessoas comuns, mas também por
parte de líderes de Estado que descrevem a COVID-19 como doença
de estrangeiros. Quando um líder profere palavras como essas,
os praticantes de crimes de xenofobia ganham respaldo de uma
liderança que deveria combater e desestimular ao máximo atos
assim. E ainda há que se falar das consequências diplomáticas. De
todas as maneiras, o discurso de ódio deve ser desencorajado.

A própria Organização das Nações Unidas (ONU) alerta


para o agravo de condições discriminatórias, discursos de ódio,
xenofobia, ataques e retornos forçados a refugiados e requerentes
de asilo, violência sexual e baseada em gênero, além de limitações
no acesso à saúde e direitos sexuais e reprodutivos (UN, 2020,
tradução minha).

Nesse cenário, a ONU realizou uma pesquisa intitulada


Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil (ONU, 2019).
Os resultados da pesquisa mostram que 41% dos refugiados
viventes no Brasil já sofreram discriminação. Desse número, 73,5%

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 31


associam o ocorrido à xenofobia. Em 52% dos casos, houve relato de
preconceito também por questões raciais. Em se tratando do cenário
financeiro, 67% dos entrevistados afirmou que a renda familiar não
cobre as necessidades econômicas. A situação certamente piorou
com a chegada da pandemia de COVID-19, como veremos a seguir.

A PANDEMIA DE COVID-19: COMO FICOU A SITUAÇÃO DOS


REFUGIADOS DO BRASIL?

O panorama mundial tornou-se mais crítico com o


aparecimento de uma epidemia de síndrome respiratória aguda
grave. Com surgimento na cidade de Wuhan (China), a doença do
novo coronavírus rapidamente chegou a todo o planeta. Aqui no
Brasil, o primeiro caso de doença do SARS-Cov-2 foi confirmado
em 26 de fevereiro de 2020 na cidade de São Paulo (SP) (BRASIL,
2020b).

Os refugiados viram-se então com mais um grande problema


a lidar, pois toda a dinâmica dos países onde eles estavam ou onde
queriam ingressar foi modificada. Cerca de 167 estados fecharam
as fronteiras e 57 países não abriram qualquer exceção para os que
procuram asilo (UN, 2020, tradução minha).

Pode-se observar “condições de transitoriedade, precariedade


e superlotação de abrigos e campos de refugiados” (RODRIGUES;
CAVALCANTE; FAERSTEIN, 2020, p. 3-4). Ressalta-se a existência
de condições precárias de higiene e saúde. Não teria como manter
distanciamento e medidas preventivas contra o coronavírus em um
local onde o espaço é um muito disputado e escasso. E ainda há as
circunstâncias externas ao acampamento, como a perda de renda,
a insegurança quanto ao status jurídico e quanto à manutenção da
dignidade e da integridade do refugiado e de sua família.

32 Direitos Humanos
De acordo com o ACNUR, os refugiados têm acesso limitado
à água, sistemas de saneamento e instalações de saúde. 80% dos
refugiados no mundo estão em países de baixa e média renda
(UN, 2020), o que agrava ainda mais a situação deles no contexto
pandêmico.
Paloschi e Luz (2020) afirmam que sem a saúde dos
refugiados e migrantes é impossível se ter uma saúde pública
eficiente. Por medo de sofrerem discriminações ou mesmo por falta
de informações, essas pessoas podem deixar de procurar ajuda no
Sistema Único de Saúde (SUS) se manifestarem sintomas. Isso pode
agravar o contágio tanto no campo de refugiados como em áreas
externas onde eles circulem diariamente.
A forma como o vírus atinge as populações varia de acordo com
o grupo social. As minorias raciais étnicas e religiosas, detentoras
de menor poder econômico, não podem ter o luxo de se isolar e
nem trabalhar de casa, detendo dessa maneira, as maiores taxas de
contágio e mortalidade (PALOSCHI; LUZ, 2020).

A ACNUR reforça aos Estados que tomem medidas respeitosas


ao princípio da não repulsão (PALOSCHI; LUZ, 2020). Sabemos
que, mesmo com isso, há medidas discriminatórias e até mesmo
desumanas em curso em várias partes do mundo. A supressão de
direitos básicos tem sido um problema agravado pela pandemia. É
necessário mais do que nunca uma vigilância acerca dos direitos do
refugiado, pois este, por não ser considerado cidadão do país, sofre
como se fosse invisível.

Acerca dessa invisibilidade, Martuscelli (2020, tradução


minha) afirma que, em terras brasileiras, os refugiados são ainda
mais vulneráveis que minorias natas porque não são cidadãos
nacionais. Eles não podem votar e cobrar dos governantes. Eles
não falam português. Eles não possuem os mesmos documentos
que nós. No caso do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), a situação

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 33


fica ainda mais complexa, pois esse documento é utilizado para os
processos mais importantes no nosso país.

A falta de CPF agravou alguns problemas de recebimento


do Auxílio Emergencial do Governo Federal. A situação estava tão
séria que a Defensoria Pública da União (DPU) precisou garantir
o acesso ao benefício juridicamente aos refugiados e imigrantes
(MARTUSCELLI, 2020, tradução minha).

O atendimento estatal aos estrangeiros foi modificado, o que


inclui o atendimento aos solicitantes de refúgio no país. A Portaria
MJ/CONARE nº 02/2020 fechou o atendimento presencial do
CONARE nas cidades de São Paulo (SP), Campinas (SP), Brasília
(DF) e Rio de Janeiro (RJ), além de suspender os prazos processuais
de refúgio, começando a contar de 11 de março de 2020.

As atividades da Polícia Federal foram impactadas pelo


Decreto nº 10.282 e pela Medida Provisória nº 926. Foram
suspensas as entregas de passaportes, de Carteiras de Registro
Nacional Migratório (CRNM) e de Documentos Provisórios de
Registro Nacional Migratório (DPRNM) (BRASIL, 2020a).

Mesmo que os atendimentos excepcionais sejam realizados


por e-mail e que os prazos migratórios sejam suspensos ou
prorrogados, há o problema da falta de acesso à internet e a
computadores, além de problemas na obtenção de documentos.
A ineficiência na comunicação e na divulgação de informações é
apontada por Jatobá (2020), que também nos lembra que existe
pouco investimento na divulgação de informações e ausência de
materiais em outros idiomas.

A burocratização negligente é outro problema. Por vezes


ocorre a suspeição ou negação de tratamento quando os migrantes
não estão com certos comprovantes ou documentos. A forma
de notificação prejudica a obtenção de dados sobre imigrantes
e refugiados diagnosticados com COVID-19 (RODRIGUES;

34 Direitos Humanos
CAVALCANTE; FAERSTEIN, 2020). Os pesquisadores indicam que
se os dados fossem desagregados por nacionalidade, os gestores
públicos poderiam iniciar políticas mais efetivas de combate ao
coronavírus levando em conta as populações de imigrantes. Creio na
possibilidade de se vencer – saindo das medidas de tamanho único
– políticas que não levam em conta as vulnerabilidades específicas
de cada grupo social situado no país.

Percebemos ainda diversas medidas no sentido de


desvalorização da dignidade humana, como a Portaria
Interministerial nº 120, de 17 de março de 2020, que impediu a
entrada de venezuelanos no país com o pretexto de prevenção ao
novo coronavírus. Medidas como essa envolvem decisões políticas.
Rodrigues, Cavalcante e Faerstein (2020) expõem que a restrição à
Venezuela foi feita enquanto eles possuíam 33 casos importados,
entretanto, as fronteiras aéreas entre Brasil e Europa foram
mantidas abertas mesmo com milhares de casos confirmados no
continente europeu. Saliento que, a essa altura, já havia países
como Itália e Espanha sofrendo surtos generalizados.

A influência das políticas externas do governante brasileiro,


eleito em 2018, é sentida em todas essas decisões que deixaram
um rastro de incertezas aos que necessitam de refúgio e aos que
lutam por igualdade e dignidade para todos. Supreendentemente,
o CONARE reconheceu grave violação dos direitos humanos na
vizinha Venezuela e facilitou a consecução do status de refúgio a
venezuelanos, indo em direção oposta aos interesses do governo
venezuelano. Certamente, o CONARE melhorou a vida de muitas
pessoas que buscavam refúgio. Prosseguimos este texto, citando
ações mais concretas por parte de organizações responsáveis.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 35


AÇÕES CONCRETAS

O ACNUR e o CONARE se destacaram nas ações concretas. Em


meio à situação, o ACNUR se responsabilizou pelo monitoramento
do contágio e das condições sanitárias dos centros e locais que
recebem refugiados. Além disso, houve suporte na questão da água
e matérias de higiene, apoio às redes comunitárias e atuação nos
abrigos, dentre outras ações (ONU, 2020).

Os imigrantes foram abrangidos pelo auxílio emergencial


do Governo Federal, mas enfrentaram problemas mesmo quando
o auxílio foi deferido. Os problemas geralmente se referiam a
documentação. Durante a pandemia, o governo federal elaborou,
em parceria com o ACNUR e a OIM (Organização Internacional
para as Migrações), uma cartilha sobre a solicitação do benefício.
O auxílio possuía o valor de R$ 600,00 ou R$ 1.200,00, igualando-
se aos valores destinados os brasileiros natos ou naturalizados
(BATAGLIA et al., 2020).

Quanto às medidas de prevenção de contágio nos locais


de abrigo aos refugiados, o governo federal, através da Operação
Acolhida, busca realizar monitoramento, isolamento e tratamento.
Como ações cotidianas, há a aferição de temperaturas das pessoas e
o questionamento se apresentam sintomas da COVID-19. No caso
de resposta positiva, são encaminhados a uma ala especializada
com a equipe de gestão humanitária. A limpeza e a desinfecção são
constantes nos locais de dormir e há o incentivo ao uso do álcool em
gel (BATAGLIA et al., 2020). O trabalho de Bataglia esclarece que
o ACNUR fornece insumos e produtos como colchões e materiais
usados para higiene e limpeza, além de auxiliar com consultoria
e assessoramento técnico para construção de área com leitos e
habitações com área de isolamento para pessoas com suspeita de
SARS-CoV-2.

36 Direitos Humanos
As formas de ação dos governos e organizações estão elencadas
no Quadro 2:

Quadro 2 – Como os governos e organizações atuam/atuaram


durante a pandemia, em relação aos refugiados

Formas de atuação dos governos e organizações


Difusão de informações sobre cuidados e prevenção
Distribuição de itens para prevenção da doença (máscaras, higiene
pessoal, álcool) e de alimentação (cestas básicas)
Construção de leitos hospitalares e áreas para acolhimento e
isolamento
Destinação de verbas para localidades aplicarem em cuidados com
refugiados
Interação com população para localizar esse grupo
Elaboração de planos emergenciais para acolhimento de refugiados
Fonte: Adaptado de BATAGLIA et al. (2020, p. 28).

Pode-se verificar que as ações têm que ser frutos de


planejamento minucioso guiado para a população-alvo. A difusão
de informações e a interação oral devem levar em conta os idiomas
falados por essas populações. As construções, as execuções e as
distribuições de itens devem ser feitos de acordo com as necessidades
e se deve observar questões culturais e sociais dos povos envolvidos.
O intuito é cuidar sem provocar equívocos e reações indesejadas
que prejudiquem a interação.

Mesmo com a realização de operações pontuais por parte


do governo federal brasileiro, não se identificou um plano de
ação específico para os refugiados que aqui se encontram. Isso
pode ser reflexo de uma política federal de distanciamento do

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 37


multilateralismo e de aproximação de países segregacionistas como
os Estados Unidos da América.

Nessa conjuntura, ganha espaço a ação de ONGs, imigrantes


e refugiados. Um exemplo foi a promoção de ação social da ONG
África do Coração (São Paulo). A ação envolveu 360 famílias de 17
nacionalidades que vivem na zona norte da metrópole paulista
(DELFIM, 2020).

A campanha Bolívia Solidária reuniu diversas associações


e coletivos da comunidade boliviana e arrecadou centenas de
cestas básicas distribuídas a famílias socialmente vulneráveis. Na
comunidade boliviana há também a ação Voluntários por Amor que
age reunindo e distribuindo cestas, além de fornecer informações
sobre prevenção da contaminação por COVID-19 (DELFIM, 2020).
Há campanhas de populações árabes e originários de outros países
também. A rede de colaboração conta ainda com a Cruz Vermelha, a
Caritas, a Abraço Cultural, a Missão Paz, dentre outras.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Neste capítulo, foi possível refletir sobre uma temática


que tem sido urgente no contexto de pandemia: a situação dos
refugiados que estão no nosso país. Nem sempre o brasileiro
dispensa tempo para discutir sobre isso. Sabemos que existem
dificuldades cotidianas que a maioria dos cidadãos brasileiros
enfrenta desde o nascimento. Dificuldades que são definidas pela
classe, pela etnia, pela orientação sexual, pelo gênero e quaisquer
outras características que não se enquadram no que se imprimiu
como padrão dominante na estrutura da sociedade. No entanto,
é absolutamente necessário que se volte o olhar para o outro e se
observe a situação absurda que leva milhões de pessoas a terem que
se deslocar de sua terra natal.

38 Direitos Humanos
Neste capítulo, discutimos e descobrimos quem são os
refugiados brasileiros, notando-se que a maioria é composta de
pessoas originárias da Venezuela, país vizinho que enfrenta graves
crises. Outras nacionalidades comuns entre os refugiados que se
encontram aqui são a síria, a senegalesa, a haitiana, a cubana e
muitas outras. Os países de origem dessas pessoas enfrentam crises
diversas. Instabilidades ainda mais difíceis que as vividas nesta
terra.

O nosso país possui uma legislação protetiva própria aos


refugiados. A base dessa legislação é formada pela Constituição
da República Federativa do Brasil e pelas Leis nº 9.474/1997,
nº 13.445/2017 e nº 13.684/2018. São normativos feitos em
consonância com tratados e acordos internacionais. Esse sistema
deu origem ao CONARE, o órgão nacional mais importante quando
se leva a questão dos refugiados ao âmbito jurídico.

A pandemia de COVID-19 trouxe um cenário jamais visto


anteriormente no mundo. A vida dos refugiados, como era de se
esperar, ficou ainda mais árdua. Aqui no Brasil, houve o fechamento
de atendimento presencial na Polícia Federal, órgão responsável
pela entrega de passaportes e documentação de identificação
de refugiados. No caso do atendimento feito de forma virtual,
esbarramos no problema da desigualdade de acesso à conexão de
internet e a dispositivos como computadores e smartphones. Outra
adversidade é a escassez de divulgação de informações em outros
idiomas (que não só o inglês e o espanhol) de forma abrangente
para que chegasse aos refugiados. Uma boa medida executada foi a
suspensão de prazos pelo CONARE.

Houve desrespeito aos direitos dos refugiados em muitas


partes do país. Um exemplo foi o uso de burocracia negligente ao se
negar atendimento a estrangeiros que não portavam determinados
documentos, dificultando o acesso à saúde e a prevenção de contágio.
Dessa forma, sem um bom estado de saúde dos refugiados, a saúde

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 39


pública brasileira sofre como um todo. Outra medida polêmica foi
a Portaria Interministerial nº 120, de 17 de março de 2020, a qual
impediu a entrada de venezuelanos no país. A contradição estava
em impedir a entrada de pessoas de um país que até então só tinha
33 casos, mas permitir a entrada aérea de diversos voos vindos da
Europa, que possuía dezenas de milhares de casos confirmados.

Um dos piores problemas quanto aos direitos humanos


foi a superlotação de locais de acolhida e abrigo de refugiados. O
acesso precário à agua e a produtos de limpeza e higiene também
foram problemas relatados por algumas pesquisas. Ademais, há
os transtornos financeiros enfrentados por muitos estrangeiros
que perderam o que tinham e ainda não conseguiram se reerguer
economicamente.

Não se pode deixar de falar da xenofobia e do preconceito


racial, que afligiram inúmeros estrangeiros. Houve diferenciação
no tratamento deles por diversos órgãos, segundo pesquisas.
Há ainda o problema da culpabilização de certas nacionalidades
pela transmissão do novo coronavírus, acontecimento que não se
fundamenta em qualquer que seja o caso.

Apesar dos contratempos e da falta de um plano


governamental nacional exclusivo e bem estruturado para atender
os refugiados e cuidar de suas necessidades, foram desenvolvidas
ações que visavam dar assistência aos refugiados neste momento,
especialmente às famílias mais vulneráveis socialmente. Um
destaque deve ser dado às ações da ACNUR e do CONARE, que
interviram na situação de diversos centros, levando suprimentos
alimentícios e materiais de higiene e limpeza; auxiliando
também na construção de edificações para recebimento de casos
de contaminados pela COVID-19 e de locais para habitação de
refugiados.

40 Direitos Humanos
Um brilho especial existe nas ações de coletivos e associações
formados por imigrantes, refugiados e seus defensores e amigos.
Exemplos disso são as ações da ONG África do Coração e da rede
Bolívia Solidária, que levam alimentos e informação a diversas
famílias vulneráveis. Essas ações impactam a vida de muitos
grupos sociais e criam uma rede de solidariedade imprescindível,
especialmente em tempos de pandemia.

A pandemia ainda está em curso e muito ainda há que se


discutir. Este trabalho tinha a pretensão de incentivar a discussão e
ao mesmo tempo informar e discorrer sobre a temática. O mundo
ainda vive em uma situação excepcional. Agora o chamado “novo
normal” bate à porta e é fundamental que essa nova realidade não
fira os direitos humanos, seja de brasileiros, seja de refugiados em
qualquer parte do mundo.

REFERÊNCIAS

BATAGLIA, Murilo Borsio; CAMARGO, Maria Sonalli Reis de;


MASCHKE, Annelise; HONÓRIO, Ana Beatriz Vitor Barcelos.
Refugiados e Pandemia no Brasil: quais as ações nesse contexto?
Cadernos Eletrônicos – Direito Internacional sem Fronteiras,
v. 2, n. 1, jan./jun. 2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2017.

BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos


para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e
determina outras providências. Brasília: Presidência da República,
[2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9474.htm. Acesso em 20 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 41


BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei
de Migração. Brasília: Presidência da República. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13445-24-
maio-2017-784925-veto-152813-pl.html. Acesso em: 10 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.684, de 21 de junho de 2018. Dispõe sobre


medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas
em situações de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório
provocado por crise humanitária; e dá outras providências. Brasília:
Presidência da República. Disponível em: https://www2.camara.
leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13684-21-junho-2018-786881-
publicacaooriginal-155890-pl.html. Acesso em 11 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Polícia


Federal. Polícia Federal altera o atendimento do passaporte
e aos estrangeiros em virtude da pandemia. Publicado em
24 mar. 2020a. Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/
noticias/2020/03-noticias-de-marco-de-2020/policia-federal-
altera-o-atendimento-do-passaporte-e-aos-estrangeiros-em-
virtude-da-pandemia. Acesso em 19 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Brasil confirma primeiro caso


do novo coronavírus. Publicado em 26 fev. 2020b. Atualizado
em 27 fev. 2020. https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-
saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus.
Acesso em 20 set. 2020.

BRASIL; ONU. Decisões Plenária Conare. Período: janeiro de


2017 a junho de 2020. Disponível em: https://app.powerbi.com/
view?r=eyJrIjoiNTQ4MTU0NGItYzNkMi00M2MwLWFhZWMt-
MDBiM2I1NWVjMTY5IiwidCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDE-
zNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9. Acesso em 18
set. 2020.

42 Direitos Humanos
BRASIL; ONU. Ministério da Justiça e Segurança Pública e Agência
da ONU para Refugiados. Projeto de Cooperação para Análise
das Decisões de Refúgio no Brasil. Brasília: 2019.

DELFIM, Rodrigo Borges. Em meio a lacunas, ações de imi-


grantes e refugiados contra a pandemia ganham destaque.
MigraMundo. Publicado em 4 maio 2020. Disponível em: https://
www.migramundo.com/em-meio-a-lacunas-acoes-de-imigrantes-
-e-refugiados-contra-a-pandemia-ganham-destaque//. Acesso em:
7 set. 2020.

JATOBÁ, Natália Valverde. Assistência aos refugiados no território


brasileiro frente ao COVID-19. Cadernos Eletrônicos – Direito
Internacional sem Fronteiras, v. 2, n. 2, jul./dez. 2020.

MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. How are refugees affected by


Brazilian responses to COVID-19? Revista de Administração
Pública. Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, Early View, 2020.

ONU. ACNUR. ACNUR no Brasil. Disponível em: https://www.


acnur.org/portugues/acnur-no-brasil/. Acesso em 19 set. 2020.

ONU. ACNUR. Dados sobre refúgio. Disponível em: https://www.


acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/. Acesso em 19 set.
2020.

ONU. ACNUR. COVID-19: ACNUR reforça resposta federal


de saúde em Boa Vista. 30 mar. 2020. Disponível em: https://
www.acnur.org/portugues/2020/03/30/covid-19-acnur-reforca-
resposta-federal-de-saude-em-boa-vista/. Acesso em: 10 jun. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 43


ONU. Mais de 40% dos refugiados no Brasil dizem ter
sofrido discriminação, revela pesquisa. Publicado em 04
jul. 2019. Disponível em: https://nacoesunidas.org/mais-de-40-
dos-refugiados-no-brasil-dizem-ter-sofridodiscriminacao-revela-
pesquisa/. Acesso em: 09 set. 2020.

PALOSCHI, Alessandra; LUZ, Vanessa Lopes da. Refugiados e


o COVID-19: a atuação dos Estados frente à crises humanitária
durante a pandemia. Anuário Pesquisa e Extensão UNOESC
São Miguel do Oeste, São Miguel do OESTE, 2020.

RODRIGUES, Igor de Assis; CAVALCANTE, João Roberto;


FAERSTEIN, Eduardo. Pandemia de Covid-19 e a saúde dos
refugiados no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, v. 30, n. 3, 2020.

UN. COVID-19 and Human Rights – We are all in this together.


2020. Disponível em: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/
un_policy_brief_on_human_rights_and_covid_23_april_2020.
pdf. Acesso em 17 set. 2020.

UN. UNHCR. History of UNHCR. Disponível em: https://www.


unhcr.org/history-of-unhcr.html. Acesso em 16 set. 2020.

VIDIGAL, Lucas. Número de refugiados no Brasil aumenta


mais de 7 vezes no semestre; maioria é de venezuelanos. G1.
Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/09/
numero-de-refugiados-no-brasil-aumenta-mais-de-7-vezes-no-
semestre-maioria-e-de-venezuelanos.ghtml. Acesso em: 17 set.
2020.

44 Direitos Humanos
A LINGUAGEM RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA E SUA
RELAÇÃO COM A SAÚDE QUILOMBOLA DO PIAUÍ

Jhonnatas dos Santos Sousa

INTRODUÇÃO

Falar sobre a história da população afro-brasileira no Brasil é


extremamente importante para entender alguns de seus aspectos e
seu legado, seja na literatura, na gastronomia, na música, na moda,
na língua ou na saúde. O Brasil participou da diáspora africana,
que foi a imigração forçada de indivíduos pelo regime escravagista
(PETTER, 2015).

Fonseca (2009) descreve a falta de assistência médica, a


violência e a precária alimentação dada aos povos escravizados
no Brasil, sem tratamentos adequados e desconsiderados tanto
pelo Estado colonial português, quanto pelo império brasileiro,
durante o período do século XVI ao XIX. Nesse período, a população
negra era vista apenas como objeto comercial e força de trabalho,
desconsiderando assim a sua carência de cuidados à saúde física
e mental. Nessas condições precárias, a própria população negra
e os afro-brasileiros utilizaram mecanismos de resistência para
assegurar seu acesso à saúde, pois os africanos que para o Brasil
foram trazidos, trouxeram junto suas culturas e conhecimentos,
conforme cita Petter (2015).

Solimar Oliveira Lima organizou um livro sobre as


comunidades de terreiros na cidade de Teresina, no estado do Piauí
no qual explica como se deu as ocupações em terras teresinenses:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 45


Quando viajantes e tropas seguiam cortando os
sertões no início do século XVIII, indo ou voltando
da Capitania do Maranhão para a do Piauí, o pontal
formado pelo encontro dos rios Parnaíba e Poti
era referência segura para descanso. Dele, homens
cansados pelos longos trajetos avistavam entre um e
outro rio de terras singulares com matas verdejantes
e vistosos canaviais [...] conforto para as tropas que
chegavam após perigosa travessia, quase sempre
com muitos cavalos feridos, despedaçados e à beira
da morte (LIMA, 2014, p. 14).

O autor afirma que índios habitantes das proximidades


ajudavam na recuperação das cavalarias da Capitania do Maranhão
que repousavam no local, por meio de remédios criados a partir de
plantas e recursos naturais locais. O ambiente favorável nos entornos
do rio Poti e nas matas serradas atraiu os escravizados fugidos que
se escondiam em mocambos. O número de escravizados fugidos ali
cresceu tanto que foram tidos como motivo de preocupação para as
capitanias devido ao grande número de quilombolas que começaram
a se unir com negros de diversas partes. Esse encontro do homem
negro com os povos indígenas desencadeou uma interação cultural
incrível na história do Piauí. Entretanto, os militares caçavam os
escravizados fugidos das fazendas das regiões e mesmo com a
resistência dos quilombolas muitos deles acabaram sendo mortos
pelos militares.

Neste trabalho, o objeto de estudo é a linguagem religiosa


relacionada à saúde quilombola. De forma delimitada, se estudou
a linguagem religiosa afro-brasileira utilizada em procedimentos
de medicina caseira na Encantaria de Barba Soeira, no Quilombo
Mimbó, em Amarante, Estado do Piauí. Esta pesquisa buscou
responder à questão-problema: De que forma se relaciona a
linguagem religiosa de matriz africana e o acesso à saúde de forma
caseira no quilombo Mimbó?

46 Direitos Humanos
O presente capítulo tem como objetivo geral analisar a
relação entre a linguagem religiosa afro-brasileira e a saúde
quilombola, no contexto do uso da medicina caseira no Quilombo
Mimbó. Para tanto, especificamente, delimitou-se os seguintes
objetivos: a) compreender a formação e o lugar das religiões de
matriz africana no contexto quilombola piauiense; b) relacionar
o direito à religiosidade e o acesso à saúde a partir da legislação
vigente; c) analisar alguns aspectos do vocabulário relacionado à
saúde através de plantas e ervas. Como bases teóricas, utilizou-se
Fonseca (2009), Costa (2009), Lima (2014), Rabelo e Alves (2009),
dentre outros. Utilizou-se metodologias de pesquisa bibliográfica,
documental e de campo. Para analisar os resultados das entrevistas,
foi utilizada a análise de conteúdo. Assim, o presente estudo busca
trazer informações que reforcem o combate à intolerância religiosa;
contribuir para a construção da identidade quilombola piauiense
e preservar as tradições culturais de matriz africana quilombolas.

METODOLOGIA

O método adotado na pesquisa foi o dialético. Para Cedro e


Nascimento (2017), o método dialético demanda que se analise
historicamente o objeto e seu desenvolvimento interligando o seu
passado, presente e futuro. O método dialético requer uma relação
entre o todo, substituindo a visão segmentada pela abrangente.

O campo empírico onde a pesquisa se desenvolveu foi a


Encantaria de Barba Soeira no quilombo Mimbó, na cidade de
Amarante, no estado do Piauí. A Universidade Federal do Piauí
e o Núcleo de Pesquisa em Africanidades e Afrodencendência
(IFARADÁ) fomentaram a pesquisa entre agosto de 2017 e agosto
de 2019. O pesquisador assinou termo de confidencialidade.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 47


Para a coleta dos dados, utilizou-se três modalidades de
pesquisa: bibliográfica, de campo e documental. De acordo com Gil
(2010), a pesquisa bibliográfica se baseia em materiais publicados.
Foi utilizada bibliografia formada de materiais sobre o tema “Saúde
quilombola piauiense” e “religiões de matriz africana e saúde no
Piauí”. A pesquisa documental, baseou-se em dois documentos
para a busca de informações sobre as leis de combate a intolerância
religiosa e os direitos constitucionais de acesso a saúde. O primeiro
documento observado foi a Lei nº 13.182, de 06 de junho de
2014, que institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate
à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, publicado no Diário
Oficial do Estado da Bahia. O segundo documento analisado foi a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A investigação no campo foi realizada por meio de entrevistas


a um grupo de moradores do quilombo Mimbó de diferentes
faixas etárias e em diferentes datas. Utilizou-se de um gravador
de áudios para o registro. Tendo em vista uma melhor flexibilidade
nas entrevistas, foi realizada a entrevista semiestruturada por
possuir uma estrutura de temas e questões previamente definidas
enquanto garante ao entrevistador adicionar ou retirar questões e
alterações no decorrer da entrevista (MOREIRA; CALEFFE, 2006).
Utilizou-se a Análise de Conteúdo como metodologia para analisar
os conteúdos obtidos nas entrevistas.

Dividiu-se a análise de conteúdos em três etapas, como


descrito por Bardin (2016), sendo a primeira, a pré-análise; a
segunda, a exploração do material; por fim, inferência, interpretação
e tratamento dos resultados. Utilizou-se Gomes (2002) para
colaborar no percurso dos procedimentos metodológicos na análise.

48 Direitos Humanos
DIREITO À RELIGIOSIDADE

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB)


declara, em seu princípio da igualdade, que todos são iguais e não
devem ser discriminados por qualquer motivo que seja. O direito à
religiosidade, seja ela de qualquer matriz, já é garantido no célebre
artigo 5º. Em seus incisos VI, VII e VIII, se garante a inviolabilidade
da liberdade de consciência e crença, o livre exercício dos cultos
religiosos, a não-privação de direitos por motivos de crença
religiosa e até mesmo assegura a prestação e assistência religiosa em
entidades civis e militares de internação coletiva, como hospitais,
manicômios, casas de repouso etc. (BRASIL, 2020).

A Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, deu nova redação à


Lei nº 7.716/1989. A lei federal define que serão punidos os crimes
resultantes de qualquer discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, procedência nacional ou religião (BRASIL, 1997). As formas
de discriminação punidas são inúmeras e não cabe descrever
todas aqui, mas já é válido o fato de relembrar que a legislação
infraconstitucional brasileira protege a diversidade e a liberdade
religiosa.

O Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei nº


12.288, é um dos instrumentos federais de preservação dos direitos
da população negra brasileira. Entre os direitos protegidos está a
cultura, em todas as suas manifestações. Brasil (2010) assegura que
os quilombolas têm direito à preservação de todos os seus costumes,
tradições, usos e manifestações religiosas. Inclui-se nesta definição,
a manifestação de religiões de matriz africana como candomblé e
umbanda.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 49


IMAGEM 1

Fonte: Victor Melo Guimarães / @victor.melofotografia

A Constituição Estadual do Piauí define, em seu artigo 3º,


como objetivo fundamental do Estado, a promoção do bem de
todos, sem preconceitos de qualquer forma, inclusive etnia, cor e
convicção religiosa (PIAUÍ, 2019). A Emenda Constitucional nº 39,
que incluiu as palavras etnia e convicção religiosa de forma explícita
no texto, só veio a ser publicada e entrou em vigor no dia 06 de
agosto de 2013.

Com o objetivo de combater a intolerância e a desigualdade


racial foi instituída, na Bahia, a Lei nº 13.182 de 06 de junho de
2014. Esta lei institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate
à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia. Ela tem a função de
garantir à população negra os seus direitos individuais, coletivos
e difusos. Assim como o combate ao racismo religioso, seja

50 Direitos Humanos
“por distinção, exclusão, restrição ou preferência, e até mesmo
manifestações depreciativas”. Esta lei é um exemplo notável de
legislação a ser seguido por outras Unidades Federativas.

O Estatuto garante às vítimas de intolerância religiosa, seja


através de ação ou omissão de pessoa física ou de pessoa jurídica,
o amparo por meio do Sistema Estadual de Promoção da Igualdade
Racial (SISEPIR), da Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância
Religiosa, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Cabe ao
Estado, às instituições do Sistema de Justiça e à sociedade civil
articular os instrumentos da Rede de Combate ao Racismo e à
Intolerância Religiosa (BAHIA, 2014).

No que se refere aos locais de cultos e liturgias, o Estatuto da


Igualdade Racial e de Combate à Intolerância, garante a segurança
e proteção aos locais de cultos, garantindo o seu exercício. Assegura
também o direito à liberdade de consciência e de crença.

RELAÇÃO ENTRE RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E SAÚDE

Costa (2009) traz no livro Leituras Afro-brasileiras: territórios,


religiosidades e saúdes uma discussão acerca da relação entre
religiões afro-brasileiras e saúde. Essa associação é na maioria das
vezes rejeitada, pois no Brasil as religiões de matriz africana não
são consideradas para fins terapêuticos e de cura, negando deste
modo a sua importância.

Geralmente essa compreensão sobre a saúde dentro da


religião é ocasionada pela falta de compreensão e conhecimento
sobre a integralidade das religiões de matriz africana nos locais de
culto, onde cultura, religiosidade e política são consideradas parte
da totalidade do sujeito e a interação entre o homem e o seu meio,
equilibrando a sua interação entre a experiência com o sagrado e

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 51


a relação sócio cultural. Manter a saúde mental é importante nos
terreiros de candomblé, segundo o autor. Santos (1986) declara
que, nas religiões de matriz africana, a doença pode ser encarada
como um desequilíbrio na vida espiritual (imaterial e invisível) que
se demonstra algumas vezes no corpo (material e visível) e que
devem ser tratadas nos terreiros. Os terreiros são os lugares de
apoio e acolhimento dos enfermos e dos praticantes da fé. Sutil é a
separação entre doença espiritual e doença do físico. O tratamento
de uma doença espiritual deve ser espiritual, com o jogo de búzios,
o aconselhamento, o uso de raízes e os banhos. O tratamento de
uma doença apenas física, fica a cargo da medicina “oficial”.

Observa-se a seguir a descrição da concepção dos religiosos


sobre a interação entre o homem e os orixás descrita por Costa:

[...] a cabeça do ser humano seria o pilar de


sustentação dele com o mundo, um mundo integral,
em que homens e deuses(a), dialogam e convivem em
um mesmo espaço, um espaço atemporal quântico.
Para que esta dialogia possa acontecer, a cabeça
tem que estar harmonizada com o ambiente que o
cerca, e o sujeito tem de absorver esta significação
e sentido. Já que, para o candomblé, as pessoas
seriam altares vivos dos orixás neste mundo terreno
(COSTA, 2009, p. 337).

Os orixás têm um grande papel nessa interação para realizar


ações de cura e intervenções no aspecto relacionado à saúde. Esses
orixás personificam fenômeno da natureza e têm uma ligação
muito forte com ela. Cacciatore adiciona informações sobre essas
entidades:

Orixás: Divindades intermediárias iorubanas,


excetuando Olorún, o Deus supremo. Na África

52 Direitos Humanos
eram cerca de 600. Para o Brasil vieram talvez 50 que
estão reduzidos a 16 no candomblé (alguns tendo
vários nomes ou “qualidades”)[...] F. – ior.: “òrìsà” –
divindade iorubana (exceto Olórum) (CACCIATORE,
1988, p. 197-198).

Costa (2009) considera também a importância e o grande


valor das Comunidades de Terreiro, ao preservar as tradições
religiosas, derivadas das religiões de matriz africana. Mantendo
aspectos culturais que até hoje são observados, mesmo esses cultos
sofrendo preconceito e discriminação, tendo até mesmo que adotar
o sincretismo para conseguir sobreviver.
O direito à saúde é reconhecido pela Constituição Federal
(CF), promulgada em 1988. A Carta da República, em seus artigos
6º e 196, proclama que a saúde é direito social de todos, sendo do
Estado o dever de promover tais cuidados (BRASIL, 2020).

A Organização Mundial da Saúde (OMS), na Estratégia


da OMS sobre Medicina Tradicional “2002-2005”, se posiciona
favorável ao uso das chamadas Medicina Tradicional, Complementar
ou Alternativa, desde que comprovada a eficácia (WHO, 2002). Em
concordância com essas diretrizes, o Ministério da Saúde brasileiro,
publicou a Portaria nº 971, de 03 de maio de 2006, onde aprova
a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
(PNPIC) no Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2006). Dessa forma, o
Estado brasileiro garante a regulamentação das práticas e seu uso na
atenção primária. Entretanto, mesmo com essa regulamentação, as
práticas de medicina caseira ainda têm que se submeter ao domínio
metodológico ocidental. Ressalta-se ainda que não há amparo legal
para os tratamentos espirituais.

Na busca por mais direitos, foi criada a Rede Nacional


de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, que é uma articulação da
sociedade civil da qual participam adeptos do movimento negro,

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 53


de religiões afrodescendentes e outros que visam a promoção de
saúde. A rede se consolidou em 2004, em Recife, com finalidade de
valorizar o saber dos terreiros incluindo a relação com a educação.
Ela conta com mais de 26 núcleos no Brasil e também integra
espaços de políticas públicas.

O QUILOMBO MIMBÓ

O Piauí possui atualmente 81 comunidades remanescentes


de quilombo. Desse total, 65 comunidades solicitaram ao Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a regularização
de terras, a fim de preservar a história e o espaço ali criado e cultivado
ao longo dos anos. Segundo o INCRA, o processo de solicitação de
regularização de território quilombola do quilombo Mimbó foi
aberto em 2006, sob o número de processo: 54380.000894/2006-
33 (BRASIL, 2019). Petter (2015) apresenta em seu livro o conceito
de quilombo definido por Arruti (2006):

[...] as comunidades quilombolas constituem


grupos mobilizados em torno de um objetivo, em
geral a conquista da terra, e, definidos com base
em uma designação (etnônimo) que expressa uma
identidade coletiva reivindicada com base em
fatores pretensamente primordiais, tais como uma
origem ou ancestrais comum, hábitos, rituais ou
religiosidade compartilhados, vínculo territorial
centenário, parentesco social generalizado,
homogeneidade racial, entre outros. Nenhuma
destas características, porém, está presente em
todas as situações, assim como não há nenhum traço
substantivo capaz de traduzir uma unidade entre
experiências e configurações sociais e históricas tão
distintas (ARRUTI, 2006, p. 39 apud PETTER, 2015,
p. 233).

54 Direitos Humanos
De acordo com Tavares (2017) e os relatos dos próprios
moradores, durante a entrevista, o quilombo Mimbó é a terra mãe
da paixão de dois casais, sendo eles respectivamente: Augustinho
Rabelo Paixão e Rosária da Conceição; Martins José e Raimunda
Maria da Conceição. Apaixonados, os casais uniram-se em fuga
da escravização na região de Oeiras, sendo ela a primeira capital
do Piauí no período da escravidão. Desbravaram-se entre a mata
fugindo dos caçadores de escravos fugidos e encontrando abrigo no
vale do rio Canindé, às margens de um riacho chamado de Mimbó
- de onde resultou-se o nome do quilombo - em Amarante, Piauí,
localizado a 170 km de Teresina, lugar que também era abrigo para
outros escravos que fugiam.

IMAGEM 2

Fonte: Victor Melo Guimarães / @victor.melofotografia

Hoje, o quilombo Mimbó, localizado na região conhecida como


Médio Parnaíba Piauiense, situa-se na zona rural do município de

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 55


Amarante. A infraestrutura do local se resume a casas grandes,
sem muitos móveis, um posto de saúde, a igreja de Santa Mariana,
uma igreja evangélica, um terreiro de umbanda, um prédio para
funcionar uma rádio e um transmissor de internet e uma escola.
A escola do Mimbó funciona apenas com turmas de 2° ano ao 5°
ano do ensino fundamental. A partir do 6° ano, os alunos passam
a frequentar a escola em Amarante percorrendo 17 km diários em
veículo escolar.

IMAGEM 3

Fonte: Victor Melo Guimarães / @victor.melofotografia

A religiosidade e a saúde sempre estiveram intimamente


relacionadas na história do Mimbó. Segundo Tavares (2017), a
religiosidade une práticas de um catolicismo popular com a devoção
à Nossa Senhora da Saúde. No início do século XX (1908), uma das
matriarcas, chamada Antônia Maria da Conceição, prosseguiu em

56 Direitos Humanos
romaria, em busca de bênçãos e curas para o Mimbó, até a cidade
de Juazeiro do Norte no estado do Ceará. Onde teve contato direto
com o Padre Cícero Romão Batista, que entregou-lhe uma imagem
de Nossa Senhora da Saúde. Recomendou ainda que fossem
feitas devoções à santa no período de 7 a 15 de agosto de cada
ano. Atualmente, o culto à santa é feito pelas matriarcas negras
do quilombo. Esse culto pode ser compreendido como um modo
próprio de demonstração da crença e das tradições de fé no Mimbó.

Ainda de acordo com Tavares (2017), devido à ausência de


padres no local, os mimboenses criaram seus próprios especialistas,
como: as rezadeiras nos velórios, as tiradoras de terço, as cantadoras
de rezas e as responsáveis por organizar e conduzir os cultos à
santa. Essa ausência ainda despertou a criação de seus próprios
intermediários entre Deus e o mundo.

IMAGEM 4

Fonte: Victor Melo Guimarães / @victor.melofotografia

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 57


Observa-se também o protagonismo feminino no Mimbó,
como observado pela autora:

São as mulheres que cuidam de seus filhos, de sua


família; nas doenças, elas são as primeiras a serem
acionadas para cuidar dos enfermos, pois o cuidado
com a doença é uma prorrogativa feminina; as
mulheres, nesses casos, podem ser vistas como “as
donas do doente” (TAVARES, 2017, p. 458).

Antes de analisar os métodos de cura utilizados no quilombo


Mimbó é importante ressaltar um grande aspecto da cultura africana:
a oralidade. Diversos autores, incluindo Petter (2015), citam que as
sociedades africanas utilizaram-se preferencialmente da oralidade
como meio de transmissão e aquisição de conhecimentos, podendo
então ser caracterizados como povos de “tradição oral”. Ainda
segundo o autor, essa prática possui uma relação especial com a
função de comunicação e sua atividade interpretativa. Entretanto,
é importante destacar que a África possui uma história de registros
escritos, possuindo também literatura e cultura escrita.

Uma entrevista em particular foi muito esclarecedora, sendo


ela feita ao responsável por atender, diagnosticar e produzir
remédios caseiros no Mimbó. Tendo em vista a assinatura do termo
de confidencialidade, referir-se-á ao entrevistado pelo nome fictício
de Francisco Silva.

O Sr. Francisco adquiriu experiência na área da saúde com sua


mãe, nascida em 04 de novembro de 1930. A tradição de família na
medicina natural começou com o Tio materno, chamado de Pajé.
Responsável por ensinar a irmã, que posteriormente veio a ensinar
o filho. Ela já não se lembra mais das receitas, entretanto seu
conhecimento permanece vivo através de seu filho. Atualmente, ele
é o único dos irmãos que ainda prepara os remédios e o último da

58 Direitos Humanos
família que ainda continua fazendo os preparados com as receitas.
As instruções são passadas de forma oral, sem nenhum registro
escrito das receitas, ou dos diagnósticos.

Aí, daí pra cá, aí essa geração foi passando um para o


outro, a minha mãe foi, e meu tio foi envelhecendo,
saiu. Minha mãe envelheceu, saiu. Minha irmã, não
teve um, que quis continuar também, envelheceu
também saiu da medicina. Então hoje em dia só se
encontra eu na medicina caseira (Francisco Silva)

Até o momento da entrevista não havia aprendizes ou


voluntários para o aprendizado das tradições. Sendo constatado
apenas um curandeiro em todo o quilombo. Embora seja o único,
ele se preocupa com o possível fim de sua tradição.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

De posse do material coletado por meio de gravação de áudios


e documentados por meio do questionário previamente elaborado,
buscou-se separar os vocábulos de acordo com seu campo semântico.
Segundo Petter (2015), através da análise e pesquisa acadêmica, da
língua e da identidade, é possível remontar a uma ancestralidade. Os
vocábulos foram registrados conforme citados pelos entrevistados,
mesmo que não estejam expressos de acordo com a norma culta
padrão da Língua Portuguesa.
Organizam-se os campos semânticos relativos à saúde dentro
da Encantaria de Barba Soeira no quilombo Mimbó, da seguinte
forma:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 59


Quadro 1 – Vocábulos relacionados à saúde

CAMPOS SEMÂNTICOS VOCÁBULOS


1.1 Calasar; 1.2 Câncer de Próstata;
1.3 Cancerose; 1.4 Clitóris;
1.5 Diabete; 1.6 Doenças no ânus;
1. DOENÇAS 1.7 Doenças venéreas; 1.8 Febre;
1.9 Gastrite; 1.10 Gonorreia;
1.11 Inflamações; 1.12 Sífilis;
1.13 Útero e colo de útero.
2.1 Aroeira; 2.2 Barbatimão;
2.3 Babosa; 2.4 Erva cidreira;
2. ERVAS E PLANTAS
2.5 Folha santa; 2.6 Játobá;
2.7 Unha de gato.
3. REZAS 3.1 Benzer; 3.2 Novena.
4.1 Banhos; 4.2 Chá; Multi mistura;
4. PREPARADOS 4.3 Xarope.

5.1 Lua; 5.2 Lua crescente;


5. ASTROLOGIA
5.3 Lua minguante; 5.4 Sol.
6. ENTIDADES
6.1 Caboclo Cana-Verde
(ENCANTADOS)
7.1 Maracá; 7.2 Fita Verde;
7. INSTRUMENTOS
7.3 Espada1
Fonte: Próprio autor.

Não se faz aqui explanação linguística sobre cada um dos


vocábulos apresentados no Quadro 1. Eles figuram aqui apenas
como integrantes dos procedimentos associados à saúde e nos
1
*Faixa de pano/tecido com a ponto do guia do pai/mãe de santo.

60 Direitos Humanos
possibilitam uma maior compreensão desses procedimentos e do
contexto sociocultural existente no local.

No que concerne aos tratamentos médicos na Encantaria de


Barba Soeira, Quilombo Mimbó (PI), além do acesso ao Sistema
Único de Saúde – SUS, são produzidos métodos de cura através da
utilização de ervas no preparo de medicamentos caseiros. Contudo,
é importante frisar que a utilização da medicina caseira não isenta
ou priva o usuário do sistema público de saúde, assim como ao
acesso a medicamentos de origem farmacêutica.

O entrevistado, Francisco Silva, fez um curso preparatório de


três dias com os frades franciscanos de Floriano no ano de 1993,
recebendo um certificado de aptidão na manipulação de remédios.
Os conhecimentos referentes às receitas giram em torno do
preparo da “multi-mistura” (o entrevistado faz questão de frisar
que não se trata de um tipo de mel, nem as conhecidas garrafadas).
Seria então uma espécie de “preparado” com folhas, ervas e cascas
naturais.

Ele frisa que é importante estar em sintonia com a natureza


e acreditar que ela possui ricos materiais que podem fornecer a
cura. Afirma ainda: “O meu médico é Deus, e a minha farmácia é a
natureza, ela cura quem acreditar nela, se não acreditar não cura”
(FRANCISCO SILVA).

Outro ponto importante ressaltado na entrevista é a


relevância da astrologia durante o preparo dos medicamentos. Nos
casos de pacientes que buscam ganho de peso é necessário observar
as fases da lua, sendo mais apropriado o período de lua crescente.
Em contrapartida, se o paciente quiser acabar com algum tipo de
inflamação é necessário trabalhar em períodos de lua minguante.

Acredita-se ainda na influência do sol no processo de cura.


Caso o paciente possua um problema de saúde, como por exemplo,

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 61


inflamações, não se deve prepará-lo nem medicá-lo durante o nascer
do sol. Pois acredita-se que o sol estaria multiplicando a doença. É
indicado, portanto, qualquer procedimento ao pôr do sol. Os astros
possuem grande influência na saúde e na vida de modo geral dentro
do quilombo Mimbó. “Esses são os segredos medicinais caseiros”
como afirma Francisco.

O entrevistado menciona que trabalha em parceria com


o posto de saúde local, embora faça ressalvas quanto ao uso de
medicamentos farmacêuticos recomendados pelo posto. Segundo
ele:

Cê fala, remédio da farmácia é bom, é bom, porque


ele controla. Ele é uma droga. Aquilo controla, mas a
pessoa tem que usar toda vida. No dia que a pessoa
para de usar, no outro dia se sente mal. As vezes
os remédios caríssimos, cê não pode passar um dia
sem tomar, se passar, passa mal. Então o remédio
não tá servindo, tá só controlando. E os remédio do
mato ele entra mais é matando o problema, não é
controlando. Os do mato entra mesmo é matando o
problema, o remédio da medicina caseira. Pela raiz.
É um remédio simples da natureza sem nenhum
produto químico (FRANCISCO SILVA).

Através dos dados coletados, foi possível analisar alguns


métodos de cura utilizados pela comunidade em formas de chá,
banhos de ervas e xaropes. Francisco afirma que ele mesmo planta
parte dos recursos naturais e outros, encontra diretamente na
natureza.

Eu faço remédio pra... pra esquentamento. Se chama


gonorreia. Pra doenças venéreas. Aquela sífilis. É pra
qualquer tipo de doenças venéreas eu já fiz e já tratei.
Pra inflamações do útero ou do colo do útero, ou que

62 Direitos Humanos
seja do ovário, ou do clitóris ou ânus. Tem pra cada
um, tem que ser ervas diferentes e saber como tirar,
e como preparar e saber repassar as recomendações
(FRANCISCO SILVA).

É importante frisar que, por serem conhecimentos


hereditários, são transmitidos apenas aos familiares. Contudo, o
entrevistado se sentiu à vontade para compartilhar alguns dos seus
conhecimentos sobre a utilização de ervas e plantas. Esses dados
são apresentados a seguir:

• A.ro.ei.ra [Schinus terebinthifolius] sf.

Árvore anacardiácea de madeira dura e útil. Cuja casca


possui propriedades medicinais. A Folha de Aroeira é utilizada na
comunidade do quilombo para tratar doenças relacionadas ao colo
de útero. Para isso, é necessário ser preparada em forma de chá.
Uma vez estando pronto o chá, em seguida deve ser abafado com
uma tampa.

• Bar.ba.ti.mão [Stryphnodendron barbatimam Mart.] s.m.

É uma arvore leguminosa de casca rica em tanino. Dentro do


Quilombo, utiliza-se o barbatimão para o tratamento de “cancerose”.
A utilização é feita através de banhos, em que se acrescenta o
barbatimão. Podem ser utilizadas tanto as folhas quanto a casca.
Elas também podem ser preparadas juntamente com a folha santa.
Não se deve fazer uso oral, pois há risco do surgimento de diversas
complicações.

• Ba.bo.sa [Aloe vera] sf.

A babosa é uma planta medicinal de flores em forma de tubo


e de folhas compridas e dentadas com muito suco: aloés. Sinônimo
de Aloé (Planta da África, cultivada também na Ásia e na América,
de cujas folhas carnudas se extrai uma resina amarga, usada como

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 63


purgante e corante). É uma planta liliácea medicinal. A Babosa
é utilizada dentro do quilombo Mimbó para uso medicinal, na
produção de xaropes; como também para uso cosmético, sendo
utilizada como condicionador capilar.

• Er.va-ci.drei.ra [Melissa officinalis] sf.

Conhecida também como “cidreira”, é uma planta lamiácea,


medicinal, de folhas ovais e flores alvas ou róseas. Arbusto frutífero
rutáceo, cítrico, de madeira útil. Na comunidade analisada, a Erva-
cidreira é utilizada através do chá das folhas para tratar dores de
cabeça ou como calmante e cólicas.

• Ja.to.bá [Hymenaea courbaril] sm.

Árvore cesalpiniácea originária da Amazônia do grupo das


leguminosas que possui pequenas flores brancas e frutos negros
comestíveis de casca com resina: uma vagem, jataí. No quilombo,
utiliza-se o ingrediente para o tratamento da diabetes. Não
foi informada a forma de preparo nem os demais ingredientes
necessários para a elaboração do medicamento.

• U.nha-de-ga.to [Uncaria tomentosa] sf.

Nome comum a plantas fabáceas e mimosáceas espinhosas.


Erva das leguminosas. É um nome comum dado a plantas com
espinhos em forma de unha de gato. A unha-de-gato também é
utilizada no quilombo para o tratamento da diabetes assim como o
jatobá. Durante a entrevista não foi informada a forma de preparo
nem os demais ingredientes utilizados.

64 Direitos Humanos
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência vivenciada na Encantaria de Barba Soeira, no


Quilombo Mimbó, em Amarante, Estado do Piauí, nos faz conhecer
mais e refletir sobre diferentes culturas e o quanto elas são valiosas
e preciosas na construção da sociedade brasileira. Sociedade essa
acrescida de diferentes influências como, por exemplo, no próprio
quilombo, onde se encontra extratos das culturas de origem
africana e indígena em diferentes contextos. Uma mistura rima e
harmoniosa que influenciou a forma de olhar para a natureza local.
E a partir desse olhar e dos conhecimentos compartilhados, criaram
medicamentos para garantir a sua sobrevivência. Pois sobreviver já
era uma forma de resistência contra a opressão e abandono.

Dentro do quilombo Mimbó, há uma harmônica relação


entre as crenças religiosas e a saúde quilombola no uso da medicina
caseira. Essa relação não é exclusiva de religiões de matriz africana,
mas coexistem com tradições do catolicismo, com a devoção à
Nossa Senhora da Saúde, em que a fé ganha espaço e lugar frente as
adversidades de saúde.

Não há dúvidas sobre o longo caminho a ser traçado no que


tange os direitos à religiosidade, bem como o acesso à saúde pelo
povo quilombola. Mas algumas conquistas já podem ser aproveitadas
através de legislações vigentes. Como a lei do Estatuto da Igualdade
Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia; e
o amparo por meio do SISEPIR, da Rede de Combate ao Racismo
e à Intolerância Religiosa, do Ministério Público e da Defensoria
Pública. Abrindo Espaço para a relação entre religiosidade e saúde
onde essa compreensão é considerada parte da totalidade do sujeito
e a interação entre o homem e o seu meio, gerando um equilíbrio
entre a sua experiência com o sagrado na manutenção da saúde
espiritual e corporal.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 65


Observa-se no quilombo Mimbó o protagonismo feminino
na saúde dos moradores, pois o cuidado com as doenças é uma
iniciativa feminina no quilombo, onde as mulheres tomam a frente
na luta em favor da saúde da família.

Constatou-se na pesquisa um dos aspectos da cultura africana


citado por Petter (2015), de que as sociedades africanas utilizaram-
se preferencialmente da oralidade como meio de transmissão e
aquisição de conhecimentos, podendo então ser caracterizados
como povos de “tradição oral”. Devido à essa tradição, também
encontrada no Mimbó, não foi possível obter acesso às receitas
medicinais produzidas no quilombo. Há um grande risco de perda
de informações devido à falta de perpetuadores dessa tradição,
pois segundo o curandeiro local, só seria permitido repassar os
seus conhecimentos para um membro de sua família que queira
prosseguir com os costumes.

A respeito dos aspectos do vocabulário relacionado à saúde,


foram catalogadas algumas ervas e plantas durante a pesquisa.
Elas são utilizadas no preparo de medicamentos caseiros. Os
conhecimentos referentes às receitas giram em torno do preparo da
“multi-mistura”, chás e banhos. Acredita-se que nestes métodos há
influências advindas do contato com os índios locais que habitavam
as regiões próximas. Há também uma sintonia e crença na cura por
meio da astrologia durante o preparo dos medicamentos e rituais
de cura. Os astros possuem grande influência na saúde e na vida de
modo geral dentro do quilombo.

Sendo assim, se torna de extrema importância os registros


presentes neste capítulo. Pois grande parte dos conhecimentos
compartilhados durante a pesquisa não possuem registros escritos.
Desta forma, essa pesquisa se torna uma forma de preservar os
conhecimentos adquiridos durante tantos anos de história.

66 Direitos Humanos
REFERÊNCIAS

BAHIA. Lei nº 13.182, de 06 de junho de 2014. Institui o Estatuto


da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado
da Bahia e dá outras providências. Diário Oficial [do] Estado da
Bahia, Salvador, BA.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero


Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2016.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 jun. 2020.

BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.


Relação de processos de regularização abertos no Incra.
Atualizado em 16/12/2019. Disponível em: http://www.incra.gov.
br/sites/default/files/incra-processosabertos-quilombolas-v2.pdf.
Acesso em 31 maio 2020.

BRASIL. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º


e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes
resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo
ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Brasília, DF: Presidência da República, 1997. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm. Acesso em: 16 jun.
2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 67


BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto
da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de
1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985,
e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília, DF: Presidência
da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em: 17
jun. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria


nº 971, de 03 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único
de Saúde. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível
em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/
prt0971_03_05_2006.html. Acesso em 16 jun. 2020.

CACCIATORE, O. G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio


de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

CEDRO, W. L.; NASCIMENTO, C. P. Dos métodos e das metodologias


em pesquisas educacionais na teoria histórico-cultural. In: MOURA,
M. O. Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural.
São Paulo: Edições Loyola, 2017.

COSTA, Adailton Moreira. Candomblé e Saúde. In: MANDARINO,


Ana Cristina de Souza; GOMBERG, Estélio (Orgs). Leituras Afro-
Brasileiras: territórios, religiosidades e saúdes. São Cristovão:
Editora UFS; EDUFBA, 2009.

68 Direitos Humanos
FONSECA, Dagoberto José. O corpo do afro-brasileiro, a saúde
e a violência na maca e em coma: uma abordagem necessária. In:
MANDARINO, Ana Cristina de Souza; GOMBERG, Estélio (Orgs).
Leituras Afro-Brasileiras: territórios, religiosidades e saúdes.
São Cristovão: Editora UFS; EDUFBA, 2009.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed.


São Paulo: Atlas, 2010.

GOMES, Romeu. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In:


MINAYO, Maria Cecília de Souza (Organizadora). Pesquisa social:
teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 67-
80.

LIMA, Solimar Oliveira. Fiéis da ancestralidade: comunidades


de terreiros de Teresina / organização, Solimar Oliveira Lima. –
Teresina: EDUFPI, 2014.

MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da


pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: DP&A,
2006.

PETTER, Margarida (Org.). Introdução à Linguística Africana. –


São Paulo: Contexto, 2015.

PIAUÍ. [Constituição (1989)]. Constituição do Estado do Piauí.


Teresina: Assembleia Legislativa do Estado do Piauí, 2019.
Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/70447.
Acesso em: 17 jun. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 69


SANTOS, J. E. Os Nagô e a morte: Padê, Asese e o culto Egun na
Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.

TAVARES, Dailme Maria da Silva. NOSSA SENHORA DA SAÚDE:


a devoção mariana do quilombo Mimbó. In: GOMES, Ana
Beatriz Sousa; LIMA, Solimar Oliveira (Orgs.). Africanidades e
afrodescendência na produção de saberes da universidade
pública: a experiência da UFPI. Teresina: EDUFPI, 2017.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Traditional Medicine


Strategy 2002-2005. Geneva: WHO, 2002.

70 Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS E POVOS TRADICIONAIS: UMA
ANÁLISE DO PANORAMA SOCIAL DOS REMANESCENTES
QUILOMBOLAS BRASILEIROS SOB A LUZ DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Américo Alves de Freitas Neto

Ana Clarissa Santos Araújo

Eduardo José Lima Rodrigues

INTRODUÇÃO

Durante praticamente três séculos, os negros africanos foram


duramente escravizados no Brasil, onde não possuíam direitos como
a liberdade, igualdade e propriedade, impedindo-os da garantia
de uma existência digna. No decorrer do período mercantilista, o
trabalhador negro foi utilizado como um objeto, possuindo valores
financeiros para a compra e venda nas fazendas açucareiras e,
mais tarde, nos latifúndios cafeeiros, ou seja, não era visto como
um ser humanizado. Ainda se viam diante de um processo de
“cristianização”, em que as ordens religiosas europeias exerciam o
papel de aculturação dos africanos com o fito de os tornarem “bons
cristãos”.

Entretanto, não tardou para que as primeiras reações contra


essa estrutura social desumana fossem iniciadas, provocando a
formação de comunidades de escravos fugitivos, chamadas de
quilombolas. É preciso entender que esses espaços foram essenciais
para a prática da manifestação cultural africana, a qual foi essencial
para a formação do tecido social brasileiro, assim como também, os
primeiros anseios de liberdade desses povos escravizados.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 71


Com a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888,
a sociedade brasileira sofreu uma modificação aparente na questão
racial, já que os negros escravizados estavam soltos do domínio dos
senhores fazendeiros, contudo, não tiveram garantias de igualdade
efetiva, já que o Estado brasileiro não instituiu políticas públicas
para a instituição de vidas dignas, ou seja, não foram elaboradas
propostas de compensação, cabendo aos ex-escravizados a
submissão ao subemprego e às péssimas condições de moradia nas
cidades brasileiras, formando as famosas categoria de habitação
chamadas cortiços e favelas.

Quando trazemos a questão da abolição da escravatura para


os remanescentes quilombolas, a situação não é diferente, esses
ambientes continuaram carecendo de integração sociocultural
e políticas públicas básicas para a promoção dos direitos
fundamentais desses povos. Logo, entende-se que os quilombos
se “constituíram em espaços de resistência, antes a escravidão;
contemporaneamente, constituem-se como espaços de resistência
cultural” (SILVA; SILVA, 2014, p.02).

Diante do exposto, torna-se de fundamental importância


o estudo da situação dos povos quilombolas no Brasil, de forma
a identificar os direitos humanos que estão sendo violados
atualmente, além de apontar caminhos para a mudança desse
panorama social brasileiro, marcado por um arcabouço racista e
desigual. Nota-se como o Direito pode atuar como instrumento
propulsor da vida digna aos remanescentes quilombolas, de forma
a respeitar as diferenças étnicas, culturais e sociais.

No primeiro capítulo, analisa-se, por meio de estudos de


renomados historiadores e geógrafos, a contextualização histórica
de formação das comunidades quilombolas no Brasil, abarcando
desde os motivos pelos quais os negros africanos foram trazidos
para o Brasil até os motivos essenciais para a formação desse
ambiente de resistência.

72 Direitos Humanos
No segundo capítulo, expõe-se o panorama geral da
condição de vida nas comunidades remanescentes dos quilombos
atualmente, por meio de dados de instituições competentes na
área social, como o extinto Ministério de Desenvolvimento Social e
relatos de Maria Rosalina dos Santos, quilombola que representa a
Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ) em
grandes eventos sobre direitos dos povos quilombolas, discutindo
os principais problemas agravantes nas comunidades quilombolas
atualmente.

No terceiro capítulo, serão abordados os dispositivos


normativos que garantem direitos a esses povos tradicionais,
como a Constituição Federal de 1988, a primeira constituição
brasileira com viés pluralístico que reconhece o Brasil como um país
multicultural e a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que valoriza as diversas manifestações de povos
tradicionais de forma a integrá-los no âmbito social e político.

Com a análise desses dispositivos somados com os estudos


bibliográficos de renomados juristas como Flávia Piovesan e
André de Carvalho Ramos, entende-se a importância dos direitos
quilombolas no campo dos direitos humanos, uma vez que o
intuito central desses dispositivos é a garantia de uma vida digna às
comunidades quilombolas, valorizando as manifestações culturais
e o direito de condições básicas de moradia, educação, saúde e
saneamento básico nesses locais.

O QUE SÃO QUILOMBOS: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA


(PROCESSO DE FORMAÇÃO)

Para entender o contexto de formação das comunidades


quilombolas, torna-se necessário, primeiramente, abordar os

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 73


motivos que levaram os negros a atravessarem o Oceano Atlântico
para se estabelecerem no Brasil. Colonizador do Brasil por mais de
três séculos, Portugal, no século XVI, estava no auge do processo
mercantilista, em que consistia basicamente na obtenção do lucro
por meio da produção e venda de especiarias (objetos essenciais
para a conservação de alimentos naquela época) e o favorecimento
da colônia, exclusivamente, para a metrópole, ou seja, atuando em
comércio restrito com a nação colonizadora. Entretanto, foi com a
produção de cana de açúcar em terras brasileiras que a metrópole
portuguesa conseguiu lograr enormes lucros na sua economia.

É cabível pontuar que, inicialmente, foi utilizada a


mão de obra escrava indígena para a exploração da cana-
de-açúcar no Brasil, aderindo, então, ao modelo de colonização
de exploração. No entanto, cabe destacar que os povos indígenas
“resistiram às várias formas de sujeição, pela guerra, pela fuga, pela
recusa ao trabalho compulsório.” (FAUSTO, 2018, p. 23). Soma-se
a esse conjunto de causas o esforço contínuo das ordens religiosas
de tentar proteger os índios da escravidão imposta pelos colonos,
com o fito de transformá-los, por meio da catequização em “bons
cristãos”.

Durante muito tempo, diferentes argumentos foram


difundidos como possíveis justificativas para a priorização do
tráfico negreiro como, por exemplo, as ideias de que os indígenas
não estavam habituados ao trabalho braçal e que os negros eram
naturalmente adaptados a este, entretanto, como assinala Ricardo
Felipe Di Carlo2: “Esses argumentos são, por um lado, racistas. Isso
porque acreditam que há raças mais adaptadas a determinadas
funções e, ao mesmo tempo, desconsideram o uso do trabalho
2
Formado na Universidade de São Paulo (USP), em 2007, em História. Logo a seguir, foi
para o mestrado. Defendeu sua dissertação em 2011, no programa de História Econômica
na USP. O mestrado foi a continuidade da pesquisa feita como iniciação científica:
“Exportar e abastecer: população e comércio em Santos, 1775-1836”.

74 Direitos Humanos
escravo indígena desenvolvido em São Paulo” (DI CARLO, 2014, p.
114).

Faz-se necessário apontar que estudos recentes entendem o


lucro como principal motivador para o uso majoritário de escravos
negros no Brasil, iniciando assim o processo de tráfico negreiro de
escravos africanos para o Brasil, que, de acordo com Rafael Sanzio
dos Anjos3,“representa a maior estatística de importação forçada de
africanos ao longo dos séculos XVI a XIX ultrapassando a casa dos
quatro milhões de seres transportados” (ANJOS, 2006, p. 343).

Assim, entende-se o tamanho do processo de escravidão


negra no país, o qual foi modificante da estrutura social brasileira, a
qual deturpava os direitos básicos que deviam ser garantidos a esses
povos africanos. Entretanto, vale salientar que diversos argumentos
eram utilizados para justificar a escravidão africana como o das
ordens religiosas (beneditinos): “dizia-se que se tratava de uma
instituição já existente na África, e assim apenas se transformavam
em cativos para o mundo cristão onde seriam civilizados e salvos
pelo reconhecimento da verdadeira religião” (FAUSTO, 2018, p.
26).

Diante desse cenário de opressão aos africanos, surgiram


várias formas de resistência a esse sistema desumano como forma
de reação aos castigos, trabalhos forçados e a coisificação do
escravo. Assim, torna-se necessário mencionar o que os ilustres
historiadores Reis e Gomes preconizam, in verbis:

3
É graduado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (1982), com Especialização
na Universidade Estadual Paulista (Rio Claro 1985), Mestrado em Planejamento Urbano
pela FAU da UnB (1990), Doutorado em Informações Espaciais no Departamento de
Engenharia de Transportes pela USP (1995) e Pós-Doutoramento em Cartografia Étnica
no Museu Real da África Central em Tervuren - Bélgica (2007-2008). Atualmente é
Professor Titular da Universidade de Brasília e Diretor do Centro de Cartografia Aplicada
e Informação Geográfica (CIGA), onde é Coordenador dos Projetos Geografia.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 75


Onde houve escravidão houve resistência. E de vários
tipos, Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo
negociava espaços de autonomia com os senhores ou
fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas,
incendiava plantação, agredia senhores e feitores,
rebelava-se individual ou coletivamente. Houve,
no entanto, um tipo de resistência que poderíamos
caracterizar como a mais típica da escravidão - e de
outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga
e formação de grupos de escravos fugidos. A fuga
nem sempre levava a formação desses grupos. Ela
podia ser individual ou até grupal, mas os escravos
terminavam procurando se diluir no anonimato da
massa escrava e de negros livres (REIS; GOMES,
1996, p. 9).

Conforme o entendimento apresentado pelos autores,


entende-se que as fugas podiam ser individuais ou coletivas e que
levavam à formação dessas comunidades, as quais eram conhecidas
no Brasil como quilombos, arranchamentos ou mocambos,
desempenhando um importante papel na formação do tecido social
brasileiro, visto que nesses espaços eram/são manifestados os
elementos culturais africanos, como danças, lutas, línguas e crenças
religiosas. Cabe ressaltar, também, que os quilombos eram formados
não apenas por negros, mas também por “brancos perseguidos pela
coroa, por razões religiosas ou pela prática de crimes e infrações
menores” (FAUSTO, 2018, p. 25). Conclui-se, dessa forma, que as
comunidades quilombolas representavam um espaço de resistência
ao sistema colonial brasileiro e manifestação cultural de povos que
se viam reprimidos pela cultura europeia estabelecida na época.

Destaca-se, ainda, que os quilombos eram/são diversas


comunidades espalhadas pelo o Brasil e possuem uma grande
diversidade étnica e cultural, devido aos seus modos peculiares de
vivência gerados, principalmente, pelas adaptações aos locais que se
estabeleciam. Diante desse interim, menciona-se o entendimento
do insigne historiador Carlos Magno Guimarães:

76 Direitos Humanos
São semelhantes na medida em que, constituídos
por escravos fugidos em sua maior parte, todos eles
configuram uma mesma modalidade de expressão da
rebeldia escrava. São diferentes já que cada quilombo
tem sua época de existência, sua região e seus
mecanismos de sobrevivência, constituindo assim,
uma configuração histórico-cultural específica
(GUIMARÃES, 1996, p. 143).

O historiador, por meio de estudos sobre os quilombos na


época da mineração, observou semelhanças e diferenças entre esses
povos. As diferenças também residiam/residem nas condições de
vida de cada povo quilombola, conforme descrito a seguir.

CONDIÇÕES DE VIDA DOS POVOS QUILOMBOLAS:


PANORAMA GERAL

Passados mais de 130 anos da Lei Áurea, os quilombos


deixaram de ter o aspecto de comunidades necessariamente isoladas
para servir de esconderijo dos senhores fazendeiros, passando
a constituir espaços compostos de descendentes de africanos
escravizados que buscam resistência de suas antigas manifestações
culturais e o devido acesso ao poder judiciário e políticas públicas.
De acordo com Lúcia Gaspar4: “os quilombos são grupos sociais
cuja identidade étnica – ou seja, ancestralidade comum, formas de
organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e
culturais – os distingue do restante da sociedade (GASPAR, 2011).
Isto é, a problemática atual dos povos quilombolas reside não
apenas na questão racial, mas também na manifestação digna dos
seus traços culturais e na integração à sociedade.

4
Bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco: [email protected].

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 77


Segundo dados oficiais da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgãos responsáveis pela
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas pelos quilombolas, existem atualmente mais
de setecentas comunidades oficialmente registradas pela Fundação
Palmares, do Ministério da Cultura e mais de duzentos processos
de regularização fundiária em andamento, envolvendo mais de
trezentas comunidades espalhadas por 24 estados brasileiros,
representando, assim, um avanço pós-Constituição de 1988.

Entretanto a homologação das terras pelo governo não


trouxe muitas melhoras efetivas na qualidade de vida dos
quilombolas, uma vez que, segundo o levantamento do Ministério
de Desenvolvimento Social5 (atual Ministério da Cidadania), mais
de 60% das lideranças quilombolas afirmam que não ocorreram
alterações positivas em relação à infraestrutura de água e esgoto
após a titulação do território. Além disso, constatou-se que apenas
5% dos domicílios tinham acesso a esgoto sanitário e menos de uma
em cada dez casas contava com coleta de lixo, há também problemas
de infraestrutura, péssima qualidade de vida, habitações precárias,
famílias sem acesso à energia, difícil acesso às escolas, meios de
transporte ineficientes e escassos, inexistência de postos de saúde
na maioria das comunidades.

Além desses há também a discriminação com que são tratados


os habitantes das comunidades quilombolas. Denota-se então que,
por mais que a Constituição Federal de 1988, conjunturalmente
com os órgãos especialistas na promoção de garantias dos povos
tradicionais, tenham avançado na questão de reconhecimento dos
remanescentes quilombolas, ainda não são assistidos os principais
5
Levantamento encontrado em: Cadernos de Estudos – Desenvolvimento Social em
Debate. Políticas Sociais e Chamada Nutricional Quilombola: estudos sobre condições de
vida nas comunidades e situação nutricional das crianças.

78 Direitos Humanos
direitos essenciais para a sobrevivência desses povos, carecendo de
uma qualidade de vida digna.

Ainda sobre a questão da titulação das propriedades


dos remanescentes quilombolas, ressalta-se que “segundo
levantamentos do Governo Federal existem mais de três mil em
comunidades quilombolas em todo país” (G1, 2016), logo conclui-
se que faltam muitas comunidades a serem reconhecidas, devido,
principalmente, à dificuldade de acesso à justiça por esses povos.

Maria Rosalina dos Santos, moradora da comunidade


quilombola de Tapuio no munícipio de Queimada Nova, no estado
do Piauí, elenca alguns avanços e os principais descasos do poder
público em relação às condições dos remanescentes quilombolas.
De acordo com a quilombola, o principal avanço pós-Constituição
de 1988 foi a maior abertura da possibilidade de diálogo sobre os
quilombos, isto é, a oportunidade da sociedade em geral reconhecer
as situações das comunidades quilombolas, reconhecer os traços
culturais e sociais desses afrodescendentes.

Por meio do debate sobre os quilombos, foi possível colocar


em pauta o reconhecimento de direitos dos povos quilombolas,
despertando nesses a luta em busca de suas garantias, com base
no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece como dever do
Estado o reconhecimento e a titulação das propriedades ocupadas
pelos povos quilombolas. Nessa perspectiva da necessidade de
luta pelos direitos dos quilombolas, é importante mencionar o
depoimento6 que Maria Rosalina preconiza, in verbis:

6
Representante da CONAQ no V Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental,
realizado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, na cidade de Curitiba, em 12 de
novembro de 2015. Transcrição do texto da obra: os direitos territoriais quilombolas além
do marco temporal. Ed. PUC Goiás, Goiânia,2016.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 79


Quanto à luta pelo território, podemos perceber que
os entraves não são diferentes dos nossos parentes
indígenas, como pude perceber nos últimos dois dias
com a convivência e com os debates no congresso.
As ameaças não são diferentes. Assim como os
indígenas, os quilombolas já tem derramado sangue
na defesa de seus territórios. Quilombolas são
ameaçados vinte e quatro horas, mas, encorajados
com a resistência de nossa ancestralidade, temos
coragem para encararmos a luta, mesmo sabendo
que ela é desafiadora, contudo, acreditando que é por
meio da luta que podemos conquistar aquilo que é de
direito (SANTOS, 2015).

Quanto aos principais problemas, Maria Rosalina cita a


chegada dos grandes projetos em nome do desenvolvimento
econômico, como as ferrovias, exploração de minérios e parques
eólicos. Esses projetos, segundo a quilombola, desconsideram as
diversidades dos grupos quilombolas e sua necessidade da terra
para as manifestações socioculturais, visto que os projetos são
posicionados nas terras dessas comunidades, ignorando os direitos
de propriedade.

Outro problema notório é a falta de condições básicas para uma


vivência digna desses povos, já que faltam escolas e postos de saúde
nessas áreas, além de redes de saneamento básico, representando,
assim, o isolamento dessas comunidades das políticas públicas
estatais. Ressalta-se que para terem acesso às políticas públicas,
as comunidades quilombolas precisam de uma certidão emitida
de autorreconhecimento pela Fundação Palmares, constituindo
um processo burocrático e a necessidade de um devido acesso à
justiça. Assim, conclui-se, baseando em dados acima, expostos
pelo Governo Federal, que as diversas comunidades que ainda não
possuem certificados de titulação carecem de políticas públicas
básicas, uma vez que não são integradas à comunidade política e

80 Direitos Humanos
são desconhecidas suas práticas socioculturais, sendo excluídas,
portanto, do mundo de igualdade e oportunidades.

Eurípedes Funes (2009), historiador e professor da


Universidade Federal do Ceará (UFC), que estudou as memórias
dos quilombos e “mocambos” da região, alega que, se num primeiro
momento, o enfrentamento visava construir a liberdade rompendo
com a escravidão, hoje a luta se dá no sentido de libertar a terra
para continuarem a ser livres.

Nesse contexto, a expansão capitalista e empreendedores


do agronegócio que vivem da especulação fundiária e do uso
desordenado das florestas, ameaçam as terras para o mercado,
apropriação individual, pecuária de larga extensão e plantio, hoje
brutalmente transformado pelo uso indevido das áreas de várzeas,
grandes danos ambientais e, consequentemente, encolhimento das
terras dos mocambeiros que ali vivem, aumentando a intimidação
violenta, física e psicológica e a tentativa da bancada ruralista de
retirar os direitos desses povos.

Por isso, o sentimento de pertença, enraizado na sua


ancestralidade, impulsiona esses sujeitos a lutar pela posse e
titulação definitiva de suas terras, amparada em dispositivos legais;
pelo direito à terra, historicamente conquistado; pelo direito à sua
especificidade negra, raiz profunda de sua cultura; e pelo direito
de reproduzir seu modo de vida agrícola e extrativo sobre as bases
da territorialidade conquistada, é extremamente necessário para
cultivar o sentimento de pertencimento e manter as memórias vivas
e valorização da identidade quilombola. Como afirma Eurípedes
Funes:

Hoje, recuperar esse passado tem um duplo sentido:


a afirmação de uma identidade e a legitimação
da titulação e posse da terra. Nesse sentido, as
práticas culturais, por serem lugares de memórias,

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 81


constituem os pilares do ser remanescente e
mocambeiro e fundamentam o sentido de pertença.
Depois de tudo, a memória coletiva é uma memória
viva que adquire sentido desde o presente e atualiza
permanentemente as práticas (FUNES, 2009).

Partindo desse pressuposto, fica evidente a importância da


afirmação da identidade quilombola por meio de práticas culturais.
Dessa forma, os direitos humanos são imprescindíveis para manter
vivas as memórias dos povos quilombolas, uma vez que protegem a
identidade do povo e lhe garantem uma vida com dignidade.

DIREITOS HUMANOS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS:


ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS E
CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

Partindo-se de uma análise introdutória, os direitos humanos


são inerentes a todos, em consequência da natureza humana, logo,
são independentes de condições de raça, sexo, etnia, crença ou
qualquer outra característica individual. Constituem-se em “um
conjunto de direitos considerados indispensáveis para uma vida
pautada na liberdade, igualdade e dignidade (...) indispensáveis à
vida digna” (RAMOS, 2017, p. 21).

Ainda segundo o renomado jurista André Carvalho de Ramos


(2017), é impossível o estabelecimento de um rol predeterminado
de direitos essenciais à vida digna, já que os direitos humanos
transformam-se conforme as necessidades sociais de dada época
histórica, ou seja, de acordo com os novos anseios no plano social
são inseridos novos direitos nesse arcabouço jurídico.

82 Direitos Humanos
Trazendo esse debate dos direitos humanos na perspectiva
dos povos quilombolas, tomando como base os dados e depoimentos
expostos no capítulo anterior, nota-se, indubitavelmente,
uma violação de direitos como o da liberdade e o da igualdade,
uma vez que, carentes de serviços públicos básicos, torna-se
impossível a instituição de uma vida digna. Outrossim, verifica-se
a consideração de tais comunidades como “sub-humanas”, herança
de uma estrutura social escravocrata que atribuía caráter de objeto
aos negros africanos. Nesse sentido, observa-se um panorama
social de desrespeito às diferenças, em que falta a valorização das
manifestações socioculturais dos povos quilombolas dificulta o
acesso desses povos à justiça.

Segundo Geertz (2009), os seres humanos têm dificuldade


de reconhecer as diferenças, sendo elas étnicas, culturais ou
religiosas. O antropólogo aponta que essa dificuldade se torna mais
indubitável ao verificar as tentativas de comunicação entre essas
comunidades, uma vez que, por um lado, encontra-se um grupo
totalmente peculiar com características resguardadas de gerações
antigas (“primeiro mundo”), e, por outro, uma sociedade guiada
nos valores ocidentais da globalização, pautada na padronização
dos seres humanos.

Com o avanço dos estudos dos direitos humanos na


comunidade jurídica brasileira, observa-se a expansão do conceito
de Sujeito de Direito, para além do indivíduo, abarcando, também,
grupos vulneráveis, entidades sindicais e a humanidade como
um todo (SOUSA JR, 2002). Segundo Flávia Piovesan (2010),
esse alargamento no conceito de sujeito de Direito ocasionou o
tratamento do sujeito não como um indivíduo genérico e abstrato,
mas sim como um indivíduo “especializado”, levando em conta
algumas peculiaridades do grupo ou pessoa.

Nessa perspectiva, a Magna Carta de 1988 traz uma série


de direitos coletivos, devido ao viés pluralístico desse documento

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 83


e das transformações advindas das mobilizações negras, gerando,
dessa forma, “o reconhecimento de identidades e de direitos, à
redistribuição material e simbólica e à representação política”
(FRASER, 2007, p.307). É com essas garantias sociais que se
fortalece a possibilidade de os diferentes grupos, a exemplo dos
quilombolas, gozarem de direitos em relação a proteção do seu
modo de vivência, isto é, o direito à cultura própria. Nesse sentido,
cabe mencionar o entendimento do ilustre jurista Aurélio Rios:

[A Constituição] estabelece a garantia de ampla


participação social e política desse seguimento
(ou minoria) através dos benefícios sociais que a
igualdade segundo a lei impõe, sem descurar-se
das diferenças culturais, ínsitas a todas as minorias
étnicas (RIOS, 2007, p.107).

No que concerne aos povos quilombolas, menciona-se o artigo


68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades


dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos.

Em síntese, esse artigo consiste no reconhecimento legal dos


direitos das comunidades que ainda ocupam contemporaneamente,
mantendo seus traços socioculturais tradicionais. Todavia, é
necessária uma compreensão integral desse artigo com o texto
constitucional, já que a titulação de terras, por si só, não traz todas
as condições suficientes para uma vida digna.

84 Direitos Humanos
Ademais, é indispensável uma compreensão distinta da noção
de propriedade conforme as noções ocidentais, já que segundo
Sarmento7 (2006), a terra consiste em um elo que mantém a união
do grupo, permitindo a preservação da identidade cultural coletiva
e dos valores peculiares da vida nessa comunidade. Logo, entende-
se que:

Privado de terra, o grupo tende a se dispersar e


desaparecer, tragado pela sociedade envolvente.
Portanto, não é só a terra que se perde, pois a
identidade coletiva também periga sucumbir. Dessa
forma, não é exagero afirmar que quando se retira
a terra de uma comunidade quilombola, não se
está apenas violando o direito à moradia de seus
membros. Muito mais que isso, está cometendo um
verdadeiro etnocídio (Sarmento, 2006, p. 05).

Essa nova gnose, em relação a propriedade dos povos


tradicionais como meio de manutenção e valorização de suas tradições
culturais, está disposta nos artigos 215 e 216 da Constituição. Os
artigos 215 e 216 determinam, no texto constitucional:

Art.  215.  O Estado garantirá a todos o pleno


exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais.

      §  1º  O Estado protegerá as manifestações das


culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.

7
Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais. Deborah
Duprat, org. Manaus: uea, 2007. O direito dos quilombolas aos seus territórios étnicos
como direito fundamental

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 85


Art.  216.  Constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I -  as formas de expressão;

II -  os modos de criar, fazer e viver;

III -  as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV  -  as obras, objetos, documentos, edificações


e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais;

V -  os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,


paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico (Constituição Federal, 1988,
p.127).

Analisando esses artigos em conjunção, compreende-se a


maior valorização das comunidades tradicionais de forma a integrá-
las na comunidade política brasileira e promover formas de vida
digna. Outrossim, a Constituição de 1988 alarga o conceito de bens
culturais, antes restrito apenas à imensidão dos monumentos,
considerando também: “outras situações e contextos que ainda
estão acontecendo, dentro de uma visão de cultura como processo
contínuo e dinâmico, como a representatividade e identidade
étnica de cada um dos grupos formadores da nacionalidade, em seu
sentido mais amplo” (RIOS, 2007, p.109).

Diante desse cenário, atribui-se um novo conceito de


igualdade que atende aos anseios da contemporaneidade: a
igualdade substantiva e real, que, conforme Piovesan (2010), tem
como vertentes básicas o combate à discriminação e a promoção
da igualdade. Em relação ao combate à discriminação, constata-se,
no Direito normativo, aparatos normativos que visam punir essa

86 Direitos Humanos
forma de tratamento desumano. A Constituição de 1988 em seu
art.5°, XLI, estabelece que a “lei punirá qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Entretanto,
essa cláusula se encontra aberta, visto que necessita de dispositivos
legais mais específicos relacionados aos povos quilombolas.
No plano internacional, vale salientar a Convenção n° 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que diz respeito aos
povos indígenas e tribais. Essa convenção tem como ponto básico
o entendimento dos Estados garantirem os direitos fundamentais
desses povos, além do respeito à sua integridade, ou seja, inserir
os povos tribais e indígenas no rol básico de direitos dessas
comunidades políticas, instituindo, por fim, a igualdade jurídica.
Cita-se o artigo 3°8 dessa convenção que aborda o panorama dos
direitos humanos na perspectiva dos povos tribais:

ARTIGO 3º

1. Os povos indígenas e tribais desfrutarão


plenamente dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais sem qualquer impedimento ou
discriminação. As disposições desta Convenção
deverão ser aplicadas sem discriminação entre os
membros do gênero masculino e feminino desses
povos.

2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de


força ou coerção que viole os direitos humanos e as
liberdades fundamentais desses povos, inclusive os
direitos previstos na presente Convenção.

Convém ressaltar, também, que alguns juristas desconsiderem


os povos quilombolas como comunidades tradicionais devido
considerarem apenas esses povos como afrodescendentes.
Entretanto, afirma-se que os povos quilombolas possuem
8
Texto retirado do: Portal.iphan.gov.br/uploads

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 87


manifestações culturais próprias, peculiaridades étnicas e sociais,
além de preservarem sua identidade coletiva, entendendo-se,
portanto, que esses grupos devem ser considerados como povos
tribais, recebendo seus direitos e garantias que os reconheçam
como seres humanos íntegros e dignos.
Toma-se como exemplo, o entendimento da Corte
Interamericana de Direitos humanos que reconheceu a aplicabilidade
da Convenção 169 da OIT ao povo quilombola Saramaka, no
Suriname:

La Corte no encuentra una razón para apartarse


de esta jurisprudencia en el presente caso.  Por
ello, este Tribunal declara que se debe considerar
a los miembros del pueblo Saramaka como una
comunidad tribal y que la jurisprudencia de la
Corte respecto del derecho de propiedad de los
pueblos indígenas también es aplicable a los pueblos
tribales dado que comparten características sociales,
culturales y económicas distintivas, incluyendo la
relación especial con sus territorios ancestrales, que
requiere medidas especiales conforme al derecho
internacional de los derechos humanos a fin de
garantizar la supervivencia física y cultural de dicho
pueblo. (Caso Saramaka Vs. Suriname, 28/11/2007).

Portanto, compreende-se que os povos quilombolas possuem


jurisprudências sólidas que os garantem direitos básicos no ramo
internacional. Assim, suscitam as discussões sobre a desigualdade
social, em que a isonomia e a equidade devem ser inseridas como
características primeiras de qualquer ordenamento jurídico que
discipline um Estado.

88 Direitos Humanos
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se finalmente, com base no que foi discorrido, a


necessidade de amplos debates na área dos direitos quilombolas
(assunto até então esquecido durante boa parte do século XX) com
o fito de compreender a estrutura social de desigualdade formada
no país. Soma-se as releituras da noção de propriedade em relação
aos povos tradicionais, evocando um aspecto inovador do direito à
propriedade como um elo da manifestação cultural e manutenção
das identidades dos povos quilombolas.

Conclui-se trazendo a reflexão de como os Direitos Humanos


podem atuar como instrumento propulsor do diálogo multicultural
e das garantias fundamentais às comunidades quilombolas, unindo-
se os eixos contrapostos dos Direitos fundamentais: a Soberania
Nacional e a garantia dos direitos humanos universais.

REFERÊNCIAS

ANJOS, R. S. A; CYPRIANO, A. Quilombolas – tradições e cultura


da resistência. Aori Comunicações. São Paulo: Petrobras, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/hpsenado

DI CARLO, Rafael Felipe. História do Brasil Colônia. Editora Sol,


São Paulo, 2014.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 89


FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. Ed. da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2018.

FRASER, Nancy. (2007), “Identity, exclusion, and critique: a


response to four critics”. European Journal of Political Theory,
pp. 305-338.

FUNES, Eurípedes. Mocambos: natureza, cultura e memória.


História Unisinos. Fortaleza. 08, abril, 2009.

G1 AL. Quilombolas vivem em situação de miséria em


comunidades de Alagoas. Maceió, 20.nov.2016. Disponível em:
http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2016/11/quilombolas-
vivem-em-situacao-de-miseria-em-comunidades-de-alagoas.html.
Acesso em 03.Dez.2019.

GASPAR, Lúcia. Quilombolas. Pesquisa Escolar Online, Fundação


Joaquim Nabuco, Recife, 22. jul. 2011. Disponível em: <http://
basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 03.dez.2019.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia


interpretativa. 11ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 249-356.

GUIMARÃES, C. M. Mineração, quilombos em Minas Gerais no


século XVIII. In: REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. Liberdade por um
fio: história dos quilombos no Brasil. Ed. Companhia das Letras São
Paulo, 1996.

90 Direitos Humanos
MARQUES, Carlos Eduardo; GOMES, Lílian. A Constituição de
1988 e a ressignificação dos quilombos contemporâneos:
limites e potencialidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v28, n81, fev/2013.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 4ª Ed. Saraiva,


São Paulo, 2010.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª Ed.


Saraiva, São Paulo, 2017.

REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. (Org.). Liberdade por um fio: história


dos quilombos no Brasil. Ed.Companhia das Letras São Paulo, 1996.

RIOS, Aurélio Virgílio. Quilombos na Perspectiva da Igualdade


Étnico-Racial: raízes, conceitos, perspectivas. In: DUPRAT,
Déborah. Pareceres Jurídicos: Direitos dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Manaus: UEA, 2007.

SARMENTO, Daniel. A garantia do direito à posse dos


remanescentes de quilombos antes da desapropriação.
In DUPRAT, Déborah. Pareceres Jurídicos: Direitos dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA, 2007.

SILVA, Giselda Shirley da; SILVA, Vandeir José. Quilombos


Brasileiros: alguns aspectos da trajetória do negro no Brasil.
Revista mosaico, Rio de Janeiro, v7, n2, p. 191-200. jul./dez.2014.
Disponível em: <http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/mosaico/
article/viewFile/4120/2352> Acesso em: 26.nov.2019.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 91


SOUSA JR, José Geraldo (org.). Sociologia jurídica: condições
sociais e possibilidades teóricas. Ed. SAFE, Porto Alegre,2002,
p.53-66.

STEVANIM, Luiz Felipe. A luta dos quilombos hoje é para


libertar a terra. RADIS. Rio de Janeiro, 29, mai, 2019. Disponível
em: < https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/
a-luta-dos-quilombos-hoje-e-para-libertar-a-terra> Acesso em: 29.
set. 2020.

WOLKMER, A. et al. Os direitos territoriais quilombolas além


do marco temporal. Ed. da PUC Goiás, Goiânia, 2016.

__. Convenção no 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.


Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate. – N. 9
(2008)- . Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.

92 Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS E SOPESAMENTO DE PRINCÍPIOS:
APLICAÇÃO A UM CASO CONCRETO

Sofia Sá Carvalho Sales

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos são aqui considerados direitos naturais,


ou seja, direitos que são inerentes à própria natureza humana. Desse
modo, os direitos humanos são aplicáveis a todas as pessoas, sem
distinção de gênero, etnia, religião ou qualquer outra condição. Os
direitos humanos positivados pela legislação de um determinado
Estado são chamados de direitos fundamentais. A Constituição
Brasileira de 1988 define vários direitos fundamentais, que podem
ser tidos como princípios. É pela grande quantidade de direitos
fundamentais reconhecidos que, em determinados casos, mais de
um desses princípios podem ser aplicados, o que leva a uma colisão
entre determinados direitos fundamentais.

Analisar um caso concreto de colisão de princípios,


relacionando-o ao assunto dos direitos humanos e à teoria de um
filósofo cujos conceitos já foram citados pelo Supremo Tribunal
Federal é de extrema importância acadêmica. Além disso, analisar
decisões judiciais e casos verídicos à luz de um aparato científico
tão coerente também tem uma importância social. Para trazer
essa contribuição acadêmica e social, utilizou-se a metodologia da
pesquisa exploratória e do estudo de caso.

O caso aqui escolhido foi o dos irmãos Anderson Palmeira


da Silva e Emerson Palmeira da Silva, que tiveram suas imagens

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 93


veiculadas como suspeitos de assassinato e que, por isso, foram
julgados e reprimidos pela sociedade. Isso levou a uma discussão
sobre o que deveria prevalecer nesse contexto: o direito à imagem ou
o direito à liberdade de imprensa. Esses direitos estão garantidos na
Carta Magna, no seu artigo 5º, portanto são direitos fundamentais.
Diante de um caso de colisão de princípios, pode-se utilizar
a técnica do sopesamento de princípios, formulada pelo filósofo
alemão Robert Alexy. Com a utilização dessa técnica, foi possível
chegar à conclusão de que o direito à imagem, nesse caso concreto,
deve sobrepujar o direito à liberdade de imprensa, tendo em vista
que a divulgação da imagem de suspeitos, ou seja, de pessoas que
não foram nem sequer acusadas pelo Ministério Público, interfere
muito na vida, na segurança e na imagem do suspeito e, nesse caso,
fez com que os irmãos fossem linchados, tendo, desse modo, suas
vidas postas em risco. Portanto, faz-se mister destacar e defender o
direito à imagem no caso dos irmãos supracitados.

O CASO

Os irmãos Anderson Palmeira da Silva e Emerson Palmeira da


Silva foram denunciados e presos provisoriamente por supostamente
terem assassinado o professor da Universidade Federal de Alagoas
(Ufal), Daniel Thiele, em outubro de 2016. Os irmãos foram soltos 5
dias após terem sido presos, porém foram linchados por terem suas
imagens fornecidas à imprensa, por agentes de segurança, como
suspeitos de assassinato.

Isso levou a uma grande discussão sobre qual princípio deveria


prevalecer nesse caso: o direito à imagem ou o direito à liberdade de
imprensa. Foi por defender o direito à imagem do preso provisório
que o defensor público Othoniel Pinheiro Neto entrou com um

94 Direitos Humanos
pedido para proibir o repasse de imagens de presos provisórios por
agentes de segurança à imprensa. Esse pedido foi acatado em março
de 2017, pela Justiça de Alagoas, que estabeleceu multa de R$ 1 mil
para as autoridades que descumprissem essa ordem judicial.

O defensor público afirmou que seu pedido se baseou na


preservação da imagem e no princípio da presunção de inocência,
verificado no artigo XI da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e no artigo 5º da Constituição Cidadã.

Sobre o caso, o Presidente da Comissão de Direitos Humanos


da OAB-AL, Ricardo Moraes, afirmou:

Quando se divulga uma imagem de um preso


provisório, não há de se negar que, sobre ele, o pré-
julgamento e um estigma irreparável são criados,
mesmo que ele venha a ser inocentado. Além
dos danos irreparáveis à honra e privacidade, a
exibição prejudica o andamento do devido processo
(GAZETAWEB.COM, 2019).

Dentre os argumentos contrários, encontra-se o do delegado


da Divisão Especial de Investigação e Capturas (Diec), Fábio Costa,
que afirmou que a decisão da Justiça de Alagoas prejudica o trabalho
da imprensa e o direito à informação e que a divulgação da imagem
do suspeito é importante para o aparecimento de novas denúncias
contra os suspeitos, mas que deve ser feita sem sensacionalismo.

OS DIREITOS HUMANOS

Os regimes totalitários, como o fascismo e o nazismo,


utilizaram-se do positivismo jurídico para justificar as atrocidades

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 95


por eles cometidas, no sentido de interpretar essa corrente
filosófica como defensora de que o direito posto é o que deve ser
seguido, independentemente de estar de acordo com bases morais
ou não (FERNANDES e BICALHO, 2011). Foi após a Segunda
Guerra Mundial que vários países se reuniram para aprovar a Carta
das Nações Unidas, em 1945, e posteriormente, em 1948, para a
aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que
representa o ideal da proteção universal dos direitos humanos.

Com o pós-positivismo, houve uma tentativa de


reaproximação do direito em relação à moral e, consequentemente,
o reconhecimento da normatividade dos princípios pela ordem
jurídica (SANTOS, 2012). Tais princípios são aderidos pela
Constituição Brasileira de 1988 e passam a ser assim denominados
direitos fundamentais.

É importante destacar ainda que, de acordo com o contexto


histórico em que surgiram, os direitos humanos têm três
dimensões ou fases, porém, faz-se necessário frisar que os direitos
de determinada dimensão não se sobrepõem aos de outra. Essas
dimensões são assim resumidas por Norberto Bobbio:

[...] como todos sabem, o desenvolvimento dos


direitos do homem passou por três fases: num
primeiro momento, afirmaram-se os direitos de
liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem
a limitar o poder do Estado e a reservar para o
indivíduo, ou para os grupos particulares, uma
esfera de liberdade em relação ao Estado; num
segundo momento, foram propugnados os direitos
políticos, os quais – concebendo a liberdade não
apenas negativamente, como não-impedimento,
mas positivamente, como autonomia – tiveram
como consequência a participação cada vez ampla,
generalizada e frequente dos membros de uma
comunidade no poder político (ou liberdade no
Estado); finalmente, foram proclamados os direitos

96 Direitos Humanos
sociais, que expressam o amadurecimento de novas
exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores
–, como os de bem-estar e da liberdade através ou
por meio do Estado (BOBBIO, 2004, p. 32).

Diante do exposto sobre os direitos humanos e os direitos


fundamentais, faz-se mister acrescentar que, em determinadas
condições, direitos fundamentais colidem e se faz necessária a
técnica do sopesamento. Porém, esses direitos fundamentais são
todos válidos e a sobreposição de um sobre o outro em determinados
casos não significa a declaração de invalidade de um dos direitos,
mas apenas que, sob determinadas condições, um direito teve
maior peso que o outro.

O SOPESAMENTO DE PRINCÍPIOS DE ALEXY

Antes de abordar o sopesamento de princípios em Alexy,


é necessário entender o que é princípio para esse autor e qual sua
relação com regras. Princípios e regras estão dentro de um conceito
mais amplo, o de norma, que pode ser caracterizado como aquilo
que diz o que deve ser. É possível diferenciar princípios de regras
através do critério da generalidade. Assim, princípios são normas
mais gerais do que regras.

Alexy defende que as normas podem ser divididas


em princípios e regras e que entre estes há não apenas uma
diferença gradual, como também qualitativa. Ainda para o mesmo
autor, princípios são mandamentos de otimização, o que significa
que “devem ser aplicados na maior medida possível dentro das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes” (2006, p. 90). Os
princípios podem ser atendidos em diferentes medidas, diferente
das regras, que, ou são satisfeitas ou não, não havendo satisfação

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 97


de regras em diferentes graus. Essa é caracterizada por Alexy como
uma diferenciação qualitativa entre princípios e regras.

Outra diferenciação possível entre princípios e regras


é a de que regras conflitam e princípios colidem, o que significa que
um conflito entre regras somente pode ser resolvido se for aplicada
uma cláusula de exceção em uma das regras ou se uma das regras
for declarada inválida e que uma colisão entre princípios é resolvida
com a cessão de um dos princípios, o que não significa dizer que um
deles será declarado inválido ou que deverá ser acrescentada a um
deles uma cláusula de exceção. A cessão de um dos princípios apenas
quer dizer que, em determinada situação concreta, determinado
princípio tem maior peso que outro.

É importante destacar que, para grande parte dos


autores do positivismo jurídico os princípios não teriam caráter
normativo, porém, posteriormente, os princípios foram ganhando
espaço dentro do ordenamento jurídico, através de teóricos como
Ronald Dworkin e Robert Alexy. Dworkin, ao procurar explicações
no pós-positivismo, chega à conclusão de que princípios são
importantes para o ordenamento jurídico, porém, diferente de
Alexy, Dworkin acredita que para cada caso há uma única resposta
correta, enquanto Alexy acredita que o juiz de cada caso deve chegar
à melhor resposta e não à única correta.

O sopesamento de princípios tem como objetivo definir


qual dos princípios prevalece, considerando-se as circunstâncias
do caso concreto. Deve-se considerar, portanto, que, em âmbito
abstrato, os princípios estão no mesmo nível.

Desse modo, Alexy (2006), ao analisar as decisões


de tribunais em seu país, percebeu claramente que havia, muitas
vezes, um sopesamento de princípios, havendo apenas diferenças
terminológicas em relação à sua teoria. Assim, o termo “colisão”

98 Direitos Humanos
era falado como “situação de tensão” e o termo “princípio” como
“dever”, “direito fundamental”, entre outros.

Alexy (2006), para exemplificar sua teoria, leva em


consideração um caso real, no qual um homem não poderia participar
de uma audiência na qual ele era o réu porque poderia sofrer um
derrame cerebral ou um infarto. Nesse caso, há a colisão entre dois
princípios: o direito à vida e a operacionalidade do direito penal.
Poder-se-ia chamar de P1 o direito à vida e de P2 a operacionalidade
do direito penal. Chamar-se-ia, ainda, de P a relação de precedência
e de C as condições em que um princípio prevalece sobre o outro.
Desse modo, ter-se-ia quatro possíveis soluções para o caso:

(1) P1 P P2
(2) P2 P P1

(3) (P1 P P2) C

(4) (P2 P P1) C

Na solução (1), P1 prevalece sobre P2 e na solução


(2), P2 prevalece sobre P1. Essas duas soluções representam
relações incondicionadas de precedência, portanto são abstratas e
absolutas. Na solução (3), P1 prevalece sobre P2, sob determinadas
situações concretas e na solução (4), P2 prevalece sobre P1, sob
determinadas circunstâncias, portanto, (3) e (4) representam
relações condicionadas de precedência. As soluções (1) e (2) foram
desconsideradas pelo Tribunal no caso concreto da incapacidade
de participar da audiência, pois não levavam em consideração as
circunstâncias em que o caso estava inserido.

Os princípios podem, ainda, para Alexy, ser diferenciados


de regras, tendo como ponto de partida o caráter prima facie. Os
princípios não contêm um mandamento definitivo, e sim prima
facie, ao contrário das regras, que têm um caráter definitivo. Porém,
se estabelecida uma cláusula de exceção na regra, ela perde seu

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 99


caráter definitivo e passa a ser prima facie. No entanto, esse caráter
prima facie da regra é diferente do caráter prima facie do princípio.

Dessa maneira, princípios e regras são razões prima facie e


definitivas, respectivamente. Eles podem ser considerados como
razões para ações ou razões para normas. Quem defende que
normas são razões para ações é Raz, enquanto Alexy defende que
regras e princípios são razões para normas. Esse ponto de vista de
Alexy é adotado pela Ciência do Direito. Defender que princípios
são razões para regras e regras são razões para decisões concretas
não parece certo a Alexy, visto que “regras podem ser também
razões para outras regras e princípios podem também ser razões
para decisões concretas” (ALEXY, 2006, p.107).

Ademais, Alexy destaca algumas objeções ao conceito


de princípio, dentre as quais destacam-se duas: 1) Há colisões entre
princípios que podem ser solucionadas por meio da declaração de
invalidade de um deles, Alexy (2006, p. 110) refuta isso afirmando
que, se um princípio está dentro do ordenamento jurídico, é porque
é válido e que “o conceito de colisão entre princípios pressupõe a
validade dos princípios colidentes”); 2) Há princípios absolutos
(Alexy refuta essa ideia afirmando que há princípios que se referem
a interesses coletivos e princípios que se referem a interesses
individuais e que, se um princípio de interesse coletivo é absoluto
ele não poderia ser limitado pelos direitos fundamentais, portanto
não existiriam direitos fundamentais, o que é inviável. Além disso, o
supracitado autor afirma que é inviável que se tenha um princípio de
interesse individual absoluto, haja vista que se houvesse um direito
individual absoluto, no caso de colisão de princípios, todos teriam
que ceder para a satisfação do direito de apenas um indivíduo).

O autor acrescenta, ainda, que ao sopesamento de


princípios se fazem muitas objeções, tais como afirmar que a
atividade do sopesamento não é uma atividade racional e que só
abriria espaço para a discricionariedade e arbitrariedade dos juízes.

100 Direitos Humanos


Para Alexy, está claro que o sopesamento não leva a resultados
únicos e inequívocos, porém, não procede a afirmação de que o
sopesamento não é uma atividade racional. Assim destaca Alexy:

Clareza conceitual, ausência de contradição e


coerência são pressupostos da racionalidade de todas
as ciências. Os inúmeros problemas sistemático-
conceituais dos direitos fundamentais demonstram
o importante papel da dimensão analítica no âmbito
de uma ciência prática dos direitos fundamentais
que pretenda cumprir sua tarefa de maneira racional
(2008, p. 38).

Nesse sentido, Alexy, ao analisar formulações do Tribunal


Constitucional Federal da Alemanha, elabora a lei do sopesamento,
que diz que “quanto maior for o grau de não-satisfação ou de
afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da
satisfação do outro” (2006, p.167). Ou seja, a não-satisfação de um
princípio deve estar na mesma medida do grau de importância do
outro princípio. O mesmo autor destaca que os princípios não têm
pesos absolutos e sim relativos.

Diante do exposto sobre a teoria do supracitado filósofo,


pode-se concluir que, ao aplicar sua técnica ao caso dos irmãos, não
se pretende desqualificar ou invalidar um dos princípios, mas sim
aplicar o peso que cada princípio deve ter nessa situação concreta
e, a partir disso, chegar à melhor conclusão, porém não à única
correta.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 101


A TEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS E DO SOPESAMENTO DE
PRINCÍPIOS DE ALEXY APLICADA AO CASO

É importante destacar que, muitas vezes, os princípios são


associados a direitos fundamentais e, de fato, nesse caso, os direitos
à imagem e à liberdade de imprensa são direitos fundamentais que
podem ser tidos como princípios. Além disso, esses direitos estão
garantidos na Constituição Federativa da República Brasileira
(1988), a saber:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção


de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:

IX - é livre a expressão da atividade intelectual,


artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a


honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação (BRASIL, 1988).

Segundo os ensinamentos do escritor George


Marmelstein, a colisão de direitos fundamentais ocorre por conta
da natureza principiológica desses direitos e “considerar os direitos
fundamentais como princípios significa, portanto, aceitar que não há
direitos com caráter absoluto, já que eles são passíveis de restrições
recíprocas” (2009, p. 370). Ainda para o mesmo autor, a própria
Constituição admite que há limites para os direitos fundamentais
e que eles são relativos, o que é possível perceber quando a Carta
Magna: “reconhece o direito à vida, mas autoriza a adoção de pena

102 Direitos Humanos


de morte em caso de guerra declarada” (MARMELSTEIN, 2009, p.
371), por exemplo. Porém, o fato de que os direitos fundamentais
são relativos não quer dizer que são frágeis. Ademais, segundo
Marmelstein:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de


1948, reconhece, em seu artigo 29, que os direitos
ali estabelecidos são relativos, já que podem ser
limitados no intuito de promover o reconhecimento
e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a
fim de satisfazer às exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar numa sociedade democrática.
(2009, p. 371).

Porém, não se pode chegar à conclusão de que os direitos


fundamentais sempre cederão para satisfazer o interesse público.
Pontua-se que a regra deve ser o cumprimento das disposições dos
direitos fundamentais e não sua restrição.

Diante do exposto, considera-se que o caso dos irmãos


Anderson Palmeira da Silva e Emerson Palmeira da Silva é um bom
exemplo de como o sopesamento de princípios de Alexy pode ser
usado para resolver casos de colisão de princípios e de como pode-
se relacionar essa temática à proteção dos direitos humanos. No
caso em questão, os irmãos foram colocados em liberdade cinco
dias após terem sido presos, por decisão judicial. O juiz do caso
afirmou que não havia provas suficientes para mantê-los na prisão
preventiva.

Embora tenham sido soltos rapidamente, os irmãos


sofreram linchamento público, por terem suas imagens veiculadas
na mídia. O caso repercutiu nacionalmente e, alguns meses após
o ocorrido, a Justiça de Alagoas acatou um pedido da Defensoria
Pública do Estado, proibindo o repasse de imagens à imprensa, por

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 103


parte dos agentes de segurança. Se esse caso passasse por todas
as instâncias e fosse levado ao Supremo Tribunal Federal, assim
como o caso Lebach foi levado ao Tribunal Constitucional Federal
da Alemanha, ter-se-ia, provavelmente uma aplicação explícita do
sopesamento de princípios de Alexy.
O caso Lebach pode ser assim explicado: algumas pessoas
assassinaram quatro soldados da guarda de sentinela de um depósito
de munições do Exército da Alemanha. Enquanto os soldados
dormiam, foram assassinados e tiveram suas armas roubadas para
a posterior realização de outros crimes. Vários canais de televisão
noticiaram o caso à época. Algum tempo depois, quando um homem
indicado como cúmplice desse crime estava para ser solto, uma
emissora de televisão teve a ideia de fazer um documentário sobre o
caso, mencionando o suposto cúmplice e divulgando sua imagem. O
condenado entendeu que esse documentário violaria seus direitos
fundamentais garantidos na Constituição alemã, principalmente
o direito à ressocialização. O Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha entendeu que havia uma “situação de tensão entre a
proteção da personalidade, garantida pelo artigo 2°, § 1°, combinado
com artigo 1°, § 1°, da Constituição alemã, e a liberdade de informar
por meio de radiofusão, nos termos do artigo 5°, § 1°, 2” (ALEXY,
2006, p.100) e que em âmbito abstrato os dois princípios estavam no
mesmo nível. Entendeu, por fim, este Tribunal, que o documentário
estaria revestido de informações repetidas e que, portanto, não
estava necessariamente interessado no fato de informar e que ele
poria em risco a ressocialização do condenado. Portanto, neste
caso, a proteção da personalidade prevaleceria sobre a liberdade de
informar, ou seja, o documentário não poderia ser exibido.

É importante destacar o brilhantismo da decisão desse


Tribunal e da decisão da Justiça de Alagoas, que, influenciada pelo
caso dos irmãos Anderson Palmeira da Silva e Emerson Palmeira da
Silva, proibiu a veiculação de imagens de suspeitos de crimes por

104 Direitos Humanos


agentes de segurança à imprensa, impondo multa de um mil reais
para os agentes de segurança que descumprissem a ordem judicial.

Levando-se em consideração a metodologia usada


por Robert Alexy, em seu livro Teoria dos Direitos Fundamentais,
aplicar-se-á aqui a mesma metodologia para explicar o caso dos
irmãos supracitados.

Ter-se-ia, para a solução desse caso, quatro possibilidades


de decisão, desse modo:

(1) P1 P P2

(2) P2 P P1

(3) (P1 P P2) C

(4) (P2 P P1) C

P1 seria o princípio 1, aqui adotado como o direito


de imagem e P2 seria o princípio 2, que corresponde ao direito
de liberdade de imprensa. P representa a relação de precedência
de um princípio sobre o outro e C as circunstâncias em que um
princípio tem precedência sobre o outro. Desse modo, a situação
(1) representa a prevalência do direito de imagem sobre o direito
de liberdade de imprensa e a situação (2) representa a prevalência
do direito de liberdade de imprensa sobre o direito de imagem. As
situações (1) e (2) não levariam em consideração as circunstâncias
nas quais o caso está inserido, diferente das situações (3) e (4), que
levam em consideração essas circunstâncias. Tendo em vista que é
essencial observar o contexto em que cada caso está inserido para
se tomar uma boa decisão judicial, as situações (1) e (2) seriam
excluídas. A decisão escolhida, nesse caso, seria a (3), tendo em vista
que, assim como no caso Lebach, o direito à imagem prevaleceria
sobre o direito à liberdade de imprensa.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 105


CONCLUSÃO

Diante do exposto, destaca-se que no caso dos irmãos


sopesou-se os princípios “direito à imagem” e “direito à liberdade
de imprensa” e chegou-se à conclusão de que, nas condições fáticas
existentes, o melhor seria zelar pela proteção do direito à imagem
dos irmãos, tendo em vista que divulgar imagens de suspeitos, ou
seja, pessoas sobre as quais se têm frágeis indícios da autoria do
crime, é contribuir para a formação de um estereótipo irreparável
sobre esses suspeitos e, portanto, é atentar contra sua imagem.

Além disso, no caso supracitado, a violação do direito à


imagem fez com que os irmãos fossem linchados por terem sido
considerados supostos assassinos, o que pôs em risco o direito à
vida dos irmãos, direito tão defendido na Constituição Cidadã.
Desse modo, chegou-se à resposta que se imagina estar mais de
acordo com a proteção da dignidade dos irmãos e, portanto, à
resposta que mais zela pela dignidade da pessoa humana, haja vista
que “uma injustiça em um lugar qualquer é uma ameaça à justiça em
todo lugar” (LUTHER KING, 1963).

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São


Paulo: Malheiros Editores, 2006.

ARAGÃO, João Carlos Medeiros de. Choque entre direitos


fundamentais Consenso ou controvérsia? Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 48 n. 189 jan./mar. 2011.

106 Direitos Humanos


BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico,
1988.

Caso Daniel Thiele: família cobra conclusão do processo pela


17º vara. Gazetaweb, 02 mai. 2019. Disponível em: Acesso em: 06
dez. 2019.

FLORES, Gabriela; FRANÇA, Raissa. Professor da UFAL foi


vítima de crime de latrocínio, diz polícia. Cada Minuto, 22
nov. 2016. Disponível em: https://www.cadaminuto.com.br/
noticia/295649/2016/11/22/professor-da-ufal-foi-vitima-de-
crime-de-latrocinio-diz-policia. Acesso em: 05 dez. 2019.

LIMA, Jair Antonio Silva de. Teoria dos Princípios: colisão


entre direitos fundamentais. Conteúdo Jurídico, Brasília, 2011.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos fundamentais. 2.


ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009.

MIRANDA, Andira. Direito ou censura? Decisão que proíbe


a polícia de mostrar presos gera polêmica. Gazetaweb.com,
Alagoas, 27 abr. 2019. Disponível em: https://gazetaweb.globo.
com/portal/especial.php?c=75539. Acesso em: 07 dez. 2019.

O mínimo que você precisa saber sobre direitos naturais.


Ideias Radicais. 30 set. 2019. Disponível em: https://ideiasradicais.
com.br/o-minimo-que-voce-precisa-saber-sobre-direitos-
naturais/#:~:text=Direitos%20naturais%20s%C3%A3o%20
direitos%20que,qualquer%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20
criada%20por%20governos. Acesso em: 14 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 107


PINHEIRO, Michel. A importância do sopesamento como
instrumento da proporcionalidade na teoria dos direitos
e garantias fundamentais. Revista do Curso de Mestrado em
Direito da UFC, Ceará, 2007.

SILVA, Eliel Geraldino da. A normatividade de regras e


princípios no pós-positivismo. Jus.com.br, 2014.

SOARES, Marina. Princípios: a regra do sopesamento de


Robert Alexy como método de delimitação da competência
legislativa do município no caso concreto. Revista Direito
UNIFACS – Debate Virtual, 2013.

‘Suspeito’ x ‘Acusado’: entenda a diferença e evite


desinformação. Portal Correio. 16 fev. 2019. Disponível em:
https://portalcorreio.com.br/suspeito-x-acusado-entenda-
diferenca-e-evite-desinformacao/#:~:text=Nessa%20nova%20
fase%2C%20ele%20tem,como%20se%20defender%20das%20
acusa%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 14 set. 2020.

FERNANDES, Ricardo; BICALHO, Guilherme. Do positivismo


ao pós-positivismo jurídico: o atual paradigma jusfilosófico
constitucional. Brasília: Senado Federal, v.48, n. 189, p. 1-27,
jan./mar., 2011.

SANTOS, Eduardo. A teoria pós-positivista de Ronald Dworkin


e a normatividade dos princípios jurídicos. 2012. Disponível
em: https://www.diritto.it/a-teoria-pos-positivista-de-ronald-
dworkin-e-a-normatividade-dos-principios-juridicos/. Acesso em:
14 set. 2020

108 Direitos Humanos


A PERDA DE IDENTIDADE DA MULHER VÍTIMA DE
FEMINICÍDIO NA ENUNCIAÇÃO JORNALÍSTICA: UMA
ANÁLISE DO CASO DE SAMARA SILVA VIEIRA LIMA

Marta Lorena Bezerra Araújo

INTRODUÇÃO

Em uma sociedade que enxerga com muita naturalidade a


violência contra a mulher é possível entender o porquê do aumento
alarmante de casos de feminicídio. No entanto, entender não deve
ser o mesmo que simplesmente aceitar e ignorar, pelo contrário,
a ideia de compreender esse índice demanda um olhar ainda mais
atento para essa problemática. Dados da Organização Mundial de
Saúde revelam que o Brasil se localiza em 5º lugar no ranking de
países que mais matam mulheres no âmbito doméstico e familiar.
Uma parte considerável desses casos são cometidos por menosprezo
e discriminação para com a condição de mulher e se apresentam
como consequências de uma violência sistêmica que culmina no
crime de feminicídio.

A palavra feminicídio foi estruturada e definida pela primeira


vez pela escritora e ativista sul-africana, Diana E.H Russel. A
escritora percebeu uma realidade diferente na morte de muitas
mulheres, elas não são derivadas dos mesmos fatores em que ocorre
a morte de homens. De acordo com Russel e Radford (1992), a
palavra tem a seguinte definição:

Femicide is on the extreme end of a continuum of


antifemale terror that includes a wide variety of

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 109


verbal and physical abuse, such as rape, torture,
sexual slavery (particularly in prostitution),
incestuous and extrafamilial child sexual abuse,
physical and emotional battery, sexual harassment
(on the phone, in the streets, at the office, and in the
classroom), genital mutilation ((clitoridectomies,
excision, infibulations), unnecessary gynecological
operations (gratuitous hysterectomies), forced
heterosexuality, forced sterilization, forced
motherhood (by criminalizing contraception and
abortion), psychosurgery, denial of food to women
in some cultures, cosmetic surgery, and other
mutilations in the name of beautification. Whenever
these forms of terrorism result in death, they become
femicides (RUSSEL, RADFORD, 1992, p. 15)9.

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança


Pública, grande parte das mulheres é morta por companheiros ou
ex-companheiros, mais precisamente 88,8%. Esses assassinatos são
vistos de uma forma tão natural que hoje em dia as pessoas mal
se incomodam. Há uma cegueira coletiva e seletiva diante desse
problema, pois a vida das mulheres se encontra na base de uma
hierarquia que determina a importância da vida de cada um. Essa
violência se sustenta na problemática da desigualdade de gênero,
que concede à mulher um papel, na sua maior parte, inferior ao do
homem. Quando a mulher vai contra esse papel, incomoda aqueles
que mantêm esse padrão, nesse caso, os homens. Mello (2013)
reflete sobre essa estrutura da seguinte forma:
9
Feminicídio está no ponto mais extremo de contínuo terror anti-feminino que inclui
uma vasta gama de abusos verbais e físicos, tais como estupro, tortura, escravização
sexual (particularmente a prostituição), abuso sexual infantil incestuoso e extrafamiliar,
espancamento físico e emocional, assédio sexual (ao telefone, na rua, no escritório e
na sala de aula), mutilação genital (cliterodectomia, excisão, infibulações), operações
ginecológicas desnecessárias, heterossexualidade forçada, esterilização forçada,
maternidade forçada (ao criminalizar a contracepção e o aborto), psicocirurgia, privação
de comida para mulheres em algumas culturas, cirurgias cosméticas e outras mutilações
em nome do embelezamento. Onde quer que estas formas de terrorismo resultem em
mortes, elas se tornam feminicídio. (Tradução Nossa)

110 Direitos Humanos


Dessas condições estruturais surgem outras
condições culturais como são o ambiente ideológico
e social de machismo e misoginia, e de normalização
da violência contra as mulheres. Somam-se também
ausências legais e de políticas democráticas com
conteúdo de gênero e de órgãos de justiça, o que
produz impunidade e gera mais injustiça, assim
como condições de convivência insegura, põem
em risco a sua vida e favorece o conjunto de atos
violentos contra as meninas e as mulheres (MELLO,
2013, p. 21).

Essas desigualdades se manifestam de diversas formas, desde


a falta de acessibilidade à informação por parte dessas mulheres, até
a ocorrência de crimes mais graves. Para coibir esses crimes, fomos
apresentados em 2006 à Lei Maria da Penha10 e mais recentemente
à Lei nº 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio. O Código
Penal Brasileiro define o feminicídio11 como “o assassinato de uma
mulher cometido por razões da condição de sexo feminino”, isto
é, quando o crime envolve: “violência doméstica e familiar e/ou
menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

É a partir disso, que se entende o feminicídio como uma morte


evitável, pois é, na verdade, apenas o desfecho de uma infindável
lista de microagressões que são percebidas como comuns em nossa
sociedade. Os números são preocupantes, já que dados do Fórum

10
Maria da Penha Fernandes foi vítima da tentativa de feminicídio por duas vezes. Na
primeira tentativa, seu marido atirou nela enquanto dormia, em decorrência do tiro
ficou paraplégica. Na segunda, aproveitando do seu estado debilitado, o agressor tentou
eletrocutá-la enquanto ela se banhava.
11
“Reforçando, portanto, no Brasil, o crime de feminicídio foi definido legalmente desde
que a Lei nº 13.104 entrou em vigor, em 2015, e alterou o artigo 121 do Código Penal
(Decreto-Lei nº 2.848/1940) para incluir o tipo penal como circunstância qualificadora
do crime de homicídio. A Lei foi criada a partir de uma recomendação da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM),
que investigou a violência contra as mulheres nos Estados brasileiros entre março de 2012
e julho de 2013” (CAVALCANTI, 2019).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 111


Brasileiro de Segurança pública revelam que, em 2019, o Brasil
registrou 1.206 casos de feminicídio. Para que haja um melhor
combate e prevenção desses crimes, é importante que, além de
entender o contexto em que o feminicídio está inserido, a sociedade
trabalhe uma reeducação no sentido de desnaturalizar percepções
e práticas que desumanizam as mulheres e perpetuam o crime de
feminicídio.

Além do feminicídio mais comum, o íntimo, há casos que


ocorrem em contextos fora do ambiente doméstico e familiar. Como
por exemplo, casos de abuso sexual seguido de assassinato, tortura
ou mutilação, praticados por um homem sem vínculo com a vítima.
Há também casos de mulheres que são mortas por trabalharem em
profissões estigmatizadas e casos de meninas com idade inferior
a 14 anos que estão se relacionando com um homem adulto que
exerce poder sobre a menor de idade. Em muitas culturas, é comum
a prática de mutilação genital, ato que pode consequentemente
gerar a morte. Em razão disso, é essencial perceber as diversas
formas pelas quais o feminicídio pode ser caracterizado.

O GÊNERO COMO FATOR DETERMINANTE NO CRIME DE


FEMINICÍDIO

Para entender melhor o que torna a mulher uma vítima


constante em sociedade, é necessário entender a função que foi
assimilada ao seu gênero. De forma bastante simplificada, temos
um exemplo de como o gênero é estruturado na nossa sociedade,
através do dizer que afirma que: meninos devem vestir azul e
meninas devem vestir rosa. De uma perspectiva mais extrema, a
ideia de gênero se apresenta por meio da submissão de um sexo
em detrimento do outro, mais explicitamente, a mulher que deve
se submeter ao homem. As Diretrizes Nacionais para Investigar,

112 Direitos Humanos


Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas
de Mulheres (ONU Mulheres, 2016) afirmam que o termo se refere a
construções sociais dos atributos femininos e masculinos definidos
como papéis percebidos como inerentes à “feminilidade” ou à
“masculinidade”. Os papeis de gênero são basicamente costumes e
comportamentos que foram sendo construídos ao longo de várias
gerações e permanecem se perpetuando até o que conhecemos hoje.

O debate acerca de gênero e das diferenças entre os sexos


é antigo – já passou pelos filósofos Gregos, pelos Romanos, já foi
discutido pelos católicos, pelos judeus – e até hoje é um objeto
de estudo que alimenta controvérsias. De acordo com a tradição
desses povos, a mulher não era percebida como cidadã, nem como
independente. Era privada das liberdades e dos direitos que o
homem possuía, tendo como responsabilidade apenas a procriação.
A partir disso, Pinafi (2005) afirma:

O Cristianismo retratou a mulher como sendo


pecadora e culpada pelo desterro dos homens do
paraíso, devendo por isso seguir a trindade da
obediência, da passividade e da submissão aos
homens, — seres de grande iluminação capazes
de dominar os instintos irrefreáveis das mulheres
— como formas de obter sua salvação. Assim a
religião judaico-cristã foi delineando as condutas e a
‘natureza’ das mulheres e incutindo uma consciência
de culpa que permitiu a manutenção da relação
de subserviência e dependência. Mas não foi só a
religião que normatizou o sexo feminino, a medicina
também exerceu seu poder, apregoando até o século
XVI a existência de apenas um corpo canônico e este
corpo era macho (PINAFI, 2005, p. 02).

Essa percepção é relevante até os dias de hoje e ainda dita a


forma como a mulher é percebida diante da sociedade. Apesar de
toda uma evolução relacionada ao papel que as mulheres podem

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 113


exercer no meio social, elas ainda se veem como servientes à cultura
patriarcal em que estão inseridas. Os homens são comumente
valorizados pela demonstração de força e agressividade, são
ensinados a utilizar a brutalidade para resolver conflitos e é desse
modo que no fim dessa cadeia, as mulheres se tornam vítimas.
Saffioti (1995) expõe essa realidade quando explica as consequências
do sexismo para as mulheres:

As mulheres são “amputadas”, sobretudo no


desenvolvimento e uso da razão e no exercício
do poder. Elas são socializadas para desenvolver
comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os
homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver
condutas agressivas, perigosas, que revelem força e
coragem (SAFFIOTI, 1995, p. 35).

E as mulheres não são vítimas somente dos homens que


tentam ceifar suas vidas, mas também do descaso da sociedade e
do Estado. Fica ainda mais fácil perceber isso ao analisar os dados
divulgados por uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) (2019), que questiona a tolerância da
sociedade brasileira a situações de violência contra a mulher:

Quase três quintos dos entrevistados, 58%,


concordaram, total ou parcialmente, que “se
as mulheres soubessem se comportar haveria
menos estupros”. E 63% concordaram, total ou
parcialmente, que “casos de violência dentro de casa
devem ser discutidos somente entre os membros da
família”. Também, 89% dos entrevistados tenderam
a concordar que “a roupa suja deve ser lavada em
casa”; e 82% que “em briga de marido e mulher não
se mete a colher” (IPEA, 2019, p. 3).

114 Direitos Humanos


É dessa forma que se compreende o quão enraizado está esse
preconceito, diante do comportamento de uma mulher enquanto
indivíduo dentro de um relacionamento e em convívio social. Além
disso, fica claro o quanto a sociedade não consegue identificar e
perceber o problema da violência de gênero. É nesse ponto que se
pode ter a mídia como aliada.

A COBERTURA MIDIÁTICA DO FEMINICÍDIO

A imprensa pode ser uma ferramenta fundamental no combate


ao feminicídio. No entanto, de acordo com o relatório Imprensa e
Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre
Feminicídio e Violência Sexual, divulgado pelo Instituto Patrícia
Galvão (2019), a cobertura midiática apresenta diversas falhas.
Dentre elas, a abordagem romantizada, a transferência da culpa do
assassino para a vítima e a tentativa de justificar o crime. É comum
que essa vitimização do agressor, que foi levado a cometer o crime
por “ciúmes”, coloque o culpado que já está no banco dos réus, no
papel de vítima. Nesse caso, se houve ciúme, a população presume
que houve provocação e chegamos novamente no ponto em que
a mulher vítima se torna a vilã da história. Para Hauser, Castro,
Mendonça e Satler, (2017):

Não obstante, constata-se que o viés machista é o


alicerce dos crimes definidos como impulsionados
pela paixão obsessiva. O sentimento do agressor é
de posse sobre sua vítima, valor este que parte da
hierarquização de gênero. Desta maneira, a mídia
dificilmente versa quanto às reais causas dos crimes
passionais, tratando o ocorrido como consequência
de “ciúmes possessivo” ao qual o réu estava sujeito
(HAUSER, CASTRO, MENDONÇA E SATLER, 2017,
p.11).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 115


No jornalismo brasileiro como um todo, a ideia do crime
passional era bastante veiculada, antes da instituição da palavra
feminicídio. O “matar por amor” era comum e a população
não percebia muito problema nisso. Portanto, para que haja
uma conscientização generalizada nos dias de hoje, é de suma
importância também saber como falar sobre o assunto, de tal
modo que a informação se torne acessível para outras parcelas da
sociedade. Sobre o assunto, o Instituto Galvão (2016) expõe que:

A causa não é ciúme. E a culpa nunca é da vítima.


A principal causa dos crimes de violência contra as
mulheres é a naturalização da desigualdade entre os
gêneros, que leva o agressor a se sentir no direito de
possuir, controlar e ‘disciplinar’ a mulher ou a ex-
mulher, pois frequentemente esses crimes ocorrem
após a separação, quando o homem não aceita a
ruptura da relação ou não admite que ela inicie outro
relacionamento. [...] Ao noticiar um feminicídio,
raramente a imprensa estimula a reflexão sobre as
causas da violência contra as mulheres (GALVÃO,
2016, p. 1).

O relatório também revela que, nas matérias analisadas


entre os anos de 2015 e 2016, há uma falta de sensibilidade com as
vítimas. Nas matérias se percebia sempre a exibição de imagens das
vítimas – em sua grande parte mulheres negras – sem qualquer tipo
de edição. O foco é muitas vezes somente na morte da mulher, não
se tem uma contextualização e muito menos informações para que
outras mulheres que talvez sejam vítimas de violência denunciem.
Sobre as mulheres trans e travestis, o relatório afirma que:

a cobertura tende a ser ainda mais desrespeitosa.


Além de serem comuns a exposição do nome de
registro (e não do nome social) e imagens de corpos

116 Direitos Humanos


dilacerados ou jogados no chão, é frequente a
associação à suspeita de prática criminosa (roubo,
furto ou ameaça), não se abordando a discriminação
social de gênero, a transfobia ou a possibilidade de
um crime de ódio (SANEMATSU, 2019, p. 6).

É importante que, para além de apenas criminalizar, possamos


contextualizar, conceituar e caracterizar o feminicídio, de forma
que se compreenda as diversas particularidades inseridas dentro do
crime. De acordo com o relatório, a mídia tem “um papel estratégico
na formação da opinião e na pressão por políticas públicas e pode
contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate” em
relação a violência contra a mulher. É fundamental deixar claro que,
diante de um crime, o papel da imprensa deve ser apenas informar.
Contudo, é importante não somente expor para a sociedade o
crime, mas também proporcionar o debate em torno dos fatores
que levaram o crime a acontecer.

O FEMINICÍDIO DE SAMARA SILVA VIEIRA LIMA

A jovem Samara Lima tinha apenas 22 anos quando foi morta


a golpes de foice pelo companheiro, Julimar Gomes da Silva, na
zona rural de São Miguel do Tapuio. Sobre a vítima em si, pouco
é revelado nas matérias analisadas. Na matéria, tanto do Portal O
Dia, quanto do portal Meionorte.com, o foco é na motivação do
crime. Ambas as manchetes expõem a recusa da vítima em fazer as
atividades do lar, que são comumente percebidas como obrigações
da mulher.

No caso do Portal O Dia, fica explicito a forma como Samara


foi morta. Na linha fina proposta pelo O Dia é possível identificar
o motivo torpe pelo qual a vítima foi assassinada: não cumprir seu

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 117


papel como mulher, se recusando a preparar a comida e limpar a
casa.

Imagem 1

Reprodução: Portal O Dia/ Meionorte.com

A matéria publicada pelo Portal O Dia se inicia com a fala: “A


Polícia Civil do Piauí registrou mais um caso de feminicídio, desta
vez na cidade de São Miguel do Tapuio, a 227 Km de Teresina”.
É a isso que se resume toda a história da vítima: é só mais um
caso, mais uma mulher vítima do feminicídio. Antes de expor o
motivo pelo qual a vítima foi morta, vamos de encontro a frase:
“demonstra um completo descontrole do acusado”. Patrícia Galvão
(2017) aborda de forma resoluta a verdade por trás da morte de
Samara, e não tem a ver com um momento de “descontrole” do
acusado: “quando existe uma política de estado deliberadamente
machista, que coisifica a mulher, prega a sua submissão, e trata do
seu assassinato como algo normal, fruto do descontrole do casal,
isso é feminicídio. ” Além disso, a única coisa da vida de Samara que
é citada se refere a ela ter deixado dois filhos de outro casamento.
Não fica claro se ela já havia recorrido a justiça antes do ocorrido
e falta ainda uma contextualização do crime, dados relacionados

118 Direitos Humanos


a este e principalmente, meios para que outras mulheres possam
fazer denúncias.

Imagem 2

Reprodução: Portal O Dia

Na matéria publicada pelo portal Meionorte.com, percebemos


diversas similaridades com a matéria do O Dia. Nela encontramos
a descrição da forma pela qual a vítima foi morta e o motivo. Além
disso, o texto também expõe que o agressor convivia com a vítima há
apenas quatro meses e que já estavam se desentendendo há alguns
dias, no entanto não traz uma análise do que estaria causando esses
desentendimentos. Apesar de não conter dados, nem indicação
para alguma rede de apoio a mulheres vítimas de violência, o texto
traz, através da fala do delegado, a explicação do porquê o crime ser
caracterizado como feminicídio.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 119


Imagem 3

Reprodução: Meionorte.com

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para uma sociedade mais consciente, informar é a chave. A


mídia funciona como um agente social, pautado pelo povo e para o
povo, portanto, deve abordar e discutir as pautas que fazem parte
da vivência de diferentes parcelas da população, de tal modo que
cause uma reflexão. Miguel e Biroli (2010) percebem esse ideal ao
afirmar que:

A compreensão de que os meios de comunicação são


uma esfera de representação está diretamente ligada
à compreensão de que são um espaço privilegiado
de disseminação das diferentes perspectivas e
projetos dos grupos em conflito nas sociedades
contemporâneas (MIGUEL e BIROLI, 2010, p. 22).

120 Direitos Humanos


E sendo um espaço privilegiado, a cobertura midiática de
qualquer crime, nesse caso o feminicídio, deve ser feita de forma
responsável. O machismo, ponto inicial de todos os tipos de
violência contra a mulher, já enraizado em nossa sociedade deve ser
combatido. É importante também que, mesmo após sua morte, a
mídia respeite a vida da mulher, a reconheça e a nomeie. São vidas
perdidas, mas que importam. Não é somente “mais um caso de
feminicídio”, é a perda de uma mulher que viveu e tem uma história
que deve ser reconhecida. É imprescindível que haja empatia, não só
com as vítimas, mas com as famílias, que de forma alguma merecem
ter o corpo de um familiar exposto de forma desrespeitosa.

A mídia brasileira, que tem progredido consideravelmente


nesse sentido, ainda contribui para a culpabilização da vítima e
vitimização do agressor. O feminicídio não é um crime comum,
portanto deve ser retratado como tal. Nesse viés, o jornalismo
peca ao não expor as raízes históricas que desencadeiam o crime de
feminicídio no nosso contexto atual e ainda culpabilizar a vítima.

REFERÊNCIAS

BARROS, Ana Luiza; SILVA, Guilherme Augusto Giovanoni da.


(2019). FEMINICÍDIO: o papel da mídia e a culpabilização da
vítima. Jornal Eletrônico Faculdades Integradas Vianna Junior,
V.11, n.2, 302-323.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.104, de 9 de março


de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm. Acesso em: 04 de out. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 121


CAVALCANTI, Roberto Jorge Ramalho. Feminicídio e violência
incontrolável. 2019. Disponível em: https://www.jurisway.org.br/
v2/dhall.asp?id_dh=20988 Acesso em 24 de out. 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário


Brasileiro de Segurança Pública. 13º Edição. São Paulo: Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

GALVÃO, Agência Patrícia; Qual é o papel da imprensa?.


Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/
feminicidio/capitulos/qual-o-papel-da-imprensa/> Acesso em 03
de out. de 2020.

GALVÃO, Instituto Patrícia; Feminicídio: #InvisibilidadeMata.


1. ed. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2017. p. 1-184.
Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/wpcontent/
uploads/2017/03/LivroFeminicidio
_InvisibilidadeMata.pdf. Acesso em 02 de out. de 2020.

GALVÃO, Patrícia. Machismo na mídia e feminicídio na


prática: Eliza merece justiça!. Esquerda Diário: Movimento
Revolucionário dos Trabalhadores, São Paulo, fev./2017. Disponível
em: https://www.esquerdadiario.com.br/Machismo-na-midia-e-
feminicidio-na-praticaEliza-merece-justica. Acesso em: 4 out. 2020.

HAUSER, E. E; CASTRO, A. G; CASTRO, C.C; MENDONÇA N. L;


SATLER, V. F. Crimes passionais: romantização da mídia e
a tese de defesa de honra em homicídios “por amor”. Salão
do Conhecimento: a matemática está em tudo, Rio Grande do Sul,
jan./2017. Disponível em: https://publicacoeseventos.unijui.edu.
br/index.php/salaoconhecimento/article/view/7721/6458. Acesso
em: 04 out. 2020

122 Direitos Humanos


MELLO, Adriana Ramos de. Femicídio: uma análise sócio
jurídica do fenômeno no Brasil. Disponível em: http://www.
compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2013/07/
ADRIANARAMOSDEMELLO_FEMICIDIO.pdf Acesso: 03 out.
2020.

MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise


sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio
de Janeiro: LJM Mundo Jurídico, 2016. MIGUEL, Luis Felipe e
BIROLI, Flávia. Caleidoscópio convexo. Mulheres, política e mídia.
São Paulo: Editora UNESP, 2011.

MENEGHEL, Stela Nazareth; PORTELLA, Ana Paula.


Feminicídios: conceitos, tipos e cenários. Ciênc. saúde
coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3077-3086, Setembro,
2017. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S141381232017002903077&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 04 de out. 2020.

ONU, Mulheres Brasil. Diretrizes Nacionais para Investigar,


Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes
Violentas de Mulheres – Feminicídios. Brasília: ONU Mulheres,
2016. Disponível em <http://www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf>. Acesso em:
04 de out. 2020.

PINAFI, Tânia. Violência contra a mulher: políticas públicas e


medidas protetivas na contemporaneidade. Revista Histórica:,
São Paulo, v. 21, n. 21, p. 1, dez./2005. Disponível em: http://www.
historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao21/
materia03/. Acesso em: 04 out. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 123


SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

SANEMATSU, Marisa (Coord.). Imprensa e direitos das


mulheres: papel social e desafios da cobertura sobre
feminicídio e violência sexual. São Paulo: Instituto Patrícia
Galvão; Brasília: Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres
- MMFDH, 2019. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/
portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/
bibli_servicos_produtos/BibliotecaDigital/BibDigitalLivros/
TodosOsLivros/Imprensa-direitos-das-mulheres.pdf>. Acesso em:
04 de out. 2020.

124 Direitos Humanos


DIREITO COMO LITERATURA: O ROMANCE EM CADEIA DE
RONALD DWORKIN ALIADO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Geovanna da Silva Dias

Iago Sampaio de Oliveira

INTRODUÇÃO

A violência doméstica encontra-se presente nos diversos


aspectos históricos, tornando imprescindível um olhar aguçado e
crítico a cerca dessa problemática, tanto no âmbito jurídico, quanto
no social. Uma mulher sobrevivente reporta um caso de agressão a
cada quatro minutos, de acordo com dados coletados pelo Ministério
da Saúde. Infelizmente, 52% das mulheres que sofrem agressões
permanecem caladas, conforme aponta pesquisa efetivada pelo
Datafolha. Em 70% dos casos, as agressões contra mulheres são
praticadas por pessoas conhecidas e que possuem alguma relação
e vínculo afetivo com as vítimas, dos quais, em 25,9%, o agressor
é o próprio cônjuge ou ex-cônjuge. A violência doméstica se tornou
algo clichê.

Os relatos de violência doméstica não são isolados,


especiais, tampouco incomuns, como supracitado. No entanto, o
capítulo aborda e trata do caso “Maria da Penha”, que conquistou
grande notoriedade no que diz respeito ao tema, visto que diante
aos ideais patriarcais da justiça brasileira se fez preciso recorrer à
esfera externa para que houvesse resolução do caso.

O caso “Maria da Penha” se tornou a maior referência


brasileira no tocante à luta contra a violência doméstica, isso porque

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 125


ela sofreu, durante dezenove anos, agressões físicas e psicológicas
provenientes de seu ex-companheiro, o colombiano Marco Heredia.
Ele disparou um tiro contra Maria da Penha, deixando-a paraplégica
e interferiu na fiação do chuveiro elétrico com a finalidade de
eletrocutar sua esposa.
O caso se estendeu por todas as instâncias jurídicas,
evidenciando a incredulidade e inércia por parte da justiça
brasileira, uma vez que o agressor permaneceu tendo sua liberdade
assegurada, alegando irregularidades processuais; enquanto Maria
era impedida de viver a sua. É nítida a perpetuação da violência em
primeiro instante, sofrida entre quatro paredes e posteriormente,
institucionalizada, presente nos tribunais judiciários; evidenciando
um ambiente propício à impunidade e, como consequência desse
modelo, tornando as vítimas “órfãos do Estado”.

Maria da Penha relatou as agressões sofridas em um livro


intitulado “Sobrevivi... Posso contar”, por meio do qual o seu caso
ganhou grande visibilidade nacional e internacional, chegando à
esfera externa ao Direito. Posteriormente, Maria da Penha acionou
o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CESIL) e o Comitê
Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
(CLADEM), que encaminharam o caso à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos
(OEA); em 1998, quatro anos depois, a CIDH condenou o Brasil
por omissão e negligência, cabendo ao Estado se comprometer a
reformular suas leis e políticas relacionadas à violência doméstica.

O presente estudo se delineia pela seguinte problemática: é


necessário que a decisão do juiz deva ser baseada e fixada em aspectos
padronizados e em resoluções que possuem caráter genérico para se
enquadrar na continuidade do “romance em cadeia” definido por
Dworkin? Ou, reformulando a pergunta, de forma minimalista: é
possível avançar com o “romance em cadeia” partindo de decisões
clichês?

126 Direitos Humanos


EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A problemática da violência contra a mulher não é recente


e possui raízes históricas desde a era colonial brasileira, que possui
um contexto marcado pela forte estrutura hierárquica de espaço
social (CHAUI, 2000) onde os senhores do engenho ocupavam
o cargo de dominadores superiores e os negros, de submissos. A
“cultura senhorial” (CHAUI, 2000) influiu diretamente no tocante
à violência doméstica, visto que a mulher sempre foi submissa ao
homem nas antigas sociedades, cabendo a elas somente a função de
servi-los.

O Código Civil de 1916 retrata de forma evidente a relação


de dominação dos homens:

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.

Compete-lhe:

I. A representação legal da família.

II. A administração dos bens comuns e dos


particulares da mulher, que ao marido competir
administrar em virtude do regime matrimonial
adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º,
nº I, c, 274, 289, nº I, e 311).

III. direito de fixar e mudar o domicílio da família


(arts. 46 e 233, nº IV). (Vide Decreto do Poder
Legislativo nº 3.725, de 1919).

IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua


residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242,
nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III).

V. Prover à manutenção da família, guardada a dispo-


sição do art. 277

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 127


Anos mais tarde, mudanças no contexto social são
percebidas, isso devido ao fortalecimento e a difusão do movimento
feminista, buscando a igualdade de gênero e os mesmos direitos a
todos. Para Sarti (1998, p.8):

Nos anos 80 o movimento de mulheres no Brasil era


uma força política e social consolidada. Explicitou-se
um discurso feminista em que estavam em jogo as
relações de gênero. As ideias feministas difundiram-
se no cenário social do país, produto não só da atuação
de suas porta-vozes diretas, mas do clima receptivo
das demandas de uma sociedade que se modernizava
como a brasileira. Os grupos feministas alastraram-
se pelo país. Houve significativa penetração do
movimento feminista em associações profissionais,
partidos, sindicatos, legitimando a mulher como
sujeito social particular.

Em 2006, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva


sanciona a lei 11.340/06, popularmente conhecida como “Lei Maria
da Penha”, que traz um claro conceito de violência doméstica em
suas disposições gerais:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência


doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial. (Vide Lei complementar nº
150, de 2015) Ver tópico (71309 documentos)

O texto do dispositivo legal tipifica as cinco formas de


violência contra a mulher:

128 Direitos Humanos


Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer


conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal; Ver tópico (42585 documento)

II - a violência psicológica, entendida como qualquer


conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação
de sua intimidade, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica
e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº
13.772, de 2018) Ver tópico (38140 documentos)

III - a violência sexual, entendida como qualquer


conduta que a constranja a presenciar, a manter
ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da
força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça
de usar qualquer método contraceptivo ou que a
force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno
ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício
de seus direitos sexuais e reprodutivos; Ver tópico
(2125 documentos)

IV - a violência patrimonial, entendida como


qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades; Ver tópico (2942 documentos)

V - a violência moral, entendida como qualquer


conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Ver tópico (3724 documentos)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 129


É importante salientar que a Lei Maria da Penha criou
mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica, como é o
caso das medidas protetivas e a possibilidade de prisão preventiva.

Tal lei engloba também as relações homoafetivas entre


mulheres, e cabe ressaltar ainda que, não necessariamente as partes
devam ser marido e mulher, casados ou em união estável, para se
enquadrar no conceito de violência doméstica.

Em síntese, a Lei Maria da Penha proporcionou uma grande


evolução do tratamento dado às mulheres na legislação brasileira,
buscando coibir a violência doméstica e punir de forma adequada
aqueles que infringirem tal lei.

PERSPECTIVAS E CONCEITOS DWORKIANOS

Ronald Myles Dworkin foi um emblemático filósofo norte-


americano que operava, sobretudo, no âmbito do direito. Dworkin
era um rígido crítico ao positivismo e suas acepções, o filósofo
também julgava e corrigia outros pensadores como, por exemplo,
H. L. A. Hart, seu principal contraponto. Seus fundamentos
prevalecem difundidos até os dias de hoje, mostrando a relevância
ao que se refere às perspectivas e conceitos defendidos por ele.

Dworkin, além do supradito, foi responsável por criar uma


teoria do direito; que advoga que os argumentos jurídicos adequados
são baseados na mais sensata interpretação moral presumível das
práticas em atividade em uma sociedade. Para mais, o filósofo
integra à essa suposição a teoria da justiça, baseada na ideia de
igualdade de todos os indivíduos de um corpo social, que independe
de qualquer fator ou elemento externo, visando o desenvolvimento

130 Direitos Humanos


humano. O autor admite que o respeito às políticas e aos direitos
que asseguram a igualdade e apreço mútuo são fundamentais no
meio social.

ROMANCE EM CADEIA: O JUIZ E O ROMANCISTA

Dworkin, em sua obra – O Império do Direito – faz uma


comparação fértil e pertinente entre a literatura e direito, criando,
de tal maneira, um novo gênero literário artificial que denominou
de “romance em cadeia”. Nas palavras de Dworkin,

Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve


um romance em série; cada romancista da cadeia
interpreta os capítulos que recebeu para escrever
um novo capítulo, que é então acrescentado ao que
recebe o romancista seguinte, e assim por diante.
Cada um deve escrever um novo capítulo de modo
a criar da melhor maneira possível o romance em
elaboração, e a complexidade de decidir um caso
difícil de direito como integridade. (1999, p. 276)

Cada romancista pretende criar um só romance


a partir do material que recebeu daquilo que ele
próprio lhe acrescentou e (até onde lhe seja possível
controlar esse aspecto do projeto) daquilo que seus
sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar.
Deve tentar criar o melhor romance possível como se
fosse obra de um único autor, e não, como na verdade
é o caso, como produto de muitas mãos diferentes
(1999, p. 276).

O autor também garante que os juízes são, tal-qualmente,


iguais autores críticos, devendo tender a impor um propósito ao
texto, aos dados ou às tradições que estão interpretando. Além

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 131


disso, acrescenta também que um crítico exemplar possui um
modo único de lidar com o “romance em cadeia”, tratando de forma
complexa e multifacetada, já que o valor de um bom romance não
deve ser apreendido a partir de uma perspectiva clichê e genérica.
Dessa forma, se torna necessário para o juiz encontrar níveis e
correntes de sentido, ao contrário de um único e exaustivo tema.

É perceptível durante toda a construção desses espectros


teóricos no qual se refere, especialmente, ao romance em cadeia,
a tentativa de Dworkin em tornar nítida a necessidade de sempre
retomar ao enredo dessa narrativa e, acima de tudo, avançar na
criação de novos capítulos e estabelecer nexos e conexões no
direito. Como supracitado, o bom juiz é encarregado de continuar
e desenvolver o romance, devendo proceder de forma não
convencional quando houver precisão, dessa forma, se distanciando
eventualmente da monotonia e estado de estagnação dos clichês.

MOLDES DO DIREITO

Em sua teoria, Dworkin apresenta um tríplice conceitual


para o Direito, além de integrar também uma forma personificada
de cada juiz, enquadrando-os em um dos três moldes do direito.

O primeiro modelo de direito a ser tratado na obra – O


Império do Direito – é o do “convencionalismo”. O conceito do
“convencionalismo” parte do ponto de vista da grande maioria dos
leigos e conservadores no âmbito do direito, nele é dito que o direito
se basta, sendo retrógrado e, consequentemente, transforma a
tarefa dos juízes em algo mecânico e robótico. Dworkin afirma que,

O convencionalismo é uma concepção - uma


interpretação - da prática e da tradição jurídicas;

132 Direitos Humanos


seu destino depende da nossa capacidade de ver, em
nossa prática convenções do tipo que ele considera
como fundamentos exclusivos do direito. (1999, p.
148)

O juíz convencionalista que exerce seu poder


discricionário para criar um novo direito deve estar
particularmente atento a esse risco, pois seu poder
de alterar o direito já existente é bastante limitado.
(1999, p. 162)

Qualquer um que participe da criação do direito deve


preocupar-se com a coerência de estratégia. Ele deve
cuidar para que as novas regras que estabelece se
ajustem suficientemente bem as regras estabelecidas
por outros, ou que venham a ser estabelecidas no
futuro, de tal modo que todo conjunto de regras
funcione em conjunto e torne a situação melhor,
em vez de tomar direção contrária e piorar as coisas.
(1999, p. 162)

Além do supradito, o principal e central tópico da concepção,


mesmo assim, será dependente do ideal político das expectativas
garantidas, e se o ideal político possui caráter regressista, o direito
irá permanecer estático e cristalizado, e os juízes serão somente
seus aplicadores.

A segunda concepção de direito é o “pragmatismo”, que


é, conforme Dworkin, uma acepção cética e descrente do próprio
direito, pois ignora e exclui a existência de pretensões juridicamente
tuteladas genuínas, não técnicas e estratégicas. O “pragmatismo”:

Não rejeita moral, nem mesmo as pretensões morais


e políticas. Afirma que, para decidir os casos, os juízes
devem seguir qualquer método que produz aquilo
que acreditam ser a melhor comunidade futura,
e ainda que alguns juízes pragmáticos pudessem
pensar que isso significa uma comunidade mais rica,
mais feliz ou mais poderosa, outros escolheriam uma

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 133


comunidade com menos injustiças, com a melhor
tradição cultural e com aquilo que chamamos de alta
qualidade de vida (DWORKIN, 1999, p. 195).

Como o próprio autor explicita, o “pragmatismo” tende


ao erro, pois “um pragmático deveria chegar à sua concepção
de modo tão abertamente pragmático quanto lhe permita sua
ousadia, disfarçando apenas aqueles elementos - sua doutrina
da obsolescência, talvez - que a comunidade não está totalmente
preparada para aceitar” (DWORKIN, 1999). Dessa forma, é possível
notar a falta de concretude nesse modelo de direito expandindo
ainda mais a insegurança jurídica, trazendo possíveis fendas para a
interpretação jurídica arbitrária.

Finalmente, o terceiro formato: o “direito como integridade”.


Este solicita que os juízes admitam e aceitem, na medida do possível,
que o direito possua estrutura coerente formada por um conjunto
coeso de princípios sobre a justiça, equidade e devido processo legal
adjetivo. O autor pede, ainda, que seja admitida a aplicação desses
princípios em novos casos, considerando que ao fim a situação de
cada pessoa seja equitativa e justa conforme as mesmas normas. O
autor explana que:

O direito como integridade, então, exige que o juíz


ponha à prova sua interpretação de qualquer parte
da vasta rede de estruturas e decisões políticas de
sua comunidade, perguntando-se se ela poderia
fazer parte de uma teoria coerente que justificasse
essa rede como um todo. Nenhum juíz real poderia
impor nada que, de uma só vez, se aproxime de uma
interpretação plena de todo direito que rege sua
comunidade. É por isso que imaginamos um juíz
hercúleo, dotado de talentos sobre-humanos e com
um tempo infinito a seu dispor. Um juíz verdadeiro,
porém, só pode imitar Hércules até certo ponto.
Pode permitir que o alcance da sua interpretação se

134 Direitos Humanos


estenda desde os casos imediatamente relevantes
até os casos pertencentes ao mesmo campo ou
departamento geral do direito, e inserida desdobra-
se ainda mais, até onde as perspectivas lhe pareçam
mais promissoras. Na prática, mesmo esse processo
limitado será em grande parte inconsciente: um
juíz experiente terá um conhecimento suficiente do
terreno em que se move seu problema para saber,
instintivamente, qual interpretação de um pequeno
conjunto de casos sobreviveria se os limites aos quais
deve ajustar-se fossem ampliados. (1999, p. 294)

Segundo o direito como integridade, as proposições


jurídicas são verdadeiras se constam ou se derivam,
dos princípios de justiça, equidade e devido
processo legal que oferecem a melhor interpretação
construtiva da prática jurídica da comunidade.
(1999, p. 272)

O direito como integridade é, portanto,


mais inflexivelmente interpretativo do que o
convencionalismo ou o pragmatismo. Essas últimas
teorias se oferecem como interpretações. São
concepções de direito que pretendem mostrar nossas
práticas jurídicas sob sua melhor luz, e recomendam,
em suas conclusões pós-interpretativas, estilos ou
programas diferentes de deliberação judicial. (1999, p.
272)

Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da


integridade decidem casos difíceis tentando encontrar,
em algum conjunto coerente de princípios sobre os
direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação
da estrutura política e da doutrina jurídica de sua
comunidade. Tentam fazer o melhor possível essa
estrutura e esse repositório complexos. Do ponto de
vista analítico, é util distinguir os diferentes aspectos
ou dimensões de qualquer teoria funcional. Isto incluirá
convicções sobre a adequação e justificação. As convicções
sobre a adequação vão estabelecer a exigência de um
limiar aproximado a que a interpretação de alguma
parte do direito deve atender para tornar-se aceitável.
(1999, p. 305)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 135


A partir das alegações e dos conceitos supracitados é possível
chegar em uma personagem extremamente aclamada por Dworkin:
o “juiz Hércules”. O “juiz Hércules” é o modelo ideal de técnico do
direito e o mesmo deve gastar suas energias e esforços em busca da
melhor e única resposta correta possível, baseado no próprio direito
e em casos difíceis. Seu suporte e decisão devem ser estabelecidos a
partir dos princípios.

“Hércules responde a esses impulsos antagônicos procurando


uma interpretação construtiva da compartimentalização. Tenta
encontrar uma explicação da prática de dividir o direito em ramos
diversos que mostrem essa prática em sua melhor luz” (DWORKIN,
1999). E através desses esforços realizados pelo “juiz Hércules”, o
romance em cadeia é construído, criando novos capítulos para a
história do direito.

4. INTEGRAÇÃO: CASO CONCRETO E CONVICÇÕES


DWORKIANAS

Como já antes apresentado e tratado ao longo do capítulo, o


caso “Maria da Penha” é considerado, de fato, deveras importante
para todo cenário e contexto brasileiro, chegando a ser reconhecido
até internacionalmente. Fazendo uma integração aos ideais do
filósofo Dworkin, é visível que todo o contexto histórico, social e
jurídico relacionado ao caso concreto se conectam e conversam com
a teoria dworkiana.

A violência doméstica sempre deixou marcas que perpetuam


até os dias mais recentes. É notório que durante toda a construção
histórica brasileira, o machismo sempre esteve presente como
base forte em toda conjuntura social, trazendo como consequência

136 Direitos Humanos


disso condições e estados de opressão e tirania que partem desde o
âmbito privado até as quatro paredes do judiciário.

O caso “Maria da Penha” é um exemplo expressivo da


violência que permeia o cotidiano dos lares brasileiros. No entanto,
este não é um caso raro ou isolado, pois, como supradito, esse tipo
de narrativa se repete de forma recorrente. Após ser vítima de
agressões físicas e psicológicas praticadas pelo seu ex-marido, Maria
da Penha recorreu ao sistema judiciário, e para sua infelicidade as
decisões não tiveram eficácia, pois o agressor permaneceu impune
de seus crimes.

As práticas vistas e as decisões dos juízes referentes ao caso


eram de feitio mecânico e comum. Dessa forma, não havia nenhuma
continuação do “romance em cadeia”, existindo apenas a repetição
dos mesmos temas e enredos, nos quais os criminosos mantinham-
se imunes.

O “romance em cadeia” na esfera jurídica, sobretudo no


horizonte que abarca a violência doméstica, era escrito por juízes
que seguiam a hábitos automáticos e cobertos pelo machismo que
dominava toda a sociedade. Destarte, é possível perceber a presença
da figura derivada das concepções de Dworkin: o juiz convencional,
oriundo do direito convencional. O direito convencional, por
Dworkin:

“O direito é direito. Nâo é o que os juízes pensam ser,


mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo,
não modificá-lo à sua própria ética ou política.” Esse
é o ponto de vista da maioria dos leigos e o hino dos
conservadores em questões de direito. Lido palavra
por palavra, não diz quase nada, e, sem dúvida, nada
que seja controverso. Nos casos que aqui usamos
como exemplos, todos concordavam que o direito é o
direito e deve ser aplicado; a divergência apenas dizia
respeito àquilo em que consistia de fato o direito.
Mas o lema, apesar de mal formulado, significa algo

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 137


mais que uma banalidade; representa uma atitude
que é importante e aberta ao desafio. Ei-la: a força
coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando
alguma decisão política do passado assim o autorizou
explicitamente, de tal modo que advogados e juízes
competentes estarão todos de acordo sobre qual foi
a decisão, não importa quais sejam suas divergências
em moral e política (1999, p. 141).

Dessa forma, o direito no âmbito nacional se mostrava


conservador e repetitivo; as decisões dos tribunais eram monótonas
e isso respingava e reincidia nos julgamentos das vítimas de
violência doméstica. Isso ocorreu no caso “Maria da Penha”, que se
prolongou por todas as instâncias jurídicas, revelando a descrença
relacionada à parte da justiça brasileira, visto que o agressor conteve
sua liberdade legitimada e garantida, fazendo com que o “romance
em cadeia” estagnasse no mesmo capítulo obsoleto e convencional.

No entanto, Maria da Penha, apesar dos diversos obstáculos,


ainda permanecia na luta pelo direito. O “plot twist” dessa narrativa
ocorreu no momento em que Maria expôs os momentos de terror
e violência que havia sofrido em seu livro intitulado: “Sobrevivi...
Posso contar”. O feito foi para ela como um grito de denúncia contra
a violência que assolava os lares e os tribunais brasileiros.

Através de sua obra, Maria atinge visibilidade e, como


resultado, seu caso torna-se perceptível à conjunção e jurisdição
externa. Assim sendo acionado, consequentemente, o CESIL,
além do CLADEM, que encaminharam o caso para a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos, em 1998, escancarando que sempre há saída dentro do
próprio direito. Após quatro anos, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA condena o Estado brasileiro por omissão
e negligência, cabendo ao Brasil se comprometer a reformular suas
leis e políticas relacionadas à violência doméstica.

138 Direitos Humanos


Por meio da interferência externa, sobretudo, através da
ação da OEA foi possível se chegar a um desfecho alternativo e, sem
dúvidas, distinto ao que era costumeiro. A decisão internacional
foi responsável por analisar e averiguar o caso de forma holística,
trazendo e buscando princípios como, por exemplo, justiça ao caso
e equidade para a comunidade, antes não vistos no trâmite jurídico
de decisões brasileiras, além de acarretar no devido processo legal,
como uma espécie de efeito advindo da melhor resposta possível.

A esfera internacional não foi descartada, esta agiu como


um mecanismo de correção de princípios, garantido o progresso
do romance, no qual a instituição externa prescreveu e a interna
acatou suas ascendências. Como supradito, a melhor luz para o caso
foi obtida pelo sistema exterior, que de forma simbólica pode ser
entendido e conceituado, usando nomenclaturas de Dworkin, pelo
insigne “juiz Hércules”.

CONCLUSÃO

Diante da problemática abordada, torna-se notória a


forte influência do patriarcalismo no âmbito social e jurídico,
evidenciando uma prolongação da violência sofrida pelas mulheres
e continuação automática das mesmas ações. Porém, no final, é
possível chegar à conclusão de que nem sempre um bom romance
é aquele que se repete e conta as mesmas histórias, de quando em
quando, é preciso que haja fuga do convencional e do cansativo
enredo monotônico para que aconteça a criação de novos capítulos.

O juiz, assim como o romancista, deve encontrar-se disposto


a novas possibilidades, principalmente em casos dificultosos.
Assim, é factível constatar que o “romance em cadeia” não precisa,
necessariamente, ser um simples clichê; há inúmeras possibilidades

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 139


para a continuação de uma narrativa, e assim são os incontáveis
haveres para subsequência de um romance.

Aliando o caso às contribuições de Ronald Dworkin, é possível


alcançar um entendimento baseado em seus conceitos teóricos,
enfatizando os juízes convencional e Hércules, a importância do
direito como uma narrativa integral e os princípios orientadores do
direito, resultando, assim, na continuidade do romance em cadeia,
metáfora defendida por Dworkin.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Convenção Interamericana dos direitos humanos.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/
D0678.htm. Acesso em: 28 de nov. 2019.

BRASIL, Lei N° 11.340 de 07 de agosto de 2006. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2004-2006/2006/
Lei/L11340.htm. Acesso em 28 de nov. 2019.

BRASIL. Lei N° 3.071 de 01 de janeiro de 1916. Código Civil de


1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
L3071.htm. Acesso em: 25 de nov. 2019.
Brasil registra 1 caso de agressão a mulher a cada 4
minutos, mostra levantamento. Folha de S. Paulo, São Paulo,
9 de set. de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/2019/09/brasil-registra-1-caso-de-agressao-a-mulher-a-
cada-4-minutos-mostra-levantamento.shtml. Acesso em: 2 de dez.
2019.

140 Direitos Humanos


CHAUI, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São
Paulo: FPA, 2000DWORKIN, Ronald. “Levando os Direitos a
Sério”. Trad. Luís Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005.

DWORKIN, Ronald. “O Império do direito”, São Paulo: Martins


Fontes, 2007.
Em 70 dos casos de violência, mulher conhece agressor. G1
globo, São Paulo, 28 de nov. de 2012. Disponível em: < http://
g1.globo.com/brasil/noticia/2012/11/em-70-dos-casos-de-
violencia-mulher-conhece-agressor.html>. Acesso em: 26 de nov.
2019.

FERNANDES, M. P. M. Sobrevivi... posso contar. Fortaleza:


Armazém da Cultura, 2010.

Maioria das mulheres não denuncia agressor à polícia ou


à família, indica pesquisa. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23
de fev. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/2019/02/maioria-das-mulheres-nao-denuncia-agressor-
a-policia-ou-a-familia-indica-pesquisa.shtml. Acesso em: 25 de nov.
2019.

SARTI, Cynthia A. O início do feminismo sob a ditadura no


Brasil: o que ficou escondido. XXI Congresso Internacional da
LASA (Latin American Studies Association), The Palmer House
Hilton Hotel, Chicago, Illinois, p. 12, set. 1998. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lasa 98/Sarti.pdf. Acesso
em: 27 de nov. 2019.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 141


ENJAULAR SERES HUMANOS: ABOLICIONISMO PENAL E
OS TRÊS DOGMAS DO PENALISMO

Lucas Villa12

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é uma sociedade que enjaula


seres humanos. Cerca de onze milhões de pessoas estão enjauladas,
nesse momento, ao redor do mundo13. Este capítulo tem por
primeiro objetivo reaprender o espanto com essa curiosa prática e
questionar-se acerca do enjaulamento de seres humanos, mormente
buscando responder a três perguntas: 1) Quem são os enjaulados?
2) Por que são enjaulados? 3) Para que são enjaulados?

As respostas tradicionais a essas perguntas, assim


como os discursos teóricos que legitimam o poder punitivo e,
especificamente, a pena privativa de liberdade14, assentam-se, de
forma aberta ou não, em três dogmas que habitam veladamente o
subterrâneo do discurso penal e que se pretende trazer à superfície.

O primeiro desses dogmas é a crença de que existe uma


12
Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor da Universidade Federal do Piauí
(Departamento de Ciências Jurídicas e Mestrado Profissional em Filosofia).
13
Os números são do World Prison Brief e podem ser acessados em https://www.
prisonstudies.org/sites/default/files/resources/downloads/wppl_12.pdf (acesso em
21/09/2020).
14
Que aqui será tratada por enjaulamento de seres humanos, substituindo os eufemismos
clássicos da linguagem penal pelo uso, inspirado em Nietzsche, da hibérbole como
estratégia política de transgressão. Sobre o uso da figura da hipérbole em Nietzsche,
cf. NEHAMAS, Alexander. Nietzsche: life as literature. Harvard: Harvard University
Press, 2002.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 143


relação de causa e efeito entre crime e pena, desviação e castigo, ou
seja, de que ao crime, como causa, corresponde a pena, enquanto
consequência. As principais chaves teóricas que serão utilizadas
para desmascarar essa superstição da relação causal entre crime
e castigo serão a criminologia da reação social e o interacionismo
simbólico, com os estudos sobre os processos de criminalização
e as teorias do etiquetamento (labeling approach). A forma com
que se lida com este dogma tem muito a ver com a forma como se
responde às duas primeiras perguntas aqui formuladas (quem são
os enjaulados? Por que são enjaulados?).

O segundo dogma é o mito da inevitabilidade da pena, a


fábula hobbesiana de que, sem poder punitivo estatal, as sociedades
se dissolvem em vingança privada generalizada. Do interior desta
fantasia exsurge outra: a de que o enjaulamento de seres humanos
é também inevitável, pois não haveria alternativa viável à pena de
prisão. Este dogma relaciona-se com a forma como se responde às
duas últimas perguntas (por que enjaulamos pessoas? Para que
as enjaulamos?). Tal dogma será analisado pelo marco teórico da
antropologia política.

O terceiro dogma é o mito da humanização da pena, a crença


de que a pena privativa de liberdade (enjaulamento) faz parte do
projeto teórico iluminista de humanização do direito penal, o que
leva a que se sustente que enjaular pessoas é uma maneira humana
de lidar com situações problemáticas. Também este dogma tem
a ver com a forma como respondemos às duas últimas perguntas
formuladas (por que enjaular? Para que enjaular?). Este dogma será
analisado com as lentes genealógicas da história da pena e do poder
punitivo, mormente a partir de Michel Foucault.

Após a análise do que aqui se nominou três dogmas do


penalismo e, acrescentando aos marcos teóricos já mencionados
uma leitura psicanalítica das “funções” do enjaulamento, proporei
novas respostas aos três quesitos originários, (quem são os

144 Direitos Humanos


enjaulados? Por que são enjaulados? Para que são enjaulados?),
para, então, sintetizar todos os marcos teóricos em uma postura
final a ser sustentada: o abolicionismo penal como estilo de vida
e como proposta de um novo vocabulário para redescrever velhas
práticas.

ENJAULAR SERES HUMANOS: QUEM? POR QUÊ? PARA QUÊ?

São simples as respostas que se costuma dar aos três


questionamentos propostos. Quem são os enjaulados? Os
criminosos. Por quê? Por que cometeram crimes. Para quê?
Para evitar o crime. Para garantir a ordem social. Para que sejam
ressocializados. Para garantir a vigência da norma. Para que se
restabeleça a justiça.

Estas respostas, direta ou indiretamente, derivam da crença


em três dogmas que são fruto da fantasia do penalista e que são
instrumentais para os discursos legitimadores do poder punitivo
e do enjaulamento de pessoas: a) O dogma da relação causal entre
crime e castigo: “a pena é a resposta estatal ao delito” / “o delito é
causa à qual a pena corresponde como efeito” / “pune-se aqueles que
são culpados por praticar delitos”. b) O dogma da inevitabilidade da
pena (fábula hobbesiana): “sem poder punitivo estatal a sociedade
se dissolve em guerra de todos contra todos” / “alguém precisa
sofrer para que a sociedade exista” / “não há alternativas à pena
privativa de liberdade (enjaulamento)”. c) O dogma da humanização
da pena: “a pena privativa de liberdade (enjaulamento) faz parte
do projeto teórico iluminista de humanização do direito penal”
/ “a pena privativa de liberdade (enjaulamento) representa um
salto evolutivo na história das penas” / “o enjaulamento possui
fundamento teórico” / “a pena possui funções positivas”.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 145


Estes dogmas, no entanto, já foram desmascarados pelas
ciências sociais, antropológicas e históricas. Ocorre que o jurista,
que tradicionalmente padece de certo isolamento científico, fecha-se
em sua própria realidade e deixa de dialogar, conhecer e ouvir o que
os outros campos do saber lhe têm a dizer. O jurista normalmente
só dialoga com o jurista e habita o mundo fantasioso da norma.
É impossível pretender independência e separação entre direito
penal, política criminal e criminologia. O direito penal produz o
saber que tem por finalidade embasar as decisões judiciais segundo
um programa traçado pela política-criminal, programa este, por sua
vez, concebido com base nos dados e diagnósticos levantados pela
criminologia. Um saber penal que se pretenda alienado à questão
do poder (política) e aos dados da realidade social será sempre um
saber fantasioso, uma ilusão, um delírio ou mesmo uma alucinação.

Assim, as teorias na seara da dogmática penal (direito penal)


não podem se refugiar na absoluta abstração do “dever ser”,
pois o “dever ser”, por definição, é algo que “não é”. Pretender
fundamentar uma ciência sobre aquilo que “não é” é fundamentá-la
sobre a mentira, baseá-la em dados sociais falsos ou inventados. Os
discursos sobre as funções da pena estão, no entanto, ancorados
na abstração destes três dogmas que não encontram qualquer
relação com os dados que se pode colher da realidade social. É
preciso, assim, trazer à superfície estes dogmas que repousam no
subterrâneo do discurso jurídico-penal. É preciso fazê-los falar e,
principalmente, desmontar sua palavra e deixar às escâncaras sua
natureza supersticiosa, irracional, mística e, principalmente, cruel.

146 Direitos Humanos


OS TRÊS DOGMAS DO PENALISMO

O dogma da relação causal entre crime e pena

Pensar a pena como consequência do crime é lugar comum


do discurso jurídico-penal. Ao crime, como causa, corresponde a
pena, como efeito. Graças à crença nesse dogma se imagina que as
pessoas sobre quem incidem as penas são aquelas que cometeram
delitos. Essa ideia, longe de real, é uma verdadeira alucinação e é
em razão dessa alucinação que imaginamos que a pena incide sobre
aqueles que delinquiram e porque delinquiram.

À atividade de escolha daqueles a quem se imputará uma


infração de natureza penal, presente em todas as sociedades
contemporâneas que institucionalizaram o poder punitivo,
habituou-se chamar “criminalização”. Esse processo é levado a
cabo pelo conjunto de agências que compõem o sistema penal.
Estudar como se dá o processo de criminalização tem sido o foco
da criminologia desde a década de sessenta, do século XX, quando
se abandonou o paradigma etiológico (busca pelas causas do crime)
em favor do paradigma da reação social.

O processo de criminalização ocorre, segundo Eugenio


Raúl Zaffaroni (2011, p. 7), em dois momentos, denominadas
criminalização primária e criminalização secundária. Criminalização
primária “es el acto y el efecto de sancionar una ley penal material, que
incrimina o permite la punición de ciertas personas”. Trata-se de criar
as leis penais incriminadoras, atividade exercida, basicamente, pelo
poder legislativo e que traça um programa que deve ser cumprido
por outras agências do sistema penal (polícias, judiciário, ministério
público...). Já a criminalização secundária

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 147


Es la acción punitiva ejercida sobre personas concretas,
que tiene lugar cuando las agencias policiales detectan
a una persona, a la que se atribuye la realización de
cierto acto criminalizado primariamente, la investiga,
en algunos casos la priva de su libertad ambulatoria, la
somete a la agencia judicial, ésta legitima lo actuado,
admite un processo (o sea, el avance de una serie de
actos secretos o públicos para establecer si realmente ha
realizado esa acción), se discute publicamente si la ha
realizado y, en caso afirmativo, admite la imposición de
una pena de cierta magnitud que, cuando es privativa
de la libertad ambulatoria de la persona, es ejecutada
por una agencia penitenciaria (prisionización)
(ZAFFARONI, 2011, p 7).

Assim, a criminalização primária determina as condutas que


devem ser consideradas como crime e submetidas à pena, enquanto
as agências executivas responsáveis pela criminalização secundária
procuram realizar esse programa, fazendo incidir o poder
punitivo sobre aqueles que praticam as condutas primariamente
criminalizadas.
Ocorre que a criminalização primária é um projeto legal tão
enorme que, em sentido estrito, abarcaria a quase toda a população
(ZAFFARONI, 2012, p. 22), vez que a quantidade de crimes tipificada
pelas leis penais e a quantidade de pessoas que praticam as condutas
típicas são incomensuráveis. O programa traçado pela criminalização
primária é, portanto, estruturalmente irrealizável15. É impossível
para as agências de criminalização secundária, mormente para a
polícia, investigar todas as condutas criminalizáveis praticadas por
todas as pessoas, em razão de sua limitada capacidade operativa
(limitação de pessoal e de recursos). Assim, é natural que essas
agências promovam uma seleção criminalizante, levando a cabo

15
La criminalización primaria es un programa tan inmenso, que nunca y en ningún país se
pretendió llevarlo a cabo en toda su extensión, y ni siquiera en parte considerable, porque es
inimaginable (ZAFFARONI, 2011, p. 7).

148 Direitos Humanos


apenas uma ínfima porção do programa traçado pela criminalização
primária. Incube a elas, então, decidir de quem irão se ocupar, ou
seja, quem são as pessoas que serão criminalizadas16.

Essa seleção promovida pelas agências policiais não se dá,


entretanto, em termos de critérios traçados exclusivamente por
elas próprias, senão também por outras agências, inclusive as
de comunicação social, assumindo a mídia papel de destaque na
tarefa de forjar o estereótipo da pessoa suspeita, do criminoso em
potencial, visto enquanto inimigo da sociedade. A esse estereótipo
do inimigo, construído nos meios de comunicação e no imaginário
popular, soma-se outro critério orientador da seletividade da
criminalização secundária, decorrente das próprias limitações
operativas (quantitativas e qualitativas) das agências policiais:
opta-se por investigar o que é mais fácil. Em geral, esta escolha pelo
mais simples significa direcionar os esforços investigativos: a) às
“obras ilícitas toscas”, ou seja, aos crimes grosseiros, praticados
sem qualquer sofisticação, cuja detecção se torna mais fácil; b) às
pessoas sobre quem a incidência do poder punitivo cause menos
problemas, por sua impossibilidade de acesso ao poder político ou à
comunicação de massa (ZAFFARONI, 2011, p. 9).

Os fatos mais grosseiros cometidos por pessoas com menos


acesso à comunicação e educação são projetados à opinião pública
como os únicos delitos e os autores dessas condutas como os únicos
delinquentes. Cria-se, assim, um estereótipo de criminoso que é
difundido maciçamente junto ao imaginário coletivo, etiquetando
como o delinquente potencial, em geral, os homens jovens vindos de
classes sociais mais carentes (pobres), habitantes da periferia, ligados
a grupos étnicos historicamente desempoderados (negros e pardos)

16
“Esto responde a que las agencias de criminalización secundaria, dada su pequeña capacidad
frente a la inmensidad del programa que discursivamente se les encomienda, deben optar entre
la inactividad o la selección. Como la primera acarrearía su desaparición, cumplen con la regla
de toda burocracia y proceden a la selección. Este poder corresponde fundamentalmente a las
agencias policiales” (ZAFFARONI, 2011, p. 8).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 149


e fora dos padrões estéticos dominantes17. A tomada de consciência
proporcionada por esta perspectiva criminológica, tributária do
interacionismo simbólico e das teorias do etiquetamento (labeling
approach), promoveu um câmbio de paradigmas nos estudos
criminológicos, inaugurando o chamado paradigma da reação
social. A criminologia passa a estar mais comprometida com o
desmascaramento do processo de criminalização e sua seletividade
do que com a tradicional abordagem etiológica (positivista) de
quem procura pelas “causas” da delinquência.

Essa seletividade da criminalização secundária, projetada


pela comunicação massiva, cria no imaginário popular a ideia de
um sistema prisional povoado por criminosos extremamente
perigosos, autores de delitos graves e bárbaros (homicídios,
estupros), quando, na realidade, à grande maioria dos apenados
foram atribuídas obras ilícitas toscas com fins lucrativos (crimes
contra o patrimônio) ou crimes, em sua essência, de duvidosa
tipicidade material (como o tráfico de substâncias entorpecentes).
Assim, provoca-se uma difusão criminalizadora epidêmica que
atinge somente àqueles com baixa imunidade ao poder punitivo, ou
seja, os que se encontram em estado de vulnerabilidade em relação às
agências de criminalização secundária porque (a) suas características
pessoais se enquadram nos estereótipos criminais (pobre, negro,
imigrante, feio, jovem...); (b) seu treinamento social (educação) só
lhes permite produzir obras ilícitas toscas, de fácil detecção; (c) seu
etiquetamento como “criminosos em potencial” produz a assunção
do papel social que lhes é atribuído, fazendo com que a imagem
difundida sobre si transforme-se em suas próprias autoimagens,
nas quais mergulham, terminando por comportar-se segundo é
esperado que se comportem (ou seja, praticando crimes).O sistema

17
“Por tratarse de personas desvaloradas, es posible asociarles todas las cargas negativas que
existen en la sociedad en forma de prejuicio, lo que termina fijando una imagen pública del
delincuente, con componentes classistas, racistas, etários, de género y estéticos” (ZAFFARONI,
2011, p. 9).

150 Direitos Humanos


penal opera, portanto, na forma de um filtro18. Essa seletividade do
processo de criminalização é estrutural e, portanto, não há sistema
penal no mundo em que a regra geral não seja a criminalização
secundária segundo a posição de vulnerabilidade do candidato a ser
criminalizado.
Em resumo: os selecionados pelo sistema penal para
submissão ao enjaulamento não são os criminosos, pois crimes
praticamente todos os cidadãos cometem frequentemente (dirigir
sob efeito de álcool, baixar mídias na internet em violação aos
direitos autorais, fotocopiar livros em sua integralidade, etc.). A
pena não é simplesmente uma consequência da conduta descrita
como criminosa. Os enjaulados não são aqueles que cometem
crimes, senão aqueles que, vindos de parcelas vulneráveis da
população, se enquadram em determinada imagem e em um
estereótipo socialmente difundido do delinquente. São aqueles em
quem a etiqueta de delinquente adere com facilidade.

Além disso, no caso da América Latina, mais de 70% da


população carcerária é composta por presos sem condenação
(provisórios). Assim, não se pode dizer que os enjaulados são
aqueles que foram condenados pela prática de delitos ou que
cometeram delitos, já que a maioria deles sequer foi julgada para
que se demonstrasse ter havido, de sua parte, cometimento de
ilícito. São presumidamente inocentes.
18
(a) El poder punitivo criminaliza seleccionando, por regla general, a las personas
que encuadran en los estereotipos criminales y que por ello son vulnerables, por ser
sólo capaces de obras ilícitas toscas y por asumirlas como roles demandados según los
valores negativos – o contravalores – asociados al estereotipo (criminalización conforme
a estereotipo). (b) Con mucha menor frecuencia criminaliza a las personas que, sin
encuadrar en el estereotipo, hayan actuado con bruteza tan singular o patológica que
se han vuelto vulnerables (autores de homicídios intrafamiliares, de robos neuróticos,
etc.) (criminalización por comportamento grotesco o trágico). (c) Muy excepcionalmente,
criminaliza a alguien que, hallándose en una posición que lo hace prácticamente
invulnerable al poder punitivo, lleva la peor parte en uma pugna de poder hegemónico
y sufre por ello una caída en la vulnerabilidad (criminalización por retiro de cobertura)
(ZAFFARONI, 2011, p. 11).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 151


Por fim, vale tomar em conta a advertência sempre presente
na obra de Louk Hulsman (2003) acerca das chamadas “cifras
negras”. Há muito, aqueles que trabalham com “dados estatísticos”
acerca da questão penal têm se dado conta de que inúmeros
eventos criminalizáveis denunciados à polícia nunca chegam aos
tribunais. Essa diferença entre os crimes denunciados (estatísticas
da polícia) e os crimes judicializados (estatísticas dos tribunais) é
chamada de cifra negra. Segundo Hulsman, “a grande maioria de
eventos criminalizáveis (‘sérios’ e ‘menores’) pertence à cifra negra”
(HULSMAN, 2003, p. 204), de maneira que à grande maioria das
pessoas que praticam delitos não corresponde, como resposta,
sequer uma ação penal, que se dirá efetivamente uma pena. Não é
por meio do sistema penal, então, que a sociedade lida com a maior
parte das situações problemáticas criminalizáveis.

Em suma: Não há uma relação causal entre cometer crime e


sofrer pena. Os enjaulados não são aqueles que cometeram crimes
e não estão enjaulados porque cometeram crimes. Os enjaulados
são os vulneráveis e estão enjaulados porque se enquadram em
determinado estereótipo que lhes permite ser rotulados como
delinquentes e capturados pelo sistema penal sob esse pretexto.

O dogma da inevitabilidade da pena

Eis o segundo grande dogma do penalista: sem poder punitivo


estatal, as sociedades se dissolvem em violência generalizada. Toda
a doutrina penal moderna está construída em torno do mito da
pena inevitável. A instituição do castigo estatal como resposta à
conduta desviante seria, justamente, o grande marco que separa as
sociedades “civilizadas” das “primitivas”: “o homem abre caminho
da selvageria à civilização com a regra de castigo na mão” (ALAGIA,
2013, p. 19).

152 Direitos Humanos


A origem desse dogma está, provavelmente, no que chamo
“fábula hobbesiana”. Para Hobbes (2008), em estado de natureza,
o homem vive em permanente guerra de todos contra todos, de
maneira que, mais do que por uma suposta irracionalidade do
selvagem, as sociedades primitivas estariam condenadas à violência
generalizada pela falta de governo e de poder punitivo. O homem,
seja ele selvagem ou civilizado, seria governado por paixões e afetos
cegos que o inclinam à vingança19. Essa crença, que Alejandro
Alagia (2013) denominou “o mito da pena inevitável”, povoa até
hoje o imaginário dos penalistas e é lugar comum nos tratados de
direito penal. Ocorre que essa fantasia do penalismo também já
foi desmascarada pela antropologia desde a década de sessenta do
século XX. Estudos de antropólogos e etnólogos que observaram de
dentro várias sociedades tribais da América e da África esclarecem
que não é a vingança a regra para solução de conflitos nas sociedades
sem estado, mas a composição e a reparação20. A regra geral da
sociedade primitiva não é a da vingança de todos contra todos, mas
a do intercâmbio de todos com todos, como já esclarecera Marcel
Mauss (2010). Essa composição por meio do intercâmbio, que é a
forma natural de solução dos conflitos nessas sociedades, é atingida
sem necessidade de intervenção de qualquer autoridade instituída
de poder. Por vezes, a composição pode ser intermediada pela
figura do chefe da tribo, porém este chefe é um chefe sem poder, ou
cujo poder reside apenas na palavra e na capacidade que possui de
19
Daí que, tanto ele como Spinoza, seu contemporâneo, justificam a soberania punitiva
na ameaça de anarquia. Nessa esteira também seguem John Locke e os demais adeptos
da teoria contratualista, bem como os neocontratualistas do século XX como John Rawls
e Robert Nozick, sempre partindo do pressuposto de que é necessário castigar para que a
sociedade exista.
20
Nesse sentido, por exemplo, CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado.
São Paulo: Cosac Naify, 2013. MAYR, Lucy. El gobierno primitivo. Buenos Aires:
Amorrortu, 1970. DESCOLA, Philippe. Las lanzas del crepúsculo: relatos jíbaros. Alta
Amazonia. México: Fondo de Cultura Económica, 2005. SAHLINS, Marshall. La ilusión
occidental de la naturaliza humana. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.
EVANS-PRITCHARD, E. Los nuer. Barcelona: Anagrama, 1992. FORTES, Meyer; EVANS-
PRITCHARD, Sistemas politicos africanos. Barcelona: Anagrama, 1978; entre outros.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 153


pacificar pela retórica21. Sobre esse papel do chefe nas sociedades
tribais, esclarece Pierre Clastres (2013, p. 218):

A tribo não possui um rei, mas um chefe que não é


chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente
que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade,
de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de
dar uma ordem. O chefe não é um comandante,
as pessoas da tribo não têm nenhum dever de
obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder,
e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem
não prefigura em nada aquela de um futuro déspota.
Certamente não é da chefia primitiva que se pode
deduzir o aparelho estatal em geral.

O chefe, na sociedade tribal, não é uma antecipação do que


viria a ser a figura do soberano nas sociedades com Estado, mas
somente alguém que trabalha para a sociedade e cujo poder é
apenas o de pacificar, por meio do discurso e de modo consensual,
os conflitos. Sua figura também em nada se assemelha à de um juiz,
pois ele não decide, não diz o direito e sua palavra não tem força de
lei. Se o chefe tenta impor seu poder à tribo, necessariamente perde
a posição de chefia22. As sociedades primitivas se protegem contra

21
“Chefia e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra
é o único poder concedido ao chefe: mais do que isso, a palavra é para ele um dever”
(CLASTRES, 2013, p. 229).
22
“É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar
a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a
sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota” (CLASTRES,
2013, p. 220). O destino do chefe que pretende “bancar o chefe”, como bem esclarece
Clastres com os exemplos do índio Fousiwe, entre os Yanomami, e de Gerônimo, entre os
Apache, é sempre um destino trágico (CLASTRES, 2013, p. 222/224).

154 Direitos Humanos


o surgimento da autoridade e, consequentemente, do Estado e do
poder punitivo23.

Assim, não há nessas sociedades um poder punitivo


centralizado, que se manifeste em forma de autoridade. Em outras
palavras: não há pena e, muito embora a pena não exista, não há
qualquer relato etnográfico de uma sociedade sem Estado que tenha
se dissolvido em violência e vingança generalizada por falta de
poder punitivo. E isso não ocorre porque nas sociedades sem Estado
não haja infração às normas de convivência, mas simplesmente
porque, ao contrário do que narra a fábula hobbesiana, a forma
padrão de reagir à infração não é a vingança, mas a arbitragem24.
O conflito gerado pela desviação é solucionado pela composição
voluntária entre os clãs da vítima e do infrator e, em certos casos,
esta composição, se não vem à tona naturalmente, é intermediada
pela arbitragem do chefe, que concentra todo o seu poder na ponta
de sua língua e, usando a oratória como ferramenta, facilita a
pacificação dos interesses, sem, contudo, proferir decisão25.

O mecanismo da arbitragem, no entanto, não é a única


maneira de solucionar conflitos. Existem, em cada uma dessas

23
A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é
exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia
de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos
internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social, nos limites e na direção
desejados pela sociedade. A tribo manifesta entre outras (e pela violência se for necessário)
sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um
poder político individual, central e separado (CLASTRES, 2013, p. 224/225).
24
“Del mismo modo que lo punitivo no disuade nada en la civilización, la costumbre tampoco
disuade nada en la sociedad igualitária. También entre los salvajes hay pasión por violar normas.
Frente a la infracción lo que obliga es el arbitraje (ALAGIA, 2013, p. 98).
25
Esse mecanismo de atuação arbitral e desempoderada do chefe é claramente desnudado
por estudos realizados sobre a figura do “chefe pele de leopardo”, entre os nuer africanos
(estudados, por exemplo, por Lucy Mair), bem como na chefatura das sociedades semai,
na Malásia (estudadas por Robert Dentan), ou na dos mehinacu (observados por Thomas
Gregor), dos kapauku (estudados por Leopold Pospisil) e dos guayaqui (estudados no
Paraguai por Pierre Clastres), apenas para citar alguns poucos exemplos.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 155


sociedades sem Estado, instituições particulares, como o duelo de
canções entre os esquimós, por exemplo. Em situações de exceção,
quando estes mecanismos de pacificação falham, torna-se possível
o exílio do infrator (em muitos casos voluntário) ou a vingança
sacrificial. A vingança, portanto, não é a regra para a solução de
conflito entre os selvagens, mas situação de exceção que só vem à
tona após uma tentativa malograda de acordo e reparação e que,
nem de longe, é provida de poder suficiente para dissolver as
sociedades primitivas26. Não é na vingança privada dos selvagens,
portanto, que se pode entrever o surgimento da pena pública. A
pena pública deriva da generalização e universalização de outra
categoria, utilizada somente em circunstâncias muito excepcionais
pelos povos primitivos: o sacrifício.

O sacrifício dos selvagens é uma instituição ritual purificadora


que não tem seu âmbito reduzido a solucionar os conflitos quando
fracassa a regra da reparação. O sacrifício primitivo não tem
necessariamente a ver com a violação da norma, mas é a maneira de
responder a desgraças e eventos naturais ou sociais que, marcados
pela desmedida (excesso ou escassez), geram mal estar e inquietude
radicais, de maneira que a paz só pode voltar a reinar por meio de
atos rituais de violência sacrificial contra aqueles mais vulneráveis
do grupo.

Pierre Clastres (2013b) narra uma cadeia sacrificial de crianças


entre os guayaqui originada do fato de que um bebê fora fulminado
por um raio (ou morto propositalmente pelo deus Chono, como

26
“La venganza entre los salvajes nunca es asunto privado. Tampoco los arreglos pacíficos. Ello
es evidente a causa del empeño que pone el grupo en evitar lo primero y favorecer lo segundo. Más
extraño a los salvajes es la violência interna de una guerra de todos contra todos. No hay nada
evolutivo en el pasage de la venganza privada a la pública que señale el salto de la barbarie a la
civilización. La venganza privada ilimitada fue una invención, igual que otras, como la acusación
de canibalismo, de irracionalidad indígena, hechas a la medida de los intereses de conquista del
hombre blanco, no sólo para domesticar salvajes sino para afirmar un princípio válido para
todas las “razas” y pueblos: una sociedad sin autoridad sacrificial es una sociedad inimaginable,
imposible. Donde no hay autoridad los hombres comen unos a otros” (ALAGIA, 2013, p. 65).

156 Direitos Humanos


acreditavam aqueles índios). Malinowski (2008, p. 63-67) conta
do suicídio sacrificial de um adolescente acusado publicamente de
incesto (violação da regra sagrada da exogamia) entre os índios das
Ilhas Trobriand. Assim como a pena pública, o sacrifício ritual é
pensado pelas sociedades tribais como uma forma de restaurar um
mal-estar sentido pelo grupo e que ameaça, de fora ou de dentro,
sua segurança.

É certo que a existência de normas é estrutural em toda


sociedade. A regra do trato sacrificial, entretanto, para os
selvagens, era utilizada para um número reduzidíssimo de conflitos
insuportáveis. Como exceção, o sacrifício existiu abertamente
também nas sociedades antigas, como, por exemplo, nas figuras do
Pharmakón ateniense (GIRARD, 1999; DERRIDA, 2005) ou do Homo
Sacer, no direito romano arcaico (AGAMBEM, 2010). Somente com
o confisco estatal do conflito da vítima e com estatização da pena e
do poder punitivo, que ocorrem na Europa medieval por volta dos
séculos XII e XIII, é que o trato sacrificial se transforma de absoluta
exceção à regra geral para lidar com a conduta desviante. Fica, no
entanto, a (falsa) impressão de que a pena, enquanto generalização
do trato sacrificial, é a única alternativa possível e que é preciso
sacrificar populações vulneráveis, fazendo-as sofrer, para que a
sociedade exista.

O dogma da humanização da pena

Também povoa o imaginário penal a crença de que a pena


de prisão integra o projeto iluminista de humanização do direito
penal traçado no século XVIII. Com efeito, no fim do século XVIII
e começo do século XIX, emergiu um programa teórico de reforma
e reorganização do sistema judicial e penal nos diferentes países
da Europa e do mundo. Esse projeto teórico, em geral, é atribuído

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 157


a autores como Beccaria, Bentham, Brissot e aos legisladores que
empreenderam as redações do primeiro e do segundo códigos
penais franceses revolucionários (FOUCAULT, 2013, p. 96).

O primeiro princípio que rege a proposta desses autores é que


o crime não deve ter relação alguma com a falta moral ou religiosa.
Ele representa apenas a ruptura com a lei civil, estabelecida no seio
da sociedade pelo poder político instituído. Daí a impossibilidade
de crime ou de pena sem lei anterior que os defina. O paradigma da
legalidade é o eixo arquimediano deste novo projeto que pretende
humanizar o direito penal limitando o poder de punir do Estado. O
segundo princípio é que a lei penal, posta pelo poder legislativo, não
deve buscar transcrever a lei natural, a lei religiosa ou a moral, mas
deve representar unicamente aquilo que é útil à sociedade, definir
como reprimível somente o que é socialmente nocivo. O terceiro
princípio decorre dos dois primeiros: o crime deve ter uma definição
legal clara e simples. O crime não é mais o pecado ou a falta moral,
senão um incômodo social. Daí também uma nova concepção do
criminoso como inimigo interno, aquele que danifica e perturba a
ordem social.

Como se deve, então, reagir a esses novos conceitos de delito


e de delinquente? Se o crime não é mais o pecado e o criminoso
não é mais o maldito, se o crime é o dano social e o criminoso
aquele que causou esse dano, fica claro que a pena não mais poderá
prescrever uma vingança, a redenção de um pecado pela dor e pelo
suplício. A lei penal, no epicentro desse programa, deve reparar o
dano ou impedir que ele ocorra. Com base nessa reformulação da
função da pena, derivada da redescrição dos conceitos de crime e
criminoso, emergem desse programa teórico, como relata Foucault
(2013, p. 98-99), quatro tipos de castigo: 1) o exílio, 2) a vergonha
e escândalo públicos, 3) a reparação do dano social pelo trabalho
forçado, 4) o Talião. Eram estas as penas humanas propostas não
só por teóricos como Beccaria, senão também por legisladores

158 Direitos Humanos


como Brissot e Lepelletier de Saint-Fargeau, e que se adequariam
ao projeto iluminista de humanização do direito penal. A pena de
prisão, o enjaulamento de seres humanos, em momento algum,
entretanto, é sugerido como parte desse projeto.

Beccaria, por exemplo, dedica pouquíssimas linhas de seu


“Dos delitos e das penas” à prisão, e sem jamais sugeri-la como
pena. Àquela época não se cogitava o uso da prisão como pena, com
fins correcionais, mas apenas como um depósito onde armazenar
os acusados que aguardavam por seu julgamento. Mesmo para este
fim, Beccaria é um severo crítico do enjaulamento de pessoas27. Para
ele, a prisão jamais poderia ser cogitada como pena, e mesmo seu
uso cautelar merece ressalvas28.

A pena de prisão, portanto, nunca fez parte do projeto


teórico de humanização do direito penal e das penas forjado pelo
iluminismo/humanismo/racionalismo do século XVIII. E onde
está, então, a origem do encarceramento, senão neste programa
humanizador? Como entrevê Foucault (2013, p. 100), “a prisão
27
“Concede-se, em geral, aos magistrados incumbidos de fazer as leis, um direito que
contraria o fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao direito de prender, de
modo discricionário, os cidadãos, de vedar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos
(...) Ainda que a prisão seja diferente de outras penalidades, pois deve, necessariamente,
preceder a declaração jurídica do delito. (...) Contudo, como as leis e os usos de um povo
estão sempre atrasados em vários séculos em relação aos progressos atuais, mantemos
ainda a barbárie e as ideias ferozes dos caçadores do Norte, nossos selvagens antepassados.
Nossos costumes e nossas leis retrógradas estão muito distantes das luzes dos povos.
Somos ainda dominados pelos preconceitos bárbaros que recebemos como herança de
nossos antepassados, os bárbaros caçadores do Norte” (BECCARIA, 2013, p. 24/25).
28
“Se a prisão constitui apenas uma maneira de deter o cidadão até que ele seja considerado
culpado, como tal processo é angustioso e cruel, deve, na medida do possível, amenizar-
lhe o rigor e a duração. Um cidadão preso deve ficar na prisão apenas o tempo necessário
para a instrução do processo; e os mais antigos detidos têm o direito de ser julgados em
primeiro lugar. O réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere
necessário para o impedir de fugir ou de esconder as provas do crime. O próprio processo
deve ser levado sem protelações. Que contraste tremendo entre a preguiça de um juiz e
o desespero de um acusado! De um lado, um magistrado sem sensibilidade, que passa
os dias no bem-estar e nas delícias, e de outro um desgraçado que definha, chorando no
fundo de uma cela abominável” (BECCARIA, 2013, p. 57).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 159


não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século
XVIII, surge a começos do século XIX como uma instituição, de fato,
quase sem justificação teórica”. A ideia de enjaular seres humanos
para modificá-los, corrigi-los, transformá-los, foi transplantada
para o direito penal, no século XIX, sem qualquer fundamentação
teórica, a partir de uma instituição absolutamente parajudicial: as
lettres-de-cachet da França dos séculos XVII e XVIII.

A lettre-de-cachet não era uma lei, um decreto ou uma


ordem judicial. Era uma ordem do rei dirigida a uma pessoa,
individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Não era um
instrumento jurídico, pois sua emissão independia da existência de
um processo e não passava pelas agências judiciais. Era, geralmente,
utilizada como instrumento extrajudicial de castigo, por meio de
encarceramento, àqueles que praticavam condutas que atentavam
contra a moral ou a religião, não exigindo que houvesse qualquer
crime para sua expedição (FOUCAULT, 2013, p. 113). Em geral, as
lettres-de-cachet não eram emitidas de ofício pelo rei, senão a ele
requeridas pelos próprios cidadãos: um marido traído, o vizinho de
um sodomita ou de uma curandeira, pais de família descontentes
com seus filhos, parentes de um doente mental, comunidades
religiosas perturbadas pelos atos de um indivíduo29.

As lettres-de-cachet eram, então, um instrumento de poder e


de controle que se exercia não apenas de cima para baixo, senão que
partia mesmo da base da sociedade, permitindo que indivíduos,
grupos, famílias ou comunidades exercessem uma nova espécie de
poder sobre alguém. Segundo Foucault (2013, p. 115), é possível
diferenciar três categorias de condutas que poderiam suscitar
29
“Todos estes pequenos grupos de indivíduos pediam uma lettre-de-cachet ao intendente
do rei; este levava a cabo uma indagação para saber se o pedido estava ou não justificado e
se o resultado era positivo, escrevia ao ministro do gabinete real encarregado da matéria
solicitando-lhe uma lettre-de-cachet para levar presa uma mulher que engana a seu
marido, um filho que é muito pródigo, uma filha que se prostituiu ou o padre de uma
cidade que não mostra bom comportamento ante os paroquianos” (FOUCAULT, 2013, p.
114).

160 Direitos Humanos


uma lettre-de-cachet: 1) condutas de imoralidade, como adultério,
libertinagem, sodomia, alcoolismo; 2) condutas religiosas julgadas
perigosas ou dissidentes, como a feitiçaria, por exemplo; 3) em
casos de conflitos laborais, quando os empregadores, patrões ou
mestres estavam insatisfeitos com o trabalho de seus aprendizes
ou obreiros nas corporações (somente já no século XVIII). Deste
modo, quando a lettre-de-cachet era punitiva, resultava na prisão do
indivíduo. Como já advertido, é importante recordar que a prisão
não é uma pena presente no sistema penal dos séculos XVII e XVIII30.

O enjaulamento de pessoas, que se converterá no castigo


por excelência no século XIX, encontra sua origem, assim, no
instituto para-judicial da lettre-de-cachet. O sujeito atingido por
uma lettre-de-cachet jamais era mandado à forca, não pagava multa
ou tinha o corpo marcado ou mutilado. Era enviado à prisão, por
tempo indeterminado, e geralmente ficava ali até que aquele que
o denunciou ao rei afirmasse que ele havia se corrigido31. É daí,
também, que surge a ideia de uma penalidade que não procura mais
retribuir um mal causado, senão corrigir o comportamento dos
indivíduos, atuar sobre a arquitetura de seu corpo e de seus atos,
modificando-os. Essa nova maneira de punir, que não mais incide
sobre a saúde dos corpos, mas sobre o controle de seu tempo, de sua
atividade, de seus gestos, por meio da internação em instituições
de sequestro/instituições totais (GOFFMAN, 1974), não nasce
de teorias jurídicas nem deriva do projeto teórico dos grandes
reformadores do século XVIII, como Beccaria.
30
“Os juristas são muito claros com respeito a isso, afirmam que quando a lei sanciona
a alguém, o castigo será a condenação à morte, a ser queimado, esquartejado, marcado,
desterrado, o pagamento de uma multa; a prisão não é nunca um castigo” (FOUCAULT,
2013, p. 116).
31
“A ideia de colocar uma pessoa na prisão para corrigi-la e de mantê-la encarcerada até
que se corrija, ideia paradoxal, absurda, sem fundamento ou justificação alguma com
respeito ao comportamento humano, se origina precisamente nesta prática” (FOUCAULT,
2013, p. 116/117).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 161


Assim, o sistema de penas adotado pelas sociedades
industriais em fase de desenvolvimento, no século XIX, foi um
sistema completamente diferente daquele que fora projetado pelos
teóricos do século XVIII. Surgiu praticamente sem qualquer base
doutrinária, a partir de uma instituição policial e para-judicial (as
lettres-de-cachet) e foi transplantado para o seio do direito penal
sem uma justificativa muito clara.

As penalidades do programa iluminista rapidamente se


desviaram para o novo modelo do enjaulamento: a deportação
desapareceu muito rapidamente, a vergonha pública nunca chegou
de fato a ser adotada, o trabalho forçado se transformou em um
modelo de reparação meramente simbólico e a pena de Talião passou
a ser denunciada como um mecanismo arcaico que foi, também,
rapidamente banido.

E por que esse projeto teórico humanista foi tão rapidamente


deixado de lado e substituído pela lógica do encarceramento?
Provavelmente em virtude de uma série de câmbios sociais que
se promoviam com o advento da revolução industrial e com o
nascimento, transformação e aceleração do capitalismo como
modo de produção. Na Inglaterra, vários grupos e sociedades civis
organizadas criaram, internamente, mecanismos de controle e
vigilância (os anglicanos, os quakers, os metodistas, a Sociedade
para a Reforma dos Costumes, Sociedade da Proclamação, entre
outras32). Na França, essa vigilância era também exercida pela
população sobre si mesma por meio do instituto da lettre-de-cachet
e pelo surgimento de uma instituição muito peculiar: a polícia.
Uma certa cultura da vigilância, que Foucault chamará panoptismo,
contribuirá para que se estabilize esse novo modelo de penalidade.

A prisão, então, surge como um exercício de poder que, nesse


mesmo cenário, contribuirá para a erupção de uma série de novos
32
Este fenômeno é analisado por Foucault, por exemplo, na quarta conferência publicada
em “A verdade e as formas jurídicas”. cf. FOUCAULT, 2013.

162 Direitos Humanos


saberes sobre o delito e o delinquente: a criminologia, a psiquiatria
e psicologia forenses, a antropologia criminal, a frenologia, entre
outros.

Essa teia de saberes-poderes, que tem seu exercício mais claro


na prática do enjaulamento de seres humanos, terá basicamente duas
principais metas: 1) tornar os corpos dóceis e 2) legitimar o modelo
panóptico de sociedade disciplinar. O corpo mutilado, flagelado,
morto, não tem serventia para esse novo modelo de sociedade que
emerge a partir da revolução industrial e do desenvolvimento do
capitalismo. O corpo, agora, não precisa ser marcado e supliciado,
precisa se tornar útil, disciplinado. A disciplina é justamente essa
“anatomia política do detalhe”, que tem por finalidade tornar os
corpos dóceis, ou seja, o conjunto de “métodos que permitem o
controle minucioso das operações do corpo, que realiza a sujeição
constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-
utilidade” (FOUCAULT, 1987, p. 118). O corpo dócil é aquele
que “pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado”.

Essa arte de dulcificação dos corpos é posta em prática pela


política do encarceramento e a prisão se transforma em fábrica de
corpos submissos e exercitados. Por meio da disciplina, a um só
tempo, se incrementa e se reduz as forças do corpo: “a disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”
(FOUCAULT, 1987, p. 119).

O enjaulamento de seres humanos, no contexto das


sociedades industriais, forja mão de obra e mercado, fabrica o
bom operário e o bom consumidor. Não é, portanto, em razão de
um projeto teórico de humanização das penas que se abandona o
modelo punitivo do suplício-espetáculo em favor da economia dos
direitos suspensos, senão para atender a uma demanda política, a
uma necessidade histórica, espacial e temporal, de multiplicação

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 163


de corpos úteis e submissos, e a prisão não é a única encarregada
desta tarefa urgente. Paralelamente a ela se proliferam uma série
de outras instituições disciplinares baseadas na mesma lógica do
sequestro do tempo, do controle dos gestos, do isolamento celular,
da vigilância normalizadora: os colégios, as fábricas, os asilos, os
hospitais, os manicômios, os quartéis. Assim surge o álibi para a
curiosa prática de enjaular pessoas: não se impõe castigo para punir
alguém pelo que fez, senão para transformá-lo no que é (ou deve
ser). Quando se elimina a ideia da pena como vingança do soberano
lesado, o castigo passa a fazer sentido apenas como um projeto
de engenharia comportamental, uma tecnologia de reforma do
delinquente.

Ocorre que muito cedo já se pôde constatar a incapacidade


da prisão para atingir esses objetivos: “desde 1820 se constata que
a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta,
serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los
ainda mais na criminalidade” (FOUCAULT, 2013b, p. 216). Porém,
como bem esclarece Foucault, os mecanismos de poder tendem a
utilizar estrategicamente aquilo que é inconveniente. Percebe-se,
então, que a prisão fabrica delinquentes, mas que os delinquentes
são úteis política e economicamente33. Se a finalidade da prisão não
é mais utilizar o corpo do apenado como força de trabalho, que outra
estratégia de poder seria essa à qual ela se presta? Com a palavra,
Foucault (2013b, p. 225):

É nessa época [anos 1840] que se inicia a longa


concubinagem entre a polícia e a delinquência.
33
“A partir dos anos 1835-1840 tornou-se claro que não se procurava reeducar os
delinquentes, torná-los virtuosos, mas sim agrupá-los num meio bem definido, rotulado,
que pudesse ser uma arma com fins econômicos ou políticos. O problema então não era
ensinar-lhes alguma coisa, mas ao contrário, não lhes ensinar nada para se estar bem
seguro de que nada poderão fazer saindo da prisão. O caráter de inutilidade do trabalho
penal que está, no começo, ligado a um projeto preciso serve agora a uma outra estratégia”
(FOUCAULT, 2013b, p. 219).

164 Direitos Humanos


Fez-se o primeiro balanço do fracasso da prisão:
sabe-se que a prisão não reforma, mas fabrica a
delinquência e os delinquentes. É esse o momento
em que se percebe os benefícios que se pode tirar
dessa fabricação. Esses delinquentes podem servir
para alguma coisa (...). A sociedade sem delinquência
foi um sonho do século XVIII que depois acabou. A
delinquência era por demais útil para que se pudesse
sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma
sociedade sem delinquência. Sem delinquência não
há polícia. O que torna a presença policial, o controle
policial tolerável pela população senão o medo do
delinquente? (...) Essa instituição tão recente e tão
pesada que é a polícia não se justifica senão por
isso. Aceitamos entre nós essa gente de uniforme,
armada, enquanto nós não temos esse direito,
que nos pede documentos, que vem rondar nossas
portas. Como isso seria aceitável se não houvesse
os delinquentes? Ou se não houvesse, todos os dias,
nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos
e perigosos são os delinquentes?

É somente no interior dessa relação de “concubinagem


entre a polícia e a delinquência” que parece possível buscar algum
sentido nessa estranha prática moderna de enjaular pessoas. A
polícia é o símbolo maior da sociedade panóptica. As instituições
de sequestro servem, em última instância, para fomentar um
modelo de sociedade disciplinar, baseado no exame e no controle,
na vigilância e na sanção normalizadora. Não existe qualquer salto
qualitativo ou humanizatório em substituir as penas de castigos
corporais pelo enjaulamento de pessoas. Imaginar que enjaular
populações vulneráveis seria uma maneira humana de lidar com
situações problemáticas é uma verdadeira alucinação, mormente
nas condições em que esse enjaulamento se dá na realidade marginal
latino-americana. A prisão não deriva de um projeto teórico que
pretende humanizar as penas, ela se encaixa em uma agenda de
estratégias políticas e econômicas de utilização dos corpos dos

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 165


enjaulados para atingir um efeito disciplinar-verticalizador sobre
grandes populações.

GOZO PUNITIVO, GOZO PANÓPTICO, TRATO CRUEL

Diante da irracionalidade prática do encarceramento, da


ausência de sustentação teórica quando de sua origem e da falsidade
dos dogmas que povoam o discurso jurídico-penal que procura
legitimá-lo, o que leva a sociedade contemporânea a continuar
enjaulando seres humanos? Se observarmos que a pena estatal surge
como a universalização do trato sacrificial primitivo e que, como
todo sacrifício, não é outra coisa que o ato de fazer sofrer um bode
expiatório em situação de vulnerabilidade, podemos perceber que o
discurso jurídico-penal embasado nos três dogmas do penalismo e,
em última instância, o próprio direito penal, enquanto saber-poder,
poderia ser definido como a racionalização da crueldade.

É por meio do trato cruel que a sociedade deseja reparação pelo


abalo à ordem gerado pela conduta tida por criminosa. É aqui que se
impõe a grande questão que já havia sido antecipada por Nietzsche
(2007, p. 55): “como pode fazer sofrer ser uma reparação?”. A ideia
de Nietzsche é que a crueldade faz parte do próprio homem e não
há possibilidade de dissociá-la de certo tipo de prazer:

Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda –


eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma,
humano, demasiado humano, que talvez até os
símios subscrevessem: conta-se que na invenção de
crueldades bizarras eles já anunciam e como que
“preludiam” o homem. Sem crueldade não há festa:
é o que ensina a mais antiga e mais longa história do
homem – e no castigo também há muito de festivo!
(NIETZSCHE, 2007, p. 56)

166 Direitos Humanos


É essa vontade de crueldade que impulsiona o homem rumo à
festa do castigo, “o ser cruel desfruta o supremo gozo do sentimento
de poder” (NIETZSCHE, 2004, p. 24-25). Ocorre que a crueldade
não se projeta apenas em direção ao outro, mas também e sobretudo
a si próprio34. Em Nietzsche, esse gozo (Genuss35), no trato cruel
exercido sobre o outro e sobre si, marca a própria natureza do
homem enquanto estrutura desejante, enquanto vontade de poder
(Wille zur Macht) e multiplicidade de forças (em conflito).

É à psicanálise, entretanto, que se deve atribuir a mirada mais


detalhada sobre esse gozo na crueldade contra o outro e contra si.
Desde 1920, Freud (1996) adverte que, movendo a psique humana,
há algo além do princípio de prazer. Pelo princípio de prazer, a
libido tende a buscar sua satisfação imediata e total, porém, no
caminho ela se choca com o princípio da realidade, que atua como
censor moral, “domesticando” os impulsos e canalizando-os para
o prazer artístico, científico, enfim, pelos caminhos da civilização.
É o mecanismo da sublimação: boa parte das pulsões sexuais ou
agressivas transforma-se e se coloca a serviço do trabalho cultural.
Outra parte, no entanto, é simplesmente reprimida, enterrando
no inconsciente suas representações. Outra grande porção destas
34
“Nisso devemos pôr de lado, naturalmente, a tola psicologia de outrora, que da crueldade
sabia dizer apenas que ela surge ante a visão do sofrimento alheio: há também um gozo
enorme, imensíssimo, no sofrimento próprio – e sempre que o homem se deixa arrastar à
autonegação no sentido religioso, ou à automutilação, como entre os fenícios e astecas, ou
à dessensualização, descarnalização, compunção, às convulsões de penitência puritanas, à
vivissecção de consciência e ao sacrifizio dell’intelletto pascaliano, ele é atraído e empurrado
secretamente por sua crueldade, por esses perigosos frêmitos da crueldade voltada contra
ele mesmo” (NIETZSCHE, 2007b, p. 122)
35
Nietzsche, em distintos momentos de distintas obras, utiliza, para se referir a esse
“gozo” cruel exercido sobre o outro e sobre si, o substantivo Genuss e o verbo genieβen:
“es giebt einen reichlichen, überreichlichen Genuss auch am eignen Leiden(...)” (NIETZSCHE,
Friedrich. Jenseits von Gut und Böse. In: Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe
in 15 Bänden, V, Berlin: de Gruyter, 1999, p. 166) ou “denn der Grausame genieβt den
höchsten Kitzel des Machtgefühls” (NIETZSCHE, Friedrich. Morgenröthe. In: Sämtliche
Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, III, Berlin: de Gruyter, 1999, p. 30).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 167


pulsões, porém, não é sublimada e nem reprimida, mas se volta
contra si mesma na forma de medidas de autopunição.

Em “O mal-estar da civilização”, Freud (1996b) divide as


pulsões inconscientes (que emergem do Id) em duas: a pulsão de
vida (Eros) e a pulsão de morte (Thanatos). A pulsão de vida se
expressa no amor, na criatividade e na construtividade, enquanto
a de morte se manifesta no ódio e na destruição. Esse desejo de
destruição, caso não seja sublimado, pode se voltar ao outro, como
agressividade e violência, ou pode se direcionar ao próprio “eu”,
em forma de medidas inconscientes de autopunição impostas pelo
superego (herdeiro do complexo de Édipo e timoneiro do complexo
de castração).

Muito antes da existência de castigo público, o ser humano


já castigava a si mesmo, inconscientemente, por meio do superego.
Como sustenta Alejandro Alagia (2013, p. 173-174), o sadismo
do Id e o masoquismo do superego se complementam e explicam
o gozo punitivo que advém do trato punitivo sacrificial público. A
figura ambivalente do pai é projetada, coletivamente, no Estado, e o
superego encontra seu correspondente na lei penal. O par antitético
sadismo-masoquismo parece, então, se apresentar como possível
resposta para a pergunta sobre o motivo que leva a sociedade
moderna a enjaular seres humanos: para quê, por meio do trato
cruel punitivo, o homem moderno possa sofrer e fazer sofrer.
No entanto, parece haver algo mais além desse gozo punitivo
diagnosticado por Alagia. Há outro par antitético que merece
atenção se se pretende compreender a função da pena na sociedade
moderna, principalmente tendo em mente, como sugere Foucault,
que a melhor maneira de defini-la é como sociedade de controle
(disciplinar). Trata-se do binômio exibicionismo-voyeurismo. Se as
prisões não servem para reabilitar os enjaulados, mas operam, como
visto, como verdadeiras fábricas de delinquência, parece necessário
admitir que gerar delinquentes pode ser uma de suas funções. Mas

168 Direitos Humanos


por que é preciso gerar delinquentes? Porque sem o temor que o
discurso da ameaça da delinquência incita, é impossível justificar
o modelo de sociedade de controle e as agências panópticas de
vigilância, como a polícia. E por que é necessário que existam as
agências de vigilância? Porque o homem moderno enc1er, mas
sobretudo vigiar e ser vigiado. Eis aí, quem sabe, a explicação para a
curiosa prática de enjaular seres humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso jurídico-penal flutua e se equilibra sobre três


fábulas, que aqui foram denominadas três dogmas do penalismo:
1) o dogma da relação causal entre crime e pena; 2) o dogma da
inevitabilidade da pena; e 3) o dogma da humanização da pena.

Combatendo o primeiro dogma, percebe-se que a pena


não é uma resposta ao crime, não incide sobre aqueles que
cometeram delitos, senão que captura apenas pessoas em posição
de vulnerabilidade frente ao poder punitivo, que se encaixam em
determinado estereótipo que as torna potencialmente sujeitas ao
trato cruel estatal.

Libertando-se do segundo dogma, percebe-se que a pena não é


um “mal necessário” e que a antropologia e a etnografia apresentam
vasta quantidade de relatos de sociedades que existiram e
continuam existindo sem poder punitivo (trato cruel estatal) e que,
nem por isso, se dissolveram na violência e vingança generalizadas
tão fantasiadas pelo discurso jurídico-penal.
Resta claro, também, que o enjaulamento de seres humanos
não decorre do projeto teórico iluminista de humanização das
penas promovido no século XVIII. A prática de enjaular pessoas para
corrigi-las tem origem em uma instituição parajudicial (as lettres-

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 169


de-cachet francesas) e foi transplantada para o coração do direito
penal praticamente sem substrato teórico algum, impulsionada
pela necessidade política de produção de corpos úteis e submissos
desencadeada pela revolução industrial. Enjaular pessoas não é uma
maneira humana de lidar com situações problemáticas.
Desfeita a crença mística nestes dogmas, é chegado o momento
de redescrever as respostas para as três perguntas inicialmente
propostas: quem são as pessoas que a sociedade moderna enjaula?
Por que as enjaula? Para que as enjaula? Libertando-se do dogma
da relação causal entre crime e castigo, é possível perceber que os
enjaulados não são aqueles que cometeram crimes, mas aqueles
que, por se encontrarem em posição de vulnerabilidade em relação
ao poder punitivo e por se encaixarem em um determinado
estereótipo, são selecionados pelas agências de criminalização
secundária. Nesta resposta está implícita a resposta seguinte: não
são enjaulados porque cometeram crimes, mas justamente por
serem sacrificáveis, em razão de sua posição de vulnerabilidade.
Por fim, não estão enjaulados para que sejam corrigidos (o
enjaulamento é incapaz de tal correção), nem para evitar o delito (as
instituições de enjaulamento fabricam e multiplicam delinquência).
Estão enjaulados para alimentar o mito de que alguém precisa
ser submetido a trato sacrificial para que a sociedade permaneça
existindo, para que a crueldade encontre alento na festa do castigo
e para que o homem moderno goze sofrendo e fazendo sofrer,
vigiando e sendo vigiado.

É assim que se poderia propor um novo conceito para uma


velha disciplina: o direito penal é a racionalização do trato cruel. E é
assim que restariam aos que se debruçam sobre seu estudo apenas
duas alternativas: ser cruel ou ser abolicionista. O abolicionismo
penal se apresenta como a postura teórica de quem entende que a
crueldade é a pior coisa que se pode fazer. É na construção de um novo
vocabulário para redescrever as velhas práticas penais que deve se

170 Direitos Humanos


assentar o esforço do abolicionismo penal acadêmico, a ser encarado
não apenas como uma postura teórica, mas verdadeiramente como
um estilo de vida, como um modo de ser e se portar no mundo. É
somente com essa revolução no terreno da linguagem que se pode
permitir que a sociedade se assombre com a prática tenebrosa de
enjaular seres humanos e que resolva contrapor à crueldade estatal
o exercício da solidariedade. O abolicionismo acadêmico permite
que a abolição da justiça criminal se torne dizível, abrindo espaço
para o abolicionismo enquanto movimento social.

Assim como a pequena crueldade, praticada por um homem


contra o outro (e geralmente batizada como crime) deve ser
repudiada, igualmente a grande crueldade, praticada pelo Estado
contra o homem, por meio do trato cruel do enjaulamento, não
pode encontrar alento no coração de quem acredita que ser cruel é a
pior coisa que se pode fazer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo


penal: contribuições para um novo modelo de administração de
conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2015.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

ALAGIA, Alejandro. Hacer sufrir. Buenos Aires: Ediar, 2013.

BATISTA, Nilo; KOSOVSKI, Ester (org.). Tributo a Louk Hulsman.


Rio de Janeiro: Revan, 2012.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 171


BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin
Claret, 2013.

CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de


Janeiro: Revan, 2011.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. São Paulo:


Cosac Naify, 2013.

__________. Crônica dos índios guayaquis – o que sabem os


Ach. São Paulo: Editora 34, 2013.

COSTA, Natassia Medeiros. A construção da justiça restaurativa


no Brasil como um impacto positivo no sistema de justiça
criminal. São Paulo: Lexia, 2015.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras,


2005.

DESCOLA, Philippe. Las lanzas del crepúsculo: relatos jíbaros.


Alta Amazonia. México: Fondo de Cultura Económica, 2005.

EVANS-PRITCHARD, E. Los nuer. Barcelona: Anagrama, 1992.

FONSECA, Hermes da. Travessia abolicionista: licenciosidades


para uma leitura cronópia da obra penas perdidas, de Louk Hulsman.
In: Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

172 Direitos Humanos


FONTENELE, Edinalva Melo. Por que não ser cruel? – a
redescrição rortyana da crueldade/ Edinalva Melo Fontenele – 2010

FORTES, Meyer; EVANS-PRITCHARD, E. Sistemas politicos


africanos. Barcelona: Anagrama, 1978.

FOUCAULT, Michel. La verdade y las formas jurídicas.


Barcelona: Gedisa, 2013.

__________. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2013.

__________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis:


Vozes, 1987.

GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Editora


Universidade Estadual Paulista, 1990.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São


Paulo: Editora Perspectiva, 1974.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro,


Imago, 1996.

HAAN, Willem. Abolitionism and crime control: a contradiction


in terms. In K. Stenson and D. Cowell (Eds.) The Politics of Crime
Control, London: Sage, 1991.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins, 2008.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 173


HULSMAN, Louk. Temas e conceitos numa abordagem
abolicionista criminal. In: Verve, 3:190-210, 2003.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil.


Petrópolis: Vozes, 2006.

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade


selvagem. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

MATHIESEN, Thomas. The politics of abolition revisited.


Vancouver: Routlege, 2014.

MAYR, Lucy. El gobierno primitivo. Buenos Aires: Amorrortu,


1970.

MCLAUGHLIN, Eugene; MUNCIE, John. Diccionario de


criminologia. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003.

NEHAMAS, Alexander. Nietzsche: life as literature. Harvard:


Harvard University Press, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

__________. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das


Letras, 2007.

__________. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

174 Direitos Humanos


__________. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15
Bänden. Berlin: de Gruyter, 1999.

NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2001.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes,


2002.

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São


Paulo: Martins, 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Saraiva,


2011.

SAHLINS, Marshall. La ilusión occidental de la naturaliza


humana. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.

SIM, Joe. The abolitionist approach: a British perspective, In


Penal Theory and Practice: Tradition and Innovation in Criminal
Justice, Manchester: Manchester University Press, 1994.

SPINOZA, Baruch. Tratado político. São Paulo: Saraiva, 2012.

SWAANINGEN. René van. Critical Criminology: Visions from


Europe. Londres: Sage, 1997.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 175


ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho Penal: parte general /
Alejandro Alagia; Alejandro W. Slokar; Eugenio Raúl Zaffaroni.
Buenos Aires: Ediar, 2011.

__________. Em busca das penas perdidas: a perda da


legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

__________. Estructura básica del derecho penal. Buenos


Aires: Ediar, 2012.

176 Direitos Humanos


A (NÃO) PROTEÇÃO AO DIREITO À MATERNIDADE NO
ÂMBITO CARCERÁRIO

Anne Karolinne Moreira Nogueira Costa

Ellen Melo Martins Rodrigues

Emanuelle Melo Martins Rodrigues

INTRODUÇÃO

É senso comum que o processo gestacional e a maternidade


são momentos que cobram cuidados e resguardo e por isso exigem
uma série de condições materiais que devem - ou deveriam - ser
garantidas pelo Estado. Mesmo que por lei sejam assegurados,
teoricamente, uma série de direitos para a saúde e desenvolvimento
saudável da mãe e da criança e suporte do Sistema Único de Saúde
(SUS) nesse processo. Na prática, aquelas com pleno acesso aos
requisitos básicos de suporte são majoritariamente mulheres de
classe mais alta, em sua maioria brancas.

Tendo em vista o quadro exposto, a situação se agrava quando


transpomos a análise para dentro de estabelecimentos prisionais.
A pena privativa de liberdade dentro das prisões brasileiras
mostra-se não só falida na sua alegada missão de ressocializar
os indivíduos encarcerados, mas configura-se, não só hoje, mas
historicamente, como uma tortura institucionalizada e perpetuada
como normalidade.

Tendo, então, a terceira maior população carcerária do


mundo, o Estado brasileiro segue insistindo em ignorar a
necessidade de criação de alternativas ao encarceramento. No caso

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 177


da prisão feminina, e ainda mais daquelas mulheres encarceradas
que são mães ou gestantes, a faceta mais cruel da criminalização da
pobreza, da violência de gênero e do racismo estruturais retira não
só a liberdade, mas a individualidade dessas mulheres.

Apesar de os diplomas legais assegurarem a estas


mulheres a reclusão em estabelecimento compatível,
o direito à amamentação, à convivência familiar e
comunitária, bem como à saúde, educação, trabalho e
assistência jurídica, dentre outros tantos, a realidade
vivida por estas mães e filhos é completamente
distinta. Creches e enfermarias são, quase sempre,
celas adaptadas. O ambiente insalubre contribui
com a proliferação de doenças, enquanto a escassez
de funcionários e a falta de profissionais da saúde,
equipamentos e medicamentos tornam a assistência
médica – tanto física, quanto psicológica – quase que
nula. A maternidade no cárcere é acompanhada pela
dor e descaso por parte do Estado, onde a maior parte
destas mulheres passam por esta sem receber os
devidos cuidados, acompanhamento especializado
ou sequer realizar o pré-natal (GREGOL, 2016, p. 8).

É imprescindível que evidencie-se, de mesmo modo, como


a maternidade fora de um ambiente familiar bem estruturado
para lidar com a fragilidade da gestante e o desrespeito ao
direito materno de criação de vínculos com sua prole – por meio
do momento da amamentação, por exemplo – têm impacto
significativo no psicológico da apenada, de modo que a experiência
vivenciada pela mãe encarcerada acaba por se tornar dramática,
brutal e fundamentalmente diversa da das mulheres situadas fora
desse contexto. Isso a faz, muitas vezes, abrir mão das visitas ou
desistir da expectativa de um dia fazer parte da criação de seu filho,
entregando seu destino inteiramente ao poderio estatal.

178 Direitos Humanos


Observa-se que, ao ser colocada em uma posição na qual sua
individualidade é apagada e seus desejos e perspectivas suprimidos,
a mulher encarcerada passa por um processo de silenciamento
e isolamento, no qual dois caminhos são possíveis: ou há o
afastamento em relação a outras detentas e a recusa a participar
de trabalhos intraprisionais, como o de cozinheira e de atividades
de socialização, ou há o afastamento em relação ao mundo
extraprisional, situação na qual a detenta vê o ambiente carcerário
como definitivamente presente em seu futuro e se conforma com o
sistema e seu funcionamento. Nesse segundo caso, em que a detenta
passa a não mais questionar como é tratada e de quais direitos está
sendo privada, pode-se dizer que o Estado alcança seu objetivo de
ser visto como ser Supremo.

UM BREVE HISTÓRICO DO ENCARCERAMENTO FEMININO


NO BRASIL

O encarceramento, e em sentido mais amplo, o Direito


Penal, dentro do sistema capitalista, possui a função de selecionar
e punir condutas e sujeitos que sejam nocivos ou desnecessários
à ordem do sistema. Por esse motivo, algumas condutas são mais
criminalizáveis e passíveis de punições mais severas e recorrentes.
Isso porque

[...] ações conflitivas de gravidade e significado


social muito diversos se resolvem por via punitiva
institucionalizada, mas nem todos os que as
realizam sofrem essa solução, e sim unicamente
uma minoria ínfima deles, depois de um processo de
seleção que quase sempre seleciona os mais pobres;
[...] (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2018, p. 63)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 179


Para entender, no entanto, como acontece essa seletividade e
qual é o papel social e histórico do aprisionamento feminino, cabe
destacar primeiramente o caráter da punição em si, e em especial
seu papel no controle social dentro do patriarcado e do capitalismo.
A análise de que a punição não se configura somente no campo
penal ou prisional, ou ainda não somente no campo institucional,
é fundamental para o entendimento da especificidade da realidade
feminina materna dentro do cárcere. Zaffaroni (2018), ao conceituar
punição, traz alguns pontos essenciais para a compreensão desse
papel.

(...) é ação ou efeito sancionatório que pretende


responder a outra conduta, ainda que nem sempre a
conduta correspondente seja uma conduta prevista
na lei penal, podendo ser ações que denotem
qualidades pessoais, posto que o sistema penal, dada
sua seletividade, parece indicar mais qualidades
pessoais do que suas ações, porque a ação filtradora
o leva a funcionar desta maneira. (p. 72)

Essa conclusão, no entanto, só pôde ser feita a partir da análise


da realidade concreta, que historicamente mostrou a influência
dessa seletividade, resultando em problemáticas próprias ligadas
ao encarceramento feminino, frutos das violências do patriarcado.

Cabe, portanto, uma breve análise do surgimento dos espaços


de punição institucionalizada especialmente criados e/ou moldados
para a delinquência feminina. Justamente pelo que foi citado sobre
o caráter da punição, e sua possibilidade de ser institucionalizada ou
não, ressalta-se que relações de gênero e poder punitivo e a história
desses elementos aqui no Brasil são muito anteriores ao contexto
de surgimento das prisões e ao século XIX, mas cabe aqui o foco no
surgimento desses espaços institucionalizados de encarceramento,

180 Direitos Humanos


que ainda possuem muitas lacunas, como argumenta Angotti &
Salla (2018):

As lacunas nessa produção de estudos históricos


implicam algumas dificuldades para a
problematização de várias questões contemporâneas,
seja em relação à condição da mulher em geral, seja
em relação à situação das mulheres encarceradas. Em
primeiro lugar, sabe-se muito pouco sobre as práticas
de encarceramento das mulheres, escravas ou não,
do século XVI ao XIX. O que motivava o envio de
mulheres para as prisões, nesse período, quais tipos
de crimes e de comportamentos cotidianos eram
alvos de controle e intervenção? (ANGOTTI; SALA,
2018, p. 2)

Tendo isso em vista, pode-se ser citado como exemplo o


exercício do poder manicomial como prática do patriarcado para
punição e isolamento dessas mulheres. Antes mesmo da discussão
ou ainda da existência do aprisionamento de mulheres, a forma
patriarcal e capitalista tinha outro destino para aquelas que
desviassem da conduta de feminilidade e passividade esperada: o
subjugo do poder manicomial. A ligação deste com o poder patriarcal
é notável quando se analisa o uso que a sociedade e o Estado faziam
dessa ferramenta de controle sobre o comportamento feminino.

“Gênio independente”, “não obedecia ao pai”,


“separou-se do marido”, “escrevia livros”,
“trabalhava muito”, “era preguiçosa”, “apaixonou-se
por um rapaz”, “cantava o dia todo”, “desobedeceu
ao patrão”, “reclamava do salário”, “inclinações
políticas subversivas” essas condutas não podem
ser consideradas patológicas per se e também não
configuram infrações, no sentido legal do termo.
No entanto, eram consideradas aberrações por
escaparem às normas estabelecidas para as mulheres

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 181


da época. A repetição tautológica desses elementos
nos prontuários médicos de grandes manicômios
brasileiros parecia querer afirmar que aquele
comportamento era um traço desviante individual –
e não o reflexo de uma mudança social (LIMA, 2016)

É justamente nesse ponto que o encarceramento e as outras


formas de controle social por meio de punição institucionalizada se
diferenciam na especificidade da realidade feminina. O patriarcado,
como pilar do capitalismo, constrói uma série de estereótipos de
gêneros e papéis sociais que normatizam algumas condutas e
legitimam que outras sejam apontadas como loucura. Mesmo que
formalmente essas condutas não sejam criminalizadas, a postura
do Estado, ao permitir essa arbitrariedade como regra, tanto
no internamento quanto na prisão dessas pessoas – prática que
permanece até hoje e é situação estrutural do sistema penal brasileiro
– mostra não só uma negligência, mas parte das contradições que
lhe são inerentes.

Como apontado por Lima (2016), Franco Basaglia já em 1970


constatava o objetivo não declarado dos manicômios de controlar
e reprimir os trabalhadores que não respondessem aos interesses
do sistema capitalista, interesses esses racistas e patriarcais.
Percebe-se, portanto, que tanto no contexto manicomial quanto
no prisional, essa diferenciação de loucura ou sanidade, ou
criminalidade e normalidade, é feita por questões que ultrapassam
a análise puramente técnica.

De saída, já podemos colocar que a forma de se


enxergar a loucura e comunicar o seu diagnóstico
não partia somente de uma análise que se pretendia
científica – e, portanto, livre de qualquer julgamento
–, mas também da questão moral e dos papéis pré-
estabelecidos, embutidos em todos os pareceres.
(VACARO, 2011, p. 44 apud LIMA, 2016)

182 Direitos Humanos


Sendo assim, as mulheres que buscavam autonomia relativa a
esses papéis de gênero eram vistas como loucas, desequilibradas ou
criminosas. Podemos ver a continuidade dessa postura institucional
ao voltarmos um pouco na análise histórica do aprisionamento
feminino. A população carcerária feminina representou,
notadamente durante a história, uma parcela menor dentro do
número de condenados no país. No século XIX, segundo citado por
Angotti e Salla (2018, p. 6):

O número de mulheres condenadas era de fato bem


menor que o dos homens, como se pode constatar nos
dados existentes no Relatório do Chefe de Polícia de
São Paulo, do ano de 1896: desde a sua inauguração,
em 1852, a Penitenciária dera entrada a 1702
condenados do sexo masculino e a 65 mulheres.

Esse quadro se manteve36 e justificava-se, pelo número


proporcional de mulheres encarceradas, a insalubridade das
celas. Como afirma Angotti e Salla (2018, p. 5), em um “Relatório
da Comissão de Inspeção da Casa de Correção da Corte (Rio de
Janeiro), de 1874 (Brasil, MJ, 1874), [...] em meados da década de
1850 a situação das mulheres presas era ‘horrorosa’”.

Mesmo com as discussões acerca do aprisionamento


feminino vindas ainda do final do século XIX, Angotti (2011)
mostra que é apenas no final da primeira metade do século XX que
são estabelecidos os primeiros institutos prisionais para mulheres,
mais especificamente em 1937, quando nasce o Instituto Feminino
de Readaptação Social no Rio Grande do Sul e, posteriormente, em
1941, o Presídio de Mulheres de São Paulo, e em 1942, a Penitenciária
36
“[...] Lemos Britto, em palestra denominada As Mulheres Criminosas e seu
Tratamento Penitenciário, proferida em 1943, ressalta que a porcentagem
de mulheres condenadas em todo o país era, em média, de 6% da população
masculina encarcerada” (ANGOTTI, 2011, p. 28).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 183


Feminina do Distrito Federal, em Bangu, sendo apenas essa última
construída para tal finalidade37.

A situação das prisões continuava completamente insalubre,


como afirma Angotti (2011, p. 73) sobre a visão de Lemos Britto,
importante penitenciarista da época:

Lemos Britto mostrava-se inconformado com o fato


de que ao mesmo tempo em que muitos cursos de
direito e medicina ensinavam as mais modernas
teorias criminológicas e técnicas penitenciárias, o
Estado Brasileiro não construía cárceres condizentes
com essas teorias. As masmorras continuavam
existindo, sendo muitas das prisões nacionais
depósitos insalubres de pessoas.

Importa ressaltar qual era o objetivo e o papel esperados


dessas instituições no contexto em que foram criadas. Uma análise
relevante para entender esse quadro é a da participação da Igreja
Católica nesses estabelecimentos, a qual esteve historicamente na
administração da maioria dos espaços prisionais femininos, como
por exemplo na criação, em 1921, do Patronato das Presas, que,
como descreve Angotti (2011, p. 20), tinha como objetivo principal
“[...] conseguir “solução condigna” para o problema das criminosas,
de preferência propiciar a instalação de uma prisão especializada
para mulheres.” A instituição possuía, na sua administração, as
Irmãs da Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor d’Angers.

Esse aspecto revela, em parte, o caráter desses espaços, pela


37
“Não é por coincidência, no entanto, que os primeiros estabelecimentos
prisionais femininos nasceram depois de 1940, já que data desse ano o Código
Penal que “[...] no parágrafo 2º do artigo 29, previa, pela primeira vez, o
cumprimento de pena em estabelecimento específico para abrigar mulheres ou,
quando não fosse possível, em espaço reservado nos estabelecimentos prisionais
comuns aos dois sexos.” (ANGOTTI,2011, p. 68)

184 Direitos Humanos


intenção do Estado em entregar para a Igreja essas pessoas para que
fossem “restauradas”, já que o problema da criminalidade era visto
como moral. Além disso, um projeto de modernidade que refletisse
a recém proclamada república começou a se concretizar nos centros
urbanos. Houve, então, no início do século XX, uma mudança no
fluxo nas cidades, com o investimento em modernização dos centros
urbanos, aumentando seu movimento, na procura de um progresso
que acompanhasse um projeto de república, que havia acabado de
ser proclamada (ANGOTTI, 2011).

Essa mudança teve reflexos na vivência feminina dentro no


meio urbano38, já que mais mulheres passaram a sair de casa para o
espaço público, e esse fluxo não era compatível com a lógica patriarcal
do espaço social feminino, defendido pela maioria conservadora
da sociedade da época. A defesa da privação da mulher ao espaço
doméstico fazia e faz parte de uma defesa, em realidade, de uma
ideia de família a ser preservada e o Estado é o aparato institucional
do patriarcado que cumpre a função citada anteriormente de
isolamento e punição, por meio do encarceramento, daquelas que
não cumpram o papel desejado.

No interior da família nuclear, monogâmica,


heterossexual e sadia, preconizada nos moldes do
ideal burguês, agia o Estado por meio, principalmente,
do Direito e da Medicina. A família que interessava
ao Estado era aquela sadia em termos médicos e
psíquicos, com papéis bem definidos para maridos e
mulheres, com filhos bem criados, e regulamentada
nos termos da lei (ANGOTTI, 2011, p.99).

38
Realidade que, importa ressaltar, é vivida de forma diferente por mulheres de
acordo com suas subjetividades, principalmente de classe (e consequentemente,
de raça), como Sevcenko descreve que “no centro das grandes cidades, mulheres
transitavam nas ruas, flanando em passos lentos para compras e passeios – no
caso das mulheres das elites – e apressadas para seus trabalhos nas fábricas –
para as operárias” (SEVCENKO, 1992, pp. 50 e 51 apud ANGOTTI, 2011)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 185


Alegadamente, o cárcere, especialmente nas décadas de 1940
e 1950, tinha a função de retirar esses indivíduos considerados
delinquentes e ressocializá-los, recolocando-os na sociedade
reabilitados. Para isso, o trabalho era usado e as tarefas eram
feitas de forma que pudessem ser reproduzidas no exterior do
presídio (ANGOTTI, 2011). No caso das mulheres, esse trabalho
era doméstico, funções como alimentação e limpeza dentro dos
estabelecimentos prisionais eram feitas pelas próprias detentas.

Sendo assim, novamente aquelas mulheres que não se


encaixassem em um estereótipo social feminino tinham sua
autonomia retirada, seja pelo rótulo de louca, ou criminosa. No
caso das mulheres pobres e pretas, isso ocorria de forma ainda
mais violenta, já que historicamente pertencem à parcela mais
marginalizada pelo Estado.

Em suma, nas rotas do desvio estavam aquelas


que eram discrepantes na paisagem urbana ideal.
As mulheres escandalosas, as vestidas de maneira
vulgar, as prostitutas, as moradoras de favelas e
cortiços, as que freqüentavam locais masculinos, as
que se expunham ao mundo do trabalho, as negras e
mestiças, as criadas e empregadas. Em um cenário
mais amplo, é possível atribuir a criminalização dessas
mulheres não apenas à criminalização dos desvios do
feminino, mas também à criminalização da pobreza,
uma vez que quem era pobre potencialmente poderia
ser criminoso, pois habitava e frequentava locais
‘degenerados’, como os cortiços e o baixo meretrício.
Além disso, a legislação do país criminalizava
condutas como a vadiagem e a mendicância, ou seja,
agentes que não tinham empregos regulamentados,
moradia, e que perambulavam pela cidade,
evidenciando a desigualdade social e a desordem no
espaço que tanto se buscava ‘civilizar’ (ANGOTTI,
2011, p. 121).

186 Direitos Humanos


A ideia era que esses espaços fossem construídos e
funcionassem como lugares de “correção” dessas mulheres, para
que restaurassem sua “feminilidade” e tornassem-nas prontas para
o casamento e para a maternidade, uma vida como era a idealizada
pela burguesia da época.
Tendo em vista esse contexto extremamente conservador,
que buscava proteger a todo custo um “dever-ser” feminino, a
experiência da maternidade era vista como um “potencial ativador
dos latentes instintos femininos de cuidado e compaixão, que não
poderia deixar de receber a atenção das autoridades, ainda que se
tratando de detentas” (ANGOTTI, 2011, p. 269) Para isso,

Nos planos e nos projetos de estabelecimentos


prisionais femininos havia previsão de seções
especiais para abrigar as internas gestantes e aquelas
que amamentavam. No plano de reformatório de
mulheres da Bahia, estavam previstas celas especiais
para que as mães pudessem amamentar seus
filhos durante os primeiros meses do nascimento.
Na Penitenciária de Mulheres de Bangu, havia,
segundo relatos de 1946, uma secção para mães com
filhos pequenos, bem como um espaço para visitas
dos filhos maiores, de modo que estes pudessem
‘brincar’ com elas ‘sem se aperceberem da sua vida de
presidiárias’ (APB, 1946, p. 47 apud ANGOTTI,2011,
p. 270)

Analisando as múltiplas determinações dessa realidade, no


entanto, o momento da maternidade era protegido não como forma
de garantir a dignidade da mulher detenta, mas como um momento
em que ela poderia gerar e criar uma prole, com a possibilidade
de que “a maternidade despertaria sentimentos puros, porém
adormecidos nas criminosas.” (ANGOTTI, 2011, p. 272). Lemos
Britto defendia que

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 187


não é à sentenciada que dispensamos tratamento
especial, é a alguma cousa que, ainda se tratando
de criminosas, não perde a sua beleza e santidade,
a maternidade fecunda e criadora; é, ainda à
infância inocente, que não é culpada e não pode
ser responsável pelos descaminhos daquelas cujo
ventre as gerou (LEMOS BRITTO, 1943, p. 23
apud ANGOTTI, 2011, p.272)

A mentalidade era, portanto, de proteção à uma expectativa


patriarcal de família projetada na saúde daquela criança - e não da
mãe - pelo Estado, era na maternidade que se via a chance de se
aplicar uma lógica própria da moral cristã, de redenção daquela
mulher, que sairia da “delinquência” para uma vida “plena”, voltada
para o papel de mãe e cuidadora, que lhe era socialmente imposto.
A perda da individualidade feminina acontece juntamente com
a criação de uma imagem romantizada e quase que santificada
de gestação e maternidade. Isso ao passo que na realidade do
interior do ambiente carcerário, como foi citado anteriormente,
essas mulheres sofriam sistematicamente violência, negligência
e arbitrariedade, sem condições dignas e sem perspectiva de que,
do lado de fora, teriam chance de manter um padrão de vida que
garantisse a saúde dela e da criança.

Percebemos, portanto, que não só a seletividade do sistema


penal e penitenciário leva em conta uma série de fatores que
historicamente tornaram essa ferramenta social e política um braço
violento de controle patriarcal do Estado. Porém, sua existência
como um todo é uma ferramenta cruel de punição de condutas
que considera socialmente indesejáveis ou incompatíveis com
certos padrões de gênero, raça e classe estabelecidos. O contexto
prisional se configura, como mostra seu histórico de surgimento e
funcionamento no Brasil, como uma realidade contrária ao exercício
e respeito das individualidades femininas e uma barreira, por suas
próprias contradições, ao pleno exercício da maternidade.

188 Direitos Humanos


O CÁRCERE E AS MÃES PRESAS NO BRASIL

Em 2015, por meio da Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, o Supremo Tribunal Federal
declarou o sistema prisional brasileiro como um “Estado de
Coisas Inconstitucional”, relatando as inúmeras contradições e as
constantes violações aos direitos humanos que sofrem os mais de
700 mil indivíduos privados de liberdade pelo Estado brasileiro.
Entre as inúmeras violências praticadas nesse âmbito, o ministro
Marco Aurélio apontou, em seu voto, a questão das mulheres
encarceradas que têm seu direito à maternidade violado:

Ressalta o sofrimento das mulheres encarceradas


ante a ausência de estabelecimento próprio e
adequado, não havendo berçários, locais destinados
à gestante e à parturiente ou creches para abrigar
crianças maiores de seis meses e menores de sete anos.
Afirma a falta de cuidados com a saúde das gestantes
presas – não sendo assegurado acompanhamento
médico, no pré-natal e no pós-parto, ou ao recém
nascido –, bem como a carência de ginecologistas e
de fornecimento regular de absorventes íntimos e de
outros materiais de higiene (MEDIDA CAUTELAR
NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL 347, p. 11).

Os dados do INFOPEN MULHERES 2017 atestam essa


displicência com a proteção ao direito das mulheres gestantes e
mães: no Brasil todo, apenas 14,2% das unidades prisionais que
recebem mulheres têm espaço reservado para gestantes e lactantes;
0,66% tem creches, e só existem 48 unidades com berçário ou centro
de referência materno-infantil. A falta de creches e de berçários
propicia a separação precoce da mãe e do filho e, juntamente com

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 189


a falta de assistência médica, pode causar danos na gestação e na
vida da criança. Dessa forma, ressalta-se que os presos no Brasil,
especialmente as mulheres, têm que lidar com um ambiente
insalubre que ultrapassa os limites da mera privação de liberdade
e restringe diversos outros direitos fundamentais, como o da
maternidade.

Mas quem são as mães presas no Brasil e quais crimes elas


cometem? Quais são os fatores dentro da estrutura punitiva
estatal que impedem a efetivação do direito à maternidade? As
respostas para essas duas perguntas se entrelaçam. Ao analisar o
perfil das pessoas aprisionadas, é preciso identificar quais são as
construções sociais e políticas que fazem com que um delito seja
considerado como “mais danoso” para a sociedade, uma vez que
o conceito de crime é identificado a partir das relações políticas,
sociais, econômicas e jurídicas. Essa compreensão nos leva a um
questionamento fundamental: qual é o estereótipo de indivíduo
considerado como mais perigoso? Segundo Zaffaroni,

Em geral, é bastante óbvio que quase todas as


prisões do mundo estão povoadas por pobres. Isto
indica que há um processo de seleção das pessoas às
quais se qualifica como ‘delinquentes’ e não, como se
pretende, um mero processo de seleção das condutas
ou ações qualificadas como tais (2018, p. 62).

No Brasil, é evidente essa seleção de vítimas do sistema


punitivo: de acordo com dados do INFOPEN 2019, cerca de 67% do
total de presos são pretos, pardos ou indígenas; e especificamente
falando das quase 37 mil presas, apenas 10.331 delas (menos de um
terço) são brancas. Ademais, de acordo com o INFOPEN MULHERES
2017, aproximadamente a metade dessas mulheres têm no máximo
o ensino fundamental incompleto e cerca de 60% foram condenadas

190 Direitos Humanos


pelo crime de tráfico de drogas, delito que é apontado como fator
fundamental para a explosão de encarceramentos femininos que
ocorreu entre 2000 e 2014, período em que houve um aumento de
567,4% no número de mulheres custodiadas.

Esse quadro do sistema penitenciário aponta as mulheres


negras e pobres como parte da população atingida diretamente
pela política de “guerra às drogas” instituída pela lei nº 11.342/06.
De acordo com pesquisa feita pela Núcleo de Pesquisa em Política
Criminal e Criminologia da SEJU:

A maioria das mulheres encontra-se presa por tráfico


de drogas (art. 33 e 35, Lei 11.343/06) ou roubo (art.
157, CP), considerando-se tanto as provisórias como
as condenadas. Existe um grande percentual de casos,
dentre as presas por tráfico, em que a quantidade de
droga apreendida pode ser considerada pequena. O
mesmo ocorre com um significativo percentual de
presas que cometeram crimes patrimoniais, em que
o valor dos objetos subtraídos não ultrapassa 01
(um) salário mínimo.

Em números, a mulher encarcerada brasileira é, na maioria das


vezes, presa por tráfico de drogas ou por pequenos roubos, é negra,
jovem, possui baixa escolaridade, é mãe e solteira, já que 86% são
mães e apenas 27% se declaram casadas (LEAL, 2014). Sendo assim,
a criminalização das classes historicamente dominadas e oprimidas
é marcante no sistema penal brasileiro, o que demonstra uma
intensa seletividade, expõe a estrutura patriarcal, racista e classista
do capitalismo dependente brasileiro e a escancara nos números do
sistema prisional- um dos braços de violência do Estado que incide
diretamente no direito à maternidade de milhares de mulheres.

Ao analisar a crise do sistema prisional, é fundamental associar


o estudo dos elementos da ordem punitiva inserida no direito penal

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 191


com os fatores que compõem a base histórica, econômica e social
que imprime nas classes sociais dominadas a marca de, como dito
por Zaffaroni, “delinquentes”. O sistema capitalista, que tem como
pilares de funcionamento e degradação da vida humana o racismo, o
patriarcado e outras diversas opressões, tem, na violência do Estado,
expresso no cárcere e no discurso punitivo, um forte instrumento
de coerção social. Isso porque:

O discurso criminológico surge historicamente como


uma ciência burguesa nascida com o processo de
acumulação do capital para ordenar e disciplinar o
contingente humano que vai produzir a mais-valia.
Essa concepção de mundo, vendida como “teoria
científica”, seria então uma teoria legitimante do
capitalismo. Não é à toa que, apesar da criminalização
de algumas substâncias, o maior indicador criminal
continua sendo o das infrações envolvendo a
propriedade privada (BATISTA, 2011, p. 80).

O cárcere no Brasil, embutido dessas opressões sistêmicas,


ao surgir e se desenvolver, as adaptou frente à nova realidade
de marcos da igualdade formal como a Constituição de 1988, e
tratados internacionais como as Regras de Bangkok e as Regras de
Mandela (ambos ratificados pelo Estado brasileiro), mas a realidade
do sistema prisional atesta a ineficácia de dispositivos legais que
vão de encontro com os interesses (ou desinteresses) das classes
sociais dominantes que prezam pela perpetuação da ordem punitiva
e consequentemente do ciclo de violência produzido pelo sistema
prisional.

Nos estabelecimentos prisionais do Brasil39, há um total de


1.446 filhos de presas, e cerca de 57% deles têm até 3 anos; existe
ainda 225 lactantes e 276 gestantes/parturientes, e a falta de

39
Segundo dados do INFOPEN 2019

192 Direitos Humanos


espaços que ofereçam as condições mínimas necessárias de saúde
física e mental causa danos à criança e à mãe, que sofre duplamente:
com o ambiente precário e com a preocupação de estar transmitindo
ao seu filho aquele mesmo sofrimento. No entanto, a violação do
direito à maternidade não é uma ‘doença’ do sistema prisional, mas
é próprio dele: uma maternidade saudável é impossível dentro dos
muros do cárcere, pois a oferta de assistência e estrutura às mães
presas não é suficiente para garantir o direito pleno à maternidade,
que envolve diversos fatores. A separação precoce entre filho e mãe,
a influência psicológica da privação de liberdade nessa relação, os
limites impostos pelo encarceramento à gestação e criação de uma
criança são elementos que tornam impossível essa conciliação.

Esse contexto violento e suas implicações, que irão afetar a


vida dessas mulheres e de seus filhos, se estendem mesmo após o
cumprimento da pena, já que a violência policial, a criminalização
da pobreza e o racismo estrutural são armas que afastam as
vítimas (diretas e indiretas) do sistema punitivo de oportunidades
de superação da marginalização. O Direito Penal, controlado
pelo Estado, utiliza da prisão para sufocar as reações das classes
oprimidas à desigualdade e à falta de recursos materiais para
reprodução da vida, que se aprofundam ao longo do processo de
acumulação do capital. Para Pachukanis (2017), é nesse ramo do
direito que se torna mais evidente os interesses e as práticas pelas
quais o direito age, o que torna compreensível, por exemplo, o fato
dos crimes contra a propriedade serem uma das principais causas
do aprisionamento40. Segundo o autor:

De todos os ramos do direito, é justamente o direito


penal o que tem capacidade de afetar o indivíduo
de modo mais direto e brutal. Por isso, ele sempre
atraiu para si o mais ardente e, além disso, o mais

40
De acordo com o INFOPEN 2019, no Brasil o índice de incidência dos crimes contra a
propriedade é de cerca de 51%.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 193


prático interesse. A lei e a pena por sua violação, em
geral, estão intimamente associadas uma à outra e,
dessa maneira, o direito penal como que assume o
papel de representante do direito em geral, é a parte
que substitui o todo (PACHUKANIS, 2017, p.147).

Nesse viés, o poder punitivo presente no sistema carcerário


é, por si só, um elemento de ofensiva de classe, que atua contendo
todos os fenômenos intitulados “crimes”, manipulando os discursos
de segurança estatal por meio da violência em sua forma mais crua.
Dentro das prisões, é possível ver com clareza o ciclo de produção
e reprodução da criminalidade, que beneficia a manutenção do
abismo de desigualdade social e empurra a lógica de dominação por
gerações a fio, o que fica mais evidente no estudo da maternidade
no cárcere, que deixa sempre implícito, como resultado principal, a
precarização da vida da mãe e da criança, vítimas do poder imposto
por um Estado violento.

É a partir das raízes dessa estrutura que desenvolve-se o


sistema prisional, que não é desigual por ser precário mas é precário
por ser, em forma e em conteúdo, ferramenta de desigualdade. O
papel das prisões é muito bem definido por Angela Davis:

Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza —


ela nos livra da responsabilidade de nos envolver
seriamente com os problemas de nossa sociedade,
especialmente com aqueles produzidos pelo racismo
e, cada vez mais, pelo capitalismo global. (...) A prisão
se tornou um buraco negro no qual são depositados
os detritos do capitalismo contemporâneo. O
encarceramento em massa gera lucros enquanto
devora a riqueza social, tendendo, dessa forma, a
reproduzir justamente as condições que levam as
pessoas à prisão (2018, p. 15).

194 Direitos Humanos


A centralidade da questão é, portanto, o caráter das prisões
e a impossibilidade delas abrigarem a proteção à maternidade em
seus propósitos. E se as questões que apontam isso não estão só
na precariedade dos serviços e das políticas públicas voltadas
ao problema, mas também na sua própria composição racista,
machista e classista, e nas violências sistemáticas que as pessoas
que são “detritos do capitalismo contemporâneo” sofrem dentro
e fora das cadeias, é porque as prisões servem para manter essas
estruturas e não derrubá-las.

Mas abolir? Onde vamos colocar os prisioneiros?


Os “criminosos”? Qual é a alternativa? Em primeiro
lugar, não ter nenhuma alternativa produziria
menos criminalidade do que os atuais centros de
treinamento criminal. Em segundo lugar, a única
alternativa completa é construir um tipo de sociedade
que não precise de prisões: uma redistribuição digna
de poder e renda, de modo a apagar a chama oculta
da inveja que agora arde em crimes de propriedade
— tanto os roubos cometidos por pobres quanto
os desvios de fundos cometidos por ricos. E um
senso decente de comunidade que possa apoiar,
reintegrar e reabilitar verdadeiramente aqueles que
de repente são tomados pela fúria ou pelo desespero,
e que os encare não como objetos — “criminosos”
—, mas como pessoas que cometeram atos ilegais,
como quase todos nós já fizemos (WASKOW apud
DAVIS,2018, p. 86).

Dessa forma, a extensão dos problemas relacionados a mães


dentro do sistema penitenciário são agravamentos de problemas
sociais que transcendem o ambiente do cárcere, mas encontram
nele sua representação mais violenta. É necessário, portanto,
entender que as prisões possuem o papel de elemento opressor do
Estado, para apreender a situação dessas mulheres e quais são as

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 195


especificidades que o sistema patriarcal, sustentado pelo Estado
burguês, impõem a essa problemática.

O ENCARCERAMENTO COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO DO


ESTADO

O papel do Estado e a influência que ele pode exercer nos


grupos sociais é um questionamento que perpassa gerações de
pensadores e que somente poderá ser devidamente explicitado
quando proposto junto a um estudo sobre como esse Estado conduz
o seu sistema carcerário e, principalmente, a população feminina
nele contida, com suas especificidades intrínsecas.

De início, deve-se buscar a compreensão de que o modelo


punitivista adotado é, em sua gênese, um modelo de resolução
vertical e hierárquico de conflitos, ou seja, o que existe é uma
visão conservadora e unidirecional, que estruturalmente propaga
características segregativistas, oportunistas e de reprodução
contínua da violência, mesmo que implicitamente (ZAFFARONI,
2013, 1991). Desse modo, um sistema que difunde o discurso da
ressocialização acaba por atuar de modo negligente e omisso para
com os direitos fundamentais dos apenados.

Um estudo feito por Andrei Koerner (2006, p. 222) salienta


que “as condições das prisões correspondem à forma de estruturação
das relações sociais sob um aspecto mais geral”, o que evidencia a
influência da lógica patriarcal sob o sistema penitenciário, que
“foi criado por homens e para homens” (CERNEKA, 2009, p. 61).
Observa-se o descaso estatal em relação às particularidades do
gênero feminino, sujeitando as mulheres a um ambiente insalubre,
inadequado e superlotado, o que resulta em uma experiência
dramática para elas, distanciando-as de perspectivas saudáveis para

196 Direitos Humanos


o futuro, de suas ambições e projetos pessoais, de sua personalidade
e aproximando-as de moldes pré-definidos, artificiais e silenciados.

No Brasil, em sua grande maioria, as prisões


femininas são escuras, encardidas e superlotadas.
Dormir no chão, fazendo revezamento para ficar
um pouco mais confortável, é praticamente regra.
Os banheiros exalam mau cheiro, a higiene nem
sempre é a mais desejável, os espaços para banho de
sol são inadequados e não existe a mínima estrutura
para acomodar uma criança(...) (SEIXAS, 2016 apud
GREGOL, 2016, p. 8)

Ao analisar-se os escritos de Bourdieu (2005), percebe-se que


a noção da inferioridade feminina foi historicamente naturalizada,
juntamente com seu silenciamento, criando-se a ideia de que era
algo que não poderia ou deveria ser combatido e alterado, e com
isso criou-se uma mulher “duplamente estigmatizada, como
transgressora da ordem social e como descumpridora do papel
materno e familiar, na lógica do patriarcado em que a mulher deve
manter-se no espaço privado”(COSTA, 2017, p. 51 apud SANTOS;
SILVA, 2019).

A violência ao gênero feminino é intrínseca ao sistema, de


modo que as mulheres acabam por tomar para si pensamentos
produzidos pela lógica da dominação (SIMÕES, 2015), embora não
percebam que o fazem. O que significa que há uma incorporação
inconsciente de discursos externos e que suas convicções e ideais
sofrem um processo de apagamento, fato esse que atende aos
interesses de poder de um Estado controlador e invasivo, que se
baseia na premissa de “mais polícia, mais prisão, mais pena, mais
armamento” (LIMA; SINHORETTO, 2011, p. 134).

Em adição ao sofrimento de fazer parte do sistema prisional,


uma experiência ainda mais desgastante e não humanitária é a das

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 197


mulheres gestantes inclusas neste ambiente. Traumas psicológicos
são comuns entre as apenadas nesse contexto, já que a fragilidade e
as peculiaridades inerentes ao momento gestacional e puerperal são
constantemente desrespeitadas e colocadas em segundo plano. O
momento da amamentação requer privacidade e deve ser realizado
em um ambiente que proporcione a criação de laços entre a mãe e
o recém-nascido, devendo estes estarem aptos a receber também o
apoio da família e do cônjuge. De acordo com Gregol (2016, p. 9):

O desrespeito ao direito à amamentação e à


convivência materna impacta de forma imensurável
a vida destas mães e seus filhos, transformando
a maternidade em uma experiência dramática e
resultando, diversas vezes, na fragilização ou ainda
no absoluto rompimento dos vínculos afetivos com
sua prole.

A problemática da falta de suporte nutritivo para saúde da


mãe e da criança também se mostra de suma importância, pois a
alimentação precária, tanto em quantidade quanto em qualidade,
é um fator que afeta o crescimento e desenvolvimento do recém-
nascido (GREGOL, 2016). No momento pós-parto, a mãe, tensa
e constantemente supervisionada, não possui um sistema
emocional fortalecido o suficiente para entender a separação de
seu filho. Os hormônios da gravidez ainda estão presentes e há o
desenvolvimento, muitas vezes, de depressão pós-parto, que não é
tratada ou sequer debatida dentro do ambiente carcerário. O fato se
agrava com o completo ócio que a mãe, afastada temporariamente
das atividades do presídio, experimenta.
Com pouco ou nenhum controle sobre o seu destino e o do
recém-nascido ou sobre a formação da personalidade deste, a mãe
é novamente violentada, pois, como pontua Oliveira e Cavalcanti
(2007, p. 40) “a violência então seria toda e qualquer ação que torna

198 Direitos Humanos


alguém desprovido de autonomia”. O sentimento de incapacidade
para cuidar do filho e de tensão por conta da expectativa de partida
dele são fatores experimentados de forma amplificada pelas
apenadas, que podem vir a desenvolver distúrbios psicológicos de
longa duração e muitas vezes irreversíveis.
Paralelamente ao recorte de gênero, analisa-se que o recorte de
classe também deve ser pautado, pois acredita-se que a condenação
Estatal além de sexista também se motiva mais pela classe social
da mulher envolvida do que pelo crime em si (RAUTER, 2003
apud SANTOS; SILVA, 2019). Isso pode ser observado quando se
constata que o perfil dessas apenadas é, em sua maioria, “mulheres
de baixa escolaridade que vivem nos bairros mais carentes das
grandes cidades” (DIUANA et al, 2017, p.2). Wacquant (2008 apud
DIUANA et al, 2017, p.18) aponta que o Estado utiliza-se do modelo
punitivista para realizar um controle de pobreza, uma reclusão das
classes menos privilegiadas em um só local:

Para que não se advogue apenas pela transferência da


prisão para o domicílio, é preciso questionar a lógica
das políticas públicas, que, pautadas num projeto de
Estado, de inspiração neoliberal, vêm reduzindo seu
compromisso com a garantia dos direitos sociais da
população ao mesmo tempo que amplia a intervenção
penal como estratégia de controle da pobreza.

Em relação ao recorte de raça, Angela Davis (2018) pontua,


através da fala do historiador Adam Jay Hirsch, semelhanças entre o
sistema carcerário e a escravidão ao colocar que ambos subordinam
seus sujeitos à vontade de outras pessoas ou de outras instituições
e o fazem fornecendo apenas premissas básicas à sobrevivência,
como água e comida (teoricamente a proteção seria elencada aqui
concomitantemente, mas observa-se que a preocupação estatal está
apenas em “proteger os de fora”, não havendo comprometimento

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 199


ou interesse com a defesa dos apenados em si). Se não há a defesa
dos interesses dos apenados no geral, quando se trata do gênero
feminino, o descaso torna-se mais exacerbado.

Para conseguir sobreviver e recuperar um pouco do


sentimento de visibilidade que foi tirado pelo Estado, observa-se
que algumas apenadas sentem-se inclinadas a adotar estratégias
como a reprodução de vestimentas e de comportamentos tidos
como “tipicamente masculinos”, de modo a obterem os privilégios
e poderes que estes proporcionam (BARCINSKI, 2012 apud
BARCINSKI; CÚNICO, 2014) dentro do sistema, propiciando que
sejam tratadas como homens pelas próprias companheiras e por
toda a equipe responsável pelo presídio. Ou seja: para obtenção
de respeito, é necessária uma aparente inversão para o papel
masculino, ser mulher não é suficiente para exigir esse atributo. Tal
tentativa de inversão culmina em um processo que Goffman (1987
apud SANTOS; SILVA, 2019) denomina de “mortificação do eu”, em
que há um rompimento brusco com características pessoais e de
gênero.

Outro fator que deve ser abordado ao analisar as


consequências que o cárcere traz é a solidão da mulher dentro do
sistema. O descaso progressivo por parte do parceiro, membros da
família e amigos, que cedem à pressão social e modificam o modo
como veem a apenada, rompe com todo o sistema de suporte com
o qual ela contava antes do ocorrido. Esse rompimento dá-se por
conta da transição de sua imagem de mulher-mãe-dona de casa
para a de mulher-criminosa, frustrando as expectativas colocadas
sob elas por terceiros e imergindo-a na culpa e no afastamento
de perspectivas de futuro para si própria. Segundo Brandão et al.
(2015, p. 20 apud ARGUELLO; HORST, 2020):

Outras causas para tal desamparo são: a) dificuldades


financeiras para que os familiares se desloquem até os

200 Direitos Humanos


presídios, isso porque, como há um baixo número de
presídios femininos - se comparados aos masculinos
-, é comum que as presas estejam cumprindo pena
em locais distantes da cidade de origem; b) os dias
e horários das visitas, em várias penitenciárias,
são em dias de semana, o que impede que pessoas
que trabalham ou as crianças e jovens que estudam
possam visitá-las com frequência; c) a existência de
revistas vexatórias; d) várias presas consideram o
ambiente prisional degradante e inadequado para
seus familiares e, por isso, abrem mão das visitas.

Queiroz (2015 apud ARGUELLO; HORST, 2020) também


aponta que, por conta da insalubridade e da falta de itens adequados
de higiene pessoal para as mulheres que não recebem visitas,
adotou-se por muitas a prática de oferecer serviços, como manicure
e cuidados com o cabelo, em troca de mais unidades de absorvente,
hidratantes, entre outros. Ou seja, as apenadas desenvolvem um
sistema de trocas e, por conta disso, acabam criando também
vínculos umas com as outras, o que faz com que algumas tenham
medo de sair do sistema pois este é seu novo lugar “seguro”.

Seja entendendo o sistema como lugar seguro, já que os


vínculos com a sociedade externa foram rompidos, seja sentindo
solidão como mulher ou como mãe, os objetivos manipuladores do
Estado são alcançados, isolando-as e enquadrando-as em moldes
silenciados, apagados e conformados.

CONCLUSÃO

A análise do histórico das prisões, dos fatores de gênero que


cercam o quadro da ação do poder punitivo estatal, e da situação
do cárcere no Brasil, direcionada à questão da maternidade, torna

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 201


evidente que, dentre as diversas violações de direitos humanos,
a ineficiência na proteção ao direito à maternidade no cárcere se
mostra não só como um reflexo das problemáticas do sistema penal
como um todo - que acomete homens e mulheres de classes sociais
subalternizadas historicamente - mas também como um fator de
impulso no ciclo de violência e marginalização dessas pessoas.

É possível constatar, portanto, que a situação precária


dos presídios é um grande obstáculo na efetivação dos direitos
humanos, já que a situação das cadeias, bem como a estrutura legal
direcionada ao caso das mães presas, é insuficiente e, em alguns
casos, até inexistente. No entanto, a precariedade em si não é o
único problema e não aponta-se uma reforma do sistema prisional
como solução. Isso porque a questão central, pela qual orienta-se
a compreensão da prisão como instituição de violência e opressão
não está somente em sanar um possível déficit de esforços públicos
ou melhorar as condições dos encarceramentos, mas em perceber
que a própria prisão, em forma e conteúdo, como foi construída
historicamente e com os propósitos que possui atualmente, não
pode ser um lugar compatível com a promoção da maternidade.

Entende-se que o problema que dá sustentação ao cárcere


é estrutural, ou seja, transcende soluções limitadas a ações
meramente formais de melhoria das cadeias, portanto exige
soluções sistêmicas. O aprisionamento em massa, a superlotação,
a seletividade penal, os ambientes precários e as restrições sofridas
pelas mães presas são aprofundamentos do papel violento do
sistema carcerário, que surgem em meio ao agravamento de uma
diversidade de fatores que se imprimem no retrato das cadeias: o
racismo, o machismo, a desigualdade, entre outros. Ao analisar a
situação de uma mãe dentro do sistema carcerário e os danos que
a privação de liberdade pode causar a ela e ao seu filho, pode-se ver
como todo o contexto anterior ao crime cometido e criado a partir

202 Direitos Humanos


de sua pena é, na maioria das vezes, correspondente aos papéis de
gênero, raça e classe que historicamente lhes são reservados.

REFERÊNCIAS

ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIOl, Tribunal


Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-
031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.

ANGOTTI, Bruna Soares. Entre as leis da Ciência, do Estado


e de Deus. O surgimento dos presídios femininos no Brasil.
2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2011. doi:10.11606/D.8.2011.tde-11062012-145419.
Acesso em: 2020-10-02

ANGOTTI, Bruna; SALLA, Fernando. Apontamentos para uma


história dos presídios de mulheres no Brasil. In: Revista de
Historia de las Prisiones. 2018, n°6, pp.7-23.Disponível em <https://
www.revistadeprisiones.com/wp-content/uploads/2018/06/1_
Angotti_Salla.pdf>. Acesso em: 3 set. 2020

ARGUELLO, Katie Silene Cáceres; HORST, Juliana de Oliveira.


Rev. Estud. Fem. vol.28 no.2 Florianópolis. 2020. Epub 03-Jul-
2020DAVIS, Angela. Estarão as prisões absoletas?. 1ªed. Rio de
Janeiro: Difel,2018.

BARCINSKI, M. (2012). Expressões da homossexualidade


feminina no encarceramento: o significado de se “transformar
em homem” na prisão. Psico-USF, 17(3), 437-446.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 203


BARCINSKI, Mariana; CÚNICO, Sabrina Daiana. Os efeitos (in)
visibilizadores do cárcere: as contradições do sistema prisional.
Psicologia vol.28 no.2 Lisboa dez. 2014.http://www.scielo.mec.pt/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-20492014000200006

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena


Kühner. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

CERNEKA, H. A. Homens que menstruam: considerações


acerca do sistema prisional às especificidades da mulher.
Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 6, n. 11, 2009.

Costa, M. K. T. (2017). Mulheres, Corpos e a Estética da


Existência: Um Estudo de Caso em Instituição Prisional Sobre
Mulheres Encarceradas por Envolvimento com o Tráfico de
Drogas. 2017. Dissertação de Mestrado,
Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Juiz de Fora,
MG. Recuperado de https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/
ufjf/5559/1/mairaknupptoledocosta.pdf

DIUANA, Vilma; CORRÊA, Marilena C.D.V.; VENTURA, Miriam.


Mulheres nas prisões brasileiras: tensões entre a ordem
disciplinar punitiva e as prescrições da maternidade. 2017.
Acesso: https://www.scielo.br/pdf/physis/v27n3/1809-4481-
physis-27-03-00727.pdf

GOFFMAN, E.. Manicômios, prisões e conventos. 2ª ed. São


Paulo: Perspectiva,1987

204 Direitos Humanos


GREGOL, Luciana Fernandes. Maternidade no Cárcere – Um
estudo reflexivo acerca da prisão feminina e o exercício da
maternidade no sistema penitenciário brasileiro. 2016. 69p.
Monografia (Bacharelado em Direito)- Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal


no Brasil do Século XIX. Lua Nova, n. 68, p. 205-242, 2006.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n68/a08n68.pdf

LEAL, M.C.; SANCHEZ, A. (Coords). Saúde materno-infantil


nas prisões. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública –
Fundação Oswaldo Cruz, 2014, p. 67-157. Relatório.

LIMA, Daniela. Aproximações entre o movimento feminista e


o antimanicomial. 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.
c o m . b r / 2 0 1 6 / 0 1 / 1 2 / a p ro x i m a c o e s - e n t re - m o v i m e n t o -
feminista-e-antimanicomial/#:~:text=G%C3%AAnero%20e%20
loucura%20s%C3%A3o%20moldados,padr%C3%B5es%20
hist%C3%B3ricos%20e%20culturais%20
espec%C3%ADficos.&text=Neste%20ponto%2C%20
o%20mov imento%20ant imanicomi al,exc luir%20as%20
diferen%C3%A7as%20de%20g%C3%AAnero.. Acesso em: 12 ago.
2020.

LIMA, R. S. de; SINHORETTO, J. Qualidade da democracia e


polícias no Brasil. In: LIMA, R. S. de. Entre palavras e números:
violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo:
Alameda, 2011. p. 129-152.

MALAGUTI BATISTA, Vera. Introdução Crítica à Criminologia


Brasileira.2ªed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 205


NÚCLEO DE PESQUISA EM CRIMINOLOGIA. Mulheres
encarceradas- Quem são?.[S.L], 2012,p.2

OLIVEIRA, A. P. G. & CAVALCANTI, V. R. S. (2007). Violência


Doméstica na Perspectiva de Gênero e Políticas Públicas.
Rev. Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 17(1),39-51.
Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v17n1/04.
pdf.

PACHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito e Marxismo.1ª Ed.


São Paulo: Boitempo,2017.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam: a brutal vida das


mulheres - tratadas como homens - nas prisões brasileiras. Rio de
Janeiro: Record, 2015.

Rauter, C. (2003). Criminologia e subjetividade no Brasil.


Rio de Janeiro: Revan. Recuperado de http://arquimedes.adv.
br/livros100/Criminologia%20e%20Subjetividade%20no%20
Brasil%20-%20Cristina%20Rauter.pdf

SANTOS, Jessika Borges Lima; SILVA, Márcio Santana da.


Encarceramento feminino: reflexões acerca do abandono
afetivo e fatores associados. Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São
Paulo set./dez. 2019.

SEIXAS, Taysa Matos. Os filhos da outra: A mulher e a gravidez


no cárcere. 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.
br/tag/amamentacao.

206 Direitos Humanos


SIMÕES, Heloísa Vieira. A TUTELA PENAL PATRIARCAL E
O PARADOXO DO FEMINISMO PUNITIVISTA. 2015. 107p.
Monografia (Bacharelado em Direito)- Faculdade de Direito, Setor
de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná.

WACQUANT, L. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo,


2008. 156p

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1ªed. Rio de


Janeiro: Revan, 2013.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a


perda da legitimidade do sistema penal. 1ªed. Rio de Janeiro:
Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugênio RauL; PIERANGELI, José Henrique.


Manual de Direito Penal Brasileiro.12. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2018, p. 61-75.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 207


O UNIVERSAL, A OUTRA E A FALHA:

A DOMINAÇÃO MASCULINA EM BOY ERASED

João Paulo da Silva

INTRODUÇÃO

A representatividade LGBTQIA+ ganhou forte espaço em


discussões públicas, nas artes, como também em programas na TV
aberta, filmes e canais de internet. De forma rápida e fácil, hoje, é
possível acessar algum conteúdo que trate das questões atinentes
a população LGBTQIA+, o que facilitou o acesso à informação e a
possibilidade de expressão artístico cultural por artistas da sigla,
que para além de não terem amarras em se identificarem enquanto
tais, produzem material a partir de suas experiências e vivências. No
decorrer de tais conquistas, a linguagem cinematográfica também
evoluiu no que confere a ampliar o rol de discussões acerca das
implicações que ocorrem em vivências de pessoas LGBTQIA+, sendo
comum e extenso o leque de produções que tratem da temática.

Boy Erased41, filme de 2018, dirigido por Joel Edgerton


e produzido pela Universal Pictures, entra no rol de produções
cinematográficas que levantam questionamentos e acende polêmicas
a respeito da possibilidade de reversão da homossexualidade
através de terapias de “cura”, ocorridas em recinto terapêutico de
cunho religioso. Por mais absurdo que possa parecer e mesmo com

41
No Brasil, apesar do filme não ter sido distribuído nas salas de cinema, já há sua
comercialização por meio de DVDs e houve a tradução da obra como Boy Erased: uma
verdade anulada.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 209


o aval da Organização Mundial de Saúde42, que em 17 de maio de
1990 retirou a homossexualidade da lista de doenças mundiais,
friso dois pontos que serão essenciais para as reflexões em torno da
análise sócio qualitativa da obra: 1º - o filme foi baseado na história
real de Garrard Conley, que foi submetido a terapia de reversão
da sua homoafetividade em cidade localizada no interior no Sul
dos Estados Unidos; 2º - os fatos ocorreram mesmo após a OMS
ter declarado que a manifestação do desejo sexual por pessoas do
mesmo sexo não pode ser considerada doença.

Listo tais pontos por entender que, apesar da arte imitar a


vida, faz se necessário explicitar pormenores aos quais apenas a
exibição do filme não é capaz de mostrar, vez que sua proposta não
é elucidativa, por tratar-se de uma ficção. No entanto, de antemão,
defendo o uso da linguagem cinematográfica como ferramenta
pedagógica imprescindível para se discutir temáticas importantes
que dialoguem com a defesa dos direitos humanos, uma vez que na
visão do senso comum, ainda há muito achismo e desinformação
a circular entre a sociedade, na maioria das vezes partidas por
institutos de relevância imensa na formação de opinião social
(templos religiosos, mídias sociais, pronunciamentos públicos de
representantes governamentais etc).

Deveras, em tempos em que o poder máximo do país reduz


as discussões efetivadas por filósofos como Focault e Butlher à
terminologia “ideologia de gênero”, situo a produção deste ensaio
em meio a um Brasil que amarga a era “bolsonarista” e efetivo a
análise sociológica do filme Boy Erased junto a pensamentos de
autores que se dedicam aos estudos de gênero e sexualidade, assim
como, marco meu lugar de fala, que como aduz Ribeiro (2017)
representa um lugar social de onde se fala por alguém (s) com
42
https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/ha-21-anos-homossexualismo-
deixou-de-ser-considerado-doenca-pela-oms,0bb88c3d10f2731
0VgnCLD100000bbcceb0aRCRD.html

210 Direitos Humanos


compromissos progressistas frentes às lutas sociais encampadas
pelo grupo vulnerável.

Adiante, ao ter como objetivo reconhecer a força da dominação


masculina, Bourdieu (2012) na reprodução das formas e modelos de
comportamentos daqueles que para o homem branco, heterossexual
e cristão - vez que universais - são os outros, faço uso de autoras
como Raewyn Connell, Simone de Beauvoir, Judith Butler e Guacira
Lopes Louro para identificar a construção do gênero por meio de
elementos históricos, sociais e culturais que partem de instituições
sociais que são inerentes à vida e à história de qualquer indivíduo
(religião, família, escola etc), mediante a análise sociológica do
filme Boy Erased.

A DOMINAÇÃO MASCULINA SOBRE AQUELES TIDOS COMO


OUTROS EM BOY ERASED

O Universal, o Objeto e a Falha:

Logo nos 15 (quinze) primeiros minutos do filme existe a


entrega ao espectador do ambiente e da composição familiar que é o
eixo central da trama. Em uma cidade interiorana do Sul dos Estados
Unidos, reside uma família classe média padrão, conservadora e
cristã: pai, mãe e filho. O último, personagem principal da história
(Jared), teve sua formação cultural e histórica cimentada por
forte influência religiosa, fato evidente na forma como seus pais
se vestem, se comportam e se relacionam com seus pares. Em
meio a uma família “normal”, o arco dramático da história inicia-
se ao tempo em que os pais de Jared decidem submetê-lo a um
tratamento de terapia religiosa, vez que passaram a associar o seu

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 211


comportamento como destoante daquilo que eles esperavam para
um jovem que foi projetado a ser construído heterossexual.

Bourdieu (2012) fundamenta a dominação masculina pelo


poder simbólico conferido aos homens na estruturação social. Tais
relações de poder perpassam os ambientes públicos e privados, ao
ponto de naturalmente as projeções de comportamentos sociais
serem moldadas por uma ótica masculina. A partir deste ponto, a
figura do pai em Boy Erased contém todos os elementos simbólicos
que se espera de um modelo ideal de homem para a sociedade:
heterossexual, branco, casado com uma mulher obediente e fiel,
pai, provedor do lar, líder religioso etc. Todas as características que
o formam o elevam ao patamar máximo de ser humano e nisso há
um poder de decisão e controle na maneira como conduz as decisões
familiares.

Ser um homem heterossexual é ser um “eu”. Ser uma mulher


é ser um outro. Uma das frases mais famosas de Beavouir (1980)
aduz que: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. A construção
do ser feminino parte de um modelo idealizado do que se espera
que uma mulher seja, que aos moldes do pensamento da filosofa
francesa, deve corresponder ao ideário masculino. Se em uma
família, consoante a retratada no filme, há um casal heterossexual,
a mulher automaticamente será o outro. Analisemos a mãe em Boy
Erased.
A personagem que compõe a mãe da família é o retrato
fiel do que uma sociedade espera que uma mulher seja no seio
de uma família. Sempre linda, excelente mãe, não discorda do
marido, mesmo quando dúvida de suas convicções. Antes de ser
ela, a personagem é a mulher do pastor ou, digamos, a mulher do
personagem masculino da história. A força do poder masculino
fica evidentemente clara na obra, a exemplo de quando a mesma
convence o filho a continuar na terapia de “cura gay” ou quando,
mesmo após o filho ter se assumido, e já viver fora de casa com

212 Direitos Humanos


seu companheiro, ela afirma que não comenta nada com o marido a
respeito da sexualidade do jovem. Assim, sendo o pai o “eu” e a mãe
a “outra”, Jared, filho do casal, consiste na falha.

Dos jargões reproduzidos pela sociedade a exemplo de: “mas


uma mãe ou um pai nunca esperam que um filho seja gay”; “ele
nasceu menino” ou “mas o homem foi feito pra gostar de mulher”,
adjetivamos o personagem principal do filme de “falha”, por este
não ser a correspondência do que uma sociedade espera de uma
pessoa do sexo masculino. Jared reflete aquilo que sua família
abomina, pois fora construído em meio a ideais e experiências onde
a sexualidade não pode ser exercida para além do que foi instituída
em sua construção histórica. A eles só caberia a seu rebanho “o
côncavo e o convexo” (FELICIANO, 1983).

Focault (2014) entende o sexo como categoria de poder capaz


de regular e moldar as formas de comportamentos dos corpos.
Com base neste ideal, Butlher (2019, p.195) entende o sexo como
“uma norma regulatória que trabalha de forma performativa para
constituir a materialidade dos corpos e para materializar a diferença
sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual”.
Portanto, ao prisma do pai do garoto, com o reforço das instituições
sociais que os rodeiam (cidade conservadora, religião, crença na
ordem biológica de exercício da sexualidade) seu filho deveria ser
um homem, aos moldes da construção histórico cultural dominante
e se diferente o for - como ilustrado no filme - sua “cria” seria um
corpo abjeto43.

Interessante perceber que tanto Butlher quanto Beavouir


aproximam-se ao constatarem que na ordem global de gênero
a reprodução do ser masculino inviabiliza tanto a existência da
43
A terminologia corpos abjetos é de autoria de Judith Butler. Consiste em expressão
linguística desenvolvida em seus estudos sobre a teoria queer, entre os anos 80 e 90 e
surge para contemplar os corpos daqueles que diferiam da ordem comportamental padrão
de gênero/sexualidade e desejo, ao qual estabelece a heterossexualidade como parâmetro
a ser seguido por todos os humanos.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 213


mulher sem seu correspondente masculino, a ditar regras e padrões
de comportamento, como a livre expressão de formas outras de
sexualidade para além do padrão heterofalocêntrico. Entre suas
diferenças, para ambas, quem dita as regras dominantes de existência
e performatividade, em um contexto histórico e cultural secular são
aqueles tidos por universais: os homens brancos heterossexuais. O
exercício de poder destes define as posições centrais de gênero e
sexualidade, e em que pese o avanço nas conquistas de direitos por
grupos minoritários, estes ainda permanecem no ditame das regras
sociais.

Durante quase que todo o filme percebe se a dominação


masculina a ditar as regras sociais para além do conflito principal
que compõe o enredo da obra. No entanto, para além do binarismo
heterossexualidade/homossexualidade em torno da existência
de Jared, a dinâmica das relações sociais no filme efetiva uma
contraposição entre masculinidade/feminilidade, binômio este
presente na forma como Connel (1995) reconhece o exercício do
poder dos homens nas esferas públicas e privadas das relações
sociais. Ao que parece, a performatividade do pai para com as
feminilidades presentes nos corpos de sua esposa e de seu filho
apenas reiteram a dominação masculina presente nos estudos da
autora, em que ao masculino é reservado a produção nos sentidos
de sua existência e projeção das formas de existências aos demais.

Para Connell (1995), a matriz de dominação e regulação


dos corpos vem de construções de ideários masculinos e toda
e qualquer feminilidade que ouse distorcer ou enfraquecer a
estrutura cisheteropatriarcal é alvo de ataques. Para além de
reproduzir e reforçar, as masculinidades não podem ser ameaçadas
por feminilidades outras, estejam presentes em corpos masculinos
ou femininos. Homens brancos precisam sustentar seus poderes
seculares e suas supremacias universais para que se mantenham
firmes nos exercícios dos seus privilégios. Não se negocia poderes

214 Direitos Humanos


assim tão facilmente na ordem social patriarcal atual. Quando
homens falam os demais se calam. Assim eles pensam, assim tais
esperam.

O Poder na Regulação dos Corpos e da Sexualidade:

Todo ser humano é resultado de um processo biopsicossocial.


Critérios biológicos nos formam, no entanto, somos resultados das
construções sociais em nossa volta advindas de nossas relações
familiares, educacionais, religiosas e dos reflexos destas em nossas
mentes. Neste aspecto, conforme Foucault (2014), vivemos em
sociedade e em tal somos estruturados por relações de poder, as
quais ditam as regras das culturas e identidades dominantes. Nossos
corpos não fogem desta regra e com eles o exercício de nossas
sexualidades, que para além disto, passam a ser representadas por
aqueles que ocupam as posições centrais tidas por “normais” na
sociedade.

Louro (2019) representa bem como as relações de poder


classificam aqueles que fogem aos padrões “normais” de
comportamento como outros:

“Os grupos sociais que ocupam posições sociais


centrais, “normais” (de gênero, de sexualidade, de
raça, de classe, de religião, etc) tem possibilidade de
não apenas representar a si mesmos, mas também
representar os outros. Eles falam por si e também
falam pelos outros (e sobre os outros); apresentam
como padrão sua própria estética, sua ética ou sua
ciência e arrogam-se o direito de representar (pela
negação ou pela subordinação) as manifestações dos
demais grupos (LOURO, 2019, p.19).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 215


O personagem principal de Boy Erased, que por decisão
familiar foi enviado a um centro religioso para que pudesse não
possuir comportamentos e pensamentos destoantes do padrão da
heterossexualidade, não se sentia confortável no exercício de sua
sexualidade para enquadrar-se na efetivação de desejos para com
o sexo oposto. Dentro de sua confusão mental, para existir sem as
amarras dos processos que o formaram até então, todos os estímulos
que englobava sua construção individual, histórico e cultural –
ao qual havia forte fundamentalismo religioso – denotavam uma
negação da existência de possibilidades outras de conjugação de sua
sexualidade, ao tempo em que tanto ele como os que estavam ao seu
redor negavam sua homoafetividade.

Mediante um universo de pessoas ao redor, todos afirmavam


que ter desejos por pessoas do mesmo sexo ou comportamentos
afeminados era “errado” para um “homem”, pois homens deveriam
ter códigos e comportamentos que remetessem a um tipo especifico
de masculinidade, representada, à visão da maioria, pelos signos
que remetessem a virilidade, dureza, competitividade etc.
Nesta construção do ser humano, Louro (2019) entende que os
processos pedagógicos de formação das identidades individuais são
multifatoriais e advêm de estímulos diversos a exemplo da: família,
escola, mídia, religião (...). Para a teórica, a interseção destes fatores
“aparece de forma articulada, onde praticas hegemônicas são
reiteradas, identidades são negadas ou recusadas, ou confundidas,
apresentando se divergentes, contraditórias e alternativas”
(LOURO, 2019, p.30).

Sobre essa representação advinda da conjunção de múltiplos


fatores aos quais formam um ser, que em sua individualidade já se
faz plural, como um grupo de indivíduos pode concluir a respeito
de modos e formas de comportamento em campo tão fluido
quanto a ordem gênero/desejo/sexualidade. A forma refletida deste
“modelo ideal de comportamento” esperado pelos pais de Jared era

216 Direitos Humanos


o da heterossexualidade compulsória, evidente no filme, e com o
agravante do reforço da religião, a condenar práticas diferentes da
heterossexualidade compulsória. Reflexo disso acontece ao tempo
em que já havia a certeza, pelos pais de Jared, de existir práticas de
violência no centro de terapia, e mesmo assim, ambos decidirem
manter o filho em “tratamento”, mediante a influência que os
líderes religiosos tinham sobre as decisões da família.

Não se faz distante o caso retratado em Boy Erased com


a realidade brasileira, uma vez que, mesmo com a retirada da
homoafetividade da lista de doenças pela Organização Mundial
de Saúde, discursos religiosos condenam moralmente tal forma de
expressão da sexualidade, o que já é de imensa gravidade. Exemplo
disso é a proposição de projeto de lei44 por ex-pastor e deputado
federal pelo Rio de Janeiro, para que psicólogos possam atender
pacientes que queiram reverter a homossexualidade (PL da cura
gay), ainda que tal normativa seja vedada expressamente pelo
Conselho Federal de Psicologia e não tenha guarida legal pelo
ordenamento constitucional brasileiro, ao qual dispõe o respeito
integral das identidades e especificidades de todos os brasileiros.

Uma vez já dito, reforço a necessidade de utilização do cinema


como ferramenta pedagógica para discutir questões relevantes para
a sociedade, à semelhança do que o filme propôs. Ainda que tenha
minhas ressalvas quanto a algumas produções norte-americanas
que, na tentativa de criarem filmes com a temática LGBTQIA+,
apresentem personagens com perfis estereotipados e narrativas
que não colaboram com os diálogos efetivados pelos autores citados
ao texto, é relevante reconhecer a valia de Boy Erased.
Destarte, sem muito caracterizar os componentes da trama,
o longa abordou conteúdo ao qual, mesmo que de encontro aos
avanços tidos pela comunidade LGBTQIA+, joga luz à necessidade
44
https://oglobo.globo.com/sociedade/pastor-exonerado-no-rio-apresenta-projeto-de-
cura-gay-na-camara-19039495

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 217


de permanecermos ativo na luta pelos direitos da comunidade
LGBTQIA+, sobretudo, em tempos onde o conservadorismo
avança por todo o mundo. Boy Erased entra no rol de produções
pedagógicas que contribuem pro ativamente na discussão de
temáticas pertinentes à sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A relevância das questões levantadas em Boy Erased


ultrapassa a esfera do entretenimento. Prova disso foi a repercussão
que o filme acarretou no nosso país, vez que há hipóteses de que
sua não exibição nas salas de cinema brasileiras foi resultado de um
boicote do governo brasileiro45, por tal tratar de temática que vai de
encontro à forma como o Presidente da República pensa a sociedade.
Em outros países pelo mundo também houve vetos e protestos que
condenavam a exibição do filme justificados por ideais religiosos e
representativos do pensamento de grupos mais conservadores da
sociedade.
Ao cumprir sua função social em encampar um projeto
fílmico que denuncia práticas abusivas e “medievais” contra corpos
que apenas requerem sua existência, o diretor rompe as fronteiras
do cinema enquanto lazer e posiciona sua obra enquanto projeto
político que dialoga com os direitos humanos. Se nossa existência
é política, faz-se imprescindível que assuntos, que interessem a
muitos possam ser discutidos com seriedade e hombridade, afim
de que sejam palpáveis para elucidação, educação e promoção de
cidadania em prol de garantir dignidade humana àqueles que
pertençam à comunidade LGBTQIA+.

45
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/filmes/2019/02/boy-erased-jair-
bolsonaro-rebate-kevin-mchale-sobre-censura-de-filme-mentira

218 Direitos Humanos


Durante suas quase duas horas de exibição, o filme é capaz
de criar, sem melodramas baratos, estereótipos de humanos que,
situados em um passado não tão distante, possuem um estado
de consciência impregnado de elementos que remetem a ideais
distantes do que nós - humanos progressistas – pensamos sobre
questões que há muito tempo deveriam estar superadas. Nas
entrelinhas, Boy Erased trabalha muito bem conceitos como cultura
heterofalocêntrica, dominação patriarcal, homofobia institucional
e masculinidade tóxica, ainda que, como dito, exista uma proposta
ficcional a contrapor a história verídica.

A obra se propõe a tecer críticas construtivas a um


conservadorismo religioso que tenta a todo custo reforçar o
domínio de uma cultura cisheteropatriarcal irredutível em negociar
a alteração de suas estruturas. Contra isso, devemos nós, todos
e todas, reverberar o suporte teórico que faz desmoronar o mito
criacionista de que há um gênero biológico que dita as regras sob
as quais os corpos diversos devem ser e se comportar. Falar sobre
gênero é difundir esclarecimentos sobre nuances relevantes à
sociedade e contribuir para avanços sociais em prol dos direitos
humanos. Que outras ferramentas de comunicação sejam capazes
de explorar a temática à “imagem” e semelhança do que fez Boy
Erased: uma verdade anulada.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida.


Tradução de Sérgio Millet. 4ª edição. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1980.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria


Helena. 11ª edição. Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 219


BUTLER, Judith. Problema de gênero: feminismo e subversão
da identidade. 17ª ed. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2019

_____________. O corpo educado: corpos que pesam: sobre os


limites discursivos do “sexo”. 4. Ed; Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019

CONNELL, RAEWYN. Gênero em termos reais. Marília


Moschovich (trad.). São Paulo: Editora Versos, 2015.

FELICIANO, José. https://www.letras.mus.br/danilo-caymmi/o-


concavo-e-o-convexo/. Acesso em 25/06/2020, as 22:44 h.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28ª edição. São Paulo:


Editora Paz e Terra, 2014.

_________________. História da sexualidade. 1ª edição. São


Paulo: Editora Paz e Terra, 2014.

LOURO, Lopes Guacira. O corpo educado: pedagogias da


sexualidade. 4. Ed; Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala. 1ª edição. Belo Horizonte


(MG): Letramento: Justificando, 2017.

220 Direitos Humanos


A TRANSEXUALIDADE NO BRASIL: EM BUSCA
DO DIREITO DE EXISTIR

Wendy Augustus Araújo Cavalcante

INTRODUÇÃO

Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF, 2019)


votou a favor da criminalização da homofobia e da transfobia,
resguardados e enquadrados no crime de racismo. Uma vitória
muito importante para toda a população LGBTQIA+, que ao longo
dos anos vem lutando pelos seus direitos. Com isso, este capítulo
tem o objetivo de trazer um aparato sobre a realidade das pessoas
trans no sistema de saúde brasileiro, mostrando os avanços mais
significativos e as maiores dificuldades encontradas por essa
população ao procurarem o atendimento médico na rede pública.
Como também mostrar como a transfobia ainda é um obstáculo a
ser vencido e, mesmo as pessoas trans tendo conquistado vários
direitos ao longo do tempo, ainda é complicado ter sua cidadania
garantida.

O texto se divide em quatro tópicos: identidade de gênero,


sexo biológico e orientação sexual; histórico legislativo do sistema
de saúde brasileiro para pessoas trans; dificuldades enfrentadas; as
dificuldades enfrentadas por pessoas trans no sistema de saúde e a
transfobia no Brasil: um crime a ser combatido.

Em um primeiro momento, vamos mostrar os conceitos


básicos sobre identidade de gênero, sexo biológico e orientação
sexual, mostrando a diferença de cada um desses conceitos. No
segundo tópico, vamos trabalhar a questão da legislação da saúde

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 221


pública, mais especificamente, mostrando os principais avanços e
direitos conquistados no sistema de saúde no Brasil. Vamos fazer
uma Linha histórica das principais resoluções, desde 1997 até os
dias atuais, 2020.No terceiro tópico, vamos mostrar as maiores
dificuldades enfrentadas por essa população no sistema de saúde
e como a questão da patologização da transexualidade ainda é um
problema a ser superado, além da importância do respeito do uso do
nome social nas redes públicas de saúde. No quarto tópico, vamos
falar sobre a transfobia no Brasil – o país que gera mais insegurança
para a população trans no mundo – mostrando os dados mais
recentes de violência, o aumento da taxa de mortes no ano de
2020, fazendo uma comparação aos dois últimos anos. No quinto e
último tópico, vamos abordar a importância do nome social para a
população trans e os direitos já adquiridos quanto a isso.

IDENTIDADE DE GÊNERO, SEXO BIOLÓGICO E ORIENTAÇÃO


SEXUAL

Para iniciarmos nossa discussão, é importante pontuar e


explicar alguns conceitos básicos. Hoje, há uma grande confusão
quando se trata de orientação sexual, sexo biológico e identidade de
gênero. Vamos explicar cada conceito, mostrando e exemplificando
suas variações e diferentes expressões.

Sexo biológico: é aquele designado quando nascemos,


de acordo com o binarismo feminino e masculino. Dentro desse
conceito, existem os intersexo: pessoas que nasceram com
caraterísticas físicas e hormonais dos dois sexos.

Identidade de Gênero: É como alguém se identifica. A


identidade de gênero está ligada à como a pessoa se vê e se sente
diante da sociedade. Como elas se identificam culturalmente,

222 Direitos Humanos


socialmente e individualmente. Dentre as identidades de gênero
temos: cisgênero, transgênero, andrógenos, gênero fluido e não
binários. Vamos explicar cada termo.

Cisgênero: São pessoas que se identificam com o gênero


atribuido no nascimento. Por exemplo: Lucas nasceu com o sexo
biológico masculino e se identifica com o gênero masculino. Ou
seja, o sexo e o genero são iguais.

Transgênero: São pessoas que não se identificam com o


seu sexo biológico, ou seja, seu gênero é diferente do seu sexo de
nascimento. Por exemplo: um homem trans nasceu com o sexo
biológico feminino mas se identifica com o gênero masculino.
Mulher trans nasceu com o sexo biológico masculino, mas se
reconhece e se identifica culturalmente com o gênero feminino.
Dentro desse termo ainda podemos citar os transexuais e as
travestis, que podem optar ou não por fazerem uso de hormônios
e/ou cirurgias de redesignação sexual.

Andrógenos: São pessoas que se expressam de uma forma


que abrange os dois gêneros.

Gênero fluido: São pessoas que oscilam entre dois ou mais


gêneros.

Não binário: São pessoas que não se enquadram no binarismo


de gênero, ou seja, elas estão fora dos estereótipos de gênero, feminino
e masculino.

Orientação sexual: Refere-se a atração sexual emocional


e romântica em relação as outras pessoas. Existem as seguintes
orientações: Heterossexual: pessoa que sente atração sexual,
emocional ou romântico pelo gênero oposto ao seu. Homossexual:
Pessoa que sente atração sexual, emocional ou romântica por alguém
com o mesmo gênero que o seu. Bissexual: São pessoas que se
sentem atraídas por dois gêneros ou mais. Pansexual: São pessoas

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 223


que se sentem atraídas por dois ou mais expressões de gênero,
importante lembrar que os pansexuais não se limitam apenas ao
feminino e masculino, eles englobam todas as expressões de gênero
existentes. Assexual: São pessoas que não sentem atração sexual
por outros indivíduos.
Importante ressaltar que identidade de gênero e orientação
sexual são conceitos totalmente distintos. Algumas pessoas acham
que a orientação sexual interfere na identidade de gênero do
indivíduo, porém, são conceitos que independem um do outro. Por
exemplo: homens trans podem ser gays, héteros e afins. Mulheres
trans podem ser lésbicas, héteros, bissexuais e etc.

HISTÓRICO LEGISLATIVO DO SISTEMA DE SAÚDE


BRASILEIRO PARA PESSOAS TRANS

A questão do acesso ao sistema único de saúde pela


comunidade transexual é tratada já há algum tempo por diversos
órgãos públicos no Brasil. Desde 1997, o Conselho Federal de
Medicina (CFM) formula diretrizes para garantir os direitos dos
transexuais e transgêneros ao uso do Sistema Único de Saúde
(SUS). A primeira resolução foi a de n.º 1482/97, que aprovou a
realização de cirurgias de transgenitalização nos hospitais públicos
universitários no Brasil, ainda de forma experimental e atendendo
as normas do Conselho Nacional de Saúde n.º 196/1996 (BRASIL,
1997). Esse foi apenas o primeiro passo de uma luta exaustiva, mas
importante para todos os transexuais e transgêneros, que puderam
dar início ao seu processo de transição por meio do Sistema Único
de Saúde.

Segundo Lionço (2009), em 2001, houve uma ação do


Ministério Público Federal para inclusão dos procedimentos

224 Direitos Humanos


transgenitalizadores na tabela do SUS nos termos da Resolução
CFM 1482/97. Nesse contexto, foi reforçado a patologização
das identidades de gênero como garantia da inclusão dos
procedimentos na tabela de pagamento do SUS. Em 2002, o CFM
reformulou a Resolução CFM n.º 1482/97 e aprovou a Resolução
CFM n.º 1652/2002, que expandiu as possibilidades de acesso aos
procedimentos de transexualização, dessa vez retirando o caráter
experimental da cirurgia do tipo neocolpovulvoplastia, e mantendo
o da cirurgia do tipo neofaloplastia (BRASIL, 2002). Essa expansão
foi importante, pois incluía as mulheres transexuais em qualquer
instituição de saúde, pública ou privada.

Em 2004, o Ministério da Saúde publicou a Portaria


n.º 1.397, posteriormente revogada, que instituía
Grupo de Trabalho para discussão da inclusão dos
procedimentos de transgenitalização na tabela
do SUS. A composição desse grupo, no entanto,
apresentava–se incompleta e, embora tenha sido
revogada, algumas reuniões com base nos trabalhos
previstos na mesma efetivamente ocorreram entre
os anos 2006 e 2007, posteriormente à participação
do gestor responsável pela Coordenação de Média e
Alta Complexidade da Secretaria de Atenção à Saúde
na I Jornada Nacional sobre Transexualidade e
Saúde, realizada em 2005 pelo Instituto de Medicina
Social da UERJ (LIONÇO, 2009, p. 50).

Os anos de 2006 e 2007 também foram marcados por


acontecimentos importantes a respeito da saúde da população
transexual. Em 2006, houve uma reunião do Comitê Técnico Saúde
da População LGBT, denominada processo transexualizador. Foi
uma discussão importante porque colocou em pauta a importância
da não patologização da transexualidade, colocando a cirurgia de
redesignação como parte do processo e não o produto final, tendo
em vista que cada ser é subjetivo e nem todo mundo tem interesse

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 225


em fazer a cirurgia ou algum outro processo. Já em 2007, a terceira
turma do TRF da 4 ª região do Rio grande do sul (Brasil) propôs
o custeio total do SUS nas cirurgias de transgenitalização em
casos de pessoas transexuais. Contudo, foi julgada improcedente,
em dezembro de 2007, pela então Ministra do Supremo Tribunal
Federal (STF) Ellen Gracie, que afirmou:

apesar de serem relevantes os argumentos do MPF


no sentido da ocorrência constitucional da dignidade
da pessoa humana, da igualdade e da proibição
de discriminação por motivo de sexo, de ofensa
ao direito de liberdade dos cidadãos transexuais
e aos princípios não podem ser aqui sopesados
e apreciados, tendo em vista que não cabe, em
suspensão, a análise com profundidade e extensão
da matéria de mérito analisada na origem domínio
reservado ao juízo recursal (STF, 2007).

O Ministério da Saúde, em 2008, por meio da Portaria


GM 1707/2008, instituiu o Processo Transexualizador no SUS,
determinando que as condições de funcionamento devessem
seguir os critérios estabelecidos pela Resolução CFM 1652/2002.
A Portaria reconheceu que “a orientação sexual e a identidade de
gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como
determinantes e condicionantes da situação de saúde” (BRASIL,
2008a).
Essa portaria contemplou apenas as mulheres
transexuais. As normativas justificaram a não
inclusão dos homens transexuais na caracterização
dos procedimentos de neofaloplastia como
experimentais. Entretanto, também não incluiu
cirurgias de mastectomia e histerectomia, nem
mesmo autorizou a hormonoterapia, que também
poderia ter sido estendida as pessoas travestis e aos
últimos (ROCON; SODRÉ; RODRIGUES, 2016, p.
263).

226 Direitos Humanos


O Conselho Federal de Medicina, em 2010, reatualizou sua
normatização a partir da Resolução 1955/2010 que autorizou
que as cirurgias de transgenitalização, neoculpovulvoplastia ou
neofaloplastia e os procedimentos complementares sobre gônadas
e caracteres sexuais secundários, sejam realizados em hospitais
públicos ou privados que contemplem os requisitos da referida
resolução. O tratamento até então, só podia ser feito em maiores
de 21 anos.

Para o CFM, o tratamento de neofaloplastia


(construção do pênis) continua sendo um
procedimento experimental. “Entendemos que o
procedimento é de resultados estéticos e funcionais
ainda questionáveis, e por isso seja mantido como
experimental”, apontou o relator da resolução e
conselheiro federal, Edvard Araújo (PORTAL CFM,
2010).

  No dia 24 de janeiro de 2019, o Ministério da Saúde


autorizou formalmente o SUS (Sistema Único de Saúde), a incluir
os homens transexuais a realizar a cirurgia e iniciar o processo de
hormonização. Foram incluídos nessa resolução, os procedimentos,
medicamentos, órteses, próteses e matérias especiais do SUS. A
portaria de n.º 1.370 diz:

Consiste de vaginectomia e metoidioplastia com


vistas à transgenitalização feminino para masculino
impostas por decisão judicial. Este procedimento
só poderá ser realizado em caráter experimental;
autorizado mediante apresentação de projeto
de pesquisa em conformidade com a Resolução
466/2012 da Comissão Nacional de Ética na
Pesquisa (CONEP); e registrado no Sistema de
Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS) por
hospitais universitários habilitados para a atenção
especializada no processo transexualizador (BRASIL,
2019).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 227


Quase um ano após a portaria de n. 1.370, no dia 9 de janeiro
de 2020, o Conselho Nacional de Medicina (CFM) publicou novas
resoluções para o processo de transição de gênero. De acordo com
a nova norma, a idade mínima para o início de terapias hormonais
passou de 18 anos para 16 anos. Para pessoas com menos de 16 anos,
ficou determinado que seja feito acompanhamento psicológico, mas
sem o uso de hormônios. Apenas na puberdade (que normalmente
se inicia dos 8 aos 13 anos) que o bloqueio hormonal pode ser
ministrado. A idade mínima para procedimentos cirúrgicos caiu de
21 anos para 18 anos. Nas resoluções anteriores, a ideia mínima era
21 anos. Tais medidas ainda não foram incorporadas no SUS (G1
GLOBO.COM, 2020).

AS DIFICULDADES ENFRENTADAS POR PESSOAS TRANS NO


SISTEMA DE SAÚDE

Como podemos ver, houve um avanço significativo na


questão do acesso à saúde pública em relação a população trans
É inegável que tal progresso permitiu que muitos homens e
mulheres trans dessem início a sua transição, seja ela hormonal
(hormonoterapia) ou cirúrgica (redesignação sexual). Mas ainda
temos muitas dificuldades a serem enfrentadas. Uma delas é a
questão da patologização da transexualidade.
Somente no dia 25 de maio de 2019, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) retirou da sua classificação oficial de doenças, a
CID-11 “Transtorno de identidade de gênero” (NAÇÕES UNIDAS
BRASIL, 2019). Que considerava a transexualidade como um
transtorno mental. E isso impactava diretamente em como os
transexuais eram vistos pela sociedade, muitas vezes sendo alvos
de “correções” por serem tidos como um problema a ser combatido.

228 Direitos Humanos


A nova definição da transexualidade está incluída na área
de sexualidade e não mais na de transtornos mentais, conhecida
agora como “incongruência de gênero”. Esse novo conceito pode ser
descrito como um sentimento de angústia quando a identidade de
uma pessoa entra em conflito com o gênero e o sexo que foi lhe
atribuído no nascimento.

Porém, mesmo com essa nova definição, muitas pontas


continuam soltas. Por um lado o CID garante a assistência médica
para as pessoas trans, por outro, a sociedade nos exclui por ainda
sermos vistos como algo anormal. Isso se deve à heteronormatividade
compulsória, que exclui qualquer tipo de variação de gênero
que não seja o cisgênero. Segundo Lionço (2009, p. 59) “a busca
pela democratização dos direitos sexuais deve considerar que a
heteronormatividade e a manutenção dos estereótipos de gênero
são contrárias à afirmação da diversidade sexual como valor social.”

Por conta disso, muitas pessoas trans (transgêneras,


transexuais, etc) relatam que não se sentem acolhidas e respeitadas
no ambiente hospitalar. Muitas vezes não respeitam o seu nome
social, mesmo tendo uma portaria n.º 1820 – a carta dos direitos
dos usuários do SUS – que torna obrigatório aos documentos de
identificação serem preenchido com o nome pelo qual o usuário
ou paciente deseja ser chamado (BRASIL, 2009). Ou seja, no papel
essas pessoas têm seus direitos assegurados; na prática, elas são
discriminadas e desrespeitadas.
Ao que parece, os profissionais de saúde atendem essas pessoas
de acordo com suas questões e crenças pessoais, isso não ocorre
apenas no SUS, mas na rede privada também. Ou seja, os serviços
de saúde que deveriam prestar apoio e assistência para os homens
trans acabam não sendo acessíveis, isso porque essa população
teme pela transfobia, devido às experiências preconceituosas e
transfóbicas que passaram ao procurar o atendimento médico. Uma
pesquisa feita pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 229


mostrou que 50% dos homens trans não procuram o serviço médico,
outros 30% relataram, que devido ao desrespeito do nome social,
evitaram ir atrás do atendimento médico e 23,08% não voltaram
ao atendimento por conta da transfobia que sofreram (REVISTA
LADO A, 2019).
Os profissionais ainda não estão preparados para atender a
demanda da população trans. Em uma entrevista para o site Yahoo
Notícias, a ginecologista obstreta Ana Thais Vargas, que trabalha
com a população trans há cerca de quatros anos, disse:

Não existe um reconhecimento da transexualidade,


não se respeita nome social e identidade de gênero
das pessoas e a grande maioria ignora solenemente
o tratamento de pessoas trans. […] muitos
profissionais recusam a atender pessoas trans por
terem medo de não saber como ou não se sentirem
capazes, e aponta que a falta de formação é um outro
fator (YAHOO NOTICIAS, 2020).

A saúde pública é um direito de todos, que está assegurado


em lei. De acordo com a constituição de 1988 no art. 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,


garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação
(BRASIL, 1988).

É preciso haver uma conscientização coletiva para assegurar


os direitos também, na prática e não apenas no papel. Seria de suma
importância um critério racional para atender essa população,
deixando de lado os preceitos e pré-conceitos pessoais.

230 Direitos Humanos


Em uma matéria para o Jornal Estadão (ESTADÃO, 2020), a
secretária de comunicação da ABGLT, associação nacional em prol
dos direitos da população LGBTQIA+, aponta a formação deficiente
dos profissionais de saúde. Segundo ela:

Eles não enxergam nossos corpos como possíveis.


Não existe especialidade para tratar pessoas trans,
somos humanos, as questões podem ser tratadas
por qualquer médico, mas muitos têm dificuldade
em tocar nossos corpos, nos examinar (ESTADÃO,
2020).

O que podemos perceber, é que a deficiência na formação


desses profissionais, acaba gerando consequências gravíssimas para
as pessoas trans, pois, muitas pessoas trans acabam desistindo do
atendimento pela rede pública, com o acompanhamento médico,
que é importante para a integridade da sua saúde. Com isso,
buscam meios clandestinos, colocando ainda mais em risco a saúde
dessa população. E quando falamos disso, estamos apontando
cirurgias clandestinas, uso de hormônios sem acompanhamento
especializado, aumentando, dessa forma, a mortalidade de muitos e
muitas jovens que só querem poder viver da melhor forma possível,
mas infelizmente, isso parece algo utópico nos dias atuais.

Além do desrespeito do nome social e a visão de algo


anormal perante a sociedade, essa população ainda carrega
o estigma e o estereótipo que são propícias a ter infecções
sexualmente transmissíveis, ISTs. Dessa forma, muitas pessoas
acabam “escondendo” quem realmente são para poder fugir dos
olhares preconceituosos e da violência e serem atendidas de forma
respeitosa.

De acordo com o Diretor de Comunicação do Conselho


Federal de Medicina, Hermann von Tiesenhausen:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 231


qualquer expressão de preconceito contra o paciente
ou seu familiar é vedado ao médico no exercício de
sua profissão. Isso está previsto no Código de Ética
Médica, que orienta a adoção de uma postura isenta,
acolhedora e respeitosa com todos os indivíduos”.
E ainda completa “o artigo 23 em que é vedado
ao médico” tratar o ser humano sem civilidade
ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer
pretexto”. Aquele que se sentir mal atendido,
ofendido ou desrespeitado durante uma consulta,
pode denunciar o caso ao conselho regional de
medicina, órgão ao qual compete julgar a prática dos
profissionais (GRUPO IAG SAÚDE, 2019).

Ainda há um caminho muito grande a percorrer em busca


dos direitos da população TRANS no Brasil principalmente no
que diz respeito ao plano da saúde dessa população. É importante
ressaltar também, que muitas pessoas transexuais e travestis não
tem dificuldade no acesso à saúde, o que é bom, mas que ainda não
é regra, senão casos excepcionais. O objetivo é que ser bem tratado
e respeitado seja algo natural e normal, até porque essas pessoas
merecem respeito e o direito a uma digna.

A TRANSFOBIA NO BRASIL: UM CRIME A SER COMBATIDO

O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no


mundo. Vamos analisar aqui os dados dos três últimos anos, quais
sejam: 2018, 2019 e 2020.

Em 2018, segundo um estudo realizado pela ONG


Transgender Europe (TGEU), 167 pessoas Trans foram mortas
no Brasil. No mesmo ano, o país era o 55.º no ranking de países
seguros para a população LGBTQIA+. Infelizmente, esses números

232 Direitos Humanos


aumentaram nos anos posteriores. Em 2019, o Brasil ocupava a 68º
posição no ranking de países seguros para a população LGBTQIA+,
isso reflete o crescente número de assassinatos neste mesmo ano,
foram 124 no total. No estado de São Paulo foi onde houve mais
assassinatos, 21 casos, com um aumento de 50% em relação aos
anos anteriores. Logo em seguida, o Ceará, com 11 casos; Bahia,
Pernambuco e Rio de Janeiro também tiverem altos índices de
crimes contra transexuais, transgêneros e travestis (O GLOBO,
2018).

O aumento da violência cresce e os criminosos continuam


impunes. De acordo com o levantamento feito pela Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), há uma grande
deficiência na investigação e na punição dos agressores. Segundo
a ANTRA “em 2019, apenas 8% dos casos tiveram os suspeitos
identificados e 82% das vítimas eram negras. Pessoas trans do
gênero feminino representam 97% dos casos e 64% dos assassinatos
aconteceram nas ruas” (ANTRA, 2020b).

Muitos dos crimes são motivados por puro preconceito e


discriminação. Essas pessoas estão morrendo todos os dias só
por existirem, são fatos cruéis da realidade no Brasil. Os dados
mostram que 80% dos crimes tem teores altíssimos de crueldade,
apresentando violência sexual, tortura, espancamento, violências
de forma excessivas, em geral (ANTRA, 2020b).
Tendo em vista que o maior número das vítimas é o das
mulheres trans e travestis, até mesmo pela condição social destas,
estima-se que 90% das mulheres trans estejam na prostituição,
isto é, estão mais vulneráveis às diversas categorias de violência.
Fora a violência e os assassinatos, não podemos deixar de lado os
dados referentes ao suicídio. Em 2019, foram registrados, segundo
a ANTRA, 50 tentativas do ato. A idade média das vítimas varia de
21 anos a 30 anos. No total, foram 15 casos consumados, com base
nos veículos de comunicação (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 233


O ano de 2020, antes de terminar, já bateu números altíssimos
de mortes em relação aos anos anteriores. Nos oito primeiros meses
desse ano, já são 129 casos registrados, batendo o ano de 2019, no
qual foram registradas 124 mortes durante o ano todo. Todos os
129 assassinados eram mulheres trans e travestis, uma realidade
que já é corrente. Comparado ao ano anterior, tivemos um aumento
de 70% no número de assassinatos no período entre 1 de janeiro e
31 de agosto de 2020 (GÊNERO E NÚMERO, 2020). De acordo com
o Boletim nº 04/2020 - Assassinatos ANTRA, “os cinco estados com
mais mortes de pessoas trans entre 1 de janeiro e 31 de agosto de
2020 são: SP com 19 casos, BA e MG com 16, Ceará com 15 e RJ
com 7 assassinatos” (ANTRA, 2020a).

Outro dado importante é referente à pandemia causada pelo


novo coronavírus (COVID 19), com a quarentena e o isolamento
social, esperava-se uma diminuição dos assassinatos de pessoas
trans, mas não foi bem isso que aconteceu, de acordo com a ANTRA,
nos meses de março e abril, houve um aumento de 13% nos casos,
em relação ao mesmo período do ano passado (ANTRA, 2020c).

E fica o questionamento, por que tanta violência contra


essa população? Por que essas pessoas são tão marginalizadas na
sociedade? Podemos citar algumas causas que precisam de uma
atenção maior, pois, essas pessoas pagam com a vida a ignorância
de muitos. A estrutura da sociedade hoje, além de heteronormativa,
também é também hétero (cis) normativa que estabelece regras de
conduta, a normatividade existe em sociedade para classificar ações
como desejáveis ou não desejáveis, que considera adequado ou
“correto” apenas relações cisgêneras e heterossexuais. O que exclui
qualquer outra forma ou variação de gênero que não seja a cisgênera.
A falta de informação e conscientização pelas mídias sociais também
é um problema. Pessoas trans têm pouca visibilidade e quando
têm, ainda passam por preconceito e discriminação por parte da
população. Questões religiosas também são um fator importante,

234 Direitos Humanos


vivemos em um estado laico, mas que ainda prega crenças cristãs
enraizadas, que veem as pessoas trans como algo fora da norma
do “ser correto”. Podemos perceber que existem várias questões
que precisam ser revistas e desconstruídas. Devemos nos atentar
quanto a isso para evitar mais mortes, violência e suicídios.
E como podemos ajudar essa população? Se informando
sobre o assunto, conhecendo pessoas trans, convivendo com
elas. Quantas pessoas trans vocês conhecem? Quantas trabalham
com você? Com quantas já se relacionou? Quando paramos para
pensar, temos uma noção do quanto essas pessoas são invisíveis na
sociedade, não por elas não serem capazes, mas, porque a sociedade
finge não enxergá-las. Dê uma oportunidade de emprego, pois
no Brasil, 90% da população trans trabalha com a prostituição. O
trabalho formal ainda é uma exceção, segundo dado obtido por um
levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA, 2020d).

Quando paramos para pensar nesse crescente número de


violência ficamos assustados, mas esse é apenas o resultado da
exclusão e da marginalização dessas pessoas perante a sociedade.
Nas escolas, nas universidades, na família. Por conta do desabono
e abandono familiar, muitos desses jovens acabam indo morar
nas ruas e não completam nem o ensino fundamental. Segundo
uma pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 82% dos
transexuais não concluíram seus estudos (CORREIO BRAZILIENSE,
2020). Os estudos apontam ainda que 30,6% da população trans
chegou ao ensino fundamental, enquanto 30,6% da população (cis)
tem ensino superior completo (UNAIDS, 2020). É discrepante a
diferença de oportunidades entre pessoas trans e pessoas cisgêneras.

Ser trans no Brasil, é saber que você pode ser discriminado,


é saber que não vai ter seu nome social respeitado por uma grande
parcela da população, é sofrer pelo abandono familiar, é enfrentar
a solidão afetiva, é se aceitar e saber que mesmo com todas as

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 235


dificuldades, resistir é a única saída. É importante entender que a
transfobia é uma realidade em nosso país, uma realidade que precisa
ser mudada urgentemente.

ME CHAME PELO MEU NOME: A IMPORTÂNCIA DO


RESPEITO AO USO DO NOME SOCIAL

O nome de uma pessoa é o que identifica ela dentro de uma


sociedade. Para podermos abrir uma conta no banco, para fazermos
uma matrícula na faculdade, para exercer nossa cidadania, para
tudo isso, precisamos ter um nome, sem um nome não podemos
ser identificados social e judicialmente. Culturalmente, o nosso
nome é dado, muitas vezes antes de nascermos, nossos pais a
priori já estabelecem e escolhem os nossos nomes de acordo com
o sexo biológico. Estes são conhecidos como Nome de batismo ou
Nascimento, quando somos registrados em cartório, passa a ser
nosso nome civil.

O nome faz parte da nossa individualidade e é a forma


como somos conhecidos, se alguém nos chama por outro nome,
normalmente nem respondemos, ele faz parte da nossa identidade
e do que somos. Agora imagina você carregar um nome que não te
representa? Um nome que não diz nada sobre você, um nome que
não te identifica? Além disso, ainda passar por constrangimentos
por conta disso. Essa é a realidade das pessoas trans. O nome que
recebemos ao nascer, ao longo do tempo não faz mais sentido, ele
gera um desconforto, pois não reflete quem realmente somos. Por
exemplo, você recebe um nome dito masculino ao nascer, mas na
verdade esse nome não lhe cabe mais, pois você se reconhece como
uma mulher.

236 Direitos Humanos


Por conta disso, as pessoas trans fazem uso do nome social,
que é a forma como elas escolhem ser chamadas e se apresentam
na sociedade. Com isso, essas pessoas têm o poder de escolher seu
próprio nome e poder escolher algo tão importante e necessário é
incrível. O nome social faz parte da construção da identidade do
indivíduo, é o primeiro passo em busca do reconhecimento e de
espaço em sociedade.

Por conta disso, em 2016, foi publicado o Decreto


Presidencial n. 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social
e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e
transexuais no âmbito da administração pública federal (BRASIL,
2016). Dois anos depois, essa população teria o direito assegurado
em forma de lei. Em 11 de dezembro de 2018, o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) publicou a Resolução n. 270/2018, que garante
o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais
usuárias dos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários
e trabalhadores terceirizados dos tribunais brasileiros (BRASIL,
2018). Sendo essa uma grande conquista para toda a população
trans do Brasil. Porém, mesmo tendo respaldo em lei, a falta de
respeito e o preconceito ainda assolam essas pessoas.

A transfobia não está apenas em forma de violência física.


Não respeitar o nome social também é uma forma de agressão à
identidade de gênero do indivíduo. O nome para uma pessoa trans
não carrega apenas palavras, mas sim toda uma história de vida,
tem toda uma carga emocional e uma importância imensurável.
Ser reconhecido pelo nome que escolheram e serem respeitados
com isso são os primeiros passos que garantem a existência dessas
pessoas em sociedade.

Por isso, é tão importante o respeito do nome social, com


o uso dele, as pessoas trans, homens trans, mulheres trans, não-
binários etc, se sentem mais seguros em sociedade, evitam passar
por constrangimentos em público e até garantem uma autoestima

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 237


melhor para essas pessoas. Se João escolheu esse nome para ser
identificado, qual a dificuldade de chamar João e não Maria? Tudo
parte do princípio de empatia para com o próximo. Chame-os pelos
seus nomes, pois respeito é tudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos neste capítulo as diferenças de identidade de gênero


e orientação sexual, como toda a extensão destas. Fizemos um
mapa histórico dos avanços mais significativos no sistema de saúde
para a permanência dos corpos trans em sociedade. Vimos também
que, mesmo com diversos direitos já conquistados, essas pessoas
ainda sofrem, ainda são marginalizadas nos postos de saúde e
no atendimento médico em geral. Podemos perceber que esse
preconceito se estende por vários âmbitos e áreas da sociedade.

A transfobia é uma realidade, a violência e a morte de dezenas


e dezenas de pessoas trans é uma triste e cruel realidade. Importante
destacar que a transfobia é uma questão sim de saúde pública, pois
ela afeta não apenas o físico, mas o mental e o emocional desses
seres humanos. Por isso, é tão importante a conscientização, a
promoção de políticas públicas para combater esse crime que mata
tantos jovens todos os anos.

Mas a busca pelo direito de existir não para por aqui. Ainda
temos muito a conquistar, ainda temos esperança de um mundo
melhor para essa população. E para que isso aconteça, você,
cisgênero, precisa conhecer um pouco mais e conviver, pois só o
conhecimento, a empatia e a solidariedade vão fazer com que essas
pessoas sobrevivam.

Este trabalho foi muito importante para a compreensão


mais ampla da realidade da população transexual no Brasil, pois

238 Direitos Humanos


dessa forma, podemos ficar cientes de várias questões ainda pouco
discutidas nas mídias sociais, rádios e TV. Esperamos que, com esse
texto, tenhamos um olhar mais carinhoso e mais sereno para essas
pessoas. Resistir, existir e transgredir.

REFERÊNCIAS

ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transexualidade


e saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 14,
n. 4, p. 1141-1149, ago. 2009. FapUNIFESP (SciELO). Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/s1413-81232009000400020.
Acesso em: 17 set. 2020.

ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais.


Assassinatos contra Travestis e Transexuais Brasileiras
em 2020. 2020a. BOLETIM Nº 04/2020 - 01 de janeiro a 31 de
agosto de 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.
com/2020/09/boletim-4-2020-assassinatos-antra-1.pdf. Acesso
em: 17 set. 2020.

______. Lançado Dossiê Sobre Assassinatos e Violência


Contra Pessoas Trans em 2019. 2020b. Disponível em:
https://antrabrasil.org/noticias/page/2/#:~:text=E%20em%20
2019%2C%20apenas%208,ou%20afetiva%20com%20a%20
v%C3%ADtima. Acesso em: 17 set. 2020.

______. Assassinatos de Pessoas Trans Voltam a Subir em


2020. 2020c. Disponível em: https://antrabrasil.org/category/
violencia/. Acesso em: 17 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 239


______. Travestis de Baixa Renda Poderão Receber Auxílio
de R$200,00. 2020d. Disponível em: https://antrabrasil.org/
noticias/. Acesso em: 17 set. 2020.

BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim


(Org.). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis
e transexuais brasileiras em 2018. Brasilia: Distrito Drag.
ANTRA, IBTE, 2019.

______. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis


e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular,
ANTRA, IBTE, 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

______. Conselho Federal de Medicina - CFM. Resolução n. 1.482,


de 10 de setembro de 1997. Autorizar, a título experimental,
a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo
neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais
secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Brasília, DF: Presidente do CFM, 1997.

______. Conselho Federal de Medicina - CFM. Resolução n.


1.652, de 06 de novembro de 2002. Dispõe sobre a cirurgia de
transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
Brasília, DF: Presidente do CFM, 2002.

240 Direitos Humanos


______. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.707, de 18 de agosto de
2008. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o
Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades
federadas, respeitadas as competências das três esferas de
gestão. Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2008a.

______. Ministério da Saúde. Portaria n. 457, de 19 de agosto de


2008. Regulamentação do Processo Transexualizador no âmbito do
Sistema Único de saúde - SUS. Brasília, DF: Gabinete do Ministro,
2008b.

______. Ministério da Saúde. Portaria n.1.820, de 13 de agosto


de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da
saúde. Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2009.

______. Ministério da Saúde. Portaria n. 859, de 30 de julho de 2013.


Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema
Único de Saúde – SUS (Efeitos suspensos pela PRT GM/MS nº
1579 de 31.07.2013). Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2013a.

______. Ministério da Saúde. Portaria n.1579, de 31 de julho de


2013. Suspende os efeitos da Portaria nº 859/SAS/MS de
30 de julho de 2013 (Revogada pela PRT GM/MS nº 2803 de
19.11.2013). Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2013b.

______. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.803, de 19 de novembro


de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema
Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2013c.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 241


______. Presidência da República. Decreto n. 8.727, de 28 de abril
de 2016 . Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da
identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito
da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Brasília, DF: Presidência da República, 2016.

______. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 270, de 11 de


dezembro de 2018. Dispõe sobre o uso do nome social pelas pessoas
trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários,
membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados dos
tribunais brasileiros. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça,
2018.

______. Ministério da Saúde.  Saúde.  Portaria n. 1.370, de 21 de


junho de 2019. Inclui procedimento na Tabela de Procedimentos,
Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS.
Brasília, DF: Gabinete do Ministro, 2019.

CORREIO BRAZILIENSE. Discriminação rouba de transexuais o


direito ao estudo: Agressões, ameaças e diversos tipos de violência
simbólica fazem com que as pessoas trans sejam especialmente
suscetíveis à evasão educacional. 2020. Disponível em: http://
especiais.correiobraziliense.com.br/violencia-e-discriminacao-
roubam-de-transexuais-o-direito-ao-estudo. Acesso em: 17 set.
2020.

ESTADÃO. Apesar de Políticas, População Lgbt Enfrenta


Dificuldades no Acesso à Saúde. 2020. Disponível em:
https:https://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,apesar-
de-politicas-populacao-lgbt-enfrenta-dificuldades-no-acesso-a-
saude,70002889423. Acesso em: 17 set. 2020.

242 Direitos Humanos


G1 GLOBO.COM. Conselho Federal de Medicina reduz a 18 anos
idade mínima para cirurgia de transição de gênero. 2020. Ciência
e Saúde. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/
noticia/2020/01/09/conselho-federal-de-medicina-estabelece-
novas-regras-para-cirurgia-de-transicao-de-genero-no-sus.ghtml.
Acesso em: 17 set. 2020.

GÊNERO E NÚMERO. Primeiros oito meses de 2020 têm


mais assassinato de mulheres trans do que todo o ano de
2019. 2020. Disponível em: http://www.generonumero.media/
assassinato-trans-aumento-2019-2020/. Acesso em: 17 set. 2020.
AR

GRUPO IAG SAÚDE. Apesar de políticas, população LGBT


enfrenta dificuldades no acesso à saúde. 2019. Disponível em:
https://grupoiagsaude.com.br/apesar-de-politicas-populacao-lgbt-
enfrenta-dificuldades-no-acesso-a-saude/. Acesso em: 19 set. 2020.

LIONÇO, Tatiana. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no


Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios.
Physis: Revista de Saúde Coletiva, [S.L.], v. 19, n. 1, p. 43-63, 2009.
FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/
s0103-73312009000100004. Acesso em: 18 set. 2020.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OMS retira a Transexualidade da


Lista de Doenças Mentais. 2019. Disponível em: https://brasil.
un.org/pt-br/83343-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-
doencas-mentais. Acesso em: 18 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 243


O GLOBO. Brasil segue no primeiro lugar do ranking de
assassinatos de Transexuais. 2018. Disponível em: https://
oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-
ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780. Acesso em: 19
set. 2020.

PORTAL CFM. CFM considera válidos procedimentos


para mudança de sexo de transexuais femininos. 2010.
Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_
content&view=ar ticle&id=20824:cfm- considera-validos-
pro ce dimentos -para-mud anca-de- s exo-de- trans exuais -
femininos&catid=3#:~:text=Para%20o%20CFM%2C%20o%20
tratamento,e%20conselheiro%20federal%2C%20Edvard%20
Ara%C3%BAjo. Acesso em: 18 set. 2020.

REVISTA LADO A. Estudos revelam altos índices de suicídio


entre homens trans no Brasil e EUA. 2019. Disponível em:
https://revistaladoa.com.br/2018/06/noticias/pesquisa-sugere-
que-1-cada-5-hsh-de-curitiba-tem-o-hiv/. Acesso em: 19 set. 2020.

ROCON, Pablo Cardozo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexsandro.


Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro:
uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis, [S.L.], v.
19, n. 2, p. 260-269, set. 2016. FapUNIFESP (SciELO). Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/1414-49802016.00200011. Acesso
em: 18 set. 2020.

STF - Supremo Tribunal Federal. STF suspende decisão


sobre inclusão de cirurgia de mudança de sexo no SUS.
2007. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/
verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010. Acesso em: 17 set.
2020.

244 Direitos Humanos


______. STF enquadra homofobia e transfobia como crimes
de racismo ao reconhecer omissão legislativa. 2019. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=414010. Acesso em: 17 set. 2020.

UNAIDS. Mais de 90% da população trans já sofreu


discriminação na vida. 2020. Disponível em: https://unaids.
org.br/2020/01/mais-de-90-da-populacao-trans-ja-sofreu-
discriminacao-na-vida/#:~:text=Um%20dado%20que%20
chama%20a,fundamental%2C%20primeiro%20grau%20ou%20
equivalente. Acesso em: 18 set. 2020.

VITTUDE BLOG. Sexualidade, Identidade e Orientação. Você


sabe a diferença? 2020. Disponível em: https://www.vittude.
com/blog/fala-psico/sexualidade/. Acesso em: 18 set. 2020.

YAHOO NOTICIAS. Despreparo de Profissionais e Falta de


Políticas Impedem Acesso de População Trans aos Serviços
de Saúde. 2020. Disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/
despreparo-de-profissionais-e-falta-de-politicas-impedem-acesso-
de-populacao-trans-aos-servicos-de-saude-090045674.html.
Acesso em: 19 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 245


CORPOS NÔMADES EM ESPAÇOS RÍGIDOS: O SISTEMA
PENITENCIÁRIO E A PRISÃO DE TRAVESTIS NO BRASIL

Iago Ferraz Nunes

INTRODUÇÃO

A perspectiva “foucaultiana” sobre o encarceramento do


sujeito criminoso faz emergir algumas características deste ser
no cenário prisional: adestrados por regras (regimes de exercício,
regras minuciosamente detalhadas, vigilância e autovigilância
constantes) e produtos de uma rede de saber/poder que anula suas
subjetivações individuais, com a finalidade de construí-los como
indivíduos normais.

Assim, o sistema prisional apresenta-se não somente como


uma forma de punição ao encarcerado por meio de privação da
liberdade, mas principalmente como dispositivo de correção para
uma possível reinserção social futura.

Ainda de acordo com Foucault (2010), para o alcance de


tal objetivo, faz-se uso do poder disciplinar, presente desde a
construção arquitetônica até as rotinas que serão vivenciadas
pelos detentos, caracterizando a prisão como um espaço rígido e
de poucas nuances, pelos modos de comportamentos uniformes,
mas que são constituídos sobre dois pilares: primeiramente, as
normas/regras do sistema prisional e, em segundo lugar, acordos
interpessoais entre os indivíduos que coabitam o mesmo cenário.

A rigidez do sistema penitenciário é uma característica


basilar, sobreposta aos internos para que seus instintos, por vezes

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 247


caracterizados como violentos, e comportamentos inadequados – os
que os levaram ao isolamento – sejam reprimidos e não incentivados
à repetição. Rigidez que é imposta a todos indiferentemente do
sexo, mas em dosagem proporcional, como leciona Nelson Nery
Junior (1999, p. 42) “dar tratamento isonômico às partes significa
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata
medida de suas desigualdades”.

Graças aos movimentos feministas (no século XIX e


principalmente na década de 60, com o lançamento da obra “O
Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir) e mais tarde aos trabalhos
dos ativistas LBGTQIA+ com início em 1969 com a Revolta em
Stonewall, nos E.U.A., começou-se a reflexão sobre a criação de
políticas públicas para suprir as lacunas da legislação, que trata de
forma genérica as necessidades da pessoa homossexual.

Assim, as travestis, por se identificarem com o gênero


feminino, são colocadas dentro de um ambiente de conflitos diretos,
onde impera a discriminação e a imposição de um comportamento
culturalmente tido como masculino. Essa guerra se torna constante,
podendo acarretar conflitos psicológicos, agressões físicas,
mutilações e até mesmo suicídio.

O sistema prisional tem o intuito corretivo àquele que foi


penalizado com a privação de liberdade, buscando a transformação
técnica desse indivíduo; sendo assim, não se limita apenas a penalizá-
lo pelo delito cometido, mas também deve ofertar condições dele
redimir-se perante a sociedade devido ao crime cometido, bem
como reinseri-lo socialmente. Quanto às travestis, este desafio
amplia-se para o sistema penitenciário e para a legislação brasileira,
porém deve-se considerar a necessidade e demanda desse grupo
de cidadãos e o Estado deve garantir medidas para assegurar a
resolução desta problemática.

248 Direitos Humanos


O tema abordado neste estudo é de grande relevância,
pois busca demonstrar a inércia do Estado brasileiro perante a
demanda de necessidades especiais das travestis, bem como de
toda a população LGBTQIA+, uma vez que os iguais devem ser
tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual dentro da
proporcionalidade, conforme o princípio da equidade.

A importância se revela no campo jurídico, pois como a


demanda não é nova, deveriam existir medidas resolutórias,
uma vez que essa população sofre com essa falta de tratamento
específico. O Direito tem como essência a proteção do cidadão e as
travestis são cidadãs e merecem o cuidado e assistência do Estado.

Assim, temos por escopo, averiguar como as normativas


legislam sobre o encarceramento das sujeitas travestis e transexuais
de modo mais específico - mas o olhar vale para todo o cárcere de
LGBTQIA+, a fim de verificar se eles são existentes e através das
orientações dadas, se os institutos estão aptos a receber essa
população, e sua finalidade é alcançada.

A presente pesquisa é fruto de uma revisão bibliográfica de


metodologia monográfica, vez que se utiliza de recursos variados
para produção e análise dos dados (PRODANOV, 2013), como
no caso. Além de recorrer à teoria, também foram feitas análises
documentais das normativas que versavam sobre a temática, sendo
a pesquisa de natureza exploratória. As normativas analisadas
se deram das normativas vigentes até da data de conclusão da
pesquisa, que findou no ano de 2016.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 249


SOBRE ESPAÇOS RÍGIDOS: HISTÓRICO DO SISTEMA
PRISIONAL

Na Antiguidade, em que o pensamento social e normativas


eram estabelecidas a partir da doutrina bíblica, a separação
dicotômica de homem e mulher (suas identidades e funções sociais)
já era muito acentuada, atingindo seu ápice, uma vez que foi usada
a fé das pessoas para criar o dogma estereotipado do que caracteriza
um homem e do que caracteriza uma mulher. Assim:

Nesse contexto, o conceito de gênero estava


automaticamente ligado ao de sexo como categoria
única que determinava os papéis sexuais dos
indivíduos, reforçando, por conseguinte, a convicção
na inferioridade feminina vis-à-vis à superioridade
masculina (ALMEIDA, 2002, p. 90).

Com a instituição do Estado, o homem passa a se organizar


em uma sociedade civil, em que cada um contém seu papel e
importância de forma igual, deixando o “estado natural”, onde não
havia forma de governo que estabelecia ordem ou regia condutas de
comportamento motivadas por seus instintos e vontades. Ou seja,
desfrutavam de liberdade absoluta, mas que sucedia no caos, pois
o direito de um acabava por misturar e invadir o direito do outro,
conforme pensamento de Thomas Hobbes.

Já organizado em sociedade civil, conforme os ideais


contratualistas, o homem se submete ao Estado, que é a representação
máxima de autoridade, responsável por organizar e controlar
as normas regentes da boa convivência, sejam elas preventivas
ou coercitivas punitivas. Assim, o Estado instrui o cidadão sobre
como se portar dentro da sociedade para que não seja punido por

250 Direitos Humanos


sair do padrão imposto em nome da boa convivência, mas uma
vez cometendo alguma forma de delito, este será penalizado pelo
próprio Estado, de forma coercitiva, mas com diferentes finalidades,
sejam elas de punição (retribuição) ou prevenção, aqui explicadas:

Surgem então três principais teorias que buscam


explicar a finalidade da pena: a) Teoria Absoluta ou
Retribucionista; b) Teoria Preventiva ou Utilitarista;
c) Teoria Mista ou Unificadora. A Teoria Absoluta
vê a pena como um fim em si mesma, ou seja, busca
retribuir ao condenado o mal que praticara. Ao
contrário, a Teoria Preventiva volta seu olhar para
a prevenção de delitos, seja uma prevenção geral
ou especial. A prevenção geral idealiza a pena como
instrumento capaz de evitar o cometimento de delitos
pelos cidadãos em geral, em virtude da intimidação
causada pela pena e do fortalecimento na fé punitiva
da lei. A prevenção especial, por sua vez, direciona-
se ao delinquente, atuando preventivamente para
que ele sofra as consequências da pena e não volte a
delinquir. A Teoria Unificadora, como subtende-se,
nada mais é que a junção do que se tem de melhor
nas teorias já citadas, acrescentado a elas um senso
de justiça social (QUEIROZ, 2011 apud FERREIRA,
2012, p. 04).

Vemos que desde a Antiguidade até o Medievo, a concepção


inspiradora e seguida era a da Teoria Retribucionista, pois implicava
ao condenado um mal de modo a compensar o mal que este havia
causado à sociedade. Do Medievo até meados da Modernidade, a
pena sofreu mudança, pois seguia as necessidades e aprendizados
da sociedade em que a punição por punição não apresentava um
resultado satisfatório, apenas incitava o ódio no punido fazendo
com que este voltasse à prática delituosa. Assim, começou a
desenvolver-se e a ser aplicada a Teoria Preventiva, em que a pena
servia como punição àquele infrator, mas também como meio de

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 251


desestimulá-lo ao cometimento de ato delituoso ou reincidência. A
Teoria Unificadora começa a desenvolver-se na Europa no final do
séc. XIX, ganhando notoriedade com o fim da I Guerra Mundial,
com o Sistema Penitenciário Progressivo (ASSIS, 2007, p. 02).

O Brasil não estava isolado, sendo fortemente influenciado


pelos ideais europeus trazidos principalmente pelos portugueses
por ser colônia, tendo presentes características punitivas e
retribucionistas. Entretanto, no período de transição do Brasil
colônia para República, já é possível ver a presença e transição entre
as referidas teorias.

Com a advento da Constituição de 1824 para organizar o


Brasil em sua autonomia de Portugal, temos por consequência a
criação do primeiro Código Penal em 1830 e o de Processo Penal
em 1832, sendo estes importantes por romperem, ainda que não
totalmente, com as práticas de tortura, além de esboçarem também
com a ruptura dos caráteres retributivo e preventivo, para priorizar
o unificador em suas finalidades corretivas e ressocializadoras.

Apenas no ano de 1988, que temos a promulgação da


Constituição, que vem a ser a mais democrática de todas por
incorporar matérias já conhecidas sobre dignidade da pessoa
humana, dando a este princípio força de lei e embasando todo
o ordenamento jurídico atual e futuro neste princípio, sem a
possibilidade de retirada ou alteração deste. Além do referido
princípio, salientamos a existência de outro, mesmo que não
expresso no texto legal da Constituição vigente, mas como
consequência: o princípio da Equidade.

Nosso investimento e enfoque no princípio da Equidade (NERY


JUNIOR, 1999) se dá pela ausência de conceituação/designação
adequada aos sujeitos componentes da população LGBTQIA+,
que tem, por consequência, sua inexistência aos olhos das Leis,
assim, não gozam de seus direitos na integralidade, bem como

252 Direitos Humanos


arcam com seus deveres de modo que não correspondem às suas
identidades e subjetividades. Trazemos como uma possibilidade
imediata (e que deve ser adotada de modo definitivo) o julgamento
dessas pessoas considerando suas identidades e diferenças de
acordo com essas diferenças, pois uma travesti ou transexual não
pode ser considerada e tratada enquanto homem cisgênero (por
ser exatamente transgênero, que se reconhece no gênero mulher),
ainda mais em um ambiente heteronormativo e rígido como o
sistema penitenciário. Eis nossa problemática.

SOBRE CORPOS NÔMADES: HISTORICIDADE E CONCEITOS


DA HOMOSSEXUALIDADE/TRAVESTILIDADE

Sabe-se claramente, por meio de um resgate histórico da


humanidade, que a atração afetivo-sexual entre pessoas do mesmo
sexo sempre existiu nas mais diferentes culturas, tendo os seus
significados, simbologias e conceitos construídos e reconstruídos
conforme as crenças e valores de cada sociedade.

O modelo higienista, característico do século XIX, foi


responsável por construir a figura do homossexual em um contexto
médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista – de onde o
próprio conceito surgiu – com a função de ser a antinomia do ideal
de masculinidade aclamado pela família burguesa. Assim, torna-
se compreensível como ao longo da história a homossexualidade
foi associada ao preconceito, sendo relacionada à transmissão
de doenças, à pedofilia, reforçando um modelo abstrato de
‘naturalidade’ ou de ‘normalidade’ (TONIETTE, 2006).

Na Grécia antiga, a homossexualidade tinha status


privilegiado. Foucault (2010) afirma que os gregos mantinham um

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 253


sistema de repreensão não direcionado à prática homoerótica, mas
sim contra o comportamento passivo em relação aos prazeres.

De fato, o Estado homofóbico nasceu apenas na Europa


Medieval, por meio das ligações entre Igreja e Estado, sacralizando
a sexualidade e estabelecendo o ideal heterossexual. Isto torna-se
mais incisivo em 1700, quando o puritanismo introduz as noções
de mal e de bem, em que os homens que mantinham relações
sexuais com outros homens são considerados criminosos. Por não
representar o ideal reprodutivo, o homossexual foi colocado no
mesmo nível de assassinos, hereges e traidores (SPENCER, 1999).

No século XIX, a medicina torna-se a gerenciadora das relações


homossexuais, cabendo a ela o dever de estudar tal “desvio social”,
bem como de levantar formas de categorização e tratamento deste.
Em 1869, o médico Karoly Benkert, cunhou o termo homossexual,
tornando-se o pioneiro na escrita sobre o relacionamento afetivo-
sexual entre pessoas do mesmo sexo. Em 1878, o médico italiano
Arrigo Tamasia propôs o diagnóstico Inversione dell’instinto sessuale
que, mais tarde, foi adotado pelos neurologistas franceses Charcot e
Magnan. Em 1886, o médico Richard von Krafft-Ebing criou o termo
homossexualismo, designando-o como síndrome (TONIETTE,
2006).

O termo homossexualidade é utilizado dentro dos grandes


estudos que envolvem o binômio gênero-sexualidade, já que o
termo criado em 1886 denotava, em sua etimologia, a relação
homossexual como algo desviante e com características patológicas
e de síndrome.

No século XX, com destaque à década de 80, diversos


estudos socioculturais ajudaram a firmar este termo como melhor
designador das práticas homoeróticas. O filósofo francês Michel
Foucault desponta como baluarte dos estudos sobre sexualidade
que embasaram o pensamento da homossexualidade como uma

254 Direitos Humanos


classificação apropriada para pessoas de práticas homossexuais.
Por meio de seus estudos históricos, Foucault distanciou a
homossexualidade dos campos da Medicina e da Biologia,
classificando a sexualidade como um dispositivo construído para
normatizar o sujeito dentro de uma dada sociedade. Sendo assim, a
homossexualidade transformara-se em uma palavra de designação,
de identificação do sujeito e não mais uma classificação médica,
patológica e arbitrária.

Nas últimas duas décadas, houve o surgimento de grupos de


minorias sexuais cada vez mais complexas e públicas, compostos por
diversos subgrupos com diferentes orientações sexuais: lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (CARVALHO
JÚNIOR, 2014).

Porém, data-se desde a década de 1970 o início de diversos


movimentos com intuito de tornar massiva a visibilidade da
população LGBTQIA+. Por meio de elementos festivos, como
músicas e fantasias rompe-se, a partir de então, o ocultamento
social dessa classe marginalizada pelos estigmas construídos ao seu
redor.

Marchas estritamente políticas de denúncia à violência contra


os homossexuais, bem como sua criminalização e patologização
frente à epidemia de AIDS, iniciaram-se em 28 de junho de 1970
nas cidades de Nova Iorque e São Francisco. Tais movimentos
remetem a um fato histórico: a revolta ocorrida no bar nova-
iorquino LGBTQIA+ Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969, na
qual frequentadores enfrentaram a repressão policial existente no
estabelecimento (JESUS, 2012).

No Brasil, desde a década de 1970, estava em desenvolvimento


a organização da comunidade LGBTQIA+ em torno de um
fortalecimento e visibilidade de sua identidade de grupo e da

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 255


sua inclusão junto à sociedade, na busca pela garantia de direitos
(PARKER, 1992).

Assim, a minoria mostrou-se relevante na sociedade, pois


todos são cidadãos e sua sexualidade e gênero não afetam seu papel
social. Buscaram meios de representação para chamar atenção
daqueles que lhes deveriam representar, buscando lhes garantir os
direitos que já lhes são próprios e mais aqueles que são especiais
para atenderem suas demandas especiais (por especiais deve-se
entender que são assim chamados pois não são regulados ainda,
se diferenciando por isso). As demandas são diferentes e condizem
com as necessidades dos LGBTQIA+, que são postos à margem
da sociedade. Se isso não acontecesse, não haveria necessidades
especiais, seriam todos tratados como comuns, como os demais,
como deve ser.

LEIS, RESOLUÇÕES, POLÍTICAS PÚBLICAS E LACUNAS


APLICACIONAIS

Dentro do sistema penitenciário, encontram-se as minorias da


sociedade que, consequentemente, são marginalizadas, no sentido
etimológico da palavra, uma vez que sofrem com preconceitos e
discriminações, ficando às margens da sociedade, em que há essa
diferenciação hostil, levando-os ao estado de cárcere.

Dentro dessa minoria, estão as travestis e transexuais,


que sofrem todas as formas de discriminação e repressão. São
mais discriminadas dentro do presídio do que fora, uma vez
que este ambiente é de natureza e tem como baluarte a rigidez
heteronormativa, pois são divididos para receber pessoas do mesmo
sexo. Eis a problemática das travestis: são do sexo (biológico)
masculino, mas têm sua construção identitária no gênero mulher,

256 Direitos Humanos


reproduzindo os comportamentos e papel social feminino, ou seja,
não obedecem ao padrão (não só do presídio, mas da sociedade, que
é heteronormativa e sexista).

Nesse ambiente, não somente a heteronormatividade e


o sexismo imperam, mas também a misoginia, pois a mulher é
desvalorizada, uma vez que a virilidade e masculinidade são pré-
requisitos para definição do grau hierárquico que o indivíduo ocupa
dentro dessa sociedade paralela que se forma dentro da instituição.

A discriminação contra as travestis começa neste âmbito


ao não obedecerem ao padrão heteronormativo. Também não se
encaixam em nenhum rótulo existente, pois “o sistema jurídico,
cioso de seus mecanismos de controle, estabelece desde logo com o
nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única”
(DIAS, 2006, p. 119-120). Assim, o padrão imposto pela sociedade
é de que quem nasce com o sexo biológico masculino tem que ter
o gênero homem e quem nasce com o sexo biológico feminino tem
que ter o gênero mulher e ambos devem ter relações erótico-afetivas
com pessoas de sexo e gênero opostos, sendo assim cisgêneros e
heterossexuais.

Esse preconceito e discriminação gera repúdio entre os


detentos contra as travestis e contra aqueles que mantêm qualquer
vínculo com elas, tornando-as alvo das mais variadas agressões.
Vale ressaltar que o preconceito é uma construção social e é
estrutural, pois internalizamos durante nossa vida e constituição
de personalidade.

No intuito de combater as agressões ou reduzir ao máximo


a humilhação moral e dar tratamento diferenciado àqueles que
são diferentes na medida das diferenças, o Poder Legislativo vem
implantando políticas protecionistas e garantidoras de direitos
para que o princípio da dignidade humana alcance e seja aplicado
de fato a esses indivíduos.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 257


Como marco da batalha judicial em busca de direitos
LBGTQIA+, tem-se a Resolução SAP nº 11, de 30 de janeiro
de 2014, que estabelece normas de tratamento para travestis e
transexuais no âmbito do sistema carcerário. Esta Resolução é válida
apenas no território do estado de São Paulo. Além da sua restrita
abrangência, é notório como tal dispositivo é recente, pois desde
os primórdios, os homossexuais sofrem com a falta de políticas e
cuidados específicos dentro e fora do sistema penitenciário.

A novidade trazida por tal resolução não foi ruim, apenas


tardia, mas sua necessidade é revelada e comprovada com a edição
de outra resolução mais tarde, a Resolução Conjunta Nº 1, de 15
de abril de 2014, de autoria do presidente do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária, Herbert José Almeida, e pelo
presidente do Conselho Nacional de Combate à Discriminação,
Gustavo Bernardes Carvalho, a qual delimita diretrizes para o
tratamento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
(LGBT) no sistema penitenciário nacional.

Alguns estados já adotavam parâmetros semelhantes, mas de


forma autônoma, como Goiás, Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul.

As pessoas transexuais e travestis se compreendem dentro da


dimensão de transgêneros, uma vez que o

gênero com o qual uma pessoa se identifica, que


pode ou não concordar com o gênero que lhe foi
atribuído quando de seu nascimento. Diferente
da  sexualidade  da pessoa. Identidade de gênero
e orientação sexual são dimensões diferentes e que
não se confundem. Pessoas  transexuais  podem
ser  heterossexuais,  lésbicas,  gays  ou  bissexuais,
tanto quanto as pessoas cisgênero (JESUS, 2014, p.
14).

258 Direitos Humanos


Identidade de gênero não pode ser considerada como anômala
por não seguir a cartilha do padrão heteronormativo-cisgênero.
Tal padrão, como não detém poder de verdade absoluta, não deve
regular a vida de todos, deve ser desconstruído para que todas as
variações de gênero e sexualidade sejam respeitadas, a fim de evitar
ou diminuir a discriminação.

Ao abordar preconceito e discriminação destes indivíduos,


a análise deve começar pela nomenclatura usada para classificá-
los. Apesar de serem usados como sinônimos, vale salientar
que identidade de gênero e sexual não são iguais, uma vez que
“sexualidade” é bastante abrangente e, interpretado literal e
etimologicamente, é considerado apenas o quesito sexual, como se
sexualidade se limitasse apenas a genitalização e relações sexuais.

A diferenciação entre identidade de gênero e identidade


sexual, bem como todas as nomenclaturas que têm origem na
palavra “sexo”, ao se tratar de transgêneros deve ser cuidadosamente
analisada ao ser usada, pois sexualidade, como já dito, é muito
abrangente e associada apenas à atividade sexual, sendo mais
correto a utilização das expressões e nomenclaturas que se refiram a
gênero, pois papel sexual e papel de gênero também são diferentes,
assim como identidade sexual e identidade de gênero, orientação
sexual e identidade de gênero (HOGEMANN e CARVALHO, 2011).

Assim, as sujeitas travestis e transexuais são transgêneras ao


seu sexo biológico ao não corresponderem ao gênero que é imputado
a elas, como sexo masculino – gênero homem / sexo feminino –
gênero mulher. Nasceram com genitália do sexo masculino, mas sua
construção identitária e de gênero é de mulher. As travestis não têm
repulsa ao seu genital masculino, elas apenas sentem a necessidade
de fazer algumas mudanças estéticas para se assemelharem ao
visual e identidade de mulher, enquanto as transexuais sentem a
repulsa e o seu corpo/sexo não lhes representa.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 259


O Direito ainda é lacunoso e omisso aos direitos das pessoas
LGBTQIA+, apesar dos recentes ganhos com as resoluções
anteriormente citadas. Os direitos LGBTQIA+ vão muito além dos
direitos de modificação corpórea, tratamento pelo nome social, uma
ala específica em presídios, tratamento hormonal custeado pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). Direitos humanos e fundamentais
lhes foram negados, esquecidos, por serem identificados como
“minoria”, mas mesmo assim este argumento é questionável ao
passo que essa minoria é composta por milhões de cidadãos que
têm necessidades específicas, que sofrem pela falta de atenção por
parte do Estado e que, mesmo existindo, são tratados com descaso,
são invisibilizados e silenciados. Só eles sofrem com a condição que
lhes é imposta por outros.

A área dos Direitos Humanos desenvolveu-se bastante após


as Guerras Mundiais, garantindo direitos básicos e fundamentais
para todas as pessoas do planeta e tendo como consequência a
reivindicação de mais direitos pelas minorias, pois estas necessitam
de normas mais específicas, uma vez que suas necessidades também
são específicas. O movimento dos trabalhadores e o movimento
feminista foram os precursores dos movimentos em prol dos
LGBTQIA+. Tardios, mas, aos poucos, suas necessidades têm sido
ouvidas e têm ganhado notoriedade na sociedade e política, pois
a população está vendo que essas minorias existem, são dignas de
respeito e devem ser tratadas como seres humanos, que por sua vez
têm direitos e garantias que lhes são devidas mesmo antes de seu
nascimento até depois de sua morte.

O bordão “somos todos iguais” é problemático vez que a


diferença existe. Não podemos recorrer ao eufemismo para disfarçar
a desvalorização do problema. A diferença existe e deve ser tratada,
conforme afirma Nelson Nery: “dar tratamento isonômico às partes
significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,
na exata medida de suas desigualdades” (NERY JUNIOR, 1999,
p.42).

260 Direitos Humanos


Seguindo esse raciocínio, os legisladores, ao redigirem as
Resoluções que tratam sobre acolhimento de travestis e transexuais
no sistema penitenciário, tiveram de criar uma definição para cada
um, de modo a encaixá-las em um modelo para que pudessem ser
beneficiadas pela legislação. A definição é necessária, mas a rotulação
não. A desconstrução dos rótulos deve ser defendida e difundida
de modo que o preconceito e a discriminação não comecem pela
própria nomenclatura e classificação, gerando situação vexatória e
indigna para estes indivíduos.

As nomenclaturas “homossexualismo”, “travestismo” e


“transexualismo” devem ser desincentivadas, uma vez que o sufixo
“ismo” denota patologia, transtorno, ou seja, como se aqueles que
têm orientação sexual ou identidade de gênero não condizente
com o padrão heteronormativo possuíssem transtornos. Essa
identidade, ou orientação, é fruto de uma patologia, não de uma
construção social e psicológica.

O CID 10 (Classificação Internacional de Doenças) os define


como transtornos psicológicos. Este erro não foi cometido pelos
legisladores brasileiros, mas ainda é uma luta que deve ser travada
ardentemente pela retirada destas classificações como transtornos.
É de suma importância, uma vez que é requisito necessário e
obrigatório pedido pelo SUS para tratamento do público LBGTQIA+.
Mesmo não sendo portadores de transtornos, devem se submeter
à análise e classificação médica como portadores para receberem
cuidados que lhes são garantidos como fundamentais.

Não devemos adotar tais designações na nossa vida, bem


como não devem ser adotadas, mas retiradas do ordenamento
jurídico e das legislações, pois o fato de não serem representados
por aqueles que deveriam, os colocam em lugar de inferioridade,
sempre tratados de modo “especial” ou diferenciado, enquanto eles
buscam direitos iguais, ou de modo análogo, buscam direitos em
equidade ao considerarem suas diferenças e estas serem tratadas

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 261


com o devido respeito e não segregação, conforme os demais.
Transgêneros e demais membros da sigla LBGTQIA+ existem, são
pessoas e cidadãos, devendo ser tratados como tal.

HETERONORMATIVIDADE: ENCARCERAMENTO DA
DIVERSIDADE

A adequação não é impor o padrão, mas como ele existe e não


vai ser facilmente mudado por ser um produto social, alternativas
devem ser criadas para que aqueles que não se encaixam, tenham
condições de vida digna e sejam respeitados.

O sistema penitenciário ao receber travestis e transexuais


os destinam a unidades prisionais destinadas, inicialmente, aos
pertencentes do sexo masculino e que tenham gênero atribuído como
condizente a este, que no caso, seria o gênero homem. A disciplina
e controle sobre o outro vai de encontro com a imposição de todos
os atributos caracterizados como masculinos em nível máximo
como forma de domínio, não só da situação, mas do ambiente. O
controle sobre o corpo e sexualidade do outro é um instrumento de
dominação e exercício de poder (FOUCAULT, 2010).

Travestis e transexuais gozam de fluidez, transitam entre o


masculino e feminino, mas a sociedade lhes exige que se encaixem
em apenas um gênero e atendam apenas um papel/função social.
Por mais que elas se encaixem em um, não serão aceitas do mesmo
modo pois, mesmo escolhendo a identidade feminina, não serão
reconhecidas por não nascerem assim (biologicamente falando). Os
traços da genitalização são mais fortes que os traços do gênero, pois
este é abstrato, não sendo possível sua materialização através da
carne, como ocorre com a genitalização.

262 Direitos Humanos


No Brasil, o assunto sobre sexualidade e gênero ainda é
muito desconhecido e tratado como tabu, vez que há temas que
recebem maior importância como política e economia, mas isso se
deve ao contexto social e histórico: tais temas são mais frequentes
por afetarem a todos de modo geral, sendo tratados assim, em
caráter imediatista, tendo preferência a outros. Assim, sexualidade
e gênero ficam sempre como coadjuvantes, até porque a cultura
heteronormativa e misógina repele discussões que aprofundem o
assunto.

Enquanto isso, o púbico carcerário de travestis enfrenta toda


esta celeuma e sofre a repressão causada pela má acomodação de um
instituto falho e omissivo. O público existe e sempre há demanda,
mas lhe falta acomodação digna e adequada.

Grandes passos foram dados pelos direitos de LGBTQIA+,


como as resoluções ventiladas anteriormente, mas estas precisam
ser postas em práticas e contarem com um órgão fiscalizador que
garanta a inserção e aplicação destas para que não percam sua
eficácia, prejudicando aqueles que necessitam, sofrendo com o
descaso e suas consequências.

O tratamento dos diferentes de acordo com sua diferença,


noção aristotélica de Isonomia, foi aplicado e é bem claro neste
caso, pois já que não há como fazer toda uma reforma institucional
e doutrinária, há que se tratar de uma forma diferente para que
não tenham a dignidade atingida. A saída encontrada para alocar
homossexuais e transgêneros em alas especificas foi acertada
mesmo que seja de caráter provisório, pois não irá solver o problema
de forma integral, apenas de forma remediadora para um problema
existente.

O ambiente do sistema prisional é falho e não comporta os


diferentes gêneros, tornando a permanência de homossexuais

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 263


e transgêneros insalubre e afetando de forma direta e diária sua
dignidade.

Assim, lançamos a seguinte reflexão que a análise nos


apresentou: como inserir na sociedade um indivíduo que antes
mesmo de ter sua liberdade cerceada já era marginalizado?

As travestis, como já dito anteriormente, ficam às margens


da sociedade por não obedecerem aos padrões heteronormativos,
terminando como reféns da marginalização. Ficam reféns, pois nada
podem fazer para mudar sua realidade, uma vez que são vitimadas,
assim como aqueles que podem ajudar; não desempenham de modo
satisfatório as medidas que garantem efetividade da socialização
(como o Estado e a própria sociedade) entrando em círculo vicioso
e eterno.

Eis a grande batalha travada pelas travestis, pois antes já eram


marginalizadas e depois que passam pelo sistema penitenciário,
ficam apenas mais malvistas na sociedade, que discrimina mais,
fazendo-as se afundarem na marginalidade, incentivando a prática
de novos delitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deve-se ter uma instituição ressocializadora, que ofereça


educação, profissionalização e trabalho para os internos, para que
estes paguem pelo delito cometido ao mesmo tempo em que ganham
a capacidade de reflexão de sua realidade, ganhando a oportunidade
de mudá-la através do trabalho, passando de vítimas a atores de sua
ressocialização.

As travestis não conseguem adentrar o mercado de trabalho


ou mesmo a profissionalização por conta da discriminação, ficando

264 Direitos Humanos


sempre à margem da sociedade, encontrando na prostituição não só
seu sustento, como também autoafirmação de seu gênero e corpo,
sendo esta a porta de entrada para o mundo do crime e das drogas.

Foram observadas lacunas existentes sobre a problemática,


como o fato da legislação a nível constitucional não reconhecer e
conceituar cada indivíduo que compõe a sigla LGBTQIA+, tornando-
os invisíveis e os obrigando a se encaixarem em uma categoria que
não lhes representa. Pode-se concluir que há necessidade de maiores
e mais aprofundados estudos sobre a abordagem para a construção
de possíveis soluções para o acolhimento de homossexuais,
transexuais e travestis no sistema prisional brasileiro, de modo a
não ferir a dignidade destes, bem como deve ser executada de forma
efetiva a sua ressocialização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Gênero, Identidade, Diferença.


Aletria: Revista de Estudos de Literatura, [S.l.], v. 9, p. 90-97, dez.
2002. ISSN 2317-2096. Disponível em: <http://www.periodicos.
letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1301/1398>.
Acesso em: 10 nov. 2014.

ASSIS, Rafael Damaceno de.  A realidade atual do sistema


penitenciário Brasileiro. Disponível em: <http://br.monografias.
com/trabalhos908/a-realidade-atual/a-realidade-atual.shtml>.
Acesso em: 26 jun. 2010.

CARVALHO JÚNIOR, J.A.M. O significado da sexualidade


para o idoso homossexual e o cuidado transcultural em
enfermagem. 2014. 110 f. Dissertação (Mestrado) – Centro de
Ciências da Saúde/Departamento de Enfermagem, Universidade
Federal do Piauí, Teresina, 2014.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 265


DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O Preconceito & A
Justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

FERREIRA, Paula Guimarães. A estrutura do sistema prisional


brasileiro frente aos objetivos da teoria da pena. Âmbito Jurídico,
Rio Grande, XV, n. 103, ago 2012. Disponível em: <http://ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_
id=12093&revista_caderno=3>. Acesso em: 10 nov. 2014.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber.


20.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

HOGEMANN, Edna Raquel; CARVALHO, Marcelle Saraiva de. O


biodireito de mudar: transexualismo e o direito ao verdadeiro eu.
In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 89, jun 2011. Disponível
em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_
link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9668>. Acesso em nov
2015.

JESUS, J. G. Psicologia social e movimentos sociais: uma revisão


contextualizada. Psicologia e Saber Social, v.1 n.2, pp.163-186,
2012. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.
php/psi-sabersocial/article/view/4897/3620>. Acesso em: 23 nov.
2014.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações Sobre Identidade


De Gênero: Conceitos E Termos. Disponível em: <https://files.
cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_
POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989>. Acesso
em out 2015.

266 Direitos Humanos


NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na
constituição federal. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 138.

PARKER, R. Corpos, prazeres e paixões: cultura sexual no Brasil


contemporâneo. São Paulo: Best Seller, 1992.

PRODANOV, Cleber Cristiano. Metodologia do trabalho


científico [recurso eletrônico]: métodos e técnicas da pesquisa e
do trabalho acadêmico / Cleber Cristiano Prodanov, Ernani Cesar
de Freitas. – 2. ed. – Novo Hamburgo: Feevale, 2013.

QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal: legitimação


versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey,
2001.

SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. Rio de


Janeiro: Record, 1999

TONIETTE, M. A. Um breve olhar histórico sobre a


homossexualidade. Revista Brasileira de Sexualidade Humana,
São Paulo, v. 17, n. 1, 2006.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 267


CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA E SUAS
REPERCUSSÕES

Lara Melinne Matos Cardoso

INTRODUÇÃO

Após a interposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade


por Omissão (ADO) número 26 e o Mandado de Injunção (MI)
n.º 4733, impetradas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pela
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis, Transexuais
e Intersexos (ABGLT) frente ao Supremo Tribunal Federal (STF),
logrando inserir a homotransfobia no rol de crimes de preconceito
descritos na Lei 7.716/89, em 13 de junho de 2019, muito se
comentou sobre o ativismo judicial dos Ministros da Corte ao admitir
a equiparação da homotransfobia aos crimes de racismo e sobre a
constitucionalidade de tal medida. Contudo, outros enfatizaram
a importância da decisão para a tutela dos direitos humanos dos
homossexuais. Este capítulo visa sopesar os argumentos contrários
e favoráveis à decisão do Supremo Tribunal Federal, com o
pressuposto de que a abertura de sentidos e margens de atuação
são basilares para a efetivação do pluralismo constitucional.

De modo preliminar, é preciso falar sobre a repercussão da


homofobia patriarcal-cristã fundante do Brasil e como essa fundação
reverbera ainda hoje na sociedade brasileira e no fazer legislativo.
Primeiramente criminalizada e punida com morte pelas Ordenações

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 269


Filipinas46, que vigoraram por volta de 200 anos no Brasil, a
abordagem da homossexualidade passou para a patologização da
condição no século XIX, eis que no Código Criminal de 1830 não
havia pena para sodomia47, e o assim chamado homossexualismo
começou a ser estudado como um desvio de natureza mista,
psicológico, endócrino e comportamental. Médicos mais radicais
inclusive propuseram o asilamento desta população em massa, o
que já acontecia de fato: muitos homossexuais eram internados em
manicômios no início do século XX48.
Próximo ao final do século XX, quando a luta por direitos
LGBTTQIA+ começava a ganhar maior simpatia por parte da
população em geral, iniciou-se a pandemia de HIV-AIDS no
início dos anos 80, que ocasionou uma nova onda homofóbica e
moralista contra homossexuais por considerar (preconceituosa e
46
Livro 5, Título XIII: “Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de
sodomia (1) per qualquer maneira commeter seja queimado, e feito o fogo em pó (2),
para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos os seus bens
sejam confiscados para a Coroa de nossos reinos, posto que tenha descendentes; pelo
mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles (3) e infames assi como os daquelles que
commetem crime de Lesa Magestade (sic) (4). Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/
proj/filipinas/l5p1162.htm> Data de Acesso: 14 set. 2020.

O voto do ministro Celso de Mello descreve a historicidade que conduziu até as Ordenações
Filipinas: “É interessante observar que as Ordenações do Reino – as Ordenações Afonsinas
(1446), as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603) –, marcadas
por evidente hostilidade aos atos de sodomia, também qualificada como “pecado nefando”
(ou, na expressão literal daqueles textos legislativos, como “cousa indigna de se exprimir
com palavras: cousa da qual não se pode fallar sem vergonha”, cominaram sanções
gravíssimas que viabilizavam, até mesmo, a imposição do “supplicium extremum” aos
autores dessas práticas sexuais tidas por “desviantes” (voto Ministro Marco Aurélio Mello,
p. 30)
47
No entanto, prisões de homossexuais continuavam a ocorrer pelo artigo 280 do Código,
que punia a prática pública:

“Art. 280. Praticar qualquer acção, que na opinião publica seja considerada como
evidentemente offensiva da moral, e bons costumes; sendo em lugar publico. Penas - de
prisão por dez a quarenta dias; e de multa correspondente á metade do tempo.”
48
Sobre o tema, matéria de Ivanir Ferreira para a Seção de Ciências da Saúde do Jornal
da USP: Pacientes do Sanatório Pinel incluíam homossexuais e mulheres cultas. 14 de
dezembro de 2018: <http://jornal.usp.br/?p=214328> Acesso: 28 set 2020

270 Direitos Humanos


erroneamente) que seriam os vetores da doença, no início chamada
de “câncer gay” ou “peste gay”49.
Foi sob o peso desses estigmas que o ativismo por direitos dos
homossexuais ingressou com suas demandas frente a Constituinte
de 1988, o que prejudicou a tutela de seus interesses e obstou
a adoção de diplomas antidiscriminatórios voltados de forma
específica ao enfrentamento da homotransfobia. A omissão legal,
após quase 15 anos de engavetamento da PL 122/06, suscitou a
ação do Supremo Tribunal Federal que equiparou a prática da
discriminação homofóbica à violência racista. Este é o pano de
fundo da decisão de 13 de junho de 2019.
Abaixo, gráfico do Grupo Gay da Bahia (GGB) demonstra a
urgência da pauta, inventariando o número de mortes violentas
de homossexuais no ano de 2017:
GRÁFICO 1 – MORTES DE LGBTS EM 2017

FONTE: Grupo Gay da Bahia (GGB), com coleta de dados feita por Eduardo
Michels.
49
Sobre a possível origem e história do HIV: A ‘tempestade perfeita’ em cidade
africana que permitiu o surgimento da AIDS; <https://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2014/10/141003_aids_inicio_hb> Data de Acesso: 11/09/20, às 11:20
271
O gráfico acima nos auxilia na compreensão da dimensão das
violências sofridas pelos grupos LGBT+ e a necessidade de agir de
forma a garantir o direito à dignidade humana dessas pessoas. Os
dados mais recentes do Grupo Gay da Bahia, de 2018, indicam que
“420 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) morreram no
Brasil em 2018 vítimas da homolesbotransfobia: 320 homicídios
(76%) e 100 suicídios (24%). Uma pequena redução de 6% em
relação a 2017, quando registraram-se 445 mortes, número recorde
nos 39 anos desde que o Grupo Gay da Bahia fundou esse banco de
dados.” (GGB, 2018).

A pesquisa procederá com base em consulta bibliográfica,


contando com especial atenção à tese de Thula Pires (2013) e
seus comentários a respeito de identidade e reconhecimento; a
sustentação oral de Paulo Iotti perante o STF e suas petições em
sede da ADO número 26. Além disso, tem-se a análise documental,
através da leitura dos votos dos Ministros, destacando pontos
cruciais que permitam desvendar a complexidade do tema tratado e
explicitar a gravidade da omissão do Poder Legislativo. Se abordou
não só os fatores legais, mas também o contexto social de violência
e exclusão que precipitou essa demanda ao STF.

IDENTIDADE E RECONHECIMENTO NA ORDEM


CONSTITUCIONAL

Frise-se que muitas comparações serão feitas entre a


criminalização do racismo contra negros e a da homotransfobia, eis
que, estando tipificada dentro da lei do racismo (Lei 7.716/89), a
violência homofóbica deve ser estudada como crime de preconceito
desta natureza, e assim, receber parâmetros de raciocínio similares.
Parte-se também da consideração de que em ambos os casos é

272 Direitos Humanos


construída uma outridade como forma de alijar o discriminado de
seus direitos e garantias fundamentais, o que aproxima muito as
demandas antidiscriminação.

Apesar de tratar das teorias de reconhecimento para abordar


especificamente o racismo, Thula Pires (2013) comenta Habermas
acerca da formação de identidades de modo absolutamente
pertinente a este trabalho. Assim, temos:

Habermas (1990a) entende por ‘identidade bem-


sucedida do eu’ a capacidade peculiar de sujeitos
capazes de falar e agir, de permanecerem idênticos
a si mesmos, inclusive nas mudanças profundas
da estrutura da personalidade, com as quais eles
reagem a situações contraditórias. Aponta ainda
que a formação da identidade de um indivíduo
depende do reconhecimento intersubjetivo dos
sinais de autoidentificação: a unidade simbólica
da personalidade, produzida e mantida através da
autoidentificação, apóia-se (sic) no fato de se estar
inserido na realidade simbólica de um grupo. A
individualidade emana da autocompreensão de um
sujeito capaz de falar e agir que se apresenta em
face dos outros participantes do diálogo como uma
pessoa inconfundível e insubstituível (PIRES, 2013,
p. 25).

A noção de auto respeito, conforme comenta Pires (2013),


necessita de uma formação bem-sucedida, que só pode ocorrer
quando se permite o desenvolvimento das outras pessoas em as suas
estruturas de personalidade. Isso é algo que, numa sociedade que
impõe e cristaliza padrões de gênero desde muito cedo, obsta o livre
desenvolvimento de identidades de gênero, e posteriormente, de
sexualidades. Desta forma, a homofobia impede o desenvolvimento
pleno do ser humano e atenta contra os Direitos Individuais de
forma cabal.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 273


Para tratar do Constitucionalismo, é necessário adotar
alguns standards que consideram posições liberais porque a
Constituição de 1988 foi pensada, votada e posta em prática sob
um regime de direitos liberal baseado nas considerações teórico-
constitucionalistas. Até para agregar novos pontos de vista às
interpretações do sistema é necessário conhecê-lo bem para estar
apto a criticar e usar o que há de benéfico a favor das minorias que
necessitam de resguardo de dignidade. O ministro Celso de Mello
recepcionou esta nuance em seu voto:

Impende enfatizar, bem por isso, que as omissões


inconstitucionais dos Poderes do Estado,
notadamente do Legislativo, não podem ser
toleradas, eis que o desprestígio da Constituição
– resultante da inércia de órgãos meramente
constituídos – representa um dos mais tormentosos
aspectos do processo de desvalorização funcional da
Lei Fundamental da República, ao mesmo tempo em
que estimula, gravemente, a erosão da consciência
constitucional, evidenciando, desse modo, o
inaceitável desprezo dos direitos básicos e das
liberdades públicas pelo aparelho estatal (BRASIL,
STF, Mello, voto em Plenário, ADO no. 26, 2019, p.
44).

Descartando de pronto a ideia do suposto privilégio de


grupos tutelados contra a discriminação (como se sofrer maior
violência fosse indicador de privilégios para LGBTTQIA+, negros
e mulheres), passo ao comentário das questões constitucionais
atinentes à criminalização da homofobia por sua equiparação ao
racismo realizada pelo STF em 13 de junho de 2019. Faz-se, para isso,
uma leitura crítica dos votos que apreciaram a constitucionalidade
da medida e que afirmaram não haver prejuízo aos princípios
constitucionais da legalidade e da reserva legal.

274 Direitos Humanos


Soluções temporárias são admissíveis quando não se encontra
tutela efetiva para direitos urgentes. Urgentes porque o Brasil é
um dos países que mais mata homossexuais no mundo, além de
ser comprovada a relação entre discursos homofóbicos50, mesmo
humorísticos, e a incitação do ódio a estes grupos, de modo muito
semelhante ao que acontece nas piadas racistas.

Mais uma vez, é preciso ressaltar que muitas vezes se usa


as normas à disposição como recurso de defesa contra agressões
persistentes e contundentes por parte de setores da sociedade, o
que ocorre tanto nos casos de violência racista quanto violência
homofóbica. Quando a integridade física e psicológica das
pessoas está em jogo, ações relacionadas ao resguardo dos direitos
relacionados à dignidade da pessoa humana se avolumam. O
Legislativo, omisso em relação à questão por quase vinte anos (a
primeira proposição da lei de criminalização da homofobia é de
2001, a PL n.º 5003/2001, de autoria da deputada Iara Bernardi),
não irá tão cedo tratar do tema, eis que o projeto encontra-se parado
no Senado desde o ano 201451. A Constituição, assim, resguarda o
direito à vida, bem maior tutelado pelo direito penal. Prezar pela
dignidade humana dos LGBT+ por meio de lei coibindo a violência
50
Um destes discursos partiu do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos deputados, denotando o nível de exposição e propagação de ideias homofóbicas que
incitam a violência, fazendo o Brasil ser um dos países que mais mata homossexuais
no mundo. Consta referência a esta declaração da página 7 do voto do Ministro Fachin,
ipsis litteris: “(...) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu informações
relativas ao uso de expressões estigmatizantes e intolerantes pelo Presidente da Comissão
de Direitos Humanos da Câmara de Deputados do Brasil em 2013. De acordo com as
informações recebidas, ele indicou publicamente que as pessoas LGBT “querem impor uma
ditadura gay no país, a fim de expulsar Deus do Brasil” e que a “putrefação de sentimentos
gays levam ao ódio, crime e rejeição””. (OAS/Ser.L/V/II.rev.1/ Doc. 36, 12 de novembro de
2015, par. 243, tradução livre apud FACHIN, voto em Plenário, ADO no. 26, 2019, p. 07)

51
Segundo consulta pública no site do Senado, a PL 122/2006 foi arquivada no ano de 2014,
e precisa ser posta novamente em pauta em uma nova legislatura para votação. Disponível
em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/79604> Acesso:
04 out 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 275


simbólica contra essa parcela da população é, portanto, preservar o
espírito constitucional.

O ATIVISMO JUDICIAL

A suposta usurpação de competências pelo Judiciário tem sido


levantada como a principal questão da decisão do STF que julgou a
Ação de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 e o Mandado de
Injunção n.º 4733, em 13 de junho de 2019. Assim, avolumam-se
os comentários acerca do ativismo judicial da corte, que segundo
Estrela:

Apesar da controvérsia e da oscilação teórica e


doutrinária sobre o conceito de ativismo judicial,
este fenômeno caracteriza-se, em síntese, por ser
uma atuação mais proativa e expansiva do Poder
Judiciário quando da defesa de direitos e liberdades
fundamentais assegurados constitucionalmente,
fazendo valer o princípio da dignidade da pessoa
humana, principalmente, no que tange aos direitos
das minorias e proteção dos grupos vulneráveis da
sociedade, isso quando estivermos diante de descaso
ou omissão do Estado (ESTRELA, 2019, p. 134).

O ativismo judicial será tematizado de forma breve, apenas


para mostrar que esta preocupação é superficial, quando não
falaciosa, destacando que as decisões serão tratadas pelo viés
constitucional, conduzindo as problemáticas para sopesar as
circunstâncias desta Ação de Inconstitucionalidade por Omissão.
Em verdade, toda decisão judicial carrega em si posicionamentos
políticos, porque estar inserido no aparato estatal é emanar vontade

276 Direitos Humanos


política. Negar isto é negar a própria existência do direito como
ciência social aplicada.

Em um capítulo com curto espaço de desenvolvimento de


ideias não há como demonstrar pressupostos complexos de teoria
constitucional necessários para uma discussão aprofundada
acerca do ativismo. No entanto, ambiciona-se tratar do tema para
além do legalismo e analisar a historicidade das demandas que
incitaram o Mandado de Injunção n.º 4733 e a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26. Quando se considera
a Constituição como o selo de um pacto de nação, é mais fácil
compreender que os esforços para cumprir suas premissas são
elementares para a consolidação da ordem preconizada por seus
dispositivos.

Afastada a existência de uma neutralidade do Judiciário52, é


preciso ponderar que a ação do Supremo pode esconder interesses

52
A antropologia processual permite estudar as condições de produção documental de
natureza burocrática e ligá-las às relações de poder que induzem os sistemas de produção
de verdade e seus modos de mediação e propagação. Desta forma, Muzzopappa e Villalta:

“[...]burocracias, si bien se presentan como homogéneas y con contornos definidos, se


pueden comprender mejor si son analizadas como un complejo sistema de relaciones
sociales y de poder entre grupos, agentes y organizaciones. Y aquí entendemos que la
noción de campo de lo estatal constituye una herramienta valiosa para la indagación
antropológica, en la medida en que posibilita ver al Estado como una arena de disputas
que se desarrollan en torno al poder de lo estatal, entendido como la capacidad de esta
poderosa ficción de transformar, innovar o mantener condiciones que repercuten
de diversas maneras y con distinta intensidad en la vida cotidiana de los sujetos.”
(MUZZOPAPPA e VILLALTA, 2011, p. 18.)

Tradução: “burocracias, ainda que se apresentem como homogêneas e de contornos


definidos, podem ser melhor compreendidas se são analisadas como um completo sistema
de relações sociais e de poder entre grupos, agentes e organizações. E aqui entendemos
que a noção de campo do estatal constitui uma ferramenta valiosa para a indagação
antropológica na medida em que possibilita ver o Estado como uma arena de disputas que
se desenvolvem em torno do poder estatal, entendido como a capacidade de esta poderosa
ficção de transformar, inovar ou manter condições que repercutem de diversas maneiras e
com distinta intensidade na vida dos sujeitos.”

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 277


muito mais funestos53 e serve a um projeto bem definido de poder.
Vale ressaltar que sem o escudo protetor de uma sociedade civil
tolerante e plural, populações vulneráveis ficam totalmente à mercê
de todo o tipo de violência; violência tão intensa que muitas vezes
a ultima ratio do direito penal se mostra a única saída para fazê-la
cessar.

A ideia dicotomizante de que há uma medição de forças


opostas nubla a compreensão da conjuntura do exercício do direito
do Brasil, o qual sempre foi eminentemente político não só aqui,
mas em todo o mundo. Portanto, não há que se falar em “ativismo
judiciário”, visto que esta ação sempre existiu e que todo exercício de
poder, não só do Executivo e Legislativo, se faz por trocas políticas.
O que se deve considerar é a legitimidade destas trocas e o manejo
de interesses.

A CONSTITUCIONALIDADE DA DECISÃO

Para compreender a dimensão da constitucionalidade da


decisão que julgou a ADO n.º 26, é preciso voltar aos fundamentos
da teoria política clássica. Montesquieu permite fazer uma leitura
do que ocorre, hoje, entre os Três Poderes brasileiros, ao considerar

53
A ação de magistrados como “defensores” de interesses de minorias, arbitrando em
seu favor, ocorre, muitas vezes, para criar a impressão de que os juízes se opõem ao
projeto de poder em curso, quando na verdade acompanham os trânsitos situacionais e
se adaptam a eles como forma de manterem seus privilégios. Assim, ao ganhar a simpatia
de parte da opinião popular pela decisão progressista, oculta-se a leniência e mesmo o
apoio do Supremo ao projeto autoritário do governo em curso no tocante a questões mais
complexas, como as reformas econômicas ultra neoliberais. O que hoje é chamado de
lavajatismo explicitou este teatro por parte do Tribunal e mostrou como funcionam as
negociações de pautas relevantes entre procuradores, advogados e ministros.

278 Direitos Humanos


que: “o poder para o poder54”, tradução correta do francês, e não
“o poder controla o poder”, como costuma ser transmitido. Sena
comenta a este respeito:

É que, para ele, a escolha do verbo parar, e


não “controlar” por MONTESQUIEU é muito
significativa, pois denota uma referência, ainda que
subliminar, à concepção mecanicista, muito em voga
naquela época. O autor [Sergio Rezende Barros,
comentando Montesquieu] sustenta que, subjacente
ao pensamento de Montesquieu, parece estar
presente uma concepção do sistema político e legal
do Estado Moderno enquanto sistema mecânico, que
poderia ser equiparado ao sistema solar, de modo que
“cada poder político possui sua órbita definida pelas
leis, que exprimem relações necessárias, derivadas
da natureza das coisas”. (SENA, J. S.B. 2010, p. 32)

Os limites ultrapassados, no caso concreto, são negativos:


o Legislativo Brasileiro transgrediu ao não legislar sobre a
discriminação contra homossexuais, algo previsível, especialmente
nos últimos anos, em que o fundamentalismo religioso tranca
pautas de projetos de lei que pretendem votar tutelas de direitos
de minorias. A fim de parar esta omissão, o Judiciário age, não
de modo excepcional, mas porque é seu dever constitucional agir
nestas circunstâncias, mecanicamente e seguindo a ordem de
funcionamento que permite manter todo o sistema funcionando
sem colapsar.

54
Sergio Rezende de Barros (2009) faz interessante interpretação a respeito do sistema
de freios e contrapesos desenvolvido por Montesquieu. Segundo ele, embora a expressão
cunhada pelo filósofo francês tenha sido “le pouvoir arrête le pouvoir” - cuja tradução
literal, em português, seria “o poder para o poder” -, a frase é geralmente traduzida por “o
poder controla o poder”, Rezende afirma que algo de muito importante perdeu-se nessa
modificação semântica. (SENA, 2010, p. 31)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 279


Sobre o cabimento do Mandado de Injunção no caso,
houve argumentos que levantavam a não admissibilidade do
Instrumento para tratar a questão. A despeito de defender a tese
pela criminalização, o que Iotti (2014) pontua, condiz plenamente
com a disposição constitucional:

[...] dispositivo constitucional afirma que “conceder-


se-á [MI] sempre que a falta de norma regulamentadora
torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania” (grifo nosso).
O MI 4.733 enfoca na parte final do dispositivo,
aparentemente (salvo melhor juízo) ignorada
pela doutrina: cabe MI quando a ausência da
norma regulamentadora inviabilizar prerrogativas
inerentes à cidadania das pessoas. (IOTTI, P. R.
V. O Mandado de Injunção e a Criminalização de
Condutas. 2014. Disponível em: <https://www.
conjur.com.br/2014-ago-26/paulo-iotti-mandado-
injuncao-criminalizacao-condutas>

Assim, ao determinar a equiparação (e não fazer analogia in


malam partem55, como alguns críticos sugerem) da homofobia ao
crime de racismo indo além da mera declaração de omissão, não há
afronta ao texto constitucional, eis que o dever de sanar tal inércia
é constitucionalmente determinado.

Os três ministros que votaram contra (Toffoli, Marco


Aurélio Mello e Lewandowsi) arguiram questões formais do

55
“Ademais, afirma a Procuradoria-Geral da República que é afastada a possibilidade de
analogia in malam partem, já que, no presente caso, trata-se de interpretação conforme a
Constituição do conceito de raça, para que se possa adequá-lo à realidade brasileira atual,
em processo de mutação de conceitos jurídicos – o que é plenamente compatível com o
conteúdo histórico da noção de “racismo”. (BRASIL, PGR, Parecer no 110.474, 2015 apud
ESTRELA, 2019).

280 Direitos Humanos


constitucionalismo ligadas a uma observação exegética que não faz
mais jus à ordem constitucional pluralista celebrada pela CF/88. O
voto de Marco Aurélio Mello sequer reconhece a mora legislativa
(apesar dos quase vinte anos – a primeira versão perante a Câmara
é a PL 5003/2001 – de pendência de apreciação do projeto inicial,
que contou com pensamentos diversos e está para apreciação no
Senado desde 2006), e afirma restar prejudicado o objeto mesmo
do Mandado de Injunção 4733, eis que não houve, pra ele, omissão
do Legislativo.

No entanto, não é possível, considerando o constitucionalismo


em sua vertente pós-positivista, partilhar destas considerações.
Neste sentido, Estrela afirma que:

Em tempos de neoconstitucionalismo e reconstrução


pós-positivista da ordem jurídica, a Suprema Corte
brasileira tem mudado sua jurisprudência em
sede de ações que visam coibir a omissão do Poder
Público. Anteriormente, o Supremo se limitava em
reconhecer a mora legislativa. Atualmente, além de
reconhecer a mora, vigora a teoria concretista da
ação, no sentido de que o Pleno do STF pode fixar
prazo para o Poder Público editar a norma faltante
e, ainda, se utilizar de lei já existente para suprir a
lacuna normativa, dando concretude e eficácia às
normas constitucionais. (ESTRELA, C.T. R., 2019, p.
156)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todos os fatos trazidos à baila e situados historicamente,


se vê que a ADO n.º 26 e o Mandando de Injunção n.º 4.733, julgados
procedentes por maioria dos Ministros do Supremo Tribunal
Federal, encontram-se em harmonia com os valores da ordem
constitucional pluralista brasileira instaurada pela Constituição

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 281


de 1988. Desta forma, cumpre-se a função de sanar a omissão do
Estado quanto a violações de direitos fundamentais exercidos por
motivações relacionadas à homotransfobia, não havendo, no caso,
de se falar em usurpação da tarefa legislativa nem de analogia in
malam partem: o dever estatal de legislar a favor do bem jurídico
vida ultrapassa quaisquer questões teóricas relativas a exegese
constitucional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em 25 set 2020.

BRASIL. Lei 7.716. Define os crimes resultantes de preconceito


de raça ou de cor. Publicada no DOU de 06 de janeiro de 1989
e retificada em 09 de janeiro de 1989. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm#:~:text=LEI%20
N%C2%BA%207.716%2C%20DE%205%20DE%20JANEIRO%20
DE%201989.&text=Define%20os%20crimes%20resultantes%20
de,de%20ra%C3%A7a%20ou%20de%20cor. Acesso em: 13 set.
2020.

BRASIL. LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830. Manda executar


o Codigo Criminal. Disponível: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm#:~:text=LEI%20DE%20
16%20DE%20DEZEMBRO,Mand a%20executar%20o%20
Codigo%20Criminal.&text=1%C2%BA%20N%C3%A3o%20
haver%C3%A1%20crime%2C%20ou,Art. Acesso em: 20 set. 2020.

BRASIL. Senado Federal. Proposta de Lei Complementar


122/06. Atividade Legislativa. Disponível em: https://www25.
senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/79604

282 Direitos Humanos


BRASIL. Supremo Tribunal Federal Tribunal Pleno. Ação Direta
de Inconstitucionalidade por Omissão no. 26 (Proc.9996923-
64.2013.1.00.0000). Requerente: Partido Popular Socialista.
Intimados: Congresso Nacional. Relator: Min. Celso de
Mello Disponível: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=4515053. Acesso em: 12 set. 2020.

BRASIL. Mandado de Injunção n.º 4733. Disponível em:


http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
MI4733mEF.pdf. Acesso em: 13 set. 2020.

FERREIRA, I. Pacientes do sanatório Pinel incluíam


homossexuais e mulheres cultas. Jornal da USP. São Paulo. 14
dez. 2018. Seção Ciências da Saúde Disponível em: http://jornal.
usp.br/?p=214328. Acesso em: 28 set 2020

IOTTI, P. R. Sustentação Oral. Julgamento da ADO 26 e do


Mandado de Injunção n.º 4733. Canal Editora Todas as Musas,
2019, (31 min 27s). Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=-sBMf1EsVRM. Acesso em 28 set 2020

IOTTI, P. R. O Mandado de Injunção e a Criminalização de


Condutas. Conjur, 26 de agosto de 2014. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2014-ago-26/paulo-iotti-mandado-injuncao-
criminalizacao-condutas Acesso em 18 set. 2020.

GALLANGHER, J. A ‘tempestade perfeita’ em cidade africana


que permitiu o surgimento da AIDS. 3 de outubro de 2014,
atualizada em 1º de dezembro de 2015. BBC Brasil. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/10/141003_
aids_inicio_hb Data de Acesso: 11 set. 2020.

MICHELS, E. Mortes de LGBTs em 2017. Pesquisa Mortes de


LGBT+ no Brasil. Disponível: https://homofobiamata.wordpress.
com/estatisticas/assassinatos-2012/ Acesso: 15 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 283


MUZZOPAPPA, E. e VILLALTA, C. Los Documentos Como Campo.
Reflexiones teórico-metodológicas sobre un enfoque etnográfico
de archivos y documentos estatales. Revista Colombiana de
Antropología, V. 47 (I), 2011, p. 13-42.

PIRES, T. R. O. Criminalização do racismo: entre política de


reconhecimento e meio de legitimação de controle social dos
não reconhecidos. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 323p. 2013.

PODCAST JUSTIFICANDO #14 Criminalização da Homofobia.


Locução de André Zanardo e Mariana Boujikian. Entrevistado:
Paulo Iotti. [S. I], Justificando: 28 de junho de 2019. Disponível
em: https://www.justificando.com/2019/06/28/podcast-
justificando-conversa-com-o-advogado-que-defendeu-a-tese-da-
criminalizacao-da-homotransfobia-no-stf/. Podcast. Acesso em 16
set. 2020.

PORTUGAL. Ordenações Filipinas (Ordenações e Leis do


Reino de Portugal). Livro V, título XIII (Dos que cometem
pecado de sodomia, e com alimarias). Disponível em: http://
www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm. Acesso em 25 set.
2020.

REIS ESTRELA, C. T (2019). O Ativismo Judicial e o Julgamento da


Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão (ADO) n.º 26,
sobre a Criminalização da Homotransfobia. Revista Dizer, 4(1),
133-161, 2019. Acesso em 26 set. 2020.

ROUANET. Sergio Paulo. O Mal-Estar na Modernidade. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

SENA, J. S. B. O Dogma da Neutralidade na Prestação


Jurisdicional: Uma Abordagem Jusfilosófica do Pensamento
de Luis Alberto Warat. Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo.
126 p. 2010.

284 Direitos Humanos


INCIDENTE EM ANTARES: ONDE OS MORTOS
DESENTERRAM VERDADES

Viviane Silva Brandão Carvalho (UFPI)

INTRODUÇÃO

Incidente em Antares (2013) é uma obra do escritor gaúcho


Erico Verissimo publicada originalmente em 1971, momento crítico
e de grande repressão política no cenário social brasileiro. O autor
Erico Verissimo pertence à geração que desenvolveu seu projeto
literário em meados dos anos 1930, momento de intensa busca
literária por retratar os costumes sociais e regionais brasileiros.

A obra que será aqui focalizada, Incidente em Antares (2013),


narra a história da construção da pequena cidade fictícia de Antares,
localizada no interior do Rio Grande do Sul. O livro é dividido
em duas partes, “Antares” e “O incidente”, na primeira parte da
narrativa a história da cidade é contada e é focalizada a disputa entre
as duas famílias mais poderosas da cidade, sendo eles os Vacarianos
e os Campolargos. Já a segunda parte do romance narra a história
do “incidente” ocorrida na cidade, onde sete mortos impedidos de
serem enterrados enfurecem-se e resolvem empestear o clima da
cidade e expor as hipocrisias do lugar.

Os personagens do “incidente” insólito que acomete a cidade


são oriundos das mais variadas posições socias e econômicas.
Os personagens cadavéricos da obra são: Quitéria Campolargo,
a matriarca conservadora da cidade, que morreu de um ataque
cardíaco; o sapateiro e anarquista Barcelona, vítima de um ataque
cardíaco; o advogado Cícero Branco, que morreu em decorrência de

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 285


um acidente vascular cerebral; o jovem pacifista João Paz, torturado
e morto pela polícia local; o alcoólatra Pudim de Cachaça, que foi
envenenado por sua esposa; o pianista frustrado Menandro Olinda,
que suicidou-se e a prostituta Erotildes, vítima de tuberculose. Os
autores que participam do incidente não possuíam em vida relações
de proximidade, mas após a morte todos buscam um objetivo, que é
o de serem enterrados como é direito de todo cristão, segundo eles.

Tomando posse destas informações, colocamos que o objetivo


deste trabalho é analisar as finalidades da figura do cadáver na obra
em questão, no que diz respeito à revisão histórica que estas figuras
promoveram na cidade. O trabalho é dividido em dois momentos
distintos que ao fim se entrelaçam, sendo eles, respectivamente,
a figura do cadáver e seu incomodo para os vivos e, no segundo
momento, a revelação e, de certo modo, a revisão histórica que estas
figuras cadavéricas acabam por realizar por meio de sua presença e
revelações.

O trabalho aqui proposto possui um caráter bibliográfico


e tem como embasamento principal os postulados de Phillippe
Ariès, na sua obra História da Morte no Ocidente (2017), referentes
a caracterização e repulsa da figura do cadáver e o filosofo Walter
Benjamin, em seu ensaio Sobre o conceito da história (1987), para
tratar a respeito do conceito de história e o provável revisionismo
causado pelos mortos em Antares.

DESENVOLVIMENTO

O fato biológico/social de que todos os homens possuem o


mesmo destino, ou seja, todos morrem, é sabido pelo homem e
este conhecimento é uma das características que o distinguem dos

286 Direitos Humanos


animais tidos como irracionais. O homem ao longo dos milênios
visualizou e pensou a morte das formas mais variadas possíveis.

Uma das figuras que povoam este imaginário é referente ao


cadáver, no caso focalizado no presente capítulo o que chamamos
de o “cadáver decomposto”. De acordo com Schimitt (2015), esta
figura começa a povoar o imaginário coletivo da morte Ocidental na
Baixa Idade Média, onde teria uma dupla significação. A primeira
referente à igualdade que a morte proporcionaria aos homens
e a segunda possuía um teor mais religioso, pois simbolizava a
superioridade da alma perante o corpo pecaminoso.

Segundo o historiador Phillippe Ariès (2017), o cadáver


decomposto possui grande influência na arte iconográfica e na
literatura. A finalidade de sua utilização estava diretamente ligada
à ideia de finitude humana, sobretudo na Idade Média. Contudo,
após a tentativa moderna do homem de afastar a morte e de negá-
la, o cadáver decomposto se apropria de uma nova finalidade, que
segundo o autor, seria referente ao lembrete que a figura cadavérica
carrega, que seria que todos os homens são mortais e/ou também
referente à morte de seus pares.

Dito isto podemos colocar que a figura do cadáver tem como


uma das significações simbólicas possíveis a de ser o portador da
verdade, no que diz respeito a expor a corrupção e os segredos
humanos, tanto no campo biológico, com a sua decomposição,
quanto a respeito da corrupção e hipocrisias que os homens
carregam em seu corpo e mente, como é colocado por Veríssimo em
sua obra. De acordo com Ariès, este recurso de exposição é bastante
utilizado pelos escritores, como o autor nos diz em:

Os poetas tomam consciência da presença universal


da corrupção. Ela está nos cadáveres, mas também
no decurso da vida, nas “obras naturais”. Os vermes
que comem os cadáveres não vêm da terra, mas do

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 287


interior do corpo, de seus licores naturais (ARIÈS,
2017, p. 57).

Como postulado pelo autor, percebemos que a corrupção


revelada pelo cadáver passou a ter novas conotações, sobretudo
na literatura. Em Antares, podemos perceber que ela tem como
objetivo utilizar do corpo putrefato para revelar que não apenas o
corpo humano apodrece ao morrer mas também a própria cidade
que, por conta da corrupção humana, está apodrecendo. O caso
mais latente de corrupção seria a tentativa de apagamento, das
autoridades locais, de toda a violência que circundava a cidade. Tal
apagamento é realizado através do descaso com a população mais
pobre, como também o apagamento de sua história e existência,
como são os casos de corrupção e tentativa de esquecimento da
comunidade de Babilônia.

Outro fator que nos chama atenção é referente a ideia de


que o homem carrega em seu âmago a corrupção, a ideia de que a
morte é uma forma de revelação. Dado isto, podemos inferir que
a putrefação do cadáver tem uma relação com a própria natureza
social do homem, pois após a morte ele não poderá mais esconder a
verdade. Como explanado por Ariès (2017), no seguinte trecho: “A
morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência
de si mesmo” (ARIÈS, 2017).

Paralelamente relacionado a essa ideia de exposição da


verdade e corrupção humana, temos o fato de que o cadáver, por
estar morto, não possui mais vínculos ou obrigações com o mundo
dos vivos e, consequentemente, elabora discursos de revelações com
mais propriedade e intensidade. Um exemplo clássico desse tipo de
desligamento e ideia de revelação está contido no livro bíblico de
Apocalipse, onde os mortos se levantarão de seus túmulos e terão
suas existências reveladas e punidas de acordo com a sua trajetória,
como em:

288 Direitos Humanos


E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam
diante de Deus, e abriram-se os livros; e abriu-
se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram
julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros,
segundo as suas obras (APOCALIPSE, 2020, Capítulo
20, Versículo 12).

Focalizando agora a obra que este trabalho objetiva analisar,


temos como exemplo deste sentimento de ruptura com o mundo
dos vivos as passagens onde os mortos interagem pela primeira vez
post mortem, como pode ser constatado na fala do advogado Cícero
Branco, presente nos seguintes trechos:

Não me agradeça. Já que estamos mortos e não somos


mais personagens da comédia humana, posso ser ab-
solutamente franco e confessar-lhe que a homenagem
que lhe prestei teve uma finalidade utilitária. Eu que-
ria agradar sua família, pois estava de olho no inven-
tário de seus bens (VERISSIMO, 2013, p. 241).

Em um outro trecho deste mesmo diálogo, o advogado alude


ao fato de que a morte os deu uma igualdade e que as amarras
sociais de outrora não existem após a morte, como em: “- Ô criatura
- replica o advogado. – Você não compreende que estamos todos
mortos e que essas suscetibilidades dos vivos acabaram-se para
nós?” (VERISSIMO, 2013, p. 243).
Podemos perceber nesses trechos que os próprios mortos se
dão conta de sua nova condição e que provavelmente este será o
motivo da falta de conexão com os vivos e, consequentemente, das
revelações de corrupção da vida dos habitantes de Antares, como
também dito pelo personagem Cícero Branco em:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 289


A julgar pelas palavras do prefeito e do promotor,
nossa presença é indesejável na cidade, incômoda aos
seus habitantes. Em suma, nosso desaparecimento
foi plenamente aceito por todos, o que vem confirmar
minha teoria de que se por um lado o homem jamais
se habitua a ideia da própria morte, por outro aceita
sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia.
Vossa repulsa e vossa má vontade para com os
nossos corpos nos outorga a liberdade de dizer o que
realmente pensamos de vós (VERISSIMO, 2013, p.
248).

As revelações realizadas pelos mortos são as mais variadas


possíveis, vão desde corrupção das autoridades a violência
doméstica. Cada morto possuiu seu momento de fala e revelação
dentro da obra, chamamos aqui a atenção para os depoimentos
do advogado Cícero Branco e do sapateiro Barcelona, que podem
ser tidos na obra como os principais algozes da explanação das
verdades, algumas das denúncias realizadas por eles são: “Eu acuso
o coronel Tibério Vacariano e o major Vivaldino Brazão de peculato
e enriquecimento ilícito as custas dos cofres públicos” (VERISSIMO,
2013, p. 353) , outra denúncia de corrupção é presente no trecho: “
- Vou fazer mais uma denúncia – continua Cícero. – Acuso também
o major Vivaldino Brazão e o coronel Tibério Vacariano de lesarem
o fisco” (VERISSIMO, 2013, p. 359).

Após acusar as autoridades da cidade por crimes fiscais e


corrupção, o advogado explana a respeito da violência e repressão
política realizada pela polícia local, que contava com o apoio do
prefeito, nestes trechos ele revela a causa da morte de João Paz e o
seu motivo, como podemos perceber no trecho: “Podem ver agora
em plena luz meridiana a “operação plástica” que o delegado e seus
carrascos fizeram na cara e corpo deste homem” (VERISSIMO,
2013, p. 373) e no trecho: “Sua prisão foi efetuada da maneira mais
irregular. João foi levado para o famoso porão da nossa delegacia

290 Direitos Humanos


onde se processam os mais brutais interrogatórios” (VERISSIMO,
2013, p. 374) e finalizar relatando que o prefeito é ciente da prática
de tortura, como dito pelo advogado no trecho: “Todo mundo sabe
que você sempre deu carta branca ao seu delegado, que por sua vez
dava carta branca aos seu carrasco...” (VERISSIMO, 2013, p. 374).
O outro grande revelador de verdades de Antares é Barcelona,
que revela hipocrisias sociais e práticas de pedofilia realizadas por
grandes figurões do local, como presente no trecho: “-Quem é que
não sabe – pergunta o sapateiro – que o nosso sisudo comendador
Benício só gosta de meninas de quatorze anos.” (VERISSIMO, 2013,
p. 365), e no trecho: “Você é o mais notório pederasta municipal.
” (VERISSIMO, 2013, p. 370) e revela noutro trecho, a hipocrisia
moral da alta sociedade do lugar, como no trecho: “-Quem ignora
que sua filha casada com o dono da farmácia da Imaculada Conceição
engana o marido com o caixeiro-viajante louro e bonitão que de vez
em quando aparece na cidade” (VERISSIMO, 2013, p. 366).

Dada estas revelações adentramos nos seguintes


questionamentos: como a história de Antares é contada e por
quem? E o que seria a verdade dentro da obra? Para desenvolver
estes questionamentos colocamos em voga as reflexões realizadas
pelo filósofo alemão Walter Benjamin. O autor, em seu ensaio
intitulado Sobre o Conceito de História (1994), traz reflexões acerca
de quem conta a história e quais histórias podem ser apagadas
neste processo.
Segundo Walter Benjamin (1994), há mais de uma história
coexistindo, no entanto, há uma tentativa de privilegiar um tipo de
história ou vivência. Segundo ele, há uma “história dos vencedores”
que perdura por gerações como sendo a história real e verdadeira. E
em função disso, muitas outras histórias são apagadas ou colocadas
em um local de desvantagem, o que ele chama de “história dos
vencidos”. Como podemos perceber no seguinte trecho do ensaio:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 291


“Articular historicamente o passado não significa conhece-lo como
ele de fato foi”. (BENJAMIN, 1994, p. 224)

Para o autor, que vem de uma tradição marxista, é proposto


que essas lutas entre as histórias existentes sejam uma luta de
classes. Pois, caso contrário a tradição dos oprimidos é colocada
em descaso em relação aos feitos da classe dominante. Com isso,
podemos correlacionar que a história que é contada como sendo a
de Antares é, na verdade, a história dos privilegiados, mas que por
conta do incidente passamos a ter acesso a história dos dominados,
reprimidos e esquecidos.

A importância do conhecimento geral dessas revelações


provoca, mesmo que apenas num campo simbólico, uma tentativa
de contar a história dos vencidos, o que ajudaria a construir um
modelo de história mais amplo. Benjamin, a respeito disto diz: “A
tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em
que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um
conceito de história que corresponda a esta verdade” (BENJAMIN,
1994, p. 226). Ou seja, as explanações das figuras cadavéricas
ajudam a ampliar o discurso histórico da obra e promover um certo
grau de revisão desta por proporcionar voz aos oprimidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em consideração os pressupostos apresentados,


podemos inferir que a finalidade da figura do cadáver dentro da
obra de Verissimo é de suma importância para a início de uma
construção de uma nova história ou para amenizar o esquecimento
dos crimes realizados pelos tidos como “vencedores”. Isto se dá
sobretudo com a junção da simbologia clássica que envolve os
desmortos, que seria a de provedor de verdades biológicas e morais

292 Direitos Humanos


e que, por não possuir mais vínculos com o mundo dos vivos, não
sofre mais sanções sociais e que por isto, anuncia a revelação da
corrupção humana, como um prenúncio do juízo final.

Os mortos de Antares possuem então uma dupla finalidade:


a de relembrar os homens de sua finitude e a de relevar a verdade
aos homens. A combinação dessas duas ideias promove uma
discussão sobre qual história estamos tomando como verdadeira e,
ao realizar este movimento, que histórias podemos estar deixando
em situação marginal. Por este motivo, inferimos que a obra de
Verissimo é de uma valia para uma discussão do conceito de história
e da importância de se repensar o que é a verdade.

REFERÊNCIAS

APOCALIPSE. In: BÍBLIA ONLINE. Disponível em: https://www.


bibliaonline.com.br/acf/ap/20/11-13. Acesso em 26 out. 2020.

ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Tradução:


Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 2017.

ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo, 2013,


Editora Unesp.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In._. Magia e


técnica, arte e política. Obras escolhidas volume I. Tradução
Sérgio Paulo Roaunet. São Paulo. Brasiliense, 1994.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 293


SILVA. Emanuela Francisca Ferreira. Entre vencedores e
vencidos: reflexões sobre história, memória e cesura. Estação
Literária Vagão-volume 4 (2009) – 1-100. ISSN 1983-1048 http://
www.uel.br/pos/letras/EL.

SANTOS, Donizeth. O Projeto Literário de Erico Verissimo.


Publicado em: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.
44, p. 331-363, jul./dez. 2014.

SCHMITT, Juliana. O imaginário do cadáver em decomposição:


das Danças macabras ao roman-charogne. Publicado em: Ilha
do Desterro v. 68, nº 3, p. 083-097, Florianópolis, set/dez 2015.

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo. Companhia


das letras, 2013.

294 Direitos Humanos


ASPECTOS RELIGIOSOS DA CULTURA POPULAR
NORDESTINA EM “AS PELEJAS DE OJUARA”

Jhonnatas dos Santos Sousa56

INTRODUÇÃO

É impossível imaginar um conceito sobre o mal, sem refletir


sobre a pluralidade de suas significações. Essas significações podem
variar de acordo com a visão social e o período em que estão sendo
empregadas. Tal pluralidade pode ser refletida em diversos setores
e aspectos da vida social, incluindo a literatura. Esta, por sua
vez, sempre teve um papel importante na sociedade, pois tenta
reconstruir o mundo em que vivemos e nos confrontar com um
reflexo nosso que nem sempre gostamos de ver.

Nogueira (1986), em seu livro intitulado O diabo no imaginário


cristão, nos apresenta, nos três capítulos iniciais, uma multiplicidade
de concepções e diferentes perspectivas acerca da figura do diabo,
apresentado na obra como representação do mal para algumas
culturas. O autor nos mostra como essas ideias se alteraram no
decorrer do tempo, mediante o contato cultural e social dos povos
com múltiplas concepções, sejam elas econômicas, políticas ou
até mesmo linguísticas. É sabido que, cada tribo, povo ou nação
produziu ao longo dos séculos/ tempos, diversas noções sobre o
mal e suas figuras, de acordo com seus interesses, que muitas vezes

56
Graduando de Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa, Francesa e suas respectivas
literaturas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Pesquisador do Grupo de Pesquisa
sobre Literatura Fantástica (GEMAL) e do Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos e
Cidadania (DiHuCi), da UFPI.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 295


foram usados como forma de dominação e intimidação a outros
povos.

As religiões deixaram inúmeras marcas durante a história


da humanidade, dentre elas o preconceito religioso, ancorado
em discursos de ódio que podem ser vistos até hoje, em relação
às religiões de matriz africana por exemplo. Essas marcas sociais
deixadas pelas religiões são tão fortes que podemos notá-las de
formas explícitas ou implícitas no nosso cotidiano, a exemplo da
literatura, que mesmo no campo ficcional, conserva substratos que
refletem aspectos da sociedade. Por isso, a literatura se torna aqui
o suporte que serve como base para analisar o preconceito religioso
no âmbito cultural brasileiro, pois apresenta elementos culturais da
religiosidade nordestina em sua narrativa.

A narrativa utilizada para a análise foi o romance As pelejas


de Ojuara: O homem que desafiou o diabo (2006). O livro é uma
produção do escritor brasileiro Nei Leandro de Castro e foi
inspirado na cultura popular sertaneja e, por isso, se constitui de
uma narrativa rica em regionalismos, debruçado sob a linguagem
popular nordestina em um cenário áspero do sertão brasileiro. O
romance mescla a beleza do sertão com a elaboração estética de um
realismo fantástico, de modo a apresentar personagens repletos
de encantamento, como bruxos, vaqueiros, assombrações, além
de seres sobrenaturais, como personagens mágicos, cavalos que
voam, terras onde correm rios de leite e mel e, até mesmo, o diabo
(CASTRO, 2006).

Tendo em vista o papel importante que a literatura desempenha


na vida das pessoas e sua influência na difusão de conhecimento,
pretendeu-se alcançar o objetivo principal de analisar os aspectos
religiosos sobre o Diabo relacionados ao personagem Exu na obra
de Castro, tomando como base tradições e marcas da cultura
literária popular nordestina. Para alcançar tal objetivo, buscou-
se: apresentar a relação existente entre o cristianismo e o mal;

296 Direitos Humanos


refletir sobre o conceito de cólera e sua relação com o personagem
Exu, em contraposição com a ligação desse orixá ao sagrado;
descrever como se deu a construção histórica das tradições e
marcas da cultura sobre o Mal no imaginário popular brasileiro; e
a relação da literatura de Cordel com a linguagem religiosa sobre
o Mal.

Para este capítulo, utilizou-se pesquisa bibliográfica. Como


principal referencial teórico, utilizou-se os estudos de Pierre
Lévêque (2003), com suas reflexões acerca da relação entre a cólera
e o sagrado; Souto Maior (1975) sobre o diabo na cultura popular
do nordeste; e Petter (2015), por seus estudos antropológicos.

O CRISTIANISMO E O MAL

O Cristianismo, como o conhecemos hoje, influenciou


diretamente a forma como enxergamos o conceito de bem e mal.
Sua construção histórica se deu nos primeiros séculos na região
da Palestina depois da morte de Jesus Cristo, que foi encarado por
alguns como sendo o Messias – um redentor – da tradição judaica
(SALOMÃO, 2014).

Com o nascimento do cristianismo, surge também um grande


crescimento de seitas gnósticas, as heresias57, e diversas outras
ramificações do próprio cristianismo. Nesse entrelaçar de culturas
religiosas durante os anos, o cristianismo acabou por encontrar

57
Doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé (FERREIRA, 2010,
p. 396).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 297


as concepções judaicas58 a respeito do Mal. Ao se deparar com a
demonologia das outras culturas, não a rejeitaram, apenas fizeram
leves adaptações no Novo Testamento. Sendo assim, acabaram
por fazer oposição entre Cristo e o Diabo, tornando tudo que se
opõem a Deus, automaticamente como pertencente ao diabo, e por
consequência pertencente ao Mal. Nisso, o cristianismo se coloca
como a “verdadeira” religião, rejeitando todas as outras religiões e
as associando ao diabo cristão (NOGUEIRA, 1986).

EXU – A CÓLERA E O SAGRADO

As influências marcantes do cristianismo podem ser sentidas


no âmbito cultural brasileiro. Cito aqui a influência dessas marcas
na obra de Castro, representada por meio de Exu. Na narrativa, o
personagem em questão é associado ao diabo cristão e é apresentado
com inúmeras características negativas creditadas à imagem de Exu,
que nesse contexto, é visto como sendo o grande vilão da trama.

O personagem Exu é associado à perdição, castigo e cólera


na obra. É importante entender sobre o vocabulário relacionado a
palavra cólera para ajudar na compreensão do imaginário sobre o
personagem.

Lévêque (2003) adverte-nos de que tentar apresentar

58
“No Antigo Testamento, nos evangelhos apócrifos e na apocalíptica judaica, a
moral dos judeus estava mais ligada às transgressões do tabu do que às violações da
justiça social. Dessa forma, a idolatria, a blasfêmia, a profanação de rituais e o perjúrio são
transgressões contra Yahweh, condenadas e dignas de total reprovação, relegadas ao Mal.”
(ESTEVES, 2018, p. 262).

298 Direitos Humanos


uma antropologia59 geral da cólera seria muito perigoso devido a
multiplicidade e divergência de suas causas e manipulações com o
aspecto cultural do sagrado. Por isso, prefere se ater aos nomes ou
significados atribuídos à ela nas línguas indo-europeias. O autor
apresenta alguns significados, como: Bílis, vapor, trovão, mal,
fumaça, inchaço, tortuosidade e podridão.

Já em relação aos vocábulos gregos, tem-se as palavras:


Thumos, “amê, esprit”, mas também “cólera”; Orgé, “temperamento”,
de onde cólera se pode aproximar de palavras sânscritas ou célticas
designando a força, a abundância, e tendo por significado inicial
“intumescer, amadurecer”; Cholos, “bilis”, “cólera”. Encontramo-
lo com um ou outro sentido em indo-iraniano, latim, germânico,
eslavo; Mênis, “cólera”, sem etimologia segura, mas relacionado
com o sânscrito manyn- “espírito, cólera, raiva” (LÉVÊQUE, 2003).
A partir das significações relacionadas à cólera, é possível perceber
sua associação direta com o temperamento de Exu, apresentado na
narrativa analisada como um malfeitor dotado de raiva e vingança.

Há ainda, algumas personificações para a cólera, descritas


pelo autor, através de duas deusas: Erinye, “Vingança, Cólera”; e
Nemesis aparentado a némo, “distribuir” e “justa indignação”. O
mesmo conceito de personificação da cólera pode ser notado no
caso de Exu, personificado como a representação do próprio mal,
a vingança, a ira. Lévêque contribuiu muito para que possamos
compreender a atribuição de cólera à Exu, particularmente em As
pelejas de Ojuara (LÉVÊQUE, 2003). Para corroborar com isso,
refletiremos acerca dos domínios africanos, e mesmo americanos,
através das constatações apresentadas em sua publicação.
59
“Designação comum a diferentes ciências ou disciplinas, cujas finalidades são descrever
o ser humano e analisa-lo com base nas características biológicas e socioculturais dos
diversos grupos (povos, etnias, etc.), dando ênfase as diferenças e variações entre eles.”
(FERREIRA, 2010, p. 51)

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 299


A obra de Lévêque (2003) nos apresenta que no continente
africano, especificamente, em todo o domínio sudanês, a criação
do universo divino está relacionada ao estupro da Mãe-Terra por
seu filho. A análise do panteão yorùbá60 mostra a incrível riqueza
de personalidade de uma Mãe ancestral, ao mesmo tempo Mãe-
Boa e Mãe-Terrível, representando dessa forma, o estrato mais
antigo de toda adoração do povo yorùbá. É importante frisar
a relevância de Exu, o cinético, na teologia dos yorùbá, tanto
antes, quanto durante e após o tráfico dos negros. A entidade
é tida como a grande transformadora das coisas e dos povos.
Exu é encarado como um deus perigosíssimo, sendo ele um deus
que dá ao homem a possibilidade de mudar seu destino. Na obra
estudada, são apresentados diversos aspectos sobrenaturais com
forte apelo ao profano. Nela encontramos o personagem Exu como
uma figura diabólica, e também como um ser dotado de seu papel
de transformador da ordem assim como nas tradições yorùbá.
Podendo ser um introdutor de uma desordem com a finalidade de
gerar uma nova ordem.

Além das características apresentadas referentes à cólera


e sua capacidade de transformar os destinos, ressalta-se que Exu
também é encarado, em outras culturas, como um orixá. Petter
(2015) e Cacciatore (1988) apresentam o significado de orixá no
Inzó Dandaluna. Nele, o termo orixá designa todas as divindades
intermediárias iorubanas, com exceção de Olorúm, o Deus supremo.
Observa-se, a partir dessas reflexões, que há uma divindade e não
um demônio na figura de Exu.

Petter (2015) apresenta diferentes características e


significados atribuídos a palavra Exu, que conservou quase a mesma
pronúncia do Iorubá no português brasileiro. A entidade é descrita
no Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2010, p.335), como:

60
“Indivíduo dos iorubas, povos que vivem no S.O. da Nigéria e no S.E. da República do
Benin. (FERREIRA, 2010, p. 439)

300 Direitos Humanos


“e.xu (x = ch) [Do ior.] sm. Bras. Rel. Orixá ou mensageiro dos orixás,
assimilado ao diabo cristão por missionários, e descrito como de
gênio irascível, vaidoso e suscetível, embora possa trabalhar para o
bem”. A autora ainda descreve informações antropológicas, como:

Do ponto de vista antropológico, Exu é um dos orixás


que possui o poder de transformação; é o guardião, o
protetor das comunidades, por isso nada se faz sem
a sua permissão, conseguida através das oferendas.
Ele é também o mensageiro entre os seres humanos
e os outros orixás (PETTER, 2015, p. 270).

Esses fatos corroboram para a construção das características


presentes no personagem analisado dentro da obra de Castro.
Mesmo Exu sendo uma divindade mensageira e fazendo parte do
panteão dos orixás nas culturas de origem africana, é descrito na
obra como sendo o diabo dos cristãos, assim como sua associação
descrita no dicionário de língua portuguesa. Entretanto, deve-se
reconhecer sua origem e real significação, independentemente de
suas características ou representações.

TRADIÇÕES E MARCAS DA CULTURA POPULAR NA


CONSTRUÇÃO DO MAL NO NORDESTE BRASILEIRO

No que concerne à cultura do povo nordestino brasileiro, é


impossível não fazer associações entre as artes e a religiosidade
dentro desse território tão rico e ao mesmo tempo tão marcado
pelas histórias de dificuldades sociais, políticas e econômicas.
Fatores esses que contribuíram na criação de um imaginário sobre
o Diabo, personagem que nos debruçamos neste trabalho através

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 301


de Exu. Para uma maior explanação, buscou-se estudos como os
feitos por Souto Maior (1975), acerca da influência que os cordéis
empregaram dentro desse imaginário popular.

O Diabo sempre foi o personagem central de incontáveis


histórias, lendas e crendices pelo mundo e isso não seria diferente
no nordeste brasileiro. Tendo a concepção sobre o mal cristão
chegado ao nosso território através das caravelas com Pedro Álvares
Cabral, por meio da catequização dos povos indígenas pelos jesuítas.
Atentando para o fato de que, nesse período, o homem português
já trazia uma herança mística, advinda de seu contato com outras
culturas (SOUTO MAIOR, 1975).

Os colonizadores que chegaram ao nordeste trouxeram


consigo um conjunto de características sócio religiosas e as
impuseram desconsiderando totalmente as tradições dos povos
locais. E ao se referirem ao Diabo, disseminavam diferentes
nomes e apelativos a ele com o respeito ou temor que praticavam
em sua província de origem, acreditando que ao pronunciar seu
nome ele pudesse aparecer e causar suas danações. Isso propagou
diversas denominações diferentes ao Diabo e com elas surgiram
diversificadas histórias e lendas sobre ele (SOUTO MAIOR, 1975).
Essa característica de variar e criar nominações para o Diabo
também pode ser encontrada na obra de Castro. Observa-se a seguir
um trecho da obra que contribui para essa compreensão:

Com hora e meia de luta, depois de escapar de cinco


tabefes do caboclo, o Coisa-Ruim deu uma risada e
disse: - Eu sou Exu, sou Capeta, aprecio valentão. Por
isso faço um acordo com vosmicê, meu irmão. A gente
acaba com a briga, me devolva o patacão. – O patacão
eu não dou, Sujo, Temba, Barzabu, Pai-da-Mentira,
Pé-Preto, Carujo, Tranjão, Exu, [...] (CASTRO, 2006,
p. 269).

302 Direitos Humanos


Esses são apenas alguns exemplos de denominações referidas
ao Diabo no decorrer da narrativa, seja por desprezo a sua imagem
ou até mesmo por medo de pronunciar seu nome.

Relacionando esse medo do diabo ao medo de descumprir as


ordens da igreja católica, Souto (1975) aponta que na história da
colonização brasileira, a catequese foi utilizada pelos missionários
como forma de dominação, adicionando a figura do Diabo como
arma contra o “pecado”.

A fim de causar impacto para descrever a figura do diabo, os


missionários utilizavam aspectos assustadores como: cores fortes,
chifres, rabo, fogo, fumaça, pés de pato, enxofre e características de
animais tomados como não sagrados, como, por exemplo, o bode.
Assim, foi se construindo essa imagem do Diabo no nordeste como
um ser assustador, astuto, repleto de apelidos jocosos, mas, ao
mesmo tempo, guardando o temor atribuído a ele (SOUTO MAIOR,
1975, p.17).

No trecho a seguir, é possível observar alguns desses aspectos


citados por Souto. Nesse contexto, Castro se refere ao personagem
Exu na obra, entretanto, ao descrevê-lo utiliza-se de diferentes
características para criar essa atmosfera de medo e terror ao
personagem.

Mal terminou a última palavra, o vento danou-se a


soprar e uivar e levantar poeira. Nuvens de chumbo
e enxofre esconderam um pedaço da lua por cima do
rio. No meio do redemunho, chegou um cabeçudo de
chifres, rabo terminado em seta, asas de morcego,
braços de homem cabeludo, pés de bode. Os olhos
pareciam dois flachilaites, um de luz vermelha, outro
de luz amarela. Na mão direita, o Anhangá trazia um
espeto de três pontas (CASTRO, 2006, p. 269).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 303


É importante observar que, além dos outros termos
utilizados, há também a utilização do termo Anhangá, que se
relaciona com histórias indígenas brasileiras, entretanto usado aqui
como um termo para descrever o Diabo cristão. Esse aspecto nos
mostra o quanto nossas histórias estão repletas de influências de
diferentes povos, embora apenas alguns aspectos de nossa cultura
sejam realmente valorizados.

Segundo Souto Maior (1975), é importante ressaltar a


influência que algumas obras populares tiveram sobre o Nordeste
brasileiro, principalmente em zonas rurais. Para o autor uma das
obras de grande divulgação é o Antigo e Verdadeiro Livro Gigante
de São Cipriano, obra essa que foi extraída do Flor Sanctorum, por
Aderito Perdigão Vizeu, que serve perfeitamente para exemplificar
a evolução das práticas católicas no Brasil. O prestígio do livro pode
ser por decorrência da miscigenação responsável pela formação
da população nordestina. Este povo, desde os tempos coloniais,
contou com a participação do indígena, do português e do povo
africano em sua formação. Todos esses povos faziam valer as suas
características religiosas, incluindo suas divindades sagradas e sua
forma de adorá-las (SOUTO MAIOR, 1975).

A cultura nordestina possui uma grande influência do


sincretismo religioso em sua essência. Pode-se observar que o
catolicismo atual tem seu patrimônio místico enriquecido através
das incursões veladas a outras culturas religiosas, como os terreiros
de xangô, de umbanda, as visitas a cartomantes, a procura do
espiritismo quando se busca a cura de uma doença e tantas outras
que condicionam seu comportamento a inúmeras crendices e
superstições (SOUTO MAIOR, 1975).

Portanto, segundo o autor, o catolicismo atual na região não é,


na prática, o mesmo catolicismo trazido pelo português no processo
de colonização. Ele sofreu influências dos princípios religiosos dos
nativos e muito também dos negros africanos. Essas reflexões

304 Direitos Humanos


acerca do contexto histórico brasileiro nos fazem compreender
melhor a relação de sincretismo na obra de Castro e compreender
todos os aspectos religiosos presentes na construção da narrativa
(SOUTO MAIOR, 1975).

O DIABO NA LITERATURA DE CORDEL

Souto Maior (1975) expõe o grande afastamento da


religiosidade nos grandes e médios centros, diferentemente do
interior onde a dedicação à religião é maior. Muito disso se dá
pelo modo de vida simples e muitas vezes precário dos moradores
no interior e nas zonas rurais, acarretando em um maior contato
com Deus e consequentemente com o diabo, que carrega sobre si a
responsabilidade por todo o mal ocorrido.

A figura do Diabo foi se tornando tão disseminada que os


poetas populares dos brejos, das caatingas e dos pés-de-serra
retratavam, através de folhetos, a atmosfera religiosa que fazia
parte da vida do homem rural. Muitas vezes esses panfletos eram
vendidos em feiras das cidades, vilas e povoados, onde o vendedor
frequentemente narra as suas histórias para o povo ouvir. Esses
folhetos se tornam, então, muito populares entre os consumidores
por conterem críticas a costumes modernos e um tom cômico e
jocoso ao Diabo, que era descrito muitas vezes com chifres, preto,
com calda, soltando fogo pelo nariz e exalando enxofre enquanto
fazia suas danações. Nos folhetos nordestinos, o Diabo pode ser
facilmente encontrado nos títulos ou como personagem central ou
quase central das histórias. (SOUTO MAIOR, 1975)

A linguagem do nordestino, principalmente o da zona rural,


e a religião estão intimamente ligados. Usando frequentemente,
em sua maioria por homens, diversas nominações para o diabo

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 305


em suas conversas do dia a dia, em momentos de revolta e de ira.
Geralmente as mulheres evitam falar o nome do diabo por medo e
acabam, muitas vezes, por invocar a Deus e aos santos com mais
frequência que os homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As pelejas de Ojuara: O homem que desafiou o diabo (2006) é o


exemplo da diversidade da cultura brasileira, que é representada na
obra através da cultura popular sertaneja por meio de regionalismos
e tradições de diferentes povos, mesclando a beleza do sertão com
realismo fantástico.

O presente capítulo faz um panorama sobre as diferentes


influências que contribuíram para a construção da figura
empregada ao personagem Exu na obra de ficção. Foi possível notar
uma caracterização do personagem como símbolo de destruição,
perdição, castigo e cólera, tomada com base nas tradições e marcas
da cultura popular brasileira, em particular do cristianismo.

Há uma associação da figura de Exu à natureza e ao equilíbrio


entre natureza e homem. Sua figura está intimamente ligada ao
bem e ao mal, há também muitos significados atribuídos a cólera e
muitos deles podem ser diretamente relacionados a ele, entretanto,
é importante ressaltar a importância deste na teologia dos Yorùbá.

Podemos então caracterizar Exu como um orixá ou mensageiro


dos orixás, de acordo com o significado descrito por Petter (2015) e
Cacciatore (1988). Segundo as autoras, no Inzó Dandaluna, o termo
orixá designa todas as divindades intermediárias iorubanas, com
exceção de Olorúm, o Deus supremo. No entanto, na obra, Exu é
representado como sendo o diabo cristão.

306 Direitos Humanos


Quando tratado da entidade Exu, verificou-se a força do
cristianismo enquanto base da formação cultural do Ocidente, tendo
em vista que as religiões originadas, influenciadas ou relacionadas
ao cristianismo foram responsáveis por reunir, sistematizar e
determinar a figura e as atitudes do diabo como conhecemos hoje.
Essas concepções sobre o mal ainda se mantêm firmes, com a
capacidade de classificar, mesmo após tantos anos, o personagem
como uma figura maligna.

Notou-se que essa secular estrutura religiosa constitui um


dos fatores mais importantes dessa participação de Deus e do
Diabo na linguagem nordestina. Talvez pela grande adversidade da
natureza, o trabalho duro no campo, a injustiça social, o abandono
político, sejam os reais responsáveis pela angústia e desespero
e alguns outros problemas que trazem o diabo à sua linguagem.
Essa realidade acaba sendo, portanto, transferida para o papel,
que expressa através de uma linguagem regional que caracteriza
o escritor e o leitor dentro do mesmo universo (SOUTO MAIOR,
1975).

Essas imagens e representações ganharam muita força e


adeptos no Brasil e ainda são encontradas em diversas áreas das
produções artísticas, através de pinturas, músicas e produções da
literatura brasileira, como na narrativa de Ojuara apresentada por
Nei Leandro de Castro e na literatura de cordel.

REFERÊNCIAS

CACCIATORE, O. G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio


de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

CASTRO, Nei Leandro de. As Pelejas de Ojuara: O homem que


desafiou o diabo. – 4ª ed. – São Paulo: Arx, 2006.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 307


ESTEVES, Germano Miguel Favaro. Considerações acerca do Mal
e suas representações na literatura e na religião judaicas: o legado
para o Cristianismo Primitivo. Faces da História, Assis, v. 5, n.
1, p. 262-281, jan.-jun. 2018.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário


da língua portuguesa. - 8.ed. ver. atual. – Curitiba : Positivo, 2010.

LÉVÊQUE, Pierre; CARVALHO, Silvia; TRINDADE, Liana (Coords.)


A cólera e o sagrado: pesquisas franco-brasileiras. – São Paulo:
Terceira Margem, 2003.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão.


– São Paulo: Ática, 1986.

PETTER, Margarida (Org.). Introdução à Linguística Africana.


– São Paulo: Contexto, 2015.

SALOMÃO, Gilberto. Império Romano – Cristianismo – Da


pregação de Jesus a Constantino. Uol educação. Publicado em 25
jun. 2014. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/
historia/imperio-romano---cristianismo-da-pregacao-de-jesus-
a-constantino.htm#:~:text=O%20Cristianismo%20surgiu%20
na%20Palestina,todos%20aqueles%20que%20acreditassem%20
nele. Acesso em 03 out. 2020.

SOUTO MAIOR, Mário. Território da Danação: O Diabo na


Cultura Popular do Nordeste. - Rio de Janeiro. Livraria São José,
1975.

308 Direitos Humanos


O PRINCÍPIO DA IGUALDADE INTRÍNSECA E O DIREITO À
MORADIA: HABITAÇÃO, ESTADO E PANDEMIA

Geovana Maira Lima da Silva

Adamilton Lima Borgneth

INTRODUÇÃO

Um dos pilares do meio social justo é a igualdade, entidade


para a qual são atribuídos conceitos que sofrem modificação
constante ao transpassar corpos sociais distintos. Desse modo, não
há uma uniformidade quanto ao teor da expressão. No entanto,
considerar os indivíduos inteiramente iguais é proposto, por Robert
Dahl, como princípio da igualdade intrínseca.

A magnitude do princípio proposto por Dahl é exposta quando


se relaciona ele ao Estado Democrático de Direito, modalidade de
existência estatal que tem como fundamento (pelo menos teórico)
a própria igualdade. O Judiciário brasileiro por muitas vezes incorre
em negligência nas suas decisões, omitindo os preceitos que nossa
Carta Magna apresenta em sua essência.
Quando se tratam de direitos fundamentais, é essencial que
se considere a igualdade intrínseca no momento da decisão, a fim
de se evitar uma aplicação da letra fria da lei que não corresponda
às reais necessidades que o Estado deva suprir. Durante a defesa do
direito à moradia, é ainda mais evidente o desrespeito ao princípio
que tratamos aqui. Só no período de março a outubro de 2020
(durante a pandemia), de acordo com a Campanha Despejo Zero,
calcula-se que 6.532 famílias foram removidas de suas moradias
e 54.303 famílias são ameaçadas por processos de despejo. Em

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 309


muitos casos não se considerou o porquê de os moradores não
quitarem suas dívidas ou de ocuparem terrenos irregulares. Isso é
desrespeitar a igualdade de uma forma que o Estado Democrático
de Direito jamais se propôs a fazer quando idealizado.

Em visto disso, é essencial conhecer o espírito do princípio


da igualdade intrínseca, uma vez que ele enfoca o que realmente é
fundamental para que haja uma sociedade justa para a coletividade
e decisões judiciais vinculadas às liberdades substanciais dos
indivíduos. Intenta-se, com este texto, debater acerca das seguintes
inquirições: como tem se posicionado, levando em conta a igualdade,
o Estado Brasileiro em relação à moradia durante a pandemia
de COVID-19? Esse posicionamento é compatível com o Estado
Democrático de Direito? Ele considera a igualdade intrínseca?

Dessa forma, o objetivo deste capítulo é investigar, de maneira


breve e concisa, a relação entre o direito à moradia com a observância
do princípio da igualdade intrínseca. Assim, como evidenciado, será
feita a verificação do conceito de igualdade, trazendo conceituações
dadas por várias ópticas. Por conseguinte, se associará a igualdade
intrínseca com o Estado Democrático de Direito, demonstrando o
grau de relevância do preceito trazido por Dahl. Para finalizar, irá
ser dissecado se existe aplicação da igualdade intrínseca em atos
do Estado brasileiro que tratem de direito à moradia, apresentando
o cenário com relação à essa aplicação durante a pandemia de
Covid-19.
Utilizou-se, como metodologia, a pesquisa bibliográfica em
obras teóricas e websites. Para discutir a concepção de igualdade
e igualdade intrínseca utilizou-se a obra de teóricos como Robert
Alexy (2008), Voltaire (1978) e o próprio Robert Dahl (2001).
Para decorrer sobre o Estado Democrático de Direito, utilizou-se
mais um grupo de fontes como Miguel Reale (2005), Agra (2018) e
Oliveira (2016). A decisão judicial comentada, quando tratado sobre
o direito à moradia e a pandemia, foi citada no website do Tribunal

310 Direitos Humanos


de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC). Outras contribuições foram
dadas por Barbosa (2020), que trouxe dados da Campanha Despejo
Zero, dentre outros autores.

CONCEPÇÃO DE IGUALDADE

A ideia de igualdade é constantemente modificada ao


longo dos tempos. Uma das noções foi criada no século XVIII,
na Declaração de Direitos de Virgínia (The Virginia Declaration of
Rights) de 1776, na qual se declarava que todos os homens nascem
igualmente livres. Porém, no contexto da época, era evidente que
havia desigualdade no contexto político, pois nem todos podiam
opinar nas construções políticas.

No entanto, a construção da ideia é mais complexa que


simplesmente tomar o ponto de vista histórico, em razão da
análise dos próprios termos jurídico políticos implementados. Se
considerarmos a igualdade uma condição de conformidade entre
os indivíduos, poderá ter certas situações que não se adequam à
verdadeira realidade. Como atesta Robert Alexy:

Esse dever não pode significar nem que o legislador


tenha que inserir todos nas mesmas posições
jurídicas, nem que ele tenha a responsabilidade
de que todos tenham as mesmas características
naturais e se encontrem nas mesmas condições
fáticas (ALEXY, 2008, p. 396).

Nesse sentido, aponta-se a igualdade apontada na visão de


Aristóteles, a qual estaria pautada no aspecto real ou substancial,
cujos iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais de forma

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 311


desigual (à medida de suas desigualdades). Essa determinação tem
por objetivo colocar todos os membros da sociedade em condições
iguais de competição pelos bens da vida considerada essenciais,
exigindo que muitas vezes seja necessário favorecer uns em
detrimento de outros.
Para Voltaire, a igualdade não passaria de uma utopia,
pois os homens possuem diferentes necessidades, logo, não se
poderia obter desejos iguais, o que desencadearia a desigualdade
propriamente dita (FIGUEIRA, 2011). Em função disso, o iluminista
demonstra que há impossibilidade da divisão de classes no meio
social:

Uma família numerosa cultivou um bom terreno.


Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e
rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família
opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai
oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai
atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de
criados e operários. A família subjugada é fonte de
escravos (VOLTAIRE, 1978, p. 217).

Não obstante, a igualdade é denominada como “dever-ser”


e não como “ser”, pois a sociedade em que todos são livres e iguais
em uma mesma medida é um estado apenas teórico e quimérico.
No entanto, a igualdade está além disso, ou seja, tem muito a ser
explorada em seu sentido significativo ou aproximada de nossa
realidade. Devemos sempre buscá-la na nossa consciência internar
e aplicá-la no convívio social.

312 Direitos Humanos


PRINCÍPIO DA IGUALDADE INTRÍNSECA NA PERSPECTIVA
DE ROBERT DAHL

A igualdade, como vimos, é mutável ao longo da


humanidade, mas basta observarmos nossa volta que veremos a
desigualdade persistir. Robert Dahl (2011, p. 77) já afirmava que
a não igualdade é uma condição natural da humanidade. Todavia,
para que o indivíduo busque considerar o bem de cada homem
inerentemente igual ao de qualquer um, deverá tencionar a um
julgamento moral, ou seja, conceber a ideia da igualdade como uma,
na visão de Kelsen, regulamentação da conduta interior. Em vista
disso, o cientista político prefere denominar esse julgamento moral
da igualdade como princípio da igualdade intrínseca, isto é, referir
que a igualdade terá que ser considerada, de forma inseparável, na
conduta nuclear do indivíduo.

Dahl remete que há diversas razões para adotar este


princípio, uma delas é por questões éticas e religiosas, visto que, na
visão da crença (cristã), a entidade suprema considera todos iguais
perante a ele e, portanto, têm esse fundamento, pois fortalece o
preceito da igualdade. Na premissa ética, alega que a maioria dos
sistemas presume esse princípio, nesse sentido, haveria razões de
adotá-lo.

Além disso, a prudência é essencial para a fundamentação da


adoção da igualdade intrínseca, visto que o Estado também possui
seus males e, como qualquer organismo, está sujeito a cometer
erros. Por esse motivo, o próprio Estado deverá tomar cuidado
nos seus processos, já que poderia se privilegiar, satisfazendo seus
próprios interesses. Robert Dahl destaca que, para muita gente,
seria improvável insistir em que os seus interesses recebam peso
igual aos interesses de outros.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 313


Ademais, ele complementa que o preceito deverá ser adotado
como os diversos princípios existentes, isto é, ser aceito, desse
modo, necessitará ser um processo que certifique igual peso para
todos, tendo maior probabilidade de assegurar o consenso de todos
os outros cuja cooperação é necessária para atingir os seus objetivos
(DAHL, 2001). Isto posto, aceitar esse princípio na fundamentação
de qualquer governo – com base na moral, na ponderação e na
aceitabilidade – pode ser considerado uma excelente alternativa.

Por esse ângulo, a adoção desse princípio pelos indivíduos


é essencial para que haja uma aplicabilidade dos direitos humanos
efetivamente, tanto nas condutas sociais, como também nas
decisões judiciais. Portanto, deve-se considerar nas interpretações
do julgador de um caso concreto, o princípio da igualdade intrínseca,
uma vez que o cientista político já reiterava que a igualdade
intrínseca abrange uma ideia tão fundamental sobre os méritos dos
seres humanos, que está bem perto dos limites de maior justificação
racional (DAHL, 2001, p. 81).

A CONVERGÊNCIA ENTRE IGUALDADE INTRÍNSECA E O


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Brasil, de acordo com a Constituição Federal de 1988,


constitui-se em um Estado Democrático de Direito. Sabemos
que existe também o Estado de Direito, porém, ambos não se
confundem. Miguel Reale declara:

Não concordo, por conseguinte, com os juristas que


consideram sinônimos os termos “Estado de Direito”
e “Estado Democrático de Direito”. Tal entendimento
não me parece admissível em Hermenêutica Jurídica,
notadamente no plano da Carta Magna, porquanto,

314 Direitos Humanos


em princípio, a termos novos deve corresponder
nova interpretação (REALE, 2005, p. 2).

Ante o exposto, o Estado de Direito teve sua concepção


inicial após a Revolução Francesa, em que as primeiras garantias
fundamentais foram evidenciadas, as quais se referiam aos direitos
humanos de primeira dimensão, aqueles que se concretizam com a
abstenção do Estado em realizar certas condutas (AGRA, 2018, p.
187). Diferentemente ocorreu no Estado Democrático de Direito,
visto que, para que houvesse a transição do Estado de Direito para o
Estado Democrático de Direito, ocorreu o surgimento do Estado do
Bem-Estar Social (OLIVEIRA, 2016, p. 1201). Este entra na segunda
dimensão dos direitos humanos implicando que a igualdade saia da
esfera formal e adentre na esfera material, garantindo direitos a
todos, principalmente àquela parte da população que é carente de
recursos (AGRA, 2018, p. 188).

O Estado Democrático de Direito, na Carta Magna de 1988,


tem como um dos seus alicerces a dignidade da pessoa humana,
que norteia todas as garantias constitucionais existentes, podendo
se citar ainda que a isonomia e a liberdade estão contidas nesse
princípio. Então, pode-se arrematar, interligando o que já foi
discutido, que o princípio da igualdade intrínseca deve ser concebido
como uma das premissas da coletividade.

Em função disso, conceitua-se o princípio da igualdade


intrínseca como um dos eixos em nosso sistema brasileiro,
porquanto irá contribuir para substanciar o instituto “justiça”,
já que a moral exige esse tal preceito. Sabendo disso, as decisões
jurídicas deverão ter um escopo mais fundamentado na isonomia
e não equivocar suas fundamentações em argumentos que levam à
tendência da parcialidade desfavorecendo àqueles que mais carecem
das garantias fundamentais.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 315


A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INTRÍNSECA NAS DECISÕES JUDICIAIS

O Estado concede ao juiz um poder-dever de assegurar


a tutela jurisdicional dos indivíduos que têm suas pretensões
resistidas, o que compreende, ao final da demanda judicial, a decisão
jurídica. Mas, para que o magistrado declare esse direito, deve
conformar o material jurídico pré-estabelecido ao fato concreto. No
entanto, aí está um dilema: a aplicação dos princípios fundamentais
é meramente esquecida pelos juízes.

Diante disso, o princípio basilar a se considerar em todas as


decisões, sem pestanear, é o princípio da dignidade humana, como
cânone fundamental de um Estado Democrático de Direito e um
dogma que se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade
(DIAS, 2003). Para a aceitação do princípio da dignidade humana, é
preciso considerar primeiramente que todos os cidadãos são iguais,
o que nos leva a entender que o princípio da isonomia considera-
se um dos pilares dessa norma imprescindível em qualquer decisão
justa.

No entanto, o magistrado, de acordo com Joseph Hutcheson


Junior (1929), age com a intuição e os sentimentos. Para o jurista,
a fundamentação escrita da decisão seria a parte racionalista
da demanda. Nota-se que, de certa forma, o juiz culmina para as
suas próprias convicções, o que manifesta uma transgressão dos
princípios substanciais. Dessa forma, os mais atingidos pelas
desigualdades sociais acabam sendo mais vulneráveis a esses
vereditos.

Sendo assim, a igualdade intrínseca deverá ser elencada


tanto no seio da coletividade, tanto nas convicções do judiciário,
dado que não abarca só a isonomia, mas atinge uma gama de direitos
fundamentais dos indivíduos.

316 Direitos Humanos


A IGUALDADE INTRÍSECA TEM SIDO CONSIDERADA NA
PRÁTICA DOS CASOS DE DIREITO À MORADIA?

O julgador pode fazer valer a igualdade intrínseca em sua


decisão. Um exemplo de caso onde isso ocorreu se deu na cidade
de Itajaí, neste ano de 2020. De acordo com Santa Catarina (2020),
o município de Itajaí disporá de 60 dias para reassentar um grupo
de moradores instalado de forma clandestina. A decisão da juíza
Sônia Maria Mazzetto Moroso Terres, da Vara da Fazenda Pública,
Execuções Fiscais, Acidentes de Trabalho e Registros Públicos de
Itajaí, atendeu a um pedido de tutela provisória de urgência em
uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público do estado.
O grupo de pessoas se encontrava no bairro Rio do Meio,
em uma área rural e de proteção ambiental, sem infraestrutura
própria como coleta e tratamento de esgotos. Ainda se pontuou
a presença de lotes em terrenos de desníveis topográficos com
risco de deslizamento de terra. A área ocupada era de um terceiro
que alienou as terras irregularmente, mesmo após ser autuado e
ter aquela área embargada pelo órgão municipal responsável pela
gestão ambiental.

De acordo com a decisão: “as medidas acautelatórias


requeridas pelo Ministério Público são necessárias para resguardar
a vida dos moradores do loteamento e o meio ambiente, bem como
para garantir direito de terceiros” (SANTA CATARINA, 2020),
buscou-se garantir os direitos fundamentais à vida, a um meio
ambiente saudável, além dos direitos de terceiros.

Ressaltou-se ainda que as famílias não poderão ser colocadas


em locais coletivos, haja vista a pandemia de COVID-19 (sigla que
deriva do inglês Coronavirus Disease), que se dissemina de forma
rápida através do contato próximo ou com áreas contaminadas

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 317


pelo novo coronavírus. Dessa forma, garante-se o respeito a outro
direito humano: a saúde.

Verifica-se o trato com igualdade aos seres humanos que


estavam naquele local irregular. A decisão judicial desconsiderou
o fato de eles estarem voluntariamente em moradias irregulares
e em área proibida. Se enxergou a igualdade intrínseca a elas, de
forma que elas tinham o direito de morar em habitação digna
da mesma forma que as outras pessoas. Além disso, se verificou
fatores socioeconômicos como a classe social a qual aquelas
famílias pertenciam, as tratando de forma desigual à medida das
desigualdades que elas enfrentavam.

O Estado foi cobrado a proteger os direitos dessas pessoas,


em concordância à função social que o Estado Democrático de
Direito assume. Quanto ao terceiro, que comercializava os lotes,
foi proibido de anunciar e vender ou fazer qualquer intervenção na
área. Ainda foi exigido que ele ressarcisse os valores pagos pelas
famílias prejudicadas.

Nem todos os casos possuem finais guiados pela igualdade.


Mesmo com a situação de pandemia e várias decisões judiciais
formando um certo entendimento quanto à suspensão de despejos
de famílias vulneráveis durante a pandemia de COVID-19, o que
se viu na prática foi um imenso número de famílias prejudicadas
durante a pandemia. A Campanha Despejo Zero calcula que
entre março e outubro de 2020, 6.532 famílias foram removidas
de suas moradias e 54.303 famílias são ameaçadas por processos
de despejo (BARBOSA, 2020). Alerta-se para o fato de isso tudo
acontecer durante a avassaladora pandemia do novo coronavírus.
Identifica-se uma ironia no fato de o Estado pedir que se “fique em
casa” enquanto permite e até retira as casas de pessoas socialmente
vulneráveis, enquanto ele deveria garantir moradia a todos que
fazem parte do pacto de nação.

318 Direitos Humanos


Balakrishnan Rajagopal, relator especial da ONU para o
direito à moradia, declarou que “Despejar as pessoas de suas casas
nessa situação, independentemente do status legal de sua moradia,
é uma violação dos direitos humanos” (EACDH, 2020, p. 1). Dessa
forma, ao permitir que essa situação aconteça, o Brasil fere seu
compromisso com as Nações Unidas e compactua ainda com o
desrespeito deliberado aos direitos humanos. Quebra-se assim o
princípio da igualdade intrínseca preconizado por Robert Dahl,
tratando os menos privilegiados de forma a piorar suas condições,
desconsiderando ainda suas necessidades básicas como seres
humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível, ao fim deste capítulo, descrever aspectos sobre


a igualdade intrínseca tal qual preconizada por Robert Dahl. Por
vezes, ela permeia as decisões judiciais, porém, são numerosos
os casos em que se aplica tal princípio, especialmente no que diz
respeito a casos onde se envolve o direito humano à moradia.

O Estado brasileiro, categorizado na Magna Carta como


Estado Democrático de Direito, possui dever de garantir, aos
constituintes do pacto de nação, moradia digna. Apresentou-se,
neste texto, um caso em que o Judiciário, como um Poder do Estado,
na pessoa de uma magistrada, fez valer esse direito. Na decisão, se
considerou a igualdade daqueles seres, que, como classificamos, é
intrínseca a eles, ou seja, desconsidera quaisquer características.

Entretanto, nem sempre a igualdade intrínseca é levada


em conta no julgamento dos casos, tornando ainda mais árdua a
existência de pessoas que não nasceram em meio a privilégios
de classe social, etnia e raça. É possível que em muitos casos

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 319


as posições dos julgadores sejam totalmente influenciadas por
construções sociais vivenciadas por eles durante a vida e a prática
jurídica. Ressaltamos a necessidade de que se observe o ser que não
possui moradia, como um ser constituinte que, tentando garantir a
sobrevivência própria e da família, às vezes infringe regras quando
se estabelece em terreno irregular. Não é necessário que ele seja
tratado com uso de força e truculência, mas sim com políticas
públicas adequadas; políticas essas que o Estado Democrático de
Direito deve encabeçar a fim de dar tratamento justo e digno a
todos os que a ele confiaram suas vidas.

REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 9. ed.


Belo Horizonte: Fórum, 2018.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Título


original: Theorie der Grundrechte. Tradução de Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARBOSA, Francisco. No Ceará, campanha luta pelo fim dos


despejos durante a pandemia. Brasil de Fato. Publicado em 21 de
outubro de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.
br/2020/10/21/no-ceara-campanha-despejo-zero-luta-pelo-fim-
dos-despejos-durante-a-pandemia. Acesso em: 02 nov. 2020.

DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou.


1. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

320 Direitos Humanos


DURÃO, Aylton Barbieri. Habermas: os fundamentos do estado
democrático de direito. Transformação, São Paulo, v. 32, ed. 1, p.
119-137, 2009.

ESCRITÓRIO DO ALTO COMISSÁRIO DAS NAÇÕES UNIDAS


PARA OS DIREITOS HUMANOS – EACDH. Brasil deve acabar
com os despejos durante a crise do COVID-19: relator da ONU.
Julho de 2020. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/
Issues/Housing/PR_Brazil_July2020_Portuguese.pdf. Acesso em
02 nov. 2020.

FIGUEIRA, Leandro Alves. A igualdade na perspectiva de Voltaire.


Pensamento Extemporâneo. [S. l.], Publicado em 13 jun.
2011. Disponível em: https://pensamentoextemporaneo.com.
br/?p=1517. Acesso em: 10 out. 2020.

HUTCHESON JUNIOR, Joseph Chappell. Judgment Intuitive The


Function of the Hunch in Judicial Decision. Cornell Law Review,
[s. l.], v. 14, 3 abr. 1929.

TEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual


Civil: teoria geral do direito processual civil, processo de
conhecimento, procedimento comum. V. 1, 60. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet;


COELHO, Inocência Mártires. Curso de direito constitucional.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 321


OLIVEIRA, Heron José Castro. Estado de direito e estado
democrático de direito (estado social): o que há de novo?
Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.11,
n.3, 3º quadrimestre de 2016. Disponível em: www.univali.br/
direitoepolitica - ISSN 1980-7791.

REALE, Miguel. Estado democrático de direito e o conflito das


ideologias. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

SANTA CATARINA. Poder Judiciário. Assessoria de Imprensa.


Responsável: Ângelo Medeiros. Notícias. Publicado em 21 de
outubro de 2020. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/
imprensa/-/municipio-devera-reassentar-moradores-de-area-
irregular-mas-sem-desconsiderar-pandemia?inheritRedirect=true.
Acesso em 02 nov. 2020.

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. 2. ed. Tradução de Marilena


Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

322 Direitos Humanos


PERSPECTIVAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS NA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO MEIO DE
EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA
EM COMUNIDADES CARENTES

Enya Maria da Silva Fonseca

Alice Amélia Araújo Teixeira e Silva

INTRODUÇÃO

O direito de acesso à justiça, primeiramente, é assegurado na


Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) em seus artigos:

7º: Todos são iguais perante a lei e, sem distinção,


têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito
a protecção igual contra qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer
incitamento a tal discriminação; 8º: Toda a pessoa
tem direito a recurso efectivo para as jurisdições
nacionais competentes contra os actos que violem
os direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição ou pela lei; e 10º: Toda a pessoa tem
direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja
equitativa e publicamente julgada por um tribunal
independente e imparcial que decida dos seus direitos
e obrigações ou das razões de qualquer acusação em
matéria penal que contra ela seja deduzida (ONU,
1948).

Nesse mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, em


seu artigo 5º, que trata de direitos fundamentais, afirma no inciso
XXXV que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988), condizente com tal preceito

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 323


foi elaborado o art. 3º do Código de Processo Civil de 2015, primeiro
código processual feito sobre a vigência da atual constituição. Assim
sendo, buscamos definir as causas que impedem a materialização
desse direito em comunidades de renda menor, mesmo diante de
tantas previsões nacionais e internacionais de sua garantia.
Cappelletti (1988) apresenta uma evolução histórica do
direito de acesso à justiça, apontando que em uma época ainda
individualista da tutela jurisdicional, tal direito não era visto
como natural, e sim formal, o que levava a inércia do Estado para
sua efetivação. Contudo, diante de modificações sociais e legais,
se passa a reconhecer a importância da efetividade desse direito,
e “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito
fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema
jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI, 1988, p.12). Deste
modo, já vimos que a Constituição de 88 e mais recentemente o
Código de Processo Civil buscam assegurar esse direito.

Junqueira (1996) explica a razão da explosão de textos sobre


acesso à justiça na década de 80 no Brasil, a qual ocorreu não
por conta do debate a nível internacional, muito incentivado por
Cappelletti, mas sim, devido “internamente, no processo político
e social da abertura política e, em particular, na emergência do
movimento social que então se inicia” (JUNQUEIRA, 1996, p. 390).
Assim sendo, o papel da Ciência Política no Brasil foi crucial para o
desenvolvimento dos estudos a respeito do quadro social e político
da sociedade brasileira. Nesse contexto, surge o Centro de Estudos
de Cultura Contemporânea (Cedec), que tem como objetivo estudar
as problemáticas da sociedade brasileira tanto a nível nacional
quanto internacional, voltado para a área temática sobre os direitos
humanos, cidadania e justiça.

Isto posto, torna-se evidente que a união entre a Ciência


Política com outras áreas das Ciências Humanas foi decisiva para

324 Direitos Humanos


o desenvolvimento de um arcabouço teórico e prático que tivesse
como objeto de estudo as problemáticas da sociedade brasileira e
que, para além disso, gerasse uma inovação teórica e conceitual nos
estudos sociais brasileiros. Tendo em vista a conjuntura apresentada,
somado ao significado e a importância das investigações teóricas
feitas, Marilena Chauí (2007, p. 188) desenvolve que na primeira
revista do Cedec (1978), é exposto o papel nacional das observações
e pesquisas que ali eram feitas:

Cumpre, nos dias que correm, criar condições para


o desenvolvimento de visão crítica do passado e do
presente, reafirmando suas ligações com a perspectiva
de democratização econômica, social e política de
nosso país. Trata-se de incentivar o debate através
do qual se possa afirmar a riqueza da pluralidade e
da diversidade do pensamento, fundamental para o
desenvolvimento político e cultural nacional. Trata-
se de recuperar traços do desenvolvimento histórico
da sociedade que a ótica autoritária sempre ajudou a
desarticular, mas cuja a potencialidade inovadora e
crítica o quadro cultural brasileiro já anuncia.

Como exposto, à medida que tornava-se mais evidente


as adversidades que o país passava, o meio acadêmico passou a
desenvolver estudos e críticas para que, através dos movimentos
sociais, se consolidaram lutas como, por exemplo, a conquista de
um Estado Democrático de Direito (ainda que nos moldes liberais),
direitos fundamentais e a pluralidade de pensamento. Partiu-se de
uma análise na qual o Brasil torna-se o foco e o campo social entra
em debate, fortalecendo assim determinadas garantias cruciais
para um ambiente político e social mais igualitário e assistente.

Isto posto, uma das abordagens criadas para o campo de


estudo e que será utilizada para o desenvolvimento deste capítulo é
a Teoria dos Novos Movimentos Sociais, desenvolvida principalmente
para o estudo dos movimentos da segunda metade do século XX,

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 325


tendo como teóricos, Habermas, Tourraine e Melucci. Nessa teoria,
os movimentos ultrapassam a ideia de mero ator e se amplificam
para a sociedade civil, passando a almejar não só mudanças
institucionais, mas também socioculturais a longo prazo, buscando
novos modelos participatórios e de autogestão voltada para a
reafirmação identitária. Nesse sentido, Alonso (2009) preconiza:

Os novos movimentos sociais seriam, então, formas


particularistas de resistência, reativas aos rumos
do desenvolvimento socioeconômico e em busca da
reapropriação de tempo, espaço e relações cotidianas.
Contestações “pós-materialistas”, com motivações
de ordem simbólica e voltadas para a construção ou
o reconhecimento de identidades coletivas (p. 64).

Quanto às teorias democráticas, a que mais corresponde


a esses carecimentos é a Democracia Participativa, a qual, na
contemporaneidade, é desenvolvida por Pateman, em livro
publicado em 1970 nos Estados Unidos e em 1992 no Brasil. A
noção geral dessa teoria pode ser apresentada como a ideia de que,
em sistemas representativos em que ocorre a delegação de poder
para uma minoria, não se efetiva a essência de um governo do povo
e para o povo, de modo que se faz necessário a atuação popular na
vida política e não só por meio do voto nas eleições.

No livro, Pateman (1992) faz um balanço das teorias clássicas


e contemporâneas acerca da democracia e da participação. Tomando
como base alguns autores: Rousseau, em que há a percepção de que
o principal caráter da participação é educativo; Mill, que preconiza a
necessidade da participação a nível local; Cole, com a concepção da
importância de áreas alternativas onde o indivíduo pode participar
na tomada de decisões; contudo todos voltam-se para a ideia de
“aprender democracia” e, num aspecto amplo, que a chave para a
eficiência da democracia são indivíduos “treinados” para tal. No

326 Direitos Humanos


geral, essa teoria critica a acepção da democracia representativa
liberal na atualidade, em que a apatia do indivíduo é naturalizada e
limita-se o exercício da cidadania política.

Partindo desses pressupostos, podemos fazer uma avaliação


da democracia brasileira. Os dados de 2018, da pesquisa do
Latinobarómetro, feita por meio de entrevista com 1204 brasileiros,
mostram que 90% dos entrevistados acreditavam que o país era
governado por grupos poderosos que buscam seu próprio benefício;
45,8% não estavam nada satisfeitos com o funcionamento da
democracia no país; 46,9% não tinham nenhuma confiança no
Congresso Nacional e 59,3% não tinham nenhuma confiança no
governo. Diante de tais resultados, podemos identificar uma crise
da democracia representativa por uma conjunção de fatores, sendo
um dos principais a falta de confiança nas instituições. Nesse
sentido, Lüchmann e Faria (2020) proclamam:

Esses problemas tendem só a se acentuar perante


a crescente complexidade e pluralidade social, que
desenham um mundo marcado por subjetividades
multifacetadas e formado por diferentes espaços e
relações que atravessam fronteiras locais, nacionais
e internacionais, colocando tanto a necessidade
de revisão da ideia de que o processo eleitoral é
único na garantia de legitimidade do exercício da
representação política, quanto a necessidade de
revisão e qualificação da relação entre representantes
e representados (p. 60).

Intuímos que, com uma educação que preze pela participação


dentro do ambiente cotidiano dos indivíduos, seja no local de
trabalho ou em outros grupos, haveria benefícios para a relação
sociedade civil - Estado, tanto de um interesse maior dos indivíduos
pela política, quanto na eficiência das políticas públicas, pois a
sociedade civil estará mais atenta e cívica. Como afirma Pateman

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 327


(1992, p. 60): “A teoria da democracia participativa é construída em
torno da afirmação central de que os indivíduos e suas instituições
não podem ser considerados isoladamente”. Além de que, essa
tendência ao esvaziamento da confiança institucional nos últimos
anos tende a fortalecer os laços identitários entre os indivíduos
que buscam outros caminhos para reconhecer suas demandas
e propor mudanças sociais, formando movimentos sociais, e
segundo Sandes-Freitas e Perez (2020, p. 51) “De forma geral, os
partidos políticos, assim como os movimentos sociais, são capazes
de organizar a vontade coletiva e de fazer sua intermediação junto
ao Estado”.

Assim, diante de todo o exposto, compreende-se que, por


meio da construção e estabelecimento de identidades coletivas, da
aplicação de políticas educacionais e da disponibilidade de espaços
para que a participação seja exercitada, ou seja, aliando a Teoria dos
Novos Movimentos Sociais com a Teoria Democrática Participativa,
busca-se elevar os níveis de eficiência política que, em uma análise
comportamental, resultaria em uma maior satisfação com o regime
democrático e a garantia de seus direitos.

Para facilitar o estudo, delimitamos os movimentos sociais


como “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que
viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar
suas demandas” (GOHN, 2011b, p. 335).
Quando se trata da institucionalização dos movimentos
sociais, Gohn (2011a) vai trazer a história da relação Estado –
Sociedade Civil na América Latina, afirmando que as análises são
feitas a partir da participação de representantes da sociedade civil
organizados em algum tipo de grupo/mobilização, em que atuaram
em “estruturas participativas denominadas de cidadãs” (p. 224).

No caso do Brasil, ela diz que, diante da crise do começo do


século XXI, a resposta brasileira foi uma capitalização da crise ao

328 Direitos Humanos


se inserir em nichos do mercado internacional, e a partir disso
promoveram programas de proteção social e de interação social, que
ocorrem por meio de conselhos, fóruns, etc. Isso ocorre de tal modo
que o estudo da institucionalização no Brasil pode ser dividido
em períodos: o primeiro deles seria a pré-institucionalização, o
período referente a Ditadura Militar, em que o caráter autoritário
fazia com que os movimentos se afastassem do Estado como meio
de resistência; o segundo, nos anos 90, pós-redemocratização e
sob a gerência da Constituição Cidadã, em que se destacaram os
conselhos gestores e os orçamentos participativos; e um período no
início dos anos 2000, em que há mais parceria entre as comunidades
organizadas e o Estado. Contudo, os projetos que são adotados
pelos governos são diretamente ligados ao seu viés político, um
governo neoliberal tende a seguir com esse projeto, assim como
um participativo, tende a seguir com o seu, e um autoritário vai
diminuir a participação da sociedade civil no Estado.

No país, seria possível datar essa emergência nos


anos 1970, em um primeiro momento de “autonomia
plena” (p. 392) animado por um “movimento pela
autonomia social” (p. 386) em relação ao Estado.
A Constituinte teria encerrado esse período,
ensejando a “criação da interdependência política”
(p. 390) entre atores sociais e Estado. A inauguração
da interdependência teria cedido passo, com o
aprofundamento da democratização do país, a
um momento em que a sociedade civil seria “mais
ou menos autônoma vis-à-vis o Estado”. Assim,
o momento atual poderia ser bem compreendido
como marcado por uma “lógica mista de autonomia
e dependência” que varia conforme a dois grupos
maciços de associações que constituiriam a
composição da sociedade civil brasileira: associações
religiosas e aquelas vinculadas ao Estado para a
implementação de políticas públicas (LAVALLE;
SZWAKO, 2015, p. 159).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 329


A partir desses entendimentos, podemos ver a importância
e a presença institucional dos movimentos sociais nas últimas
duas décadas. Isso decorre também da sua capacidade de agregar
demandas de uma comunidade e de ser o mediador de tais
problemáticas para o âmbito estatal. Assim, espera-se que seja mais
efetivo para solucionar litígios e proporcionar melhores condições
para suas comunidades, desde o acesso a direitos básicos quanto a
implementar projetos sociais, visto que na maior parte das vezes
são constituídos por membros da própria comunidade. Lembrando
o conceito de comunidade que é utilizado por Gohn (2011a, p. 234):

O uso do termo comunidade nas políticas públicas,


aparece nesta fase sempre associado à ideia de
diversidade de culturas e, ao mesmo tempo, poder
local - outra categoria ressignificada que saiu da
concepção tradicional de poder das elites locais
para significar força social local organizada (vide
SAINSALIEU, SALZBRUNN & AMIOTTE-SUCHET,
2010).

Dessa maneira, pode-se traçar um panorama da relação entre


a interdependência sociedade civil - Estado e os meios de garantir
o acesso à justiça. Para tal, inicialmente, analisaremos os dados do
relatório Justiça em Números de 2018, do Conselho Nacional de
Justiça, que diz “Em média, a cada grupo de 100.000 habitantes,
12.519 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2017” (p. 80),
isso é unicamente o número dos processos de conhecimento e de
execução de títulos extrajudiciais.

Posteriormente, devemos identificar os desafios específicos


da perpetuação do acesso à justiça no território brasileiro e como
esses tem mais impacto em comunidades desprovidas de recursos
financeiros. Cappelletti (1988) identifica alguns desafios a serem
transpostos para um acesso efetivo à justiça. Entre eles estão: as

330 Direitos Humanos


custas judiciais, as possibilidades das partes, etc. É sabido que, no
Brasil, o preço para adentrar com um ação judicial é elevado, nesse
sentido foram desenvolvidas duas ferramentas para possibilitar
o acesso universal. A primeira delas é a Defensoria Pública, que
deve garantir assistência jurídica integral e gratuita àqueles que
comprovarem renda mensal familiar líquida de até três salários
mínimos, conforme previsão constitucional no art. 134:

A Defensoria Pública é instituição permanente,


essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe, como expressão e instrumento
do regime democrático, fundamentalmente,
a orientação jurídica, a promoção dos direitos
humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de
forma integral e gratuita, aos necessitados, na
forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição
Federal (BRASIL, 1988, grifos nossos).

A segunda ferramenta foi à criação dos Juizados Especiais,


disciplinados pela Lei nº 9.099/95, que objetivam proporcionar
um processo mais eficaz e gratuito. Tal juizado é competente para
julgar causas em que o valor não exceda 40 salários mínimos: ação
de despejo para uso próprio, entre outros.

Assim sendo, para alguns casos, a legislação brasileira,


principalmente em relação às custas judiciais já é bem posta e busca
por soluções ao problema da inacessibilidade da justiça. Contudo,
uma questão mais problemática acerca disso é a aptidão para
reconhecer um direito sendo violado e a possibilidade de uma tutela
jurisdicional protegê-lo. Essa questão está diretamente ligada à
educação e à cidadania, pois uma política de ensino estatal poderia
suprir, claro que seria um projeto a longo prazo, as dificuldades da
população acerca do conhecimento de seus direitos, o que poderia

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 331


ser perpetuado por meio de projetos de grupos sociais que atuassem
com os conhecimentos jurídicos básicos, frente e diretamente ao
povo.

A partir dessas apreensões, faz-se mister o desenvolvimento


de políticas nessa relação interdependente da sociedade civil e
Estado, por meio de movimentos sociais que visem a proteção dos
direitos humanos e tenham como comunidade – no sentido de Gohn,
2011b: uma força social local organizada – seus assistenciados. Isso
deve ocorrer de tal maneira, que a força dos movimentos sociais
seja tamanha que possa assegurar, com veemência e certeza, que os
direitos ali reivindicados sejam garantidos.

Nesse sentido, pode-se observar que para além da garantia


legal do acesso à justiça, como já exposto, devem haver políticas
públicas que garantam aos cidadãos acesso pleno aos conhecimentos
dos direitos, ou seja, cabe ao Estado e também aos diversos
movimentos sociais informar a sociedade civil os seus direitos, pois
somente dessa forma, os cidadãos poderão ir atrás das garantias
ofertadas pelo aparelho jurídico-estatal.

Segundo Gohn (2011b), existem doze tipos de aprendizagem


nas lutas dos movimentos sociais; primeiramente, cabe conceituar
o que é esta aprendizagem, pois a autora utiliza a apreensão de
Vygotsky para chegar à classificação proposta, assim sendo:

o aprendizado ocorre quando as informações fazem


sentido para os indivíduos inseridos em um dado
contexto social. A aprendizagem no interior de um
movimento social, durante e depois de uma luta, são
múltiplas, tanto para o grupo como para indivíduos
isolados (p. 352).

332 Direitos Humanos


Já no que diz respeito às classificações, iremos aqui nos ater a
apenas duas: a aprendizagem técnica instrumental e a aprendizagem
política. Nessa ordem, a primeira, refere-se ao entendimento sobre
a maquinaria pública, isto é, a compreensão do funcionamento dos
órgãos e entidades públicos, somado a isso o conhecimento das leis.
O segundo ponto versa sobre o conhecimento do indivíduo no que
tange aos seus direitos garantidos por lei, o seu posicionamento
dentro de uma sociedade classista; ademais, trata do ensino básico
desde a criança ao adulto, tendo em vista a importância da formação
acadêmica para a consciência do papel do cidadão, da política e das
legislações no dia a dia do indivíduo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse sentido, torna-se claro que, para que o acesso à justiça


seja garantido dentro dos moldes institucionais e políticos do
Estado liberal atual, os movimentos sociais são cruciais para sua
consolidação, tendo em vista que são a principal forma da sociedade
civil de lutar por suas garantias fundamentais amparadas pela lei.

Em consonância ao que já foi exposto, pode-se aferir que a


democracia participativa, apesar das suas falhas e imperfeições,
ainda garante e resguarda que todos os cidadãos tenham acesso
a um processo legal, assim como a garantia do contraditório e da
ampla defesa durante todo o decorrer do processo.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 333


REFERÊNCIAS

ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço


do Debate. Lua Nova. São Paulo, n. 76, p. 49-86, 2009. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64452009000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14 set.
2020.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março


de 2015. Brasília, 2015.

BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre


os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.
Brasília, 2015.

CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie


Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CHAUI, Marilena; NOGUEIRA, Marco Aurélio. O pensamento


político e a redemocratização do Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 71,
p. 173-228, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452007000200006&lng=e
n&nrm=iso>. Acesso em: 09 Out. 2020.

CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Chile: 2018.

334 Direitos Humanos


ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível
em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-
direitos-humanos>. Acesso em: 07 out. 2020.

GOHN, Maria da Glória. Participação de Representantes da


Sociedade Civil na Esfera Pública na América Latina. Política e
Sociedade, v. 10, n. 18, p. 223-244, abr. 2011a.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na contemporaneidade.


Revista Brasileira de Educação, v. 16 n. 47 maio-ago. 2011b.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar


retrospectivo. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 9, n.
18, p. 389-402, dez. 1996. Disponível em: <http://bibliotecadigital.
fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2025>. Acesso em: 20. set.
2020.
Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de
Justiça - Brasília: CNJ, 2018.

LAVALLE, Adrian Gurza; SZWAKO, José. Sociedade civil, Estado e


autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate.
Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, p. 157-187, Abr. 2015 .

LÜCHMANN, Lígia; FARIA, Claudia Feres. Democracia direta,


participativa, deliberativa e representativa: limites, combinações
e tensões. In: Ana Claudia Teixeira, Carla Almeida, José Antônio
Moroni (Org.). A democracia necessária e desejada: dilemas e
perspectivas. Marília: Lutas Anticapital, 2020. p. 55-67.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 335


PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática, tradução
Luiz Paulo Rouanet – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

SANDES-FREITAS, V. E. V. de; PEREZ, O. C. Formas de participação


nos regimes democráticos In: Ana Claudia Teixeira, Carla Almeida,
José Antônio Moroni (Org.). A democracia necessária e
desejada: dilemas e perspectivas. Marília: Lutas Anticapital,
2020. p. 49-53.

336 Direitos Humanos


DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO: A GARANTIA DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA À EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Thiago Pereira de Carvalho

Carla Santana Gonçalves

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, principalmente a partir do processo de


redemocratização, tem se intensificado a atuação de movimentos
sociais e da sociedade civil para assegurar direitos fundamentais
às minorias que, historicamente, foram excluídas do processo
democrático e deixadas à margem da atuação estatal. Com destaque,
aqui, às pessoas com deficiência. A luta social contra todas as
formas de discriminação e desigualdades que impedem o pleno
exercício da cidadania e o gozo de direitos humanos pelas pessoas
com deficiência impõem a necessidade de modificação social, com
vistas a uma sociedade mais justa e inclusiva.

A Constituição Federal do Brasil de 1988 é o marco inicial de


uma nova ordem social, fundada nos pilares da dignidade humana
e da igualdade de direitos. Vincula juridicamente o Estado a atuar
como sujeito ativo nas relações sociais, operando positivamente,
principalmente por meio de políticas públicas direcionadas a
direitos sociais, a fim de possibilitar a concretização das garantias
constitucionais.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 337


Nessa perspectiva, a Constituição brasileira é dirigente61,
busca estabelecer parâmetros para alcançar a plena realização dos
direitos sociais, econômicos e culturais. Isso implica em direitos
a prestações positivas pelo Estado para garantir a definição de
condições mínimas para uma vida digna para todos os membros da
nação, consolidando, no Brasil, um verdadeiro Estado Democrático
de Direito.

Assim, o direito fundamental social à educação de todas


as pessoas – em especial, a educação inclusiva às pessoas com
deficiência – só se faz possível por intermédio da ação estatal a
partir da criação e efetivação de políticas públicas educacionais
voltadas para a inclusão escolar e social desse grupo.

Diante da perspectiva da educação inclusiva especial, este


capítulo objetiva responder à situação-problema: Os avanços
na definição e implementação de políticas públicas de inclusão
no sistema educacional brasileiro têm assegurado e promovido
plenamente o direito fundamental social à educação às pessoas
com deficiência? Sob um aporte metodológico bibliográfico e
documental, este estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa
qualitativa a partir das seguintes categorias: direitos fundamentais
sociais, políticas públicas, educação e inclusão.

Em primeiro momento, faz-se uma análise sobre a garantia


constitucional do direito fundamental à educação e dos deveres
do Estado brasileiro a partir da Constituição de 1988. Em seguida,
discute-se as políticas educacionais de inclusão como instrumentos

61
Cf. CANOTILHO, J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para
a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed., 1994.
O paradigma das Constituições Constitutivas Sociais ou, consoante João J. G. Canotilho,
Constituições Dirigentes, onde a centralidade reside na constante procura e efetivação
da igualdade material, exigindo a proteção da dignidade humana, núcleo dos direitos
fundamentais, pelo Estado, colocando a lei como exigência fática de promoção e realização
dos direitos fundamentais, estes sendo os direitos humanos positivados no ordenamento
jurídico.

338 Direitos Humanos


integradores e promotores de direitos humanos às pessoas com
deficiência a partir da ideia de indivisibilidade destes direitos
(HABERMAS, 1997). Examinando, por fim, se essas políticas
concretizam, efetivamente, o liame constitucional dirigente de
universalização do acesso à educação.
Este trabalho se faz importante, na medida em que
complementa uma construção coletiva sobre direitos humanos e
suas perspectivas interdisciplinares, para corroborar com a ideia
de direitos humanos como direitos indivisíveis, fundados nos
princípios da igualdade e dignidade, imprescindíveis ao pleno
desenvolvimento da personalidade humana. Além disso, o valor
social e acadêmico do campo interdisciplinar entre direito e
educação fortalece, também, perspectivas mais tangíveis sobre o
papel do direito como instrumento para promover a igualdade de
oportunidades, a justiça social e o desenvolvimento da sociedade.

O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À EDUCAÇÃO NA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A educação constitui-se como elemento central no processo


de desenvolvimento de qualquer projeto de nação que vise o pleno
desenvolvimento da personalidade humana, igualdade, cidadania e
o exercício dos direitos fundamentais.

Em divergência às constituições anteriores, a Constituição de


1988 ocupa-se dos direitos fundamentais e sociais com prioridade
frente a outras matérias constitucionais. Chega a priorizar
os direitos sociais em detrimento dos direitos de liberdade,
aqueles sendo de suma importância para o exercício destes.
Especificamente, a respeito da educação, promove-se uma ruptura
de paradigma no direito educacional brasileiro, rompe-se com o

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 339


ideal de assistencialismo estatal e consagra-se a educação enquanto
direito social, essencial ao pleno desenvolvimento do homem e à
concretização dos princípios da igualdade e dignidade humana. O
art. 6º do Texto Constitucional consolida que:

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,


a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desemparados, na forma
desta Constituição (Redação dada pela EC nº 90, de
2015).

A adesão a fundamentos, princípios e objetivos de um Estado


Democrático de Direito pela Constituição vinculou juridicamente
o Estado, este assumindo caráter positivo e prestacional frente
à concretização dos valores sociais positivados, tais como a
educação. O Título VIII da Lei Maior, que trata da Ordem Social,
mais especificamente dos arts. 205 ao 214, consolida a garantia
do direito à educação ao estatuir que esta é “direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho” (BRASIL, 1988).

No que tange aos fundamentos constitucionais mais


específicos para o desenvolvimento de um sistema de ensino
inclusivo, principalmente às pessoas com deficiência, o Art. 206
proclama o princípio da “igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola”, bem como o Art. 208, Inciso III, estabelece
que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de “atendimento educacional especializado aos portadores
de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”
(BRASIL, 1988).

340 Direitos Humanos


O Texto Constitucional de 1988 consagra o acesso ao ensino
obrigatório e gratuito como direito público subjetivo62. A sociedade
pode e deve exigir constantemente do Estado a criação de políticas,
planos e ações para efetivar esse direito. Não obstante isso, a
luta de movimentos sociais e civis por uma educação inclusiva
às pessoas com necessidades especiais, tanto nacionalmente
como internacionalmente, se faz legítima e necessária para
assegurar o pleno exercício dos direitos humanos desse segmento,
historicamente excluído e segregado da centralidade das políticas
públicas brasileiras.

Assim, é indubitável a responsabilidade e obrigação do


Estado em atuar, progressivamente, para cumprir essa norma
constitucional programática e garantir a universalização do acesso
e permanência de todas e todos a uma educação de qualidade63.
Cumpre ressaltar que este dever jurídico não é exclusivo da União,
a Constituição define que “a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas
de ensino”.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,


realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) – que teve
como propósito promover, proteger e assegurar o exercício pleno e
equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua
dignidade inerente – estabelece, no art. 1º, que:

62
“O conceito do direito subjetivo desempenha um papel central na moderna compreensão
do direito. Ele corresponde ao conceito de liberdade de ação subjetiva: direitos subjetivos
(rights) estabelecem os limites no interior dos quais um sujeito está justificado a empregar
livremente a sua vontade. E eles definem liberdades de ação iguais para todos os indivíduos
ou pessoas jurídicas, tidas como portadoras de direitos”. (HABERMAS, 1997, p. 113)
63
Constituição Federal Brasileira. TÍTULO I – DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. Art.
3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 341


Pessoas com deficiência são aquelas que têm
impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdades de condições com as demais pessoas
(ONU, 2006).

Além do grande marco social, político e econômico que


é a Constituição Federal de 1988 para a transformação da
realidade, redução das desigualdades e promoção de equiparadas
oportunidades – equidade –, somam-se a ela outros marcos
legais e regulatórios pela universalização do ensino, bem como o
fortalecimento da educação especial na perspectiva da educação
inclusiva para as pessoas com deficiência. É cabível fazer breves
esclarecimentos sobre os principais avanços legais para uma
educação especial inclusiva.
O documento elaborado pelo Ministério da Educação (MEC),
intitulado de Política Nacional de Educação Especial: equitativa,
inclusiva e ao longo da vida (BRASIL, 2018), elenca, em nível
nacional, alguns dos principais marcos legais para a transformação
do sistema de ensino brasileiro em inclusivo. Dentre eles, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Lei nº 9.394/1996), ainda
em vigor, tem um capítulo específico sobre educação especial e
assinala como diretrizes: a inclusão, a valorização da diversidade, a
flexibilidade, a qualidade e a autonomia, assim como, a competência
para o trabalho e a cidadania. Embora seja um grande avanço, essa
lei ainda traz uma visão, de certa forma, distinta do que se entende
atualmente como educação especial inclusiva, pois ainda evidencia
processos de segmentação64 quanto aos educandos, pois:

64
Consoante Maria Tereza Égler, a lógica ainda “é marcada por uma visão determinista,
mecanicista, formalista, reducionista, própria do pensamento científico moderno, que
ignora o subjetivo, o afetivo, o criador, sem os quais não conseguimos romper com o velho
modelo escolar para produzir a reviravolta que a inclusão impõe”. (MANTOAN, 2006, p.
16)

342 Direitos Humanos


a proposta de um sistema educacional inclusivo
passa, então, a ser percebida na sua dimensão
histórica, enquanto processo de reflexão e prática,
que possibilita efetivar mudanças conceituais,
político e pedagógicas, coerentes com o propósito
de tornar efetivo o direito de todos à educação,
preconizado pela Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 2016, p. 8).

Também pode-se citar o Estatuto da Criança e do Adolescente


(Lei n. 8.069/90); o Plano Nacional de Educação (PNE) (Lei nº
10.172/2001); a Lei nº 10.436, de 2002, que reconhece como meio
legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais
(Libras); o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, em
2006, que objetivou a inclusão de temas relacionados às pessoas com
deficiência nos currículos das escolas; o Decreto nº 6.571, de 2008,
que dispõe sobre o atendimento educacional especializado (AEE) na
Educação Básica; e, mais recentemente, a Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), uma compilação
bem mais estruturada, ampla e coesa sobre acessibilidade e inclusão
das pessoas com deficiência, entre outros.

Não obstante os avanços referidos, no ano de 2008 é elaborada,


pelo MEC, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva, que é um documento que “acompanha os
avanços do conhecimento e das lutas sociais, visando constituir
políticas públicas promotoras de uma educação de qualidade para
todos os alunos” (BRASIL, 2008, p. 5). Essa política tem por objetivo
assegurar o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/ superdotação nas escolas regulares para possibilitar a
inclusão escolar e social deste grupo. É uma verdadeira mudança de
perspectiva quanto à inclusão ao reconhecer que:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 343


o movimento mundial pela inclusão é uma ação
política, cultural, social e pedagógica, desencadeada
em defesa do direito de todos os alunos de estarem
juntos, aprendendo e participando, sem nenhum
tipo de discriminação. A educação inclusiva
constitui um paradigma educacional fundamentado
na concepção de direitos humanos, que conjuga
igualdade e diferença como valores indissociáveis,
e que avança em relação à ideia de equidade formal
ao contextualizar as circunstâncias históricas
da produção da exclusão dentro e fora da escola
(BRASIL, 2008, p. 5).

Em âmbito internacional, tal movimento pela inclusão se


consolida, para além das reinvindicações de segmentos sociais
e civis, por meio de declarações e convenções deliberadas e
instituídas por organismos supranacionais, tais como a ONU e o
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (em
ambos o Brasil é signatário). Com destaque para a Declaração de
Salamanca, em 1994, que trata de princípios, políticas e práticas
das necessidades educativas especiais, e dá orientações para ações
em níveis regionais, nacionais e internacionais sobre a estrutura de
ação em Educação Especial. Em 1999, A Convenção Interamericana
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência65, proclama que as pessoas
com deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades
fundamentais que outras pessoas. Por último, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006,
afirma a responsabilidade dos países para garantir um sistema de
educação inclusiva em todas as etapas de ensino, reconhecendo-se
a transversalidade da educação especial.
65
Com a crescente mudança em relação ao movimento em prol das pessoas deficientes, o
termo “pessoas portadoras de deficiências” entra em desuso. O termo usado atualmente
é “pessoa com deficiência”. As pessoas não portam uma deficiência porque não é algo que
possa ser portado ou carregado ocasionalmente, tendo em vista que a deficiência é uma
condição da própria pessoa.

344 Direitos Humanos


A respeito da defesa da educação em âmbito internacional,
Amélia Regina Mussi Gabriel (2012, p. 26) defende que a educação
deve “capacitar todas as pessoas para a participação efetiva em uma
sociedade democrática, para uma subsistência digna” e assevera
que:

os direitos e garantias expressos na Constituição


brasileira não excluem outros decorrentes, por
exemplo, de tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte, sendo
estes de grande importância para a busca da
plena realização da dignidade da pessoa humana
(GABRIEL, 2012, p. 17).

A influência desse movimento supranacional tem


provocado mudanças profundas nas políticas educacionais no
Brasil, especialmente nas últimas duas décadas, e possibilitado a
implementação de políticas públicas para educação especial voltadas
para educação inclusiva, a fim de garantir à pessoa com deficiência
o pleno exercício de seus direitos fundamentais, historicamente
negligenciados.

A Carta Constitucional brasileira reconhece, portanto,


a educação como um direito fundamental de natureza social e
consagra a sua universalidade. É um direito público subjetivo e
deve ser constantemente cobrado para que o Estado concretize-o,
pois o Texto Constitucional atribui ao Poder Público obrigação
e a responsabilidade, por qualquer de suas esferas e com devida
cooperação, de efetivar a norma constitucional dirigente e
programática para garantir o acesso integral da sociedade a uma
educação de qualidade – em especial, neste trabalho, às pessoas
com deficiência. Isto implica a definição e implementação de
políticas públicas, planos e ações que objetivem consolidar um
sistema de educação especial na perspectiva inclusiva, fundado na

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 345


igualdade e na valorização das diferenças. A garantia a este direito
é, inquestionavelmente, fundamental à consolidação da cidadania,
do Estado Democrático de Direito e do pleno exercício dos direitos
humanos pelas pessoas com deficiência.

POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTOS


PROMOTORES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A compreensão da ideia de direitos fundamentais foi


desenvolvida na reconfiguração da comunidade política criada pelo
eurocentrismo com início na política de colonização, culminando,
infelizmente, na Segunda Guerra Mundial. A abstração em
que se tornou a comunidade de coassociados, denominado de
Estado-nação, deteriorou a justificativa racional para declarar a
superioridade de uns em relação a outros povos e declarou-se que
todas as pessoas são humanas e as constituições nacionais devem
assegurar esses direitos como garantias fundamentais.

O ponto de partida do processo de formação de qualquer


comunidade política, nas formulações habermasianas, são os
direitos humanos, direitos fundamentais (HABERMAS, 1997).
A concepção moderna de direito retira dos sujeitos a sobrecarga
das normas fundadas na moral e as transfere para um conjunto
de normas, o ordenamento jurídico, que deve compatibilizar as
liberdades de ação na constituição.

De acordo com Habermas (1997), existem critérios


fundamentais a serem observados para a formação do direito de
determinada comunidade política: iguais liberdades subjetivas de
ação; status de membro; possibilidade de postulação judicial de
direitos e da configuração politicamente autônoma de proteção
jurídica individual; direito à participação; e direitos sociais,

346 Direitos Humanos


técnicos e ecológicos garantidos. Todas essas garantias precisam
estar em perfeita harmonia, tendo em vista que formam um todo
uno e indivisível em que as liberdades de ação devem coexistir,
assegurando a todos os membros da comunidade política os mesmos
direitos humanos, positivados como direitos fundamentais, pois,
caso contrário, atingir um significa violar todos os demais direitos
e garantias.

Desta perspectiva, infere-se a essencialidade que em uma


sociedade pluralística – tal qual o Brasil –, no Estado Democrático de
Direito, quanto mais sujeitos individuais ou coletivos formadores da
sociedade discutam a legislação e a interpretação dessa legislação,
exercendo a autonomia política, mais legítimo e democrático se
torna esse processo. Para Habermas, um dos grandes problemas do
mundo contemporâneo é justamente a inclusão com sensibilidade
das minorias no debate democrático, bem como garantir a
efetividade dos direitos fundamentais construídos e estabelecidos
a todos os membros da nação, dotados de iguais direitos e iguais
liberdades – com destaque, nesta pesquisa, ao direito à educação.

Fundamenta-se, a partir da teoria habermasiana, o papel do


Estado para assegurar e concretizar todos os direitos fundamentais
dos cidadãos, especialmente aos que foram, historicamente,
marginalizados e segregados da participação social, tendo o seu
agir comunicativo tolhido, como as pessoas com deficiência. O
poder público deve promover essa intervenção na realidade social
por intermédio de políticas públicas que objetivem ao pleno gozo e
exercício dos direitos humanos.

O termo “Políticas Públicas” implica a existência de ações


pensadas e implementadas pelo Estado visando beneficiar
determinados segmentos sociais, ou seja, são interferências diretas
na realidade concreta para atender e garantir as necessidades
fundamentais dos sujeitos, os direitos sociais.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 347


Assim, assevera-se a centralidade das políticas públicas para
garantir os direitos fundamentais, principalmente no que tange
à universalização da educação. Essas políticas são fundamentais
para a transformação do sistema educacional, pois através delas
são desenvolvidas e implementadas diretrizes, normas, programas
para possibilitar uma educação inclusiva.

A educação, prerrogativa de todos e fundamental ao pleno


desenvolvimento da pessoa humana, é imprescindível ao pleno
exercício da cidadania e de outros direitos fundamentais decorrentes
deste. Portanto, as políticas públicas que visem à concretização
efetiva do acesso pleno à educação, particularmente a educação
especial inclusiva, são instrumentos integradores e promotores
de direitos humanos, consoante a teorização habermasiana de
integridade e indivisibilidade destes direitos, pois aquelas são meios
de garantir também os direitos e liberdades iguais, integradoras
dos critérios fundamentais (cf. supra) a serem observados para a
formação do direito de determinada comunidade política.

A educação especial inclusiva é fundamental ao pleno


desenvolvimento das pessoas com deficiência na medida em que:

a consciência do direito de constituir uma identidade


própria e do reconhecimento da identidade do outro
traduz-se no direito à igualdade e no respeito às
diferenças, assegurando oportunidades diferenciadas
(equidade), tantas quantas forem necessárias, com
vistas à busca da igualdade. O princípio da equidade
reconhece a diferença e a necessidade de haver
condições diferenciadas para o processo educacional
(BRASIL, 2001, p. 11).

Ainda sobre a assertiva, Canotilho (2003, p. 430) corrobora


que “o princípio da igualdade é não apenas um princípio de Estado

348 Direitos Humanos


de Direito mas também um princípio de Estado Social”. Para ele,
“o princípio da igualdade pode e deve considerar-se um princípio
de justiça social” (CANOTILHO, 2003, p. 430), assumindo relevo
enquanto princípio de igualdade de oportunidades e de condições
reais de vida.
À vista disso, uma política efetivamente inclusiva deve
objetivar a desinstitucionalização da exclusão, seja ela no espaço da
escola ou em outras estruturas sociais. Assim, a implementação de
políticas públicas inclusivas que pretendam ser efetivas e duradouras
devem incidir sobre a rede de relações que se materializam através
das instituições, já que as práticas discriminatórias que elas
produzem extrapolam, em muito, os muros e regulamentos dos
territórios organizacionais que as evidenciam (BRASIL, 2016).

Desta forma, faz-se necessário a estruturação de um sistema


de proteção social sólido que defina políticas públicas de inclusão
educacional e social do segmento das pessoas com deficiência,
sendo fundamentais para possibilitar o máximo desenvolvimento
técnico, artístico e cultural, essencial à plenitude da personalidade
humana, o livre exercício de direitos e garantias constitucionais e a
participação na construção do discurso coletivo na sociedade.

A compreensão da educação como um direito


de todos e do processo de inclusão educacional
numa perspectiva coletiva da comunidade escolar
reforça a necessidade da construção de escolas
inclusivas que contam com redes de apoio a inclusão.
[...] Os importantes avanços produzidos pela
democratização da sociedade, em muito alavancada
pelos movimentos de direitos humanos, apontam a
emergência da construção de espaços sociais menos
excludentes e de alternativas para o convívio na
diversidade. A capacidade que uma cultura tem
de lidar com as heterogeneidades que a compõe
tornou-se uma espécie de critério de avaliação de
seu estágio evolutivo, especialmente em tempos de

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 349


fundamentalismos e intolerâncias de todas as ordens
como este em que vivemos (PAULON; FREITAS;
PINHO, 2005, p. 5 e 7).

Diante da teoria habermasiana sobre os direitos humanos


projeta-se a educação especial inclusiva como direito humano
inerente aos princípios da dignidade e igualdade humana. O
Estado tem a responsabilidade de promover, progressivamente,
o acesso e permanência de todas as pessoas com deficiência ao
sistema educacional, respeitadas as identidades e respectivas
particularidades de cada sujeito. Ao não assegurar a concretização
plena do direito à educação, consoante ordena o Texto
Constitucional, esse direito é violado e, conforme a ideia de
integridade e indivisibilidade dos direitos humanos (HABERMAS,
1997), outras garantias são comprometidas, impossibilitando até os
direitos mais básicos de qualquer ser humano. É nessa perspectiva
que se compreende a devida relevância social e transformadora das
políticas públicas, instrumentos integradores e promocionais de
direitos fundamentais, que objetivem intervir na realidade social,
combater desigualdades e segregações históricas, promover a
participação plena na comunidade política e a garantia dos direitos
humanos aos deficientes.

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO FUNDAMENTOS


PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO: EFETIVIDADE
MATERIAL?

A educação é um direito humano indispensável e incondicional.


Os princípios constitucionais de dignidade, igualdade e pleno
desenvolvimento da personalidade humana consagram essa
garantia e deve ser promovida a todos. A Constituição impõe ao

350 Direitos Humanos


Estado prestações positivas de interferência na realidade social
para assegurar esses direitos aos membros da nação, possibilitando
o gozo e exercício das garantias fundamentais. Para cumprir tal
função, a definição e implementação de políticas públicas para
possibilitar a concretização dos direitos fundamentais e sociais,
como a educação especial inclusiva, é essencial para a efetivação
material dos princípios constitucionais.

O Estado deve propiciar e assegurar o mínimo existencial


aos cidadãos, ou seja, o conjunto de condições, bens e utilidades
básicas imprescindíveis para uma vida digna, independentemente
da existência de lei, pois isso é inerente ao ser humano. O
Estado não pode eximir-se dessa responsabilidade em função do
princípio da reserva do possível66, pois a concretização dos direitos
fundamentais é um imperativo social e constitucional basilar do
Estado Democrático de Direito e, deste modo, deve empenhar todos
os esforços e recursos para promover o exercício pleno dos direitos
humanos por todas as pessoas.

Nessa perspectiva, as políticas públicas educacionais inclusivas


são impreteríveis para promover condições mínimas para uma vida
digna às pessoas com deficiência. Com o advento da Constituição
Federal de 1988, foi possível avanços legais e formais para
proporcionar o direito à educação aos deficientes. Além dos planos,
diretrizes educacionais, políticas para modificação do sistema de
ensino entre outros, há implementação de ações afirmativas de
acesso ao ensino superior, reserva legal para inclusão de deficientes
no mercado de trabalho, acessibilidade estrutural e urbana, dentre
diversos outros avanços, principalmente nas duas últimas décadas
– com a União sob direção de governos progressistas: os governos
de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff –, objetivando
66
A concretização dos direitos fundamentais e sociais exige prestações positivas do
Estado e o Princípio da Reserva do Possível justifica a limitação do Estado em razão de suas
condições socioeconômicas e estruturais, representando, pois, um limitador à efetividade
de tais direitos.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 351


concretizar direitos básicos e inerentes a todos os cidadãos por
meio de políticas públicas de inclusão educacional e social.

Nesse cenário, a educação inclusiva tornou-se pauta


constante nos debates educacionais brasileiros,
impulsionando novas formulações que reorientam
o apoio técnico e financeiro, no sentido de prover
as condições para a inclusão escolar dos estudantes
público-alvo da educação especial nas redes públicas
de ensino. Assim, o conceito de acessibilidade é
incorporado como forma de promoção da igualdade
de condições entre todos (BRASIL, 2016, p. 12).

Entretanto, apesar desses avanços reconhecendo a


essencialidade do direito à educação, em especial às pessoas
com deficiência, ainda há grande distanciamento entre o Texto
Constitucional e a realidade social brasileira, pois os desafios
e dilemas em torno da inclusão escolar e social efetiva ainda
persistem. Além de garantir a destinação de vagas aos deficientes, é
necessário que o poder público, juntamente com a escola, propicie
condições de permanência desse alunado, com uma educação de
qualidade, em todos os sentidos e acepções, e que possa ser capaz
de incluir, evitando a simples e inadequada integração.

Infelizmente, não estamos caminhando


decisivamente na direção da inclusão, seja por
falta de políticas públicas de educação apontadas
para esses novos rumos, seja por outras razões
menos abrangentes, mas relevantes, como pressões
corporativas, ignorância dos pais, acomodação dos
professores (MONTOAN, 2006, p. 39).

352 Direitos Humanos


Mesmo com a implementação de políticas inclusivas nos
últimos anos, eficazes em vários aspectos, são necessárias novas
discussões coletivas, com participação de todos os segmentos da
sociedade, sobre os rumos da educação especial inclusiva. Há,
assim, a necessidade de releitura das políticas públicas em curso e
que, para que se pretendam efetivas, precisam ser constantemente
avaliadas, revistas e aprimoradas, bem como a definição de
novas políticas públicas, para que estejam em conformidade
com as necessidades sociais e possam incluir, verdadeiramente,
as pessoas com deficiência, seja no ambiente acadêmico seja
na participação plena na sociedade, exercendo seus direitos e
garantias fundamentais. Além disso, para que o direito à educação
seja possível materialmente, é fundamental uma rede de proteção
social por meio de políticas públicas que integrem várias interfaces
complementares dos direitos sociais, como a saúde e a assistência
social.

A educação constitui elemento indispensável para a


transformação social, redução das desigualdades, igualdade de
oportunidades e justiça social.

Em nossa sociedade, ainda há momentos de séria


rejeição ao outro, ao diferente, impedindo-o de
sentir-se, de perceber-se e de respeitar-se como
pessoa. A educação, ao adotar a diretriz inclusiva
no exercício de seu papel socializador e pedagógico,
busca estabelecer relações pessoais e sociais de
solidariedade, sem máscaras, refletindo um dos
tópicos mais importantes para a humanidade,
uma das maiores conquistas de dimensionamento
“ad intra” e “ad extra” do ser e da abertura para o
mundo e para o outro. Essa abertura, solidária e sem
preconceitos, poderá fazer com que todos percebam-
se como dignos e iguais na vida social (BRASIL,
2001, p. 10).

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 353


A efetivação de uma educação inclusiva capaz de atender às
necessidades de todos os alunos é um objetivo complexo nesse
contexto secular. Nem menos complicada é a tarefa do Estado
que deve universalizar a educação, garantindo acesso de todas as
pessoas às políticas que lhes cabem por direito, inerentes à vida
digna (PAULON; FREITAS; PINHO, 2005).

Assim, é imperioso que o processo de inclusão escolar


e social pleno das pessoas com deficiência exige mudanças
sistêmicas e estruturais no sistema educacional brasileiro, bem
como transformações no imaginário social construído no discurso
coletivo (HABERMAS, 1997). Consoante Montoan (2006, p. 19), “a
inclusão implica uma mudança de perspectiva educacional, porque
não atinge apenas os alunos com deficiência e os que apresentam
dificuldades de aprender, mas todos os demais, para que obtenham
sucesso na corrente educativa geral.”

Portanto, a garantia do direito à educação inclusiva não


depende apenas do compromisso do Estado, mas de todos os
membros e segmentos da sociedade, exercendo seu direito subjetivo
público de exigir do Estado efetividade nas prestações positivas para
garantir os direitos fundamentais e sociais, sob pena de instituir-se
apenas um discurso formal e retórico sem a garantia material de
condições dignas e iguais para todos, contrariando as disposições
constitucionais.
O discurso inclusivo que temos atualmente, de acordo
com a Declaração de Salamanca, é de que “a escola deve acolher
todas as crianças, independentemente de suas condições físicas,
intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras” (BRASIL,
1994, p. 3). No entanto, é necessário um olhar sensível e voltado
para o respeito à autodeterminação, identidade e peculiaridade de
cada sujeito, evitando políticas públicas pautadas em um discurso
de homogeneidade indiscriminada.

354 Direitos Humanos


A construção de uma sociedade inclusiva, com as minorias
no centro das políticas públicas e com respeito à diversidade,
é imprescindível para a efetividade dos direitos humanos,
principalmente das pessoas com deficiência. Ainda há muitos
impasses e desafios a serem superados para que o Estado garanta
o direito pleno à educação para todos os segmentos sociais, mas
àquele não pode olvidar nem se eximir da responsabilidade e
obrigação de garantir a concretização do direito à educação inclusiva.
É preciso a definição de novas políticas educacionais, bem como
a releitura das que estão em vigor, para promover efetivamente
o direito universal à educação, particularmente a educação
especial inclusiva às pessoas com deficiência, imbricado no liame
constitucional dirigente. Tal direito é primordial para o exercício
de outras garantias fundamentais que constituem o núcleo do
mínimo existencial para que se possa ter uma vida digna, exercendo
a cidadania e participando ativamente da sociedade, fortalecendo a
Democracia e o Estado Democrático de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tem-se, portanto, a garantia educacional inclusiva como um


direito inerente à dignidade humana, à igualdade e aos princípios
fundamentais e sociais da República. O acesso de todas e todos a uma
educação de qualidade deve ser o princípio norteador de qualquer
nação. A educação especial inclusiva às pessoas com deficiências
constitui-se como direito humano incondicional e indispensável,
assegurado por princípios e normas nacionais – constitucionais e
infraconstitucionais – e internacionais.

A Constituição Cidadã de 1988 consagra os direitos sociais


e, dentre eles, a garantia universal do acesso à educação, direito
fundamental social, independentemente de origem, raça, etnia,

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 355


sexo, cor, credo, idade ou necessidade educacional especial. Isso
implica um modelo, constitucionalmente delineado, de cooperação
entre todos os entes federados para efetivar o direito social à
educação, em particular à educação especial inclusiva.

Abordando aspectos da Teoria dos Direitos Fundamentais,


esclareceu-se a importância do direito à educação inclusiva como
parte de um todo, indivisível e harmônico, em que se encontram os
direitos fundamentais. Não há como afirmar outros direitos quando
este é violado, pois atingir um significa violar todos.

Diante do problema de pesquisa proposto, aponta-se na


direção de que as políticas públicas de inclusão educacional
adotadas pelo poder público brasileiro ainda não são capazes de
concretizar e promover plenamente os fundamentos e garantias
constitucionais de acesso à educação, particularmente à educação
especial inclusiva às pessoas com deficiência. Embora haja a criação
de políticas públicas positivas e efetivas pelo Estado brasileiro
para transformações sociais e no sistema educacional como
forma de garantir esse direito, estas precisam ser, regularmente,
avaliadas, revistas e aprimoradas, bem como a definição de novas
políticas educacionais, tendo em vista a complexidade das relações
sociais e as especificidades de cada sujeito em detrimento de uma
homogeneidade indiscriminada, com igualdade e valorização das
diferenças.

Como parte integrante de uma narrativa coletiva sobre


direitos humanos, este capítulo corrobora com o ideal dos direitos
fundamentais como direitos fundados na dignidade, igualdade e
no pleno desenvolvimento da personalidade humana, inerentes
a qualquer pessoa. O direito à educação inclusiva integra o rol de
direitos humanos, o que implica na sua defesa integral e integrada
por todos os setores da sociedade, principalmente pelo acadêmico.
Assim, estudos e pesquisas nesse campo interdisciplinar fortalecem
o movimento e a luta pela concretização das garantias constitucionais

356 Direitos Humanos


e impõe ao próprio direito perspectivas mais tangíveis de seu papel
como instrumento para promover a igualdade de oportunidades, a
justiça social e o pleno desenvolvimento da personalidade humana
e da comunidade política, assegurando iguais direitos e iguais
liberdades a todas as pessoas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

______. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades


educativas especiais. Brasília: UNESCO, 1994. Disponível em:
<https://urless.in/Khd19>. Acesso em: 28 ago. 2020.

______. Ministério da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro


de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB.
Disponível em: <https://urless.in/hTLWA>. Acesso em: 28 ago.
2020.

______. Ministério da Educação. Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de


2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências.
Disponível em: <https://urless.in/8Vujh>. Acesso em: 02 set. 2020.

_______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.


Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
Parecer CNE/CEB nº 017. Brasília: MEC/CNE, 2001. Disponível
em: <https://urless.in/rhkyP>. Acesso em: 05 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 357


______. Ministério da Educação. Política nacional de educação especial
na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: MEC/SECADI, 2008.
Disponível em: <https://urless.in/E8Ifw>. Acesso em: 30 ago. 2020.

______. Ministério da Educação. A consolidação da inclusão escolar no


Brasil: 2003 a 2016. Brasília: MEC/SECADI, 2016. Disponível em:
<https://urless.in/9a0PJ>. Acesso em: 01 set. 2020.

______. Ministério da Educação. Política nacional de educação


especial: equitativa, inclusiva e ao longo da vida. Brasília: MEC/
SECADI, 2018. Disponível em: <https://urless.in/thwzC>. Acesso
em: 30 ago. 2020.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e


vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas
constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed. 1994.

______. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:


Almedina, 2003.

GABRIEL, Amélia Regina Mussi. A Corte Interamericana de Direitos


Humanos e os direitos fundamentais sociais. In: LUNARDI, Soraya
(Coord.). Direitos fundamentais socias. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
p. 15-39. (Coleção Fórum de Direitos Fundamentais).

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e


validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997.

358 Direitos Humanos


MANTOAN, Maria Tereza Égler. Inclusão Escolar: o que é? Por quê?
Como fazer? 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos


das Pessoas com Deficiência. ONU, 2006. Disponível em: <https://
urless.in/WiiPN>. Acesso em: 29 ago. 2020.

PAULON, Simone Mainieri; FREITAS, Lia Beatriz de Lucca; PINHO,


Gerson Smiech. Documento subsidiário à política de inclusão. Brasília:
MEC/SEESP, 2005. Disponível em: <https://urless.in/4OlzS>.
Acesso em: 03 set. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 359


DIREITO À EDUCAÇÃO: FATORES DESENCADEADORES DA
NÃO ALFABETIZAÇÃO

Amanda da Silva Costa

INTRODUÇÃO

O presente capítulo tem o intuito de mostrar, por meio do


relato da monitoria do programa Residência Pedagógica67 (RP),
da Universidade Federal do Piauí (UFPI), os diversos fatores
relacionados à não alfabetização de crianças do ensino fundamental.

A pesquisa tem como principal pauta o processo de


alfabetização e a vivência que foi realizada com duas crianças do 5°
ano, que não sabiam ler e escrever, na Escola Municipal Deputado
Antônio Gayoso, na cidade de Teresina, capital do Piauí.

No trabalho de campo desenvolvido, as duas crianças tiveram


um atendimento particularizado em uma sala de leitura que a
escola possui. Durante essa experiência fora de sala com atividades
intensificadas e diferenciadas para esses alunos, observou-se uma
mudança comportamental destes, pois começaram a interagir
mais durantes as atividades, além de apresentarem um grande
avanço na leitura e na escrita e, consequentemente, nos índices de
aprendizagem.

Essas mudanças geraram questionamentos quanto aos


motivos que levaram essas crianças a sofrerem essas modificações
em seu comportamento, prejudicando ou contribuindo para o
67
A Residência Pedagógica (RP) tem como objetivo induzir o aperfeiçoamento da
formação prática nos cursos de licenciatura, promovendo a imersão do licenciando na
escola de educação básica, a partir da segunda metade de seu curso.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 361


seu processo de aprendizagem. E foi a partir dessas análises que
foi possível destacar os seguintes fatores relacionados à não
alfabetização: a escassez de um ensino de qualidade; o tratamento
do aluno como um número estatístico; desmotivação por fatores
sociais e o preconceito e não adequação à sua variação linguística.
Essas condições precarizam e cerceiam o direito e o acesso a uma
educação de qualidade.

Esta pesquisa justifica-se como meio de contribuir para


uma melhor qualidade no ensino, seja por meio das ações práticas
realizadas, ou mesmo, por meio dos estudos que servirão de base
para outros profissionais. Ressalta-se ainda que, antes desse trabalho
intensificado dos Residentes com estas crianças, os professores
não viam possibilidades delas continuarem nessa mesma turma,
pois suas deficiências em leitura e escrita faziam com que elas se
isolassem da turma, não conseguindo avançar na compreensão dos
conteúdos trabalhados em sala de aula com os outros alunos, ou até
mesmo chegando a evasão escolar.

METODOLOGIA

A pesquisa vivenciada foi realizada no programa Residência


Pedagógica desde agosto de 2018, mas se explanará nesse capítulo
sobre o trabalho realizado que se iniciou em outubro de 2018,
com reuniões e esclarecimentos sobre ele. Após o contato com as
escolas, iniciou-se a observação em uma turma de 5º ano no Ensino
Fundamental.

No momento da observação, estabeleceu-se contato com a


sala de aula e auxiliou-se a professora regente da turma, ao mesmo
tempo em que foram selecionados, para fins de pesquisa, os alunos
que apresentavam dificuldades. Já com algumas semanas de

362 Direitos Humanos


observação e convívio com os alunos, juntamente com a Preceptora,
diagnosticou-se os alunos que apresentavam mais dificuldades em
relação à leitura e à escrita e, assim, não conseguiam acompanhar
o ritmo da turma. A partir da identificação dos discentes com
problemas de aprendizagem, os planejamentos e atividades
passaram a envolver a leitura, a oralidade e a escrita tendo como
base os conteúdos bimestrais determinados pela escola, escolhendo-
se temas apresentados em gêneros textuais diversificados.

No planejamento, as atividades desenvolvidas com as crianças


respeitaram o ritmo de cada uma, fazendo com que participassem
das leituras e das atividades propostas e, no momento de fixarem
os conteúdos, cada uma recebeu a atividade compatível com
sua necessidade, dando as condições para que superassem suas
dificuldades – ainda não identificadas até então – e avançassem em
seus conhecimentos.

Desse modo, a Residente era orientada semanalmente na UFPI


e também na escola, onde a Professora Preceptora acompanhava
os trabalhos em sala de aula. As atividades propostas para as
crianças eram aplicadas de acordo com o conteúdo do livro didático
trabalhado na escola e se dava conforme as necessidades das
crianças. Vale ressaltar que as crianças atendidas pela Residência
Pedagógica receberam atenção individualizada.

ALFABETIZAÇÃO: A PREOCUPAÇÃO COM A QUALIDADE

A busca pela qualidade da escolarização básica é uma


preocupação constante no Brasil, tanto no meio acadêmico através de
pesquisas para produção científica, estudos, seminários, simpósios,
quanto no importante mister que envolve a área educacional em
sala de aula.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 363


A alfabetização é muito mais que uma etapa da vida escolar,
ela tem reflexos ímpares para discentes e docentes. Assim, “[...]
alfabetizar é ensinar a ler e escrever. [...] o segredo da alfabetização
é a leitura (decifração)”. (CAGLIARI 1999, p. 104).

Dentro dos direitos sociais encontramos o Direito à educação,


reconhecido, em 1988, na Constituição Federal. É importante
ressaltar sua função como um direito fundamental de toda e
qualquer pessoa, pois é um princípio basilar para o desenvolvimento
humano. Segundo o Art. 6º da Constituição Federal Brasileira:

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,


o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição (BRASIL, 2020).

Sendo ainda corroborado pelo Art. 205, também presente na


Constituição Federal, afirmando que:

A educação, direito de todos e dever do Estado


e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho (BRASIL, 2020).

Fica portanto evidente a obrigação do Estado em promover


plenas condições de acesso à educação, independentemente de
qualquer fator social, econômico, dentre outros. Por essa razão não
basta a alfabetização, é necessário que ela seja de qualidade. Nessa
esteira, quanto à qualidade e ao método de ensino, é consenso que:

364 Direitos Humanos


Se a escola [...] for clara e objetiva, priorizando a
decifração da escrita como segredo da alfabetização e
dedicando uma hora por dia às atividades específicas,
todos os alunos aprenderão a ler (com mais ou menos
dificuldades) em dois ou três meses de trabalho.
Esse é o tempo suficiente para que os alunos
aprendam a decifrar o que está escrito. Quem sabe
fazer isso, está tecnicamente falando, alfabetizado.
O resto é o desenvolvimento dessa habilidade e a
complementação com conhecimentos que serão
aprendidos depois. (CAGLIARI, 1999, p.109).

O processo de alfabetização é bastante complexo. Quando


o professor se limita ao método tradicional, não propicia as
condições necessárias para o desenvolvimento da oralidade e para
a aprendizagem da linguagem escrita de forma mais eficaz. Sobre
a alfabetização, consideramos o processo de construção da língua
e seus aspectos notacionais, em que se prioriza a aprendizagem/
entendimento das letras, sons, sílabas, palavras, frases, textos,
gêneros, normas ortográficas e gramaticais.

É importante ressaltar que, mesmo o professor sendo uma


base importante nesse processo de aquisição de conhecimento, não
é somente o educador que determinará a eficiência desse processo
de ensino.
Há inúmeros fatores que corroboram para a efetivação,
de fato, dessa alfabetização. Nesse contexto, é necessário que
todos, incluindo a comunidade escolar, tenham ciência das leis
que complementam e regulam o direito à educação, sendo elas
apresentadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Ocorre que, quando se trata de alfabetização com qualidade,


sempre se aborda o mesmo viés, que é alvo de reflexão por Soares
(2018, p. 52):

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 365


É que as análises e discussões sobre a qualidade da
alfabetização, no contexto da escolarização básica,
têm-se feito, entre nós, basicamente sob duas
perspectivas: ou se buscam os fatores determinantes
da qualidade da alfabetização, ou se busca aferir essa
qualidade, por meio da avaliação dos resultados do
processo de ensino e aprendizagem da língua escrita.

Ainda de acordo com a reflexão de Soares (2018), deve-


se atentar para o fato de que nem sempre é possível mensurar a
qualidade do ensino apenas baseando-se em avaliações, como é o
caso do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Ainda que os dados referentes ao IDEB apontem um determinado
resultado, é importante que este esteja de fato refletindo a realidade
educacional. Nesse contexto, corre-se o risco de que a criança não
seja o sujeito no processo de alfabetização, mas tão somente, objeto
dele. Ela pode acabar sendo apenas avaliada por seu desempenho,
por meio de indicadores de grau de qualidade do processo de
alfabetização através de índices, como: de exclusão, evasão, tipo
de material utilizado em sala de aula, repetência dos alunos. Essa
realidade acaba por não definir os conhecimentos, as atividades,
as aprendizagens, as habilidades das quais a criança foi excluída
na escola, ou se recusou a apreender, ou não adquiriu de forma
satisfatória por diversos motivos.

O que tem dificultado a aprendizagem, segundo Andaló


(2000), é que, em sala de aula, as crianças só escrevem porque o
professor manda, não compreendendo o propósito desta atividade.
“[...] Podemos acrescentar ainda que, no processo de construção da
escrita, a primeira necessidade da criança é a de compreender o que
está escrito (leitura), e a segunda, a de escrever, conforme um “para
quê” (ANDALÓ, 2000, p. 53).

O enfrentamento do problema da qualidade da alfabetização


se dá, não raro, sempre da mesma forma, conforme explana Soares
(2018, p.52):

366 Direitos Humanos


Nessa perspectiva, o problema da qualidade da
alfabetização é enfrentado através de propostas de
intervenção que visem atuar sobre esses fatores,
tais como mudanças curriculares; substituição
de métodos de alfabetização em uso por outras
alternativas metodológicas; atribuição, ao sistema
escolar, de serviços que enfrentem os fatores
extraescolares – alimentação, atendimento à saúde,
à higiene etc.; distribuição de material didático às
escolas; programas de formação e aperfeiçoamento
de alfabetizadores etc.

Segundo Soares (2018), fica claro a relação da educação


com diferentes fatores externos, a exemplo, podemos citar:
Ambiente social, fatores políticos, fatores sócio emocionais, fatores
financeiros, etc.

O tradicionalismo do ensino e muitos dos fatores externos


impedem que se analise profundamente a criança que também faz
parte desse processo. Impedindo a reflexão de questionamentos
importantes, como: por que esse aluno, em particular, está com
dificuldade? O conteúdo e a metodologia devem ser os mesmos
para todos? Os fatores externos influenciam o aprendizado desse
aluno? Se sim, como?

Nesse contexto, caracterizar e particularizar os sujeitos da


aprendizagem têm sido um dos grandes desafios, mas muitas vezes
esquecido, na busca pela qualidade da alfabetização, baseada em
índices e números que não refletem sua realidade.

DISCUSSÃO E RESULTADOS

De acordo com as reuniões com a Preceptora e os residentes


pedagógicos, ficou clara a situação em que a maioria das crianças

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 367


que frequentam a escola vivem, fator esse, que deve ser levado
em consideração. A maioria dos alunos, devido às condições
materiais, sociais e até mesmo problemas familiares, mostram-se
desmotivadas para o estudo. Destaca-se que a escola localiza-se em
uma zona periférica da cidade de Teresina, onde a maior parte das
famílias possuem uma baixa renda e enfrentam problemas sociais.

Portanto, em nossa concepção, o papel da escola, nesse caso,


juntamente com os Residentes Pedagógicos, é de tentar motivar os
alunos para que se consiga inseri-los no processo educacional de
forma que se sintam à vontade para participar e conseguir efetivar
a sua aprendizagem.

Acredita-se ainda que um trabalho que envolva atividades de


acordo com as necessidades das crianças e atenção individualizada
poderá contribuir para a aquisição profícua da leitura e escrita.
Algumas técnicas acabam sendo pouco exploradas devido ao
tempo e à necessidade de integração entre a escola, o programa
RP e as necessidades do aluno. A ideia de ler e contar histórias e,
posteriormente, pedir que as crianças recontem e as transcrevam,
ajudou bastante nesse processo, pois permitiu que elas contem
fatos que aconteceram com elas, além de escreverem, o que pode
ser mais atrativo ainda, pois nesta segunda opção ela escolherá o
assunto a ser contado.

Procedendo a avaliação das atividades propostas e


desenvolvidas de forma individualizada, observou-se que os alunos,
que antes enfrentavam grandes dificuldades, responderam bem aos
objetivos traçados.

Dentre as conquistas dos alunos, destaca-se que foi notório


um avanço no processo de leitura e uma dedicação mais esmerada
na realização das atividades propostas em sala de aula.

Entretanto, é importante observar o papel que o Estado tem


que desempenhar para que a alfabetização seja concluída de fato,

368 Direitos Humanos


por meio de investimentos na infraestrutura, com incentivos aos
professores, com o suporte de material didático de qualidade, com
a inclusão da família na escola e com formações continuadas para os
profissionais da educação.

A residência pedagógica é uma das ações que liga a universidade


e a escola, mas seria mais proveitoso se essa ligação ocorresse entre
sociedade, família, Estado, escola e universidade.

O SUJEITO DA ALFABETIZAÇÃO E A IMPOSIÇÃO DA NORMA

Conforme dito por Soares (2018), os critérios para análise


da qualidade da alfabetização, dificilmente incluem a criança como
um sujeito com características particulares e individuais. A criança
sofre influência do meio e da cultura, da família e dos amigos e isso
influencia na sua variação linguística e na forma como ela apreende
a alfabetização e o letramento. Para Bagno, a variação é entendida
como:

O que acontece é que em toda comunidade linguística


do mundo existe um fenômeno chamado variação,
isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em
todos os lugares, assim como nem todas as pessoas
falam a própria língua de modo idêntico o tempo
todo (BAGNO, 2015, p. 79).

No tocante às influências e vivências que geram as variações


e que perpassam o ensino aprendizagem, Soares (2018, p. 91)
ressalta que:

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 369


É que, estando o fracasso escolar vêm desenvolvendo
sobre alfabetização maciçamente concentrado
nas crianças pertencentes às camada populares,
não há como negar que esse fracasso se deve,
fundamentalmente aos problemas decorrentes da
distância entre a variedade escrita do dialeto padrão
e os dialetos não padrão de que são falantes essas
crianças. Assim, tanto no Brasil quanto em outros
países, os estudos linguísticos sobre alfabetização,
partindo do pressuposto de que há relação entre
língua e estratificação social, vêm tentando descrever
os dialetos de comunidades de fala, correlacionando-
os com variáveis sociais, particularmente com
a variável nível socioeconômico, e contrastando-
os com a língua escrita, para encontrar, nesse
contraste, explicações das dificuldades que falantes
pertencentes a determinados grupos sociais
enfrentam, no processo de aquisição da língua
escrita (grifos do autor).

A função social da escrita é determinada em razão da estrutura


social do indivíduo. A sociedade interfere na escrita e vice-versa, por
isso a importância de se analisar as características particulares de
cada sujeito a quem se propõe alfabetizar. Segundo Bagno (2015), a
escola pode causar um enorme prejuízo ao aprendizado dos alunos
quando não reconhece a diversidade do português falado no Brasil
e impõe sua norma linguística como se ela fosse a língua comum
a todos os brasileiros, independentemente de sua idade, origem
geográfica, situação econômica, grau de escolarização etc. No trecho
a seguir, o autor ainda afirma a heterogeneidade da língua e sua
utilização em todos os níveis sociais.

O fato é que, como a ciência linguística moderna já


provou e comprovou, não existe nenhuma língua no
mundo que seja “una”, uniforme e homogênea. O
monolinguismo é uma ficção. Toda e qualquer língua
humana viva é, intrinsecamente e inevitavelmente,

370 Direitos Humanos


heterogênea, ou seja, apresenta variação em todos
os seus níveis estruturais (fonologia, morfologia,
sintaxe, léxico etc.) e em todos os seus níveis de uso
social (variação regional, social, etária, estilística
etc.) (BAGNO, p. 27, grifos do autor).

Ainda sobre esse tema, continua Soares (2018, p. 94):

Estudos e pesquisas a respeito da alfabetização no


Brasil, sob essa perspectiva das funções sociais
da escrita, são urgentes: é necessário conhecer o
valor e a função atribuídos à língua escrita pelas
camadas populares, para que se possa compreender
o significado que tem, para as crianças pertencentes
a essas camadas, a aquisição da língua escrita—
esse significado interfere, certamente, em sua
alfabetização.

Assim é que a demanda pela qualidade da alfabetização deveria


demandar muito mais a análise das características e vivências
do sujeito do que a pura e simples observação da metodologia e
ferramentas empregadas no trabalho em sala de aula. Não se pode
ensinar uma língua que não tem relação com o cotidiano do aluno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio do presente trabalho foi encontrar as condições


determinantes na alfabetização deficiente ou inexistente em
crianças. Como participantes, dois estudantes do 5° ano da Escola
Municipal Deputado Antônio Gayoso foram alfabetizados com

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 371


o intuito de se estudar o que acontecia na conjuntura da não
alfabetização naquela série.

Constatou-se um avanço significativo no processo de leitura


e escrita dessas crianças e uma maior interação dentro e fora da
sala de aula, desde as participações durante as aulas até nas suas
relações pessoais com os colegas de classe.

Conforme se pode verificar, se conseguiu descrever muitos


aspectos formativos desse contexto como, por exemplo, a falta
de esforços para construir uma educação de maior qualidade, a
equiparação do aluno a um conjunto de valores estatísticos, o
preconceito linguístico e a lacuna deixada quando se ignora a língua
realmente falada pelo aluno. Soma-se a esses, o fator desigualdade
sócio econômica, a qual é decisiva no que tange à privação e às
deficiências de aplicação e concretização do direito a uma educação
digna.

A longo prazo, uma alfabetização eficiente é capaz de propiciar


inclusão da pessoa na sociedade, seja no mercado de trabalho ou no
exercício da cidadania e dos direitos civis, políticos, sociais. Se protege
com isso, os próprios direitos da pessoa humana, representados
aqui como o direito à educação. Constata-se a indispensabilidade
da educação como auxiliadora na busca por igualdade.

REFERÊNCIAS

ANDALÓ, A. Didática da língua portuguesa para o ensino


fundamental, alfabetização, letramento, produção de texto
em busca da palavra-mundo. São Paulo: FTD, 2000.

372 Direitos Humanos


BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 56ª ed. rev. e ampliada.
São Paulo. Parábola Editora, 2015.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 out. 2020.

CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU. São


Paulo: Scipione, 1999.

MENDONÇA, Onaide Schawartz; KODAMA, Katia Maria Roberto


de Oliveira. Alfabetização: por que a criança não aprender a ler e
escrever? Revista Ibero Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v.11, n. esp. 4, p. 2448-2464, 2016. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.21723/riaee.v11.n.esp4.9202>. ISSN:
19825587.

SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. 7ed., 2°


reimpressão. São Paulo. Contexto, 2018.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 373


O PAPEL DO DIREITO EM FACE DA SUBALTERNIZAÇÃO
CULTURAL BRASILEIRA EM TEMPOS DE PANDEMIA DA
COVID-19

Carla Santana Gonçalves

Thiago Pereira de Carvalho

INTRODUÇÃO

Um vírus descoberto em Wuhan, na China, alastrou-se pelo


mundo levando consigo uma série de problemáticas para diversos
setores que compõe as sociedades hodiernas. Este, chamado
popularmente de Covid-19, é uma nova variação do Coronavírus,
cientificamente intitulado de SARS-CoV-2, apresentando como
sintomas, tosse, febre, coriza, dor de garganta, dificuldade para
respirar, perda de olfato, alteração do paladar, dentre outros.
Segundo dados do epidemiologista Marc Lipsitch, diretor do Center
for Communicable Disease Dynamics (CCDD), da Universidade de
Harvard, a doença possui um percentual de contágio considerável,
entre 2 e 3 graus (PIAUÍ, 2020), sendo considerado moderado. Isso
porque o vírus se propaga nas comuns e recorrentes interações
humanas, gerando uma preocupação maior ainda, pois emergia a
necessidade de readequações nos contatos entre as pessoas.

A rapidez e os altos números de contagiados pela doença gerou


uma preocupação mundial, em face das problemáticas acarretadas
pelo vírus, principalmente, pelo temor do não subsidio no setor
da saúde, beirando ou muitas vezes chegando a colapsar, além
da preocupação com o setor econômico das nações, o que, desde
o princípio, era de conhecimento dos economistas, sua queda e

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 375


instabilidade. Em verdade, o planeta se deparou com uma situação
imprevista, mesmo sabendo historicamente dos mais diversos
surtos e pandemias nos séculos passados, as ações por parte da
sociedade e seus governantes tiveram que ser distintas, em vista da
realidade evolutiva em que se vive, como as tecnologias, vivências
sociais e estruturação políticas em vigor.

Neste enfoque, observa-se uma subalternização de


importância tanto por parte da sociedade quanto, principalmente,
por parte do governo, referente aos amparos e subsídios destinados
ao setor cultural. Este que, visivelmente, foi e continua sendo
o escape para as milhões de pessoas oclusas em suas residências
durante meses, as quais se ocupam e passam a maior parte do tempo
consumindo as concepções artísticas, objetivando entretenimento,
bem como um melhor controle da saúde mental.

Logo, veio à tona a discussão de um olhar cauteloso para


o setor da cultura, o Governo tem que prestar auxílio a todos os
demais setores. Não só deve pensar na saúde e economia, aliás a
cultura é um dos alicerces econômicos do país, bem como – será
aprofundado neste trabalho – ela deve ser, também, respaldada
pelo poder público.

No entanto, como se sabe, em tempos normais,


especificamente, anteriores à pandemia, a maioria das
manifestações culturais são dotadas de aglomerações e constante
contato humano: feiras, shows musicais, apresentações teatrais, e
demais expressões. Todas estas se tornaram inconcebíveis devido à
pandemia, sendo suspensos todos os eventos culturais para conter
e manter a integridade tanto dos artistas, quando do seu público,
objetivando impedir o alastramento do vírus e conceder maior
controle do poder público sobre a pandemia e propiciar um melhor
enfrentamento e tratamento dos casos da doença.

376 Direitos Humanos


Tal medida, a princípio, foi vista como necessária. No
entanto, com o passar dos meses a falta de manutenção por parte
do governo, ocasionou nos profissionais da cultura um desconforto,
por não conseguirem subsídios para auxiliá-los no período em que
estão sendo incapazes de trabalharem e produzirem rendimentos
próprios.

Em vista desta situação, será retratado neste capítulo, no


primeiro item, as adversidades vivenciadas pelos artistas e todos
os profissionais envolvidos nesse setor, demonstrando as maneiras
que vêm criando alternativas para sobrevivência já com a situação
de suspensão imposta pelo governo e demais autoridades da saúde.

No segundo item, serão descritas as medidas governamentais


que possuem o intuito de subsidiar o setor, como o direcionamento
de verbas e possíveis alternativas de trabalho, com adequações
para preservar a saúde dos envolvidos. Por fim, no terceiro, será
questionada a aplicabilidade do dever ser jurídico em face da
pandemia com enfoque na normativa dos direitos à cultura, como
as legislações que amparam a prática cultural e as alternativas
que devem ou deveriam já ter sido viabilizadas pelo Direito para
garantir a integridade profissional e, consequentemente, humana
dos envolvidos no setor.

Concluiu-se, por fim, que as dificuldades recorrentes no


setor cultural devem ser amparadas e ao máximo solvidas pelas
autoridades que compõem a federação, ou seja, um respaldo dos três
poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário; a fim de proporcionar
garantias mínimas de sobrevivência e impulso à sua recuperação
aos poucos com o gradual retorno de suas atividades.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 377


CULTURA BRASILEIRA E CRISE SANITÁRIA DA COVID-19

Nos últimos quatro anos, a cultura no Brasil vem sendo alvo


de muita desvalorização e escassez em investimentos destinados a
propulsionar seu desenvolvimento, fazendo com que cada vez mais
se buscasse, autonomamente, meios de continuar seus trabalhos e
expressar sua arte com máxima excelência, mesmo sem incentivos
e condições adequadas necessárias. Cortes de verbas, redução no
incentivo financeiro, críticas à liberdade de expressão do meio
cultural são apenas alguns das razões das dificuldades continuadas
até então que justificam o descaso das autoridades brasileiras no
período de pandemia mundial da Covid-19.
Com os decretos nacionais e estaduais de restrições
de atividades, a maioria das pessoas foram aconselhadas a
incorporarem um período de quarentena, um resguardo preventivo
aconselhado pelas autoridades de saúde como medida eficaz para o
controle do vírus, afim de uma melhor atuação do governo diante
da pandemia. Tal medida sendo corretamente aplicada, no entanto,
acarretou a paralisação de diversos setores que, também fazem
parte da construção econômica do país, como o setor da cultura
tratado neste trabalho.

Grande parte dos profissionais envolvidos no setor da cultura


são trabalhadores autônomos, ou seja, são os que exercem por conta
própria, uma atividade profissional remunerada, revertendo em
proveito próprio o trabalho executado. Logo, em razão da pandemia,
tiveram sua fonte de renda suspensa para evitar a proliferação
da doença, já que é sabido que, quase a totalidade das atividades
culturais tem como exposição a presença de grande quantidade de
público, aglomerações. Tal condição seria uma chave de abertura
para amplificação do contágio do novo coronavírus.

378 Direitos Humanos


Não sendo questionada negativamente pelos afetados com a
medida tomada que, cordialmente aderiram às recomendações das
autoridades competentes. Mas esperavam que fossem discutidas
ações de amparo para que pudessem se manter nesse período de
isolamento e distanciamento social.
São mais de sete meses desde a paralisação das atividades,
em meados de março de 2020, e com isso os milhares de afetados
tiveram que se readaptar à nova realidade, iluminadores, músicos,
rodies, técnicos e todos os envolvidos na criação e apresentação das
mais diversas artes, que não têm outra forma de prover o próprio e
o sustento familiar.

No início da pandemia, em meados de março, desenvolveram


alternativas de manter o entretenimento em funcionamento,
utilizando as tecnologias ao seu favor. A implementação de lives
(videoconferências ao vivo), a fim de interações e entretenimento
por parte de músicos, artistas da área humorística, apresentações
teatrais, exposições de leituras e dentre outras manifestações. Tais
que se faziam totalmente gratuitas, já que a dubitável projeção de
até quando a pandemia seria controlada não era sabida.

Com o passar dos meses, observa-se uma insustentável


situação de mínimo amparo por parte das autoridades. Muitos
profissionais permanecem desempregados, ainda em busca de
soluções para subsidiar seu sustento. Medidas de pouca abrangência
e amplitude não estão sendo suficientes para manutenção do setor,
as queixas dos mais de oitocentos mil profissionais envolvidos na
área demonstram a consternação diante do estreitamento de saídas
para sobrepujar o momento de dificuldade vivenciado pelo mundo
inteiro, principalmente, o setor cultural brasileiro, enfocado na
presente exposição (O NACIONAL, 2020).

Uma pesquisa encabeçada por pesquisadores, sociedade civil,


iniciativa privada e poder público, além de ser apoiada pelas demais

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 379


secretarias dos estados brasileiros, (GOVERNO DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO, 2020) intitulada “Percepção dos Impactos
da Covid-19 nos Setores Culturais e Criativos do Brasil” buscou,
através de uma consulta pública, sondar a situação da cultura
no país, os idealizadores têm por objetivo filtrar as informações
obtidas com a coleta, objetivando prover uma visão mais detalhada
às autoridades, que de posse das informações poderão estipular
melhor ações de amparo, como dito pela Secretaria de Estado da
Comunicação Social e da Cultura do Paraná, através da Agência de
notícias do Paraná, que integra o esforço coletivo para confirmar
e complementar cenários já capturados por outras pesquisas,
compreendendo as situações das realidades estaduais e municipais,
oferecendo informações aos gestores.

Ainda segundo a pesquisa, esse setor é responsável por


movimentar cerca de R$ 171,5 bilhões por ano, o equivalente a 2,61%
de toda a riqueza nacional, empregando 837,2 mil profissionais
(AGÊNCIA SENADO, 2020). Em detrimento da pandemia e sendo
um dos setores com previsão de retomada prevista para ser um dos
últimos, juntamente com o setor educacional (em totalidade, já que
observa-se uma retomada gradual em algumas fases de ensino), a
cultura é de grande importância não só para fins de entretenimento,
mas sua paralisação irá também acarretar um prejuízo notório para
constituição do Produto Interno Bruto Nacional e suas projeções
para o ano de 2021, já que a previsão estipulada anteriormente
a pandemia contava com R$ 43,7 bilhões, valor que já não será
alcançado devido às inúmeras perdas decorrentes ao período de
suspensão de suas atividades (AGÊNCIA SENADO, 2020).

Portanto, demonstrada sua importância e vista as dificuldades


enfrentadas pelos profissionais da área, mostra-se mais que
necessário, legalmente obrigatório o respaldo por parte das
autoridades competentes, que como dito, adotam algumas medidas
de auxílio, mas que se apresentam como pouco abrangentes e não

380 Direitos Humanos


suprem as necessidades dos afetados. Sendo necessário um enfoque
maior nas discussões por parte dos parlamentares para alcançar e
atingir satisfatoriamente as carências reclamadas até então. Assim,
produzirão as condições mínimas para, com o passar do tempo, o
reestabelecimento parcial ou total dos profissionais da cultura.

AÇÕES GOVERNAMENTAIS DE AUXÍLIO AO SETOR


CULTURAL BRASILEIRO E DEFICIÊNCIAS NO SUBSÍDIO

Assim como os mais diversos setores afetados pela pandemia,


econômico, da saúde, ambiental e os demais existentes, a cultura
não ficou fora. Devido a sua paralisação total, no quesito da execução
presencial, os prejuízos foram intensificados ainda mais, sendo
intensificados com seu retorno sendo previsto em fase derradeira
dentre todos os outros que fazem parte da construção econômica
do país, fazendo com que ações de amparo governamental fossem
cada vez mais necessárias e urgentes.

Diferente de muitos setores que já obtiveram o aval das


autoridades competentes e, com os devidos protocolos de retorno à
atuação estipulados, foram postos em prática, os profissionais dos
setores da cultura ainda cumprem os decretos que os limitam na
execução de suas atividades.

A estipulação de versatilidade para lograr rendimentos se


tornou hirta e extenuada, em face da limitação de ações por conta
da pandemia. Os afetados, então, recorreram às autoridades para
reclamarem auxílio e suprimentos que garantissem sua mínima
subsistência e manutenção do setor.

Nos meses iniciais da pandemia, devido à inércia por parte


do Governo Federal brasileiro, o Supremo Tribunal Federal
(STF) interveio para conceder autonomia aos governos estaduais

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 381


combaterem a pandemia de forma que não necessitasse do aguardo
das ações não efetivas e muitas vezes morosas por parte do Governo.
Houve uma interferência do STF por conta da Medida Provisória nº
926/2020, editada pelo presidente Jair Bolsonaro, por meio da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341, a qual restringia as
ações dos prefeitos e governadores no enfrentamento à pandemia,
como pode-se observar na seguinte descrição:

atribui ao Presidente da República a competência para


dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos
essenciais. Estabelece hipóteses de presunção de
atendimento das condições de ocorrência de situação
de emergência. Define como dispensável a licitação
para aquisição de bens, serviços, inclusive de
engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento
da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus. Admite a
apresentação de termo de referência simplificado ou
de projeto básico simplificado nas contratações para
aquisição de bens, serviços e insumos necessários
ao enfrentamento da emergência. Dispõe que o
gerenciamento de riscos da contratação somente
será exigível durante a gestão do contrato. Reduz pela
metade os prazos dos procedimentos licitatórios nos
casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico
ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens,
serviços e insumos necessários ao enfrentamento da
emergência. (BRASIL, 2020)

Após esse período de limitação de ações, o setor da cultura


aguardava um posicionamento para que, por fim, pudesse obter
algum retorno de auxílios. Foi então, posteriormente a esse
estabelecimento do STF, que iniciou-se a discussão por parte do
Legislativo e Executivo sondando soluções, sessões no Plenário
proveram subsídios ao setor e forçaram a Presidência da República
a, também, respaldar e começar a pensar em atitudes que

382 Direitos Humanos


resguardassem os profissionais e também os espaços culturais para
que transpassem o momento de instabilidade vivenciado.

Foram estipuladas diversas e independentes ações pós o


estabelecido por parte dos estados brasileiros (NEXO JORNAL,
2020), bem como o Presidente da República se viu impelido a
sancionar os projetos de lei advindos do parlamento, como o Projeto
de lei nº 1.075 de 2020, que foi sancionado e se converteu na Lei
nº 14.017, de 29 de junho de 2020, mais conhecida popularmente
como Lei Aldir Blanc, prevendo subsidiar o setor durante o período
de calamidade.

Esta Lei está sendo a mais visível ação do Governo Federal


para auxiliar os afetados com a pandemia. Ademais, os governos
estaduais, desde o início do isolamento social e restrições de
circulação, buscaram, justamente, se aliar à cultura para incentivar
o isolamento e o devido cumprimento da quarentena. Como
exemplo, o governo do Piauí, através da Secretaria de Estado da
Cultura (Secult), propôs três projetos para minimizar os impactos
da crise entre artistas e produtores: o lançamento do “Festival
Sossega o Facho em Casa”; a antecipação do edital do Projeto Boca
da Noite e a distribuição de 1.200 livros durante a quarentena.

A criação do “Sossega o Facho em Casa” visa à seleção


de conteúdos digitais nas áreas de música, dança,
artes cênicas, artesanato, audiovisual, entre outras.
Todos os selecionados produzirão material para ser
consumido pela internet e a Secult vai arcar com os
custos dos cachês dos artistas inscritos. Outra medida
importante adotada durante a quarentena é a doação
de livros à população. Por meio de algumas parcerias,
a equipe da Secult já conseguiu catalogar mais de 700
livros, mas, ao todo são 1.200 exemplares. Os livros
serão distribuídos aos interessados que entrarem
em contato pelas redes sociais da Secult. Os títulos
serão entregues em casa, no endereço informado,
sem nenhum custo para os leitores. O edital do

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 383


Projeto Boca da Noite, além de contemplar cerca de
100 artistas e grupos musicais, também será feito
de forma on-line. Os artistas farão os shows, mas
ao contrário do que ocorre tradicionalmente, serão
transmitidos pela internet para evitar aglomerações
(ESTADO DO PIAUÍ, 2020).

As medidas tomadas pelos governos, dos Estados e Federal,


foram resultados de ferrenhas cobranças e lutas pelos profissionais
e defensores da cultura, que mesmo em meio a uma desvalorização,
incredibilidade e falta de incentivos, se impuseram diante da
situação adversa e garantiram seus direitos assegurados pela
Constituição Federal de 1988, no art. 215, que garante “a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais” (BRASIL, 1988, art. 215).

E, ainda assim, mesmo com os direitos adquiridos, devem


fiscalizar para que sejam exercidos e devidamente cumpridos pelas
autoridades competentes tais auxílios e incentivos até o prazo final
de cobertura previsto nas leis e ações. Aliás, um dos principais
deveres dos cidadãos é o de fiscalizar a Lei e seus representantes, a
fim de alcançar a satisfação objetivada em sua formulação e sanção.

O DEVER DO DIREITO NO PROCESSO DE PROMOÇÃO DE


CONDIÇÕES DIGNAS DE MANUTENÇÃO E NA DEFESA DA
CULTURA

O Direito, em sua estruturação normativa, tem uma


vinculação diretamente próxima em relação à cultura, pois é ele
que tem a função de assegurar que sua execução seja devidamente

384 Direitos Humanos


cumprida. A Constituição Federal de 1988, conhecida popularmente
como Constituição Cidadã, justamente por expressar em seu texto
um leque de direitos essenciais para o bem-estar social. Dentre
esses, a cultura foi devidamente pautada e garantida no Título VIII,
Capítulo III, Secção II, art. 215, demandando através da Lei Maior,
ou seja, o topo da normativa, a promoção da cultura. No primeiro
parágrafo, afirma ser dever do Estado proteger tais manifestações,
além de prever o investimento e incentivo.

Essa garantia constitucional é essencial para nortear as ações


dos poderes e da própria sociedade, através do direito subjetivo de
exigir a concretização dos princípios e fundamentos fincados na
Constituição. Para Joaquim Canotilho (2003),

uma das principais funções da constituição é a função


garantística. Garantia de quê? Desde logo, dos direitos
e liberdades. Uma das principais dimensões do
constitucionalismo moderno – recorde-se – foi a de,
através da constitucionalização dos direitos e liberdades,
subtrair a livre disponibilidade do soberano (rei,
estado, nação) a titularidade e exercício de direitos
fundamentais. Nas constituições modernas, os
direitos e liberdades não se reconduziam, em termos
genéticos e segundo o “entendimento dos homens”,
a qualquer ideia de competência subjectiva atribuída
pelo poder político. Os direitos constitucionalmente
garantidos e protegidos representavam a positivação
jurídico-constitucional de direitos e liberdades
inerentes ao indivíduo e preexistente ao estado
(CANOTILHO, 2003, p. 1440).

Tendo esta premissa, afirma-se que as ações que o Executivo


e Legislativo implementaram não são regalos, mas sim, um dever
que não deveria ser questionado, em vista de onde a ordem emana,
já que é uma garantia fundamental constitucional. A resistência
e morosidade por parte do Governo Federal questionando tal

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 385


necessidade de criação de subsídios, argumentando haver setores
mais emergentes, não são sustentáveis, simplesmente pelo fato
de como referido anteriormente, a cultura não ser algo adverso
à economia e interesses nacionais, muito pelo contrário, é uma
atividade garantida e protegida constitucionalmente, bem como de
grande importância para a economia nacional.

O dever do Estado em prover segurança e garantias para o


setor que se mostra intensamente afetado é urgente e necessário. A
resistência em argumentar sua “não urgência” no auxílio demostra
uma apatia e descumprimento do pré-estabelecido na Constituição.
Em verdade, há muito se observa um descuido por parte do atual
governo para com os diversos setores, principalmente com o
cultural. Diversos episódios de descaso ou falta de investimentos
nos setores foram ocorrendo, trazendo grandes prejuízos.

Muito marcante foi o incêndio no Museu Nacional, localizado


no Rio de Janeiro, no dia dois de setembro de 2018. Um desastre
de grandes proporções que acarretou na destruição de 92,8% de
todo acervo histórico presente no museu. Segundo os resultados do
balanço de perdas, foram perdidos 18,5 milhões de itens destruídos
do total de 20 milhões (O GLOBO, 2018). A causa do incêndio foi
devido ao sobreaquecimento de um ar condicionado causado por
um curto circuito. Isso, porque a verba de manutenção havia sido
reduzida e passou um longo período sem reparos (O ESTADÃO,
2019). Uma perda para a História, pesquisa e Cultura Nacional,
derivada do descaso com a cultura no Brasil.
Outra problemática, desenvolvida pelo Governo Federal
nos últimos anos, refere-se à Lei Rouanet, Lei n° 8.313, de 23 de
dezembro de 1991. Em uma alteração à legislação, houve corte
de verbas que são muito importantes para o fomento à criação e
realização de atividades culturais. A alteração reduz de 60 milhões
para um milhão do valor que a Secretaria da Cultura disporá por
projeto aceito. A justificativa é de que, assim, poderão alcançar um

386 Direitos Humanos


maior número de projetos já que a verba será dividida, alcançando
sessenta vezes mais artistas e profissionais.

No entanto, observa-se que na prática o resultado não é esse,


pois, na verdade, os artistas não estão conseguindo expor seus
projetos na totalidade, já que não se alcança o valor necessário para
execução. Isso porque a medida que deveria ampliar o alcance da
Lei, está agora, barrando a execução de muitas outras.

As situações apresentadas demonstram as dificuldades que


o setor da cultura já vinha enfrentando e que se agravaram com
a inesperada chegada da pandemia da Covid-19. Em condições
normais de atuação, suas atividades já eram limitadas e carregadas
de diversos empecilhos e falta de investimentos, com a inviabilidade
de atuação e o visível descaso e não priorização do governo para
com o setor, a luta por parte dos profissionais da área pelo devido
e equiparado cumprimento do previsto na Constituição Federal se
torna cada vez mais necessária.

É de se estranhar que, em uma democracia, a Constituição,


como centro das ações e garantias da nação, tenha que ter
diariamente cobrada, pelo povo, sua execução por falta de
observação dos representantes que deveriam ser porta vozes do
cumprimento normativo.

A qualquer um que ler o artigo 215 da Constituição Federal e,


em seguida, for questionado se o Governo deveria prestar auxílio ao
setor da cultura, como exemplo, a implementação da Lei Aldir Blanc,
a resposta de um ser em sua consciência sã, seria, indubitavelmente,
sim. A clareza do texto legal, ou seja, a normativa jurídica expressa a
obrigatoriedade por parte das autoridades competentes o resguardo
de um dos pilares das atividades protegidas pela Lei Maior.

O Direito como garantidor da Justiça busca assegurar tais


auxílios. Muito se vê da ação de órgãos do Judiciário, como o mando
de obrigatoriedade do governo em prover tais benefícios a fim de

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 387


assegurar sua manutenção e estabilidade. Aliás, não se esperaria
menos de tal poder, como previsto no Art. 5°, Inciso XXXV, da
Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Consoante defende Luís Nunes Pegoraro (2012),

o controle jurisdicional-constitucional da
Administração Pública no Estado Social de Direito
não pode ser simplesmente uma investigação do
cumprimento de formalidades extrínsecas da lei,
senão, e principalmente, um controle substancial da
não violação e da implantação, pela Administração,
dos grandes vetores constitucionais. O controle
externo pelo Judiciário foi aumentado e fortalecido
na Constituição de 1988. Agora não se limita ao exame
das lesões de direito. A mera ameaça já fundamenta
a revisão ou correção judicial. Ao se referir a direito,
inclui os coletivos e difusos. (PEGORARO, 2012, p.
184)

O inciso supracitado garante o Princípio Constitucional


de acesso à justiça, ou seja, o Poder Judiciário está incumbido
de fiscalizar e assegurar a ponte entre cidadão e Justiça. Por esta
razão, percebe-se o papel primordial do Direito em garantir que
os devidos direitos reclamados pelos profissionais da Cultura
sejam implementados, bem como sua execução seja devidamente
satisfatória e em sua completude abrangente a todos os afetados
pela pandemia da Covid-19.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face do exposto, tendo em vista a função do Direito diante


da sociedade e com enfoque, principalmente, no setor aprofundado,

388 Direitos Humanos


tem-se como inferência o dever de promoção e fiscalização da
subsidiação de auxílios e garantias advindas dos órgãos competentes
Executivos e Legislativos em âmbito nacional.

A cultura, como meio de entretenimento, é um dos pilares da


construção econômica do país e deve receber um olhar cauteloso
do poder público, bem como valorização social memorando sua
importância na contribuição para o PIB, além da intensificação
criativa que foram instigados a proverem, considerando as
adaptações de atuação necessárias para exporem seus trabalhos,
com as limitações originadas pela pandemia.

Com a subalternização instaurada desde os últimos anos de


atuação do atual governo, que reduziu massivamente as verbas
e incentivos à inovação e execução cultural, o setor vem sendo
forçado a buscar alternativas criativas para manter sua atuação e
permanência na atividade, apresentando seus trabalhos de forma
restrita e deficiente devido ao corte de verba, mas com bastante
esforço para que sua essência seja, devidamente, repassada.

Diante da situação, o Poder Judiciário, de posse do dever


de acesso à Justiça, deve assegurar que as ações já criadas pelo
Poder Público sejam devidamente exercidas e conduzir as novas
solicitações de auxílios, reivindicadas pelos profissionais da área da
Cultura, para que as necessidades possam ser recebidas e sanadas
da mais sensata maneira possível.
Portanto, pautado na legislação já promulgada que assegura
os direitos ao setor, busca-se, através deste trabalho, aclarar a
execução obrigatória, como direito consagrado na Constituição,
a sua devida e correta consumação. Enfatizar que as requisições
aclamadas pela Cultura não são adversas aos seus direitos e devem
ser acolhidas pelas autoridades como igual urgência econômica,
como em qualquer outro setor. Sua devida importância para
estruturação nacional deve ser reconhecida e somente assim, os

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 389


indivíduos poderão sustentar-se até o período de recessão corrente
findar e, se bem auxiliados, poderão reestruturar-se para prosseguir
naturalmente com suas atividades.

Somente assim, com a efetivação do devido cumprimento


normativo e empenho governamental na prestação de auxílio
ao setor cultural, se poderá alcançar a garantia dos direitos
fundamentais e condições mínimas para uma vida digna ao
segmento social do setor cultural. Portanto, deve-se assegurar o
mandamento constitucional que assevera o subsídio à existência e
manutenção do direito de toda a sociedade à cultura, garantindo
e promovendo as liberdades e direitos fundamentais inerentes a
qualquer pessoa, em especial, os profissionais da área cultural.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRAKIS, F.; FIASCHETTI, B. Como os governos estaduais


lidam com a pandemia. Nexo Jornal, 2020. Disponível em:<https://
urless.in/4P3Ay> Acesso: 18 out. 2020.

BOLSONARO sanciona lei de auxílio financeiro para a cultura na


pandemia. Agência Senado, Brasília, 30 de jun. de 2020. Cultura.
Disponível em: <https://urless.in/dligJ>. Acesso em: 03 set. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

390 Direitos Humanos


______. Ministério do Turismo. Secretaria Especial da Cultura.
Plano Nacional de Cultura. Brasília: Ministério do Turismo,
2010. Disponível em: <https://urless.in/smCq9>. Acesso em: 01
set. 2020.

______. Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020.


Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor
sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos
destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional decorrente do coronavírus. Diário Oficial
da União (DOU), Brasília, DF, 23 mar. 2020. Seção 1, p.1. Disponível
em: <https://urless.in/dMPW5>. Acesso em: 06 set. 2020.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e


teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DALMUTH, Cláudia. Setor cultural é um dos mais afetados pela


pandemia. O Nacional, 2020. Disponível em: <https://urless.in/
MkyyM> Acesso em: 24 out. 2020.

GANDRA, Alana. Covid-19: pesquisa revela perda nos setores


culturais e criativo. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 30 de jun. de
2020. Disponível em: <https://urless.in/dUk6C> Acesso em: 24
out. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 391


GOULART, Gustavo. Museu Nacional: 1,5 milhão de peças
escaparam do incêndio por estarem em outros prédios. O Globo,
Rio de Janeiro, 06 de set. de 2018. Disponível em: <https://urless.
in/lwbAI> Acesso em: 24 out. 2020.

GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Primeiro


boletim da pesquisa de percepção dos impactos da covid-19
nos setores cultural e criativo do brasil é publicado. Espírito
Santo, 2020. Disponível em: <https://urless.in/RzMdf>. Acesso
em: 25 out. 2020.

GOVERNO DO ESTADO DO PIAUÍ. Secretaria de Estado de


Cultura do Piauí. Secult lança ações para minimizar impactos
da covid-19 na cultura. Teresina, 2020. Disponível em: <https://
urless.in/2OAaQ>. Acesso em: 30 ago. 2020.

PEGORARO, Luís Nunes. A omissão na prestação de serviço público


e a alegada limitação financeira. In: LUNARDI, Soraya (Coord.).
Direitos fundamentais sociais. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
177-194. (Coleção Fórum de Direitos Fundamentais, 8).

PESQUISA nacional avalia efeitos da pandemia nos setores


culturais. Agência de notícias do paraná, Curitiba, 10 de jun. de
2020. Cultura. Disponível em: <https://urless.in/T996p>. Acesso
em: 28 ago. 2020.

392 Direitos Humanos


PF conclui inquérito no museu nacional e descarta “conduta omissa”
e incêndio criminoso. G1 Rio de Janeiro, 2020. Disponível em:
<https://urless.in/T7waF>. Acesso em: 24 out. 2020.

ROCHA, Camilo. O impacto do coronavírus na cultura. E o papel dos


governos. Nexo Jornal, 2020. Cultura. Disponível em: <https://
urless.in/Q2P5v>. Acesso em: 29 ago. 2020.

ROSSI, Amanda. Contágio rápido e silencioso: a matemática do


Coronavírus. Piauí, 2020. Disponível em: <https://urless.in/
jRLEb>. Acesso em: 20 out. 2020.

SENADO aprova auxílio financeiro para a cultura durante pandemia;


texto vai a sanção. Agência Senado, Brasília, 04 de jun. de 2020.
Social. Disponível em: <https://urless.in/x9YaY>. Acesso em: 03
set. 2020.

SERAPIÃO, Fabio. Curto em ar condicionado causou fogo que destruiu


Museu Nacional, diz perícia. O Estado de São Paulo, São Paulo,
23 de mar. de 2019. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.
br/noticias/rio-de-janeiro,curto-em-ar-condicionado-causou-fogo-
que-destruiu-museu-nacional-diz-pericia,70002765595?utm_
source=facebook%3Anewsfeed&utm_medium=social-
organic&utm_campaign=redessociais%3A032019%3Ae&utm_
content=%3A%3A%3A&utm_term=>. Acesso em: 24 out. 2020.

Perspectivas Interdisciplinares na produção científica da UFPI 393


TORRES, Lívia et al. Incêndio de grandes proporções destrói o
Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. G1 Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 02 de set. de 2018. Disponível em: <https://urless.in/
tVrHY>. Acesso em: 22 out. 2020.

VERDÉLIO, Andreia. Governo regulamenta liberação de R$ 3


bilhões para setor cultural. Agência Brasil, Brasília, 18 de ago. de
2020. Disponível em: <https://bityli.com/6J64i>. Acesso em: 30
ago. 2020.

VIEIRA, Anderson. Decisão do STF sobre isolamento de estados e


municípios repercute no Senado. Agência Senado, Brasília, 16 de
abr. de 2020. Política. Disponível em: <https://urless.in/5HmbU>.
Acesso em: 03 set. 2020.

394 Direitos Humanos


OS ORGANIZADORES

ADAMILTON LIMA BORGNETH


Bacharelando em Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Estadual
do Piauí (UESPI - 2018). Engenheiro Mecânico formado pela UFPI (2017).
Pesquisador convidado (2020-2021) do Grupo de Pesquisa “Direito e
Subdesenvolvimento: o desafio furtadiano” da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FADUSP). Membro do Grupo de Pesquisa em
Direitos Humanos e Cidadania da UFPI. Pesquisador e Diretor Executivo
do Grupo de Pesquisa Direito Civil XXI. Pesquisador e integrante da Gestão
do República – Núcleo de Pesquisa em Direito e Democracia. Diretor de
Eventos Científicos do Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho (Direito
– UFPI). Voluntário e Coordenador Científico no Projeto Doar e Aprender
Direito (assistência jurídica). Pesquisa Direitos Humanos, em especial
os direitos dos refugiados e dos menos favorecidos socialmente. E-mail:
[email protected] / [email protected].

JHONNATAS DOS SANTOS SOUSA


Graduando de Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa, Francesa
e suas respectivas literaturas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Membro do Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos e Cidadania da UFPI
(DiHuCi) e do Grupo de Pesquisa sobre Literatura Fantástica (GEMAL),
desde 2017. Bolsista no Programa Residência Pedagógica em Língua
Portuguesa - CAPES (2018-2020). Membro da Association des Professeurs
de Français de l’Etat du Piauí - APFEPI. Professor de língua portuguesa
pelo programa Novo Mais Educação (2019). Professor voluntário de
Língua Francesa do Programa Idiomas sem Fronteiras - IsF (2019).
Desenvolve pesquisas em Literaturas Nordestinas, especificamente na
obra de Nei Leandro de Castro. E-mail: [email protected].

395
AUTORES

ALICE AMÉLIA ARAÚJO TEIXEIRA E SILVA


Graduanda em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí -
UFPI e acadêmica em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho
- UniFSA.

AMÉRICO ALVES DE FREITAS NETO


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Atualmente Diretor de Marketing no Núcleo de Pesquisa República e
coordenador de Comunicação Social no Projeto Doar e Aprender Direito.
Diretor de Comunicação no Centro Acadêmico Cromwell de Carvalho
(Gestão 2019-2020), exerceu monitoria acadêmica na área de Teoria
Geral do Estado e apresentou trabalho científico no IV Seminário de
Teoria Geral do Direito (2019).

AMANDA DA SILVA COSTA


Graduanda do curso de Letras Português e Francês da Universidade
Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Petrônio Portela. Bolsista
atuante do programa Residência Pedagógica (CAPES). Participante do
Núcleo de Pesquisas em Análise de Discurso (NEPAD). Atualmente se
especializando em Gestão e Supervisão Escolar com Docência no Superior
na Faculdade na Faculdade Evangélica do Meio Norte (Faeme) e em Libras
na Faculdade Seven (Faeme).

396
ANA CLARISSA SANTOS ARAÚJO
Graduanda em Direito no Centro Universitário Uninovafapi.
Assistente Jurídico da ONG CPB e voluntária no Ajuda Legal. Membra da
Liga Acadêmica de Direito Constitucional do Uninovafapi. Membra da Liga
Isso é Liberdade da UFPI. Pesquisadora na área de Direito Constitucional.
Membra das Comissões OAB na Universidade, Mulher Advogada, Direito
Militar e Mediação, conciliação e arbitragem da OAB/PI.

ANNE KAROLINNE MOREIRA NOGUEIRA COSTA


Graduanda em Direito na Universidade Estadual do Piauí (UESPI). 
Membro do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil (CORAJE) desde
2019. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos e
Cidadania da UFPI (DiHuCi) desde 2019. Membro da Liga Acadêmica
Esperança Garcia.

CARLA SANTANA GONÇALVES


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Integrante do grupo de pesquisa “Direito e Subdesenvolvimento:
o desafio furtadiano, DEF-FADUSP (2020 - 2021).  Concluiu o Ensino
Médio (2018) no Centro de Ensino Tempo Integral João Henrique de
Almeida Sousa, onde fez parte do projeto intitulado “Apartamento
Sustentável” que foi laureado com medalha de ouro no Circuito de
Ciências e Tecnologia(2016), promovido pela Secretaria de Estado da
Educação (Seduc).

EDUARDO JOSÉ LIMA RODRIGUES


Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí
(UFPI) e do curso de História da Universidade Paulista, apresentou artigo
no IV Seminário de Teoria Geral do Direito e participou do curso de
formação de Direitos Humanos no oriente médio.

397
ELLEN MELO MARTINS RODRIGUES
Graduanda de Bacharelado em Direito na Universidade Federal
do Piauí. Membro da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UFPI
(Cajuína), desde 2019. Secretária Geral da Liga Acadêmica de Teoria
Crítica do Direito - Esperança Garcia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
em Direitos Humanos e Cidadania (DiHuCi). Membro atuante na Frente
Estadual pelo Desencarceramento no Piauí.

EMANUELLE MELO MARTINS RODRIGUES


Graduanda em Direito na Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
Ligante da Liga Acadêmica Esperança García e atuante na Frente Estadual
pelo Desencarceramento no Piauí. Pesquisadora no grupo Direitos
Humanos e Cidadania (DiHuCi) desde 2019.

ENYA MARIA DA SILVA FONSECA


Acadêmica em Ciência Política pela Universidade Federal do
Piauí (UFPI). Bolsista pelo projeto de extensão Observatório do Ensino
de Filosofia (PIBEX - UFPI). Bacharelanda em Direito pelo Centro
Universitário UniFacid e integrante da Liga Acadêmica Constitucionalista
do Piauí - LACOPI (UniFacid).

GEOVANA MAIRA LIMA DA SILVA


Graduanda em Direito Bacharelado pelo Centro Universitário
Uninovafapi; Presidente da Liga Acadêmica de Direito Administrativo
do Centro Universitário Uninovafapi; Integrante da Comissão OAB na
Universidade - OAB/PI; Integrante da Comissão de Direito do Trabalho -
OAB/PI; Voluntária do projeto Doar e Aprender Direito; Pesquisadora do
21 República (Núcleo de Pesquisa Direito e Democracia).

398
GEOVANNA DA SILVA DIAS
Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Voluntária no projeto social “Doar e aprender direito” que visa
proporcionar orientação e assistência jurídica à parte da população em
vulnerabilidade social.

IAGO FERRAZ NUNES


Possui bacharelado em Direito (ICF, 2017), especialização em
Direitos Humanos e Democracia (FAR, em andamento), especialização
em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS (FATEC, 2018), especialização
em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS (FAEME, em andamento) e
especialização em Docência do Ensino Superior (FAEME,em andamento).
Atualmente pesquisa na área de Direitos Humanos, Teoria Queer e Análise
de Discurso Materialista (Francesa).  Pesquisador e membro efetivo do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Análise de Discurso (NEPAD/UFPI).

IAGO SAMPAIO DE OLIVEIRA


Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Atualmente (2020-2021), pesquisador do Grupo de “Direito e
Subdesenvolvimento: o desafio furtadiano”, da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FADUSP), desenvolvendo pesquisa na área do
Direito Econômico.

JOÃO PAULO DA SILVA


Graduado em direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
Especialista em Direitos Humanos pela Faculdade Adelmar Rosado.
Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFPI,
pesquisador em interseccionalidade, decolonialidade, direito à cidade e
territorialidade amazônica.

399
LARA MELINNE MATOS CARDOSO
Advogada, com graduação em Direito pela Universidade Federal
do Piauí (2015). Especialização em Direitos Humanos e Democracia pela
Faculdade Adelmar Rosado (FAR), sob orientação da profa. msc. Natasha
Karenina de Sousa Rêgo (2018). Mestrado em curso pelo Programa de
Pós Graduação em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí, sob
orientação da profa.dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa. Membro do
grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Ciências
Jurídicas da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em direito penal, criminologia, violências de gênero e
sistemas de legais e judiciários da América Latina.

LUCAS VILLA
Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília, Mestre
em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí, Especialista em Direito
Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e em
Ciências Criminais pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Bacharel
em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Professor da Universidade
Federal do Piauí (UFPI) - Departamento de Ciências Jurídicas e Mestrado
Profissional em Filosofia. Professor do Instituto de Ensino Superior
(ICEV). Advogado criminalista, sócio do escritório Cordão, Said e Villa
Sociedade de Advogados. Tem experiência nas áreas de Direito e Filosofia,
com ênfase em Ciências Criminais, Ética e Epistemologia, trabalhando
temas como abolicionismo penal, filosofia da pena, filosofia pós-metafísica
e as relações entre verdade e violência.

400
MARTA LORENA BEZERRA ARAÚJO
Sou graduanda em Comunicação Social, com habilitação em
Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Atualmente
atuo como assistente de produção em uma emissora de TV local, onde,
com a vivência, tive a oportunidade de aprender muito. Como mulher
feminista, estou sempre indignada, e isso se transforma em uma vontade
de debater sobre os direitos das mulheres. E foi a partir desse ponto, que
decidi trazer essa temática para meus trabalhos, utilizando de uma ótica
jornalística, a fim de discutir sobre a estrutura presente nos noticiários.
E-mail: [email protected].

SOFIA SÁ CARVALHO SALES


Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal do Piauí
(UFPI); voluntária no projeto Doar e Aprender Direito e no Girl Up UFPI;
membro colaborador da empresa jurídica júnior Conectjus; já participou
do grupo de pesquisa República, na UFPI; atual participante do grupo de
pesquisa Direito Civil XXI, da UFPI.

THIAGO PEREIRA DE CARVALHO


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Monitor da disciplina de Teoria do Estado e Democracia (2020.1) no
Departamento de Ciências Jurídicas da UFPI. Foi integrante do projeto
APOIE - Apoio pedagógico e orientação inclusiva para os estudantes
público-alvo da educação especial (2019-2020), vinculado ao programa
Bolsa de Incentivo a Atividades Socioculturais e Esportivas (BIASE)
da UFPI. Concluiu o Ensino Médio Integrado ao Curso Técnico em
Administração (2018) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Piauí, onde participou do projeto de Iniciação Científica
(PIBIC-Jr) “O Cineclube e a transformação da imagem cinematográfica
em conhecimento histórico (1954-1985)”, com bolsa (CNPq).

401
VIVIANE SILVA BRANDÃO CARVALHO
Graduanda em Letras – Língua Portuguesa, Francesa e suas
respectivas literaturas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Atuou
como monitora do projeto de extensão em literatura “Entre a tinta e a
pena” (2019). Membro do Grupo de Estudos sobre Literatura Fantástica e
o Mal (GEMAL). E-mail: [email protected].

WENDY AUGUSTUS ARAÚJO CAVALCANTE


Possui Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Federal do
Piauí (UFPI). Ativista trans. Criador de conteúdo voltado para o público
Trans. Com publicação no livro “Filosofia e um monte de outras coisas
“com o capítulo “Ser autêntico no mundo de iguais”.

402

Você também pode gostar