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André Luiz Santa Cruz Ramoss

Thiago Martins Guterres

Lei de
PROPRIEDADE
INDUSTRIAL
comentada
Lei 9.279 de 14 de maio de 1996

2016
INTRODUÇÃO

O empresário (empresário individual1, EIRELI2 ou sociedade empresá-


ria3), para iniciar o exercício de uma atividade econômica (empresa) que lhe
propicie auferir lucros, necessita organizar todo um complexo de bens que
lhe permita desempenhar tal mister. A esse complexo de bens (ponto, equipa-
mentos, marca, matéria-prima, capital etc.) dá-se o nome de estabelecimento
empresarial4, e dentre esses bens incluem-se não apenas bens materiais, mas
também bens imateriais (marcas, invenções, desenhos industriais, modelos
de utilidade etc.).
A esses bens imateriais que compõem o estabelecimento empresarial o
ordenamento jurídico confere uma tutela jurídica especial, hodiernamente agru-
pada num sub-ramo específico do direito empresarial chamado de direito de
propriedade industrial, que no Brasil está disciplinado pela Lei 9.279/1996, que
nesta obra chamaremos simplesmente de LPI (Lei de Propriedade Industrial).
O direito de propriedade industrial compreende, pois, o conjunto de regras
e princípios que conferem tutela jurídica específica aos elementos imateriais do
estabelecimento empresarial, (i) protegendo as marcas e desenhos industriais

1. Art. 966 do Código Civil. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
2. Art. 980-A do Código Civil. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída
por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que
não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
3. Art. 982 do Código Civil. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que
tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e
simples, as demais.
4. Art. 1.142 do Código Civil. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado,
para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.

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Art. 1º LEI DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL COMENTADA • ANDRÉ L. S. C. RAMOS/THIAGO M. GUTERRES

registrados e as invenções e modelos de utilidade patenteados, bem como (ii)


reprimindo as falsas indicações geográficas e a concorrência desleal.

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1º Esta Lei regula direitos e obrigações relativos à
propriedade industrial.

O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA MATÉRIA


No plano constitucional, quase todas as Constituições brasileiras, ao longo
de nossa história, cuidaram do direito de propriedade industrial.
A nossa primeira Constituição, de 1824, já se referia à proteção da proprie-
dade industrial em seu art. 179, inciso XXVI, que assim dispunha: “os inventores
terão propriedade de suas descobertas ou das produções. A lei lhes assegurará
um privilégio exclusivo e temporário ou lhes remunerará em ressarcimento da
perda que hajam de sofrer pela vulgarização”.
A Constituição de 1891 também tratou do assunto, mantendo a garantia
de privilégio aos inventores ao dispor, em seu art. 72, § 25, que “os inventos
industriais pertencerão aos seus autores, aos quais ficará garantido por lei um
privilégio temporário, ou será concedido pelo Congresso um prêmio razoável
quando haja conveniência de vulgarizar o invento”.
A Constituição de 1934 praticamente não alterou a redação do texto cons-
titucional anterior, assim dispondo em seu art. 113, item 18: “Os inventos indus-
triais pertencerão aos seus autores, aos quais a lei garantirá privilégio temporário
ou concederá justo prêmio, quando a sua vulgarização convenha à coletividade”.
A Constituição de 1937, porém, não trouxe nenhuma referência expressa
aos direitos de propriedade industrial.
A Constituição de 1946, por sua vez, voltou a dispor de forma expressa
sobre as criações e os inventos industriais, fazendo-o no seu art. 141, § 17: “Os
inventos industriais pertencem aos seus autores, aos quais a lei garantirá privilégio
temporário ou, se a vulgarização convier à coletividade, concederá justo prêmio”.
A Constituição de 1967 também cuidou da matéria em seu art. 150, § 24,
dispondo que “a lei garantirá aos autores de inventos industriais privilégio tem-
porário para sua utilização e assegurará a propriedade das marcas de indústria
e comércio, bem como a exclusividade do nome comercial”.
Finalmente, a nossa atual Carta Magna, de 1988, seguindo a tradição
constitucional brasileira quanto a esse tema, cuida dos direitos de propriedade
industrial na parte dos direitos e garantias individuais, estabelecendo, em seu
art. 5º, inciso XXIX, o seguinte: “a lei assegurará aos autores dos inventos
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Art. 1º

industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às


criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a
outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País”.
Portanto, a Lei 9.279/1996, que comentaremos detalhadamente a seguir,
foi editada para atender um comando constitucional específico, previsto no art.
5º, XXIX, da CF/1988.

O GÊNERO “PROPRIEDADE INTELECTUAL” E SUAS ESPÉCIES


O direito de propriedade industrial é espécie do direito de propriedade
intelectual, que também abrange o direito autoral e outros direitos sobre bens
imateriais. Em suma: o direito de propriedade intelectual é gênero, do qual são
espécies o direito do inventor (direito de propriedade industrial), intrinseca-
mente ligado ao direito empresarial, e o direito do autor (direito autoral), mais
ligado ao direito civil.
Apesar de o direito de propriedade industrial e o direito autoral terem algo
em comum, que é o fato de protegerem bens imateriais resultantes da atividade
criativa do gênio humano, possuem também muitas diferenças. Por exemplo: (i) a
proteção dos direitos de propriedade industrial depende da concessão do registro
ou da patente, conforme o caso (art. 2º da Lei 9.279/1996), ao passo que a proteção
dos direitos autorais independe de registro (art. 18 da Lei 9.610/19985); (ii) existe
um órgão estatal específico para concessão de registros e patentes relativos aos
direitos de propriedade industrial (Instituto Nacional da Propriedade Industrial
– INPI; art. 2º da Lei 5.648/1970), enquanto os direitos autorais são registrados,
facultativamente e conforme a sua natureza, em órgãos variados que não foram
criados especificamente para isso (Biblioteca Nacional, Escola de Música, Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Nacional do
Cinema e Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA;
art. 17 da Lei 5.988/19736); e (iii) os prazos de vigência dos direitos de proprie-
dade industrial (arts. 40, 108 e 133 da Lei 9.279/1996) são distintos dos prazos
de vigência dos direitos autorais (art. 41 da Lei 9.610/19987).

5. Art. 18 da Lei 9.610/1998. A proteção aos direitos de que trata esta Lei independe de registro.
6. Art. 17 da Lei 5.988/1973. Para segurança de seus direitos, o autor da obra intelectual poderá
registrá-la, conforme sua natureza, na Biblioteca Nacional, na Escola de Música, na Escola de
Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto Nacional do Cinema, ou no
Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia.
7. Art. 41 da Lei 9.610/1998. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados
de 1º de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da
lei civil.

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PROPRIEDADE INDUSTRIAL OU MONOPÓLIO INDUSTRIAL?


Apesar de o dispositivo legal em análise mencionar que a Lei 9.279/1996
regula os direitos e obrigações relativos à “propriedade industrial” e de o termo
genérico “propriedade intelectual” já estar consagrado, não há consenso acerca
da natureza de “propriedade” desses direitos, de modo que muitos estudiosos
preferem usar outras expressões, como “privilégio intelectual/industrial” ou
“monopólio intelectual/industrial”.

Considerar o direito do inventor como direito de propriedade tem livre curso


na doutrina e legislação sobretudo nos países latinos, desde que adotada no
Congresso Internacional de Paris de 1878, todavia, na moderna doutrina
italiana, Franceschelli, Ferro, Corrado, Grosso e Sena qualificam os direitos
de propriedade industrial e intelectual como direitos de monopólio.8

Uma linha de argumentação em defesa das patentes (e dos direitos de


propriedade intelectual em geral) como um “direito de propriedade” se baseia
no conceito de apropriação original (homesteading) formulado por John Loc-
ke: como os indivíduos têm direito natural aos frutos de seu próprio trabalho,
tudo o que uma pessoa cria com seu próprio esforço e inteligência só poderia
pertencer a ela e a ninguém mais, pois o que ela fez não existiria senão pelo
próprio trabalho.
Essa abordagem ganhou força com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 1948, que afirma “o direito à proteção dos interesses morais e mate-
riais resultantes de trabalhos científicos, literários ou artísticos pelo seu autor”.
Autores como Ayn Rand, por exemplo, parecem seguir essa abordagem:

O que as leis de patentes e de direitos autorais reconhecem é o papel


fundamental do esforço mental na produção de valores materiais; essas leis
protegem a contribuição da mente em sua forma mais pura: a criação de uma
ideia. O cerne das patentes e dos direitos autorais é a propriedade intelectual.
Uma ideia, como tal, não pode ser protegida até que tenha obtido uma
forma material. Uma invenção tem de ser incorporada em um modelo físico
antes que possa ser patenteada; uma história tem de ser escrita ou impressa.
Mas o que a patente ou o direito autoral protege não é o objeto físico em si,
mas a ideia que ele encarna. Proibindo a reprodução não autorizada do objeto,
a lei declara, com efeito, que o trabalho físico de copiar não é a fonte do valor
do objeto, que esse valor é criado pelo autor da ideia e não pode ser usado
sem o seu consentimento; assim, a lei estabelece o direito de propriedade de
uma mente sobre o que trouxe à existência.

8. DOMINGUES, Douglas Gabriel. Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Forense,
2009. p. 17.

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Art. 1º

É importante notar, a esse respeito, que uma descoberta não pode


ser patenteada, mas apenas uma invenção. Uma descoberta científica ou
filosófica, que identifica uma lei da natureza, um princípio ou um fato da
realidade não conhecido anteriormente, não pode ser propriedade exclusiva
do descobridor, por que: (a) ele não criou essas coisas, e (b) se ele se preocupa
em tornar sua descoberta pública, alegando que ela seja verdadeira, ele não
pode exigir que os homens continuem a perseguir ou praticar falsidades,
salvo com a sua permissão. Ele pode escrever um livro no qual ele apresenta
a sua descoberta e exigir que a sua autoria da descoberta seja reconhecida, e
que nenhum outro homem possa plagiar seu trabalho, mas ele não pode ter
direitos autorais sobre o conhecimento teórico. Patentes e direitos autorais
cabem somente para a aplicação prática do conhecimento, para a criação de
um objeto específico que não existe na natureza, um objeto que, no caso de
patentes, poderia nunca ter existido se seu criador não existisse; e, no caso
dos direitos de autor, nunca teria existido.
O governo não “concede” uma patente ou direitos autorais no sentido
de um presente, privilégio ou favor; o governo só protege, ou seja, o governo
certifica a origem de uma ideia e protege o direito exclusivo de seu dono.9

Um primeiro problema dessa defesa jusnaturalista das patentes como


um “direito de propriedade” do criador/inventor está na arbitrariedade da sua
concessão, já que nem toda criação/invenção é patenteável. Como se sabe, as
leis de “propriedade industrial” – que geralmente seguem as mesmas regras e
princípios, em razão de variados Tratados internacionais sobre a matéria não
admitem a concessão de patentes sobre “descobertas, teorias – científicas e mé-
todos matemáticos”, tampouco sobre “concepções puramente abstratas”,10 por
mais complexas e relevantes que elas possam ser.
O espírito humano possui uma espantosa capacidade de criação. O seu
ponto mais alto está na criação das ideias. Prolonga-se depois na expressão
destas, na inventividade, na aplicação industrial, na execução artística. Mas
nem por isso toda a criação intelectual é protegida por um direito intelectual
exclusivo. Podemos mesmo dizer que os pontos mais altos do gênio humano
não recebem nenhuma proteção. Antes de mais, as ideias. As grandes con-
cepções filosóficas, por exemplo. Também as descobertas. As geniais teorias
científicas. Ou os estilos de arte. Ou os modos de representação e execução
artísticas. Tudo isto é livre. Pode ser imediatamente apoderado ou imitado
por quem deles tiver conhecimento.11

9. RAND, Ayn. Capitalism: the unknown ideal. New York: New American Library, 1967. p. 130 (tra-
dução livre).
10. Art. 10 da Lei nº 9.279/1996. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I – descobertas,
teorias científicas e métodos matemáticos; II – concepções puramente abstratas; (...).
11. ASCENSÃO, José Oliveira. “A pretensa ‘propriedade’ intelectual”. Revista do Instituto dos Advogados
de São Paulo, v. 20, p. 243-254, jul. 2007.

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Em contrapartida, inventos simples, mas que possuem alguma “aplicação


prática”, são patenteados constantemente e rendem bastante dinheiro aos seus
criadores/inventores. Em suma: uma invenção/criação teórica complexa, ainda
que genial e feita após grande esforço intelectual, como a fórmula E=mc2 (fór-
mula de equivalência massa-energia, “descoberta” por Einstein), não merece
proteção legal. Já uma criação/invenção prática simples, como um “lacre para
conservas” ou um “porta sabão em pó com dosador”12, pode embasar a concessão
de patentes valiosas. Ora, não há como negar a arbitrariedade dessa distinção,
como bem destacado por Stephan Kinsella:

Um problema com a abordagem da criação é que ela quase que inva-


riavelmente protege apenas certos tipos de criações – a menos que cada ideia
útil que alguém elabore esteja sujeita a posse. Mas a distinção entre o que é
protegido e o que não é protegido é necessariamente arbitrária. Por exemplo,
verdades matemáticas ou científicas não podem ser protegidas sob as leis atuais
com base no fato de que o comércio e interação social seriam interrompidos
gradualmente caso cada nova frase e verdade filosófica fossem considerados
propriedade exclusiva de seu criador. Por essa razão, patentes só podem ser
obtidas para “aplicações práticas” de ideias, mas não para ideias mais abstra-
tas ou teóricas. Rand concorda com esse tratamento diferenciado, ao tentar
distinguir entre uma descoberta não patenteável e uma invenção patenteável.
Ela argumenta que uma “descoberta científica ou filosófica, que identifica
uma lei natural, um princípio ou um fato real previamente desconhecido”
não é criado pelo descobridor.
Mas a distinção entre criação e descoberta não é clara nem rigorosa.
Não é evidente porque tal distinção, mesmo se clara, é eticamente relevan-
te para definir direitos de propriedade. Ninguém cria matéria; apenas se
manipula e lida com ela de acordo com leis físicas. Nesse sentido, ninguém
de fato cria algo. Meramente se rearranja matéria em novos arranjos e
padrões. Um engenheiro que inventa uma nova ratoeira rearranjou partes
existentes para prover uma função até então não desempenhada. Outros
que aprendem esse novo arranjo podem agora fazer uma ratoeira melhor.
Ainda assim a ratoeira meramente segue as leis da natureza. O inventor não
inventou a matéria da qual a ratoeira consiste, nem os fatos e leis exploradas
para fazê-la funcionar.
Similarmente, a “descoberta” de Einstein da relação E=mc2, uma vez
conhecida por outros, lhes permite manipular matéria de uma forma mais
eficiente. Sem os esforços de Einstein ou do inventor, outros teriam sido

12. Patente de invenção nº 9101018-7 (processo para formação de um furo de alívio portador de
lacre obturador destacável, em tampas metálicas, destinadas ao fechamento inviolável e à
vácuo de copos outras embalagens de vidro) e Patente de modelo de utilidade nº 7702338-2
(disposição construtiva em porta sabão em pó e similares). Fonte: <www.secitec.mt.gov.br>,
05.12.2012.

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ignorantes de certas leis causais, de maneiras em que a matéria poderia ser


manipulada e utilizada. Tanto o inventor quanto o cientista teórico tomam
parte em esforço mental criativo para produzir novas ideias, ideias úteis. Mas
um é recompensado e outro não. Em um caso recente, o inventor de uma nova
forma de calcular um número representando o caminho mais curto entre dois
pontos – uma técnica extremamente útil – não foi agraciado com proteção de
patentes porque se tratava “meramente” de um algoritmo matemático. Mas
é arbitrário e injusto recompensar inventores mais práticos e provedores de
entretenimento, tais como o engenheiro e o compositor, e deixar pesquisa-
dores mais teóricos de ciência e matemática e filósofos sem recompensas. A
distinção é inerentemente vaga, arbitrária e injusta.13

No excerto supratranscrito, Kinsella nos alerta para outra questão relevan-


te: nenhuma invenção é criada do nada, principalmente nos dias atuais. No
atual estágio de desenvolvimento da sociedade, tudo o que se cria ou se inventa,
por mais inovador que seja, é resultado de uma gama enorme de conhecimento
acumulado ao longo do tempo, e isso nos leva a outro problema das patentes:
como atribuir valor ao trabalho intelectual realizado pelo inventor? Afinal, se o
inventor tem direito natural de propriedade relativo aos frutos do seu trabalho
intelectual, a ele só seria devido o valor equivalente à sua contribuição, o que
não corresponde necessariamente ao valor total da obra resultante, já que ideias
partem sempre de outras previamente concebidas e difundidas. Nesse sentido,
observa Butler Shaffer:

A proposição de que o conhecimento e as ideias podem ser transfor-


mados em propriedade exclusiva de quem descobre ou expressa o que era
até então desconhecido é algo contrário à natureza da mente inteligente, cujo
conteúdo é montado a partir de uma mistura de experiências de outros e de
si mesmo. Até mesmo a linguagem com que alguém formula e comunica seu
conhecimento para os outros foi provida por antecessores14

O smartphone, por exemplo, é uma criação desenvolvida a partir de ideias e


tecnologias que remontam à invenção do telefone. Nessa perspectiva, seria injusto
afirmar que o inventor do smarphone – por ser este fruto de seu labor intelectual
– tem direito natural ao valor total atribuído à sua invenção. O smartphone, na
verdade, é resultado do esforço intelectual combinado de vários inventores ao
longo de mais de uma centena de anos. Por outro lado, dificilmente alguém poderá
sugerir que Graham Bell pôde se apropriar inteiramente dos frutos decorrentes

13. KINSELLA, Stephan. Contra a propriedade intelectual. Tradução de Rafael Hotz. São Paulo: Instituto
Ludwig vonMises Brasil, 2010. p. 20-22.
14. SHAFFER, Butler. A libertarian critique of intellectual property. Auburn: Ludwig vonMises Institute,
2013. p. 30. (tradução livre)

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do seu trabalho na invenção do telefone, frutos estes que repercutem até os dias
de hoje, obviamente. Nesse sentido, Butler Shaffer mais uma vez questiona:

Se realmente acreditamos que o processo criativo requer que o Estado


conceda aos inventores e descobridores uma imunidade para impedir que
suas obras sejam usadas por outros, vamos exigir que os produtores modernos
compensem os descendentes de criadores anteriores pelo trabalho preliminar
deles ou, alternativamente, abandonem as suas pretensões de recompensas por
sua suposta “originalidade”? A General Motors, a Chrysler, a Harley-Davidson
e a Schwinn Bicycle Company deveriam ser obrigadas a pagar royalties para
a prole (se for possível identificá-la) do inventor da roda? Simon & Schuster,
Random House e inúmeras editoras universitárias devem pagar royalties aos
herdeiros de Johann Gutenberg pela utilização da sua invenção, que tornou
possível seus negócios? Deveriam as orquestras sinfônicas ser obrigadas a
pagar royalties para os descendentes dos compositores cujas músicas elas
tocam?15

Alguém pode tentar refutar o questionamento de Shaffer, transcrito acima,


apontando o fato de que as patentes e os demais privilégios intelectuais pos-
suem prazo de vigência. Ocorre que isso, na verdade, só corrobora a crítica à
consideração desses monopólios temporários como “direitos de propriedade”, pois
se fossem realmente propriedade dos seus criadores/inventores, não deveriam
ter prazo de duração. Além disso, o próprio estabelecimento desses prazos é
também questionável, pois a sua definição também é absolutamente arbitrária.
Nas palavras de Kinsella:

Além disso, adotar um término limitado para direitos sobre PI, oposto
a um direito perpétuo, também requer arbitrariedade. Por exemplo, patentes
duram por vinte anos após a data de arquivamento, enquanto direitos autorais
duram, no caso de autores individuais, por setenta anos após a morte do autor.
Ninguém pode manter seriamente que noventa anos para uma patente é muito
pouco, e que vinte anos é muito, mais do que o preço atual para um galão de
leite pode ser objetivamente classificado como muito baixo ou muito alto.
Assim, um problema com a abordagem de direitos naturais validando a PI
é que ela necessariamente envolve distinções arbitrárias com respeito a que
classes de criações merecem proteção, e com respeito ao término da proteção.16

Nesse ponto, cabe uma observação: por mais que sejam arbitrários os crité-
rios para delimitação dos prazos de vigência das patentes e dos demais privilégios

15. SHAFFER, Butler. A libertarian critique of intellectual property. Auburn: Ludwig vonMises Institute,
2013. p. 37-38 (tradução livre).
16. KINSELLA, Stephan. Contra a propriedade intelectual. Tradução de Rafael Hotz. São Paulo: Instituto
Ludwig vonMises Brasil, 2010. p. 22.

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