ESTOICISMO E HELENIZAÇÃO Do Cristianismo

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24 REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS

ESTOICISMO E HELENIZAÇÃO
DO CRISTIANISMO

Selvino José Assmann

Embora seja discutível apresentar uma relação de cau-


salidade entre dois universos mentais e dois acontecimen-
tos históricos, sucessivos ou não cronologicamente, é con-
veniente, talvez até necessário, para se compreender
uma doutrina como o estoicismo, que se tenham em conta
o momento e a circunstancia em que a mesma foi formula-
da. Isso ocorre mais ou menos concomitantemente com a
introdução de uma religião oriental, o cristianismo, na civi-
lização greco-romana. Não se pretende aqui discutir toda a
filosofia estóica, em sua lógica, física e ética, nem descrever
e distinguir os diferentes estoicismos, desde aquele ateniense
de Zenão, no século IV a.C., até o romano, de Epíteto,
Cicero, Sêneca e Marco Aurélio, por volta do séc. III d.C.
Nem 6 propósito privilegiar a influência que as filosofias
helenistas exerceram sobre o cristianismo, em vez de res-
saltar, como se poderia, as mudanças sofridas pelo
estoicismo romano com o avanço do pensamento cristão.
Seguramente houve ambas as relações de causalidade,
embora seja mais comum falar-se apenas da primeira.
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De qualquer forma que se vejam o estoicismo e a


doutrina religiosa do cristianismo nascente, é impossível
silenciar acerca das semelhanças entre eles. E isso é útil
não só para entendermos melhor o importante fenômeno
da expansão do cristianismo, e não de outras religiões ori-
entais, mas também para percebermos que o cristianismo
que conhecemos deve ser analisado também como forma
de pensar e viver oriental que se expandiu mediante a ado-
ção de elementos da cultura clássica antiga. E isso tem a
ver com o debate, tão comum entre nós, a respeito do uso
de Platão e Aristóteles pelo cristianismo e, depois, pelo pen-
samento moderno, esquecendo-nos, equivocada e frequen-
temente, de que já os estóicos atenienses posicionaram-se,
nalguns aspectos, como ruptura com a Academia e com c)
Liceu, e que exatamente naquilo em que os estóicos rom-
pem com a filosofia anterior se aproximam de elementos
doutrinários do cristianismo e também de aspectos do pen-
samento moderno.
Para que se situem melhor as relações entre estoicismo
e cristianismo, devemos considerar igualmente que é um
equivoco identificar o cristianismo dos primeiros séculos
com uma doutrina unitária e sólida. Sabe-se que há uma
luta entre aqueles que pretendem mantê-lo vinculado à tra-
dição oriental, não dualista, mas monista, como era a cul-
tura semita - e os fundadores da Escola do Pórtico, Zendo e
Crisipo, têm formação semita - e os que procuram, talvez
com o objetivo de divulgar mais rápida e eficazmente a
"encarná-la", revesti-la com a linguagem greco-
romana. Assim, mesmo nos escritos vétero - e neotesta-
nrientários - observam-se maneiras de ver diversas, e neste
caso são decisivas, por exemplo, as distinções entre os qua-
tro evangelhos au entre os escritos do apóstolo, filo-grego e
semita, Paulo de Tarso. Podemos sustentar, de forma geral,
que é com Paulo que se dá a passagem do cristianismo
orientalizado para aquele helenizado, e que no embate, às
vezes áspero e nunca tranquilo, entre os primeiros teólo-
gos, acaba vencendo o cristianismo helenizado, sucessiva
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base da cultura medieval. A obra de Paulo de Tarso serve


de paradigma para toda a tradição posterior. Nela verifica-
mos o conflito entre os cristãos que buscam munir uma
doutrina da salvação de um equipamento especulativo, a
fim de construir uma teologia dogmática, sem recear recor-
rer ao pensamento de Platão e, mais tarde, ao de Aristóteles,
e os que desconfiam de qualquer elemento da filosofia
"pagã". E conhecido o discurso do apóstolo aos atenienses
no Areópago, hoje inscrito em pedra ao sopé do Partenon,
e que nos remete diretamente a conceitos estóicos. Nele -
os Atos dos Apóstolos referem-se explicitamente â discus-
são de Paulo com "filósofos epicureus e estóicos" - para
apresentar a nova religião, o pregador usa de todos os re-
cursos para mostrá-la não como ruptura, mas como com-
plemento e acabamento da teologia grega: Deus é apre-
sentado como o "deus desconhecido", cujo único templo é
o universo, da mesma forma como, para os estóicos, o logos
habita o universo. Contudo, o intento de convencer os
atenienses redunda em fracasso. Por isso, a seguir, Paulo
muda radicalmente de discurso: "Destruirei a sabedoria dos
sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes...
Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mun-
do?... os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedo
ria. Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escânda-
lo para os judeus e loucura para os gregos" (1 Cor. 1,19-23).
Pode-se verificar, portanto, que há, nos textos de Paulo,
duas atitudes, mas sempre tendo em conta a cultura vigen-
te em Atenas, assim como, depois, haverá quem lute para
implantar o cristianismo apoiando-se na tradição estóica (e
não naquela epicurista ou cética), ou rejeitando totalmente
qualquer elemento da cultura greco-romana.
Se quisermos ainda observar a convergência entre os
estóicos e os cristãos, comparem-se os seguintes escritos
do imperador Marco Aurélio e do mesmo apóstolo , O pri-
meiro escreve, por exemplo: "Um é o mundo que todas as
coisas compõem, una a lei, una a razão comum a todos os
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seres inteligentes; una a verdade..." (VII, IX, 2). E Paulo


ensina aos efésios: "um só corpo e um só espirito; ... uma
só esperança...; um só senhor, uma só fé, um só batismo;
um só Deus e pai de todos, que está acima de tudo, por
todos e em todos" (Ef. 4, 4-6). Contudo, apesar das seme-
lhanças, a razão da unidade defendida é bem distinta: para
os estóicos, é a idéia de uma comunidade de essência para
todos os seres; para o cristão, é a filiação de Deus, constitu-
indo um "corpo místico'. Além disso, há semelhanças no
modo de proceder para se apresentarem as doutrinas: é o
caso da diatribe cínico-estóica (discurso popular baseado
em procedimentos estereotipados) e é o caso da alegoria,
usada pelos filósofos, e da parábola, presente nos textos
bíblicos. Por outro lado, alguns Padres da Igreja retomam
quase literalmente textos estóicos quando formulam a éti-
ca cristã. Eo caso do Pedagogo de Clemente de Alexandria
(150-215 d.C.) que repete passagens do estóico Musônio
Rufo. Mais explicito é outro pensador cristão importante,
São Justino (séc. II d.C.): "os estóicos - declara ele - estabe-
leceram, em moral, princípios justos; os poetas também
expressaram alguns, pois a semente do Verbo é inata em
todo o gênero humano" (II Apologia, 8, 1). No caso, além
de se reconhecer o valor dos estóicos, inclusive se usa sua
linguagem: "semente inata do Verbo" é o _logos spermatikós,
fórmula estóica utilizada para expressar a ação imanente
do logos divino no universo e na razão de cada ser huma-
no (A respeito desta relação, vale a pena ler J. PÉPIN, J.
FESTUGIERE, sem esquecer uma obra consagrada como
a de J. QUASTEN, Patrologia)

DA "POLIS" PARA A "COSMOPOLIS"

Na tentativa de compor um quadro das relações entre


a filosofia estóica e o cristianismo nos primeiros séculos da
era cristã, devemos ter presentes alguns aspectos mais ge-
rais, a saber, algumas características da filosofia helenista,
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que podemos entender como conjunto diversificado de res-


postas aos problemas do tempo, dadas pelos epicureus,
céticos e estóicos. Isso é interessante para se compreender
a doutrina estóica como contraposição à postura epicurista
e cética e para se perceber que os cristãos, apoiando-se no
estoicismo, têm em vista, ao mesmo tempo, a critica ao
hedonismo e materialismo epicureu.
comum afirmar-se que a filosofia nasceu com a poh:s:
o pensamento racional formou-se - declara um especialista
como Vernant - não tanto no comércio dos homens com as
coisas, quanto na preocupação com as relações dos ho-
mens entre si. Por outras palavras, a filosofia nasce enquanto
é feita por homens livres; a reflexão é privilégio destes, e
neles razão e exercício de cidadania são correlatos. Sendo
a filosofia, portanto, filha da cidade, filha dos homens que
se preocupam em refletir metodicamente sobre as ações
inter-humanas, e não sobre a ação relativa à natureza bio-
lógica, o sábio é o politico, e a razão 6, em suma, razão
política; os problemas só poderão ser resolvidos politica-
mente, assim como - e Aristóteles explicita-o bem - a felici-
dade é precipuamente política. Todos sabemos também que
a expectativa, expressa por Platão, de que se resolveriam
os problemas de Atenas pela filosofia e pela ação pratica
do filósofo, ficou frustrada, fazendo com que, aos poucos,
em Platão mesmo e noutros filósofos, a filosofia se distan-
ciasse do exercício da cidadania e se refugiasse gradual-
mente na contemplação. E o germe da separação entre a
existência livre ( = politica) e o saber, entre a atividade po-
litica e o trabalho intelectual. Tal separação ocorre com
a crise de Atenas como polls, crise solucionada com a der-
rocada definitiva da autonomia das poleis pela instituição
do imperium com Felipe da Maceclônia e sobretudo com o
discípulo de Aristóteles, Alexandre. A partir dai, gregos e
orientais ("bárbaros") passam a conviver sob o mesmo
governo geral. Acabaram-se as cidades-estado, fundamen-
tos da filosofia como razão política, e rompeu-se o vinculo
estreito entre os filósofos e a liberdade política.
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A cultura grega espraia-se, tornando-se patrimônio


comum a todos os habitantes próximos ao Mediterrâneo,
ao mesmo tempo em que surgem novos centros de ativida-
de cientifica e filosófica, como Alexandria, e outra postura
floresce: enfatiza-se a especialização no trabalho intelectu-
al, cinde-se o filósofo do cientista (astrônomo, getimetra...),
ganha fôlego o saber pelo saber ( = erudito), e tudo isso
equivale a um novo rumo no conhecimento racional.
universo politico deixa de ser central, e o sábio torna-se
mais quem se pronuncia acerca da realização individual, e
não sobre a cidade ou a comunidade como um todo. Em
suma, a filosofia já não é feita com o objetivo platônico do
filósofo-rei, mas com a perspectiva de aprimorar interior-
mente o ser humano. Interessa em primeiro lugar a vida
individual, e não a vida pública. A tarefa filosófica consiste
em contribuir para a libertação dos indivíduos com relação
a qualquer escravidão externa. Por isso usam-se termos
negativos: a-taraxia (não perturbabilidade), a-praxia (não
atividade), a-patia (não paixão). A vida pública deve estar
a serviço do indivíduo, e não o contrario. Por outras pala-
vras, já não é possível esperar a solução, a felicidade, atra-
vés da política. Poderíamos afirmar que se trata do inicio
da visão pejorativa da política, continuada em toda a tradi-
gão cristã (por exemplo, Sto. Agostinho) e moderna
(Maquiavel e todo jusnaturalismo moderno, com exceção,
talvez, de Rousseau). Esta separação entre ética e política
deve-se também à impossibilidade cada vez maior de in-
terferir junto aos governantes ou de participar das deci-
sões. Estas últimas tornam-se cada vez mais inconfiáveis e
secretas (arcana imperil). Se, por conseguinte, para Platão
e Aristóteles, o público é o lugar da liberdade, e o privado
é o âmbito pré-politico e pré-ético, âmbito da diferença e
da dependência (entre livres e escravos, entre homens e
mulheres, entre adultos e crianças), para os helenistas é o
privado o terreno da ética e da felicidade. E neste sentido
que o helenismo é principalmente uma ética, separada, em
geral, de qualquer preocupação direta com a política, âmbito
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de perturbabilidade, de atividade, de paixão. Procura-se


antes de tudo o bem individual (como pode o individuo
viver bem no vasto império?), a serenidade interior inde-
pendente das circunstâncias. A filosofia adquire um caráter
existencial: de que adianta uma filosofia que não cura algu-
ma doença da alma? - pergunta Epicuro. Para alcançar a
serenidade interior, epicureus e estóicos partem da concep-
cão de um universo racional. Por isso, a ciência é a base da
construção moral; o conhecimento da natureza, a fisica, é o
alicerce da racionalidade no comportamento. Para os estói-
cos, "viver segundo a natureza" viveresecundum naturam)
é viver segundo a razão, o logos, que é tudo em todos.
As filosofias do helenismo caracterizam-se pois, pela
fusão entre gregos e não gregos, formando-se uma menta-
lidadd ecumênica (ekuméne = comunidade humana uni-
versal), para além das diferenças e auto-suficiências das
ragas e das culturas locais. Com isso fundem-se elementos
antes distintos em Platão e Aristóteles, e mesclam-se for-
mas de vida e de pensar "civilizadas" e "barbaras". Pense-
se, por exemplo, nas doutrinas religiosas A unicidade de
governo destrói a diversidade e multiplicidade de deuses,
os de cada polls, e conduz à veneração do cosmos na sua
inteireza, e invadido por uma força divina manifestada nos
astros. Para além de livres e escravos e de gregos e bárba-
ros, estabelece-se uma comunidade natural, que 6, ao mes-
mo tempo, unidade religiosa.
Assim, nascem contemporaneamente o indivíduo e o
cosmopolita. O ser humano já não é o ser da cidade (o
ateniense já não é de Atenas...), mas um cidadão do mundo.
E, como tal, eis um novo dogma que se anuncia: todos os
homens são iguais, irmãos, pois todos estão sob o mesmo
logos, e isso - insista-se - nasce antes do cristianismo, embora
depois se fortaleça com ele, com outra fundamentação. Esta
é a matriz - helenista e cristã - da igualdade moderna.
Em fragmento da obra de .Zenão, A República, pode-
se ler o seguinte: "A humanidade, já não dividida em na-
ções, cidades, burgos, mas todos os homens considerados
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conacionais e concidadãos: uma só sociedade, como um


só mundo; todos os povos constituem um só rebanho, que
se apascenta no mesmo campo". E - continua o texto -
"isso é justo por natureza, não por convenção... 0 sumo
bem consiste em viver conforme a natureza; e este 6, pois,
uma só coisa com a vida virtuosa, dado que a natureza nos
guia, ela mesma, para a virtude" (apud Umberto CERRONI,
pensiero politico, p.123 - a tradução é nossa). De manei-
ra similar, Plutarco pôde escrever depois: "Esta famosa
República de Zenão, fundador da escola estóica, esta
centrada neste único ponto; é para este discurso, já lido,
que Alexandre forneceu a matéria, com a obra por ele rea-
lizada" (ibid.). Também Cicero contribui para o estabeleci-
mento da supremacia da cosmopolis (imperium romanum)
sobre a polls. (onde de fato se vive): em primeiro lugar se é
um ser do grande universo, e este é o lugar onde todo
podem e devem ser indivíduos; por outras palavras, o
o politico, em cada situação, passa a ser visto como
impecilho para a vida individual e, por isso, é no privado,
dentro da cosmopolis, que se pode ser humano. A este res-
peito, recorde-se aqui que foi neste período em Roma que
se inicia a construção de um direito privado.
Para esclarecer ainda melhor a mudança efetuada com
o helenismo e o cristianismo no que tange à separação entre
ética e política e à atribuição de um caráter negativo à po-
lítica - certamente mais forte no epicurismo do que no
estoicismo - convém recordar a tradução cristã e medieval
do z6on politikdo aristotélico. Originarialmente, este não
tanto representa um modo de definir o politico, mas o ser
humano, assim que a vida "política" expressava ao mesmo
tempo a vida associada, a vida em koinonia. O termo "so-
cial" é latino, e foi Tomas de Aquino (1225-1274) que tra-
duziu "z6on politikán" por sociale". Contudo, o
sentido mudou: o homem já não é um animal politicum no
sentido clássico, mas um animal social enquanto universal.
Retoma-se à idéia estóica do homem que perdeu a polls, e
que tenta e precisa viver na cosmopolis. Quando o Aquinate
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se refere ao animal sociale não defende, como Aristóteles,


que a única maneira de agir bem e de ser feliz se realiza na
polis (cf. SARTORI, pp. 158 ss).
Em suma, a polls deixa de ser o ideal. O novo ideal é
a felicidade do indivíduo, que não reside na capacidade de
dominar os outros (são poucos e afastados os governantes),
mas de dominar a si mesmo. Dai a cisão entre o ideal mo-
ral e o politico. A causa da infelicidade é o mundo exterior,
urgindo, pois, recolher-se em si. A felicidade possibilita-se
por obra de cada um. Não é gratuita, por conseguinte, a
referência ao estóico quando Kant delineia o ideal do ho-
mem autônomo da Aufklárung, e nem a denúncia de
Rousseau de que a cidadania (= pertença a um determi-
nada povo) é um limite, que prejudica a realização da hu-
manidade. De fato, a idéia moderna do direito natural en-
contra origem na idéia de humanidade, enquanto
cosmopolitismo, dos estóicos; e também na modernidade,
como no estoicismo, se procura conciliar este universalismo
com a afirmação do indivíduo, separando-se e hierarqui-
zando-se o público e o privado. 0 "tu deves" kantiano
mereceu inclusive, por parte do autor, reconhecimento de
paternidade no estoicismo.
Lembre-se o que diz o estóico Panécio, parecendo
antecipar o dogma do direito natural do homem à liberda-
de (ius gentiurn), ou a negação de que haja o escravo por
natureza (contra Aristóteles) e, ao mesmo tempo, o reco-
nhecimento de que o ser humano esta para além da sua
comunidade política local: "Eu sou livre - diz Panécio -
porque, no que penso e sinto, nenhum patrão, nenhum
imperador pode de algum modo interferir" (apud POH-
LENZ, p. 758). A força moral e a autonomia humana cons-
tituem os alicerces da moral estóica, cimentados por um
logos que se manifesta como humanitas, idéia tão cara,
depois, à Renascença.
Importante é salientar, porém, que houve com o cris-
tianismo uma desdivinização do mundo. Se o estoicismo
introduz e desenvolve sistematicamente a doutrina da di-
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vindade única, absoluta e providencial, numa interpreta-


cão teleológica do mundo, este ideal só se encontra parci-
almente presente no cristianismo. Para este, o mundo não
é divino no mesmo sentido, pois é criatura de um Deus, fim
único e absoluto, mas separado do mundo. A este propósi-
to entenda-se a insistência de Agostinho em marcar as fron-
teiras entre o sagrado e o profano, entre as "duas cidades".
Portanto, apesar das semelhanças, ressaltem-se igualmen-
te as diferenças entre cristianismo e estoicismo.
De qualquer forma, são válidas as palavras do especi-
alista Festugière, referindo-se à destruição das cidades-es-
tado e ao consequente rumo tomado pelo pensamento fi-
losófico antigo: "são as conquistas de Alexandre que pre-
pararam o sucesso (da religião do mundo) na Grécia e no
Oriente helenizado. E interessante verificar como tudo se
resolve neste último terço do IV século (a. C.), do qual se
pode, de fato, dizer que assinalou uma encruzilhada decisi-
va na história do pensamento humano" (apud ADORNO,
Storia de/la filosofia, I, p. 204).

ÉTICA ESTÓICA E CONSTITUIÇÃO DO INDIVÍDUO

Depois de assinalarmos a importância do helenismo


em geral e do estoicismo em especial na construção de
novos conceitos, como o de humanidade, e na definição
do pensamento cristão, voltemos, para discutir melhor o
tema, a analisar a constituição da idéia de indivíduo no
contexto da ética estóica.
Foucault insiste, em sua instigante História da Sexua-
lidade, em mostrar como o "cuidado de si" nasceu na Grécia
e em Roma e como o ser humano passa a ser definido
tendo como tarefa obrigatória ocupar-se de si para tornar-
se livre. Conforme já dissemos, o fato de os governantes
estarem longe aumentou a dificuldade de participar da vida
pública. Nesta circunstância, os indivíduos sentiram-se im-
pelidos a viver percebendo que cabia a cada um encontrar
o caminho para a felicidade. E óbvio que, por isso, o cui-
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dado de si diminuiu o tempo disponível para participar da


atividade política. Tudo isso contribuiu para que, na rede
das relações sociais, no exercício do poder, se enfatizassem
mais e mais o domínio de si e a busca da independência
em relação aos acontecimentos exteriores. Não se quer com
isso dizer que no caso dos estóicos - ao contrario do que
ocorreu com os epicureus - isso significasse um abandono
puro e simples da atividade pública, e sim diminuição da
mesma e a mudança do seu significado. O público deve
estar a serviço do indivíduo - repitamo-lo. Para Foucault,
não se pode exagerar a afirmação de que o indivíduo se
constitui por causa da derrocada das cidades-estado: mais
do que da anulação da atividade política, constituiu-se a
"organização de um espaço complexo" (v. III, p. 89). Os
focos do poder se multiplicam, os conflitos aumentam, e o
equilíbrio é obtido com "transações variadas". Assim, não
se trata tanto de uma ética formulada a partir da decadên-
cia e da frustração com a política, quanto de uma ética que
se modifica com as mudanças nas relações consigo e com
os outros seres humanos. "Enquanto a ética antiga impli-
cava uma articulação bem estreita entre o poder de si e o
poder sobre os outros e, portanto, devia referir-se a uma
estética da vida em conformidade com o status, as novas
regras do jogo politico tornam mais difícil a definição das
relações entre o que se 6, o que se pode fazer e o que se é
obrigado a realizar; a constituição de si - continua Foucault
- enquanto sujeito ético de suas próprias ações se torna
mais problemático" (p. 91).
Com tal problematização da atividade política, que se
configurou também como retraimento, são os indivíduos
que devem decidir se vão ou não participar da vida política
(contra Aristóteles que apresentava o bfos politikós come)
exigência inderrogável da natureza humana livre). E se al-
guém for governar, por sua opção ou por delegação, deve
fazê-lo guiando-se pela própria razão: só quem sabe dirigir
a si, saberá dirigir bem aos outros. A lei é a da razão, inscri-
ta no interior do indivíduo, mais do que a lei escrita. Por
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conseguinte, na ética vale como primeiro o principio da


superioridade sobre si mesmo, e não sobre os outros. E ern
função desta lógica, aos poucos vai-se construindo a inter-
dição, a legislação e, mais especificamente, a criminalização
de certas atividades, como a que diz respeito ao comporta-
mento sexual. Os estóicos, por exemplo, são contrários às
relações sexuais extra-conjugais, e consolidam o propósito
de que a atividade sexual tenha como finalidade exclusiva
a procriação. Qualquer prazer, neste contexto, seria con-
descender com aquilo que impede o domínio de si, com a
paixão, inimiga da razão. Vivere secundum naturam signi-
flea realizar, com esforço individual, um principio univer-
sal. E a capacidade de dominar a si que distingue o sábio
do estúpido, segundo o estoicismo. Seguir os ditames da
paixão equivale à falta de razão; errar é deixar-se tomar
(patfre), ser sujeitado, por representações sem ordem. Pai-
xão é desobediência à razão, e virtude é vitória sobre a
paixão. Portanto, o que distingue o sábio do escravo (um
"doente mental") é exclusivamente isso: viver segundo a
razão ou viver segundo a paixão.
Antes de concluir nossa análise, vale a pena chamar a
atenção para outro aspecto, sobretudo tendo em conta que,
geralmente, se atribui ao cristianismo a fundação da idéia
segundo a qual todo prazer dos sentidos é um mal. Tam-
bém é comum sustentar que as raizes desta visão mani-
queista estariam em Platão, onde o cristão teria se inspira-
do, como no caso de Sto. Agostinho. Poucas vezes no sen-
so comum acadêmico são reconhecidos os equívocos des-
te tipo de avaliação.
Em primeiro lugar, importa dizer que é ambiguo, se-
não inaceitável, atribuir a origem da visão anti-prazer a
Platão. Tanto em Platão, quanto em Aristóteles e, sem dú-
vie a, em Epicuro, o prazer é bom em si. Desejar o prazer,
para Aristóteles, equivale a desejar a vida (cf. Ética a
Nicômaco, X, 1, 1157 a10 20). E por isso a vida boa, virtu-
-

osa, se confunde com a vida agradável, prazeirosa. Para


Platão, existe, sim, uma superioridade do prazer (hedoné)
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espiritual sobre o sensível, mas nunca um mal em si no


prazer dos sentidos. Fid, pois, uma hierarquia nos prazeres.
Nem sequer Epicuro - vale insistir - defende o prazer a qual-
quer custo, enquanto reafirma, em linhas gerais, o conceito
de vida boa como vida agradável, de Aristóteles. O que,
para estes autores, transforma o prazer em mal é a dor que
pode acompanhá-lo, mas nunca o prazer em si.
Donde, pois, provém o dualismo, que se tornará par-
te da moral cristã, se não se origina de Platão e Aristóteles,
nem do próprio cristianismo?
Foram os estóicos os primeiros que não viram no pra-
zer uma significação moral e, mais ainda, viram nele um
mal. Sob este aspecto, os estóicos se contrapõem à doutri-
na de Epicuro. E isso ocorreu sobretudo entre os séculos III
e I a. C., quando se insistiu em que todos os estados des-
providos de valor ético (vigor fisico, sat:1de, riqueza) não
constituem nem bem nem mal moral em si. A vida agradá-
vel (sensação de bem-estar) não acompanha em si a vida
virtuosa, que é fruto exclusivo da obediência à lei, e esta
muitas vezes vai trazer-nos a dor, e não o prazer. 0 prazer,
por isso, não pode ser o critério de bem. Eudaimonia, para
os estóicos, não 6, pois, vida agradável; por isso a dor não
é má moralmente; esta pode até indicar um bem, se supor-
tada naturalmente, racionalmente. Aqui, sim, encontramos
semelhanças entre a doutrina da cruz e o estoicismo. Lebrun
diz enfaticamente, referindo-se à "neutralização do prazer",
a destruição do "axioma do prazer", que foi o estoicismo
que operou esta revolução ética: "Operou uma mutação
axiológica que a palavra n:gorismo ainda seria fraca de-
mais para dar uma idéia aproximada. Os estóicos marca-
ram uma tal ruptura no curso do pensamento ético que,
para eles, Platão e Epicuro tornam-se, no final das contas,
comparsas, pois, apesar da imensa distancia que os sepa-
ra, eles falam ainda do interior de um mesmo sistema de
valores" (LEBRUN, p. 85). Não se trata de os estóicos abo-
minarem a vida agradável, mas de rejeitarem que, ao se
falar dela, se possa pensar em bem moral, em virtude.
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Quando, portanto, se quer a virtude, torna-se coerente para


o estóico rejeitar o prazer como critério moral, como sinal
de virtude. Este parece também o sentido da observação
de Kant, quando se refere à "vitória do Pórtico", na Crítica
da Razão Prática, vitória que, pelo visto, se consolidou com
o cristianismo. O menosprezo pelo corpo e por tudo que
lhe dizia respeito já esta evidenciado, por exemplo, em
Cicero e Sêneca, que traduzem hedoné por voluptas, apre-
sentando a esta como "infame e suspeita" (Cicero), como
o que "se esconde e procura as trevas . . . é mole, não tem
força, é úmido de vinhos e perfumes. . . embalsamado
com unguentos como um cadaver" (StNECA, apud
LEBRUN, p. 67).
Finalizando, podemos declarar que é equivocado atri-
buir ao cristianismo tudo o que se lhe costuma atribuir, e
que parcela de sua doutrina é originária do pensamento
pré-cristão, sobretudo do estoicismo, embora seja equivo-
cado também ver no cristianismo apenas uma continuida-
de da cultura anterior. 0 que dissemos, se não serve para
esclarecer suficientemente todos os aspectos de um debate
importante, pode convidar-nos a sermos mais sensatos e
rigorosos em determinadas afirmações, evitando assim que,
em nome da luta contra qualquer visão reducionista ou
maniqueista, se caia no buraco ao lado, no do erro de ava-
liação historigráfica, buraco que, As vezes, não é menos
fundo e perigoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIC AS

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2. EPICURO. Antologia de textos. . . MARCO AURÉLIO. Meditações.
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