Fichamento - Carvalho (2009)

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O Retorno de Keynes

O rápido e profundo desmoronamento dos mercados financeiros depois de 2007 e a recessão


iniciada em 2008, levaram à crítica da teoria ortodoxa e à redescoberta de argumentos associados
a Keynes.

A economia keynesiana, a que fui introduzido em meus anos de estudante de graduação em


economia, reduzia-se a “casos” ou a caricaturas políticas.

No entanto, a riqueza de suas idéias esta sendo redescoberta em quase todo o mundo, como
resultado da crise econômica em curso (crise 2008). Um debate macroeconômico que havia sido
dado como morto quando conceitos como expectativas racionais, hipótese dos mercados eficientes,
etc. foram usados para demonstrar a irrelevância das políticas monetárias e fiscais nos delirantes
anos de 1980, ressurge das cinzas das estratégias liberalizantes adotadas nos últimos trinta anos
em quase todo o mundo.

Lucas e Sargent, em particular, fundadores da escola conhecida então como os Novos Clássicos,
pregavam em seu famoso artigo “After keynesian macroeconomics”, que pensar a macroeconomia
como uma disciplina autônoma era um equívoco iniciado por Keynes. 

De acordo com eles, nada poderia ser explicado “cientificamente” em economia se não pudesse ser
reduzido aos seus fundamentos microeconômicos. Comportamentos coletivos nada mais seriam
que a soma de comportamentos individuais de indivíduos maximizadores de satisfação, cujas
expectativas eram formadas de acordo com uma função subjetiva de distribuição de probabilidades
que coincide com a distribuição objetiva de probabilidades que rege o processo cujos resultados se
tenta antecipar (definição de John Muth, inventor do conceito de expectativas racionais).

A perspectiva reducionista, a esterilidade da abordagem de expectativas como racionais no sentido


de Muth, a inabilidade de pensar políticas macroeconômicas que se mostrou na prática foram a
marca da empobrecida teoria macroeconômica que dominou o fim do século XX. Qual país jamais
se arriscou a adotar regras monetárias como as propostas pelos Novos Clássicos? Nenhuma de
suas proposições conseguiu alcançar senão uma fração da influência sobre policy makers de
autores que cultivaram hipóteses irracionalistas de expectativas, como Milton Friedman.

A crise iniciada pelo colapso do financiamento das hipotecas, chamadas de subprime, mostrou que
as limitações da teoria econômica predominante em tempos recentes podem ter raízes mais
profundas.

A redescoberta de Keynes, em grande parte, decorre da percepção de que a natureza da crise atual
difere dramaticamente do padrão de flutuação cíclica exibido nas últimas décadas. Na maior parte
do pós-Segunda Guerra.

Por mais que se tentasse condenar a intervenção aumentada do Estado na economia depois da
guerra, era indubitável que o crescimento dramático da importância dos gastos públicos tinha se
constituído num estabilizador importante da demanda agregada, garantindo um piso para o nível de
atividades mesmo sob administrações conservadoras como as de Eisenhower, nos Estados Unidos
da década de 1950, ou do Partido Conservador inglês até a ruptura causada pela ascensão de
Margareth Thatcher. Esse era o chamado consenso keynesiano, que, no caso norte-americano,
deveria talvez ser mais apropriadamente chamado de consenso rooseveltiano, já que se devia
principalmente à aceitação do preceito de que cabia ao Estado prover segurança aos seus
cidadãos, inclusive segurança econômica.
A manutenção de um nível de atividade mais elevado poderia levar à emergência de pressões
inflacionárias, que eram combatidas por políticas monetárias contracionistas. Estas, por sua vez,
tendiam a gerar desemprego, o que incentivava a adoção de políticas expansionistas que
recriavam, cedo ou tarde, pressões inflacionárias, e, assim, um padrão de comportamento cíclico
era determinado.

O reconhecimento dessas flutuações cíclicas era o resultado da compreensão de que a utopia da


sintonia fina, a adoção de políticas que fossem capazes de manter a demanda agregada
precisamente igual ao produto potencial, nem mais nem menos, era mesmo apenas uma utopia.

Nos anos de 1990, um novo padrão de flutuações emergiu, especialmente nos países emergentes,
nas crises financeiras e de balanço de pagamentos cujo paradigma seria, talvez, o caso da Coréia
do Sul em 1998. Por razões que foram amplamente debatidas nos anos seguintes à crise asiática,
esse novo padrão era caracterizado pelo chamado desenvolvimento em “V”: as economias passam
por quedas vertiginosas e profundas, mas se recuperam de forma igualmente rápida e ampla, em
contraste com as prolongadas crises do passado, quando as economias tendiam a chafurdar no
fundo do poço por algum tempo antes de voltar à tona.

A crise corrente (2008) não se parece com nenhum desses dois modelos. Com certeza, ela não se
deve simplesmente a movimentos de política monetária, muito embora se possa apontar a elevação
da taxa de juros pelo Banco Central americano, Fed, em 2006 como um elemento a favor do
aumento de inadimplências de hipotecas subprime. A importância dos contratos de taxas ajustáveis
de juros, que levariam à elevação do serviço da dívida dos tomadores naquela mesma época,
sugere que a crise teria ocorrido com ou sem elevação da taxa de juros pelo Fed.

Se a crise (2008) pode ser profunda como a crise asiática, certamente ela está muito mais próxima
das crises em “U” do pré-Segunda Guerra do que das crises em “V” dos anos de 1990.

A comparação mais freqüente e mais fértil tem se mostrado em relação à crise da década de 1930.
É exatamente por essa razão que o retorno a Keynes foi inevitável.

No entanto, e notavelmente, não é o caso keynesiano que está sendo explorado, mas, sim,
aspectos da economia de Keynes. Como hoje em dia relativamente poucos sabem, para seu
próprio prejuízo, Keynes não escreveu a Teoria Geral para explicar como economias de mercado
podem passar por problemas quando preços e salários são rígidos, mas, para sugerir que a visão
de economia que alimentava o que ele chamava de “economia clássica” era uma abstração
inadequada das características definidoras de uma economia moderna.

Keynes não se dedicou a um “caso” teórico.

Para Keynes, os clássicos não conseguiam explicar a depressão, realmente, mas também não
conseguiam explicar os estados de euforia dessa economia ou, mesmo, qualquer outro estado
satisfatoriamente. Em sua visão isto era uma conseqüência da inadequada identificação dos
mecanismos fundamentais de operação de economias empresariais.

Marx já afirmava que a observação de crises é fundamental para se entender a operação normal de
uma economia, já que é nas crises que se pode perceber o que é realmente essencial, quais são os
mecanismos sem cuja operação adequada a economia como um todo não pode funcionar.
Princípios que constituem as teses centrais da economia de Keynes
Poder-se-iam agrupar as teses centrais da economia de Keynes que encontram confirmação na
crise atual (2008) em sete proposições apresentadas a seguir.

1. A primeira e mais fundamental tese é a da não-neutralidade da moeda. 

Segundo Keynes, a não-neutralidade da moeda se apóia na relação entre o valor da moeda como
um ativo, isto é, como uma forma de riqueza e o valor dos outros ativos, das outras formas de
riqueza, não apenas os ativos financeiros, mas também os ativos de capital real. A escassez
relativa de ativos monetários, demandados por sua liquidez, reduz a demanda e o preço de ativos
como, por exemplo, bens de capital, e, assim, influenciam as posições de longo período da
economia.

2. Keynes baseia sua tese de não neutralidade da moeda na importância do conceito de


liquidez.

Liquidez é um conceito extremamente difícil para qualquer teoria, sobretudo por sua
multidimensionalidade. 

Para as teorias convencionais, construídas sobre o fundamento da hipótese de mercados eficientes,


liquidez pode ser concebida como a existência de uma demanda potencial, de reserva, para um
determinado item a um determinado preço. Por definição, em equilíbrio a demanda é igual à oferta
àquele preço. Portanto, tudo é líquido em equilíbrio, não há nenhuma especificidade a ser
considerada e nenhum prêmio de liquidez a ser computado.

Por outro lado, liquidez significa a possibilidade de converter a riqueza presente em poder de
compra para usá-lo na aquisição de outras formas de riqueza. Existe um prêmio de liquidez a ser
computado no valor de um ativo quando, ao comprá-lo, o comprador reconhece que pode desejar
desfazer essa transação no futuro, especialmente se condições imprevisíveis no momento da
decisão vierem a prevalecer. Esse é o conceito de incerteza proposto por Keynes que fundamenta o
valor da liquidez como defesa genérica contra eventos adversos imprevisíveis no presente.

Keynes mostra a esterilidade fundamental de conceitos como expectativas racionais. A chocante


descoberta de que o futuro não é uma repetição do passado é uma ilustração dramática dessa
esterilidade.

3. O reconhecimento da conexão entre moeda, prêmio de liquidez e preço dos ativos

Trata-se da não-neutralidade da valoração de ativos.

Novamente, a tradição da hipótese dos mercados eficientes baseia-se na idéia de que a


precificação de ativos é neutra em relação ao total da poupança e do investimento de uma
economia. A teoria da determinação dos preços dos ativos é, assim, inteiramente independente da
determinação do volume de investimento e poupança, que dependem apenas “da” taxa real de
juros, como sugerido por Wicksell. 

Na economia de Keynes, o investimento depende dos preços dos ativos reais relativamente aos
preços dos ativos financeiros e ao nível de preço dos bens correntemente produzidos. O preço de
demanda de um ativo qualquer é o valor presente dos ganhos que se espera obter da sua posse.
Maiores preços de demanda significam maiores expectativas de retornos.

Assim, a não-neutralidade da moeda e a não-neutralidade do mercado de ativos são, na economia


de Keynes, duas faces da mesma moeda

Ambas as teses apóiam-se na já referida concepção de incerteza proposta por Keynes.

É importante ressaltar que Keynes não apelou para a possibilidade de expectativas serem formadas
de modo irracional. A crítica às expectativas racionais não consiste em sugerir que a racionalidade
é inatingível por seres humanos “normais”, mas em assumir que o conjunto de informações sobre
as quais expectativas são formadas é sempre, inapelavelmente, incompleto. Não se trata apenas de
assimetria de informações, mas de inexistência de informações essenciais para a tomada de certas
decisões, o que obriga aqueles que têm a obrigação de tomar decisões a preencher o vácuo com
suas próprias suposições.

4.  Relevância do que denomina estado de confiança.

A confiança numa determinada expectativa depende de quanto dessa expectativa é explicada por
suposições, em vez de informações, e da confiança nessas mesmas suposições.

Variações no estado de confiança 

Minsky formulou sua célebre proposição de que a “estabilidade é desestabilizante”, pela qual a
experiência de sucesso de alguém leva ao aumento de sua confiança nas suas habilidades
preditivas e à disposição de aumentar apostas, expondo-se a riscos crescentes. Note-se que não
há irracionalidade envolvida nesse processo, apenas uma “atualização” de evidências.

5.  Por meio dos mecanismos mencionados, o estado de confiança

O estado de confiança se torna um elemento essencial de determinação do ponto de demanda


efetiva e, assim, um determinante central da produção e do emprego em uma economia
empresarial. 

Um colapso do estado de confiança conduz a um aumento da preferência pela liquidez que, por seu
turno, conduz à redução dos preços de demanda dos ativos menos líquidos, atingindo
especialmente os ativos de capital real, contraindo investimentos e, através do multiplicador de
consumo contraindo a renda e o emprego agregados.
6. Quando a demanda privada se contrai, em resultado desse processo, a manutenção do
nível de atividades só pode ser obtida se alguma fonte alternativa de demanda for
encontrada. 

Naturalmente, uma possibilidade é a demanda do resto do mundo, por meio da expansão das
exportações. Em uma crise como a atual (2008), porém, em que praticamente o mundo todo é
atingido, é preciso recorrer ao que Kalecki denominou exportações domésticas, isto é, a venda de
produtos para o governo, um agente “externo” ao setor privado. 

O papel do gasto do governo na sustentação da demanda agregada e do emprego é a sexta das


teses de Keynes revivida nos tempos atuais.

7.  O problema da estabilidade global.

Há duas formas de resolvê-lo. A primeira é supor que a estabilidade macroeconômica decorre de
virtudes intrínsecas à ordem social que define economias empresariais. Este é o sentido profundo
da imagem da mão invisível, por ela, a interação de agentes econômicos movidos pelo seu
interesse individual seria sólida o suficiente para assegurar a estabilidade da ordem social, sem
necessidade de controles externos.

A posição alternativa seria a de que a ordem é, realmente, garantida pela existência de instituições
cujo papel é conter as tendências sistêmicas à desintegração intrínsecas à ordem social moderna.

Nessa linha de raciocínio, o movimento de desregulação financeira desenvolvido desde a década


de 1980 baseou-se na suposição implícita à hipótese de mercados eficientes, de que a livre atuação
de agentes financeiros seria capaz de garantir a estabilidade desse sub sistema. 

A visão da economia de Keynes, em contraste, diz que nos mercados financeiros as tendências


desintegradoras são particularmente atuantes, para cuja contenção é fundamental a existência de
métodos de regulação e supervisão financeiras relativamente rigorosos. Essa é uma função pública
impossível de ser privatizada ou mesmo de ser implementada por meio de métodos de mercado.

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