658-Texto Do Artigo-2609-1-10-20130323

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A APLICABILIDADE DA LEI PENAL

E A PUNIBILIDADE DO SENSO COMUM:


a criminologia da reação social
na conduta desviada

Charlise Paula Colet


Patrícia Borges Moura

Res u mo:
O presente trabalho objetiva, em linha geral, analisar a influência das leis sociais,
costumes e crenças nas relações entre o s indivíduos na sociedade, explicando a
necessidade do ser humano de criar estereótipos e perfis determinantes de condu-
tas a serem reproduzidas no meio pela própria sociedade. Para o desenvolvimento
do tema em apreço busca-se, em um primeiro momento, contrapor a Criminologia
Tradicional à Criminologia Crítica, delineando a extensão de cada uma no compor-
tamento societário a fim de que seja identificada a escola criminológica de maior
influência no tecido social, a qual atua no etiquetamento do s indivíduos que não
a pres enta m ca racterístic as soc ioec onô micas ad equa das ao me io em que es tão
inseridos. Na seqüência objetiva-se, a partir da utilização da estatística criminal, com
a coleta de dados junto à Delegacia de Polícia, à Penitenciária Modulada e ao corpo
social, a classificação do perfil da conduta desviada no município de Ijuí, Estado do
Rio Grande do Sul (RS), conforme suas características econômicas e sociais, pos-
sibilitando-se que sejam delineadas as determinantes sociais que levam certos indi-
víduos a serem etiquetados pelo tecido social como “criminosos”. Em um terceiro
momento, propõe-se analisar a criminalidade da reação social na conduta desviada
de forma a elucidar que o senso comum não atua de acordo com o preceito legal,
po is o pró prio sistema pen al des encad eia um proc esso de c rimina lizaç ão, cuja
conotação social do perfil estereotipado origina o etiquetamento de determinados
ind ivíduos.

Pala vra s-c ha ve:


Criminologia. Etiquetamento social. Conduta desviada. Senso comum.

Ab strac t:
The present paper aims, in a general aspect, to analyze the influence of the social
laws, costumes and believes in the relations among the individuals in the society,
explaining the human being necessity to create stereotypes and profiles to determinate

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em
the reproduced behaviors by the own society. Focusing the subject development, at
a first moment, it aims to contrapo se the Tradition al to th e Critic al Criminolo gy,
delineating the extension of each one in the society behavior in order to identify the
criminolo gic ins titute with the most influenc e power in the so cial tissue, which
provokes the individuals’ labeling who do not present appropriate socioeconomic
cha racteristics to th e sp ace they are inserted. In s equence, it a ims, through the
criminal statistics, with data collection in the police station, in the prison establishment
and in the social group, to classify the penal delinquent in the city of Ijuí, state of Rio
Grande do Sul (RS), making possible to delineate the social determinants responsible
for the criminal labeling. In a third moment, it is analyzed the social reaction criminality
in the deviant behavior to elucidate that the common sense does not follow the legal
norm because the penal system creates a criminalization process, which the social
reaction of the stereotyped profile develops the social labeling of some individuals.

Ke ywords :
Criminology. Social labeling. Deviant behavior. Common sense.

Sumá rio:
Introdução. 1 Escolas Criminológicas. 2 Estatística Criminal. 3 A Criminalidade da
Reação Social na Conduta Desviada. Conclusão. Referências.
A APLICABILIDADE DA LEI PENAL E A PUNIBILIDADE DO SENSO COMUM

INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva analisar a influência das leis sociais, costu-
mes e crenças nas relações entre indivíduos na sociedade em geral, explicando
a necessidade do ser humano de criar estereótipos e perfis determinantes de
condutas a serem reproduzidas no meio, devido ao comportamento da socie-
dade diante do crescimento da criminalidade no município de Ijuí/RS, bem
como as atitudes de seus membros perante o autor do fato delituoso no espa-
ço geográfico em debate.

Em um primeiro momento, o objetivo será contrapor a Criminologia


Tradicional e a Criminologia Crítica, dado que a primeira procura estudar as
causas do crime, preocupando-se em prevenir sua ocorrência, enquanto a
última atua no âmbito de entender as conseqüências do “etiquetamento” do
criminoso e como tal fenômeno ocorre.

Em adição, buscar-se-á confrontar o conceito legal, teórico, defendido


pela Criminologia Tradicional ante a Criminologia Crítica, no que pesem suas
idéias de entender o autor do ilícito penal por meio da análise da linguagem,
atitudes, regras e significados que este emite.

Em consonância com este raciocínio atua o Labeling Approach, no


paradigma da reação social, mostrando que a criminalidade tem natureza so-
cial e definidora, acentuando seu papel no controle social e na sua construção
seletiva, direcionando a investigação das “causas” do crime para a reação
social da conduta desviada.

Destarte, buscar-se-á evidenciar a existência dos conceitos de “condu-


ta desviada” e “reação social” como temas interdependentes na punibilidade
do senso comum, mostrando-se que a criminalidade é uma qualidade atri-
buída a determinados sujeitos componentes da sociedade, porém provenien-
tes da camada minoritária, não se adequando às características do grupo
selecionador.

Neste diapasão, traça-se um paralelo entre a aplicabilidade da lei penal


e a punibilidade do senso comum, provando-se, assim, que o senso comum
não atua de acordo com o preceito legal, além de identificar, por meio de

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dados estatísticos, provenientes da Delegacia de Polícia, Penitenciária Modu-


lada de Ijuí e entrevista junto ao corpo social, qual o caráter seletivo do com-
portamento do criminoso escolhido pela sociedade, consoante as característi-
cas socioeconômicas do indivíduo.

1 ESCOLAS CRIMINOLÓGICAS

A história da criminologia traz consigo a história de um tempo, acresci-


do por métodos, técnicas e investigações, áreas de interesse e envolvimentos
teóricos e ideológicos, os quais identificam o problema criminológico com os
problemas reais e métodos que os selecionaram.1

A Criminologia2 é uma ciência causal-explicativa, eis que objetiva o


estudo do fenômeno natural casualmente determinado, buscando explicar os
elementos que compõem tal fenômeno, quais sejam, a vítima, as determinantes
que atuam sobre a pessoa, a conduta ilícita e os meios disponíveis na sociedade
para a ressocialização do autor do delito, bem como auxiliam na formação das
estatísticas criminais oficiais a fim de produzir uma medida eficaz de sanar a
vertente criminosa.3

Não obstante o exposto, além de definir a conduta transgressora, o


texto detém-se na análise das causas que levaram a tal prática, desenvolvendo
e criando meios educativos e terapêuticos aplicáveis ao criminoso a fim de que
este não venha mais a cometer delitos infracionais.

1
Andrade, Manuel da Costa; Dias, Jorge de Figueiredo. Criminologia : o homem delin-
qüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
2
Etimologicamente, Criminologia deriva do latim crimen (crimen, delito) e do grego logo
(tratado), sendo conceituada como uma ciência que estuda o crime, o delinqüente, a
vítima e o controle social do comportamento delitivo.
3
Andrade, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social:
mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum.
Seqüência – Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis: UFSC, 1995.

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Verifica-se, neste diapasão, que enquanto o Direito Penal almeja a paz e


a segurança social mediante a aplicação de medidas-sanções aos atos de
criminalidade, inibindo o crime, a Criminologia foca seu estudo nos fatores
criminógenos, buscando identificar as razões de o homem tornar-se crimino-
so ou apresentar comportamento desviante ao padrão da sociedade.4

Neste sentido, o instituto em comento envolve duas subdivisões, as


quais sofreram influências ao longo do tempo e da própria interdisciplinaridade
da Criminologia ao envolver a Psicologia, a Biologia e a Sociologia, conside-
rando-se como ramos desta ciência a Criminologia Tradicional e a Criminologia
Crítica, cada qual com suas classificações.

A Criminologia, por se tratar de uma ciência humana e social, conecta


diversas áreas de conhecimento para o estudo do homem criminoso e dos
fatores criminógenos que o envolvem, fazendo com que os pensadores defen-
dam suas teses, o que, em decorrência, influencia a criação de escolas, quais
sejam, a Escola Clássica, a Escola Positiva e a Sociologia Criminal.

Presente nos séculos 18 e 19, a Escola Clássica conceitua o ser humano


como dotado de razão e livre-arbítrio, o qual age em busca da satisfação do
próprio prazer e do bem-estar geral. Desta forma, a conduta criminosa é livre
opção do indivíduo, que avalia os riscos e benefícios advindos de tal ação,
sendo a penalização reflexo direto da infração cometida, bem como necessá-
ria para a manutenção da ordem.5

4
Isto é, conforme Farias Júnior (In: Manual de Criminologia. Curitiba: Educa, 1990),
além de traçar o comportamento criminoso, a Criminologia está voltada para a segurança
das pessoas que convivem em sociedade, não havendo similaridade de seu propósito com
o Direito Penal.
5
Assim, o livre-arbítrio do indivíduo possibilitava que este perpetrasse um delito, não
sendo suas características patológicas diferentes do indivíduo “normal”. Por conseguinte,
o Direito Penal e a pena em si eram meios de defesa que a sociedade possuía diante do
crime, sendo os limites de sua utilização definidos de acordo com a necessidade da
imposição do poder punitivo do Estado (Baratta, 1997).

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Por conseguinte, a partir da obra O Homem Delinqüente, de Cesare


Lombroso, a Escola Positiva,6 sucessora da Clássica, passou a existir, em me-
ados do século 19, defendendo que o homem criminoso é nato, idêntico ao
louco moral, apresentando base epilética e constituindo um conjunto de ano-
malias. Ainda cumpre destacar que os fatores sociais eram admitidos, porém
os fatores biológicos predominavam ao determinar o comportamento crimi-
noso.7

Em adição, defende o determinismo penal, ou seja, a não existência do


livre-arbítrio, mas sim de previsibilidade no comportamento do ser humano.
Nesse sentido, não há eficácia na pena, eis que a conduta ilícita é um sintoma
de uma doença e como tal deve ser tratada.

A terceira escola, conhecida como Sociologia Criminal, presente nos


séculos 19 e 20, defendida por Lacassagne, Tarde e Durkheim, trabalha com o
fator previsibilidade, dado que o crime é um fenômeno coletivo, passível da
aplicabilidade das leis do determinismo sociológico, isto é, sofre a influência
dos fatores psíquicos e dos caracteres pessoais na atribuição criminógena ao
indivíduo. Assim, a sociedade contém os germes de todos os crimes, sendo o
criminoso apenas um instrumento de tal comportamento.8

6
Nesta escola, há três teorias norteadoras da conduta infracional. A teoria Biantropológia
sustenta que o crime advém das características congênitas presentes na estrutura do
indivíduo; a teoria Psicodinâmica, por sua vez, diferencia aquele que comete o crime
daquele que não o faz, porém não pelas características congênitas, mas a partir das falhas
do proce sso de apre ndizage m e soc ializaç ão do delinqüente. Por último, a teoria
Psicosociológica compreende o infrator pelos elementos sociais e situacionais que envol-
vem sua personalidade (Silva Junior, 2007).
7
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia . Curitiba: Educa, 1990.
8
Andrade, Manuel da Costa; Dias, Jorge de Figueiredo. Criminologia : o homem delin-
qüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

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Desta forma, consoante exposição de Farias Júnior,9 a partir da apre-


sentação dos fatores criminógenos realizada por Enrico Ferri (1856-1929), a
personalidade do criminoso completa-se com a sua constituição orgânica,
bem como a sua constituição psíquica e de seus caracteres pessoais.10

Ainda é mister destacar a incidência, além dos determinantes anterio-


res, dos fatores físicos, relativos às condições meteorológicas, e dos fatores
sociais, os quais compreendem a densidade da população, costumes, crenças,
condições econômicas e políticas, além da organização legislativa, civil e pe-
nal.11

Também denominada Nova Criminologia, é o movimento criminológico


que surgiu nos meados no século 20, posterior à Criminologia Tradicional do
século anterior. Marcada por conflitos históricos nos Estados Unidos e na
Europa, mudanças de governo, revoltas estudantis, guerras políticas e raciais,
proliferação do uso de drogas, adoção do estilo hippie de vida, tem na obra
The New Criminology: For a Social Theory of Deviance o estopim da discus-
são acerca do processo de criminalização, além da legitimação e funciona-
mento da Justiça Penal.12

Inobstante o exposto, Farias Júnior13 refere que a

CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU CRIMINOLOGIA RADICAL é uma


doutrina erigida por criminólogos socialistas ou comunistas que bus-
cam combater a criminologia ortodoxa tradicional, conservadora, sob a

9
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia . Curitiba: Educa, 1990. p. 21-26.
10
Constituição orgânica compreende as anomalias do crânio, do cérebro, das vísceras e da
sensibilidade reflexa, enquanto constituição psíquica contempla as anomalias da inteli-
gência, do sentimento e do senso moral. Por seu turno, os caracteres pessoais refletem as
condições biológicas do indivíduo, isto é, raça, idade, estado civil, profissão, sexo, domi-
cílio, classe social e grau de escolaridade.
11
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia . Curitiba: Educa, 1990.
12
Oliveira Edmundo. As vertentes da criminologia crítica . Disponíve l e m: <http:/ /
www.ufpa.br/posdireito/caderno3/texto2_c3.html>. Acesso em: 21 set. 2007.
13
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Educa, 1990. p. 119.

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alegação de que é uma criminologia destinada a servir mais à repressão,


à interação criminógena, à criminalização pelas instituições do Estado, à
estratificação social deletéria e também criminógena. Enfim, é uma teo-
ria extremada, radical, que critica o sistema penal e a sociedade capitalis-
ta, por achar que atende às classes dominantes.

Ademais, a Criminologia Crítica busca analisar o processo de


criminalização a partir das instituições e organismos de controle, bem como
criticando o Direito Penal como forma de controle social a serviço de determi-
nada ideologia, visando a determinados interesses.14

Desta forma, os agentes integrantes dos aparelhos de repressão e con-


trole ao crime estigmatizam, rotulam ou etiquetam o indivíduo que o pratica,
fazendo com que este, mesmo não sendo “desviado”, venha a se tornar devido
ao tratamento degradante interposto pela sociedade criminalizadora. Ou seja,
trata-se de uma violência institucionalizada contra os indivíduos que cometem
delitos, concretizando o processo de criminalização mediante a norma penal
que norteia as diretrizes de tal processo.15

No que tange as suas classificações, a Criminologia Crítica subdivide-se


em Criminologia da Reação Social ou Labeling Approach, Etnometodologia,
Criminologia Radical, Criminologia Abolicionista, Criminologia Minimalista,
e Criminologia Neo-Realista, institutos estes detalhados na seqüência.

Assim, enquanto o Labeling entende que o criminoso distingue-se do


indivíduo normal devido à rotulação recebida pelos meios de controle
societários, a Etnometodologia destaca o crime como construção social, re-
querendo interpretação dos órgãos de controle, quais sejam, o legislador, a

14
Ao referir-se à Teoria Criminológica Interacionista, alicerce desta Criminologia, Hermann
(apud Farias Júnior, João. Manual de Criminologia . Curitiba: Educa, 1990. p. 1 24)
afirma que a delinqüência não é uma característica do autor, mas ela depende da interação
que existe entre quem realiza o fato punível e a sociedade, quer dizer, entre o delinqüente
e os outros tipos, pois são os processos de detenção e estigmatização, mais a aplicação do
rótulo delitivo àquele que é selecionado (criminalizado), que fazem surgir um delin-
qüente e que influenciam a imagem e aparecimento de delinqüência a nível geral.
15
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Educa, 1990. p. 125.

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Polícia, o Ministério Público, os juízes e os órgãos de execução penal. Já a


Criminologia Radical requer uma redefinição do objeto e papel da investiga-
ção criminal, distanciando-se da conceituação legal de crime e do controle
daqueles que apresentam condutas “desviantes”.

Por sua vez, a Criminologia Abolicionista clama pelo diálogo e soli-


dariedade dos grupos sociais objetivando à solução das desigualdades e dife-
renças mediante o emprego de instrumentos que venham a privatizar os con-
flitos, e a Minimalista defende a criação de uma legislação penal de conteúdo
mínimo, preservando direitos humanos e liberdades individuais.16

Por seu turno, a Criminologia Neo-Realista defende que o objeto de


estudo da Criminologia Crítica sejam as causas e as circunstâncias do delito,
delatando as injustiças presentes no sistema de controle social.

A Criminologia da Reação Social ou Labeling Approach17 supera o


paradigma etiológico, o qual defende o estudo do delinqüente e as causas de
seu comportamento, passando à análise dos órgãos de controle social, cuja
função primordial é o controle e a repressão do desvio de comportamento,
também compreendido por paradigma da reação social.18

Desta forma, seu foco desvia do delinqüente e da própria infração co-


metida, delineando seu objeto de estudo ao sistema de controle estatal no que
pese a prevenção, além de apreciar as normas e os meios de reação à
criminalidade.

16
Oliveira, Edmundo. As vertentes da criminologia crítica . Disponível em: <http:/ /
www.ufpa.br/posdireito/caderno3/texto2_c3.html>. Acesso em: 21 set. 2007.
17
Baratta, Dias e Andrade (apud Andrade, 1995, p. 30) fundamentam que ao invés de
indagar, como a Criminologia Tradicional, “quem é o criminoso?”, “por que é que o
criminoso comete crime?”, o Labeling passa a indagar “quem é definido como desviante?”
“por que determinados indivíduos são definidos como tais?”, “em que condições um
indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?”, “que efeito decorre desta definição
sobre o indivíduo?”, “quem define quem?” e, enfim, com base em que leis sociais se
distribui e concentra o poder de definição?
18
Baratta, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociolo-
gia do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

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Em suma, conforme Baratta,19 o Labeling

parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se


não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela,
começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais
(polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por
isso, o status social da delinqüência, enquanto não adquire esse status
aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível,
não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, esse
não é considerado e tratado pela sociedade como “delinqüente”. Neste
sentido, o Labeling Approach tem se ocupado principalmente com as
reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua
função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de vista
tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos
de acusação pública e dos juízes.20

Assim, as camadas mais privilegiadas tendem a exercer o etiquetamento


da minoria desviante, resultando na desigualdade criminal, evidenciada pelo
estereótipo da camada pobre devido as suas características econômicas, físi-
cas, sociais e culturais.

Na teoria do etiquetamento o criminoso é distinguido do ser humano


pela rotulação que recebe pelos meios formais de controle, defendendo que a
sociedade “concebe” o criminoso a partir de suas atitudes.

19
Ibidem, p. 86.
20
Zaffaroni e Baratta (apud Andrade, 1995, p. 31-32) ponderam que a criminalidade se
manifesta como o comportamento da maioria, antes que de uma minoria perigosa da
população e em todos os estratos sociais. Se a conduta criminal é majoritária e ubíqua e
a clientela do sistema penal é composta, “regularmente”, em todos os lugares do mundo,
por pessoas pertencentes aos mais baixos estratos sociais, isto indica que há um processo
de seleção de pessoas, dentro da população total, às quais se qualifica como criminosos.
E não, como pretende o disc urso penal oficial, uma criminalização (igualitária) de
condutas qualificadas como tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas
pessoas, mais que contra certas ações legalme nte definidas como c rime. A conduta
criminal não é, por si só, condição suficiente deste processo, pois os grupos poderosos
na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase total impunidade
das próprias condutas criminosas.

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Por conseguinte, sustenta Becker21 que, para que um ato seja conside-
rado “desviante” depende não somente de sua natureza, mas também da rea-
ção provocada nas pessoas. Assim, somente será possível detectar a
“criminalidade” da ação a partir da interação entre o ato e as pessoas que
convivem na sociedade em que ele foi praticado.

Nesse sentido, o desvio do foco do crime em si para as suas causas é a


finalidade a que se propõe o Labeling, traçando uma análise para a reação
social da conduta desviada e no próprio sistema penal.

2 ESTATÍSTICA CRIMINAL
A estatística criminal permite estabelecer uma conexão entre os fatores
sociológicos, biológicos e psíquicos e a criminalidade, enfatizando suas causas,
bem como as variações que pode sofrer a partir da ação do tempo e do espaço,
definindo medidas cabíveis com o escopo de atenuar sua incidência no meio
societário.2 2

A Criminologia Tradicional, de base positiva, utiliza-se da estatística


como método de observação da fenomenologia criminal, valendo-se de seus
dados para aplicação de leis e princípios defendidos.

Assim, a partir da coleta de dados é possível delinear a etiologia da


delinqüência, possibilitando a verificação da incidência da criminalidade em
uma área geográfica, contrastando o aumento ou diminuição da criminalidade
com o aumento ou diminuição da população, bem como pode relacionar a

21
Andrade, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da Segurança Jurídica. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997. p. 206.
22
Destaca-se o estudo de Garcia (apud Farias Júnior, João. Manual de Criminologia.
Curitiba: Educa, 1990 . p. 27 ) acerca do tema e m te la ao dispor que por meio da
estatística criminal é “possível observar-se o nexo de causalidade entre determinados
fatores e o crime, de maneira a se coibirem algumas das suas manifestações por meio de
providências que refreiem o poder malfazejo de tais fatores”.

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criminalidade com a miséria, desemprego, baixo nível escolar, falta de forma-


ção moral e familiar, condições de vida e experiências vivenciadas pelo delin-
qüente, dentre outros fatores societários.23

Nesse aspecto, complementa Thompson:24

estigmatizado como criminoso a suportar a constelação de preconceitos


e tratamento diferenciado por parte da sociedade [...] será a pessoa que,
além de haver concretizado um comportamento previsto em abstrato em
alguma norma penal, percorre todas as fases acima indicadas e termina
confinado numa penitenciária. Se alguém violar um preceito criminal,
porém escapar de cumprir na íntegra este trajeto, oficialmente não será
tido por criminoso. (grifo nosso).

A estatística criminal fornece a criminalidade revelada, isto é, aquela


que chegou ao conhecimento da autoridade policial, uma vez que a
criminalidade real não é possível pela existência das “cifras negras”.25 Ou seja,
apenas uma reduzida minoria de violações aos preceitos penais é comunicada
e termina em investigação criminal, razão pela qual se denomina de “cifras
negras” a incógnita existente entre os crimes cometidos e os crimes relatados
à autoridade competente.26

Os dados apresentados pelo presente trabalho foram coletados em três


etapas, todas realizadas no município de Ijuí, cidade localizada no Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul.

A primeira etapa do levantamento de dados realizou-se nas delegacias


de polícia dessa cidade, a partir de 24 formulários, referentes aos meses de
janeiro a dezembro, nos anos de 2006 e 2007, os quais contêm a classificação

23
Farias Júnior, João. Manual de Criminologia . Curitiba: Educa, 1990.
24
Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. p. 14-15.
25
Cifras negras se referem aos crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal,
denominando-as de infrações que ficam no “escuro”.
26
Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

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dos delitos adotada pela polícia no registro de ocorrências. Por conseguinte,


foram analisados os dados provenientes dos prontuários dos presos da Peni-
tenciária Modulada de Ijuí, a partir do levantamento feito por Freitas,27 desta-
cando-se o tipo penal, faixa etária, sexo, cor da pele, escolaridade, situação
econômica, profissão e localização geográfica.

Ao mesmo tempo, tal perfil será contrastado com a tipicidade da co-


municação de ocorrência, traçando-se um paralelo entre o crime com maior
índice de ocorrência no município em face do tipo penal com maior número
de apenados na predita instituição, no qual é possível apontar o perfil do preso
no município de Ijuí no ano de 2005. Ao final, junto ao seio da coletividade,
durante o ano de 2006, foi realizada uma pesquisa com cidadãos de diversos
pontos geográficos da comunidade ijuiense perguntando-se “qual o perfil do
autor de delitos em Ijuí?”, a fim de se constatar a presença do paradigma
criminológico no senso comum, permitindo-se, dessa forma, confeccionar a
correspondência entre os perfis elencados a partir da atuação da lei penal e do
senso comum, além de se definir onde está localizado o poder de definição do
criminoso.

Na análise dos dados coletados constata-se que os crimes contra o


patrimônio, além de terem maior incidência no município, são os mesmos que
tendem a condenar com maior freqüência, já que 52% dos presos no ano de
2005 cumpriam pena por crimes contra o patrimônio, bem como, nos anos de
2006 e 2007, esta classificação obteve, respectivamente, os percentuais de
52,15% e 57,21% dos registros policiais.

No que tange ao perfil do apenado da Penitenciária Modulada de Ijuí/


RS em contraste com o perfil do delinqüente indicado pela sociedade, o mes-
mo apresenta correspondência quanto ao sexo masculino – 98% de indica-
ções –, ao grau de escolaridade – referindo-se 46% aos apenados e 80% ao
indicado pela comunidade com ensino fundamental incompleto –, à faixa etária

27
Freitas, Ângela Patrícia Silveira de. A realidade prisional no município de Ijuí: conside-
rações sobre a pena de prisão como instrumento de ressocialização. Ijuí: Ed. Unijuí,
20 05 .

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– 55% e 96,67% respectivamente apontaram idade entre 18 e 29 anos – à


situação econômica – 92% dos apenados são pobres, enquanto o perfil carac-
terizado refere-se a 61,67%. Se considerarmos a classe baixa, contudo, junta-
mente com a pobreza, soma-se 93,33%, o que similariza com o exposto ante-
riormente.

Em adição, o tecido social apontou o delinqüente como sendo da cor


parda (45%), desempregado (57%), residindo, em sua totalidade, nos bairros
da cidade com índices de violência elevados.

Ao mesmo tempo, contrapondo-se as características levantadas pelos


membros da sociedade ao perfil deste, percebe-se uma grande distância de
realidades, qual seja: enquanto o delinqüente é visto como masculino, jovem,
pardo, pobre, com baixa instrução, sem emprego, oriundo de bairros com
baixas condições financeiras e alto índice de criminalidade, o corpo social, por
sua vez, define-se como feminino, idade adulta, branco, classe média, com
profissões diversificadas, ensino superior e residente no centro.

Ou seja, a partir de tal contraponto, pode-se visualizar que o grupo


“selecionador”, também delinqüente – visto que se fossem condenadas todas
as condutas ilícitas cometidas, negligenciando-se a existência de “cifras ne-
gras” e o fenômeno no colarinho branco, toda a população seria atingida,
independentemente de suas características econômicas e sociais – etiqueta
aqueles que apresentam perfil não adequado ao seu, razão pela qual se afirma
que aquele que seleciona, advindo dos estratos sociais médio e alto, geralmen-
te imune e impune, criminaliza a minoria, proveniente dos baixos estratos
sociais ou pobres.28

Assim, conforme constatado na realidade municipal em estudo, a


seletividade parte do etiquetamento realizado pelos indivíduos dentre aqueles
estigmatizados entre todos que praticam condutas ilícitas, mostrando que a

28
Andrade, Vera Regina Pereira de. A construção social da criminalidade pelo sistema de
controle penal. Florianópolis: UFSC, 2006. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br/
busca.php?acao=abrir&id=17837>. Acesso em: 3 out. 2007.

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sociedade julga e constrói estereótipos a partir dos comportamentos e pessoas,


com determinadas características, apontadas como “desviantes”, muitas ve-
zes pela mídia, outras pelo próprio corpo social.29

3 A CRIMINALIDADE DA REAÇÃO SOCIAL NA CONDUTA DESVIADA


Postulado por René Descartes (1596-1650) em seu livro Discurso do
Método,30 o paradigma cartesiano defende a divisão como modelo científico,
a partir da separação entre dois grandes domínios: ciências exatas e humanas.
Por conseguinte, o homem foi dividido em corpo e mente, vendo o universo
como um sistema mecânico, regrado por leis matemáticas e composto por
blocos, bem como acreditando em uma sociedade de luta de classes.

Dessa forma, consoante exposição de Capra,31 a adoção do sistema


cartesiano no mundo ocidental resultou na concepção de partes separadas
para o homem, razão pela qual se estendeu à sociedade, gerando nações,
raças, religiões e políticas.

No tocante ao Direito, o pensamento cartesiano resultou na sedimen-


tação do positivismo jurídico, o qual, por sua vez, livrava o aplicador do Direito
das interpretações filosóficas, éticas e religiosas, reduzindo, assim, a sua atua-
ção à análise metódica, ao apenas disposto pelo legislador.

Por seu turno, o Direito Penal orientava-se a partir do “Paradigma


Etiológico”, inspirado em Lombroso e Ferri, sendo concebido como ciência
causal-explicativa, ou seja, instituto com função única de normatizar os delitos
pré-constituídos.

29
Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à Socio-
logia do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
30
Descartes, René . Discurso do Método. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin
Claret, 2003.
31
Capra, Fritjof. A Teia da Vida. Uma compreensão científica dos sistemas vivos. Trad. de
Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1999.

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Destarte, ao definir o delinqüente penal como um ser possuidor de


características que o tornam inadequado e perigoso para o convívio societário,
tal instituto ensejou o surgimento de indagações referentes ao que o “crimino-
so” faz e a razão de fazê-lo, negando as relações conexas entre autor e fato-
crime como fatores que se processam de igual forma no interior do meio
societário.

Em razão das mudanças transformadoras sofridas pela esfera penal, a


década de 60 marca o surgimento de um novo paradigma contemporâneo de
criminologia, o qual se propõe a analisar em que condições um indivíduo pode
ser definido como desviante, afastando-se das causas do paradigma etiológico,
e gerando o paradigma da reação social, fundamentado no modelo sistêmico,
a partir da compreensão do todo, observando a rede de conexões das partes
que formam o todo.32
O Paradigma da Reação Social, ou Labeling Approach, baseado no
modelo sistêmico e sedimentado pela Criminologia Crítica, opõe-se ao grande
inspirad or da Crimino log ia Trad icion al, o Para digma Etioló gico,
desconsiderando a natureza humana ou a sociedade como dados postos, imu-
táveis, sendo as qualidades, defeitos e as dores sociais caracteres, somente
passíveis de percepção se inseridos no contexto social, em sua totalidade.

Desta forma, expõe Almeida33 que “a sociedade é o produto da interação


do comportamento de seus membros que se estabelece numa rede contínua e
inseparável de inter-relacionamentos”.

Diante da visão explicativa da conduta humana, o Paradigma da Rea-


ção Social centra o desenvolvimento de sua tese em dois pontos fundamen-
tais, quais sejam a “conduta desviada” e a “reação social”, razão pela qual
preconiza Andrade:34

32
Almeida, Margarida Maria Barreto. Paradigma da reação social – uma nova compreen-
são do sistema penal. Montes Claros: Unimontes Científica, 2001.
33
Almeida, Margarida Maria Barreto. Paradigma da reação social – uma nova compreen-
são do sistema penal. Montes Claros: Unimontes Científica, 2001. p. 5.
34
ANDRADE, Vera Regina Pe reira de. A Ilusão da Segurança Jurídica . Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997, p. 215.

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a criminalidade não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma


entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas
uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de
complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e
informais de definição e seleção.

Em conseqüência, a própria intervenção do sistema penal na sociedade


implica a constituição da criminalidade, seja pela definição legal de crime pelo
Legislativo, seja pela definição de pessoas a serem etiquetadas, ou ainda pela
estigmatização de criminosos dentre aqueles que praticam tal conduta consi-
derada ilícita, razão pela qual se defende que o sistema penal constrói social-
mente a criminalidade a partir da seletividade criada pela lei por ele instituída.

Nesse sentido, a mesma autora afirma que o sistema se dirige a deter-


minadas pessoas, bem como a clientela penal é basicamente constituída por
pobres, o que pode ser constatado no item anterior, ao verificar-se que 92% da
população carcerária do município de Ijuí/RS é composta por pobres, sendo
os mesmos, devido às características que possuem, criminalizados e etiquetados
com maior freqüência.

É importante destacar, conforme Baratta35 defende, que ao serem tu-


telados determinados bens jurídicos, o legislador pode não atender ao interes-
se da maioria, bem como a própria seletividade deriva da seleção feita pelos
indivíduos estigmatizados entre todos que praticam tais condutas.36

35
Baratta, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
Sociologia do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan,
19 97 .
36
Dispõe Almeida (In: Paradigma da Reação Social – Uma Nova Compreensão do Sistema
Penal. Montes Claros: Unimontes Científica, 2001, p. 3) que as qualidades das partes
resultam desta interação das partes no interior do sistema e da interação dos múltiplos
sistemas. Portanto, as qualidades das partes não lhes são intrínsecas. Disso resulta não
ser possível compreender a vida senão pela compreensão dos sistemas e não ser possível
compreender os sistemas apenas pela análise.

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Assim, em consonância com a autora em apreço, apenas uma porcen-


tagem de cerca de 10% das infrações desperta a reação social, devido à incapa-
cidade estrutural do sistema penal de atender a toda abrangência com que se
propõe a lei penal, bem como a plena eficácia do sistema penal implicaria
criminalização a quase toda a população, uma vez sendo todas as infrações
penalizadas.

Igualmente, entende que a seletividade decorre da especificidade da


conduta praticada e das características sociais do autor desta, pois a seleção
desigual de pessoas coordena-se a partir do seu status social, e não da
incriminação igualitária de condutas.

Desse modo, o próprio sistema penal desencadeia um processo de


criminalização, o qual vem a produzir ou não o “etiquetamento”, cuja atribui-
ção do status criminoso é dada desde que o mesmo apresente a conotação
social estereotipada.

Nesse diapasão, Andrade37 reforça que as condutas sociais relativas


aos danos de maior gravame (danos econômicos, ecológicos, criminalidade
organizada e desvio de verba estatal) são geralmente imunizadas pela inter-
venção estatal, enquanto nos crimes que oferecem um dano menor à socieda-
de, porém com maior visibilidade (crimes contra o patrimônio, por exemplo),
seus agentes, advindos das mazelas da sociedade, são criminalizados.

Traduz-se, portanto, que a impunidade é a regra de funcionamento do


sistema penal, bem como, juntamente com a criminalização, fundamenta-se a
partir das desigualdades nas relações de propriedade e poder.38

37
Andrade, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da Segurança Jurídica. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997.
38
Fundamentando tal pensamento, Andrade ( A Construção social da criminalidade pelo
si stema de cont role penal. Fl orianó polis: UFSC, 20 0 6. Dispon íve l e m:
<www.buscalegis.ufsc.br/busca.php?acao=abrir&id=17837>. Acesso em: 3 out. 2007)
discorre que a equação minoria (dos baixos estratos sociais ou pobres) regularmente
criminalizada x maioria (dos estratos sociais médio e alto) regularmente imune ou
impune na qual vimos sinteticamente traduzindo a seletividade, indica também que a
impunidade não é uma disfunção do sistema, mas sua regra de funcionamento.

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Desta maneira, a reação social ocorre a partir do dever do Estado em


garantir a paz pública e a segurança jurídica diante do molestamento societário
provocado por indivíduos tidos como adversos ao convívio social, razão pela
qual o mesmo é selecionado e destinado ao etiquetamento, afastando-o do
corpo social.39

A partir do exposto verifica-se que o controle penal possui uma eficácia


simbólica, uma vez que as funções que declara e defende não são e não podem
ser cumpridas, fazendo com que o mesmo venha a cumprir aquelas que com-
põem seu discurso criminológico, incidindo negativamente na existência dos
indivíduos e da sociedade, bem como aumentando as relações desiguais de
propriedade e poder, ensejadoras da disfunção operada no sistema penal.40

A exposição anterior revela a constituição da ideologia penal dominan-


te e legitimadora de seu funcionamento às avessas, pois o Estado utiliza-se de
um discurso para garantir sua legitimação, fundamentado no clamor da socie-
dade em favor do recrudescimento do sistema penal. Assim, a partir do
paradigma da Reação Social, é possível verificar que o Direito Penal cumpre
sua função de forma simbólica ao sustentar uma falsa satisfação de suas pro-
messas, ao mesmo tempo em que efetua o controle social como mecanismo
de prevenção.

CONCLUSÃO
A Criminologia, no estudo do homem delinqüente, da natureza de sua
personalidade e dos fatores criminógenos, divide-se entre a Criminologia Tra-
dicional, a qual procura conhecer as causas do crime, e a Criminologia Crítica,
operadora de questionamentos acerca de como e porque determinadas pes-
soas são apontadas como criminosas.

39
Almeida, Margarida Maria Barreto. Paradigma da reação social – uma nova compreen-
são do sistema penal. Montes Claros: Unimontes Científica, 2001.
40
Andrade, Vera Regina Pereira de. A construção social da criminalidade pelo sistema de
controle penal. Florianópolis: UFSC, 2006. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br/
busca.php?acao=abrir&id=17837>. Acesso em: 3 out. 2007.

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Assim, visualiza-se que a investigação científica sobre o problema do


crime requer uma análise do comportamento do ser humano e da sociedade.
Segundo a Escola Clássica, o ser humano é dotado de livre-arbítrio e vive em
uma sociedade em torno de consensos. A Escola Positiva e a Sociologia Cri-
minal, por sua vez, negam o livre-arbítrio; enquanto a Criminologia Crítica, o
consenso social. Dessa forma, tais concepções da natureza humana e da or-
dem social resultam no questionamento acerca do problema do crime e das
teorias científicas que o analisam.

Com o escopo de refletir acerca da incidência da criminalidade no


município de Ijuí/RS, a presente pesquisa buscou coletar dados na Peniten-
ciária Modulada, na Delegacia de Polícia e junto ao tecido social, de forma a
analisar o perfil da conduta desviada, constatando que os membros da socie-
dade apontam-no conforme suas características sociais e econômicas, impu-
tando a prática ilícita àquele que se adequar ao perfil implicitamente delineado
pelo legislador, uma vez que, ao definir a conduta típica e a sua aplicabilidade,
o faz de forma a proteger os seus, o que, por conseguinte, atinge um estrato
social menos favorecido socioeconômica e culturalmente.

Nesta ótica, verifica-se no município em estudo que a seletividade


orienta-se a partir de determinadas características dos indivíduos, os quais são
estigmatizados entre todos que praticam condutas ilícitas, sendo possível afir-
mar que o tecido social julga e constrói estereótipos a partir dos comporta-
mentos e pessoas apontadas como “desviantes”.

Constata-se, ainda, que a criminalidade resta revelada a partir do status


atribuído a determinados indivíduos a partir da definição legal de crime e da
seleção que classifica e etiqueta aquele que pratica tais condutas legalmente
tipificadas.

Na cidade de Ijuí/RS, pode-se vislumbrar que o perfil dos presos tem


similaridades com as características apontadas pelo corpo social da conduta
desviada – indivíduos do sexo masculino, de baixa renda, baixa escolaridade,
cor da pele escura, praticantes de crimes contra o patrimônio e residentes em

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bairros da cidade. Distancia-se, porém, do perfil dos membros da sociedade,


uma vez que se apresentam como do sexo feminino, idade adulta, cor da pele
branca, classe média, com profissões diversificadas, ensino superior e residen-
te no centro.

Destarte, é possível verificar, a partir do estudo teórico realizado, bem


como pelos dados reais da cidade em estudo, a orientação da sociedade a
partir do Direito Penal do Autor (isto é, centra-se no criminoso, evidenciando
os fatores influenciadores do crime e do estado de periculosidade em que se
encontra), em que os entrevistados, ao responderem ao questionário, indica-
ram as características do delinqüente, similares àquele que cumpre pena na
Penitenciária Modulada de Ijuí. Porém, com considerável distanciamento do
próprio perfil, mostrando que, ao definir a conduta “criminosa”, o membro
societário busca afastá-la dos seus, indicando pessoas provenientes das “ma-
zelas sociais”, que constituem a minoria selecionada em prol da maioria
selecionadora.

Inobstante o exposto, cumpre salientar que o presente trabalho não se


reporta ao âmbito estadual ou nacional, sendo o resultado encontrado refe-
rente apenas à municipalidade, razão pela qual se pode afirmar que em Ijuí a
comunidade é orientada pela Criminologia Tradicional e reproduz o Paradigma
da Reação Social. Ou seja, estabelece a “conduta desviada” a partir da interação
social, a qual gera a “reação social”, vindo a qualificar de “marginais” deter-
minadas pessoas praticantes de condutas com maior repercussão social, in-
dependentemente do grau de lesividade ao bem jurídico tutelado, desde que
a mesma mantenha a imunidade e impunidade adquirida pelo grupo domi-
nante.

Desta forma, visualiza-se que o operador do Direito, ao interpretar e


aplicar a lei, efetiva sua visão de mundo, interagindo suas crenças sobre a
natureza humana e sobre a ordem social, de forma consciente ou não, deter-
minando a liberdade ou prisão para uma pessoa concreta, a partir da adequa-
ção desta aos parâmetros daquela.

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