Éthike e Hedoné
Éthike e Hedoné
Éthike e Hedoné
RESUMO
1
OCIR DE PAULA ANDREATA, é teólogo, pela FTBP; psicólogo, pela UTP; sexólogo, pela UTP-
UGF; mestre em filosofia ética, pela UGF/RJ; membro da PIB-Curitiba; professor da FEPAR.
Podemos pensar que a ética (éthike) e o prazer (hedoné) são duas
dimensões em permanente conflito na subjetividade do homem ocidental,
primeiramente como categorias opostas de sentimentos, mas, em seguida,
como pólos necessariamente complementares ao equilíbrio do caráter moral.
Também podemos perceber esta dimensão subjetiva nascendo ao longo
de um contexto histórico no mundo ocidental antigo, correspondente ao centro
do mundo bíblico, mais acentuadamente no momento de transição entre os
Testamentos, uma “plenitude dos tempos” (pleróma toû kronou, Gl. 4,4) no
desenvolvimento da consciência moral, social e espiritual do homem ocidental.
É comum pensar-se que, por toda a extensão da antigüidade, desde os
tempos mais remotos, o conhecimento da vida e a interpretação da realidade
se dava proeminentemente pela via do mito (mythós), isto é, pela relação
religiosa com a natureza. Mas também que, por volta do século VI aC, com o
nascimento da filosofia na Grécia clássica, surge a razão (logós) como via de
compreensão e relação com a realidade. Neste momento, nasce a ética como
categoria racional de compreensão e controle dos impulsos humanos e, na
medida em que se impõe, estabelece a reflexão como fonte principal de
formação do caráter pessoal e social do homem ocidental.
No contexto do mundo clássico, segundo a leitura do helenista francês
Pierre Hadot (2004), a reflexão filosófica passa a ser a própria atividade de
interioridade do espírito grego, um modo de vida reflexivo. E o eixo desta
interioridade racional grega é a virtude moral (areté).
Mas é bem verdade que, atravessando-se o Mar Egeu, encontramos
também o mesmo processo de interiorização ou “subjetivação” da moral no
homem do velho mundo oriental, berço da humanidade, com o florescimento da
cultura de um humanismo literário, na produção de uma rica literatura de
sabedoria. No ambiente bíblico veterotestamentário, na comunidade judaica
pré e pós-exílica, este movimento de interiorização do sujeito também
acontece, através da literatura sapiecial bíblica, como também pela pregação
ética dos profetas, convocando o povo mais à reflexão de seus atos e à prática
da justiça, do que propriamente a oferenda de sacrifícios.
Assim, podemos pensar que após o século VII aC inicia-se um intenso
processo de construção da subjetividade humanística no homem do Ocidente.
1. Éthike e Hedoné: a subjetividade ocidental em conflito.
2
SPINELLI, Miguel, em O Daimónion de Sócrates, artigo na Revista Hypnos Nº 16, 2006, p.32-61, cita
Aristóteles na Ética a Nicômaco, II, 1,1103a 17-18, como referência ä etimologia do termo.
3
LIMA VAZ, Henrique C., em Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética Filosófica 1, 2002, p.12-13,
faz diferenciação entre “ética” e “moral” seguindo o conceito hegeliano de desenvolvimento histórico do
“ethos”, a partir da evolução do conceito desde um certo “saber ético” produzido pelos hábitos e costumes
culturais de um povo, até um sentido lato de “ética” como sistema racional filosófico (p.57-66).
Uma gama de pensadores preferem usar amplamente o termo ética,
abordando duas dimensões: uma referindo-se àquele sistema filosófico que se
volta para uma dimensão mais transcendente da existência humana, de modo
reflexivo e adjetivo, que se atém aos princípios e fundamentos que regem a
vida e ação humana; outra, à uma dimensão mais imanente do cotidiano,
especifica da ação em si e das regras de conduta.
Mas, na cultura do senso-comum, geralmente as pessoas fazem
separação nestas duas realidades da vida humana, designando a reflexão
transcendente da existência como “ética” propriamente dita vida e a existência
imanente dos usos e costumes como “moral”. Talvez este “senso” advenha das
diferenças existentes nas tradições e modo de vida dos ethos grego e romano.
Aristóteles via a ética como “doutrina dos costumes” e a diferenciava
entre “éticas da razão” (dianoéticas) e “éticas das virtudes” (éthike ta areté) ou
ética da ação virtuosa. Com as dianoéticas, virtudes intelectuais, o homem
serve à vida na pólis; com as éticas das virtudes, à ação prática consigo
mesmo, em ordem, justiça, temperança e amizade.
Deste modo, a ética ganha também o sentido de produção de um saber
que se articula a partir da reflexão de pensadores e que deve ser repassada
ou ensinada aos interessados nela, possibilitando-se, assim, uma educação
para a virtude (paidéia), visando a vida boa como excelência de vida (eu zen).
O orador romano Cícero diz que o começo da reflexão racional e teórica
em ética é atribuído ao socratismo (Tusculanas, V, 10-11). Canto-Sperber4,
entretanto, vê antecedentes da ética nos pré-socráticos, nas obras literárias
dos poetas, dramaturgos e mesmo dos sofistas contemporâneos de Sócrates.
É bem verdade que Sócrates demarca nova etapa na investigação ética,
quando coloca como método a reflexão crítica, a exposição de noções morais
com enunciados verdadeiros, fundamentados na racionalidade e visando ao
exame de nossa própria vida, criticando as falsas crenças e buscando
coerência entre nossos pensamentos e nossos comportamentos, que levem ao
aperfeiçoamento de nós mesmos.
4
CANTO-SPERBER, M., síntese em Antigüidade, In: Dicionário de Ética e Filosofia Moral, 2003, Vol.
I, p.94-106, e no artigo Os Antigos Conosco, Trad. Edson Resende, Paris, Revista Sprit, 2002 (p.8-15).
O desenvolvimento intenso da racionalidade entre os gregos para
explicar os fenômenos da vida põe o humano em lugar de primazia, gerando
um antropocentrismo para a vida social e política, centrado na capacidade de
interioridade deste novo ser humano. Obviamente, na medida que a religião
passa a ser substituída pela razão na condução da vida, a moral é que se torna
o novo limite supremo aos impulsos humanos.
O problema é que este limite da moral social é sempre flexível, na
proporção da evolução histórica do pensamento. Mudam-se os sistemas
racionais, mudam-se as regras de conduta. O homem fica mais esclarecido de
seus impulsos e motivações, mas seus ideais e ações ficam mais pervertidos.
Para continuar garantindo a “ordem e harmonia” do cosmos humano,
social e cultural, a própria moral também sente seus limites de ir além,
conduzindo este “animal político”, pela via de “éticas cosmológicas”, à
felicidade da vida plena, conquanto que esta “vida plena” (eu zen) seja primeiro
as obrigações da vida na pólis, para depois, como prêmio a esta vida pública, o
gozo da imortalidade pelo retorno ao Uno.
Todavia, como vimos, a filosofia ética não cessa seu devir de procurar
novas compreensões e de propor novos sistemas de conduta, encontrando aí
seu próprio limite, tendo também, peremptoriamente, enfraquecido a fé.
É neste contexto histórico que o Cristianismo ganha projeção no mundo
antigo, ao propor a vida cristã como basicamente uma moral (Mt 5-7), apoiada
pela fé num só Deus, tendo, como “lógos divino” se manifestado em carne na
“pessoa” de Jesus Cristo (Jo. 1,1-3), nada também mais consoante ao
pragmatismo da mentalidade e estilo de vida romana.
Assim, podemos pensar que a reflexão moral antiga começa no séc. VII
aC e se encerra com o desenvolvimento do pensamento cristão, quando
desaparecem totalmente os autores que invocam o testemunho de escolas
socráticas e helenísticas, e o Cristianismo passa a assumir sozinho a
condução da vida moral ocidental, subjugando a própria filosofia à ortodoxia da
teologia, por toda a Idade Média, porém já sofrendo crescente processo de
rupturas com o devir da Escolástica e da Renascença, e que explodirá no
advento das ciências, das grandes descobertas e da Reforma Protestante.
Mas, voltando ao ponto para fechar a síntese, não se pode negar,
portanto, o inexorável legado da interioridade moral da racionalidade grega.
Para Homero e Hesíodo (cerca séc.X-VIII aC), a ordem e harmonia da
natureza física (physis), a cosmogonia, é resultado dos deuses. Os
pensadores pré-socráticos buscaram na physis uma substância original, um
princípio ativo único gerador das coisas (arché). Heráclito de Éfeso (c. 540-470
aC), explica o cosmos como “ordem e harmonia” do “múltiplo no um”, através
do contínuo fluxo de forças opostas num todo dinâmico e divino, o “Lógos”.
Este mundo (cosmos), que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses
ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo,
que se acende em medidas e se apaga em medidas. (Fragmento B 30)5
Por isso, esta ética grega é, acima de tudo, uma “ética da felicidade”
(eudaimonia), que pressupõe o cidadão ser educado nos valores do espírito.
Aristóteles distingue entre a felicidade que o homem pode encontrar na
vida política, na vida ativa – é a felicidade que pode conduzir à prática da
virtude na cidade -, e a felicidade filosófica que corresponde à theoría, isto é,
a um gênero de vida consagrado totalmente à atividade do espírito. (Hadot,
2004, p.121).
6
Esta tradição é referida, por exemplo, nos clássicos dicionários bíblicos de John D. Davis, 1977, p.449 e
no Novo Dicionário da Bíblia, 1988, p.1217.
ambiente religioso, aproxima o tema da moralidade às religiões e às tradições
culturais destas sociedades.
Em todo o escopo histórico do Antigo Testamento, ao longo do
desenvolvimento social israelita, há mais liberdade e positividade7 para com o
prazer que a abordagem filosófica grega, como mostram literaturas poéticas
orientais sobre o amor e as relações afetivas, como bem exemplifica a
coletânea de poemas bíblicos de amor no Cântico dos Cânticos.
Mas, na medida em que o monoteísmo cada vez mais se debateu contra
a poligamia para estabelecer a monogamia, cresce um lugar de negatividade
ao prazer na literatura religiosa judaica, no exato momento em que começa a
tradição filosófica grega, reforçando a vida moral, justa, piedosa e virtuosa.
Este processo, a que chamamos de subjetivação da moral e da fé, traz
como resultado que esta ética de virtudes potencializa a culpabilidade do
sujeito moral e religioso. A tradição das éticas cosmológicas gregas ganha a
emergência da escatologia judaico-cristã. E, quando o cristianismo traz a
mensagem de proeminência da realização do reino de Deus na realidade
histórica do individuo e da comunidade, aqui e agora, a teologia cristã pecaliza
o desejo, proporcionando uma renúncia ao corpo e uma negação ao prazer.
A subjetivação ou interioridade moral contra o prazer se dá nos gregos
pela via da reflexão filosófica e no judaísmo pelo discurso e experiência da fé.
O filosofar grego, conforme anuncia Pierre Hadot (2004, p.103), também
constitui em si uma “teologia”, enquanto cada sistema prescreve “exercícios
espirituais” como parte da meditação filosófica. De modo geral, todas as
recomendações dos filósofos para a “salvação” (sotéria) do indivíduo dizem
respeito à vida moral, visam dirigir o comportamento, propiciar o bem e levar o
ser humano a alcançar a felicidade da vida boa na existência terrena. A
singularidade desta “espiritualidade filosófica”, porém, é o fato de ela advir da
reflexão racional, no pleno exercício de liberdade e autonomia do sujeito moral.
É óbvio que a moral cristã é releitura e aprofundamento da moral judaica
veterotestamentária. Todavia, precisamos enxergá-la, como indica o professor
Lima Vaz (2002, p.170), invertendo sua ótica em relação à ética grega: a moral
7
Textos e aspectos destas literaturas são encontrados nos historiadores: Jacques Le Goff, Paul Veyne,
Claude Mossé, François Lebrun, Georges Duby, Philippe Ariés, e outros, em Amor e Sexualidade no
Ocidente, POA, L&PM, 1992; em Reay Tannahill, O Sexo na História, RJ, Francisco Alves, 1983; e em
Jean-Louis Flandrin, O Sexo no Ocidente, SP, Brasieliense, 1988.
judaica não advém da livre reflexão racional, mas da vivência social da fé
religiosa monoteísta ao longo do desenvolvimento do ethos. É contrária à
autonomia (autarchéia) grega, pois pressupõe, de um lado, uma relação de
dependência do fiel para com Deus, e de outro, um comprometimento deste
com a comunidade e o próximo.
A religião judaica, como observa Paul Ricoeur, é essencialmente uma
religião da culpa. E esta culpa ganha uma tônica distintamente subjetiva, na
simbologia do ser preso a um fardo opressivo, quanto mais é despertada a
consciência da condição humana perante a perfeição do divino. Mas, para
Ricoeur, esta “interiorização da culpa” traz “progresso à consciência”, na
medida em que abandona a realidade coletiva externa e focaliza a realidade
subjetiva interna, pois a culpa tende a individualizar-se (1970/6, p.682).
E é em meio a isso que Jesus aparece pregando: “tomai sobre vós o
meu jugo..., pois o meu fardo é leve e o meu jugo é suave!” (Mt. 11,29-30), pois
o “jugo do amor” alivia a culpa do “fardo da lei”, na subjetividade daquele que o
segue, imitando seu exemplo.
A conduta cristã, seguindo a doutrina veterotestamentária de que “O
justo viverá pela fé” (Hab. 2,4), é, assim, regida mais como modo de vida de fé
do que pura moral, conforme corrobora Canto-Sperber (2005, p.47): “A palavra
evangélica, que recomenda a renúncia, a castidade, a pobreza e a humildade,
é pois mais uma fé que uma moral”.
O lugar desta nova ética da “Boa Nova” do Evangelho (euaggelos) de
Cristo, conforme Canto-Sperber (Idem, p.46), não é de fácil definição; pois, ao
mesmo tempo em que pressupõe dependência em obediência filial a Deus-Pai
(Mt. 6,26-34; Jo. 15,7-14), prega a possibilidade da experiência de nova e
radical liberdade (Jo. 8,30-37), tudo sob a regência da “regra de ouro” da práxis
cristã em prol do próximo, à qual Jesus resumiu toda a Revelação: “Tudo o que
quereis que os homens voz façam, fazei antes vós a eles, pois isto é a Lei e os
Profetas” (Mt. 7,12).
A identificação da divindade (theós) na pessoa de Jesus (Christós),
como o interpreta São João no prólogo do seu Evangelho, dizendo que “o
Logos se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória...” (Jo. 1,14), é um
desvio radical na herança grega sobre a transcendência do ser divino.
A respeito deste fato histórico significativo à ética, o filósofo Luc Ferry, ao
considerar a aproximação do “cosmológico-ético” grego à cosmologia judaico-
cristã, chama este “momento cosmológico” de uma verdadeira “imanência da
transcendência”, quando o Lógos se faz homem ! (Ferry, 2004, p.231).
Neste ponto a mensagem da Boa Nova traz uma segunda mudança
radical que se imprimirá no modo de vida cristã, ao juntar as exigências morais
deste “cosmológico-ético” à expectativa de uma “escatologia”, ou seja, a
iminência do “fim dos tempos”, que se desenvolve em todo o Novo Testamento,
a partir da afirmação feita por Jesus de que “voltaria outra vez” (Jo. 14,1-3),
conhecida como a doutrina da Parousia, ou da Segunda Vinda de Cristo.
Em suas origens, o cristianismo, tal qual se apresenta nas palavras de Jesus,
anuncia a iminência do fim do mundo e o advento do reino de Deus, uma
mensagem totalmente estranha à mentalidade grega e às perspectivas da filosofia,
pois ele se inscreve no universo de pensamento do judaísmo, que sem dúvida,
subverte, dele conservando certas noções fundamentais. (Hadot, 2004, p.333).
É, pois, sob esta perspectiva e neste contexto que Paulo doutrina sobre
o tema do prazer e seus tópicos como a sexualidade, o matrimônio e a
castidade, como “em tempos de fim”, gerando uma urgência na realização do
Reino e rígida exigência moral, “por causa da angústia do tempo presente”
(1Cor 7.26,29), doutrina que se sedimentará como teologia na Patrística.
E em fim, que visão bíblica do prazer da sexualidade Agostinho herda,
como sintetizador da doutrina cristã? Basicamente a visão que virou tradição a
partir de Paulo: pecalização do desejo, renúncia ao corpo e negação do prazer.
Fica claro que, apesar de estabelecer normas sociais para a
sexualidade, a moral bíblica do Antigo Testamento é menos repressora que a
do Novo. Os livros sapienciais trazem uma visão mais humana e integradora da
sexualidade, com riqueza poética e valorização do prazer, contendo até mesmo
um livro de erótica, segundo a interpretação literal, o Cântico dos Cânticos!
Também faz-se necessário apontar que a moralidade torna-se central no
ethos judaico quanto maior fica a luta empreendida, por seus profetas, ao longo
de sua história, por distinguir o pudor da fé monoteísta contra a sensualidade
do politeísmo baalista das culturas religiosas circunvizinhas.
No período pré-cristão, a proximidade de crenças como as da religião
persa influíram na concepção judaica da origem do mal e sua associação ao
corpo e ao prazer. É razoável, ainda, inferir-se que também houve influência
das éticas gregas na teologia judaica, mormente por sua vertente Alexandrina.
Em Jesus, porém, vê-se maior liberdade de expressão, comunicação e
troca de afetos, com inovadora valorização às mulheres, muito além dos lideres
religiosos de sua época, pouco enfatizando questões de moral sexual.
Já em Paulo, primeiro doutrinador do cristianismo, encontramos um
esboço de teoria geral de moral sexual cristã, que é seguida pelos demais
escritores neotestamentários e serve de base à teologia patrística, cuja
influência se mostrará acentuada no pensamento de Agostinho. Contudo,
devemos considerar o fato de que a moralidade sexual preconizada por Paulo
tinha o propósito de valorizar a pessoa e as relações humanas, em um combate
contra a liberalidade da sociedade greco-romana, apoiando-se também em
valores éticos gregos como a opção pela abstinência e o ascetismo estóico.
Ao interpretar o discurso de Jesus, que projeta a culpa na motivação
antes do ato, como forma de desmascarar a hipocrisia legalista judaica (Mt
5,28), Paulo culpabiliza o desejo (concupiscentia) como fonte do mal no interior
humano. O olhar filosófico de Giulia Sissa 8 nota nisto a diferença de estratégias
das éticas grega e cristã sobre o prazer e o desejo: o que antes era insaciável e
irrefreável é agora facilmente alcançável e corruptível ao corpo, templo santo!
Concordamos que a ética da Patrística, como reitera Benetti (1998, 294),
em meio a este sincretismo de idéias, imprimiu novos valores cristãos sobre a
sexualidade, nesta ordem: a) superioridade da virgindade sobre o matrimônio;
b) o prazer sexual submetido à continência, mesmo dentro do matrimônio; c) o
ato sexual conjugal como concessão somente para a procriação e ilícito com
qualquer elevação de gozo; d) o celibato e a abstinência como virtudes
superiores. Os “bens do matrimônio” passam a ser apenas: a procriação, a
fidelidade dos cônjuges, o cuidado mútuo dos cônjuges, e o impedimento à
fornicação, que é sexo antes do matrimônio.
8
SISSA, Giulia (1999, p.105), faz importante observação da tradução latina de São Jerônimo para o texto
de Jesus (Mt 5,28): “só em olhar... já adulterou no coração com ela” (iam stupravit in corde suo), onde o
termo iam, “já”, coloca a realização do desejo na velocidade do tempo presente, na forma de “ato no
desejo”, e que para a Patrística, a partir de Jerônimo, o coito passa a ser stuprum (estupro, agressão), em
sentido pejorativo, no sentido de que a relação sexual é agressão do marido à esposa.
O surgimento da tradição cristã monástica9, a partir da experiência
pessoal de Santo Antônio, no Egito em 270, crescentemente influiu grupos de
cristãos a abandonarem a vida secular para tornarem-se padres e freiras em
mosteiros e conventos, como opção total de renúncia à sexualidade e fuga da
pecaminosidade da sociedade, mormente das grandes metrópoles da época.
Contudo, como diz Meeks (1997, p.131), nas relações cristãs dos
séculos I-II, o casamento não é abolido e os milhares de membros comuns da
Igreja tinham de se haver com a vida cotidiana, que incluía o matrimônio, filhos,
família e as interações sociais de sobrevivência, vida esta, como defenderam
Aristides e Diagneto, em cartas ao imperador, em tudo “comum e igual” aos
demais cidadãos, bem distante da pureza ascética dos “retiros” monásticos.10
Para um entendimento mais profundo das razões da tradição cristã de
negação ao corpo e renúncia ao prazer, deve-se levar em conta também as
influências de grupos místicos, como o gnosticismo e maniqueísmo, além da
possível contribuição de autopurificação ascética pela metafísica neoplatônica.
Chega-se, assim, já em Agostinho, às portas da Idade Média, a uma
consolidação de “novas virtudes na ética cristã”, como doutrina de exortação
aos fiéis comuns e imposição moral aos sacerdotes: piedade, castidade,
celibato, virgindade aos solteiros, abstinência aos casados e proteção à família.
A “conversão”, fenômeno subjetivo da luta do espírito contra a carne,
ritualizado publicamente no “batismo”, que torna-se o rito iniciático do
cristianismo, impõe ao cristão profundo senso de responsabilidade ética de
uma beata vita, como cidadão do céu e peregrino no mundo.
Portanto, esta é a herança que Agostinho receberá e o contexto moral
que servirá aos seus debates teológico-filosóficos, centrados em sua própria
experiência pessoal, gerando um dos momentos mais decisivos na história da
construção ética do ocidente, que se tornará em alicerce do sentimento
ocidental para com o debate entre a ética e o prazer.
9
Ver: BROWN, Peter. Corpo e Sociedade, Op. Cit., p.182-203; também SALISBURY, Joyce E. Pais da
Igreja, Virgens Independentes, Trad. Tânia Marques, SP, Scritta, 1995, p.25-66, com extensa
apresentação da sexualidade na Patrística, principalmente sobre os primeiros conventos de freiras e sobre
santas virgens, grupos que passam a ser incentivados como opção de santidade radical.
10
Meeks, em As origens da Moralidade Cristã: os dois primeiros séculos. Trad. Adaury Fioretti. SP,
Paulus, 1997, traz sínteses destes importantes primeiros documentos cristãos (p.131ss).
Como dissemos, em Agostinho, tem-se um encontro e síntese da
filosofia com a teologia e um esboço de ortodoxia da doutrina cristã. Ele
mesmo diz ter-se iniciado entusiasticamente na filosofia pelo estoicismo de
Cícero: “Porém, o amor da sabedoria, pelo qual aqueles estudos literários me
apaixonavam, tem o nome grego de Filosofia. (Confissões, III,4,8).
Em seguida, diz que conheceu também textos platônicos e aristotélicos
(De Beata Vita, 1,4; Confis. IV,16,28); e, sobretudo, textos neoplatônicos de
Plotino e Porfírio, com que certamente mais se depara (Confissões, VII,9,13).
Contudo, após a conversão, critica e recusa estas filosofias, para dar
primazia à teologia e exaltar a busca da espiritualidade cristã. Nas Confissões,
diz recusar o neoplatonismo por este não admitir a possibilidade da encarnação
do Lógos (VII,9,14) e o platonismo por este não contemplar a perfeição nas
coisas criadas, como revela as Sagradas Escrituras (VII,20,26). Mas, no Da
verdadeira religião, ao confrontar o platonismo com o cristianismo, ressalta
muitos elementos essenciais de um no outro.
Acima de tudo, como mostra Pierre Hadot (2004, p.339), a doutrina
cristã da Patrística, anterior a Agostinho, desde os primeiros Pais Alexandrinos
como Justino, Clemente e Orígenes, é fortemente influenciada pelo platonismo
e estoicismo. Agostinho, no De Vera Religione (III, 3), faz concordar o
cristianismo com o platonismo, no que se refere a necessidade do sujeito,
através da razão, depurar a alma dos erros, distorções e falsas opiniões que
vêem dos sentidos, pois somente a alma racional e intelectual é capaz de
usufruir a contemplação da eternidade de Deus e de nele encontrar a vida
eterna (Hadot, p.352).
Resta a crítica de que a recepção do cristianismo ao platonismo e ao
estoicismo é ampla. Para Pierre Hadot, a diferença consiste no fato de que o
platonismo não pôde converter as massas e desprendê-las das coisas terrenas
para orientá-las para as coisas espirituais, como fez o cristianismo (p.353).
Para o martelo crítico de Nietzsche, no prefácio de Para além do bem e
mal, meramente “o cristianismo é um platonismo para o povo” (1987, p.16).
Mas, após mais de dois mil anos, terão eles razão, frente ao triunfo do
cristianismo, mesmo sob o crítico fenômeno do denominacionalismo?
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